a construÇÃo de um direito constitucional … · direito público e filosofia do direito da...
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A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO CONSTITUCIONAL COMUM
IBEROAMERICANO:
Considerações em homenagem à doutrina de Peter Häbe rle e sua influência
no Brasil
GILMAR MENDES••••
I. Introdução. II. Estado Constitucional Cooperativo. III. Contornos de um Direito Constitucional Comum Iberoamericano. IV. Os Tratados Internacionais no Ordenamento Brasileiro. V. Direitos Humanos e Integração Regional. VI. Conclusão
I. Introdução
Nada mais oportuno do que esta merecida homenagem ao Professor
Peter Häberle, um dos maiores constitucionalistas e pensadores de nosso tempo.
O Prof. Dr. Dr.h.c.mult. Peter Häberle é professor titular aposentado de
Direito Público e Filosofia do Direito da Universidade de Bayreuth, na República
Federal da Alemanha, e, atualmente, desempenha as funções de diretor do
• Presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil; Presidente do Conselho Nacional de Justiça do Brasil; Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília-UnB; Mestre em Direito pela Universidade de Brasília - UnB (1988), com a dissertação Controle de Constitucionalidade: Aspectos Políticos e Jurídicos; Mestre em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA (1989), com a dissertação Die Zulässigkeitsvoraussetzungen der abstrakten Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht (Pressupostos de admissibilidade do Controle Abstrato de Normas perante a Corte Constitucional Alemã); Doutor em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA (1990), com a tese Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal, publicada na série Schriften zum Öffentlichen Recht, da Editora Duncker & Humblot, Berlim, 1991 (a tradução para o português foi publicada sob o título Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, 395 p.). Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Membro do Conselho Assessor do “Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional” – Centro de Estudios Políticos y Constitucionales - Madri, Espanha. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Membro da Academia Internacional de Direito e Economia – AIDE.
Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Européia, do mesmo centro
universitário.
Nascido em Göppingen, Alemanha, em 1934, o Professor Peter
Häberle estudou nas Universidades de Tübingen, Bonn, Montpellier (França) e
Freiburg. Em sua tese de doutoramento, tratou, com brilhantismo, sobre o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais na Lei Fundamental de Bonn.
Seu trabalho como pesquisador foi objeto de numerosas distinções
honrosas, entre as quais os doutorados Honoris Causa pelas Universidades de
Atenas, em 1994, pela Universidade de Granada, em 2002, e pela Pontifícia
Universidade Católica do Peru, em 2004. Em 1998, foi contemplado com o prêmio
de pesquisa por cooperação internacional do Max Planck Institut (Max-Planck-
Forschungspreis für Internationale Kooperation).
Sua obra é extensa, compondo-se de centenas de artigos e mais de
vinte monografias, com aportes fundamentais para a doutrina constitucional
européia e mundial, em diversas obras, como Die Wesensgehaltgarantie des Art.
19 Abs. 2 Grundgesetz (1962) (A garantia do núcleo essencial dos direitos
fundamentais na Lei Fundamental de Bonn), Öffentliches Interesse als juristisches
Problem (1970) (Interesse Público como problema jurídico),
Verfassungsgerichtsbarkeit (1976) (Jurisdição Constitucional), Verfassung als
öffentlicher Prozess (1978) (Constituição como Processo Público), Die Verfassung
des Pluralismus (1980) (A Constituição do pluralismo), Verfassungslehre als
Kulturwissenschaf (1982) (Teoria da Constituição como ciência da cultura), Das
Menshenbild im Verfassungsstaat (1988) (O Homem no Estado Constitucional),
dentre outras.
Peter Häberle destaca-se, para além do inestimável cabedal jurídico,
pela profundidade de seus conhecimentos filosóficos, teológicos e artísticos, os
quais têm dado a este professor notável o título de um autêntico humanista. Sua
obra tem chamado a atenção pela originalidade metodológica, atualização e
profundidade conceitual, que permite novas abordagens para as ciências
humanas, em geral, e jurídica, em particular.
Um dos expoentes europeus da teoria institucional dos direitos
fundamentais e pioneiro da universidade européia do futuro, tem o Professor Peter
Häberle dedicado toda sua vida profissional à docência universitária,
fundamentando sua obra científica no pluralismo, constituindo a idéia de
integração o ponto de partida para a realização do novo Estado Constitucional do
século XXI - o Estado Constitucional Cooperativo.
Por meio de sua teoria constitucional, voltada à defesa da tolerância e
da aceitação do outro e à proteção dos direitos fundamentais diante da complexa
realidade do mundo atual, Peter Häberle contribuiu enormemente para o
fortalecimento do Estado Constitucional, sobretudo em países de transição
democrática.
Nesse sentido, seu aporte ao desenvolvimento do direito ultrapassou
as fronteiras européias e encontrou eco na América Latina, onde produziu obra
dedicada especialmente à integração latino-americana, mostrando a sua
disposição para auxiliar no processo de integração cultural e política deste
continente ao desenvolver a idéia de um "direito constitucional comum ".1
No Brasil, sua contribuição tem sido inestimável para o
desenvolvimento do direito constitucional. São muitos os doutrinadores brasileiros
de renome que defendem a necessidade de consolidação da idéia de uma
sociedade aberta de intérpretes da Constituição, formulada por Peter Häberle.
