a palavra como alicerce da nação 21.02.12 - creative commons
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS
A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO
A afirmação e valorização da língua na
construção discursiva da identidade eslovena
Silvia Valencich Frota
MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO
2012
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
ÁREA DE LITERATURAS, ARTES E CULTURAS
A PALAVRA COMO ALICERCE DA NAÇÃO
A afirmação e valorização da língua na
construção discursiva da identidade eslovena
Silvia Valencich Frota
Tese orientada pelo Prof. Doutor Carlos A. M. Gouveia
MESTRADO EM CULTURA E COMUNICAÇÃO
2012
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A Palavra como Alicerce da Nação
A afirmação da língua na construção discursiva da identidade eslovena
© Silvia Valencich Frota, Faculdade de Letras de Lisboa, Universidade de Lisboa, 2012
A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa têm licença não
exclusiva para arquivar e tornar acessível, nomeadamente através do seu repositório
institucional, esta dissertação/tese, no todo ou em parte, em suporte digital, para acesso
mundial. A Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Universidade de Lisboa estão
autorizadas a arquivar e, sem alterar o conteúdo, converter a tese ou dissertação entregue, para
qualquer formato de ficheiro, meio ou suporte, nomeadamente através da sua digitalização,
para efeitos de preservação e acesso.
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A Jože, Josip, Giuseppe e José
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Acredito que uma tese de mestrado seja o primeiro passo para o ingresso em um novo
universo, repleto de oportunidades, mas também de indefinições. Nesse processo, o papel do
orientador é fundamental. Agradeço ao meu orientador por seu interesse e sua disponibilidade,
pelas leituras e revisões sucessivas e cuidadosas deste trabalho, pelo aprendizado. Admiro sua
habilidade em conciliar a tarefa da orientação com o estímulo intelectual e a liberdade
necessários à realização de um trabalho como este, respeitando sempre as diferenças de
percepção e as minhas capacidades e limitações.
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Resumo
Este trabalho propõe uma reflexão sobre o papel da língua e da literatura na construção
discursiva das identidades nacionais a partir do estudo de caso da Eslovênia. Com esse objetivo,
é analisado um texto da autoria de Mitja Čander e Aleš Šteger, que serve de introdução ao livro
Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, editado por Tom
Priestly. Trata-se de uma antologia de contos eslovenos, publicada em inglês, em 2008, que
reúne textos escritos entre 1990 e 2005.
O ponto de partida consiste numa breve discussão a respeito das novas perspectivas
adotadas pelas atuais teorias sobre os nacionalismos, especialmente a partir do final da segunda
metade do século XX. Adota-se a perspectiva da construção discursiva das identidades, entre
elas, a identidade nacional. A opção metodológica incide sobre as possibilidades e ferramentas
oferecidas pela análise do discurso, especialmente pela Linguística Sistêmico-Funcional.
O discurso identitário esloveno, que se depreende da análise do texto, caracateriza-se
por uma forte associação entre a criação e preservação de uma identidade nacional e a
afirmação e valorização da língua e da literatura eslovenas. Exemplo disso é a exaltação da
figura do poeta romântico France Prešeren (1800-1849), apontado como um dos grandes
artífices da língua e defensor da ideia nacional. O Dia da Cultura, também chamado de Dia de
Prešeren, é considerado feriado nacional e comemorado no aniversário da morte do poeta, no
dia 8 de fevereiro.
O recurso à língua comum como elemento fundante de uma pretensa identidade
nacional não é novo, nem exclusivo da Eslovênia. Ainda assim, ele assume novos significados
em face do cenário atual, em que a conquista de visibilidade internacional e a efetiva integração
da Eslovênia na União Européia ganham prioridade na agenda do país.
Palavras-Chave: Análise do Discurso, Eslovênia, Identidade Nacional, Língua,
Literatura
x
xi
Abstract
In this paper, we propose an analysis about the role of language and literature in the
discoursive construction of national identities based on Slovenia’s study case. To reach this
target, we analyse a text signed by Mitja Čander and Aleš Šteger introducing the book intitled
Angels Beneath the Surface: a Selection of Contemporary Slovene Fiction, edited by Tom
Priestly. It’s a collection of Slovene short prose, published in English, in 2008, gathering texts
written between 1990 and 2005.
We start with a brief discussion about the new perspectives presented by the nowadays
theories about nationalisms, especially those arisen in the second half of the 20th
century. Then
we clarify our affiliation to the discoursive constructions of identities perspective – among
them, the national ones – and adopt the discoursive analisys as the theory and methodology of
this study, especially the Systemic Functional Linguistics.
Based on the analysis of the text, Slovene indentity discourse is marked by a strong
association between national identity creation and preservation and the affirmation and
evaluation of language and literature. One example of that is the exaltation of France Prešeren
(1800-1849), the romantic poet considered the inventor of the national language and a great
defender or the national idea. Culture’s Day, also named Prešeren’s Day, is considered a
national Holliday and is cellebrated in the poet’s death anniversary.
The appeal to language as a founding element of an intended national identity is not
new or exclusive of Slovenia. Still, it gets new meanings face the actual scenario where the
needs of international visibility and efective integration in European Union seem to be a
demand for Slovenia.
Keywords: Discourse Analysis, Language, Literature, National Identity, Slovenia
xii
xiii
Índice
1. Introdução 1
2. Os ‘novos’ nacionalismos do século XXI 7
3. A construção discursiva da identidade nacional 23
4. O texto em análise: aspectos de textualização 35
5. O texto em análise: aspectos de representação 49
6. Confluências: representação, discurso e identidade 71
7. Conclusão 83
8. Referências 89
9. Anexo1 93
10. Anexo 2 103
xiv
xv
Índice de Quadros
Quadro 1 – Incidências de slovene no texto 53
Quadro 2 – Incidências de slovene por categoria 53
Quadro 3 – Incidências de slovene na categoria Língua 54
Quadro 4 – Incidências de slovene nas categorias Estado e Sociedade 54
Quadro 5 – Incidências de termos que remetem à Eslovênia e/ou à ideia de nação 56
Quadro 6 – Incidências de literature no texto 57
Quadro 7 – Incidências de literature modificada por um adjetivo 57
Quadro 8 – Incidências de literary no texto 58
Quadro 9 – Incidências de literature e de literary no texto 58
Quadro 10 – Incidências de literary por categoria 59
Quadro 11 – Registros de Slovenia ou Literature no papel de atores sociais 61
Quadro 12 – Registros de escritores identificados e não identificados 62
Quadro 13 – Incidência dos processos relacionais no texto 65
Quadro 14 – Incidência dos processos relacionais identificativos e atributivos 67
Quadro 15 – Incidência dos processos relacionais identificativos no texto 67
Quadro 16 – Incidência dos processos relacionais atributivos no texto 68
xvi
Introdução
2
3
A relação entre língua e identidade há muito suscita o interesse de quem se proponha
observar a sociedade em que vivemos. Desde a antiguidade que a língua surge como recurso de
identificação ou diferença, afinal, de acordo com a versão bíblica, foi com a multiplicação das
línguas e a consequente incapacidade de comunicação entre os homens que Deus teria punido
os responsáveis pela construção da famosa torre de Babel.
Com o desenvolvimento dos meios e tecnologias de comunicação e o simultâneo
avanço do processo de globalização, o universo humano se ampliou e modificaram-se os
desafios inerentes à necessidade de troca e contato entre as pessoas. Nesse cenário, a mesma
língua que possibilita a comunicação entre um certo grupo de pessoas, constrange o espaço no
qual estas atuam. A mesma língua que separa é a que une, aproximando aqueles que se
entendem por meio dela e diferenciando-os dos demais.
Neste trabalho, interessa observar a relação entre língua e identidade nacional. Num
cenário global marcado pela multiplicação dos contatos e por disputas e conflitos ‘entre’ e
‘intra’ nações, o discurso de associação entre língua e identidade nacional é recorrente. É esse o
caso da Eslovênia, uma das ex-repúblicas iugoslavas, que conquistou sua independência em
1991.
O discurso de emancipação nacional da Eslovênia é fortemente embasado na afirmação
e valorização de uma língua e literatura nacionais. A língua eslovena, e a cultura a ela
associada, serve de prova e origem de uma identidade nacional. Com a adesão à União
Europeia, em 2004, a Eslovênia viu-se frente a um novo desafio, o da integração num universo
marcado por uma ainda maior pluralidade de línguas e nações.
O discurso esloveno de aparente vinculação entre língua e identidade não é novo, nem
exclusivo. Ainda no século XIX, as unificações alemã e italiana foram, em parte, devedoras
dele. Como entender, no entanto, a longevidade desse discurso face às teorias atuais sobre o
nacionalismo, que reiteradamente questionam essa relação? Mais do que isso, qual será o
significado desse discurso hoje, uma vez que o contexto no qual ele se insere é bastante distinto
daquele vivenciado por France Prešeren (1800-1849), poeta romântico apontado como um dos
principais idealizadores da nação eslovena, na primeira metade do século XIX?
Uma possível abordagem para essas questões é assumir como ponto de partida que o
4
discurso carrega uma série de significados nem sempre evidentes, nem sempre intencionais.
Repetimos como nosso o discurso alheio muitas vezes sem nos darmos conta disso. Outro modo
de dizer o mesmo é recorrer à forte carga ideológica dos discursos, lembrando que um dos
mecanismos por meio do qual a ideologia opera é o da naturalização. Ao se naturalizar um
discurso, deixa-se de questioná-lo. Sem questionamento, há poucas oportunidades de mudança.
Claro que é possível abordar essas questões a partir de muitas outras perspectivas. A
questão da identidade no contexto da modernidade tardia suscita muitos questionamentos. Num
cenário marcado pelo acirramento da mobilidade, em sentido amplo, e pela velocidade das
transformações, seja no campo social, seja no campo tecnológico, e em que o paradigma da
descontrução parece vigorar, nada pode permanecer o mesmo. Perdem-se antigas referências e
é necessário substitui-las. Mas tais discussões, por mais interessantes que sejam, estão além
do âmbito deste trabalho.
Se não há nada de substancialmente novo no discurso que vincula certa língua a certa
identidade nacional, talvez a novidade resida na maneira como percebemos esse discurso hoje e
no modo como muitas vezes o encontrarmos impregnado em nossa própria fala. Nesse sentido,
a análise crítica do discurso tem muito a contribuir, à medida que revela esses conflitos no
interior dos discursos.
Com menos de 2 milhões de habitantes e ocupando um território de pouco mais de 20
mil Km2, a Eslovênia não se impõe pelo tamanho ou pela força. A língua, razão e símbolo de
sua identidade nacional, ao mesmo tempo em que promove a união entre as pessoas ‘da
fronteira para dentro’, separa a Eslovênia do contexto internacional em que ela precisa se
integrar. Nesse sentido, o recurso à afirmação e valorização da língua na construção discursiva
da identidade eslovena precisa ser reavaliado. Com esse objetivo e a título de exemplo e
hipótese de trabalho, será analisada a introdução a uma coletânea de contos de autores
eslovenos contemporâneos (Priestly, 2008), traduzida para a língua inglesa e publicada em
2008, nos Estados Unidos (vd. Anexo1).
O ponto de partida será uma breve reflexão sobre o desenvolvimento dos nacionalismos
na Europa para então se destacar as teorias da segunda metade do século XX, que provocaram
grande mudança na percepção sobre o tema, reconhecendo um caráter inventivo e/ou
imaginado à ideia de nação (vd. Anderson, 1983; Gellner, 1964; Hobsbawm, 1990). Esse é o
foco do primeiro capítulo, onde também é discutido o papel das línguas na construção da
identidade nacional em face das questões trazidas pela modernidade tardia, assim como o
discurso das novas nações, ou seja, aquelas surgidas a partir do final do século XX, como é o
caso da Eslovênia.
5
Assumindo como pressuposto que as identidades se constroem pela via discursiva, será
analisado o discurso esloveno de construção da sua identidade nacional. Esse é o tema em
destaque no segundo capítulo, que se inicia com o desenvolvimento do paradigma da
identidade como construção para, a seguir, abordar alguns dos conceitos básicos que orientam a
análise crítica do discurso. Em linhas gerais, apresenta-se a metodologia de análise que será
adotada, destacando-se o arcabouço de ferramentas e possibilidades oferecido pela linguística
sistêmico-funcional.
No capítulo 3, inicia-se efetivamente a análise do texto. Os critérios definidos nessa
etapa circunscrevem-se ao âmbito da textualização. A introdução é tomada em seu conjunto e
as estratégias de apresentação do texto e de conquista do leitor são destacadas e analisadas, sem
se perder de vista a função que a introdução se propõe desempenhar, ou seja, a de apresentar
uma coletânea de textos de autores eslovenos contemporâneos a um público de língua inglesa.
O recurso a referências espaciais para apresentar a Eslovênia ao leitor, especialmente a partir da
utilização de coordenadas geográficas, também é avaliado. Por fim, o texto é apresentado e
discutido em função de sua divisão e organização em blocos, onde determinados episódios e
personagens da história da Eslovênia e do desenvolvimento de sua língua e literatura são ora
destacados, ora suprimidos.
No capítulo 4, prossegue-se à análise do texto, mas, dessa vez, são os aspectos de
representação que ganham destaque. O ponto de partida consiste na indentificação das palavras
mais utilizadas na introdução e na observação dos seus respectivos significados no interior dos
grupos nominais de que fazem parte. A seguir, são identificadas as passagens do texto em que
língua/literatura, por um lado, e Eslovênia/nação, por outro, desempenham o papel de atores
sociais, aplicando-se, com essa finalidade, uma análise de sua agenciação. Por fim, o foco da
análise se volta para a identificação dos processos relacionais e sua classificação em
identificativos ou atributivos, para melhor compreender as representações construídas ao longo
do texto.
Esta Tese se encerra com uma reflexão sobre os novos significados que o discurso
identitário esloveno parece assumir no contexto atual, marcado pela necessidade de integração
na União Europeia e de conquista de visibilidade no âmbito internacional. Os desafios
enfrentados pela Eslovênia, e por boa parte dos países que hoje fazem parte da União Europeia,
passam por evitar que a mesma língua que é considerada um dos fatores básicos de identidade
nacional se transforme em barreira nesse processo de internacionalização.
Os novos nacionalismos do século XXI
(Capítulo 1)
Introdução
Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica
A invenção da nação: os discursos da modernidade
Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos
Síntese
A Palavra como Alicerce da Nação
8
Os novos nacionalismos do século XXI
9
Introdução
Nos últimos 20 anos, o mapa do mundo foi redesenhado inúmeras vezes para dar vazão
ao surgimento de novas nações, muitas delas decorrentes da desintegração do conjunto de
países que formavam a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou a
Iugoslávia não-alinhada ao comunismo de Moscou. Se, a princípio, tal fato não representa nada
de novo na história do século XX, especialmente em função das redefinições relacionadas ao
contexto das duas grandes guerras, como entender esse movimento hoje, à luz das questões
apresentadas pelo estudo dos nacionalismos, em que se apregoa o fim da era das nações
(Hobsbwawm, 1990) e em que a Europa se encontra em processo de união e de busca de
identidades transnacionais?
Se é verdade que nação, nacionalismo e identidade nacional são atualmente expressões
recorrentes, é preciso lembrar que nem sempre foi assim. A ideia de nação é relativamente
recente e firma-se apenas a partir do final do século XVIII, significativamente marcada pelos
movimentos sociais que culminaram na declaração de independência dos Estados Unidos da
América, em 1776, e na revolução francesa, em 1789 (Anderson, 1983: 192).
Para melhor compreender os contornos contemporâneos da expressão identidade
nacional e no pressuposto de sua redefinição em nossa modernidade tardia (Giddens, 1991),
neste capítulo, parte-se de uma breve reflexão sobre o desenvolvimento do conceito de nação
desde o século XIX e especialmente ao longo da segunda metade do século XX e início do XXI,
discutindo-se alguns dos conceitos de nacionalismo e identidade nacional relevantes para o
trabalho.
Os discursos da modernidade, em especial os decorrentes do processo de globalização e,
de certo modo em resposta a ele, o de afirmação e valorização de uma suposta cultura nacional,
servem de baliza para uma reflexão sobre a questão dos nacionalismos em que se explora a
relação entre identidade e um certo modo de vida único, homogêneo e exclusivo sintetizado
de modo abstrato no conceito de cultura nacional. Nesse processo, o papel dos sistemas de
ensino e de valorização de uma língua nacional ganha destaque, quer como ícone de uma dada
cultura quer como fator de viabilidade para o processo de comunicação.
A Palavra como Alicerce da Nação
10
Por fim, aborda-se a questão das nações tardias, destacando-se algumas das
características gerais que marcam os discursos desses novos países. Em geral, consistem em
uma reapropriação do passado e na afirmação de uma identidade nacional homogênea e
incontestável. Em comum, esses novos países se apresentam como velhas nações centenárias
caracterizadas, de modo geral, pela existência de uma língua e cultura próprias e originais ,
que agora conquistam o reconhecimento, embora tardio, do seu caráter nacional.
Nações e nacionalismos: uma perspectiva histórica
A ideia de nacionalismo, em seus contornos atuais, tem as suas raízes no século XVIII,
com Rousseau, Herder, Fichte e Korais, os quais, ao lado de Mazzini, são considerados os „pais
fundadores‟ de teorizações cujos conceitos centrais giram em torno de três valores: autonomia,
unidade e identidade (vd. Hutchinson & Smith, 1994: 11). Foi no século XIX, no entanto, que o
nacionalismo desempenhou papel fulcral. Daí autores como Bagehot, citado por Hobsbawm
(1990: 1), identificarem esse período como a era do apogeu dos nacionalismos.
Na perspectiva europeia, as revoluções de 1848 a chamada “primavera dos povos”
com forte apelo nacionalista, ao lado da unificação italiana, em 1861, e alemã, em 1871, servem
de medida para a importância e valorização da ideia de nação e nacionalismo nesse momento,
independentemente dos seus significados.
É nesse período que Renan (1882: 17) profere sua célebre conferência sobre a nação, a
qual caracteriza como um princípio espiritual, ou seja, uma ideia abstrata, um valor: “a nation is
a soul, a spiritual principle”. A nação representaria um valor suficientemente forte para unir
pessoas e mobilizá-las ao sacrifício: “A nation is a grand solidarity constituted by the sentiment
of sacrifices which one has made and those that one is disposed to make again” (ibidem).
Partindo desse princípio, o autor considera que o único critério válido para definição de
uma nação seria o seu desejo de permanecer unida: “The desire of nations to be together is the
only real criterion that must always be taken into account” (Renan, 1882: 17). Trata-se,
portanto, de uma escolha livre e coletiva, sempre renovada, numa espécie de “plebiscito” diário
(ibidem).
A clara distinção entre Estado e nação, que transparece da definição de Renan, não
impede, no entanto, que tais conceitos sejam cada vez mais apresentados em conjunto. Com a
sobreposição das noções de Estado e nação, patriotismo e nacionalismo também se confundem.
O Estado garantidor da vida social e a ideia de nação que com ele se identifica formam um
Os novos nacionalismos do século XXI
11
amálgama. Defender o Estado-nação significa defender um status quo, uma realidade social,
um modo de vida e, em alguma medida, defender os nossos interesses contra os interesses de
outros.
É ainda no século XIX que o papel da língua no desenvolvimento dos nacionalismos
ganha relevância. Embora, de acordo com Anderson (1983: 196), até o final do século anterior
a existência de uma língua comum não fosse frequentemente associada ao sentimento de
pertença nacional, essa situação começa a se modificar a partir do século seguinte,
especialmente no que diz respeito às chamadas “línguas de imprensa” (print-languages).
Com o desenvolvimento da tipografia e de um mercado cada vez mais baseado na
produção em massa e no incentivo à circulação de mercadorias, as possibilidades de produção
em série e de comercialização de livros e jornais se multiplicam e ganham relevância como
atividade econômica. A escolha de uma entre as várias línguas disponíveis como sendo aquela
em que determinado material será produzido, ou seja, como uma língua de imprensa, representa
vantagens para os indivíduos que forem aptos a se expressar por via dela e desvantagens para os
demais. Além da língua ou dialeto locais, agora é preciso que o indivíduo seja capaz de se
comunicar nessa outra língua para fazer parte de um novo e importante mercado consumidor,
que, impulsionado pela lógica do capitalismo, cada vez mais se amplia. A promoção de uma
língua local à categoria de língua de imprensa implica, portanto, o alargamento do número de
falantes e do espaço geográfico em que é praticada.
