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DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA VIDA
Faculdade de Cincias e TecnologiaUniversidade de Coimbra
A Construo da Toxicodependnciacomo Doena atravs das Prticas
Ana Raquel Rodrigues Loio Pinto
2012
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DEPARTAMENTO DE CINCIAS DA VIDA
Faculdade de Cincias e TecnologiaUniversidade de Coimbra
A Construo da Toxicodependnciacomo Doena atravs das Prticas
Ana Raquel Rodrigues Loio Pinto
2012
Dissertao apresentada Universidade deCoimbra para cumprimento dos requisitosnecessrios obteno do grau de Mestreem Antropologia Mdica, realizada sob aorientao cientfica do Professor DoutorLus Quintais (Universidade de Coimbra)
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AGRADECIMENTOS
A todas as pessoas que contriburam, de forma direta ou indireta, para a realizao do
presente estudo.
Agradeo ao professor Lus Quintais pela orientao, disponibilidade e pelas sugestes
que me permitiram desenvolver a capacidade crtica e reflexiva para a concretizao da
dissertao.
Agradeo ao Dr. Joo Curto pela autorizao da pesquisa, assim como a todos os
profissionais de sade da Unidade de Desabituao de Coimbra que, desde o incio, se
mostraram interessados e disponveis para participar no estudo, seja para responder s
entrevistas ou para conversas informais que foram contributo importante. Este agradecimento
estende-se aos utentes, aos quais se direcionam as intervenes dos tcnicos.
A todos os professores das unidades curriculares pela facilidade com que transmitiram
novos conhecimentos, que foram suporte para o planeamento do tema, e aos colegas de
mestrado, com os quais pude partilhar ideias, dvidas, preocupaes.
Agradeo tambm minha famlia pelo apoio, leituras e comentrios efetuados
relativamente a este estudo ao longo do mesmo.
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RESUMO
As prticas que giram em torno de um objeto, atribuem significado a esse mesmo
objeto, constroem-no. De acordo com esta ideia, foi definido o objetivo de compreender de
que forma as prticas permitem construir a toxicodependncia como um facto biomdico,
nomeadamente uma doena. Para isso, foi efetuada recolha de dados numa unidade de
desabituao de substncias psicoativas, a unidade T, durante um semestre letivo, atravs da
observao participante, realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e anlise de
documentao.
A unidade T apresenta como objetivo a desabituao de substncias psicoativas. Os
profissionais da T constituem uma equipa multidisciplinar, porm fazem parte de um coletivo
de pensamento que compreende a toxicodependncia como uma doena, de acordo com o
conhecimento biomdico. O programa teraputico compreende a farmacoterapia, a
psicoterapia e abordagens socioteraputicas e ludicoteraputicas. A farmacoterapia tem em
conta a neurobiologia da adio e o aspeto central do tratamento, reforando a ideia doself
neuroqumico. As outras abordagens tm em conta as vertentes psicolgica e social e visam o
reconhecimento da doena e a aquisio de estratgias para prevenir a recada. Mantm-se a
ideia de um self neuroqumico vulnervel recada. Porm, a toxicodependncia pode ser
mltipla, dada a variedade de prticas que sobre ela atuam.
Para concluir, as prticas tm subjacente um discurso influenciado por determinados
estilos de pensamento. O discurso da biomedicina determina intervenes especficas para se
lidar com um objeto. Essas intervenes, por sua vez, do significado ao objeto. Assim, a
ateno centra-se nas prticas, avaliando se estas se adequam ao objeto com todos os seus
aspetos. A toxicodependncia surge como doena ao ser alvo de intervenes biomdicas.
Porm, dada a complexidade deste fenmeno, a abordagem sobre o mesmo deve estender-se a
todos os campos do saber.
Palavras-chave
Toxicodependncia; Biomedicina; Prticas.
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ABSTRACT
The practices around an object are what give it a shape, a meaning. According to that,
it was set the goal of understanding how the practices can be the cause of the construction of
drug dependence as a biomedical entity, as a disease. Therefore, it was performed a data
collection through participant observation, interviews to the technicians and documentation
analysis, in an addiction recovery unit, called unit T, in order to examine the practices and its
environment.
Unit T aims to help patients recover from drug addiction by creating programs of
detoxification designed to purge the body of addictive substances. The unit T staff is qualified
and instructed in different but essential areas of health and psychology, however despite of
the multidisciplinary component, they are all part of a collective of thought that understands
addiction as a disease, thus being in accordance with biomedicine knowledge. The unit T
detoxification program includes not only pharmacotherapy, but also psychotherapy and social
and recreational approaches. Pharmacotherapy is based on biomedical knowledge and it is
crucial in the treatment, reinforcing the idea of the neurochemical self. The other approaches
take into account the psychological and social aspects of addiction aiming the implementation
of strategies to prevent a serious relapse. Hence, remains the idea of a neurochemical self that
is vulnerable. However, addiction may be multiple, given the variety and nature of the
practices that act on it.
Finally, it is important to enhance the fact that practices are influenced by styles of
thought. People determine, through their actions, the meaning and perception of an object,
being the object the drug dependence. The biomedical speech dictates specific interventions to
deal with drug addiction, which is essentially constructed as a disease. However, given the
complexity of this phenomenon, the approach should extend to all fields.
Keywords
Addiction; Biomedicine; Practices.
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ABREVIATURAS E SIGLAS
ABREVIATURAS
et al. E outros (et alii)
g Grama
h Hora(s)
min Minuto(s)
Pg. Pgina
SIGLAS
APA Associao Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association)
CD Disco Compacto (Compact Disc)
DSM Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders)
DSM-II Segunda Edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Second Edition)
DSM-III Terceira Edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition)
DSM-IV-TR Quarta Edio, com Reviso de Texto, do Manual de Diagnstico e Estatstica
das Perturbaes Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth
Edition, Text Revision)
ICD-10 Dcima Reviso da Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados com a Sade (International Statistical Classification of Diseases and Related
Health Problems, Tenth Revision)IDT, IP Instituto da Droga e da Toxicodependncia, Instituto Pblico
SNS Servio Nacional de Sade
SOS Pedido de Socorro (Save Our Souls)
VIH/SIDA Vrus da Imunodeficincia Humana/Sndrome da Imunodeficincia Adquirida
WC Casa de Banho (Water Closet)
WHO Organizao Mundial de Sade (World Health Organization)
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NDICE GERAL Pg.
AGRADECIMENTOS.ii
RESUMO..iii
ABSTRACT..iv
ABREVIATURAS E SIGLAS.v
INTRODUO.1
PRIMEIRA PARTE FASE CONCETUAL.3
1 PRIMEIRO CAPTULO: O ESTADO DA ARTE..4
2 SEGUNDO CAPTULO: CLARIFICAO DE CONCEITOS.12
3 TERCEIRO CAPTULO: CONTEXTUALIZAO HISTRICA DO USO DE
DROGAS..16
4 QUARTO CAPTULO: FUNDAMENTAO TERICA.21
4.1 O NORMAL E O PATOLGICO...21
4.2 A BIOPOLTICA.23
4.3 A BIOMEDICINA...25
4.4 O SELFNEUROQUMICO....28
4.5 VRIAS REALIDADES.30
4.6 A CONSTRUO DE UM FACTO BIOMDICO COM A PRTICA...32
SEGUNDA PARTE FASE METODOLGICA...345 QUINTO CAPTULO: MATERIAIS E MTODOS35
TERCEIRA PARTE FASE DE APRESENTAO E DISCUSSO DE
RESULTADOS39
6 SEXTO CAPTULO: A UNIDADE T NA PRTICA..40
6.1 O DIA DA ADMISSO..41
6.2 O PROGRAMA TERAPUTICO...466.2.1 Farmacoterapia...46
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6.2.2 A neurobiologia da adio..48
6.2.3 Psicoterapia..50
6.2.4 Outras abordagens teraputicas51
6.3 OS TCNICOS52
6.4 OS UTENTES..56
6.5 UM DIA NA UNIDADE T..59
6.6 A QUESTO DA ALTA.62
7 STIMO CAPTULO: AS PRTICAS CONSTITUTIVAS DA
TOXICODEPENDNCIA.65
7.1 TOXICODEPENDNCIA, A DOENA66
7.2 AS PRTICAS NA UNIDADE T...70
7.3 A QUESTO DA ESCOLHA INDIVIDUAL....73
7.4 TOXICODEPENDNCIAS75
CONCLUSO.79
BIBLIOGRAFIA.81
ANEXOS..86
ANEXO A: AUTORIZAO PARA A RECOLHA DOS DADOS...87
ANEXO B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA
ENTREVISTA..89
ANEXO C: FORMULRIO DE ENTREVISTA QUALITATIVA91
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INTRODUO
O tema de pesquisa do presente trabalho incide sobre formas de criar um objeto
atravs das prticas. Assim, pretende-se estudar como que as prticas que atuam sobre a
toxicodependncia numa determinada unidade de sade a constroem. O interesse por esta
temtica surge da experincia e atividade profissional da pesquisadora na rea da
toxicodependncia, um fenmeno que abrange inmeras vertentes da vida da pessoa com
toxicodependncia e que, alm disso, tem um grande impacto na sociedade.
Outrora, o uso de drogas foi encarado das mais diversas formas, como um meio pelo
qual o indivduo contactava com a divindade, uma forma de lazer ou de teraputica.
Atualmente, o uso de drogas refere-se utilizao de substncias psicoativas com a
finalidade de obter prazer. O uso de drogas encarado como algo disfuncional e destrutivo,
que muitas vezes impede o indivduo de viver de acordo com as normas sociais vigentes.
Assim, comea a ser descoberta a doena pela sua oposio com a normalidade, que
corresponde ao estado ideal de sade. As investigaes laboratoriais vm cimentar esta ideia
de doena, descobrindo como a droga atua nos mecanismos neuronais do prazer.