Segundo essa concepção, o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser
alargado para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos
1 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003.
processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos
sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.
A influência do professor Häberle pode ser notada no âmbito do
Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, em julgamento deste tribunal, o voto do
eminente Ministro Celso de Mello em questão de ordem na ADIn nº 2.777, em
novembro de 2003, afirmou a possibilidade da sustentação oral de terceiros
admitidos no processo de ação direta de constitucionalidade, na qualidade de
amicus curiae. Sua argumentação foi inteiramente compatível com a orientação
de Peter Häberle que, “não só defende a existência de instrumentos de defesa da
minoria, como também propõe uma abertura hermenêutica que possibilite a esta
minoria o oferecimento de 'alternativas' para a interpretação constitucional”.
Semelhante influência ocorre no âmbito legislativo. A Lei no 9.868/99
consagrou a figura do amicus curiae, conferindo uma abertura pluralista ao
processo brasileiro de interpretação constitucional, no sentido referido por Peter
Häberle.
Ainda no Supremo Tribunal Federal, mencione-se o julgamento dos
embargos infringentes na ADI 12892, em abril de 2003. A análise da decisão
demonstra, de forma evidente, a adoção de um “pensamento do possível”,
valendo-se da lição de U. Scheuner, citada por Häberle, no sentido de que, se a
Constituição quiser preservar sua força regulatória, em uma sociedade pluralista, a
Constituição não pode ser vista como texto acabado ou definitivo, mas sim como
“projeto” (“Entwurf”) em contínuo desenvolvimento.3
2 ADIn 1289, Relator Ministro Octavio Galotti , DJ de 29.05.98. O Procurador-Geral da República opôs embargos infringentes contra acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn 1289, em 18 de dezembro de 1996, que havia declarado a inconstitucionalidade - em face do artigo 115, parágrafo único, inciso II, combinado com o artigo 94 da Constituição - , de resolução do Conselho Superior da Justiça do Ministério Público do Trabalho, que dispunha sobre a formação da lista sêxtupla em hipóteses de inexistência de membros do Ministério Público com mais de 10 anos de carreira. 3 Häberle, Demokratische Verfassungstheorie im Lichte des Möglichkeitsdenken, in: Die Verfassung des Pluralismus, Königstein/TS, 1980, p. 4.
É possível encontrar, entre os doutrinadores brasileiros, importantes
análises da obra de Peter Häberle. Pelo menos dois de seus trabalhos já foram
traduzidos para o português: Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos
intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e
procedimental da Constituição,cuja tradução foi por mim elaborada4, e O recurso
de amparo no sistema germânico de justiça constitucional 5 . Os estudantes e
estudiosos brasileiros têm podido ter acesso aos seus estudos também mediante
a leitura das importantes traduções publicadas na Espanha e em outros países da
América Latina.
Notável o artigo do Professor Inocêncio Mártires Coelho, do
Departamento de Direito da Universidade de Brasília6, ao expor a presença do
amicus curiae no processo de controle de constitucionalidade. Do mesmo autor,
os artigos Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder7, e
Fernando Lassale, Konrad Hesse, Peter Häberle: a força normativa da
Constituição e os fatores reais de poder8. Também deve-se mencionar, neste
contexto, a expressiva obra do acadêmico Rafael Caiado Amaral, intitulada Peter
Häberle e a Hermenêutica Constitucional9.
E é justamente por sua inestimável contribuição ao desenvolvimento
da ciência jurídica e sua crescente influência entre nós, que a Universidade de
Brasília – UnB concedeu-lhe o título de Doutor Honoris Causa, em setembro de
2005, quando pretendeu traduzir o devido reconhecimento da comunidade
4 Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. 5 Häberle, Peter. O recurso de amparo no sistema germânico de justiça constitucional. In: Direito Público, v.1, n.2, p.83-137, out./dez. 2003. 6 Coelho, Inocêncio Mártires. As Idéias de Peter Häberle e a Abertura da Interpretação Constitucional no Direito Brasileiro, in: RDA 211/125-134. 7 Coelho, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse / Peter Haberle: um retorno aos fatores reais do poder. In: Notícia do Direito Brasileiro: Nova Série, n.5, p.77-90, jan./jun. 1998; Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, p.185-191, abr./jun. 1998; Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, v.7, n.26, p.119-126, jan./mar. 1999. 8 Coelho, Inocêncio Mártires. Lassale, Konrad Hesse, Peter Haberle: a força narrativa da constituição e os fatores reais do poder. In: Universitas / Jus, n.6, p.27-42, jan./jun. 2001. 9 Amaral, Rafael Caiado. Peter Häberle e a Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004.
acadêmica brasileira ao jurista e filósofo que tem prestado também inestimável
contribuição intelectual ao desenvolvimento do direito constitucional brasileiro.
