a inesgotabilidade do lugar tfg flavio barossi
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agradecimentos
esse trabalho só se realizou graças a:
orientação de Luis Antonio Jorgepresença e parceria de Nanácolaboração de Roberto Alves, Rosa Maria Ferrari, João Cortese, Joana Johnsen Barossi, Julia Masagão, Adriano Bechara, Nichan Dichtchekenianapoio de Claudia Cabanis Johnsen, Rita Johnsen Barossi, Tati Tatit, Lucas Medina, Victor Campos, Berta Melo, Julia Transchesi, Pedro Hasse, Victor Pord, Bruna Keese, Julia Rettman, Adriana Maiolini, Ines Bonduki, Pablo Saborido, Thomas Frenk, Eduardo Pompeo, Andre Bonassa, Jihana Nassif
“las magníficas torres y lujuosos palácios, los templos solemnes, el próprio
globo – todo lo que es solido se desvanece en el aire, y no dejará ningun
resíduo. Somos hechos de la misma matéria de que son hechos los sueños,
y nuestra corta vida se cumple en el sueño.”
(W. Shakespeare, La Tempestad)
Tendo eu a liberdade de escolher com o que quero trabalhar
me encontro no entanto perdido e distante. Com temores e
tremores, em busca vã por um solo firme onde pisar. A cidade
e as ideias se desfazem em meio a outras. As alternativas
são lapsos de sonho e o instante se reafirma sempre como
inapto. Nenhum círculo se encerra. Os caminhos são setas que
se distanciam umas das outras e a vista, em meio a setas e
caminhos, perde o foco. O mundo mastiga, traga, regurgita.
E quem ainda não tiver sido abandonado, prepare-se. Não,
essas palavras, lamentos, nada disso importará. Antes de tudo
é necessário verter o mundo. O pensante não serve, ideias não
estão em falta. A escrita, o desenho, as formas, são detalhes
passageiros e reeditados constantemente. O necessário é
isso, a violenta reedição, a sistematização, a organização, a
tabulação. Mas existe um animal asfixiado e atordoado incapaz
de apreender mudanças arbitrárias. Ele se sente acuado por
cada pedra deslocada no seu universo restrito. Mas não há ao
que recorrer e o animal se apega ainda mais àquilo que resta
de possível e que quase já não é. O último que lhe sobra,
imponderável, são os sonhos irregulares e fugidios que durante
a noite o habitam. E a dúvida mortal. Quis... porém.
A proposta do meu trabalho final de graduação parte mais
de inseguranças e incertezas diante da prática de arquitetura e
urbanismo do que de afirmações e direcionamentos fechados
e claros. Por esse motivo, descartei a possibilidade de fazer um
projeto, vislumbrando nessa alternativa um fechamento que
não me interessa como conclusão dessa etapa investigativa
que representa a graduação, apesar de ter sido o projeto de
arquitetura minha maior preocupação ao longo do curso.
A observação da cidade e do uso que se dá ao espaço me
levou, em certa medida, a desconfiar da ideia de orientar
espacialmente as atividades, determinando usos e funções
com respostas formais mais ou menos pré-estabelecidas.
Por isso tentarei nesse trabalho explorar o espaço através
de uma chave que está mais ligada à percepção de quem o
vive do que de suas atribuições funcionais determinadas,
por exemplo, por um projeto de arquitetura. O que está
em pauta é a maneira como existimos dentro do espaço da
cidade. O que percebemos e o que não percebemos dos
lugares e do que neles acontece ou deixa de acontecer. De
alguma forma pretendo dar luz à importância daquilo que
ignoramos, como se tudo que não está acontecendo, que não
quer ser visto, tivesse tanta importância quanto o que nos é
habitual e conveniente. Imaginamos assim que tudo aquilo a
que mostramos indiferença evidenciasse a nossa fragilidade
diante da realidade; fragilidade que enxergamos aqui como
potência e possibilidade de mudança interna, mais do que
a urgência de se alterar e adaptar a realidade de acordo com
as nossas necessidades. Ignorar nesse sentido seria fechar
uma porta que não estamos dispostos a abrir, justamente
por tocar em questões nevrálgicas para a nossa estabilidade.
Assim, são alvo desse trabalho os cantos, os espaços residuais
e degradados, terrenos baldios, a periferia, a cidade cinza, o
escuro. Tudo aquilo que a cidade nega é protagonista desta
investigação, porque provoca em nós reações profundas que
dizem respeito à existência e ao ser humano. Exterminar o
espanto, o medo, a solidão, a insegurança equivale a remover
um pedaço de nós mesmos.
O tema, apesar de abordar especificamente o espaço,
transborda essa fronteira para discutir o funcionalismo,
cerceamento e controle das atividades e usos a que nossa
forma de organização nos submete.
Uma das grandes dificuldades que enfrentei para discutir
questões que partem dessa visão genérica é encontrar um
marco referencial que possa representar aquilo que se
pretende evidenciar e ao mesmo tempo costurar as ideias.
Depois de idas e vindas, que variaram desde a busca por um
lugar até hipóteses de trabalhar com toda a região do centro
expandido de São Paulo, acabei voltando para o local que
despertou essa inquietação e que de alguma forma tem servido
de suporte direto e indireto para grande parte das reflexões
que alimentaram o trabalho: a via elevada Presidente Artur
da Costa e Silva, popularmente conhecido como Minhocão,
voltou à pauta de discussão em São Paulo. Depois de ter
modificado completamente a rua Amaral Gurgel e parte da
então valorizada Av. São João em benefício da circulação
desimpedida de automóveis na sua conclusão em 1971, o
minhocão foi alvo central de críticas contra o urbanismo
rodoviarista e chegou a ter seu desmonte decretado. Ele
ainda foi objeto de concursos de arquitetura na ultima
década, mas por enquanto continua intacto. O Novo Plano
Diretor da Cidade de São Paulo, sancionado pelo prefeito
Fernando Haddad em 2014, determina o fechamento gradual
do Minhocão para a circulação de veículos, e a criação de um
projeto de lei que pactue o futuro do elevado com a sociedade
e os agentes interessados em se envolver. A discussão se
divide em dois grupos principais, um que defende a criação
de um parque linear elevado, a exemplo do High Line em
Nova York, outro que é a favor da desmontagem do elevado.
