a formaÇÃo de professores para o ensino da leitura e da escrita...
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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DA LEITURA E DA
ESCRITA: SABERES E PRÁTICAS
Este painel apresenta estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa Fórum de
Ensino da Escrita, que tem reunido professores da educação básica e do ensino superior,
e estudantes de graduação, na discussão dos saberes teórico-práticos do ensino da
escrita e da formação inicial de professores. O trabalho Um contexto para a valorização
dos saberes docentes na formação inicial de professores apresenta uma discussão que,
tendo como cenário a formação de professores no Brasil nos anos 1990 e 2000,
relaciona as políticas de governo e as proposições teóricas emanadas da academia, com
destaque para aquelas que valorizam os saberes e a atuação crítica dos professores. As
conclusões apontam limites do alcance da formação continuada de professores
empreendida nas duas últimas décadas e reforçam a necessidade de fortalecer os
investimentos na sua formação inicial. Aprender e ensinar: formação de professores e
saberes para o ensino da leitura e escrita discute as bases das concepções de
alfabetização dos estudantes da Pedagogia, a partir dos sentidos e significados que
revelam em seus relatos de experiências de alfabetização na infância. Dentre as
ponderações da pesquisa, destacam-se: a) experiências marcadas por uma alfabetização
mecanizada, pouco significativa e desconectada da realidade social; b) experiências de
alfabetização marcadas por uma concepção bancária; c) práticas que favoreceram a
criação e a relação com o uso da leitura e escrita na sociedade. A pesquisa A literatura
de jovens escritores na escola: leituras e escritas em diálogos propõe discussões sobre a
inserção de textos literários de jovens escritores nas aulas de literatura, sendo o trabalho
com os respectivos textos retomados, em diálogo, nas de produção textual. Parte-se do
pressuposto teórico de que através da prática da leitura e da escrita de textos literários se
desvelam as arbitrariedades dos discursos padronizados e a apropriação da linguagem.
Palavras-Chave: Ensino de Leitura E Escrita, Formação de Professores, Práticas de
Ensino.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
147ISSN 2177-336X
APRENDER E ENSINAR: FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SABERES
PARA O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA
Luciene Cerdas -UFRJ
Rejane Maria de Almeida Amorim - UFRJ
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir em que bases estão ancoradas as concepções de
alfabetização dos estudantes do curso de Pedagogia, a partir dos sentidos e significados
que revelam em seus relatos de experiências vivenciadas em seus processos de
alfabetização, considerando que serão os primeiros professores de leitura e da escrita na
escola. O estudo é parte de uma pesquisa que tem reunido professores da educação
básica e do ensino superior, assim como estudantes de graduação, com vistas à
discussão dos saberes teórico-práticos do ensino da escrita na educação básica e na
formação dos seus professores. O estudo apresentado aqui, de cunho qualitativo, foi
realizado com 94 estudantes da disciplina de Alfabetização e Letramento I, no ano
letivo de 2015. O instrumento de pesquisa utilizado foi a escrita de relatos de
experiência na alfabetização, a partir de suas lembranças de infância. A análise desses
relatos foi realizada através dos Núcleos de Significação (AGUIAR e OZELLA, 2006),
com forte inspiração na psicologia sócio-histórica, cujo precursor é Vygotski (1998). Os
referenciais teóricos que orientam as discussões sobre alfabetização partem dos estudos
de Freire (1982, 1997. 2001), Kramer (2000), Soares (1998), Smolka (2008), que
consideram, no ensino da leitura e da escrita, a necessidade de que a aprendizagem do
Sistema de Escrita Alfabética (SEA) se dê no contexto de práticas sociais de seu uso, e
possibilite o acesso efetivo ao mundo da escrita. Em relação às discussões sobre saberes
docentes, Tardif, Lessard, Lahaye, (1991 a-b) e Gauthier et al (1998) orientam nosso
estudo. Dentre as ponderações da pesquisa, destacam-se: a) experiências marcadas por
uma alfabetização mecanizada, pouco significativa e desconectada da realidade social;
b) experiência em classes de alfabetização marcadas pela concepção bancária de
educação; c) práticas que favoreceram a criação e a relação com o uso da leitura e
escrita na sociedade.
Palavras-chave: Saberes Docentes. Alfabetização. Ensino da leitura e escrita
Introdução
Entre os estudos que tratam da docência - saberes docentes e formação de
professores - há uma perspectiva bastante aceita de que esses profissionais mobilizam
no exercício de sua função conhecimentos de diferentes naturezas, que se constroem ao
longo de suas trajetórias pessoais, de formação e de trabalho, de suas histórias de vida e
de suas experiências de escolarização anteriores à preparação para a docência. Como
ofício feito de saberes (GAUTHIER et al, 1998), as experiências pessoais prévias à
formação profissional vão influenciar a visão que os futuros professores têm sobre o que
é "ser professor", e se impõem à construção de sua identidade docente.
XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira
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Partindo desses pressupostos, o objetivo deste artigo é discutir em que bases
estão ancoradas as concepções de alfabetização dos estudantes do curso de Licenciatura
em Pedagogia, a partir dos sentidos e significados que revelam em seus relatos de
experiências vivenciadas em seus processos de alfabetização. Como docentes do curso,
questionamos o que as memórias dos licenciandos sobre suas vivências escolares
revelam acerca de suas concepções de alfabetização, do ensino da leitura e da escrita, e
do “ser alfabetizador”.
Propusemos, assim, aos alunos matriculados na disciplina de Alfabetização e
Letramento I, no ano de 2015, que escrevessem sobre as suas vivências de
alfabetização, a partir de suas lembranças de infância, com destaque para o ambiente da
sala de aula, suas reminiscências sobre a relação com o(a) professor(a) alfabetizador(a),
e as práticas de ensino (materiais didáticos e atividades propostas pelo professor(a)). A
pesquisa é de cunho qualitativo e utiliza como metodologia de análise os Núcleos de
Significação, de Aguiar e Ozella (2006). Foi realizada com 94 estudantes discutindo-se
quais os sentidos e significados que suas memórias revelam em seus relatos sobre o que
é e sobre o como alfabetizar? Quais saberes construíram sobre o que é ser um professor
alfabetizador?
Os referenciais teóricos que orientam as discussões sobre alfabetização, aqui
propostas, partem dos estudos de Freire (1982, 1997, 2001) Kramer (2000), Soares
(1998), Smolka (2008), que consideram, no ensino da leitura e da escrita, a necessidade
de que a aprendizagem do Sistema de Escrita Alfabética (SEA) se dê no contexto de
práticas sociais de seu uso, e possibilite o acesso efetivo ao mundo da escrita. Em
relação às discussões sobre saberes docentes, Tardif, Lessard, Lahaye, (1991) e
Gauthier et al (1998) orientam nosso estudo.
1. O que revelam os estudantes sobre suas memórias da alfabetização: sentidos e
significados
Tardif (2000, 2002), destaca que os saberes docentes caracterizam-se por sua
temporalidade, uma vez que são adquiridos no contexto de uma história de vida e de
uma carreira profissional. Ressalta ainda a origem infantil da escolha da profissão,
marcada pela influência de antigos professores, constituindo-se como saberes pré-
profissionais. As nossas experiências como alunos imprimem em nós as marcas do que
é ser professor. É a única profissão com a qual convivemos muito tempo antes de
exercê-la. Essa é uma característica da própria profissão docência, pois como aponta
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Tardif (2000), somos imersos na docência desde muito cedo, criando uma bagagem de
conhecimentos, de crenças e certezas sobre a prática docente, que se constitui como
“legado da socialização escolar” que se mantém estável ao longo do tempo. “[…] uma
boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e
sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, principalmente de sua
socialização enquanto alunos.” (TARDIF, 2000, p.216-217).
No início da docência, os professores recorrem entre outras fontes aos modelos
de professor com os quais tiveram contato ao longo de sua vida. A preferência por
certos procedimentos didáticos em detrimento de outros, as decisões sobre conteúdo, os
modos de interação e o relacionamento com os alunos, carregam as marcas dessas
experiências que, por vezes, têm servido como justificativa para práticas pedagógicas
atuais.
A análise dos relatos deixa entrever nas vivências desses alunos o papel
marcante da família e responsáveis no processo de alfabetização; as lembranças do
professor, características pessoais e do relacionamento estabelecido; os recursos e
materiais didáticos utilizados, entre eles a cartilha e as folhas xerocadas; a ausência de
práticas de leitura na sala de aula seja pelo professor ou pelos alunos, e de materiais de
leitura na escola; as práticas de ensino da leitura e escrita como atividades repetitivas e
pouco significativas para os alunos; valorização pelos estudantes de práticas que
favoreceram a criação e a relação com o uso da leitura e escrita na sociedade.
Conhecer as ideias a priori de nossos alunos sobre alfabetização é um caminho
de avaliação da disciplina, e de suas contribuições na problematização e reconstrução
desses saberes iniciais sobre alfabetização.
É importante demarcar que a produção dos relatos sobre a alfabetização escritos
pelos estudantes aconteceu em sala na primeira aula da disciplina de Alfabetização e
Letramento I. Em geral são textos de no máximo duas páginas e se constituem como
espaço de reflexão sobre suas experiências e sobre as marcas deixadas pelo processo. O
relato não possui uma orientação metodológica, os estudantes são convidados a relatar
suas memórias, boas ou más, da maneira que desejarem.
A partir desse material escrito, que guarda muito do que já havia sido apreendido
durante o diálogo em sala e discussões preliminares sobre o que esperavam da
disciplina, investimos esforços na tentativa de desvelar os sentidos e significados que os
estudantes atribuem ao seu processo de aquisição da leitura e da escrita, bem como em
que bases estão ancoradas suas concepções de alfabetização.
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A análise das informações seguiu o caminho metodológico dos Núcleos de
Significação, inspirados em Aguiar e Ozella (2006), que busca revelar o modo de
pensar, agir e sentir dos estudantes envolvidos no estudo, partindo de um movimento
dialético advindo de seus relatos das memórias sobre o processo de alfabetização que
experimentaram.
Cabe ressaltar que os signos que utilizamos para nos comunicar são produzidos
historicamente e referem-se a algo que está fora deles. Na medida em que o homem vai
simbolizando e construindo uma realidade humanizada no mundo material, esses signos
vão ganhando novos sentidos.