No presente trabalho, elaborado especialmente para esta homenagem
que rendemos ao Professor Peter Häberle, discutiremos a respeito da
possibilidade da construção de um direito constitucional comum iberoamericano a
partir das premissas teóricas desenvolvidas na obra desse eminente doutrinador,
especialmente diante de recente decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil10
sobre a hierarquia normativa, no ordenamento jurídico brasileiro, da Convenção
Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica.
II. Estado Constitucional Cooperativo
A concepção de um direito constitucional comum se relaciona
diretamente à idéia de um Estado constitucional cooperativo.
Segundo Peter Häberle, o Estado constitucional cooperativo vive de
redes de cooperação econômica, social, humanitária e antropológica, de forma
que há necessidade de desenvolvimento de uma cultura de cooperação – no
sentido da internacionalização da sociedade, da rede de dados, da esfera pública
mundial e da legitimação da política externa11.
Para Häberle, mesmo que, em uma perspectiva internacional, a
cooperação entre os Estados ocupe o lugar de mera coordenação e de simples
ordenamento para a coexistência pacífica – ou seja, de mera delimitação dos
âmbitos das soberanias nacionais –, no campo do direito constitucional nacional
tal fenômeno, por si só, pode induzir a tendências que apontem para um
10 RE n° 349.703/RS, Rel. Min. Carlos Britto, Red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 3.12.2008, DJE 12.12.2008; RE n° 466.343, Rel. Ceza r Peluso, julgado em 3.12.2008, DJE 12.12.2008. 11 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 68-69.
enfraquecimento dos limites entre o interno e o externo, gerando uma
principiologia de prevalência do direito comunitário sobre o direito interno12.
São os próprios elementos do Estado constitucional que indicam o
modelo de cooperação internacional. Os procedimentos de concretização das
democracias, a independência da jurisdição – principalmente da jurisdição
constitucional – e os mecanismos de proteção interna e externa dos direitos
humanos são decisivos para a consagração do modelo de cooperação entre os
Estados 13.
Assim, o Estado constitucional cooperativo estaria inserido em uma
comunidade universal de Estados constitucionais, ou seja, em um contexto em
que os Estados constitucionais não existem mais para si mesmos, mas, sim, como
referências para os outros Estados constitucionais membros de uma
comunidade14.
De tal forma, o modelo de cooperação permitiria que os Estados
constitucionais preservassem suas características constitucionais, mas com
vocação crescente para o intercâmbio no plano internacional. A ordem
internacional influenciaria de forma direta a soberania do Estado nacional, o qual,
por essa influência, deixa de ser soberano, nos moldes clássicos, para ser
cooperativo15.
12 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 74. 13 Cfr nesse sentido: HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 69. 14 Cfr nesse sentido: HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 75-77. 15 Sobre o ser cooperativo Haberle anota: “Junto com a perda da soberania nacional dos europeus se apresenta, na ordem do dia, a acelerada internacionalização (globalização). A fórmula de “cooperação de estados constitucionais” (1978) busca fazer justiça a essa questão. A solução dos problemas formulados pelas novas formas de informação tecnológica inquieta a Constituição federal alemã; sejam igualmente mencionados os sutis instrumentos das judicaturas constitucionais para o cuidado efetivo do meio ambiente”. VALADÉS, Diego (Org). Conversas Acadêmicas com Peter Häberle, Trad. Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva/IDP, 2009, p.118.
A imagem da comunidade universal dos Estados constitucionais
evidencia que o Estado constitucional não mais terá suas referências apenas em
si, mas nos seus semelhantes, que serão como espelhos a refletir imagens uns
dos outros para a identificação de si próprios. A manifestação desse fenômeno
ocorrerá por meio de princípios gerais, notadamente, os que consagrarem direitos
humanos universais (como aquelas de objetivos educacionais, paz mundial,
proteção ao meio ambiente, amizade, cooperação e ajuda humanitária) 16.
Evidente, portanto, a relação direta entre a concepção de um Estado
constitucional cooperativo e a temática da proteção dos direitos humanos.
III. Contornos de um Direito Constitucional Comum I beroamericano
O Estado constitucional, compreendido atualmente como Estado
constitucional cooperativo, é um projeto universal, apesar da diversidade tipológica
entre os países e das diferenças entre suas culturas nacionais. Diante dessa
realidade, segundo Häberle, os modestos meios do constitucionalismo devem ser
empregados a fim de levar a cabo o necessário para que a América Latina, com
sua riqueza multiétnica e multicultural, se reafirme na era da globalização.17
Cabe então questionar se existiriam contornos tangíveis para um
direito constitucional comum iberoamericano.
Quanto a isso, podemos supor, com Häberle, que já existem materiais
textuais que constituem etapas precursoras de uma integração mais ampla.18
16 Cfr nesse sentido: HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México : Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 75. 17 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico : Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, p. 3. 18 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico : Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, pp. 21-23.
Além de menções expressas a “América”, “América Latina” e “América
Central” em diversas Constituições dos países que compõem o continente, seja no
preâmbulo ou no texto normativo, no plano supranacional merecem destaque a
Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá), e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).19
Ressalte-se, nesse sentido, que há disposições da Constituição
brasileira de 1988 que remetem o intérprete para realidades normativas
relativamente diferenciadas em face da concepção tradicional do direito
internacional público. Refiro-me, especificamente, a quatro disposições que
sinalizam para uma maior abertura constitucional ao direito internacional e, na
visão de alguns, ao direito supranacional.