De qualquer maneira ambas as propostas envolvem grandes
intervenções, que apontam para uma lógica de construção da
cidade baseada na transformação física dos espaços. Lógica
pautada pela construção/demolição que muitas vezes impede
a cidade de voltar os olhos para si mesma com a curiosidade
de alguém que busca se reconhecer.
O Minhocão, apesar das inúmeras polêmicas que provocou, quase não foi modificado desde sua inauguração; teve somente duas pequenas intervenções. A mais recente, física, foi a implantação des-funcional do terminal Amaral Gurgel em 2003, uma desculpa para expulsar os moradores de rua que ocupavam aquele espaço, coberto e protegido, como casa. Resultado: um terminal sem passageiros nem ponto final, mais um espaço cercado para São Paulo. A primeira mudança diz respeito a horários de funcionamento, e ocorreu já em 1976 devido às sucessivas reclamações por parte daqueles que moravam nos
prédios contíguos ao elevado. Esses tiveram suas salas e quartos
invadidos pelo ruído de uma rodovia de um ano para o outro.
Assim, foi determinado o fechamento da via elevada para
automóveis entre 21hs30 e 6hs30, além de domingos e feriados
nacionais. Nesses horários, imóvel, o minhocão se transforma.
O próprio espaço dos carros por definição, esvaziado por suas
contradições, permite a emergência de um cenário onde a cidade
pode existir sem automóveis. O asfalto vira calçada, a ponte vira
passarela, e o funcionalismo da rodovia no coração da cidade
se transforma em um lugar aberto aos pedestres e ciclistas, que
reinventam o uso da rodovia das mais diversas formas. Nesse
horário surge a possibilidade de uma São Paulo invertida em
torno de si mesma, funções contrárias e complementares
entram em conflito na luta pelo espaço: o carro e o isolamento,
ou as pessoas e a convivência? A disposição linear, vencendo
uma série de cruzamentos viários, com uma perspectiva singular
da cidade, configura um espaço propício para a prática de
esportes e reuniões, além de atividades ilícitas como o uso de
drogas, já que o local não recebe qualquer tipo de policiamento.
Skate, corrida, patins, bicicleta, caminhada, futebol, comércio
ambulante, encontros, passeios, observação da paisagem,
intervenções urbanas, paqueras, reuniões, estão entre as
atividades que ocupam o elevado de maneira espontânea. Nos
domingos e feriados, único momento em que o Minhocão é
das pessoas e não dos carros no período diurno, o asfalto ganha
estatuto de praia. A disposição espacial linear, que favorece a
configuração de atividades paralelas, o comercio ambulante, a
diversidade de usos e de praticas, de classes sociais e idades, tudo
isso remete ao universo público da praia. É importante notar que
a presença do asfalto, símbolo contemporâneo do automóvel,
não se mostra inibidora para o pedestre, muito pelo contrário,
o piso se mostra adequado para as diversas funções que lhe são
solicitadas. Lembremos que na origem do uso do asfalto no
início do século XIX, a sua aplicação estava ligada ao calçamento
dos passeios públicos em Paris e Londres. O preço acessível, a
uniformidade, a fácil manutenção e impermeabilidade fizeram
do asfalto o material ideal para combater as ruas enlameadas do
séc. XIX. Só depois da difusão do automóvel no início do séc.
XX é que o asfalto se desligou dos pedestres para se consolidar
como calçamento padrão do leito carroçável da cidade moderna,
espaço do carro, que monopolizou cada vez mais o uso da rua.
Pensar essa situação ambígua em que o espaço se transforma
sem a necessidade de intervenções propriamente espaciais
define o campo temático do meu tfg, alimentado pelo já
ativo e informal parque minhocão, provavelmente o único de
São Paulo sem grades, com funcionamento noturno e sem
policiamento. A questão política que se abre aqui se sobrepõe
à prática urbana vigente, que enxerga mudança somente em
obras, e atrela a agenda da cidade ao orçamento. No trabalho
que se segue pretendemos explorar a inesgotabilidade do
lugar em contraposição não somente ao funcionalismo,
mas principalmente ao determinismo e estigmatização que
solidificam certos usos e atribuições dos espaços e das
coisas em detrimento de outros. Talvez a ideia central do
trabalho seja que, uma vez que a construção/demolição dos
espaços da cidade é resultado de uma cultura engessada, que
privilegia alguns aspectos mais do que outros, insistir em uma
mudança física dos espaços pode resultar num ciclo vicioso
que transfere a batalha para o campo das rochas. Pretende-
se, portanto, não considerar os espaços “culpáveis” por
serem palco de certos usos ou desusos, ao contrário, essa
pesquisa busca entender o espaço como um suporte aberto
ao embate. Nesse sentido, a sua construção depende daqueles
que estiverem dispostos a enfrentá-lo.
O que se segue são reflexões e imagens que buscam povoar a
nossa cidade com a possibilidade da descoberta. São espaços
desvelados, estranhos, sombrios, possíveis, reais, que a nossa
cidade e especialmente a região do minhocão deixam ver,
onde parece germinar um outro tipo de olhar sobre o urbano.
Não se trata de análise, proposta e conclusões, mas de pontos
de vistas e tomadas de medida, tentativas do homem obter
algum reconhecimento diante do espaço por ele produzido.
O resultado é uma narrativa que opera em três vozes
complementares, que se intercalam e se misturam formando
um discurso recortado e ambíguo que remete à experiência da
região do minhocão como lugar de contestação e embate, erro
e dúvida, desprezo e festa, vazio e convivência. A constituição
dessas vozes decorre do processo descontínuo através do qual o
trabalho se desenvolveu. A primeira voz, em cinza claro, se dá a
partir de algumas reflexões esparsas e citações que, de modo mais
sucinto, trazem inquietações e questionamentos que povoaram
e alimentaram o trabalho. A segunda voz forma raciocínios
mais longos, embasados pelo universo teórico de leituras que se
incorporou ao trabalho. A terceira voz se constitui por fotografias e
desenhos, que captam e propõem imagens reais e possíveis de um
urbano redescoberto no seu escuro. São resultado das sucessivas
visitas a campo e da reflexão. As vozes se comunicam mas não
se explicam, o seu destino é o campo aberto da interpretação e
da crítica, da tomada de medida. Apesar desse caderno apresentar
uma ordem de leitura decorrente do formato, optou-se por não
apresentar índice e numeração de páginas, convidando desse
modo a que não se obedeça necessariamente à linearidade como
o trabalho se apresenta aqui.
