a inscriÇÃo da memÓria em vÍdeo
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8/14/2019 A INSCRIO DA MEMRIA EM VDEO
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INTERCOM Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXVI Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao BH/MG 2 a 6 Set 2003
1 Trabalho apresentado no Ncleo de Comunicao Audiovisual, XXVI Congresso Anual em Cincia daComunicao, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.
A INSCRIO DA MEMRIA EM VDEO
Leandro Garcia Vieira
UNICAMP - FAPESP
Mestrando em Multimeios e bolsista da FAPESP,
no Instituto de Artes - Universidade Estadual de Campinas.
Orientador: Ferno Pessoa Ramos.
website: http://videoarte.cjb.net.
Auto-imagem em vdeo
Em 1983, ao fazer um balano da produo artstica desenvolvida em processos
intermediais no decorrer das ltimas dcadas, Walter Zanini considera o seguinte: "Pode-se
dizer que os artistas do vdeo no Brasil motivaram-se sobretudo pelo desenvolvimento de
diferentes aes de natureza crtica diante da cmera".1 A citao nos parece interessante, pois
assinala que um olhar sobre a trajetria do vdeo experimental permite notar, entre a
diversidade de propostas, uma tendncia que se destaca. Esta vertente, como antev Zanini
ao referir-se a uma srie de experimentaes realizadas com a imagem eletrnica nos anos 70,
principalmente no eixo Rio de Janeiro/So Paulo caracteriza-se por um deslocamento da
tradicional posio do autor (de trs para a frente da cmera).2 Consideremos que essas
"diferentes aes de natureza crtica" trazem uma marca em comum, no caso, a presena
performtica do prprio autor, personagem corporificado no campo da imagem. Percebe-se,
nestes trabalhos, um movimento auto-referencial que ter continuidade na histria do vdeoexperimental brasileiro: a cmera tem sido utilizada de l para c, cada vez mais como
uma tecnologia da memria, embutida, muitas vezes, de uma estratgia confessionalque pe
em funcionamento a lembrana pessoal do realizador e aciona uma inscrio autobiogrfica
atravs do manuseio que este faz das imagens de si. A roupagem da estratgia confessional
1
Walter ZANINI. "Processos intermediais". In: Histria Geral da Arte no Brasil. p. 788.
http://videoarte.cjb.net/http://videoarte.cjb.net/http://videoarte.cjb.net/ -
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1 Trabalho apresentado no Ncleo de Comunicao Audiovisual, XXVI Congresso Anual em Cincia daComunicao, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.
costuma eleger, portanto, o primeiro plano e a primeira pessoa como elementos de
enunciao. Esta disposio frente a cmera, olho no olho com a objetiva, como bem
sabemos, caracterstica da sintaxe televisual, e pode instaurar, na proximidade do momento
de fruio, uma relao reflexiva com a prpria representao.
Um termo tem aparecido esporadicamente nos escritos sobre arte e imagem em
movimento como proposta para designar esse comportamento: auto-imagem. Flexionando a
acepo tradicionalmente psicanaltica do termo para um sentido semitico, ele ser
empregado aqui para referir toda representao que gerada pelo prprio representado. Ainda
assim, a auto-imagem no est sozinha. Outros termos submergem (auto-referencialidade,
reflexividade, autobiografia, prticas confessionais) e parecem inserir as discusses em umquadro maior: o de uma cultura e poltica preocupada com aquilo que Andreas Huyssen
chamou de "passados presentes".3 Dentro desta lgica, a imagem desempenha um papel
primordial, seno inextricvel, pois atravs dela que se instaura um confronto. ela que
joga o sujeito para o ato de rememorar. Sobre esta questo, Marita Sturken, em "The politcs
of video memory: electronic erasures and inscriptions", observou que a cmera, desde sua
inveno, tem figurado no desejo de lembrar, chamar de volta o passado, ou, para usar um
velho axioma, tornar o ausente presente. A imagem maqunica, em suas diversas ordens(fotogrfica, cinematogrfica, eletrnica ou numrica), tem, de fato, fomentado a construo
de histrias pessoais: eventos que no foram esquecidos porque imagens foram preservadas;
memrias que trabalham em tenso com as memrias da cmera.4
Desde seu surgimento no Brasil, no incio dos anos 70, o vdeo tem sido utilizado por
cineastas, artistas plsticos e documentaristas como uma importante tecnologia da memria.