A primeira cláusula consta do parágrafo único do art. 4º, que
estabelece que a “República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações”; dispositivo
constitucional que representa uma clara opção do constituinte pela integração do
Brasil em organismos supranacionais.20
A segunda cláusula é aquela constante do § 2º do art. 5º, ao
estabelecer que os direitos e garantias expressos na Constituição brasileira “não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A terceira e quarta cláusulas foram acrescentadas pela Emenda
Constitucional nº 45, de 8.12.2004, constantes dos §§ 3º e 4º do art. 5º, que
rezam, respectivamente, que “os tratados e convenções internacionais sobre
19 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, pp. 30-35. 20 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; 1988, p. 466.
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”, e “o Brasil se submete à jurisdição de
Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”
Lembre-se, também, que vários países latino-americanos já
avançaram no sentido de sua inserção em contextos supranacionais, reservando
aos tratados internacionais de direitos humanos lugar especial no ordenamento
jurídico, algumas vezes concedendo-lhes valor normativo constitucional.
Assim, Paraguai (art. 9o da Constituição)21 e Argentina (art. 75 inc.
24)22 , provavelmente influenciados pela institucionalização da União Européia,
inseriram conceitos de supranacionalidade em suas Constituições. A Constituição
uruguaia, por sua vez, promulgada em fevereiro de 1967, inseriu novo inciso em
seu artigo 6o, em 1994, porém mais tímido que seus vizinhos argentinos e
paraguaios, ao prever que "A República procurará a integração social e
econômica dos Estados latino-americanos, especialmente no que se refere à
defesa comum de seus produtos e matérias primas. Assim mesmo, propenderá a
efetiva complementação de seus serviços públicos."
Esses dados revelam uma tendência contemporânea do
constitucionalismo mundial de prestigiar as normas internacionais destinadas à
proteção do ser humano. Por conseguinte, a partir desse universo jurídico voltado
aos direitos e garantias fundamentais, as constituições não apenas apresentam
maiores possibilidades de concretização de sua eficácia normativa, como também
21Constituição do Paraguai, de 20.06.1992, artigo 9º: “A República do Paraguai, em condições de igualdade com outros Estados, admite uma ordem jurídica supranacional que garanta a vigência dos direitos humanos, da paz, da justiça, da cooperação e do desenvolvimento político, econômico, social e cultural.” 22 A Constituição da Argentina, no inciso 24 do Artigo 75, estabelece que "Corresponde ao Congresso: aprovar tratados de integração que deleguem competências e jurisdição a organizações supraestatais em condições de reciprocidade e igualdade, e que respeitem a ordem democrática e os direitos humanos. As normas ditadas em sua conseqüência têm hierarquia superior às leis."
somente podem ser concebidas em uma abordagem que aproxime o Direito
Internacional do Direito Constitucional.
América, assim como Europa, é aqui considerada como fenômeno
cultural. De tal forma, o paradigma a ser tomado como base para se inquirir a
respeito da existência de contornos tangíveis para um direito constitucional
comum iberoamericano não é o direito europeu em sentido estrito – a União
Européia, já densamente constitucionalizada –, mas sim, o direito europeu em
sentido amplo, o qual é composto por estruturas mais fragmentárias e pontuais,
dentre as quais a mais sólida seria a Convenção Européia de Direito Humanos.23
Assim, se a principal dentre as estruturas fragmentárias e culturais do
direito europeu em sentido amplo é a Convenção Européia de Direitos Humanos,
da mesma forma, a idéia da construção de um direito constitucional
iberoamericano parte necessariamente da consideração da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, que tem
consideráveis afinidades com a convenção européia, mais antiga.
No continente americano, o regime de responsabilidade do Estado
pela violação de tratados internacionais vem apresentando uma considerável
evolução desde a criação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
também denominada Pacto de San José da Costa Rica, adotada por conferência
interamericana especializada sobre direitos humanos, em 21 de novembro de
1969. Entretanto, na prática, a mudança da forma pela qual tais direitos são
tratados pelo Estado brasileiro ainda ocorre de maneira lenta e gradual. E um dos
fatores primordiais desse fato está no modo como se vinha concebendo, no plano
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o processo de incorporação de
tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica interna.
23 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico : Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, pp. 16-18.
IV. Os Tratados Internacionais no Ordenamento Brasi leiro
O Supremo Tribunal Federal por muito tempo adotou a idéia de que os
tratados de direitos humanos, como quaisquer outros instrumentos convencionais
de caráter internacional, poderiam ser concebidos como equivalentes às leis
ordinárias.
Segundo esse posicionamento, recentemente revisto pelo Supremo
Tribunal Federal, os tratados internacionais não possuíam a devida legitimidade
para confrontar ou complementar o preceituado pela Constituição Federal em
matéria de direitos fundamentais.