As línguas de imprensa rapidamente passam a ser associadas ao processo de formação
de uma consciência nacional (Anderson, 1983: 44 et passim). Tais línguas permitem a
reprodução e disseminação de ideias por um território alargado, ao mesmo tempo em que
estabelecem espaços comuns de troca e comunicação numa língua distinta tanto do latim
quanto das línguas orais – “(…) they created unified fields of exchange and communication
below Latin and above the spoken vernaculars” – e conferem uma nova “fixidez” à língua,
promovendo, assim, novas línguas de poder, distintas das línguas de administração.
As línguas de imprensa, dessa forma, promovem uma nova solidariedade, agora
ampliada, pois não dependem mais do contato direto entre as pessoas, como no caso das línguas
orais, e podem ser disseminadas pela reprodução em massa e circulação física do material
impresso. O âmbito de circulação da língua de imprensa, ou seja, a definição dos contornos
desses “campos unificados de trocas e comunicação”, permite, mais uma vez, que se coloque
em funcionamento um mecanismo de identificação e diferença.
Por fim, a configuração das línguas de imprensa como línguas de poder distintas das
línguas de administração permite que se estabeleça um novo equilíbrio de forças, o qual, a
A Palavra como Alicerce da Nação
12
princípio, favorece as comunidades locais e suas respectivas elites que mantêm contato
permanente, em detrimento, muitas vezes, dos centros de poder localizados em territórios
distantes.
O desmantelamento dos impérios otomano e austro-húngaro, no início do século XX, e
a eclosão das duas grandes guerras que abalaram a conjuntura mundial compõem esse cenário
de confronto, ajustes, criação e redefinição de territórios nacionais ou de Estados-nação em que
o mapa da Europa é redesenhado. Nas décadas seguintes, fortalecem-se, em relação de
oposição, dois grandes blocos: o dos países de regime comunista e o dos países de regime
capitalista. É nesse período que o nacionalismo ganha outra roupagem, especialmente a partir
dos trabalhos de Gellner, Anderson e Hobsbawm. Em comum, esses autores partilham a ideia
de nação como uma espécie de ficção ou criação – uma comunidade inventada, para Gellner
(1964: 62), ou uma comunidade imaginada, para Anderson (1983: 6).
Mas a nação como comunidade imaginada só se torna possível a partir do
desenvolvimento de um sistema educativo ampliado (Hobsbawm, 1990), que permite a partilha
de um substrato comum valores, princípios, história, representações, interpretações por um
número alargado de pessoas. Permite, em alguma medida, a ampliação da comunidade que se
imagina como una e homogênea, projetando uma imagem coletiva, partilhada por todos. Nesse
processo, a língua mais uma vez desempenha papel essencial e indissociável do
desenvolvimento desse sistema ampliado de ensino, de bases nacionais. A existência de uma
língua comum, que permita a comunicação entre os indivíduos, é condição de viabilidade do
sistema ao mesmo tempo em que este se encarrega de difundir o ensino e utilização dessa
língua.
A relação entre língua, comunicação e identidade é analisada por Deutsch (1966: 27),
que explora o viés da comunicação, numa perspectiva funcionalista, associando o partilhar de
uma identidade nacional à capacidade de comunicação efetiva entre as pessoas pertencentes a
uma comunidade ampliada, em contrapartida às barreiras de comunicação que surgem no
contato com pessoas de comunidades distintas: “Membership in a people essentially consists in
wide complementary of social communication. It consists in the ability to communicate more
effectively, and over a wider range of subjects, with members of one large group than with
outsiders”.
O papel da língua, no entanto, não se esgota em seu potencial de comunicação. Mesmo
no interior dos sistemas de ensino, ela assume outras funções. Um sistema educativo
estruturado em torno de uma língua comum estimula a associação entre essa mesma língua e
um conjunto de crenças e valores, de modos de pensar e de viver, permitindo, assim, a
Os novos nacionalismos do século XXI
13
construção e disseminação de uma determinada identidade. Dizendo de outra forma, atua na
construção e difusão das diferentes línguas e discursos dos nacionalismos.
O desenvolvimento de um sistema educativo também está nas bases da ideia de
tradição, um dos recursos fundamentais à criação e perpetuação das identidades nacionais.
Parte-se do discurso da tradição, entendida como uma prática antiga que se perpetua pela
repetição numa dada comunidade, um costume continuado e carregado de sentido, que atesta a
existência de uma história comum e de uma memória partilhada e é, de certa forma, indicador
de uma mesma origem. A tradição, nesse sentido, carrega uma grande carga de concretude. Daí,
talvez, seu forte apelo como fator de comunhão e identidade.
O discurso da tradição é frequentemente entretecido com o discurso da identidade
nacional. Em alguma medida, a ideia de nação se fundamenta na partilha de tradições comuns.
Mas o que Hobsbawm (1983: 77) destaca em seu estudo sobre o nacionalismo é que as hoje
valorizadas tradições nacionais são criações. Para o autor, a invenção da tradição resultaria da
conjugação de três fatores preponderantes: o desenvolvimento de um sistema secular de
educação primária equiparável à igreja, a invenção de cerimônias públicas e a construção em
massa de monumentos públicos (Hobsbawm, 1983: 77-78). A formulação do autor explicita o
papel não só da educação, mas de um sistema educativo, no processo de invenção das tradições,
que, em alguma medida, alimentarão a imaginação de futuras nações.
O caráter inventivo da tradição também transparece da definição proposta por Giddens
(1994: 61), em que esta é apresentada como um “meio de organização da memória colectiva”.
Por trás da expressão “organização”, é possível encontrar o mesmo mecanismo de seleção e
descarte, já referido por Anderson em sua definição de nação como comunidade imaginada.
Talvez por esse motivo as tradições surjam no discurso da modernidade sempre com carga
positiva. As práticas negativas, que precisam ser extirpadas, esquecidas, apagadas, sublimadas,
em geral não ganham o rótulo de tradição.
Independentemente da amplitude do papel que se pretenda reconhecer para a existência
de uma língua nacional, para o desenvolvimento de um sistema nacional de educação ou para a
partilha de tradições comuns no processo de desenvolvimento das identidades nacionais, não se
pode negar a importância desses elementos para a compreensão das discussões atuais sobre os
nacionalismos.
Para Hobsbawm (1990: 169), o período que vai das grandes guerras até o final do século
XX marca uma mudança significativa no ideário do nacionalismo. Se ele surge como força
propulsora da história até a primeira metade do século passado, isso não acontece na atualidade,
o que não significa dizer que os nacionalismos não estejam presentes e se façam sentir nos dias
A Palavra como Alicerce da Nação
14
de hoje. Parece mais razoável interpretar a declaração acima como indicativa de uma mudança
no papel desempenhado pelos nacionalismos.
Independentemente do desenvolvimento dos conceitos de nação e nacionalismo, parece
haver, no entanto, um ponto de ruptura nessa cronologia. Hobsbawm (1990: 4) ilustra bem esse
movimento ao listar, na introdução do seu livro, algumas das obras que considera relevantes
para a compreensão do tema, estabelecendo, assim, um claro recorte na produção anterior –
“the number of works genuinely illuminating the question (…) is larger in the period 1968-88
than for any earlier period of twice that length” (itálicos acrescentados). Anderson (1983/2005)
demonstra a mesma preocupação ao registrar, no prefácio à segunda edição do seu livro, sua
própria seleção de trabalhos.
Sejam quais forem as referências citadas por Anderson e Hobsbawm, o que importa é
que estas parecem indicar não só uma ruptura no modo de pensar a questão dos nacionalismos
como também uma mudança do movimento em si, do papel dos nacionalismos após as duas
grandes guerras. Anderson (1983: xii), ao comentar a proliferação de obras sobre o tema nas
últimas décadas do século XX, dá razão à afirmação de Hobsbawm de que a era do
nacionalismo teria chegado ao fim: “Hobsbawm has had the courage to conclude from this
scholarly explosion that the age of nationalism is near its end: Minerva‟s owl flies at dusk”.
A invenção da nação: os discursos da modernidade
A rigor, afirmar que a era dos nacionalismos, nos moldes vivenciados entre os séculos
XIX e meados do XX, teria chegado ao fim, não significa decretar o fim dos nacionalismos
propriamente ditos. Pode-se dizer, no entanto, que os nacionalismos que experimentamos hoje
têm características próprias e, talvez, desempenhem funções distintas daquelas que marcaram o
período anterior. Parte dessas mudanças deve-se ao contexto atual, marcado pelo processo de
globalização e pela concorrência dos vários discursos de valorização da diversidade cultural.
A configuração de sistemas globais de diversas naturezas, em especial política e
econômica, delineia um cenário rico em interligações e interdependências. As empresas se
fundem em grandes grupos financeiros e econômicos que atuam em diversos segmentos de
mercado e áreas geográficas. Os Estados se associam, criando organizações em âmbito
internacional, estabelecendo vínculos entre eles, mais ou menos estreitos, mais ou menos
firmes, mais ou menos duradouros. As línguas se misturam e confundem, transportadas por um
sistema de comunicação em rede, ramificado, capaz de vencer distâncias em segundos.
Os novos nacionalismos do século XXI
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Nesse cenário, a extensão e os limites dos territórios nacionais ganham novos
contornos. A mobilidade e circulação de bens, pessoas e serviços evidenciam a porosidade das
fronteiras e intensificam os contatos entre pessoas que falam línguas diferentes, adotam
costumes distintos, possuem uma escala de valores própria, podem ver o outro como estranho.
São pessoas nascidas em territórios diferentes, educadas em sistemas de ensino variados, com
crenças religiosas e morais específicas, história e memória coletiva próprias.
Nesse ambiente de contato, mistura e choque, é mais uma vez posto em ação um
mecanismo de identificação e diferença. Por um lado, a multiplicação de contatos parece acirrar
a percepção da diferença, por outro, e em sentido inverso, permite a criação de identidades
ampliadas, transnacionais, como as de gênero, profissão, religião entre outras. É nesse contexto
que se pretende inserir a questão da identidade nacional, como um dos recursos adotados nesse
jogo de contraposições.
Um dos significados imediatos da expressão identidade nacional talvez ainda seja a
referência a uma origem comum, quer em função da hereditariedade, quer em função da fixação
num dado território ao longo do tempo. O Estado-Nação expressão disseminada no século
XX ao qual o indivíduo está ligado pelo nascimento, por sua história, língua, cultura ou
mesmo pela via da auto-identificação seria o vértice dessa comunidade. Parte-se do pressuposto
de que a partilha desses elementos implicaria necessariamente uma identidade comum.
O nacionalismo, em suas várias facetas, invariavelmente estabelece um elo entre o
indivíduo e a nação com a qual se identifica. É a natureza dessa identificação que agora é posta
em causa. Se antes o pressuposto era de que a identidade nacional implicava necessariamente a
comunhão de valores, história, memória, modo de vida e cultura, em sentido amplo, agora essa
identificação inata, natural, autêntica e verdadeira é questionada.
Não é preciso ir muito longe nesse jogo de identificações e diferenças para constatar a
ausência da homogeneidade suposta. Num mesmo Estado nacional, os hábitos e costumes das
pessoas variam não só em função da geografia, como também dos credos, do status financeiro,
da classe social, da língua ou mesmo da história pessoal entre tantos outros fatores. Embora ter
a mesma nacionalidade de alguém não conduza a uma identidade necessária, seja em que
sentido for, a referência a um certo caráter nacional é recorrente. O apelo a essa identidade, ao
fator nacional, como sendo um vínculo que se estabelece entre aqueles que partilham uma certa
nacionalidade, é extremamente sedutor, quase irresistível.
A crença nessa identidade, que não precisa de prova ou confirmação e é dotada de forte
carga de espontaneidade, é uma das principais características da identidade nacional. Segundo
Anderson (1983: 4), o fator nacional e o nacionalismo seriam “artefactos culturais” especiais
A Palavra como Alicerce da Nação
16
que produziriam a nação, definida pelo autor como sendo uma “comunidade política
imaginada”, ao mesmo tempo “limitada e soberana” “it is an imagined political community –
and imagined as both inherently limited and sovereign” (ibidem: 6).
Respeitados os diferentes posicionamentos, o caráter imaginado da nação surge como
um substrato comum. O nacionalismo como produto da nação, como resultado da partilha de
valores comuns, histórias, memórias, territórios, laços sanguíneos e afetivos, é superado pela
ideia de criação e novidade. “Nationalism is not the awakening of nations to
self-consciousness: it invents nations where they do not exist (...)” (Gellner, 1964: 62). Para
Gellner (1983: 64), não são as nações que promovem o nacionalismo, mas sim o nacionalismo
que inventa as nações.
Não significa isto dizer que as nações sejam criações arbitrárias, resultantes da fantasia
de grupos determinados, produzidas artificialmente no processo de disputa por controle e poder
inerentes ao tecido social. O nacionalismo se vale de práticas existentes, mas, a partir de um
vasto território delas, ele seleciona e recorta. Escolhe as práticas que deseja lembrar e descarta
aquelas que deseja esquecer: “Admittedly, nationalism uses the pre-existing, historically
inherited proliferation of cultures or cultural wealth, though it uses them very selectively, and it
most often transforms them radically” (Gellner, 1983: 64).
Daí a crítica de Anderson (1983: 6) à definição, adotada por Gellner, de nação como
invenção. Esse termo reforçaria, na opinião de Anderson, a compreensão equivocada de que a
nação e o nacionalismo seriam construções arbitrárias, sem qualquer relação com o contexto em
que surgem. Por esse motivo, Anderson opta pelo termo “imaginada” para definir a nação.
Apesar disso, o produto final desse processo inventivo, seja qual for, resulta numa
espécie de ilusão coletiva. O verniz que o protege é o da homogeneidade, antiguidade,
predestinação. Como num truque de mágica em que o ilusionista faz desaparecer um
monumento público com centenas de metros de altura e dezenas de toneladas sob o testemunho
das câmeras de TV e uma audiência de milhares de telespectadores, a referência a uma
nacionalidade, isto é, a utilização do rótulo “nacional” faz desaparecer diferenças e cria
semelhanças. Ao contrário do primeiro truque, no entanto, esse é de ação continuada.
Respeitando-se as diferenças de posicionamento, pode-se dizer que as teorias sobre os
nacionalismos da segunda metade do século XX até hoje têm em comum a valorização dos
conceitos de identidade e de cultura. A identidade que se estabelece entre aqueles que
consideram pertencer a uma dada nacionalidade cria um „nós‟ ampliado, capaz de envolver
milhões de pessoas, sobrepondo-se a critérios usualmente utilizados como distintivos, seja
faixa etária, gênero, classe social, religião, profissão entre tantos outros.
Os novos nacionalismos do século XXI
17
Embora a diferença se faça sentir na alteridade, no contato com o outro, importa lembrar
que o sujeito nacional também se constrói dentro do território do Estado-Nação. Esse sujeito
nacional é referido no discurso político, jurídico e social incessantemente. Esse „macro-sujeito‟
que não representa exatamente ninguém, não corresponde a um único indivíduo, é assumido
como representante de todos. Em sentido contrário, para ser reconhecido como nacional, ou
mesmo para se auto-reconhecer como nacional, é preciso fazer um esforço para corresponder
ou se identificar com esse modelo.
Nações tardias: novas nações, velhos nacionalismos
Usando uma expressão que, em tempos, já foi utilizada em relação à unificação alemã e
italiana do final do século XIX, boa parte das atuais nações tardias, que surgiram entre o final
do século XX e o início do atual, têm em comum a exiguidade do território e um discurso
nacional fortemente embasado na afirmação e valorização de uma língua e cultura nacionais,
características já destacadas por Hobsbawm (1990) ao se referir aos nacionalismos da segunda
metade do século XX. No processo a favor do reconhecimento de suas respectivas identidades,
resgatam uma história milenar, um passado compartilhado de lutas, sofrimentos e sacrifícios
em prol do bem maior: a afirmação do seu caráter nacional.
Numa perspectiva histórica, a novidade do conceito de nação e nacionalismo é apagada
em favor de um passado justificador da demanda atual, como revela a seguinte afirmação de
Hobsbawm (1983: 76): “modern nations and all their impedimenta generally claim to be the
opposite of novel, namely rooted in the remotest antiquity, and the opposite of constructed,
namely human communities so „natural‟ as to require no definition other than self-assertion”.
A afirmação de uma língua comum implica solidariedade, que se prolonga não só no
espaço territorial da nação mas também no tempo, através de gerações, graças à fixidez e
estabilidade que se tornam possíveis com a conversão de uma certa língua em língua de
imprensa. Essa característica, como alerta Anderson (1983: 196), será bastante útil ao discurso
de afirmação nacional que procura atestar a sua antiguidade, pois encontra na longevidade das
línguas um forte argumento a seu favor: “once one starts thinking about nationality in terms of
continuity, few things seem as historically deep-rooted as languages, for which no dated origins
can ever be given”.
Ao contrário da Alemanha e da Itália dos finais do século XIX, no entanto, as atuais
nações tardias surgem num contexto diverso, caracterizado por uma nova organização da
A Palavra como Alicerce da Nação
18
sociedade, em rede, como propõe Castells (1997: xxix), cuja forma é resultante da “revolução
das tecnologias de informação” e da “reestruturação do capitalismo”. Esse novo modelo
acentua a interdependência entre os diferentes Estados, que não mais prescindem de fazer parte
de organismos internacionais. O próprio conceito de soberania é posto em causa, uma vez que a
independência político-econômica parece não ser mais possível no exíguo território nacional.
Billig (1995: 133) reproduz o discurso corrente, para criticá-lo logo a seguir, ao descrever o
jogo de forças opostas que pressionam as fronteiras do Estado-Nação de fora para dentro a
globalização e de dentro para fora a valorização das diferenças regionais e a ameaça de
fragmentação do território em novas unidades nacionais. “The result is that the sovereignty of
the nation-state is collapsing under pressure from global and local forces. Economic necessities
are compelling states to surrender parts of their sovereignty to supra-national organizations”
(ibidem: 133).
A virtualização do real, o esbatimento das fronteiras, o aumento da mobilidade, a
formação de grandes grupos internacionais políticos, econômicos, sociais que caracterizam
a atualidade, modificam a própria noção de fronteira. Agora não mais prejudicam ou bloqueiam
a passagem de bens e pessoas, mas regulam, definem critérios e selecionam, determinam o
nível de porosidade. Nesse contexto, a mediação e a negociação ganham preeminência sobre o
controle e a repressão.
O caso da Europa é bastante ilustrativo do cenário atual. Em algum momento das
últimas décadas, o próprio conceito de Europa perdeu parte do seu significado e tornou-se
problemático, impreciso. Mais do que a discussão sobre o que seria a identidade europeia, os
próprios limites da Europa se esvanecem confundidos entre a delimitação geográfica do
continente e as fronteiras estabelecidas pelo projeto que se intitula de União Europeia.
Tudo isso só encontra sentido nos tempos atuais, em que a chamada modernidade tardia
parece dissolver as estruturas sólidas que sustentavam a sociedade, imprimindo velocidade e
movimento e exigindo um novo senso de equilíbrio e alguma sensibilidade. A mobilidade
crescente e a multiplicação de contatos parecem acentuar a percepção da identidade e da
diferença; ao mesmo tempo, desafiam a definição e a perpetuação de uma identidade única, seja
ela qual for. Nesse panorama, a apropriação de uma dada linguagem e da cultura a ela associada
atua como uma espécie de bálsamo contra as angústias do mundo contemporâneo e suas
indefinições à medida que se reveste da ilusão da essência. Essa língua materna que nos é dada,
e não escolhida, promove o estabelecimento de uma identificação imediata e dificilmente
questionada, derivando dessas características a sua força e estabilidade, num mundo em
Os novos nacionalismos do século XXI
19
movimento contínuo e acentuado de mudança. A língua e sua cultura surgem como referências
seguras num mundo em estado perpétuo de transformação.
O discurso recorrente e repetitivo da identidade nacional parece ser, em alguma medida,
a tentativa de resgate de uma identificação segura em meio a incerteza que caracteriza a
sociedade contemporânea. O caminho trilhado com maior frequência é o do apego e da
identificação a uma cultura nacional conceito suficientemente amplo e abstrato para
acomodar as mais variadas práticas e, sobretudo, o discurso ilusionista da homogeneidade.