Ainda que o vdeo muitas vezes seja tomado como um paradigma da imediaticidade, no qual a
"mimesis do tempo real"
5
figura como um aspecto central da imagem videogrfica,esquematicamente apontaramos, j na produo pioneira, esse desejo de lembrar: mesmo que
2 A possibilidade de visualizao e gravao simultnea da imagem/som, que o dispositivo eletrnico potencialmente
propicia, nos faz considerar que essa idia de deslocamento da posio do autor, e este discernimento entre estar na frente eatrs da cmera, tenha no vdeo um outro peso, bem diferente daquele do cinema.3Cf. Andreas HUYSSEN,Passados presentes: mdia, poltica e amnsia, in: "Seduzidos pela Memria". pp. 9-40.4 Sobre a questo da memria em vdeo, ver o ensaio de Marita STURKEN, "The politics of video memory: electronicerasures and inscriptions". In: Michael RENOV e Erika SUDERBURG (Eds). Resolutions: contemporary video practices.
pp. 1-12.5
Philippe DUBOIS. A linha geral (as mquinas de imagens), in: Cadernos de Antropologia e Imagem n 9, p. 76.
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a inscrio seja de uma memria do presente; no caso, uma espcie de trauma da conjuntura
ditatorial dos anos de chumbo, ou da "situao", como indica o prprio vdeo homnimo de
Geraldo Anhaia Mello, realizado em 1978. Conforme depoimento do autor:
"Eu fiz essa fita tomando dois litros de pinga. Eu falava sempre o mesmo discurso: a situaopoltica, econmica, cultural, brasileira. Que era s o que se falava na poca! Todo mundo sesentavanas mesas para falar mal do governo, ou para falar da situao, para se lamentar emgeral."6
Fig. 1 - Frames do vdeo "A Situao" (1978), de Geraldo Anhaia Mello.
As imagens eletrnicas tm um relacionamento em constante mudana com a histria.
Ao mesmo tempo em que tomada como um paradigma da imediaticidade, a imagem
videogrfica muitas vezes no concebida em termos de preservao. E os videoteipes
deterioram-se rapidamente, a fita magntica sensvel: os acervos bem sabem o quanto j se
perdeu definitivamente da produo pioneira do vdeo brasileiro, enquanto outra boa parte se
encontra bastante deteriorada e irrecupervel. Para Sturken, at neste duplo papel, de reteno
e perda da imagem, o vdeo tem crescentemente tornado-se um meio em que questes da
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memria coletiva e individual vm sendo examinadas. As polticas da identidade, os artifcios
da memria pessoal, e o relacionamento da imagem-cmera com a memria nacional e
cultural tornaram-se tpicos explorados pelos artistas do vdeo.
Apesar desta problemtica relao com a preservao, a televiso/vdeo tem inevitavelmente
tornado-se um meio onde memria e histria so recordadas, a despeito de uma descrena
nestas mesmas potencialidades por parte de certos autores. Fredrick Jameson, em
"Surrealismo sem inconsciente, observou que a memria parece no desempenhar nenhum
papel na televiso, seja ela comercial ou no (...): nada aqui nos assombra a mente e nos faz
conservar imagens como nos grandes momentos do cinema. Jameson lamenta o
enfraquecimento da histria, tanto em nosso relacionamento com a Histria pblica e nasnovas formataes de nossa temporalidade particular.7 Todavia observa-se cada vez mais
uma inscrio memorialista atravs dos meios eletrnicos, de modo que, apesar de sua relao
paradoxal com a preservao, o vdeo e a televiso so locais da histria, onde memrias,
tanto individuais quanto coletivas, so produzidas e reivindicadas.