O Tribunal passou a adotar essa tese no julgamento do RE n°
80.004/SE, julgado em 1o.6.1977 24 . Na ocasião, os Ministros integrantes do
Tribunal discutiram amplamente o tema das relações entre o Direito Internacional
e o Direito Interno. O Relator, Ministro Xavier de Albuquerque, calcado na
jurisprudência anterior, votou no sentido do primado dos tratados e convenções
internacionais em relação à legislação infraconstitucional. A maioria, porém, após
voto-vista do Min. Cunha Peixoto, entendeu que ato normativo internacional – no
caso, a Convenção de Genebra, Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas
Promissórias – poderia ser modificado por lei nacional posterior, ficando
consignado que os conflitos entre duas disposições normativas, uma de direito
interno e outra de direito internacional, devem ser resolvidos pela mesma regra
geral destinada a solucionar antinomias normativas num mesmo grau hierárquico:
lex posterior derrogat legi priori.
Sob a égide da Constituição de 1988, em 22 de novembro de 1995, o
Plenário do STF voltou a discutir a matéria no HC n° 72.131/RJ, Red. p/ o acórdão
Ministro Moreira Alves, porém agora tendo como foco o problema específico da
prisão civil do devedor como depositário infiel na alienação fiduciária em garantia.
Na ocasião, reafirmou-se o entendimento de que os diplomas normativos de
24 STF, Pleno, RE n° 80.004/SE, Rel. p/ o acórdão Min . Cunha Peixoto, julgado em 1o.6.1977.
caráter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no patamar da
legislação ordinária e eventuais conflitos normativos resolvem-se pela regra lex
posterior derrogat legi priori. Preconizaram esse entendimento também os votos
vencidos dos Ministros Marco Aurélio, Francisco Rezek e Carlos Velloso. Deixou-
se assentado, não obstante, seguindo-se o entendimento esposado no voto do
Ministro Moreira Alves, que o art. 7º (7) do Pacto de San José da Costa Rica, por
ser norma geral, não revoga a legislação ordinária de caráter especial, como o
Decreto-Lei n° 911/69, que equipara o devedor-fiduc iante ao depositário infiel para
fins de prisão civil.
Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar na ADI
n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.199 7), o Tribunal voltou a afirmar
que entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras existe mera
relação de paridade normativa, entendendo-se as “leis internas” no sentido de
simples leis ordinárias e não de leis complementares.
De tal maneira, a tese da legalidade ordinária dos tratados
internacionais foi reafirmada em julgados posteriores 25 e manteve-se firme na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal até o ano de 2008, quando o Tribunal,
ao julgar os Recursos Extraordinários n° 349.703 e 466.343, constatou que, no
contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado
constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos,
essa jurisprudência havia se tornado completamente defasada.
Nesse julgamento histórico, o Supremo Tribunal Federal, levando em
consideração a tendência hodierna de inserção do Estado constitucional brasileiro
em contextos supranacionais, promoveu uma vigorosa renovação de sua
jurisprudência e passou a adotar a tese da supralegalidade dos tratados
internacionais de direitos humanos.
25 RE n° 206.482-3/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, jul gado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n° 81.319-4/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19.8.2005; HC n 77.053-1/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 23.6.1998, DJ 4.9.1998; HC n° 79.870-5/SP, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 16.5.2000, DJ 20.10.2000; RE n° 282.644-8/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. p/ o acórdão Min. Nelson Jobim, julgado em 13.2.2001, DJ 20.9.2002.
Não há dúvida de que, no Estado constitucional cooperativo, é mais
consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos
tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de
que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante
de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais,
também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não podem
afrontar a supremacia da Constituição, mas têm lugar especial reservado no
ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária significa subestimar o
seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa
humana.
Assim, diante do inequívoco caráter especial dos tratados
internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, entende-se que a
sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de
ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica
de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.
Nesse sentido, concluiu o Tribunal que, diante da supremacia da
Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da
prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de
adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa
Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante
desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a
matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de
1º de outubro de 1969.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos
internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja
conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com
o art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002 ), que reproduz disposição
idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.
Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há
base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou
seja, para a prisão civil do depositário infiel.
Com a decisão do Tribunal, o legislador constitucional não fica
impedido de submeter o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa
Rica, além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de
aprovação previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC n°
45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional.
Na experiência do direito comparado, é válido mencionar que essa
mesma qualificação dos tratados internacionais (supralegalidade) é
expressamente consagrada na Constituição da Alemanha que, em seu art. 25,
dispõe que “as normas gerais do Direito Internacional Público constituem parte
integrante do direito federal. Elas prevalecem sobre as leis e produzem
diretamente direitos e deveres para os habitantes do território nacional”. O mesmo
tratamento hierárquico-normativo é dado aos tratados e convenções internacionais
pela Constituição da França de 1958 (art. 55)26 e pela Constituição da Grécia de
1975 (art. 28)27. No caso argentino, a Constituição traz expressa a supremacia das
normas supranacionais na ordem jurídica interna (art. 75 inc. 24)28.