Numa sociedade em que o papel de consumidor muitas vezes se sobrepõe ao papel do
cidadão e que oferece uma gama enorme e variada de identidades que o indivíduo ou grupo
pode escolher e descartar, vestir e despir a todo momento uma espécie de mercado-livre de
identidades (Billig, 1995: 134) , a língua-cultura surge como contraponto a essas identidades
voláteis “the culture in which one has been taught to communicate becomes the core of one‟s
identity” (Gellner, 1983: 69).
O discurso atual, sob a bandeira da globalização, é o da fragmentação e fortalecimento
dos processos de internacionalização em quaisquer de suas naturezas - política, econômica,
social e, em alguma medida, cultural. É o que afirma Billig (1995: 132): “the processes of
globalization, which are diminishing differences and spaces between nations, are also
fragmenting the imagined unity within those nations”. As novas nações, mal alcançam a
independência, lançam-se numa nova batalha por um lugar ao sol na ordem global.
Como resultado desse movimento, surgem novas identidades e uma pluralidade de
narrativas (Billig, 1995: 133), que, muitas vezes, competem entre si. Nesse cenário, a
identidade nacional se afirma como uma dessas narrativas ou, na acepção de Bhabha (1990:
300), a nação se apresenta como uma estratégia narrativa sempre em processo de construção:
“Counter-narratives of the nation that continually evoke and erase its totalizing boundaries
both actual and conceptual disturb those ideological manoeuvres through which „imagined
communities‟ are given essentialist identities”.
O espaço criado pela multiplicidade de narrativas e sua inconclusão permite que a ideia
de nação se revista de diferentes identidades simultaneamente, acomodando assim não só as
semelhanças – estratégia em que se baseia a abordagem essencialista da ideia de nação – mas
também as diferenças. A identidade nacional se liberta das suas amarras e permite margem de
manobra para evitar conflitos e acolher a diferença.
Mais do que desvendar um programa político responsável pelo planejamento e
desenvolvimento de uma dada identidade, interessa observar como ela se constrói e se modifica
A Palavra como Alicerce da Nação
20
incessantemente no tecido social, num processo colaborativo – ora consciente ora não – no qual
tomam parte governo, academia, religião, sociedade e tantos outros agentes.
Abandonada a visão essencialista da nação, dos nacionalismos e da identidade nacional,
é preciso refletir sobre os processos que viabilizam essa identidade: “Culture is not a matter of
race. It is learned, not carried in our genes” (Kuper, 1999: 227). Embora o fim da era dos
nacionalismos já tenha sido declarado, o espraiamento do discurso nacional e sua capacidade de
mobilização atestam a relevância da ideia de nação e de identidade nacional na sociedade
contemporânea. A forte presença dos símbolos nacionais no mundo moderno, incorporados ao
cotidiano de forma quase imperceptível, constitui apenas um dos exemplos da força dessa
identidade ainda hoje.
Síntese
Uma breve retrospectiva histórica das reflexões sobre os nacionalismos a partir do
século XIX até a atualidade é suficiente para ressaltar a pluralidade de abordagens adotadas e
destacar alguns dos elementos intrinsecamente relacionados ao tema. O impacto provocado
pelo capitalismo, associado ao desenvolvimento das línguas de imprensa e à criação de línguas
nacionais, o desenvolvimento de um sistema ampliado de educação e o recurso a um conjunto
de práticas aqui representadas pelo conceito de tradição para justificar uma espécie de caráter
nacional são alguns dos elementos considerados relevantes para este trabalho.
O cenário atual, caracterizado pelo processo de globalização e pela crescente
mobilidade de pessoas, intensifica o contato com o outro e coloca em relevo um mecanismo de
identificação e diferença essencial para a construção e percepção identitárias. A identidade
nacional, assim como a identificação de e com uma cultura nacional, surgem como discursos
recorrentes, muitas vezes explícitos, outras, naturalizados pelas diferentes estratégias
narrativas. O papel da língua, quer como ícone de uma dada cultura, quer como meio
catalisador do processo de comunicação, desponta como elemento essencial a esse processo.
O preconizado fim da era dos nacionalismos traduz-se em uma nova percepção da
questão na sociedade atual, onde estes parecem se revestir de novas características e
desempenhar funções sociais diferentes daquelas realizadas pelos nacionalismos do século
XIX. Corrobora essa afirmação a assiduidade dos discursos de afirmação, valorização e
discriminação nacional que se repetem no dia-a-dia em todos os âmbitos da vida social.
Conflitos armados, disputas econômicas, competições esportivas, campanhas de marketing que
Os novos nacionalismos do século XXI
21
transformam a nação em marca, tensões provocadas pelos movimentos migratórios, cenários de
exclusão e inclusão, preconceitos e discriminação são apenas alguns dos exemplos.
No contexto atual, onde o caráter imaginado da nação é destacado e explicitado como
construção, a criação das nações tardias, que se tornaram independentes entre o final do século
XX e os dias de hoje, serve de ponto de partida para uma reflexão sobre as novas roupagens que
os nacionalismos adotam em face da contemporaneidade. Esse processo de construção
discursiva das identidades nacionais será discutido a seguir, assumindo como ponto de partida
as perspectivas adotadas pela análise crítica do discurso.
A construção discursiva das identidades nacionais
(Capítulo 2)
Introdução
A construção discursiva das identidades nacionais
O discurso de afirmação nacional da Eslovênia
A análise crítica do discurso
Síntese
A Palavra como Alicerce da Nação
24
A construção discursiva das identidades nacionais
25
Introdução
No domínio dos processos de construção identitária, a partir do momento em que se
entende a identidade nacional como uma entre as múltiplas narrativas identitárias possíveis e se
reconhece seu caráter imaginado, o indivíduo ganha certa autonomia. Em vez de objeto de uma
dada identidade, assume-se como sujeito, pois cabe a ele, em alguma medida, a definição dessa
história.
Neste capítulo, será explicitada a adoção de uma perspectiva construtivista, baseada no
discurso, para se pensar os processos por meio dos quais essas identidades podem ser
construídas e transformadas. Daí que neste trabalho se analise o discurso como forma de
mediação entre o indivíduo e a sociedade ou como modo de representação ou construção de
cenários e situações que se pretendem reais.
A construção discursiva das identidades nacionais será o tema principal das reflexões
realizadas, que partirão da análise de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o
da identidade nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção. Este
último modelo será o adotado ao longo deste trabalho.
Nesse contexto, o processo de construção identitária das nações tardias será analisado,
em especial no que se refere aos discursos que relacionam a afirmação e valorização de uma
língua e cultura nacionais com a existência incontestável de uma dada identidade. O caso da
Eslovênia, uma das repúblicas que formavam a ex-Iugoslávia, será destacado. A Eslovênia
declarou-se independente em 1991; conta, portanto, com pouco mais de 20 anos de existência
oficial como Estado-nação. No ano seguinte, em 1992, iniciou o processo de adesão à União
Européia, consolidado em 2004.
A seguir, será apresentada e discutida a opção metodológia que permeará toda esta
reflexão: a análise crítica do discurso e, em seu âmbito, a abordagem proposta pela linguística
sistêmico-funcional. A relação de interdependência entre o sistema linguístico e o sistema
social, o discurso como manifestação de e disputa pelo poder, o papel das ideologias, as
macro-funções da linguagem serão alguns dos temas em análise.
A Palavra como Alicerce da Nação
26
A construção discursiva das identidades nacionais
É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de diversas
abordagens, como ilustra a multiplicidade de trabalhos disponíveis sobre o tema. Definindo
como ponto de partida desta reflexão o viés dos estudos culturais (vd. Hall, 1997), propõe-se o
desenvolvimento de três paradigmas: o da identidade nacional como herança, o da identidade
nacional como aprendizado e o da identidade nacional como construção (vd. Kuper, 1999, e
Tann, 2010).
A identidade nacional como herança pressupõe algo inato, um conjunto de
características que seria herdado ao se nascer num determinado país e que induziria a um certo
comportamento ou modo de pensar e sentir o mundo. Todo ser humano carregaria esses dados
em seus genes e pouco poderia fazer para escapar à ação deles. Mais do que uma visão
essencialista, trata-se de uma visão determinista das identidades, na qual o indivíduo assume o
papel de objeto dessa suposta identidade nacional: ao invés de agir sobre ela, sofreria sua ação.
Aceitar a visão determinista implica, em algum grau, acreditar que todos os indivíduos
de uma certa nacionalidade partilham um dado conjunto de características das quais não podem
fugir, estando, assim, condicionados a comportamentos específicos. Esses pressupostos não
condizem com a diversidade que vivenciamos no dia a dia entre indivíduos pertencentes a uma
só nação. Parece difícil, portanto, defender esse posicionamento à luz das sociedades modernas
e da ausência de homogeneidade suposta.
No que diz respeito à identidade nacional como aprendizado, ela traz consigo a noção de
que as identidades são ensinadas. Não nascem com o indivíduo, mas este, desde o início do seu
processo de socialização, aprende a se comportar de uma dada maneira, a pensar e a sentir de
acordo com um modelo pré-estabelecido. Mesmo sem dar-se conta desse processo de
aprendizagem e mesmo que esse aprendizado não seja dirigido ou intencional, o indivíduo
assume como própria a identidade que lhe é ensinada.
Para seguir por essa linha de raciocínio, seria necessário aceitar a existência de um
modelo, de um modo de ser nacional, ou seja, de uma maneira específica de se identificar como
indivíduo pertencente e intrinsecamente vinculado a uma dada nação. Esse modelo claro e
definido seria replicado em todo o território nacional por meio de um poderoso sistema de
ensino, que englobaria não apenas as instituições de educação pública e privada, mas também o
ambiente social de forma mais alargada.
Uma breve tentativa de descrever com clareza esse modelo é suficiente para verificar
sua impossibilidade. Embora seja possível traçar imagens estereotipadas do que seria essa
A construção discursiva das identidades nacionais
27
identidade nacional, tais esboços não passam de caricaturas, são incapazes de dar conta de toda
a diversidade que caracteriza os diferentes modos de ser em sociedade. Claro que, com essa
afirmação, não se pretende negar ou diminuir a relevância do sistema educativo na construção
de representações individuais ou coletivas. Reconhecer, no entanto, o papel decisivo do sistema
educativo no processo pelo qual a nação é imaginada, como foi feito, aliás, no primeiro
capítulo, não significa atribuir-lhe a autoria de uma nação real.
A impossibilidade de se descrever em minúcias um dado caráter nacional, aplicável ao
conjunto de indivíduos, não esvazia, no entanto, a força desses estereótipos. Embora, à partida,
não seja possível descrever o que seria tal caráter, a referência ao mesmo e a sua presença,
direta e indireta, em discursos, símbolos, imagens – em sentido amplo, no imaginário nacional
– é recorrente.
Passando ao terceiro paradigma, o da identidade nacional como construção, verifica-se
que ele parte do pressuposto de que a identidade não é dada nem aprendida, mas sim construída
e desconstruída repetida e incessantemente no contato com o outro. Não significa dizer que
haveria um conjunto de identidades prévias, pré-formatadas, que seriam chamadas a se
manifestar numa dada situação. Pelo contrário, as identidades seriam construídas no âmbito de
um processo relacional e durariam o tempo exato de duração desse processo.
Nesse contexto, as identidades são recursos dos quais o indivíduo se vale para defender
ou conquistar uma posição (vd. Tann, 2010). O discurso, como forma de mediação entre os
indivíduos e entre estes e o mundo ao redor, é um dos recursos utilizados para construir essas
identidades e será essa a abordagem utilizada no âmbito deste trabalho.
A noção de discurso aqui assumida é a elaborada por Foucault, que situa o discurso
como forma de organização de significados. Gouveia (2001: 337), referindo-se a esse conceito,
afirma: “o discurso se refere aos modos, quase sempre linguísticos, mas não exclusivamente
linguísticos, de organizar o significado, aos sistemas de poder/conhecimento (pouvoir/savoir)
em que assumimos posições de sujeito”.
A ideia de construção discursiva das identidades permite acomodar a multiplicidade de
narrativas, como propõe Bhabha (1990), e sua incompletude, seu estado de permanente
transformação. Ao mesmo tempo, atribui ao indivíduo o papel de sujeito ao longo desse
processo, pois é ele quem constrói esses diversos discursos a partir dos elementos dos quais
dispõe.
Cada indivíduo participa simultaneamente de diversos grupos sociais, no âmbito dos
quais ora constrói sua identidade entre-pares, ora seleciona e retira elementos para construir
outras versões de identidade. Ele dispõe de uma grande variedade de fontes das quais se vale no
A Palavra como Alicerce da Nação
28
processo de criação de suas múltiplas identidades, de forma mais ou menos consciente, de
acordo com o contexto e com a situação (Cillia, 1999: 17).
Adotar a visão construtivista e assumir o indivíduo como sujeito não significa, no
entanto, afirmar que ele age com liberdade total, ao seu bel-prazer. Há uma série de elementos
que conformam, constrangem e alimentam esse processo de construção, como a história de
vida, os hábitos e costumes adquiridos desde a infância, o processo de socialização, os
temperamentos. Os sistemas de comunicação, em geral, desempenham papel importante nesse
processo, dada sua capacidade de selecionar e disseminar informação, assim como os sistemas
de educação, com seus valores e princípios, e os sistemas de crença religiosa, entre outros.
De forma invisível e insistente, o caráter nacional imprime sua marca no cotidiano, via
meios de comunicação, via proliferação dos símbolos nacionais, via marketing ou mesmo nas
conversas do dia a dia. O contato com o outro funciona como uma espécie de gatilho a disparar
o mecanismo de identificação e diferença, onde um certo estereótipo nacional é chamado a agir
sempre que necessário.
A imagem nacional é desenhada a partir dos discursos cruzados de diversas fontes,
sejam elas oficiais ou não. As dificuldades surgem quando alguns desses discursos são
assimilados como essência e tomados como uma espécie de fato consumado e não mais como
discurso-opção. À medida que algumas dessas narrativas se cristalizam, intensificam-se os
choques e embates entre elas e tantas outras versões contraditórias.
É importante frisar que a perspectiva da construção discursiva não se confunde com a
ideia do discurso como modo de representação de uma ou várias identidades. Longe de se
caracterizar como forma de materialização de uma dada identidade pré-existente, o discurso
determina o período de vigência dessa identidade, que nasce e morre com ele. Ela não existe
antes ou fora do discurso; pelo contrário, começa e acaba com ele, sendo construída e
reconstruída vezes sem conta, sem nunca ser exatamente a mesma.
Pode-se pensar a natureza da construção discursiva das identidades, entre elas as
nacionais, como sendo relacional e processual (vd. Tann, 2010). É relacional à medida que se
constrói em relação de comparação com o outro, seja em busca de semelhanças ou de
diferenças – o próprio conceito de identidade não faz sentido senão num contexto plural. É
processual à medida que se constrói ao longo da dilação do tempo, a partir de peças que se
interligam, montando uma engrenagem, e que só em conjunto podem produzir como resultado a
ideia de identidade.
Como decorrência do caráter processual, é possível ainda pensar a identidade como
efêmera, múltipla e mutável, estabelecendo-se um paralelo com o universo jurídico. É efêmera
A construção discursiva das identidades nacionais
29
porque termina com a conclusão daquela interação processual; é múltipla porque concorrem
para o desenvolvimento do processo uma pluralidade de variáveis; e é mutável porque passível
de transformação a partir do controle dessas mesmas variáveis.
A questão que surge, no entanto, é que o paradigma da construção discursiva das
identidades não parece refletir o discurso corrente, que desconsidera a pluralidade e a
efemeridade das identidades a favor da adoção dos conhecidos e propagados estereótipos
nacionais, que imprimem marca significativa nas sociedades de hoje. O indivíduo surge, mais
do que condicionado, subordinado a essa identidade estereotipada, ora por vontade própria,
numa espécie de autorreconhecimento, ora por não conseguir dela escapar. Tanto quanto o
discurso político ou midiático, o discurso do dia a dia é extremamente marcado pelo caráter
nacional, seja no âmbito das relações de consumo, de apreciações de contornos culturais ou
mesmo de um programa explícito de marketing nacional.
Essa aparente contradição pode, talvez, ser melhor compreendida a partir do
reconhecimento do conteúdo ideológico das identidades, assumindo, neste caso, que a
ideologia se traduz por “sistemas de pensamento, de valores e crenças (...) que denotam um
ponto de vista particular sobre o real, uma construção social da realidade, independentemente
de aspirarem ou não à preservação ou à mudança da ordem social” (Gouveia, 2001: 338).
A comunidade imaginada como nação tem sua própria linguagem de pertença nacional
(Bhabha, 1999: 293) e é construída e disseminada pelo discurso, em especial pelas narrativas de
afirmação e valorização de uma cultura nacional (Cillia, 1999: 22). Moldada a partir de uma
multiplicidade de fontes, entre elas o Estado, as instituições políticas e econômicas, as redes de
ensino, a mídia, as associações de interesses diversos ou mesmo o indivívuo, a identidade
nacional se realiza no universo variado e difuso das práticas sociais, das quais resultam as
condições materiais e sociais às quais o indivíduo está sujeito. Nesse processo, a prática
discursiva, como uma forma especial de prática social, desempenha papel essencial na
percepção e disseminação das identidades nacionais (ibidem: 29-30).
O discurso de afirmação nacional da Eslovênia
No processo de construção discursiva das identidades nacionais uma série de elementos
podem ser utilizados, alguns de forma recorrente, sendo a existência e partilha de uma língua
nacional um exemplo deles. Veja-se o caso da Eslovênia, que obteve sua independência da
então Iugoslávia em 1991 e, logo no ano seguinte, em 22 de maio de 1992, teve sua adesão à
A Palavra como Alicerce da Nação
30
União Europeia aceita, num processo que foi concretizado em 2004. Com um território de
pouco mais de 20 mil km2 e cerca de 2 milhões de habitantes, a Eslovênia possui mais de 40
dialetos (Kmecl, 2005: 3), mas utiliza como um dos argumentos para afirmar e, em certa
medida, justificar sua existência como nação a existência e valorização de uma língua nacional.
De acordo com o discurso oficial esloveno, as bases dessa língua teriam sido lançados no século
X, com os “Brižinski spomeniki” (ou “Manuscritos Freising”), que teriam sido os primeiros
textos escritos em esloveno (ibidem: 19), sendo a emancipação à língua de cultura conquistada
no século XIX, especialmente a partir do trabalho do poeta France Prešeren (1800-1849), ícone
da nação eslovena, alçado à categoria de herói nacional.
Em pouco mais de 20 anos de existência oficial como Estado-nação, a Eslovênia
empenha-se em afirmar sua viabilidade num mundo globalizado e de forte competição entre
nações, num cenário em que a exclusividade de sua cultura nacional desempenha papel de
destaque. O projeto nacional esloveno, independentemente da construção da sua imagem
intramuros, implica a divulgação desse caráter para o mundo, especialmente junto aos países
que integram a União Européia, bloco do qual faz parte. Nesse contexto, a língua eslovena
surge simultaneamente como símbolo de unidade nacional e obstáculo à integração
internacional, num aparente estado de tensão. Ao mesmo tempo em que a Eslovênia concentra
esforços na valorização e proteção da sua língua nacional, precisa, em alguma medida, abrir
mão dela em favor de uma língua global de comunicação e acesso internacional.
Entre as estratégias de unificação possíveis em favor da construção de uma identidade
coletiva, duas parecem ganhar destaque: a padronização, “baseada num referencial padrão
partilhado”, e a simbolização, baseada na “construção de símbolos de identificação coletiva”
(Ramalho e Resende, 2011: 29). A existência de uma língua nacional responde a ambas as
estratégias simultaneamente, quer na condição de código ou padrão de comunicação
compartilhado, quer na condição de símbolo de identidade nacional.
Se, a partir da perspectiva construtivista, as identidades são construídas no diálogo com
o outro, de acordo com Kuper (1999: 235), é preciso ter em mente que elas são vivenciadas de
outro modo, numa espécie de autodescoberta que implica a identificação com os outros e,
especialmente, a participação em identidades de natureza coletiva, como, por exemplo, a
identidade nacional: “The inner self finds its home in the world by participating in the identity
of a collecvitivy (for example, a nation, ethnic minority, social class, political or religious
movement)”.