Para Vygotski (1998), as palavras desempenham um papel central não só no
desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência
como um todo. Toda linguagem humana é significada, uma mesma palavra dita em
diferentes contextos pressupõe muitas interpretações, e estas podem estar carregadas de
muitas lembranças e emoções vividas pelo sujeito. Vygotski afirma que, “uma palavra é
um microcosmo da consciência humana” (1998, p. 132) e, portanto, nessa pesquisa é
pela palavra escrita que os estudantes revelam seus sentidos e significados sobre a
alfabetização.
Sentido e significado, embora diferentes, correspondem a duas categorias que
formam um par dialético, e não podem ser compreendidas separadas.
A compreensão da categoria sentido, utilizada neste estudo, tem como referência
a definição dada por Vygotski (1998, p. 181), ou seja, o sentido é visto como “a soma
dos eventos psicológicos que a palavra evoca na consciência”. Conforme
complementam Aguiar e Ozella (2006, p. 105) “[…] o sentido se constitui a partir do
confronto entre as significações sociais constituídas na relação dialética entre sentidos e
significados vigentes e a vivência pessoal”.
Na tentativa de compreender os sentidos podemos afirmar que o homem, imerso
na sociedade, medeia suas relações através de múltiplas significações, vistas aqui como
a articulação dos sentidos e significados.
Após leituras flutuantes, recorrentes e sistemáticas foi possível elencar vários
indicadores de falas que se complementavam ou eram contraditórias. Dentre mais de 20
indicadores foi possível desdobrá-los em quatro núcleos de significação, que
correspondem à maneira que o processo de alfabetização vem sendo significado até o
presente momento, marcado pelo início da disciplina Alfabetização e Letramento I.
Estes núcleos se significação apresentados a seguir, foram nominados com falas
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significativas de estudantes, orientação do próprio método de análise que pretende desde
sua nomenclatura ser fiel à fala dos sujeitos. Identificados os sujeitos com E de
estudantes e a numeração organizada na ordem em que foram entregando seus relatos.
Os núcleos de significação que emergiram são os seguintes: 1) Lembro pouco, mas sei
que ficava muitas horas copiando o cabeçalho e era cansativo (E7); 2) Já cheguei nesta
série sabendo parcialmente a ler e escrever porque minha mãe me alfabetizava em casa
(E6); 3) Acredito que fui alfabetizada de forma correta, porque foi incentivado a minha
liberdade de pensamento e criação (E12); 4) Eu a (professora) adorava, pois ela não
sentava, ficava no meio dos alunos para ver como estavam indo (E25).
Adiante analisaremos cada uma desses quatro núcleos separadamente,
lembrando que dentro de cada um também iremos trazer elementos contraditórios que
revelam, dentro dessa temática, sentidos e significados divergentes.
2. Análise dos Núcleos de Significação
2.1 Lembro pouco, mas sei que ficava muitas horas copiando o cabeçalho e era
cansativo (E7)
Nesse núcleo de significação é interessante observar que os relatos dos alunos
não trazem, de um modo geral, muitos detalhes sobre as práticas de alfabetização ou
recursos didáticos utilizados, no entanto, permitem apontar a presença de procedimentos
considerados tradicionais, sem significado para esses alunos, em uma perspectiva de
educação bancária (FREIRE, 1982), tais como cópias de textos e palavras, ditado,
recorte de palavras e letras de jornais e revistas; com menor incidência aparece a
cartilha, o que pode ser explicado pela idade dos alunos, visto que a maioria foi
alfabetizada após os anos de 1980 quando há fortes críticas a esses materiais; e uso de
folhas xerocadas com atividades para completar também aparecem entre os relatos dos
alunos, como se pode notar abaixo. Poucos são os depoimentos que relatam a presença
de textos no processo de alfabetização.
[...] lembro que ela passava muitos ditados e atividades com as sílabas em
pontinhos para passar por cima com lápis. (E20). [...] a professora fazia trabalhos com recortes de jornais. Eram feitos através
de desenhos, assim, pedia que cortasse palavras com iniciais dos mesmos
[...]. (E21). .[...] quando iniciou o processo de alfabetização comigo e com a turma foi
uma repetição de vogais e do alfabeto e após isso começou a trabalhar com as
famílias de cada letra [...]. (E22).
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Como foi dito anteriormente, a cartilha apareceu em alguns poucos relatos, nos
quais se identifica o uso desse material para ensinar a ler, mesmo que associado a
outros, como no relato a seguir:
Tínhamos uma cartilha que ela nos ensinava a ler, formar e separar as sílabas,
dava também exercícios em folha impressa, além claro de livrinhos que tinha
em sala de aula. (E23). Uma frase marcou todo esse ano letivo ‘A macaca bota o coco na mata’ [...].
A cartilha utilizada chamava-se O Sonho de Talita. (E24).
Constatamos ainda que as atividades de leitura, fundamentais no processo de
alfabetização, parecem ficar a cargo muito mais da família do que da escola. Os
depoimentos sobre a presença dos materiais de leitura, rodas de histórias, idas a
bibliotecas, ou momentos de leitura na sala de aula - pelo professor ou pelos alunos -
mostraram-se escassos.
É neste sentido, que Soares (2004, p.75) alega que “[…] na escola, trabalhando
desta forma a escrita não faz sentido para a criança, pois a mesma só escreve o que a
escola deseja e propõe, sendo a alfabetização algo alheio à realidade social e cultural a
que pertence o sujeito”.
Essa situação, vivenciada no início da escolarização impacta a relação que os
alunos têm com a leitura e escrita como práticas sociais e no hábito e gosto pela leitura?
Certamente. Os depoimentos abaixo vem reforçar a importância de se discutir com os
licenciandos a influência significativa da escola e do professor na constituição do sujeito
leitor. Afinal, como incentivar o gosto pela leitura e não se é um leitor.
Tenho uma questão que contraria meu seguimento acadêmico e profissional e
até hoje não sei se minha alfabetização tradicional influenciou nisso, é o fato
de não gostar de ler, não sinto prazer em leitura e me canso e desconcentro
com facilidade. (E2). Aprendi a copiar muito na escola. Aprendi? Creio que sim! MAs precisa ser
assim? (E4). Quando penso nessa época não me vem à cabeça nenhuma experiência de
autonomia, tudo era dirigido. (E6). Fiquei triste ao recordar que a escola não teve grande representação com
contação de histórias e eu não me lembro da professora contando se quer
uma. Agora a minha mãe lembro dela contando muitas, incentivando a
leitura. (E11).
Os sentidos e significados construídos por nossos alunos ao longo de suas
vivências escolares, explicitados em seus relatos escritos, mas também nas conversas
realizadas em sala de aula, dão conta de um modelo de alfabetização em que não são
protagonistas de suas aprendizagens na leitura e produção de textos. Esta última
inclusive não aparece em nenhum dos relatos analisados, o que evidencia a ideia
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recorrente de que é preciso primeiro aprender ler e escrever para que então se possa
efetivamente participar de atividades de leitura e escrita de textos. A escola parece agir
com modelos, que implicam uma homogeneidade, Smolka (1991, p.112) afirma: “[…]
não convém que elas digam o que pensam que elas escrevam o que dizem que elas
escrevam como dizem, (porque o “como dizem” revela as diferenças)”.
2.2 Já cheguei nesta série sabendo parcialmente a ler e escrever porque minha mãe
me alfabetizava em casa (E6)
Entre as narrativas feitas pelos estudantes é marcante a presença da família na
alfabetização, o que lhes possibilitou um caminho de sucesso nos anos iniciais no
aprendizado da leitura e escrita. Destaca-se principalmente a vivência em casa de
práticas de uso dessas habilidades nas atividades cotidianas realizadas pelos pais, a
existência de materiais de leitura em casa, nas brincadeiras com irmãos, na realização
das tarefas de casa, nos momentos de descontração e lazer. Os depoimentos abaixo são
emblemáticos ao deixar entrever o significado da importância da família na
alfabetização, sobretudo como incentivadora na descoberta das letras e da leitura.
[…] a presença da minha família e especificamente da minha mãe foi muito
importante. Já cheguei nesta série sabendo parcialmente a ler e escrever
porque minha mãe me alfabetizava em casa, me colocando para ler pequenas
palavras, frases, me ensinando o abecedário e a formar palavras. Minha mãe
me auxiliava nos deveres e nos exercícios que fazia extra escola. (E6). Embora tivessem muito pouca escolaridade, estavam sempre lendo alguma
coisa, principalmente da igreja católica que frequentávamos, participavam de
atividades e movimentos de lá, como o círculo bíblico, que era uma reunião
semanal (que eu me lembre) onde líamos um trecho da bíblia e depois
discutíamos sobre o que cada um havia entendido. (E2). […] em casa, meus pais sempre foram leitores assíduos, bem como
escritores, tanto de notas, listas de compras, agenda telefônica, quanto de
textos mais complexos e até mesmo livros. (E4). Desde as minhas memórias mais antigas da primeira infância, eu estive
cercado de livros infantis. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó, que
eram ávidas leitoras, e por isso sempre me contaram histórias, e estimularam
o meu contato com livros, com os quais eu conseguia me divertir mesmo sem
compreender as letras. (E9).
Reconhecer a importância do papel da família na alfabetização não deve servir
de justificativa para discursos sobre o fracasso escolar, muito presentes no contexto
social e educacional, que o relacionam à falta de apoio dos pais. Pelo contrário, nossa
perspectiva é de que, ao reconhecer a importância da presença da família na
alfabetização, a escola realize ações no sentido de envolver os responsáveis pelas
crianças nesse processo. Como professores do curso de Pedagogia, a evidência dos
sentidos e significados da família na alfabetização entre os futuros professores se impõe
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como tema de discussões em sala de aula, e de problematizações. Sabemos dos
problemas enfrentados por muitas das famílias em acompanhar seus filhos, seja por
ausência de formação escolar seja pela falta de tempo, por conta das atividades de
trabalho, como revelam os depoimentos de alguns estudantes:
Minha mãe não tinha tempo para me ensinar, ela trabalhava muito e passava
o dia todo fora. Minha avó tomava conta de mim, ela era uma senhora de
idade e analfabeta. Mas minha mãe sempre me incentivou a estudar, sempre
que podia, ela ia me buscar na escola ou me ajudava com o dever de casa.
(E16). […] era uma criança com pais semianalfabetos e, portanto, só tinha a
professora como indivíduo mediador […] Meus pais me ajudaram um pouco,
reconhecia poucas palavras e eles também? (E19).