Cmera da memria
A cmera vem fomentando, ento, por diversas vias, a criao de histrias pessoais.
Desde seu surgimento, ela tem figurado no desejo de lembrar: recordaes geradas porque
imagens foram preservadas; situaes recriadas pela presena e persistncia de uma
representao de si mesmo. Esta reconstruo da memria e da identidade mediatizada pela
auto-imagem maqunica parece estar entre os tpicos explorados pelos artistas
contemporneos. o caso de trs trabalhos em particular: "Fotogrfica Memria" (2000), de
Clarissa Borges;
8
"Espelho Mnmico" (1998-2002) e "As Leis da Variao" (1996), de FbioCarvalho.9
6
Entrevista de Geraldo Anhaia Mello a Leandro Garcia Vieira (So Paulo, 29/11/2001).7Cf. Fredrick JAMESON. Surrealismo sem inconsciente, in:Ps-Modernismo: A Lgica Cultural do Capitalismo Tardio.
p. 94. Citado tambm em STURKEN, op. cit. Cf. ainda essa passagem de Raymond BELLOUR: Ignoremos esses jogosperversos do direto e da vida que fazem do vdeo um dos instrumentos mais fidedignos do nosso sentimento de dissoluo dahistria. O vdeo utopia, in:Entre-imagens. p. 62.8Clarissa Borges nasceu em 1976, em Tallahassee, estado da Florida, EUA. Vive e trabalha em Braslia, onde concluiu seuMestrado em Arte.9Fbio Carvalho nasceu em 1965, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha. Para conhecer mais sua produo, visite o website
do artista: http://www.fabiocarvalho.com.
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Como pode ser observado, os dois primeiros trabalhos referenciam diretamente, j em
seus ttulos, essa problematizao da lembrana pessoal atravs da imagem. Tanto
"Fotogrfica Memria" quanto "Espelho Mnmico" integraram a exposio Deslocamentos
do Eu: O Auto-Retrato Digital e Pr-Digital na Arte Brasileira (1976-2001) , com curadoria
de Tadeu Chiarelli e curadoria adjunta de Ricardo Resende. Essa mostra reuniu no Ita
Cultural, em Campinas (mais tarde, a exposio seguiu para o Pao das Artes, em So Paulo),
cerca de 50 auto-retratos produzidos por 21 artistas. Conforme Tadeu Chiarelli: "Essas obras
tm em comum o fato de, na maioria dos casos, os autores se utilizarem de registros
(fotogrficos ou flmicos) dos prprios corpos, realizados por terceiros, para produzirem seus
auto-retratos".10
Assim, pode se dizer que estes trabalhos situam-se numa posio limtrofe da auto-
representao, e evidenciam uma estratgia bastante recorrente na produo artstica e
audiovisual contempornea: partindo de referenciais biogrficos, de registros familiares, eles
pem em operao um gesto da apropriao do arquivo ntimo, no qual "os autores buscam
nas fotos que lhe foram feitas no decorrer de suas vidas a base para seus auto-retratos de
adultos".11 A fotografia trucada (e que desemboca, aps o processamento digital, no monitor
de vdeo), surge ento como um modo de deslocar a identidade estvel das coisas, propiciando, nesta atualizao do acervo imagtico pessoal, uma recriao memorial que
tornada pblica ao ser veiculada nos circuitos de difuso. A produo de Clarissa Borges e
Fbio Carvalho possui uma dimenso intermiditica, como as foto-autobiografias que
Philippe Dubois observa ao deter-se sobre a emergncia da fotografia no cinema de vanguarda
(Raymond Depardon, Agns Varda, Robert Frank, Chris Marker e Hollis Frampton), esse
cinema do Eu, enunciado em primeira pessoa, que passa sempre pela encenao da
fotografia. Um Eu autobiogrfico que existe por meio da mediao da imagem-foto. Por que
10Cf. Tadeu CHIARELLI, "O auto-retrato na (da) Arte Contempornea", in:Deslocamentos do Eu: O Auto-retrato Digital ePr-Digital na Arte Brasileira (1976-2001). Catlogo da exposio realizada, de 17 de agosto a 5 de outubro de 2001, no ItaCultural Campinas. Alm de Clarissa Borges e Fbio Carvalho, outros artistas apresentaram auto-retratos atravs da imagemem movimento: Simone Michelin, Ely Sudbrack (vdeos) e Marcelo Nitsche (Super 8).11
Ibid. Op. cit.