No caso da Eslovênia, a afirmação e a valorização da sua língua surgem como fator de
identificação e critério para participação em uma cultura nacional, independentemente das
A construção discursiva das identidades nacionais
31
práticas linguísticas vivenciadas dentro das fronteiras do país. Como afirma Kmecl (2005: 4),
não sem antes destacar a exiguidade do território esloveno, que pode ser atravessado de Leste a
Oeste em cerca de três horas, a compreensão recíproca nem sempre é uma realidade: “it is quite
possible that a Slovene from the east will not be able to understand a Slovene from the west,
while a Slovene living in the central part will comprehend neither, and vice versa”.
Uma vez estabelecida a opção por uma visão construtivista das identidades nacionais,
baseada no discurso, e introduzido o caso da Eslovênia, passa-se a uma breve reflexão sobre a
metodologia a ser adotada, neste caso, a análise crítica do discurso e, em especial, as
teorizações e ferramentas oferecidas pela Linguística Sistêmico-Funcional (LSF).
A análise crítica do discurso
A análise crítica do discurso tem como fundamento o pressuposto de que a linguagem
está intrinsecamente ligada à estrutura social, configurando-se simultaneamente em elemento
estruturante e consequência dessa estruturação (Gouveia, 2009). A relação entre texto e
contexto, ou entre discurso e prática social, é de tal natureza que, a partir do conhecimento de
um, é possível apreender o outro, ou seja, representam um viés diferente de um mesmo objeto.
Dentro do escopo da análise crítica do discurso podem ser encontradas várias teorias,
abordagens e modelos que se distinguem entre si (Resende, 2009: 11). Não há uma única versão
da teoria geral, mas sim várias, o que garante sua consistência e lhe atribui maior elasticidade e
riqueza com a multiplicidade das perspectivas.
A abordagem adotada neste trabalho segue a proposta de Fairclough, que atribui ao
texto a capacidade de provocar “efeitos causais sobre as pessoas (crenças, atitudes), as ações, as
relações sociais e o mundo material”, efeitos esses que seriam “mediados pela construção de
significado” (Fairclough apud Resende, 2009: 23). Nessa versão da análise crítica do discurso,
a vida social é compreendida como um “sistema aberto”, que se realiza num mundo social
“constituído de redes de práticas articuladas” (Resende, 2009: 30).
A análise crítica do discurso oferece os meios necessários para se perceber de que modo
a linguagem é utilizada para a construção e perpetuação de discursos, valores e visões de
mundo que, embora representem os interesses de alguns e sejam resultado de escolhas
determinadas, são assimilados como sendo universais e incontornáveis, transformando-se,
assim, num eficiente mecanismo de produção e reprodução das ideologias (Resende, 2009:
47-78). Essa estratégia de universalização caracteriza a disputa pelo poder, que consiste na
A Palavra como Alicerce da Nação
32
“luta pela instauração, sustentação e universalização de discursos particulares” (Ramalho e
Resende, 2011: 25).
Ao lado da estratégia de universalização e num mesmo sentido, opera a naturalização,
que implica em transformar uma determinada construção social em algo considerado normal e
assumido como certo ou garantido (Holliday, 1999: 251), ou seja, como senso-comum. De
acordo com Gouveia (2001: 341-2), é tarefa da análise crítica “relacionar o micro-evento
(discursivo) com a macro-estrutura (social) e desnaturalizar o que foi naturalizado, ou seja, o
que foi dissociado dos interesses da classe ou grupo social particular que o gerou”.
Uma vez reconhecida a forte carga ideológica das práticas discursivas, as quais “pelo
modo como representam a realidade e posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a
reproduzir relações de poder desiguais” (Gouveia, 2001: 340), importa ressaltar que, no âmbito
deste trabalho, entende-se a ideologia “não como uma imagem distorcida do real, uma ilusão,
mas como parte do real social, um elemento criativo e constitutivo das nossas vidas enquanto
seres sociais” (ibidem: 338-9).
Dentro do arcabouço de metodologias e abordagens oferecido pela análise crítica do
discurso, a perspectiva adotada neste trabalho é a da linguística sistêmico-funcional. De acordo
com essa teoria, a linguagem desempenha uma pluralidade de outros papéis, além da função de
comunicação, dos quais os mais importantes seriam a função ideacional, a função interpessoal e
a função textual.
Na vertente ideacional, e de acordo com Gouveia (2009: 15), a linguagem serve “para
darmos conta da nossa experiência do mundo, seja este o real, exterior ao sujeito, seja este o da
nossa própria consciência, interno a nós próprios”. Na vertente interpessoal, a linguagem é
utilizada “para estabelecermos e mantermos relações sociais uns com os outros, para
desempenharmos papéis sociais, incluindo os comunicativos, como ouvinte e falante”. Na
vertente textual, a linguagem “providencia-nos a possibilidade de estabelecermos relações
entre partes de uma mesma instância de uso da fala, entre essas partes e a situação particular de
uso da linguagem”, criando, assim, uma série de outras possibilidades de construção de sentido
e relevância.
A linguística sistêmico-funcional opera simultaneamente como uma “teoria geral do
funcionamento da linguagem humana” e um “modelo de análise textual” (Gouveia, 2009: 14),
que será aquele adotado no âmbito deste trabalho. A língua é entendida como “uma realidade
fundamentalmente social, concretizada na materialidade discursiva dos textos e da interação
verbal” (ibidem: 17).
A língua como realidade social, condicionada e condicionante dessa realidade,
A construção discursiva das identidades nacionais
33
representa uma possibilidade de acesso a esta. Como afirma Gouveia (2009: 25-6), “a relação
entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um contexto, será
possível prever os significados que serão ativados e as características linguísticas potenciais
mais previsíveis para as codificar em texto” e vice-versa.
É ao nível do discurso que as questões culturais, às quais a percepção de uma certa
identidade nacional está intrisecamente relacionada, são melhor compreendidas (Holliday,
1999: 252), embora a equiparação da nação com a ideia de uma cultura em grande escala e
homogênea esteja no cerne do desenvolvimento do próprio conceito de nação no cenário
europeu: “Equating nation with homogeneous ideas of large culture also supported the
conceptual development of European nations themselves” (ibidem: 243).
Nesse processo de construção discursiva, que se faz e refaz incessantemente, não só a
ideia de cultura é elaborada, mas também o passado é trazido ao presente, em especial na
reconstrução da história nacional. O embate entre várias narrativas possíveis, das quais umas
emergem e outras são apagadas, revela a relação de poder que se estabelece entre os diversos
grupos: “Power comes visibly into play as soon the various narratives of the past are confronted
with each other and elites select one of the competing narratives and naturalise it as the „past‟
(what „really‟ happened)” (Martin e Wodak, 2003: 8). As estratégias de universalização e
naturalização são, mais uma vez, postas em prática. O mesmo se dá no processo de construção
das identidades nacionais: “Pasts are rearranged, transformed, recontextualized, substituted,
mystified or totally changed” (ibidem, 2003: 11).
Síntese
É possível refletir sobre a questão da identidade nacional a partir de uma pluralidade de
abordagens de acordo com o viés adotado: seja o da antrolopogia, da sociologia, da psicologia,
da história entre outros. Neste capítulo, foi explicitada a opção pela abordagem dos estudos
culturais (vd. Hall, 1997), a partir da adoção de uma visão construtivista, que entende as
identidades como uma espécie de tomada de posição construída no âmbito da prática discursiva
(vd. Tann, 2010).
No esforço de compreensão do processo de construção das identidades nacionais, e do
papel da língua dentro dele, optou-se pela análise do caso da Eslovênia, que será tomada como
referência ao longo deste trabalho.
A metodologia definida foi a da análise crítica do discurso, cuja fundamentação foi
A Palavra como Alicerce da Nação
34
discutida em contornos bastante gerais neste capítulo. Dentre as ferramentas disponíveis no
âmbito da análise crítica do discurso, optou-se pelo portfólio desenvolvido pela linguística
sistêmico-funcional.
A seguir, serão esclarecidos os critérios de análise efetivamente adotados e será
realizada a análise da introdução a uma coletânea de contos eslovenos de autores
contemporâneos, traduzidos para o inglês, publicados com o objetivo de divulgar a literatura
eslovena no cenário internacional.
Análise do texto: aspectos de textualização
(Capítulo 3)
Introdução
Estratégias de atração e convencimento
Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas
Descrição e organização geral do texto
Síntese
A Palavra como Alicerce da Nação
36
Análise do texto: aspectos de textualização
37
Introdução
Neste capítulo, será apresentado e discutido o texto selecionado para análise: a
introdução do livro Angels Beneath the Surface – A Selection of Contemporary Slovene
Fiction (Priestly, 2008). Nesta primeira abordagem, serão privilegiados os aspectos de
textualização, destacando-se a função desempenhada pelo texto e sua organização geral.
Importa analisar a introdução em seu conjunto, antes de focar pontos específicos, para extrair
do texto o maior número de significados possíveis.
O primeiro ponto abordado diz respeito às estratégias adotadas pelos autores da
introdução para cativar o leitor e atribuir credibilidade ao texto: por um lado, o humor, como
recurso para promover a aproximação e criar empatia com o leitor; por outro, o
distanciamento, como recurso para construir a ilusão de imparcialidade e conquistar, assim,
maior credibilidade.
A seguir, o foco de atenção recairá sobre o critério adotado logo no início do texto
para a apresentação da Eslovênia: o das referências geográficas. É a posição da Eslovênia no
mapa do mundo, ou seja, a localização e delimitação de suas fronteiras, que surge como a
primeira opção dos autores para introduzir o país. A contraposição entre Leste e Oeste,
bastante frequente no texto, também será considerada neste estudo.
Por fim, a introdução em análise será apresentada em sua integralidade por meio da
descrição dos seis diferentes blocos que a constituem. Os recortes cronológicos e históricos
serão destacados, de modo a proporcionar ao leitor uma ideia da lógica que rege a
organização do texto e a sua fragmentação para construção de um todo coeso, orgânico e
consistente.
A partir da análise da introdução de acordo com os três critérios acima indicados,
pretende-se identificar se, e em que medida, o discurso esloveno de construção da sua
identidade nacional a partir da afirmação e valorização de uma língua e literatura nacionais
está presente. Mais do que isso, busca-se compreender de que maneira esse discurso se realiza
ao longo do texto.
A Palavra como Alicerce da Nação
38
Estratégias de atração e convencimento
Antes de mais nada, é preciso ter em conta que o texto em análise se apresenta como
introdução a uma antologia de contos escritos por autores eslovenos contemporâneos e
traduzidos para a língua inglesa. Todas as histórias foram criadas no período que vai de 1990
um ano antes da independência da Eslovênia e 2005 um ano após a entrada do país na
União Européia.
A introdução, elaborada em inglês, é assinada por Mitja Čander, editor e crítico
literário, e Aleš Šteger, poeta e também crítico literário, ambos eslovenos. O objetivo
explícito e mais óbvio é o de apresentar aquela seleção de contos e, mais especificamente, a
literatura eslovena contemporânea. O menos óbvio, no entanto, mas logo percebido nas
primeiras linhas do texto, parece ser a apresentação de um país:
Oh, Slovenia, Yeah, right. Hungarians to the north, Italians to the south. No, that can’t be right. Try again: Croatians to the north, Romanians to the South. And Ukraine to the west. Or is it Slovakia? Or Slavonia, rather? Bosnia, perhaps? Yes, that’s it. Bosnia to the west. Germany in the heart. And Russia, far, far away. [Linhas 1 a 5]
O ponto de partida é a assunção de uma grande dose de desconhecimento da Eslovênia
por parte dos leitores. A definição das fronteiras é o critério escolhido para uma primeira
introdução a esse país de fronteiras fugidias e confusas, como se a Eslovênia fosse uma
espécie de território perdido ou imaginado.
A opção pelo registro de humor na abertura do texto surge como um convite à leitura e
parece assumir a dupla função de fator de atração do leitor, pela via da empatia, e de
facilitador de entrada para esse pedaço de mundo semidesconhecido. Também reflete um
certo grau de informalidade e jovialidade, que podem ser associados à juventude, ou seja, à
nova geração de autores apresentados. Esse mesmo tom é retomado no encerramento do texto:
Still, if you, dear distant reader, alone or in pairs, manage to find us there, in the nowhere, to the west of Bosnia, to the left of Italy, we hope you will enjoy the reading. [Linhas 274 a 277]
O recurso ao humor não se restringe, no entanto, à apresentação da Eslovênia, ele é
estendido à caracterização do povo esloveno, como se vê nas passagens abaixo:
For historians of a biological bent, Slovenes could easily serve as somewhat bizarre proof that even the small not only survive physically; sometimes they are rewarded for their persistence, fanaticism, and incestuous nature: the reward being a state of their own (itálicos acrescentados). [Linhas 8 a 11]
Análise do texto: aspectos de textualização
39
During the long centuries without independence, despite the downdraft of history and a permanent cultural inferiority, The Slovene language became recognized as the common sacred emblem of its stubborn and often narrow-hearted speakers (itálicos acrescentados). [Linhas 21 a 24]
As características atribuídas aos eslovenos dificilmente seriam tomadas como
positivas: fanatismo, natureza incestuosa, teimosia e mesquinhez. Mas são elas que, aliadas à
persistência, conduzem à recompensa final: um Estado próprio. A opção pelo humor pode
justificar, em parte, a atribuição de qualidades negativas na caracterização do povo esloveno,
mas é possível fazer outras leituras. Por fanatismo, pode-se ler fé religiosa; por natureza
incestuosa, pode-se ler identidade étnica; por teimosia, pode-se ler persistência; por
mesquinhez, pode-se entender o desejo de um Estado próprio, ou seja, a construção de uma
identidade e de uma consciência nacionais.
O humor surge carregado de uma boa dose de ironia e autocrítica, evidenciando um
olhar reflexivo, que revela a conexão dos autores com o tema tratado a Eslovênia ,
conexão esta que logo será substituída por uma linguagem de distanciamento. Um bom
exemplo desse tom irônico pode ser encontrado na passagem abaixo, que destaca um certo
isolamento físico do país, seja pela existência de muralhas naturais, numa referência aos
Alpes, seja pela exiguidade da costa marítima, de pouco mais de 46 km:
High, uncrossable Alps throwing deep shadows, and the navy in the Slovene sea adding up to three boats, one of them being a rubber dinghy. [Linhas 5 a 7]
Outro recurso utilizado pelos autores na abertura e no encerramento da introdução é o
da interpelação do leitor. Ao longo de todo o desenvolvimento do texto eles não aparecem;
afastam-se da narrativa e assim atribuem à história que contam uma aparência de verdade,
como se narrassem fatos incontroversos, e não uma versão de tais acontecimentos. Os dados
oferecidos no texto surgem como fatos concretos e incontestáveis. A imparcialidade dos
autores que, embora sendo eslovenos, falam da Eslovênia e dos eslovenos como se não
fizessem parte desse grupo dá o tom de veracidade e credibilidade. Ao mesmo tempo, a não
identificação dos autores como nacionais ameniza o eventual caráter ufanista do texto, de
celebração da identidade eslovena, fortalecendo, assim, o discurso.
Tanto o humor como a interpelação e o distanciamento consistem em estratégias
diferentes de abordagem, embora complementares. Se o humor e a interpelação direta do
leitor destacam-se como abordagens de conquista e pretendem cativar pela proximidade e
empatia, numa espécie de apelo emocional, o afastamento dos autores procura convencer pelo
distanciamento: afastam-se do leitor, agora cativo, para dar credibilidade ao texto.
A Palavra como Alicerce da Nação
40
Introdução à Eslovênia via coordenadas geográficas
As referências à posição geográfica da Eslovênia, quer pela indicação de países ou
regiões vizinhas ou próximas, quer pela contraposição entre Leste e Oeste, nesses casos
muitas vezes com acepção político-econômica, é recorrente na introdução. Na abertura do
texto, é uma constante. Toda essa passagem é construída em função dessas contraposições:
Hungria, Croácia, Ucrânia, Eslováquia, Eslavônia, Bósnia, Alemanha, Rússia. A tal fato
soma-se a ausência de referência direta à Iugoslávia ou aos Bálcãs, que poderiam, a princípio,
ser as referências mais imediatas do leitor.
Se o ponto de partida da introdução é a assunção de desconhecimento do leitor em
relação à Eslovênia, apesar do tom de humor, a referência às fronteiras nacionais podem
remeter a memórias de conflito e tensão entre países, especialmente na região dos Bálcãs, em
função do histórico de violência ainda recente.
A Alemanha aparece no coração da Eslovênia e a Rússia, muito distante (vd. citação
supra, na página 38), num aparente movimento de aproximação com a Europa, aliado à
possível lembrança de um passado comum, e de distanciamento da Rússia e, indiretamente,
do seu passado comunista ideia que parece reforçada pela não menção à Iugoslávia,
conforme referido acima.
Logo a seguir, ainda no início do texto, há mais três ocorrências de passagens que
utilizam as referências geográficas para caracterizar e individualizar a Eslovênia. A primeira é
genérica, associando o surgimento do Estado esloveno a mudanças no mapa da Europa em
função de uma onda pós-comunista:
The Slovene state arose from the wave of post-Communist changes on the map o Europe. [Linhas 11-12]
A segunda, com conotação cultural, situa a Eslovênia no ponto de intersecção entre
diferentes culturas (germânica, românica e húngara), enquanto a terceira contrapõe o país às
demais nações eslavas, posicionando e, simultaneamente, diferenciando a Eslovênia como a
mais ocidental dessas nações:
Historically Slovenes had stopped on the crowded crossroads between the Germanic, Romance, and Hungarian worlds to become the westernmost branch of Slavic nations. [Linhas 14-17]
Aqui, pela primeira vez, a Iugoslávia e os Bálcãs são referidos, mas apenas no
contexto da independência da Eslovênia e após esta ter sido mencionada , valorizando,
Análise do texto: aspectos de textualização
41
assim, o presente, marcado pela autonomia e liberdade, pela afirmação da nação e não por
uma referência ao seu passado de ausência de autonomia.
Na menção à posição da Eslovênia como ponto de encontro entre culturas distintas, o
referencial geográfico é indireto, mas se faz sentir. Tem-se uma ideia mais clara da
localização da Eslovênia no mapa, assim como da riqueza cultural que resulta da
convergência das influências de culturas distintas, representadas por países como a Alemanha,
a Itália e a Hungria. Ao mesmo tempo, a Eslovênia só tem a ganhar com a associação da sua
história à de nações já reconhecidas.
Outra mensagem que parece estar subentendida é o da vocação do país para a
mediação cultural, característica bastante valorizada hoje no cenário internacional e
diretamente relacionada às questões de estabilidade política e de manutenção da paz. Em
documento intitulado “Slovenia entering to EU – April 2004”, produzido pelo departamento
de relações públicas da Eslovênia à época da entrada do país na União Europeia, esse
potencial de mediação é destacado quer como uma contribuição da Eslovênia para a União
Europeia, quer como um compromisso assumido com o futuro (vd. The Government Public
Relations and Media Office of Slovenia).
Por fim, ao reconhecer-se como a nação eslava mais ocidental, a Eslovênia não só
reforça seu movimento de aproximação com o ocidente cujo fato político mais marcante
talvez seja a adesão à União Européia em 2004 como acentua o seu processo de
diferenciação das demais nações eslavas. Reconhece a origem comum e, exatamente por
conta disso, busca a diferenciação como forma de fortalecer sua própria identidade.
Talvez essa necessidade de afastamento e diferenciação em relação às demais nações
eslavas seja o mais contundente desses movimentos. Ao se aproximar de um outro distante,
aqui representado pela União Européia, a identidade nacional eslovena é realçada pela
diferença. Já no contato com o próximo, nesse caso com as nações eslavas, essa diferença
corre o risco de se esvanecer. Nesse contexto, o suposto afastamento da Eslovênia em relação
ao mundo eslavo talvez faça ainda mais sentido, considerando-se a necessidade de
diferenciação como parte do processo de construção de sua identidade nacional.
Ao longo do texto, verificam-se também quatro registros envolvendo, de forma direta
ou não, a contraposição entre a Europa ocidental e a Europa oriental. No primeiro deles, a
Iugoslávia é posicionada entre uma e outra:
Having overcome the 1948 dispute with Stalin, Yugoslavia engaged in finding a middle course between the East and the West... [Linhas 134-135]
A Palavra como Alicerce da Nação
42
Em outro momento, a menção à Europa ocidental surge num contexto de tentativa de
aproximação e relativização das barreiras:
Despite certain restrictions, from the middle of the 1960s on, Slovene authors had virtually no lack of information concerning contemporary literary trends in Western Europe. [Linhas 137-139].