26 Art. 55 da Constituição da França de 1958: “Les traités ou accords régulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application par l'autre partie.” 27 Art. 28 da Constituição da Grécia de 1975: “The generally recognized rules of international law and the international conventions after their ratification by law and their having been put into effect in accordance with their respective terms, shall constitute an integral part of Greek law and override any law provision to the contrary.” 28 A Constituição da Argentina, no inciso 24 do Artigo 75, estabelece que "Corresponde ao Congresso: aprovar tratados de integração que deleguem competências e jurisdição a
A jurisprudência das Cortes vem reconhecendo essa superioridade
normativa da ordem jurídica internacional. O Prof. Malcolm Shaw anota os
seguintes ordenamentos que prevêem a prevalência dos tratados internacionais
sobre as leis internas: França (caso Café Jacques Fabre, Cour de Cassation, 16
Common Market Law Reviwe, 1975); Holanda (Nordstern Allgemeine
Versicherung AG v. Vereinigte Stinees Rheinreedereien 74, International Law
Review - ILR); Itália (Canadá v. Cargnello, Corte de Cassação Italiana, 114 ILR);
Chipre (Malachtou v. Armefti and Armefti, 88 ILR); e Rússia (art. 5º da Lei Federal
Russa sobre Tratados Internacionais, adotada em 16 de Junho de 1995)29.
Ressalte-se que no Reino Unido, desde 1972, assentou-se a
prevalência não só das normas comunitárias, como da própria Convenção
Européia sobre Direitos Humanos sobre o ordenamento interno ordinário,
confirmado pela House of Lords no famoso caso Factortame Ltd. V. Secretary of
State for Transport (93 ILR, p. 652).
Assim, também o Reino Unido vem dando mostras de uma verdadeira
revisão de conceitos. O Parlamento já não mais se mostra um soberano absoluto.
O “European Communities Act”, de 1972, atribuiu ao direito comunitário europeu
hierarquia superior em face de leis formais aprovadas pelo Parlamento30.
Nos Estados Unidos Mexicanos, apesar de a Constituição não trazer
norma expressa nesse sentido, a Suprema Corte de Justicia de la Nación vem
interpretando o art. 133 do texto constitucional no sentido de que os tratados
organizações supraestatais em condições de reciprocidade e igualdade, e que respeitem a ordem democrática e os direitos humanos. As normas ditadas em sua conseqüência têm hierarquia superior às leis." 29 SHAW, Malcolm N. International Law. 5ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. pp. 151-162. 30 TOMUSCHAT, Christian. Das Bundesverfassungsgericht im Kreise anderer nationaler Verfassungsgerichte, in Peter Badura e Horst Dreier (org.), Festschritft 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, 2001, Tübingen, Mohr-Siebeck, v. 1, p. 249.
internacionais se situam abaixo da Constituição, porém acima das leis federais e
locais31.
Ressalte-se, ainda, que em diversos países os tratados internacionais
são utilizados como parâmetro de controle de leis internas. Nesse sentido, o Prof.
Christian Tomuschat relata a experiência singular da Bélgica, Luxemburgo e
Holanda que admitiam o controle de leis ordinárias internas pelo disposto na
Convenção Européia de Direito Humanos antes de possibilitar o próprio controle
de constitucionalidade.
Interessante notar que, até hoje, a Finlândia não possui uma Corte
Constitucional, nem os juízes estão autorizados a realizar o controle de
constitucionalidade das leis, mas a Convenção Européia de Direitos Humanos
pode obstar a aplicação das leis internas32.
Na Grécia e na Áustria, a Convenção Européia de Direito Humanos
tem status constitucional, enquanto na Alemanha esse tratado possui, na prática,
31 “Localización: Novena Época, Pleno, Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, Tomo XXV, Abril de 2007, p. 6, tesis P. IX/2007, aislada, Constitucional. Rubro: TRATADOS INTERNACIONALES SON PARTE INTEGRANTE DE LA LEY SUPREMA DE LA UNIÓN Y UBICAN JERÁRQUICAMENTE POR ENCIMA DE LAS LEYES GENERALES, FEDERAES Y LOCALES. INTERPRETACIÓN DEL ARTÍCULO 133 CONSTITUCIONAL. La interpretación sistemática del artículo 133 de la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos permite identificar la existencia de un orden jurídico superior, de carácter nacional, integrado por la Constitución Federal, los tratados internacionales y las leyes generales. Asimismo, a partir de dicha interpretación, armonizada con los principios derecho internacional dispersos en el texto constitucional, así como con las normas y premisas fundamentales de esa rama del derecho, se concluye que los tratados internacionales se ubican jerárquicamente debajo de la Constitución Federal y por encima de las leyes generales, federales y locales, en la medida en que el Estado Mexicano al suscribirlos, de conformidad con lo dispuesto en la Convención de Viena Sobre el Derecho de los Tratados entres los Estados y Organizaciones Internacionales o entre Organizaciones Internacionales y, además, atendiendo al principio fundamental de derecho internacional consuetudinario ‘pacta sunt servanda’, contrae libremente obligaciones frente a la comunidad internacional que no pueden ser desconocidas invocando normas de derecho interno y cuyo incumplimiento supone, por lo demás, un responsabilidad de carácter internacional”. 32 TOMUSCHAT, Christian. “Das Bundesverfassungsgericht im Kreise anderer nationaler Verfassungsgerichte” in BADURA & DREIER. Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht. 1º vol. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001. p. 247-249.
prioridade em face do direito interno (faktischen Vorrang der EMRK vor deutschen
Recht)33.