A Cidade não é uma estrutura física, apenas, a cidade são
as pessoas todas juntas vivendo na cidade; a semelhança do
sangue que corre no corpo do homem e o faz vivo.
O que pode ver da luz quem vive no claro? O que pode ver
da luz quem vive no escuro? Em qual Cidade estás vivendo?
Na que vive no claro e não vê a luz? No mundo branco onde
o branco no branco se dissolve, como água na água? Ou
viverás no escuro, sabereis da morte, vereis a luz?
E vós, qual medida tomaste? A medida institucional ou a
medida do claro e do escuro; a medida de segurança ou a
medida da vida e da morte; a medida da matéria ou a medida
do homem. O que haveis medido? Já viu o sertão? Sabeis da
medida de seu país e sabeis que ele vive em sua cidade?
Diz-se das colmeias de abelha, dos formigueiros, que são um
ser. Que formigas e abelhas não são seres. O ser é aquele
que vive por si só. Abelhas, formigas, não vivem por si só;
colmeias e formigueiros sim.
Se olhássemos para a Cidade como a ciência moderna olha
para as colmeias, de cima, pensaríamos que a cidade é um
ser, mas nós não. Diríamos que somos apenas formigas sem
destino nem livre arbítrio, que obedecem aos princípios do
ser maior do qual fazem parte, não um ser. Pensaríamos que
a cidade é uma colmeia, e então precisaríamos rever alguns
princípios da ciência: em qual cidade queremos viver, na
colmeia dos homens, onde as regras gerais prevalecem sobre
qualquer possibilidade de ser? Talvez devêssemos sim era
olhar com mais atenção para as abelhas, porque a maneira
como as vemos é também a maneira como nós somos. A
tomada de medida do mundo pelo homem é ela mesma a
medida do homem.
Dentro do contexto em que vejo a cidade, a sociedade e a
arquitetura por ela produzida sinto a necessidade de fugir
do campo disciplinar para discutir o binômio inseparável
Arquitetura e Urbanismo no âmbito daquilo que, antes de
mais nada, é humano.
Para tanto convém retomar um embate que se deu no séc.
XVIII a respeito do entendimento do que seja a luz. Goethe
defendia, em contraposição à teoria de Newton, um século
mais antiga, que a luz só poderia ser entendida enquanto
manifestação de um fenômeno no homem, sendo contrário
a qualquer separação entre realidade exterior e interior.
Todo passo em direção ao conhecimento, segundo Goethe,
se dá na relação de sujeito e objeto, no instante do sentir.
Assim sistematizou seus pensamentos no livro intitulado
Teoria das cores, de 1810, que remonta às origens da moderna
fenomenologia. Newton, por outro lado, procurava entender
a luz através de experiências que confrontavam a matéria
com ela mesma e, a partir dessa interação, externa ao
homem, determinou suas conclusões. No fundo, o embate
se dava no campo da maneira através da qual tomamos
medida; para o primeiro, a medida essencial era a medida
do homem em relação às coisas, somente através da qual
seria possível reconhecer-se no mundo, criar verdade; para o
segundo, a análise do universo deveria se afastar ao máximo
da particularidade inerente à observação do homem. Assim,
Newton optou pela experiência com a matéria; a partir
da observação, extraia medidas que se traduziam em uma
linguagem matemática, a qual considerava a mais neutra, já que
absolutamente abstrata. Esse embate determinou a maneira
através da qual o homem se relaciona com o conhecimento.
Newton saiu vencedor, e sua maneira de pensar, a ciência
exata da natureza, que a representa como um complexo de forças
passível de cálculo1 , evoluiu através do positivismo até a ciência
moderna, que ainda é a maneira mais aceita de se interpretar
o universo no mundo ocidental do qual fazemos parte. O
número.
1 HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica, tradução Marco Aurelio Werle. SCIENTLE studi, São Paulo, 2007
No entanto, os números, a estatística, que têm o ápice do seu
desenvolvimento no recente e poderoso aparelho de cálculo
denominado computador, devem ser tratados com cautela
no universo daquilo que é humano. Uma crescente soberania
das exatas em nossa prática cotidiana tem feito do homem
vítima de sua própria maneira de olhar o mundo. Podemos
traduzir essa soberania através de um tripé hegemônico
que domina as nossas relações materiais, morais e de troca,
convertendo-as em relações numéricas, codificadas, tabeláveis.
O primeiro pé, que determina nossa interação com o mundo
material, é dominado pela Engenharia, que aos poucos
ganha atribuições em todos os campos do saber associados
ao mundo físico; inclusive a biologia e a medicina já foram
englobadas no campo técnico da quantificação e modelagem
próprios a Mecânica, e passamos a tratar do corpo como
uma máquina com peças e funções, passíveis de substituição
e concerto. À Engenharia se contrapõe a informalidade. O
segundo pé, que determina nossas relações morais e éticas,
é intermediado pelo Direito, através da tecnificação de
dispositivos legais e institucionais, tabulados em um extenso
código de leis, que sequer um profissional da área é capaz de
conhecer por inteiro. Ao Direito se contrapõe a Ilegalidade.
O terceiro pé, aquele que determina nossas relações de
troca, é intermediado por uma quantidade numérica abstrata
chamada moeda, que se traduz no universo da globalização
através do mercado financeiro internacional, gerido pelas
ciências exatas da Economia e Administração. À economia
se contrapõe a marginalidade. Desse modo, o território de
discussão das humanidades e das artes não encontra mais
um caminho de atuação livre fora da informalidade, da
ilegalidade e da marginalidade. O território do humano
dentro da cidade-mundo contemporânea não tem lugar
desvinculado da Engenharia, do Direito e da Economia.
Esse universo numérico abstrato inventado por Newton
ganha espelho na nova realidade dentro da qual cada vez mais
somos inseridos, que é a realidade virtual, cujo acesso está
vinculado ao controle. Dentro do mundo virtual o indivíduo
é finalmente tratado como um número. Cada um tem a sua
identidade virtual através da qual pode ser rastreado, controlado,
e contabilizado. O suposto estatuto de território livre da internet
é desmoralizado pelo tratamento direcionado que cada usuário
recebe. Propagandas selecionadas, buscas filtradas, tudo se
encaminha para uma relação de conveniência pré-concebida
que cria uma sensação de liberdade e acesso irrestrito, quando
na verdade cada não-ser virtual está alimentando a cada instante
sua matriz codificada, que é recalculada em tempo real em busca
de padrões e classificações que acabam por tornar cada usuário
mais parecido consigo mesmo.