O tema de investigao surgiu no decorrer da frequncia das aulas de mestrado, onde
se abordou a ideia de criar determinadas categorias onde inserir pessoas, de criar doenas, de
formar identidades. De facto, todo o objeto tem uma histria prpria que o torna naquilo que
. Ento, ocorreu conhecer a origem da toxicodependncia. Contudo, dada a abrangncia do
tema, colocou-se o foco na criao da toxicodependncia como doena atravs das prticas.
Assim, o problema de investigao : como que a toxicodependncia, enquanto facto
biomdico, criada na prtica? Para dar resposta a este problema foi efetuado um trabalho de
campo na unidade T, durante um semestre letivo, com recolha de dados atravs da observao
participante, realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e anlise de documentao.
O objetivo consiste em compreender como que a toxicodependncia criada pelas prticasque a rodeiam. Os dados recolhidos so apresentados numa minietnografia e, posteriormente,
com base na minietnografia e com o suporte bibliogrfico apresentado na fundamentao
terica, tecida uma discusso que pretende dar resposta questo de investigao.
A relevncia do presente estudo prende-se com a perceo de que um fenmeno pode
ser mltiplo, pois as prticas que sobre ele atuam tambm so variadas. Assim, depreende-se
que no existe uma nica verdade, nem uma nica abordagem. A abordagem deve ser
holstica, isto , deve ter em conta a totalidade do indivduo. Para isso, assume-se de extremaimportncia a existncia de uma equipa multidisciplinar.
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O presente trabalho divide-se em trs partes, a primeira concetual, a segunda
metodolgica e a terceira parte constitui a apresentao e discusso de resultados.
A fase concetual inicia-se com um captulo acerca dos trabalhos que tm sido
efetuados em torno da conceo da toxicodependncia, destacando-se o caso portugus.
Segue-se um captulo que clarifica alguns conceitos que so frequentemente utilizados para
abordar o tema. Depois, efetuada uma contextualizao histrica do uso de drogas para se
compreender como que este fenmeno evoluiu at atualidade. De seguida, realizada uma
fundamentao terica, que resulta de pesquisa bibliogrfica de autores que deram contributo
importante para a anlise deste tema.
Na fase metodolgica so abordados os passos seguidos ao longo da pesquisa,
pretende-se mostrar como se efetuou o trabalho.
Finalmente, na fase de apresentao e discusso de resultados, so referenciados os
resultados obtidos, na forma de uma minietnografia e, posteriormente, so discutidos os
resultados com base na fundamentao terica, pretendendo-se responder questo de
investigao proposta.
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PRIMEIRA PARTE FASE CONCETUAL
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1 PRIMEIRO CAPTULO: O ESTADO DA ARTE
Os trabalhos efetuados na rea das cincias sociais em torno da temtica da conceo
da toxicodependncia, com especial destaque para o caso portugus, so unnimes no facto de
que este tema tem sido abordado diferentemente consoante a disciplina que sobre ele se
debrua. Por outro lado, existem pontos consensuais entre as diversas disciplinas,
nomeadamente o reconhecimento de que a toxicodependncia requer uma abordagem
multidisciplinar dada a sua complexidade.
Neste captulo, ser apresentada a conceo da toxicodependncia sob o olhar das
diversas disciplinas que a tm estudado, assim como a representao social deste fenmeno
em trs grupos distintos: a sociedade portuguesa em geral, os tcnicos que trabalham
diretamente nesta rea e, por ltimo, o grupo das prprias pessoas com toxicodependncia.
As diversas abordagens da toxicodependncia tm sido efetuadas tendo em conta os
seguintes sistemas: abordagens clnicas, teorias comportamentais, teorias cognitivas,
abordagens centradas nas dimenses culturais e eco-sociais e a teoria do sujeito autopoitico
(Fonte, 2007).
As abordagens clnicas incluem o modelo psiquitrico e o modelo psicodinmico
(Fonte, 2007).
No modelo psiquitrico, a toxicodependncia surge como perturbao mental,
recorrendo-se aos conceitos de dependncia fsica e de dependncia psicolgica (para avaliar
o grau de envolvimento do sujeito com as substncias psicoativas) e ao conceito de escalada
como indicador do comportamento (escalada entre vrios produtos, como passar de drogas
leves a drogas duras, ou aumento da dose do mesmo produto), que nem sempre se verifica
(Fonte, 2007). de salientar que a medicina tem progressivamente reivindicado a
obrigatoriedade do acompanhamento mdico e farmacolgico dos indivduos
toxicodependentes (Marques, 2008).O modelo psicodinmico aborda o conceito de personalidade toxicoflica, que traduz
um modo de organizao instintivo-afetivo muito elementar caracterstico dos toxicmanos.
Esta personalidade prvia seria responsvel pelo abuso de substncias. No entanto, outros
estudos sugeriram personalidades diferentes e alguns sugeriram que no se pode definir uma
personalidade-tipo do toxicodependente, indicando que qualquer estrutura mental pode
conduzir a comportamentos de adio (Fonte, 2007). Neste modelo, so ainda considerados
aspetos como o percurso biogrfico do consumidor, a histria das suas relaes sociais efamiliares ou o seu quotidiano (Karon e Widener, 1995 inFonte, 2007).
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Transita-se da classificao da perturbao (no modelo psiquitrico) para a
compreenso do indivduo que a carrega (no modelo psicodinmico), da causa do sintoma
para o seu significado (Fonte, 2007).
As teorias comportamentais entendem a toxicodependncia como um comportamento
aprendido por reforo positivo ou por reforo negativo (Gonalves, 1990 inFonte, 2007). De
uma explicao centrada no indivduo passa-se para uma explicao centrada no
comportamento-substncia. A iniciao dos consumos constitui o processo de reforo
positivo, o prazer decorrente do consumo leva repetio. A manuteno do consumo faz-se
por reforo negativo, isto , para aliviar o mal-estar fsico e psicolgico decorrente da
abstinncia (Fonte, 2007).
As teorias cognitivas apresentam essencialmente dois modelos, o modelo da
restruturao cognitiva de Ellis e Beck e a teoria dos constructos pessoais de Kelly. No
modelo da restruturao cognitiva existe o pressuposto de que o indivduo responde
primariamente sua representao cognitiva do meio, constituda por crenas atuais que
explicariam o incio e a manuteno dos comportamentos aditivos, e no diretamente ao meio
em si. Na teoria dos constructos pessoais, os processos psicolgicos so construdos pela
forma como as pessoas antecipam os acontecimentos. A realidade s se pode conhecer atravs
de interpretaes. A pessoa motivada pela predio de eventos futuros atravs dos seus
constructos, o que determina o comportamento (Fonte, 2007).
Nas abordagens centradas nas dimenses culturais e eco-sociais, destaca-se o
contributo da antropologia cultural e da etnologia, que salientam que o consumo de drogas
tem sido uma constante cultural e que nem sempre foi problemtico (Fonte, 2007). De facto,
ao longo da histria, o consumo de drogas progrediu, assumindo diferentes caractersticas:
fonte de prazer, inspirao, comunicao entre o homem e a divindade, cura e, atualmente, um
grave problema que agita e alarma as sociedades (Nunes e Jlluskin, 2007). A
toxicodependncia deixou de ser uma extravagncia de um pequeno grupo da classe mais altae chegou a todas as famlias, mesmo s mais carenciadas (Marques, 2008).
Atualmente, considera-se que as sociedades esto mais propensas ao problema devido
proibio do uso de determinadas drogas, que provoca o entendimento da substncia como
bens econmicos e sujeitos a esquemas comerciais (Escohotado, 2004 inNunes e Jlluskin,
2007: 236), aos espaos saturados em grandes cidades, em que vigoram satisfaes
progressivamente mais estereotipadas, para compensar a voraz desumanizao (Escohotado,
2004 inNunes e Jlluskin, 2007: 236), ou ao consumismo, pois vive-se uma poca com vriasadies, no s s drogas mas s compras, jogos, apelos da Internet, ao prprio trabalho, num
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registo de comportamentos extremos, problemticos, acompanhados de perda de autocontrolo
(Nunes e Jlluskin, 2007).
Estas abordagens, centradas nas dimenses culturais e eco-sociais, consideram que
existe um padro supra-individual no recurso s drogas, um padro de consumo cultural que
resulta da aprendizagem, que indica os limites, razoabilidade e perigosidade de cada droga,
mantendo o uso como no disruptivo (Fernandes, 1990 inFonte, 2007). Salientam que no
a droga em si, entidade dotada de propriedades farmacolgicas, que produz o fenmeno da
toxicodependncia, mas antes as expetativas dos consumidores em relao aos seus efeitos
possveis, expetativas que esto culturalmente codificadas (Comas, 1985 inFonte 2007: 244-
245).
Por ltimo, a teoria do sujeito autopoitico encara o sujeito emprico como um sistema
complexo, dotado de propriedades de auto-organizao e de autopoise (poder de inveno e
de criao de si) (Agra, 1991 inFonte, 2007). Da relao entre o sistema de personalidade e
de ao emerge o sistema da significao, o modo como o sujeito constri a realidade e
apreende o mundo, mediante a utilizao dos componentes que fazem parte de si, os sistemas
de personalidade e de ao (Fonte, 2007).
Como consequncia das diferentes reas de saber cientfico que se debruam sobre o
fenmeno do uso de drogas e das toxicodependncias, a definio e clarificao deste
domnio torna-se uma tarefa complexa, nem sempre consensual, uma vez que tm por base a
rea de saber do profissional (Fonte, 2006).
Relativamente s representaes sociais da toxicodependncia, consensual que a
toxicodependncia no decorre apenas da relao estrita indivduo/substncia, mas emerge
numa construo social. Pois, em determinadas situaes, as representaes sociais orientam
as prticas (Abric, 1994 inMarques, 2008).