A mensagem geral que se depreende das citações acima é, mais uma vez, a de
diferenciação e afastamento entre o regime comunista adotado pelo mundo soviético e aquele
vivido na Iugoslávia. De modo geral, parece sugerir que o regime iugoslavo tenha sido mais
brando, menos opressor.
Em duas outras passagens, os autores indiretamente situam a Iugoslávia como parte
das nações do chamado bloco do Leste ao referirem-se a ela como “other Eastern bloc
nations/countries” (linhas 135 e 159).
Essa questão representa um ponto de conflito que reside na inclusão ou não da então
Iugoslávia no grupo de países referidos como o bloco do Leste. Pelo registro do texto, os
autores do prefácio parecem assumir essa participação, pois, ao se referirem aos outros países
do bloco de Leste, subentende-se que a Iugoslávia fazia parte desse grupo. Em sentido
contrário, alguns autores consideram que apenas os países alinhados com a URSS fariam
parte desse bloco, o que excluiria a Iugoslávia.
Ao final da introdução, como já referido, é retomado o discurso de abertura, com uma
nova tentativa de identificação da Eslovênia com suas sempre fugidias coordenadas
geográficas, perdida entre a Bósnia e a Itália: “in the nowhere, to the west of Bosnia, to the
left of Italy” (linhas 275 e 276).
Descrição e organização geral do texto
O texto está dividido em seis blocos de tamanhos desiguais. Com exceção dos dois
primeiros, que servem de apresentação do país sem que a literatura seja mencionada uma
única vez, os demais traçam um breve painel da história da Eslovênia e da sua literatura, em
ordem cronológica, com destaque para grandes acontecimentos políticos.
O primeiro bloco, ou seja, a abertura do texto, representa uma tentativa de
aproximação dos autores em direção ao leitor, caracterizada pelo uso de interjeições e de
interpelações, simulando a fala direta, como já mencionado. Do segundo bloco em diante, o
tom assumido pelos autores é de distanciamento, quer do leitor, a quem não mais se dirigem
Análise do texto: aspectos de textualização
43
diretamente, quer da condição dos mesmos em relação às suas nacionalidades. Embora ambos
sejam eslovenos, ao se referirem a seu país e seus conterrâneos, utilizam sempre os pronomes
em terceira pessoa. Nessa passagem do texto, os autores procuram informar o leitor sobre de
„quem‟ se fala: da Eslovênia e dos eslovenos.
Num rápido recorte histórico, são destacados a Guerra dos 10 dias, que representaria o
início do que seria a Guerra dos Bálcãs e da consequente dissolução da Iugoslávia, e o
passado remoto, sob o domínio dos Habsburgos, no século XV. De lá, dá-se um novo salto em
direção ao século XX para se destacar o período monárquico, vivenciado após a 1ª Guerra
Mundial, e o “experimento socialista de Tito” (linhas 19 e 20), levado a cabo após a 2ª Guerra
Mundial. Seriam esses os principais episódios que marcariam a memória coletiva eslovena.
Faz-se, portanto, referência a uma consciência nacional eslovena, que encontra seus
fundamentos num passado longínquo e comum, e, ao mesmo tempo, diferencia-se a vivência
da Eslovênia dentro do bloco dos países socialistas, afastando-a, em certa medida, dos demais
países alinhados à antiga URSS.
No terceiro bloco, a descrição parte de meados do século XVIII, no período
Romântico, e termina na primeira metade do século XX, seguindo o critério cronológico.
Aqui efetivamente começa o processo de resgate das raízes nacionais, ou seja, tem início o
despertar do sentimento nacional: “the nation‟s self-awakening process” (linha 62).
A Eslovênia surge como uma espécie de realidade adiada, uma nação com raízes
profundas, que, por contingências históricas, só virá a ser reconhecida com a independência,
em 1991. A língua seria o símbolo desse povo, um forte fator de união e de identidade, e a
literatura, um dos mecanismos de resgate e de mobilização política e social.
Em destaque a figura de France Prešeren (18001849), o poeta romântico
transformado em herói nacional por elevar a língua eslovena antes rústica e sem valor
estético ao patamar mais alto na escala cultural. A língua e também a literatura eslovenas
são apresentadas como propulsoras desse movimento a favor de uma identidade nacional,
como forma de superação de uma suposta inferioridade cultural vivenciada pelo país até
então.
O padrão de comparação cultural é Goethe, numa referência à cultura da Europa
ocidental, grupo com o qual a Eslovênia de hoje, na condição de país membro da União
Européia, cada vez mais se identifica e interage. Essa referência é ainda mais significativa se
levarmos em conta que, durante o período romântico, a língua eslovena esforçou-se por se
afastar da influência alemã, que um dia representou o poder dominante.
A Palavra como Alicerce da Nação
44
O processo de despertar da consciência nacional nasce com a elevação da língua e da
literatura ao nível mais alto da escala cultural, comparável ao das nações reconhecidas e
respeitadas. É a poesia lírica e apaixonada seu mote, e não a prosa épica. É a emoção, e não a
ação, o ingrediente essencial à construção da identidade nacional nesse primeiro estágio. Na
ausência de um território reconhecido e de autonomia política, os eslovenos encontram na
língua comum o seu fator de identificação.
O corte temporal desse bloco de texto tem início com Prešeren e termina com outro
poeta, Srečko Kosovel, morto em 1926, passando pelos também escritores Josip Jurčič
(18441881), Ivan Cankar (18761918) e Zofka Kveder (18781926). A literatura eslovena e
seus autores são apresentados e louvados: Prešeren é o poeta maior, inventor da língua
eslovena; Jurčič é o “fundador” (linha 67) da prosa eslovena; Cankar é a figura sem a qual a
“literatura contemporânea eslovena não existiria” (linhas 81 e 82); Kveder é a “primeira
escritora eslovena de destaque” (linhas 85 e 86); e Kosovel é “um dos mais significativos
poetas eslovenos” (linha 91).
Com exceção de uma referência à ascensão do fascismo, associado a um “sentimento
de horror generalizado” (linha 93), nenhum outro evento político é mencionado, nem mesmo
a 1ª Guerra Mundial. Enfim, nada que possa desviar o leitor do caminho indicado: o despertar
da consciência nacional eslovena pelas mãos de uma língua e de uma literatura que se
afirmam, valorizam e evoluem.
Ainda assim, e apesar de todo o empenho, a Eslovênia está longe de acordar, como
indica o final deste bloco de texto que se encerra com os versos de um poema de Kosovel
intitulado “Ljubljana spi” (“Ljubljana dorme”):
Hey, green parrot, tell me, how things are in Europe. The green parrot replies: “man is not symmetrical.” [Linhas 104-107]
No quarto bloco, o período abordado tem início com a Segunda Guerra Mundial e
segue até a morte do General Tito, um dos principais responsáveis pela formação da
Iugoslávia, a qual liderou por quase 40 anos como Primeiro Ministro e, mais tarde, como
Presidente. O desenvolvimento da literatura é registrado pela sucessão de autores, que surgem
invariavelmente em situação de resistência ou mesmo de confronto ao poder político.
A 2ª Guerra Mundial é apresentada como um episódio traumático da história eslovena,
que ainda produz seus ecos, dividindo o país entre aqueles que vêem a participação do país
Análise do texto: aspectos de textualização
45
sob o manto de uma “glória mítica” (linha 121) e aqueles para as quais trata-se de um “pecado
a ser esquecido” (linhas 121 e 122).
O Nazismo e o fascismo são os grandes criminosos, responsáveis por uma “cruel
ocupação” (linha 111), contra os quais os eslovenos opõem uma “corajosa resistência” (linhas
110 e 111). Logo a seguir, os autores apontam a “guerra fratricida” (linha 112) em que os
eslovenos se viram envolvidos nesse período e que culminou numa série de episódios de
violência e no massacre de mais de 15 mil soldados no período do pós-guerra.
A caracterização do regime comunista em vigor na Eslovênia é mais uma vez marcada
pela afirmação das diferenças em relação ao praticado nas outras nações do chamado bloco do
Leste. O regime esloveno seria mais brando ao permitir maior liberdade de comunicação e o
não isolamento da Eslovênia, que, desde os anos 60, teria tido acesso às tendências literárias
do ocidente, embora com restrições (vd. citação supra, na pág. 42).
Apesar do discurso de relativização, são lembrados episódios como a prisão de
autores, as restrições à liberdade de expressão que se busca contornar pelo apelo às metáforas,
a imposição de 30 anos de silêncio sobre os massacres do pós-guerra.
É nesse contexto que o protagonismo da literatura é novamente realçado, agora via
Edvard Kočbek (19041981), o poeta que rompe o silêncio e, pela primeira vez, escreve sobre
os massacres. Kočbek, além de poeta, teve também uma relevante atuação política, ocupando
o cargo de ministro durante o primeiro governo iugoslavo, mas foi só graças ao apoio
internacional que conseguiu vencer as pressões feitas sobre ele e dar voz a esse tema. A
relação entre a literatura, aqui representada pelos autores eslovenos, e a repressão instituída
pelo regime comunista é descrita como de vigilância e resistência. Com o enfraquecimento do
regime, é a literatura que eleva sua voz e fala em nome dos eslovenos. Esta parte do texto se
encerra no final dos anos 80, às vésperas da declaração de independência da Eslovênia.
O quinto bloco do texto assinala o período de transição e de ruptura entre o passado
e o futuro iniciado com a morte de Tito e que se encerra com a declaração de independência
da Eslovênia em 1991. O desaparecimento de Tito é associado a um sentimento generalizado
de liberdade. A rejeição a Tito implica, em alguma medida, a rejeição ao regime comunista e
ao modelo iugoslavo. Nesse contexto, pode ser entendido como forma de afirmação e defesa
de uma identidade eslovena.
Surge aqui a primeira referência direta ao objeto do livro apresentado: o conto
esloveno (na linha 184, de um total de 277). A referência ao gosto literário nesta passagem é
dirigida ao grande épico nacional, gênero em que Tolstói é apontado como o grande mestre.
A Palavra como Alicerce da Nação
46
Além de invocar a proximidade histórica com a Rússia, é interessante notar a passagem da
poesia lírica para o romance épico. Passa-se da emoção, que marca o início do despertar de
uma consciência nacional, para a ação, que será necessária para a concretização desse
processo, no momento em que se aproxima a independência.
A postura do escritor em relação à vida nacional também começa a se alterar. Agora
ele observa e pondera; não é mais o móvel, o iniciador, o agitador. A referência literária
utilizada como contraponto é Hemingway, mencionado aqui para acentuar a mudança de
postura e marcar uma distância entre o escritor esloveno e o mundo que este observa de longe,
sem sair do seu lugar.
O sexto bloco do texto cobre o período que se inicia com a independência e segue até
os dias atuais. Nesse percurso, é destacado o “poderoso papel simbólico” (linha 198)
desempenhado pela literatura e a “glorificação” (linha 202) de que esta foi alvo nos discursos
políticos proferidos logo após a declaração de independência.
Assim chega-se à literatura contemporânea eslovena, especificamente aos contos que
fazem parte da antologia referida. Nem um único autor é identificado nesse bloco, tampouco
há referências significativas a episódios políticos. O que se destaca aqui é a mudança do papel
social da literatura, representada por seus autores. Com a independência, estes não mais
desempenham papel de oposição e resistência ao regime. A ideia de uma missão literária
parece perder o sentido.
Com o reconhecimento da Eslovênia como nação, a literatura está livre de suas
amarras. Começa agora a redescoberta do mundo, de um mundo real e alargado, e a tentativa
da jovem nação eslovena de se entender e reconhecer nele. Livre do seu compromisso
nacional, a literatura eslovena pode ser simplesmente literatura.
De acordo com os autores da introdução, a literatura eslovena contemporânea é
marcada pelo foco perpétuo no outro e por uma busca incessante da liberdade, que surge
como a última “herdeira da utopia” (linha 153). A ânsia pelo real e pelo autêntico,
frequentemente associadas a uma sociedade que se afirma pós-moderna, são a tônica. No
lugar da metáfora, surge a metonímia, enquanto a língua segue atuando como fator de
diferenciação em relação ao outro e de identidade nacional por meio da acentuação de suas
especificidades, como, por exemplo, a dualidade da língua eslovena.
Dos seis blocos de texto acima referidos, três deles serão retomados ao longo do
próximo capítulo: o terceiro, que representa o papel da língua e da literatura no despertar da
consciência nacional eslovena e que será identificado como “Despertar” (com um total de 921
palavras), o quarto, que representa o papel da língua e da literatura como fator de mobilização
Análise do texto: aspectos de textualização
47
e transformação social e que será identificado como “Mobilização” (com um total de 806
palavras), e o sexto, que representa o papel da língua e da literatura na Eslovênia hoje e que
será representado como “Contemporânea” (com um total de 906 palavras).
Síntese
Neste capítulo, o texto-objeto de reflexão e análise foi apresentado a partir de uma
visão ampliada e de conjunto. Partiu-se da discussão sobre as estratégias escolhidas pelos
autores da introdução para atrair o interesse do leitor e conquistar credibilidade. O recurso ao
humor e à ironia foi destacado, assim como a estratégia de distanciamento dos autores, no que
diz respeito à condição de cidadão nacional, para estimular a percepção de independência e
imparcialidade, que consiste numa importante estratégia de convencimento.
A identificação da Eslovênia por via das referências geográficas, que também servem
como meio de caracterização e diferenciação do país em relação aos demais, foi descrita a
seguir. Fronteiras de linhas esbatidas confundem-se e evocam países sem uma ordem
aparente, mas numa desordem de origens históricas, marcada por conflitos como as duas
grandes guerras. A contraposição entre Leste e Oeste, em sua multiplicidade de sentidos,
também foi explorada.
Por fim, o texto foi descrito em pormenor, a partir da sua divisão em blocos, de modo
a proporcionar ao leitor uma visão orgânica do mesmo. Privilegiou-se a reconstrução de
episódios históricos, colocando em evidência a opção feita pelos autores da introdução e a
seleção de personalidades de destaque.
Com a discussão sobre as estratégias adotadas pelos autores para endereçamento do
texto, o posicionamento da Eslovênia nele e a descrição geral da introdução, pretendeu-se dar
ao leitor uma visão de conjunto antes de se refletir sobre temas mais específicos. No próximo
capítulo, a análise recairá em determinadas características do texto, recorrendo-se à
abordagem e a algumas das ferramentas oferecidas pela Lingüística Sistêmico-Funcional.
Análise do texto: aspectos de representação
(Capítulo 4)
Introdução
Palavras frequentes: slovene, literature e literary
O papel dos atores sociais: língua, literatura e nação
Uma representação de mundo via a análise dos processos relacionais
Síntese
A Palavra como Alicerce da Nação
50
Análise do texto: aspectos de representação
51
Introdução
Para entender de que maneira os conceitos de língua e literatura são articulados em
função da construção da identidade nacional eslovena, neste capítulo serão observados
aspectos específicos do texto, que poderiam passar despercebidos na leitura, mas que
codificam informações relevantes sobre a visão de mundo apresentada e representada na
introdução.
O primeiro aspecto selecionado para análise consiste na identificação das três palavras
mais utilizadas no texto – slovene, literature e literary –, as quais, por si só, já revelam o tema
em destaque, ou seja, a literatura eslovena. Essas palavras serão avaliadas dentro dos
diferentes grupos nominais (vd. Hartnack, 2002: 118) de que fazem parte, ora na condição de
núcleo, ora na condição de modificador.
O segundo aspecto escolhido refere-se ao papel desempenhado pelas
palavras/entidades “língua” e “literatura” no interior da oração. Interessa observar a relação de
agenciação, ou seja, as situações em que os nomes língua e literatura, na condição de
participantes de um dado processo, assumem a função de agente ou, ao contrário, a de objeto
ou beneficiário do mesmo. A observação do modo como os principais atores sociais são
representados no texto serve de indicativo da relevância de cada um na construção do discurso
e, assim, dos seus respectivos papéis.
O terceiro e último aspecto eleito trata da incidência dos processos relacionais,
avaliados no âmbito do sistema da transitividade, como proposto por Halliday (apud Martin et
al, 1997), e aqui evidenciado pela frequência do verbo to be, nas variações is, are, was e
were.
Cumpridas as tarefas acima indicadas, completa-se o processo de análise efetiva do
texto, iniciado no capítulo anterior. Se, no capítulo três, privilegiou-se uma visão ampliada da
introdução, sem se perder de vista a ideia de conjunto, neste capítulo o foco incide sobre
aspectos de representação, respeitando-se sempre os respectivos contextos.
A Palavra como Alicerce da Nação
52
Palavras frequentes: slovene, literature e literary
A partir da contagem das palavras utilizadas na introdução, foram identificadas as três
mais frequentes: slovene, literature e literary. Dessas três, duas desempenham
prioritariamente a função de modificadores: os adjetivos slovene e literary. Slovene é o termo
mais frequente, com trinta e um registros; a seguir, vem literature, com vinte e oito; e, por
fim, literary, com quinze.
Para entender melhor os possíveis significados da recorrência desses termos no texto,
retoma-se o enquadramento da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Para a LSF, a unidade
adequada para análise das diferentes metafunções da linguagem – ideacional, interpessoal e
textual – seria a oração (Martin et al, 1997: 5). Ela representaria a unidade mínima de
significação, seguida pelos grupos nominais (Thompson, 1996: 179), nos quais, segundo
Martin (1997: 100), a metafunção ideacional também se manifestaria no que diz respeito ao
modo de organização desses grupos.
No caso de slovene, a análise realizou-se em três etapas. A primeira delas consistiu na
identificação dos grupos nominais que continham o termo em estudo e na sua dispersão ao
longo do texto, em função dos blocos definidos como “Despertar”, “Mobilização” e
“Contemporânea”. Excluindo-se um único caso, em que slovene aparece na função de
substantivo, representando o esloveno, ou melhor, a língua eslovena, em todos os demais,
slovene surge como adjetivo.
A segunda etapa consistiu na identificação dos respectivos núcleos dos grupos
nominais; neste caso, aquilo que é modificado pelo adjetivo slovene. Tais núcleos foram
classificados em três categorias distintas: Estado, Sociedade e Língua. Em Estado, foram
reunidos os termos que remetem à organização e infraestrutura pública do mesmo (sea, state e
branch of the people’s front). Em Sociedade, foram classificados os termos que referem
diretamente a pessoas e ao contexto social (identity, history, society e students). Em Língua,
foram contabilizados os termos relacionados ao mundo literário e seus representantes
(authors, language, literary space, literature, novel, poetry, poets, prose e writer).
A terceira e última etapa consistiu novamente na identificação do modo de dispersão
desses núcleos ao longo do texto, mas, dessa vez, considerando-se a categoria a que
pertencem. Buscou-se, dessa forma, avaliar quantos núcleos da categoria Estado foram
encontrados em “Despertar”, “Mobilização” e “Contemporânea”, e assim suscessivamente
para as categorias Sociedade e Língua.
Do total de trinta registros do termo slovene, quinze encontram-se em “Despertar”
Análise do texto: aspectos de representação
53
(50%), sete em “Mobilização” (23,3%) e apenas três em “Contemporânea” (10%) – os cinco
restantes (16,7%) dividem-se entre os demais blocos do texto. Desse mesmo total, mas
considerando-se a classificação dos núcleos modificados por slovene, temos que vinte e três
pertencem à categoria Língua (76,7%), quatro à categoria Sociedade (13,3%) e três à
categoria Estado (10%), como destacado nos Quadros 1 e 2.
Quadro 1 – Incidências de slovene no texto
Blocos do Texto Nº de Incidências
“Despertar” 15 (50,0%)
“Mobilização” 7 (23,3%)
“Contemporânea” 3 (10,0%)
Outros 5 (16,7%)
Total 30
Quadro 2 – Incidências de slovene
por categoria
Categoria Nº de Incidências
Língua 23 (76,7%)
Sociedade 4 (13,3%)
Estado 3 (10,0%)
Total 30
Existe, portanto, uma predominância de slovene em “Despertar” e uma predominância
de núcleos da categoria Língua, o que não destoa do propósito do texto sob análise, que se
propõe introduzir uma antologia de contos de autores eslovenos a leitores da língua inglesa.
