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Margarida Maria Lacombe CamargoPesquisadora da Casa Rui Barbosa.
Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação)
A
HERMENEUTICA E,.,ARGUMENTAÇAO
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Prefácio deVicente de Paulo Barretto
3a ediçãorevista e atualizada
Posfácio deAntonio Cavalcanti Maia
RENOVARRio de Janeiro. São Paulo
2003
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Camargo, Margarida Maria Lacombe.Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito /
Margarida Maria Lacombe Camargo; prefácio de Vicente de Paulo Barretto.- 3.ed. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
299p. ; 21cm.
ISBN 85-7147-392-7
1. Hermenêutica (Direito). 2. LingUística. 3. Análise do discurso. 4.Retórica. I. Barretto, Vicente de Paulo. 11. Título.
CDD 340.11
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Os Cursos de Pós-Graduação têm se desenvolvido no Brasil, e a produção de teses temsido elevada e de alto nível.
A Editora Renovar propõe na presente Biblioteca estimular a divulgação de obras quecontribuam para o desenvolvimento da ciênciajurídica brasileira, levando-as ao conhecimento do grande público.
No Direito as novidades estão, de um modogeral, nas teses e nas revistas especializadas.
Assim sendo, a Editora Renovar abre a sualinha editorial para os juristas que estão noinício de sua carreira profissional como mestres e doutOres. A Biblioteca tem esperançade que venha a constituir um estímulo a estesprotissionais. .
E mais uma prova de que acredItamos naqualidade das obrasjurídicas brasileiras: A nossa linha editorial é marcada por uma ngorosaseleção realizada pelo Conselho Editorial, quereúne eminentes juristas.
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Posse da Segurança Jurídica à Questão SocialMarcelo Domanski
O Prejuízo na Fraude Contra CredoresMarcelo Roberto Ferro
A Pessoa Jurídica e os Direitos da PersonalidadeAlexandre Ferreira de Assumpção Alves
Estado e Ordem Econômico-SocialMarco Aurélio Peri Guedes
O Projeto Político de Pontes de MirandaDante Braz Limongi
O Direito do Consumidor na Era da GlobalizaçãoSônia Maria Vieira de Mello
As Novas Tendências do Direito ExtradicionalArtur de Brito Gueiros Souza
Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-FéTeresa Negreiros
O Ministério Público BrasileiroJoão Francisco Sauwen Filho
A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico BrasileiroMaria de Fátima Carrada Firmo
Propriedade e DomínioRicardo Aronne
O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da ConstituiçãoPaulo Arminio Tavares Buechele
Condomínio de FatoDanielle Machado Soares
A Liberdade de Imprensa e o Direito à ImagemSidney Cesar Silva Guerra
Direito de Informação e Liberdade de ExpressãoLuís Gustavo Grandinetti C. de Carvalho
A Saga do Zangão - Uma visão sobre o direito naturalViviane Nunes Araújo Lima
Mercosul e Personalidade Jurídica InternacionalMarcus Rector Toledo Silva
Família sem CasamentoCarmem Lúcia S. Ramos
A Disciplina Jurídica dos Espaços Marítimos na Convenção das Nações Unidassobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência InternacionalJete Jane Fiorati
O Direito Econômico na Perspectiva da GlobalizaçãoCésar Augusto Silva da Silva
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Os Limites da Reforma ConstitucionalGustavo Just da Costa e Silva
O ReferendoAdrian Sgarbi
Segurança Internacional e Direitos HumanosSimone Martins
Os Fundamentos e os Limites do Poder Regul. no Âmbito do Mercado FinanceiroSimone Lahorghe
O Direito CibernéticoAlexandre F. Pimentel
Conflitos entre Tratados Internacionais e leis InternasMariângela Ariosi
Privatizações sob Ótica do Direito PrivadoHenrique E. C. Pedrosa
A tutela de urgência no processo do trabalho: uma visão histórico-comparativa(Idéias para o caso brasileiro)Eduardo Henrique von Adamovich
Jurisprudência Brasileira sobre Transporte AéreoJosé Gabriel Assis de Almeida
Superfície Compulsória - Instrumento de Efetivação da FunçãoSocial da PropriedadeMarise Pessôa Cavalcanti
As famrlias não-fundadas no casamento e a condição femininaAna Carla Harmatiuk Matos
Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalhoAldacy Rachid Coutinho
A vida humana embrionária e sua proteção jurídicaJussara Maria Leal de Meirelles
O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana:O Enfoque da Doutrina Social da IgrejaC1eber Francisco Alves
Conversão Substancial do Negócio JurídicoJoão Alberto Schützer Del Nero
O Direito da Concorrência no Direito Comunitário Europeu Uma contribuição ao MercosulDyle Campello
Mercosul, União Européia e ConstituiçãoMarcio Monteiro Reis
Direito Tributário e Globalização: Ensaio Crítico sobre Preços de TransferênciaJurandi Borges Pinheiro
Transexualismo. O direito a uma nova identidade sexualAna Paula Ariston Barion Peres
Direitos Reais e Autonomia da Vontade(O Prindpio da Tipicidade dos Direitos Reais)André Pinto da Rocha Osorio Gondinho
A Paternidade Presumida no Direito Brasileiro e ComparadoLuis Paulo Cotrim Guimarães
Os Novos Paradigmas da Família ContemporâneaCristina de Oliveira lamberiam
O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo PenalFrancisco das Neves Baptista
O Direito ao Desenvolvimento na Perspectiva da Globalização:Paradoxos e DesafiosAna Paula Teixeira Delgado
Cooperação Jurídica Penal no MercosulSolange Mendes de Souza
Em Busca da Família do Novo MilênioRosana A. Girardi Fachin
Juizados Especiais CriminaisBeatriz Abraão de Oliveira
O Princípio da ImpessoalidadeLivia Maria Armentano Koenigstein lago
O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público ContemporâneoSilvia Faber Torres
Direito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicospara Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões TrágicasGustavo Amaral
Decadência e Prescrição no Direito Tributário do BrasilFrancisco Alves dos Santos Jr.
lesão Contratual no Direito BrasileiroMarcelo Guerra Martins
Acesso à Justiça - Um problema ético-social no plano da realização do DireitoPaulo Cesar Santos Bezerra
Concurso Formal e Crime ContinuadoPatr(cia Mothé G/ioche Béze
A Boa-fé e a Violação Positiva do ContratoJorge Cesa Ferreira da Silva
Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicionallulmar Fachin
Gestão Fraudulenta de Instituições de Instituição Financeira eDispositivos Processuais da lei 7.492/86Juliano Breda
Contratos de Software "Shrinkwrap Licenses" e "Clickwrap Licenses"Emir Iscandor Amad
Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade PráticaCláudio Pereira de Souza Neto
Desconsideração da Personalidade Jurídica - Aspectos processuaisOsmar Vieira da Silva
O Dano Pessoal na Sociedade de RiscoMaria Alice Costa Hofmeister
Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal TributárioIso Chaitz Scherkerkewitz
Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros DireitosMônica Neves Aguiar da Silva Castro
•Da Lesão no Direito Brasileiro AtualCarlos Alberto Bittar Filho
Repetição do Indébito Tributário - O Inconstitucional artigo 166 do CTNLuis Dias Fernandes
Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao DireitoNoel Struchiner
Direito Tributário versus MercadoMarcos Rogério Palmeira
O Direito à EducaçãoRegina Maria F. Muniz
O Abuso do Direito e as Relações ContratuaisRosalice Fidalgo Pinheiro
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Do Pátrio Poder à Autoridade ParentalMarcos Alves da Silva
Paradigma Biocêntrico: Do Patrimônio Privado ao Patrimônio AmbientalJosé Robson da Silva
O Discurso Jurídico da Propriedade e suas RupturasEroulths Cortiano Junior
Terceirização e Intermediação de Mão-de-obraRodrigo de Lacerda Carelli
As Agências Reguladoras no Direito BrasileiroArianne Brito Rodrigues Cal
As Novas Tendências na Regulamentação do Sistema de Telecomunicações pelaAgência Nacional de Telecomunicações - ANATELLucas de Souza Lehfeld
A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado BrasileiroAntenor Pereira Madruga Filho
A Mulher no Espaço Privado: Da Incapacidade à Igualdade de DireitosMaria Alice Rodrigues
A Propriedade como Relação Jurídica ComplexaFrancisco Eduardo Loureiro
O Conceito de Anulação ou Prejuízo de Benefícios no Contexto da evolução doGATT à OMCRegina Maria de S. Pereira
O Direito de Assistência HumanitáriaAlberto do Amaral Júnior
Contrato de Trabalho VirtualMargareth F. Barcelar
O Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional BrasileiraMaurício Gentil Monteiro
Transformações do Direito AdministrativoPatrícia F. Baptista
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A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de TrabalhoBruno Lewicki
Próximos lançamentos
A Defesa do Consumidor na Estrutura Sócio-Econômica do Neo-LiberalismoMaría Alejandra Fortuny
Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da GlobalizaçãoVania Mara Nascimento Gonçalves
A Relação entre o Interno e o InternacionalEstevão Ferreira Couto
Contribuições para o Financiamento da Seguridade Social:Critérios para Definição de sua Natureza JurídicaSi/vania Conceição Tognetti
Juizados Especiais Federais CíveisAlvaro Couri Antunes Souza
O Direito Frente às Famílias ReconstituídasRosane Felhauer
De Marx a Deus - Os Tortuosos Caminhos do Terrorismo InternacionalDenise de Souza Soares
Comissões Parlamentares de Inquérito no BrasilJessé Claudio Franco de Alencar
Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos MenoresJeovanna Malena Vianna Pinheiro Alves
Regime Jurídico dos Incentivos FiscaisMarcos André Vinhas Catão
O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública Para uma Administração ImparcialAna Paula Oliveira Ávila
Franchising: Reflexos Jurídicos nas Relações das PartesRoberto Cavalcanti Sampaio
O Regime Jurídico do Financiamento das Campanhas EleitoraisSergei Medeiros Araujo
Espaços Públicos Compartilhados entre a Administração Pública e a SociedadeRenato Zugno
Responsabilidade Objetiva do Estado do Rio de Janeiro por Omissão na Área deSegurança PúblicaAntonio Cesar Pimentel Caldeira
Un Estudio Comparativo de la Protección Legislativa dei Consumidor en elAmbito Interno de los Paises dei MercosurMirta Mora/es
As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do EstadoJosé Carlos Vasconcellos dos Reis
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À minha famíliaFlávio, Fábio e Estela.
Si
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Agradecimentos
Este estudo foi feito com o apoio da Fundação Casa de RuiBarbosa, onde trabalho como pesquisadora, e contou com acolaboração e o incentivo de muitos amigos. Em primeiro lugar,o Professor Vicente Barretto, orientador da tese que deu origem a este livro; em seguida, Antonio Carlos Maia, que mefranqueou sua biblioteca e cujas sugestões demonstraram umaverdadeira prova de amizade; Celso Albuquerque Mello, queme despertou para leituras importantes; José Ribas Vieira e AnaLúcia de Lyra Tavares, parceiros de trabalho. E, também, osamigos da Casa de Rui Barbosa, em especial José Almino deAlencar, então Diretor do Centro de Pesquisas .
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Prefácio à primeira edição
Por uma nova leitura do direito
A cultura jurídica contemporânea, principalmente nos países de tradição romanística, encontra-se prisioneira de algunsimpasses epistemológicos e metodológicos. A concepção do direito como fruto da vontade do poder e, como tal, devendo seraplicado de forma mecânica na solução dos conflitos, ignorandorealidades econômicas e sociais, acha-se contestada em seusfundamentos pela própria mudança ocorrida na estruturação dopoder político. O processo de democratização, que toma contacomo se fosse uma onda política de todos os quadrantes doplaneta, acarretou também uma mudança substantiva na natureza da ordem jurídica. A ordem jurídica passou, progressivamente, a ter que lidar com conflitos de interesses e de valoresde uma sociedade pluralista e complexa, onde a norma de direito reflete a vontade democrática na sua formulação e envolve,portanto, na sua aplicação o emprego de critérios metajurídicos.
Para responder a esse desafio, alguns juristas e filósofoscontemporâneos, como Recaséns Siches, Alexy, Dworkin, Habermas, Viehweg, Perelman, Tércio Sampaio Ferraz e outros,libertaram-se de uma metodologia de análise do fenômeno jurídico estritamente formalista e incorporaram no processo deaplicação do direito outros instrumentos conceituais e herme-
L
nêuticos, que se encontram para além da ordem legal positivada. Nesse contexto de superação dos óbices resultantes de umadogmática estrita, é que o livro da professora Margarida Lacombe Camargo traz para a literatura jurídica brasileira uma contribuição original e atualíssima, destacando-se por enfrentar, como auxílio de alguns dos autores já referidos, o desafio nuclearpara a filosofia e a teoria do direito neste final de milênio: comorealizar uma radical e profunda alteração no modo de pensar eaplicar o direito, instrumento principal para assegurar a justiçana sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade.
O livro da professora Margarida Lacombe Camargo investiga, assim, essa mudança de paradigma na teoria do direito,procurando estabelecer os parâmetros de uma nova hermenêutica jurídica, que corresponda no âmbito do direito ao movimento geral de refundação das ciências humanas e sociais dasúltimas décadas. Enquanto a dogmática clássica encontrou nosgrandes civilistas e nas codificações do século XIX o campopropício para desenvolver um modo de aplicação do direito, quese caracterizaria por um modelo de interpretação fundadonuma concepção abstrata do direito, e no fundo ideal do Estadoe da sociedade, o pensamento jurídico contemporâneo defronta-se, precisamente em virtude da chamada "crise do direito",com o desafio de construir uma nova forma de pensar e aplicaro direito. A "aplicação da lei", vale dizer, a adequação do fatoaos ditames da norma jurídica, consistia no objetivo central dadogmática clássica, que transitava no universo fechado do sistema jurídico não levando em conta o que Hans Kelsen chamoude fatores "a-científicos" na análise jurídica. O direito bastavase a si próprio, como se fosse uma mônada dentro da qualdeveriam ser enquadrados os fatos e as relações sociais.
A professora Margarida Camargo chama a atenção para umadistinção sutil, ainda que pouco aceita no pensamento jurídico esocial brasileiro, entre o procedimento da interpretação legal ea hermenêutica jurídica. Na verdade, trata-se de uma elaboração mais ampliada da distinção entre dogmática e zetética, ondeTércio Sampaio Ferraz assinala a clivagem metodológica, quenos permite distinguir entre a ordem jurídica liberal e a ordem
jurídica do estado demc:crático de ~ireito. Enquanto a primeirabastava-se na formulaçao de um Sistema jurídico baseado'd" d d f' nai e~a : que o ireito posto, por ser ruto da representaçãolegislativa, e, por proclamar formalmente direitos e garantiasindividuais, seria suficiente para a solução dos conflitos, o segundo tipo de ordem jurídica integrava no seu âmbito de normatização indivíduos, grupos sociais, interesses e valores, quenão encontravam guarida no quadro do estado liberal de direito.A necessidade, portanto, de uma nova metodologia, de um novopensar jurídico, voltados para solucionar os conflitos complexosde uma sociedade pluralista, exigiu, também, a consideração naaplicação do direito de fatores até então considerados ajurídicoso
Por essa razão, a hermenêutica assumiu papel de destaquena reflexão jurídica contemporânea. O processo hermenêuticoconsidera a norma como parte integrante do sistema jurídico,mas considera-a, também, como meio para a solução de conflitos que não se caracterizam por suas dimensões estritamentelegais, pois· comportam aspectos sociais e valorativos, determinantes para a própria eficácia do direito. O contraponto entre ofato e a lei na compreensão hermenêutica torna-se mais evidente quando o procedimento interpretativo incorpora entre osdois pólos referidos a questão dos valores. Até então a doutrinae a jurisprudência consideravam o sistema jurídico como infenso à influência dos valores encontrados na sociedade. Mas reside, precisamente, no conjunto de valores que fundamenta asociedade democrátiça de direito um espaço de interpretaçãoque não foi incorporado pela doutrina clássica, caracterizadapela dogmática civilista.
O livro da professora Margarida Camargo chama a atenção,assim, para a necessidade de uma hermenêutica que pense odireito de forma concreta, o que no quadro da pós-modernidade significa assumir alguns pressupostos metodológicos que permitem pensar-se na elaboração de uma nova leitura para umnovo direito. Isto porque o livro abandona o culto do teóricojurídico absoluto e formalmente ideal, encontrado no modelodo direito liberal, e enfatiza o histórico, o complexo, o pluraldas convicções, dos interesses e das práticas, que ocorrem nas
sociedades democráticas contemporâneas. Constatamos, então,como essa nova realidade social, política e institucional da pósmodernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico,mas principalmente um sistema que exige para a sua própriaeficácia um novo método de leitura das normas jurídicas, queexpressam novos valores sociais e políticos.
Em conseqüência, escreve a professora Margarida Camargo,o juiz como boca da lei, aquele que dirá, finalmente, "a verdadelegal" (Seabra Fagundes), deixa de ficar dependente de ummodelo rígido de interpretação. Não mais é chamado o juiz paraaplicar mecanicamente conceitos abstratos, quando determinações gerais com pretensões de plenitude deveriam domar osfatos sociais. Na verdade, ocorre exatamente o inverso no procedimento hermenêutico, preconizado pela professora Margarida Camargo. Aqui se procura fazer com que o juiz não fiqueprisioneiro do exercício logístico, que conflita com a realidadedas relações sociais. Buscam-se na filosofia procedimentos clássicos que irão revelar toda a sua riqueza ao serem aplicados naanálise do fenômeno jurídico.
Pretende-se, em última análise, a substituição de um modelo - o dogmático - por uma nova racionalidade. Mas, comoobserva judiciosamente a professora Mar&arida Camargo, nãobasta substituir um modelo por outro. E necessário que seestabeleçam condições sobre as quais o raciocínio jurídico possaincorporar as dimensões da pós-modernidade, que alguns pensadores contemporâneos não se aventuraram a considerar. Osfundamentos dessa nova racionalidade jurídica vão deitar suasraízes no emprego da tópica e da retórica, como instrumentosanalíticos essenciais para o perfeito e completo entendimentodo sistema jurídico da sociedade contemporânea. Somente empregando-se esses recursos metodológicos é que se poderá compreender em toda a sua extensão e complexidade a ordemjurídica do estado democrático de direito. Essa ordem jurídicapressupõe para a sua plena eficácia esse tipo de entendimento,que possa ir além da norma positiva, situando-a no contexto deuma sociedade democrática e plural, para que o direito possaconstituir-se em fator de garantia, segurança e estabilidade so-
cial, e, ao mesmo tempo, ser um mecanismo da prática socialintegrador e disciplinador do progresso social. O direito pósmoderno aparece então, quando o lemos sob essa nova óticanão como instrumento de conservação social, mas sim com~agente da mudança social.
A Editora Renovar, fazendo justiça ao seu próprio nome,publicando a tese de doutorado da professora Margarida Lacombe Camargo, contribui para a mudança de um enraizadomodo de pensar jurídico no Brasil. O culto do formalismo jurídico, e do conseqüente mecanicismo, na aplicação das normasjurídicas impregna de forma deletéria a formação jurídica noscursos de direito no Brasil. A publicação do trabalho da professora Margarida Camargo permite, assim, que se preencha umvácuo nas letras jurídicas brasileiras, onde proliferam ainda àsvésperas do Terceiro Milênio tipos de entendimento do direitoe de sua aplicação que constituem sérios obstáculos para aconstrução de uma sociedade mais livre e mais justa, comopretende a Constituição de 1988 ao estabelecer um estadodemocrático de direito.
Vicente de Paulo BarrettoUERJ/UGF
Prefácio à segunda e~ição
Toda nova edição traz novidades. Caso contrário, tratar-seia de uma reimpressão. Isso é natural principalmente depois doafã de publicar uma tese logo após a sua conclusão, quandoqueremos fazer circular as idéias fruto de pesquisa recente.Aliás, esse é um dos méritos da coleção de teses da editoraRenovar, da qual honrosamente participo, pois permite a divulgação de pesquisas avançadas, normalmente desenvolvidas nosprogramas de pós-graduação. Portanto, fora a alegria da segundaedição, compete-me anunciar como e em que extensão as modificações ora inseridas foram feitas.
Em primeiro lugar, os inevitáveis toques e retoques de cadanova leitura, e que geraram simples alterações na redação dotexto, de forma a torná-lo mais palatável. Em segundo, as notase citações: muitas foram incorporadas ao texto principal, tornando-o mais discursivo e menos intercalado; outras, antesapresentadas em língua estrangeira, foram agora livremente traduzidas, para facilitar o acesso ao público, mantidas algumas delíngua espanhola. E, por último, alterações substanciais, de estrutura e conteúdo.
A estrutura do trabalho foi ligeiramente alterada, procurando um maior equilíbrio entre as suas partes e melhor disposiçãológica. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos foram fundidos e o penúltimo, sobre Perelman, teve seus itens reordenados.
Com relação ao conteúdo, a bibliografia aumentou e, conseqüentemente, a análise amadureceu; o que pode ser notado doacréscimo de alguns parágrafos e referências em notas. Cabedestacar que muito disso é resultado dos seminários do curso deTeoria Geral do Direito ministrado no mestrado da Universidade Gama Filho, quando o empenho e a participação efetiva dosalunos fomentaram o debate, avançando-se na obtenção de novas conclusões.
Somado ao prefácio do Professor Vicente Barretto, quemuito nos honra desde a primeira edição, contamos agora como também valioso estudo do Professor Antonio Cavalcanti Maia,como posfácio, sobre a importância da dimensão argumentativa àcompreensão da práxis jurídica contemporânea.
Este livro prevê continuidade. O projeto de pesquisa queestamos desenvolvendo no Setor de Direito da Casa de RuiBarbosa trata de tema correlato, e dará ensejo a outra publicação, voltada para a questão da tópica e dos princípios de direito,no processo de interpretação e aplicação das leis realizado pelostribunais. Portanto, o esforço teórico apresentado neste trabalho de doutorado serve de balizamento às novas pesquisas, decunho mais pragmático. E assim o problema da hermenêuticamantém-se presente, da mesma forma com que a perspectivatópica-retórica continua a servir-nos de paradigma.
Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas amigas, cujaimportância foi grande nesse segundo momento. Antônio Maia,sempre. Nadia de Araujo, exímia interlocutora. E as inestimáveis colaboradoras e companheiras do dia-a-dia, na Casa de RuiBarbosa: Cristina Alexandre, Thula Rafaela e Sabrina Naritomi.Agradeço também o prestimoso apoio de Maria Suely Cruz deAlmeida, da Universidade Católica de Petrópolis.
Petrópolis, janeiro de 2001.
Prefácio à terceira edição
Esta terceira edição do livro Hennenêutica e argumentaçãomantém firme a idéia original de oferecer "uma contribuição aoestudo do Direito". A ciência jurídica enfrenta uma crise deparadigma, vez que os padrões de cientificidade que marcarama Modernidade e sustentaram o aparecimento do positivismojurídico não oferecem mais respostas a indagações mais complexas que envolvem a ordem jurídica. Além de situações que nãose encaixam com facilidade em um ou único dispositivo legal, eportanto impossíveis de serem resolvidas mediante processológico-dedutivo, demanda-se, antes de tudo, legitimidade dafunção jurisdicional. O exercício da cidadania requer controledas decisões judiciais, tendo em vista o poder de criação do juize o respeito à lei. Nesse sentido, exige-se a motivação dasdecisões judiciais, o que significa dizer que, além da mera referência legal que lhe sirva de fundamento, o juiz deve expor asrazões que o levaram a decidir em determinado sentido. Não setrata, propriamente, de um controle sobre suas ações de formaa responsabilizá-lo pela sentença que não agrade a quem querque seja, mas de compreender a decisão, de forma a propiciaruma contra-argumentação que propicie o consenso, respeitadasas regras processuais.
Portanto, há de se construir um novo paradigma capaz deabalizar devidamente o pensamento e a ação jurídica. A tópica e
a retórica têm oferecido alternativas. Construções teóricas debase analítica também vêm sendo apresentadas para maior controle e objetivação do raciocínio valorativo. E, assim, a reportagem que apresentamos de alguns autores e teses mantém-seatual, da mesma forma que a idéia síntese do livro: o métodohermenêutico, como base do conhecimento construído pelaação interpretativa do sujeito e pela técnica argumentativa,mostra-se também bastante profícuo a tais considerações. Porisso, foi feita uma releitura de todo o texto, de forma a depurarimperfeições, perseguir o rigor técnico e aprimorar alguns conceitos. Vale lembrar também que as referências feitas à obra deHans-Georg Gadamer, Verdade e método, correspondem à edição espanhola indicada na bibliografia, ainda que utilizadastraduções livres para o português.
Persiste a intenção de um outro livro que trate especificamente do respeito pelos direitos fundamentais do homem contemplados nas constituições dos estados, bem como do problema das normas principiológicas que lhes dão guarida, cada vezmais presentes nos ordenamentos jurídicos contemporâneos.Um trabalho voltado para a estrutura normativa e para as condições de sua aplicação. Mas em seqüência aos esforços até omomento empreendidos, alguns estudos isolados foram publicados, para os quais remetemos o leitor, como os textos intitulados "Eficácia constitucional: uma questão hermenêutica"! e"O movimento de superação do positivismo jurídico na aplicação dos direitos fundamentais"2.
Por fim, não poderia escapar destas poucas palavras o registro de duas pessoas que contribuíram diretamente para asmodificações feitas, com suas idéias e generosidade acadêmica.
I. Publicado em Hermenêutica plural. Carlos E. de Abreu Boucaulte José Rodrigo Rodriguez (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2002,p. 369 a 390.2. Publicado em Estudos em homenagem a Carlos Alberto MenezesDireito. Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier deAlbuquerque Mello (orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 505 a526.
-..
São elas a doutora Hilda Bentes e Fernando Gama mestre,pela U G F e professor de direito processual civil. Agradeçotambém, mais uma vez, à Editora Renovar, pelo incentivo ecrédito depositado.
..
,Indice
INTRODUÇÃO .
CAPÍTULO 1 - DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRE·TAÇÃO 13
1.1. O DIREITO NO ÂMBITO DA COMPREENSÃO 151.2. DIREITO E INTERPRETAÇÃO 191.3. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO 231.4. DOGMÁTICA E INTERPRETAÇÃO: O CÍRCULO
HERMENÊUTICO 49
CAPÍTULO 2 - O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MO·DERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 61
2.1. A ESCOLA DA EXEGESE 652.2. A CRÍTICA DE FRANÇOIS GÉNY 682.3. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO 732.4. O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA 832.5. O POSITIVISMO JURÍDICO 862.6. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO
ALEMÃO 902.7. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES 922.8. O MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE 972.9. O RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN 1002.10. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES ll72.11. "VONTADE DA LEI" E "VONTADE DO LEGISLADOR" , 127
p
I1
CAPÍTULO 3 - VIRADA PARA O pÓS·POSITIVISMO:A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL. . . . . . . . . . . . . .. 135
3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USODA TÓPICA NO DIREITO ',' 139
3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES: A LOGICADO RAZOÁVEL. 161
3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: ODIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO
ME'TODO I75.......................
CAPÍTULO 4 - A NOVA RETÓRICA DE 185CHAIM PERELMAN .
4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 1924.2. A NOVA RETÓRICA 1994.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 2114.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA ',' 2234.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOAVEL. 2284.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO , 235
CAPÍTULO 5 - PERSPEC)'IVAS DA RACIONALIDADEJURÍDICA CONTEMPORANEA , 249
BIBLIOGRAFIA , 261
POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271
Introdução
A versão original deste trabalho foi apresentada à Universidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese dedoutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: umacontribuição ao estudo do direito" remete-nos ao tratamento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sobo ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciênciasdo espírito",! intermediada pela interpretação, cuja basetécnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito queassumimos corresponde especificamente ao que está nalei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a chamada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.2 Re-
1. Essa denominação é trazida primeiramente por Wilhelm Dilthey,para designar as características próprias das ciências culturais a seremconsideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre aexperiência vivida, que deve antes ser compreendida do que meramente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são manifestações que expressam o espírito dos seus autores. "We understandthem by grasping this spirit. Such understanding involves our livedexperience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy,p.201.2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi-
conhecemos o direito como área humana e social, mastambém consideramos os limites que nos são impostospela dogmática, pois todo exercício de "compreensão",que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referido a um campo conceitual próprio ditado pela razão, e quedelimita a dogmática.
Duas questões se apresentam como molas propulsorasdeste estudo e que, de certa forma, podem constar comopremissas. A primeira consiste na insuficiência da hermenêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cursos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre odireito, em geral visto como produto do arbítrio dos juízes.Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidadepara o direito, muito porque a discussão não enfrenta diretamente a complexa questão da interdisciplinaridade, masao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimidade e controle.
O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicional consiste nas chamadas "técnicas de interpretação dasleis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costumaser apresentada como ciência, mais especificamente comoa parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicasde interpretação. É esta, por exemplo, a inteligência deCarlos Maximiliano, autor brasileiro, cuja obra intituladaHermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, continua a ser reeditada como uma das mais significativas sobre o tema. Ensina o autor:
da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto,p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direito positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própriabase [... ] O direito pressuposto condiciona a produção do direito posto (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base."
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. A H~rm~nêutica Jurídica tem por objeto o estudo e aslstematlzaçao dos processos aplicáveis para determl'
'd I d . nar osent! o e ~ a. cance as expressões do direito. [... ] Para[aphcar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: descobri.r e fixar o s:ntido verdadeiro da regra positiva; e, logodepOIS, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo oexecutor extrai da norma tudo o que na mesma se conté~:é o que se chama interpretar...3
Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempoestabelecer critérios de interpretação que conferissem objetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à tarefa jurisdicional. Na realidade, o que ocorre é que a utilização dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiroporque não existe entre elas nenhuma hierarquia e assim, ,o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orientação ignora a dimensão criadora do intérprete, que voltasua atenção antes para a resolução de determinado problema do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual,e com conteúdo próprio, previamente determinado.
Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Direit04 invariavelmente apontam para as técnicas gramati-
3. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.Grifo nosso.4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orientação, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, RonaldoPoleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr.,além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi França, Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. Este último traduz bem essatendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da hermenêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, encontramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos?Quais as Suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiência de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêuticano direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta comoorientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o
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cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica outeleológica, com variações de nomenclatura, para indicaros procedimentos apropriados à atividade jurisdicional,que compromete tanto o juiz quanto os advogados e demais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide.Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceçãoda teleológica, nem por ele eram vistas como forma de sechegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o significado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os elementos constitutivos da norma, passíveis de serem considerados numa interpretação. São, na realidade, elementosque informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-seao comando do problema, ou seja, à dimensão prática econcreta do caso.
A idéia de método afigura-se como preocupação daciência moderna em proporcionar resultados logicamentedeterminados de acordo com cada área de investigação.Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentouobjeções, dada a sua carga valorativa, centralizada principalmente na questão da justiça, que nunca alcançou o status de cientificidade. De outro lado, a necessidade de ordem e segurança faz com que, mais do que a justiça, propriamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.s
problema da hermenêutica é o da exata significação dos textos legais;interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua aplicação com exatidão, exprimindo o sentido da norma em função, nãosó dos objetivos do seu autor, mas também em função das condiçõessociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf.Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV.5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professoritaliano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto deDiritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" capítulos I1I, IV e V. São dele as seguintes palavras:
"O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento
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Com relação à interpretação, em linhas gerais, o queprevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a"vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quemlhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugarà vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento desua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos.Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia deprestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força,ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento,transferir a vontade do legislador, vista como a única legí-
vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legisladorna regulamentação individual das relações dos particulares; que traduzo comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, formulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.
O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, éo executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste naaplicação do direito.
[...]Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades
práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará emmomentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimento pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém,o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novopensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.
Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurançajurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve preferir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam aosabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo.Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilaro fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qualnós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de opovo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." FrancescoFerrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174.
Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de GuSmã9: "definimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifícioda Justiça". Cf. Introdução ao estudo do direito, 21 a ed., 1997, p. 215.
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tima, para uma outra época. Não obstante a propriedadedeste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é adistância ou o desligamento entre a vontade da lei e o casoconcreto no trabalho do intérprete.6 Pelo menos é o queafirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exemplo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossaépoca, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêutica jurídica, com a seguinte frase: "A interpretação visa adescobrir o sentido objetivo do texto jurídico" / independentemente, portanto, do caso sub judice.
Pretende-se que o intérprete desvele os valores protegidos no texto que traduz o comando legal, exploradas todas as suas possibilidades gramaticais, bem como o queconstaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los antes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêutica atua, assim, muito mais no campo virtual do código eda doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o mecanismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei,extraindo-se a sentença por meio de uma operação lógica,da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena dedetenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano serácondenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lidadiretamente com o elemento humano, que não é homogêneo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferenciadas. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão aparentemente simples, como a que acabamos de apontar, emque o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato
6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, KonradHesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concretizadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidadesocial (vide bibliografia).7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17"ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233.
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comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais circunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo ju'iz deforma a atribuir para o réu uma pena "justa".8
Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional nãoé automática e, portanto, nunca poderá ser substituídapela máquina. O juiz, como elemento humano dotado derazão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, semque com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discricionariedade atribuída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dúvidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentaçãode suas decisões, como também prevalece a regra do duplograu de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espécie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes eeventuais acidentes provocados por juízes de boa-fé podem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazemparte do direito a ponderação e a dialética na interpretaçãodas leis, constando, portanto, como insuficiente para umadecisão pretensamente correta a simples aplicação de técnicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz degarantir, por si só, que o juiz julgará bem.9
8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça corretiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos,baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meiotermo" entre perda e ganho.9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxima do que poderia ser acreditado como justo.
Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundoele, "o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdadesda alma em conformidade com a excelência" (Ética a Nicômacos,1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jul~ar acertadamente,"pois bem e acertadamente são a mesma coisa" (Etica a Nicômacos,1143 b, p. 121). A excelência torna, então, a coisa acertada. Citandoainda Aristóteles, temos que: "Chamamos de julgamento (isto é, afaculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensivamente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é
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Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalhoque a compreensão requerida pelo direito poderá ser realizada e apresentada concretamente, mediante o recursotécnico da argumentação, enquanto a argumentação, comoinstância dialógica, permite o exercício da liberdade, doconfronto e do amadurecimento de idéias, em direção auma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoável. lo Em lugar de procurarmos técnicas capazes de garantir a certeza e a objetividade científica para o direito, comoforma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os males, propomos uma outra via de análise, de natureza metodológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidadeque preside o direito, e ver até onde é possível prever soluções com alto grau de certeza.
Muito embora nossas conclusões pretendam contribuirpara que o direito seja visto como um campo específico doconhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade metodológica, temos plena consciência de que este debateainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade própria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar incluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam aciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilismo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstradoempiricamente, é crível; e o que não pode fica simplesmente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí-
o fato de dizermos que uma pessoa eqüitativa é, mais que todas asoutras, um juiz compreensivo acerca de certos fatos. E julgamentocompreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção doque é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente éjulgar segundo a verdade."(Ética a Nicômacos, 1143 a, p. 123.)10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisãosimplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teoriasapresentadas ao longo do trabalho.
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trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevalece nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que asociologia do direito, com suas precisas técnicas de investigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamente todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil.
Entretanto, atualmente pode ser notado o revigoramento da pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, cujaênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do direito, tendo em vista principalmente sua repercussão pessoal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialismo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor donormativismo legalista e do funcionalismo jurídico anteriores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qualatravessa o direito. ll
Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofundar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenasem seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, éque procuramos, neste primeiro momento, rever os padrões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperartemática de extrema importância para o enfrentamento dacrise do modelo positivista.
11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador',a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' - osmodelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito daUniversidade de Coimbra, voi. LXXIV, 1998, fala do jurisprudencialismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o quedá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem diferente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i.é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua normatividadeaxiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao serviço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concreta ...... Cf. p. 18.
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Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentaçãoda hermenêutica jurídica, ou vice-versa, pois que, em geral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nosno que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retórica", relativa às ciências que se ocupam do discurso e dadialética, mais especificamente, das chamadas "ciênciasdo espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico: ahermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídica à atividade criadora ou de concretização; o direito circunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teoria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmente, tratarmos da interpretação como processo de intermediação entre a compreensão e a concretização da norma,tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisõesjudiciais.
No primeiro capítulo do livro, procuramos estabeleceralgumas noções sobre o que entendemos como hermenêutica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo dastécnicas de interpretação, mas nos remete à compreensãodo próprio ser no mundo, que se encontra envolvido comquestões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica.O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistintamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive,de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por outro lado, a inter-relação entre compreensão e interpretação, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadasentre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separadamente. No direito, a pré-compreensão é muito acentuada,uma vez que os aspectos históricos e culturais que a informam encontram-se relacionados a um campo conceitualpróprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Poroutro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facilmente caracterizada no contraditório judicial produzidopela interpretação apresentada pelas partes. O embate
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dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, ésuficiente para que fique caracterizado o esforço argumentativo de se firmar um entendimento para cada questão,ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizaruma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito.
No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas oumodelos jurídicos de tradição romano-germânica, que sedesenvolveram ao longo da história e que serviram de origem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escrita. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações oexemplo da common law e as correntes realistas que lhesão afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei,costume, fato social, etc., que serviram de orientação àsdiversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaramo direito do século XIX, orientam também a sua metodologia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entendercomo direito, é pensar qual o seu campo de incidência;enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exegese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado restritivamente, inclusive por problemas de ordem políticaé quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo estáem voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica incisiva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de concepções abstratas e distantes da realidade histórica e social. l2 A partir daí fica patente que a concepção hermenêutica da ordem jurídica é também filosófica, como mostrasua ligação com o racionalismo, o romantismo, o positivismo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas dasprincipais' escolas jusfilosóficas que marcaram o pensamento continental europeu, que foi o nosso berço, de for-
12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica doDireito, escrito por Alexandre Correia e publicado na EnciclopédiaSaraiva do Direito, vaI. 33, p. 28 e segs.
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ma a analisarmos os avanços e recuos que acompanharam ahermenêutica jurídica tradicional.
Em seguida, enfatizamos o estudo da tópica, que muitocontribuiu para a mudança do enfoque metodológico debase positivista. Para tanto, trouxemos ao nosso campo deconsiderações o trabalho de Theodor Viehweg, que servecomo paradigma nessa discussão, e de outros dois juristas,Recaséns Siches e Castanheira Neves, que compartilhamconosco da visão concretizadora do direito e cujas origenslatino-européias facilitaram a sua entrada em nosso país,influenciando uma geração de novos juristas.
No último capítulo, concentramo-nos na idéia da "lógica do razoável", de Chaim Perelman, que melhor respondeà questão da legitimidade na interpretação do direito, umavez que a argumentação, na busca do acordo e do consenso, é capaz de conferir à lei o significado mais adequadopara cada situação. Tomamos, pois, como parâmetro, aNova Retórica, que consiste numa das maiores contribuições jusfilosóficas de nosso século e é responsável pelaenorme reviravolta que a filosofia do direito vem sofrendo.
Finalmente, gostaríamos de deixar claro que, nada obstante recorrermos à tópica como modelo de compreensãodo fenômeno jurídico, não abandonamos a visão sistêmicae dogmática inerente ao próprio direito. Daí tomarmoscomo referência o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr.- autor que talvez mais tenha trabalhado com a tópicajurídica no Brasil e que consegue aproximar o direito datópica, sob uma perspectiva dogmática.
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Capítulo I
DIREITO, HERMENÊUTICAE INTERPRETAÇÃO
o tema da hermenêutica e da interpretação jurídicasremetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado peloPoder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretarmos a lei tendo em vista um problema que requeira solução legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes detudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso,pensamos a lei em função de situações específicas, ou decasos concretos que envolvem pessoas.
A norma jurídica encontra-se sempre referenciada avalores na medida em que defende comportamentos ouserve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, oproblema jurídico, que envolve situação de natureza valorativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar osignificado de alguma coisa em função das razões que aorientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogemda mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta detectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata
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dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissamenor à premissa maior conferisse uma solução necessária, mediante operação puramente formal. Não. O direitoé comprometido com valores, e a norma que buscamos notexto através da interpretação encontra-se relacionada auma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intérprete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim,podemos afirmar que o processo de interpretação e deaplicação das leis corresponde a uma situação hermenêutica, da qual nos fala Gadamer. 13
Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agilidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da bandagem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme JunitoBrandãol4 nos relata, Hermes logo furtou um rebanho deApolo, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arrastado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado porZeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutância concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdadeou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tornou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que detém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamente as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das vontades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornandose importante, mais tarde, para o desenvolvimento daciência.
Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquelaque privilegia a busca do conhecimento de algo que não seapresenta de forma clara. A complexidade das ciências so-
13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y metodo. Sígueme: Salamanca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação GetulioVargas: Rio de Janeiro, 1998.14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. li, p. 191.
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ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade seapresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutív~l. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhec~me?~o que nã? s.e su~mete à certeza da investigaçãoCientiflCa. E o direito nao foge à regra. A herme A t'. 'd' f neu icaJUfl_ lCa re. ere:se, assim, a todo um processo de interpre-taçao e aplIcaçao da lei que implica a compreensão total dofenômeno que requer solução.
1.1 O direito no âmbito da compreensão
O conhecimento que requer compreensão difere dequalquer outro cuja repe~ição dos fenômenos seja possívele, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricascomo a física, a química e a biologia, que possuem regra~capazAes ~e permitir-nos controlar, com algum rigor, aocorrenC1~ de seus fenômenos. As ciências do espírito, por~ua ~ez, dizem respeito às relações humanas que, por si só,implicam uma relação histórica e de liberdade. 15 São relações que se estabelecem no campo da ética; fogem da re-
15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comportament~ ~tico .?O ?omem, t?~ando por base Aristóteles, da seguintef~:m~. As ClenClas do espmto fazem mais parte do saber moral. SãoClenClas morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo.Agora be~, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber quetem de SI me.smo não pretende comprovar o que é. O que atua trataantes com ~o~sas que nem sempre são como são, senão que podem sertamb~m dlstmtas. Nelas descobre em que ponto pode intervir suaatuaçao; s:u sab:r deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386.
!~ ~ dlmensao humana, própria das ciências do espírito, e que opOSltlVlsmo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "Oho~en: não é radicalmente um estranho para o homem, porque fornece smalS de sua própria existência. Compreender esses sinais é compreender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25.
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petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugardestas, a variedade e a probabilidade. 16 Logo, as ciências doespírito, por corresponderem a aspectos inerentes à existência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo damoral e da religiãO, porque incapazes de produzir uma verdade cientificamente comprovada. Com a virada da filosofia, em meados do século passado,I7 para a ontologia e parao existencialismo, em que ganham proeminência o ser no
16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurarformas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete,ensina o mestre Miguel Reale: "Se a natureza, como natureza, obedecea leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturaismarcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo oprincípio de que nada acontece que não seja através de uma transformação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certamaneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de contingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particularem uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação detais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre anatureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são valores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é projeção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mesmo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora,como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciências individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemento de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológicos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciênciado espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, emúltima análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, comoautoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela históriaporque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, doespírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes doque chamamos 'ciclos naturais', ou civilizações." Introdução à filosofia, p. 154 e 155.17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica" no final dadécada de 1960, precedida de um amplo debate sobre a "tópica". Cf.Hermenêutica e jurisprudêneia, p. 96.
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seu acontecer, a ciência também aproveita p~ f ara rever seus
parametros ormalistas, orientando-se para uma no d'- d va Ire-
çao, marca a, ago~a, pelo pluralismo, pela intersubjetivi_dade e pela expenência histórica. Por outro lado as .
. . , malSrecentes InVestIgações sobre a razão moral têm apontado~ara uma base argumentativa que sugere o resgate da retónca e da tópica antigas.
.. A,esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su~eI~a a compre~nsã~ do sentido que ensejou a ação, do quea sImples explIcaçao de relações que lhe tenham servidode ca~sa. ~ idéia é a de que as ações humanas, orientadaspara fInalIdades, encontram-se inseridas em um porq ~h' ,. d ue
:stonco, a mesma forma que o intérprete é um ser tam-b~~ historicamente orientado e que faz parte de uma tradlçao. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazerh~man.?, ~arregado de sentido. E o direito, propriamentedIto, nao e no.r~a geral, porém, norma individual, pois somente as declso~s dos juízes é que efetivamente obrigam.~on: a sentença e que sabemos, efetivamente, qual o nossodIreIto ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua~penas como parâmetro e orientação para a conduta, semI~p~tar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, odireIto apresenta-se jungido à própria hermenêutica umavez que a ~ua ~xistência, enquanto significação, de~endeda con~retlzaç~oou da aplicação da lei em cada caso julgado. AssIm, apoIamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gadamer,I8 que se baseia na relação fática entre compreensão e
18. Apesar _de ~adamer não estabelecer uma nítida distinção entrecompreensao ~ I~terpretação, conforme pretendemos, porque os entende c~m? sImilares, a sua concepção ôntica e historicista sobre ahermeneutIca serve aos nossos propósitos.
José La~e~o também trabalha a filosofia de Gadamer em termosde. hermeneutIca como filosofia prática, aproximando as noções deverdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he-
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interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabelecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que jáhavia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida. 21
geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. Arespeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham aviragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica,como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do método - e a questão das garantias da objetividade -, para desembocardiretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspondência mas em termos hermenêuticos, como desoeultação (aletheia). E,deste ~od~, a compreensão remeteria para a virtude dianoética daphronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coordenar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação conseguida (Le., a realização de uma applicatio), potenciar a realizaçãodas possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu contexto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja:por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnaturalista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidadede todo o direito." Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91.19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades quese abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu serpara possibilidades. É um poder-ser que repercute sobre a presençadas possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, eHeidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação,a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim,a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não viceversa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p.204.20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey,pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica,apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais deperto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, deestabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar umaciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que dizJosé Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; eRichard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73.21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên-
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..,
1.2 Direito e interpretação
Entendemos que a existência do direito, enquanto norma individual e concreta, corresponde à sua compreensão,para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas.De fato, a concretização da norma é feita mediante a construção interpretativa que se formula a partir da e em direção à compreensão. Podemos definir interpretação como aa~ão mediadora que procura compreender aquilo que foidIto ou escrito por outrem. 22 Como ação responsável e nãoa!eatória, procura-se, por meio da interpretação, um signifIcado que seja aceito ao menos por aqueles a quem interessa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas deargumentação.
Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corresponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à
c.io Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sentido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional _ direitosfundamentais. Vide bibliografia.
22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Imprensa ~ac~~~al- Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpretaçao, diremos que interpretar é compreender, reformulando ou reexprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar~lgo: ~la vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação,a sua Ilustração ou à sua inserção na vida."
José ~amego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêutica de Heldegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramenteuma distinção entre compreensão e interpretação como fazemos es-
"P h "c~e.ve: ara .uma ermenêutica assente em pressuposições existen-Clals-?ntológlCas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá quever nao com questões de subjetividade ou objetividade do sentido dealgo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elaboree potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identificado este, na expressão de Heidegger, COm o ser de tal poder-ser." Hermenêutica e jurisprudência, p. 91.
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intenção do autor numa situação específica, inserem-se nocampo histórico da compreensão. O direito, como obrahumana, é compreendido, e não explicado, a partir de relações necessárias de causa e efeito, como se para cada problema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadeira resposta. O direito, como as demais ciências do espírito,corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado segundo os valores que comandam a sua ação, tanto internaquanto externamente. 23 Internamente seria a própria ratiolegis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, seé que ambas as posições podem vir desassociadas. A existência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultural determinada, mas que não pode ser encarada sob umaperspectiva reducionista, uma vez que admite valoresuniversais válidos também para outras épocas e outros lugares.
Compreender é indagar sobre as possibilidades do significado de um acontecer próprio das relações humanas. E,nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quandocompreendido. Um código, por exemplo, contém regrasgerais e abstratas constituídas em função de hipóteses prováveis, mas que só ganham um significado concreto quando remetidas à própria prática, ou melhor, quando conduzidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado,como o legislador que prevê a realização de uma prática,seja a de quem produz a transferência da regra de um campo virtual dado, que é o código, para um campo de significado real- o juiz quando decide. 24
23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador,quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do atodo juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o casoconcreto (valores externos ao âmbito restrito da lei).24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona
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Nossa hipótese é a de que o processo de _'. compreensao
se concretiza por melO da argumentação que t .. b'l' . ' ,ecnIcamen-
te VIa I Iza a mterpretação. De outro lado verl'fl'_ . ,ca-se quea compreensao, como mOVImento oposto ao da expl' -. IcaçaoraclOnal,;-demonstrativa, insere-se no campo das possibili-dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquiloque aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-Ia.25A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas daprobabilidade da realização de um projeto. Ora, essas possibilidades nos são apresentadas mentalmente conformetratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é omomento em que o pensamento dialético se instaura. 26 Aargumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordosobre a escolha do significado que pareça mais adequado às
efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legisladordeve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organizada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situaçãosubmetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam decisões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões porque uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deveser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção dedecisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito,p.376.25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter deverossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Introdução à retórica, p. 95.26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, daseguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto dastécnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dasmentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o termo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possibilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela deoutras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, coma ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de umsistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p.369.
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partes discursivas; acordo este fundamentado em provasconcretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumentação temos condições de "visualizar" a compreensão, na.medida em que esta se traduz em algo de concreto. 27
O direito admite, pois, uma superposição entre duasesferas: a da compreensão da norma e a d~ compreensãodo fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente,que se utiliza, pa,ra tanto, do procedimento argumentativo.Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz deformular a compreensão através de uma interpretação quesirva de fundamento à solução mais razoável.
O método do direito é, portanto, o método tópicohermenêutico. Cada situação deve ser compreendida emfunção do problema que apresenta e da tradição históricana qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo.Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na realização de uma prática que envolve o método hermenêuticoda compreensão e a técnica argumentativa.
Para nós, o método diz respeito à orientação para o conhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa atividade. Logo, compreensão e concretização encontram-se intimamente relacionadas: existe o que se compreende emfunção imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direito é a mesma realidade de sua compreensão. 28
27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreensão e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partidapara toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esquema como topoi.
Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão prévia, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo umapossibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7.28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do compreender histórico." Verdade e método, p. 370.
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1.3 Hermenêutica e interpretação
A hermenêutica mostra-se presente quando, segundoVattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísica,3D entendida esta última como "a descrição universalmente válida de estruturas permanentes e essenciais àcompreensão do mundo" .31 À descrição objetiva dos fatossegue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável,originária da interpretação, isto é, uma interpretação quepretende validade até aparecer outra, concorrente, que adestitua. 32
O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desenvolve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhandodessa forma. anota que a hermenêutica revela os seus doisaspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste
29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia.30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da hermenêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para amodernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência peremptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaramem descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo... ".Para além da interpretação, p. 27.31. Vattimo, ob. cit., p. 23.32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de suamatriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos notexto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece parasustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos porserem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar forade si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferente; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria validade, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valorestá na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilhado, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativomais aceitável." Ob. cit., p. 24.33. Cf. p. 14.
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nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica ocientificismo e o metodologismo modernos para reivindicar a busca da verdade além dos limites do método científico positivo, a começar pela verdade da experiência, comoato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise dotema, buscando um pouco das suas origens.
Como vimos, a origem do termo Hermenêutica temcomo referência Hermes, o enviado divino que na Gréciaantiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Significava trazer algo desconhecido e ininteligível para a linguagem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo hermeneuein, usualmente traduzido como "interpretar", e osubstantivo hermeneia, como interpretação, significamtransformar aquilo que ultrapassa a compreensão humanaem algo que essa inteligência consiga compreender.3S Oautor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêutica como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se,antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notíciasfiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavraentre os gregos fez com que a linguagem falada e sua vertente performática ganhassem relevo, e a hermenêuticapassasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais importante do que simplesmente expressar, na medida emque as palavras racionalizam e clarificam algo; é quandoganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E,quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna compreensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível.
34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck.Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica daconstrução do Direito.35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica.
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UM .i.
Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito coma própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultosdiziam o direito para cada caso concreto, sem qualquerpretensão de generalidade. Mas essas decisões consolidaram-se com o tempo, transformando-se em máximas quese tornaram muitas vezes obrigatórias.36
A hermenêutica alcançou notável proeminência nocampo religioso. O problema de interpretar corretamentea palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação aoAntigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; eaos protestantes, em relação à Reforma. Durante a IdadeMédia, a análise sistemática sobre a evidência da revelaçãodivina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiuo aspecto exegético da correta interpretação dos textos sagrados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campofilológico.
36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vistaa Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.e.Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado:a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para estender-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juizdeveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano ePaulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião damaioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano;finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juizadotar a tese que lhe pareça melhor.37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmente as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontrava-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qualtransmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "comentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente daexplicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma. racionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutIvamente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 23 ediçãobrasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fontes, 1996.
25
Para o direito, no entanto, foi extremamente significativa a atividade dos glosadores da Universidade de Bolonha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em1080, as leis romanas compiladas por ordem do ImperadorJustiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Corpus Iuris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seuentendimento e compreensão, de forma a adotar-se, naprática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker,"a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma formamodelar e atemporal da sua própria vida" .38
O desenvolvimento das cidades italianas justificou aformação de uma corporação própria - a Universidade-, destinada aos estudos jurídicos para a formação de funcionários públicos, como síndicos, procuradores, notáriose advogados. 39 Como o texto jurídico romano era muitodifícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E doresultado da interpretação feita pelos professores aparecem as glosas, palavra por palavra, linha por linha,40 paralogo alcançar todo o sistema, visto como um todo harmônico, a reunir as partes, conforme princípios de ordem geral.
A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, segundo Wieacker, à tradição do ensino trivial.4l Segundo omesmo informa, mantinham-se "ainda as figuras de explicação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica,
38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42.39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41.40. As glosas ganharam robustez nos seus significados, tornando-sefecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito.Destaque para a Glossa Ordinaria de Accurius (1250), considerado omaior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto.41. Durante o século XI, o trivium correspondia ao ensino dos elementos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; oquadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física.
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pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicialmente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textosfilológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ouinterpretação do texto, e a distinção. [... ] Como ratioscripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mesmo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todosos textos, uma verdade."42 No entanto, "a convicção dodomínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradiçãoconduziu a investigação hermenêutica à procura do sentido global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeiassilogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autoridade absoluta, um texto não pode contradizer outro igualmente verdadeiro".43
O método de análise escolástico, por sua vez, foi fatorresponsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, talcomo ocorrera com a religião. De acordo com J. HaroldBerman, o método escolástico pressupunha a absoluta autoridade de certos livros, que continham um completo eintegrado corpo doutrinário, como era o caso do CorpusIuris Civilis e da Bíblia, corporificando a razão. Verificase, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência dateologia formam-se na mesma época.44
42. Wieacker, ob. cit., p. 47 e 50.43. Idem. Ibidem, p. 53.
Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção darelação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonarámais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é HansGeorg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não seentende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todosos momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreensão do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só podeempreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentidode unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para todaa hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227.44. Cf. Berman. Law and Revolution, p. 131 e 132.
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o romantismo e o renascimento também se ocupam darecuperação das obras clássicas, procurando, na corretautilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da época antiga. Em um e outro caso, trata-se, na realidade, doredescobrimento de algo cujo sentido era estranho e inacessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pretendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido originaldos textos através de um procedimento quase artesanal,que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posteriormente sob a influência do historicismo, a hermenêutica,abandona o seu aspecto puramente exegético, na medidaem que é reconhecida a necessidade de se interpretaremtanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criaçãode um texto quanto as circunstâncias que determinam asua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilustração e o pensamento científico moderno que interpretação e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. Ahermenêutica passa, então, a se comportar como ciência,preocupando-se com as técnicas próprias do fazer interpretativo. E, ao investir na questão do método, a herme-
o método dialético era bastante utilizado como forma de resolverproblemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialética escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado domonge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado,sugestivamente, A Concordance of Discordant Canons. Segundo Berman, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de forma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou asvárias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpondo o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino ede direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletidana revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o direito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser encontrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência humanas. Cf. Law and Revolution, p. 145.
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nêutica ganha particular importância para a filosofia e paraa teoria do conhecimento. 45 No entanto, a ênfase dada àlinguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica nocampo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologiadesenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a servista como compreensão, revelando-se na consciência dopróprio ser.
Para Heidegger, a compreensão consiste no movimento básico da existência, no sentido de que compreender nãosignifica um comportamento do pensamento humano entre outros que se possa disciplinar metodologicamente e,portanto, conformar-se como método científico. Constitui, antes, o movimento básico da existência humana.46
Compreender, para Heidegger, "é a forma originária derealização do estar aí, do ser-no-mundo" Y Gadamer diráque compreender é experiência.
45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e "teoria do conhecimento" aquela que procura a verdade objetiva, com base na distinção existente entre sujeito e objeto.
Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela descoberta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente ummétodo específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramentediferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afirma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário,elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciênciahistórica, p. 20.
A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria doconhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, emHermenêutica, p. 87 e segs.46. Cf. Gadamer, "Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica"[1977], in Verdade e Método lI, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134.47. Verdade e método, p. 325.
A idéia de "mundo" corresponde ao conjunto de condições geográficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa.
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No século XX, seguindo a esteira do historicismo deDilthey,48 que considerava a reflexividade como base daexperiência, e da ontologia heidegeriana,49 à luz da retomada da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamertraz a hermenêutica para o campo da práxis ou da filosofiaprática. 50 Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade
48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço nosentido de dar objetividade metodológica às "ciências do espírito",assumindo o problema da relatividade. A partir da importância daconsciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou converter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer,Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, mantendo a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstante, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, dejustificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando omundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e método, páginas 277 a 304, e "Extensão e limites da obra de WilhelmDilthey", em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs.49. De acordo com Gadamer, "sob o termo chave de uma hermenêutica da faticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl,e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigênciaparadoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não ésuscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deveerigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogitocomo constituição essencial de uma generalidade típica." Verdade emétodo, p. 319.50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplicação, reporta-se a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar diretamente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, naÉtica trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as chamadas "ciências do espírito" possuem como base a vida e o homem,nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, osaber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico.O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não éevidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecernão decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aqueleque atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão
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à proposta ~e ~ei~egg~r, ao reconhecer que o conceito dacompreensao nao e maIS um conceito metódico ma
, A' " I d d ' s o ca-rater ontlCo ongma a vi a humana mesma. 51
Segundo Gadamer, o estar aí é, na realização do seupróprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhecedor nem o conhecido "se dão" "onticamente", mas "historicamente", isto é, participam do modo de ser da historicidade. Pertencer é condição para o sentido originário dointeresse histórico. O problema da faticidade, que apareceem Heidegger, era também o problema central do historicismo, e isto significa que o ser determina-se no horizontedo tempo. "A tese de Heidegger é de que o ser mesmo étempo".52
O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respeito ao problema da verdade e da compreensão no âmbitodas ciências do espírito,53 é a análise da "consciência dahistória efetiva", traduzida para o inglês como historicallyeffected consciousness. 54 A consciência da história efetiva éa consciência da situação hermenêutica, portanto, do momento de realização da compreensão. 55 Gadamer defende
~ue p~dem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto podemtervIr sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade emétodo, p. 383 a 386.
.Sobre a visã? aristotélica de raciocínio prático, e a noção de próaireSlS, vale tambem conhecer o trabalho de Alasdair MacIntyre, Justiçade quem? Qual racionalidade?51. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 325.52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.)53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra:Verdade e método.
54. yer Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de JoelWemsheimer e Donald G. Marshall, The Continuum PublishingCompany, New York, 1994.55. Gadamer. Verdade e método, p. 372.
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a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir métodos para uma correta interpretação, mas refletir sobre oacontecer da própria interpretação, que no âmbito dasciências do espírito corresponde mais especificamente àcompreensão.56 O indivíduo compreende-se a si mesm?através da consciência que tem de sua situação histórica. Aidéia de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradição e de horizonte. Todo ser histórico encontra-se inseridona tradição e ocupa determinada posição que lhe delimitahorizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica,é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, éo âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visívela partir de um determinado ponto. Não obstante, ter horizonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca maisde perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizonte é apenas a dimensão do que o homem compreende eque ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que temhorizonte consegue valorar o significado das coisas que seencontram dentro ou fora dele, segundo padrões de perto/longe, grande/pequeno, etc. A mobilidade histórica impede a existência de horizontes únicos, ao passo que o horizonte se move conforme quem se move: não é a consciência histórica que põe em movimento o horizonte, masna consciência histórica este movimento se faz conscientede si mesmo.
Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, ohorizonte do presente encontra-se em constante forma-
56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através doqual a consciência histórica se aproxima do objeto eleito para alcançaro seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade emétodo, p. 380.