A populao portuguesa em geral perceciona as drogas consoante trs tipos de fatores:
estruturais, que incluem caractersticas sociodemogrficas (idade, sexo, escolaridade,profisso, regio); interacionais, como contactos e sociabilidades que se estabelecem com
consumidores de drogas e a proximidade a contextos de consumo; e simblico-culturais, isto
valores sociais e modelos de orientao de vida (Gomes, 2006).
Verifica-se assim que no existe na sociedade portuguesa uma posio unnime sobre
os consumidores de drogas ilcitas, porm, esboam-se trs tendncias de perceo sobre os
mesmos: uma mais normativa e conservadora, que os encara como indivduos transgressores e
desviantes da norma social (opinio de um grupo minoritrio de portugueses); uma maisliberal e permissiva, que os v como indivduos iguais a todos os outros, mas com um modo
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distinto de estar e viver em sociedade (opinio tambm de um grupo minoritrio); e, por
ltimo, os que os veem essencialmente como pessoas com um problema de sade relacionado
com a dependncia qumica deste tipo de substncias (constituem o grupo de maior proporo
na sociedade portuguesa) (Gomes, 2006).
Relativamente s representaes sociais dos tcnicos que atuam na rea da
toxicodependncia, deve salientar-se mais uma vez que a investigao na rea se apresenta
estritamente segmentada. Uma possvel vantagem da especializao o aprofundamento
progressivo do conhecimento e da interveno. Assim, as representaes sociais dos tcnicos
variam de acordo com a sua formao de base e com o nvel de interveno no fenmeno. As
representaes sociais tambm influenciam os discursos e, de acordo com os tcnicos,
condicionam a sua interveno. Alm disso, na opinio dos diferentes profissionais, as
mudanas que ocorreram em torno da droga e do toxicodependente, quer pela forma como a
sociedade em geral foi lidando e gerindo este fenmeno, quer como o prprio governo foi
agindo, esto fortemente condicionadas pelas suas representaes sociais. E, muitas vezes,
so as prprias modalidades de tratamento que influenciam a forma como a droga e o
toxicodependente so encarados (Marques, 2008).
Do ponto de vista dos tcnicos, as modalidades de interveno evoluram de um
modelo jurdico para um modelo mdico, sendo que o consumo de substncias passou a ser
considerado uma desordem mental (doena), abandonando a ideia de crime e/ou ato ilcito.
Atualmente a toxicodependncia essencialmente uma doena. Desta forma, o discurso dos
tcnicos adaptou-se tambm s polticas sociais vigentes, de uma perspetiva criminalizadora
transitou-se para uma perspetiva clnica e ressocializadora. Consideram, contudo, que existe
uma sobrevalorizao do tratamento do toxicodependente numa perspetiva mdica. O sucesso
da interveno destes tcnicos sobre as drogas parece recair, em grande parte, na abstinncia
de consumos de drogas ilcitas (Marques, 2008).
Entretanto, identificou-se tambm uma outra ideia, que apresenta a droga de formamais ambivalente, estando sujeita escolha do homem e reconhecendo no regime de
proibio a origem de uma boa parte da delinquncia (Marques, 2008).
As perspetivas dos tcnicos apresentam variaes, consoante o pedido do utente e a
sua trajetria de consumo, com a dimenso da experincia que o prprio tcnico foi
adquirindo e sofrem influncia das orientaes polticas seguidas pelos prprios servios
(Marques, 2008).
Por fim, existe um consenso entre os tcnicos, com vrias reas de formao, nosseguintes aspetos: a defesa do modelo da abstinncia, como preveno primria; a inscrio
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da toxicodependncia na rea da sade; o mrito da medicalizao da toxicodependncia; a
assuno de uma responsabilidade coletiva na recuperao da toxicodependncia; a rejeio
da entrega da gesto da toxicodependncia a uma estrita responsabilidade individual
(Marques, 2008).
Consequentemente, os mdicos aderem predominantemente medicalizao dos
cuidados da toxicodependncia, o que no evidenciado nos outros tcnicos das diferentes
categorias profissionais. Todos os tcnicos aceitam, contudo, a adeso a uma poltica de
tratamentos diversificados, aos Tratamentos de Substituio e aos programas de Reduo de
Riscos e Minimizao de Danos (Marques, 2008).
Porm, mais uma vez, de salientar que os profissionais que atuam na rea da
toxicodependncia consideram como mais importante examinar a situao histrica do
fenmeno e as necessidades dos indivduos que pedem ajuda, do que estabelecer o mbito
especfico de cada rea disciplinar (Marques, 2008).
A perspetiva do sujeito consumidor de drogas salientada no trabalho de Vasconcelos
(2003), que parte da anlise de pessoas que utilizam herona e dos prprios itinerrios que
essa utilizao constitui. O interesse orientado para as pessoas que parecem ter feito do uso
de droga o centro de uma forma de vida, os chamados toxicodependentes, que neste caso so
todos os consumidores regulares de herona que continuam o seu uso apesar dos problemas
que tal consumo lhes coloca e que chegam a sentir-se dependentes de tal produto, atuando em
conformidade, ou seja, consumindo-o para evitar os sintomas associados abstinncia.
As caractersticas atribudas herona so, em simultneo, resultado e indutor da
qualidade das relaes e da agncia nas quais a droga vai sendo carregada de sentido
(Vasconcelos, 2003).
De uma forma geral, o toxicodependente refere-se ao incio do consumo de herona,
comparando-o ao contexto de ingesto da primeira bebida alcolica, no seria necessria a
existncia de uma relao de proximidade com os acompanhantes para saber o que fazer comuma garrafa e um copo. Mas, ao contrrio das bebidas alcolicas, o ocultamento dos atos de
consumo de herona quase total para aqueles que no a usam. Relativamente a esse primeiro
ato de consumo, os informantes referiram ter sido preparado e levado a cabo na companhia de
pelo menos um utilizador experimentado (Vasconcelos, 2003).
A ressaca ou abstinncia, considerada pelas pessoas com toxicodependncia como
os sintomas cujo evitamento apresentado como causa imediata do consumo, deve ser
inserida no conjunto das relaes sociais, espao e objetos que a constituem. A ressaca
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mais do que uma falta, atravs dela o utilizador perceciona e exprime a realidade
(Vasconcelos, 2003).
Nenhum dos informantes consegue explicar a forma como passou a estar agarrado.
Na perspetiva de uma das informantes consumidoras de herona, o facto de ter tido cuidados
na primeira gravidez e a ausncia destes na segunda gravidez demonstram que, nesta altura, j
estaria agarrada. A agncia no foi remetida para a pessoa, mas para a substncia, a herona
que a agarrou e, portanto, a dominava (Vasconcelos, 2003).
Surge tambm o conceito de ressaca geogrfica, termo utilizado por uma das
informantes, na medida em que, no retorno cidade onde teve a sua experincia de consumos,
sentiu a necessidade e o subsequente prazer do consumo, apesar de estar limpa h uma data
de tempo. Verifica-se que o surgimento desse estado corresponde a um espao bem definido
(Vasconcelos, 2003).
A ressaca tambm surge para dar significado s relaes interpessoais, na medida
em que uma das informantes refere que o uso de herona, a certa altura, passou a ocorrer num
quadro que definiu como de grande cumplicidade com a sua irm. Existia um esforo de
evitamento ou da experincia conjunta da ressaca, a partir do qual se desenvolveu a
lealdade. Mesmo quando os informantes remetem a sua experincia, enquanto utilizadores,
para uma situao do que consideram uma cooperao leal com outro consumidor, fazem-no
considerando esse quadro uma exceo, reafirmando o esteretipo do toxicodependente cujas
aes so orientadas para um nico objetivo: o consumo de droga. Ou seja, o uso conjunto de
herona no s no aparece como elemento exterior relao como constitui o principal
indicador da sua qualidade (Vasconcelos, 2003).
No mtodo como a herona tomada, a injeo pode significar uma rotura
simblica, na medida em que est associada a determinado padro de consumo
(Vasconcelos, 2003). Quando a agulha hipodrmica foi pela primeira vez usada para injetar
herona, muitas mulheres sentiram ter as suas vidas atingido um momento decisivo; sentiram-se vulnerveis e expostas dependncia fsica. As suas vidas passaram a estar sujeitas a uma
ntida falta de controlo (Rosenbaum, 1985: 37-38 inVasconcelos, 2003: 387).
Existe diferena, contextual e relacional, entre as condies de acesso s primeiras
experincias com a herona e ao processo em que esta se transforma em droga. Este
processo social centra-se na atribuio de significado e no principalmente nas propriedades
farmacolgicas da substncia. No existe uma continuidade emprica entre os primeiros
consumos e a experincia de prazer (Vasconcelos, 2003).
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Podendo corresponder a um mecanismo de adaptao, as utilizaes de uma
droga no podem ser separadas dos quadros simblicos, relacionais e situacionais nos
quais ela vai sendo utilizada, sendo que a perceo e avaliao dos seus efeitos se
constituem assim num processo a que no so alheias as circunstncias de esses usos
se reportarem a consumos iniciais ou experimentados. As caractersticas atribudas
droga simultaneamente resultam das, e induzem as, relaes nas quais ela vai sendo
carregada de sentido (Vasconcelos, 2003: 397).
O uso de herona, que inicialmente era apenas mais um elemento da realidade, vai-se
convertendo numa nova realidade, torna-se o quotidiano dos utilizadores, que inclui um
complexo de relaes sociais e de trajetrias que tornam possvel a utilizao, estrutura-se
num territrio de significao (Vasconcelos, 2003).
O consumo de drogas no equivale a ser toxicodependente, pois alm de existirem
diferentes tipos de drogas e de consumos de drogas, o uso no se restringe aos efeitos
qumicos que a droga tem no organismo (Fonte, 2006), mas compreende todo o processo da
decorrente (Vasconcelos, 2003). Para explicar o consumo e o uso da droga tambm
necessrio fazer referncia ao modo de vida do sujeito e sua relao com a droga (Fonte,
2006).
necessrio ultrapassar o reducionismo que tem cercado a toxicodependncia,
atendendo s representaes sociais deste fenmeno por parte dos prprios utilizadores de
substncias psicoativas, que, segundo Coelho (2004), podem ainda ser alvo de discriminao
e opresso, como o sugerem as campanhas pblicas de preveno do uso de drogas.