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a foto representa um objeto transicional privilegiado da inscrio autobiogrfica no cinema?
a questo que Dubois nos coloca.12
Contudo, os vdeos aqui comentados no so propriamente narrativos, no no sentido
de propor uma diegese linear e retrospectiva sobre a vida dos sujeitos auto-representados. Ao
referir-se sua produo, Fbio Carvalho comenta que seus vdeos:
"So todos pensados para serem exibidos em loop, o que acentua ainda mais a ausncia deuma narrativa linear. Eles podem ser assistidos a partir de qualquer ponto, quantas vezes a pessoa desejar, ou mesmo, nem necessrio assisti-los por inteiro. O tempo de durao determinado por quem o v, e no tanto pelo autor. (...) So sries de imagens ou sries decurtas seqncias gravadas, apresentadas em sucesso, sem constituir uma nica e fechada
ordem ou narrativa".13
O carter minimalista, circular e reiterativo destas produes nos remete estilstica
formal do vdeo pioneiro, aproximando-se mais do formato do auto-retrato do que da
autobiografia propriamente dita. Sobre esta distino, Bellour lembra que:
"Contrariamente autobiografia, que narra uma vida, o auto-retrato narra apenas um Eu; o fato que ele no depende propriamente dos eventos, e sua progresso se identifica apenas com
seu movimento em torno da questo interminavelmente retomada: 'Quem sou eu?' (...) Noauto-retrato, tudo isso reflui em direo a quem escreve para se conhecermelhor, descobrindo,porm, no ato de escrever, apenas uma prova fugidia de sua identidade".14
Nos enquadramentos, por sua vez, percebe-se a vigncia de uma certa tradio do
retrato: a fotografia da criana de bruos (em "Fotogrfica Memria"); ou o primeiro plano de
identificao pessoal, o 3 por 4 (no caso de "Espelho Mnmico" e "As Leis da Variao").
12Cf. Philippe DUBOIS, "A foto-autobiografia: a fotografia como imagem-memria no cinema documental moderno", in:Revista Imagens n4. p. 66.
13 Depoimento cedido pelo autor atravs de e-mail, em 2002. Ver ainda a entrevista, "Fbio Carvalho: Os Mistrios daOrigem", publicada no Magazine Philips Art Expression. Disponvel na internet em: http://www.artephilips.com/a_entrevista08.asp.14Raymond BELLOUR, "A forma em que passa o meu olhar", in: Entre-imagens: Foto, cinema, vdeo. p.288. Sobre asdistines entre auto-retrato e autobiografia, ver tambm outro ensaio de Bellour, "Auto-retratos". pp. 312-385.
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Produes Auto-referenciais
O contato espectatorial com a prpria imagem, feita pelo outro, pode trazer, no
mnimo, lembranas. Mas pode iluminar ainda uma outra face complementar, a do
esquecimento. o caso de "Fotogrfica Memria": trata-se de uma animao digital realizada
a partir de fotografias de infncia de Clarissa Borges. Neste audiovisual, um crculo com a
imagem ("bolinha de imagem") percorre a tela negra, remetendo, entre outras coisas, ao foco
de um olhar voyeur, isto , ao dispositivo de ampliao ptico - configurao esta que se
encontra presente tanto nos filmes de escopofilia, das primeiras dcadas do sculo XX
(microscpio, telescpio), quanto nas atuais imagens clnicas (endoscopias, artroscopias,etc.).15 Esta espcie de janela circular passeia por pequenas dobras e volumes, que, aos
poucos, se revelam como fragmentos do corpo fotogrfico da artista infante. Ao comentar o
processo de construo deste trabalho, e a rememorao da advinda, a autora observa que:
"A lembrana pessoal surgiu s no vdeo "Fotogrfica Memria", a lembrana das fotografiasno da poca. A proposta era trabalhar com uma poca que eu no me lembro visualmente. Anica coisa que eu lembro da poca era daquela msica que tem no fundo, "The small world",
da Disney. Quando eu era criana eu ouvia essa msica e me lembrava desse momento at unstrs anos, que eu no tinha imagem mesmo".16
A produo que Clarissa Borges vem apresentando, no circuito de artes plsticas,
caracteriza-se pela utilizao de sua prpria imagem. A artista lida com a auto-representao
de seu corpo, sintonizando-se com uma certa tendncia da produo artstica/audiovisual.