Lahire (1997), pesquisando o sucesso escolar nas camadas populares na França,
alerta que “a escola retém apenas um traço da vida familiar do aluno e quem nem
sempre é verdadeiro”. Mesmo que a família seja analfabeta, será que não pode
contribuir incentivando, melhorando as condições dessa nova geração? O fato é que
esse aluno chegou à Universidade pública e avançou muito mais que seus pais.
Charlot (2005) comenta que em nenhum estudo se fala do papel do irmão, do
tio, do vizinho, o autor destaca que essas pessoas contribuem não só com as tarefas, mas
para potencializar o sentido da escola na vida de quem está a sua volta.
Qual o papel da escola ao reconhecer essas dificuldades? Como pode trabalhar
no sentido de potencializar a participação da família? São questões que se impõem a
todos e ganham especial significado na formação inicial de professores, no sentido
político da constituição de seus saberes.
2.3 Acredito que fui alfabetizada de forma correta, porque foi incentivado a minha
liberdade de pensamento e criação (E12)
Nesse núcleo de significação incorporamos indicadores que se referem às boas
experiências notadamente marcadas por uma autonomia dada aos alunos - infelizmente,
poucos relatos - e também indicadores que apontam para a tomada de consciência do
quanto seu processo foi marcado por práticas, nas quais não há espaço para a
participação do aluno no planejamento, e por atitudes autoritárias em que os
conhecimentos são impostos pelo professor numa perspectiva de educação bancária
(FREIRE, 1982), sem espaço para efetiva criação e expressão.
Quando refletimos e escrevemos sobre nossas experiências, ressignificamos as
ações passadas. Para esses estudantes foi um primeiro relato sistemático sobre a
alfabetização, um primeiro olhar no passado que possibilitou atribuir sentidos e
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significados ao seu processo de alfabetização, que pode ir se alterando na medida em
que esses sujeitos vão ampliando seus conhecimentos sobre o tema, e mais ainda
quando mais tarde forem professores. Nossos sentidos e significados devem ser
interpretados no movimento constante do que a “palavra evoca na consciência humana”
(VYGOTSKI, 1998, p.264), que está o tempo todo sendo ressignificado por novas
experiências e análise.
Nesse primeiro dia de aula da disciplina descortinou lembranças agora
analisadas, e E33 relatou:
Verifiquei o quão rígido foi meu processo de alfabetização. Não havia
participação do aluno na construção da aula, pelo contrário, estava tudo
previamente planejado e os alunos não podiam contribuir. (E33).
Por esse relato podemos compreender a trama que compõe a análise dos sentidos
e significados que atribuem hoje ao processo. É fácil compreender que na época em que
foi exposta a essa realidade castradora, essa relação não poderia se dar. A estudante
tinha seis anos e pela primeira vez pisava na escola, só hoje, estudando para ser
professora ela pode refletir e ressignificar os fatos, ponderando que talvez seja possível
uma alfabetização mais partilhada e autônoma. A concepção discursiva (SMOLKA,
2008), em cujo bojo estão perguntas quanto à função social da escrita, à elaboração
cognitiva no sentido de construção conceitual, à dialogicidade, isto é, aprender a ler e a
escrever lendo e escrevendo, tendo em vista o ‘como?’, o ‘por quê?’ e o ‘para quê?’
ficaram longe de seu processo, mas são retomadas em sua análise da experiência vivida.
Nesse sentido consideramos significativos também o depoimento abaixo:
Por isso detesto esse modo de alfabetizar usando a família de qualquer letra,
além de ser chato me causou muito choro às escondidas, afinal, sempre
achava que a culpa por não saber juntar as sílabas [...] era sempre minha.
(E54). Além disso, a professora [...] fazia prova de leitura. Quê fardo: eu lia devagar,
muito devagar e, quando ficava ansiosa pela próxima palavra, acabava por
pressupô-la ao invés de lê-la e, por isso, falava uma palavra que não estava no
texto e só percebia depois. [...] Eu me sentia verdadeiramente constrangida.
(E3). Acredito que fui alfabetizada corretamente, não porque utilizei a ). Em
toda a minha vida, a ênfase era na alfabetização por silabação. Funcionou
comigo, cartilha certa, mas porque foi incentivado a minha liberdade
de pensamento e criação. (E12).
O movimento de olhar o que passou e encontrar um sentido e significado
apontou para um bom exemplo de professor alfabetizador, que partilha, dá liberdade,
incentiva a criação.
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Nessa tentativa de elencar o que deu certo, E 11, E 21 demarcam atitudes e
práticas que marcaram positivamente sua alfabetização:
O desejo da leitura crescia e recebíamos várias tarefas diferentes (...).
Tínhamos um pouco de autonomia, mas também realizávamos as tarefas que
a professora passava. (E11) Certa vez, fizemos um trabalho em grupo que juntávamos [sic] variadas
histórias, cada integrante falava daquilo que tinha lido e no final tínhamos
que inventar um personagem com um pouquinho de cada coisa que tivemos
contato com a leitura. (E21).
Esses estudantes partilham uma importante imagem desse professor, que sabe
dosar a autonomia, que prepara a aula e dá liberdade de escolhas.
2.4 Eu a adorava, pois ela não sentava, ficava no meio dos alunos para ver como
estavam indo (E25)
Partindo de teorizações de que o ensino é um ofício universal, portador de uma
longa história e com origem que remonta à Grécia antiga, Gauthier et al (1998)
sustentam que este ofício ainda mantém em nossos dias, um papel fundamental para as
sociedades humanas. Entretanto, apesar desta longevidade do ofício de ensinar, “mal
conseguimos identificar os atos do professor que, na sala de aula, têm influência
concreta sobre a aprendizagem dos alunos, e estamos apenas começando a compreender
como se dá a interação entre educador e educandos” (GAUTHIER et al, 1998, p. 17).
Gauthier et al (1998, p. 20) usam a sentença “conhece-te a ti mesmo”, do oráculo
de Delfos, para dizer que ainda se sabe muito pouco a respeito dos fenômenos que são
inerentes ao ensino. Boas pistas podem nos dar esses relatos sobre a alfabetização, por
meio dos quais os estudantes - na construção da sua identidade docente - refletem sobre
seu processo, as relações com seus professores, lançando luzes sobre o que valeu a pena
e o que precisa ser revisto.
Entre os aspectos presentes nos relatos dos alunos, entendemos importante
evidenciar a visão de professor alfabetizador que foi significada em suas experiências.
Assim, nos questionamos ao olhar para seus relatos: as lembranças de infância
permitem identificar características e elementos que, para além do método, se
constituem como significativos da atuação docente? Os excertos abaixo apontam para a
construção de uma ideia de alfabetizador como afetuoso, carinhoso, paciente, entre
outras características pessoais, de personalidade, que se referem à figura “maternal”.
Afeto e rigor como características valorizadas pelos alunos em suas lembranças:
Lembro que era bastante carinhosa, além de sempre colocar elogios carinhosos
nos trabalhos feitos. (E26).
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[…] as professoras eram extremamente carinhosas; pessoas que até hoje eu
possuo o contato e que lembram de mim. (E14). [...] ao mesmo tempo em que era doce, ela era exigente [...]ela não sentava,
ficava no meio dos alunos para ver como estavam indo [...] isso fazia com que
nossa atenção ficasse toda voltada para ela. (E25). [...] ela pegava na minha mão para eu poder contornar as letrinhas [...]. (E31).
Em alguns casos o professor é lembrado, não só por suas características
pessoais, mas por indícios de sua competência pedagógica associada ao sucesso escolar,
em geral relacionada às práticas leitura, o que reforça a importância do professor na
mediação do processo de alfabetização, como incentivador do gosto pela leitura.
No processo de alfabetização não tive muitas dificuldades, acredito que pelo
fato da professora [...] nos incentivar a leitura, ela sempre lia um livro nas
aulas, cada dia um livro diferente (E27) [...] a professora para me incentivar minha leitura (sic) me chamava para ler
na mesa junto a ela. (E28) Com essa professora [...] aprendi a ter gosto por ler livros, entender e entrar
dentro [sic] da história. Ela deixava a gente escolher os livros, isso era bem
legal! (E29)
Embora não possamos mensurar o quanto tais características impactam as
aprendizagens das crianças, os próprios depoimentos acima permitam entrever essa
relação positiva, podemos verificar que significaram experiências importantes do ser
professor e do sentido da docência. Aprender a ler e escrever não pode se reduzir a um
exercício técnico, ensinar, segundo Freire (1997), também não pode ser um inocente
processo de transferência de conhecimento do professor para o aluno. “Pelo contrário,
enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo de alfabetização tem, no
alfabetizando, o seu sujeito” (FREIRE, 2001, p.19). O processo de alfabetização
compreende a leitura do mundo e a leitura da palavra, abrindo possibilidade para a
reflexão, a libertação e a criação.
Considerações Finais
Conforme aponta Kramer (2000, p. 116), “[…] a escrita traz a possibilidade de
pensar o que se fez e viveu, ampliando o raio de ação e reflexão”, portanto, o relato de
uma experiência educacional que teve o peso de ser a porta da entrada na escola para
maioria, contribui sobremaneira para que o futuro professor construa sua formação a
partir do vivido e vá relacionando sua trajetória educacional com as teorizações e
práticas as quais está exposto na universidade.
Para nós, como docentes do curso de Pedagogia, ampliam-se nossos
conhecimentos sobre quem são esses alunos, as concepções, sentidos e significados que
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construíram em suas vivências e que os constituem como sujeitos aprendentes,
indicando caminhos e possibilidades de uma conexão significativa entre a nossa prática
e as expectativas quanto à formação dos estudantes. Entre esses caminhos estão a
proposição de momentos de discussão desses depoimentos em sala, em contraponto às
expectativas atuais de alfabetização, bem como o planejamento de oficinas e de
atividades elaboradas com a participação dos alunos que apontem novos caminhos de
atuação docente. Professores e estudantes elaboram assim suas aprendizagens como
protagonistas na construção de seus saberes.
Pesquisar sentidos e significados tentando entender as bases em que se constitui
a referencia de alfabetização para estudantes do curso de Pedagogia, requer
sensibilidade para escuta da história dos sujeitos. Conforme observa Vygotski (1998,
p.41), “[…] ao transformar-se em linguagem o pensamento se reestrutura e se
modifica”. Portanto, os sentidos e significados aqui analisados não podem ser
compreendidos como estáticos ou imutáveis, ao contrário disso, estão em constante
desenvolvimento.