Ainda assim, a significativa presença de slovene na função de adjetivo e sua associação com
conceitos diretamente relacionados à língua e literatura constituem um forte indício do que
parece ser um outro objetivo da introdução: não só divulgar a literatura eslovena, mas também
divulgar um país. Uma vez que o texto trata única e exclusivamente da língua e da literatura
eslovenas, é razoável supor que a repetição do modificador slovene, em várias dessas
passagens, não fosse realmente necessária.
Considerando a dispersão desses grupos nominais ao longo do texto, em função da
A Palavra como Alicerce da Nação
54
classificação dos seus respectivos núcleos, verifica-se que doze, dos vinte e três que totalizam
a categoria Língua, surgem em “Despertar” (52,1%). Outros cinco aparecem em
“Mobilização” (21,7%) e apenas três em “Contemporânea” (13,1%) – neste último caso,
representam a totalidade dos grupos nominais encontrados, conforme indicado no Quadro 3.
Quadro 3 – Incidências de slovene
na categoria Língua
Blocos do Texto Língua
“Despertar” 12 (52,1%)
“Mobilização” 5 (21,7%)
“Contemporânea” 3 (13,1%)
Outros 3 (13,1%)
Total 23
É em “Despertar” que se afirma o processo de construção nacional esloveno, o
despertar de uma consciência nacional. Nesse sentido, a forte presença do adjetivo slovene
modificando núcleos da categoria Língua ressalta o papel desempenhado pela literatura nesse
contexto.
Os núcleos da categoria Estado aparecem logo no início da introdução, nos dois
primeiros blocos de texto, e, a seguir, em “Mobilização”, verificando-se um único registro em
cada um dos casos. Os núcleos da categoria Sociedade dividem-se entre “Despertar”, com três
registros (75%), e “Mobilização”, com apenas um registro (25%), como destacado abaixo.
Quadro 4 – Incidências de slovene nas categorias
Estado e Sociedade
Blocos do Texto Estado Sociedade
“Despertar” - 3 (75,0%)
“Mobilização” 1 (33,4%) 1 (25,0%)
“Contemporânea” - -
Outros 2 (66,6%) -
Total 3 4
Análise do texto: aspectos de representação
55
Assim como slovene, há outras referências a palavras diretamente relacionadas às
ideias de nação e nacionalidade. Ao longo do texto, é bastante frequente a utilização desses
termos em várias formas: Slovenia, slovenene(s), nation e national.
Slovenia (com cinco registros) e slovenes (com quatro registros), na função de
substantivo, surgem em nove passagens. Some-se a isso a referência a slovene, representanto
a língua eslovena, e temos um total de dez registros contra trinta do modificador slovene –
25% como substantivo e 75% como adjetivo, respectivamente, o que perfaz um total de
quarenta incidências de Slovenia, slovene e slovenes. O papel predominante da Eslovênia no
texto, portanto, independentemente do modo como ela aparece representada, é de
modificador.
As referências a nation e national contabilizam doze registros, divididos em partes
iguais. Dos seis registros de nation, sempre na qualidade de substantivo, em quatro (66,7%) a
palavra não aparece como núcleo de um grupo nominal, mas sim como modificador: nation’s
future, nation’s self-awakening e nation’s destiny (dois registros). Já national, como adjetivo,
modifica os seguintes núcleos: awareness, awakening process, sovereignty, messianism,
reality e epic.
Embora national e slovene, no contexto da introdução, possam ser tomados um pelo
outro, isto é, sejam intercambiáveis, é significativa a escolha dos autores em relação aos
núcleos que cada um deles modifica. Se, no caso de slovene, há uma certa variedade – com a
classificação dos núcleos nas categorias Estado, Língua, Sociedade –, o mesmo não acontece
com national. Há uma uniformidade maior entre os núcleos modificados por esse adjetivo,
uma vez que quase todos eles podem ser direta ou indiretamente relacionados à construção da
ideia de uma nação eslovena.
De modo geral, a presença de termos que remetem à ideia de nação é significativa,
sendo manifesta a preferência pelos termos Slovenia e slovene(s), em detrimento de nation e
national. Tal fato reforça a ideia já explicitada de que a introdução busca também promover
um país e acentua a imbricação entre o processo de construção da identidade nacional
eslovena e o discurso de valorização da sua língua e literatura. Procura-se construir uma
história que revele o Estado esloveno ao público leitor e, em certa medida, justifique sua
existência. A história do país é entretecida com a história de sua língua e literatura ao ponto
de quase não se conseguir dissociá-las.
Esse recurso é especialmente utilizado em “Despertar”, que representa o aflorar do
sentimento nacional esloveno. Não é por acaso que esse trecho do texto, além de reunir 50%
dos registros de slovene, na função de modificador, reúne também onze (50%) das vinte e
A Palavra como Alicerce da Nação
56
duas referências à Slovenia, slovene(s), nation e national, ou seja, metade do total de
indicadores nacionais tomados em conjunto.
No cômputo geral, foram identificados cinquenta e dois registros dos termos acima
indicados, os quais remetem à ideia geral de nação (nation, national) – em doze casos
(23,1%) – ou à ideia de uma nação eslovena propriamente dita (Slovenia, slovenes, slovene) –
em quarenta casos (76,9%), como destacado no Quadro 5.
Quadro 5 – Incidências de termos que remetem à Eslovênia
e/ou à ideia de nação
Termos Nº de Incidência
Slovenia, slovenes, slovene 40 (76,9%)
Nation, national 12 (23,1%)
Total 52
Vale observar que as referências à Yugoslavia e yugoslav não foram contabilizadas na
análise deste quesito, pois, embora a Eslovênia tenha pertencido a essa organização política
num determinado momento histórico, em nenhum instante tais referências surgiram com o
intuito de representação de ou de identificação com o Estado esloveno.
Retomando a relação de palavras mais utilizadas no texto, temos literature e literary.
Para literature, considerou-se os modificadores que lhe são atribuídos no interior dos
diferente grupos nominais em que surge como núcleo. Dos vinte e oito registros da palavra
literature, em quatorze (50%) ela aparece modificada por um adjetivo. Desse total de
quatorze, em oito ocorrências (57,1%) tal adjetivo é slovene, enquanto nos demais seis casos
(42,9%) encontramos modificadores distintos: modernist, subversive, good, high, world,
modest/intimate. Nos restantes quatorze registros (50%), a palavra literature aparece sozinha,
isto é, sem que nenhum modificador lhe seja diretamente associado.
Tendo em conta a dispersão do termo literature ao longo do texto, verificou-se que, do
total de vinte e oito incidências já referido, treze encontram-se em “Despertar” (46,4%), oito
em “Mobilização” (28,6%) e quatro em “Contemporânea” (14,3%), conforme indicado no
Quadro 6.
Já das quatorzes incidências em que a palavra literature aparece acompanhada por um
modificador, sete estão em “Despertar” (50%), quatro surgem em “Mobilização” (28,6%) e
apenas uma aparece em “Contemporânea” (7,1%), como explicitado no Quadro 7.
Análise do texto: aspectos de representação
57
Se, em “Despertar” e “Mobilização”, a distribuição de processos onde literature surge
qualificada e onde surge sem nenhum modificador diretamente a ela atribuído aparece
equilibrada, o mesmo não ocorre em “Contemporânea”. Nesse último bloco do texto,
predominam os processos em que literature surge sem qualquer modificador. Tal fato parece
reforçar a mensagem de que a literatura contemporânea eslovena ganha independência do
contexto de afirmação nacional – muito forte em “Despertar” e ainda bastante presente em
“Mobilização – e, enfim, pode existir por si só. A literatura eslovena contemporânea se
afastaria de uma suposta missão nacional para ser simplesmente literatura.
Quadro 6 – Incidências de literature no texto
Blocos do Texto Nº de Incidência
“Despertar” 13 (46,4%)
“Mobilização” 8 (28,6%)
“Contemporânea” 4 (14,3%)
Outros 3 (10,7%)
Total 28
Quadro 7 – Incidências de literature modificada
por um adjetivo
Blocos do Texto Literature + modificador
“Despertar” 7 (50%)
“Mobilização” 4 (28,6%)
“Contemporânea” 1 (7,1%)
Outros 2 (14,3%)
Total 14
Para literary, repetiu-se a análise feita com slovene. Considerando-se a dispersão do
termo ao longo do texto, do total de quinze registros, foram contabilizados seis em
“Contemporânea” (40%), cinco em “Despertar” (33,4%), dois em “Mobilização” (13,3%) e
outros dois nos demais blocos (13,3%), como ilustrado no Quadro 8.
A Palavra como Alicerce da Nação
58
Quadro 8 – Incidências de literary no texto
Blocos do Texto Nº de Incidências
“Despertar” 5 (33,4%)
“Mobilização” 2 (13,3%)
“Contemporânea” 6 (40,0%)
Outros 2 (13,3%)
Total 15
Há um relativo equilíbrio na utilização do modificador literary em “Despertar” e
“Contemporânea”, ao contrário do que acontece em “Mobilização”, onde os registros desse
termo caem para menos da metade. Mas tais números, por si só, não permitem uma reflexão
mais aprofundada sobre as escolhas dos autores. Nesse sentido, parece mais interessante
observar o uso de literary em função da ocorrência de literature no interior dos blocos de
texto em análise. Considerando que ambos os termos remetem para uma mesma entidade,
nesse caso a literatura, a opção por representá-la como núcleo – nesse caso, como substantivo
– ou como modificador de um núcleo distinto – nesse caso, como adjetivo, pode ser mais
elucidativa.
Em “Despertar”, de um total de dezoito registros, treze correspondem a literature
(72,2%) e cinco correspondem a literary (27,8%). Há, portanto, uma forte predominância do
uso do substantivo. O mesmo se dá em “Mobilização”: de um total de dez registros, oito
referem-se a literature (80,0%) e apenas dois, a literary (20,0%). Em “Contemporânea”, no
entanto, registra-se situação diversa: é literary, com seis registros (60,0%), que predomina
sobre literature, com quatro (40,0%), de um total de dez casos, como destacado abaixo.
Quadro 9 – Incidências de literature e de literary no texto
Blocos do Texto Nº de Incidências
de Literature
Nº de Incidências
de Literary
Total
“Despertar” 13 (72,2%) 5 (27,8%) 18
“Mobilização” 8 (80,0%) 2 (20,0%) 10
“Contemporânea” 4 (40,0%) 6 (60,0%) 10
Outros 3 (60,0%) 2 (40,0%) 5
Total 28 15 43
Análise do texto: aspectos de representação
59
É interessante notar que a preferência por literature em relação à literary se dê nos
dois blocos em que a literatura é chamada à ação, quer na condição de embrião de uma
consciência nacional, quer na condição de força de mobilização social. Já o contrário se
verifica no bloco em que tal papel não é mais exigido da literatura.
Em relação aos núcleos modificados por literary, estes foram classificados em quatro
categorias: Língua, Missão, Realização e Projeção. Em Língua, foram computados os termos
diretamente associados à língua e literatura: language, texts. Em Missão, foram classificados
os termos de uso recorrente quando se aborda o papel da literatura na construção de um
sentimento nacional: tradition, mission, iconography, hero. Em Realização, foram reunidas as
palavras que representam a literaura em ação, ou seja, a atividade literária em si mesma:
circus, performances, creations, space. Em Projeção, foram contabilizadas as expressões que
remetem para as origens e tendências literárias, referidas com um maior grau de abstração:
sources, current, trends, perception, creativity. Os quinze registros identificados estão assim
distribuídos: cinco em Projeção (33,3%), quatro em Realização (26,7%), o mesmo para
Missão, e dois em Língua (13,3%), como registrado no quadro a seguir.
Quadro 10 – Incidências de literary
por categoria
Categorias Nº de Incidência
Projeção 5 (33,3%)
Realização 4 (26,7%)
Missão 4 (26,7%)
Língua 2 (13,3%)
Total 15
Considerando os núcleos modificados por literary, também se verifica um equilíbrio
entre as categorias Projeção, Realização e Missão, que destoa do que acontece na categoria
Língua, que representa, no máximo, a metade dos registros anteriores. Tendo em conta a
afinidade entre os termos língua e literatura – e, no caso esloveno, a forte associação entre
ambos –, a pouca incidência do modificador literary sobre núcleos associados à língua não
causa surpresa.
Uma análise geral dos dados obtidos até este momento aponta para a frequente
presença de termos que remetem à ideia de nação, especificamente ao Estado esloveno, e que
A Palavra como Alicerce da Nação
60
consistem num indício do caráter de afirmação nacional do texto em análise. Pode-se
perceber, sem grande esforço, que o discurso de afirmação e valorização da língua e da
literatura eslovenas está fortemente associado ao surgimento de uma consciência e ao início
do processo de emancipação nacionais.
A incidência de palavras relacionadas ao conceito de nação e nacionalidade é maior
em “Despertar”, se comparado com “Mobilização” e “Contemporânea”, e, na maioria das
vezes, as palavras encontradas remetem diretamente ao país – Slovenia, slovene(s) – em
detrimento de referências mais genéricas – nation, national.
O papel dos atores sociais: língua, literatura e nação
Ao longo da introdução, língua e literatura aparecem frequentemente relacionadas ao
conceito de nação e de identidade nacional. Para melhor compreender o papel da língua e da
literatura, de um lado, e de Estado e nação, de outro, optou-se por uma análise baseada no
critério de agenciação. O processo adotado foi o de identificação de orações do texto em que
tais conceitos desempenham o papel de agentes, ou seja, de atores responsáveis pela execução
da ação. Eles deixam de ser o tema sobre „o qual se fala‟ e assumem o papel de „quem fala‟,
ou seja, assumem voz própria e passam a ser aqueles que se manifestam.
Considerando a estrutura da oração, na perspectiva do sistema da transitividade, que
será discutido mais à frente, ator e processo representam duas funções recorrentes, sendo, em
geral, a primeira desempenhada por um nome ou grupo nominal e a segunda, por um verbo ou
grupo verbal (Martin et al, 1997: 7).
A presente análise consistiu na identificação de orações que tivessem como atores
nomes que representassem a Eslovênia e os eslovenos (slovenes, they, the Slovene state, the
nation), por um lado, e a língua e a literatura (literature, it, literary texts, poetry, prose,
narration), por outro. A seguir, a partir da observação dos respectivos processos, foram
excluídas as orações em que tais atores não assumiam a realização dos mesmos, segundo o
critério de agenciação previamente estabelecido, como, por exemplo, nos casos de voz
passiva. Por fim, tais registros foram discriminados em função da sua disposição em
“Despertar”, “Mobilização” e “Contemporânea”.
De um lado, temos a Eslovênia e os eslovenos, que respondem por seis (11,1%) do
total de cinquenta e quatro registros. Nessas orações, é a Eslovênia que fala, diretamente ou
representada pelos eslovenos. Isso se dá em “Mobilização”, trecho que narra o
Análise do texto: aspectos de representação
61
desenvolvimento da literatura no período do pós-guerras até o final dos anos 80, com dois
registros (33,3%), e em “Despertar”, com um registro (16,7%).
Do outro lado, temos a literatura, que responde pelos demais quarenta e oito casos
(88,9%). Esta surge ora mencionada diretamente ora representada pela obra literária ou pelos
escritores. As passagens nas quais a literatura assume a condição de protagonista encontram-
se especialmente em “Despertar”, com vinte e um registros (43,8%), seguido de
“Contemporânea”, com quinze (31,2%), e de “Mobilização”, com dez (20,8%), conforme
ilustrado no quadro abaixo.
Quadro 11 – Registros de Slovenia ou Literature no papel de atores sociais
Blocos do Texto Slovenia Literature Total
“Despertar” 1 (16,7%) 21 (43,8%) 22
“Mobilização” 2 (33,3%) 10 (20,8%) 12
“Contemporânea” - 15 (31,2%) 15
Outros 3 (50,0%) 2 (4,2%) 5
Total 6 48 54
No cômputo geral, portanto, a iniciativa da ação cabe predominantemente à literatura.
Mais do que objeto do discurso, ela assume a condição de agente. Esse dado parece reforçar a
ideia do seu papel ativo na construção de uma identidade nacional eslovena, tema que é
desenvolvido de forma explícita ao longo da introdução.
Para entender melhor o papel da literatura nesse contexto, optou-se por distinguir as
orações em que a literatura fala em nome próprio e aquelas em que ela é representada por
escritores, sejam estes últimos identificados ou não, como exemplificado abaixo.
A literatura atuando em nome próprio:
Literature and the social life related thereto offered room for excess. [Linhas 163 a 164]
A literatura representada por autores não identificados:
In opposition to their colleagues in other Communist countries of the time, Slovene writers soon rejected the politically prescribed Socialist Realism. [Linhas 132 a 134]
A literatura representada por autores identificados:
A Palavra como Alicerce da Nação
62
At the beginning of the twentieth century, Ivan Cankar (1876-1918), a writer without whom Slovene contemporary literature would not exist, created a series of extraordinary prose and drama works. [Linhas 80 a 83]
Do total dos quarenta e oito registros já mencionados, a literatura fala diretamente em
dezesseis deles (33,3%), sendo representada por escritores, identificados ou não, nos demais
trinta e dois casos (66,7%). Considerando apenas os casos em que a literatura se manifesta via
escritores, dezoito deles (56,25%) referem-se a escritores identificados – dezesseis em
“Despertar” (88,9%) e dois em “Mobilização” (11,1%) – e os demais quatorze (43,75%)
referem-se a escritores não identificados – oito em “Contemporânea” (57,2%), cinco em
“Mobilização” (35,7%) e um em “Despertar” (7,1%), como exposto abaixo.
Quadro 12 – Registros de escritores identificados
e não identificados no texto
Blocos do Texto
Literatura via escritores
Escritores
identificados
Escritores não
identificados
“Despertar” 16 (88,9%) 1 (7,1%)
“Mobilização” 2 (11,1%) 5 (35,7%)
“Contemporânea” - 8 (57,2%)
18 14
Total 32
“Despertar”, portanto, reúne a grande maioria dos casos em que a literatura se
manifesta sendo representada por autores identificados. O destaque é France Prešeren, que
responde por oito (44,4%) do total de dezoito registros encontrados, seguido por Ivan Cankar
e Srečko Kosovel, cada um com três (16,7%). Quem fala não é a literatura de forma indistinta,
mas sim seus representantes. É na voz dos diferentes autores, identificados e devidamente
apresentados ao leitor, que a literatura se manifesta. Este é o momento que marca o início da
história da literatura eslovena e o simultâneo despertar da nação. A personalização do
discurso, a identificação da literatura com o percurso de autores específicos, a apropriação do
prestígio individual de cada autor é crucial, pois daí advém a força necessária para dar
impulso à causa nacional. Nessa passagem do texto, o discurso de identificação do início do
processo de construção de uma identidade nacional eslovena com a valorização da literatura
nacional é muito forte, a ponto de quase não ser possível dissociá-los.
Análise do texto: aspectos de representação
63
A literatura também se manifesta como agente em “Mobilização” e “Contemporânea”;
porém, nesses casos, fala em nome próprio ou é representada por autores não identificados,
como denotam os exemplos abaixo, raramente sendo representada por autores
individualizados – há apenas duas ocorrências (11,1%) em “Mobilização”, conforme já
mencionado, e nenhuma em “Contemporânea”.
In opposition to their colleagues in other Communist countries of the time, Slovene writers soon rejected the politically prescribed Socialist Realism (itálicos acrescentados). [Linhas 132 a 134]
Literature played a powerful symbolic role in Slovenia’s gaining independence in 1991 (itálicos acrescentados). [Linhas 198 e 199]
Em “Mobilização” ainda encontramos outros autores identificados como atores
sociais, mas, em geral, eles são apenas mencionados, não assumem o papel de agentes (é o
caso de Dušan Pirjevec, Uroš Kalčič, Emil Filipčič, Tone Perčič, Lojze Kovačic, Florjan
Lipuš e Boris Pahor), como no exemplo abaixo:
A pronounced retreat into the inner worlds of imagination, accompanied by linguistic brilliancies and fantastic, risk-talking plays on words, can be traced to a kind of ultramodernism whose significant representatives are Uroš Kalčič (b. 1951), Emil Filipčič (b. 1951), and Tone Perčič (b. 1954). [Linhas 179 a 183]
É nesse momento que, à medida que nos distanciamos do período do pós-guerras, o
discurso de afirmação da literatura começa se separar, a se descolar da causa nacional.