Atualmente, mantm-se a condenao de atitudes dos consumidores de drogas, a
desconfiana, a dificuldade em escrever ou falar sobre drogas. As campanhas de preveno
tm sido realizadas sob o argumento de reduzir os consumidores de drogas, que, no entanto,
no esto na posio quer de recetor, quer de locutor das mesmas. No s pela crena no
risco de estes se poderem tornar de alguma forma heris (Coelho, 2004: 6), como tambmpelo descrdito da sua experincia e conhecimento. Este julgamento resulta precisamente do
desconhecimento da populao consumidora de drogas e no acreditar no conhecimento
tcnico-cientfico como o nico vlido. Assim, os grupos de consumidores de drogas perdem
espao para definir os problemas nos seus prprios termos. No discurso destas campanhas,
destaca-se ainda a existncia da negao polmica, que indica que se est contra uma
determinada afirmao, facto este que constitui tambm uma importante forma de controlo
sociopoltico (Coelho, 2004).
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Em termos conclusivos, o problema da toxicodependncia um dos mais complexos
para os vrios profissionais (mdicos, psiclogos, socilogos, polticos e economistas), dado o
seu impacto, no s sobre cada indivduo, mas tambm sobre a sociedade e o equilbrio do
pas. Alm disso, tem repercusses sobre todos os aspetos da vida, tem incidncias jurdicas,
mdicas, psiquitricas, religiosas, pedaggicas, econmicas, culturais e polticas (Marques,
2008).
O fenmeno em estudo deve, portanto, ser primeiramente analisado mais como um
significado construdo socialmente do que, propriamente, como um olhar sobre o crime, a
vtima ou o doente (Marques, 2008). Exige-se uma compreenso interdisciplinar e holstica,
exige-se uma partilha de saberes e vises (Fernandes e Pinto, 2002).
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2 SEGUNDO CAPTULO: CLARIFICAO DE CONCEITOS
Antes de prosseguir, saliento que no decorrer da dissertao sero abordados
frequentemente determinados conceitos, que passo a clarificar. Sendo que ser efetuado um
estudo em torno da temtica da construo da toxicodependncia como uma entidade
biomdica atravs das prticas, comeo por fazer referncia ao significado de
toxicodependncia ou dependncia de substncias.
De acordo com a Organizao Mundial de Sade (World Health Organization, WHO,
1994), o termo adio, substitudo em 1964 pelo termo dependncia, refere-se ao uso
repetido de uma ou mais substncias psicoativas, sendo que o consumidor se encontra
intoxicado de forma peridica ou crnica, mostra compulso para o consumo das substncias,
tem dificuldade em modificar ou cessar o uso de substncias voluntariamente e est
determinado a obter a substncia por quase todos os meios. Verifica-se tipicamente a
tolerncia e a sndrome de abstinncia quando o uso da substncia interrompido. A vida do
consumidor dominada pelo uso da substncia, existindo prejuzo de outras atividades e
responsabilidades. Ultimamente, tem sido discutido o retorno ao uso do termo adio em
vez de dependncia (Kalant, 2009).
A dcima reviso da Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados com a Sade (International Statistical Classification of Diseases and Related
Health Problems, Tenth Revision, ICD-10) refere as perturbaes relacionadas com cada
substncia psicoativa em particular (WHO, 1994), no diferindo muito neste aspeto da quarta
edio, com reviso de texto, do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes
Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, Text
Revision, DSM-IV-TR).
A Associao Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association, APA,
2000) diferencia a dependncia de substncias do abuso de substncias, sendo que ambasse incluem nas perturbaes do uso de substncias.
No DSM-IV-TR a dependncia de substncias caracterizada por um conjunto de
sintomas cognitivos, comportamentais e fisiolgicos relativos auto-administrao repetida
de uma substncia, apesar dos problemas decorrentes desse uso (APA, 2000).
O diagnstico da dependncia de substncias baseia-se na existncia de trs ou mais
dos seguintes sintomas, que ocorram em qualquer altura no perodo de um ano: tolerncia;
sndrome de abstinncia com esforos no sentido de a aliviar ou evitar; consumo dasubstncia em quantidades superiores ou durante um perodo de tempo superior ao que se
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pretendia; insucesso na tentativa de diminuir ou terminar a utilizao da substncia quando se
deseja; dispndio de grande quantidade de tempo para obter a substncia, a utiliz-la ou a
recuperar dos seus efeitos; diminuio ou desistncia de atividades importantes a nvel social,
ocupacional ou recreativo, devido ao uso da substncia; continuao do uso da substncia
apesar do reconhecimento de problemas psicolgicos e fsicos significativos consequentes do
consumo (APA, 2000).
Neste contexto, pode ser diferenciada a dependncia fsica da dependncia psquica. A
dependncia fsica engloba o aumento da tolerncia droga, as experincias da sndrome de
abstinncia e o uso da droga para prevenir ou aliviar essa sndrome. Por sua vez, a
dependncia psquica engloba comportamentos que indicam a perda de controlo sobre o uso
da droga, como o aumento da procura da droga com prejuzo para atividades importantes da
vida diria, o uso de quantidades superiores s pretendidas, a incapacidade de reduzir a
quantidade utilizada, apesar do desejo persistente de o fazer, e o craving(Kalant, 2009).
A tolerncia relaciona-se com o grau de sensibilidade ou suscetibilidade de um
indivduo aos efeitos de uma droga. No entanto, o termo tolerncia refere-se
frequentemente tolerncia adquirida, isto , ao aumento da resistncia ou diminuio da
sensibilidade droga como resultado da adaptao do corpo pela exposio droga (Kalant,
2009). Sendo assim, a tolerncia consiste na necessidade de aumentar a quantidade da
substncia para alcanar a intoxicao ou o efeito desejado ou pode compreender um efeito
marcadamente diminudo com o uso continuado da mesma quantidade de substncia (APA,
2000).
Quando se diminui ou interrompe o uso da substncia, aps esta ter sido utilizada de
forma prolongada e mantida, ocorre a sndrome de abstinncia. As concentraes da
substncia no sangue ou tecidos diminuem, provocando sintomas desagradveis que,
geralmente, so sintomas opostos aos efeitos agudos da substncia, levando ao consumo da
mesma substncia ou de outra relacionada para aliviar ou evitar a sndrome de abstinncia(APA, 2000).
O craving comum e caracteriza-se por uma forte vontade de consumir a substncia
(APA, 2000), na medida em que consiste no intenso desejo pela droga, expresso por um
pensamento obsessivo sobre drogas e seus efeitos desejados, por uma sensao de privao
aguda que apenas pode ser aliviada pelo consumo da droga e uma necessidade urgente de
obt-la (Kalant, 2009).
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estupefacientes. Ao incorporar um sentido moral (de substncia imbecilizadora, que produz
sono e insensibilidade), os narcticos perderam nitidez farmacolgica e passaram a incluir
drogas que no eram nem indutoras de sono nem sedativas, excluindo uma ampla gama de
narcticos em sentido estrito (Escohotado, 1998).
Contudo, como j tem sido dito por outros autores, Escohotado (1998) refere que,
depois de dcadas de esforos para alcanar uma definio tcnica da droga, a autoridade
sanitria internacional props classificar as drogas em lcitas e ilcitas, legais ou ilegais.
Porm, o que se encontra na categoria de legal ou ilegal diferente em alguns pases e
consoante a poca da histria (Seddon, 2010).
Atualmente, na sociedade ocidental, as substncias psicoativas de uso no mdico so
distinguidas entre drogas leves e drogas duras, conforme os seus efeitos fisiolgicos,
lcitas ou ilcitas. O caf, o ch, o lcool ou a nicotina so considerados substncias lcitas,
aprovadas culturalmente, j a herona, a cocana ou os alucinognios so consideradas
substncias ilcitas, prejudiciais. Outras substncias so alvo de polmica, causando discusso
quanto sua incluso numa ou noutra categoria, como a marijuana, uma vez que vrios
estudos tm demonstrado que esta substncia apresenta benefcios mdicos perante
determinadas doenas (Goodman e Lovejoy, 1995).
Outros conceitos relativos ao despontar da toxicodependncia como uma entidade
biomdica sero abordados no decorrer dos dois captulos seguintes.
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3 TERCEIRO CAPTULO: CONTEXTUALIZAO HISTRICA DO USO DE
DROGAS
O uso de drogas existe desde tempos imemoriais, contudo no necessariamente com o
mesmo significado que hoje lhe atribumos. Atualmente, o termo droga pode referir-se tanto
a preparaes medicinais como a substncias utilizadas com o propsito inicial de obter
prazer. Este ltimo tipo de utilizao est na base do que hoje considerado o problema da
droga e a sua origem recente (Seddon, 2010), remontando ao contexto do Capitalismo e da
Revoluo Industrial (Sherrat, 1995). Desta forma, para melhor entendimento desta
problemtica atual, ser efetuada a sua contextualizao histrica.
Vrios autores tm abordado a histria das drogas criticamente, o livro Consuming
Habits: Drugs in History and Anthropology, de Jordan Goodman, Paul Lovejoy e Andrew
Sherratt, uma boa referncia para esta contextualizao, salientando as relaes existentes
entre a cultura, o consumo e a sociedade.
Antonio Escohotado apresenta igualmente uma extensa anlise crtica da histria das
drogas, desde a Antiguidade, no seu livro Historia General de las Drogas. Segundo o autor,
aps milnios de uso festivo, teraputico e sacramental, os veculos de embriaguez
converteram-se numa destacada empresa cientfica, que comeou por incomodar a religio e
acabou por irritar o direito, enquanto comprometia a economia e tentava a arte (Escohotado,
1998: 13).