Referências Bibliográficas
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Metodológica. Psicologia – Ciência e Profissão, número 26, 2006.
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159ISSN 2177-336X
A LITERATURA DE JOVENS ESCRITORES NA ESCOLA:
LEITURAS E ESCRITAS EM DIÁLOGO
Isa Ferreira Martins (SEEDUC/RJ)
As discussões sobre a literatura na escola têm avançado (COLOMER, 2007).
Entretanto, ainda predominam aulas tradicionais. Nesse debate, estão envolvidas questões
curriculares e políticas, como exames e avaliações externas.
No setor particular, são perseguidos os primeiros lugares no ranking para o
marketing da escola. Na rede pública, a elevação das notas resulta em mais verbas para
Secretarias de Educação e esporádicos bônus salariais para professores de uma rede que
caminha para a meritocracia. Assim, impera a aula tradicional como um caminho seguro
para o “bom” desempenho dos alunos nas avaliações dentro e, principalmente, fora da
escola.
Como agregar a exigência institucional a um trabalho que traga para a aula novas
experiências e diálogos?
Na tentativa de contribuir para tal, partimos do pressuposto de Cosson (2012) de
que através da prática tanto da leitura quanto da escrita de textos literários se tem um
desvelar das arbitrariedades dos discursos mais que padronizados e uma apropriação da
linguagem.
Nesse sentido, propomos discussões sobre a inserção de textos literários de jovens
escritores nas aulas de literatura, sendo o trabalho com os respectivos textos retomados,
em diálogo, nas de produção textual. Para tal, são alguns discursos sobre o ato de escrever
nosso ponto de partida, uma vez que
a palavra é expressiva, mas essa expressão, reiteramos, não pertence à própria
palavra: ela nasce no ponto de contato da palavra com a realidade concreta e
nas condições de uma situação real, contato esse que é realizado pelo
enunciado individual. Nesse caso, a palavra atua como expressão de certa
posição valorativa do homem individual (de alguém dotado de autoridade, do
escritor, cientista, pai, mãe, amigo, mestre, etc.) como abreviatura do
enunciado. (BAKHTIN, 2011, p.294).
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Essa percepção da escrita como “contato da palavra com a realidade concreta” não
é facilmente percebida ou trabalhada durante o processo de ensino da escrita. Assim,
diversas barreiras não só linguísticas, mas também sociais, que permeiam o ato de
escrever (ou produzir algo), ganham, muitas vezes, um único argumento ou explicação:
“não tenho ‘inspiração’”, que por vezes ouvimos traduzido também como “não sou capaz
de escrever um texto bom”. Diante dessa questão, recorrerei às ideias bakhtinianas para
refletir sobre uma das frases mais presentes no momento das atividades de produção
textual, independente do grau de maturidade ou classe social dos escritores. Aproveito a
seguir para usá-la (a frase) duplamente: citá-la e apresentá-la como subtítulo das reflexões
a seguir.
“Estou sem ‘inspiração’ para escrever.”
A frase citada reflete um pouco do imaginário que envolve o processo de produção
artística e também perpassa o da escrita, mesmo aquela que tem uma função escolar, vista
pelo aluno/escritor como algo “só para o professor ler”. Assim, foquemos agora nela: a
“inspiração”.
Quantos de nós, ao nos depararmos com o desafio de produzir um texto, já não
nos pegamos pensando que para tal pessoa ou reconhecido escritor foi ou é mais fácil
escrever? Afinal, “este parece ter mais ou muita inspiração”.
Para essa cena, trago a própria definição de Bakhtin (2011) de “inspiração”
poética, presente em Arte e responsabilidade. Esse norte teórico nos ajudará a
compreender o ato de escrever e suas tão desejadas “inspirações”, muitas vezes vista
como se fossem um tipo de dádiva divina, que faz daqueles que através da escrita nos
encantam ou “transformam”, de alguma forma, seres especiais, dotados de um “dom”,
alguém com um intelecto e sensibilidade mais aguçados, mais inteligentes?, que a maioria
dos mortais.
A ideia de “inspiração” está ainda tão presente em nosso imaginário que “Estou
sem inspiração.” passa a ser uma justificativa em diversas situações em que um autor
tenta explicar o fato de não estar conseguindo iniciar, dar andamento ou finalizar
satisfatoriamente sua produção, embora tal argumento apareça mais constantemente no
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início. Porém, aqui, não me atenho àquele “silêncio” perturbador dos momentos iniciais
da escrita, sobre o qual Orlandi (2011) e Barreto (2002) nos ajudam a compreender, já
que “falar em linguagem implica falar do silêncio”, pois ele está presente na “[...]
dificuldade de se começar um texto: enfrentar o universo dos sentidos [...]” (BARRETO,
2002, p.27).
“Curioso” ainda é que a ideia da “falta de inspiração” não se aplica somente a
situações de produção artística. Em momentos de escritas acadêmicas ou puramente
cotidianas, como uma carta de solicitação, de reclamação ou uma mensagem de parabéns
para um amigo especial, o “invocar” a inspiração é por vezes parte do processo. Vejamos
o que Bakhtin nos deixou de definição sobre “inspiração”, essa direcionada tanto ao poeta
quanto ao homem da vida:
O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da
vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta
de seriedade de suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. O
indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os momentos devem
não só estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar
uns nos outros na unidade da culpa e da responsabilidade.
E nada de citar a ‘inspiração’ para justificar a irresponsabilidade. A inspiração
que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração, mas
obsessão. [...] Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo
singular em mim. Na minha unidade da minha responsabilidade (BAKHTIN,
2011, p.XXXIV). (Grifos meus)
Falando tanto sobre a responsabilidade do artista quanto a do homem nos seus
processos de “produção” da vida comum, “real”, Bakhtin nos ajuda a desmistificar a
figura do artista e sua “inspiração” ao relacionar vida e arte como diferentes, mas
entrelaçadas pela responsabilidade sobre aquilo que se produz.
Dessa forma, podemos perceber melhor também o escritor engajado, ou o em
processo de formação, como alguém que tem na vida sua “inspiração” e não em um
“poder quase sobrenatural” que é possuído somente por alguns.
“Inspiração” essa, presente no imaginário social, que “por ser um pouco divina”
respalda, de certa forma, o pensamento de que não consigo escrever porque não sou
dotado de “inspiração”. E, dessa forma, muito se acalenta a frustração ou se justifica a
dificuldade que engloba todos os “diálogos”, “discursos” e “práticas sociais” que também
estão no processo da escrita.
Essa questão da “inspiração”, pautada na concepção de Bakhtin, nos ajuda, mesmo
que embrionariamente, a entender o que venha ser “texto dos alunos”, pois, já tendo
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tentado desmistificar a relação “escrita e dom”, é possível avançar para a tentativa de
mostrar a relação que há também entre escrita, realidade e responsabilidades.
“Inspirada” nessa discussão bakhtiniana, objetivo situar problemáticas e desafios
que envolvem as questões aqui propostas e enfrentadas pela maioria dos professores de
escolas públicas, já que, na prática discursiva, cotidiano e ideologias nunca se separam
(BAKHTIN, 1992).
Nesse sentido, precisamos deixar para trás a ideia “ingênua”, adjetivo usado por
Bakhtin e retomado por João Wanderley Geraldi (2003) em Portos de Passagem, quando
ambos tratam da temática da escrita e seu processo, sobre o que consideramos “texto do
aluno” e relacioná-lo também às questões que envolvem relações sociais, de ideologias,
do discurso verbal, da comunicabilidade e da criação e, inclusive, da própria visão de
mundo do aluno.
Sob tal ponto de vista, observamos que ao fazer a relação do “discurso verbal”
com a “criatividade”, Bakhtin nos aponta para o fato de que “o discurso verbal é o
esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa, consequentemente,
só no processo da comunicação social viva” (BAKHTIN, s/d, p.12). Dessa forma, não
podemos entender os “textos dos alunos” como algo “descolado” das questões e contextos
sociais nos quais estão mergulhados.
Outra necessidade de relacionar o que chamo de “texto dos alunos” também às
estruturas sociais ocorre pelo fato desse objeto de pesquisa ser, por vezes, usado para
culpabilizar pelos “fracassos escolares” ou “textuais” “aqueles que fazem no seu dia a dia
da sala de aula a educação linguística possível no interior de um sistema escolar falido
numa nação de explorados em benefício de uma minoria” (GERALDI, 2003, p. XXIX).
Assim, ler ou analisar um “texto produzido por um aluno”, em uma aula de produção
textual, é iniciarmos mais um diálogo com as diversas concepções ideológicas existentes
na sociedade na qual estamos temporal e espacialmente inseridos, já que “o emprego das
palavras na comunicação discursiva viva sempre é de índole individual-contextual”
(BAKHTIN, 2011, p.294).
Se situar o contexto faz-se obrigatório para que entendamos os muitos porquês de
um texto e sua forma ou resultado de “criação”, os “textos dos alunos” do Ensino Médio
da Escola Pública do Rio de Janeiro têm muito a revelar. Porém, mais do que apresentá-
los como sendo de classes populares, e com isso correr o risco de ficar nos prendendo a
expectativas “presumidas”, termo bakhtiniano, como, por exemplo, aqueles que não
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conseguiram se superar ou aprender, mesmo tendo acesso à escola (SOARES, 1988), é
necessário entender o universo discursivo dos mesmos.
A partir desse ponto da discussão, chamo de “texto do aluno” todo emaranhado
de palavras, frases, parágrafos, ideologias e contextos no qual aquele sujeito-escritor está
imerso até o momento daquela escrita, sendo toda a sociedade e sua estrutura de culturas,
conflitos e poderes também vozes presentes na produção discursiva daquele aluno, aqui
tendo como recorte a leitura e produção escrita. Assim, tiramos dele a responsabilidade
única por aquilo que escreve, como acontece em todo o processo de “criação verbal”.
Não ter um olhar ingênuo sobre essas questões que entrelaçam as estruturas sociais
e de poder, a semântica e as ideologias e textos permite uma discussão sobre a produção
textual no contexto escolar, mas também social, já que fazendo minhas algumas palavras
de João Wanderley Geraldi:
Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e
ponto de chegada) de todo o processo de ensino aprendizagem da língua. E isto
não apenas por inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às
classes desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada,
da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares (GERALDI, 2003,
p.135).