Sendo assim, a originária ciência exata da natureza acabou
evoluindo para a maneira através da qual o homem se relaciona
com a técnica, que é entendida como um meio para atingir
fins ou como um fazer do homem. Desse modo, nasce a aparência
enganadora de que a técnica moderna é uma ciência da natureza aplicada 2,
e a ilusão de que a nossa relação com a natureza se dá de maneira
causal. A determinação somente instrumental, antropológica, da técnica
2 Ibidem
torna-se, em princípio, ilusória: ela não se deixa simplesmente completar
com um esclarecimento metafísico ou religioso colocado em sua base. (...)
Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos
como algo neutro: pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente
se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos à essência da
técnica 3. A partir dessa visão, o homem se vê desimpedido de
relacionar-se com a natureza a partir do requerimento associado
à subsistência. A natureza passa a ser algo que pretendemos
dominar, e a técnica algo a se ter em mãos. A causalidade dada
como verdade absoluta em nossa civilização estabelece a nossa
relação com a natureza a partir da subsistência, da ameaça, e
coloca o homem como a figura do dominador da terra. Desse
modo, amplia-se a ilusão de que tudo o que vem ao encontro subsiste
somente na medida em que é algo feito pelo homem 4. Assim, a ciência da
natureza de Newton, a física, que representa o mundo material
em relação direta e exata consigo mesmo, acabou evoluindo,
a partir do momento em que a técnica humana se acreditou
inequívoca, para a ilusão de que o homem, em todos os lugares, somente
encontra mais a si mesmo. Entretanto, o homem de hoje, na verdade,
justamente não encontra mais a si mesmo, isto é, não encontra mais sua
essência (Heisenberg). O homem está tão decididamente preso à comitiva
do desafiar a armação, que não a assume como uma responsabilidade, não
mais dá conta de ser ele mesmo alguém solicitado e, assim também, não
3 Ibidem4 Ibidem
atende de modo algum ao fato de que a partir de sua essência ele ek-siste
(nota de rodapé) no âmbito de um apelo e que, por isso, nunca pode ir
somente ao encontro de si mesmo 5. Heiddeger nos lembra de que a
técnica, em sua origem grega (techné), está associada à noção
grega de arte e de ideia, logos, que se afastam definitivamente da
causalidade que a define hoje.
Aquilo que para Newton, na natureza, podia ser representado
de modo causal, acabou invadindo o campo do humano, e a
causalidade e determinismo infiltradas na vontade do homem
não podem gerar senão o conformismo e a imobilidade.
Como a arquitetura se insere em um universo em que o que
determina a vida ou a morte passa a ser uma ficha legal extensa,
uma tabela matricial mais ou menos arbitrária, um número de
conta e não mais a própria vida e a própria morte enquanto
dádivas do homem? A Arquitetura virou vítima de um homem
vítima de si mesmo.
A forma, no âmbito do humano, não é uma decisão nem um
resultado, mas uma relação. A construção, pedra sobre pedra,
abandona o universo do estabelecido e se desloca para o plano da
linguagem, do di-alogo. Construir já é então a abertura do espaço
5 Ibidem
para que algo possa ser construído; mas essa construção é cultural,
habita uma realidade metafísica, humana, que invade a cidade em
busca de si mesma. Essa relação é o homem tomando a medida de
si nas coisas e dando a elas a medida exata que lhes corresponde.
Então a própria matéria é absorvida como material humano,
deixando de ser vítima de necessidades e equações pré-
estabelecidas que se retro-alimentam.
Proponho então me aventurar justamente por esse caminho;
como quem de dentro de si, olha ao redor e mede; como quem
de dentro do universo da arquitetura, olha ao redor e mede.
A Arquitetura não é aquilo que precisa ser feito. O necessário
é apenas a subsitência, uma questão pragmática. Mas a
Arquitetura não é um mero fazer da subsistência do homem,
ela é o desejo de construção de um espaço onde o homem
possa viver. É a cidade. Ela não se dá como uma forma
necessária para responder a um problema pré-estabelecido,
contingente e portanto causal. Ela mesma é a criação de um
problema, de uma dimensão possível do existir humano, onde
o fim não é construção de um objeto específico, resultante,
mas a criação do espaço do viver do homem. A Arquitetura
da finalidade é a Arquitetura de contingência de interesses
e caprichos privados. Mas qualquer construção é públcia se
esta sobre essa terra.
O que precisa ser feito, o necessário, é uma ilusão, porque
é evidente que sempre há que se fazer algo, de outro modo
não estaríamos vivos, nem morrendo, então o desejo de se
fazer o que quer que seja como um fim, é um engano. Seria
razoável observar sempre o que queremos fazer, o que não
implica obrigatoriamente a construção material de coisas,
uma vez que o fazer e o seu fim são um projeto constante de
construção do ambiente do ser do homem.
Já são tantos os dispositivos. Uma tempestade. Será que no fundo isso não tem algo de antigo? Será que o bombardeio de novidades não esconde por trás de si algo de velho? Mas o velho sequer são os dispositivos, que se renovam constantemente para apagar a imobilidade real, que somos nós mesmos. Nesse sentido, talvez possamos pensar o funcionalismo como uma identidade contemporânea. O funcionalismo e suas disfunções são indiferentes a uma população que já é ela mesma totalmente funcional, educada.
Piensa en esto: cuando te regalan un reloj te regalan un pequeño infierno
florido, una cadena de rosas, un calabozo de aire. No te dan solamente
el reloj, que los cumplas muy felices y esperamos que te dure porque es
de buena marca, suizo con áncora de rubíes; no te regalan solamente
ese menudo picapedrero que te atarás a la muñeca y pasearás contigo.