De facto, o consumo de substncias psicoativas existe desde a pr-histria e na maioria
das culturas (Goodman et al., 1995) com finalidades mtico-religiosas, mdicas ou recreativas.
No existia referncia aos efeitos aditivos das substncias psicoativas e, exceo do lcool,
estas eram consideradas neutras, no existindo drogas melhores ou piores, mas sim maneiras
sensatas ou insensatas de as consumir (Escohotado, 1998).
Assim, as substncias psicoativas foram utilizadas livremente durante milnios, a suaposse, aquisio, venda, produo e trfico, no aparecia em cdigos punitivos (Escohotado,
1998).
O consumo destas substncias sofreu uma queda com o Cristianismo, exceo do
lcool, na medida em que o acesso a estados alterados da conscincia foi considerado paraso
artificial e, desta forma, condenvel. At meados do sculo XVII, o Cristianismo perseguiu a
cultura farmacolgica e a bruxaria, a quem associou o uso de drogas. Pesa, contudo, o facto
das perseguies estarem mais associadas s drogas do que propriamente s pessoas(Escohotado, 1998).
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culta (baseada na escrita), centrando-se no ato de escrever a receita. A sua posio saiu
reforada com as descobertas em microbiologia, com a capacidade da indstria qumico-
farmacutica em isolar princpios ativos, e portanto fabricar comprimidos, e com os avanos
na rea da cirurgia e noutras tecnologias, como a seringa (Roman, 1999), o que de certa
forma concedeu biomedicina o poder de regulao sobre as drogas.
A morfina, a cocana e a herona foram alguns dos poderosos alcalides isolados para
obteno de frmacos (Escohotado, 1998), sendo largamente vendidos nos pases
desenvolvidos nos finais do sculo XIX, tanto em preparaes comerciais (medicamentos)
como na forma pura (Sherratt, 1995).
O interesse por drogas psicoativas visvel, no s por qumicos, farmacuticos e
mdicos, mas tambm por literrios, filsofos e artistas. Juntamente com a esperana de
drogas cada vez mais eficazes, delineia-se o projeto de submeter o nimo vontade, o qual
acompanha, direta ou indiretamente, o desenvolvimento da neurofarmacologia (Escohotado,
1998).
Ora, a existncia destes poderosos alcalides, associados a habituao, contribuiu para
uma utilizao potencialmente perigosa sem os constrangimentos das prticas sociais
tradicionais ou dos contextos de consumo (Sherratt, 1995), o que no se mostrou compatvel
com o modo de vida exigvel na sociedade. Na medida em que o consumo de substncias
passa a ser encarado como desvio da normalidade, torna-se doena e alvo de tratamento
clnico, no entanto no deixa de estar isento de formulaes morais (Seddon, 2010).
O conceito de adio, inicialmente aplicado ao lcool, torna-se extensvel ao pio, aos
opiceos e cocana. Posteriormente, o termo comeou a dar lugar a novos conceitos, como
dependncia, problema da droga e dependncia qumica (Seddon, 2010).
Para os utilizadores de drogas, estava prevista a sua deteno nas novas instituies
com a finalidade de tratamento e reabilitao (Seddon, 2010), uma vez que existe um
desenvolvimento institucional que responde a reivindicaes sociais das classes proletrias e auma reorganizao de diversas instituies sociais e estatais, entre elas penais e psiquitricas.
Esta interveno, com base na institucionalizao, tem o objetivo de estender mecanismos de
segurana social e ao mesmo tempo aumentar o controlo sobre as populaes, sobretudo
atravs da sua classificao. Nesta altura, o mdico j no tem que negociar com setores
populares (Roman, 1999).
Verifica-se, portanto, que ao longo da histria vrios aspetos contriburam para uma
cultura proibicionista do uso de drogas.
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Sintetizando, o proibicionismo teve origem atravs do elemento religioso tradicional
(que considera que as substncias psicoativas proporcionam um paraso artificial e, por isso
mesmo, condenvel), das tenses sociais decorrentes do rpido processo de proletarizao e
industrializao com apario de grandes concentraes urbanas (sendo que o uso de drogas
comea a simbolizar a medida de desvio de determinados grupos sobre os quais existe um
esforo de controlo), atravs da profissionalizao da medicina e da farmacologia (que conduz
ao aumento do controlo das aes individuais sobre o uso de substncias psicoativas), da
transio para o governo liberal (que implementou estratgias de normalizao dos cidados,
cujo carcter defeituoso os impedia de cumprir as suas obrigaes sociais) e do conflito
entre a China e a Inglaterra a propsito do pio (que culminou com uma aliana anglo-
francesa, conseguida atravs das guerras do pio em meados do sculo XVIII, o que fez com
que a China aceitasse o livre comrcio do pio, convertendo-a num imenso mercado de pio
com milhes de consumidores, influenciando um sistema internacional de controlo de drogas)
(Sherratt, 1995; Escohotado, 1998; Roman, 1999; Seddon, 2010).
A origem do regime de proibio das drogas pode remontar a uma conferncia
internacional sobre o comrcio de pio, realizada em Xangai em 1909 (Seddon, 2010). De
facto, a luta contra as drogas inicia-se na luta contra o pio (Romani, 1999).
No entanto, a guerra s drogas teve menos impacto sobre aqueles que j eram
consumidores regulares (Courtwright, 1995). Cerca das dcadas de 1910 a 1920, na medida
em que aumentavam as proibies de consumo a nvel internacional, surge um sistema
mundial secreto de comrcio de narcticos. O movimento anti-pio tinha criado uma nova
demanda por herona, morfina e codena, qualquer derivado do pio de melhor transporte e
com uma forma de consumo menos bvia do que o ato de fumar. Face a esta situao, a Liga
das Naes iniciou mecanismos para eliminao do trfico de drogas ilcitas e foi estabelecido
um programa internacional para registar as vendas legtimas de narcticos (Meyer, 1995).
Quanto questo da categorizao das substncias em drogas lcitas ou ilcitas, leves ouduras, de salientar que esta no esttica, pois tem variado, consoante o tempo e o lugar,
como o demonstram as referncias histricas (Goodman et al., 1995).
Os argumentos proibicionistas vo-se transformando at se tornarem argumentos de
aspeto sanitrio, de base cientfica (Roman, 1999). Em 1920, os usurios de drogas comeam
a ser tratados clinicamente, apesar de se operar dentro de um quadro regulamentar
proibicionista baseado no direito penal (Seddon, 2010).
Entretanto, o acesso a opiceos e estimulantes sintticos foi relativamente fcil at slimitaes que se iniciaram na Conveno sobre Estupefacientes de 1961, em Nova Iorque,
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4 QUARTO CAPTULO: FUNDAMENTAO TERICA
A diferena entre o que considerado normal e o que se entende como patolgico tem
sido alvo de estudo e discusso. Em princpio, a doena seria o oposto da normalidade/sade
(Canguilhem, 1978). Assim, surge a necessidade de normalizao, que se traduziu numa
forma de controlo sobre o corpo humano (Foucault, 1999). Salienta-se que a normalizao
constitui uma das caractersticas da biomedicina (Lock e Nguyen, 2010).
Com o aparecimento de tecnologias mais avanadas, possvel um conhecimento
aprofundado do organismo humano e, desta forma, a especializao de saberes.
Consequentemente, permitida a criao de outros dispositivos biomdicos, como os
psicofrmacos. No entanto, este aspeto traz algumas desvantagens, como o reconhecimento de
um self neuroqumico, que se torna o principal alvo de tratamento. Assim, o indivduo
reduzido quilo que o seu crebro , sendo negligenciados outros aspetos que permitiriam que
este fosse reconhecido na sua totalidade e no por partes (Rose, 2003; Lock e Nguyen, 2010).
So diversas as prticas que atuam sobre um objeto, o que faz com que este no seja
sempre o mesmo, mas um objeto mltiplo. Por exemplo, a aterosclerose algo diferente
dentro de um laboratrio e dentro de um consultrio, no laboratrio tem a ver com artrias
danificadas, no consultrio pode ser uma dor na perna que limita o dia-a-dia da pessoa. Ento,
atualmente considera-se que uma doena no uma realidade nica, mas mltipla, tendo em
conta a diversidade de prticas que a constituem (Mol, 2002).
A forma de pensar acerca de determinado objeto, o estilo de pensamento, condiciona a
forma de falar e de agir sobre esse objeto, produzindo-se assim o real (Fleck, 1986b). Ento,
tambm o discurso e as prticas biomdicas sobre um objeto permitem cri-lo como uma
entidade biomdica (Lock e Nguyen, 2010). Este pensamento ser desenvolvido nos
subcaptulos seguintes.
4.1 O NORMAL E O PATOLGICO
Atualmente, a toxicodependncia essencialmente abordada como uma doena,
tratada clinicamente, em internamento ou em ambulatrio, com medicamentos e psicoterapias.
Esta concetualizao da toxicodependncia como uma doena foi construda ao longo da
histria e, at aos dias de hoje, este tema tem sido alvo de estudo e discusso dada a sua
complexidade.
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Mas o que a doena? No existe um conceito geral para definir doena no contexto
mdico. Contudo, verificam-se trs construes discursivas sobre a mesma em torno de trs
dimenses: explicativa, morfolgica e semiolgica. A dimenso explicativa caracteriza a
doena como um processo, com uma ou mais causas e uma histria natural. Neste contexto,
tida em conta a fisiopatologia, a experimentao e a epidemiologia (no sentido de estabelecer
causas). H um domnio biolgico. Esta a viso mais recente, desenvolvida a partir da
segunda metade do sculo XIX. A dimenso morfolgica descreve leses caractersticas a
nvel anatmico e, mais recentemente, a nvel molecular. A dimenso semiolgica a clnica
propriamente dita, entende a doena como um conjunto de sinais e sintomas (Camargo Jr.,
2005).