Embora quem trabalhe com o ensino de Línguas, de Literatura e de Produção
Textual entenda que os textos que recebe de seus alunos não são resultado unicamente da
criatividade, não é raro leituras desses pautada em juízos de valor, que beiram, muitas
vezes, o preconceito de classe. Ação essa que revela que o leitor faz parte do “auditório
social” definido por Bakhtin, e, como tal, mergulha na dimensão social dos textos que
chegam até suas mãos. Nesse caso, escritor e leitor estarão imersos “no dito”, no “não
dito”, no cotidiano da escola, na sociedade.
Entretanto, proponho que sigamos pelas entrelinhas não só linguísticas, mas
também ideológicas e hegemônicas dos textos produzidos pelos alunos, uma vez que “a
palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 1992, p.36).
Nesse sentido, a ideia de que estamos criando “nosso”, e só nosso, “texto” na aula
de produção textual leva a afirmações ideológicas, a ponto de influenciar também a forma
como são elaboradas provas de processos seletivos de escolas, universidades e até exames
como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), que descartam qualquer
diferenciação nos critérios de correção, o que reconhecemos que seria muito complicado.
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Entretanto, no processo de formação do estudante, tal postura tem desconsiderado
questões importantes para a melhoria do ensino no dia a dia.
As avaliações institucionais interferem direta e indiretamente nas aulas, já que
grande parte das escolas enquadra o ensino da escrita e leituras realizadas nos modelos
exigidos nesses exames, bem como são diversos os professores que trabalham guiados
essencialmente por tal perspectiva.
Tal contexto ocorre porque o ENEM, por exemplo, é uma das grandes portas de
acesso ao ensino superior, já que várias universidades, públicas e particulares, aderiram
ao exame como processo seletivo. Assim, tanto alunos quanto professores, desde muito
cedo, incorporam as regras e critérios da “Redação do ENEM”, por exemplo, como
objetivo a ser aprendido e ensinado o quanto antes.
Não estamos aqui defendendo que tal trabalho não seja desenvolvido, mas ele
pode ser realizado não só em paralelo como priorizando o efetivo desenvolvimento da
formação discursiva do estudante. Entretanto, como já abordado, essas práticas didático-
pedagógicas motivam a repetição desenfreada de modelos de escritas e,
consequentemente, leituras que são pautadas na paráfrase ou na historiografia literária,
muitas vezes, relacionadas, também, ao IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica) e PISA (Programme for International Student Assessment – Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes), por exemplo, uma vez que tais avaliações
possuem a leitura e o domínio gramatical como expoente fundamental de medição de
notas e rankings, tão disputados pelo cenário político de investimentos, verbas e discursos
democráticos que fomentam e assumem importância central nas formulações de
estratégias didáticas e de seus modelos de aferimento.
Outro argumento para discutir o “texto dos alunos” no contexto do ensino da
produção textual na escola pauta-se nas afirmações de que o escritor-aluno “não dá conta
do recado” ou “não escreve satisfatoriamente” para determinado contexto ou faixa etária.
Nesse momento, é sobre os ombros do professor de Língua, Literatura e Produção de
Textual que muitos colocam a culpa.
Tendo apresentado não uma definição específica sob o viés da escrita dos alunos,
até para não correr o risco de ser simplista, em função da complexidade das questões que
envolvem a produção verbal, objetivamos trazer a ideia de que, conforme escreve Geraldi:
Na produção dos discursos, o sujeito articula, aqui e agora, um ponto de vista
sobre o mundo que, vinculado a uma certa formação discursiva dela não é
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decorrência mecânica, seu trabalho sendo mais do que mera reprodução: se
fosse apenas isso, os discursos seriam sempre idênticos, independentemente
de quem e para quem resultam. Minha aposta não significa que o sujeito, para
se constituir como tal, deva criar o novo. A novidade, que pode estar no
reaparecimento de velhas formas e de velhos conteúdos, é precisamente o fato
de sua articulação individual com a formação discursiva de que faz parte,
mesmo quando dela não está consciente (GERALDI, 2003, p.136).
É nesse “auditório social” (Bakhtin), na interação, na “circularidade” dos
“discursos interior e exterior”, na “articulação” das vozes sociais, das políticas, da
educação brasileira que os “textos dos alunos”, a leitura canônica e a literatura de jovens
escritores, já que “todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade
humana” (BAKHTIN, s/d, p.02), não deveria estar descolada das práticas escolares.
Para tal condução, sigamos por algumas das linhas de Por encomenda: contos e
outras histórias (BRASIL, 2012), livro escrito, na época, por sete alunos do Ensino
Médio, de 15 a 17 anos, orientados pela professora e organizadora Janaina Brasil, fruto
de oficinas de criação, pautadas em leituras e debates de textos teóricos e literários.
A obra é um convite à reflexão sobre a literatura e as escritas de estudantes, como,
por exemplo, as da jovem autora que assim se apresenta: “Até hoje aprendi três coisas: a
falar sem rodeios e desamparos, aos gritos e sussurros; a ler, para desfolhar todos os
acordes do mundo; e a escrever, existindo num espetáculo por vezes solitário e que
encontra redenção nos leitores” (p.17). E completa: “protagonizar a literatura é essa
existência incoerente, prazerosa, desmedida. Cá estou, uma Ananda que estuda Ciências
Sociais, piauiense e cheia de histórias travadas em contos” (idem).
Nesse sentido, falar em escrita é, inevitavelmente, ter em mente a imagem de um
autor. Porém, o que é um autor?
Essa pergunta foi usada para dar título a um dos livros de Foucault (1992), que
nos convida a reflexões sobre o tema através dos caminhos da história, das ciências, de
questões sociais, dos discursos e da literatura.
Com uma proposta de entendimento e debate sobre as funções do autor,
características e expectativas relacionadas a essa figura, que muitas vezes tem sua imagem
confundida com alguém dotado de um poder, para muitos, quase sobrenatural, Foucault
nos permite descortinar a ordem discursiva (2000) que envolve o universo da escrita e os
discursos sobre ela, o que pode ser conferido no seguinte trecho:
[...] a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra,
determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e
da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas em todas as
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formas da civilização; não se define pela atribuição espontânea de um discurso
ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e
complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo
dar lugar a vários “eus”, em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes
diferentes de indivíduos podem ocupar (FOUCAULT, 1992, p.56-57).
Essa complexidade relacionada ao assunto, que Foucault atribui aos sujeitos, suas
posições, seus “eus” e a relação escrita/instituição, transforma-se em uma grande
problemática e desafio quando pensada no universo escolar. Isso ocorre porque mesmo
estando tal debate tão presente em aulas das Faculdades de Letras, o tema autoria e seus
desdobramentos raramente são abordados nas salas de aula da educação básica,
reproduzindo a mesma ausência das discussões nos ensinamentos propostos pelos livros
didáticos, programas, currículos e discursos pedagógicos sobre a produção textual
escolar.
É necessário destacar, no presente momento, que não estamos aqui atribuindo à
escola o papel de formar escritores. Entretanto, tal como Orlandi (2012), defendemos a
ideia de que:
Quanto ao escritor, o que gostaríamos de dizer é o seguinte: não é a relação
com a escola que define o escritor. Ela poderá ser útil, mas não é nem
necessária, nem suficiente. Não é sua tarefa específica formar escritores.
Ao contrário, para ser escritor, sim: a escola é necessária. Embora não
suficiente, uma vez que a relação com o fora da escola também constitui a
experiência da autoria. De toda forma, a escola, enquanto lugar de reflexão, é
um lugar fundamental para a elaboração dessa experiência, a da autoria, na
relação com a linguagem (ORLANDI, 2012, p.109-110).
Dito isso, voltemos, então, nossa atenção para esse espaço que ocupa muitas vezes
um lugar de destaque no imaginário sobre o “ensino” da escrita e da leitura: a escola. Para
tal, trarei também experiências e sujeitos produtores de textos escolares e literários,
objetivando reflexões teóricas sobre essas práticas escolares.
Para Orlandi (2012), a ideia de autor está relacionada ao papel social da escrita,
na relação com a linguagem, podendo dar-se diante da instituição-escola ou fora dela.
Nessa linha de pensamento, para a autora, é “uma importante atividade pedagógica na
escola, em relação ao universo da escrita: responder a essa questão – o que é ser autor –
é atuar no que se define a passagem da função de sujeito-enunciador para sujeito-autor”
(ORLANDI, 2012, p. 106). Nesse sentido, trago como caminho condutor de reflexões a
leitura do texto a seguir, cujo objetivo é apresentar algumas noções sobre autor que
circulam na escola.
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O diferencial desse texto se dá pelo fato de ter sido escrito por um jovem escritor.
Fernando Ananias possuía 17 anos na época em que escreveu A sede, e outros três contos
do mesmo livro, e era, então, ainda aluno do Ensino Médio.
A sede
Eu salvo vida. De segunda a sábado observo criancinhas desfilarem suas
cândidas figuras aos descerem a pequena escada que leva à piscina. [...]
É um trabalho tranquilo. Muito tranquilo. Raramente o professor se distrai e
alguma criança se afoga. [...]
Hoje é o dia mais cheio da semana. [...] É uma quarta-feira de sol escaldante
[...] É melhor deixar calada a intenção.
[...] Até que o ouvir do último sino anunciou que já era hora. Os pequeninos
saíram da piscina, levando as cores que me despertavam. O professor, aliviado
pelo fim de mais um dia daquele trabalho insosso, partiu atrás distraído pela
própria exaustão, se esquecendo de fazer a checagem rotineira.
Seria agora. No meio da multidão uma menina voltava, com a expressão de
alguém que procura um objeto perdido. Sentou na borda, com os olhos atentos
a investigar a água. O vermelho do maiô refletia, tremulando como a chama da
vela diante do sopro do vento. Meu instinto sorria, era a minha cor preferida.
Aproximei-me e perguntei se precisava de algo, fez um gesto afirmativo e me
deu a mão para que eu levantasse. Seus olhos infantis me penetraram, dizendo
quão plenamente ela confiava em mim. Era melhor que fosse assim.
Sem deixar tempo para gestos desastrados ou fugas, pus minhas mãos sobre a
sua boca, com um braço envolvi seu pescoço e arremessei-a na água.
Contemplei por um momento sua figura vibrando por baixo do azul. Cada
mínima partícula do meu corpo sacolejava, e uma febre corria, me encerrando
em um incêndio.