Enfim, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão histórica,
com a qual o Brasil adere agora ao entendimento já adotado em diversos países
no sentido da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos
na ordem jurídica interna.
V. Mercosul: Direitos Humanos e Integração Regional
Se o Estado constitucional cooperativo está inserido em uma
comunidade universal de Estados constitucionais 34 , exigindo portanto que o
discurso constitucional toque na temática internacional, também é verdade que o
discurso internacionalista necessita basear-se no discurso constitucional. Isso é
bem demonstrado por duas tendências que se complementam: a
internacionalização do direito constitucional e a constitucionalização do direito
internacional.35
O fenômeno da internacionalização intensa nas relações multilaterais
acaba por ter um efeito irradiador sobre todo o sistema constitucional, nesse
sentido, articular as relações entre os tribunais constitucionais e o Mercosul é uma
conditio sine qua non para o discurso constitucional contemporâneo. 36
Qualquer processo de integração necessita da cooperação de
instituições internas, aí se incluindo os tribunais constitucionais. Quanto a isso, o
exemplo europeu mostra que a afirmação de um direito comunitário – inclusive o
33 STREINZ, Rudolf. Europarecht. 7ª ed. Heidelberg: Muller Verlag, 2005. Rn 73-75 p. 29-30. 34 Cfr nesse sentido: HÄBERLE, Peter. El estado constitucional, trad. Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autônoma de México, 2003, p. 75-77. 35 Sobre a complementaridade dessas duas tendências, ver GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e constituição brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 73-136. 36 MENDES, Gilmar Ferreira. A justiça constitucional nos contextos supranacionais. Direito Público. Brasília. Nº 8, 2005, p. 57.
direito comunitário relativo à proteção dos direitos fundamentais – depende
essencialmente da consagração da doutrina do efeito direito dos atos comunitários
na esfera interna dos Estados membros.37
Nesse sentido, a proteção dos direitos fundamentais no âmbito do
Mercosul pressupõe, invariavelmente, que as instituições deste sejam dotadas de
poder de decisão de modo a atuarem como garantidoras de direitos fundamentais
no bloco. Para se alcançar tal feito, tribunais constitucionais necessitam evoluir
para uma posição que fortaleça essas instituições por meio da consagração do
efeito direto.
Na Europa o surgimento da doutrina do efeito direto partiu inicialmente
da Corte Européia de Justiça, e demorou para ser digerida pelos tribunais
internos. Algo semelhante não aconteceu no Mercosul, até mesmo pela ausência
de um tribunal nos moldes da Corte Européia de Justiça. De tal forma, a
perspectiva que se abre ao Supremo Tribunal Federal e outros tribunais
constitucionais é provocar um processo de afirmação da doutrina do efeito direto,
o que significaria um ativismo judicial poucas vezes antes visto, em que tribunais
internos desenvolvem diretamente uma doutrina que contribuirá para o
fortalecimento de um processo integracionista.
No Mercosul a criação, com o Protocolo de Olivos, de 2002, de um
sistema renovado de solução de controvérsias trouxe esperanças quanto a um
desenvolvimento institucional mais intenso. Com o Protocolo de Olivos foi criado
um mecanismo de solução de controvérsias que, em primeira instância, possui
uma estrutura bastante semelhante a um mecanismo arbitral e, em segunda
instância, tem-se como órgão permanente o Tribunal Arbitral Permanente de
Revisão.
37 Para uma analise específica do aporte dos tribunais constitucionais para a integração regional: MENDES, Gilmar; GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Direitos humanos e integração regional: algumas considerações sobre o aporte dos tribunais constitucionais.
Esse caráter de permanência, previsto no Tribunal Arbitral Permanente
de Revisão, é uma conquista significativa rumo a uma maior institucionalização do
Mercosul, que pode contar com estrutura própria e membros (juízes) com período
certo para deixarem seus cargos.
Diferentemente da configuração anterior do mecanismo de solução de
controvérsias no Mercosul, o Protocolo de Olivos abre uma grande possibilidade
para que tribunais internos, especialmente os tribunais internos de maior
hierarquia dos membros do bloco, possam interagir diretamente com o Tribunal
Permanente de Revisão, possibilitando uma atuação direta no processo de
construção do Mercosul. Assim, o art. 3 do Protocolo prevê que o Conselho do
Mercado Comum poderá estabelecer regras para a solicitação de opiniões
consultivas ao Tribunal Permanente de Revisão. Em 2007, por meio da Decisão
02/2007, o Conselho do Mercado Comum regulamentou o citado dispositivo e
estabeleceu que os tribunais superiores de justiça dos Estados partes podem
solicitar opiniões consultivas. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal foi escolhido
como a corte apta para solicitar os pareceres.38
A possibilidade de solicitação de opiniões consultivas permite que o
direito do Mercosul tenha uma aplicação mais uniforme em cada Estado membro.