Te regalan -no lo saben, lo terrible es que no lo saben-, te regalan un
nuevo pedazo frágil y precario de ti mismo, algo que es tuyo pero no
es tu cuerpo, que hay que atar a tu cuerpo con su correa como un
bracito desesperado colgándose de tu muñeca. Te regalan la necesidad
de darle cuerda todos los días, la obligación de darle cuerda para que
siga siendo un reloj; te regalan la obsesión de atender a la hora exacta
en las vitrinas de las joyerías, en el anuncio por la radio, en el servicio
telefónico. Te regalan el miedo de perderlo, de que te lo roben, de que se
te caiga al suelo y se rompa. Te regalan su marca, y la seguridad de que
es una marca mejor que las otras, te regalan la tendencia de comparar
tu reloj con los demás relojes. No te regalan un reloj, tú eres el regalado,
a ti te ofrecen para el cumpleaños del reloj.
(Julio Cortázar, Intrucciones para dar cuerda al Reloj)
Um conjunto de ideias importante para este trabalho foi
encontrado no ensaio “O que é um dispositivo?” de autoria do
filosofo italiano Giorgio Agambem. O termo é resgatado
de Michel Foucault, que o utilizou para tratar da ideia de
governabilidade na década de 1970. Segundo Agambem,
dispositivo pode ser entendido como um conjunto de práticas e mecanismos que têm o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato (...) dispositivo passa a ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes 1. Agambem faz
ainda uma genealogia do termo para encontrar sua origem
mais próxima na noção negativa de positividade de Hegel e
mais remotamente na ideia central para os primeiros séculos
do catolicismo de uma oikonomia (nomia = gestão; oikos = casa)
como maneira de garantir certo controle sobre a maneira de
viver dos fiéis. Ou seja, a noção de dispositivo tem origem
comum à economia, tão cara ao modo de vida capitalista que
cada vez mais se afirma entre nós.
Na sua origem, o uso de dispositivos remonta ao processo
de separação entre o ser humano e as coisas, o qual aos
poucos modelou o homem e o distinguiu dos animais.
Esse processo, segundo Agambem, ocorrre por meio de
1 AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios, tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos da Unochapecó, 2013.
uma subjetivação que conecta os dispositivos aos seres
viventes, dando sentido à relação que se estabelece entre
sujeito e objeto. No mundo contemporâneo, entretanto,
tanto a proliferação de dispositivos como suas características
alienantes estão levando o homem a um caminho contrário,
de des-subjetivação, de perda de reconhecimento. Os
dispositivos hodiernos (televisão, celular, computador,
internet, câmeras) criam apenas espectros de sujeitos. Aquele que se deixa capturar no dispositivo “telefone celular”, qualquer que seja a intensidade do desejo que o impulsionou, não adquire, por isso, uma nova subjetividade, mas somente um número pelo qual pode ser, eventualmente, controlado; o espectador que passa as suas noites diante da televisão recebe em troca da sua dessubjetivação apenas a máscara frustrante do zappeur ou a inclusão no cálculo de um índice de audiência (...) a categoria da subjetividade em nosso tempo vacila e perde consistência; mas se trata, para ser preciso, não de um cancelamento ou de uma superação, mas de uma disseminação que leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda a identidade pessoal 2. Esse processo de des-subjetivação que retira do
sujeito aquilo que lhe pertence intimamente pode ser
entrevisto na relação cada vez mais forte que se estabelece
entre memória e internet. De fato, é possível encontrar na
internet (ou naquilo que já denominamos como sendo o
espaço ou universo virtual), de maneira relativamente simples
2 Ibidem
e definitivamente imediata, grande parte do conhecimento
acumulado pelo homem. Jamais uma difusão tão massiva do
conhecimento foi operada. Mas ter conhecimento à mão não
significa de modo algum o pertencimento de algo subjetivo,
relativo ao sujeito do conhecimento, à consciência humana,
à interioridade espiritual que se apodera cognitivamente dos
objetos que lhe são externos. Cabe aqui lembrar a diferença
entre conhecimento, subjetivo, e informação, objetiva, e
atentar para o perigo de sobrepor essas ideias acreditando
que a disponibilidade de informação possa ser substituída
pelo conhecimento efetivo.
Uma maneira de ler a invasão dos dispositivos tecnológicos
de uso pessoal a que somos sujeitos hoje é entendê-la como
uma forma oportuna de entrar na vida das pessoas através
da ocupação de interstícios. Assim, torna-se cada vez mais
comum ver transeuntes manipulando celulares, aparelhos
sonoros portáteis e mini-computadores em momentos
de espera, de intervalo e de locomoção. Dessa forma, a
tecnologia encarnada sob a forma de uma infinidade de
dispositivos procura entrar cada vez mais em todos os
instantes da vida do homem moderno, moldando a sua
maneira de se relacionar com o mundo. O fato desses
dispositivos serem apresentados na forma de mercadorias e
a relação disso com o termo oikonomia poderia render mais
um capítulo, mas o foco da nossa crítica não está centrado na
economia capitalista, apesar dela influenciar poderosamente
todas as esferas do mundo contemporâneo.
Ocorre que estamos de tal modo acostumados aos espaços
controlados que os lugares desprovidos de dispositivos
são muitas vezes rejeitados, abandonados e considerados
perigosos. Concomitantemente o espaço que mais se
multiplica e também aquele onde mais se investe em controle
é o espaço virtual. Com a intensificação do uso e do controle
do mundo virtual a nossa própria noção de liberdade passa a
estar vinculada à noção de controle e de segurança, seja o nosso
controle sobre aquilo que manipulamos (o computador, no
caso), seja o controle que é exercido sobre o espaço e sobre
nós mesmos. A liberdade que se vende nas propagandas e
que nós compramos está atrelada a uma câmera que registra
o que acontece, a um muro que nos separa, a um piso que
nos impede de escorregar, um corrimão que nos impede de
cair, uma escada que nos ajuda a subir... Nos sentimos livres
a partir do momento em que a situação estiver devidamente
controlada, mediada, midiatizada. A necessidade de segurança
está totalmente enraizada em todos os âmbitos da existência
do morador da cidade, em especial de São Paulo, onde a
fronteira entre o público e o privado, o rico e o pobre, o
parque, a praça e a cidade é resolvida por meio de grades,
catracas, muros, fios elétricos, lanças, cacos de vidro, pistolas,
cassetes e brutamontes.