A doena ope-se logicamente normalidade (Camargo Jr., 2005). A
toxicodependncia no encarada como uma situao normal e, talvez, este tenha sido o
primeiro passo no caminho do significado deste fenmeno at aos dias de hoje. Porm, o
conceito normal, s por si, exige uma longa reflexo. O normal pode ter muitas definies:
aquilo que deve ser, a maioria dos casos ou a mdia ou o padro de determinada
caracterstica? Neste trabalho, interessa contrapor o normal, no sentido de sade, com o
patolgico. Aqui destaco a obra de Georges Canguilhem Le Normal et le Pathologique,
publicada pela primeira vez em 1943.
Antes do sculo XIX, a doena foi considerada algo exterior ao homem, que poderia
entrar ou sair do organismo, no sendo sua condio. No sculo XIX, o termo normal
comeou a ser utilizado, na medicina, para se referir sade e foi contrastado com o termo
patolgico, que seria algo anormal. A relao entre o normal e o patolgico foi
estabelecida como quantitativa, o fenmeno patolgico encontrado nos organismos vivos no
era mais do que variaes quantitativas, excessos ou dfices, relativamente ao fenmeno
fisiolgico correspondente (Canguilhem, 1978). Mas Canguilhem (1978) considera este
princpio inadequado e argumenta que a diferena entre o normal e o patolgico qualitativa.Defende que a doena uma perturbao da harmonia e equilbrio do organismo, que tende
naturalmente para o reequilbrio, e que no algo exterior ao homem, mas faz parte dele,
como um todo. Pretende-se manter as condies de funcionamento do meio interno dentro de
estreitos limites, ou seja, a homeostase (Camargo Jr., 2005).
Sendo assim, o normal constitui uma referncia. Torna-se a extenso e a exibio da
norma. A norma apresenta a possibilidade de uniformizar a diversidade, de resolver a
diferena, de normalizao. Assim, descrimina qualidades positivas ou negativas. Mas oconceito de normal j , em si, normativo (Canguilhem, 1978).
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Um aspeto emergente foi a inovao tecnolgica que permitisse a melhoria do bem-
estar dos cidados, habilitando-os ao trabalho pesado que era necessrio a par da revoluo
industrial. Contudo, se por um lado a aceitao da inovao tecnolgica acontece de forma
irrefletida, por outro coloca-se em questo o facto da tecnologia ditar a forma que a vida
social adota. Deste modo, as pessoas podem perder para a tecnologia, mas tambm creem na
criao de novos dispositivos que lhes permitam um maior controlo e autonomia na sua vida
(Lock e Nguyen, 2010).
A anlise dos prs e contras talvez deva incidir sobre cada tecnologia individualmente
e, quando se fala em tecnologias, no significa necessariamente mquinas, mas tambm
tecnologias to simples como a anlise da histria do doente numa consulta mdica ou a
prescrio de um medicamento (Lock e Nguyen, 2010).
O conhecimento cientfico produzido no sculo XIX, tal como todo o tipo de
conhecimento emergente em qualquer poca, foi moldado pelas circunstncias histricas, foi
possvel dentro da sociedade em que se inseria e dentro dos discursos que se produziam. O
discurso cria o objeto do qual fala, produz o real, mas, como o discurso est tambm imerso
em contextos sociais especficos, determinado por eles. Assim, somos resultado da histria,
das suas configuraes que influenciam a forma de pensar (Foucault, 2008).
O advento da modernidade pode ser encarado como o advento da biopoltica. Neste
processo, as disciplinas desempenham um papel importante. As disciplinas so
caracterizadas como mtodos que controlam as operaes do corpo e sujeitam constantemente
as suas foras, impondo uma relao de docilidade-utilidade. O corpo torna-se dcil, porque
pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeioado e torna-se til porque objeto de
estudo, a partir do qual se produz saber. Por outro lado, a disciplina aumenta as foras do
corpo, tornando-o mais capaz, mais til, e diminui essas mesmas foras, em termos polticos,
atravs da obedincia (Foucault, 1999).
atravs das disciplinas que surge o poder da norma. O normal estabelece-se comoum princpio de coero no ensino, no hospital, na indstria. Existe um procedimento de
vigilncia e regulamentao, que constitui um elemento de poder sobre a populao
(Foucault, 1999).
As disciplinas tornam-se reservatrio de conhecimento e organizam-se politicamente
num sentido de saber-poder. Enquanto o poder produz saber e precisa de um campo de
saber, o saber permite a constituio das relaes de poder. Ento, as relaes de saber-poder
determinam o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento,sendo normalizadoras ou disciplinares (Foucault, 1999).
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Assim, a prpria sociedade normalizadora e disciplinar. A sistematizao de
conhecimentos numa equao de saber-poder define e regula a vida. Existe uma anatomia
poltica do corpo humano, uma forma de biopoder, que define como se pode ter o domnio
sobre o corpo dos outros, no simplesmente para que faam o que se quer, mas para que
operem de determinada forma, com as tcnicas, a rapidez e a eficcia estabelecidas. Este
domnio sobre o corpo exercido atravs da institucionalizao como a escola, a fbrica, a
penitenciria, o reformatrio, o hospital. Ento, os indivduos so distribudos por espaos e,
dentro desses espaos, devem ocupar determinados lugares, uma estratgia que permite a
vigia, evita comunicaes perigosas e cria espaos teis. Este controlo sobre as populaes
o que caracteriza a biopoltica (Foucault, 1999).
Esta especializao e institucionalizao dos saberes possibilita a criao de objetos
sobre os quais a cincia se pode debruar e intervir. Desta forma, os fenmenos cientficos
so entendidos como o resultado da interveno tcnica por parte dos cientistas (Lock e
Nguyen, 2010), tal como um fenmeno biomdico pode ser entendido como resultado da
interveno da biomedicina.
4.3 A BIOMEDICINA
A biomedicina pressupe a produo de discursos com validade universal, propondo
modelos e leis de aplicao geral, no se ocupando de casos individuais (carcter
generalizante); o Universo passa a ser visto como uma mquina subordinada a princpios de
causalidade linear traduzveis em mecanismos (carcter mecanicista); a abordagem terica e
experimental pressupe o isolamento de partes, sendo o funcionamento do todo dado pela
soma das partes (carcter analtico) (Camargo Jr, 2005).
No sculo XIX, a biomedicina passa a ser caracterizada no s pela produo de
conhecimento cientfico, mas tambm pela normalizao do corpo. Consequentemente, osdesvios a essa normalidade so considerados patolgicos. Sendo assim, so criados certos
processos identitrios, determinando o perfil dos sujeitos. A biomedicina pode ser analisada
como uma tecnologia que tece julgamentos constantes. As tecnologias, ao serem aplicadas,
alteram o que ser humano (Lock e Nguyen, 2010).
Dentro da biomedicina, importante destacar a emergncia das cincias da memria,
que vm constituir os primrdios da neurocincia, disciplina que atualmente se debrua sobre
o fenmeno da toxicodependncia e que explica a doena mental, no com base em aspetossociais, mas descobrindo-a num rgo, neste caso no crebro (Lock e Nguyen, 2010).
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das terapias comportamentais e psicossociais. Alguns especulam que o uso de drogas aditivas
um tipo de auto-medicao para uma desordem psiquitrica, que deve ser primariamente
tratada. Mais tarde, surge a ideia de que o crebro e os seus mecanismos constituem a
primeira explicao para a adio e, assim, o alvo primrio de tratamento. Em 1980
publicada a terceira edio do Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais
(Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition, DSM-III), que
demonstra uma reformulao do olhar psiquitrico na dcada de 1970 (Rose, 2003).
Salienta-se que, a partir da dcada de 1980 at atualidade, surge a estratgia de
colocar a responsabilidade de governo da vida individual ao prprio indivduo, este deve
autogovernar-se atravs das suas prprias escolhas (Seddon, 2010). No entanto, a escolha
individual do utente nem sempre est de acordo com aquilo que se consideram bons cuidados
mdicos, conforme Mol (2008a) referiu na sua obra The Logic of Care: Health and the
Problem of Patient Choice. A autora questiona se realmente somos individuais e autnomos.
E responde que no. A questo da escolha individual tambm uma tcnica disciplinar.
Apesar dos utentes serem ativos no seu tratamento, esta situao no tem a ver primariamente
com a questo da escolha, mas da participao. A escolha individual influenciada por
campanhas de sade pblica que apresentam um ideal, um determinado estilo de vida
saudvel que as pessoas desejam para si, para serem saudveis. O individual pertence sempre
a um coletivo.
A par desta responsabilizao individual, a biomedicina tem aumentado a sua
capacidade de regulao da conduta humana. E, neste sentido, tambm existe um governo das
desordens do desejo, nomeadamente do craving e adies ou das chamadas doenas da
vontade (Valverde, 1999 in Rose, 2003), doenas que se tornaram doenas do crebro
controladas com uma farmacoterapia do desejo. Esta farmacoterapia remove ou reduz o
desejo por aquilo que era desejvel, atuando sobre a vontade. Assim, vemos surgir um self
neuroqumico com a centralidade colocada no crebro (Rose, 2003).
4.4 O SELFNEUROQUMICO
O pensamento da psiquiatria contempornea ligou-se ao desenvolvimento da
neurocincia que coloca uma anomalia especfica no crebro, mais frequentemente nos
sistemas de neurotransmissores. Alm disso, a nova genmica procura polimorfismos numa
particular sequncia de bases num locus particular do gene correlacionado com um tipo dedesordem do pensamento, emoo ou comportamento. Existe uma dissecao molecular na
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patologia, que tambm se verifica na psicofarmacologia, atuando a nvel dos
neurotransmissores. A droga no atua na pessoa como um todo, mas corrige uma anomalia
especfica subjacente a uma variao indesejvel do humor, emoo, conduta ou vontade
(Rose, 2003).