32
ção, na medida em que colocamos constantemente empro:,a os pré-juízos formados sob as bases da tradição. OhOrIzonte do presente não se forma à margem do passado.ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita ~
compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novohorizonte que se supera, à medida que acompanha um processo de crescimento até atingirem uma validez nova e significativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gadamer:
o projeto de um horizonte histórico é, portanto, umafase ou momento na realização da compreensão, e não seconsolida na auto-alienação de uma consciência passada,mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do presente. Na realização da compreensão tem lugar uma verdadeira fusão horizôntica que com o projeto do horizonte histórico leva a cabo simultaneamente sua superação. À realização controlada da fusão damos o nome de "tarefa da consciência histórico-efetiva". 57
A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pilares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia detradiçãO, uma vez que o tempo passa a ser visto não comoum precipício que deve ser transposto para a recuperaçãodo passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devire onde o presente cria raízes. Dessa forma,
A "distância temporal" não é uma distância no sentidode uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esseera o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditavapoder alcançar o terreno da objetividade hitórica através deum esforço para se colocar na perspectiva da época estudadae pensar com os conceitos e representações que lhes eram
57. Idem, p. 377.
33
"próprias". Trata-se, na verdade, de considerar a "distânciatemporal"como fundamento de uma possibilidade positivae produtiva de compreensão. Não é uma distância a percorrer mas uma continuidade viva de elementos que se acumula~ formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo oque trazemos conosco de nosso passado, tudo o que nos étransmitido faz a sua aparição. 58
o que Gadamer procura não é manter o passado mediante uma postura conservadora, mas, antes, desmistificar esse passado. Diante do que chama de ingenuidade doobjetivismo histórico, busca distinguir os preconceitos quecegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os preconceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo quenos une com o passado, apresentando o presente, atuatambém como instância objetiva a propiciar a integração ea comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto apropriação espontânea e produtiva de conteúdos transmitidos, a tradição "é o elo concreto entre todos nós"; "o espelho em que cada um de nós se reconhece",59 e que promove a consciência histórica da situação hermenêutica, pois"compreender é operar uma mediação entre o presente eo passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contínua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se
dirige a nós". 60Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento
gadameriano: toda experiência só pode ser compreendidaporque referenciada ao passado, numa relação de confronto. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo, enunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incor-
58. O problema da consciência histórica, p. 67-8.59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente.60. Idem, p. 71.
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parado à consciência, como experiência ou e .. . , ' s o antIgo,costumeIro e prevIsIvel, reconquistará sua consl'st'" . A.",. . . enCIa.expenenCla preCIsa tnunfar sobre a tradição sob pena defracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se nãotivesse que se afirmar contra alguma coisa.61
Gadamer foi duramente criticado, principalmente porEmílio Betti,62 por ignorar em toda a sua obra os métodoshermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetividade do método histórico.63 Por isso Gadamer se defendeno prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verdade e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, muito menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. Antes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira decompreender, porque acredita que a tarefa da hermenêutica não é desenvolver um procedimento da compreensão,mas iluminar as condições sob as quais se compreende.Neste sentido, Gadamer sustenta que "a compreensão nãoé nunca um comportamento subjetivo com respeito a um'objeto' dado, senão que pertence à história efetiva, isto é,ao ser do que se compreende";64 e assim afasta-se de toda
61. É o que autor apresenta em O problema da consciência históricap.14. '~2. Dentre as obras mais significativas de Emilio Betti a respeito damterpretação no direito destacam-se: Teoria Generale della Interpretazione. Milano: D.A. Giuffré, 1955; e Interpretazione della Legge edegli Atti Giuridici. Milano: D. A. Giuffre, 1971.63. Richard Palmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "doponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destrutivos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica numpântano de relatividade, sem quaisquer regras. Éa integridade do próprio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defendê-la com firmeza." Hermenêutica, p. 56.64. Verdade e método, p. 13-4.
"A compreensão é menos um método através do qual a consciên-
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corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar entre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qualquer consideração referente ao grau de subjetividade dointérprete frente ao máximo de objetividade que se requerpara o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserirtanto um quanto outro em um processo histórico do qualambos fazem parte.
Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problemada consciência histórica.65 Acompanha Reinhardt Koselleck, no âmbito do historicismo, quando este aponta paraa mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento ea modernidade, quando a História deixa de orquestrar oconhecimento, apresentando seus exemplos, de onde poderíamos chegar à verdade, para dar lugar ao surgimentode uma nova consciência crítica.66 Segundo Gadamer, oaparecimento de uma tomada de consciência histórica, imposto pelo problema epistemológico trazido pelas "ciências humanas" desde Dilthey, revela "o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidadede todo presente e da relatividade de toda opinião" .67 Emsuas palavras,
cia histórica se acercaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo que um processo que tem como pressuposto o estardentro de um acontecer tradicional. [...] A distinção entre uma funçãonormativa e uma função cognitiva rompe definitivamente o que claramente é uno." Idem, p. 381 e 382.65. Veja a série de conferências proferidas em 1958, no Instituto Superior de Filosofia de Louvain, logo antes de Verdade e método, e queforam publicadas com o mesmo título: O problema da consciênciahistórica, sob a organização de Pierre Fruchon, em 1963. No Brasil,contamos com a tradução de Paulo Cesar Duque Estrada, e com apublicação pela Fundação Getulio Vargas Editora, em 1998.66. Ver Reinhardt Koselleck. Futuro passado: para uma semântica dostempos históricos, p. 43 e segs.67. O problema da consciência histórica, p. 17.
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A vida moderna começa a se recusar a seguir ingenuamente uma tradição ou um conjunto de verdades aceitastradicionalmente. A consciência moderna assume - precisamente como "consciência histórica" - uma posição reflexiva com relação a tudo o que lhe é transmitido pela tradição. A consciência histórica já não escuta beatificamente avoz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a mesma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim dever o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Essecomportamento reflexivo diante da tradição chama-se interpretação.68
A interpretação, então, aplica-se a tudo o que nos étransmitido pela história, exigindo uma postura de reflexão e mediação, de forma a trazermos o verdadeiro significado do texto. A interpretação de um texto, por exemplo,não é uma comunicação entre pessoas: autor e intérprete,mas a participação no tema que o texto comunica. AssimGadamer sugere que deixemos o texto nos interpelar, tornando-se presente, contemporâneo. A compreensão não étanto um processo subjetivo, afirma, e nem uma questãode nos situarmos numa tradição ou num "evento" que nostransmita esta tradição. A compreensão é, antes, uma participação na corrente da tradição, num momento em quese misturam passado e presente. O verdadeiro ponto dereferência não é a subjetividade do autor nem a do leitor,mas a própria significação histórica, ou seja, a significaçãoassumida por nós, situados no presente.69
68. Idem, p. 18-9. Grifo nosso.69. Richard Palmer. Hermenêutica, p. 188-9.
Palmer sintetiza a idéia de compreensão no pensamento de Gadamer da seguinte forma: "A compreensão [...] é sempre um eventohistórico, dialético, lingüístico - nas ciências, nas·ciências humanas,na cozinha. A hermenêutica é a ontologia e a fenomenologia da com-
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A questão da interpretação recai principalmente sobreos textos escritos, notadamente o direito, que se encontracircunscrito à norma posta. O primeiro problema que senos apresenta é o do distanciamento histórico entre a origem do texto carregado das intenções do seu autor, bemcomo do espírito da sua época, e o momento atual em quea lei, ou o texto, é interpretado e aplicado. A respeito,anota Gadamer: "Quando compreendemos um texto, nãonos colocamos no lugar do outro e nem é o caso de pensarque se trata de penetrar a atividade espiritual do autor;trata-se, isso sim, de apreender simplesmente o sentido, osignificado ou a perspectiva daquilo que nos é transmitido.Em outros termos, cuida-se de apreender o valor intrínseco dos argumentos apresentados."70 Da mesma forma,aplicar não significa "ajustar uma generalidade já dada antecipadamente para desembaraçar em seguida os fios deuma situação particular." Diante de um texto, por exemplo, continua Gadamer, "o intérprete não procura aplicarum critério geral a um caso particular: ele se interessa, aocontrário, pelo significado fundamentalmente original doescrito de que se ocupa."7!
Sobre a comunicação escrita é ainda bastante ilustrativa a contribuição de Paul Ricoeur. O autor trabalha com a
preensão. A compreensão não é concebida de modo tradicional comoum ato da subjetividade humana mas como o modo essencial queDasein tem de estar no mundo. As chaves para a compreensão não sãoa manipulação e o controle, mas sim a participação e a abertura, não éo conhecimento, mas a experiência, não é a metodologia mas sim adialética. Para Gadamer, o objetivo da hermenêutica não é avançarcom regras para uma compreensão objetivamente válida mas sim conceber a própria compreensão de um modo tão lato quanto possível."Hermenêutica, p. 216.70. O problema da consciência histórica, p. 59.71. Cf. O problema da consciência histórica, p. 57.
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relação dialógica do discurso, que tem no significado desua mensagem a instância capaz de aproximar locutor eouvinte. Segundo Ricoeur, na fala, enquanto discurso oral,o discurso é o evento da linguagem. Os eventos se esvanecem, mas o seu significado permanece, podendo, inclusive, ser dito novamente e de outra forma. A propósito, preceitua que "a supressão e superação do evento na significação é uma característica do próprio discurso, isto é, se todoo discurso se atualiza como um evento, é compreendidocomo significação."72 E dessa forma, sustenta que com afala a nossa competência lingüística se atualiza na performance que, enquanto acontecimento, consegue estabelecer a transição da lingüística do código para a lingüística damensagem.
O código, ou sistema da língua, possui apenas umaexistência virtual e fora do tempo, sendo o discurso quemo realiza temporalmente e num momento presente. O discurso oral permite uma identificação mais fácil e imediatado sujeito, do verbo e do predicado em um determinadocontexto que auxilia na interpretação mais adequada dosseus termos muitas vezes polissêmicos. Mas com a escrita,esta imediaticidade desaparece e o significado ganha umoutro contexto. O autor e a sua conjuntura, que fundamentam a primeira intenção da mensagem, desvinculamse da própria mensagem, que ganha autonomia. A significação, definida por Ricoeur como aquilo que o falante querdizer, ganha com a escrita uma outra dimensão. Segundoele, a escrita fixa não o evento da fala, mas o "dito", que éa exteriorização intencional do par "evento-significação".O que escrevemos é o noema (intenção de comunicabilidade) do ato de falar, ou seja, a significação do evento. 73 Con-
72. Paul Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 24.73. Idem, p. 39.
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tudo, com o discurso escrito a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir, ganhando o texto autonomia semântica: "o que o texto significa interessa agoramais do que aquilo que o autor quis dizer quando o escreveu."74
Com a escrita, o discurso se abre para o mundo, isto é,para um número indefinido de leitores e, conseqüentemente, de interpretações. Sobre o "auditório" ao qual amensagem se dirige, escreve Ricoeur:
Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que épreviamente determinado pela situação dialógica - é dirigido a ti, a segunda pessoa - um texto escrito dirige-se a umleitor desconhecido e, potencialmente, a quem quer quesaiba ler. Esta universalização do auditório é um dos efeitosmais notáveis da escrita e pode expressar-se em termos deum paradoxo. Porque o discurso está agora ligado a um suporte material, torna-se mais espiritual, no sentido de que élibertado da estreiteza da situação face a face. 75
E mais: "Graças à escrita, o homem e só o homem temum mundo e não apenas uma situação."76
Cabe lembrar aqui, tal como procede o próprio Ricoeur, a idéia de projeto como esboço de um novo "estarno mundo", conforme fizeram Heidegger e Gadamer sobre o processo hermenêutico. Entretanto, Ricoeur vê a exterioridade como condição necessária deste processo. 77 Na
74. Idem, p. 41.75. Idem, p. 42.76. Idem, p. 47.
"Para mim, o mundo é o conjunto das referências desvendadas portodo o tipo de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi eamei". Ricoeur, Teoria da Interpretação, p. 49.77. Ao assumir a exterioridade originária do distanciamento histórico,
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hermenêutica, a apropriação pelo intérprete do texto, quegoza de autonomia, faz-se à medida que ele assume o "tu",isto é, concebe como "seu" o que é alheio. Apropriar-sesignifica tornar semelhante o que é estranho, de forma apossibilitar sua assimilação pelo leitor presente. A interpretação tem assim a tarefa de atualizar a significação dotexto como um evento. E, enquanto apropriação, a interpretação torna-se um acontecimento. A respeito, ensinaRicoeur:
Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do próprio texto, concebido de um modo dinâmico como a direçãodo pensamento aberta pelo texto. Por outras palavras, aquilo de que importa apropriar-se nada mais é do que o poderde desvelar um mundo, que constitui a referência do texto.Desta maneira, estamos o mais longe possível do ideal romântico de coincidir com uma psiquê alheia. Se se podedizer que coincidimos com alguma coisa não é com a vidainterior do outro ego, mas com o desvelamento de um modopossível de olhar para as coisas, que é o genuíno poder referencial do texto. 78
Sobre este apropriar-se, mais uma vez nos reportamosa Gadamer, quando nos chama a atenção para a posição dointérprete na tradiçãO. Pertencer à tradição significa comungar dos fundamentos que sustentam e informam opré-juízo, e que levam a uma situação ao mesmo tempo defamiliaridade e estranheza diante da "coisa", que pode sero texto. Para Gadamer, o "ponto médio" entre a objetividade da distância histórica e o pertencer a uma tradição,
Ricoeur não se afasta da fenomenologia heideggeriana (baseada naconsciência do ser presente), empenhando-se, ao contrário, em assumi-la. Vide Interpretações e ideologias, p. 40.78. Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 104.
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ou o "ponto médio" que caracteriza a estranheza e a familiaridade, é o verdadeiro locus da hermenêutica. 79
Tanto Ricoeur quanto Gadamer posicionam-se a favorda objetividade hermenêutica capaz de ver no texto umavontade própria ou que se abre ao intérprete, independentemente da vontade de quem lhe deu origem.Atualmente é ponto pacífico na hermenêutica jurídica aprevalência da razão objetiva da lei sobre a razão subjetivaou originária. Não há qualquer dúvida quanto à necessidade da lei responder ou fundamentar uma solução que deverá ser dada a uma determinada situação concreta, melhor dizendo, a uma situação atua1. Dessa forma, caberá aointérprete, que é o aplicador da lei, adequá-la ao momentopresente, conferindo-lhe o melhor significado de direito.A criatividade do intérprete faz-se sentir na teoria gadameriana quando é dito, por exemplo, que "o sentido de umtexto supera o seu autor não ocasionalmente senão sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento só reprodutivo, mas sempre produtivo. 8o
79. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 365.A idéia de "pertencimento", que traduz a onticidade da herme
nêutica de Gadamer, corresponde ao fator tradição no comportamento histórico-hermenêutico. A hermenêutica, escreve Gadamer, "devepartir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo,com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com umatradição de onde a 'coisa' possa me falar. [... ] Precisamente sobre atensão que existe entre a 'familiaridade' e o caráter 'estranho' da mensagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a tarefahermenêutica. Mas a tensão de que falamos não é, como em Schleiermacher, uma tensão psicológica. É, isso sim, o sentido e a estrutura dahistoricidade hermenêutica. [... ] No que se refere ao caráter a um sótempo 'familiar' e 'estranho' das mensagens históricas, a hermenêutica reivindica uma 'posição mediadora'." O problema da consciênciahistórica, p. 67.80. Idem, p. 366.
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Já vimos que, para Gadamer, a compreensão é experiência e faticidade, ou seja, corresponde a um processoque tem como pressuposto o estar dentro de um acontecertradicional, ao passo que a interpretação seria a forma explícita da compreensão.
A interpretação não é um ato complementar e posteriorao da compreensão, senão que compreender é sempre interpretar, e em conseqüência a interpretação é a forma explícita da compreensão. 81
Encontrar-se dentro de um acontecer tradicional significa experimentar a situação; e daí Gadamer fala na hermenêutica da experimentação como uma forma de juízo mora1. 8Z Cabe ao intérprete compreender o verdadeiro sentido de um texto na concreção de sua execução adequada.Gadamer aqui assume uma perspectiva neo-aristotélica,retomando o sentido de phronesis, por considerar que "atarefa da decisão moral é acertar com o adequado em umasituação concreta, isto é, ver o que nela é correto e fazê10."83 Sendo que, para Aristóteles, julgar acertadamente é,ainda, julgar segundo a verdade. 84
O sentido de adequação corresponde antes à aplicaçãono processo hermenêutico, uma vez que a compreensão semostra como um acontecer. Interpretar um texto é esta-
81. Idem, p. 378.82. Aristóteles, na Ética a Nicômacos, também vincula a ação moral àexperiência referida ao hábito: "quanto à excelência moral, ela é oproduto do hábito, [... ] a excelência moral é engendrada em nós, masa natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade seaperfeiçoa com o hábito." (1103 b)83. Verdade e método, p. 388.84. Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 123.
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a;
belecer a sua relação com o presente, aplicá-lo à situaçãopresente.
Evidentemente, a compreensão se mede segundo umpadrão que não está contido nem na literalidade da ordemnem na verdadeira intenção daquele que a dá, senão unicamente na compreensão da situação e na responsabilidadedaquele que obedece. 85
No direito talvez esta questão fique mais clara, porqueo seu acontecer corresponde a uma decisão de caráter concreto, quando a lei é chamada a servir de parâmetro parauma decisão presente. Gadamer reconhece a exemplaridade do modelo jurídico para a hermenêutica, cuja tônica é aaplicação. Entretanto, não vê na hermenêtuica jurídica umcaso especial, encontrando-a capacitada a reunir a velhaunidade do problema hermenêutico em que se encontratanto o jurista quanto o teólogo e o filósofo. 86
Na realidade, não se trata de subsumir um fato a umaidéia geral, porque, a nosso ver, a idéia da norma já nasce,para o intérprete, concreta; e concreta, justamente, porque adstrita ao fato que se compreende.87 Logo, a compreensão não é propriamente um método, na qualidade decondição técnica de um fazer, mas um processo que verificamos no seu acontecer e que tem como pressuposto oestar aí, ou seja, o participar de uma tradição. 88
85. Verdade e método, p. 407.86. Cf. Verdade e método, p. 401.87. "Aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e a lei demaneira tal, que o direito propriamente dito se concretize", escreveGadamer em A razão na época da ciência, p. 51. E de concretizaçãoem concretização temos, como resultado, um franco projetar da jurisprudência.88. Gadamer. Verdade e método, p. 380.
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Essas considerações sustentam nossa hipótese de admitir o direito como concretização. A norma só ganha significado quando assume uma posição concreta, ou melhor,quando se revela realmente. O direito, como elemento ético da vida social- teoria da vida reta -, pretende realizaro bem. Daí concordarmos com Gadamer quando mostraque "a interpretação correta das leis não é uma simplesteoria da arte, uma espécie de técnica lógica da subsunçãosob parágrafos, mas uma concreção prática da idéia do Direito. A arte dos juristas é também o cultivo do Direito."89
O existencialismo de Gadamer serve de base ao nossoprojeto, na medida em que vemos a compreensão do direito em função de sua existência concreta. O direito se revela na sua existência, quando interpretado e aplicado. Masnão como um processo espontâneo ou natural, pois as leissão volitivas, feitas pelo homem, com intenções definidassobre valores, interpretadas e aplicadas também sobre valores relativos a cada situação específica, o que faz comque devam ser compreendidas.
O juiz, a seu turno, tem que cuidar de decidir, e, porisso, quando procura adequar a lei às necessidades do presente, na realidade procura resolver uma tarefa prática.Seu trabalho não se compara à do historiador que buscaentender o passado, mas, antes, se ocupa da própria história, que é o seu próprio presente. 9Ü
Em outro momento, Gadamer aponta para o aspectointersubjetivo da compreensão, sob sua dimensão prática,com o que podemos aproximá-lo da Nova Retórica. Compreender, antes de mais nada, diz ele, significa entender-seuns aos outros. Compreender é, para começar, acordo.9\ E,
89. Idem, p. 63-4.90. Idem, p. 400.91. Idem, p. 232.
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sob a ênfase dada à condição dialética e intersubjetiva dacompreensão, que envolve a relação pergunta/resposta,objeção/refutação, enfim, a contestação, que por sua vezobedece a todo um esforço argumentativo, Gadamer acredita que "o verdadeiro problema da compreensão aparecequando, no esforço para compreender um conteúdo se coloca a pergunta reflexiva de como haveria o outro chegadoà sua opinião."92
No livro A razão na época da ciência, ao tratar da dimensão prática da compreensão no mundo moderno, Gadamer procura chamar a atenção para os efeitos perversosda comunicação de massas e seu poder de manipulação nassociedades contemporâneas, e que não raro levam a umindividualismo exacerbado.93
A Hermenêutica, como teoria da interpretação, não ésimplesmente uma teoria. De modo muito claro, desde ostempos mais remotos, até hoje, a Hermenêutica esboçousempre a exigência de que sua reflexão acerca das possibilidades, regras e meios de interpretação sirva e promova, demodo imediato, a práxis, [... ]. De modo semelhante ao queacontece com a retórica, a Hermenêutica pode designaruma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade deum contato compreensivo com os homens.94
E a propósito, ressalta o caráter ético da práxis aristotélica, acreditando que "é próprio da capacidade criadorado homem o inventar desejos e buscar logo as vias para suasatisfação. Porém, isto não muda em nada o fato de que o
92. Idem, p. 233.93. Nesse sentido, ver especialmente o capítulo intitulado "O que é apráxis? As condições da razão social", emA razão na época da ciência,p.41 a56.94. Gadamer. A razão na época da ciência, p. 61.
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desejar não é querer, não é práxis. À práxis pertence oescolher, e decidir-se em favor de algo e contra alg "95''b E' o, Istoe, sa er prelenr um ao outro e escolher conscientem tentre as possibilidades. 96 en e
De fato, o caráter de liberdade de escolha e de decisãoapontado por Gadamer como parte de uma relação naturaÍentre os homens, leva-nos a aproximá-lo da Nova Retóricaproposta por Chaim Perelman, principalmente no que dizrespeito ao acordo.
É próprio da argumentação chegar-se ao acordo, que,conforme anota Rui Alexandre Grácio, produz uma verdade a~enas temporária e revisível, cuja única vantagem é ser~unclOnal, ou seja, permitir estabelecer princípios que diriJam o pensamento e a ação, resolvendo situações ao menosem um determinado momento.97 A racionalidade, que informa e viabiliza o acordo, serve de base a um "novo"modo de pensar humano, mais voltado para a vida em soc~e~ade, e que se apresenta como um novo paradigma filoSOflCO, em contraposição às posições monolíticas características da filosofia tradicionaP8
Cabe-nos ainda destacar os aspectos de liberdade e ampla participação daqueles que promovem o acordo, ao lhespermitir um tipo de pensar mais amplo e contrário ao pensamento linear.99 Mas, a respeito do aspecto paradoxal
95. Idem, p. 51.96. Idem, p. 59.
97. "O acordo torna-se fundamental, sob o ponto de vista práticoporque implica diretamente na organização das relações sociais." É ~que diz Rui Alexandre Grácio no estudo que faz sobre a obra de Perelman, Racionalidade argumentativa, p. 11.98. Esta é a tese desenvolvida por Rui Alexandre Grácio em Racionalidade argumentativa.
99. Veremos, ainda, que todo pensamento tópico tem, necessariamente, como base o acordo.
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oriundo dos limites ao acordo, pela sua circunstancialidade, escreve Grácio:
Limitações que se, por um lado, nos expõem à precariedade dos acordos, à conflitualidade dos debates e à instabilidade das discussões, abrem-nos, por outro, a um mundohumano em que a liberdade de opinião e o direito ao livreexame se podem sempre assumir e praticar como alternativa à tirania de profetas iluminados que procuram encerrar acontingência do pensamento na prisão das verdades neces-
, . . . 100sanas e UnIversais.
Podemos ainda inferir que, tanto Gadamer quanto Perelman, ao se indisporem contra o cartesianismo, que desassocia a teoria da prática, trabalham com a idéia de razãoque se assume na sua historicidade. Através da noção de"auditório", que resgata da retórica antiga, Perelman nospermitirá falar de uma razão histórica e situada, bem comopensar a racionalidade a partir da sua própria encarnaçãO. IOI Logo, como integrantes da corrente tópico-retórica,podemos distinguir aqueles pensadores que reconhecem atradição como elemento que fundamenta a compreensão,em lugar de servir-lhe de obstáculo. Descartes, ao contrá-
À propósito da diferença existente entre o pensamento linear e opensamento que assume a complexidade do contexto em que é gerado, anota Perelman em O império retórico: "o pensamento linear segue um encadeamento de idéias rigoroso, no qual a dedução não devenunca saltar um elo da cadeia, pois "onde um ponto for omitido, pormenor que seja, logo a cadeia se rompe e toda a certeza da conclusãodesvanece" (p.134, nota 20). Mais adiante continua: "Mas se se mudade foro, sendo o raciocínio assimilado, não a uma cadeia, mas a umtecido cuja trama é constituída por argumentos entrelaçados, imediatamente se vê que a sua solidez é de longe superior a cada um dos fios"(p.134, nota 21).loo.Cf. Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 11.101. Idem, p. 69.
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rio, reprova expressamente a influência dos costume dI d " - s, os
va ores e. as ?pInIOeS em suas considerações sobre a razão,por consIdera-los fatores de origem indefinida e obscuraque contaminam a pureza e a clareza do raciocínio.
Um outro aspecto que também nos levará a aproximaras concepções ontológicas e existencialistas de Gadamercom a proposta de uma racionalidade argumentativa feitapela Nova Retórica refere-se à questão da deliberação istoé, da escolha que se verifica no âmbito da práxis, a~plamente explorada por ambos os autores. Os homens assumindo a sua liberdade e as suas diferenças, adota~ posições mediante escolha, que comporta, outrossim, justificativa. Mas, antes, cabe reconhecer a participação da história (comunhão gerada pela tradição) nas nossas escolhase, até mesmo, na nossa interpretação do mundo, notadamente para o que se dá no campo jurídico, circunscrito àdogmática.
1.4 Dogmática e interpretação: o círculo hermenêutico
Como toda obra humana, que corresponde a um processo de criação, o direito tem a sua marca valorativa. Porconseguinte, o direito tem como sentido não só os valoresque concebem a intenção, ou a vontade, do sujeito que faza lei, como também os valores incorporados à tradição histórica na qual ela se insere. Isso encontra referência tantona vontade do autor quanto na vontade do intérprete, enquanto seres históricos pertencentes a épocas distintas. Odireito, no momento de sua criação, pelo ato originário dolegislador ou pelo ato decisório do juiz, aplica-se às necessidades práticas de todos aqueles que, direta ou indiretamente, se encontrem envolvidos na tarefa de interpretar alei, ganhando um significado de natureza volitiva, o que faz
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-com que ele deva ser compreendido. 102 O seu significado,portanto, não se encontra adstrito à natureza, independentemente da vontade humana, de forma a poder sersimplesmente constatado. Ao contrário, tudo aquilo que éfeito pelo homem possui um significado cuja busca depende de um esforço hermenêutico. Tratando-se, outrossim,de uma função prática, relativa ao agir humano, a apreensão do sentido insere-se, necessariamente, em um complexo processo dialético, no qual várias interpretações apresentam-se como logicamente possíveis. Entendemos, portanto, que a compreensão serve de base à interpretação,como produto final, uma vez que nos exprimimos sobreaquilo que compreendemos. 103 Mas, se por outro lado aceitamos que a interpretação servirá como fundamento paraa compreensão total do fenômeno, há que se falar tambémem pré-compreensão. 104
102. Com relação aos vários intérpretes que participam da concretização do direito, convém verificar o trabalho de Peter Hiiberle. O filósofo de Bayreuth propõe, ainda que para a esfera constitucional, umainterpretação aberta, levada a cabo por todos aqueles envolvidos emcada questão, chegando à opinião pública e ao próprio cidadão. VidePeter Hiiberle. Hermenêutica constitucional, Porto Alegre: Sérgio Fábris, 1997, trad. de Gilmar Ferreira Mendes.103. Segundo Heidegger, conforme escreve João Paisana, a questãohermenêutica só se poderá colocar a partir de uma resposta prévia quea oriente: "Parece que laboramos num círculo: a questão só se poderácolocar se obtemos previamente a resposta. [... ] Não se trata aqui dededuzir teoremas de axiomas segundo as regras formais da lógica. Trata-se de compreender a resposta existencial, veiculada por um modode ser ôntico que vela a questão, como resposta expressa a partir daquestão expressa, isto é, a partir da abertura de suas possibilidades."João Paisana, Dicionário do Pensamento Contemporâneo, p. 159.104. "A 'pré-compreensão' representa uma antecipação de sentido doque se compreende, uma expectativa de sentido determinada pelarelação do intérprete com a coisa no contexto de determinada situação. A pré-compreensão constitui um momento essencial do fenôme-
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No processo jurídico-decisório, a ação interpretativaparte de um conjunto de conceitos e conhecimentos prévios e, de certa forma, sedimentados, que nos possibilitaalcançar suas conclusões com um mínimo de previsibilidade. Do ponto de vista histórico, a tradição cumpre essepapel. Mas, especificamente no campo jurídico, contamoscom todo um arcabouço teórico que condiciona a sua interpretação. É o seu viés dogmático, composto pela lei,pela doutrina e pela jurisprudência. Logo, o ordenamentojurídico, como unidade sistemática de normas, serve deparâmetro 'para a interpretação. Quando qualificamos umfenômeno como jurídico, estamos, na realidade, considerando-o em função dos conceitos apresentados pela dogmática, cujo conteúdo, até mesmo por uma questão democrática e de segurança, é de todos previamente conhecido.Assim, a pré-compreensão do intérprete em relação a umaquestão jurídica encontra-se referida não apenas à situaçãohistórica, mas também a um determinado campo de conhecimento. Os princípios extraídos da doutrina e da jurisprudência, conhecidos, portanto, dos profissionais e estudiosos do direito, permite que a dialética se instauredentro de limites que lhe retirem qualquer espécie de arbitrariedade, conferindo-lhe, inclusive, considerável fatorde previsibilidade.
Vale lembrar a noção de dogmática jurídica apresentada por Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando a enuncia comopensamento fechado, oposto à zetética. O pensamento zetético corresponde às ciências do espírito não comprometidas com uma solução definitiva para suas questões, bem
no hermenêutico e é impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão." Cf. José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 135.
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como independem dos pontos de partida que podem sempre ser questionados. É o caso da filosofia, da política e atémesmo da sociologia. No direito, ao contrário, trabalhamos com a idéia de "inegabilidade dos pontos de partida"- expressão já cunhada por Nicklas Luhmannlos -, comrespeito às normas positivas. Isso significa que não cabe aooperador do direito questionar a existência da lei em si,ainda que possa discordar da interpretação prevalecentena jurisprudência ou na doutrina, não se eximindo, portanto, de apresentar uma solução definitiva para o problema.Caracteriza-se, dessa forma, o pensamento dogmático aum só tempo técnico e fechado, porque não se preocupacom a verdade ou com a falsidade de seus enunciados, mascom soluções logicamente possíveis. Não se trata, na realidade, de aceitar as leis como verdades impostas, mas deaceitá-las como limite ao processo criativo do intérprete.Fábio Ulhoa Coelho, a respeito da dogmática jurídicacomo pensamento tecnológico, declara:
o estudioso do direito conheceria, a rigor, a adequabilidade de meios (isto é, as muitas interpretações possíveis deuma norma jurídica) para o alcance de fins dados externamente a seu saber (a administração de conflitos sociais, amanutenção da organização econômica, política, social,etc.); adequabilidade essa que não se revela por demonstração lógico-dedutiva mas por argumentação retórica. 106
A propósito desta área circunscrita na qual atua o direito e que, por sua vez, delimita um campo próprio de inter-
105. N. Luhmann. Sistema jurídico y dogmática jurídica, p. 27 e segs.106. Fábio Ulhoa Coelho. Prefácio à edição brasileira do livro deChaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação - Nova retórica, p. XVI e XVII.
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pretação, é que podemos falar aqui do "círculo hermenêutico"107 desenvolvido pela filosofia, principalmente porHeidegger, para quem a interpretação se funda numa visãoprévia, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia,segundo uma possibilidade determinada de interpretação. IOS Isso significa que "toda interpretação que se colocano movimento de compreender já deve ter compreendidoo que se quer interpretar."109 E assim, "na compreensão, apre-sença projeta seu ser para possibilidades. "110
A circularidade hermenêutica, de acordo com Heidegger, funda-se na pré-compreensão, apoiada sobre o sentido
107. A idéia de círculo hermenêutico é vista por Richard Palmer daseguinte forma: "Compreender é uma operação essencialmente referencial; compreendemos algo quando o comparamos com algo que jáconhecemos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sistemáticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um tododefine a parte individual e as partes em conjunto formam o círculo.Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreendemos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos nasua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido dafrase como um todo está dependente do sentido das palavras individuais. Conseqüentemente, um conceito individual tira o seu significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo, o horizonteconstrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por umainteração dialética entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro;a compreensão é portanto circular. E porque o sentido aparece dentrodeste 'círculo', chamamo-lhe 'círculo hermenêutico'." Richard Palmer. Hermenêutica, p. 93-94.
Cf. também Gadamer, A razão na época da ciência, p. 65, quandoeste afirma que toda a interpretação só é possível a partir de preconceitos, nos seguintes termos: "O ponto central de toda compreensão serefere à relação objetiva que existe entre os enunciados do texto e anossa própria compreensão do assunto."108. Cf. Ser e tempo, Parte I, p. 206-207.109. Idem, p. 209.110. Idem, p. 204.
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daquilo que buscamos compreender. Sentido, para Heidegger, é aquilo em que se sustenta a compreensibilidadede alguma coisa; é a perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo,lll sendo que esse círculo da compreensãonão é um cerco em que se movimenta qualquer tipo deconhecimento; ele pertence à estrutura do sentido: exprime a estrutura prévia existencial própria da presença. 112
Daí a idéia de projeto lançado pelo ser presente e histórico,tão sugestiva em Heidegger e depois retomada por Gadamer, com ênfase no conceito de tradição.
A despeito dos defensores do pensamento linear, construído sobre axiomas, a idéia de círculo hermenêutico impõe-se na filosofia, ainda que apresentando diferenças, emgeral referentes ao momento determinante da interpretação ou à posição do intérprete em relação ao objeto interpretado. 113 No processo hermenêutico existirá sempreuma relação dialética entre o todo e as partes, porquanto o
111. Idem, p. 208.112. Idem, p. 210.113. Como exemplo temos as posições de Schleiermacher e Dilthey,assim descritas por Gadamer: "Schleiermacher distinguiu este círculohermenêutico da parte e do todo em sua vertente objetiva e subjetiva.Como a palavra pertence ao conjunto da frase, assim cada texto aoconjunto da obra de um escritor, e esta ao conjunto do gênero literárioou da literatura correspondente. Mas, por outro lado, o mesmo textocomo manifestação de um momento criativo pertence ao conjunto davida anímica de seu autor. Só nesta totalidade de signo objetivo sepode realizar a compreensão. Em conexão com esta teoria fala Diltheyde 'estrutura' e de 'centração em um ponto médio' desde o qual seproduz a compreensão do todo. Transfere assim ao mundo histórico oque é sempre um princípio da interpretação: que é preciso entenderum texto desde ele mesmo." Cf. o artigo intitulado "Sobre o círculoda compreensão" (1959), em Verdade e método lI, p. 63.
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significado de um depende do significado do outro. Gadamer, por exemplo, admite a formação de círculos concêntricos no movimento constante entre o todo e as partes, eem cuja congruência de cada detalhe com o todo encontrase a correção do critério. 114
Na relação entre sujeito e objeto, no entanto, Gadamernão reconhece um círculo de natureza formal. Segundoele, o círculo não é subjetivo e nem objetivo, mas descrevea compreensão como a interpretação do movimento datradição e do movimento do intérprete. A antecipação desentido que guia a compreensão de um texto não é um atode subjetividade, mas se determina desde a comunidadeque nos une com a tradição e é, portanto, de natureza ontológica. 11s
O significado da pré-compreensão assume, pois, especial importância no pensamento de Gadamer, para quem opré-juízo funciona como pressuposto que preside toda acompreensão. Por outro lado, sustenta que a tarefa da interpretação é um constante projetar como antecipaçõesque devem se confirmar "nas coisas". E, apoiando-se francamente na filosofia de Heidegger, para quem todo aqueleque quer compreender um texto realiza sempre um projetar, escreve:
o sentido só se manifesta porque alguém lê o texto apartir de determinadas expectativas relacionadas por suavez com algum sentido determinado. A compreensão doque põe no texto consiste precisamente na elaboração desteprojeto prévio, que, por suspeito, tem que sempre ser revisado na medida em que avança na penetração do sentido.Toda revisão do primeiro projeto apóia-se na possibilidade
114. Vide Gadamer. Verdade e método, p. 361.115. Idem, p. 363.
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de antecipar um novo projeto de sentido; é muito possívelque vários projetos de elaboração rivalizem uns com os outros até que possa estabelecer-se univocamente a unidadedo sentido. I 16
Ou:
Aquele que se propõe a compreender um texto faz sempre um projeto. Antecipa um sentido do conjunto uma vezque aparece um primeiro sentido no texto. Este primeirosentido se manifesta, por sua vez, porque lemos o texto comcertas expectativas sobre um determinado sentido. A compreensão do texto consiste na elaboração de tal projeto,sempre sujeito a revisão como resultado de um aprofundamento do sentido. 117
Percebe-se, desde logo, que este ir e vir de perspectivasnão se opera em uma só direção e de forma linear, comonas demonstrações lógicas e matemáticas, mas de formatópica e/ou dialética, como veremos adiante.
Gadamer legitima a pré-compreensão na tradiçãocomo processo histórico que o intérprete experimenta. lls
116. Idem, p. 333.117. Gadamer. "Sobre o círculo da compreensão" (1959). Verdade emétodo lI, p. 65.118. Para Gadamer, os preconceitos necessários e que orientam todatarefa interpretativa não constituem, obrigatoriamente, fonte de erro,como queria Descartes. Os preconceitos, por exemplo, dados pelatradição, carregam um fundamento de validade. Daí Gadamer falar daautoridade própria da tradição. Por outro lado, "a tradição não é umaforça cega, em face da qual o homem seria um ente meramente passivo, não só porque através dela o homem se auto-interpreta, mas também porque por ela o homem é continuamente interpelado. [... ] Atradição é assim identificada com o conjunto de preconceitos transsubjetivos que orientam a interpretação e, como eles, é igualmente
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A autoridade da tradição, no entanto, não tira a liberdadedo intérprete, porque, ao ser racionalmente reconhecida, eformar uma consciência metódica da compreensão, somoscapazes de controlá-la. I 19 Mas a compreensão não consisteem uma busca do passado feita por uma razão independente, como procedia o romantismo histórico, considera Gadamer. Consiste, isto sim, na determinação universal do estar aí, ou melhor, na futuridade do estar aí,feita por uma razão comprometida historicamente. O estar aí faz parte de um processo histórico enquanto experiência humana da qual participamos. E, assim, escreve:
Não é só a tradição e a ordem de vida natural que formam a unidade do mundo em que vivemos como homens; omodo como nos experimentamos uns aos outros e comoexperimentamos as tradições históricas e as condições naturais de nossa existência e do nosso mundo formam um autêntico universo hermenêutico com respeito ao qual nós nãoestamos encerrados entre barreiras insuperáveis senão abertos a ele. 120
A razão só existe como real e histórica, ou seja, a razãonão é dona de si mesma, mas está sempre referida ao dadono qual ela se exerce. "Por isso, os pré-juízos de um indivíduo são muito mais que seus juízos; a realidade históricado seu ser."121 E sob esse viés ontológico-existencialista,contrário às construções que se fundam sobre o métodológico-objetivista, Gadamer entende que:
afirmada como condição da interpretação." Cf. João Paisana, Dicionário, p. 163.119. Verdade e método, p. 336.120. Idem, p. 26.121. Idem, p. 344.
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A antecipação de sentido que guia nossa compreensãode um texto não é um ato da subjetividade senão que sedetermina desde a comunidade que nos une com a tradição.Mas em nossa relação com a tradição, esta comunidade estásubmetida a um processo de contínua formação. Não é simplesmente pressuposto sob o que nos encontramos sempre,senão que nós mesmos a instauramos enquanto que compreendemos, participamos do acontecer da tradição e continuamos determinando assim desde nós mesmos. O círculoda compreensão não é neste sentido um círculo "metodológico" senão que descreve um momento estrutural ontológico da compreensão. 122
De fato, quando Heidegger afirma que "a compreensão
significa o projetar-se em cada possibilidade de ser-nomundo, isto é, existir como essa possibilidade 11 , 123 podemos continuar com Gadamer quando, ao analisar tal con
cepção, conclui que "quem compreende um texto, paranão dizer uma lei, não apenas se projeta, no esforço dacompreensão, em direção a um significado, mas adquirepela compreensão uma nova liberdade de espírito. Isso implica novas e numerosas possibilidades, como interpretarum texto, ver as relações escondidas que ele dissimula, tirar conclusões, etc." 124
O problema da pré-compreensão assume especial importância no direito, devido ao seu aspecto dogmático. 125
122. Idem, p. 363.123. Cf. Ser e tempo, Parte 2, p. 193.124. O problema da consciência histórica, p. 41 .125. Sobre a existência de preconceitos ou pressupostos que orientam a interpretação no pensamento de Heidegger, temos que: "aceitara existência do círculo hermenêutico é indissocialmente aceitar a existência de pressupostos ou preconceitos para toda a exegese e, na verdade, como condição para a própria exegese." Cf. João Paisana, Dicionário, p. 159, verbete "Hermenêutica".
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A formação de uma tradição jurídica, originária dos princípios traduzidos pela lei, pela doutrina e pela jurisprudência, oferece ao direito um forte poder de legitimidade, nãotanto pela sua autoridade produtiva, legislativa ou judicial,mas, principalmente, pela regra de justiça que estabelece aaplicação do precedente como meio de conceder tratamento igual a situações essencialmente semelhantes. Damesma forma, a natureza normativa das regras e princípiosjurídicos positivados e dos conceitos sedimentados pelatradição condiciona a ação do intérprete, impondo-lhe limites. Veremos, todavia, que o uso da tópica no direitoajuda a potencializar seu âmbito de significação, ao invésde cercear a ação interpretativa.
Para o direito, além da tradição histórica, que situa ointérprete, contamos também com uma tradição especificamente jurídica, de regras e princípios, que se mantêm notempo e servem de sustentação às decisões, segundo a regra de justiça. 126 Dessa maneira, entendemos que a dogmá-
126. Perelman atribui significado especial à tradição jurisprudencialcomo fórmula de justiça, bem como aos "princípios gerais de direito",que atuam como regras gerais cuja autoridade repousa na tradição.Descartes, por seu lado, se indispõe francamente contra qualquer tradição. Os costumes e as opiniões levam ao erro, da mesma forma quea razão se opõe à arbitrariedade das crenças e dos pré-conceitos. Elepretende, com isso, segundo declara no seu primeiro trabalho publicado - Discurso do método -, fazer tábula rasa de sua própria vida,desfazendo-se das opiniões antes tidas como verdadeiras. Ele dispõecomo primeira regra para suas observações: "Nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal;ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e nãoincluí em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clarae distintamente a meu espírito, que eu não tivesse; nenhuma ocasiãode pô-lo em dúvida." (Discurso do método, p. 23) E, mais adiante:"quanto aos costumes, por vezes é necessário seguir, como se fossemindubitáveis, opiniões que sabemos serem muito incertas, como já foi
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tica é capaz de reservar alguma segurança às relações sociais, pelo quantum de previsibilidade que oferece ao controle de suas ações, mais do que em qualquer outra área doconhecimento, não merecendo, por isso, ser descurada.Aliás, é característica que nos faz distinguir a hermenêutica jurídica dos demais campos hermenêuticos, atribuindolhe tratamento próprio.
dito acima; mas, como então desejava ocupar-me somente da procurada verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menordúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em minha crençaalguma coisa que fosse inteiramente indubitável."(Discurso do método, p. 37.)
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Capítulo 2
o PENSAMENTO JUSFILOSÓFICOMODERNO: DA EXEGESE À
JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES
o pensamento jurídico moderno, ou as várias correntesfilosóficas que pensaram e escreveram sobre o direito noséculo XIX, detiveram suas preocupações em torno dosvalores que servem de essência ao próprio direito. SeriaméIesoasÍcamente a justiça, a certeza e a segurança. Entendemos que toda conalçãõét.ica e moral concentra-se noâmbito da justiça, assim como a ordem se refere à certezae à segurança. Entretanto, não se deve afastar a idéia deque a justiça, como ausência do arbítrio, sustenta-se na lei,relacionada diretamente aos valores da ordem e da segurança. É a chamada justiça formal, que garante a igualdadede todos perante a lei. Por isso, é repassarmos a história domundo moderno para perceber que a_necessidade da segurança se sobrepõe à idéia mais elevada de justiça, fazendocom que o direito se circunscreva à ordem forma1. 127 Se é
127. A segurança e a ordem são os valores típicos do mundo moderno.
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esta a modernidade que agora se questiona, é sobre ela quenossas atenções devem recair, tomando-a como paradigmade análise.
É o momento em que o cartesianismo se impõe. Característico disso é a teoria do contrato social, criado pela razão e que irá fundamentar a ordem social dos iluministas.A figura almejada de um legislador racional, criador deuma nova ordem, a despeito dos costumes e da tradiçãoexistentes, encontram fundamento nos escritos de Descartes:
Não há tanta perfeição nas obras compostas de váriaspeças, e feitas pelas mãos de vários mestres, como naquelasem que apenas um trabalhou. [... ] E assim pensei que asciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são apenas prováveis, e que não têm nenhuma demonstração, sendocompostas e aumentadas pouco a pouco pelas opiniões demuitas pessoas diferentes, não se aproximam tanto da verdade quanto os simples raciocínios que um homem de bomsenso pode fazer naturalmente sobre as coisas que se lheapresentam. 128
Os teóricos do racionalismo, que trataram da laicização_do poder estatal, clesloca~dó-~ eixo da origem do poder,CLue antes se situava na esfera divina, para a razão ou para~
natureza humana, clamavam, antes de mais nada, pela necessidade da certeza e da segurança nas relações sociais.
Com eles tivemos a criação do Estado de Direito, cujo intuito foi o deestabelecer previsões e evitar o arbítrio. A tônica do pensamento científico-cartesiano está dada pela segurança que a verdade pode trazer.A respeito, diz Descartes: "Eu tinha sempre um imenso desejo deaprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhasações, e caminhar com segurança nesta vida." Discurso do método,p.15.128. Discurso do método, p. 15 e 17.
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Thomas Hobbes centraliza no Soberano todas as expectativas de segurança para a sociedade inglesa do séculoXVIl.129 Convoca um tipo de Soberano até então desconhecido na tradição medieval: o Soberano absoluto composto pelas pessoas, seus corpos e mentes, como delegadoinerente de suas vontades. John Locke cria um soberanocoletivo: o poder legislativo, composto pela delegaçãotemporária das vontades dos homens, que mantêm o poder originário.l3° Por outro lado, Locke vê como fundamental e imprescindível a existência de um poder executivo composto por magistrados capazes de aplicar imparcialmente as leis soberanas ditadas pelo legislativo. Rousseauenaltece a figura do cislél.~ão, detentor originário do poder-?~Q.~rano, como o único capaz de conduzir legitimamenteª yidapública. Imagina uma ordem estatal em que indiví-duo e Estado se identificam numa mesma e única estruturade poder. 131
Mais foi com Locke que a teoria do .Estado liberal h1elhor se estruturou, seguido mais de p~rto por -Montesquieul32 e os Fouding Fathers133 americanos. Com basenesses autores, o EstadQ iguala-se à ordem configuraçl.apelo ordenamento jurídico positivo e, com isso, a segurança e a certeza poderiam ser encontradas nas leis legitimamente criadas pelos representantes do povo e garantidaspelo Est~ci_2--!Il~çlia_nte_aaçã.o.elo poder judiciário. Leis queob~igam tantg g()yemantes como gºyern~JQ~~-Ãlei passa aser vista como mecanismo de contrqle das ações do govet-
129. Thomas Hobbes. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil, passim.130. John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo, passim.131. Jean-Jacques Rousseau. Do Contrato Social, passim.132. Montesquieu. Do espírito das leis, passim.133. Hamilton, Madison e Jay. O federalista, passim.
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no, à medida que inibe o abuso do poder, e como regra quegarante a igualdade (formal) entre os homens. Encontrase, afinal, uma fórmula para conter os desmandos dos governantes, enquanto a cidadania se afirma.
No âmbito da vida privada, marcada pelas relações entre particulares, a presença de um poder maior, capaz demanter a ordem através da mediação na composição dosconflitos, também aparece como necessária. Mais do queuma questão de justiça, que não é de todo ausente, hajavista o requisito da imparcialidade para o terceiro mediador, impõe-se, antes, a manutenção da ordem fundada naliberdade individual. l34 Mas para tanto, de nada adiantariaum corpo de leis criativo e bem elaborado, sem mecanismos capazes de garantir-lhes execução. l3S A norma justaera aquela feita pelo povo, ainda que por meio de representantes eleitos, e que cabia ser aplicada sem intermediações. Ao poder judiciário competiria simplesmente umá'ação eficaz, capaz de concretizar a nova ordem tal comofora estabelecida. A teoria da separação dos poderes, bemcomo a igualdade garantida pela aplicação regular da lei,vêm, desta maneira, garantir a estrutura formal e os ideaisdo Estado de Direito.
Na pós-modernidade, contudo, esse referencial de ordem e segurança garantidos pelo formalismo abre espaçopara o valor da justiça, garantido não mais pela ação formalde cunho abstrato, mas pela razoabilidade referente à decisão de cada caso concreto. É quando as relações intersub-
134. A respeito da predominância do interesse individual, vale conferir a obra de Macpherson - A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke.135. T. H. Marshal demonstra como fundamental para a sedimentação da cidadania no séc. XVIII a proteção dos direitos individuaismediante a ação vigorosa do Poder Judiciário.
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jetivas e dialéticas, capazes de viabilizar o consenso e a legitimidade das decisões jurídicas, fazem com que se recupere a antiga retórica clássica e lhe confira objetivos novos.
Contudo, para se chegar ao ponto em que se encontraa filosofia jurídica atualmente, que contempla a "lógica dorazoável" e a "nova hermenêutica", convém percorrermosalgumas das principais escolas e movimentos teóricos quepensaram o direito no mundo moderno, caracterizando afilosofia de suas respectivas épocas, e que ainda servem dereferência à discussão atual.
2.1 A Escola da Exegese
Sob a ênfase do racionalismo, surge, na França, em1804, o Código Civil Francês, mais conhecido como Código de Napoleão. A idéia de sistema como conjunto de elementos estruturados de acordo com as regras da deduçãoimpõe-se no campo da filosofia, com especial repercussãono direito. 136 A criação de um corpo sistemático de normas .capaz de uniformizar o direito, suprimindo a obscuridade,a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância entre
136. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., "O núcleo constituinte dessa teoria já aparece esboçada ao final do século XVIII. O jusnaturalismo já havia cunhado para o direito o conceito de sistema, que seresumia, em poucas palavras, na noção de conjunto de elementos estruturados pelas regras de dedução. No campo jurídico falava-se emsistema da ordem da razão ou sistema das normas conforme a razão,entendendo-se com isto a unidade das normas a partir de princípiosdos quais todo o mais era deduzido. Interpretar significava, então,inserir a norma em discussão na totalidade do sistema. O relacionamento, porém, entre sistema e totalidade acabou por colocar a questão geral do sentido da unidade do todo." Introdução ao estudo dodireito, p. 240.
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os vários preceitos normativos regionais e setoriais, objetivando sua aplicação, revela uma vitória da razão sobre outras formas espontâneas de expressão cultural. E comomovimento doutrinário proveniente dos grandes comentaristas do novo código, surge a chamada Escola da Exegese.
Crédulos nas inúmeras virtudes daquele corpo sistemático de norma~, os componentes da Escola da Exegesepropugnam um~-atuação restrita do poder judiciári9J me~
diante o apego excessivo às palavras da lei. A atividade dosjuízes, na França, então comprometidos com o Antigo R~
gime, seria controlada pelo atendimento severo e restritoaos termos da lei. Lei feita pelo povo, em cujo conteúdo~~contra-se a vontade geral. Na busca do seu s~gl1ificadol
privilegia-se, então, os métod-os de interpretação gramatical, e sistemático. Por intermédio da estrutura gramatical,e- pelo conteúdo dos termos técnicos, encontrar-se-ia ~
vontade do legislador reconhecida como a máxima expres~
são da vontade geral que encarna o poder. Nada poderiaser admissível como ameaça à nova ordem. Qualquer poder, além daquele que verifica o conteúdo expresso da lei,transforma-se em arbítrio. E assim, o juiz passa a ser vistocomo um funcionário do Estado e mero aplicador do textolegal. Laurent, um dos fautores da École, proclama: "Oscódigos não deixam nada ao arbítrio do intérprete; estenão tem por missão fizer o direito. O direito está feito.Não há mais incertezas; o direito está escrito nos textosautênticos."137
Característico do impulso cientificista que prima pelacerteza, a atividade do jurista deveria ser a mais objetiva.eneutra possível. Em nenhum momento o juiz deve colocar'sua índole à mercê da interpretação da lei de forma a des-
137. Apud Bonnecase, ob. cit., p. 128.
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figurar a verdadeira "vontade do legislador". E dessa ma-neira, acredita-se na regeneração da Ciência do Direito i\....k(Civil) pela Escola da Exegese. O método sistemático tam-\ riJ~ ':bém apresenta-se como apropriado no trabalho de inter- " .pretação do novo código, uma vez que o conjunto de nor-mas integrado e harmônico traduz, em si, um sentido co-mum, além do significado isolado de seus artigos, cabendoao intérprete considerar a lei em conformidade com a totalidade do Código. O dogma da razão exalta de tal forma .a capacidade do Código, que leva à comjJle.t~.!~_~~!~ic:.~sª<:).
do direito com a leL.Daí a célebre frase de Bugnet: "Eu nãocõ~heç~o direito civil; eu ensino somente o Código deNapoleão."138
Havia uma pretensão de se encontrar na lei a respostapara todos os conflitQS. De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, ocódigo napoleônico conseguiu manter-se praticamenteinalterado até o final do século, e com ele as propostas daEscola da Exegese. 139 Julien Bonnecase, autor do livro L'École de l'Exégese en Droit Civil, divide em três os períodosdesse movimento: primeiro, o período de formação, quedata de 1804 a 1830; em seguida, o seu apogeu - 1830 a
138. Idem,p.128.139. A questão das lacunas, por exemplo, no direito não era enfrentada pelos teóricos da Escola da Exegese, embora existisse no CódigoNapoleônico uma disposição no sentido de que o juiz não pode deixarde julgar alegando ausência ou obscuridade na lei, sob pena de sercondenado: "O juiz que recusa julgar, a pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, poderá ser processado como culpadode denegação de justiça"- artigo 4° do Código de Napoleão. Cabeverificar, a respeito, os debates que antecederam a promulgação doCódigo, principalmente o que dizia Portalis, reconhecidamente o seuprincipal mentor.
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1880; e o declínio, verificado por volta de 1880. Além doapego à literalidade do texto como característica, Bonnecase aponta, ainda, um outro aspecto da Escola da Exegese, que é o da "estatalidad~".O direito identifica-se com oEstado, nos seguintes termos:
A Doutrina da Escola da Exegese se reduz, com efeito, aproclamar a onipotência jurídica do legislador, isto é, doEstado, pois, queiramos ou não, o culto do texto da lei e da
Tnfenção do legislador, levado ao extremo, coloca o direitode uma maneira absoluta nas mãos do Estacfo~140 .
A Escola da Exegese firmou, assim, a base teórica doracionalismo jurídico ocidental, cuja grande obra foi o Código de Napoleão.
2.2 A crítica de François Gény \
Apesar de toda ênfase dada pela Escola da Exegese aoaspecto racional do direito tal como este se encontra expresso na lei, que tudo alcança e tudo prevê, a despeito,inclusive, do que dispunha o artigo 4° do Código Civilfrancês, ao determinar sobre a obrigação do juiz de julgardiante do silêncio, da insuficiência ou da obscuridade dalei, encontramos a crítica de François Gény.141 Por meiode uma construção de base empírica feita sobre o trabalhodos juízes, que se defrontavam muitas vezes com casos de"lacuna", em vez de teorizar apenas no plano do abstratoou do meramente racional, Gény faz sua defesa pela "livre
140. Bonnecase, p. 149.'~ 141. Método de interpretação e fontes em direito privado positivo
(1899) e Ciência e técnica em direito privado positivo (1914-1924).
68
investigação científica". Muitas vezes verificava não serbastante a subsunção do fato à norma geral para se retirardaí, automaticamente, uma solução para o caso. ParaGény, quando o ordenamento jurídico não apresentasse
. uma lei específica para determinado caso, o juiz deverialançar mão da análise feita sobre os fatos sociais, bemcomo das leis que regem a sua estabilidade, para então obter a regra capaz de resolver a questão. A seu turno, a investigação científica mostrava-se conveniente tambémpelo seu rigor, apto a fornecer não apenas uma solução objetiva e criteriosa, possível de evitar qualquer arbítrio,como também uma solução legítima, pois que originária
,Aos próprios costumes e valores existentes na sociedade.Gény esclarece seu pensamento sintetizando-o na idéia dalivre pesquisa científica, da seguinte forma: "Pesquisa livre, uma vez que ela se encontra aqui subtraída à ação própria de uma autoridade positiva; pesquisa científica, aomesmo tempo, porque ela não pode encontrar suas basessólidas senão nos elementos objetivos, que somente a ciência pode revelar."142
De acordo com Gény, uma vez não obtida a respostapara o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, pormeio da atividade científica, encontrar a solução jurídica
LPara o caso fora do âmbito restrito da lei positiva. As possibilidades para se resolverem casos de ausência de leieram encontradas, dessa maneira, fora do texto legal, ainda que através do mesmo, uma vez que não caberia ao intérprete negar a ordem jurídica afastando-se dos seus princípios fundamentantes. Uma pesquisa científica, de basesociológica, seria capaz de oferecer ao intérprete os crité-
142. François Gény. Méthode D'Interprétation et Sources en DroitPrivé Positif, p. 78.
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, rios de justiça prevalecentes na sociedade e que, na reali
. dade, dariam ensejo ao surgimento de novas leis.
De maneira que, na esfera de livre pesquisa, onde nós oconsideramos agora, o método jurídico deve ter como preocupação dominante descobrir, ele mesmo, em prejuízo doauxílio de fontes formais, os elementos objetivos que determinarão todas as soluções requisitadas pelo direito positiVO.
143
Logo, a atividade do intérprete deveria coadunar-se
com as regras e princípios gerais norteadores da ordem jurídica positiva, fundamentais à garantia do Estado de Direito. A esse respeito, escreve Recaséns Siches:
Antes de tudo há que interrogar a razão e a consciênciapara descobrir em nossa natureza íntima as bases mesmas dajustiça. Por outro lado, há que dirigir-se aos fenômenos sociais para descobrir as leis de sua harmonia e os princípios deordem que requerem. 144
Para Gény, a lei continuava a ser considerada como a
principal fonte de direito. Antes de se recorrer aos costumes e à livre investigação científica, deveriam ser esgotadas todas as possibilidades de busca de uma solução para o
caso no direito positivo. Apesar de admitir-se, pela primeira vez, a procura do direito fora do texto legal, e daí agrande novidade trazida por Gény, a importância da ordem escrita era inquestionável. Na verdade, sua grandecontribuição foi para a teoria das lacunas. 145
143. Idem, vol.2, p. 79.144. Apud Recaséns Siches. Panorama do pensamento jurídico do séc.XX, p. 38.145. Gény, em suas críticas Capud Recaséns Siches Panorama delPensamiento Juridico en el Sigla XX, vol.I, p. 28 a 30), chama atenção
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o viés cientificista típico daquele século aparece nitidamente na obra de Gény. No livro Ciência e técnica emdireito privado positivo, ele trabalha com dois tipos de
componentes: o dado e o construído. O construído seria o
elemento artificial do direito, e o dado, o elemento natu
ral. De acordo com Gény, o verdadeiro conhecimento dá
se sobre o dado, ou seja, sobre os fenômenos da natureza
ou fatos sociais. Dessa forma, atribui um elevado grau de
para as tentativas do governo francês, como a criação do tribunal deCassação, com poderes para anular toda sentença que violasse expressamente o texto da lei, de forma a impedir uma possível interferênciado judiciário sobre o legislativo, agredindo a separação dos poderes.Em relação ao artigo 4° do Código Civil, que admitia a existência delacunas ao proibir o juiz de recusar sentença sobre qualquer assuntosubmetido ao seu conhecimento, lembra as palavras de Portalis, omais eminente de todos os autores do projeto do Código de Napoleão,quando este defende a utilização de princípios gerais de direito sobuma concepção jusnaturalista: "A missão da lei consiste em fixar osprincípios gerais do direito; estabelecer princípios fecundos e, no descer ao detalhe de questões que possam surgir em cada matéria concreta - ao juiz, ao jurisconsulto, penetrado do espírito geral da lei, é aquem cabe fazer as aplicações. Por isso, em todas as nações privilegiadas, ao lado do santuário das leis e sob a vigilância do legislador, vê-sesempre formar um depósito de máximas, de decisões, de doutrinas,que diariamente se depura mediante a prática e a confrontação dosdebates judiciais, que aumenta sem cessar com os conhecimentos adquiridos, e que é visto sempre como o verdadeiro suplemento da legislação ... Indubitavelmente seria desejável que todas as matérias estivessem reguladas pelas leis. Mas a falta de texto expresso sobre cadamatéria sucede que um antigo costume constante e fundado, ou emuma opinião ou em uma máxima aceita, ocupem o lugar da lei. Quando nada do estabelecido pela lei ou do que nos é conhecido comosuplemento dela pode nos dirigir, quando se trata de um fato concretamente novo, há que remontar-se aos princípios de direito natural;porque se a previsão dos legisladores é limitada, ao contrário, a natureza é infinita, adapta-se a quanto possa interessar aos homens ... " CP·30).