Pulei, a água me acolhia. Uni as duas mãos em volta do frágil pescoço,
pressionei os dedos de sua carne fria, os olhos orbitavam, nariz expelindo
sangue, boca esbranquiçada, eu sentindo um sabor, mais sabor, agora, já.
O sangue era dois raios rubros rasgando a densidade. Delícia, morte, delícia.
O sabor do finalmente me embebedava. Estava sentindo, enfim, o gosto que
mataria, naquele dia, a minha sede (BRASIL, 2012, p.43-44).
Nos debates sobre esse texto, foram inevitáveis as críticas ao autor como sendo
alguém que “era um doente”, já que “deveria ser um psicopata”. A partir desse momento,
um universo de leituras não canônicas surgiu como exemplo. As sagas ganhavam
destaques, assim como o desdenhar a leitura do colega. Estava claro que boa parte
daqueles estudantes se encontrava envolvida com a leitura, mas não aquelas indicadas nas
escolas. Questões sobre a estética literária surgiram permeadas às análises do texto em
questão e às leituras pessoais. O estranhamento provocado pela referida narrativa foi
debatido e reconhecido como efeito motivador para leituras futuras, bem como o impacto
em produções textuais que fossem solicitados posteriormente.
E quanto ao autor de A sede? Das respostas surgiu, para a grande maioria deles, o
imaginário de um autor “velho” ou “um senhor não muito velho”, “de cabelos de lado e
brancos”, “um homem com experiência de vida”, “baixo, gordo, cabelo grisalho”,
predominou o “em torno dos 50 anos”, mesmo com alguns respondendo “uns 35 anos”,
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mas acrescentando a ideia de “ser alguém de idade”, ou, ainda, “um senhor de
aproximadamente 40 anos, que seja formado em Letras e já tem alguns livros publicados
e meio psicopata”, um autor maduro.
A parte do psicopata foi quase unânime, revelando a necessidade de se construir
com a maioria a noção de processo de escrita, a noção de autoria, intertextualidade,
leituras, sentidos e criatividade, ou seja, o processo de construção literária e sentidos da
leitura. Vale ressaltar que nenhum dos alunos apresentou a possibilidade do autor ser um
jovem da idade deles (tratava-se de uma turma de 1º ano do Ensino Médio, de uma escola
pública).
Quando revelada a real idade do autor de A sede, houve um grande impacto. A tal
ponto de questionarem se era verdade ou não. Quando confirmado ser de alguém de 17
anos a autoria daquele conto, o espanto e admiração ficaram explícitos. Adjetivos dos
mais variados tipos foram atribuídos ao jovem autor, que virou ponto de referência da
turma sobre quebra de expectativa do leitor.
As experiências que se seguiram a partir da proposta de trabalho iniciada com o
texto A sede estão problematizadas à luz dos conceitos e referenciais teórico-
metodológicos assumidos, já que para que seja possível construir autores a partir dos
bancos escolares é preciso também entender e discutir o que se entende por autoria, as
autoridades literárias e escolares e seus autoritarismos travestidos de “objetivos em
formar o bom aluno”. Nesse sentido, um conceito que precisa ser problematizado é o da
“autoria”.
Assumimos, então, como entendimento de autoria, no contexto escolar, os
pressupostos de Castro (2008), que nos ajuda a deixar clara a diferença também entre
autor e produtor de texto (escolar), bem como um olhar para as diferenças entre “autor”
e “sujeito”, pois tais ideias refletem de maneira direta na forma como a escola estrutura
seu currículo e dita práticas docentes.
O autor (reconhecido socialmente como tal) tem em si um glamour social, um
olhar atento para seus textos e adesão do pacto do leitor mais facilmente. Ele é a
autoridade, e não o seu leitor. Já na escola, o sujeito que fará uma produção textual, além
de fazê-lo sob condições inadequadas, tem sua figura relacionada à do autor
essencialmente no último dos 3 traços que Castro (2008) considera para definir “autoria”
(p. 03) como uma condição de produção de textos.
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A primeira delas é a motivação para escrever, seja espontânea ou motivada; a
segunda refere-se à liberdade sobre as decisões dos caminhos do texto, ainda que diante
de orientações; e a terceira faz referência ao fato do autor assumir publicamente seu texto
e, ainda, responsabilizar-se por ele diante da sociedade.
Em quase todas as entrevistas feitas com escritores consagrados, temos a pergunta
do entrevistador sobre “como se tornar escritor?”. A resposta, na grande maioria das
vezes, se inicia da mesma forma: “Lendo muito...”
É inegável o papel da leitura na vida e na construção do processo criativo de um
escritor. Porém, o senso comum alimenta a ideia de que quem lê muito automaticamente
escreve “bem”. Entretanto, quando a escola promove a prática de leitura é pela via da
imposição (cobrando resumos dos livros) ou do estímulo? Há diálogos com os alunos
sobre as suas histórias de leituras e preferências ou dá-se como única opção os cânones,
que, por sinal, são os mesmos que compõem as provas das escolas e as de avaliações
externas?
Diante dessas questões, experimentar novas práticas de ensino é mais que um
desafio, é, também, um compromisso com uma escola plural.
Sabemos que a inserção do trabalho com a literatura produzida por jovens
escritores no cotidiano da escola não é a grande salvação para resolvermos as inúmeras
problemáticas que envolvem o tema da leitura e da escrita nesse contexto.
Entretanto, tais práticas podem revelar-se como espaço de diálogo entre o cânone,
jovens autores, teorias literárias, outros sentidos, desvelar dos processos de escrita, de
novos olhares e leituras que nos convidam a ir além da historiografia literária.
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UM CONTEXTO PARA A VALORIZAÇÃO DOS SABERES DOCENTES NA
FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES
Marcelo Macedo Corrêa e Castro - UFRJ
Resumo
O presente artigo apresenta resultados obtidos com o desenvolvimento do projeto de
pesquisa Saberes docentes e formação de professores para o ensino da escrita, voltado
para três objetivos: (1) identificar perfil de formação básica dos estudantes matriculados
nos cursos de Letras e de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; (2)
analisar os currículos dos referidos cursos no que se refere mais diretamente à formação
para o ensino da escrita; e (3) propor ações que ajudem estudantes e professores a
enfrentar as questões postas para a formação inicial de professores de escrita. Baseado
em autores como Castro (2010 e 2012), Ghedin e Pimenta (2008), Pereira (2006),
Perrenoud (2002) e Lessard e Tardif (2008), apresenta-se uma discussão na qual se
busca relacionar, no cenário da formação de professores no Brasil nas décadas de 1990
e 2000 principalmente, as políticas de governo e as proposições teóricas emanadas da
academia, com destaque para aquelas que valorizam os saberes docentes e a atuação
crítica dos professores. As principais conclusões da discussão apontam para os limites
do alcance das ações de formação continuada de professores da educação empreendidas
nas duas últimas décadas e, principalmente, para a necessidade de fortalecer os
investimentos das universidades na formação inicial de docentes. No que tange ao
aspecto formal, o texto está organizado em três partes: a primeira demarca
historicamente a leitura do panorama apresentado; a segunda destaca traços definidores
das políticas de governo para a educação nas últimas décadas e discute balanços acerca
das ações voltadas para a valorização dos saberes docentes; a terceira apresenta
conclusões e considerações finais.
Palavras-chave: Formação de Professores. Ensino da Escrita. Saberes Docentes
I Delimitação histórica: o contexto pós-ditadura civil-militar
Embora o objetivo maior do nosso estudo esteja voltado para a formação de
professores para o ensino da escrita, o limite aqui adotado foi o do panorama maior das
questões que envolvem a formação dos professores, a fim de proporcionar uma inserção
mais segura e contextualizada nos desafios específicos de formar profissionais que irão
ensinar a escrever.
Ressalvado esse aspecto, adota-se para a discussão o pressuposto de que a
profissionalização do magistério constitui um dos principais desafios ao
desenvolvimento da educação no Brasil, porque, sem o enfrentamento de questões que
vão da estruturação de uma carreira às condições para o seu exercício, passando pela
formação de profissionais, em todos os seus níveis, pouco se alcançará das metas postas
para a sociedade brasileira em termos educacionais.
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Esse desafio demanda debates e movimentos em muitas frentes e instâncias, das
quais destacaremos o esforço conjunto das universidades, das escolas e dos
profissionais de educação, especialmente dos docentes, com ênfase nas instituições
públicas, em prol da valorização dos professores e dos seus saberes. O ponto de partida
está demarcado pelo contexto dos anos 1980, quando tal esforço ganhou intensidade e
qualidade, por motivos diversos, elencados a seguir.
A referida década marcou a retomada da plena institucionalização da sociedade,
após uma ditadura que durou mais de 20 anos e impôs severas restrições ao exercício da
cidadania. O contexto de tal retomada caracterizou-se pelo restabelecimento da
liberdade de pensamento e de expressão, trazendo de volta à cena projetos abortados ou
interrompidos ao longo dos anos de silenciamento. Dentre aquilo que se retomou, lá
estava o desafio de se oferecer um ensino público de qualidade a todos, o que levava
necessariamente à questão da preparação e das condições de exercício dos profissionais
de educação.
Quanto a esse desafio, vale lembrar que a universalização da oferta de vagas na
escola pública, já em fase adiantada nos anos 1980, no que diz respeito ao hoje
denominado ensino fundamental, ampliou muito o espectro de perfis socioeconômico-
culturais de estudantes e professores nas escolas públicas, deixando evidente a
inadequação, para esses novos sujeitos, dos currículos e das práticas adotadas até então.
Também esse fator, por conseguinte, punha em destaque a necessidade de se repensar a
escola, suas práticas e a formação de seus profissionais.
Por fim, sem que se esgote a lista, um terceiro fator: a revitalização, por parte da
academia, das discussões acerca dos saberes docentes. Segundo Ghedin e Pimenta
(2008), a questão já fora objeto de preocupação de estudiosos em momentos anteriores
da nossa história, havendo, na referida década e, principalmente, a partir dos anos 1990,
um ressurgimento do interesse pelo tema, em grande parte motivado por estudos
oriundos da América do Norte (Shuman, Tardif e Lessard) e da Europa (Nóvoa,
Sacristán, Perrenoud), voltados para a discussão e o estabelecimento dos saberes
docentes.