Perante o uso de substncias psicoativas, o foco incide mais sobre as prprias
substncias, sobre os seus efeitos farmacolgicos, o que origina um certo farmacocentrismo
(Morgan e Zimmer, 1997 inDecorte, 2011).
Esta forma de pensar tem consequncias na conceo do risco e estratgias para a sua
gesto. O risco envolve predisposies, vulnerabilidades ou suscetibilidades e isto envolve
estratgias de controlo. Surge ento o significado moral associado s patologias mentais, que
apagou outras categorias doself, j no se trata da pessoa que sofre de esquizofrenia, mas
do esquizofrnico. Surgem figuras problemticas, o criminoso, o jovem delinquente, o
alcolico, o homossexual. Isto no s se refere a pessoas ligadas a formas de comportamento
indesejvel, mas designa um tipo particular de pessoa ou um tipo anormal (Rose, 2003).
O reconhecimento deste novo selfneuroqumico torna-se redutor, pois a mente torna-
se simplesmente o que o crebro (Rose, 2003). Os seres humanos so mais complexos e
mais incompreensveis do que as suas molculas no crebro. Pode-se observar que o uso
prolongado de uma substncia tem efeito sobre o crebro, mas isso no significa que se
conhece o que se passa na mente daquela pessoa (Decorte, 2011). Alm disso, a nfase no
deve ser dada apenas s caractersticas individuais, pois existem fatores socioculturais que
no devem ser ignorados. O consumo de drogas insere-se dentro de rituais socioculturais, de
subculturas e foras macroestruturais. Os efeitos farmacolgicos das drogas so apenas um
dos muitos aspetos essenciais para compreender as determinantes do uso de drogas e os seus
efeitos (Milhet et al., 2011).
Porm, apesar do desfasamento entre a biologia e a vertente social que se tem vindo a
verificar, atualmente existe a tentativa de integrar os aspetos biolgicos e sociais da doenamental, em vez de os separar, na medida em que somos criaturas, no s biolgicas, mas
tambm sociais (Murphy, 2001). Assim, o homem tido em conta como um todo nas suas
vertentes biolgica, psicolgica e social, um ser biopsicossocial. Agregue-se a isto o fato
de que os termos psico e social no passam de referncias genricas, subordinadas ao
primado do discurso biolgico (Camargo Jr., 1990 inCamargo Jr., 2005: 185).
Dentro desta questo, tambm se pode chamar a ateno para o confronto entre o
laboratrio e a clnica. Apesar da possibilidade de se efetuar medidas laboratoriais ou de seusar tecnologias de imagem, que apenas indicam o que incomum ou desviante, estas
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alteraes s podem ser detetadas quando as pessoas aparecem na clnica a relatar a sua
prpria histria. A normatividade efetuada na clnica, os laboratrios podem estabelecer
factos, mas no podem estabelecer normas (Mol, 2002). Canguilhem (1978) refere que,
historicamente, a clnica surgiu primeiro em relao ao laboratrio. Os laboratrios no
seriam criados se no fossem os consultrios mdicos, aos quais as pessoas recorrem para
pedir ajuda. A clnica no deve ser anulada pelo laboratrio, mas assumir a liderana sobre
ele.
Desta forma, para Mol (2002), importante questionar o utente sobre aquilo que
constitui um problema na sua vida, pois uma doena pode pertencer ao corpo, mas est
situada algures na vida da pessoa.
Diante da dicotomia clnica versus laboratrio, Mol (2002) refere a emergncia de
realidades mltiplas. O objeto diferente consoante a prtica mdica que intervm sobre si.
4.5 VRIAS REALIDADES
Diferentes prticas mdicas no representam o mesmo objeto de maneira diferente,
mas criam objetos diferentes, realidades mltiplas. Porm, conforme Mol (2008b: 73) referiu
ao analisar a questo da anemia, a realidade da anemia mltipla, mas no plural. As
vrias anemias estabelecidas na medicina tm relaes entre si, o que extensvel a outros
problemas biomdicos.
Sendo assim, o conhecimento deixa de ser uma questo de referncia, mas passa a ser
uma questo de manipulao. A pergunta j no como encontrar a verdade, mas como
que os objetos so manuseados na prtica? Mol (2002: 5)
O mdico utiliza ferramentas tericas para estudar os doentes e as suas palavras, tem
uma perspetiva, atribui um sentido ao que acontece aos doentes, aos corpos e s vidas dos
outros, enquanto os doentes falam essencialmente sobre o seu corpo e a sua prpria vida. Noentanto, ambos podem ser transformados em iguais, pois ambos interpretam o mundo em que
vivem. Ningum est em contacto com a realidade das doenas, esta apenas interpretada
(Mol, 2002). Os especialistas tambm tm formaes profissionais e sociais diferentes e cada
um uma pessoa diferente, com competncias, hbitos, histrias e preocupaes particulares.
Olham para o mundo de diferentes pontos de vista, veem os objetos de forma distinta e
representam o que veem de maneiras diversas (Mol, 2008b).
Assim, uma doena torna-se uma parte do que feito na prtica, tal como a identidadeda pessoa no algo dado, mas praticado. Os atos das pessoas fazem delas o que so. Desta
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forma pode-se no s estudar a doena, mas as pessoas doentes a viver com essa doena (Mol,
2002).
No entanto, o conhecimento no hospital ainda se refere a um corpo no qual os
sintomas apontam para uma alterao interna (Sullivan, 1986 inMol, 2002). Para Mol (2002),
se dois objetos sob o mesmo nome colidem na prtica, um deles ter o privilgio sobre o
outro, pois tm especificidades diferentes. Mantm-se diferentes formas de criar uma doena
e, por isso, diferentes doenas criadas. Permanece sempre a multiplicidade, como Mol (2002)
demonstrou com o caso da aterosclerose. A autora defende tambm que, ao se definir uma
doena, torna-se necessrio complementar esta informao com o local onde esta estudada,
onde se intervm sobre a mesma, pois cada local apresenta as suas prticas.
Assim, ocorre um abandono da ideia de Foucault, no sentido de que a cincia mdica
no tem o poder de impor a sua ordem na sociedade. Alm disso, a medicina multiplica, em
vez de apresentar um discurso nico e coerente ou traar uma nica rede de associaes. A
unificao das cincias no vivel, pois os fenmenos so produzidos por tcnicas
diferentes, que contribuem para a multiplicao da realidade. Pode-se falar de uma nica
doena num nico local, mas este objeto no est sozinho, na medida em que interfere com a
realidade de muitos outros. Uma doena tem sido descrita como parte das prticas na qual
criada. Isto significa que no se tenta ver objetos, mas antes objetos que esto a ser criados
com a prtica (Mol, 2002).
Podemos salientar tambm a necessidade de um campo interdisciplinar para observar
um objeto. Para considerar o paciente como um todo, o conhecimento biomdico da doena
no suficiente. A forma como a pessoa vive com a doena deve ser tida em conta. Nesta
forma de pensar, viver com a doena considerado um fenmeno psicossocial. Introduz-se
tambm a abordagem da prtica. Esta engloba tudo, molculas, dinheiro, clulas,
preocupaes, corpos, sorrisos, e intervm em todas estas questes. A consolidao de um
facto e os significados da sua produo andam juntos (Mol, 2002).A realidade costuma ser um padro para viver, mas dada a proliferao da tecnologia e
da cincia a questo com que realidade devemos viver? Isto significa que a realidade
muda. Agora, em vez de se indagar como podemos ter a certeza, confrontamo-nos com a
questo como viver com a dvida? No podemos encontrar garantia ao perguntar se este
conhecimento verdadeiro para este objeto, torna-se mais importante perguntar esta prtica
boa para os assuntos (humanos ou outros) envolvidos? (Mol, 2002: 165).
Apesar da tendncia de tornar o doente no cidado que merece jurisdio sobre asintervenes no seu corpo e vida, no se defende necessariamente a escolha individual. As
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intervenes so compreendidas como uma forma de organizar no s a vida individual, mas
toda a poltica do corpo, advindo novamente o carcter normativo da medicina (Mol, 2002).
Ento, as prticas sobre os objetos tm um papel crucial na sua constituio e,
diferentes prticas, criam objetos diferentes. Assim, a toxicodependncia pode no ser a
mesma entidade consoante a prtica ou a disciplina que intervm sobre si. Que mais
poderemos dizer acerca da criao de um facto biomdico atravs da prtica?
4.6 A CONSTRUO DE UM FACTO BIOMDICO COM A PRTICA
De onde vm os factos cientficos? Ludwik Fleck falou sobre a gnese e o
desenvolvimento de um facto cientfico. Inicialmente, apresentou um facto como algo fixo,
permanente e independente da opinio subjetiva do investigador. O facto aparece como a
meta de todas as cincias. Critica, contudo, a possibilidade de se perder um conhecimento
crtico do mecanismo cognoscente que d o facto como certo, provocando uma passividade
total ante uma fora denominada de existncia ou realidade. Talvez um facto novo, isto
, relativamente recente e ainda no estudado sob todas as perspetivas, seja aquele que melhor
se adapta investigao (Fleck, 1986a).
Para Fleck (1986b), um facto cientfico resultado da atividade cientfica num quadro
de estilos de pensamento. As formas de pensar sobre determinado objeto so diferentes, por
exemplo, no socilogo e no mdico. Existe um processo de formao especfico para cada
uma das cincias que permite ao indivduo aprender a ver de uma determinada maneira. Ora,
o investigador de determinada rea cientfica no tem conscincia da escolha da forma como
interpreta determinado objeto, pelo contrrio, este j se apresenta de determinada forma, a isto
chamamos os estilos de pensamento, que so resultado da educao terica e prtica
permeados por um desenvolvimento histrico e por determinadas leis sociais. O observador
observa de acordo com os seus estilos de pensamento. Um estilo de pensamento comum aosindivduos de determinada comunidade dita o que os seus membros veem, o que um coletivo
observa, desta forma pode-se falar em coletivos de pensamento.