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certeza às ações humanas, considerando-as produto da razão natural. O dado racional, segundo ele, é aquele constituído por regras de conduta que a razão faz derivar da natureza do homem e do seu contato com o mundo: seria odireito em estado bruto. Essas regras de conduta, pela suaimposição ao espírito e pela correspondência às exigênciasmais evidentes das coisas, apresentam um caráter de necessidade, ao mesmo tempo que de universalidade e imutabilidade, características do direito natural. O direito natural é visto, assim, como o conjunto de regras jurídicasque a razão destaca da natureza e das coisas e que, conforme Gény, devem ser pesquisadas de maneira a se prepararem as bases profundas da organização jurídica positiva. 146 Somar-se-iam a elas, ainda, os dados ideais, ou seja,aqueles que representam as aspirações éticas ou sociais deuma civilização e que chegam a converter-se em uma espécie de convicção vigente que se impõe ao espírito. SegundoGény:
Retornamos, na realidade, ao objetivo necessário denossa pesquisa. Ele consiste em constituir, por um esforçocientífico, uma espécie de direito comum, geral por sua natureza, subsidiário por seu ofício, que supre as lacunas dasfontes formais e dirige todo o movimento da vida jurídica. 147
Verificamos, assim, que o cientificismo de base sociológica, apresentado por Gény, conforma-se com o espíritopositivista vigorante então na França, terra de AugustoComte.
146. Cf. Guido Fasso, Histoire de la Philosophie du Droit, p. 161.147. François Gény. Méthode d'interprétation et sources en Droit Privé Positif, p. 89.
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2.3 A Escola Histórica do Direito
A Filosofia do Direito, na Alemanha, tem outras bases.Lá, a grande influência da filosofia historicista correspondia, na prática, a uma atitude espiritual que recobria todosos campos da atividade humana. Na verdade, o historicismo insere-se no movimento de reação cultural contra afilosofia das luzes. O predomínio da razão e seus amplospoderes conferidos pelo Iluminismo, bem como a forçadas deduções abstratas que daí advém, devem, segundo ohistoricismo, ceder lugar às verdades oriundas de manifestações espontâneas e concretizadas sobre a realidade.
Não podemos olvidar que também o século XIX experimentou o prestígio do romantismo alemão, alimentadonos valores da individualidade e da tradição. Para o romantismo, a imaginação e o sentimento, a emoção e a sensibilidade, vêm substituir a razão como centro de tudo.148 Otema da natureza lhe é caro, mas não se trata mais do predomínio da razão humana como o elemento distintivo dairracionalidade que vigora no reino animal. A natureza,agora, é aquela representada pelo mundo sensível, em queo individual concreto sobrepõe-se ao abstrato universal.Para o romantismo, a razão não é capaz de tudo gerar aponto de modificar a ordem natural das coisas, negando,com isso, o passado. Ao contrário, os românticos se inserem na história, buscando o passado como explicação parao presente e como motivação para o futuro. O romantismovaloriza a individualidade no que se refere aos sentimentos, crenças, paixões e manifestações espontâneas de toda~ ordem, vinculadas à tradição, como forma não apenas deenfatizar a consciência própria da personalidade de cada
148. Cf. Norberto Bobbio. O positivismo jurídico, p. 47 e segs.
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um, mas também como forma de traduzir o indivíduocomo parte de uma ~ação.!49
Assim, diferentemente das abstrações intelectualistasda filosofia das luzes, o desenvolvimento e a formação dasociedade não aparecem tanto para o historicismo comopara o romantismo como obra da razão, mas como produtoespontâneo de forças irracionais que poderiam ser identificadas com uma racionalidade mais profunda, no sentidode ser concreta e real. O universal e o verdadeiro aparecempara o historicismo como realidade encarnada no individual e no concreto: o racional é visto como o real.!Sü Odireito natural é o direito naturalmente produzido pela sociedade e não se confunde mais com valores de ordem universal, passando a ser reconhecido como aquele que se realiza através da história, conforme a criação espontânea decada povo. -
E como produto desse ambiente cultural aparece, naAlemanha, logo no início do século XIX, o resultado doesforço de alguns juristas, fundadores da tão conhecida Escola Histórica do Direito, que se ocuparam da formulaçãode uma nova estrutura metódica para o direito que nãoaquela proposta pelo jusnaturalismo do séc. XVII e primeira metade do XVIII. Verifica-se uma mudança significativa no pensamento jurídico-filosófico que abandona,por exemplo, os conceitos de estado de natureza e de contrato social, em favor de organizações sociais baseadas eminstituições históricas formadas pelo costume.
149. A nação, segundo Guido Fassó, aparece como o elemento atravésdo qual o indivíduo se reconhece. Ela determina a personalidade decada um, dando-lhe consciência da sua singularidade em função dareligião, da linguagem, da poesia, das tradições e manifestações espontâneas. Cf. Hístoíre de la Phílosophíe du Droít, p. 29.150. Idem, p. 29.
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A Alemanha foi um dos países da Europa Ocidentalque mais retardou na obtenção de um Código Civil, emboa medida devido à sua fragm~ntação político-territorial.A essa ausência, somou-se a grande capacidade acumuladapelos alemães teóricos e práticos do direito, chamados depandectistas, de interpretar as antigas leis romanas herdadas ao Ocidente pelo Código de Justiniano, o Corpus IurisCivílis. Por meio do usus modernus pandectarum, procurava-se estabelecer uma consonância entre a lei romana eos costumes locais de origem germânica, buscando naquelaas instituições jurídicas ainda existentes. Isso gerou para aciência do direito uma confusão de conceitos e uma assistematicidade nos seus estudos. Tal situação, de relativadesordem, deu origem a correntes favoráveis a uma codificação inspirada no modelo francês. Foi o caso de Thibaut,cuja posição gerou disputa célebre com Savigny, nos idosde 1814. Thibaut era a favor da criação de um código eSavigny contra. Thibaut pretendia confiar a uma vontaderacional e coordenadora o cuidado de ordenar todo o direito, sistemática e positivamente, de forma a desenvolverseu estudo científico. Na realidade, Thibaut não repugnava totalmente o método do historicismo, mas sustentavaque a realidade histórica não podia ser compreendida semreferência à razão que a torne clara e precisa;!S! o que foimais do que suficiente para provocar a resposta de Savignyno sentido de que a melhor forma para se "juntar", digamos assim, o direito, não era por meio de um código, masde uma ciência orgânica e progressiva comum a toda a nação. 1S2
151. Idem, p. 36. -,152. Escreve Savigny, de acordo com tradução de Adolfo Posada: \"Resumiré ahora brevemente los puntos acerca de los cuales mi opi-
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Savigny vê o direito codificado como expressão do despotismo, porque proveniente e imposto pela razão, de forma estranha aos costumes. Por isso, opõe-se com veemên"cia às teses jurídicas da filosofia das luzes, baseada na teoria do direito natural, imutável e universal, deduzido darazão. Para ele, cada povo tem o seu próprio direito, fundado em elementos culturais como a língua, os costumes e areligião. A tomada de consciência destes elementos seriasuficiente para dar origem a um direito não arbitrário e nãoacidental, mas real. Tal como as teorias organicistas, o direito também não se apresenta como algo imutável, porque se desenvolve com o povo: nasce, cresce, e morrequando perde a sua personalidade. 153 O ordename~to jur~
dico é, para Savigny, o "direito vivo", que o legisladotpod~
exprimir ou integrar, mas não criar arbitrariamente. 1s4 O
nión está de acuerdo con la de los defensores de um Código y lospuntos respecto de los que disentimos.
En cuanto ai fin, estamos de acuerdo: queremos la fundación de underecho no dudoso, seguro contra las usurpaciones de la arbitrariedade y los asaltos de la injusticia; este derecho ha de ser comúm paratoda la nación y han de concentrarse en él todos los esfuerzos científicos. Para este fin desean ellos un Código, con el cual sólo una mitad deAlemania alcanzaría la anhelada unidade, mientras la otra mitad quedaría aún más separada. Por mi parte, veo el verdadero medio en unaorganización progresiva de la ciencia deI Derecho, la cual puede sercomún a toda la nación. F. De Savigny, De la Vocacion de NuestroSiglo para la Legislacion y la Ciencia del Derecho, p. 171.153. Como produto espiritual de um povo, que é o verdadeiro sujeitoda história, o direito é concebido como realidade orgânica. Para Savigny, o povo se apresenta como ser orgânico vivente, com vida própria(histórico-espiritual), que nasce, se desenvolve e morre. Dotado deuma força específica, que pode ser identificada com o espírito nacional, o povo, de modo misterioso e em lento processo de crescimento,engendra todas as suas manifestações espirituais, entre elas a linguagem e o direito. Cf. Legaz y Lacambra, p. 100.154. Savigny, Vom Beruf unserer Zeit zur Gesetzgebung und Rechts-
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direito baseia-se, assim, nos costumes que se correlacionam com a convicção popular, atuando como força interiorque opera tacitamente. ISS Segundo Savigny, o direito legislativo deveria ter a única função de oferecer suporte aoscostumes para diminuir-lhes as incertezas e as indeterminações. Por meio dele, seria possível preservar a purezaque é a vontade efetiva do pOVO. IS6 Para tanto, a fim deremediar os inconvenientes do direito comum, Savignypropõe, em lugar da codificação, a elaboração científica dodireito de base histórica. Das três formas que aponta como-possíveis de se manifestar o direito: a popular ou espontânea, a científica e a legislativa, a segunda apresentar-se-iacomo a mais válida e característica das sociedades amadurecidas. Enfim, para a certeza do direito, o instrumentoapropriado não seria o código, mas a ciência jurídica.
Por outro lado, verificamos que a idéia de sistema, proveniente do jusnaturalismo e do racionalismo anteriores,aliou-se também ao romantismo alemão, dando origem,mais tarde, às chamadas "ciências do espírito". A vida emsociedade, vista como unidade orgânica, passa a constarcomo fundamento para a construção científica do direito,
wissenschaft, Heidelber, 1814, p. 7, apud José Lamego, em Hermenêutica e jurisprudência, p. 20 e 21.155. São estas as palavras de Savigny, conforme tradução de AdolfoG. Posada: "La síntesis de esta opinión es que todo derecho tiene suorigen en aquellos usos y costumbres, a las cuales por asentimientouniversal se suele dar, aunque no con gran exactitud, el nombre deDerecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero porlas costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudencia;simpre, por tanto, em virtud de una fuerza interior, y tácitamenteactiva, jamás en virtud del arbitrio de ningún legislador." Savigny, DeLa Vocacion de Nuestro Siglo para la Legislacion y la Ciencia delDerecho, p. 48.156. Cf. Guido Fasso, p. 36.
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sendo certo que, para tal atividade científica e criadora,aparecerá o trabalho dos juristas formulando e reformulando antigos conceitos jurídicos. Parte-se da idéia de sistemapara a busca de um método de interpretação que dê contadesta nova racionalidade, não abstrata, mas contingencial.Segundo Savigny, o Direito não deveria ser visto comomera soma de elementos (normas jurídicas racionalmenteformuladas e positivadas), mas como um conjunto de institutosjurídicos que habita a consciência do povo, só perceptí~-elatravés da- intuiçaodo Jurídico, oriundo de prátiêãS-culturais. Trata-se do célebre conceito de VolksgeÚt,tão referido em seu pensamento. O direito passa a ser admitido não mais como produto exclusivo da razão ou davontade - pura obra intelectual ou fruto do arbítrio uma vez que sua fonte estaria na convicção jurídica dopovo, aflorada por meio de um mecanismo intuitivo voltado para o que é pensado como ideal de regulação da convivência humana. 1S7 Uma consciência jurídica unificadora einata, verdadeira fonte do Direito e do Estado.
157. "Dijimos de manera provisional que la producción dei Derechose realiza por el Pueblo como su sujeto personal activo. Ahora nos tocadeterminar con más precisión la naturaleza de este sujeto. [.o.] Enrealidad, empero, encontramos que, dondequiera que los hombresconvivan y en cuanto la historia nos informa, siempre se hallan en unacomunidade espiritual que en el uso dei mismo lenguage se evidencia,robustece y desarrolla. La sede de la producción del Derecho se encuentra en esta totalidade natural, ya que la fuerza de satisfacer lanecesidade arriba reconocida reside en el espíritu común dei Puebloque matiza a los individuos. [.o.] EI Derecho como producto dei espíritu dei Pueblo puede ser privativo de un Pueblo determinado o puedeexistir de manera uniforme en varios." Cf. Savigny, Fundamentos deLa Ciencia Jurídica, conforme tradução de Werner Goldschmidt,membro do Instituto Argentino de Filosofia Jurídica y Social, presidido por Carlos Cossio. In Savigny, Kirchamn, Zitelman et. aI. La Ciencia deZ Derecho, p. 38, 39 e 40.
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( . O curioso no pensamento de Savigny é que, ao invés de1 um. d.ireito espontâneo, :erifi~ado naturalme~ten~s ações\ SOCIaIS, o que vale, ao fmal, e o que a doutnna cIentífica
(
I elabora. E será, assim, justamente, que o pensamento conceitual elaborado pelos juristas e professores, nas universi
. dades, provocará o surgimento de um novo racionalismoou intelectualismo jurídico tão anti-histórico como o direi-to natural, mas que se move em plano diferente, qual seja,o da lógica e da dogmática jurídica. O pensamento conceituallógico-abstrato será, assim, aquele capaz de explicitara totalidade representada pelos institutos jurídicos. E, dessa forma, ,a doutrina termina por ganhar posição superior à
<..-da práxis, conforme anota Legaz y Lacambra. 158
No mesmo sentido aponta o estudo de Tércio SampaioFerraz Jr.:
A organicidade [proposta pela Escola Histórica] não serefere a uma contingência real dos fenômenos sociais, masdeve ser buscada no caráter complexo e produtivo do pensamento conceitual da ciência jurídica elaborada pelos juristas desde o passado. 159
158. Para Legaz y Lacambra, os jurisconsultos atuaram como verdadeiros órgãos da consciência jurídica alemã. Cf. FiZosofía dei Derecho,p.l08.
-'59. "A Escola Histórica marca o aparecimento daquilo que Koscha-\ "f ker denomina de 'o direito dos professores' (cf. Savigny, 1840: 14). O
"direito dos professores" aparece quando, sob certas condições, a tônica na ocupação com o direito passa para as Faculdades de Direito epara seus mestres. Isso não quer dizer que o direito passasse a sercriado e construído pelos professores, mas sim que a doutrina passavaa ocupar um lugar mais importante do que a práxis e os doutrinadoresa terem uma precedência sobre os práticos. Tal ênfase, continua o
'- a~tor, dava à doutrina uma certa independência em relação a um poder central, pois os professores não viviam necessariamente nas capitais, mas atuavam fora do âmbito político." Tércio Sampaio Ferraz Jr.Introdução ao estudo do direito, p. 73.
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r
Aduz ainda o autor a vitória paradoxal da idéia de "espírito do povo" defendida originalmente por Savigny.Como reflexo da genuinidade popular, o "espírito dopovo" acaba por merecer o esforço de interpretação dosintelectuais das universidades, que o reproduzem atravésde conceitos. A organicidade dos conceitos, cujo poder deabstração permitirá a subsunção dos fatos concretos, daráorigem à ciência do direito. Fato é, que o formalismo quedaí se seguiu pode ser bem configurado na "pirâmide dosconceitos" criada por Puchta, sob regras genealógicas: deconceitos mais gerais e abstratos deduzem-se outros maisespecíficos. Contudo, a influência do método históriconão desapareceu por completo, imiscuindo-se à propostade Puchta.!60
Podemos extrair daí a origem do chamado métoC!~cl~
interpretação histórico-evolutivo, aceito pela dogmáticajurídica tradicional, mediante o qual se pretendia dar atualidade à chamada "vontade de legislador". O direito, comoelemento histórico, também deveria ser interpretado historicamente. Mas, para tanto, caberia ao intérprete colocar-se no lugar do legislador, deixando fruir em si o espírito do povo, que reclamaria a aplicação daquela lei, aindaque em outro momento, por meio do recurso a técnicasespecíficas. Essas técnicas, conforme ensina Savigny, correspondem aos elementos gramatical, lógico, histórico esistemático do direito.!6! Tércio Sampaio Ferraz Jr., quan-
160. Idem. Ibidem, p. 74.161. É esta a lição de 5avigny sobre os princípios fundamentais dainterpretação, conforme a tradução argentina de Werner Goldschmidt: "Toda ley tiene la función de comprobar la naturaleza de unarelación jurídica, de enunciar cualquier pensamiento (simple o compuesto) que asegure la existencia de aquellas relaciones jurídicas contra error y arbitrariedade. Para lograr este fin, hace falta que los quetomen contacto con la relación jurídica, conciban pura y completa-
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mente aquel pensamiento. A este efecto se colocan mentalmente enel punto de vista dellegislador y repiten artificialmente su actividade,engendran, por consiguiente, la ley de nuevo en su pensamiento. Heaquí la actividade de la interpretación, la cual, por consiguiente, puede ser determinada como la reconstrucción del pensamiento ínsito dela ley. 5ólo de esta manera podemos obtener una inteligencia segura ycompleta del contenido de la ley; y sólo así podemos lograr el fin de lamisma.
Hasta aquí no se diferencia la interpretación de las leyes de la decualquier otro pensamiento expresado (como p. ej. se practica en lafilología). Lo específico resalta, si la descomponemos en sus elementos. Hemos de distinguir en ella cuatro elementos: un elemento gramátical, lógico, histórico y sistemático.
El elemento gramatical de la interpretación tiene por objeto lapalabra, que constiuye el medio para que el pensamiento deI legislador se comunique con el nuestro. Consiste, por conseguinte, en laexposición de las leyes linguísticas aplicadas por ellegislador.
EI elemento histórico tiene por objeto la situación de la relaciónjurídica regulada por regIas jurídicas en el momento de la promulgación de la ley. Ésta debía intervenir en aquélla de determinada manera; y el mencionado elemento ha de evidenciar el modo de aquellaintervención: lo que por aquella ley se ha introducido de nuevo en elDerecho.
EI elemento sistemático, por último, se refiere a la conexión interna que enlaza a todas las instituciones y regias jurídicas dentro de unamagna unidad (§ 5). Este plexo se hallaba lo mismo que el contextohistórico en la mente deI legislador; y por consiguiente no conoceremos por completo su pensamiento, si no esclarecemos la relación en lacualla ley se encuentra con todo el sistema jurídico y el modo en queella debía intervenir eficazmente en el mismo.
Con estos cuatro elementos se agota la comprensión del contenidode la ley. No se trata, por consiguiente, de cuatro clases de interpretación, entre las cuales se puede escoger según el gusto y el arbitriopersonal, sino de diferentes actividades que deben cooperar para quela interpretación pueda dar éxito. Bien es verdad que algunas vecesserá más importante y visible un elemento, y otras otro, de modo queserá suficiente que la atención se dirija ininterrumpidamente haciatodas estas direcciones, si bien en muchos casos singulares se podrápasar en silencio la expresa mención de cada uno de los elementos
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do escreve sobre a contribuição de Savigny para a hermenêutica jurídica, aponta dois momentos de seu pensamento. Num primeiro momento, a interpretação jurídica aparece em Savigny como uma questão de ordem técnica, emque o importante era mostrar aquilo que a lei dizia, no seusentido textual, por meio de técnicas específicas. Mas após1814, percebe-se que suas concepções hermenêuticas tomam outro rumo:
como inútil y pesada, sin que exista un peligro para una interpretaciónconcienzuda. EI éxito de toda interpretación depende de dos condiciones, en las cuales podemos condensar brevemente aqueles cuatroelementos: en primer lugar, es menester que recapitulemos plásticamente la actividad mental de la cual dimana la expresión particularproblemática de pensamientos; en segundo lugar, es preciso que dominemos el conjunto histórico-dogmático que solo arroja luz sobre ladisposición particular para damos cuenta en seguida de las relacionesentre aquel conjunto y el texto presente. Si contemplamos estas condiciones, disminuye lo extrano de algún fenómeno, que fácilmentepodría hacemos dudar sobre lo acertado de nuestro juicio. En efecto,hallamos algunas veces en escritos de eruditos y célebres autores interpretaciones de casi incomprensible absurdidez, mientras que alumnos de talento, a los cuales presentamos el mismo texto, tal vez acierten. Tales experiences se puedem hacer sobre todo respecto a losnumerosos casos jurídicos, de los cuales se compone una parte grandey aleccionadora de los digestos.
EI fin de la interpretación de cada ley consiste en obtener precisamente de ella tantos conocimientos jurídicos reales como sea posible.La interpretación debe ser, como consiguiente, por un lado individual,por el otro rica en resultados. Se puede alcanzar este éxito en diferentes grados; y esta diferencia depende, en parte, dei arte dei intérprete,pero en parte también dei arte dei legislador de depositar en la leymucho conocimiento jurídico seguro o sea de dominar el Derechodesde este punto de vista dentro de lo posible. Por tanto, existe unareciprocidad entre una buena legislación y una buena hermenéutica,dependiendo el éxito de cada una de ellas por el de la otra." Cf.Savigny. "Os Fundamentos da Ciência Jurídica", ín Savigny, Kirchmann, Zitelmann et al., La cíencía deZ Derecho.
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A questão deixa de ser a mera enumeração de técnicas,para referir-se ao fundamento de uma teoria da interpretação. Surge o problema de se explicar o critério (metódico)da interpretação verdadeira. A resposta envolvia a determinação do fator responsável pelo sentido de unidade último edeterminante do sistema. Em princípio, a concepção de queo texto da lei era expressão da mens legislatoris leva Savignya afirmar que interpretar é compreender o pensamento dolegislador manifestado no texto da lei. De outro lado, porém, enfatizava ele a existência fundante dos "institutos dodireito" (Rechtsinstitute) que expressavam "relações vitais"responsáveis pelo sistema jurídico como um todo orgânico,um conjunto vivo em constante movimento. Daí a idéia deque seria a convicção comum do povo (Volksgeist) o elemento primordial para a interpretação das normas. 162
2.4 O formalismo jurídico na Alemanha
o formalismo na Alemanha propagou-se com o trabalho de juristas oriundos da Escola Histórica, que possuíalastro na atividade dos pandectistas. À vontade de se criarum direito científico, fato já refletido por Savigny, acresce-se a capacidade demonstrada pelos pandectistas de reelaborarem as antigas instituições do direito romano mediante a extração de conceitos, cujo poder de abstração
\ permitia que os mesmos fossem aplicados em diferentes\.épocas e lugares. E para a melhor compreensão e aproxi
mação entre os conceitos utilizava-se o método lógico-sistemático, que acaba por perceber o direito como uma totalidade fechada em si mesma.
O cientificismo propugnado por Savigny resultará an\tes numa idéia de direito de cunho racional-universal, que\
162. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.241.
83
1I
L
! ultrapassa fronteiras físicas e geográficas, do que na idéia~e um direito histórico e nacional. É o que mostram asteorias de Puchta e de Jhering. No último volume do Espírito do Direito Romano, Jhering afirma que a ciência dodireito é universal, e que "os juristas de todos os países ede todas as épocas falam a mesma língua",163 na medida emque a ciência do direito se serve de métodos próprios, válidos para a análise de qualquer ordenamento jurídico. ComPuchta, antigo discípulo de Savigny, desenvolve-se a genealogia dos conceitos, que propõe uma busca de conceitos em princípios gerais, mediante operação lógico-indutiva e lógico-dedutiva: por indução chega-se aos princípios,para depois, por dedução, descer às suas ramificações múltiplas. De acordo com a Jurisprudência dos Conceitos, denominação dada mais tarde a este método de criação e interpretação do direito, o papel da ciência jurídica é o deverificar como suas proposições encontram-se reciprocamente condicionadas, por meio de um processo de derivação que remonta à genealogia de cada uma. Com isso, aobra de Puchta pode ser reconhecida como uma das expressões mais bem acabadas do tratamento abstrato e sistematizador conferido ao direito. 164
163. Jhering, apud Norberto Bobbio em O positivismo jurídico, p.123.164. Puchta, em Cursus der Institutionen I (Curso das Instituições I),preleciona: uÉ missão agora da ciência reconhecer as proposições jurídicas no seu nexo sistemático, como sendo entre si condicionantes ederivantes, a fim de poder seguir-se a sua genealogia desde cada umadelas até ao princípio comum e, do mesmo modo, descer do princípioaté ao mais baixo dos escalões. Neste empreendimento, vêm a trazerse à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas noespírito do Direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem naimediata convicção e na atuação dos elementos do povo, nem nosditames da própria lei escrita, ou seja, que patentemente só se vêm a
84
\;
A atividade científica consistia em e~tabelecerconceitos bem definidos, que pudessem garantIr segurança às relações jurídicas, uma vez diminuída a ambigüidade e a va
I guidade dos termos legais. E foi por meio da elaboração de, conceitos gerais, posicionados na parte superior da figuraI de uma pirâmide, capazes de conter e dar origem a outros
conceitos de menor alcance, numa união total, perfeita eacabada, que o direito alcançou o seu maior grau de abstra
" ção e autonomia como campo de conhecimento. Esse alto'grau de racionalidade deu origem ao "dogma da subsun
ção", que irá se impor no século seguinte. O direito eratido como fruto de um desdobramento lógico-dedutivoentre premissas capazes de gerar por si sós uma conclusãoque servisse de juízo concreto para cada decisão. Com isso,nota-se um considerável, e até nefasto, isolamento das regras jurídicas do seu meio circundante. E a despeito demovimentos posteriores como o da Livre Interpretação doDireito será este formalismo conceitual que garantirá a,base dogmática do positivismo jurídico prevalecente du-rante todo o século XX.
Percebe-se que a tarefa dos juristas, na Alemanha, consistiu em conferir o máximo de objetividade possível parao resultado de suas construções, o que levou à formação daciência jurídica, no sentido de uma teoria autônoma dodireito vigente. O próprio conceito de "espírito do povo"defendido pelos historicistas, indeterminado e quase mitológico, é transformado em categoria formal, apriorística,sendo à mesma atribuída categoria de fonte hipotética atodo direito criado cientificamente. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., a dogmática foi, assim, pouco a pouco ocu-
revelar enquanto produto de uma dedução da ciência." Apud KarlLarenz, Metodologia da ciência do direito, p. 22.
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pando o lugar principal na ciência do direito, enquanto ahistória do direito perde em importância.
r Embora a Escola Histórica insistisse na historicidade, do método, ao cabo da pesquisa o resultado se tornavaI mais importante do que a própria investigação que o precei dera. 165\c-..
E a conclusão daí auferida por Guido Fassà é a de queo positivismo jurídico se afirmou no século XIX pela via dohistoricismo. 166
2.5 O positivismo jurídico
o formalismo jurídico encontra respaldo no naturalismo típico da filosofia da luzes e na filosofia positivista. Oprimeiro privilegiava o estudo científico da realidade objetiva, as ditas "ciências naturais", mediante a adoção do método empírico, enquanto a filosofia positivista privilegiavao estudo das relações constantes entre os fatos sociais,também através do método de investigação empirista.Guido Fassà acredita que o positivismo correspondia maisa um modo de pensar do que a uma doutrina específicajmas um modo de pensar que negava qualquer metafísica,fundamentando-se unicamente nos fatos "positivos", cujoconhecimento advém somente da observação e da experimentação. Enquanto filosofia, o positivismo não busca oconhecimento universal ou absoluto, mas um conhecimento "geral", enfeixado na coordenação sistemática das leisdescobertas e formuladas pelos diferentes campos científi-
165. Tércio. Introdução ao estudo do direito, p. 75.166. Vide Guido Passo, ob. cit., p. 42.
86
COS.1 67 Dentre esses, ganha destaque o campo das ciênciashumanas e sociais, às quais a aplicação do método positivopretendia os melhores resultados.1 68 A idéia era buscar nasociedade leis constantes e invariáveis que a explicassem,tal como se explicavam os fenômenos da natureza.
Entretanto, foi na França, com Augusto Comte, que opositivismo ganhou projeção no âmbito das ciências sociais. 169 Sua obra faz alusão ao que mais tarde será chamado de sociologia jurídica. A sociologia, no seu nascedouro,corresponderá à ciência positiva da sociedade vista comoúnica capaz de abranger toda a gama de fenômenos nelaverificados, fundamentando-se, exclusivamente, na observação dos fatos, fora de toda ideologia metafísica. Fassàinterpreta que, para o direito, isso significará a busca deum elo de conexão entre os fatos sociais e o direito, demaneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles,independentemente de quaisquer valores de ordem moral.Para o mesmo autor, a mais autêntica aplicação do métodopositivista no campo do direito deu-se com a pesquisa histórica. Foi o que aconteceu com a Escola Histórica do Direito na Alemanha, cujo processo de generalização e abstração dos fatos desvinculou-os de quaisquer valores que
167. Vide João Ribeiro Jr. Augusto Comte e o positivismo.168. Guido Passo, ob. cit., p. 120.169. Isidore Auguste Marie Xavier Comte (1789-1857). Com o positivismo, Augusto Comte almejava a regeneração da humanidade.Acreditava que para se reformar a sociedade era necessário, antes detudo, descobrir as leis que regiam os fatos sociais, cuidando-se deafastar as estéreis concepções abstratas e especulações metafísicas.Segundo ele, é, pois, no desenvolvimento das ciências naturais que seencontra o caminho a seguir. Pela observação e pela experimentaçãose irão descobrir as relações permanentes que ligam os fatos, cujaimportância é básica na reforma econômica, política e social da sociedade. Cf. João Ribeiro Jr., O que é positivismo.
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lhe pudessem ser atribuídos na origem. Por mais contraditório que possa parecer, os fatos assim transmudam-se emconceitos de ordem objetiva e geral.
No entanto, apesar de os partidários da filosofia positivista, como Augusto Comte, não terem demonstrado nenhum interesse especial pelo direito, os juristas passaram ase perguntar se a Jurisprudência era ou não uma ciência.Sob a influência do positivismo não faltou, obviamente,quem defendesse a criação de um método próprio para odireito, de caráter objetivo, cujo conhecimento fosse possível mediante a manipulação de leis próprias ao seu objeto. Para o positivismo, o direito ou a ciência jurídica deveriam ser vistos como todas as outras ciências naturais ou,seja, como uma força da natureza (social), independentemente da ação e do pensamento humanos. Era o tipo doconhecimento obtido da correlação e da constância verificada entre os fatos observados. Segundo Fasso, isso traduzia o entusiasmo da época: os "tempos positivistas" .170
No entanto, não foi ainda no decorrer do século XIXque o direito consegue firmar-se como ciência nos moldespositivistas. Neste momento, ganha relevo a sociologia jurídica. Será apenas com a genialidade de Hans Kelsen, noinício do século seguinte, que teremos uma ciência do direito de impressão francamente positivista. Antes disso, oinegável fator de contingência do direito emprestou-lhe,quando muito, uma posição de inferioridade científica.
Mas o positivismo jurídico não seguiu a tendência sociológica apontada por Augusto Comte. Firmou-se muitomais sobre as bases do formalismo, uma vez que para umateoria objetiva do direito importava mais o conjunto dasnormas postas pelo Estado, através de suas autoridades
170. Cf. Guido Fasso, ob. cit., p. 123 e ss.
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competentes, do que a realidade social propriamente dita.A vontade do Estado soberano prevalece, assim, sobre avontade difusa da nação, e o direito positivo passa a reconhecer-se no ordenamento jurídico posto e garantido peloEstado, como o direito respectivo a cada país. O direitopositivo torna-se, então, o único direito que interessa aojurista, porque é o único direito existente, contrapondo-seem definitivo ao direito natural, de difícil verificação; razão pela qual a maioria dos autores atualmente define direito positivo como contraponto do direito natural. Comoexemplo temos o livro de Norberto Bobbio, O positivismojurídico, onde o autor define direito positivo com base nosbinômios particularidade/universalidade e mutabilidade/imutabilidade, estabelecendo também a noção de queo direito positivo é aquele reconhecido por intermédio dadeclaração de uma vontade alheia (potestas populus), enquanto o direito natural é o que conhecemos através darazão. Dessa forma, a valorização do direito corresponderátambém a critérios objetivos: bom é aquilo que o Estadoquer e prescreve como conduta obrigatória, e mau aquiloque não valorizou a ponto de incorporar à ordem jurídica.Assim, justa é a lei historicamente relativizada, enquanto odireito natural é bom ou mau em si mesmo, independentemente da vontade do legislador. 171
Ao contrário do que ocorreu com o cientificismo daEscola Histórica, Kelsen não admitirá a criação do direito
171. Tércio Sampaio Ferraz Jr. atribui ao formalismo daí decorrente,com alto grau de abstração, duas conseqüências: a primeira é a capacidade de neutralização dos conflitos, considerado o direito na sua função social; a segunda, o estabelecimento da ciência dogmática do direito preocupada cada vez mais com a natureza jurídica dos seus institutos, bem como com a classificação de seus conceitos. Cf. Introduçãoao estudo do direito, p. 71 a 83.
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1
por meio da elaboração de conceitos jurídicos, limitandose ao que se encontra prescrito em lei. Não obstante, adogmática jurídica acabará por ensejar a elaboração deconceitos gerais que formulem e circunscrevam o campode atuação do direito. É o papel da Teoria Geral do Direito, cuja base formal segue a Jurisprudência dos Conceitos.Por outro lado, essa base conceitual passa a ser indispensável ao princípio da completude da ordem jurídica. Cientificamente, é importante que o direito se baste. A autointegração mediante processo autônomo, lógico e sistemático, baseado em princípios gerais, evitaria a influência deelementos externos, capazes de fragilizar os limites do direito. Veremos, no entanto, que essa concepção formalistae positivista sempre foi acompanhada de críticas.
2.6 A crítica de Jhering ao formalismo jurídico alemão
A Europa de finais do século XIX não era mais a mesma. A evolução social, científica e tecnológica verificadaem alguns dos seus principais países gerou novas demandase complexas relações socioeconômicas, alterando o cená~
rio anterior, em que as mudanças não eram tão freqüentes,de forma a exigirem também mais do direito. O culto feti-=lchista às normas cristalizadas em códigos não respondia :mais às novas necessidades, provocando uma série de rea- ;ções ao positivismo jurídico-formalista.
Rudolf Von Jhering, antes um dos principais teóricosda Jurisprudência dos Conceitos, percebe a crise que semanifesta na cultura da segunda metade do século XIX eacaba por ser autor de uma das críticas mais contundentesao método lógico-dedutivo e ao formalismo jurídico, peloseu alto grau de abstração. No livro A luta pelo direito,escrito em 1891, como resultado de idéias que vinha de-
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fendendo desde 1872, Jhering mostra o direito como umarvivência que deve ser assumida tanto pela parte de quemIo aplica, o Estado, quanto por quem o postula na qualidade\de interessado. Segundo ele, o direito é, na realidade, umai luta, ou um verdadeiro esforço animado pelo espírito práUico que subjaz à sua própria realização. Diz o autor ao pre-faciar seu trabalho:
o que tive em mente não foi a divulgação do conhecimento científico do direito, mas antes a promoção do estado de espírito em que este há de buscar sua energia vital, eque é o que conduz à atuação firme e corajosa do sentimento de justiça. 172
r o sentimento de justiça, próprio da personalidade, é o: que, segundo Jhering, coloca o diréito em movimento. O"'sujeito lesado, por exemplo, é quem irá reclamar pela re-
paração do prejuízo sofrido. Portanto, a luta consideradapor Jhering é a luta concreta, relativa ao próprio sujeito,que vê seus direitos violados. Neste sentido, o direito queinteressa não é tanto o direito posto, objetivo, mas o subjetiVO. I ?3
. No livro A finalidade do direito,174 Jhering soma a no;ção de fim, ou finalidade, à idéia de direito como práxis. Ati~nalidade, elemento que compõe necessariamente a ação,representa, segundo ele, algo futuro que a vontade pretende realizar. Quem age, age em virtude de um fim, da mesma forma que querer, e querer em razão de um fim, sãosinônimos. 175 O jurista, então, se quer compreender o di-
172. Rudolf Von Jhering. A luta pelo direito, p. 1.173. Idem, p. 29.174. Jhering. A finalidade do direito, passim.175. Idem,p.6elO.
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reito, deve prestar atenção às necessidades que provocama busca de determinados fins, em lugar de conceitos obtidos de normas e instituições jurídicas, por força da lógica.
Assim, a partir de Jhering, a idéia de que o direito seliga a um fim, que se pretende ver realizado na prática, fazcom que o mesmo abandone o campo da abstração e vejaaberto o caminho para a Jurisprudência dos Interesses, encarregada de formular metodologicamente esta questão.Verificamos, no entanto, que Jhering repudia o positivismo jurídico, essencialmente formalista, mas não o positivismo filosófico, que dedica seu esforço à apreciação dosfenômenos naturais, incluindo nesta categoria os sociais.Com isto, o método realista ou teleológico, voltado para osinteresses e valores que lhe servem de fundamento, vemocupar o lugar até então preenchido pelo formalismo exegético.
2.7 A Jurisprudência dos Interesses
Como antítese d.:a J'!~i~prudência dos Conceitos, a chamada Jurisprudência dos Interesses procurª.suplantar a lógica formal ~10 estudo e pela avaliação da vidaLou sej~
pela pragmática.
Note-se, ainda, que a finalidade considerada por Jhering não é afinalidade do legislador prevista na lei, mas a do sujeito em suas relações sociais. Além do que, a finalidade é imanente à própria idéia desociedade, uma vez que a consideramos como união de várias pessoasligadas em torno de uma meta comum. Finalidade poderia corresponder, desta forma, à necessidade de toda a sorte que nasça da vidasocial e que deve ser satisfeita para que a sociedade sobreviva. A esterespeito ver também Guido Fasso, "Do primeiro ao segundo Jhering",em Histoire de la Philosophie du Droit, vol. XX, p. 49.
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A Jurisprudência dos Interesses tem como principalrepresentante o professor de Tübingen, Philipp Heck. DeJheringLHé'çk inçm-pgxa_Il㺠~§ .a idéia dedi~~ito co~~p~4i~a, analisancl()-o como "funçã~J~dicial",mas tambê~a idéia de fim,çom~TntêresSe·.Vimos queparaJliermg odireito Itã-º-.é-CriadQ-l2Qfconceitos, mas porBns ou valoreséuja realização se persegue. Heck atrib~ia esses fins a qua11dade de comandos jurídicos, que encontram sua base nanecessidade ou no interesse. Do mesmo modo, o direito
lr resumir-se-ia nacoorclenação da garantia dos interesses
dos membros da sociedade, ao passo que a atividade dojuiz estaria direcionada para a composição dos interessesdas partes em conflito, de acordo com o comando normativo. De tal forma, a Jurisprudência dos Interesses nega-sea confiar ao juiz a mera função do conhecimento e subsun-ção entre alei e o fato, propugnando a adequação da decisão às necessidades p!áticas da vida, meclianteos Interesses em pa_utª. Os coma;((os-legais, escr-eve-PhifippHeck,não só se destinam a resolver conflitos de interesses, massão também, como todos os comandos ativos, verdadeirosprodutos dos interesses. Assim também as leis apresentam-se como resultante dos interesses materiais, nacionais, religiosos e éticos, em luta pelo predomínio de unssobre os outros.1 76
Heck acredita que a atividade do juiz é criadora, à proporção que procura co;:;'juga~ os interesses postos na lei,pelo legislador, com os interesses da ocasião em que a mesma é chamada a ser aplicada; ao que se soma o conteúdoemocional do próprio juiz, que contribui com a sua experiência de vida e com o seu sentimento de justiça. A pesquisa histórica éjmpºrtantepara~beLq\lais..os.iIlleres-
176. Philipp Heck. Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, p. 19.
93
ses con!iclos na ki. Entretanto, não se cuida de procurar~a v~ntade psicológica, mas uma vontade normativa correspondente ao comando contido nas palavras da lei, e aosinteresses nela exigidos. Heck chama sua teoria da interpretl!Ção de "teoria histórico-objetiva", nos seguintes termos:
° "legislador" não é simples ficção ou fantasma, mas adesignação que engloba todos os interesses da comunidadevigentes [leia-se, valores]. Assim a questão~<:>!y:~es posta,de saber se a vontade procurada é a-dolegisladorde hoje oude ontem, res()Jve-:"se· c-oTIi51ªi~za. _0 escoEo da determinação judicial do direito é, seIllcl(1viclal ª2roleçáQdejnteresses attl~is. Ma-sarealização desse escopo tem como fator oconhecimento daqueles interesses cujas exigências se revelaram já em forma de lei. l77
Heck recupera a 'Jurisprudência pragmática" de Jhering,I 78 quando entende que o método jurídico prende-se àação exercida pelo direito sobre a vida; e para tanto, aproveita-se dos meios oferecidos pela sociologia. De acordocom Heck, as té~flica~sg<.:!019giça~inv_e~!iriam em duas direções:-ªQr:illleirª4-YITifiçªncl0 os interesses. prot~gidos na
~ei' como necessidades da vida p~átiZ~;;-m ~;~~tante contradição; a segunda, atendo-se aos interesses inerentes aopróprio caso. O direito, para ele, significa então tutela deinteresses: tanto interesses de ordem geral, protegidospela lei, quanto individuais, protegidos pela sentença (nor-ma individual).
177. Idem, p. 71-2.178. Larenz fala em "jurisprudência pragmática" ao referir-se a Jhering. Com a idéia de fim imanente ao Direito, Jhering atribui-lhe um"motivo prático", que retira da norma jurídica seu caráter de meraabstração. Cf. Larenz. Metodologia de ciência do direito, p. 50 e segs.
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Segue-se que, para Heck, sob a influência do positivismo filosófico, a interpretação da lei é sobretudo "explicitação de causas". E neste sentido é preciso descobrir ascausas do preceito legal para explicar os seus efeitos, quese traduzem no próprio comando jurídico. Mas, por outrolado, notamos que esse procedimento faz-se por meio deum processo de valoração, que ensejará um novo aproachfilosófico-doutrinário.
A Jurisprudência dos Interesses contou com muitosadeptos, mas também foi duramente criticada. A críticados neo-hegelianos (dentre os quais Larenz) deu-se, emprimeiro lugar, com relação ao substrato filosófico positivista que reconhecia apenas uma realidade empírico-sociológica: a verificação dos interesses em pauta. Por outrolado, ao desconsiderar a orientação científico-espiritualvoltada para o "espírito objetivo" referente aos valoresexistentes em cada comunidade, a Jurisprudência dos Interesses fazia revigorar o positivismo jurídico, que circunscrevia a decisão do juiz ao estrito conteúdo da lei. A outracrítica refere-se à ideologia liberal individualista da Jurisprudência dos Interesses, quando esta contrapõe os interesses particulares aos interesses da comunidade. I 79
Essas críticas, no entanto, produziram efeito distintonos seguidores de Heck, que passaram a reconhecer o realfundamento valorativo dos interesses, dando ensejo à futura jurisprudência da valoração. 18o Não seria à toa que Heck
179. Cf. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 52 e segs.180. Karl Larenz reconhece no pensamento de Heck uma aberturapara os valores, e em seu livro reproduz a seguinte passagem da obrade Heck: "O legislador quer ordenar os interesses da vida que lutamentre si. Para isso precisa de um juízo de valor sobre eles que o leve àconcepção de uma ordem a promover, ou seja, de um ideal social." Cf.Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 61 e segs.
Sobre a passagem da Jurisprudência dos Interesses para a Jurispru-
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teria escrito, logo no início do seu livro Interpretação daLei e Jurisprudência dos Interesses, o seguinte:
A aptidão da decisão judicial tem, portanto, de ser medida, primeiro que tudo, pelos juízos de valor expressos pelacomunidade jurídica em forma de lei. O juiz está subordinado à lei. A comunidade jurídica organizada em Estado ésoberana e autônoma, não só externamente, mas tambéminternamente, nas suas relações com os tribunais. A subordinação destes não é só conseqüência da necessidade da certeza do direito, é o resultado dum princípio constitucional,dum juízo de valor geral que coloca a vontade da coletividade, declarada em forma de lei, acima da vontade de cadacidadão. I 81
Recaséns Siches também reconhece o viés valorativoda teoria de Heck, para quem /Ia valoração dos interesseslevada a cabo pelo legislador deve prevalecer sobre a valoração individual que o juiz possa fazer segundo seu critériopessoal. I82 Por outro lado, o legislador "deve esperar dojuiz, não que este obedeça literalmente, de modo cego, aspalavras da lei, senão que, pelo contrário, desenvolva oscritérios axiológicos em que a lei se inspirou, conjugando-oscom os interesses em questão" .183
dência dos Valores, escreve ainda Larenz: "Em vez da dedução lógicoformal, coloca a Jurisprudência dos Interesses, não a vontade ou osentimento, mas a investigação dos interesses e a apreciação dessesinteresses à luz dos critérios de valor subjacentes à lei. Por isso, reserva ao juiz, sem dúvida, uma área de decisão maior, mas nenhumaliberdade de decidir apenas emocionalmente. Compreende-se assimque a prática jurídica tenha seguido predominantemente a Jurisprudência dos Interesses, e não a teoria do Direito livre." Ob. cito p. 73.181. Philipp Heck. Ob. cit., p. 15.182. Recaséns Siches. Panorama del pensamiento juridico en el siglaXX, p. 275.183. Idem. Ibidem, p. 275.
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Contrariando a idéia de completude do ordenamentojurídico, com ausências passíveis de serem resolvidas pelaforça lógica do sistema, Heck reconhece a real existênciade lacunas, ocasião em que o juiz deve se entregar a umatarefa de ordem axiológica. Mas isso só é possível uma vezconhecidos os interesses em jogo e os valores existentes navontade do legislador, de forma a adequá-los uns aos outros.
Com a introdução do conceito de valor, ainda que vistosob a forma de uma necessidade real e verificável como é ointeresse, a simples relação causal entre fato, norma e sentença vem a ser acrescida do papel do valor ou dos valoresenvolvidos na causa. Essa nova postura ensejará, maistarde, o aparecimento da chamada Jurisprudência dosValores, que tem em Larenz um de seus principais defensores. 184
2.8 O Movimento para o Direito Livre
Na esteira das críticas referentes às insuficiências daconcepção rn~todológica tradicionaL.adstrita ao form@smo, surge, na Alemanha, o Movimento para o Direito Livre: Não se trata de um grupo específico de pensadoresnem de uma teoria bem precisa. Consistia antes numa~~nc!ª ou numa atitude que assumiu formas diversas, dentreas quaÍS-a própria Jurisprudência dos Interesses. Ummovimento que se inseria em outro mais amplo, de revolta
-..:.-.-., _- --184. Além da Metodologia da ciência do direito, vale conferir o trabalho de Larenz intitulado Direito justo, quando o autor, dando seqüência à proposta de Stammler, defende a idéia de um ordenamentojurídico de base axiológica.
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contra o apego à tradição e ao conformismo manifestadoem vários domínios: da arte à religião.
O Movimento para o Direito Livre tem como marco açonferênciaapresentadaJ>orE!Jgen J::hrlich, na Al~manha:em 1903, sobre A luta pela ciência do direito, quando detena-~-aTivrebus~-~--do-direitoem lugar da aplicação mecâ-nica davontade dolegislaªorp~evist~!!al~i_. Daende~sea
r'idéia de que o juiz;--ao decidir, considere os fatos sociais\ que deram origem e condicionam o litígio, a ordem interna\ das associações humanas, assim como os valores que orienLtam a moral e os costumes.1 8S Afinal,
o direito não consiste nas disposições jurídicas, mas nasinstituições jurídicas; quem quer determinar quais são asfontes do direito deve saber explicar como surgiram Estado,Igreja, família, propriedade, contrato, herança e como elesse modificam e evoluem no decorrer do tempo.186
Por isso Ehrlich veio a ser considerado um dos precursores da sociologia do direito. 187
Em 1906, mesmo ano em que a conferência de Ehrliché public;da, surge o manifesto de Herman Kantorowicz
185. Maiores detalhes sobre as idéias e os participantes desse movimento podem ser encontrados no trabalho de Castanheira Neves, emDigesta, vol. 2, p. 193 e segs.186 Eugen Ehrlich. Fundamentos da sociologia do direito, p. 70.
~187' Ehrlich fala sobre a existência de um direito vivo em contraposição ao apenas vigente diante dos tribunais. O direito vivo, diz ele, éaquele que, apesar de não fi?,ado em prescrições jurídicas, domina avida. As fontes para conhecê-lo são sobretudo os documentos modernos (dentre os quais destacam-se as sentenças judiciais), mas tambéma observação direta do dia-a-dia do comércio, dos costumes e usos etambém das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto asignoradas e até ilegais. Fundamentos da sociologia do direito, p. 378.
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por um Movimento çloDirejto_LLYI~.188Nele defende aidéia de que nem todo dir~i!Q_~e esgota no EstadQ.; ao contrário, muito-mais-rlco e legítimoé o_dir~jtobrotadoespontanéaITlentedos..grupºs_e__illQYim~ntos ~ociais, qu~~lechama de direito natural. E é e_st_~_çlir~!!.<:>~e__S_é:lberia sercompendiado pela_ dO\jJriIlª-e rgconhecido_pe1o .. ES1ªc!.9,por Il1giº_ da ativid_ª-c:l~jurisdiçiº-na1. Kantorowicz chamaesse direito de natural e positivo, por conter dentro de si avontade e o poder da sociedad..e. Ao lado do direito estãt'aTou mesmo anterior a ele, estaria o direit<:>liY!~.Eroduzidopela opiniã.Qlu:r:fdica d<:>~_rn~IDl):r:<:>s da soci~çlag~LP~las_.sen
tençaslttdiciárias e pela ciência jurídica. Segundo Kantorowicz, o povo conhece o direito livre, enquanto desconheceo direito estatal, a não ser que o último coincida com oprimeiro. 189r Daí que a atividade jurisdicional do Estado deve pres
\ cindir da lei sempre que nela não encontre a solução justa
188. Larenz nos informa que, na realidade, foi Oskar Von Bülow oprecursor do Movimento do Direito Livre, através do seu escrito nosidos de 1885, Lei e função judicial. A idéia básica deste trabalho, dizLarenz, "é a de que cada decisão judicial não é apenas a aplicação deuma norma já pronta, mas também uma atividade criadora de Direito.A lei não logra criar logo o Direito; é 'somente uma preparação, umatentativa de realização de uma ordem jurídica'. Cada litígio jurídico'põe um particular problema jurídico para que não existe ainda prontana lei a determinação jurídica oportuna ... , determinação que tambémnão é extraível, com a absoluta segurança de uma conclusão lógicanecessária, das determinações da lei'. Sob o 'véu ilusório da mesmapalavra da lei' oculta-se uma pluralidade de significações, cabendo aojuiz a escolha da determinação que lhe pareça ser 'em média a maisjusta'." Metodologia da ciência do direito, p. 70.189. Herman Kantorowicz. "A luta pela ciência do direito", traduzidopor Werner Goldschmidt, em obra organizada pelo Instituto Argentino de Filosofia Jurídica e Social, presidido por Carlos Cossio, quereúne escritos de Savigny, Kirchmann, Zitelmann e Kantorowicz, sobo título: A ciência do direito, p. 335.
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,Ili,
1,11
para ocaso. O juiz temcompromisSQªpen.ª~_c-ºlTlajustiça;age conforme a sua exclusiva convicção, ainda qu-eparãtanto lhe seja exigida uma formação especial.\90 A idéia éJ--que o juiz não seja apenas um especialista em leis, mastambém tenha olhos para a sociedade, sabendo avaliar osfatos.\9\
Com isto verificamos a recusa ao dogma legalista quevê o direito como norma constituída em lei sem permitirao intérprete recorrer a argumentos de natureza extralegal. Enfim, o Movimento para o Direito Livre procurouresolver o p~~blema provocado pelo di~~al:l5iamentº_~illre
o direito estanque e a sociedade em movimento. A lei, tornando~se retrÓgrada, por não acompanhar as transformações vividas pela sociedade, acaba por gerar instabilidadeem lugar de segurança. E assim ressurge o direito natural(social) de base histórica. Entretanto verificamos, a partirdaí, uma forte reação contra o sociologismo jurídico.
2.9 O retorno ao formalismo com Hans Kelsen
Os efeitos da genialidade de Hans Kelsen ainda se fazem sentir, não obstante as muitas críticas que recebeu,em geral relativas ao método de conhecimento jurídico refratário à questão da moral e da justiça. Ainda assim, pode-
190. Cabe destacar a importância conferida por Kantorowicz ao conhecimento extraído de uma ciência do direito. Diz ele: "As necessidades da vida jurídica exigem que outras potências, em primeiro lugara ciência jurídica, se coloquem livremente e em função criadora aolado do legislador, precisamente em atenção à importância do mesmopara satisfazê-las. Chegou a hora de levar a sério o lema da ciênciacomo fonte do direito." Cf. A luta pela ciência do direito, in A ciênciado direito, cit., p. 342.191. Kantorowicz. A ciência do direito, p. 368.
100
mos considerar a Teoria Pura do Direito como o maiorexemplo de construção lógico-estrutural do ordenamentojurídico até o momento. Em termos de operacionalidadeda ordem jurídica, naquilo que diz respeito ao seu dinamismo - eficácia da lei no tempo, que envolve as questões davalidade e da vigência das normas -, a teoria kelsenianaainda é bastante apropriada. Igualmente importante é oprocesso de "controle da constitucionalidade das leis", quepressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem jurídica, com a Constituição no seu ápice servindo de fundamento de validade a toda ordem, garantindo a unidade e aharmonia do sistema. Essas relações operacionais continuam a ser bastante úteis para o direito, apesar das críticascabíveis à proposta teórica de Kelsen.
Atendo-se com exclusividade sobre a norma posta peloEstado, Kelsen fez escola. Atualmente podemos distinguiros formalistas ou kelsenianos, dos não-formalistas ou nãokelsenianos. Os primeiros são aqueles que privilegiam oque está escrito na lei validamente posta, sem qualquerindagação de cunho crítico-valorativo, com o intuito maiorde dar segurança às relações sociais e garantir a ordem pública. Os não-formalistas, por seu turno, são os que reconhecem a interdisciplinaridade do direito, sem, contudo,dispensarem o seu caráter científico. Tratar teoricamentea interdisciplinaridade jurídica é, sem dúvida, uma tarefaassaz difícil e árdua, mas o esforço compensa o desafio.Daí, a quantidade de trabalhos, dentre os quais o nosso,apresentados no âmbito da teoria do direito.
Voltando a Kelsen, lembremo-nos do momento histórico que deu ensejo à criação da Teoria Pura do Direito.Politicamente, o período de guerra pelo qual passava a Europa Ocidental refletia a ênfase dada ao nacionalismo. AÁustria, terra de Kelsen, assumiu uma postura de neutralidade diante das demais potências européias após a Primei-
101
ra Grande Guerra, e daí o clamor de Joseph Kunz, discípulo de Kelsen, destacando a postura nitidamente universaldos austríacos, ao falar sobre a obra de seu mestre:
Para se compreender a Teoria Pura do Direito é necessário levar em conta que seu autor é austríaco. Não somenteaustríaco de nascimento, mas também política, histórica eculturalmente [... ]. Seu temperamento e sua visão do mundo são de estirpe austríaca e vienense. Nós, os vienenses denascimento, somos católicos no sentido da palavra grega,quer dizer, universalistas. A velha e grande Áustria foi,numa esfera menor, quase uma Sociedade das Nações. Somos universalistas, somos tolerantes, antifanáticos. Amamos a paz. Nossa situação geográfica radica no verdadeirocentro da Europa, no coração do velho continente. Somosdemocratas, somos liberais, somos individualistas. Os austríacos da velha Áustria e os da pequena República de hojesão quase o único povo europeu que não é em absoluto nacionalista. Somos europeus. A vida cultural é para nós umanecessidade quase mais imperiosa que o comer. Somos filhos de uma grande e velha cultura. 192
o Professor Albert Casamiglia, da Universidade deBarcelona, também nos chama a atenção para a neutralidade na obra de Hans Kelsen, em face das ideologias. Sãoestas as suas palavras:
La "Teoría Pura dei Derecho" pretende poner fin ai caosdel ideologismo en la Ciencia Jurídica. La alternativa a estasituación es la construcción de una teoría jurídica que seaobjetiva y neutral. Una teoría que nos sirva - como todaslas tradicionales iusnaturalistas y positivistas - para justificar un poder determinado ni una ideología determinada. EIobjetivo básico da la "Teoria Pura deI Derecho" es la cons-
192. Apud Luis Recaséns Siches. Panorama del pensamiento juridicoen el siglo XX, pp. 186-7.
102
trucción de un esquema de interpretación de la realidadjurídica que sea independiente de la ideología concreta queanima aI poder. 193
Sob o ponto de vista filosófico, o pensamento de Kelsen é visto como influenciado ora pelo neokantismo sudocidental alemão, ora pelo neopositivismo do Círculo deViena. 194 Fato é que, como bem lembra Miguel Reale, nasegunda década daquele século o direito vivia num verdadeiro caos: "A ciência jurídica era uma cidadela cercada
por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos esociólogos. Cada qual procurando transpor os muros da Jurisprudência para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios."195
Coube, então, a Kelsen, professor da Universidade deViena e juiz do Tribunal Constitucional austríaco, protestar a favor da dignidade científica do direito. Some-se a
193. Casamiglia, em estudo preliminar à edição espanhola de Qué eslusticia? de Hans Kelsen, p. 8.194. Sobre o Círculo de Viena, ver Miguel Reale, Introdução à filosofia, p. 12 a 15, e O direito como experiência, p. 98.
Miguel Reale aproxima mais Kelsen do neokantismo do que doneopositivismo, reconhecendo, inclusive, duas Escolas de Viena: uma,a dos neopositivistas, no campo da filosofia científica; e outra, a deKelsen, nos domínios do direito. "Já temos visto [diz Reale] muitasconfusões sobre este ponto, embora se deva reconhecer que, em certas conseqüências, as duas correntes apresentam, máxime nos últimosanos, crescentes pontos de contato, assemelhando-se por sua tendência antimetafísica e pelo empirismo radical". Cf. Miguel Reale, Filosofia do direito, p. 458.
Tércio Sampaio Ferraz Jr., por sua vez, informa-nos que Kelsen erao jurista do Círculo de Viena. Cf. "Por que ler Kelsen, hoje", p. 14. Otexto, escrito por Tércio Ferraz em 1981, serve, agora, de prefácio aolivro de Fábio Ulhoa Coelho, Para entender Kelsen.195. Filosofia do direito, p. 455.
103
11.
I
isso as ameaças ao Estado de Direito com movimentoscomo o do Direito Livre, e ainda o momento de inquietação e conturbação social que vivia a Europa do pós-guerrajem que a estabilidade das nações dependia também da estabilidade da ordem jurídica.
a solo formalista mantinha-se firme. Segundo GuidoFassàj o incremento das doutrinas sociológicas não chegoua destruir o positivismo jurídico-formalistaj apesar de oter j de certa formaj enfraquecido. Elas apenas o teriamchamado para um "exame de consciência"j no sentido deverificar a solidez de sua proposta básicaj que era o formalismo conceitual. 196 O resultado deste movimento sociológico levou Kelsen a elaborar uma teoria do direito capaz desustentar a sua própria juridicidade. Para tantoj Kelsenaproveitou-se do elemento da coerçãoj utilizado para distinguir a norma jurídica das outras espécies normativas j eda distinção kantiana entre ser e dever ser, que servia paradiferenciar o direito j do mundo da natureza. Afastando-seda instabilidade típica das relações valorativas j como também das relações causais próprias dos fenômenos naturais jKelsen constrói sua teoria normativa sobre a idéia de imputaçãoj como veremos a seguir.
a livro Teoria pura do direito teve sua primeira ediçãopublicada em 1934j com origem em trabalhos anteriores- o primeiro trabalho divulgado por Kelsen data de 1911.Em 1960 apareceu uma segunda edição refundida e ampliada j onde o autor incorpora alguns conceitos novos jcomo a distinção entre prescrição e descrição normativas jpor exemplo. Logo no prefácio e no primeiro capítulo dolivroj encontramosj expressamentej o objetivo do autorjque é elevar a jurisprudência a um ideal de cientificidade
196. Guido Fa55Õ, ob. cit., p. 217 e 55.
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- objetividade e exatidão -j purificando-a de toda aideologia política e de todos os elementos de ciência natural. Sobre o significado e o alcance do título atribuído àobraj escreve Kelsen:
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo geral j não de uma ordem jurídicaespecial. [... ] Contudoj fornece uma teoria da interpretação.
Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer oseu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o queé e como é o Direito? Não importa a questão de saber comodeve ser o Direitoj ou como deve ele ser feito. É ciênciajurídica e não política do Direito.
Quando a si própria se designa como "pura" teoria doDireitoj isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objetoj tudo quantose não possaj rigorosamente j determinar como Direito.Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídicade todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seuprincípio metodológico fundamental. 197
Daí podemos perceber que o grau de pretensão relativaà autonomia do objeto científico é de tal ordem em Kelsenj que se pretende fazer com que ele fale por si. O autorassume a posição do cientistaj limitando-se a observar umaordem factual de comportamento. Indaga sobre a essênciado seu objeto de estudoj sobre a sua substânciaj a fim dedar-lhe significado próprioj capaz de destacá-lo das demaisáreas do conhecimento. Kelsen preocupa-se com o que elevêj ou sejaj como o direito se comporta realmente j poisexiste uma norma posta que imputa uma sanção a quemvenha contrariar-lhe. Neste aspectoj o viés positivista de
197. Teoria pura do direito, p. 17.
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Kelsen não corresponde diretamente ao positivismo francês de Augusto Comte, mas ao caráter cientificista que opositivismo sociológico propõe. A ciência sociológica éuma ciência do ser, enquanto se preocupa com as conexõescausais que se operam entre os fatos, que, para Kelsen,correspondem aos comportamentos jurídicos imputadospor um dever ser. 198
Kelsen não aceita a distinção feita entre ciências da natureza e ciências sociais. Para ele, a sociedade tambémpode ser vista como parte da natureza, na medida em quea convivência efetiva entre os homens pode ser pensadacomo parte da vida em geral; e vida é natureza~199
Fundamental para esse entendimento é o conceito de"ato jurídico" que o autor constrói. Para Kelsen, os atosjurídicos são atos da vida quotidiana que recebem um significado jurídico. Não se trata, todavia, de um significadoatribuído por qualquer um que o pretenda, de forma subjetiva, mas um significado objetivo conferido pelo próprioato de sua criação. A norma positivada é aquela estabelecida por um poder competente como válida para determinada época e lugar. A juridicidade é, assim, atributo dadopelo criador da lei. Daqui depreende-se a norma como esquema básico de interpretação. O fato é jurídico quandoreflete uma norma jurídica expressa em lei. Dessa forma,a norma empresta ao ato um significado jurídico (ou antijurídico), da mesma forma como ela é produzida por um ato
198. Reale reconhece duas faces no pensamento de Kelsen: uma Jurisprudência Sociológica, do ser, e uma Jurisprudência Normativa, dodever ser, esta representada pela qualidade hipotética da norma, quese limita a ligar um fato condicionante a uma conseqüência, a umasanção, sem enunciar, contudo, qualquer juízo de valor moral ou político responsável por esta conexão. Cf. Filosofia do direito, p. 459.199. Cf. Teoria pura do direito, p. 18.
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jurídico que também recebe significação jurídica de outranorma (superior) e, assim, sucessivamente, até chegarmosà norma fundamental. 200 A partir daí Kelsen elabora a suapirâmide normativa como ordem dinâmica: sempre que asnormas forem criadas validamente, isto é, pelas autoridades competentes, elas devem ser respeitadas. Existirásempre uma norma superior que autoriza o ato de emanação de outra norma, até chegar-se à Grundnorm, que éuma norma pressuposta, o que significa dizer: uma hipótese lógica, capaz de conferir validade à ordem jurídica comoum todo. 20J
O direito, segundo Kelsen, corresponderá sempre, eem qualquer lugar, a uma ordem de conduta; e a idéia deordem corresponderá, também sempre, a um sistema denormas, cuja unidade é constituída pelo fato de todas elasterem o mesmo fundamento de validade: a norma fundamental. O conceito de validade é básico no pensamento deKelsen, porque daí se extrai toda a essência do direito.Logo, o objeto da ciência jurídica é a norma, que aparececomo unidade do sistema, mas uma norma que extrai suavalidade do todo da qual ela faz parte. Assim, escreve Kelsen: "Uma norma singular é uma norma jurídica enquantopertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence auma determinada ordem jurídica quando a sua validade sefunda na norma fundamental dessa ordem. "202
Com relação à teoria da interpretação, vale ressaltar naobra de Kelsen a parte dedicada ao estudo da norma e àprodução normativa, quando o autor elabora a famosa dis-
200. Idem, p. 20.201. Sobre a força de validade da norma fundamental em Hans Kelsen, vale o estudo de Alexandre Travessoni Gomes, O fundamento devalidade do direito - Kant e Kelsen.202. Cf. Teoria pura do direito, p. 57.
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tinção entre ser e dever ser, fundamentada no que ele entende como ato de vontade. Com a idéia de ato de vontade,concebe-se, em primeiro lugar, o direito como ordem normativa da conduta humana, ou melhor, como um sistemade normas que regulam o comportamento humano: alguém determina o comportamento de outrem. Logo, anorma é o dever ser. 203 Mas não é essa vontade contida nalei que irá importar a Kelsen, uma vez que a norma podereceber qualquer conteúdo, mas a lei em si, bastante por sisó. O que importa é se a lei é válida, isto é, se elaborada porquem competente.
O comportamento humano é incerto, podendo ser tidoapenas como provável, ainda que, no caso da norma jurídica, bastante provável porque o comando é acompanhadode sanção. Dada sua força cogente, Kelsen não se detémsobre o conteúdo da lei, mas sobre o ato que produz a norma, que consiste também num ato de vontade. Para o autor, a lei é um ato de criação do legislador e, uma vez criada, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de suavalidade, ou seja, de sua existência enquanto ato válido. Alei é, então, um ato posto; um ato que existe realmente.
O ato de vontade corresponde, assim, ao atá por meiodo qual a autoridade competente exprime sua vontade arespeito de como os indivíduos devem se comportar, ordenando-lhes, proibindo-lhes ou permitindo-lhes fazer alguma coisa. Logo, para Kelsen, a ciência do direito não deverá interessar-se pelo conteúdo das normas, mas antes pelasua aplicação ou pela sua dinâmica: nascimento, eficácia erevogação. Norma, para Kelsen, "é o sentido de um atoatravés do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à compe-
203. Idem,p.21.
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tência de alguém. "204 Esse pensamento pode ser assim sintetizado: um indivíduo quer que o outro se conduza de determinada maneira. A primeira parte desta frase corresponde a um ato de vontade verificável, porque criado deacordo com uma forma definida, fazendo parte, portanto,do mundo do ser; enquanto a segunda parte, de determinada maneira, nos conduz à ordem do dever ser, que corresponde mais especificamente ao sentido normativo do ato.Assim, conclui Kelsen: "A norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, équalquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentidoela constitui. "205
As correntes objetivistas se apropriarão dessa idéia: deque o dever ser vale por si só. Com isso, a norma ganha umadimensão própria e independente de quem a fez. SegundoKelsen, o dever ser é válido mesmo depois da vontade doato originário ter cessado. 206
Kelsen isola do direito qualquer indagação do tipoquem fez a norma, por que a fez, quais os interesses ouvalores que encerra, etc., pois, segundo ele, tais questõespertencem ao campo de considerações próprio da ciênciapolítica, da psicologia, da ética ou da sociologia. O fundamento de validade do direito não está, para Kelsen, na origem ou na fundamentação social do ato, mas na próprianorma (superior) que o autoriza, ou melhor, na norma queo prescreve. Assim, para efeitos metodológicos, o direito,como norma ou ordenamento jurídico positivo, encerra-seem si, prevendo e controlando a sua própria existência,bastando a si mesmo.207
204. Idem, p. 22.205. Idem, p. 22.206. Idem, p. 26.207. Esta "pseudo auto-suficiência" do direito proposta por Kelsenserá depois questionada pelo pós-positivismo.
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A idéia de valor no direito, para Kelsen, é objetiva etem como parâmetro o grau de eficácia e de validade dalei. Uma conduta é boa ou má se a norma for acatada ounão. Só o comportamento pode ser avaliado como bom oumau, e não a norma em si. Se a lei obriga, permite ou faculta, o comportamento é bom; se proíbe, é mau. A norma,objetivamente válida, funciona como medida de valor relativamente à conduta real, escreve Kelsen. Assim, a conduta que corresponde à norma tem valor positivo, ao passo
I . 208que a conduta que lhe contraria tem va or negatIvo.No entanto, apesar dos fatos serem julgados valiosos ou
. desvaliosos apenas quando referidos à norma, Kelsen, positivista e contrário ao direito natural, chama a atençãopara a relatividade sempre presente na ordem dos valores.No positivismo, ora a lei avalia uma conduta como boa, oraa conduta pode ser vista como má, em função de uma novalei que venha substituí-la.
Cabe, por isso, à ciência jurídica - nome dado porKelsen à ciência do direito -, apenas descrever as prescrições contidas na norma jurídica. À ciência jurídica compete única e exclusivamente descrever o objeto e não participar da sua criação: a autoridade jurídica estabelece a norma e a ciência a descreve, sob a forma de uma proposição.Proposição jurídica consiste, então, em um juízo hipotético que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica,atribuindo-lhe conseqüências. A norma jurídica, a seu turno, não é juízo, no sentido de um enunciado sobre um objeto dado ao conhecimento, mas mandamento e, como tal,comando imperativo. Kelsen valoriza o papel da doutrina,embora lhe imponha restrições.209 Porém, acreditamos
208. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 38.209. A propósito, cabe conferir o artigo do professor Nelson de Sousa
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que, na medida em que a doutrina traduz o significado danorma jurídica, ela participa do processo de interpretação(e, portanto, de aplicação) das leis. Ainda assim, Kelsensempre chama a atenção para o fato de que o dever ser daproposição jurídica não tem, como o dever ser da normajurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido apenasdescritivo. Seu alcance é distinto: a norma prescreve e adoutrina descreve.
Em sua teoria hermenêutica, Kelsen não enfrenta aquestão valorativa sob a tônica das "ciências do espírito",de ordem prática, o que lhe chamaria ao dever moral. Apesar de assumir o direito como ciência social, sua ânsia deobjetividade faz com que tente aproximá-lo o mais possível das ciências exatas ou da natureza, pelo mecanismo daimputação, resumido na fórmula do dever ser. Mas, apesarde aproximar a ciência jurídica das ciências naturais, umavez que aquela se ocupa apenas de descrever a condutahumana como fato social, não chega a inseri-la na ordem danatureza explicável pelo princípio da causalidade. A ciência jurídica só escapa da relação causa/efeito pela sua essência normativa que determina que a cada prescrição imputa-se um dever ou uma obrigação. As proposições, pormeio das quais a ciência jurídica descreve o seu objeto,apresentam-se sob a seguinte forma: se alguém comete umcrime, deve ser-lhe aplicada uma pena; por exemplo: sealguém causar dano a outrem, deverá indenizá-lo. Daí quea correspondência prescritiva entre conduta ilícita e sanção é dada pela conjunção deve ser e não pela conjunção é,como referência a uma necessidade. A norma (que é), nãoreconhece que algo é assim, mas que deve ser assim. E é a
Sampaio, "Doutrina, fonte material e formal do direito", em Estudosde filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen.
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esse dever ser, objetivo e claro, próprio da conduta normatizada, que chamamos imputação.
Kelsen arremata a Teoria pura do direito com um capítulo dedicado à interpretação. Começa definindo interpretação como uma operação mental que acompanha oprocesso da aplicação do direito no seu progredir de umescalão superior para um escalão inferior. Na interpretação, não abandona a figura da pirâmide. Segundo Kelsen,os vários escalões que compõem a ordem jurídica possuementre si uma relação de determinação ou de vinculação, namedida em que a norma do escalão superior regula o ato(processo e conteúdo) pelo qual é produzida a norma doescalão inferior. Logo, a função de interpretar deverá atender aos vários âmbitos de aplicação da norma: a concretização das leis ou dos atos administrativos em função de umainterpretação que se faça da Constituição, bem como aconcretização da sentença judicial em função da normaque lhe sirva de fundamento. Vale destacar, desde logo, opapel criador dos órgãos judiciais. Afinal, Kelsen reconhece a sentença judicial como norma jurídica individual, criada pelo juiz para disciplinar uma relação específica entreagentes determinados. Lembremo-nos da imagem da pirâmide, que possui em sua base a sentença~ No entanto, suateoria não tem um alcance hermenêutico que explique omovimento de compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato à norma válida como mecanismo de extração de uma sentença, aindaque não seja a única possível. E quanto ao papel da ciênciajurídica, Kelsen é peremptório:
A idéia de que é possível, através de uma interpretaçãosimplesmente cognoscitiva, obter direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é re-
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pudiada pela Teoria Pura do Direito. [... ] A interpretaçãojurídico-científica não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma norma jurídica.21O
Isto retrata a distância entre as idéias de Kelsen e as deSavigny, apesar de ambos se insurgirem contra o jusnaturalismo em favor de uma ordem positiva e concreta. Savignynão acredita na norma posta, preferindo uma ciência capazde identificar o verdadeiro e genuíno direito, enquantoKe1sen nega esse papel criativo da ciência em favor damera descrição da norma posta. Verificaremos, assim, queo apelo excessivo ao formalismo servirá de base para a dogmática jurídica.
Segundo Kelsen, a interpretação do direito opera-seem duas esferas distintas: na esfera pública, quando levadaa efeito pelos órgãos estatais incumbidos de aplicar o Direito - o legislativo, o executivo e o judiciário; na esferaprivada, quando o indivíduo é impelido a observar a conduta estabelecida pe1a lei, para escapar da sanção. Kelsendenomina a primeira interpretação de autêntica, porquecria direito e vincula a ação; a segunda, de não autêntica,uma vez que não possui nenhuma validade especial.
Com relação, ainda, à vinculação existente entre asnormas de escalão superior e as normas de escalão inferior,Kelsen chama nossa atenção para a ocorrência eventual deuma relativa indeterminação (intencional ou não) do atoque prescreve o direito. Indeterminação intencional seriaaquela relativa à margem de discricionariedade que o legislador reconhece como necessária ao aplicador da normapara que este atenda às circunstâncias de quando, onde ecomo a norma deverá ser aplicada. O mesmo vale para anorma superior, que deixa à discricionariedade do legisla-
210. Kelsen. Teoria pura do direito, p. 472.
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dor hierarquicamente inferior o poder de avaliar as circunstâncias que demandam a criação do ato normativo.
A indeterminação não-intencional, por sua vez, corresponderia à pluralidade de significações possíveis das palavras por meio das quais a norma se exprime, em geral decorrentes da vaguidade e da ambigüidade de seus termos.Pode acontecer, inclusive, que a verdadeira vontade do legislador venha a consistir em apenas uma dessas várias significações.
A norma do escalão superior não pode vincular em todasas direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual éaplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior oramenor, de livre apreciação, de tal forma que a norma doescalão superior tenha sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de umquadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo umaordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àqueleque a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. 2ll
A figura da moldura é bastante atraente na teoria kelseniana. Dentro da moldura, que corresponde ao texto normativo, encontram-se várias possibilidades de sentido, notando-se que apenas uma delas será a preferida do órgãoaplicador da lei. Mas os motivos que levam à escolha deuma entre as várias interpretações possíveis, segundo Kelsen, escapam ao alcance da teoria do direito. Assim,
Se por "interpretação" se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado deuma interpretação jurídica somente pode ser a fixação damoldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que
211. Idem, p. 464.
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dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretaç-d 1 · - d aoe uma e! nao eve necessariamente conduzir a uma únicasolução como sendo a única correta, mas possivelmente avárias soluções que [... ] têm igual valor, se bem que apenasuma delas se torne Direito positivo [... ]. Dizer que umasentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade,sen~o que ela se contém dentro da moldura ou quadro quea lei representa - não significa que ela é a norma individual,mas apenas que é uma das normas individuais que podemser produzidas dentro da moldura da norma geral. 212
Por fim, ressalta:
A questão de saber qual é, dentre as possibilidades quese apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a "correta"não é [... ] uma questão de conhecimento dirigido ao Direit~positivo, não é um problema de Teoria do Direito, mas umproblema de Política do Direito. 213 .
Dessa forma, podemos concluir que Kelsen reconhecea incidência de valores de ordem política e moral no direito, ainda que não os assuma como próprios à ciência jurídica. Mediante um ato político, a autoridade competente escolhe um dentre os vários significados possíveis de uma lei,em função de sua interpretação. Interpretar, para Kelsen,é estabelecer a moldura que encampa as várias possibilidades de significação da lei. Acredita que não temos comoverificar, no âmbito do direito, qual seja a interpretaçãocorreta, principalmente porque os métodos apresentadospela teoria tradicional mostraram-se insuficientes a tamanha pretensão: "Todos os métodos de interpretação até opresente elaborados conduzem sempre a um resultado
212. Idem, p. 467.213. Idem, p. 469.
llS
apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto."214
Como o ato de escolha não faz parte do direito positivo, de acordo com Kelsen, não há que se pretender atribuir-lhe algum cunho de veracidade ou falsidade, validadeou invalidade à fundamentação que eventualmente lheseja conferida. A validade do ato provém única e exclusivamente do fato de ser decisão tomada pela autoridade competente. Todavia, dentro dos parâmetros fixados pela moldura legal, o juiz age livremente: livre de preconceitos deordem moral ou social que não o atingem. Só assim nãoseria, afirma Kelsen, se o próprio direito positivo delegassetal poder a certas normas metajurídicas como a moral e ajustiça, que assim transformar-se-iam em normas de direito positivo.2lS E é justamente a rejeição aos valores e aqualquer orientação de caráter metafísico o que caracteriza o positivismo, inclusive o jurídico.216 Neste ponto, podemos fazer a aproximação entre o positivismo jurídico e opositivismo de Augusto Comte, apesar das diferenças jáapontadas. Casamiglia analisa o viés cientificista propostopelo positivismo ao qual adere Kelsen, quando pretendereduzir todo o conhecimento à verificação dos fatos:"Todo aquel10 que no sea reducible a hechos, es decir, aacontecimientos verificables, no entre en el sistema de laciencia, y, para un positivista, la ciencia es la única formade conocimento. "217
214. Idem, p. 468.215. Idem, p. 470.216. Podemos apontar como positivistas as várias tendências que procuram identificar o direito sem levar em consideração qualquer elemento de ordem moral.217. Casamiglia. Oh. cit., p. 16.
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Segundo o próprio Casamiglia, e com quem estamosplenamente de acordo, o positivismo pecou justamentepor eliminar do âmbito do conhecimento todo o viver social ou tudo o mais que fuja às relações diretas de causa eefeito. O autor traduz suas conclusões, que conferem comas diretrizes que regem este nosso trabalho, nas seguintespalavras que aproveitamos para transcrever:
Las tesis positivistas son reduccionistas porque nieganracionalidad a aquellos saberes que no concuerdan con suidea de Ciencia. El positivismo ha distinguido muy rígidamen~e entre saberes científicos y saberes no científicos y hatendIdo a presentar a éstos como irracionales. Cabe preguntar si todo aquello que no es estrictamente científico debeabandonarse aI campo de la emoción y el sentimiento. Podría cuestionarse si con los métodos de las ciencias podemosaprehender toda la realidad de la que tenemos noticia ydeberíamos decidir si todo aquello que no es abordable mediante la metodología científica debe abandonarse ao reinoda la irracionalidad. 218
Portanto, cabe abordarmos, ainda que brevemente, aimportância dos valores para a Jurisprudência, a partirda jurisprudência da valoração ou "Jurisprudência dosValores".
2.10 A Jurisprudência dos Valores
A Jurisprudência dos Valores tem como linha de forçao neokantismo sudocidental alemão do início do séculoXX. Deste movimento participaram filósofos como Rudolf Stammler, Wilhelm Windelband Heinrich Rickert, I
218. Idem, p. 21.
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Emil Lask e Gustav Radbruch. Com o relativo abandonodo pragmatismo no final do século XIX e início do XX,entra em cena a idéia de valor, que alcança também o direito. 219 A concepção científica do positivismo até entãoprevalecente apenas admitia como ciência as ciências danatureza, a lógica e a matemática. E daí o esforço de HansKe1sen em incluir no âmbito de apoditicidade, o direito.As áreas correspondentes à dimensão histórico-cultural,que envolvem necessariamente valores, eram desconhecidas do mundo científico pela carência de métodos próprios. Só o método adequado é visto como capaz de conferir objetividade à relação cognoscitiva, que aproxima ocientista do seu objeto de conhecimento, que pode ser aprópria ação humana. Dessa forma, a Jurisprudência dosValores ou Jurisprudência de Valoração, conforme querLarenz, trabalhará com as dicotomias valor/realidade,ser/dever ser, natureza/cultura, como campos distintos esujeitos a formas também distintas de conhecimento.22o
Z19. Emil Lask, por exemplo, considera o direito como uma "ciênciade valores", na medida em que o direito trabalha a cultura em suarelação com seus valores. "Values are 'trans-empirical', that is, theyare not inherent in or logically deducible from empirical reality, butare derive by a mental operation upon reality. Since the mind canoperate only by the use of categories or types, 'typical values', that is,types of value, are the subject matter of legal philosophy." Cf. EdwinW. Patterson, Cardozo, Professor of Jurisprudence of the ColumbiaUniversity. The legal philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p.XXIX.
De acordo com o próprio Lask, "the criticaI theory of values dif·fers from any Platonistic two-worlds theory in that it regards empirical reality as the only kind of reality, but at the same time as the sceneor the substratum of transempirical values or meanings of generalvalidity." Emil Lask. "Legal Philosophy", in The legal philosophies ofLask, Radbruch and Dabin, p. 4.ZZO. Vale conferir o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., Conceito
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Apesar dos rumos mais diversos que tenha tomado, ouque ainda venha a tomar, a Jurisprudência dos Valores éimportante por reconhecer o direito como parte de umcampo até então desconsiderado pela teoria do conhecimento, e que toma como referência básica a cultura.221 Podemos entender cultura como o somatório de crenças etradições transmitido de geração em geração, a ponto degerar uma pauta de valores aceitos em determinada comunidade.222
Cabe assinalar, com Larenz, o esforço desempenhadopor Rickert, em 1902, no sentido de estabelecer uma refe-
de sistema no direito, quando este analisa a teoria dos filósofos deMarburgo e Baden, procurando extrair os vários sistemas que compõem ou que informam o direito, quando é destacada a questão dosprincípios e dos valores.ZZl. Para Miguel Reale, a cultura consiste na projeção histórica dasubjetividade. O valor, diz Miguel Reale, "envolve uma orientação e,como tal, postula uma quarta nota, que é a preferibilidade. É por estarazão que para nós toda teoria do valor tem como conseqüência, nãocausal, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins. Daí dizermos quefim não é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido comomotivo de conduta. Toda sociedade obedece a uma tábua de valores,de maneira que a fisionomia de uma época depende da forma comoseus valores se distribuem ou se ordenam. É aqui que encontramosoutra característica do valor: a sua possibilidade de ordenação ou degraduação preferencial ou hierárquica, embora seja incomensuráve1."Introdução à filosofia, p. 144.ZZZ. De acordo com Larenz, o conceito de "cultura" surge cada vezmais como pano de fundo das ciências históricas. Cultura, conformeLarenz, no seu sentido mais amplo "é tudo o que, pela sua referênciaa valores, ganha sentido e significado para o homem que reconheceesses valores como tais. [... ] Valores, sentido e significação são algoque nós não podemos 'perceber', mas apenas 'entender', enquantointerpretamos objetos percebidos. Por isso é natureza 'o ser livre designificação que somente é perceptível e não é entendível'; é cultura,pelo contrário, 'o ser significante e susceptível de compreensão"'. Metodologia da ciência do direito, p. 111 e 112.
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rência entre "ciências históricas" e valor. Algumas de suasidéias são assim traduzidas por Larenz:
Se o historiador realmente "'refere" a valores os fenômenos efetivamente ocorridos e se para os expor tem de encontrar neles um interesse geral, então a significatividadedos valores que assume como fundamento não pode apenasexistir para ele - tem de existir também para outros. Tem,por conseguinte, de tratar-se de valores que sejam de fatogeralmente reconhecidos, pelo menos na comunidade cultural a que o historiador pertence. O que "em princípio sehá de constatar através da experiência", ou seja, é um fatoempírico. Mas o reconhecimento fático de um valor não é omesmo que "validade normativa geral". Um valor tem validade normativa geral quando o seu reconhecimento é exigido de todos e cada um. [... ] O valor faticamente vigentecostuma aparecer-nos com uma certa pretensão de reconhecimento, quer dizer, de validade "normativa". Ao mesmotempo introduz-se com isto um outro conceito extremamente importante: o conceito de "comunidade cultural",como a comunidade que é constituída através da vigênciafática de valores.223
Institui-se, a partir daí, uma dicotomia científica conforme a consideração do objeto, já anteriormente anunciada por Stammler, outra figura central na teoria jurídica dosvalores. Stammler firmara a distinção entre percepção evontade correspondendo, respectivamente, a relações decausa e efeito - ciência da natureza (ou ciência causal) erelações de meio e fim - ciência final. De acordo comStammler, "a vontade, como conceito específico, não deveser entendida como uma causa física, mas como uma pautadiretiva de nossa consciência, consistente na eleição demeios para a consecução de fins". 224 Dessa forma, "o crité-
223. Idem, p. 111.
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rio fundamental que separa decididamente o mundo davontade do da percepção é a faculdade de opção, característica de todo o fim. Fim não é senão um objeto a que seaspira alcançar, e meio, uma causa que se pode eleger".225
As ciências da natureza são consideradas em função doseu objeto ser livre de valores e oferecerem sentidos passíveis de demonstração, ao passo que as ciências finais, objeto da cultura, possuem objeto somente possível de sercompreendido. Nesse sentido, os objetos culturais, talcomo as ações humanas, são dotados de significação porque relacionados a valores. Logo, a hermenêutica tambémdeverá orientar-se em função dos valores, como instânciade compreensão. 226 A respeito, afirma Larenz:
Valores, sentido e significação são algo que nós não podemos "perceber", mas apenas "entender", enquanto interpretamos objetos percebidos. Por isso é natureza "o ser livrede significação, que somente é perceptível e não é entendível"; é cultura, pelo contrário, "o ser significante e suscetívelde compreensão".227
224. R. Stammler. Tratado de filosofia del derecho, p. 75.225. Idem, p. 76.226. A propósito cabe conhecer a diferença que existe entre explicare compreender ensinada por Miguel Reale: "Dizemos que explicamosum fenômeno quando indagamos de suas causas e variações funcionais, ou seja, quando buscamos os nexos necessários de antecedente econseqüente, assim como os de interdependência, capazes de nos esclarecer sobre a natureza ou a estrutura dos fatos; e dizemos que ocompreendemos quando o envolvemos na totalidade de seus fins, emsuas conexões de sentido. [... ] Explicar é descobrir na realidade aquiloque na realidade mesma se contém. [... ] Compreender não é ver ascoisas segundo nexos causais, mas é ver as coisas na integridade deseus sentidos ou de seus fins, segundo conexões vivenciadas valorativamente." Introdução à filosofia, p. 195, 196 e 200.227. Idem, p. 112.
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Para o neokantismo, o valor apresenta-se como um apriori que se pretende ver realizado na ação.228 É este, porexemplo, o entendimento de Radbruch, um dos principaisexpoentes da Jurisprudência dos Valores, conforme podemos apreender de suas palavras:
Certamente a cultura não é o mesmo que a realizaçãodos valores, mas é o conjunto dos dados que têm para nós asignificação e o sentido de os pretenderem realizar, ou como escreve Stammler - o de uma aspiração para aquiloque é justo. 229
Miguel Reale, ao tentar uma definição de valor, apenas afirma que"valor" é aquilo que vale. O seu "ser" é o "valer". Os valores possuemrealidad~ em função daquilo que vale. Ser e valer aparecem, segundoele, como duas categorias fundamentais, duas posições primordiais doespírito perante a realidade. Diz ele, às páginas 141, 142 e 145: "Ouvemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e,porque valem, devem ser.[ ... ] Os valores representam, por conseguinte, o mundo do dever ser, das normas ideais, segundo as quais se realizaa existência humana, refletindo-se em atos e obras, em formas decomportamento e em realizações de civilização e de cultura, ou seja,em bens que representam o objeto das ciências culturais". Mas, para acultura jurídica, abre o debate para o sentido teleológico do Direito,ao afirmar que toda a teoria do valor tem como conseqüência, nãocausal, mas lógica, uma teleologia ou teoria dos fins, uma vez que fimnão é senão um valor enquanto racionalmente reconhecido como motivode conduta. Cf. p. 144.228. Cf. O conceito de sistema no direito, de Tércio Sampaio FerrazJr.229. Gustav Radbruch. Filosofia do direito, p. 42.
No nosso entender, o ser humano dá significado às suas ações pormeio de valores. Valora os acontecimentos, isto é, assume posiçãosobre eles, positiva ou negativamente. Mas, ainda que a ação mostrese pessoal, acreditamos que o homem se reconhece em sociedade,pois na ação individual incorre necessariamente uma dimensão pública, no sentido já demonstrado por Rousseau. O importante é queindaguemos sobre a relação intersubjetiva verificada na práxis.
122
Para Gustav Radbruch, conforme já anotamos, o direito é considerado um dado da experiência, que, como todaobra humana, só pode ser compreendido por meio de suaidéia, e a idéia de direito não pode ser diferente da idéia dejustiça.230 No entanto, o importante é a concepção de direito que o autor tem, como dado adstrito à noção de justiça. O direito, para ele, é um fato ou um fenômeno cultural que não pode ser definido senão em função do justo,pois "o valor do direito é a justiça".231 O sentido do direitovem a ser precisamente este: o de realizar o justo. E dessaforma, o direito passa a ser retratado como atitude valorativa, no sentido de só poder ser compreendido dentro deuma atitude que refere a realidade a valores. 232
A filosofia do direito, então considerada por Stammlercomo "teoria do direito justo", reconhece que a luta pelodireito só pode se dizer legítima quando tem por finalidade defender um direito justo. O autor fundamenta-se naidéia de ética individual, tendo em vista que tanto na elaboração do direito (criação das leis) quanto na sua aplicação, só a pureza da vontade pode servir de base inquebran-
230. Cf. Radbruch, ob. ciL, p. 44 e 86.231. Idem, p. 85 e segs.
Porém, conforme escreve Edwin Patterson, "while Radbruch regards alI law as oriented toward justice, he recognizes that justicealone does not explain the content of alI legal norms." Cf. The philosophies of Lask, Radbruch and Dabin, p. XXXIII.232. Cf. Radbruch, ob. cit., p. 45.
Nas palavras do Professor Edwin Patterson, sobre o pensamentode Radbruch, "law is a cultural phenomenon, a fact related to value.The 'concept' of law (which is distinguished from its validity) can bedetermined only as something which 'means' to be just, howevershort of that end it may falI. Legal science deals with law as a culturalfact; legal philosophy, as a cultural value." The philosophies of Lask.Radbruch and Dabin, p. XXXIII.
123
II
tável de nosso espírito; a única idéia que pode trazer aoh l 'h d d' . 233ornem sua l er a e mtenor.
Larenz é um dos grandes fautores da jurisprudência dosvalores de meados do século passado. Segundo ele:
o legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que intenta regular um determinado setor da vidapor meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certasintenções de regulação e por considerações de justiça ou deoportunidade, às quais subjazem em última instância determinadas valorações, Estas valorações manifestam-se no fatode que a lei confere proteção absoluta a certos bens, deixaoutros sem proteção ou protege-os em menor escala; de quequando existe conflito entre os interesses envolvidos na relação da vida a regular faz prevalecer um em detrimento deoutro [... ]. Nestes termos, "compreender" uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seualcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar emconformidade a ela, ou, dito de outro modo, acolher demodo adequado a valoração contida na norma ao julgar o"caso".234
233. Cf. R. Stammler. La génesis del derecho, p. 140.234. Metodologia da ciência do direito, p. 252-253.
E, sobre a importância dos valores na filosofia, de um modo geral,trazemos as palavras de Johannes Hessen: "O sentido da vida humanareside, precisamente, na realização dos valores. Dizendo isto, porém,tocamos aqui com o dedo no significado, desta vez prático, da Teoriados valores, na sua relação direta com a vida. Se, de fato, o sentido davida se acha dependente dos valores a que está referida, através daqual estes alcançam a sua objetivação, é evidente que a plena realização do sentido da nossa existência dependerá também, em últimaanálise, da concepção que tivermos acerca dos valores. Aquele quenega todos os valores, nada mais vendo neles do que ilusão, não poderádeixar de falhar na vida. Aquele que tiver uma errada concepção dosvalores não conseguirá imprimir à vida o seu verdadeiro e justo sentido... ". Filosofia dos valores, p. 22 e segs.
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Lembremo-nos aqui de Heck, quando este afirmavaque tanto os interesses protegidos pela lei quanto os interesses considerados pelo julgador eram extraídos de umcampo de luta, sopesados, e, finalmente, legitimados. Assim, toda prática decisória que viesse a legitimar um interesse (individual ou de grupo), em lugar de outros, passarianecessariamente por um processo de valoração, ou de ponderação. E aí, esbarramos com o grande desafio científico,de sustentar, com um mínimo de objetividade, esse tipode decisão: abre-se a questão de sabermos se o que é valioso é suscetível de fundamentação racional. Para tanto, ahermenêutica jurídica é de muita utilidade, pois é pela interpretação que se consubstancia a objetividade racional.O raciocínio jurídico, ainda que se apresente por meio dalógica, não é capaz de seguir os passos exatos da lógica formal. A consideração valorativa sobre as premissas interferenesse processo, impedindo, muitas vezes, a exatidão dosresultados, ainda que não impeça uma probabilidade desolução. Larenz, por exemplo, sob uma concepção valorativa do Direito, exige da solução jurídica uma razoabilidade de fundamento:
A interpretação das leis, como toda a compreensão deexpressões alheias, tem lugar num processo que se não podeadequar às restritas exigências do conceito positivista deciência. Exige, em rigor, a constatação dos fatos e, assim, aconstatação do texto e de toda e qualquer circunstância quepossa vir a relevar para a interpretação. Exige ainda a observância da lógica. Uma interpretação que não seja conformeàs regras da lógica é, conseqüentemente, incorreta. Mas oque é específico na interpretação, ou seja, o apreender dosentido ou do significado de um termo ou de uma proposição no contexto de uma cadeia de regulação, vai paraalém disso. Requerem-se também aqui considerações de razoabilidade, uma vez que as constatações empíricas ou as
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refutações não são - ou só o são em escassa medida possíveis. 235
A partir daí verifica-se uma inclinação pela valorizaçãoda conduta ética e, em conseqüência, o compromisso dasdecisões jurídicas com o "justo". De um lado ganha força afilosofia de matriz neo-hegeliana, que reconhece valores eprincípios "supralegais" ou "pré-positivos" subjacentes àsnormas jurídicas. Nessa linha, Larenz faz referência a nomes como Zippelius, Pawlowski, Heinrich Hubmann eHe1mut Coing, para quem a idéia de direito encontra correspondência nos princípios básicos de uma ética da vidasocial, cuja tábua de valores pode ser encontrada no "ethosjurídico dominante na comunidade" ou nas "concepçõesdominantes de justiça", podendo configurar-se em normaslegais positivas; tomar a forma de um direito natural naqualidade de "súmula de proposições de justiça", comopode ainda aparecer sob a forma de conteúdos da consciência.236 De outro lado, verifica-se a recuperação da matriz neo-aristotélica, que privilegia a fundamentação legitimadora da ação prática, de base argumentativa, conformeanuncia esse nosso trabalho.
Em Richtiges Recht237 (Direito Justo), escrito em 1978,Karl Larenz, na esteira de Rudolf Stammler, defende a natureza axiológica da ordem jurídica com base na tese deque a mesma se sustenta sobre a "idéia de direito", comoalgo devido. Daí sucederiam os "princípios de direito justo", como determinações mais detalhadas em seu conteú-
235. Metodologia da ciência do direito, p. 141.236. Idem, p. 147 a 153.237. Obra traduzida para o espanhol em edição de 1985, Derechojusto: fundamentos de etica juridica, traduzida por Luis Díez-Picazo,publicada pelo Editorial Civitas, no mesmo ano.
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do, da "idéia de direito", e que serviriam de pensamentosdiretores ou causas de justificação para as regulações concretas de direito positivo.238
No mesmo diapasão, o estudo de Claus-Wilhem Canaris, escrito em 1967, defende a idéia de que o sistema jurídico, como ordem axiológica, só se justifica a partir do"princípio da justiça" e de suas concretizações, a partir do"princípio da igualdade". O autor percebe que o pensamento jurídico ocorre fora do âmbito da lógica formal, quelhe serve apenas de quadro, e anota que o elemento decisivo de todo esse processo não é de natureza lógica, mas denatureza teleológica ou axiológica, e por isso sua justificação metodológica não pode ser alcançada com os meios dalógica, mas através da recondução ao valor da justiça e aoprincípio da igualdade nela compreendido.239
Não poderíamos chegar ao desfecho deste capítulosem abordarmos a questão que se apresenta para a hermenêutica jurídica, de se privilegiar a "vontade da lei" ou a"vontade do legislador". Tratando-se a lei de um texto escrito inalterável no tempo, até que outro o modifique ourevogue, a questão da vontade que lhe confere legitimidade merece ser considerada, e toca diretamente as posiçõesanteriormente apresentadas, merecendo, portanto, acolhida no âmbito de nossas considerações.
2.11 "Vontade da Lei" e "Vontade do Legislador"
Consistindo a lei num texto escrito, pelo menos para ospaíses que adotam o direito codificado, cabe indagar sobre
238. Vide Karl Larenz, Derecho justo, p. 37 e segs.239. Cf. Claus-Wilhem Canaris, Pensamento sistemático e conceito desistema na ciência do direito, p. 32 a 35.
I27
o seu elemento racional em função do momento de suaelaboração e do momento de sua aplicação. Na filosofia dodireito da segunda metade do século XIX, em decorrênciado historicismo alemão, abre-se a polêmica entre as chamadas teorias objetivista e subjetivista da interpretaçãoque, ao contrário do que muitos afirmam, prepondera ainda nos dias atuais.
A partir do viés histórico característico do romantismoalemão, que procurava com a interpretação, a individualidade e o espírito do autor da lei, e a crítica francesa feitapor Saleilles e Ripert240 sobre as vantagens de uma interpretação objetiva da lei, independentemente de quem lhedeu origem, questiona-se sobre o que deve prevalecer emtermos hermenêuticos: se a "vontade da lei" ou a "vontadedo legislador". O que se apresenta como correto para aatividade do intérprete ou aplicador da lei: buscar a vontade de quem fez a lei, ou a vontade que, de forma objetiva,podemos extrair do seu texto? Lembremo-nos, que, para aEscola da Exegese, a palavra escrita sob a forma de lei funciona como garantia contra o arbítrio judicial; mas em outro momento, o de sua aplicação, exige-se-Ihe a atualizaçãodo significado de seus termos. A sociedade, em constantetransformação, pede uma interpretação adequada ao novotempo. Como, então, entender a hermenêutica jurídica?Inicialmente, procurava-se transpor a vontade legítima dolegislador, do momento de criação da lei, para o momentode sua aplicação, como forma de se evitar o arbítrio. Maistarde, verificou-se toda uma tendência em se reconhecer,finalmente, a autonomia da lei com relação ao seu autor.Costumava-se dizer, inclusive, que a lei era muitas vezesmais sábia do que o legislador, por ser capaz de imaginaraté mesmo situações não previstas por ele.
240. Cf. Guido Fasso, p. 161 e segs.
128
o elemento histórico e o sistemático, capazes de traduzir o e~pírito de um povo, somados aos elementos lógicoe gramatIcal, que garantiam fidelidade ao texto legal, serviriam, conforme acreditava Savigny, a um único processohermenêutico capaz de atualizar o direito, conformando-oà atualidade dos institutos jurídicos. Savigny é geralmentevisto como um dos fautores do subjetivismo jurídico concordante com o romantismo de sua época. É o que afirma,por exemplo, Karl Engish.241 Sob o enfoque do historicismo, no entanto, Larenz é de opinião contrária, e acreditaque, na realidade, Savigny buscava a fidelidade dos institutos jurídicos oriundos do espírito do pOVO.242 Acreditavaque a atividade espiritual do intérprete, tal como a do legislador, deveriam deixar-se orientar pela intuição do "instituto jurídico", que deu base à lei, isto é, procurar atrás dopensamento do legislador, o pensamento jurídico objetivoque se realiza no instituto jurídico. Isso faz com que o graude objetividade característico da corrente defensora da"vontade da lei" ganhe força progressiva nos escritos deSavigny. Percebe-se que não vem de suas primeiras lições,por volta de 1802, a defesa pela objetividade da lei. Aocontrário, Savigny apresenta nesse início um forte apego àvontade do legislador.
A vontade objetiva da lei acaba por prevalecer sobre avontade subjetiva do legislador na doutrina jurídica do século XX, e se apresenta da seguinte forma, de acordo como que escreve Karl Larenz:
A teoria "objetivista" da interpretação afirma não apenas que a lei, uma vez promulgada pode, como qualquerpalavra dita ou escrita, ter para outros uma significação em
241. Karl Engish. Introdução ao pensamento jurídico, p. 170.242. Cf. Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 15, nota 5.
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que não pensava o seu autor - o que seria um truísmo -,mas ainda que o juridicamente decisivo é, em lugar do quepensou o autor da lei, uma significação "objetiva", independente dele e imanente à mesma lei. [... ] A lei é "mais racia-
l" . 1 .• 243na que o seu autor e, uma vez vigente, va e por Si so.
De fato, é esta a tendência prevalecente nos diasatuais, o que se dá principalmente pela necessidade deadaptação do direito às novas realidades provocadas porconstantes mudanças sociais. De outro lado, a idéia de sistema que norteia o princípio da unidade do ordenamentojurídico exige a adaptação das leis antigas às leis novasnum todo coerente e harmônico de interpretação, dando ênfase aos elementos teleológico e axiológico da ordem jurídica.244
A teoria "objetivista" da interpretação, segundo Larenz, foi desenvolvida pelo pandectista alemão Windscheid, e melhor finalizada, nos anos de 1885 e 1886, porBinding, Wach e Kohler, sob a influência do positivismolegal racionalista. Assim, escreve:
243. Idem, p. 36.A chamada vontade objetiva da lei é amplamente cotada nos dias
atuais. Uma quantidade de autores a defendem, entre os quais podemos citar Carlos Maximiliano. Outros, como Tércio Sampaio Ferrazlr., estudam uma e outra forma de interpretação, não apontando nenhum tipo de preferência. Podemos entender, na visão deste último,a inexistência de hierarquia nos métodos apresentados pela hermenêutica jurídica tradicional. Cabe ao aplicador da lei utilizar-se de umou de outro método, conforme a necessidade de seu trabalho. Noentanto, acreditamos que a vontade objetiva aparece como argumentomais forte do que a subjetiva.
Quanto à aplicabilidade prática dessa questão no direito constitucional, informa-nos Konrad Hesse referindo-se à jurisprudência daCorte Constitucional Alemã. Cf. Konrad Hesse, La InterpretacionConstitucional, in Escritos de derecho constitucional, p. 36.244. Cf. Karl Engish. Ob. cit., p. 172 e segs.
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Segundo Windscheid, a interpretação da lei deve determinar o sentido que "o legislador ligou às palavras por eleutilizadas". Tal como Savigny, Windscheid exige que o intérprete se coloque no lugar do legislador e execute o seupensamento, para o que deve tomar em consideração, queras circunstâncias jurídicas que foram presentes no seu espírito quando ditou a lei, quer os fins prosseguidos pelo mesmo legislador. Embora a interpretação se revele assim comouma pura investigação histórico-empírica da vontade, alguma margem abre Windscheid a uma interpretação de acordo com o que é objetivamente adequado, quando observaque "é de atender, por último, ao valor do resultado, pelomenos na medida em que será de admitir que o legisladorpreferiu dizer algo de significativo, de adequado, em vez dealgo de vazio e inadequado". 245
Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., a doutrina subjetivistainsiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmático - dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado davontade do emissor da norma - seu compromisso é com avontade do legislador; portanto interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da norma pela positivação da vontade legislativa). Ressalta aqui o aspecto genético e as técnicas que lhe são apropriadas, como a dométodo histórico. Já para a doutrina objetivista, a normagoza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (dogma aqui aparece como arbitrário social), independente, até certo ponto, do sentido que lhe tenha desejado dar o legislador, donde a concepção da interpretaçãocomo uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o momento atual de sua vigência).Ressalta aqui os aspectos estruturais em que a norma ocor-
245. Metodologia da ciência do direito, p. 31.
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re e as técnicas apropriadas à sua captação, como a do método sociológico. 246
Castanheira Neves sugere que a opção por uma ou outra vertente é determinada por pressupostos culturais, filosóficos-jurídicos e teleológicos de todo diversos.
o subjetivismo traduz uma concepção cultural e hermenêutica de cariz epistemologicamente positivista, segundo aqual os sentidos culturais seriam eles próprios entidadesempíricas, fenômenos psíquicos ou de redução psicológicaem último termo, e por isso interpretá-los seria imputá-lospsicologicamente ao seu autor, perspectivá-los pelo processo da sua gênese histórico-psíquica - assim na ética e nalógica, na história e na filosofia, na hermenêutica e mesmonas "ciências do espírito", assim também o direito. Enquanto o objetivismo é já o reflexo quer de um entendimentoespiritual da cultura - os sentidos culturais são remetidosao plano ontológico e epistemologicamente autônomo da"cultura", pertencem não ao domínio empírico, mas ao domínio do "ser espiritual" (N. Hartmann) - quer de umaintenção especificamente "compreensiva" (não explicativa)da hermenêutica, e assim as expressões significativas passam a reconhecer-se já na autonomia e objetividade própriasdo ser cultural, já como irredutíveis manifestações histórico-culturais do "espírito objetivo".247
De acordo com Karl Engish,248 temos que a tarefa docompreender abrange o puro "compreender de um sentido", enquanto apreensão do conteúdo real (objetivo) deuma expressão, bem como o "compreender pelos motivos", enquanto apreensão dos motivos daquele que se ex-
246. Cf. Tércio Sampaio Ferraz J r. Introdução ao estudo do direito, p.242.247. Digesta, voI. 2, p. 355.248. Karl Engish. Ob. cit., p. 165 e segs.
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prime. O escopo da compreensão, segundo Engish corresponde ao encontro espiritual com a individualidade que seexprime. No campo do direito, portanto, é preciso, emprimeiro lugar, distinguir entre as intenções da história dodireito e as da dogmática jurídica. Ao historiador do direito compete descobrir os motivos da lei determinados pelasituação histórica, enquanto ao jurista cabe definir o conteúdo e o alcance prático da lei.
Na luta então travada no âmbito da hermenêutica jurídica sobre a prevalência de uma ou de outra teoria de interpretação: subjetivista e objetivista, cujos argumentos afavor de uma e de outra foram tão bem dispostos por Tércio Sampaio Ferraz Jr.,249 encontra-se subjacente uma lutapolítica entre os poderes legislativo e judiciário. Em defesado primeiro, argüi-se pela democracia, no sentido de seprivilegiar a vontade do legislador enquanto autêntico representante do povo; na segunda hipótese, disputa-semaior autonomia para o poder judiciário, que procura interpretar objetivamente a lei no momento de sua aplicação, a fim de fazer justiça para o caso concreto. Considerando-se, porém, que o direito se concretiza por meio deum jogo de forças entre as diferentes teses apresentadascomo produto de sua interpretação, prevalecendo a demaior poder de convencimento, podemos concluir quequalquer das posições acima é válida à medida que seapresente como argumentativamente apta a produzir umresultado de consenso.
A defesa pela vontade objetiva da lei, por sua vez, abrecaminho para o método de interpretação teleológico-axiológico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intér-
249. Cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr. Introdução ao estudo do direito, p.242.
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prete para a busca do fim nela contido, mediante a investigação das condições sociais de seu tempo e dos valores preponderantes. Afinal, trata-se de encontrar a solução maisadequada e razoável para cada caso.
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Capítulo 3,
VIRADA PARA O POS-POSITIVISMO:A DISCUSSÃO METODOLÓGICA
ATUAL
Do escorço apresentado no capítulo anterior, podemosperceber uma tensão constante entre segurança, de umlado, e justiça, de outro. Verifica-se uma variação entreextremos radicalmente opostos durante todo o séculoXIX: de um lado a Escola da Exegese, com todo o seu rigor' como forma de transmitir segurança ao direito, e deoutro o Movimento para o Direito Livre, muito menos rigoroso, cuja preocupação era principalmente com relaçãoà justiça. O despertar do século XX dá ensejo a um movimento crítico, que questiona as reais contribuições da dogmática jurídica tradicional para a sociedade, ganhando força a sociologia. A filosofia dos valores veio também compor este quadro, ocupando-se da questão da justiça. Mas écom Ke1sen que a filosofia jurídica sofre uma significativaruptura. Kelsen cinge-se à idéia do resgate da objetividadee da segurança no campo do direito, propondo a constru-
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ção de uma teoria que excluísse quaisquer elementos denatureza metafísico-valorativa. Como vimos, pretendia-seque a atividade jurisdicional ficasse circunscrita a operações lógico-dedutivas extraídas de um sistema dinâmicode normas feitas pelo Estado, capaz de gerar uma normaindividual como sentença para cada caso concreto.
No entanto, as correntes que vêem a aplicação do direito como atividade criadora insurgem-se contra tal mecanismo, apresentando severas críticas ao positivismo kelseniano. Acredita-se que o direito existe concretamente enão de forma virtual, ou melhor, que ele vale à medida queé capaz de compor interesses, desconsiderando-se a suaforça meramente potencial. O movimento crítico, que encerra o predomínio da dogmática jurídica tradicional,250 édenominado pós-positivismo.
Não obstante, a discussão metodológica atual confirmaa importância da segurança e da ordem. Afinal, é princípiobasilar do Estado Democrático de Direito o conhecimentoe a não-arbitrariedade de suas decisões. Um grau considerável de previsibilidade deverá viabilizar os investimentossugeridos pelo progresso e trazer confiança às relações sociais. O que se discute é a racionalidade deste novo saberconcreto que trabalha com valores, conferindo algum nívelde objetividade às decisões judiciais, de forma a submetêlas a uma instância de conhecimento e controle.
250. Podemos caracterizar a dogmática jurídica tradicional pelos seusaspectos formalista e legalista, da seguinte maneira: 1) primado da lei,enquanto regra geral, abstrata e universalmente obrigatória, que fazcom que o direito repouse sobre um campo virtual; 2) representaçãoda atividade do juiz meramente como tarefa de "conhecimento" dalei, portanto exegética, que faz com que a interpretação se dê independentemente do problema; 3) separação radical entre os conceitosde "interpretação" e "criação" do direito. Cf. José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 29.
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Essa discussão, na verdade, remonta a Aristóteles,quando este procura diferençar apoditicidade (ciência) dedialética. A primeira corresponde às descobertas científicas e matemáticas, demonstráveis pela experiência e pelalógica, e a segunda refere-se às relações humanas compostas contraditoriamente, como é natural da vida em sociedade. O direito, como produto da ética e da moral, inserese nesse segundo plano metodológico, que procura resultados por meio da razão prática. E a necessidade do uso daspalavras bem como a força da linguagem nos lançam aocampo da retórica, outrora bastante desenvolvida pelosgregos.
Com as obras de Viehweg e Perelman, retoma-se a discussão, e com elas podemos reconhecer a dimensão póspositivista de matriz tópico-retórica. Ao invés de unidadeslógicas subseqüentes umas às outras por inferências necessárias, é o esforço da persuasão e do convencimento queestruturam e servem de base às construções jurídico-decisórias. Portanto, é mais na esfera do razoável e do adequado, do que na esfera do puramente lógico, que a metódicaatual deve ser examinada.
O pós-positivismo, como movimento de reação ao legalismo, abre-se, na realidade, a duas vertentes. Uma delasé desenvolvida por autores que buscam na moral uma ordem valorativa capaz de romper os limites impostos peloordenamento jurídico positivo, honrando o compromissomaior que o Direito tem com a Justiça. Suas insuficiênciasseriam resolvidas mediante o recurso aos valores humanitários que, apesar de circunscritos socialmente, pretendem alcançar sua dimensão universal. Tais iniciativas amparam-se, fundamentalmente, na argumentação capaz delegitimar as posições assumidas pelo intérprete, assimcomo na idoneidade dos mecanismos que se fazem necessários. Poderíamos indicar aqui os nomes de Chaim Perel-
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man, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Robert Alexy,ainda que uns assumam uma postura mais analítica (Alexy) do que outros (Dworkin). Em outra banda encontramse autores que abraçam o pragmatismo, como é o caso deFriedrich Müller, Peter Haberle e Castanheira Neves, cujas teorias fundamentam-se antes na realidade does) intérprete(s) e nas condições de concretude da norma jurídica,do que numa ordem de valores.
Da mesma forma podemos identificar o alcance distinto da dimensão tópica em ambas as vertentes. Autores quemais aproximam o Direito da Moral privilegiam o uso detopoi como base para o raciocínio, isto é, idéias amplamente aceitas pelo auditório a que se destinam, aptas a garantira adesão dos interlocutores. Na realidade, os topoí referem-se a valores sedimentados culturalmente, e que, porisso, podem ser identificados corno princípios, embora nãopositivados, a servirem de premissas que, pela força da verossimilhança, são capazes de comandar o raciocínio lógiCO.251 De outro lado, os mais afeitos à pragmática tendema privilegiar, em suas teorias, o aspecto problemático que aTópica apresenta. Neste caso o problema, ao recortar arealidade e envolver diretamente a participação de atoressociais que o formulam e resolvem, serve de base à concretização da interpretação/52 constituindo, inclusive, a estrutura própria da norma jurídica, como o faz FriedrichMüller através do "âmbito da norma" .253
Veremos, a seguir, alguns autores que inauguram essaposição crítica, pós-positivista, buscando na tópica aristo-
251. Nesse sentido vale conferir Margarida Maria Lacombe Camargo,"O Direito e sua dimensão tópica".252. Cf. Peter Hiiberle, A Constituição aberta de intérpretes.253. Cf. Friedrich Müller. Métodos de trabalho do direito constitucional.
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télica uma força teórica apta a nos livrar das amarras dopositivismo de base cientificista e lançar novas luzes ao de-
bate metodológico.
3.1 A contribuição de Theodor Viehweg: o uso da tópica
no direito
A tópica tornou-se referência obrigatória na filosofiado direito da segunda metade do século XX. Poderíamosafirmar, inclusive, que com a retornada da tópica aristotélica no direito moderno, por meio de Viehweg,254 a partirda década de 50, verificou-se um deslocamento radical doeixo da discussão metodológica, até então fixado sobre oformalismo sistemático de índole lógico-dedutivo em querepousava o positivismo jurídico. A repercussão da teoriaou da filosofia dos valores no direito foi de tal ordem, quea parte da filosofia preocupada com o método jurídico tevede voltar suas atenções para uma nova forma de olhar odireito, adotando outros mecanismos de fundamentaçãoou de construção do raciocínio, a fim de reconhecer o seuenvolvimento direto com valores e que ainda desse conta
I d I - . . 255da necessidade de contro e as re açoes SOClaIS.
O método sistemático, caracterizado pelo seu hermetismo, e que marcou o positivismo filosófico ~os sécu~osanteriores,256 não correspondia mais às perplexIdades e m-
254. Tópica e Jurisprudência é considerada a principal obra de Viehweg, onde o autor tenta provar a aplicação da tópica aristotélica nodireito a partir da análise feita da jurisprudência romana.255. S~bre a utilização da tópica na jurisprudência brasileira vale consultar o trabalho de Paulo Roberto Soares Mendonça, intitulado Atópica e o Supremo Tribunal Federal.256. Ver Theodor Viehweg. Tópica y filosofía dei derecho.
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seguranças causadas por um mundo de novos e variadosvalores, notadamente quando as atrocidades do nazismo,cometidas sob a proteção da lei, mostraram que a lei nemsempre é justa. Daí a atuação do Tribunal de Nuremberg,no imediato pós-guerra, ao decidir conforme princípios gerais de moral universal. De acordo com Perelman,
Os fatos que sucederam na Alemanha, depois de 1933,demonstraram que é impossível identificar o direito com alei, pois há princípios que, mesmo não sendo objeto de umalegislação expressa, impõem-se a todos aqueles para quem odireito é a expressão não só da vontade do legislador, masdos valores que este tem por missão promover, dentre osquais figura em primeiro plano a justiça.257
Necessário seria então construir um novo modelo delegitimação para as decisões judiciais, o que só se tornariapossível uma vez reconhecida a natureza dialética e argumentativa do direito. A lógica formal, de feição cartesiana,não dava mais resposta satisfatória à complexidade dasquestões jurídicas. Daí verificarmos, na filosofia do direitodo século XX, toda uma tendência em se resgatar a antigaarte retórica dos gregos e a prática jurídica dos romanos,para construir um modelo de fundamentação mais condi-
Com base na obra de Christian Wolff, Filosofia da prática universal, da primeira metade do séc. XVIII, e sua forte influência no enciclopedismo, Viehweg traduz a idéia de sistema como "uma construçãode conceitos baseada em conceitos fundamentais (princípios). Porconseguinte, fundamentar significava, depois de um número finito depassos, chegar a um fim, quer dizer, aos direitos fundamentais, sustentados sem o apoio da fundamentação, porque evidentes." Viehwegcritica esse modelo finito de sistema ou modelo de argumentaçãoaxiomático-dedutivo, pelo exclusivismo que o mesmo provoca ao isolar-se de outros contextos. Cf. p. 150 e segs.257. Perelman. Lógica jurídica, p. 95.
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zente à legitimação judicial, visando a validez e a eficáciade suas decisões. Essa dimensão prática ensejou o aprofundamento da reflexão sobre a atividade discursiva, do pontode vista ético. 258
Um significado especial para o direito tem a obra deTheodor Viehweg. O autor resgata da antigüidade clássica
..0 modelo jurídico utilizado pelos romanos, especialmenteo dos pretores e jurisconsultos, atribuindo-lhe uma dimensão bastante atual. Sua tese é a de que a forma de pensartópico-problemática da jurisprudência romana, que construía sua justiça a partir de decisões concretas, para entãoextrair princípios que lhe servissem de fundamento de validade, não se perdeu, apesar de toda ênfase dada à idéiade sistema pela dogmática jurídica dos modernos.
No prefácio à 4a edição do seu livro Tópica e Jurisprudência, Viehweg faz referência a Pere1man, Recaséns Siches e Stone, autores contemporâneos seus, com os quaiscompartilha o mesmo tipo de preocupação. Entretanto,nesta oportunidade reconhece que a grande difusão da re-
258. Além da grande contribuição dos filósofos alemães Karl OttoApel e Jürgem Habermas, voltada para a ética discursiva, encontramos os estudos de Robert Alexy, mais especificamente sobre a linguagem moral e sua dimensão argumentativa. Note-se que este autor nãoatribui um sentido tópico nem retórico a suas especulações, preferindo ao contrário, seguir regras analíticas de linguagem, bem como opa;adigma processual. Para Alexy, por exemplo, a argumenta~ão éconcebida como uma atividade lingüística. Sua proposta é anahsar aestrutura lógica da fundamentação do discurso jurídico visto como umcaso especial do discurso prático geral. Na introdução de seu livroTeoria da argumentação jurídica Alexy critica a tópica pela imprecisão e insuficiência teórica, uma vez que apresenta a discussão comoúnica instância de controle para a interpretação. Por isso, pergunta:Onde estariam as regras capazes de lhe conferir racionalidade? Cf.Teoría de la argumentación jurídica - La teoria del discurso racionalcomo teoria da la fundamentación jurídica, p. 39 a 43.