Mas como a ideia de dispositivo desenvolvida acima se conecta com os espaços da cidade? Ora, sem dúvidas, os espaços construídos pelo homem contêm inúmeros dispositivos que cerceiam e determinam o tipo de interação que devemos estabelecer com ele. Os dispositivos espaciais mais usados, que aos poucos se tornam banais, são aqueles que transformamos em lei. A lei é o dispositivo institucionalizado. Podemos entender que na nossa sociedade aquilo que é institucionalizado é também aquilo a que damos maior valor. É como se tivéssemos a necessidade de homologar qualquer tipo de “intervenção positiva”. Nesse sentido, institucionalizar é também livrar-se da questão resolvendo-a num plano burocrático. Então, os corrimões, escadas, rampas, acessos devem responder a normas estabelecidas. É notável que no caso dos dispositivos espaciais os seus requisitos estejam mais uma vez associados, em grande parte, à ideia de segurança. Não se pretende criticar as conquistas da acessibilidade universal ou da salubridade dos ambientes bem ventilados e iluminados (que são, aliás, talvez as menos cumpridas das normas arquitetônicas), mas somente atentar para a maneira como o espaço passa a ser cada vez mais vítima do controle, de pressupostos baseados em análises estatísticas, que reduzem a interação do ser com o espaço a uma questão numérica, que normalmente responde a um conjunto de funções pré-estabelecidas.
Mas podemos nos perguntar ainda em que medida a noção de dispositivo se relaciona com os espaços renegados e residuais
da cidade. Esse entendimento é o cerne do trabalho em questão e será entendido pouco a pouco. Comecemos pelo que nos diz o Houaiss a respeito da palavra dispositivo:
adjetivo1 relativo a disposição2 que prescreve; que ordena
substantivo masculino3 norma, preceito, artigo4 aparelho construído com determinado fim
Ex.: d. que fecha o portão 5 conjunto de ações planejadas e coordenadas, visando
a um fimEx.: d. de prevenção da criminalidade
6 Rubrica: informática.conjunto de componentes físicos ou lógicos que integram ou estão conectados a um computador, e que constituem um ente capaz de transferir, armazenar ou processar dados
7 Rubrica: termo jurídico.trecho que contém o que se decide numa lei, declaração ou sentença
8 Rubrica: termo jurídico.
ver sinonímia de mecanismo e regulamento
Interessante notar como o termo que designa aquilo que é construído com determinado fim se relaciona justamente com o léxico jurídico e da informática, discutidos anteriormente por serem tão caros aos modos de controle a que somos submetidos nos dias de hoje. Essa relação é corroborada pelos sinônimos apresentados: mecanismo e regulamento. Mas para fechar o nosso ciclo de entendimento em torno da palavra dispositivo e alinhavá-lo com os espaços residuais da cidade, faltaria ainda resgatar o sentido verbal do termo: dispor. É propriamente de um dispor-se que somos alijados a partir do momento em que um dispositivo já nos pré-dispõe a agir de determinadas maneiras. Nesse sentido o tipo de experiência que podemos ter em um espaço vazio, residual, escuro, exige de nós exatamente um “dispor-se a” que não estamos preparados para enfrentar. Esse despreparo e indisposição para determinados tipos de vivência retrata naquilo que negamos algumas das fragilidades e carências da maneira como experimentamos o espaço urbano, esperando sempre ter o máximo de controle e segurança a respeito do que virá.
Essa disposição do ser para com o espaço é algo identificável no uso que se dá ao minhocão durante a noite, domingos e feriados. O elevado, um dispositivo por excelência, unifuncional, totalmente programado para a circulação desimpedida de automóveis, pode se reconfigurar completamente enquanto espaço devido apenas a uma mudança de uso que depende também de um “dispor-se”
do usuário para enfrentar uma nova configuração que não estava prevista no desenho/desígnio daquele objeto. De fato as condições de acesso e de uso do elevado enquanto calçada, parque, ciclovia, quadra de futebol, praia, exigem disposição por parte do usuário. Mas talvez nessa disposição resida grande parte da graça de promover novos usos naquele espaço. O argumento recorrente de que essa ocupação se dá pela carência de parques e praças na região, não se permite enxergar a possibilidade e a emergência de um outro espaço público, de um outro parque e uma outra praça que não estavam sequer previstos. Podemos enxergar a carência como uma chave para a descoberta em lugar de procurar tapá-la com soluções conhecidas. Desse modo podemos saltar da falta, que se espelha no outro, para o olhar sobre si mesmo e a invenção de uma nova disposição, que desloca a carência para o universo da potência.
“ Eis a nossa casa.
Eu olhei para todos os lados, até onde meus olhos muito
abertos podiam vasculhar aquela solidão que se estendia na direção
do mar e na direção do rio, mas não vi nem um único sinal de casa
alguma.
Não muito longe dali, havia um barco negro, aparentemente
fora de uso, encalhado na margem, de onde saia, à guisa de chaminé,
um tubo de ferro que exalava uma fumaça de aspecto pacífico mas
efetivamente eu não via nada mais que pudesse assemelhar-se a uma
habitação.
É ali? Perguntei. Mas aquela coisa parecia um barco.
É ali mesmo, respondeu Ham.
Creio que, se me fossem apresentados naquele momento o
palácio de Aladim ou o Ovo de Roc, a perspectiva de neles permanecer
não me teria encantado mais.
Seu flanco era perfurado por uma porta. Dispunha de um teto
e de pequenas janelas mas o que lhe conferia um charme particular
é que se tratava de um autêntico barco, que havia certamente estado
sobre as águas centenas de vezes, e que jamais fora destinado a servir
de alojamento. Se aquilo tivesse sido feito para servir de alojamento, eu
o teria considerado pequeno demais ou incômodo ou isolado; mas uma
vez que não foi construído para esse efeito, converteu-se, de um momento
para o outro, em uma residência ideal.”
Dickens introduz-nos aqui na realidade movente das
adaptações secundárias. Não se trata mais de uma imagem de romance:
seu “edifício-navio” encalhado evoca a dinâmica do imóvel, a mobilidade
da significação dos lugares. O movimento não é mais necessário para
o destino do habitat de Ham: é seu fracasso/encalhamento o que lhe
confere um valor específico, é a navegação do sentido que ativa o presente
e suprime o desconforto de seu alojamento a garantia de qualidade do
habitat deriva do fato de que ele antes navegou, de que ele nunca serviu
de domicílio fixo.