Participa dela, mas já não parece ser sua condição de existência. A literatura ganha alguma
independência, alguma liberdade de criação. Estamos no final dos anos 80.
Em “Contemporânea”, só a literatura fala sem que um único escritor seja
individualizado. Aliás, vale observar que, ao longo da introdução, em nenhum momento os
autores incluídos na antologia foram mencionados. Ainda assim, é a literatura quem toma a
palavra. Mas a literatura que agora se representa é uma literatura emancipada e, de certo
modo, independente da causa nacional. A literatura contemporânea já não surge associada ao
férreo compromisso de construção de uma identidade nacional eslovena. É, portanto, em
“Despertar” que os escritores são identificados e valorizados e desempenham o papel de
atores, ao contrário do que ocorre em “Mobilização”, por exemplo, em que os autores, embora
identificados, são apenas mencionados, não assumindo o papel de protagonistas. Já em
“Contemporânea”, sequer há individualização dos autores.
Conforme nos aproximamos do presente, especificamente na segunda metade do
século XX, a relação estabelecida pelo discurso se abranda. A literatura ainda tem papel
A Palavra como Alicerce da Nação
64
proeminente no processo de construção da identidade nacional, mas este já tem vida própria e
alguma autonomia.
Em resumo, se, num primeiro momento, a língua e a literatura surgem como agentes,
como os iniciadores do processo de resgate de uma certa consciência nacional ou mesmo
como os (re)fundadores dessa identidade, num segundo momento, ela parece perder a
condição de protagonista no movimento por uma identidade eslovena, embora ainda participe
dele ativamente. A literatura sofre com a violência do pós-guerra e a opressão de um regime
totalitário, mas resiste e sobrevive. No final, parece haver um distanciamento entre a literatura
e a causa nacional.
Uma representação de mundo via a análise dos processos relacionais
Uma última análise mostrou-se interessante a partir da contabilização das palavras
mais frequentes no texto, que apontou para o uso intensivo do verbo to be, nas flexões is
(trinta e sete registros), was (vinte e três registros), were (treze registros) e are (onze
registros). Essa informação remete para a provável existência de um número significativo dos
chamados processos relacionais, os quais serão discutidos a seguir.
Ainda no contexto da metafunção ideacional e da sua aptidão para explicitar as –
muitas vezes diversas – representações de mundo desenhadas ao longo do texto, destaca-se o
sistema de transitividade como meio de materialização dessas representações. Tal sistema
consiste num “recurso gramatical para construir acções e actividades, representadas como
configurações de processos, participantes envolvidos nesses processos e circunstâncias que
informam esses processos” (Pedro et al, 2002: 17).
Esse sistema de transitividade constrói as diferentes ações e atividades por meio de um
reduzido número de processos: os processos materiais, processos mentais, processos
relacionais, processos verbais, processos comportamentais e processos existenciais (Pedro et
al, 2002: 17 e 18). Do conjunto, neste momento interessam os processos relacionais, que
consistem em “processos de ser ou estar em algo e estabelecem uma relação entre dois
conceitos” (ibidem: 54). Segundo a Gramática Sistêmico-Funcional, há dois tipos
fundamentais de processos relacionais: os atributivos e os identificativos. Fala-se em processo
relacional atributivo “quando a um Portador (…) é dado um Atributo” e de processo
relacional identificativo “quando algo ou alguém, o Identificado, (…) é caracterizado por
meio de um Identificador” (Pedro et al, 2002: 55).
Análise do texto: aspectos de representação
65
Embora os processos relacionais possam ser construídos a partir de um número
variado de verbos, são os verbos ser ou estar os mais frequentes. A presença desses verbos,
por sua vez, não implica a efetiva caracterização do processo como sendo de natureza
relacional, representa apenas essa possibilidade. Considerando-se, portanto, a incidência do
verbo to be na introdução e a estreita ligação que se verifica entre o seu uso e a construção de
processos relacionais, a análise se concentrou no uso de tais verbos.
A primeira etapa desta análise consistiu em identificar as orações em que is, are, was e
were surgiam para, a seguir, selecionar entre essas orações aquelas que efetivamente
representavam processos relacionais. De oitenta e quatro registros, foram selecionados trinta e
um casos (36,9%).
A segunda etapa consistiu em determinar a dispersão desses processos em função dos
três blocos de texto em destaque. Considerando-se apenas “Despertar”, “Mobilização” e
“Contemporânea”, foram contabilizados um total de vinte e sete processos relacionais
(87,1%), sendo doze em “Contemporânea” (44,4%), oito em “Despertar” (29,6%), e sete em
“Mobilização” (26,0%), conforme disposto no quadro abaixo.
Quadro 13 – Incidência dos processos relacionais no texto
Blocos do Texto Nº Proc. Relacionais
“Despertar” 8 (29,6%)
“Mobilização” 7 (26,0%)
“Contemporânea” 12 (44,4%)
Total 27
A terceira etapa da análise consistiu em classificar esses vinte e sete processos
relacionais como identificativos – dezessete casos (63,0%) – ou atributivos – dez casos
(37,0%). Verificou-se, portanto, a predominância dos processos identificativos. Embora
ambos os processos construam caracterizações, fazem-no de formas distintas: os atributivos
cumprem essa tarefa fazendo uso de características, enquanto os identificativos se valem de
relações abstratas. O predomínio dos processos relacionais identificativos parece apontar,
portanto, para o predomínio das relações abstratas.
Antes de prosseguir, importa observar que, neste estudo, optou-se pela não distinção
entre as chamadas ranked clauses e as embedded clauses (estas últimas também referidas
como rankshifted ou downranked), segundo a classificação desenvolvida por Halliday (1985:
A Palavra como Alicerce da Nação
66
188). A partir da observação da estrutura da oração e com base na definição de uma escala
hierárquica organizada – “oração”, “grupo nominal” e “palavra”, em ordem decrescente de
complexidade – sempre que encontramos um item de posição superior realizando a função de
um item de posição inferior, temos a situação caracterizada como rankshifting ou embedding,
como esclarece Martin et al (1997: 17):
When choices are opened up again (…), at a rank lower than we would normally expect them, we say that one unit has been embedded in another (…). This disturbs the normal layering we find in clause structure – instead of a clause consisting of one or more group/phrases and group/phrases consisting of one or more words, we have a clause consisting of another clause among the group/phrases.
A incidência dos processos relacionais no texto em análise evidencia, em alguma
medida, sua natureza introdutória. Os autores da introdução se propõem apresentar um novo
tema, um tema desconhecido dos seus prováveis leitores; daí a necessidade de se dizer “o que
é” e “como é”, ou seja, de se valer de recursos voltados à identificação e à qualificação.
Exemplos de processos relacionais atributivos são:
…writing that was indifferent to the ties of society.
Josip Jurčič… was not really indifferent to the nationality of the lady…
Exemplos de processos relacionais identificativos são:
… the poets only literary sources of the time were texts of religious,
didactical, or derivative nature…
The public glorification of literature is one thing…
A poet is the prophet of better times.
A quarta e última etapa da análise consistiu em avaliar a dispersão desses processos ao
longo do texto a partir da classificação dos mesmos em atributivos ou identificativos. Em
“Contemporânea”, dos doze processos relacionais encontrados, sete foram classificados como
identificativos (58,3%) e cinco como atributivos (41,7%). Em “Despertar”, dos oito processos
relacionais encontrados, cinco foram classificados como identificativos (62,5%) e três como
atributivos (37,5%). Em “Mobilização”, dos sete processos relacionais encontrados, cinco
foram classificados como identificativos (71,4%) e dois como atributivos (28,6%), como
destacado no Quadro 14.
Há um maior equilíbrio entre processos relacionais identificativos e atributivos em
“Contemporânea” e em “Despertar”, se comparados com “Mobilização”, onde a
predominância dos processos identificativos é mais acentuada.
Análise do texto: aspectos de representação
67
Quadro 14 – Incidência dos processos relacionais identificativos e atributivos
Blocos do Texto
Processos Relacionais
Total
Identificativos Atributivos
“Despertar” 5 (62,5%) 3 (37,5%) 8 (100%)
“Mobilização” 5 (71,4%) 2 (28,6%) 7 (100%)
“Contemporânea” 7 (58,3%) 5 (41,7%) 12 (100%)
Total 17 10 27
Olhando para os mesmos dados, mas de um outro ângulo, observou-se que, do total de
dezessete processos relacionais identificativos, a dispersão por bloco de texto foi de sete para
“Contemporânea” (41,2%), cinco para “Despertar” (29,4%) e cinco para “Mobilização”
(29,4%), como destacado no Quadro 15. Há, portanto, uma distribuição relativamente
equilibrada de processos relacionais identificativos ao longo dos blocos de texto em destaque.
Esses dados evidenciam a premissa, assumida pelos autores da introdução, de
desconhecimento do leitor em relação ao tema tratado: a literatura eslovena e o própria
Eslovênia. Reforçam, assim, o caráter de apresentação que marca a integridade do texto.
Quadro 15 – Incidência dos processos relacionais identificativos no texto
Blocos do Texto Nº Proc. Rel. Identificativos
“Despertar” 5 (29,4%)
“Mobilização” 5 (29,4%)
“Contemporânea” 7 (41,2%)
Total 17
Considerando o total de dez processos relacionais atributivos, a dispersão por bloco de
texto foi de cinco para “Contemporânea” (50,0%), três para “Despertar” (30,0%) e dois para
“Mobilização” (20%), conforme indicado no Quadro 16.
Uma vez que os “os processos relacionais atributivos parecem veicular, de uma forma
muito mais evidente, a subjectividade de quem fala, ou escreve, relativamente à realidade
observada” (Pedro e Azuaga, 2002: 60), pode-se reconhecer em “Contemporânea”, portanto,
uma margem maior para a manifestação dos autores da introdução, como ilustram os
exemplos abaixo:
A Palavra como Alicerce da Nação
68
…nor can it be taken as a pile of unambitious fragments having nothing
to offer but tinsel under which all is hollow.
For them, any retreat to a completely isolated island where they could
enjoy their aesthetic games and intellectual gymnastics is impossible.
…duality…that even the majority of native speakers have difficulty
mastering, let alone those for whom it is less well known.
It seems that the reality that surrounds them is simply too dense,
neurotic even, and tempting…
Quadro 16 – Incidência dos processos relacionais atributivos no texto
Blocos do Texto Nº Proc. Rel. Atributivos
“Despertar” 3 (30,0%)
“Mobilização” 2 (20,0%)
“Contemporânea” 5 (50,0%)
Total 10
O tempo também parece ser um caráter importante de distinção entre os diferentes
blocos de texto, no que diz respeito à incidência dos processos relacionais atributivos. Em
“Despertar” e “Mobilização”, o tempo é passado; narra-se uma história já acontecida, contada
e recontada inúmeras vezes, independentemente do desconhecimento do leitor a quem a
introdução é dirigida. A predominância dos processos identificativos se coaduna com o
recurso a um conteúdo histórico, marcado por verdades assimiladas, por discursos
naturalizados, tornando menos visível a subjevidade de quem fala, que é evidenciada nos
processos relacionais atributivos.
Não se pretende, com a afirmação acima, negar a subjetividade que permeia os
processos relacionais, independentemente de sua classificação, nem definir uma gradação
diferente de intensidade para os processos atributivos e identificativos. No entanto, parece
razoável supor que a subjetividade inerente aos processos de identificação seja menos visível,
isto é, seja mais difícil de ser identificada pelo leitor, até porque a mensagem/imagem que se
pretende passar é a de constatação/descrição de algo ou alguém, e não a de
julgamento/opinião. Pelo contrário, nos processos atributivos a possibilidade dessa
subjetividade é assumida logo de partida.
Passando para “Contemporânea”, verifica-se que o tempo aí é atual. Embora também
Análise do texto: aspectos de representação
69
aqui se presuma o desconhecimento do leitor em relação ao tema tratado, ou seja, a literatura
eslovena contemporânea e a Eslovênia, os autores da introdução se posicionam com maior
liberdade, pois referem-se a fatos que ainda estão em desenvolvimento. Não houve tempo
suficiente para que determinadas versões desses fatos se cristalizassem, exigindo um esforço
maior de alteração ou impondo sérios constrangimentos.
Para concluir, a utilização de processos relacionais ao longo do texto, além de reforçar
seu caráter de apresentação, como já discutido, também atua no estabelecimento de uma
relação de empatia, ou seja, de maior envolvimento com o leitor, uma vez que tais processos
promovem a construção de emoções (Martin et al, 1997: 121) – recurso de grande relevância
para o desenvolvimento de estratégias de sensibilização. A subjetividade que pode
caracterizar tais processos e, acima de tudo, a construção de significados e de representações
de mundo a partir do estabelecimento de relações entre conceitos, oferecem o espaço de
abstração necessário para que os autores desenvolvam tais estratégias de atração e
convencimento.
A predominância dos processos relacionais identificativos, em relação aos atributivos,
também pode ser interpretada, de modo geral, como uma maneira de dar ao texto maior
credibilidade, pois, como já foi dito, tais processos tornam menos evidente o caráter sempre
subjetivo de uma dada representação do mundo, focando-se mais no mundo da relações
abstratas.
Síntese
Neste capítulo, promoveu-se a análise de características específicas do texto em
continuidade com as reflexões desenvolvidas no capítulo anterior. Em comum, os critérios de
avaliação utilizados nesta etapa evidenciaram os aspectos de representação do texto, os quais
correspondem à materialização da função ideacional, segundo o enquadramento da
Linguística Sistêmico-Funcional.
O ponto de partida foi a verificação da incidência de palavras frequentes ao longo da
introdução. Slovene, literature e literary foram os termos encontrados e analisados no
contexto dos grupos nominais do qual participam. A relação entre o discurso literário e o
discurso de afirmação nacional foi explorada especialmente a partir da análise ora dos núcleos
modificados por slovene e literary ora dos modificadores atribuídos a literature.
A seguir, explorou-se o papel desempenhado, por um lado, pela língua e pela literatura
A Palavra como Alicerce da Nação
70
e, por outro, pela Eslovênia, na condição de atores de uma representação do mundo, segundo
o critério de agenciação. Procurou-se identificar de que maneira esses conceitos surgiam de
alguma forma representados como agentes, assumindo a responsabilidade pela realização de
um dado processo.
Por fim, o foco da análise convergiu para a utilização de processos relacionais ao
longo do texto, considerando-se suas duas principais modalidades: os processos relacionais
atributivos e os processos relacionais identificativos. A partir da observação de tais processos,
procurou-se explorar seus diferentes significados ao longo do texto.
No quinto e último capítulo, o objetivo será consolidar os resultados obtidos à luz das
atuais teorias de construção de identidades nacionais, discutidas no início deste ensaio e
refletir sobre os desafios que a Eslovênia enfrenta hoje, em seu processo de
internacionalização e de efetiva integração na União Europeia.
Confluências: discurso, representação e identidade
(Capítulo 5)
Introdução
De volta ao discurso de afirmação nacional da Eslovênia
Representação: novos significados para discursos antigos
Os desafios do século XXI: os riscos de uma crise identitária
Síntese
A Palavra como Alicerce da Nação
72
Confluências: discurso, representação e identidade
73
Introdução
Da análise do texto de introdução à coletânea Angels Beneath the Surface: A Selection
of Contemporary Slovene Fiction, ressalta a relevância da língua e da literatura para o
processo de construção discursiva da identidade eslovena. Neste capítulo, a análise do
discurso esloveno de afirmação nacional será retomada e entretecida com outras referências
sobre a história e a cultura do país, de modo a se construir um quadro ampliado do tema, que
permita rever esse discurso em face do cenário atual, no qual a Eslovênia se esforça para
conquistar visibilidade em âmbito internacional e em promover sua efetiva integração no
espaço europeu.
O ponto de partida será a reconstrução do discurso de forte associação entre a história
da língua e da literatura eslovenas e o surgimento do sentimento nacional, ainda na primeira
metade do século XIX. A relevância do papel da língua e da literatura no processo de
emancipação nacional será, a seguir, reavaliado em função da longevidade do dicurso
identitário.
Repetindo, aparentemente, o discurso de afirmação da língua a favor de uma
identidade nacional, adotado pelas nações tardias do século XIX, a Eslovênia, assim como
outras novas nações tardias, surgidas a partir do final do século XX, precisa enfrentar os
desafios do século XXI. Num contexto tão diverso, parece razoável esperar que o discurso
identitário esloveno se modifique ou, ao menos, assuma outros significados para se adaptar a
essas novas circunstâncias.
Por fim, o foco desta análise convergirá para o impacto produzido no discurso
identitário esloveno pelo processo de globalização e pelo desenvolvimento dos meios e das
tecnologias de comunicação, os quais promovem um alargamento do universo onde atuam,
quer o ser humano, quer uma comunidade nacional. Face à necessidade de alcançar
visibilidade internacional e aos desafios inerentes à adesão da Eslovênia à União Europeia,
em 2004, importa repensar a questão da língua.
A Palavra como Alicerce da Nação
74
De volta ao discurso de afirmação nacional da Eslovênia
Neste início de século, as questões envolvendo o tema identidade parecem mais atuais
do que nunca. À medida que as conquistas em favor da liberdade de ação e pensamento se
acumulam, multiplicam-se as opções identitárias em proporção direta. Se o século XX
representa o fim da era dos nacionalismos, vivemos hoje uma espécie de “era das
identidades”.
Os movimentos de migração em massa da população mundial, a maior mobilidade e o
incremento da circulação de bens e pessoas, o desenvolvimento das tecnologias de
comunicação e o processo de globalização promovem a multiplicação dos contatos,
conformando esse cenário. Entre tantas possibilidades de identificação e diferença, temos a
identidade nacional.
Nesse contexto, a língua como fator de identidade, entre tantos outros possíveis, é
constantemente chamada à ação, pois constitui um insumo importante do mecanismo de
identificação e diferença que é posto em funcionamento no contato com o outro. Sem
diminuir o seu valor, no entanto, é importante lembrar que a língua é apenas um dos recursos,
entre tantos outros, que alimentam esse processo. Além disso, por mais frequentemente que
seja utilizada para distinguir ou reconhecer, nem sempre cumpre essa função: afinal, é
possível pensar em vários outros processos de identificação construídos em torno de valores
distintos – como idade, gênero, modo de vida etc. –, que podem sobrepujar a questão da
língua em determinados contextos.
A questão que aqui se discute, no entanto, não é o discurso de associação entre língua
e identidade por si mesmo, mas sim a caracterização dessa identidade como nacional, num
contexto em que ainda se atribui um caráter essencialista a tais identidades. Muitos dos
conflitos e tensões que acompanhamos hoje – seja na Espanha, na Bélgica ou na Turquia, para
dar apenas alguns exemplos – utilizam o discurso de associação entre língua e identidade
nacional numa espécie de relação causa-efeito. A perspectiva da construção discursiva das
identidades nacionais é afastada e, com ela, a possibilidade de ação e de transformação, ou
seja, a capacidade de assumirmos a posição de sujeito nesse processo, e não de mero objeto,
como discutido no capítulo 2. Movimentos como a lusofonia ou a francofonia, entre outros,
exploram o potencial de identificação da língua – seja do ponto de vista social, cultural,
político ou econômico – sem, contudo, condicioná-lo ao reconhecimento de uma única
identidade nacional.
No caso da Eslovênia, os desafios impostos à língua – e, desse modo, à sua identidade
Confluências: discurso, representação e identidade
75
– pela transformação do cenário mundial e, também, em consequência do reconhecimento da
Eslovênia como nação, a partir da independência, em 1991, reclamam um novo
equacionamento da relação estabelecida entre língua e identidade.
Localizada num território historicamente marcado por conflitos e pela dominação
sucessiva de diversos povos, a estratégia de sobrevivência dos eslovenos ao longo dos séculos
passou pela capacidade de se tornarem invisíveis e pela habilidade camaleônica de se
adaptarem às diferentes realidades dominantes, social e culturalmente, como propõe Kmecl
(2005: 10 et passim): “who wants to stay alive must become invisible, must resort to
mimicry”.