Sinteticamente, a partir de uma dada situao, surge um pensamento demonstrvel e
depois um pensamento bvio atravs do qual se fala e age sobre o objeto que os membros de
um grupo tratam como um facto exterior a eles e independente deles. Assim evolui aquilo a
que se chama o real. Esta uma das formas de onde surge conhecimento (Fleck, 1986b).
Daqui percebemos a importncia dos estilos de pensamento na constituio dos factos.Um facto biomdico resultado de uma forma de pensar precondicionada, das tecnologias e
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SEGUNDA PARTE FASE METODOLGICA
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5 QUINTO CAPTULO: MATERIAIS E MTODOS
Um trabalho de pesquisa pode no ser algo totalmente original, porm sempre um
modo diferente de olhar e pensar determinada realidade a partir de uma experincia e de uma
apropriao do conhecimento que so pessoais (Duarte, 2002: 140).
Inicialmente, o tema a estudar consistiu na anlise da construo de uma entidade
biomdica, nomeadamente a toxicodependncia, que ultimamente tem sido considerada uma
doena do crebro. A escolha de uma pesquisa em torno desta entidade est relacionada ao
facto da pesquisadora apresentar experincia profissional na rea e, consequentemente, uma
forte motivao pessoal para aprofundar os estudos sobre o tema. Por outro lado, talvez se
antevisse uma maior facilidade na aquisio de recursos para efetuar o estudo.
O tema inicial foi melhor definido, passando a consistir na anlise da construo da
toxicodependncia como uma entidade biomdica, atravs das prticas desenvolvidas pelos
profissionais de sade em torno da mesma. Assim, foi delineado o objetivo de compreender
de que forma as prticas permitem construir a toxicodependncia como doena. Deste modo,
procura-se dar resposta questo de investigao: como que a toxicodependncia, enquanto
facto biomdico, criada na prtica?
Para isso, foi efetuado um estudo etnogrfico numa unidade de desabituao de
substncias psicoativas localizada no centro do pas, a unidade T ou T, no espao
temporal de setembro a dezembro de 2011, portanto, durante um semestre letivo.
A metodologia utilizada foi baseada na observao participante, com recolha de notas
de campo, na realizao de entrevistas semidiretivas aos tcnicos e na pesquisa de
documentos existentes na T. Passo assim a relatar os procedimentos de pesquisa para que seja
possvel refazer o caminho e avaliar com mais segurana as concluses obtidas (Duarte,
2002).
Aps seleo do tema de pesquisa, foi efetuada uma conversa informal com o diretorda unidade T, apresentando e expondo o objetivo do trabalho e a forma como este se
realizaria. O diretor da T, desde logo, mostrou-se recetivo e interessado relativamente a este
estudo. Atravs de um documento escrito, foi solicitada autorizao para a realizao da
pesquisa, obtendo-se parecer positivo, na condio de deixar um exemplar na unidade T.
Assim, foi iniciada a recolha dos dados.
A recolha de notas de campo foi efetuada atravs de uma observao participante,
sendo possvel observar, escutar, perguntar e recolher a maior quantidade de dados possvelacerca do tema, mais tarde complementados com outros aspetos recordados e considerados
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pertinentes. Para a coleta de dados foi necessrio um caderno, onde foram registadas notas de
campo e, por vezes, o computador, ou ainda folhas de papel onde se registava alguma
observao pertinente, se o caderno ou o computador no estivessem imediatamente
disponveis.
Relativamente recolha de notas de campo, esta considerada vantajosa na medida
em que possvel captar comportamentos no momento em que se produzem. No entanto, os
registos so passveis de sofrer influncias relacionadas com o envolvimento emocional e
valorativo da pesquisadora (Gnther, 2006) e com a seletividade da memria (Quivy e
Campenhoudt, 1998).
Antes da realizao das entrevistas, os tcnicos entrevistados assinaram um termo de
consentimento livre e esclarecido para a entrevista, onde foi apresentado, de forma breve, o
estudo a efetuar e garantidos a confidencialidade e o anonimato dos dados de identificao,
bem como a utilizao das informaes obtidas apenas para o presente estudo.
As entrevistas apresentaram uma primeira parte, que visou recolher alguns dados de
investigao, e uma segunda parte com seis questes semiabertas relativas ao objeto de
estudo, que passo a referir:
- Qual a sua conceo relativamente ao fenmeno da toxicodependncia?
pretende-se perceber de que forma o profissional de sade compreende a
toxicodependncia, que significado atribui a esta entidade;
- Qual o objetivo do internamento na unidade T? com esta questo, possvel
associar o objetivo do internamento com a conceo de toxicodependncia dos
profissionais da T;
- Que estratgias teraputicas so implementadas na unidade T? esta questo
surge como complemento da anterior, pretende-se saber, de forma especfica, que
intervenes so realizadas na unidade para atingir o objetivo do tratamento;
- Que consideraes tece acerca dos contactos efetuados com outros profissionais(pluridisciplinares)? permite avaliar a importncia atribuda abordagem
multidisciplinar, atualmente inerente ao fenmeno da toxicodependncia, alm
disso, tambm possvel perceber as relaes interpessoais;
- Qual o papel dos profissionais de sade na rea da toxicodependncia em
Portugal? esta questo de mbito mais global e reflete a viso do profissional
de sade que trabalha na rea da toxicodependncia no contexto portugus e no
apenas no espao geogrfico da unidade T;
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- Qual o impacto da interveno sobre a toxicodependncia na sociedade?
permite perceber as repercusses da atuao sobre a toxicodependncia na
sociedade.
Para realizao das entrevistas foram selecionados intencionalmente dez profissionais
da T considerados peritos experenciais, na medida em que trabalham na rea da
toxicodependncia num perodo igual ou superior a dez anos e, desta forma, possuem
conhecimentos particulares e aprofundados sobre a toxicodependncia, podendo maximizar a
informao que se pretende recolher (Morse, 1994 inFonte, 2005). Os tcnicos selecionados
inserem-se nas categorias profissionais de mdico, enfermeiro, psiclogo, tcnico de servio
social e tcnico psicossocial.
As entrevistas foram efetuadas via correio eletrnico, sendo que a pesquisadora se
manteve disponvel para esclarecer quaisquer dvidas que surgissem. A seleo deste meio
comunicacional permitiu economizar tempo, uma fraca diretividade da pesquisadora e a
escolha, por parte do profissional, do momento que melhor lhe aprouvesse para responder
entrevista. No entanto, verificaram-se algumas desvantagens, como a no obteno de
resposta por parte de dois profissionais e a impossibilidade de se estar atenta comunicao
no verbal.
O objetivo das entrevistas constou em confrontar as opinies dos profissionais e a sua
atitude relativamente questo da toxicodependncia com os dados observados pela
pesquisadora (a entrevista surge como um complemento observao participante). Assim,
possvel analisar o sentido que os tcnicos da T do s suas prticas e aos acontecimentos com
que se veem confrontados. Esta recolha de dados subjetivos, relacionados com os valores, as
atitudes e opinies dos sujeitos entrevistados, apenas possvel atravs da entrevista (Boni e
Quaresma, 2005).
Outro dos procedimentos adotados para a recolha de dados consistiu na leitura de
documentao existente na unidade T, esta documentao pode ser externa, sendo referido oseu autor, ou interna, redigida pelos profissionais de sade da T. A leitura de documentao
permite economizar tempo, evitar o recurso abusivo de sondagens e aproveitar a riqueza do
material documental disponvel (Quivy e Campenhoudt, 1998). Dentro da documentao
analisada, incluem-se artigos de revistas e documentos internos, elaborados pelos prprios
profissionais da T.
Para a anlise dos dados, procedeu-se da seguinte forma: as notas de campo foram
colocadas em suporte informtico e organizadas de forma cronolgica e, atravs de umtrabalho de sntese, foi construdo um texto que descrevesse como funciona a unidade T na
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6 SEXTO CAPTULO: A UNIDADE T NA PRTICA
O atual captulo refere-se aos resultados obtidos atravs do trabalho de campo. Antes
de se percorrer o caminho pelo interior da unidade T, feita uma breve apresentao a fim
de melhor situar o leitor. A unidade T funciona num edifcio propositadamente construdo
para o objetivo a que se destina: o tratamento da sndrome de abstinncia de substncias
aditivas, ou seja, a desabituao fsica dessas substncias, e a estabilizao da comorbilidade
psiquitrica, se existente. Segundo documentao interna da T, o objetivo do internamento
visa permitir ao utente deixar de consumir uma ou mais substncias causadoras de
dependncia, sem experimentar os sintomas de privao correspondentes. A T uma
unidade de internamento de curta durao (sete ou catorze dias) em regime fechado, isto , os
utentes permanecem a maior parte do tempo no interior da unidade sem acesso ao exterior,
contudo este permitido em determinados horrios e sob superviso dos tcnicos. A
capacidade da T de doze utentes.
Na unidade T trabalham, em horrio fixo, o diretor e mdico psiquiatra, a mdica de
medicina geral e familiar, a psicloga clnica, o tcnico de servio social, a enfermeira
responsvel de enfermagem, o tcnico de apoio psicossocial e o assistente administrativo.
Fora deste horrio encontram-se doze mdicos de preveno, so chamados T pelo
enfermeiro, se necessrio. Trabalham por turnos, durante as vinte e quatro horas, treze
enfermeiros e sete assistentes operacionais. A equipa multidisciplinar sofreu algumas
alteraes no decorrer do trabalho de campo.
O edifcio da unidade T tem trs pisos. O piso -1 contm a arrumao, o arquivo
e os vestirios dos funcionrios. O rs-do-cho contm a zona de acolhimento, a zona
de servios e a zona de internamento. A zona de acolhimento a entrada da unidade, com
a receo, a sala de espera, o gabinete d
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