Aquilo que na habitação convencional pareceria incômodo
desaparece, sutilizado pela transgressão do uso: o não habitual dissolve
o “acostumar-se às normas”, e revela-se habitável.
(Paul Virilio, O Crepúsculo dos Lugares)
É evidente que a proliferação de dispositivos está ligada ao
processo de “hominização” que separou os homens dos
animais. Portanto a sua presença não se trata de algo reversível,
patente de ser eliminado ou corrigido. Os dispositivos
operam uma cisão que separa o vivente de sí mesmo e de sua relação
imediata com o ambiente 3, produzindo um espaço aberto que é
a construção de um mundo separado. Mas esse mundo corre
o risco de se descolar do ambiente produzindo um humano
que se satisfaz com relações puramente virtuais. Agambem
associa essa separação à ideia religiosa do sacrifício, que
transfere algo do plano humano ao plano sagrado. E sugere
uma possibilidade de volta do plano divino ao plano humano
através da profanação, do rito. A profanação é o contradispositivo
que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado
ou dividido 4. Analogamente, a apropriação do minhocão
pelos usuários se contrapõe a uma cidade sacrificada pelo
automóvel, dono do espaço público; promove um rito de
profanação que dispõe a cidade sob outro ponto de vista,
habitável.
3 Ibidem4 Ibidem
“O que poderia significar viver a cidade de maneira não recomendável? A Arquitetura e o Urbanismo, em grande parte, são pensados a partir de um programa que delimita, direciona e recomenda ações. Como é um espaço sem recomendações? Uma Selva?”
Eis diante de nós a Cidade de São Paulo. Um dos maiores
aglomerados urbanos do planeta e a cidade mais rica do
Brasil. Um corpo intangível em sua totalidade constituído
por inúmeras cidades que se cruzam e se sobrepõe. Uma
verdadeira Cidade Invisível. Será possível brotar alguma noção
de pertencimento em meio a tal diversidade? G. Agambem
no seu livro intitulado A Comunidade que vem traz alguns
conceitos que podem nos ajudar a esclarecer parte da
questão. Agambem sugere a existência de uma identidade
não predicativa onde o que se dá não é algo que possa ser
interpretado de modo a estabelecer origens, atributos, classes,
pois estes estariam sempre reduzindo a força daquilo que é
somente na medida em que é tal qual. A noção de identidade
como um conjunto classificável de aspectos é diluída. Talvez
em uma chave de identidade parecida com a que nos sugere
Agambem seja possível pensar a respeito de cidades como
São Paulo.
Consideremos que a potencialidade de uma cidade resida
naquilo que ela ainda não é. Não ser, nesse sentido, é uma
possibilidade latente de vir a ser. Desse modo, os espaços
que ainda não são, os lugares para os quais a cidade volta
as suas costas, podem esconder e guardar em potencial
muito daquilo que a própria cidade ainda não é. E esse novo
ser não está atrelado necessariamente a novas reformas
e mudanças físicas. Agambem trabalha com o conceito
de revolução no sentido messiânico, na esteira do kairós
(tempo messiânico) de Walter Benjamin e do apóstolo Paulo.
Longe de determinações cronológico-causais, a revolução que
Agamben pretende pode ser entendida como a constante
interrupção da cronologia por um tempo outro em que as
coisas se mantém exatamente como elas são, apenas um
pouco fora do lugar1.
1 AGAMBEM, Giorgio. A comunidade que vem, tradução Cláudio Oli-veira. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
Então surge a pergunta: o que um espaço pode ter de inerente que faça com que ele seja ou não seja para a cidade? Um espaço é por si mesmo, fisicamente, dotado de qualidades e defeitos intrínsecos? Ou o nosso julgamento estará sempre contaminado por avaliações que transcendem as características propriamente espaciais do lugar em questão, atribuindo-lhe caracterizações que no fundo são nossas? Para responder a essa pergunta podemos remontar à origem da cidade como uma maneira de se proteger tanto das outras cidades como da própria natureza, da selva.
A cidade e a arquitetura sempre tiveram, em parte, a função de nos separar e proteger da natureza. O espaço da cidade é totalmente construído e transformado pelo homem. A cidade, nesse sentido, é o oposto da selva. A selva é o embate incontrolável com a vida e com a morte no sentido físico. A casa e a cidade, de algum modo, buscam nos privar da natureza e daquilo sobre o que não obtemos controle. Em última instância, a organização cidade é também uma maneira de afastar-se da morte e do embate com ela. Se a natureza se mostra impenetrável para o homem, a cidade, por outro lado, é uma estrutura que dificulta a entrada daquilo que é selvagem. O ato inicial da construção de uma cidade é o fechamento, o muro. Esse processo parece bastante razoável enquanto conduta de sobrevivência. Entretanto, é válido notar que o embate com a morte é o que há de mais intrínseco à própria condição de se estar vivo. E a
morte não é apenas a morte do corpo, mas principalmente a disposição para a morte, para a mudança. Morrer é também abandonar critérios estabelecidos. É se lançar ao novo sem saber em qual direção se está caminhando. E esse lançar-se em direção à morte é também um lançar-se à vida. Mas tanto as ideias de segurança quanto de controle que são cada vez mais disseminadas e espacializadas na cidade caminham num sentido contrário ao do embate. É verdade que ainda existem lugares escuros, vazios, lugares ermos, que nos provocam insegurança e medo, mas esses lugares são os mais evitados pelos cidadãos, recebem um julgamento negativo e têm a sua extinção como algo desejável. Os resíduos, os cantos, os escuros representam a parcela da selva que ainda resiste dentro das cidades, incontrolável. Se nos permitirmos caminhar pelo minhocão durante a noite, quando a via está fechada para os automóveis, nos deparamos com uma situação única dentro de São Paulo: os postes de luz apagados permitem uma visão praticamente extinta: o céu noturno, sempre ofuscado pelas luzes que vêm de cima e pelo próprio reflexo da luz da cidade na atmosfera. O céu é a experiência do grande. No céu noturno o homem tem a oportunidade de medir a sua pequenez. No embate com o insondável o homem vivencia profundamente sensações primordiais como o espanto, o medo, a solidão, a beleza e o encontro consigo mesmo. Muito daquilo que a arte é responsável por evocar pode ser encontrado no embate cru do homem com a selva no sentido do desconhecido.