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tórica dá-se devido à necessidade de se construir uma teoria satisfatória para o direito, haja vista a incapacidade deum sistema axiomático-dedutivo fornecer fundamentosaceitáveis à prática judicial. Mas, como o jurista não seequipara a um perito da argumentação, há de ser criadauma teoria geral e retórica da argumentação completadacom procedimentos da tópica formal, sustenta Viehweg.Portanto, o autor indica uma releitura da tópica aristotélica, pois, embora saibamos que o pensamento tópico distingue-se do lógico pelo atributo da sistematicidade, conforme a distinção presentada entre dialética - raciocínio quetem por base opiniões aceitas, e apodexis - raciocínio baseado em proposições primeiras ou verdadeiras o filósofoe:tagirita funda sua distinção sob a índole das p~emissas, enao sob o ponto de vista formal, isto é, de construção deum raciocínio lógico. Por isso, Viehweg chama a atençãopara o fato de que sob o ponto de vista formal a distinçãonão se firma, uma vez que ambos podem apresentar-secomo formalmente corretos. A diferença estaria no fato deque a tópica parte do problema em busca de premissasenquanto o raciocínio do tipo sistemático apóia-se em pre~m~ssas já ~a~as: "A tópica mostra como se acham as premIssas; a 10gIca recebe-as e as elabora. "259
A metódica que o autor faz vigorar, toda ela voltadapara o campo do jurídico, desfruta de uma dimensão retórica na medida em que assume a natureza dialética do discurso. Nesse sentido, preconiza:
Pode-se intentar esboçar um correspondente modeloretó.rico de argumentação concebendo cada argumentaçãoestntamente como discurso fundante e o discurso comouma atividade comunicativa que contém deveres comunica-
259. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 40.
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tivos. Possivelmente, a perspectiva retórica é adequada parat:;stabelecer assim uma vinculação razoável entre a Lógica e aEtica e, com isso, reduzir nossas dificuldades básicas. 26o
A argumentação dialética moderna, assim denominadapor Viehweg, preocupa-se em penetrar compreensivamente o contexto da realidade. A exemplo dos romanos,não é possível construir a jurisprudência a partir de conseqüências inferidas de regras ou princípios previamente estabelecidos, mas somente a partir dos problemas que nossão apresentados. Assim, é na tópica aristotélica, com todoo seu enfoque dialético, que encontraremos condiçõespara construir um modelo jurídico metodológico capaz dedissolver os sistemas de pensamento prefixados e pô-losnovamente em movimento. Viehweg defende a argumentação dialética em vez da analítica, pela riqueza de idéias esoluções que a tensão estabelecida entre teses e antítesesproporciona à multiformidade do comportamento social.Conforme o próprio reconhece, tal tipo de pensamentopromove a invenção, mostrando-se adequado a explicações mais complexas, apesar de dificultar a tomada de decisão. E com relação à compreensibilidade própria das situações humanas, sob o viés da sua historicidade, Viehwegacredita numa concepção totalizante e universal. A respeito, afirma: "A decisão tem de ser tomada a partir de umainterpretação universal da totalidade do acontecer, ouseja, de uma história compreendida. "261
260. Viehweg. Tópica y filosofía deZ derecho, p. 160.E mais: "Se fundamentar é necessariamente argumentar e contra
argumentar, então é uma atividade que só é possível se se satisfazemdeterminados deveres de comunicação. A perspectiva retórica conduzà questão acerca do comportamento reciprocamente correto dos falantes." Idem, p. 169.261. Idem, p. 159.
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A linha tópico-retórica, como podemos identificar a partir das contribuições teóricas de Perelman e Viehweg,262visa, antes de mais nada, estudar ou dar maior ênfase aosmecanismos persuasivos que orientam e dão forma ao discurso jurídico, voltado para o acordo capaz de dar suporte elegitimidade à decisão da autoridade judiciária.263
A contribuição de Theodor Viehweg foi das mais significativas. Voltado para a prática dos antigos no seu labor deinvestigar a estrutura própria do direito, verifica, logo deinício, que a jurisprudência romana fundamentava-se naprática discursiva, cujo pólo principal era o problema queo caso concreto demandava. Era o tipo de pensamento quenão se sujeitava, ou melhor, não se limitava,264 à pureza do
262. Ambos os autores elaboram, nos anos 50, seus primeiros estudoscríticos ao pensamento puramente axiomático. Viehweg apresenta aprimeira edição do livro Tópica e Jurisprudência em 1953, cuja primeira versão datava de 1950; e Perelman escreve a Nova retórica em1956 e o Tratado da argumentação com O. Tyteca, em 1958. Um eoutro terminam por se aproximar tanto da tópica quanto da retórica.263. Em seus Apontamentos sobre uma teoria retórica da argumentação jurídica, quando se aprofunda na questão da teoria retórica comouma teoria do discurso fundante, Viehweg, na qualidade de professor,juiz e testemunho de uma época, ensina que "O discurso fundantesignifica formular asseverações que estão submetidas a um dever dedefesa e que só se mantêm quando podem satisfazer este dever dedefesa. Portanto, o diálogo entre o defensor e o oponente deve serinvestigado tendo em conta as obrigações e suas diferenciações nelecontidas. O ataque, a defesa e o pedido de explicação devem ser refletidos como obrigações; isto parece ser especialmente urgente porquenossa realidade científica depende, em uma medida insuperável, dasasseverações confiáveis dos demais. Dada a complexidade do mundo,a brevidade de nossa vida e a limitação de nossas capacidades, a obrigação de não distorcer nossa realidade com asseverações infundadastem um interesse geral." E assim traduz a concepção dialética de suateoria. Tópica y filosofia del derecho, p. 169.264. Chamamos a atenção para isso, uma vez que alguns, como Cana-
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pensamento lógico-dedutivo, subordinando-se também àsquestões de ordem prática.265 Contudo, a preocupação deViehweg não é com os valores em si ou com os significadosatribuíveis ao problema, mas sim com os mecanismos e asformas de sua solução. Naturalmente, uma solução queguarde razoabilidade, ou, tal como para os romanos, umasolução prudente.
Em síntese, Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta o pensamento de Viehweg no prefácio que escreve à traduçãobrasileira do livro Tópica e Jurisprudência, da seguinte maneira:
A tópica não é propriamente um método, mas um estilo.Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evi-
ris, atribuem a Viehweg uma verdadeira frente de oposição ao formalismo jurídico. Ainda que o trabalho de Viehweg tenha sido não raramente utilizado para a defesa de uma postura pós-positivista, não temos certeza de ser esta a intenção primeira ou primordial do autor.Notamos, no prefácio que escreve à 23 edição de Tópica e Jurisprudência, que o mesmo não chega a negar toda ou qualquer conexão com opensamento lógico-dedutivo; tenta apenas mostrar uma outra dimensão, talvez complementar, de método ou de "estilo".265. Um outro fato que deve ser apontado desde já é a crítica, ou aleitura simplória, em geral feita sobre o trabalho de Viehweg, no sentido de vê-lo circunscrito ao direito civil. Apesar de Viehweg ter-selimitado ao estudo da tópica neste ramo do direito, em torno do qualse concentrava a atividade dos pretores romanos, seu trabalho acabourepercutindo em outras áreas, de acordo com prognóstico feito pelopróprio autor na sua introdução, quando escreve que "a tópica é encontrada no ius civile, no mos italicus bem como na civilística atual epresumivelmente também em outros campos". (Grifo nosso.) Haja vista, inclusive, toda a análise hermenêutico-concretizadora que atinge odireito constitucional contemporâneo, tal como retratam os trabalhosde Friedrich Müller, Peter Haberle e Gomes Canotilho. Confira-se,também, Ernst-Wolfgang Bockenforde, Escritos sobre Derechos Pundamentales, p. 19 e ss.
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dência, cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo depensar por problemas, a partir deles e em direção deles.Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados,com um caráter problemático, na medida em que jamaisperdem sua qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas semmaior rigor lógico, assumindo significações em função dosproblemas a resolver, constituindo verdadeiras "fórmulas deprocura" de solução de conflito. 266
Viehweg inicia seu livro fazendo alusão a Vico, historiador e filósofo italiano do início do século XVIII. O método científico antigo, apresentado por Vico, e que foratransmitido aos romanos por Cícero (44 a. C.), tem comobase a tópica aristotélica; e o método novo, que segue omodelo cartesiano, é chamado de crítico. Este último temcomo exemplo a geometria, e apresenta como ponto de
266. Tércio SampaioFerraz Jr. Prefácio à tradução brasileira do livrode Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 3.
A divulgação da tópica, no Brasil, deve-se, em grande parte, aotrabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, principalmente com olivro Introdução ao estudo do direito, teve o mérito de trazer a tópicapara o campo do jurídico, sem, no entanto, descorar-se ou invalidar aessência dogmática relativa ao próprio direito.
Em A Ciência do Direito, Tércio afirma que a zetética não é antagônica à "dogmática"; ao contrário, apresentam-se, muitas vezes,como complementares. No direito, por exemplo, o pensamento zetético encontra-se presente na fundamentação das decisões que se pretendem legítimas. "As questões jurídicas não se reduzem às 'dogmáticas', à medida que as opiniões postas fora de dúvida - os dogmaspodem ser submetidas a um processo de questionamento, mediante oqual se exige uma fundamentação e uma justificação delas, procurando-se, através do estabelecimento de novas conexões, facilitar a orientação da ação." A Ciência do Direito, p. 46.
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partida um primum verum, inquestionável, capaz de construir longas cadeias dedutivas, passíveis de demonstração.Com a tópica, é diferente, diz Viehweg, pois o ponto departida é o sensus communis, capaz de manipular o verossímil pela confrontação de pontos de vista opostos. Apesarda vantagem que possa ser obtida da precisão do método,conforme o pensamento cartesiano, Vico acredita na prevalência de suas desvantagens, quais sejam: a superficialidade, a ausência de fantasia e criatividade, o empobrecimento da memória e da linguagem, e a falta de amadurecimento do juízo. Resumindo, diria Vico, era a depravaçãodo humano. Em contrapartida, a tópica e a retórica proporcionariam sabedoria, despertariam a fantasia e a memória, além de ensinar como considerarmos um estado decoisas sob ângulos diversos, isto é, como descobrir a tramade pontos de vista que engendram um problema.
A hipótese que consta de Tópica e Jurisprudência é aque se segue:
Examinaremos, por conseguinte, se a jurisprudência desenvolvida desde a Antigüidade romana corresponde, na suaestrutura, à tópica. Caso isto se confirme, indagaremos emseguida que repercussão deve ter sobre a jurisprudência amudança de estrutura assinalada por Vico.267
Nos dois capítulos seguintes, talvez os mais importantes de seu livro, Viehweg se concentra no estudo da tópicapropriamente dita, tomando por base Aristóteles e Cícero.Aristóteles atribui como título de uma das partes do Organon o termo tópicos, em referência à antiga ars disputationes dos retóricos e sofistas, tão combatida por Sócrates ePlatão.268 Insere a tópica no campo da dialética, ou seja, da
267. Viehweg. Tópica e JurisprudênCIa, p. Z1.268. Aristóteles inicia a sua Tópica com os seguintes dizeres: "Nosso
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disputa e dos opostos, em contraposição ao gênero apodítico, representado pela ordem das verdades.269 Propõe-se aencontrar um método de raciocínio formulado a partir deopiniões tomadas como proposições e montar, daí, umacadeia discursiva coerente (sem contradições), considerando todos os problemas possíveis de serem apresentados. Assim expõe Viehweg:
Colocado, portanto, um problema qualquer, trata-se então de raciocinar corretamente ex endoxon (isto é, partindode opiniões que parecem adequadas) para atacar ou paradefender. 270
Logo, a tópica tem como objeto os raciocínios que derivam de premissas que parecem verdadeiras, porque suabase encontra-se em opiniões amplamente aceitas. Tratase de opiniões que, apesar de gozarem simplesmente do
tratado se propõe encontrar um método de investigação graças ao qualpossamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobrequalquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes,quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa quenos cause embaraço. Em primeiro lugar, pois, devemos explicar o queé o raciocínio e quais são as suas variedades, a fim de entender oraciocínio dialético: pois tal é o objeto de nossa pesquisa no tratadoque temos diante de nós." Tópicos, p. 5.269. É clássica a divisão aristotélica entre apoditicidade e dialética,até hoje tida como referência para a teoria do conhecimento. Umaapodexis existe quando se obtém um raciocínio partindo-se de proposições primeiras tidas como verdadeiras, enquanto o raciocínio dialético se forma a partir de opiniões aceitas. O primeiro sujeita-se àdemonstração e o segundo, ao convencimento. A índole das premissasé que diferencia o tipo de raciocínio. Segundo Viehweg, Aristótelesdefine raciocínios dialéticos como aqueles que têm como premissasopiniões acreditadas e verossímeis, que devem contar com aaceitaçãode todos ou da maioria (endoxa).270. Tópica e Jurisprudência, p. 24.
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reconhecimento, servem de premissas, na medida em quefuncionam de base para a compreensão ou que fornecemelementos para uma interpretação plausível.
Topoi são, portanto, para Aristóteles, pontos de vistautilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam afavor ou contra o que é conforme a opinião aceita e quepodem conduzir à verdade. [... ] Os topoi, enumerados deum modo mais ou menos completo, são os que nos podemajudar, em relação a cada problema, a obter raciocínios dialéticos.271
No entanto, coube a Cícero o mérito de ter divulgadoa tópica no mundo medieval, por meio de seu livro De Inventione. Cícero trabalhou a tópica sobre o direito, pretendendo dar-lhe utilidade prática. Cícero ordena os topoi ouloei, que significam "lugar comum", em forma de catálogosou repertórios, com vistas ao seu melhor aproveitamentoprático. Agrupou-os em função de termos técnicos que seligam a determinado assunto, provendo-lhes a qualidadede topoi científicos; e outros, mais gerais ou "atécnicos",que servem a qualquer tipo de problema, como qualificação de gênero, espécie, quantidade, semelhança, diferença, lugar, etc. Viehweg também considera a utilidade decatálogos de topoi, que denomina de tópica de segundograu.
O capítulo terceiro de Tópica e Jurisprudência é inaugurado com a afirmativa de que a tópica constitui umatechne do pensamento orientada para o problema, conforme haveria assinalado Aristóteles em várias ocasiões. Oproblema constitui-se no centro da órbita em que giram osraciocínios, servindo-lhes de atração e guia. O problema
271. Viehweg, Tópica e Jurisprudência, p. 26 e 27.
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possibilitaria, assim, a coesão dos argumentos, processadospela inventio. 272 O problema, por si, comporta mais deuma resposta; mas, na verdade, espera-se, para ele, umaúnica solução: aquela que lhe for mais adequada. A tópicapretenderia, justamente, fornecer indicações de como devemos nos comportar em tais situações, a fim de não ficarmos presos, sem saída.273 Seria, portanto, a techne do pensamento orientado para o problema, e que explora a invenção.
Como todo problema provoca um jogo de suscitações,o pensamento sistemático, por ser fechado, não lhe é suficiente. O pensamento problemático mostra-se assistemático, porque esquivo a qualquer tipo de vinculação primeira, isto é, não parte de uma ordem dada. A idéia é que, separtirmos de um sistema, considerado como um conjuntode deduções previamente dado, a partir do qual se inferemtodas as respostas, corremos o risco de excluir o problemasobre o qual conjecturamos de algum outro sistema quepossa ser construído, prejudicando, assim, sua solução.Para a busca da resposta mais adequada, faz-se mister ouso da inventio, que procura as várias interligações possíveis daquela questão no mundo compreendido, capaz delhe conferir um significado. Mas, se o acento recai sobre oproblema e não sobre o sistema de normas que nos é dado,podemos buscar outros sistemas cabíveis que nos auxiliemna resposta. O problema busca livremente o seu própriosistema. Viehweg acredita que o problema procede de umnexo de compreensão' já existente, mas que não sabemos,de início, se é um sistema lógico, como um conjunto de
272. "Todo problema objetivo e concreto provoca claramente umjogo de suscitações, que se denomina tópica ou arte da invenção",anota Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.273. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.
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deduções, ou algo distinto; ou, ainda, se se trata de algumacoisa que pode ser vista de forma mais abrangente. Segundo Viehweg, o modo de pensar aporético,274 ou por problemas, tem certeza de seu sistema, mesmo que não chegue ater dele uma concepção prévia. A tópica admite sempre ainclusão do problema em uma ordem que esteja por serdeterminada. 275 Fato é que a ênfase no problema operauma seleção de sistemas.
Apesar do conteúdo assistemático ou fragmentário datópica, Viehweg se esforça por não lhe excluir totalmenteum parâmetro de sistema. Para tanto, apruma sua teoriapara a diferença existente entre zetética e dogmática276
,
274. A aporia é-nos apresentada no livro Tópica e Jurisprudênciacomo uma questão ligada à dúvida (dubitatio) , uma vez que a situaçãode problematicidade se apresenta como permanente. A ausência decaminho próprio e conhecido estimula, por sua vez, a criação do intérprete. Cf. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 33.275. Idem, p. 35.
A respeito da idéia de ordem subentendida na concepção do mundo e das coisas, ver o livro de Nelson Saldanha, Ordem e hermenêutica. Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992.276. Em linhas gerais, podemos distinguir dogmática de zetética daseguinte forma: a investigação zetética é aquela que se abre continuamente para o questionamento de seus objetos em todas as direções,sendo que a sua falta de compromisso com a solução de conflitostorna-a infinita. Seria o caso da filosofia, da sociologia, da psicologia eda antropologia, por exemplo. Como disciplina dogmática temos oexemplo típico do direito. Conforme explica Tércio Sampaio FerrazJr., quem, a nosso ver, melhor traduz essa definição: "Uma disciplinapode ser definida como dogmática na medida em que considera certaspremissas, em si e por si arbitrárias (isto é, resultantes de uma decisão), como vinculantes para o estudo, renunciando-se, assim, ao postulado da pesquisa independente. Ao contrário das disciplinas zetéticas cujas questões são infinitas, as dogmáticas tratam de questõesfinitas. Por isso podemos dizer que elas são regidas pelo que chamaremos de princípio da proibição da negação, isto é, princípio da não-ne-
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apoiando-se numa definição de dogmática apta a adequar aidéia de sistema à tópica. Concordamos com José Lamegoquando este reconhece na tópica não uma ameaça à dogmática, mas um elemento potencializador. Conforme escreve,
o juiz não aplica automaticamente e na sua integralidade a pauta geral à situação concreta "sacrifica" algo daquelaem virtude, precisamente, do caráter "concreto" da situação. Mas este afastar-se da universalidade da norma não significa uma "imperfeição", um déficit na realização do conteúdo da pauta de regulação, mas precisamente uma potenciação das possibilidades nela contidas, fazendo-a corresponder às exigências do caso. 277 (Grifo nosso)
Por mais paradoxal que possa parecer, Lamego atribuià tópica uma maior capacidade de explorar o sistema, considerado como uma pauta de regulação previamente dada.Vale notar, no entanto, que, de acordo com o próprioViehweg, a vinculação existente quando aceitamos um catálogo de topoi é sempre limitada, porque a discussão tópica não se processa de forma linear, admitindo interrupçõesconstantesY8 E como isso se dá?, pergunta Viehweg, aoque responde:
Quando se depara, onde quer que seja, com um problema, pode-se naturalmente proceder de um modo mais simples, tomando-se, através de tentativas, pontos de vista maisou menos casuais, escolhidos arbitrariamente. Buscam-sedeste modo premissas que sejam objetivamente adequadas
gação dos pontos de partida de séries argumentativas, ou ainda princípio da inegabilidade dos pontos de partida (Luhmann, 1974)." Introdução ao estudo do direito, 1991, p. 48-9.277. José Lamego. Hermenêutica e jurisprudência, p. 174.278. Viehweg. T6pica e Jurisprudência, p. 41.
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e fecundas e que nos possam levar a conseqüências que nosiluminem. 279
Daí a conclusão de Cícero de que a tópica é um procedimento em busca de premissas.280 A função dos topoi éservir a uma discussão de problemas, intervindo em caráter auxiliar. Os topoi ganham sentido a partir do problema,na medida em que, à vista de cada um, eles podem aparecer como adequados ou inadequados, conforme um entendimento que nunca é absolutamente imutável.
Para a compreensão da tópica, Viehweg apresenta ainda as seguintes classificações: 1) Quanto à organização dostopoi: tópica de primeiro grau e tópica de segundo grau; 2)Quanto à qualidade: gerais e especiais. Topos geral é o queserve para qualquer tipo de problema; e especial, aqueleque corresponde a determinado ramo ou círculo de problemas. Tópica de primeiro grau é aquela espontânea, queaparece no nosso dia-a-dia, quando buscamos justificaçãopara nossas ações; e tópica de segundo grau é a que operacom catálogos ou repertórios de topoi arrumados segundoa especificidade do problema e que servem mais à áreatécnica. Os catálogos, por sua vez, são constituídos de coleções de pontos de vista, reunidos de forma assistemática,a despeito de qualquer limite e fáceis de serem atualizados.
Sob a ótica da hermenêutica, acreditamos que a tópicaé de grande serventia. Não se limita a um sistema em queas interpretações aparecem como resultado de uma operação puramente lógica; ao contrário, ela vem possibilitar umsignificado mais abrangente do problema, na medida emque se admite um sem-fim de conexões. As várias e possí-
279. Idem, p. 36.280. Idem, p. 39.
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veis dimensões do problema são levadas em consideração,podendo ainda correlacionarem-se das mais diversas maneiras. Tudo para provocar um entendimento mais amplo,profundo e favorável de questões complexas, como as quetangem a justiça. Podemos dizer que a tópica permite queos diversos focos de luz que possam iluminar o problemaincidam sobre ele.
A tópica assume uma estrutura dialógica que despontasobre uma base retórico-argumentativa de feição intersubjetiva. Suas premissas legitimam-se na aceitação do interlocutor, da mesma forma que o comportamento dos atoresé orientado pela previsibilidade de oposição do adversário.Para a tomada de decisão, é necessário o consenso; e o queem disputa fica provado, em virtude de aceitação, passa aser admissível como premissa para outros raciocínios deordem dialética. Diante da infinidade do raciocínio tópico,permanece, então, o debate como principal instância decontrole. A abertura para o diálogo sujeito à crítica traztransparência e legitimidade às deCisões não apenas porque suas premissas gozam de respeitabilidade, mas também pelo poder de persuasão de suas teses, à medida queelas conseguem sobreviver ao ataque das críticas e erradicar progressivamente equivocidades. Não existem, pois,respostas corretas ou verdadeiras, mas argumentos que seimpõem pela força do convencimento.281
O argumento de autoridade, que corresponde à doutrina e à jurisprudência no nosso direito, e que traduzem umaopinião reconhecida, é um fator também a ser consideradopela tópica, uma vez que oferece premissas respeitáveis efortes, em condições de fundamentar uma cadeia de racio
281. A dimensão retórica que explora a argumentação no âmbito datópica não é desenvolvida por Viehweg, mas pode ser encontrada emPerelman.
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cínio válido. Para a civilística romana, que serve como basede estudo a Viehweg, a opinião dos jurisconsultos, porexemplo, é importante pela credibilidade que desfrutam.Sobre a força do saber dos mais sábios e eruditos, bemcomo sobre a força dos argumentos que apresentam, Viehweg considera: "Com a citação de um nome faz-se referência a um complexo de experiências e de conhecimentoshumanos reconhecidos, que não contém só uma vagacrença, mas a garantia de um saber no sentido mais exigente."282
Somadas essas considerações, o autor encerra o terceiro capítulo do livro com uma crítica ao raciocínio sistemático:
Quando se logra estabelecer um sistema dedutivo, a quetoda ciência, do ponto de vista lógico, deve aspirar, a tópicatem de ser abandonada. [... ] O sistema assume a direção.Decide por si só sobre o sentido de cada questão. Suas proposições são demonstráveis de modo inteiramente lógico erigoroso, quer dizer, "verdadeiras" ou "falsas", no sentido deuma lógica bivalente. Valores como "defensável", "ainda defensável", "dificilmente defensável", "indefensável", etc.carecem aqui de sentido. Construído a partir de si próprio,o sistema de proposições deve ser compreensível por si só,quer dizer, a partir da explicação lógica de suas proposiçõesnucleares. 283
Com isso talvez fique claro o papel da tópica no atualmovimento crítico pós-positivista, que pretende dar maior
282. Tópica e Jurisprudência, p. 42-3.Com relação à autoridade dos mais sábios, convém lembrar as três
fontes de legitimidade trabalhadas por Max Weber, numa estruturade dominação: a tradicional, a legal e a carismática. Ciência e política:duas vocações, p. 57.283. Tópica e Jurisprudência, p. 43-4.
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validade à concretização do direito e à solução do problema em função dos valores que o ensejam, do que um pretenso sistema de valores válido por si só.
Pesquisando o ius civile romano, Viehweg retira exemplos do uso da tópica no direito. Ao jurisconsulto romanoera apresentado um problema para o qual solicitava-se-Iheum parecer. Sua tarefa era, sob um senso da eqüidade, encontrar argumentos para soluções prudentes. Viehweg reconhece na jurisprudência dos romanos o desenvolvimento de uma techne bastante avançada,284 a pressupor umnexo que não se pretende demonstrar, mas dentro do qual
. ,. 285 E 'o raClOClnlO se move. sta e justamente a postura carac-terística da tópica, sendo que a tal ponto os romanos nãoteriam chegado senão pela arte da dialética, vista comoarte de disputar.
O direito romano, antes da elaboração do Corpus IurisCivilis, encontrava-se sob a forma de editos ou responsasreunidos sem nenhum propósito sistemático, em orde~descuidada. Os jurisconsultos romanos eram reconhecidoscomo verdadeiras autoridades, cujas opiniões mostravamse suficientes para embasar outras decisões tomadas poranalogia. O prestígio técnico dado pelo conhecimento é o
284. Aristótele,s estabelece a distinção entre techne e episteme. Episteme, segundo a Etica a Nicômaco (6, 3, 1.l39-b, 18 e seg.), é um hábitode de~on~trar a partir das causas necessárias e últimas, e, portanto,~ma cle~c~a. Techne, pe~a mesma obra citada (6,4, 1.l40-a, 6 e seg.),e um h,ablto d: produzIr por reflexão razoável. No latim, em geral,techne e traduzIda como ars, e episteme como disciplina.285. Podemos vincular esta construção tópica, da qual nos fala Viehweg, às nossas considerações sobre hermenêutica vistas anteriormente. Este "nexo irrefletido" corresponderia à idéia de pré-compreensão, enquanto o raciocínio que se move se relacionaria à tarefa mediadora da interpretação, por sua vez firmadora e reveladora da compreensão.
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topos da decisão, e os argumentos são princípios que podem servir de fundamento para outras decisões. 286
Viehweg vê uma nova posição do jurista, a quem nãocabe mais entender o direito como algo que se limite aaceitar, mas sim como algo que ele constrói de maneiraresponsável. Logo, acredita ser preciso desenvolver um estilo especial de busca de premissas que, com o apoio empontos de vista amplamente aceitos, seja inventivo, menosprezando reduções lógicas que nos levem a generalizações incapazes de entender e muito menos de resolver osproblemas adequadamente.
No capítulo intitulado Tópica e Axiomática, Viehwegluta contra o espírito científico formalista que pretendeconceber a Jurisprudência como ciência. O argumentoapresentado no livro cresce à medida que o autor verifica apresença necessária da tópica no sistema jurídico, aindaque outros queiram excluí-la ou ignorá-la. Primeiro, dizele, convém notar a dificuldade de se apreender com exatidão, no direito, como supõe a lógica dedutiva, os princípios fundamentais exigidos como nucleares a qualquer sistema:
No estado atual da investigação dos fundamentos daCiência do Direito não se pode dizer com suficiente certezaonde se encontram, em nosso ordenamento jurídico, os con-
286. A base analógica do método jurídico que, aliás, é a conclusão deCastanheira Neves, configurava a base do direito romano, à semelhança da common law do direito inglês, conforme anota José Lamego: "Noentendimento primitivo da teoria da common law, o tipo de racionalidade da argumentação jurídica é uma racionalidade que tem que vercom o particular, é inseparável da peculiaridade das situações subjudice, a resolver pelo Direito. O pensamento jurídico não seria assimindutivo nem dedutivo, mas analógico, argumentando de um particular a outro particular." Hermenêutica e Jurisprudência, p. 36.
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juntos de fundamentos de maior amplitude e que grau deperfeição alcançaram. A rigor, há que se conformar comconjecturas, que usualmente se referem à parte geral doDireito ...287
E com relação ao fator unidade da ordem jurídica, também parece complicada a pressuposição de inexistência decontradições. A harmonia desejada pela unidade só é possível com a atividade hermenêutica, que também é tópica.Segundo Viehweg, a tarefa da interpretação é criar umaconcordância aceitável entre o problema e a ordem jurídica. Há que se estabelecer conexões por meio de interpretações aceitáveis e adequadas. Por outro lado, para a manutenção do ordenamento jurídico diante das transformações impostas, é salutar uma interpretação adequada quemodifique o sistema por meio de mecanismos como os daextensão, redução, comparação e síntese.288
Outro ponto de irrupção da tópica no direito, de acordo com Viehweg, relaciona-se com o uso da linguagem natural:
Hoje está claramente estabelecido que a linguagem unifica uma pletora quase ilimitada de horizontes de entendimento, que variam continuamente. A linguagem apreendeincessantemente novos pontos de vista inventivas, à maneira tópica. Com isto demonstra a fecunda flexibilidade, porém, ao mesmo tempo, põe o sistema dedutivo em perigo,pois os conceitos e as proposições, que se expressam pormeio das palavras da linguagem natural, não são confiáveisdo ponto de vista da sistemática.289
287. Viehweg. Tópica e Jurisprudência, p. 80.288. Cf. Tópica e Jurisprudência, p. 80 e 81.289. Idem, p. 82.
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o ambiente externo ao sistema jurídico, denominado"estado de coisas", segundo o autor também se submete aum tratamento tópico, porque passível de ser manejadojuridicamente. Sabemos que os fatos só podem ser qualificados como jurídicos quando interpretados à luz de umpré-entendimento que se tem sobre o jurídico. E a partirdessas constatações, conclui:
Onde quer que se olhe, encontra-se a tópica, e a categoria do sistema dedutivo aparece como algo bastante inadequado, quase como um impedimento para a visão. Obstrui acontemplação da estrutura efetiva [... ] O centro de gravidade das operações reside claramente, de modo predominante, na interpretação em sentido amplo e, por isto, na invenção.
[... ]
Observa-se que a lógica é tão indispensável em nossoterreno como em qualquer outro e que é mencionada comfreqüência. Porém, no momento decisivo, a lógica tem deconformar-se em ficar em um segundo plano. O primeirocabe à ars inveniendi, como pensava Cícero, quando diziaque a tópica precede a lógica. Segue-se daí que, agora comoantigamente, se deve conceder uma atenção substancial àtópica. 29o
Para Viehweg, o grande objeto de investigação da ciência do direito é a essência da techne jurídica referida à busca do justo.
E finalmente, no último capítulo se concentra na idéiado direito como ciência. Parte de Max Weber quando esteapresenta a correspondência existente entre ciência e problema, no sentido de que as ciências são produzidas em
290. Idem, p. 83-4.
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função de problemas de um determinado tipo, que postulam, para si, meios específicos de solução. Assim concluip:la ~xistên~i~d~ disciplinas sistematizáveis e disciplinasnao slstematlzavelS. A distinção dá-se, segundo o autor emfunção da existência ou inexistência de princípios objetivos, s~~uros e fecundos. Quando não os há, a condição problematlca se mantém, admitindo unicamente uma discussã? prob.lemática, como acontece, por exemplo, com o DireIto. Vlehweg propõe-se, então, a descobrir na tópica aes~rutura que convém à Jurisprudência, a partir dos seg~mtes pressupostos: a) a estrutura total da JurisprudênCIa somen~e pode ser determinada a partir do problema; b)as partes mtegrantes da Jurisprudência, seus conceitos eproposições têm de ficar ligados de um modo específico aoproblem~ e só podem ser compreendidos a partir dele; c)os co~~eltos e as proposições da Jurisprudência só podemser utllIzados em uma implicação que conserve seu vínculocom o problema.. P-; ~ei a~arece como resposta a uma série de questões
hlst~ncas tIdas como problemáticas, tendo a justiça comoapo~la fundamental que procura dar unidade significativaao sls~e.ma. A ~strutura da Jurisprudência, portanto, é problematlca. Ate mesmo os diversos ramos do direito surgem a partir de problemas que lhe são fundamentais.~?mo exe~plo cite-se a questão da autonomia privada, see Justa ou n~o,.com? p.roblema fundamental do direito privado. No dIreIto publIco, ao contrário, se é justa ou não ainterve~ção ~o Estado, no todo ou em parte, na vida privada dos Cldadaos. Estas questões mudam, enquanto a aporiafundamental da justiça permanece sempre. Logo, a Jurisprudência precisa ser concebida como uma discussão per~anente de problemas postos historicamente, mas quen~o se perdem da noção de justiça. Daí, concluindo comVlehweg, resulta com especial clareza que a dedução, im-
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prescindível em todo pensamento, não desempenha o papel de liderança, nem pode desempenhar o que às vezes sepoderia desejar para ela e o que lhe corresponderia se existisse um sistema perfeito. Decisiva é antes a escolha especial de premissas, que se produz como conseqüência deum determinado modo de entender o direito, à vista desua aporia fundamental: a justiça.291
3.2 A contribuição de Recaséns Siches: a lógica do ra
zoável
Luis Recaséns Siches também escreve a Nova filosofiada interpretação do direito sob o impacto da crise vividapelo direito nos anos que se seguiram à Segunda GuerraMundial, e que deu origem ao que chamamos de pós-positivismo. Conforme assinalado anteriormente, entendemoscomo pós-positivismo o pensamento jusfilosófico que enfrenta mais de perto as insuficiências do modelo lógicoformal para o tratamento das questões jurídicas.
Recaséns Siches fala em crise, baseando-se no fato deque os valores da sociedade de sua época não correspondiam mais aos valores consagrados anteriormente. A certeza e a objetividade trazidas pelo cientificismo e pelo formalismo não se adequavam mais ao clamor da verdadeirajustiça encontrado na sociedade. Caem os sistemas formais e a filosofia do direito passa a ter que dar conta de umnovo método, constata Recaséns Siches:
Ese hecho de que la Filosofía Jurídica académica deIsiglo :xx no ha desempenado un papel principal, ni siquieratampoco secundario, en los nuevos desenvolvimientos dei
291. Idem, p. 94.
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Derecho de nuestra época resalta tanto más, si lo comparamos con el hecho de la influencia decisiva que el pensamiento filosófico-jurídico ejerció sobre grandes cambios exprimentados por el Derecho en otras épocas da la historia.292
o autor parte dos seguintes marcos da filosofia jurídica: o pensamento jurídico-filosófico de Aristóteles, quesustenta a questão da eqüidade; o pensamento jurídicoescolástico, que na Idade Média serviu para propugnaruma ordem jurídica estável diante da anarquia; a filosofiados grandes teólogos e juristas espanhóis nos séculos XVIe XVII, que forneceu as bases do Estado Moderno (ordemjurídica positiva) e alicerçou o direito internacional; a contribuição de Hobbes e Locke para a fundamentação do Estado liberal; Montesquieu, os enciclopedistas, as doutrinasda escola clássica do direito natural e, depois, as idéias deRousseau, que deram origem às declarações de direitos eaos fundamentos do racionalismo, e assim por diante. Seria o momento de a filosofia do direito contribuir agorapara uma reforma no direito positivo, conferindo-lhe umafunção de solidariedade e cooperação sociais. O que se verifica no pós-guerra, diz ele, é a consolidação dos direitossociais diante de uma sociedade economicamente destruída e a incapacidade de um Estado para realizar as necessárias modificações estruturais que promovam o bem-estarsocial. O aparelho judicial do Estado é chamado a dar efetividade aos direitos sociais consagrados em lei após muitoesforço e muita luta. É um novo sentido de justiça que seimpõe, retirando a exclusividade dos valores relativos à segurança da ordem social, sob a ênfase do individualismo. Acrise que então se verifica corresponde, na realidade, à
292. Luis Recaséns Siches. Nueva filosofía de la interpretaci6n deiderecho, p. 3.
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tensão existente, por um lado, entre as exigências de certeza e segurança e os novos valores relativos à justiça; e, deoutro, a necessidade natural de ordem e estabilidade sociais, diante dos anseios, também naturais, por novastransformações que acompanhassem o progresso.
Como premissas o autor estabelece uma distinção entre filosofia jurídica acadêmica e filosofia jurídica 000acadêmica. A primeira corresponde àquela ensinada nasuniversidades, de índole dogmática, sob o título de TeoriaGeral do Direito, cuja preocupação é divulgar conceitos deordem geral cabíveis em todo e qualquer ordenamento jurídico, como instrumento facilitador para o tratamentocientífico de questões específicas de direito. Seriam, basicamente, os conceitos de sujeito de direito, objeto jurídico, fato jurídico, relação jurídica, a distinção entre direitoe moral, os ramos do direito, etc. Diferente é a filosofiajurídica não-acadêmica, que se mostra mais preocupadacom os problemas oriundos da prática jurídica, independentes de conceitos de ordem geral. O aplicador dodireito muitas vezes se depara com problemas que dificultam a escolha da norma certa para o caso certo, bem comoa escolha do conteúdo certo para aquele caso. Quando háum compromisso com a justiça, invariavelmente fracassa ométodo lógico-dedutivo, pois a individualização do direitonão segue as regras do silogismo, em que a premissa maiorestá representada pela norma geral, a premissa menor pelaverificação dos fatos e a conclusão como sentença. Algumas vezes, inclusive, isso é totalmente impossível, como,por exemplo: diante de situações de lacuna em que nãoexiste lei específica para o caso; nos casos de antinomia,em que o juiz se depara diante de duas ou mais leis conflitantes e de mesma hierarquia; quando a simples operaçãomecânica leva a uma flagrante injustiça, o que ocorre quando o juiz, comprometido com a eqüidade, vê-se diante da
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necessidade de torcer a lei ao máximo para simular umaoperação lógica. Seriam exemplos de situações que mostram a insuficiência da lógica tradicional para o direito.
Sobre o valor segurançaJ frente ao problema da justiçaJRecaséns Siches anota:
El Derecho es seguridad; pero, seguridad en qué?: seguridad en aquello que se considera justo y que a la sociedadede una época le importa fundamentalmente garantizarJ porestimarIo ineludible para sus fines. [... ] Lo que el derechodebe proporcionar es precisamente seguridad en lo justo.
[... ]
Lo que el Derecho puede ofrecernos es sólo un relativogrado de certeza y seguridadJun mínimum indispensable decerteza y seguridad para la vida social. 293
A filosofia não-acadêmica éJ portantoJ aquela que temcomo objeto questões relativas à interpretação e à aplicação do direito J e que tem na hermenêutica sua questãofundamental. Nesse sentido Recaséns Siches aponta paratrês níveis de problema: (l) o problema de se descobrirqual a norma válida para o caso controvertido; (2) o problema de converter os termos gerais da lei ou do regulamento em uma norma singular e concreta para o caso particular debatidoJde modo que nesta norma individualizadase cumpra o propósito que inspirou a regra geral; (3) oproblema de eleger o melhor método de interpretaçãopara tratar o caso concreto J para não falar nos casos maiscontundentes de lacuna e de antinomia. Com isso o autordeixa claro que uma de suas principais preocupações écom o método: um método capaz de encontrar a soluçãojusta para o caso singular.
293. Nueva filosofla de la interpretación dei derecho, p. 15.
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EI análisis crítico de esta cuestión gira en torno aI método para determinar el contenido de las normas particulareso singulares de la sentencia judicial y de la resolución admi-nistrativa.294
Notamos que os problemas apresentados acima dizemrespeito, antes de mais nadaJ à questão da certezaJmesmoadmitindo-se a obrigação que o direito tem com relação àjustiça. E não é irrefletidamente que Recaséns Siches procura um métodoJe aindaJum método axiológico. SeJ porémJconsiderarmos que no direito não existem certezasJ masapenas situações de consensoJ estas questões não se transformariam em falsos problemas? Pensamos que sim, masnão nos precipitemos em retirar qualquer tipo de conclusão sobre a obra de Recaséns Siches, pois isso não é tãofundamental quanto o seu alerta para a insuficiência dométodo lógico-dedutivo diante do compromisso do direitocom a justiçaJ mais especificamenteJ com a justiça social.Outro grande mérito do autor J além de sua tamanha erudição
Jé a chamada que faz à filosofia para arcar com o ônus
da busca dessa nova racionalidade jurídica.Recaséns Siches procura efetivamente uma lógica pró
pria para as questões humanas. Veremos que o seu pontode partida encontra-se na praxis: o campo das deliberaçõeshumanas, como o faz Perelman. Por não ser arbitrário, oagir humano possui uma razão própria; encontra,-se so~ .aégide do logos do humanoJ que é o logos do razoavelJ mtIdamente diferente da lógica referente à explicação dos fenômenos da natureza. Além da ética e da prudênciaJ quemarcam o fazer humanoJsabemos que suas obras são dotadas de sentido; sentido este que se encontra referido a de-
294. Idem, p. 30.
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I1',11
terminadas finalidades, imaginadas por quem as faz ou porquem as interpreta.
Dentre as criações humanas damos destaque, obviamente, às leis. Recaséns Siches define a norma jurídicacomo um pedaço de vida humana objetivada. Diz ele:
Sea cual fuere su origen concreto (consuetudinario, legislativo, reglamentario, judicial, etc.), una norma jurídicaencarna un tipo de acción humana que, después de habersido vivida o pensada por el sujeto o los sujetos que la produjeron, deja un rastro o queda en el recuerdo como unplan, que se convierte en pauta normativa apoyada por elpoder jurídico, es decir, por el Estado. 295
De acordo com Recaséns Siches, a norma consiste emum objetivo, historicamente possível, buscado pelo legislador. Toda lei tem um porquê, um objetivo ou uma finalidade, já nos dizia Jhering. No entanto, tratando-se de umaprescrição que se pretende permanente, a lei será aplicadaem momentos futuros, e compete a quem couber aplicá-lareviver os pensamentos nela depositados. Revivê-los, nosentido dado por Recaséns Siches, é levar o pensamentodo legislador à realização efetiva da conduta conflituosa. 296
295. Idem, p. 135.296. Esta nota de Recaséns Siches nos remete ao método históricoevolutivo, ou subjetivo-objetivo como ele chama, que surge no âmbitodo historicismo alemão, quando se pretende que o intérprete se ponhano lugar do legislador, deixando fluir em si o espírito daquele; decidindo como se o legislador decidisse se estivesse presente. De fato,encontramos em sua obra a seguinte defesa: "Esos otros seres humanos, aI cumplir una ley, aI dictar y ejecutar una sentencia, reviven lospensamientos depositados en aquellas normas. Los reviven no sólovolviendo a pensar esos pensamientos, sino que además los revivenpráticamente llevando tales pensamientos a realización efectiva en laconducta." Sem dúvida, trata-se do reviver do legislador ou do trans-
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No estudo em exame, é dada significativa ênfase àquestão da concretização do direito, uma vez que as obrashumanas não existem na sua virtualidade, sendo-lhes intrínseca uma finalidade de caráter concreto. Possuem,portanto, um sentido que deve ser compreendido porquem delas venha a fazer uso. Para o direito, a razão quenos leva a identificar esta compreensão é a mesma que nospermite dominar o problema, oferecendo-lhe um~ ~oluçãojusta, que seria a solução correta para o caso espeCIfICO. Deacordo com Recaséns Siches, é necessário descobrir as notas ou características essenciais dos objetos humanos paraque saibamos o método que devemos aplicar para conhecêlos. O autor volta-se, assim, para explorar uma nova parteda lógica, que ele chama de lógica do humano.297
Toda obra cultural não é valor puro, diz ele, mas açãohumana, ou o produto desta ação. Devemos, portanto,considerar também a norma jurídica como um produtohistórico, intencionalmente referido a valores. No entanto, verifica-se que os valores aos quais Recaséns Siches serefere são, na verdade, os valores do legislador. Senão vejamos o que nos fala a respeito dos fins objetivados na lei:
Tal significación consiste precisamente en que ~sas
obras deI hombre han nacido aI estímulo de unas determmadas necesidades, sentidas de peculiar manera en cierto momento en una cierta situación histórica. Bajo la presión detales n~cesidades, los hombres, usando su imaginación, tratan de buscar mentalmente algo, que si existise real y efectivamente en la actualidad, colmaría aquellas necesidades.Cuando por fin se deciden por alguna d.e las posibilida.desque su imaginación ha explorado para satlsfacer la neceslda-
porte do seu pensamento para o outro momento. Cf. Nueva filosofíade la interpretación del derecho, p. 136.297. Idem, p. 137.
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de que sienten, para resolver el problema con el que seenfrentan, entonces ponen ese algo como finalidade, comometa. Después de la elección de ese fin, se lanzan a buscarlos medias que sean a la vez adecuados y eficaces para lograrla realización de tal fin. 298
Teríamos a observar, ainda, que da mesma forma comoJhering introduziu no direito a idéia de fim, como o fimalmejado pelo autor da lei, Recaséns Siches mantém-seadstrito à visão do legislador originário. Ao contrário, atéos simpatizantes da teoria de Kelsen vêem a lei como umamoldura que encerra algumas interpretações possíveis,cujo único critério é o da validade objetiva, sem se renderem à chamada "vontade do legislador".
Independente da vontade da lei ou da vontade do legislador, o processo de individualização das leis nas decisõesjudiciais refere-se, mais especificamente, à sua concretudee à sua temporalidade. Este é o ponto fundamental paraRecaséns Siches. O autor descreverá a falibilidade do método cartesiano-silogístico a partir da sua incapacidade emprocessar a passagem da norma geral para uma condutaparticular. O resultado deste processo, escreve ele, é o queconstitui o reviver atual da norma característico do direito.
EI cumplimiento de una norma general en cada casoparticular no consiste en un reproducir la norma general,sino en un adaptar la pauta general por ella seiialada a cadacaso singular; consiste en cumplir de modo concreto en laconducta singular el sentido formulado en términos genéricos y abstratos por la norma general.299
Em sua dimensão dinâmica, o direito conjuga as normas jurídicas com a realidade social, sempre em renova-
298. Idem, p. 139-40.299. Idem,p.14I.
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ção, e a norma serve de critério para a ação ulterior. Nestesentido, o que interessa a Recaséns Siches não é tanto alógica formal que serve à Teoria Geral do Direito, mas alógica material, própria do seu aplicar.
Tratar formas a priori, esta es, esencias necesarias y universales, por métodos de lógica, gnoseología y ontología formales parece sin duda adecuado y correcto. En cambio, resulta superlativamente discutible, con seguridad gravemente erróneo, aplicar esos mismos métodos aI tratamiento delos contenidos jurídicos, de la materia jurídica, que es unarealidade empírica que se orignó en cierto lugar y en ciertotiempo, aI conjuro de unas necesidades históricas y en vistade ciertos fines particulares.3oo
As falhas da lógica tradicional, que se posiciona sob ofetichismo da generalidade da norma, diz ele, impedemnos de ponderar os elementos relevantes de cada casoconcreto e impedem também que se crie uma normaindividualizada pertinente e devida para cada situação específica.
Com a idéia inicial de lógica material, Recaséns Sichesse posiciona junto a autores como Viehweg e Perelman.Recaséns Siches não enfrenta propriamente a questão metodológica proposta pela tópica aristotélica, resgatada porViehweg, e nem a retórica, retomada por Perelman, queadotam, como base de raciocínio, opiniões ou "lugares comuns". Essas bases de verossimilhança, e não de verdades,levam à formulação de um raciocínio opinativo, que guardaforça apenas em seus argumentos, ao contrário da razãomatemática, que se apóia na certeza das inferências retiradas das premissas e que levam a uma solução correta. Nãoobstante, tanto a possibilidade de se estabelecer um racio-
300. Idem, p. 144.
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cínio não-sistemático, à medida que se privilegia o problema - o fragmento, em lugar do todo -, e também a possíbilidade de, com o auxílio da tópica, iluminar o problemasob os seus diversos ângulos, são aproveitadas por Recaséns Siches. Na realidade, seria esta a grande contribuição do autor: buscar, a partir do problema, a axiologia dodireito.3D!
Recaséns Siches segue a esteira da "jurisprudência dosinteresses" e da "jurisprudência sociológica", influenciadoque é pelo pragmatismo norte-americano. Certamente,diz ele, os juízes, ao privilegiarem os efeitos concretos dodireito na sociedade, muitas vezes se vêem díante da necessidade de dissimular a lei para fazer justiça, ou pelo menos evitar a injustiça. Mas, para escapar de qualquer tipode crítica ou acusação em virtude de terem agido arbitráriaou negligentemente, ameaçando a ordem e a estabilidadesocial, precisam elaborar uma justificativa que apresente
301. Favorecendo o raciocínio a contrário senso, vale destacar a passagem de Nicolai Hartmann que define o pensamento sistemático também assumido por Recaséns Siches: "EI modo de pensar sistemáticoparte da la totalidade. Aquí la concepción es lo primero y sigue siendolo dominante de modo decisivo. Aquí no se pone en cuestión el puntode vista. Por el contrario, el principio básico es aceptado ante todo,desde un comienzo, necesariamente. V, partiendo de ese principio, deese punto de vista, base dei sistema, son seleccionados los problemas.Aquellos problemas que no resulten compatibles con el punto de vistabásico de ese sistema son rechazados. Se los considera como cuestiones mal planteadas. No es que se prejuzgue o se predetermine nadasobre la soluci6n de los problemas mismos; pero, en cambio, sí sobrelos límites dentro de los cuales puede moverse la solución." NicolaiHartmann, Diesseíts von idealismus und realismus, Kant-Studien,XXIX, 1924, apud Recaséns Siches. Nuevafilosofía de la interpretación deI derecho, p. 159.
Ao contrário do pensamento sistemático, em que se permite aceitar problemas, o assistemático ou tópico parte do problema em procura de um sistema.
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\ uma aparência lógica e que seja, portanto, convincente. O, que Recaséns Siches almeja é que os juízes possam agirsem culpa; fazer justiça sem culpa, "sob a luz do meio-dia".Para tal bastaria que assumissem a seguinte posição ou aseguinte premissa em suas atividades ou funções, apresentada em tom de advertência:
Adviértase que e1 derecho positivo no es un conjunto depalabras, ni es un sistema de conceptos que puedan derivarse por las vías deI razonamiento deductivo. Por el contrario,el derecho positivo es la justa interpretación de las normasvigentes. 302
o pensamento de Recaséns Siches é francamente amparado no depoimento dos juízes norte-americanos, e particularmente na filosofia de John Dewey. Ele admira a valentia de alguns juízes, os "bons juízes", por não se renderem às limitações impostas pelo silogismo formal, comprometendo-se, antes, com a realidade social: os interessesem causa, os valores socialmente reconhecidos, os padrõesde eqüidade, bem como o grau de utilidade e alcance desuas sentenças. Juízes que agem com prudência, avaliandoe ponderando previamente os efeitos concretos de suas decisões. E é na prática judiciária retirada da experiência vivida pelos juízes que observamos, segundo Recaséns Siches a presença da lógica do razoável.
De fato, a sentença judicial traz sempre algo de novO eé, por isso, criativa. No processo de individualização dasnormas, o que era geral e abstrato torna-se particular econcreto quando adjudicamos direitos e/ou prescrevemoscondenações.303 Para a norma geral "quem causar dano a
302. Nueva filosofía de la interpretación deI derecho, p. 173.303. Segundo Recaséns Siches, a sentença é a norma jurídica perfeita,pois vincula determinados direitos e obrigações a partes determina-
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~.._------------------_....---
II,
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outrem será obrigado a ressarci-lo proporcionalmente",podemos concluir que x causou dano a y e portanto deveráindenizá-lo no v~lor do montante z. Recaséns Siches falaem casos fáceis e casos difíceis. Os primeiros são aquelesem que é fácil identificar a norma e aplicar a pena, ao passoque, em outros, a verificação dos fatos e a identificação danorma podem ser complicadas, dificultando a construçãoda decisão. Estes seriam os casos de lacuna, antinomia eflagrante injustiça. De toda forma, diz Recaséns Siches, oproblema de se identificar qual é a norma positiva aplicável ao problema concreto não é meramente um problemade conhecimento de realidades, mas um problema de valoração. O autor estaria propondo, como método de interpretação, então, o que atualmente conhecemos como método axiológico.
Lo que el juez hace ordinariamente, y eso es lo que debehacer, consiste en investigar cuáles son los criterios jerárquicos de valor sobre los cuales está fundado y por los cualesestá inspirado el orden jurídico positivo, y servirse de ellospara resolver el caso sometido a su jurisdicción.304
das, alcançando, com isso, maior grau de eficácia do que as leis gerais.Dessa forma, são também criadoras, pois que contêm ingredientesnovos não encontrados na norma geral. Cf. Introduci6n al estudío delderecho, p. 195 e segs.304. Nueva filosofía de la ínterpretacíón del derecho, p. 235.
Verificamos, no entanto, como o método axiológico-teleo16gicoproposto por Recaséns Siches cinge-se à "vontade do legislador": "Latarea dei legislador, cuando elabora y promulga una ley, no es un laborde conocimiento, sino que es un acto de voluntad, basado en las valoraciones que adoptó. EI legislador dicta su norma, precisamente porque estima que los efectos que la misma producirá, ai ser proyectadasobre la realidade social, serán buenos. Lo que decide ai legislador adictar la norma que él establece es precisamente el juicio favorableque le merecen esos efectos que él mentalmente anticip6.
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Por outro lado, o processo de reconhecimento do fatocomo jurídico, tendo por pauta a lei, na realidade é inspirado por uma espécie de intuição do juiz sobre o que é justopara o caso. Essa intuição corresponderia a uma convicçãoque se forma de modo direto e não em virtude de um raciocínio, diz Recaséns Siches.30s Tomado desta convicção este é um ponto importante de sua teoria e diz respeito diretamente à questão do método -, o juiz parte para formulara sua fundamentação. Vejamos o que diz o autor:
Y, es más, de ordinario la mente deI juez primero anticipa el fallo que considera pertinente y justo - claro es quedentro dei orden jurídico positivo vigente -, luego busca lanorma que pueda servir de base para esa solución, y da a loshechos la calificación adecuada para llegar a dicha conclusión.
Suele ocurrir que el juez, a la vista de la prueba y de losalegatos, se forma una opinión sobre el caso discutido, unaespecie de convicción sobre lo que es justo respecto de éste;después busca los principias, es decir, las normas jurídicasque puedan justificar esa su opinión, y articula los resultados de hecho de modo que los hechos encejen dentro de lacalificación jurídica que justifique el fallo que va a dictar.306
Ahora bien, precisamente por esto, el juez, para averiguar cuálentre las normas dei orden jurídico positivo, ai ser aplicada ai casoplanteado, produciría en concreto efectos análogos a los que ellegislador se propuso en términos generales, o, mejor dicho, efectos análogoshacia los cuales apuntan intencionalmente los criterios axiológicos queinspiran el orden jurídico positivo." Nueva filosofia de la ínterpretaci6n del derecho, p. 236.305. A propósito, o autor cita a origem etimológica da palavra latina"sentença": vem do verbo "sentire", é dizer, experimentar uma espécie de emoção, no caso, uma espécie de intuição emocional. Cf. Nueva filosofía de ia interpretaci6n dei derecho, p. 245.306. Nueva filosofía de la interpretacíón dei derecho, p. 241-2.
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Entretanto, sentimos falta nos escritos de Recaséns Siches de algo sobre a formulação dessa antecipação de sentido feita pelo juiz, e que se dá dentro do sistema: corresponderiam a algum tipo de pré-juízo? a opiniões amplamente aceitas ou topoi? ao princípio da inegabilidade dospontos de partida, que orienta a dogmática jurídica? Suaresposta é simplesmente a de que a intuição do juiz fundase sobre a lógica do razoável: .. Se trata de una intuición,pero de una intuición que revela algo que es objetivamenteválido, cuyo fundamento radica en ellogos de lo humano ode lo razonable. "307
No entanto, ao indagar sobre a base de sustentação dasjustificativas construídas pelo juiz, explica que:
Una vez elegidas las premissas, la mecánica silogísticafuncionará con toda facilidade. (... ] La lógica formal de lainferencia, pero no suministra ningún criterio para elegirentre las varias premisas que sean posibles. Ahora bien, es eljuez quien tiene que decidir la elección de la premisa mayor,sobre la cual vaya a fundar su sentencia, si es que se presentael problema de que haya más de una premisa posible, cadauna de ellas válida en el ordenamiento jurídico positivo.308
Sobre a questão da essência da função judicial, que seampara no logos do humano ou nos logos do razoável, oautor nos remete para o problema da interpretação. A di-
307. Idem, p. 247.308. Idem, p. 237.
Neste ponto, Recaséns Siches se apóia na "lógica experimental" deJohn Dewey, filósofo norte-americano, quando este escreve sobre aestrutura da sentença. Nas palavras de Recaséns Siches: "El problemade formular una sentencia consiste en encontrar un principio generaly un hecho o hechos particulares, que sean capaces de servir de premisas (mayor y menor respectivamente)." Cf. Nueva filosofía de lainterpretación dei derecho, p. 247.
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mensão criadora de Recaséns Siches, por sua vez, remetenos à questão da valoração, que se dá na escolha dos fatose das normas. O método aplicável, segundo Recaséns Siches, é o método que leva o juiz à interpretação mais justa,309 mas infelizmente não se aprofunda na questão dométodo valorativo, limitando-se a afirmar que:
Para formarmos una idea sobre el procedimiento de interpretación que debamos aplicar a un caso concreto, esmenester que antes hayamos logrado formarnos el juicioque consideramos correcto, es necesario que hayamos anticipado mentalmente el fallo que estimamos justo. Y entonces es sólo a posteriori, es decir, después de habernos formado ese juicio, cuando descubrimos cuál es el procedimiento mental que nos condujo a dicho juicio. EI métodocorrecto es el que en ese caso nos llevó a la solución queconsideramos satisfactoria.3lo
Com alguma dose de ousadia, e com toda a licença parafazê-lo em sua ausência, relacionamos a lógica do razoável,de Recaséns Siches, ao q.ue poderíamos denominar de método intuitivo-silogístico.
. 3.3 A contribuição de Castanheira Neves: o direito comoprática e a analogia como método
O trabalho de Castanheira Neves, intitulado Metodologia jurídica, insere-se no que já podemos chamar de tradição tópica ou pós-positivista. A recuperação da tópica aristotélica, conforme inferimos do trabalho de Castanheira
309. Cf. Nueva filosofía de la interpretación dei derecho, p. 181 e182.310. Idem, p. 183.
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Neves, corresponde à atual posição de contraponto da filosofia do direito diante da tradicional postura formalistaque concebe o direito de forma auto-suficiente. De acordocom a postura tradicional, o ordenamento jurídico, na qualidade de um sistema, basta a si mesmo. Toda realização dodireito é por ele determinada, bem como todo o seu significado. 311 Logo, na medida em que o sistema serve comoreferencial único ao processo de interpretação e aplicaçãodas leis, a hermenêutica deve cingir-se a um âmbito conceitual próprio, que encontra seus limites previamente fixados. Essa noção extremada de limite é o que nos leva aaproximar tal forma de entendimento com o positivismo,que só se preocupa com os mecanismos de reconhecimento de validade da lei posta pelo Estado ou pelas autoridades competentes. Ao contrário, o que procuramos agora éentender o direito a partir, também, de uma ótica externaao sistema, isto é, a partir do problema submetido à decisãojudicial que, por sua vez, encontra-se referenciado poruma série de outros fatores que não apenas os conceitos eos possíveis valores extraídos da lei simplesmente. O problema procura uma solução à qual o direito deve servir,atendida toda sua complexidade. Não se quer, com isso,abandonar a figura do sistema, mas, apenas, arejar seuscontornos, para que respire o ar da realidade e dos valoresque orientam o que-fazer humano. Para a solução jurídica,portanto, não podemos nos valer do silogismo categóricoque subsume o fato, como premissa menor, à lei (geral),que é a premissa maior, obtendo-se do resultado dessaoperação a solução do problema. Não. Considerado o Direito como uma prática, porque pretende ser realizado na
311. Castanheira Neves, pautando-se em Hruschka, no Digesta, falada "teoria da imanência do 'sentido' no direito positivo". Cf. p. 352.
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solução do conflito, o seu método também há de ser vistocomo uma prática.
É justamente este o sentido dado por Castanheira Neves ao seu trabalho, cujo título, Metodologia jurídica, mostra-se, por si só, bastante sugestivo. O autor acompanha,com maestria, o debate da vanguarda do pensamento jusfilosófico contemporâneo: enfrenta o problema da metodologia jurídica e acaba propondo um modelo para a realização do direito, baseado na analogia. Inicia seu estudo apresentando uma distinção entre método e metodologia. Ométodo corresponderia ao "caminhar para", enquanto ametodologia, ao "pensar sobre esse próprio caminhar". 312
Mas ambos os significados inserem-se no conceito de umaprática, que seria a prático-problemática realização do direito. Com Larenz, o autor entende que a metodologia jurídica é a "auto-reflexão" da jurisprudência, cabendo-lherefletir criticamente antes sobre a prática de uma normatividade assumida e realizanda, em lugar de buscar-se o conteúdo próprio e imanente ao direito. 313
Castanheira Neves nos apresenta três tipos metodológicos: o prescritivo, o descritivo e o crítico-reflexivo, posicionando-se ao lado deste último.314 Ao lagos prescritivocorresponde uma relação de exterioridade entre sujeito eobjeto, ainda que o objeto seja uma ação. O pensamentoapresenta-se, assim, como um instrumento ao dispor dosujeito, ou "um conjunto de procedimentos intelectuaisordenados segundo um plano racional preestabelecidoaplicáveis a um dado domínio em vista de um certo fim" .315
O lagos descritivo corresponde à relação de imanência
312. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 9 e 10.313. Idem, p. 17.314. Idem, p. 10 e ss.315. Idem, p. 13.