É certo que não se trata de uma figura como o reenvio prejudicial, existente no
direito comunitário, que permite que a Corte Européia de Justiça decida, de
maneira vinculante, sobre alguma questão que afete o direito comunitário e que
esteja em julgamento perante o tribunal interno. De qualquer sorte, trata-se de
uma evolução marcante tendo em vista a possibilidade de o Mercosul
desenvolver-se não apenas no âmbito das chancelarias dos Estados membros,
mas também no contexto de uma jurisdição internacional.
Em específico, para os direitos fundamentais, a possibilidade de
solicitação de opiniões consultivas poderá permitir que tribunais como o Supremo
38 Nesse sentido, ver Mercosul/CMC/Dec nº 02/07. Disponível em http://www.mercosur.int/msweb/ portal%20intermediario/Normas/normas_web/Decisiones/PT/2007/DEC%20002-2007_PT_Opini%F5es%20 Consultivas.pdf. Visitado em 09.11.2008.
Tribunal Federal demandem esclarecimentos mais sofisticados sobre a
interpretação de direitos fundamentais. Em isso acontecendo, e considerando a
possibilidade de o Tribunal Permanente de Revisão responder positivamente a
essa demanda, será possível visualizar o surgimento de uma doutrina própria da
proteção dos direitos fundamentais no Mercosul, assim como aconteceu na
Europa.
Para além da aplicação pelos tribunais dos Estados membros das
normas de direito fundamental previstas nos tratados internacionais celebrados
entre si e da preocupação com a uniformização da maneira como os diferentes
tribunais internos aplicam tais dispositivos frente à jurisprudência do Tribunal
Permanente de Revisão – nitidamente voltada à construção de uma jurisprudência
constitucional comum iberoamericana –, destaca-se ainda a própria possibilidade
da aplicação do direito comum pelo Tribunal Permanente de Revisão, enquanto
órgão supranacional, como fator de grande relevância para a formação de um
direito constitucional comum iberoamericano.
VI. Conclusão
O desenvolvimento de um direito constitucional comum
iberoamericano depende do trabalho desenvolvido pelas comunidades científicas
nacionais em todos os países do continente. Incluo aqui também a atuação dos
tribunais constitucionais, os quais são capazes de transformar textos meramente
declarativos ou mesmo utópicos em realidades concretas por meio da construção
de uma jurisprudência comum iberoamericana 39.
Assim, se tivermos em mente que o Estado constitucional
contemporâneo é também um Estado cooperativo – identificado pelo Professor
39 HÄBERLE, Peter. Mexico y los contornos de un derecho constitucional común americano: un ius commune amercianum. In: HABERLE, Peter; KOTZUR, Markus. De la soberanía al derecho constitucional común: palabras clave para un diálogo europeo-latinoamericano, Trad. Héctor Fix-Fierro. Mexico: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2003, pp. 82-83
Peter Häberle como aquele que não mais se apresenta como um Estado
Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência
para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual
ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais40 –, se levarmos isso
em consideração, podemos concluir que importantes passos têm sido dados na
proteção dos direitos humanos em nosso país e em nossa comunidade latino-
americana.
Cito aqui mais uma vez a recente decisão do Supremo Tribunal
brasileiro que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e
convenções de direitos humanos, os quais, diante de sua natureza particular,
teriam lugar especial no ordenamento jurídico, de forma que a sua internalização,
por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de
paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa
infraconstitucional com ela conflitante.
Tal posicionamento merece particular destaque por ser um exemplo
específico de concretização do atual fenômeno do Estado constitucional
cooperativo, o qual se encontra na base da construção de um direito constitucional
comum.
A eficácia interna de direitos fundamentais consagrados em diplomas
internacionais é um elemento essencial da constituição de um direito
constitucional comum e, de tal forma, a internalização no ordenamento brasileiro
dos tratados internacionais relativos a direitos fundamentais como normas
jurídicas dotadas de supralegalidade é um importante passo no sentido da
construção de um direito constitucional comum iberoamericano.
Nesse sentido, também deve ser destacada a inovação trazida pela
Emenda Constitucional nº 45, de 8.12.2004, constante do § 3º do art. 5º, da
Constituição, o qual cria a possibilidade de internalização de tratados e
40 HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Trad. de Hector Fix-Fierro. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. p. 75-77.
convenções internacionais sobre direitos humanos por meio de um procedimento
específico capaz de atribuir a tais direitos, mais do que “supralegaliade”, natureza
de norma constitucional.
Não podemos nos esquecer que o Brasil está inserido nesse contexto
iberoamericano, no qual estamos todos submetidos a uma ordem comunitária em
matéria de direitos humanos; uma ordem positiva expressada na Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), cuja
proteção jurídica segue avançando a passos largos pelo profícuo trabalho
realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma coisa é certa, devemos caminhar juntos na construção de um
direito constitucional iberoamericano, no qual a proteção dos direitos seja um
dever indeclinável de todos e cada um dos Estados.
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