No ensaio “...poeticamente o homem habita...” de Martin
Heidegger o autor pensa a relação entre habitar e poesia a
partir de um poema de Hölderlin:
“Deve um homem, no esforço mais sincero que é a vida,
levantar os olhos e dizer: assim
quero ser também? Sim. Enquanto perdurar junto ao coração
a amizade, pura, o homem pode medir-se
sem infelicidade com o divino. É deus desconhecido?
Ele aparece como o céu? Acredito mais que
Que seja assim. É a medida dos homens.
Cheio de méritos, mas poeticamente
o homem habita esta terra. Mais puro, porém,
do que a sombra da noite com as estrelas,
se assim posso dizer, é
o homem, esse que se chama imagem do divino.
Existe sobre a terra uma medida? Não há
Nenhuma.” 2
No poema e na análise que Heidegger fará dele há dois pontos
que nos interessam especialmente. Primeiro o entendimento
do habitar do homem como algo que absolutamente não se
limita à posse de um domicílio. Muito pelo contrário o habitar
2 HEIDEGGER, Martin. “Poeticamente o Homem Habita”. In: Ensaios e Conferências, tradução Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, Vozes, 2003.
aqui esta associado não à construção de edificações, mas à
construção de um sentido. O homem habita poeticamente
na medida em que é capaz de construir sentido. Segundo,
o levantar a vista para o céu enquanto tomada de medida,
não no sentido usual, numérico e quantitativo, medir consiste,
sobretudo, em se conquistar a medida com a qual se há de medir. Na
poesia, acontece com propriedade a tomada de uma medida. No sentido
rigoroso da palavra, poesia é uma tomada de medida, somente pela qual
o homem recebe a medida para a vastidão de sua essência. O homem se
essencializa como o mortal. Assim se chama porque pode morrer. Poder
morrer significa: ser capaz da morte como morte. Somente o homem
morre e, na verdade, continuamente, enquanto se demora sobre essa
terra, enquanto habita 3. O habitar acontece a partir de uma
construção de sentido, que se mede no céu, que se deixa
habitar, que é poesia, e que se dá através de um dispor-se à
morte.
Ao mirar o horizonte o homem enxergou um fim, a linha
de base, a linha horizontal que o conecta a todos e cria um
universo narrativo, prosódico. Ao mirar o céu, o homem não
viu fim, e os sentidos passaram a se sobrepor poeticamente.
Horizontal e Vertical, Prosa e Poesia, Finalidade e Abertura,
medidas humanas.
3 Ibidem
Mirante
“Quando dos homens a vida habitante avança ao longe,
Onde o tempo das vinhas brilha ao longe,
E onde há também campos vazios de verão,
A floresta aparece com sua imagem obscura.
Que a natureza faça brilhar a imagem dos tempos,
Que ela permaneça enquanto estes passam tão rápido,
Tudo é obra da plenitude, o alto do céu brilha assim
Para o homem como árvores coroadas de frutos”. 4
(Hölderlin)
O reconhecimento da potencialidade de espaços como o
minhocão pode nos levar a imaginar uma outra São Paulo
que se reedita, imóvel, que muda completamente ao mesmo
tempo em que se afirma. Que volta o olhar para aquilo
que guarda de escuro e nesse breu se revela. Nesse sentido
podemos imaginar uma identidade que se reconhece na
medida em que se constrói, e que se constrói na medida em
que volta a vista para si mesma e se surpreende com aquilo
que já é, mas que ainda não se dispôs a ser.
4 Ibidem
Ignasi Solà-Morales, em texto intitulado Terrain vague, discorre
sobre os espaços indefinidos e abandonados da cidade, onde
a racionalização da arquitetura ainda não atuou ou já se
dissolveu. Compara a sensação e negatividade desses lugares
à interioridade do homem moderno que, desamparado diante
das mudanças rápidas e incontroláveis de seu ambiente, se
amarra à angústia tentando encontrar alguma resposta para
seu estranhamento com o mundo, com a cidade e consigo
mesmo.
Concluir é também reintroduzir, ainda mais em um trabalho
como esse, de caráter aberto. Do começo ao fim dessa
investigação o que se sobressai é a busca por uma medida que
relacione o homem com o espaço por ele produzido. Uma
medida que se dá muito mais pela abertura à possibilidade
desse encontro do que na busca imediata de soluções e na
formulação de propostas. Os fragmentos propositivos que
aparecem nos desenhos sinalizam para essa possibilidade.
No Livro Espaço Crítico Paul Virilio atenta para a perda da
dimensão física na cidade contemporânea, em contraposição
à ascensão da velocidade como padrão de medida. Com
o aumento da velocidade o que se percebe é a perda da
dimensão espacial. A instantaneidade dos sistemas de
comunicação e o aumento na velocidade dos transportes
acabou suplantando a medida do corpo com relação à
cidade. A porta, interface primeira da casa com a cidade, se
desdobrou em janelas contemplativas, em automóveis como
extensões mecânicas da casa e finalmente em paisagens
mundo fixadas no plano da tela de dispositivos eletrônicos
que reduziram ao instante qualquer distanciamento no
espaço. A morfologia e as dimensões da cidade moderna
decorrem muito mais da sobreposição de diferentes
velocidades e fluxos do que do sentido de medida espacial.
Intervenções urbanas desproporcionadas como o minhocão
decorrem dessa lógica que privilegia o vetor velocidade em
detrimento da dimensão humana do espaço. Ainda assim,
parece haver alguma disponibilidade e interesse por parte
da população em se apropriar desses espaços e restituí-los
a uma escala habitável para o homem. De algum modo essa
interface da separação parece sinalizar para a possibilidade
do encontro. Um encontro que se dá justamente no embate
que resgata para o plano subjetivo um artefato absolutamente
funcionalizado. A macro escala da velocidade do automóvel,
quando apropriada por pessoas, parece inverter a supremacia
da aceleração. Num espaço desproporcionado pela função
rapidez parece emergir a possibilidade de um aspecto de
desaceleração. As alças de acesso ao minhocão, quando
percorridas por pessoas, introduzem uma temporalidade
que se descola da velocidade preponderante na cidade. A
desmedida do espaço público do carro desperta o debate
em torno do urbano enquanto público, do público enquanto
embate, e do embate enquanto confronto direto do corpo
com a cidade, medindo o espaço e desse modo restituindo a
sua dimensão para a escala do homem.
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