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constitutiva entre o sujeito e o objeto, porquanto o raciocínio constitui-se por meio e como resultado de uma prática,numa intencional unidade de razão. E, por fim, o logos crítico-reflexivo, correspondente à relação de reconstruçãocrítico-reflexiva referida aos sentidos fundamentantes encontrados na justificação de uma prática, e atribuídos àrazão des~a própria prática. Daí atribuir à metodologia jurídica a característica de um pensamento prático, "enquanto assume os problemas de uma prática: a práticoproblemática realização do Direito" .3!6
Deste modo podemos definir o pensamento práticocomo aquçle que se compromete diretamente com problemas, uma vez que é chamado a resolvê-los. E com issoabandonamos a idéia de direito como simples aplicação denormas, conforme a concepção tradicional, em prol daidéia de que o direito se constitui num verdadeiro ato decriação normativa que se dá a cada caso concreto. SegundoCastanheira Neves, a lei contém uma intenção normativojurídica vinculante que deve ser buscada para a sua realização. Mas este realizar, que corresponde a um ato de criação, não é automático, como um mecanismo lógico, e independente da vontade de um terceiro mediador. Para o autor, o direito caracteriza-se, precisamente, pelo fator damediação.3!7 Caberá, então, a um modelo metódico adequado definir essa "terceira via" ou esse tertius modus, responsável último pela realização e criação do direito. Tratase, na verdade, de um mecanismo de juízo e decisão, independente de qualquer atributo de subjetividade, uma vez
316. Idem, p. 15.317. Castanheira Neves, no Digesta, ao discriminar exegese e interpretação, explica que exegesis ou explicatio significa mera explicação,enquanto interpretação vem de inter-pres, que denota necessária mediação. Cf. Digesta, vol. 2, p. 342.
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. que o alcance da mediação limita-se a reconhecer um pensamento racional.
A mediação possui duas dimensões: a primeira corresponde à fundamentação objetiva da decisão, favorável àatividade de controle, enquanto a segunda é relativa à natureza própria do ato mediador, que constitui o juízo e adecisão.
A decisão, na qualidade de opção resolutiva comandada pela ratio e pela voluntas, afasta, por força desta última,qualquer caráter de apoditicidade ao juízo jurídico, sendosustentada, em última instância, apenas pelo poder de potestas. Em termos de legitimidade, só lhe cabe uma justificação prática; uma fundamentação argumentativa, suscetível de lograr a plausibilidade ou a aceitabilidade de sua"evidência" prático-argumentativa no contexto comunitário em que se encontre vinculante.3!8
318. Cf. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 32-3.Sobre a formação da evidência por meio do discurso legitimador
que se utiliza da argumentação e do consenso, escreve Baptista Machado: "Daí que em dados casos, se possa formar um consenso, um"consensus iuridicus". Esse consenso não exprime apenas a "communisopinio doctorum": exprime também a coincidência com aquela "consuetudo socialis" ou com aquela "racionalidade" emergente do debatesocial global. Tal consenso desempenha no discurso a função da evidência - da evidência que fixa os limites da "discutibilidade", quedetermina o ponto a partir do qual qualquer nova argumentação setoma dispensável e supérflua. É o ponto em que o discurso legitimador (ou a argumentação) se fecha em círculo sobre si próprio, tomadoda vertigem da evidência necessitante da "lógica da coisa": necessitante pelo menos no sentido de que esbarra com os limites daquele determinado universo de sentido, com a linha de fronteira para além daqual se entra no espaço vazio de organização e no campo do contrasenso." J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, p. 313.
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o juízo, segundo Castanheira Neves, consiste naquele"geral-concreto" que traz ao direito o seu verdadeiro sentido e a sua realidade, constituindo-se no fator capital dessarealização.319 Destarte, o juízo participa de um discursoque mobiliza raciocínios. O discurso aparece como a mediação estruturada do pensamento, enquanto o raciocíniofigura como o elemento concludente do discurso conduzido por uma relação lógica: dedutiva, indutiva, analógica,etc. Dessa maneira, o juízo jurídico reconduz a decisão àfundamentação exigível pela racionalidade, enquanto a razão faz pressupor a fundamentação e a justificação combase em critérios que lhe conferem objetividade. Logo, "seno juízo se constitui e se exprime uma fundamentação,esta fundamentação implica critérios sobre os quais ela seobjetiva" .320
Castanheira Neves recorre a Max Weber quando estedistingue como elementos da racionalidade a sua respectiva "capacidade de fundamentação", bem como a "criticibilidade" a que o pensamento se sujeita. Daí que o direito,como campo de normatividade vinculante, tem, na sua validade, o fundamento do discurso que a decisão mobiliza.Caberá assim à interpretação determinar o sentido normativo, de sorte que obtenha dele um critério jurídico no âmbito da problemática realização do direito. De acordo comCastanheira Neves, a questão não é apenas buscar um sentido, ainda que jurídico, na lei, mas buscar a possibilidadede vinculação existente na sua dimensão intencional e jurí-
319. Para Miguel Reale, o juízo é o predicado acrescentado ao objeto,quando se afirma que algo éassim; o que não deixa de ser uma individualização concretizadora. "Juízo é o ato mental mediante o qual seconfere um atributo ou predicado a determinado ente." Miguel Reale.Introdução à filosofia, p. 13.320. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 33.
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dica, ou seja, buscar a "norma da norma", como critérioprático-normativo adequado à decisão. O critério normativo é, então, oferecido pela mediação da interpretação. 321
Por fim, Castanheira Neves apresenta-nos um modelode construção do raciocínio jurídico baseado em duas grandes coordenadas: o sistema e o problema. O problema refere-se ao caso decidendo, e funciona como prius metodológico que se apresenta sob a forma de uma pergunta. A pergunta, por sua vez, corresponde a uma situação de obstáculo, perplexidade ou dúvida, que por si só pressupõe maisde um resultado. Podemos dizer que o problema provoca osistema inerte, como também provoca a ação das autoridades competentes para dirimi-lo. O texto legal, à sua vez,reflete uma intenção Qurídica), que deverá ser vista emfunção de sua realização. Para efeitos da hermenêutica jurídica, busca-se interpretar a realização de uma intençãonos seus valores e nos seus fins possíveis, porque apresentados também sob a forma de problemas pressupostos emabstrato.
A relação dialética assumida entre a intencionalidadenormativa e a realidade problemático-decidenda faz comque, em função do caso, se interroguem interpretativamente as normas jurídicas aplicáveis, que consistem na-
321. O autor, com referência à concretização do Direito, traça umadiferenciação entre hermenêutica e interpretação. A primeira seriacaracterística do pensamento jurídico tradicional, que, apesar de adotar técnicas avançadas como a teleológica e a axiológica, volta-se comexclusividade para o sistema; e a segunda, característica da tópicapós-positivista, que direciona toda a sua busca interpretativa do problema, para o problema. Enquanto a hermenêutica serve apenas comomediação do significado, ou explicitação do sentido em termos exegéticos, a interpretação determina o sentido para obter dele um critériojurídico no âmbito de uma problemática realização do direito. VideMetodologia jurídica, p. 74 e ss.; 83 e ss.
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quelas capazes de servir como critério normativo-jurídicopara a solução-decisão, conforme nos diz Castanheira Neves. Mas, para tanto, primeiro devemos proceder à compreensão e determinação do caso que põe um problemajurídico numa certa situação histórico-social, medianteprévio saber jurídico oferecido pelas normas, pelos precedentes e pela doutrina, da seguinte forma: "Conjuga-seuma intenção normativa geral ou de validade com uma situação concreta, enquanto fundamenta naquela intenção apergunta. "322 Ou seja: o critério que a índole concreta doproblema justifique tem de ser procurado no âmbito e nohorizonte do sistema jurídico; o sistema oferece os fundamentos jurídicos disponíveis, enquanto a solução tem deser assimilável pelo sistema jurídico. Logo, para Castanheira Neves, o fundamento de validade tem de ser encontrado no sistema e não nos efeitos da decisão. O autor aproveita para fazer severa crítica ao realismo jurídico, queapresenta como critério de validade da razão jurídica osefeitos provenientes do resultado concreto da questão decidenda. Para ele, o resultado não deve ser tomado comocritério, mas como objetivo e sentido. O resultado da decisão atuaria na imanência intencional da juridicidade enquanto campo axiológico da normatividade jurídica.323
Com isso Castanheira Neves apresenta sua proposta demodelo para a realização do direito, que tem como fundamento a analogia. Analogia existente entre os problemasde "tipo abstrato", pressupostos, e os problemas concretos. A índole dos problemas, segundo ele, tem de ser a
322. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, p. 162.323. Na verdade, o autor tangencia a questão da juridicidade por acreditar que ela se insere no domínio da exterioridade subjetiva; da manifestação da autonomia e da liberdade pessoal. Cf. páginas 231 e 232do livro Metodologia jurídica.
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mesma, entendendo-se por índole a relevância materialque a hipótese e o caso apresentam. Mas é a analogia entreos casos o que, em última instância, possibilita a adaptaçãoda norma à situação concreta, tomada como semelhante.
Como vantagem acredita que a analogia jurídica, alémde atender ao princípio da igualdade, transforma os riscosaceitáveis e a incerteza em expectativas razoáveis, permitindo a continuidade consistente da ordem jurídica. A analogia não tem fundamento na lógica, diz ele; trata-se desemelhança que intenciona, quando muito, apontar parauma probabilidade. De um exemplo ou de alguns exemplos inferir-se-ia uma regra ou um princípio do qual poderia ser deduzida uma solução para o caso decidendo. A pretexto, podemos afirmar que a índole do juízo analógico éargumentativa: argumento a partir do exemplo, como expõe Perelman.324
Além disso, outros fatores que orientam e dão validadeà decisão jurídica, além do argumento, seriam, para Castanheira Neves: o momento material, como referência condicionante à realidade histórico-social; o espírito do sistema,que se revela em torno dos princípios da ordem jurídicapositiva, reconhecidos como fundamentos imediatos dasua particular normatividade; a consciência jurídica geral,como síntese de todos os valores e princípios normativosque, em determinada comunidade, dão sentido fundamental ao direito.
324. Perelman traz o exemplo como um tipo de argumento que fundaa estrutura do real. O raciocínio pelo exemplo ou pelo modelo leva àcriação da regra, ou seja, passa-se de um caso particular a outro, edesse outro à regra. Vide Tratado da argumentação e O império retórico.
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Capítulo 4
A NOVA RETÓRICA DE CHAiMPERELMAN
Uma das maiores expressões na filosofia do direitocontemporânea é Chalm Perelman. Professor de lógica daUniversidade Livre de Bruxelas, Perelman trouxe importante contribuição para a filosofia e, particularmente, paraa metodologia do direito, mediante o estudo que desenvolve sobre a retórica como teoria da argumentação.325
325. Chalm Perelman nasceu na Polônia em 1912, seguindo, poucosanos mais tarde (1925), para a Bélgica, onde fez brilhar o nome daUniversidade Livre de Bruxelas. A partir de seus estudos na área dalógica e da filosofia do direito, em 1945, traz a público um trabalhomarcante em sua carreira: De la Justice. Prosseguiu com outras publicações: Rhétorique et Philosophie: Pour une théorie de l'argumentationen philosophie (1952 - em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca), Justice et Raison (1963), Traité de l'Argumentation (1958),Droit, Morale et Philosophie (1968), com a 23 edição revista e aumentada em 1976, Le Champ de L'Argumentation (1970), Logique juridi.que: Nouvelle Rhétorique (1976), L'empire rhétorique: rhétorique etargumentation (1977), até sua última obra, publicada em 1984, pouco
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Segundo Michel Meyer, prefaciador de um de seusprincipais livros, a Retórica ressurge sempre em períodosde crise, como aconteceu com a derrocada do mito entreos gregos, que coincidiu com o grande período sofista. Aimpossibilidade de se fundar a ciência moderna e a suaapoditicidade matemática diante do predomínio da escolástica e da teologia na Idade Média, levou também a retomada da retórica clássica pelo Renascimento. Hoje, o fimdas grandes explicações monolíticas, das ideologias e, maisprecisamente, da racionalidade cartesiana, assinala também o fim de uma certa concepção de logos. 326
Essas grandes explicações monolíticas, referidas porMeyer, têm, na realidade, como base, a teoria do métodode Descartes, fundamentada na crença do pensamentolinear estabelecido pelo more geometrico. Para ilustraresta afirmação, reproduziremos as próprias palavras deDescartes:
antes de falecer: Le Raisonable et le Déraisonable en Droit: Au-delàdu positivisme juridique.
Sobre a Escola de Bruxelas nos fala Rui Alexandre Grácio: "Achamada 'Escola de Bruxelas' reside na convergência do movimentocrítico ao racionalismo clássico, oriundo particularmente de três pensadores: Eugene Dupréel (1879-1967), Chalm Perelman (19121984) e Michel Meyer. O elemento de ligação entre os três poderiaser considerado o pluralismo: a tematização de uma nova racionalidade intrinsecamente pluralista, no dizer de Grácio. Dupréel trabalhacom a sociologia na qualidade de disciplina fundamental para a compreensão do homem; Meyer, com as questões relativas à argumentação e à retórica à luz de uma concepção problematológica da linguagem; finalmente Perelman, com a proposta de um alargamento danoção de razão, dada a primazia do raciocínio prático, que implicavalores." Vide Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa,p.1Se 16.326. Michel Meyer, in Perelman. Tratado da, Argumentação, p. XX.
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1", I"
':~',i:1:,
Havendo apenas uma verdade de cada coisa, quem querque a encontre sabe dela tudo o que se pode saber. [... ] Pois,enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e aenumerar exatamente todas as circunstâncias do que se procura, contém tudo o que dá certeza às regras de aritmética.
[... ]
Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, deque os geômetras costumam servir-se para chegar às suasmais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira, e que, com a únicacondição de nos abstermos de aceitar por verdadeira algumaque não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessáriapara deduzi-las umas das outras, não pode haver nenhumatão afastada que não acabemos por chegar a ela e nem tão
d 'd - d b 327escon 1 a que nao a escu ramos.
Perelman posiciona-se expressamente contra a filosofia da evidência de Descartes. Seu esforço consistiu, justamente, na busca de uma outra dimensão da racionalidadecompatível com a vida prática. Pretendia demonstrar aaptidão da razão para lidar também com valores, organizarpreferências e fundamentar, com razoabilidade, nossas de
cisões. 328
327. Descartes. Discurso do método, p. 23 a 26.328. Segundo Aristóteles, a alma se compõe de duas partes: uma dotada de razão e outra irracional. No primeiro caso, "há duas faculdadesracionais: uma que nos permite contemplar as coisas cujos primeirosprincípios são invariáveis, e outra que nos permite contemplar as coisas passíveis de variação; [... ]. Uma destas duas faculdades racionaispode ser chamada de científica e a outra de calculativa, pois deliberare calcular são a mesma coisa, mas ninguém delibera sobre coisas invariáveis. A faculdade calculativa, portanto, é uma das faculdades daparte da alma dotada de razão." Ética a Nicômacos, 1139 a.
Esse calcular, que pressupõe moderação, refere-se ao conceito de
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Perelman parte do princípio de que o raciocínio valorativo viu-se marginalizado da filosofia ocidental nos últimosséculos, por ter sido equiparado à irracionalidade ou à ausência de razão. Assim era visto porque fugia do modelogeométrico admitido como o único verdadeiramente científico. Mas Perelman percebe que nem tudo se sujeita aocampo da matemática, que exibe como verdade apenasaquilo que é rigorosamente demonstrável ou provadocomo evidente. Admite existir um outro âmbito da existência cujas relações não se sujeita.m ao argumento da indiscutibilidade, qual seja, o das relações humanas. Tratase da práxis ou prática deliberativa conduzida pela açãomoral, relativa à tomada de decisão.329 Decisão esta tida,por seu agente como a mais adequada para determinadasituação.33o
phronesis, traduzido como discernimento. O discernimento é visto porAristóteles como uma forma de excelência, isto é: "Pensa-se que écaracterístico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberarbem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em relação a um aspecto particular [...], e sim acerca das espécies de coisasque nos levam a viver bem de um modo geral." Ética a Nicômacos,1140 a.329. A tomada de decisão à qual nos referimos corresponde à escolhaaristotélica referente à práxis. Aristóteles ensina que "a excelênciamoral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolhaé o desejo deliberado, segue-se que, para que a escolha seja boa, tantoa razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto e estedeve buscar exatamente o que aquela determina. Este tipo de pensamento e de percepção da verdade é de natureza prática. [...] Comefeito, esta é função de toda a parte intelectual do homem, enquantoo bom funcionamento da inteli~ência prática é a percepção da verdadeconforme ao desejo correto". Btica a Nicômacos, 1139 b.330. Alasdair MacIntyre, na análise que faz da visão de Aristótelessobre a racionalidade prática, nos fala do silogismo prático, partindo dadeclaração de qual bem está em questão ao agir e qual a ação que oexige. Neste sentido expõe: "Tal pessoa deve, antes de tudo, ser mo-
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A conduta prática - pensamento dirigido à ação correta _331 comporta mais de um resultado ou mais de umsignificado, conforme a aceitação por uma ou outra escalade valores, e conforme o problema apresentado em umasituação específica. Como toda escolha, a solução adotadacomo conduta a ser assumida despreza outras consideradasmenos favoráveis. A "melhor" conduta será aquela que seapresente como a mais razoável, consoante justificativaconvincente. Perelman procura nos chamar a atenção paraa validade das deliberações humanas ou preferências razoáveis que deixam de ser arbitrárias à medida que se apresentam por meio de justificativas. Não é o caso de se estabelecer uma linha divisória entre o necessário (racional) eo não-necessário (irracional), mas de se incluir no conceitode razão aquilo que é razoável e escapa ao rigor da lógicaformal e da demonstração. A deliberação consta de urnaação válida, porque eticamente correta, ainda que não necessária, e o seu fundamento de validade é dado pela forçado argumento que a justifique dentro de uma concepçãovalorativa. Uma decisão razoável não corresponde ao merosubjetivismo ou à paixão, mas a um outro tipo de racionalidade, intersubjetiva, que se utiliza da técnica argumenta-
vida por uma crença sobre que bem é melhor que realize aqui e agora.Mas para que o fato de ser movido por essa crença seja algo racional,essa própria crença deve ser racionalmente bem fundada; deve sersustentada por razões adequadamente boas. [...] Terá de raciocinar apartir da compreensão do que é bom e melhor como tal, visando auma conclusão sobre o que é melhor para ele realizar aqui e agora nasua situação particular." Cf. Justiça de quem? Qual racionalidade?, p.140 a 144.331. Preleciona Aristóteles que "a origem da ação (sua causa eficientee não final) é a escolha, e a origem da escolha está no desejo e noraciocínio dirigido a algum fim. É por )sso que a escolha não podeexistir sem a razão e o pensamento... ". Btica a Nicômacos, 1139 b.
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tiva e se define pelo consenso. Muito embora o ideal deciência, característico do mundo moderno, tenha excluídodo campo da lógica o pensamento opinativo, não significaque esse tipo de pensamento seja intuitivo ou irracional. Opensamento opinativo é aquele formulado em torno deopiniões comuns e amplamente aceitas em determinadacomunidade; idéias, portanto, admitidas como prováveisna qualidade de verossímeis,332 porque podem ser tomadascomo verdade para efeitos de raciocínio. Perelman percebe que é próprio do homem, enquanto ser dotado de razão,o deliberar e o argumentar, e que a lógica dos modernosabandonou esse aspecto do pensamento devido aos limitesimpostos pelo raciocínio apodíctico. A partir de então,anuncia uma ruptura com o cartesianismo e estabelece,como paradigma filosófico, a concepção relacional e retórica da razão prática. Isto faz com que a razão seja aceitanão do ponto de vista da contemplação, mas do ponto devista da justificação das nossas convicções e das nossas opiniões.333,334
332. A verossimilhança é uma categoria essencial da retórica. Aristóteles, quando fala a respeito das proposições que servem de premissaaos silogismos da retórica, vale dizer, aos entimemas, refere-se a proposições que não são necessárias, mas simplesmente freqüentes e,portanto, possíveis. O verossímil é o que se produz muitas vezes e deum modo relativo: as coisas podem ser assim ou de outro modo. Poderíamos dizer também que o verossímil é uma premissa provável. Funciona como meio de persuasão, na medida em que implica um consenso espiritual sobre os principais parâmetros da vida em sociedade;portanto, o verossímil é o grande padrão. Cf. Dicionário de Retórica.Georges Molinié. Librairie Générale Française, 1992, p. 336.333. Cf. Rui Alexandre Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 22.334. Sobre a obra de Chai"m Perelman cabe destacar o esforço pioneiro, no Brasil, de Paulo Roberto Soares Mendonça, emA argumentaçãonas decisões judiciais, sua dissertação de mestrado publicada pela Editora Renovar.
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Logo no início da introdução ao Tratado da argumentação, que escreve junto com Lucie Olbrechts-Tyteca, Perelman traz as seguintes considerações, que servem de premissa a este seu importante estudo, e que, por tal razão,transcrevemos na íntegra:
A própria natureza da deliberação e da argumentação seopõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, doplausível, do provável, na medida em que este último escapaàs certezas do cálculo. Ora, a concepção claramente expressa por Descartes, na primeira parte do Discurso do método,era a de considerar "quase como falso tudo quanto era apenas verossímil". Foi ele que, fazendo da evidência a marcada razão, não quis considerar racionais senão as demonstrações que, a partir de idéias claras e distintas, estendiam,mercê de provas apodícticas, a evidência dos axiomas a todos os teoremas.
O raciocínio more geometrico era o modelo proposto aosfilósofos desejosos de construir um sistema de pensamentoque pudesse alcançar a dignidade de uma ciência. De fato,uma ciência racional não pode contentar-se com opiniõesmais ou menos verossímeis, mas elabora um sistema de proposições necessárias, que se impõe a todos os seres racionaise sobre as quais o acordo é inevitável. Daí resulta que odesacordo é sinal de erro. "Todas as vezes que dois homensformulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo",diz Descartes, "que um dos dois se engana. Há mais, nenhum deles possui a verdade; pois se um tivesse dela umavisão clara e nítida poderia expô-la a seu adversário, de talmodo que ela acabaria po..t: forçar sua convicção."335
335. Tratado da argumentação, p. 1 e 2.Nesse sentido, é ilustrativa a passagem de Marilena Chauí: "Tam
bém devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas.
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Mas, na realidade, a grande contribuição de Perelmanpara a Filosofia tem origem no franco descontentamentoque demonstrou em não conseguir resolver, de forma totalmente satisfatória, com os instrumentos da lógica formal, a questão da justiça, conforme propusera em 1945, eque trataremos a seguir.
4.1 A Justiça no pensamento perelmaniano
Podemos dizer que o problema da justiça, além de seruma constante no pensamento de Perelman e de possuirtodo um aspecto subjetivo (de origem judia, alcançou amaturidade nos anos que antecederam a Segunda GuerraMundial), é o ponto central de toda a sua teoria. Centralporque é da tentativa de definir a justiça a partir da lógicaformal- base da sua formação intelectual-, que Perel-
Estas não só são definidas pela virtude, pelo bem e pela obrigação, mastambém pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a deliberação e a decisão ou escolha. Em outras palavras, quando o curso deuma realidade segue leis necessárias e universais, não há como nempor que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer. Não deliberamos sobre as estações do ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não deliberamos e nemdecidimos sobre aquilo que é regido pela natureza, isto é, pela necessidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para sere acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não deliberamos e não decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é eserá sempre, independentemente de nós. Deliberamos e decidimossobre o possível, isto é, sobre aquilo que pode ser ou deixar de ser,porque para ser e acontecer depende de nós, de nossa vontade e denossa ação. Aristóteles acrescenta à conciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética." Cf. Convite à filosofia, p. 341.
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man chega à teoria da argumentação, proposta como basepara o novo conhecimento filosófico, rompendo definitivamente com a tradição metafísica clássica.
No ano de 1945 publica seu primeiro trabalho sobre ajusti~a, tratando-a sob o ângulo formal. Acreditava que sóm.edl~nte regras que versassem sobre a sua aplicação é quea Justiça poderia ser analisada com algum nível de certezae indiscutibilidade. Fora isso, incidiríamos na natural subjetividade dos espíritos quando consideram a utilização devalores. O autor detém-se sobre o critério básico da igualdade como elemento comum à maioria das concepções sobre justiça apresentadas desde a Antigüidade - de fato aigualdade sempre se mostrou presente nas discussões ;0bre a justiça. Como a concepção de igualdade fundamenta-se em valores escolhidos de forma aleatória - igualdade segundo a riqueza, a produção, a beleza etc. -, o autoracaba por estabelecer, como regra de justiça, a igualdadeformal, que o leva a privilegiar o aspecto da legalidade.Legalidade tanto no sentido aristotélico, como parâmetropara a ação justa,336 quanto no sentido do direito positivo,em que a lei é relativizada pelo seu conteúdo. O aspecto dalegalidade, por sua vez, remete-nos ao Estado, que é o enteresponsável pela criação e aplicação da lei e, por conseqüência, da justiça. A lei é o instrumento que tem por excelência a regra da igualdade, porquanto "os seres de umamesma categoria essencial devem ser tratados da mesmaforma", assevera Perelman. 337
O autor apresenta como fórmula de justiça o tratamento igual para aqueles considerados iguais, segundo critériosestabelecidos de acordo com os valores que venham a in-
336. Cf. Ética a Nicômacos, capo V.337. O império da retórica, p. 13.
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formar o que ele chama de justiça concreta, ou seja, a cadaqual segundo determinadas características tidas como essenciais. Mas essas características essenciais, que importem a justiça concreta, como riqueza, produção, antigüidade, etc., são determinadas aleatoriamente. Privilegiar umcritério em detrimento de outros significa neutralizar asreais diferenças entre os indivíduos. Por exemplo: a escolha pelo critério da necessidade, que impõe seja dado acada qual segundo as suas necessidades, faz com que asdemais diferenças se subtraiam ou fiquem neutralizadaspelas reais necessidades de subsistência; o critério da produção, que determina seja dado a cada qual segundo assuas obras, deixa em segundo plano a necessidade, uma vezque recompensa o trabalho produtivo; o critério do lugar,que requer seja dado a cada qual segundo a sua posição,privilegia a origem e a posição social dos indivíduos emdetrimento de outros valores; e, por fim, o critério da legalidade, que confere a cada qual segundo o que a lei lheatribui, garantindo uma igualdade exclusivamente formal.
Destarte, a lei, por si só, é atributo de justiça. O importante é que, uma vez estabelecido qualquer critério, a aplicação da regra se faça de forma igual e uniforme para todos. Não obstante os valores que fundamentam esses critérios podem variar de sociedade para sociedade nos diferentes momentos históricos, e podem servir de fundamento aos mais diversos sistemas normativos. Mas como nãoexiste uma lógica para a escolha dos valores, ocorre queeles são determinados de forma arbitrária. Assim Perelman não encontra uma lógica para uma justiça que se imponha como fundamento para o direito. Conclui que aigualdade só pode ser criteriosamente verificada no correto procedimento da aplicação da lei. Iluminado pelo pensamento positivista, Perelman acreditava que o máximoque a filosofia do direito podia pretender era conhecer a
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justiça sob o seu aspecto formal. Fora isso, preponderariao arbítrio, contrário a qualquer tipo de racionalidade. Sobesse aspecto, a igualdade baseia-se apenas na regularidadeda adoção de certas regras. E independentemente de qualseja a regra e quais os valores que a informam, o importante é que se dê tratamento igual a seres unidos pela semelhança. Nesse sentido, nada melhor do que a lei para estabelecer a igualdade. Por exemplo: se a norma prevê quetodas as pessoas que completarem setenta anos devemaposentar-se, todos os membros da categoria "pessoa desetenta anos" obrigatoriamente estarão sujeitas a tal exigência. Dessa maneira, os seres sociais encontram-se divididos em categorias conforme determinada escala de valores; no caso, o descanso remunerado para pessoas de idadeavançada. Logo, a norma jurídica mostra-se, por excelência, como o instrumento mais apropriado a estabelecer valores.
Contudo, apesar da estrutura lógica de uma justiça formal, apresentada por Perelman como a única justiça possível segundo o parâmetro da igualdade, o autor rompe coma postura positivista-kelseniana e vê o ordenamento jurídico firmado sobre uma pauta valorativa. E como os valoressão por natureza arbitrários, nenhum sistema, por maisadiantado que seja, pode ser inteiramente lógico e eliminartoda a sua arbitrariedade. Logo, os princípios gerais de umsistema, em vez de afirmarem o que é, determinam o quevale, mas de forma arbitrária e não fundamentalmente lógica, como quer Kelsen quando apresenta a sua norma fundamental.
Os valores, assim determinados, é que nos permitirãojustificar as regras e viabilizar a existência da justiça, pois,segundo Perelman, só o acordo sobre os valores nos permite justificar as regras, eliminando tudo o que favorece ou.desfavorece arbitrariamente os membros de certa catego-
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ria essencial,338 E uma vez existindo tal acordo, a possibilitar o desenvolvimento racional do sistema normativo, asregras a ele estranhas é qúe poderão ser tidas como arbitrárias. Disso se segue o relativismo jurídico de Perelman,que não reconhece a justiça como valor absoluto, possívelde ser fundamentado unicamente na razão, mas relativo,porque fruto da vontade. Logo, a justiça, enquanto manifestação da razão na ação, deve contentar-se com um desenvolvimento formalmente correto de um ou de váriosvalores.339 E assim Perelman é levado a distinguir três elementos na justiça: o valor que a fundamenta, a regra que aenuncia e o ato que a realiza.
Os dois últimos elementos, os menos importantesaliás, como expõe Perelman, são os únicos que podemossubmeter a exigências racionais: podemos exigir do ato,que seja regular e que trate da mesma forma os seres integrantes da mesma categoria essencial; podemos pedir quea regra seja justificada e que decorra logicamente do sistema normativo adotado, mas quanto ao valor que fundamenta o sistema normativo, não o podemos submeter anenhum critério racional, pois ele é arbitrário e logicamente indeterminado. Com efeito, embora qualquer valor possa servir de fundamento para um sistema de justiça, essevalor, em si mesmo, não é justo. O que podemos qualificarde justas são as regras que ele determina e os atos que sãoconformes a essas regras.340
Porém, ainda que diante da impossibilidade de pensarlogicamente sobre os valores, o autor não se mostra insensível àquelas situações em que a aplicação regular e uniforme da lei acarreta injustiça. Para os casos em que a lei não
338. Cf. Ética e direito, p. 58 a 60.339. Idem, p. 64.340. Idem, p. 63.
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se mostre suficiente como parâmetro de justiça, o autorsugere o recurso à eqüidade, que funciona como elementocorretivo às insuficiências do formalismo legal. Perelmandefine eqüidade como a "muleta da justiça", a ser utilizadapara evitar que ela fique manca e de todo vulnerável. Porsua vez, o não-formalismo característico da eqüidade proporcionayia ao juiz sopesar duas ou mais características vistas simultaneamente como essenciais, fornecendo uma solução equilibrada. Mas, como muitas vezes nem mesmo oabrandamento da lei é suficiente, Perelman apresenta,quase que de maneira desesperada, um outro elemento,mais imediato e espontâneo, como forma de se fazer justiça: a caridade. Na conclusão desse seu primeiro estudo, oautor faz reveladoras declarações sobre sua insatisfaçãodiante do problem~da aplicação da justiça quando decorrente exclusivamente da lei. E essas declarações servirãode impulso para a construção da sua Teoria da Argumentação.
Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte inevitável de arbitrariedade que contém, deve sempre estarpresente na mente de quem quiser aplicar suas mais extremas conseqüências. (... ] Mas todo sistema normativo imperfeito, para ser moralmente irrepreensível, deveria aquecer-se no contato de valores mais imediatos e mais espontâneos. Todo sistema de justiça não deveria perder de vistasua própria imperfeição e disso concluir que uma justiçaimperfeita, sem caridade, não é justiça.34!
Ante o problema da racionalidade do acordo sobre osvalores que fundamentam a justiça concreta, conforme foivisto, Perelman declara, quase vinte anos depois, que éuma conclusão desesperadora para um racionalista pensar
341. Idem, p. 67.
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que os valores e as normas fundamentais que guiam nossasações são alheios a qualquer racionalidade, porque produtode interesses e paixões logicamente indetermináveis.342
Daí, a pergunta: É exato que abdicamos do uso da razãoassim que abandonamos o campo do forma1?343
Em 1960, ao falar do ideal de racionalidade e da regrade justiça, Perelman já admitia as seguintes premissas:"Raciocinar não é somente deduzir e calcular, mas é também deliberar e argumentar" e "a argumentação será qualificada de racional quando se achar que ela é válida paraum auditório universal, constituído pelo conjunto dasmentes razoáveis. "344
A partir, então, do resultado limitado e insuficiente desuas constatações sobre a justiça, Perelman, com a colaboração de Lucie Olbrechts-Tyteca, seguirá à procura deuma lógica dos valores, por meio de pesquisa empírica sobre textos relativos à área das ciências humanas, como afilosofia, política e moral, conforme explica,345 de forma aextrair daí os processos de raciocínio que considerasseconvincentes. Ao perceber que não existe uma lógica própria para lidar com valores, mas que, em situações tais,aplica-se a argumentação dialética já desenvolvida porAristóteles, fará, então, sua passagem para a construção da
342. Perelman. "Cinco aulas sobre a justiça" (1962), em Ética e direito, p. 183.343. Esta é a pergunta que nos apresenta Grácio ao interpretar o pensamento de Perelman. Vide Racionalidade argumentativa, p. 33.344. Cf. "O ideal de racionalidade e a regra de justiça", em Ética edireito, p. 94.345. As referências sobre os propósitos de Perelman e que deramensejo à Teoria da Argumentação, mais propriamente sobre o tipo depesquisa empreendida, podem ser encontradas em texto publicadoem 1950, escrito em colaboração com Olbrechts-Tyteca, agora incluído na coletânea intitulada Retóricas, p. 57 e segs.
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No~a. Retórica, que consiste em uma das contribuiçõesmaiS importantes para filosofia do direito contemporânea.
4.2 A Nova Retórica
A partir do problema da justiça, que verifica não poderresolver com os mecanismos da lógica tradicional, Perelman vê-se mobilizado com a razão, ou o método, que regeas relações sociais, adstritas a valores. Como o próprio admite, seu cuidado especial é o do lógico às voltas com arealidade socia1.346 Tal inquietação, entretanto, já o tinhaaproximado da retórica aristotélica. Perelman confessaidentificar-se com Aristóteles347 quando este se volta paraa busca de um tipo de raciocínio capaz de lidar com incertezas, objetivando, naturalmente, alcançar soluções.348
Nesse mister, despreza os ornamentos da oratória, comoparte da retórica antiga, concentrando-se sobre o problema da relatividade e dos valores.
Perelman percebe, em primeiro lugar, que a busca daverdade a partir de opiniões, através do método dialético,pressupõe o diálogo. Por isso, diferentemente da filosofiacontemplativa ou da pesquisa empírica, não basta ao sujeito sozinho buscar as evidências; é necessária a presença do
346. Cf. Retóricas, p. 58.347. Cf. Retóricas, p. 65.348. O diálogo torna-se dialético, e portanto construtivo, quando, segundo Perelman, para além da coerência interna de suas teses osinterlocutores procuram chegar a um acordo sobre o que conside~amverdadeiro ou, pelo menos, sobre as opiniões que reconhecem comoas mais sólidas. A busca da verdade, em Aristóteles, pode partir deproposições não necessárias, mas geralmente aceitas, cujas conclusõestampouco são evidentes, mas as mais conformes com a opinião comum. Cf. Perelman, Retóricas, p. 50 e 51.
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interlocutor, que Perelman chamará de "auditório". Ondenão há evidência, há dúvida, e onde a dúvida predomina, aargumentação faz-se necessária. Portanto, a relação é dialógica. Com isso Perelman dá curso à Nova Retórica, poisrecuperará dos antigos a prática dialética, fazendo-a ressurgir do obscurantismo a que havia sido relegada pela escolástica, pelo racionalismo e pelo empirismo. Hoje, "queperdemos as ilusões do racionalismo e do positivismo, eque nos damos conta da existência das noções confusas eda importância dos juízos de valor, a retórica deve voltar aser um estudo vivo, uma técnica da argumentação nas relações humanas e uma lógica dos juízos de valor", diz Perelman.349 A tanto se propõe a tanto alcança, pois encontramos atualmente na Nova Retórica de Cha'im Perelman abase fundamental para a teoria da argumentação. E como aliberdade em deliberar incide sobre a ação humana, umavez que justificamos nossos atos, será nos mecanismos datécnica argumentativa que Perelman irá buscar a racionalidade própria do direito, considerado também como umcampo de ação: escolha, decisão e pretensão.
O ato deliberativo, ou a ação deliberativa, correspondeà preferência de uma posição (funda~entada em um juízode valor) em detrimento de outras. E a razão orientando aação, ou seja, a práxis. No entanto, a permanência de determinada escolha dependerá da aceitação do auditórioque lhe esteja servindo de referência, assim como da forçados argumentos apresentados a título de justificativa. Enessa perspectiva, a Nova Retórica se abre para o múltiploe para o não-coercitivo, valendo-se da tópica e da retóricaaristotélicas. A primeira trata do processo dialético do diálogo e do confronto entre opiniões, com destaque para ahabilidade no manejo entre teses contrárias, e a segunda,
349. Retóricas, p. 89.
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do discurso orientado para a arte do bem falar, voltadapara a persuasão e para o convencimento.350
Perelman propositalmente não resgata o termo dialética, por considerá-lo suficientemente explorado pelos filósofos da modernidade e que lhe atribuíram significado diverso, preferindo o termo "retórica". O que Perelman pretende é reabilitar a retórica renovando sua tradição à luz daquestão dos juízos de valor.351 A retórica traz, em primeiroplano, a ação exercida pelo discurso, que, por sua próprianatureza, fundamenta-se em uma relação hermenêutica edialógica, de compreensão e acordo.352 Estabelece-se umaligação pessoal ou intersubjetiva, ao contrário do que ocorre nas explicações analíticas, em que o ouvinte está fadadoa se submeter à evidência. Para a retórica é fundamental oelemento pessoal tanto do orador quanto do auditório.
350. Lembra-nos Perelman que "a retórica foi considerada pelos antigos como a arte de bem conduzir, não somente a palavra, mas tambémo pensamento. Falar bem quer dizer falar de modo que se convença.Ora, falar de modo que se convença quer dizer falar de um modoeficaz; mas essa eficácia se apresenta de formas muito diversas e éobtida por meios diferentes, conforme se adapte a ignorantes ou apessoas competentes. Não se trata somente de falar, trata-se de raciocinar." Ética e direito, p. 114.351. Para Grácio, "a idéia é reabilitar uma metódica cujas premissasconstituem-se em juízos de valor". Cf. Racionalidade argumentativa,p.71.352. Sobre a importância da teoria de Perelman para o desenvolvimento da hermenêutica, vale destacar as palavras de alivier Reboul:"Essa é a função hermenêutica da retórica, significando 'hermenêutica' a arte de interpretar textos. Na universidade atual, essa função éfundamental, para não dizer única. Não se ensina mais retórica comoarte de produzir discursos, mas como arte de interpretá-los. [...] Masaí a retórica recebe outra dimensão; não é mais uma arte que visa aproduzir, mas uma teoria que visa a compreender." Introdução à retó·ríca, p. XIX.
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Po~anto, Perelman 110S fala de uma "comunhão de espíritos entre o orador e seus ouvintes, e define o objeto daNov~ Retórica c~mo o estudo dos meios de argumentaçãomedIante os quaIs conseguimos obter ou aumentar a adesão dos outros pelas nossas teses. 353
Aristóteles define a retórica como a arte de buscar emq~alquer situação os meios de persuasão disponíveis. NósdIremos que tem por objeto o estudo de técnicas discursivasq.ue tratam de provocar e de acrescentar a adesão dos espíntos a teses que se apresentam para o seu assentimento.354
Cabe destacar, no entanto, que não se trata de analisartécnicas de argumentação simplesmente pela sua eficáciamas sim pela qualidade valorativa do fundamento que sus~tent~e~ta eficácia. Senão vejamos: toda a atividade propagandIstlCa, ou de marketíng, procura convencer um auditório sobre as vantagens de determinado produto, almejando obter a concordância da clientela potencial sobre suasqualidades, e concretizar a adesão na venda. Nitidamentenão é este tipo de argumentação que interessa à Nova Re~
~óri~~. Inter~ssa-lhe, antes, a fundamentação racional queJustifIca o agIr humano: por que nos posicionamos de umafor:na e não de outra; por que tomamos um tipo de decisãoe nao outro; por que uma solução se mostra mais adequadado que outra. Para a argumentação que nos interessa écaracterístico o elemento dialético, ou seja, é fundamen~alque exista a possibilidade de um contrário em relação aoqual devamos argumentar, senão caímos numa esfera de
353. Em síntese: "A Nova Retórica é o estudo das técnicas discursivasque tratam de provocar ou de acrescentar a adesão a teses apresentadas. a um determinado auditório". Chaim Perelman, em A Lógica JurídIca e a Nova Retórica, p. 151.354. Idem, p. 139.
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decisões fúteis, para as quais não existem argumentos, poiso que é fútil é vão; é insignificante.
O encadeamento de proposições que nos leva a umaidéia provável ou verossímil, mas que sustentada em argumentos fortes pode enfrentar oposição, refere-se à racionalidade das relações humanas, marcadas pela intersubjetividade, mantida, até então, fora do campo da lógica. Opapel da Nova Retórica será, justamente, o de buscar umoutro tipo de lógica que não se resuma na lógica formal,matemática, e que permita tirar a práxis do campo da irracionalidade. No lugar da lógica que requer rigor de procedimento para conclusões corretas, a partir da evidência desuas premissas, a lógica que agora se instaura é a lógica dopreferível àquilo que justificadamente se apresente comomais razoável ou mais adequado para cada situação, ou melhor, para cada problema concreto.
Ora, sabe-se que toda deliberação humana, determinada que é por juízos de valor, é refratária a qualquer demonstração de certeza com base em axiomas que não cabem ser questionados. Pergunta-se, por exemplo, por quedeterminada decisão pode ser considerada boa e não má, eo que define uma decisão justa, adequada ou razoável. Segundo Perelman, estas são perguntas conformadas em juízos possíveis de serem estabelecidos em um campo de mútua aceitação e que não se impõem linearmente. Diante,então, da ausência de uma lógica própria aos juízos de valor, tal como encontramos nas ciências exatas, o autor verifica que onde há controvérsia prevalecem, em vez da lógica, as técnicas da argumentação, que se apresentamcomo via propícia ao acordo.355 A teoria da argumentação,
355. Michel Meyer atenta para as relações de intersubjetividade queassumem a prática retórica nas sociedades pluralistas: "Desta disciplina de contornos híbridos, que Aristóteles se esforçou por salvar do
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esclarece Perelman, não tem como meta substituir a teoriada demonstração, mas apenas preencher o vazio deixadopor ela, quando se pretendia unívoca. Outrossim, não sepretende, com a Nova Retórica, formalizar o raciocínio valorativo atribuindo-lhe logicidade, mas reconhecer-lhe ummecanismo próprio: a argumentação. Esta, na realidade,foi a conclusão a que chegaram Perelman e Olbrechts-Tyteca como resultado de suas pesquisas. Ao indagarem sobre a existência de uma lógica de valores relativa ao raciocínio que acompanha a justificação de uma opção em lugarde outra, ou de outras, perceberam que isso não era possível, mas que situações desse tipo ocorriam mediante a disputa de argumentos. Aristóteles já havia desenvolvido essateoria nos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas.
Diferentemente da lógica analítica, que é impessoal, alógica dialética parte de opiniões geralmente aceitas portodos, ou pela maioria, ou pelos mais notáveis, que, mediante técnicas de convencimento e persuasão, pretendeagir sobre os espíritos.
nada ao qual a votara Platão, resta talvez uma especificidade que amodernidade soube explorar: o papel da subjetividade. É verdade queela não é assim chamada pelos gregos, mas podemos apesar de tudoreferenciar os seus sinais e a sua presença através da contingência dasopiniões, da livre expressão das crenças, das oposições entre os homens, que procuram afirmar as suas diferenças ou, pelo contrário,superá-las para fazer emergir um consenso. [... ]
Com efeito, a retórica é o encontro entre os homens e a linguagemna exposição das suas diferenças e das suas identidades. Nela elesafirmam-se para se reencontrarem ou repudiarem, para encontrar ummomento de comunhão ou, pelo contrário, para evocarem a sua impossibilidade e constatarem o muro que os separa. [... ]
Daí a nossa definição: a retórica é a negociação da distância entreos sujeitos." Essa negociação tem lugar através da linguagem. Bases daRetórica, p. 33, 41 e 42.
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O autor apresenta uma proposta renascentista à medida que procura nos antigos uma base de apoio para a suateoria. Remonta aos sofistas, que foram os verdadeirosmestres da retórica oral; e a Aristóteles, com a sua concepção de dialética.356 Dá ao seu trabalho o título de NovaRetórica, porque mais abrangente e complexo do que aretórica clássica, baseada exclusivamente na oratória voltada para um público presente e não especializado. A NovaRetórica, ao contrário, não se limita à prática política dosantigos, firmada na oralidade e em públicos homogêneos,mas assume a linguagem moderna, apoiada na escrita e emoutros meios de comunicação mais sofisticados que atin-
356. Aristóteles estabelece a distinção entre o raciocínio dialético e oanalítico. A dialética trata do verossímil, e tem por base a deliberaçãoe a argumentação; a analítica cuida de proposições necessárias ou inquestionáveis, com base na demonstração. A conclusão ou resultadoda primeira via dá-se em função da persuasão, e da segunda via, emfunção da evidência.
Cabe reproduzir, ainda que sujeitando-nos à exaustão, a distinçãoque Perelman faz entre os raciocínios dialético e analítico, seguindoAristóteles, por consistir na base de todo este nosso estudo. Raciocínio analítico é aquele que parte de premissas necessárias ou, pelomenos, indiscutivelmente verdadeiras que conduzem, graças a inferências válidas, a conclusões igualmente necessárias ou verdadeiras.Os raciocínios analíticos transferem a necessidade ou a veracidade daspremissas para a conclusão. É impossível que a conclusão não sejaverdadeira se se raciocina corretamente a partir de premissas verdadeiras. A validez da inferência, por sua vez, não depende, para nada,da matéria sobre a qual se raciocina. O que garante a validez do raciocínio é a sua forma. Raciocínio dialético é o que Aristóteles examinounos Tópicos, na Retórica e na Refutação aos sofistas. Não busca estabelecer demonstrações científicas, mas guiar deliberações e controvérsias. Tem por objeto os meios de persuadir e de convencer por meiodo discurso, de criticar as teses dos adversários e de defender e justificar as próprias com a ajuda de argumentos mais ou menos sólidos.Vide Lógica Jurídica, Introdução, p. 9 e segs.
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gem públicos quantitativa e qualitativamente variados.357
Para a Nova Retórica, a técnica mais apropriada ao oradornão depende tanto de sua performance, mas da qualidadedos seus argumentos e do auditório ao qual ele se dirige. Ofator da intersubjetividade passa a ser então fundamentalpara a compreensão da ação comunicativa, principalmentenas discussões que antecedem toda tomada de decisão.
Em vez de encontrar um significado representativo epróprio para cada ação, considerada de per si, o conhecimento humano se estabelece em meio a circunstâncias eauditório variados, que balizam o discurso entre os homens. Alguns autores têm apontado para a mudança deparadigma ocorrida na filosofia, a partir do Iluminismo, emdireção a uma nova racionalidade. A universalidade e a homogeneidade da razão cedem lugar agora a um outro tipode racionalidade, operacionalizada por meio da linguagem:a racionalidade persuasiva, intrinsecamente dialógica. De
357. Sobre as características da Nova Retórica, escreve Rui AlexandreGrácio: "Uma diferença fundamental entre a retórica dos Antigos e aNova Retórica diz respeito à noção de auditório. Enquanto na primeiraa argumentação retórica diz respeito à arte de bem falar em público,ao uso da palavra e ao discurso oral perante um grupo de pessoaspouco capazes de um raciocínio minucioso ou pouco dadas ao trabalhode proceder, com seriedade, a uma investigação prévia, destinandose, por isso, a um público de ignorantes, já na perspectiva da segundanão há motivos nem para limitar o campo da argumentação ao discursofalado, nem para restringir o auditório a um grupo de incompetentes.Com efeito, interrogam-se os autores de Traité, 'por que não admitirque as argumentações possam ser dirigidas a toda a espécie de auditórios?'. Neste sentido torna-se possível afirmar, no contexto alargadoem que a nova retórica concebe a noção de auditório, que não só adiscussão com um único interlocutor como, ainda, a deliberação íntima fazem parte integrante duma teoria geral da argumentação e que oobjeto de estudo desta última ultrapassa largamente os limites da retórica clássica." Racionalidade argumentativa, p. 74.
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acordo com José Américo Pessanha, a descoberta do novocampo de argumentação põe fim à exclusividade da razãomonológica. Assim alega que "à razão necessitária, compretensão de universalidade e atemporalidade, contrapõese - completamente - a razão imersa na contingência, natemporalidade, na história" .358
No mesmo sentido, Stephen Toulmin fala sobre a tendência da filosofia atual em direção ao (inter)subjetivismohistórico, quando é deslocado o eixo da antiga preocupação voltada para o estudo de "proposições" atemporais,para o estudo agora feito sobre as "elocuções" relativas amomentos particulares, ou seja, elocuções provenientes deum conjunto de circunstâncias particulares e que visam ainteresses particulares. De tal maneira escreve:
O objetivo da investigação filosófica era assim o de elucidar as relações universais e persistentes entre linguagem efatos - pensamento e realidade - que escapavam às corrosivas diversidades de linguagens e culturas particulares. [...]Presentemente, questões sobre as circunstâncias em que osargumentos são apresentados, ou sobre a audiência a quedirigem - numa palavra, questões "retóricas" - desalojaram questões de validade formal enquanto preocupação primária da filosofia, mesmo da filosofia da ciência. O recursoà teoria já não serve como tribunal último de recurso intelectual: eles são antes topoi num sentido aristotélico: úteisem algumas circunstâncias, irrelevantes noutras. [... ] J:transição de proposições para elocuções está a par da tranSição da teoria para a prática, e da transição da episteme para
358. Vide José Américo Pessanha. "A teoria da argumentação ou novaretórica".
Manuel Maria Carrilho também é da opinião de que a Nova Retó-rica corresponde à definição de um novo campo de investigação proposto por Perelman para a Filosofia, capaz de romper o bloco monolítico cartesiano característico da tradição racionalista moderna. Cf.Jogos de racionalidade, p. 47-8.
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a phronesis. [... ] Isto significa ir além das estritas pretensõesda racionalidade formal (episteme) para chegar às mais amplas pretensões da razoabilidade humana (phronesis). 359
A propósito, anota Rui Alexandre Grácio na introdução que faz à edição portuguesa de O império retórico:
A filosofia, mais do que encontrar-se ligada à posse daverdade, associa-se à crença na verdade e à aspiração detornar a verdade, em que o filósofo crê, admitida por outraspessoas, e, eventualmente, por todas as pessoas (ou, emtermos perelmanianos, pelo chamado auditório universal).Ora, esta admissão, esta tentativa de fazer admitir certasteses, só pode ser realizada através de meios argumentatiVOS. 360
Os filósofos da metafísica clássica que preconizavam avida contemplativa e a busca da verdade absoluta deveriam
359. "Racionalidade e razoabilidade", em Retórica e comunicação, p.21e27,28e29.
Achamos válido transcrever, ainda que para efeitos didáticos, otrecho da página 22, em que este autor localiza, historicamente, osurgimento e a importância do modelo cartesiano: "Antes de 1620, osfilósofos levaram a linguagem oral tão a sério como a escrita; os acontecimentos particulares tão a sério como as regularidades universais;os aspectos locais, no seu tempo próprio, da prática médica (porexemplo) tão a sério como as leis gerais, atemporais, da teoria fisiológica (por exemplo). Em suma, refletiram em assuntos práticos tãoprofundamente como nas questões teóricas. Mas, depois de Descartes, o centro de investigação filosófica mudou: das elocuções orais, edas práticas particulares, situadas no tempo, para questões relativas ateorias universais e atemporais, tal como se expressam nas proposições escritas. E, nos trezentos anos seguintes, este novo centro deinvestigação estabeleceu os padrões do debate filosófico sobre 'razão'e 'racionalidade', bem como sobre 'conhecimentos' e 'método'."360. Rui Alexandre Grácio na introdução de O império retórico, deChaim Perelman, p. 10.
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aderir à retórica, que se utiliza da palavra para defenderverdades históricas e relativas. A teoria da argumentação,enquanto primado da técnica de influenciar os homenspela palavra, e que se mostra essencial na vida ativa, cobrirá todo o campo discursivo voltado para o convencimentoe para a persuasão, seja qual for o auditório e a matériatratada. A lógica jurídica, por sua vez, consistirá justamente na aplicação particular da Nova Retórica ao direito.Onde a controvérsia é inevitável, o recurso à argumentaçãose impõe; da mesma forma que todo discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica.
Perelman identifica a retórica com a argumentação enquanto teoria geral do discurso persuasivo, colocando emprimeiro plano a questão da adesão do auditório. Esta posição lhe rendeu muitas críticas, como, por exemplo, aquela apresentada por Armando Plebe e Pietro Emanuele. Estes autores acreditam que Perelman, na realidade, contribuiu para o empobrecimento da Nova Retórica ao desconsiderar um dos seus elementos mais ricos, que seria a inventio. Segundo eles, Aristóteles, quando muito, teria indicado a proximidade da retórica com a dialética sem, noentanto, identificá-las entre si. Perelman, dessa maneira,teria apresentado uma postura mais executiva do que criativa, limitando-se a encontrar os argumentos destinados apersuadir e consolidá-los sob a forma de inventário. Dastrês partes da retórica, teria se servido apenas da última,que é a elocutio, capaz de adaptar palavras e expressões,abandonando as duas primeiras: inventio e dispositio. 361
361. A lnventio é considerada a primeira das cinco grandes partes daretórica. Fundamentalmente, é a escolha da matéria a ser tratada nodiscurso e dos procedimentos lógico-discursivos que emolduram odesenvolvimento do discurso. A dispositio consiste na organização dodiscurso, no sentido de se inventar o ordenamento e a coerência dos
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No entanto, não podemos esquecer que para o direito,e talvez também para Perelman, a ínventío encontra-se limitada a um sistema conceitual de elementos lingüísticospreviamente determinado; donde, a escolha de temas e deconceitos encontra-se fora de qualquer cogitação. E quanto à escolha do esquema de ordenação categorial, por meiodo qual devemos pensar o direito, é-nos também impostauma estrutura sistemática inerente à categoria de validade,inafastável da dogmática jurídica. Por esse motivo, não éincorreto de nossa parte buscar na Nova Retórica, proposta por Perelman, elementos esclarecedores da lógica jurídica, bem como, na Tópica de Viehweg, um modelo deinterpretação. Outrossim, a mencionada identidade entreretórica e argumentação pressuposta por Perelman temsido amplamente reconhecida e justificada pelos seus simpatizantes, como opção estratégica capaz de estabelecerum novo paradigma de racionalidade.
Por outro lado, o estudo da retórica e da argumentaçãoa partir da teoria do discurso e da linguagem, bem comotodo o lado da retórica voltado para a oratória e para aestética, partes da poética, fogem do alcance deste trabalho, que se reporta única e exclusivamente ao estudo dodireito. Não olvidamos, em hipótese alguma, a importância que a ação comunicativa processada por meio da linguagem tem para o direito. Não obstante, preferimos con-
pensamentos, como a escolha entre as diversas maneiras de se adotaros diferentes sistemas categoriais, chamados pelos ingleses de categorial frameworks. A elocutio é a parte da retórica que preside simultaneamente a seleção e o arranjo das palavras no discurso. Sua qualidadeessencial é a claridade. É a elocutio que deve receber os ornamentos dodiscurso. Ela é igualmente o suporte da ênfase e do lugar de manifestação das sentenças. No curso da história, este termo tomou o sentidode estilo. Cf. Dicionário de Retórica. Georges Molinié; e ArmandoPlebe e Emanuele Pietro, em Manual de Retórica.
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centrar nossos esforços sobre a reflexão da importânciadas técnicas argumentativas utilizadas no interior dos tribunais, como prática jurisprudencial, no intuito de verificar a procedência dessa "nova" racionalidade oriunda darelação entre os comunicadores da relação jurídica quandoprocuram adesão para as suas teses.362
4.3 O Auditório Universal
A ênfase dada por Perelman à idéia de auditório corresponde, antes, à relatividade que o mesmo vê com relaçãoà verdade e à sua dimensão histórica, ao contrário doque propõe Descartes, quando procura um método único e universal, conforme a ordem natural e independente de qualquer auditório, capaz de conduzir a uma únicaverdade. 363
O auditório é um dos elementos fundamentais da retórica: é o referencial da retórica. A partir dele, ou para ele,é que o discurso se dirige, e é dele que se procura obteradesão. No entanto, diante da evidência, isto é, diante deuma tese por si só inquestionável, cabe ao orador apenasbuscar a simpatia do auditório, pois que, nesse caso, adere-
362. Referimo-nos aqui às pesquisas que vêm sendo desenvolvidas noSetor de Direito da Casa de Rui Barbosa, em convênio com o Departamento de Direito da PUC-Rio.363. Rui Alexandre Grácio interpretando o pensamento de Descartesescreve: "Segundo Descartes, o método espelha a unicidade da ordemracional e assegura o rigor dos raciocínios. Mas, como sabemos, não éapenas esta a sua função: ele procura assegurar, também, a certeza e aobjetividade dos conhecimentos e está, por isso, ligado às idéias deevidência, clareza, e distinção, as quais garantem a verdade das premissas, a validade dos raciocínios e a certeza das conclusões." Racionalidade argumentativa, p. 25.
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se à tese ou não. Mas as teses baseadas em opiniões razoáveis não são taxativas e provocam uma intensidade variávelde tom no auditório, que pode convencer-se mais ou menos daquela posição. O encontro de idéias provocado pelaargumentação e pelo convencimento é, para Perelman, overdadeiro "encontro dos espíritos". Cabe mais uma vezlembrar que é em função de um auditório que a argumentação se desenvolve. Por isso, ela pressupõe a existência deum contato intelectual. Basta falarmos em discurso, para aidéia de auditório aparecer.
Na argumentação é de fundamental importância o elemento pessoal, ou seja, que o orador tenha apreço e sejaapreciado pelo auditório ao qual se dirige. Ambos têm dese sentir valorizados: o orador, por suas qualidades, paraque seja ouvido; e o auditório, pela importância de ter sidoselecionado como ouvinte a ponto de sentir-se valorizado etambém querer ouvir. Esse querer mútuo é o que provocao contato intelectual entre o orador e o auditório, tão essencial na teoria perelmaniana.
O orador é quem discursa ~presentando a argumentação; e o auditório, aquele indivíduo ou aquele grupo deindivíduos a quem o discurso se dirige, e que, ao mesmotempo, mostra-se apto a recebê-lo. O auditório consiste noconjunto daqueles cuja adesão quer-se ganhar; e, por isso,é antes um ato mental do que propriamente material. Aquestão não é tanto a de localizar ou verificar a existênciaconcreta do auditório, mas a de imaginar aqueles a quempretendemos convencer, em função dos seus atributos intelectuais. Logo, o auditório é uma construção imagináriado orador: um ideal que lhe serve de idéia reguladora. Poroutro lado, o orador sofre influência constante do auditório, e por isso não raramente vê-se obrigado a adaptar o seudiscurso às reações manifestadas pelo auditório. No casodos agentes estarem presentes quando o discurso é ao vivo,
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esse processo da adaptação é mais intenso. O orador precisa estar bastante atento às reações que provoca no auditório, quando presente. Algumas vezes, inclusive, a presençado auditório contribui para o sucesso do orador, pois estepercebe as reações de imediato e tem condições de contornar obstáculos antes não previstos, reformular idéias quenão ficaram claras, enfatizar afirmações que percebe agradarem ao público, evitar outras questões, etc.