Ainda assim:
"Eu no digo muito que (o trabalho) na linha auto-referencial porque a partir do momentoque eu estou trabalhando com o corpo, o meu corpo mas voc s pode dizer que meu porcaractersticas mnimas, uma pinta ou outra coisa. O vdeo "Fotogrfica Memria" euconsidero um auto-retrato, que foi uma coisa da histria da minha vida mesmo, mas os outrostrabalhos eu no considero na linha do auto-retrato. So mais fotografias de corpo mesmo, queeu prefiro fazer com o meu porque mais fcil de manipular, eu sei qual a posio que euquero e eu me dou bem com essa maneira de trabalhar".
15"A mscara circular, nos primeiros anos do cinema, ser efetivamente 'lida' como indicativa de tomada ampliada e seu usoser rapidamente disseminado na apresentao de primeiros planos". Cf. Arlindo MACHADO, "O filme de voyeurismo", in:Pr-cinemas & Ps-cinemas. p. 127. 16Depoimento cedido pela autora atravs de video-tape, em 2002.
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Fig. 2 - Frames do vdeo "Fotogrfica Memria" (2000), de Clarissa Borges.
O auto-retrato deixa ento de cumprir sua funo tradicional, de marca identitria
individual, para abrir-se referenciao coletiva. Processo que se d atravs do trnsito
transversal entre diversos meios. Ao comentar essa passagem, da fotografia para o vdeo, a
artista observa que:
"Na verdade, eu no cheguei a trabalhar com vdeo, com edio em vdeo, o FotogrficaMemria uma edio de fotografias animadas. Ento, esse envolvimento surgiu a partir dafotografia. Vejo que foi uma sada. Animar fotografias seria uma sada para a proposta que eu
tinha, que era trabalhar imagens de uma poca em que eu no tinha lembranas, de uma pocaque eu s tinha registros fotogrficos. A minha memria foi construda a partir desses registrosfotogrficos. Era uma coisa que eu j estava querendo fazer, eu j trabalhava com fotografiado corpo humano, e quando fui passar para construir um trabalho a partir desse momento emque eu no tenho memria, eu procurei fotografias de at uns trs anos de idade e comecei afazer essa animao. A passagem foi mais ou menos por a, uma vontade de ter uma coisa emmovimento a partir de fotografias para explicar um pouco a construo da memria".
A preocupao com a construo da memria est presente tambm em "Espelho
Mnmico", uma sobreposio de quatro retratos de Fbio Carvalho - aos 3, 20, 28 e 33 anos.
Este trabalho surge como fotografia em 1998 e depois, em 2002, desdobra-se para a imagemem movimento (procedimento, alis, caracterstico dos artistas contemporneos: passeio entre
diversas mdias, principalmente nesta interface entre fotografia e vdeo), evidenciando a
hibridez que faz parte da "natureza" do vdeo. Conforme Fbio Carvalho:
"O vdeo me serviu durante alguns anos como um suporte a mais para meus trabalhos,especialmente quando estava lidando com imagens trabalhadas no computador, sobre questesde identidade. A maioria dos vdeos que produzi entre 1995 e 1997 sequer teve uma "cmera"na sua origem; "As leis da variao", de 1996, um destes. Bem, at houve uma cmera,
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vrias na verdade, mas cmeras fotogrficas, para a obteno das imagens originais usadaspara criar as variaes fenotpicas. Para ser totalmente exato, cheguei a usar uma cmera devdeo, mas para obter stills de algumas das imagens de pessoas usadas no trabalho".