Impulsionados por esses e outros fatores, os movimentos direcionados para uma
política de formação de professores buscavam a construção de processos de formação
inicial e contínua que lograssem colocar em prática os conhecimentos relacionados ao
papel dos saberes diversos de que se compõe a docência. Nesse caso, havia um destaque
para a valorização da prática, não só como elemento a figurar mais vigorosamente nos
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173ISSN 2177-336X
currículos dos cursos de formação de professores, como também na condição de
conjunto de saberes construídos pelos docentes em sua atuação profissional, aqueles a
que Tardif (2007) chama de saberes experienciais.
Esse cenário procurava recolocar o docente em uma espécie de protagonismo
consciente de suas práticas, como uma resposta ao que Geraldi, em obra publicada em
1991 apresentou, ao tratar da evolução histórica da identidade dos professores no
mundo ocidental.
Para o referido autor, há três identidades que os professores assumem desde os
séculos III e IV até a contemporaneidade. A primeira os caracteriza como produtores de
conhecimentos. A segunda, resultado direto da influência do mercantilismo crescente,
situa-os como transmissores de conhecimentos. A terceira, fruto do “desenvolvimento
tecnologizado”, reduz os professores à condição de profissionais que escolhem
materiais e supervisionam o cumprimento de tarefas. Para descrever esta última
identidade, Geraldi afirma que “Uma boa metáfora é compará-lo [o professor] a um
capataz de fábrica” (GERALDI, 1997, p. 94).
Já Pereira (2006), tomando como escopo a evolução da identidade docente no
cenário do Brasil a partir dos anos 1970, entende que a formação de professores parte,
naquela década, de um “treinamento do técnico em educação”, atravessa a década
seguinte com a perspectiva da formação do educador, com o privilégio da dimensão
política e do compromisso com a educação pública, até chegar aos anos 1990, nos quais
ganham destaque as concepções de professor pesquisador e de professor reflexivo, com
a valorização dos saberes docentes.
Seja qual for o entendimento adotado sobre o que comentam Geraldi e Pereira, o
fato é que todo esse conjunto de novas discussões impulsionou fortemente a produção
acadêmica e deu origem a diversas ações de aproximação das universidades em relação
às escolas e aos docentes da educação básica. Quase sempre abrigadas sob propostas de
formação continuada, a maioria dessas ações buscava, por um lado, incorporar a escola
e seus professores à produção acadêmica e, de outro, alimentar as práticas pedagógicas
da educação básica com conhecimentos científicos de ponta.
Essa aproximação representou um importante avanço, notadamente por parte da
academia, no sentido de se superar o vazio de interlocução historicamente construído no
Brasil entre as diversas instâncias educacionais. Não obstante esse avanço, já ao longo
dos anos 1990 surgiam sinais de que o ritmo e o alcance das conquistas esbarravam em
alguns aspectos de diferentes ordens, que discutiremos mais adiante.
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174ISSN 2177-336X
Concomitantemente, o discurso predominante nas políticas públicas, com
destaque para as conduzidas pelo governo federal, passou a se configurar como um
misto de traços de uma recontextualização da produção acadêmica acumulada e de uma
clara retomada de perspectivas instrumentalizadoras para a formação de professores.
Como indicadores claros da tendência neotecnicista detectável nas políticas
públicas, ressaltam-se duas afirmações de Barreto (2009). A primeira diz respeito à
análise geral que a autora propõe acerca do Parecer CNE/CP 009/2001, que fornece
base para as “Diretrizes Nacionais para a formação de professores da educação básica,
em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena”. Sustenta Barreto que:
Vale lembrar que as Diretrizes promovem mudanças substanciais na
formação de professores, para além da organização curricular. A principal
delas diz respeito à criação de Institutos Superiores de Educação, instituições
inteiramente dedicadas ao ensino, no deslocamento da formação do campo da
educação para uma espécie de campo exclusivo da prática. É uma perspectiva
mimética, materializada no princípio da ‘simetria invertida’ (p.30), como um
jogo de espelhos que torna possível o elogio da pesquisa como ‘elemento
essencial na formação profissional do professor’ (p.34), no mesmo discurso
que reduz a pesquisa ao desenvolvimento das ‘práticas investigativas’
diagnosticadas como uma das faltas a serem preenchidas com competência(s)
(BARRETO, 2009, p.104).
Logo a seguir, a autora sustenta que o texto das Diretrizes aproxima e articula
elementos de ordens distintas, configurando-se a partir de marcas:
(1) do discurso dos organismos internacionais acerca da educação,
notadamente no que tange aos países periféricos; (2) da apropriação desse
discurso produzida pelo MEC e materializada nas políticas educacionais, em
especial nas referidas à formação de professores; (3) das posições assumidas
por organizações científicas e sindicais, em termos dessa mesma formação.
(BARRETO, 2009, p.104)
A segunda afirmativa de Barreto (2009) que se traz à baila faz menção
especificamente aos subitens do Parecer que remetem às competências esperadas dos
professores. Para a autora, enquanto o discurso do Parecer como um todo “é um
discurso híbrido, marcado por contradições” (p.105), a proposição de competências e a
sua consequente justificativa têm uma direção clara:
De fato, as competências constituem o centro da reforma proposta, ainda que
em um discurso marcado pela circularidade e desprovido de abordagem
conceitual substantiva. É a retomada, envolvendo uma cadeia de
ressignificações, da formação baseada em competências, hegemônica nos
Estados Unidos da América do Norte, nos anos 1970. (BARRETO, 2009,
p.195)
O hibridismo pode ser aceito, por um lado, como resultante de avanços efetivos
da produção acadêmica e da atuação de movimentos sociais favoráveis a políticas de
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175ISSN 2177-336X
valorização dos professores e, por outro lado, como estratégia de negociação que
consiste em operar algumas concessões discursivas aos críticos em potencial, a fim de
cooptar bandeiras que eventualmente pudessem se levantar contra as ações propostas
pelos órgãos de governo.
Oliveira (2007), por exemplo, identifica no texto da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN 9394/96), marcas discursivas reveladoras. Para a autora,
quando se trata de leituras do texto da LDBEN 9394/96, é possível “encontrar desde
interpretações que o consideram polissêmico, resultado de muitas vozes, até as que o
tomam como uma costura de partes de diferentes corpos, recuperando a noção
organicista, ou como um mosaico” (OLIVEIRA, 2007, p.99).
Por outro lado, durante esse mesmo período, se é fato que os discursos apontam
para essa valorização da docência, o mesmo não se pode afirmar sobre as ações,
desenvolvidas quase exclusivamente no sentido da regulamentação da formação inicial
e da oferta aos professores de programas de qualificação. Como aponta Pimenta (2007),
“[...] a valorização profissional, incluindo salários e condições de trabalho, foi
totalmente abolida dos discursos, das propostas e das políticas do governo subsequentei,
que passou a normatizar exaustivamente a formação inicial de professores e a financiar
amplos programas de formação continuada” (PIMENTA, 2007, p.34).
As análises produzidas no âmbito acadêmico permitiram detectar tais limitações,
embora elas estejam apagadas dos documentos oficiais, como se os professores
detivessem plenas condições de realizar todos os movimentos de aperfeiçoamento
profissional que deles se tem esperado. Esse apagamento vai mais além, na medida em
que atinge também a existência de uma política de desvalorização, material e simbólica,
dos professores e do seu exercício profissional, que se sustenta e mesmo avança na
história recente, a esbarrar sempre no mesmo obstáculo, como ressalta Nunes (2007):
A lei, o decreto ou qualquer imposição externa não mudam a escola, o
professor ou o aluno, o que muda é uma atuação simultânea em vários níveis
que assegure remuneração digna aos docentes, estrutura de apoio ao seu
trabalho, recursos para melhorar as condições de trabalho e a qualidade
cultural dos professores, uma gestão cotidiana respeitosa, dinâmica e
consequente dentro das escolas formadoras (NUNES, 2007, p.130).
O cenário, portanto, que tem se apresentado é este:
(...) salários e condições de trabalho pouco atraentes; exigências crescentes
de capacitação e aperfeiçoamento, inclusive para tornar-se um operador de
interações e práticas multimodais; cursos de formação delimitados e dirigidos
por documentos regulatórios; práticas profissionais constrangidas por
orientações, diretrizes, índices e exames oficiais. Trata-se de uma política de
controle e centralização que se manteve na transição dos oito anos de
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Fernando Henrique Cardoso para os também oito anos de Luiz Inácio Lula da
Silva e cresceu, de forma constante, na segunda metade deste período
(CASTRO, 2012, p.4).
Independentemente de categorizações, trata-se de um panorama que afeta
diretamente todo o cenário da formação de professores, na medida em que representa
potencialmente uma grande ameaça a todo o esforço dos anos 1980 e 1990 rumo a uma
retomada do protagonismo do professor na educação básica.
II Saberes docentes e ações de formação: uma primeira leitura crítica
A academia, no exercício do seu papel crítico e de pesquisa, vem procurando
acompanhar esse percurso cuidadosamente. Assim, a partir da primeira metade dos anos
2000, diversos estudos procuraram realizar balanços dos movimentos em prol de uma
nova formação de professores.
Em obra publicada em 1991, aqui já citada, Geraldi apresenta um conjunto de
conclusões acerca da experiência de se tentar estabelecer pontes entre a teoria e a
prática, por meio da ação conjunta de profissionais acadêmicos e docentes da educação
básica. A principal conclusão a que o autor chega, baseado nas constatações de que “não
há ponte entre teoria e prática” e de que a “práxis exige construção permanente”, é a de
que é “preciso eleger o movimento como ponto de partida e como ponto de chegada,
que é partida” (GERALDI, 1997, p.xviii).
Perrenoud, por seu turno, destaca a perspectiva predominante nas ações de
formação continuada, em seus diferentes matizes, apontando que a mesma “assumiu
características de um ensino quase interativo, o qual pretendia transmitir novos saberes
a professores que não os tinham recebido no período da formação inicial”
(PERRENOUD, 2002, p.21).
Assim como no Brasil, em que recebeu as denominações de reciclagem e
capacitação antes de se fixar a expressão formação continuada, na Europa, segundo
Perrenoud, essa formação recebeu as denominações de aggiornamento, em italiano, e
recyclage, em francês, e visava sempre a “atenuar a defasagem entre o que os
professores aprenderam durante sua formação inicial e o que foi acrescentado a isso a
partir da evolução dos saberes acadêmicos e dos programas de pesquisa didática”
(PERRENOUD, 2002, p.21).