Com a argumentação procura-se, ainda, não apenasprovocar a adesão do auditório para a tese apresentada,como também incitar a ação correspondente. Pere1manchega a dizer que a ação do orador é uma agressão, poissempre tende a mudar algo; a transformar o ouvinte.364 Afinalidade do discurso é a de reforçar a comunhão em torno de valores que deverão prevalecer de forma a orientar aação futura. Nesse sentido, e de acordo com Pere1man,cabe a distinção entre persuasão e convencimento. Apesarda tênue diferença entre esses dois tipos de efeito, a persuasão pode ser entendida como um incitamento à imaginação e ao sentimento provocador da ação, enquanto oconvencimento refere-se ao incitamento da razão, quepode ou não levar à ação. Perelman estabelece essa diferença em função da qualidade do auditório:
Propomo-nos chamar persuasiva a uma argumentaçãoque pretende valer só para um auditório particular e chamarconvincente àquela que deveria obter a adesão de todo serracional. O matiz é bastante delicado e depende, essencialmente, da idéia que o orador faz da encarnação da razão.Cada homem crê num conjunto de fatos, de verdades, quetodo homem "normal" deve, segundo ele, aceitar, porquesão válidos para todo ser racional. Mas será realmente assim? Essa pretensão a uma validade absoluta para qualquer
364. Cf. Retóricas, p. 371.
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auditório composto de seres racionais não será exorbitante?Mesmo o autor mais consciencioso tem, nesse ponto, desubmeter-se à prova dos fatos, ao juízo de seus leitores. Emtodo caso, ele terá feito o que depende dele para convencer,se acredita dirigir-se validamente a semelhante auditório.365
Um discurso convincente é aquele cujas premissas e cujos argumentos são universalizáveis, isto é, aceitáveis, em
, d b d d'" . I 366prinCIpio, por to os os mem ros o au ltono UnIversa .
Com isso, o autor introduz a noção inovadora e particular de sua teoria: a do auditório universal. Distingue umasérie de auditórios, apesar de reconhecer a possibilidadede serem infinitos. Existirão tantos auditórios quantospossam ser criados, afirma. Alguns tipos, no entanto, sedestacam: os auditórios correspondentes aos núcleos deapoditicidade, conhecidos como auditórios "científicos";os auditórios que poderíamos chamar de "singulares", porque característicos do diálogo entre apenas duas pessoas; oauditório "individual", relativo às deliberações internas oude foro íntimo; os auditórios de "elite", correspondentesaos grupos de vanguarda; enfim, auditórios particulares detoda ordem mas, em especial, o "auditório universal". Osargumentos dos auditórios particulares, no entanto, sãofracos em comparação à força objetiva dos argumentos direcionados para o auditório universal, que encarna a razão.Os argumentos dirigidos ao auditório universal são aquelesdotados de uma grande pretensão de verdade.
O orador precisa conhecer o auditório ao qual se dirige,principalmente as teses que comungam. Nos núcleos científicos, por exemplo, discute-se sobre teses relativas a umcampo específico do conhecimento, cujo domínio básico é
365. Perelman. Tratado da argumentação, p. 31.366. O império retórico, p. 37.
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compartilhado pelos seus integrantes. Com relação a estes,o orador praticamente não precisa se preocupar, à medidaque também compartilhe do conhecimento comum que adoutrina divulga.
Com relação aos auditórios que chamamos de singulares - compostos por uma só pessoa, além do orador -,são, por um lado, menos complexos, mas, por outro, podem exigir muito do orador e tornar a situação estafante.Primeiro, porque não é o número de ouvintes que caracteriza a complexidade dos argumentos, mas a qualidade doouvinte; segundo, porque a presença exige muito maisprontidão por parte do orador, que deverá estar sempreatento às reações e provocações daquele que tem acessodireto sobre nós.
O auditório pode, ainda, referir-se à pessoa do próprioorador no caso das deliberações íntimas, em que o sujeitopromo~e suas próprias convicções após um exercício desimulação entre teses possivelmente controvertidas.
Os auditórios que Perelman chama de auditórios deelite constituem-se daqueles que gozam de reputação e decarisma, e que, portanto, são responsáveis pelo exemploque produzem. Mas, além de um sem-número de auditórios especializados que possam vir a existir, é o auditóriouniversal o que mais interessa a Perelman. O a;tditóriouniversal é aquele para o qual o filósofo se dirige. E a fonteimanente da razão. A respeito, Perelman escreve:
Os filósofos sempre pretendem dirigir-se a um auditórioassim, não por esperarem obter o consentimento efetivo detodos os homens - sabem muito bem que somente uma pequena minoria terá um dia a oportunidade de conhecer seusescritos -, mas por crerem que todos os que compreende-
- - d d . , I - 367rem suas razoes terao e a enr as suas conc usoes.
367. Perelman. Tratado da argumentação, p. 35.
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o auditório universal significa, para ele, a própria razão, ou seja, aquela força que se impõe às mentes esclarecidas, mais especificamente aos sábios. É o auditório típicodo filósofo, ou melhor, aquele concebido pelo filósofo. Nãose trata de ter efetivamente como resultado a conquista domaior número, bastando a intenção do orador: se ele pretende obter a adesão de alguns, ou de todos os seres dotados de razão.368 O auditório corresponde a um conjuntoque o orador pretende influenciar pela sua argumentação.Para Perelman, convencer um número determinado de especialistas é mais fácil quando suas teses já gozam de credibilidade. O papel do filósofo, ao contrário, é mais difícil,porque sua fala é dirigida a todos os que estão dispostos eaptos a ouvi-lo; no caso, pode ser a humanidade inteira ou,ao menos, os mais competentes e razoáveis.369 O filósofo
368. Interessante é a interpretação de auditório universal dada porOlivier Reboul: "Em suma, o auditório poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode teruma função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador sabe bemque está tratando com um auditório particular, mas faz um discursoque tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estãoalém dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas etodas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo,mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidadede uma argumentação." Introdução à retórica, p. 93-4.369. Cabe assinalar aqui a crítica feita por Boaventura de Souza Santos à teoria de Perelman, a partir dos avanços conquistados pela mesma. Numa visão pós-moderna, de transição paradigmática, Santospropugna a democratização do auditório, a partir da emancipação dosenso comum. Do que chama de "conhecimento-emancipação construído a partir das tradições epistemológicas marginalizadas da modernidade ocidental", acrescenta: "A única coisa que nos diz é queeste conhecimento assume inteiramente o seu caráter retórico: umconhecimento prudente para uma vida decente. Para poder contribuirpara a reinvenção do conhecimento-emancipação, a nova retórica temde ser radicalmente reconstruída. A retórica de Perelman é técnica
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procurará fatos, verdades e valores universais que, emprincípio, se imponham a todo ser dotado de razão e queseja suficientemente esclarecido.370
A idéia de universalidade proposta por Perelman, como auditório universal, é-lhe muito cara e, talvez por isso,gere polêmica entre os estudiosos. Apesar de Perelman seinsurgir reiteradas vezes contra a chamada filosofia clássica, não raro ele se refere a Platão e a Kant,371 reforçando aimportância de um saber universal que se imponha coercitivamente às mentes razoáveis. Não obstante, a sua concepção de universalidade tem um aspecto relativista.Quando afirma, por exemplo, que qualquer auditório, pormais especializado que seja, pode encarnar o auditório uni-
(por exemplo, não adjudica entre as duas formas de influenciar, entrepersuasão e convencimento); parte do princípio de que o auditório e,conseqüentemente, a comunidade, são dados imutáveis, não refletindo, assim, nem os processos sociais de inclusão neles ou de exclusãodeles, nem os processos sociais de criação e de destruição de comunidades; por último, é manipuladora porque os "oradores" visam apenasinfluenciar o auditório e não se consideram influenciados por ele, exceto na medida em que se lhe adaptam para conseguirem influenciálo. Em resumo, a retórica de Perelman é, no meu entender, demasiadomoderna para poder contribuir para o conhecimento pós-modernosem uma alteração profunda. A crítica radical à nova retórica deve,portanto, conduzir a uma novíssima retórica." Boaventura de SouzaSantos, A crítica da razão indolente, p. 103 e 104.370. O império retórico, p. 36.371. Sobre a aproximação do auditório universal com o imperativocategórico kantiano, reproduzimos a seguinte passagem de Perelman:"Para nós, o apelo à razão se dirigiria ao auditório universal. Umaargumentação racional seria, como a ação moral em Kant, conforme aoimperativo categórico: o melhor argumento seria aquele que, na mente do orador, deveria convencer todos os homens suficientementeinformados. Mas, como a argumentação, mesmo racional, não é coerciva, só pode tratar-se de uma intenção de racionalidade na cabeça doorador." Ética e Direito, p. 536.
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versal, uma vez que se acredita na universalidade de seusargumentos, sua assertiva pode parecer paradoxal, mas, narealidade, a universalidade à qual o filósofo se dirige é historicamente relativizada. Perelman acredita que para diferentes épocas e diferentes locais sejam admitidas idéiascomo absolutamente verdadeiras. Absolutamente porque,de acordo com cada cultura, é tudo o que o homem podealcançar.372
De acordo com Perelman, toda vez que o orador estáconvencido dos seus argumentos, ele tem como pretensãonatural dirigir-se ao auditório universal, muito emboradeva reconhecer que, por mais fortes que sejam os argumentos, exíste sempre a possibilidade de uma tese oposta.Por outro lado, em vez de enxergarmos o auditório universal como análogo ao que o racionalismo propunha, ou seja,admitir verdades como se fossem mensagens divinas, podemos caracterizá-lo em função da imagem que o oradorfaz de seus semelhantes. O orador sempre olhará para oseu semelhante como para si próprio e, assim, cada cultura, cada indivíduo tem a sua própria concepção de auditório universal. Tanto que, segundo Perelman, o estudo dessas variações seria muito instrutivo, uma vez que nos fariaconhecer o que os homens consideram, no decorrer da história, como real, verdadeiro e objetivamente válido.373 Apropósito da ambigüidade que pode ser vista na idéia de
372. Para ilustrar a idéia de auditório universal Rui Alexandre Gráciodestaca os dois principais escritos de Santo Tomás de Aquino: a Summa Theologica e a Summa Contra Gentiles. Ambos, segundo Grácio,tratavam basicamente da mesma coisa, mas foram escritos de formasdiferentes, de acordo Com cada público: um para teólogos e outro,como obra do filósofo, sem distinção, capaz de alcançar também aqueles que não acreditavam na Igreja. Um deles era voltado para os católicos e o outro para qualquer ser dotado de razão.373. Tratado da argumentação, p. 37.
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auditório universal, achamos prudente reproduzir a seguinte passagem da obra de Perelman, pelo tom assaz esclarecedor:
o auditório universal tem a característica de nunca serreal, atualmente existente, de não estar, portanto, submetido às condições sociais ou psicológicas do meio próximo, deser, antes, ideal, um produto da imaginação do autor e, paraobter a adesão de semelhante auditório, só se pode valer depremissas aceitas por todos ou, pelo menos, por essa assembléia hipercrítica, independente das contingências de tempo de lugar, à qual se supõe dirigir-se o orador. [... ] Mas,assim como é freqüente acontecer que tenhamos, simultaneamente, vários interlocutores, que ao discutirmos comum adversário procuremos também convencer as pessoasque assistem à discussão, assim também acontece necessariamente que o auditório universal, ao qual supomos nosdirigir, coincida, na verdade, com um auditório particularque conhecemos e que transcende as poucas oposições deque temos conciência. De fato, fabricamos um modelo dohomem - encarnação da razão, da ciência particular quenos preocupa ou da filosofia - que procuramos convencer,e que varia com o nosso conhecimento dos outros homens,das outras civilizações, dos outros sistemas de pensamento,com o que admitimos ser fatos indiscutíveis ou verdadesobjetivas. É por essa razão, aliás, que cada época, cada cultura, cada ciência, e mesmo cada indivíduo, tem seu auditóriouniversal.374
A dúvida que ainda paira é se a idéia de verdades universais que se impõem a todos aproxima-se mais dos "lugares comuns" ou opiniões comuns, relativos a cada sociedade, ou do imperativo categórico de Kant. De uma forma oude outra, essas "verdades", melhor dizendo, "opiniões",fornecem princípios necessários para a fundamentação da
374. Ret6ricas, p. 73-4.
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ação moral, retirando-lhe o caráter de arbitrariedade. Nossa impressão é a de que esses princípios ou essas idéiaschamadas de universais assemelham-se mais a valores concretos e podem ser identificados como topoi. A idéia é a deque esses valores possam ser reconhecidos como própriosa todo ser razoável, que vive cada cultura.375 Ocorre, inclusive, que a força dos argumentos pode chegar a tal ponto,que esta pretensão não seja vã. E é assim que, com relaçãoao papel do filósofo, expõe Perelman:
o que constatávamos, efetivamente, é uma universalização progressiva de nossos princípios morais, o que nospermite elaborar progressivamente, para toda a humanidade, princípios de ação razoáveis. Talvez a função essencialdos filósofos seja a de formular tais princípios práticos, assumindo os cientistas o mesmo papel na área do conhecimento, da razão teórica. A função específica da filosofia é, defato, propor à humanidade princípios de ação objetivos, ouseja, válidos para a vontade de todo ser razoável. Essa objetividade não será, nesse caso, nem conformidade com o objeto exterior, nem submissão às ordens de uma autoridadequalquer: ela visa a um ideal de universalidade e constituiuma tentativa de formular normas e valores, que se possampropor ao assentimento de todo ser razoável.376
375. Rui Alexandre Grácio é da seguinte opinião: "Nesta concepçãoargumentativa da razão como auditório universal não é a pretensão deuniversalidade que é posta em causa; uma argumentação racional deveser universalmente reconhecida. Mas este reconhecimento não é umaimposição da própria razão, nem é uma evidência a priori; é um reconhecimento que precisa ser promovido através da persuasão convincente que deverá fazer com que haja uma adesão às teses propostas. Éum reconhecimento visado através de um acordo prévio, a partir deum fundo comum ou de um senso comum, dirigido a um auditórioque há que convencer e que não é nem puramente abstrato, nematemporal." Racionalidade argumentativa, p. 92.376. Ética e direito, p. 199.
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Sobre a formação do auditório universal, Perelman resgata também de Aristóteles urna outra idéia não menosimportante, que é a do discurso epidítico. Dos gêneros oratórios deliberativo, judiciário e epidítico, os dois primeirosreferem-se a atividades práticas, de caráter imediatista,enquanto o terceiro corresponde a ações de médio ou longo prazo. Os debates jurídicos e políticos pressupõem matéria controversa, para a qual se requer um desfecho, comodecisão para a ação. O gênero deliberativo dispõe sobre ofuturo, quando o orador ac~mselha ou desaconselha sobreo que lhe parece mais útil. E o discurso político. O discurso judiciário, por seu turno, corresponde a uma deliberação sobre o passado, quando o juiz decide o que é justo emfunção de uma ação já praticada. Mas o discurso epidíticopossui características bastante distintas. A princípio, eleapresenta matéria não controvertida, como é o caso doselogios fúnebres, das comemorações de datas nacionais ouda exaltação de uma virtude, em que os ouvintes aparentemente participam apenas como espectadores. Anteriormente, atribuía-se o discurso epidítico à literatura, dadoseu cunho de preocupação estética. Esse tipo de discurso,a princípio, pode parecer o mais pobre, mas é o que deitaraízes mais profundas. Seu objetivo é reforçar a disposiçãopara ações futuras, aumentando a adesão sobre os valoresque exalta. Caracteriza-se como o mais pobre ao correlacionar-se com a simples aparência do discurso, pois o ouvinte limita-se a louvar ou censurar o que lhe parece bome mau. No entanto, a estética do discurso é fundamentalpara comover e mover os auditores para a ação futura, tornado-se, assim, ponto central da filosofia prática. O discurso de gênero epidítico trabalha basicamente com valores tradicionais. A sua função é reformular alguns conceitos oferecendo maior clareza sobre valores já incorpora-,dos no inconsciente de cada um, e conseguir, com isso, a
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1-
adesão do ouvinte. Sobre a universalidade do inconscientecoletivo, Perelman escreve:
.Não receando a contradição, nele o orador transformafactlmente em valores universais, quando não em verdadeseternas, o que, graças à unanimidade social, adquiriu consistência. Os discursos epidíticos apelarão com mais facilidadea uma ordem universal, a uma natureza ou a uma divindadeque seriam fiadoras dos valores incontestes e que são julgados incontestáveis.377
Perelman aproxima a tarefa do educador do gênero deoratória epidítico, à medida que, por meio da didática,procura-se promover valores objeto de uma comunhão social. Mas, para tanto, é necessário que o educador goze deprestígio, de forma que os valores que elogia sejam dignosde guiar a ação. Essa disposição para a ação, segundo Perelman, é o que mais aproxima o discurso epidítico do pensamento filosófico. 378
Mas, como em toda argumentação, o discurso epidíticotambém conta com a liberdade do auditório. A argumentação, pela sua própria natureza, não é coerciva. Por meiodela o orador procura ganhar a adesão de um ser livre,apresentando-lhe razões melhores do que as fornecidas emfavor da tese concorrente. Perelman resume sua posiçãoda seguinte forma:
O uso da argumentação implica que se tenha renunciado~ recorrer unicamente à força, que se dê apreço à adesão domterlocutor, obtida graças a uma persuasão racional, que
377. Perelman. Tratado da argumentação, p. 57.378, Pe:e1ma~ aproveita aqui para condenar a propaganda alegando-asubv:rslVa pOlS, ao contrário da educação que cuida de promover aadesao sobre valores aceitos, a propaganda impulsiona a mudança.
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esse não seja tratado como um objeto, mas que_se ape_Ie àsua liberdade de juízo. O recurso à argument,a~ao supoe oestabelecimento de uma comunidade dos espmtos que, no
I . d' IA ' 379entanto dura exc Ui o uso a VIa enCla.,
Com tais alegações, Perelman expressa sua a~:são àideologia democrática, voltada para a abertura do dIalogo e
para a recusa da violência.
4.4 Deliberação e justificativa
É central na teoria de Perelman sobre a "racionalidadecomo argumentação" a valorização da idéia d~ j~s~ifica~ã?em oposição à idéia de demonstração. O raclOcm~o teonco resultante da inferência válida de uma conclusao a partir' de premissas que não cabem ser questionada~, contra-
- 'tO roduz a açao moral.poe-se ao pensamento pra ICO que p . _Toda ação corresponde a uma deliberação ou deClsao valo
'1 't' 380rativa, ao contrário das deduções puramente SI OglS ICas..O raciocínio prático é aquele capaz de justificar uma d~Cl-- , . d umentação no sentIdosao com o recurso a teclllcas e arg ,
d 1· ., elo o essencialde discernir o importante, o neg 1genClaV , _ , "do dispensável' o útil do inútil, etc. São questoes so POSSl-
. d ' d' 'd d' t presentação de ar-velS e serem respon 1 as me lan e a ab ' - oncretas N ote-gumentos convincentes, so re sltuaçoes c .
, . - tes com OS usos e os cos-se, porem, que as poslçoes coeren . _ _ .tumes ou os valores já enraizados pela tradlçao sao taClta-
379, Perelman. Tratado da argumentação, p. 61. dA'd d l'b - t' t o pensamento e ns-380, A questão a e 1 eraçao es a presen e n I d I'b
d - ,. d' Arist6te es e 1 erat6teles. Como atributo a razao pratIca, lZ : d'I'b - f d nta-se entao, no IS-quem investiga e calcula. A de 1 eraçao un ame '_ ' ,
, ' , oderaçao.Cr EtIca acermmento que, por sua vez, requer JUIZO e mNícômacos, Livro VI.
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mente ou mais facilmente aceitas; via de regra não necessitam de justificativa. É o princípio da inércia na vida doespírito, no sentido de que "não se deve mudar nada semrazão";38\ ao contrário das posições novas, que rompemcom os costumes e não se encontram ainda legitimadaspela tradição. Estas, sim, requerem um esforço maior deargumentação para se imporem e se apresentem como razoáveis e adequadas às novas situações ou mesmo para a revisão de posições antigas. A respeito, sublinha Perelman:
o direito nos ensina a não abandonar regras existentes,a não ser que boas razões justifiquem-lhes a substituição:apenas a mudança necessita de uma justificação, pois a presunção joga em favor do que existe, do mesmo modo que oônus da prova incumbe àquele que quer mudar um estadode coisas estabelecido.382
Segundo Perelman, a regra de justiça estabelece umcontinuum que muitas vezes nos impede de cometer arbitrariedade. 383 A regra da tradição serve de fundamento devalidade, mas o pragmatismo requer que sejam levadas emconsideração as conseqüências da posição assumida, num enoutro sentido. Afinal, a ação moral é responsável. De ou-
381. Cf. Perelman. Ética e direito, p. 92.382. Idem, p. 382.383. Perelman nos chama sempre a atenção para a regra de justiça quedetermina o tratamento igual a situações semelhantes. Tal como parao direito as interpretações contrárias à jurisprudência predominantedevem ser suficientemente motivadas para se imporem como regranova, também para o filósofo há necessidade de justificar suas opiniões, quando elas não são facilmente assimiladas pela tradição. Aquilo que é amplamente aceito porque enraizado por força da tradiçãoaparece facilmente no direito e na filosofia como verdade, cabendosom~nte produção de defesa em caso de ruptura com antigos valores.Cf. Etica e direito, páginas 92, 94, 112, 113, 150, 203, 380 e 382.
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tro lado, a motivação da "nova" decisão, isto é, a sua ratiodecidendi, pode virar regra de justiça à medida que inspirae serve de exemplo para o julgamento de casos similares. Éo caso da formação dos precedentes jurisprudenciais.384
Quanto à autoridade dos precedentes e dos princípios gerais do direito nas decisões jurídicas, escreve Perelman:
A autoridade dos precedentes judiciários, numa sociedade regida pela common law, mas também, embora emmenor grau, em todo sistema de direito cujas decisões judiciárias são publicadas, é igualmente fundamentada no preconceito favorável de que se beneficia a conformidade àsregras admitidas.
Quanto aos princípios gerais do direito, que exprimemvalores tradicionais na consciência jurídica de uma civilização dada, formulam eles teses que os membros educados dasociedade são tentados a admitir espontaneamente, porisso, aproximam-se mais de princípios evidentes que nãonecessitam muito de uma autoridade particular para seremadmitidos. Não obstante, essa autoridade é indispensável namedida em que tais princípios necessitam de uma interpretação e de uma determinação de seu campo de aplicação,que podem ser muito mais controversas do que os próprios
384. O pensamento de Perelman encontra amparo na experiência anglo-saxônica da common law. A regra das stare decisis impõe que semantenha a jurisprudência anterior caso não se encontre razão paradela dissentir. Como origem, temos, na Inglaterra do século XIV, acriação dos tribunais de eqüidade, "Equity Courts", cuja finalidadeera impedir soluções iníquas que podiam produzir-se por causa daaplicação rígida do precedente.
Talvez seja esta a razão que levou à aceitação das idéias de Perelman antes nos países de tradição anglo-saxônica do que naqueles detradição romano-germânica, conforme nos informa Rui AlexandreGrácio. Racionalidade argumentativa, p. 13.
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pri~cípios, pois o acordo sobre eles se realiza no equívoco ena Imprecisão. 385
É bem de ver que princípios, regras e conceitos de caráter genérico necessitam da presença de uma autoridadeFara estab.elecer-Ihes os contornos diante de situaçõespratIcas, obvIamente sempre sob a concepção de razoabilidade.
Como já vimos, o raciocínio prático traduzido no comportamento ético corresponde à escolha de uma posição. Aescolha pela melhor posição, por sua vez, pressupõe liberdade e a melhor é aquela que se apresenta como a maisoportuna e razoável para o caso específico, obedecendo auma determinada ordem de valores. O mesmo ocorre noâmbito do direito e da filosofia: é quando o juiz e o filósofo~ptam por uma interpretação, assumindo uma atitude delIberdade e de moderação, ou prudência. 386 Para Kelsentoda solução logicamente possível é juridicamente válida~Per.elman, no entanto, não só admite a criatividade do juizna Interpretação, ao criar, inclusive, uma regra de direitoC?~o pre~edente, como assume a desigualdade entre asvanas_opçoes, uma vez que uma, e apenas uma, servirá àque.st~o, porque a melhor ou a mais adequada. Afinal, umaPOSIÇ~O p~evalecerá, porque melhor justificativa apresenta. Nao eXIste aqui a indiferença valorativa que Kelsen atribui ao direito.
Nesse nível de considerações, mais especificamente noqu: te~n~ca~~entediz respeito à fundamentação como referencI~a 10glCa d.o razoável, Perelman irá valer-se da argumentaçao provemente da dialética e da retórica dos anti-
385. Ética e direito, p. 380.386. Cf. Retóricas, p. 144.
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gos para a construção da "nova retórica" .387 O raciocínioprático diz respeito à liberdade, à medida que deliberamosconscientemente sobre nossas posições, ante a ética da responsabilidade. Como não há regras fixas para resolver oproblema de uma boa escolha, toda opção constitui umrisco que compromete o sujeito deliberante, nos fala LuizRohden, ao que acrescenta:
A racionalidade retórica é uma linguagem da vontade dodesejo humano e não exclusivamente da razão. Examina todos os elementos que contribuem para persuadir. Como linguagem que permite pensar a vontade, possibilita a reflexãosobre a liberdade superando uma concepção determinística. 388
A dialética então existente entre razão e vontade, noraciocínio prático, nos conduz à dialética da argumentação,pois que toda argumentação só é concebível em função daação que prepara ou determina. Isso levou Perelman a pensar a racionalidade a partir de uma perspectiva essencialmente prática, ao contrário da evidência, diante da qualnão se argumenta.389 O que é evidente e, portanto, nãorequer qualquer tipo de questionamento, impõe-se a todos; cabe apenas verificar se a conclusão é verdadeira oufalsa segundo esquemas formais de raciocínio. O objeto dajustificação, por sua vez, é de ordem prática: justifica-seum ato, um comportamento, uma disposição para agir etc.,a partir de escolhas ou opções. Assim, o pensamento dialético é aberto, deliberativo e sujeito a críticas.
387. Para a análise dessas fontes ver Alonso Tordesilhas. "Perelman,Platão e os Sofistas: Justiça e Retórica Nova".388. Luiz Rhoden. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles, p. 216.389. Cf. Ética e direito, p. 186-7.
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4.5 A lógica jurídica ou a lógica do razoável
o termo "lógica jurídica" tem um significado especialpara Perelman, ao contrário de autores como Kalinowsky eKlugh,390 que consideram a lógica jurídica como a lógicaformal aplicável ao direito. Para Perelman, não existe umalógica jurídica, tal como não existe uma lógica biológica,uma lógica química, uma lógica física, e assim por diante.O que ele entende por lógica jurídica é a ciência encarregada de analisar o raciocínio propriamente jurídico, que elesabe aproximar-se do raciocínio dialético. Já ficou claroque se trata de uma outra lógica que não a formal identificada com o pensamento analítico, mas da lógica relativa àretórica e à argumentação, voltada para um campo maisalargado, que é o da dialética.
Por outro lado, o pensamento jurídico encontra limitesna dogmática, criada pelos parâmetros definidos em lei, oque gera uma constante tensão entre segurança e eqüidade. Segurança, que é valor próprio do Estado de Direito, eeqüidade, como atributo de justiça e mecanismo capaz deamenizar as exigências legais quando estas se dispõem contra aquilo que é aceitável, conforme expõe Perelman.391
390. Vale conferir os trabalhos de Georges Kalinowsky, Introducci6na la L6gica jurídica, Editorial Universitaria de Buenos Aires, trad. porJuan A. Casaubon, 1973; e Normas Jurídicas y Análisis L6gico, porHans Kelsen e Ulrich Klug, editado pelo Centro de Estudios Constitucionales de Madrid.391. As definições atuais mais recorrentes de eqüidade seguem a concepção aristotélica da adequação da norma geral ao particular sob oparâmetro da prudência. É o sentimento do justo concreto, conformeafirma Tércio Sampaio Ferraz Jr. Para este autor, a eqüidade não corresponde a um princípio que se opõe à justiça, mas que a completa e atorna plena (Cf. Introdução ao estudo do direito, p. 276 e segs). ParaMiguel Reale (Lições preliminares de direito, p. 123 e segs.), a eqüida-
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Perelman, desde o seu primeiro escrito sobre a justiça,mostrou-se sensível à questão da razoabilidade das decisões jurídicas. De fato, a eqüidade, as ficções jurídicas eaté mesmo a caridade apresentam-se muitas vezes necessárias à obtenção da justiça, quando a lei mostra-se inflexível. Enquanto a eqüidade aparece muito próxima da idéiade justiça, a ficção consiste naquela decisão em que se qualificam os fatos contrariamente à realidade, para se obter oresultado desejável,392 pois, segundo Perelman, o direitonão pode se desinteressar da reação das consciências. Ecomo a solução jurídica tem um compromisso com a pazjudicial, tendo em vista tratar-se de uma atividade práticae não puramente teórica, a decisão razoável será aquelaque não se opõe, sem razão, ao senso comum de cada sociedade. Mas, sendo a razoabilidade uma noção vaga, talvez possamos chegar mais perto do razoável excluindo-seo não-razoável.
Essa questão abre uma cisão na teoria da separação dospoderes do Estado, uma vez que o poder judiciário não s~
apresenta mais como simples subordinado do legislativo. Amedida que aquele assume uma posição política e criativa,
de é o momento dinâmico da concreção da justiça, pois, na aplicação,a norma deve amoldar-se à sinuosidade do caso. José de Oliveira Ascensão define-a comO medida de solução, uma vez que consiste nummodo indispensável de aplicação da lei ao caso concreto. (Cf. Direito_ introdução e teoria geral, p. 186 e segs.)392. Um exemplo dado por Perelman sobre ficção jurídica é o queocorria na Inglaterra no final do século :XVIII e início do século XIX.O direito inglês dessa época previa a pena de morte para todo roubono valor de 40 xelins ou mais. Os juízes, revoltados com o grau dapunição passaram a avaliar os roubos no valor de até 39 xelins, criando, assim, uma ficção jurídi~a. Na Alemanha i~perial era prevista ~prisão para aqueles que desfIlassem com bandeiras vermelhas em 1de maio. Prisões foram evitadas no caso de as bandeiras serem roxas.Cf. Ética e direito, páginas 524, 525 e 541.
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qual seja, a de harmonizar a ordem legislativa com as idéiasdominantes em termos do que seja justo e eqüitativo,constitui antes um poder complementar ao do legislador. 393 Por esta razão, lembra Perelman, a aplicação do direito e a passagem da regra abstrata ao caso concreto não ésimples processo dedutivo, mas uma adaptação constantedas disposições legais aos valores em conflito nas controvérsias judiciais.
Sem negar a autoridade do legislador, admitir-se-á quesua vontade não pode ser arbitrária, que os textos que adotadevem cumprir uma função reconhecida, promover valoressocialmente aceitos. Sem ser a expressão de uma razão abstrata, supor-se-á que, para ser aceito e aplicado, o direitopositivo deve ser razoável, noção vaga que expressa umasíntese que combina a preocupação com a segurança jurídicacom a da eqüidade, a busca do bem comum com a eficáciana realização dos fins admitidos. Será no juiz, bem mais doque no legislador, que se confiará para a realização dessasíntese, aceita porque razoável. 394
De fato, o conflito dos juízos de valor está no centrodos problemas metodológicos criados pela interpretação epela aplicação do direito. Quando a relação jurídica traduz
393. Perelman fala de uma relação nova entre o legislativo e o judiciário no processo de concretização das leis, nos seguintes termos: "[Ojudiciário não está] nem inteiramente subordinado, nem simplesmente oposto ao poder legislativo, constitui um aspecto complementarindispensável seu, que lhe impõe uma tarefa não apenas jurídica, mastambém política, a de harmonizar a ordem jurídica de origem legislativa corp as idéias dominantes sobre oque é justo e eqüitativo em dadomeio. E por essa razão que a aplicação do direito, a passagem da regraabstrata ao caso concreto, não é um simples processo dedutivo, masuma adaptação constante dos dispositivos legais aos valores em conflito nas,controvérsias judiciais." Lógica jurídica, p. 116.394. Etica e direito, p. 463.
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um conflito de interesses, diante de um mesmo fato e deum mesmo ordenamento jurídico, encontramos idéias einterpretações distintas e mesmo contrárias, que levam aresultados variados. Se as partes mostram-se convencidas,cada qual, de sua posição e a conciliação torna-se inviável,faz-se mister a intervenção de um árbitro, livremente escolhido ou provido pelo aparelho judiciário estatal, parapôr um fim à contenda. Cabe ao juiz ponderar sobre osvalores que envolvem aquele caso concreto e que se encontram protegidos na lei, conferindo-lhe uma interpretaçãocondizente e razoável. E é justamente este mecanismo deinterpretação que se faz por intermédio da argumentação,sendo que a interpretação já se encontra referenciada pelapré-compreensão.
José Afonso da Silva, questionando a legitimidade dajurisdição constitucional, estabelece a diferença entre "decidir" simplesmente e "julgar". O primeiro caso corresponderia a uma tarefa automática e formal, enquanto julgar corresponderia à emissão de um juízo, ou melhor, aofundamento de uma decisão.395 Para tanto, a lógica jurídicadeve ser capaz de suportar e organizar o enfrentamento deteses opostas referentes a um mesmo problema jurídico. Aidéia é que cada um dos integrantes da relação jurídicapossa expor suas razões da melhor maneira possível a alcançar o convencimento do juiz. A melhor maneira, respeitados os padrões éticos e de liberdade, é aquela que atingeo seu objetivo: a adesão dos ouvintes. Mas para isso, servimo-nos de técnicas específicas, como, por exemplo, aquelas analisadas por Perelman no Tratado da ArgumentaçãO.396 O direito é a verdadeira arte da disputa. O juiz ade-
395. José Afonso da Silva. "Tribunais constitucionais e JurisdiçãoConstitucional", p. 496 e segs.396. Perelman, na segunda parte do Tratado da Argumentação, dedi-
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re a uma ou a outra tese, conforme a sua livre convicção,ou mesmo propõe uma solução alternativa que entendacomo mais razoável. O reconhecimento da razoabilidade,por sua vez, deve ser conferido pelo público alvo da decisão: as partes, outros juízos que eventualmente venham aapreciar aquele caso, conforme o princípio do duplo graude jurisdição, e até o público em geral, que, de uma formaou de outra, é atingido pelo comportamento do Poder Judiciário. Tais referenciais demonstram que a interpretaçãoenvolve valores e pelos mesmos é determinada.397
Por meio da argumentação é que se torna possível defender uma posição em prejuízo de outras. A idéia da lógica jurídica como lógica do razoável é apresentada por Perelman em contraponto à lógica formal demonstrativa, ca-
ca-se à análise da estrutura de alguns argumentos. Os argumentosdividem-se, segundo o autor, em três grandes grupos: os argumentosquase-lógicos, os argumentos baseados na estrutura do real e os argumentos que fundamentam a estrutura do real. Dentro dessas categorias, aponta algumas técnicas ou tipos de argumentos extraídos dedocumentos que analisou como, por exemplo, a demonstração poruma das partes de contradição ou incompatibilidade entre os termosdos argumentos apresentados pela outra parte; as técnicas da reciprocidade e da transitividade; a inclusão da parte no todo; o argumento deautoridade; o exemplo e a ilustração; os fins e os meios, etc.397. Citemos o célebre exemplo dado por Perelman sobre a normaque proíbe a entrada de automóveis no parque. Diante do preceito "Éproibida a entrada de automóvel no parque", como deve portar-se oguarda, como autoridade decisória, no caso de uma ambulância queprecise socorrer a vítima de um infarto? E, quanto à existência de umaescultura de um automóvel nos jardins? Literalmente, não deixam deser automóveis. Mas, ponderando-se os valores em pauta, o que deverá prevalecer: a vida do infartado ou a tranqüilidade dos transeuntes?A estética de uma escultura ou a literalidade pura e simples da lei? Sãoexemplos de valores em pauta que merecem ser sopesados em cadasituação, emprestando-se, inclusive, à palavra automóvel, o significado único de automóvel como veículo apto à locomoção.
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racterística do pensamento teórico, em que conclusõesverdadeiras são extraídas por inferências válidas de premissas também verdadeiras. Ao contrário, cabe ao juiz, pormeio da argumentação dialética, que trabalha com o exercício entre os contrários, motivar suas decisões visandoconvencer o seu auditório. Como vimos, a relação entreorador e auditório é o ponto nevrálgico da argumentação, eé o que caracteriza o seu elemento interpessoal. A respeito, são estes os dizeres de Perelman:
A lógica jurídica comporta o estudo de esquemas argumentativos não-formais, próprios do contexto jurídico. Enquanto a demonstração é impessoal e poderia mesmo sercontrolável mecanicamente, toda a argumentação se dirige aum auditório que ela se empenha em persuadir ou em convencer, cuja adesão às teses defendidas pelo orador, ela deveganhar. É essencial conhecer esse auditório, saber quais sãoas teses que, se supõe, ele aceitaria, e que poderiam servirde premissas para a argumentação que a pessoa se propõe adesenvolver. Cumpre aliás, que tais teses sejam aceitas comuma intensidade suficiente e que suportem, sem desgaste, opeso da argumentação. Se não for esse o caso, elas correm orisco de serem abandonadas pelo ouvinte e toda a argumentação que lhes é vinculada desabaria como um quadro presoa um prego mal fincado na parede.39B
Uma crítica que poderíamos apresentar com relação aotrabalho de Perelman é o fato de ele limitar a argumentação jurídica ao âmbito exclusivo do juiz. Acredita que esteé a peça mais importante do processo judicial. No entanto,entendemos que as partes, representadas por seus advogados, mais do que ninguém precisam convencer o juiz dapropriedade de suas teses. É o advogado quem enfrentamais de perto a tese oposta, inclusive em termos altamen-
398. Ética e direito, p. 493.
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te ameaçadores aos seus propósitos. O auditório da parteem juízo, apesar de circunscrito ao juiz, ao tribunal e aoutros profissionais do direito chamados a se pronunciarno processo, não requer do advogado um esforço menor deargumentação. Ao contrário, maior que o empenho do juizé o do advogado em convencê-lo de que a solução maisfavorável ao seu cliente é a melhor para o caso. O fato de oadvogado cuidar de um interesse pessoal e não do caso emsi, voltando-se para um auditório "universal", não lhe diminui a importância no processo. O compromisso do juiz,que aplica o direito, é com a justiça, sem dúvida, mas chegar ao que é justo, adequado e razoável pode ser apontadopelas partes, que clamam justiça. O advogado também fornece uma tese de natureza dogmática, na medida em quefundamenta seu raciocínio na lei e apresenta uma propostade decisão, talvez empenhando-se mais do que o juiz naescolha dos argumentos convincentes. Se fosse possívelum acordo entre as partes, não haveria que se recorrer aojudiciário. O acordo não é possível quando cada um estátão convencido da sua posição, que não cabe transigir - équando se recorre ao judiciário assumindo-se os ônus daídecorrentes. No entanto, Perelman é categórico quandopretende precisar a noção de "raciocínio jurídico":
Entendemos por essa expressão o raciocínio do juiz, talcomo se manifesta numa sentença ou aresto que motivauma decisão. As análises doutrinais de um jurista, os arrazoados dos advogados, as peças de acusação do MinistérioPúblico fornecem razões que podem exercer uma influênciasobre a decisão do juiz, mas apenas a sentença motivada nosfornece o conjunto dos elementos que nos permitem pôrem evidência as características do raciocínio jurídico.399
399. Idem, p. 481.
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Em contrapartida, há o fato de que, numa democracia,a idéia de razoabilidade encontra-se referida a outrem,mais especificamente, à comunidade. Segundo Perelman,o problema do razoável não é o problema de um indivíduoisolado, mas o problema do indivíduo em comunidade. Omecanismo de troca entre teses opostas até que se chegueà mais provável, como verdadeira, proporciona o diálogo,imprescindível na democracia. A motivação das decisões eo confronto de idéias permite uma participação mais ampla da opinião pública e também a legitimação dos podereslegislativo e judiciário.
4.6 Tópica e argumentação
A nosso ver, o elemento de ligação entre a argumentação e a retórica, e que levou Perelman a identificá-las entresi, é o elemento tópico. Tanto na retórica quanto na argumentação o raciocínio se dá sobre bases prováveis. Ambasdizem respeito a opiniões, cujas teses se submetem à discussão, e às quais se adere com intensidade variável. A diferença feita por Aristóteles entre o pensamento dialéticoe o pensamento analítico está justamente na qualidade daspremissas que lhe servem de fundamento. O pensamentoanalítico conta com premissas verdadeiras e imediatas, enquanto o dialético conta com premissas prováveis e de ampla aceitação. A argumentação tem, assim, como suporte,proposições verossímeis, portanto não necessárias.
Os mesmos requisitos e as mesmas bases da retórica,enquanto teoria da argumentação, são também os da tópica, principalmente quando falamos dos acordos prévios e"implícitos" que não precisam ser justificados. Na classificação exposta por Perelman, o orador toma como ponto departida os topoi ou objetos de acordo que incidem sobre o
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real, como os fatos, as verdades e as presunções; e topoicomo objetos de acordo que incidem sobre o preferível,que seriam os valores,4oo as hierarquias401 e os lugares dopreferíve1.402 Nenhuma nem outra ordem de ocorrência,no entanto, conduz a verdades irrefutáveis, apesar de Perelman notar que, para se contestar opiniões fundamentadas no real,403 exige-se uma argumentação mais bem elabo-
400. Diferentemente dos juízos de realidade, sujeitos à demonstração, os juízos de valor são controversos. Para Perelman, "o termo valorse aplica sempre que tenhamos de proceder a uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva serposta antes ou acima de outra, sempre que ela é julgada superior e lhemereça ser preferida." Cf. O império retórico, p. 45. Os valores universais, como o justo e o belo, por exemplo, pela sua indeterminação,são, em geral, capazes de promover um primeiro acordo, mas à medida que as questões se particularizam em função de realidades concretas, os desacordos aparecem e o esforço argumentativo torna-semaior.401. Como exemplo de acordos fundamentados em situações de hierarquia, temos: a superioridade dos homens diante dos animais; a superioridade dos deuses sobre os homens e a superioridade dos valoresdas pessoas sobre os valores das coisas.402. "Todos valem, mas um, antes do outro." Como exemplo: prefere-se o justo ao útil, o uno ao múltiplo, etc.403. Perelman qualifica os argumentos que se fundamentam no real eos que se fundamentam sobre a estrutura do real como argumentosquase-lógicos e, portanto, de grande força persuasiva. Os argumentosque se fundamentam no real ou sobre o real, consistem naqueles quese utilizam das relações de sucessão ou as de coexistência. As relaçõesde sucessão, por exemplo, concernem a acontecimentos que se seguem no tempo como a causa e o efeito, e que nos permitem investigar a causa a partir dos efeitos ou apreciar a causa pelos efeitos (argumento pragmático). Para o utilitarismo, seria o argumento pelas conseqüências, e para o existencialismo, a realização da pessoa através deseus atos. Não obstante, guardam distinção com a linguagem formal,uma vez que podem ser discutidos sempre. Não nos esqueçamos quea questão do sentido das palavras não é um problema teórico, que
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rada. Neste caso, a contestação recairá sobre a demonstração das incompatibilidades entre os fatos apresentados eaqueles que vêm para retirar-lhes a credibilidade. Fatos everdades constituem dados estáveis pela sua objetividade,mais fáceis portanto de serem admitidos pelo auditóriouniversal e mais difíceis de serem recusados. Segundo Perelman, "a adesão ao fato será, para o indivíduo, apenasuma reação subjetiva a algo que se impõe a todos".404
A argumentação ganha em importância quando o acordo se baseia em valores e hierarquias, que não contam coma facilidade da comprovação baseada na experiência. Paramostrar que uma posição vale mais do que a outra, o orador precisa argumentar. Em primeiro lugar, parte de lugares comuns que gozam da aceitação de todos. Lugares comuns seriam afirmações muito gerais referentes ao que sepresume valer em qualquer domínio, como, por exemplo,o acordo da superioridade dos homens diante dos animais;da superioridade das pessoas sobre as coisas; da superioridade do justo sobre o útil; do uno sobre o múltiplo, eassim sucessivamente. Viehweg já nos mostrou a distinçãoentre a tópica de primeiro grau e a tópica de segundo grau,que correspondem, respectivamente, aos lugares comuns eaos lugares específicos, admitidos estes últimos em domínios particulares. O discurso jurídico, por exemplo, há dese pautar necessariamente na lei, na doutrina e na jurisprudência. Cabe a quem argumenta conhecer os valores dominantes na sociedade, suas tradições e sua história, as doutrinas reconhecidas, bem como as conseqüências sociais eeconômicas desta ou daquela posição.
tenha solução única, conforme o real, mas é um problema prático, queconsiste em encontrar, ou em elaborar, o sentido que se adapte melhor à solução concreta.404. O império retórico, p. 43.
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O acordo serve de ponto de partida na argumentação,preparando o raciocínio. Suas premissas servirão de base àconstrução discursiva. Perelman divide a matéria dos acordos em duas categorias de objeto: uma relativa ao real, quecomporta fatos, verdades e presunções; e outra relativa aopreferívelJque conteria os valoresJa hierarquia e os lugaresdo preferível.
A noção de fatos e verdades que fundamentam os acordos corresponde a dados que dizem respeito a uma realidade objetiva. A relação do indivíduo para com o fato, naargumentaçãoJé de simples adesão do sujeito a algo que seimpõe a todos. Daí a sua aproximação com o auditório universal. Neste sentidoJ o fato se assemelha à verdadeJ pois"só estamos em presença de um fatoJ do ponto de vistaargumentativoJ se podemos postular a seu respeito umacordo universal não controverso".40S No entanto, um simples questionamento, sempre possívelJ é suficiente paraque o fato perca o seu estatutoJe para que aquele auditórioJantes tido como universalJpasse a particular. Assim, osacordos sobre fatos induziriam à probabilidadeJ que poderia referir-se a "uma relação numérica entre duas proposições que se aplicam a dados empíricos bem definidos esimples" .406 Do real retiramosJaindaJ as presunções. Todosos auditórios admitem presunções geraisJ normalmenteapreendidas de imediatoJ e que correspondem ao que énormal, ou seja, ao que se refere a uma média habitual daqual retiramos parâmetros de normalidade para mais epara menos. Perelman nos apresenta algumas presunçõesde uso correnteJque seriam: a presunção de que a qualidade de um ato manifesta a qualidade da pessoa que o praticou; a presunção de credulidade natural, que faz com que
405. Perelman. Tratado da argumentação, p. 75-6.406. Idem, p. 78.
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nosso primeiro movimento seja acolher como verdadeiro oque nos dizem e admitir a idéia como verdadeira enquantonão tivermos motivo para desconfiar; a presunção de interesse, segundo a qual acreditamos que todo enunciado levado ao nosso conhecimento supostamente nos interessa;e, por fim, a presunção referente ao caráter sensato detoda ação humana. Todas essas presunções encontram fundamento na presunção geral de que, até prova em contrário J o normal é aceitarmos o raciocínio como válido e capazde se impor ao auditório universal.
A outra possibilidade de acordo é aquela que se dá sobre valores. Ainda que mais instáveis do que os acordosretirados do realJ os valores podem servir de ponto de partida para a cadeia argumentativa. Os valores são vistos porPerelman como objetos, seres ou ideais capazes de exercerinfluência sobre nossas ações. Impõe-se-IhesJ portantoJum caráter de relatividade a modos particulares de agirJ oque faz com que se refiram apenas a grupos ou auditóriosespecíficos, e não ao auditório universal.
E quanto a valores universais como o verdadeiro J obem, o belo, o justo e o absoluto? Perelman responde a essaindagação baseando-se na sua generalidade J uma vez queos mesmos só se impõem ao auditório universal, na medidaem que seus conteúdos não encontram-se firmados. Apenas a generalidade dos valores é capaz de manter-lhes oestatuto de universalidade. TodaviaJ ainda assim são úteisJpois muitas vezes só eles permitem o acordo sobre aquiloque não é unânime, inserindo escolhas a princípio conflitantes em uma espécie de contexto vazioJmas sobre o qualreina um acordo mais amplo. Como lugares-comuns dessetipoJ talvez não tão absolutos mas de amplíssima aceitaçãoJteríamos, por exemploJ a democracia. Sob o pálio da democraciaJ transcorre toda uma discussão queJ apesar denão oferecer conclusões definitivas, permite o amadureci-
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menta sobre questões intermediárias, política e socialmente úteis. Podemos verificar que, em nome da democracia, muito se tem dito e muito se tem amadurecido,inclusive sobre teses contrárias entre si, inobstante sua eficácia.
A adesão em torno de valores se dá com intensidadevariável de indivíduo para indivíduo e de grupo para grupo,e até mesmo com relação aos valores entre si. Na realidade, os valores se sujeitam a uma hierarquia: um vale maisdo que o outro, embora ambos sejam aceitos.
De acordo com Perelman, podemos ainda aceitar umadistinção entre valores concretos e valores abstratos. Noprimeiro rol encontraríamos os entes vivos (físicos ou jurídicos), as instituições, os objetos particulares, grupos determinados, etc., e assim é que poderíamos falar sobre ovalor que tem o país, a Igreja, a família, os grupos qualificados, o dinheiro, etc. No segundo grupo, destacaríamos afidelidade, a lealdade, a franqueza e a bondade, por exemplo. Tanto para uns quanto para outros, existem as hierarquias, como a da superioridade dos homens sobre os animais, a dos deuses sobre os homens; e mesmo hierarquiasque nos remetem a valores, como dizer que os valores relativos às pessoas sejam, por sua própria natureza, superioresàqueles relativos às coisas.
Perelman chama a atenção para o fato de que a hierarquia se distingue da simples preferência, uma vez que elaassegura uma ordenação de tudo o que está submetido aoprincípio que a rege. De fato, para a estrutura da argumentação, a hierarquia é mais importante do que o acordo pelos valores em si, devido a sua abrangência e capacidade decontrole. Essas hierarquias, segundo Perelman, possuemos mesmos méritos dos "lugares-comuns" que gozam dareputação geral. Tecnicamente, os lugares, denominados
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pela filosofia grega de topoi, correspondem a premissas deordem muito geral que alcançam situações bastante específicas. Lembra-nos Perelman que para os antigos os "lugares" designam rubricas sob as quais podemos classificar osargumentos. Trata-se de agrupar o material necessário afim de encontrá-lo com mais facilidade e, daí, a definiçãodos lugares como "depósitos de argumentos",407 que emViehweg ganham o nome de "catálogos". Em sua teoria,Perelman só chamará de "lugar" as premissas de ordemmuito geral, que permitem fundar valores e hierarquias, eque foram estudadas por Aristóteles entre os lugares doacidente: lugares de quantidade, de qualidade, de ordem,de existência, de essência, de pessoa, etc. Dentre estes,destacam-se os lugares de quantidade, tais como: "o bemque serve a um maior número de fins é preferível ao que sóé útil ao menor grau", ou "o que é mais duradouro e maisestável é preferível ao que o é menos". Porém, de outrolado, e em sentido negativo, temos que "um mal duradouro é um mal maior do que um mal passageiro". O princípioda democracia também se aproveita do bem que atende aomaior número, e tudo aquilo relativo à eficácia refere-se,geralmente, ao lugar de quantidade. Perelman dá destaque, ainda, para a ocasião em que o normal se sobrepõe ànorma, no seguinte sentido:
o que se apresenta mais amiúde, o habitual, o normal, éobjeto de um dos lugares utilizados com mais freqüência, atal ponto que a passagem do que se faz ao que é precisofazer, do normal à norma, que expressa uma freqüência, umaspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que talfreqüência é favorável e que cumpre conformar-se a ela.408
407. Cf. Perelman. Tratado da argumentação, p. 94.408. Perelman. Tratado da argumentação, p. 99.
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Mas o valor da qualidade em geral prevalece sobre o daquantidade, uma vez que o valor do único pode exprimirse por oposição ao comum, ao corriqueiro, ao vulgar. Oúnico é original, distingue-se, e por isso é digno de nota.Também importantes são os lugares de ordem, que afirmam a superioridade do anterior sobre o posterior. Para opensamento não empirista, justifica-se a superioridade dosprincípios e das leis sobre os fatos ou sobre o concreto, queaparecem como aplicação dos primeiros. A causa é razão~e ser dos efeitos e, por isso, é superior.409 Já para o empirIsmo, o resultado obtido a posteriori prevalece sobre asposições tomadas a priori. Os lugares do existente, por seuturno, afirmam a superioridade do que existe, do que éatual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível. Contudo, na prática verificamos que a aceitaçãodos "lugares" varia de acordo com as épocas, locais e ideologias. Como exemplo Perelman aponta os lugares dequantidade que prevaleceram durante o classicismo emoposição aos de qualidade, que marcaram o romanti~mo.Assim dispõe:
o que é universal e eterno, o que é racional e comumente válido, o que é estável, duradouro, essencial, o que interessa ao maior número, será considerado superior e fundamento de valor entre os clássicos.
o único, o original, o novo, o distinto e o marcante nahistória, o precário e o irremediável são lugares românticos.
A À.s virtud~s clássicas de veracidade e de justiça, o romantlco opora as de amor, de caridade e de fidelidade' se osclássicos se apegam aos valores abstratos, ou ao men;s universais, os românticos preconizam os valores concretos e
409. Idem, p. 105.
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particulares; à superioridade do pensamento e da contemplação, preconizada pelos clássicos, os românticos oporão ada ação eficaz.4lo
Perelman definirá como senso comum a série de crenças admitidas no seio de uma determinada sociedade e queseus membros presumem compartilhadas por todos os seres racionais. 411 Mas ao lado dos valores privilegiados pelosenso comum, existem outros acordos cujos objetos provêm de disciplinas e crenças particulares. Esses acordosconstituiriam o corpus de uma ciência ou de uma técnica,podendo também resultar de determinadas convenções oumesmo de adesão a textos. 412 Pode acontecer ainda que oorador deva procurar o acordo em atitudes que gerem aadesão implícita, como é o caso do juramento.
Utilizando-nos da classificação apresentada por Viehweg em torno da tópica de primeiro grau e de segundograu, cada qual referida a um catálogo específico de topoi,podemos configurar o direito como uma disciplina específica e que, por isso, possui um "catálogo" próprio, formadopelos princípios retirados da lei, da doutrina e da jurisprudência. 413 No direito, tanto incidem topoi de ordem geral,fundamentados no senso comum, capazes de balizar o raciocínio como em qualquer discussão, até mesmo o jurídico (afinal o direito faz parte da natureza social e se integraculturalmente), quanto topoi que correspondem ao seupróprio âmbito de conhecimento. A jurisprudência talvezseja o mais importante catálogo de topoi, pois ela não sóconsagra a tradição jurídica, consolidando o entendimento
410. Idem, p. 111.411. Cabe lembrar aqui a função edificante do discurso epidítico nosentido de provocar a comunhão sobre valores.412. Perelman. Tratado da argumentação, p. 112.413. L6gícajurídica,p.120.
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sobre situações semelhantes e, com isso, obedecendo a regra de justiça que determina seja dado tratamento igualpara situações essencialmente semelhantes, como tambémoferece acordos prévios sobre quais sejam as interpretações mais razoáveis numa determinada época, o que permite a flexibilidade do sistema.
Outro aspecto é o valor da tópica, como um todo, paraa Nova Retórica, no que reconhece o acordo inicial e atémesmo o conhecimento que o orador tem do seu auditório. Sabemos que para um bom desempenho o orador deverá adaptar-se sempre ao seu auditório, tanto em relaçãoàs teses que este conhece ou admite quanto àquelas queestaria apto a admitir. São essas teses que sustentam oponto de partida da argumentação, sob pena de se incorrerno que Perelman denomina de petição de princípio. A petição de princípio corresponderia a um defeito de argumentação ou erro primeiro do orador quando este não sepreocupa com a adesão do auditório às premissas do seudiscurso, construindo-as aleatoriamente.414 Para Aristóteles, um erro na técnica da demonstração, quando se postula aquilo que se quer provar.
Finalmente, como mostra da relação existente entre atópica e a argumentação, temos, ainda, o prefácio queViehweg escreve à terceira edição de Tópica eJurisprudência, publicada em 1965, quando faz referência a ChalmPerelman e Recaséns Siches como jusfilósofos que atri-
414. Cf. Perelman, O império retórico, páginas 41 e 42.Muitas vezes, lembra Perelman, não se podendo identificar as te
ses existentes, por não corresponderem a um corpo de doutrina, etratando-se de um público heterogêneo, apela-se para o sentido comum. Cada orador, em cada época, faz uma idéia do que o sentidocomum admite e dos fatos, teorias e presunções, valores e normas quese consideram admitidos por todo ser razoável. Cf. Lógica jurídica, p.155.
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buem à tópica significado especial. No prefácio à quartaedição, quatro anos mais tarde, Viehweg diz acreditar queuma teoria satisfatória da Jurisprudência tem que se voltarpara a retórica. O jurista, de acordo com Viehweg, aparececomo um perito da argumentação jurídica, dentro dos quadros de uma teoria geral e retórica da argumentação, isto é,de uma teoria do discurso fundamentante. Na quinta edição de Tópica e Jurisprudência, de 1973, acrescenta umnono e último parágrafo, em que sugere ao leitor que o leiaem primeiro lugar. Nele, Viehweg chama a atenção para asituação discursiva e dialógica relativa à pragmática atual.
Perelman, à sua vez, não trata da hermenêutica comoum processo mais amplo e referenciado à situação do intérprete. Ele não assume o ambiente de compreensão queaproxima objeto, intérprete e situação, cingindo-se basicamente à relação dialógica que o intérprete experimenta. Ainterpretação aparece como um processo de concretizaçãoda norma, decorrente de uma atividade que não incorporaa participação do juiz em um contexto de compreensãohistórica, como faz Gadamer, por exemplo. A interpretação apresenta-se como um processo externo ao intérprete,apesar de contar com a sua habilidade e com o seu poderde convencimento. Fato é que a dimensão do compreender não aparece em Perelman, como também a dimensãoargumentativa não aparece em autores que se preocupamem teorizar sobre a hermenêutica. A nossa proposta aqui éjustamente tentar conciliar ou trazer como partes de ummesmo processo a hermenêutica, a interpretação e a argu-
mentação.Com alguma propriedade, porém, Perelman aproxima
a argumentação da interpretação, através da tópica quepresume a compreensão de valores. A idéia de razão, sobretudo em suas aplicações práticas, liga-se ao que é razoável, e tem indiscutíveis laços com as idéias de senso co-
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mum. Podemos, assim, identificar os lugares comuns comos pontos de vista ou valores considerados em toda discussão. Esses valores podem vir traduzidos sob a forma deprincípios ou máximas, e daí a importância dos PrincípiosGerais de Direito,41S em fatos e acordos prévios de determinados auditórios, assim como na adesão à lei.416
Os lugares-comuns, de acordo com Perelman, desempenham na argumentação um papel análogo ao dos axiomas num sistema formal, mas destes se diferem porquecontam com um tipo de adesão outro que não o fundadona evidência. Por exemplo, a discussão em torno da liberdade pode ter como parâmetro o princípio de que "a liberdade é preferível à escravidão". No entanto, esse acordonão garante necessariamente o acordo sobre a concretização da liberdade: uns podem acreditar que ela é encontrada num estado natural ou próximo do que pode ser imagi-
415. Sobre a importância dos Princípios Gerais do Direito para a tópica jurídica, encontramos em Perelman as seguintes palavras: "Emboradiferentes por natureza dos princípios gerais do direito, as máximasrepresentam pontos de vista que a tradição leva em consideração efornecem argumentos que a nova metodologia, que busca conciliar afidelidade ao sistema com o caráter sensato e aceitável da decisão, nãopode desprezar. [... ] A importância dos lugares específicos do direito,isto é, dos tópicos jurídicos, consiste em fornecer razões que permitem afastar soluções não eqüitativas ou desarrazoadas, na medida emque estas negligenciam as considerações que os lugares permitem sintetizar e integrar em uma visão global do direito como ars aequi etbani." Lógica jurídica, p. 119 e 120.416. Perelman recorre ao trabalho de Struck sobre a tópica no direito,que procura evidenciar o duplo aspecto dos lugares comuns: "pontosde vista que, quando tomados em consideração, dão lugar a argumentos; argumentos que se encontram em todos os ramos do direito. [... ]Alguns desses Zaei afirmam princípios gerais de direito, outros sãomáximas ou adágios formulados em latim, e outros, finalmente, indicam os valores fundamentais que o direito protege e põe em prática."Lógica jurídica, p. 119 e segs.
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nado como um estado natural, enquanto outros preferementender a liberdade como algo existente apenas numa sociedade planificada. A liberdade de contratar, por exemplo, pode ser vista paradoxalmente como escravidão daparte economicamente mais fraca da relação contratual. Aidéia de democracia também se apresenta como lugarcomum nas sociedades ocidentais, provocando severas polêmicas quando se trata de adequá-la a meios e fins. Nãoobstante, esses lugares-comuns de conteúdo bastante geralproduzem outros mais específicos, capazes de sustentaruma argumentação. Por exemplo, a partir do momento emque se fixe um acordo sobre o significado e o alcance dotermo liberdade, uma argumentação pode ser levadaadiante.