Esta passagem por imagens advindas de diversos meios no linear. Para Fbio
Carvalho h trabalhos:
Em que no sei mais (nem me preocupo muito com isso) do que o que, de onde (mdia) veioo que.... Tem vezes em que uma imagem de vdeo foi digitalizada, trabalhada no computador,e depois tem uma sada em cpia fotogrfica.... Que diabos isso? No importa! Da mesmaforma que vrios outros artistas, e no necessariamente apenas os artistas atuais, praticolinguagens e formas hbridas.
Fig. 2 - Frames do vdeo "As Leis da Variao" (1996) - Fuso fenotpica digital defotografias do rosto de diversas pessoas com um retrato de Fbio Carvalho.
Em "As Leis da Variao", a referncia s mudanas de paradigma do corpo atravsdas atuais polticas biotecnolgicas (vide o Projeto Genoma), inscrevem esse trabalho para um
campo de preocupaes concernentes com a vida, a morte e a reprodutibilidade. Se em
"Espelho Mnmico" persiste ainda uma unidade auto-referencial (na juno dos quatro
retratos de Fbio Carvalho), o vdeo "As Leis da Variao", por sua vez, incluir outros
sujeitos nesta trama. Aqui, o autor funde sua auto-imagem com fotografias de diversas
pessoas (a partir da "fuso fenotpica digital ", como ele mesmo diz), gerando assim retratos
fidedignos de sujeitos inexistentes, mas que carregam um trao de similaridade com as feies
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do artista. Estas auto-imagens hbridas so intercaladas com trechos de "As Origens das
Espcies", de Charles Darwin, denotando a influncia que a formao em biologia apresenta
na produo do autor. Fbio Carvalho alia as estratgias auto-referenciais a uma preocupao
com os mistrios da origem.
As estratgias de enunciao auto-reflexivas criam condies para a insero do
sujeito enunciador no interior do prprio texto, onde a figura-autor comparece como agente e
personagem principal de tramas que ainda que endossadas pela referncia prpria vida, e,
por conseguinte, uma idia de verdade no escondem suas dvidas com as tnues bordas
da fico. Historicamente, este movimento moderno manifesta-se atravs do campo
autobiogrfico, o qual tem persistido e se modificado atravs do tempo e das conseqentesmudanas de suporte para a sua escritura. Rompendo com alguns aspectos de sua tradio, a
autobiografia perpassa os diversos meios imagticos. Transterritorial, ela reatualiza sua
configurao na interface com outros meios. Retomando Dubois:
A autobiografia implica um olhar auto-reflexivo, isto , permite de uma certa maneira, umautoquestionamento do dispositivo: centrado sobre si mesmo, o sujeito no tem outraexterioridade a no ser a de encenar-se, conseqentemente de tornar presentes suas prprias
condies de existncia enquanto imagem (...). A questo da autobiografia coloca aproblemtica das imagens na ordem explcita da subjetividade, na ordem da vida psquica edos processos de memria.17
A memria pessoal, isto , a que diz respeito aos atos de recordao que tomam como
objeto a histria de vida de cada um, mais do que um tpico explorado pelas produes aqui
comentadas. O papel do vdeo como uma tecnologia da memria sempre presente:
lembrando, esquecendo e contendo memrias. Recordar duplicar-se, e so estas
manifestaes mnmicas, operadas atravs da imagem maqunica, que configuram uma
potica da subjetividade contempornea.
17 Philippe DUBOIS. "A foto-autobiografia: a fotografia como imagem-memria no cinema documental moderno", in:
Revista Imagens n4. p. 66.
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Eu: O Auto-retrato Digital e Pr-Digital na Arte Brasileira (1976-2001). Catlogo da
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LEITE, Miriam Moreira. Retratos de famlia: leitura da fotografia histrica. So Paulo:
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MACHADO, Arlindo. "O filme de voyeurismo", in: Pr-cinemas & Ps-cinemas.
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