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Ainda no início da década de 2000, a revista Educação & Sociedade (ano XXII,
nº 74, Abril/2001) publicou um dossiê sobre o tema Saberes Docentes, promovendo
discussões que traçam um desenho do estado da arte das pesquisas sobre o tema e de
sua relação com conhecimento escolar, currículo, cultura e formação de professores,
dentre outros aspectos. A leitura dos artigos que integram o dossiê deixa evidente não só
a existência de um acúmulo de reflexões sobre o tema central, como também a
preocupação dos diversos autores-pesquisadores com questões teóricas e práticas que já
se colocavam como desafios à continuação de ações de valorização dos saberes
docentes.
O artigo de Lelis, que propõe a discussão sobre possíveis mudanças nos
“idiomas pedagógicos” (denominação da autora) empregados na produção intelectual
dos vinte anos anteriores direcionada para a formação de professores, apresenta, ao seu
final, uma série de questões desafiadoras:
Que cuidados precisamos tomar para não resvalarmos para um praticismo em
migalhas, na relativização quanto ao lugar ocupado pela teoria? Sob que
critérios operaremos com a prática profissional, de modo a torná-la um
espaço de construção de saberes rigorosos sem serem rígidos? Como o saber
do mundo da experiência sensível pode ser transposto para uma razão que se
quer dialógica e processual? (LELIS, 2001, p.54)
Lüdke, por sua vez, em estudo que trata das relações entre saber docente e
pesquisa docente: “Focaliza especialmente a ideia do professor-pesquisador e o tipo de
pesquisa “próprio” do professor, assim como os problemas levantados pela sua
comparação com a pesquisa acadêmica em educação” (LÜDKE, 2001, p.78).
Após relato de pesquisa realizada em escolas de educação básica, a autora
reconhece que: (1) “convivem nas escolas estudadas vários tipos e até várias concepções
de pesquisa”; (2) há “falta de uma política governamental de valorização do
magistério”; (3) “há condições para a realização de pesquisas, dentro dos
estabelecimentos escolares pesquisados”; e (4) existe uma “falta de clareza sobre que
pesquisa poderia ser considerada indicada para responder às necessidades sentidas pelos
professores e assim contribuir para o crescimento do seu saber” (LÜDKE, 2001, p.92).
Outro exemplo de dossiê sobre o tema geral da formação dos professores à luz
das tendências surgidas nos anos 1980/1980 se encontra em coletânea de textos
publicada por Ghedin e Pimenta em 2002, na qual diversos pesquisadores discutem o
conceito de professor reflexivo, um dos que se destacaram no cenário das propostas de
valorização da profissão docente.
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Na reflexão proposta por Sacristán, por exemplo, pode-se identificar um dos
aspectos frequentemente destacados no que se refere à dificuldade de associar a ação e a
reflexão no trabalho docente: as condições de trabalho dos professores. Essas condições
recebem de Sacristán o seguinte comentário: “(...) o professor que trabalha não é o que
reflete, o professor que trabalha não pode refletir sobre sua própria prática, porque não
tem tempo, não tem recursos, até porque, para sua saúde mental, é melhor que não
reflita muito” (Sacristán, 2002, p.82).
Já para Charlot, a relação entre professores e pesquisadores muitas vezes se faz
marcar pela percepção de que estes avaliam aqueles, como se houvesse uma espécie de
hierarquia segundo a qual as universidades e seus saberes estivessem acima das escolas
e de seus profissionais. Ainda segundo o autor, “o professor acha que o pesquisador está
dentro da escola para tomar, para receber sem dar – o que muitas vezes é o que
acontece” (CHARLOT, 2002, p.92).
Para encerrar este apanhado, destaque-se o artigo de Libâneo, em que o autor
identifica dois “tipos básicos de reflexividade” (LIBÂNEO, 2002, p.62): a de caráter
crítico, a ser buscada na formação de professores, e a de cunho neoliberal, que se apoia
em um “paradigma racional-tecnológico”, e opera em uma perspectiva “linear,
dicotômica e paradigmática” (IDEM, p.63).
Em uma primeira tentativa de realçar pontos de convergência identificados no estudo da
literatura relativa aos saberes docentes, em artigo publicado em 2010, Castro apresenta cinco
itens:
1.A formação de professores envolve saberes de naturezas diversas e obtidos
por meio de processos variados.
2. Parte desses saberes se constrói por meio da experiência fora das agências
de formação, parte vem dessas agências e parte vem da prática profissional,
sendo possível subcategorizá-los de muitas formas e com inúmeros critérios.
3.A hierarquização e, mais do que isso, a articulação desses grupos de
saberes em termos de sua importância para a formação dos professores
constitui um desafio que ainda estamos longe de ter vencido.
4.A necessária articulação entre saberes e, sobretudo, entre teoria e pratica
ocorre de forma fluida, em uma dinâmica razoavelmente imprevisível e,
portanto, incontrolável, e não de maneira linear e racional.
5.Ainda que lançando mão de diferentes denominações, a maioria dos
pesquisadores destaca o papel primordial que saberes identificáveis como
habitus, tal e qual definido por Bourdieu (1972, p.178-179, apud Perrenoud,
2002, p.147), desempenham na formação e, particularmente, na ação dos
professores. (CASTRO (2010, p.41-42)
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Em um movimento de atualização dessas sínteses, pelo menos duas novas
percepções merecem ser acrescentadas à lista anterior.
6. A relação entre os saberes envolve necessariamente a relação entre os
respectivos poderes e valores, simbólicos e materiais, das instâncias e dos sujeitos em
questão, o que interpela as articulações entre teorias e práticas, especialmente nas ações
desenvolvidas entre universidades/pesquisadores e escolas de educação
básica/professores.
7. As condições de trabalho dos sujeitos afetam diretamente suas possibilidades
reais de participar de ações de formação e de transformação, não se podendo ignorar –
quer no planejamento, quer no desenvolvimento, quer na avaliação dos projetos – que
há uma disparidade entre as condições disponíveis aos diferentes sujeitos, com nítida
inferioridade das condições dos professores da educação básica.
III Considerações finais
Como agir diante do que parece constituir um retrocesso em relação às
concepções de formação de professores dirigidas para promover o desenvolvimento de
uma atitude crítico-reflexiva por parte dos docentes, associada a uma extrema
sectarização da escola pública e ao esvaziamento dos principais projetos sociais ligados
ao seu fortalecimento?
Para Nóvoa (2008), há três dilemas que se apresentam, para os quais o autor
aponta como saída o desenvolvimento de saberes docentes (grifos acrescidos):
O dilema da autonomia: redefinir o sentido social do trabalho docente no
novo espaço público da educação ou da importância de saber relacionar e
de saber relacionar-se (NÓVOA, 2008, p.228).
O dilema da autonomia: repensar o trabalho docente dentro de uma lógica de
projeto e de colegialidade ou da importância de saber organizar e saber
organizar-se (NÓVOA, 2008, p.230)
O dilema do conhecimento: reconstruir o conhecimento profissional a partir
de uma reflexão prática e deliberativa ou da importância de saber analisar e
saber analisar-se (NÓVOA, 2008, p.231)
Pimenta (2008), por sua vez, em estudo no qual avalia a questão do professor
reflexivo, defende alguns deslocamentos: (a) da perspectiva do professor reflexivo para
a do intelectual crítico reflexivo; (b) da epistemologia da prática à práxis; (c) do
professor-pesquisador para a integração da pesquisa na escola às atividades regulares
dos professores; (d) dos programas de formação inicial e continuada descolados da
escola ao desenvolvimento profissional.
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Já Lessard e Tardif (2008) ressaltam que há dois polos distintos de onde se
originam as tendências das atuais políticas educativas: um que “se inspira numa corrente
neoliberal” e outro, que “pode ser qualificado de humanista/cidadão” (LESSARD e
TARDIF, 2008, p.261).
Enquanto o segundo polo mantém perspectivas semelhantes às defendidas nas
ações e teorias que visam à valorização do professor na construção de seus sabres e de
suas práticas, o primeiro tem como meta a “eficiência”, em uma linha que busca a
“gestão máxima do potencial humano, atribuindo assim aos serviços educativos um
caráter instrumental” (IDEM, p.261).
Em suma, os autores aqui mencionados, bem como diversos outros que não
foram citados, apontam para uma realidade inegável: a profissão de professor vive
desafios importantes em seu processo de afirmação e reposicionamento social. A
universidade precisa compreender sua importância na construção desse processo, para
que possa cumprir a contento seu papel não só de produtora de conhecimentos, mas
também de formadora de sujeitos.
Há, portanto, uma série de “precariedades” conceituais e estruturais no contexto
em que se inicia esta investigação que apontam para uma universidade desafiada a
cumprir sua missão de formar professores a partir de novas bases e perspectivas. Esses
novos caminhos e propostas terão obrigatoriamente de realinhar elementos do percurso
de formação e, sobretudo, reposicionar saberes e práticas.
Nesse contexto, qualquer esforço na direção de (re)valorizar o papel do
professor como sujeito de suas práticas significa necessariamente enfrentar a tendência
neoliberal, neotecnicista, economicista, mercantilista, ou que outro nome se prefira dar a
ela, que predomina nas políticas oficiais de formação de professores.
Sem prejuízo do valor que efetivamente possa ter o investimento em outros
campos de atuação, neste estudo, optamos por investir na formação inicial dos
professores. Tal escolha encontra sustentação basicamente em três motivos:
(1) Ao passo que a chamada formação continuada se apresenta como um
território em que as universidades podem decidir se e como querem atuar, a formação
inicial é objeto específico das ações estatutariamente previstas para as IES;
(2) Com base no pressuposto de que o habitus constitui elemento central a ser
trabalhado na formação de docentes, a etapa da formação inicial reúne condições mais
favoráveis para tentativas de intervenção, principalmente porque, em sua maioria, os
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estudantes são mais jovens e ainda não estão “irremediavelmente” comprometidos com
práticas profissionais.
(3) A experiência de atuação das universidades públicas em programas de
formação continuada - além de representar nos últimos tempos um perigoso desvio de
seu papel, na medida em as IES estão sendo recrutadas cada vez menos por conta do seu
acúmulo teórico-prático, e sim como força de trabalho que irá desenvolver programas
concebidos e avaliados pelas instâncias técnicas governamentais – mostra que seus
limites dificilmente conseguem ultrapassar as barreiras aqui mencionadas.
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