Com essas considerações, acreditamos poder firmaruma posição razoável para a crise do método jurídico, tentanto aproximar os valores, dos princípios de direito e dainterpretação: uma proposta hermenêutica.
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Capítulo 5
PERSPECTIVAS DA RACIONALIDADEJURÍDICA CONTEMPORÂNEA
Este estudo tomou como parâmetro a mudança de paradigma verificada no âmbito da dogmática jurídica, a partir de meados do século XX. A dogmática abrange o âmbito próprio da juridicidade, melhor dizendo, da prestaçãojurisdicional realizada pelo Estado. A tarefa de "aplicar alei", típica do juiz, conforme dispõe o artigo 5° da Lei deIntrodução ao Código Civil Brasileiro, consiste em fazerincidir o direito sobre a situação conflituosa, oferecendolhe uma solução. Esse "aplicar" é justamente o que interessa à hermenêutica jurídica, uma vez que aplicar importa nainterpretação da norma e do fato, em direção a uma decisão. A hermenêutica, portanto, é prática e concreta.
O direito de que tratamos corresponde, na realidade,ao campo dogmático-conceitual, que serve de premissa aoraciocínio jurídico, na medida em que a lei escrita, em nosso sistema, ainda é considerada a principal fonte de direito. Não obstante a flexibilidade e a liberdade de interpre-
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tar a norma, conforme demonstram os resultados da doutrina e da jurisprudência, a lei ainda é a base principal darazão jurídica. Por outro lado, procuramos também mostrar, com apoio nas teorias de Viehweg, Recaséns Siches eCastanheira Neves, o contraponto que o fato, ou o problema, exercem diante da lei. Para a hermenêutica, não setrata de pensar o direito de forma abstrata, independentemente da sua realização, uma vez que é o problema que incita o direito, mas sim pensar o problema comocentro de gravidade de toda discussão jurídica. O justo ouo razoável juridicamente, para cada situação, é determinado pelo direito aplicado; o direito concretizado. O que ditao direito é a sentença do juiz, ao determinar o que cabe acada uma das partes.
Compartilhamos da noção de dogmática preconizadapor Tércio Sampaio Ferraz Jr., que se baseia na inegabilidade dos pontos de partida e na decidibilidade dos conflitos. Ocorre que, até agora, a dogmática jurídica fundamentou-se no paradigma do Estado liberal, apoiado no jusnaturalismo, pautado na universalidade do bom direito e nasqualidades intrínsecas do homem, que o acompanham aqualquer lugar e em qualquer tempo. De acordo com estaconcepção, existe uma ética e uma moral universais, consubstanciadas no direito natural, que devem orientar asatividades legislativa e jurisdicional. Este seria o verdadeiro direito, independentemente das circunstâncias históricas que informam os atos e fatos jurídicos.
Ao contrário dessas posições monolíticas, o que seaponta agora, sob o viés da pós-modernidade, é que, nolugar do universal, encontra-se o histórico; no lugar dosimples, o complexo; no lugar do único, o plural; no lugardo abstrato, o concreto; e no lugar do formal, o retórico. 417
417. A propósito ver André-Jean Amaud, em O direito entre modernidade e globalização.
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Não se vê mais como condizente à prestação jurisdicionalaquele juiz que se reporta a conceitos abstratos, que procura uma verdade absoluta capaz de decidir a questão, descurando-se do subjetivismo (ou do intersubjetivismo) social, que levam a possíveis verdades jurídicas. A lógica formal não serve mais ao direito, porque a solução jurídicanão se restringe a uma operação puramente teórico-silogística. A subsunção dos fatos à regra geral (que funcionacomo axioma) pode produzir um resultado formalmentelógico, mas não adequado à realidade. O pensamento jurídico não se conforma com um tipo de raciocínio linear queignora a dialética e os valores que informam a hermenêutica. A inegabilidade dos pontos de partida, que aponta paraa inexorabilidade da lei, não impede de trabalharmos umainterpretação mais adequada para cada caso. Por isso, épreciso reconhecer uma nova racionalidade capaz de orientar a dogmática jurídica e, ao mesmo tempo, defendê-la dapecha da arbitrariedade, o que nos parece bastante possível com o auxílio da tópica e da retórica.
Com esse intuito, analisamos alguns dos principais filósofos e teóricos do direito, que têm procurado enfrentar aquestão. Gadamer, por exemplo, provocou uma reviravolta na hermenêutica das ciências sociais. Em lugar de se fiarno sentido técnico-científico, ainda que histórico, e queorientou a hermenêutica moderna, optou por trabalharcom categorias de caráter ontológico-existencialista. Oque se depreende da teoria de Gadamer é que, no lugar depretendermos dominar o fenômeno hermenêutico, devemos antes compreendê-lo. Com Ricoeur, acompanhamosa tarefa de lidar com a interpretação de textos escritos,dentre os quais podemos destacar a lei.
Para chegarmos a este ponto, foi necessário proceder àelaboração de um escorço histórico sobre a evolução do
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pensamento jusfilosófico moderno, que marcou a tradiçãoromano-germânica e que serve de arrimo à nossa cena. Afinal, trabalhamos ainda sob a égide da constante tensão decorrente do embate entre os pressupostos da ordem e dasegurança, de um lado, e da justiça e eqüidade de outro.De um lado, o Estado de Direito que quer ter na lei ocontrole do poder político (segurança); e, de outro, o Estado Democrático de Direito, que reclama padrões de justiça concreta e maior participação política.
Procuramos também destacar a dimensão concretaprópria do pensar jurídico, orientado que é para o problema que se pretende resolver. Coube a Chalm Perelmanrealizar a grande guinada na área da metodologia jurídica,quando apontou para as dimensões retórica e argumentativa que, na realidade, fazem o direito. O direito origina-seda prática; não se limita ao conteúdo do texto da lei: surgee é orientado pelas teses construídas sob os parâmetros dofato e da lei, num confronto de idéias que vêm legitimarcada decisão tomada de per si. Ressaltamos, assim, algumas das contribuições mais significativas para a reflexãojurídica contemporânea, avessa à adoção do raciocínio lógico-linear para, em lugar desta, apresentar uma propostamais voltada para a intersubjetividade e para o desafioconstante de se lidar com situações que requerem respostas convincentes e criativas.
A produção científica, principalmente no que diz respeito às ciências humanas e sociais, tem se empenhado emrever seus padrões metodológicos, reinventando um modode pensar capaz de lidar com essa enorme, variada e complexa gama de situações. Gadamer, Perelman, Viehweg,Recaséns Siches e Castanheira Neves retratam bem essatemática, não apenas quando trazem o relativismo histórico para a nova hermenêutica, mas também quando confe-
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rem importância à característica retórico-argumentativa econcreta das relações jurídicas.
A nova racionalidade jurídica, identificada neste trabalho com a tópica e com a retórica, corresponde a um novomodo de pensar o direito. Por um lado, a nova hermenêutica, que procura dar conta da complexidade que orienta osignificado da ação social, na qual incluem-se as relaçõesjurídicas; e de outro, a nova retórica, que reúne elementosda teoria da argumentação e da tópica, capazes de legitimar novas situações. No entanto, percebemos que a maioria dos autores que analisam a argumentação no âmbito dadogmática jurídica não aproximam a retórica da interpretação, ao menos no que se refere à reflexão hermenêutica.Perelman, por exemplo, parte simplesmente da verificação de que técnicas de argumentação são utilizadas no direito, sem, contudo, indagar sobre a orientação hermenêutica experimentada pelo intérprete.418 Nesse sentido, caberia perguntar: por que a discussão que se processa noâmbito do judiciário, ou mesmo da dogmática jurídica, seutiliza da técnica argumentativa? E, ainda, onde estaria odireito: na descrição pura e simples da lei, ou nas razõesque justificam posições de cunho decisório? Verificamosque quando o raciocínio se refere à escolha de uma posiçãoem lugar de outra, esta escolha não se processa por meiode uma fórmula capaz de garantir-lhe exclusividade, ouseja, de apresentar a solução como a única possível. Nãoobstante, uma deliberação, qualquer que seja, não se dá àtoa, pois, quando deliberamos, o fazemos em função de
418. De acordo com Perelman, "a teoria da argumentação não temque tomar posição num debate ontológico. Basta-lhe verificar que aidéia que se faz da pessoa e a maneira de compreender seus atos seencontram em constante interação". Cf. O império ret6rico, p. 105.
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um determinado modo de pensar, relativizado a valores.Donde, a lógica que fundamenta nossas ações não é a dotipo formal, mas alguma outra que aponte em direção àrazoabilidade dessas ações. As decisões razoáveis, de acordo com Perelman, são aquelas que apresentam melhorescondições de se impor pela força dos seus argumentos, emlugar de se imporem pela força bruta. Sua aceitação implica, portanto, sua legitimidade. Por outro lado, temos que amelhor interpretação se forma não apenas sobre tesesplausíveis, construídas com base em argumentos quase lógicos ou em argumentos que se fundam na estrutura doreal, mas também sobre opiniões amplamente aceitas (topoi). A interpretação que prevalece é a do argumento maisforte, ou seja, aquele que, ao menos num determinado momento, apresenta-se como irrefutável; e irrefutável porquecoadunado com os valores admitidos pela sociedade oumesmo por um determinado grupo (auditório).
O juiz, como todo profissional do direito, é levado ainterpretar o problema que lhe é apresentado, em funçãode uma solução que pode vir-lhe à mente de imediato.Muitas vezes, e o que parece natural, o juiz afere o seupróprio sentido de justiça, para, em seguida, buscar umajustificativÇl racional conforme o ordenamento jurídico vigente.419 Tal justificativa, porém, não haverá de ser tãosimples, uma vez que deverá estar apta a enfrentar tesescontrárias. Dessa maneira, a solução intuitiva e primeiraexperimenta todo um processo de maturação que pode lhetrazer benefícios, até apresentar-se sob a sua forma definitiva.
419. Sobre a razão que preside o processo de concretização e aplicação da lei ver o estudo de Carlos Alberto Direito, "A decisão judicial",publicado na Revista de Direito da Renovar. (Vide bibliografia.)
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A decisão, por sua vez, corresponde à própria concretização do fato jurídico, que demanda uma postura historicista. Do mesmo modo que Gadamer aponta para a importância da cultura e da tradição na interpretação das situações históricas, Perelman também traz os precedentes judiciais como pontos de vista já aceitos e, portanto, capazesde legitimar interpretação semelhante para caso semelhante. Tais pontos de vista, por sua vez, referem-se a todoum ambiente cultural do qual fazem parte tanto o intérprete quanto o objeto interpretado, constituindo uma verdadeira situação hermenêutica, conforme nos fala Gadamer.
Procuramos, todavia, chamar a atenção para o fato deque a compreensão no campo do direito dá-se por intermédio da argumentação. A interpretação, enquanto açãomediadora entre a pré-compreensão e a compreensão, é deíndole nitidamente concretizadora e argumentativa. E, sepensarmos que compreender é indagar sobre as possibilidades de um acontecer próprio das relações humanas, ou,segundo Heidegger, o caráter ôntico original da vida humana mesma: o estar-aí que se interpreta,420 temos que o direito só existe enquanto compreendido.421 Interpretamos
420. "A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. [... ]Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença secompreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seuser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é,sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do serda pre-sença. Heidegger, Ser e tempo, parte I, página 38.421. Compreensão (Verstehen), segundo Enrique Aftalión e José Vilanova, não é método específico das ciências sociais, mas a forma emque o homem tem experiência do mundo social e das ações do homemde acordo com construções de sentido comum. Cf. Introduccion aIderecho, p. 415-416.
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algo concreto, que é a conduta tipificada como jurídica, ejustificamo-la por meio de argumentos que pretendemosconvincentes. E, se pensarmos que é por meio da argumentação que se dá a interpretação, isto é, que a tese vencedora é que nos impõe um significado passível de produzirefeitos sobre a realidade, podemos achar que a hermenêutica é ontológica. Lembremo-nos que, no direito, a coisajulgada constrói uma verdade jurídica (aletheía ou desvelamento da decisão correta), que corresponde à tomada deposição por sua vez produtora de efeitos sobre a realidade.
Para nós, porém, o distanciamento entre a hermenêutica e a argumentação é uma lacuna que nos foi legada tanto pelos filósofos que se ocuparam mais de perto com aquestão da compreensão, ou da hermenêutica de modo geral (como é o caso de Gadamer, apesar do estudo sobrelinguagem que desenvolve na última parte de Verdade eMétodo), quanto por aqueles que investiram maciçamenteno estudo da eficácia das técnicas da argumentação, comoPerelman. 422 Foi este, no entanto, quem, na ânsia de indagar sobre o uso da razão que informa a práxis, projetouuma ponte entre a hermenêutica e a argumentação, aindaque não assumisse propriamente o problema hermenêutico. Com base na retórica, que informa a justificação dasdeliberações humanas, Perelman, na realidade, indagacomo o homem, ou a sua consciência, efetivamente enfrenta a dimensão histórica, o que-fazer histórico, sujeito àcompreensão. Perelman verifica que a racionalidade prática se insere no âmbito de uma instância dialógica. E é, pois,
422. Vale lembra aqui a importância do trabalho de José Lamego:Hermenêutica e Jurisprudência, onde é analisada a recepção da "novahermenêutica" de Heidegger e Gadamer pela Jurisprudência, afastando-se da posição tradicional que festejou o direito até praticamentemeados do século XX.
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na relação discursiva entre as pessoas, cujas opiniões nãotêm necessariamente que coincidir, que se dá o esforçohermenêutico. É o eu deixando-se falar pelo tu, até atingirmos um significado válido para as situações ou questõeshumanas que nos são impostas. Perelman também nosmostra que o diálogo se realiza por meio de argumentos(teses que pretendem resultado), e que as posições tomadas pelos agentes são sustentadas pelas justificativas apresentadas. E é exatamente na justificação que percebemoso fazer interpretativo que sugere a compreensão.
Vale lembrar a natureza democrática desta concepçãometodológica, uma vez que, adequando-se uma solução jurídica razoável para cada situação concreta, somos capazesde produzir alguma carga de satisfação social. Neste ponto,por que não falarmos de justiça? Se a aplicação da justiçadepende do apaziguamento das partes mediante convencimento, podemos achar que sim. Mas a questão principalque norteia nossa tese é a da racionalidade jurídica. Comoo direito é pensado? ou: Como o direito se realiza e podeser conhecido? A verdade estaria na compreensão do próprio mundo, e o sujeito, como ser presente e temporal,interpreta o seu mundo enquanto parte integrante dele.Logo, o acontecer revela-se na consciência do próprio ser.O direito, como produto de relações intersubjetivas, também faz parte desse mundo humano e, por isso, deve sercompreendido na totalidade do ser historicamente referenciado.
Sustentamos que a racionalidade característica do pensamento jurídico envolve a hermenêutica (compreensão),a argumentação e a interpretação. Primeiro, a apresentação do problema motiva a interpretação, o que significaque uma solução legal deverá ser dada, e, com isso, instaura-se o fenômeno jurídico que é experimentado pelo intérprete. Em função desse problema, o intérprete raciocina
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juridicamente, o que significa dizer que ele domina a dogmática jurídica: lei, doutrina e jurisprudência. Por outrolado, o intérprete encontra-se inserido e faz parte de umadeterminada tradição que lhe informa os valores e as condições em pauta, como pré-compreensão do problema.Daí, a partir do que podemos chamar de um projeto inicial, o intérprete indaga sobre as várias significações possíveis do problema, através de argumentos que constrói,para, finalmente assumir uma posição, isto é, decidir.
A argumentação dá-se num campo discursivo que podeser puramente mental, oral ou escrito, desde que as tesesapresentadas pressuponham outras que lhe possam servirde objeção. A intersubjetividade apresenta-se, assim, namedida em que todas as teses e/ou considerações feitaspelo intérprete concebem outros atores que se relacionemdireta ou indiretamente com o problema. Prevalece a tesemais forte, ou seja, aquela que consegue impor-se aos adversários ou aos pseudo-adversários. A partir desse jogo deforças, estabelece-se uma solução correspondente à compreensão do problema, sendo que esta solução é definitivaapenas para efeitos de superarem-se as dificuldades trazidas pelo problema, pois nada impede que essa mesma solução sirva de ponto de partida para questões semelhantes,como nos aponta a jurisprudência. Dessa forma, aproximamos a hermenêutica da tópica e da argumentação: a hermenêutica como método ou orientação de raciocínio, a tópicacomo mola propulsora e centro de gravidade que garanteesse movimento, a argumentação como organização dopensamento, enquanto o discurso corresponde à exteriorização do raciocínio, e a interpretação à fixação da compreensão.
Conforme o pensamento gadameriano, cada intérpretetem o seu horizonte, produto da educação, da socializaçãoe da experiência vivida. Não existe uma interpretação ver-
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dadeira ou única. Existe sim, uma interação entre intérprete e objeto. As várias perspectivas, no entanto, não significam que não possa haver acordo, uma vez que o acordo éalcançado por meio do diálogo, quando os diferentes pontos de vista são expostos, questionados e eventualmentereformulados. Em geral, verifica-se uma similaridade dehorizontes uma vez que provenientes de uma mesma basesocial e intelectual que forma os intérpretes.423 Por isso éque muitos textos, no nosso caso as leis, possuem significados que gozam de estabilidade e dispensam o esforço interpretativo.424
A partir deste estudo, concluímos, então, que o direito,apesar de toda sua carga dogmática, faz parte de uma tradição filosófica cuja base reside na tópica e na retórica; oque nos leva a acreditar que o seu conhecimento, comocriação humana, histórica e social, comporta uma dimensão hermenêutica. Voltamos, assim, à nossa posição inicial,afirmando que o direito consiste na realização de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa.
Atualmente, muito se fala em razoabilidade e em proporcionalidade como postulados de interpretação jurídica,mormente no campo do direito público. No entanto, oajuste de valores que o princípio da proporcionalidade preside depende de uma instância argumentativa que temsido negligenciada. Afinal, quando dois ou mais princípiosse enfrentam, qual deve ceder em benefício do outro e emque medida? Qual a proporção razoável à medida adequada? A partir dessas indagações, esperamos poder contribuir para o debate sobre a questão da razoabilidade no direito brasileiro.
423. Vide James E. Herget, Contemporary german legal philosophy.424. Cf. WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constituci6n y teoria general de lainterpretaci6n jurídica..
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A importância da dimensãoargumentativa à compreensão da
práxis jurídica contemporânea
Antônio Cavalcanti Maia *
A interpretação dos dItames legais e a fundamentaçãodas decisões adotadas em nome do direito têm sido preocupações básicas daqueles envolvidos com a práxis do direito. A lei se apresenta como ponto fulcral da vida jurídicadesde a Revolução Francesa, mas não pode prescindir nasua aplicação de um esforço que realize a mediação entre ocomando universal e a situação específica do mundo fenomênico na qual ela incide, constituindo este um problemaperene do afazer do trabalhador no campo do direito. Já amotivação das decisões judiciais, garantia do Estado democrático de direito, exige a atenção às regras norteadoras daspráticas argumentativas - presentes nos mais diversos aspectos da vida forense - sobretudo quando da justificação
Professor de Filosofia do Direito da Universidade do Estado doRio de Janeiro e de Filosofia e Filosofia do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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racional das decisões dos magistrados, sem a qual não podem estes funcionários do Estado agir de acordo com osprincípios que legitimam a democracia.
Margarida Lacombe Camargo enfrentou com brilho atarefa de apresentar o debate contemporâneo acerca dessas duas dimensões axiais do funcionamento do direito. Oseu mérito deve ser sublinhado, especialmente, por tornaracessível aos jovens estudantes uma grande massa de informações doutrinárias capazes de propiciar uma compreensão mais apurada do fenômeno jurídico neste início de milênio, sobretudo em uma cultura jurídica como a nossa, deforte tradição positivista-legalista, em que as questões hermenêuticas e argumentativas não têm merecido a devidaatenção. Neste breve posfácio ao trabalho de MargaridaLacombe Camargo, deixo de lado as considerações relativas aos problemas hermenêuticos e prefiro concentrar minhas atenções em alguns aspectos acerca do caráter argumentativo da práxis jurídica, no intuito de acrescentar algumas considerações às valiosas informações apresentadasneste livro, sobretudo elaborando certas reflexões acercade duas das principais referências teóricas utilizadas nestaobra: Chai"m Perelman e Theodor Viehweg.
Entretanto, antes de me concentrar nas questões próprias do âmbito jurídico, cabe destacar que estes dois troncos de reflexão privilegiados por Margarida Camargo, nomeadamente a hermenêutica e a argumentação,! foram
1. Cabe esclarecer, de início, que parte significativa dos trabalhosrecentes no campo da argumentação - sobretudo aqueles com grandeimpacto no campo do direito e privilegiados neste livro - têm comomatriz uma reapropriação da tradição retórica de base aristotélica.Neste sentido, há de se destacar que a dimensão retórica adotada poresses autores está focalizada no âmbito da argumentação e não nocampo da literatura. Como observa Michael Meyer: "Desde Aristóteles e possivelmente por sua causa, a retórica divide-se em retórica dos
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domínios do debate teórico recebedores de uma enormeatenção nas últimas três décadas. Em todo o largo leque deinvestigações subsumidas ao âmbito das humanidades ciências humanas e sociais, ciências morais (na linguagemanglo-saxônica), ou Geisteswissenschaften - as abordagens retórica e hermenêutica capturaram a atenção dospesquisadores insatisfeitos com a perspectiva positivistahegemônica, fortemente marcada pelas ciências da natureza, e incapaz de dar conta do múltiplo e plural domínio dosnegócios humanos. Ora, as repercussões destes dois troncos teóricos no campo do direito confirmam o que podeser caracterizado, em certo sentido, como uma virada hermenêutica observada na área das humanidades, máximenos estudos literários, filosóficos, teológicos e jurídicos.Importa observar tais abordagens objetivarem umaapreensão mais fina da dimensão da realidade marcadapela história, referida a valores e aberta à busca de sentido.Assim:
Acima de tudo, tanto a retórica como a hermenêuticaocupam um domínio que não é exclusivo aos experts e aosteóricos. (...) Este é o campo da ação e do pensamento quotidianos e das contestáveis premissas de nossa cambianterealidade social. As teorias dos experts de qualquer tipo iso-
conflitos e retórica das figuras. A primeira ocupa-se da argumentação,da dialética, das intersubjetividades e seus conflitos. Ela vai marcarsobretudo o direito. A segunda remete ao estilo e aparece associada àteoria literária". MEYER, Michel. "Argumentação e questionamento".In. CARRILHO, M. M. Corg.) Dicionário do Pensamento Contemporâneo. Lisboa, Editora Dom Quixote, 1991, p. 11. Há também desenvolvimentos recentes no campo da argumentação, como as perspectivas de Jürgen Habermas na tradição clássica, mas apoiando-se naspesquisas no campo da lógica informal - como a obra de StephenToulmin - e nos mais recentes debates ocorridos no âmbito da filosofia anglo-saxônica da linguagem ordinária.
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Iam aspectos de um determinado campo para tratamentoespecial, construindo suas estruturas de observações, idéias,regras e leis, mas sempre com o risco de deixar de ladoaquela miríade de partes indeterminadas que se combinampara constituir a totalidade do ser humano (...). A retóricacomo a hermenêutica nos faz retornar a essa finita e contestada totalidade da experiência quotidiana, em relação à qualtoda teoria - apesar de possuidora de um amplo espectrode atuação e competência no seu uso apropriado - é existencialmente fina e frágil. 2
Não parece ser necessário muito esforço de persuasãopara que os conhecedores da vida jurídica reconheçam aserventia desse tipo de perspectiva para o enfrentamentoda realidade conflituosa no mundo do direito. A crescentediferenciação do mundo social contemporâneo acarretanecessariamente um grau maior de complexidade dos próprios problemas enfrentados na vida diária dos operadoresdo direito, exigindo uma maior sofisticação do seu aparatometodológico. Daí, o crescente interesse por essas discussões teóricas esmiuçadas por Margarida Camargo.
A importância da dimensão retórica e argumentativano tratamento metodológico do direito tem sido destacadanos últimos anos. Como salienta Miguel Reale: "Se há bempoucos anos alguém se referisse à arte, ou à técnica da argumentação, como um dos requisitos essenciais à formação do jurista, suscitaria sorrisos irônicos e até mordazes.Tão forte e generalizado se tornara o propósito positivistade uma Ciência do direito isenta da riqueza verbal, apenasadstrita à fria lógica das formas ou fórmulas jurídicas (...).
2. JOST, Walter e HYDE, Michael J. "Introduction: Rethoric andHermeneutics: Places Along the Way". In. JOST, Walter e HYDE,Michael J. Ced.) Rethoric and Hermeneutics in Our Time: A Reader.New Haven: Vale University Press, p. XIX, 1998.
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li, '.;;
De uns tempos para cá, todavia, a Teoria da Argumentaçãovolta a merecer a atenção de filósofos e juristas, reatandose, desse modo, uma antiga e alta tradição, pois não devemos esquecer que os jovens patrícios romanos preparavam-se para as nobres artes da Política e da Jurisprudêncianas escolas de Retórica."3
Se, no início dos anos setenta, já se impunha a constatação da importância da retórica e da argumentação à reflexão jurídica, como constata Reale, no final dos anos noventa pode-se afirmar que esta perspectiva tornou-se umadas mais ricas áreas do debate de teoria do direito. Após ostrabalhos pioneiros de Cha"im Perelman e Theodor Viehweg, toda uma linhagem de autores se identificou com estaperspectiva, como, por exemplo, Manuel Atienza, AulioAarnio, Klaus Günter, Robert Alexy, Karl Engish, TércioFerraz,4 entre outros, demarcando o campo mais rico dodebate jusfilosófico contemporâneo.
A obra precursora desta perspectiva, O Tratado da Argumentação, publicado em 1958,s é o resultado conjunto
3. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Ed.José Bushatsky, 1973, p. 109.4. Qualquer autor em nosso país que procure desenvolver reflexões àluz da perspectiva tópica é devedor do magistério de Tércio SampaioFerraz Júnior. Quanto ao aspecto mais específico de uma teoria daargumentação desenvolvida segundo a inspiração da tópica, ver-se especialmente Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, EditoraAtlas, 1988, 1a ed., sobretudo páginas 294 até 314.5. Inobstante a publicação anterior, em 1953, do principal livro deTheodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, epicentro de boa partedas transformações observadas na metodologia jurídica alemã do pósguerra, o livro de Perelman pode ser destacado como o ponto capitalna reabilitação da retórica nos debates filosóficos e jurídicos contemporâneos. Ademais, a perspectiva aqui trilhada se encontra mais próxima daquela sustentada por Perelman do que da de Viehweg. Embo-
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do trabalho de Chalm Perelman e L. Olbrechts-Tyteca,constituindo uma das mais interessantes vertentes do debate filosófico contemporâneo. No campo do direito, otrabalho de Perelman se estendeu por mais de trinta anos,como testemunhado na sua coletânea de livros, recentemente publicada no Brasil, intitulada Ética e Direito. Nodomínio específico da metodologia do direito - já que acoletânea supramencionada versa sobretudo, à exceção dasua quarta parte, acerca de temas de filosofia do direito efilosofia política - o seu livro principal é Lógica Jurídica- Nova Retórica (há tradução castelhana), onde aplica asconseqüências de sua perspectiva filosófica, alicerçada noTratado da Argumentação, ao mundo do direito. Nestemomento, tem-se a elaboração de uma metodologia jurídica distinta das tradicionais até então desenvolvidas de inspiração positivista. Este viés metodológico, compartilhado
ra ambos compartilhem a posição de fundadores da 'nova retórica', oponto de vista de Perelman avança no debate filosófico, enquanto o deViehweg - apesar das enormes conseqüências jusfilosóficas advindasda sua démarche - não se posiciona naquela arena. Sem poder esgotaraqui esta questão, cabe salientar apenas uma referência onde se sublinha o impacto da abordagem perelmaniana no debate filosófico atual,situando o campo da racionalidade aberto pela 'teoria da argumentação' para além daquele reconhecido pelo positivismo lógico: "Há necessidade de se reabrir espaço para outra forma de racionalidade,igualmente legítima e insubstituível, sobretudo nos campos do verossímil, plausível, do provável, na medida em que escapa às certezas docálculo. Esse é o território da Teoria da Argumentação'." PESSANHA, José Américo Motta. "Nova Retórica ou Teoria da Argumentação". In. Paradigmas Filosóficos da Atualidade, org. Maria M. Carvalho, Campinas, Editora Papiros, 1989, p. 230. Para uma breve reflexão sobre a posição de Perelman, neste particular, cf., MAIA, Antônio C. "Elementos Filosóficos da Teoria da Argumentação de Perelman". In. Cadernos PET-JUR, Rio de Janeiro, Departamento de Direito da PUC-Rio, ano IIl, 1997, pp. 3 até 9.
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também por Theodor Viehweg, é marcado por concepçõesoriundas da filosofia e retórica aristotélica. Em relação aeste tipo de abordagem, um autor situado próximo a estaperspectiva, Karl Engish, em uma longa passagem, circunscreve a trajetória histórica desta discussão:
Isto entende-se muito bem se neste ponto transitarmospara um conceito para o qual no ano 1953 o filósofo dedireito de Mongúncia, Theodor VIEHWEG, veio chamar aatenção, e que subseqüentemente se tornou objeto de vivadiscussão, para um conceito do qual podemos dizer que encontra o seu lugar próprio no limiar entre a metódica jurística e a reflexão jurídico-filosófica. Quero referir-me ao conceito da 'Tópica'. Este conceito, que já aparece no 'Organon', na grandiosa Lógica de Aristóteles, e aí é aplicado a argumentos que se não apóiam em premissas seguramente 'verdadeiras', mas antes em premissas simplesmente plausíveis(geralmente evidentes ou que pelo menos aos 'sábios' aparecem como verdadeiras), sofreu no transcurso da sua evolução histórica variadas modificações, associou-se à retórica,encontrou também guarida na dialética forense, mereceuainda uma vez mais acolhimento em VICO (num escrito doano 1703), mas que na era moderna, porque o pensamentose voltou para métodos científicos mais exatos, tais como osque foram elaborados na ciência natural matemática, emque pensadores como KANT foi considerado o lugar da 'esperteza' e da conversa fiada. Ora VIEHWEG vem recordara Tópica como 'técnica do pensar por problemas' que seajusta muito bem à jurisprudência, no reconhecimento (emsi inteiramente correto) em que precisamente os métodospreferencialmente exatos da fundamentação dos enunciados científicos, designadamente os métodos axiomáticosdedutivos, que, a partir de um número limitado de premissas apropriadas (eventualmente apenas postas como fundamentos hipotéticos), compatíveis e independentes entre si,alcança um amplo sistema de enunciados teóricos segundoas regras da lógica formal- de que tais métodos, dizíamos,
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não são propriamente os que importam para a teoria e aprática jurídicas.6
A tópica se organizou como uma técnica de pensar porproblemas, desenvolvida pela retórica antiga. Uma dasmaiores criações da cultura greco-romana, a retórica, originalmente desenvolvida pelos sofistas como Górgias e Pródigos, atingiu a sua organização maior no texto A Arte Retórica de Aristóteles. Disciplina capital à formação das elites culturais no mundo greco-romano - mormente aquelas ligadas ao trabalho com o direito -, recebendo desenvolvimentos importantes na obra de dois ilustres intelectuais romanos, como Cícero e Quintiliano/ constituiu elemento crucial do processo formativo intelectual dos juristas romanos. Afinada à perspectiva eminentemente casuística do procedimento judicial romano, serviu como arcabouço teórico que permitiu a progressiva elaboração lógico-doutrinária da paradigmática experiência jurídica romana.
Tanto Perelman8 quanto Viehweg fazem questão deressaltar a presença do pensamento tópico orientado para
6. ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 381 e 382.7. Perelman claramente alinha a sua empresa de reabilitação da retórica na tradição clássica de Aristóteles, Cícero e Quintiliano. Todavia,o seu interesse por esses autores "no es histórico, sino de tipo lógicosistemático. Por ello se puede renunciar aquí a responder a la preguntade en qué medida hacen justicia a la antigua tradición", como questiona R. Alexy. In. Teoria de la Argumentacion Jurídica, Madrid, Centrode Estudios Constitucionales, 1990, p. 157.8. No campo da metodologia jurídica, as aplicações da perspectivadesenvolvida no Tratado da Argumentação se dão basicamente nolivro La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica, Madrid, Editorial Civitas, 1979. Cabe esclarecer ter ocorrido uma impropriedade na tradu-
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,problemas na atividade jurídica na tradição. Tal se deu naexperiência paradigmática da cultura ocidental, o DireitoRomano. O testemunho da utilização desse estilo de pensamento se dá através, basicamente, da análise dos pareceres dos prudentes (iura) solicitados em casos controversos. Constitui esta a mais importante fonte do direito romano na perspectiva do teórico. Conhecemos o conteúdodeste material por meio da compilação de Justiniano. Suaporção mais importante era composta pelas respostas dosprudentes. Os aspectos desta parte do Corpus Iuris Civilislembram uma coleção de arestos, recolhidos em uma denossas atuais revistas de jurisprudência. Isto porque os juristas não desenvolveram ali um trabalho doutrinário decaráter abstrato e geral, e sim a solução do caso concreto.No encaminhamento do parecer, iniciavam indicando oproblema; logo em seguida, em geral, recorriam a exemplos de outros casos já decididos para alicerçar os pontosde vista alinhados na solução da querela. Em geral, consti-
ção castelhana deste livro, posto que a Nova Retórica - nome dado àteoria de argumentação desenvolvida por Perelman - foi colocada aolado da lógica jurídica. A partir do texto em castelhano pode-se imaginar que a Nova Retórica esteja articulada, como que um complemento, à lógica jurídica tradicional. Na verdade, o desiderato de Perelmané bem diferente, constituindo um dos aspectos mais radicais e inovadores de sua proposta. Eis que o filósofo de Bruxelas defende umalógica material específica para o campo do direito, e é este o sentidodepreendido da leitura do livro, e corroborado pelo seu título emfrancês Logique Juridique - Nouvelle Rhétorique, Paris, Ed. Dalloz,1979, 2" ed. Assim, desenvolve trabalhos no sentido da articulação deuma lógica específica do mundo do direito - à semelhança dos trabalhos realizados por Stephen Toulmin - contrapondo-se às obras tradicionais de lógica jurídica como os de G. Kalinowski eU. Klug, inspirados nos cânones tradicionais da lógica. Sobre esta questão, veja-se aintrodução do livro em castelhano, sobretudo páginas 14 até 16.
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tuíam as consultas problemas controversos, de difícil solução em face das normas existentes relativas ao assunto delitígio. Importa, no exame dos pareceres, observar a cerrada argumentação fundamentadora de opinião dos juristas.Recorrendo aos comandos legais existentes, a princípios emáximas - de reconhecimento consensual da comunidade jurídica - e também à opinião de outros juristas emproblemas semelhantes, organizaram um exemplar instrumento de convencimento. Como não contavam, via de regra, com qualquer autoridade de natureza política, mas exclusivamente com o prestígio de natureza moral e a reputação de conhecedores do direito, fiavam-se na força daargumentação, com a qual estribavam suas opiniões, e doconvencimento racional dela derivado.
Testemunhamos através da análise dos pareceres dosprudentes a natureza eminentemente retórica e argumentativa da práxis jurídica9 quando atinge patamares maiscomplexos de funcionamento, marcada pela busca da adesão às teses sustentadas, no enfrentamento de situaçõespassíveis de diferentes soluções encaminhadas a partir dedistintos pontos de vista. Com efeito, devido à naturezapeculiar dos casos submetidos aos juristas (semelhantes,em certos aspectos, aos hard cases, tão à moda da discus-
9. Quanto a um exemplo ilustrativo da forma pela qual se organizavam os pareceres dos prudentes, ver-se comentários de Viehweg acerca de uma querela encontrada no Digesto (O. 41, 3, 33) que dizrespeito ao caso de usucapião do filho de uma escrava roubada. Nestesentido, VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, Brasília, Departamento de Imprensa Nacional, 1979, páginas 45 até 47. Nestemesmo livro, na página 48, afirma: "o jurista romano coloca um problema e trata de encontrar argumentos. Vê-se, por isto, necessitadode desenvolver uma techne adequada. Pressupõe irrefletidamente umnexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move.Esta é a postura fundamental da tópica."
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são metodológica contemporânea), há necessidade de umacomplexa e refletida resposta por parte daquele encarregado do destrinchar da matéria, sobretudo na medida emque o parecer fornece diretrizes para o entendimento desituações semelhantes.
Contudo, não se resume a atividade dos juristas romanos ao emprego do estilo tópico de pensamento, mas também a multissecular atividade dos glosadores medievais sedeu regida pelos princípios da arte retórica. Esta disciplina, juntamente com a dialética - entendida no sentido delógica - e a gramática, constituíam o trivium, instrumento essencial à formação intelectual naquele momento. Perelman assevera também utilizarem os talmudistas judeusesse procedimento visando à solução de problemas controversos, através do embate de teses antagônicas. No caso daexperiência legal, seguem certos procedimentos, como aatenção a determinados catálogos de pontos de vista outopoi, la considerados como lugares-comuns admitidos pela
lO. Não será possível exaurir dentro dos limites deste trabalho o papelrepresentado pelos topoi no funcionamento da tópica, que, em umaacepção restrita é entendida como uma teoria dos lugares comuns Uánuma acepção larga, é compreendida como uma teoria da argumentação e dos raciocínios dialéticos), conforme define Tércio SampaioFerraz no Dictionnaire Encyclopedique de Theorie et Socíologie duDroit, Paris, L.G .DJ., 1988, p. 419. Há lugares comuns utilizáveis emqualquer tipo de discussão, como, por exemplo, 'todos os homensprocuram a felicidade', 'a justiça é preferível à injustiça', 'a liberdadeé melhor do que a servidão', salientados por Perelman no seu livroÉtica e Direito e topoi específicos do campo do direito, como, porexemplo, muitos dos brocardos latinos, máximas como 'dar a cada umo que é seu' ou certos pontos de vista como "'interesse', 'proporcionalidade', 'exigibilidade', 'inaceitabilidade', 'justiça', 'falta de eqüidade','natureza das coisas' e até mesmo, sim, 'regra da concorrência'(nacolisão de normas) e máximas de interpretação", destacados por KarlEngish. Introdução ao Pensamento Jurídico, opus cit., p.384.
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comunidade de investigadores. Estes lugares-comuns funcionam como premissas das séries argumentativas, contribuindo para a solidez do caráter razoável das opiniões sustentadas.
Com a emergência do novo paradigma galilaico-cartesiano, inaugurando a filosofia moderna no século XVII im-
A 'pos-se uma concepção de razão estribada nos raciocínioslógico-dedutivos, inspirados no modelo da geometria.Contraposto à escolástica medieval - pesadamente marcada pela presença da metafísica aristotélica -, o pensamento moderno descarta in tato as contribuições da arquitetônica aristotélica. Desta forma, também a tópica, elemento central da retórica, passa a ser relegada a um segundo plano, sendo abandonada como referência metodológica para o tratamento do direito. O modelo jusnaturalistada Era Moderna, que inspirou a dogmática do direito privado ocidental pós-Revolução Francesa, alicerçou-se tantona perspectiva dedutiva como na idéia central de sistema,posto que esta noção passou a constituir o ponto central dequalquer conjunto de conhecimentos reivindicador do estatuto de científico.
A dimensão argumentativa da retórica, desenvolvidapor Aristóteles em A Arte Retórica, preocupada com a argumentação, com a dialética e com os conflitos postos pelonecessário caráter intersubjetivo da vida social, foi completamente abandonada pelo pensamento moderno (coma notável exceção de Vico, no século XVIII, com sua crítica ao modelo cartesiano). O aspecto do campo retóricodesenvolvido nos séculos XVII, XVIII e XIX foi aqueletambém presente em A Arte Retórica de Aristóteles nomeadamente, a retórica das figuras (metáfora, meto~ímiaetc.) capital ao campo da teoria literária.
Aspecto central da perspectiva perelmaniana - também adotada por Viehweg - foi a recuperação desta tra-
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dição no campo jurídico. Com a crise do modelo positivista-legalista (epistemologicamente assentado na concepçãomoderna cartesiana de razão), acarretada pelo fim da Segunda Guerra Mundial,ll e a patente insuficiência de umparadigma legal que deixasse de lado a referência à dimensão axiológica do mundo jurídico - como é o caso da teoria do direito kelseniana -, iniciou-se todo um movimento de requestionamento nos campos da filosofia do direitoe da metodologia jurídica.
A perspectiva da "nova retórica" como metodologia jurídica se preocupa fundamentalmente com a argumentação das decisões proferidas pelos juízes (em especial dosórgãos jurisdicionais superiores). Investigando a organização do conjunto de argumentos que estribam as sentenças,são destacados os principais mecanismos lógicos a partirdos quais se encaminham as soluções dos litígios. Nestesentido estudam-se, por exemplo, os argumentos tradicionais da lógica como: a pari, a fortiori, ab absurdo, ab inutili sensu, a maiori ad minus etc. Argumentos estes utilizados freqüentemente pelos juízes em seu trabalho de interpretação dos ditames legais.
Sem pretender exaurir essa temática nesta breve apresentação, a opção de Perelman (também adotada com algumas ligeiras diferenças por Viehweg) privilegia um enfoqueque encara o direito, basicamente, como um terreno de resolução de controvérsias, procurando desenvolver uma metodologia mais atenta à descrição da vida jurídica real.Como ele salienta, "la gran ventaja de los tópicos jurídicos
11. Estou aqui resumindo esse longo e complexo processo em rápidasreferências. Para acompanhar a dinâmica de tal mudança e a crítica aomodelo positivista, indispensável seguir a argumentação de ChaimPerelman em seu livro La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica, opuscit., principalmente nas páginas 93 até 97.
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consiste en que, en lugar de contraponer dogmática y prática, permiten elaborar una metodología que se inspira en laprática, y guían los razonamientos jurídicos, de manera que,en lugar de contraponer el derecho a la razón y a la justicia,se esfuerzan, por el contrario, en conciliarlos."12
A abordagem tópico-argumentativa, ao focalizar suaatenção sobre a vida concreta do direito, através da análisedos mecanismos postos em movimento na vida cotidiana dapráxis jurídica, procura desenvolver um tipo de discursoteórico próprio ao mundo do direito, sem utilizar-se exclusivamente de modelos oriundos de outras ciências, sobretudoaqueles espelhados nas ciências da natureza, alicerçadasnuma estrutura lógico-dedutiva. Quem sublinha este aspecto é um dos maiores admiradores da obra de Perelman, aprincipal figura do pensamento jusfilosófico francês do século XX, Michel Villey:
Les meilleurs juristes n'ont cessé de tenir pour vainecette tentative de plier la science du droit à des modeles deraisonnement qui ne pouvaient lui convenir. Observant ledroit tel qu' il se pratique dans nos tribunaux (ou là ou sontproduites les lois qui guident I'oeuvre des magistrats), ladoctrine de M. Perelman a mis en parfaite évidence que lasolution juridique sort de disputes, de controverses, de luttes entre argumentations rivales; qu'elle émane plus que deraisonnements déductifs, de confrontations dialectiques, ausens aristotélicien du mot; qu'une bonne partie de l'art dudroit releve de la rhétorique. Et certs ce type de raisonnement essentiel à l'art juridique aboutit à des conclusionsmoins certaines et d'une 'verité' elle même plus problématique, que ceux des sciences dites exactes. 13
12. PERELMAN, Chaim, La Lógica Jurídica y La Nueva Retorica,0PUScit., p. 130.13. VILLEY, Michel. "Preface" In. Droit Morale et Philosophie ParisLibrarie générale de Droit et de Jurispr~dence, 1976, p. m.' ,
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A discussão acerca da argumentação no campo elo Jireito, dentro da démarche perelmaniana, focaliza sua ~te(l
ção nas decisões dos tribunais superiores. Não é nem a ~r
gumentação elaborada pelo advogado, nem aquela esttuturada pelo juiz monocrático, o foco de atenções da "nOvaretórica": o seu alvo de exame são os raciocínios presentesnos arestos dos tribunais superiores, já que são eles os fixadores dos grandes lineamentos norteadores da jurisprudência, elemento fundamental do funcionamento do direito. Saliente-se que, pela importância das decisões destascortes - como por exemplo as decisões das Cortes deCassação Francesa e Belga analisadas por Perelman -, devem os magistrados nestes tribunais despender mais cuidados quanto à correta e explicitada fundamentação de suasdecisões.
Não devemos nos esquecer que uma das conquistas daRevolução Francesa, a obrigatoriedade de fundamentaçãodas decisões jurídicas (consagrada no artigo 93, IX, daConstituição Federal e no artigo 458 do Código de Processo Civil Brasileiro), constitui um dos elementos essenciaisao Estado democrático de direito; assegura o respeito aosdireitos individuais e garante a necessária segurança dasdecisões jurídicas. Examinar o modo pelo qual os tribunaissuperiores chegam ao termo das lides que lhes são submetidas à apreciação, e até que ponto tais decisões seguem ospreceitos lógicos necessários apontados pela reflexão metodológica, justifica-se como uma das tarefas mais relevantes do trabalho doutrinário e de pesquisa.
No tocante à importância da motivação das decisões,cabe salientar a seguinte passagem, destacada por Perelman, apontando os diversos aspectos nos quais este procedimento encontra relevância:
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Motivar una decisión es expresar sus razones y por esoes obligar aI que la toma, a tenerlas. Es alejar todo arbitrio.Unicamente en virtud de los motivos el que ha perdido unpleito sabe como cómo y por qué. Los motivos le invitan acomprender la sentencia y le piden que no se abandonedurante demasiado tiempo aI amargo placer de "maldecir alos jueces". Los motivos le ayudan a decir si debe o no apelaro, en su caso, ir a la casación. Igualmente le permitirán nocolocarse de nuevo en una situación que haga nacer un segundo proceso. Y por encima de los litigantes, los motivos sedirigen a todos. Hacen comprender el sentido y los límitesde las leyes nuevas y la manera de combinarlas con las antiguas. Dan a los comentaristas, especialmente a los comentaristas de sentencias, la possibilidad de compararlas entre sí,analizarlas, agruparlas, clasificarlas, sacar de ellas las oportunas lecciones y a menudo también preparar las solucionesdeI porvenir. Sin los motivos no podríamos tener las "Notasde jurisprudencia" y esta publicación no sería lo que es. Lanecesidad de los motivos entra tanto dentro de nuestrascostumbres que con frecuencia traspasa los límites deI campo jurisdiccional y se va imponiendo poco a poco en lasdecisiones simplesmente administrativas cada vez más numerosas.1 4
Importa ressaltar um aspecto relevante das conseqüências trazidas por tal abordagem privilegiadora do enfoqueargumentativo no campo da filosofia do direito. Boa partedesses trabalhos vieram contribuir para a erosão do paradigma positivista hegemônico até os anos setenta. Em relação à perene disputa nos arraiais jusfilosóficos: jusnaturalismo/positivismo jurídico, esses autores1S vieram a se co-
14. SAUVEL, T. "Histoire du jujement motivé", Revue du droit publique, 1955, pgs. 5-6. Apud PERELMAN, Chai"m, La Lógica Jurídica yLa Nueva Retorica, opus cit., pp. 202 e 203.15. No diapasão de sua perspectiva e de Viehweg, Perelman salienta
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locar num lugar diferente, propondo uma crítica metodológica ao positivismo jurídico. Assim, esses autores têmuma perspectiva que: "(...)se caracteriza por e1 hecho deque, constituyendo todos e1los una reacción contra e1 positivismo jurídico, no se fundan en ninguna ideología previa,ni en ninguna teoría acerca deI derecho natural, sino queresultan de un análisis deI razonamiento judicial y de unareflexión de orden esencialmente metodológico. "16
Esta intenção de situar o seu trabalho além dos doisposicionamentos tradicionais do debate jusfilosófico é claramente exemplificada pelo próprio título de um de seusúltimos livros de filosofia do direito: Le Raisonnable et leDéraisonnable en Droit. Au-delà du Positivisme Juridique,de 1984. Assim, Perelman se coloca como um dos nomes
outros autores afins a sua perspectiva: "Los esfuerzos dei profesorEsser han sido continuados en Alemania sobre todo por los profesoresMartins Kriele (Theorie der Rechtsgewinnung, 1967) y Othmar Ballweg (Rechtwissenschaft und Jurisprudenz, 1970), en Holanda por elprofesor Ter Heide (Judex viator: Probleem of systeemdenken ofgesystematiseerd probleemdenken, Ars aequi, 1967), en Bélgica por el profesor W. van Gerven (Het beleid van de rechter, 1973), en Méjico porel jurista espanol L. Recasens Siches (Nueva filosofia de la interpretación dei derecho, 1956). Estas obras se emparejan con los análisis dejuristas anglo-americanos, como K.N. Lewellyn (The Common LawTradition, Deciding Appeals, 1960), R. M. Oworkin ("The Model ofRules", 1967, recogido en Law, Reason and Justice, 1969, pp. 3-43),E. Bodenheimer (Jurisprudence, 1974,2 ed.) y los trabajos de J. Stone(Human Law and HumanJustice, 1964, y Legal System and Lawyer'sReasoning, 1964). En Francia los trabajos de L. Husson (Les transformations de la responsabilité, 1947, y Nouvelles études sur la penséejuridique, 1974) se orientan claramente en el mismo sentido." in LaLógica Jurídica y La Nueva Retórica, opus cit, p. 112.16. PERELMAN, Chai"m. La Logica Juridica y La Nueva Retorica,opus cit., p. 112. Acerca do Pós-Positivismo, referência fundamentalna literatura nacional.
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centrais do paradigma já denominado de pós-positivista,tendo como corifeus, também, R. Alexy e R. Dworkin. 17
Este aspecto da perspectiva perelmaniana é resumidopor um de seus principais colaboradores, Alain Lempereur, ao salientar que a metodologia advogada pela "novaretórica" implica uma nova maneira de pensar a racionalidade jurídica:
A rejeição do direito natural pode parecer menos nítidana aparência, na medida em que Perelman, desejando umdireito construído sobre os valores, adota os princípios gerais do direito, assim como os direitos do homem. Mas Perelman os concebe no interior do sistema positivo; procedea uma secularização, a uma integração imanente do que dependia antes de uma fonte transcendente. Fundamentar osdireitos do homem no absoluto não tem sentido para ele,porque existe realmente um acordo dos homens na sociedade sobre a 'necessidade deles. (... ) No lado oposto, na vertente positivista, Perelman constata a impossibilidade, paraa ciência, de explicar o direito e suas decisões. As sentençase os arestos não redundam em proposições verdadeiras tiradas de um silogismo, mas em respostas mais aceitáveis eadaptadas, integradas numa argumentação. Se há sistema eciência do direito, eles não podem esboçar-se fora da controvérsia permanente. 18
Este tipo de discussão pode parecer a princípio, paraum leitor preocupado com as prementes necessidadespragmáticas da vida profissional, um exercício excessivamente abstrato de reflexão teórica. No entanto, um olharmais atento às transformações observadas nos dias de hoje
17. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 5" ed., capo VIII, pp. 247 até 264.18. LEMPEREUR, Alain. "Apresentação". In Ética e Direito, São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996, p. XV.
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em nosso ordenamento jurídico e ao modo pelo qual percebemos as regras necessárias à convivência democrática,impõe uma atenção toda especial à problemática relativa àargumentação nos tribunais.
No tocante às inúmeras transformações observadas hodiernamente em nosso ordenamento pátrio, uma das maisimportantes foi a reforma do Código de Processo Civiloperada pelas leis 8.950,8.951,8.952 e 8.953 de13/12/1994. Se pensarmos, por exemplo, no espírito destas recentes reformas, veremos a importância crescentedesta problemática concernente à fundamentação das decisões, máxime no que tange à tutela antecipada da lide eà presença crescente das liminares, posto terem estas mudanças alargado a área de discricionariedade dos magistrados. É óbvio atenderem tais inovações processuais a prementes necessidades, contudo também aumentaram a responsabilidade do Judiciário de fundamentar suas decisões,de forma não só a atender e satisfazer aos profissionais dodireito (dentro da sua linguagem técnica e por vezes quaseque cifrada), mas também a abrir esta argumentação a umacomunidade mais larga de cidadãos cultos - portadoresdo direito de ver satisfeita a sua expectativa em reconhecer que a decisão foi a mais eqüitativa, a mais razoável, amais plausível no caso concreto.
Assim, esta discussão teórica pode nos municiar de elementos a melhor compreender alguns dos problemas presentes no quadro atual do debate jurídico. Ora, observa-sea existência de uma viva polêmica sobre o papel do Judiciário e do juiz na aplicação da lei, nesta nova configuraçãopolítico-jurídica que se estruturou no Brasil a partir daConstituição de 88. Eis que a reconstitucionalização implicou nítido alargamento nas funções dos juízes e uma maiorparticipação do Judiciário nos problemas gerais da vida
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brasileiral9 . Deste modo, cabe à comunidade dos profissionais do direito uma reflexão mais profunda acerca destasquestões, tendo em vista que a "nova retórica" oferece novas possibilidades de reflexões no mundo do direito e postula uma integração maior entre a produção doutrinárioacadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado.20
Ademais, nos últimos anos tem-se freqüentementesustentado uma fiscalização maior da atividade do Judiciário, cogitando-se por vezes o controle externo deste poder.Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado. O Judiciário se apresenta como um dos órgãos mais corporativos existentes em nossa sociedade e quando se aventaqualquer medida neste sentido há uma reação imediata equase sempre contrária a qualquer passo em tal direção.Entretanto, pode-se apontar uma outra forma - diferentedaquela do controle externo - de procurar garantir meca-
19. Quanto a esta percepção, ela é corroborada pela opinião de umjuiz, presidente da Associação de Juízes para a Democracia: "Com anova Constituição de 1988 nós assistimos a um outro fenômeno inverso: o da explosão de demandas, sobretudo perante a Justiça Federal.Num evidente reflexo dos tempos de democracia, o cidadão passou aentender que tinha direitos contra o Estado. Os planos econômicos,sobretudo, deram a matéria-prima fundamental para que o cidadãofosse ao Poder Judiciário em busca de seus direitos. A demanda judicial passou a ser vista enquanto expressão da cidadania. A questão dosinteresses coletivos e difusos foi equacionada de melhor forma depoisda Constituição. O Judiciário adquiriu maior poder de interferir naspolíticas públicas". In CINTRA JUNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. "Legitimação Social da Magistratura". In VI Jornada Teixeira de Freitas(la parte) - Democracia e Formação dos Juízes, Rio de Janeiro,LA.B., Editora Destaque, 1998, p. 168.20. Quem aponta este aspecto é Fábio Ulhôa Coelho, na conclusão do"Prefácio à edição brasileira". In Tratado da Argumentação, PERELMAN, Chalm e Olbrechts-Tyteca, São Paulo, Ed. Martins Fontes,1996, pp. XVI a XVIII.
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nismos de fiscalização da sociedade e da comunidade dosoperadores do direito em relação ao Judiciário. Tal se daria, basicamente, a partir de uma outra perspectiva, situada numa dimensão metodológica, através de um examemais apurado da fundamentação das decisões, à luz de todas essas cogitações de natureza teórica abertas pela démarche tópica.
Neste quadro atual, onde os magistrados dispõem deuma área maior ainda de liberdade do que a tradicionalmente garantida em nossa história jurídica, impõe-se umaatenção maior à questão concernente às justificativas pelasquais os juízes chegam às decisões que dirimem as lides aeles submetidas. A situação demanda cuidado, posto, mesmo antes da atual conjuntura, já podiam ser notadas as insuficiências relativas à fundamentação das decisões, comoobserva J. C. Barbosa Moreira:
Comme le lecteur ne manquera pas d'apercevoir, la situation au Brésil nous paralt, somme toute, peu satisfaisante. La motivation des décisions de justice en général, sansexclusion des arrêts d'appel, laisse souvent à désirer, et desdéfauts relatifs au raisonnement y sont presque toujourspour beaucoup, même si l'on passe sous silence les viceslogiques élémentaires qui se glissent parfois dans les jugements. 21
21. MOREIRA, José Carlos Barbosa. "Raisonnements Judiciaires dansles Cours d'appel". In Temas de Direito Processual, Rio de Janeiro,Editora Saraiva, 1994, p. 128. Há outros trechos do mesmo textoesclarecedores desta passagem: "Le theme des raisonnements descours d'appel suscite une problématique tres étendue et multiforme.On essaierait en vain d'en épuiser l'étude dans le cadre d'un rapportdu genre de celui-ci. Nous avons jugé opportun de fournir quelquesdonnés sur le panorama qu'offre à ce point de vue le droit brésilien,tel qu'il se révele non seulement par les textes législatifs, mais aussi etsurtout par la pratique judiciaire. D'ou les remarques critiques que
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É claro que essa problemática não é exclusiva da cultura jurídica brasileira. Toda essa discussão metodológicamencionada neste artigo se encontra no cerne de um acalorado debate na Europa acerca do problema da fundamentação e da estruturação das decisões judiciais. Correlato ao alargamento da área de discricionariedade dos juízes observado em diversos países europeus nos últimosanos, assiste-se a uma demanda de um maior cuidado erigor argumentativo nas decisões judiciais. Esta tendênciaacompanha um fenômeno já constatado de uma progressiva aproximação dos dois modelos de atuação judicial existentes na tradição ocidental: o juiz continental, adstrito noseu agir aos textos legais, e o juiz da common law, cingidopelo precedente judicial. Ora, o que observamos, como jádestacado, é um crescente alargamento da área de atuaçãodo juiz continental- à semelhança do juiz anglo-saxônico- enquanto a presença das leis se torna cada vez mais relevante no mundo jurídico inglês e, sobretudo, americano.
nous avons été portés à faire au long de notre exposé.(...) L'imperfection fondamentale réside sans doute dans l'insuffisante explicitaciondu raisonnement. En ce qui concerne la motivation in facto, les pointscruciaux sont l'appréciation des preuves, la réparticion (éventuellement, l'atténuation, voire l'inversion) de l'onus probandi, l'invocationde faits dits notoires (ou tacitement admis comme tels) et de "reglesd'experience": dans tous ces domaines, un effort plus vif de justification serait extrêmement souhaitable. Quant à la motivacion in jure,abstraction faite des problemes courants d'hermeneutique, toujourssusceptibles d'entrainer bien des difficultés, ce qui attire principalment l'attention est la question des jugements de valeur: les cours nonseulement s'abstiennent, regle générale, d'expliciter leurs choix, maiselles ont tendance à les dissimuller - volontairement ou non - sousde faux raisonnements de logique formelle. Ce genre de carenceprend un aspect particulierement fâchoux lorsqu'il s'agit de conceptsjuridiques indéterminés et de décisions discrétionnaires: contrairement à ce que certaines present, le besoin d'une justification est iciencore pressant qu'ailleurs".
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Assim, devemos pensar em que medida a sociedade, osprofissionais do direito e os teóricos - acredito terem osteóricos neste particular, por conta da sua relativa independência, importante papel nesta questão - podem suscitar um debate no sentido de exigir que as motivações dosjuízes, em suas sentenças, sejam mais explícitas, mais detalhadas e conforme os cânones da boa argumentação (seguindo as regras lógicas pertinentes). Este reconhecimentode que no Estado democrático de direito a motivação dasdecisões constitui um dos principais deveres dos juízesabre a possibilidade para que haja uma cobrança e umafiscalização por parte dos cidadãos em face do Judiciário.
Com efeito, um trabalho importante dos profissionaisligados à academia é o de sublinhar a necessidade de umamais cuidadosa fundamentação nas decisões judiciais, atéporque pode-se reconhecer uma dificuldade por parte dosadvogados de cobrarem certas posições do Judiciário, oque deixa aos teóricos papel extremamente relevante nesta questão. É óbvio que o trabalhador universitário podeser sempre repreendido por possuir intenções descoladasda prática da vida do direito e por tentar através das idéiasmodificar a realidade - premida pelos imperativos de segurança jurídica e de natureza pragmática - que se impõecomo infensa à interveniência do mundo das reflexões.Certamente esta é uma objeção sempre levantada no horizonte das relações entre teoria e prática. Entretanto, osprofessores e teóricos têm hoje entre suas tarefas o papelde introduzir estas discussões em nosso meio intelectual.
Enfim, tecidas essas considerações gerais sobre a perspectiva tópica, com o impacto por ela causado no debatede metodologia jurídica contemporânea e algumas de suasrepercussões na arena da filosofia do direito, creio ter ficado mais evidente a relevância das discussões trazidas à nossa literatura jurídica pelo livro Hermenêutica eArgumenta-
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ção Jurídica - Uma Contribuição ao Estudo do Direito,de Margarida Lacombe Camargo. A rápida necessidade dapublicação de uma segunda edição deste livro sinaliza a boaacolhida por ele obtida junto à comunidade jurídica nacional, apontando para o fato de que ele tornar-se-á cada vezmais uma referência obrigatória para os estudos jurídicosem nosso país.
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