Um bom exemplo da sensibilidade eslovena à questão da identidade nacional é a
citação, feita por Gow e Carmichael (2000: 2), da fala de uma personagem criada pelo escritor
esloveno Vitomil Zupan (1914-1987):
The Italians call us Schiavi, the Austrians Windisch swine, the rest of Europe thinks we belong to the Balkans, Balkan peoples think that we’re part of the old Austrian empire, while for the rest of the world we’re just somewhere tucked away between Turkey and Czechoslovakia.
Sem um território definido, uma família real (Kmecl, 2005: 13) que a representasse ou
um exército organizado, o discurso de afirmação de uma identidade eslovena e de
emancipação nacional foi fortemente centrado na questão da língua e na exclusividade da
cultura a ela associada. A língua é apontada como uma espécie de “fortaleza” (Kmecl, 2005:
91), um espaço antigo de resistência cultural, e um dos principais fatores de unidade nacional
(vd. Kmecl, 2005: 57; Debeljak, 2004: 1; Gow e Carmichael, 2000: 2): “While Slovenes are a
highly literate and multilingual people, it is Slovene itself that lies at the heart of their sense of
identity” (Gow e Carmichael, 2000: 7).
A partir da afirmação da língua, o discurso identitário esloveno alcança facilmente a
literatura. É por meio dela que a língua eslovena é recriada, especialmente pela atuação de
Prešeren, como é destacado no texto analisado. Mais do que isso, no entanto, a literatura, ou
melhor, a existência de uma literatura de qualidade, é apontada como uma espécie de prova
do caráter nacional, como afirma Kmecl (2005: 59), ao se referir ao cenário europeu da
segunda metade do século XIX:
In Europe at that time there prevailed a conviction that a nation without a novel is not a proper nation, as the novel’s mimetic wholeness, its capacity for genesis – creating as perfect a quasi-world as possible out of nothing – was fundamental proof of creative power and, with it, the full value of the national literature and consequently of the nation itself.
A relevância do papel da língua e da literatura na construção da identidade nacional
A Palavra como Alicerce da Nação
76
eslovena também transparece na introdução. Não por acaso, a apresentação da sua história e
literatura, desenvolvida no texto analisado a partir da seção designada de “Despertar”, tem
início em meados do século XVIII, atravessando a fase romântica, frequentemente associada
ao início da era dos nacionalismos. E é o principal poeta romântico esloveno, France
Prešeren, quem surge como artífice dessa recém-nascida identidade nacional e,
simultaneamente, como o responsável pelo renascimento da língua eslovena.
A importância de Prešeren para a língua eslovena e, consequentemente, para o
processo de construção de uma identidade associada a ela, pode ser facilmente apreendida a
partir da afirmação de Debeljak (2004: 10):
France Prešeren (1800-1848), who wrote with equal elegance in Slovene and German, is a case in point. German was the lingua franca of Central Europe until World War I. To reject German as a literary medium, like Prešeren did, meant a divorce from the dominant linguistic sphere, with its large market and stimulating cultural life. But Prešeren’s commitment to his mother tongue represented a different set of values. His decision was not simply about a choice of medium, about whether to swap one mode of expression for another in order to gain easier access to certain resources. For him, using Slovene was an article of faith, an existential and political decision that seems especially relevant today.
Embora a relevância do papel da língua e da literatura no discurso de afirmação
esloveno seja uma constante, ao longo do texto em análise parecem coexistir duas literaturas
distintas: a literatura-símbolo nacional, mitificada, cujos autores são equiparados a heróis
nacionais, e a literatura propriamente, feita de escritores e livros. O destaque dado aos autores
do século XIX – identificados e valorizados – em comparação com a não individualização dos
autores contemporâneos – nem um só nome é citado – parece confirmar essa ideia.
Mais uma vez, France Prešeren é o principal exemplo desse processo. Além da
existência de um feriado nacional, em que se comemora o Dia de Prešeren, a sétima estrofe do
seu poema “Zdravljica” (vd. Anexo 2) foi adotada como letra do hino nacional e há uma
estátua em sua homenagem, localizada em Ljubljana, capital do país, no centro da cidade
antiga, numa praça que também leva o nome do poeta: a Prešernov Trg.
O discurso de afirmação nacional esloveno também passa em alguma medida pelo seu
afastamento da antiga Iugoslávia e do mundo comunista, como já discutido no capítulo 3. O
passado da Eslovênia sob o regime comunista é sempre associado diretamente à Iugoslávia, e
não à Eslovênia propriamente dita. Ao mesmo tempo, é destacado o papel de resistência,
exercido pelos escritores eslovenos, contra a opressão do regime.
A imagem de um país dividido entre o Leste e o Oeste é reforçada e explorada com o
intuito aparente de marcar o afastamento da Eslovênia em relação ao oriente e de
Confluências: discurso, representação e identidade
77
aproximação com o ocidente. Parece haver uma mudança simbólica de posição da Eslovênia.
Ela deixa de estar localizada a Oeste da Europa oriental e passa a situar-se a Leste da Europa
ocidental (vd. Velikonja, 2005: 7). Essa mesma mudança é apontada por Debeljak, mas sob
perspectiva diversa, destacando o afastamento da realidade experimentada na condição de
república iugoslava e a nova realidade vivida como membro da União Europeia: “In other
words, the Slovene nation has made the transition from being a big fish in the pond of
Yugoslavia to being a little fish in the sea of Europe” (2004: 14).
Representação: novos significados para discursos antigos
O recurso à afirmação e à valorização de uma língua e literatura nacionais no processo
discursivo de construção de identidades não é novo, nem é exclusivo da Eslovênia (vd.
Anderson, 1983, e Hobsbawm, 1990), como já mencionado na introdução a este ensaio. O que
chama a atenção é a intensidade do discurso identitário esloveno e sua recorrência, sejam
quais forem os motivos que se encontram na origem desse discurso. Há uma espécie de
vinculação entre língua e identidade nacional. A língua parece exercer a dupla função de
prova cabal de existência de uma identidade/nação eslovena e de força motriz, geradora dessa
identidade/nação.
Mas, se o discurso identitário esloveno permanece o mesmo, o entorno se modifica e
transforma. Nesse sentido, a resistência do discurso a essas mudanças parece ser um dado
relevante para melhor compreender o processo de construção das identidades nacionais em
torno da unidade linguística. Também parece razoável supor que, em algum momento, esse
discurso do passado venha a entrar em choque com o presente. Nesse sentido, acompanhar o
desenvolvimento dessas novas nações tardias pode ser de grande ajuda.
Reconhecendo à língua uma função ampliada, que, na acepção da Linguística
Sistêmico-Funcional, extrapola o contexto da comunicação e assume também, e não só,
funções de representação (metafunção ideacional), de posicionamento/avaliatividade
(metafunção interpessoal) e de formalidade textual (metafunção textual), o discurso de
vinculação entre língua e identidade nacional amplia seus significados.
Debeljak (2004: 6) dá um bom exemplo dessa função ampliada da língua ao afirmar
que, em alguma medida, os limites estabelecidos pela língua por ele falada definem os limites
do mundo em que habita, retomando, assim, o pensamento de Wittgenstein (1961: 114): “Os
limites da minha linguagem significa os limites do meu mundo”. Apoiando-se na associação
A Palavra como Alicerce da Nação
78
entre a língua e uma determinada concepção de mundo que lhe estaria intrinsecamente
vinculada, ideia desenvolvida especialmente a partir de 1930, com as proposições de Sapir e
Whorf, o autor prossegue:
I am not talking merely about the extent o my linguistic skills. I am speaking, rather, of the whole symbolic, mental, and social experience deposited in the layers of a nation’s historical existence and collective mentality. Individuals absorb the collective mentality through language, which is not merely some mechanical means of communication but, first and foremost, the encapsulation of a metaphysical worldview. And this worldview was not something I could ever fully convey to my wife, a New Yorker who was born in California.
Nesse ponto, parece importante fazer uma ressalva e distinguir entre a relação que se
estabelece entre língua e concepção de mundo, na visão de Sapir e Whorf, e entre língua e
representação de mundo, na acepção da LSF. Afirmar que, por meio da língua, são
construídas representações do mundo, não é o mesmo que afirmar que a língua carrega em si
mesma uma determinada visão de mundo. Pelo contrário, a LSF toma partido de uma versão
fraca da hipótese de Sapir-Whorf, afastando-se de uma visão determinista, incompatível tanto
com os princípios da LSF quanto com a perspectiva da construção discursiva das identidades
nacionais, adotada neste trabalho.
Ao longo da análise da introdução à coletânea de contos, cada vez mais a língua
parece assumir um caráter simbólico. Para além das funções por ela desempenhadas, mas em
razão delas, ela se transforma aos poucos numa espécie de insígnia nacional. Retomando o
viés da construção discursiva das identidades nacionais, essa língua-símbolo surge como um
recurso poderoso nesse processo. Nesse sentido, parece razoável supor que o discurso
identitário esloveno talvez não seja de mera repetição. Embora a relação entre língua e
identidade seja reiterada e intensificada, nos moldes dos discursos identitários do século XIX,
há aqui uma perspectiva temporal que não pode ser afastada. O discurso esloveno de
identidade nacional está no passado. A relação que se estabelece entre essa língua-símbolo e
essa literatura-mito refere-se de forma mais contundente ao despertar de uma consciência
nacional, do que à identidade eslovena de hoje. Em resumo, o reconhecimento, mesmo que
parcial, do papel simbólico da língua permite que sejam atribuídos novos significados ao
antigo discurso e, simultaneamente, valoriza o caráter imaginado da ideia da nação e a
perspectiva da construção discursiva.
A Eslovênia deste início de século passou por mudanças profundas, que provocaram
impacto, inclusive, sobre a sua posição relativa no mapa do mundo, conforme destacado por
Velikonja, já referido na página 77. A independência, em 1991, seguida do longo processo de
adesão à União Europeia, concluído em 2004, representou uma grande transformação do
Confluências: discurso, representação e identidade
79
universo esloveno dentro e fora de suas fronteiras. Nesse contexto, não se pode negar que o
discurso identitário esloveno, baseado na afirmação da língua, também tenha sido afetado.
Se, em sua origem, esse discurso buscava justificar a existência de uma nação
eslovena e viabilizar, assim, o reconhecimento de um Estado independente, a partir de 1991,
alcançado tal objetivo, ele perde ao menos parte do seu significado. O Estado esloveno era
agora uma realidade. No entanto, a Eslovênia independente precisava garantir sua
sobrevivência nesse novo mundo de fronteiras redefinidas, e o caminho por ela escolhido foi
o da adesão à União Europeia. De 1991 a 2004, o discurso identitário esloveno teve que se
modificar para atender as exigências impostas por essa nova realidade. Nesse sentido, a
mudança relativa de posição da Eslovênia entre ocidente/oriente, mencionada acima, torna-se
ainda mais significativa.
Por fim, a partir de 2004, com a consolidação do processo de adesão, muda-se o
cenário mais uma vez. Nesse momento, o discurso identitário esloveno precisa se modificar
para dar conta de duas necessidades concorrentes: atribuir valor à diferença – ou seja,
valorizar a especificidade e riqueza de uma certa cultura nacional – e promover a identidade –
em outras palavras, promover a efetiva integração da Eslovênia no universo europeu.
A rigor, parte dos desafios enfrentados pela Eslovênia nesse quesito são partilhados
pela maioria dos países que hoje fazem parte da União Européia. O papel da língua nacional
num ambiente de multiplicidade linguística, de disseminação das chamadas línguas de
comunicação global – onde se apregoa a perspectiva econômica das línguas e a importância
delas na preservação de uma das grandes riquezas e diferenciais da Europa, a diversidade
cultural –, vem sendo questionado e reavaliado.
Os desafios do século XXI: os riscos de uma crise identitária
Num universo de atuação ampliado em função do processo de globalização e do
desenvolvimento dos meios e das tecnologias de comunicação, a típica função de
comunicação das línguas merece ser reavaliada. A língua que permite a comunicação no
interior de um dado grupo social ou mesmo, pensando nas línguas nacionais, no interior de
um dado país, não necessariamente cumprirá essa mesma função nesse novo cenário.
Com exceção das chamadas línguas globais, que, em razão de uma série de fatores que
aqui não serão abordados, permitem a comunicação entre um número alargado de pessoas,
independentemente de suas respectivas nacionalidades, as línguas nacionais têm um campo
A Palavra como Alicerce da Nação
80
bastante restrito. No caso do esloveno, falado por algo em torno de 2 ou 2,5 milhões de
pessoas, essa realidade é ainda mais contundente. A língua que une essa comunidade
representa, ao mesmo tempo, uma barreira de acesso ao mundo além fronteiras e vice-versa.
Levando-se em conta a estreita associação entre língua e identidade nacional no caso
esloveno, é possível ter uma ideia dos conflitos que decorrem dessa situação. Se a língua
nacional é fator de identidade, também é, ao mesmo tempo, obstáculo para a
internacionalização, em função do reduzido número de falantes e dos empecilhos à
comunicação num cenário ampliado, conforme refere Kmecl (2005: 74):
(…) but the Slovene sensitivity is so much greater because Slovenes have always regarded their language and its use as a vulnerable point and one of the main ramparts of their existence (in the sense of Levstik’s contention that when you take away language from a nation you have deprived it of everything and also, of course, erased the historic memory of the endless tortuous efforts invested in its establishment and preservation).
Essa tensão entre preservar a língua eslovena e ao mesmo tempo promover a
internacionalização do país produz efeitos. Um bom exemplo pode ser encontrado no âmbito
acadêmico, que parece servir de arena para o embate entre a língua nacional e uma língua
global, neste caso, a língua inglesa. Tal embate é fortemente marcado pelo discurso de
afirmação nacional, como facilmente se apreende a partir da leitura da seguinte afirmação de
Kmecl (2005: 73-74):
Even today, the whole technical field exhibits a dual atitude to linguistic issues: with the meticulous and enthusiastic compiling of specialist language (for example by Albert Struna) contrasting with a considerable resistance to Slovene in science and at the university, now with the justification that the international language of science is English. The linguistic Anglo-globalism of te late 20th century has spread from the technical field to other academic areas, even into the so-called national or national identification sciences (history, Karst studies, etc.), where it is, with regard to motivation, very hard to differentiate between national defeatism, lack of linguistic creativity or laziness on the one hand and real communicational needs on the other.
A questão é como proteger, valorizar e preservar a língua eslovena sem promover uma
espécie de clausura nacional. O risco de isolamento torna-se ainda mais crítico em se tratando
de um país extremamente jovem, com pouco mais de 20 anos de existência oficialmente
reconhecida, e reduzida visibilidade no cenário internacional – desconhecimento, aliás,
pressuposto pelos autores da introdução aqui analisada e não só (vd. Debeljak, 2004, e Gow e
Carmichael, 2000).
A Eslovênia parece viver o dilema de preservar sua língua – e a identidade nacional a
ela atrelada – e abrir mão dela em nome da visibilidade necessária para existir. Se, no início
da sua história, a estratégia de sobrevivência eslovena passava pela invisibilidade e pela
Confluências: discurso, representação e identidade
81
capacidade de mimetização, agora a situação parece ter se invertido: a estratégia atual de
sobrevivência eslovena passa por ganhar visibilidade no cenário internacional e por
reassegurar a exclusividade e riqueza de sua cultura.
Com a adesão à União Europeia, essa preocupação é redobrada. No cenário europeu,
marcado pelo multilinguismo e por uma não necessariamente saudável “competição” entre
línguas nacionais, a Eslovênia mais uma vez precisa de uma estratégia de integração. A
possibilidade de comunicação, troca, contato para disseminação de conhecimento, pessoas,
bens e serviços passa pelo domínio de uma língua global, entre as quais o inglês se destaca.
Nesse contexto, o discurso identitário esloveno de afirmação da língua é posto em causa como
destacam Gow e Carmichael (2000: 9-10):
For the Slovenes this is ironic: they had adapted and protected their identity through language and culture over the centuries; yet it was at the point where a state had come into being as titular repository of this identity that these faced their biggest test as Slovenia sought to balance its modern and conservative characteristics in order to deal with European, international and global demands of openness and integration.
O desafio atual da Eslovênia passa por conciliar sua identidade nacional – fortemente
identificada com a existência de uma língua nacional e da cultura a ela associada – com o
processo de internacionalização e de integração européia. Para se ter uma ideia das
proporções desse desafio e do longo caminho que ainda precisa ser percorrido, basta destacar
a autodescrição dos eslovenos, realizada por Debeljak (2004: 94-95), em tom irônico e
provocativo:
We, who came from a region of blurs on the map, the birthplace of tribal consciousness and fanatic hatred, the site of Ottoman backwardness and Byzantine corruption, the home of turbulent primitive passions and gripping mythical stories – we present a disturbing figure wherever we turn up.
Síntese
A partir da análise da introdução à coletânea de contos eslovenos, pode-se apreender o
discurso esloveno de afirmação da língua e da literatura em prol da sua identidade nacional. A
língua eslovena, e a literatura que a reinventa, é apontada como um dos principais fatores de
unidade nacional e elemento indissociável da identidade eslovena. Esse discurso, no entanto,
embora não seja novo, manifesta-se num cenário bastante distinto daquele em que surgiu. No
contexto atual, ele se reveste de novos significados e suscita outras questões.
A Palavra como Alicerce da Nação
82
Neste capítulo, o discurso identitário esloveno construído a partir do texto em análise
foi contrastado com outras referências. Do mesmo modo que, da introdução à coletânea de
contos, parecem surgir duas literaturas – uma mitificada e outra a literatura propriamente dita
– o mesmo parece acontecer com a língua. Independentemente das diversas funções a ela
associadas, a língua se destaca como símbolo de uma dada comunidade, uma espécie de
símbolo nacional.
A longevidade do discurso de associação entre língua e identidade nacional, adotado
pela Eslovênia, foi objeto de reflexão, assim como os diferentes significados que tal discurso
parece assumir no contexto atual. A repetição desse mesmo discurso em face de uma
realidade tão díspar, marcada pelo processo de globalização e pela evolução das tecnologias e
meios de comunicação, transforma o discurso inicial.
A necessidade de conquistar espaço no cenário global, associada ao esforço de
integração decorrente da adesão da Eslovênia à União Europeia, produzem significativo
impacto sobre a questão da proteção e preservação da língua eslovena. A língua, tão cara ao
projeto nacional, agora parece surgir como obstáculo à consecução dos objetivos atuais. O
equilíbrio entre a preservação da identidade eslovena e a efetiva internacionalização do país
passa pela redefinição do seu discurso sobre a língua.
Em resumo, embora o discurso identitário esloveno pareça repetir discursos antigos,
ele assume nova significação pelo simples fato de ser afirmado num novo contexto. Por esse
mesmo motivo, enfrenta também novos desafios, que passam pela disputa com as chamadas
línguas globais e pela necessidade de atender as exigências de internacionalização e de
integração, especialmente no contexto Europeu.
Conclusão
84
85
No discurso esloveno de construção de uma identidade nacional, a afirmação e a
valorização da língua e da literatura – assim como da cultura associada a elas – desempenham
papel essencial. Embora tal discurso não seja exclusivo da Eslovênia, não se pode negar sua
força e intensidade, que parecem extrapolar o uso corrente dessa relação.
O texto analisado nesta Tese é um bom exemplo do modo como esse discurso permeia a
vida social e se reafirma incessantemente. Trata-se de um texto de divulgação internacional,
escrito em língua inglesa, que se propõe a apresentar a literatura produzida por autores
eslovenos entre 1990 e 2005, ou seja, num período decisivo para a história nacional. A opção
pela sua análise, entre outras escolhas possíveis, decorreu precisamente da possibilidade de ele
permitir várias e distintas leituras. Ao lado da afirmação categórica da importância da língua e
da literatura no despertar da consciência eslovena e no processo de emancipação nacional,
coexistem outras narrativas que constroem essa mesma representação, porém de forma menos
evidente. Esses discursos foram explicitados ao longo dos capítulos 3 e 4. Apenas para ilustrar
tal afirmação, veja-se a insistência na redundância do uso do modificador slovene,
especialmente associado a núcleos da categoria Língua, ao longo de um texto que trata única e
exclusivamente da literatura eslovena.
No capítulo 1, a partir de uma breve perspectiva histórica sobre os nacionalismos, foram
destacadas as caracterizações atuais que defendem o caráter inventivo/imaginado da nação.
Nesse sentido, as teorias da segunda metade do século XX, especialmente a partir dos trabalhos
de Gellner (1964, 1983), Anderson (1983) e Hobsbawm (1983, 1990), representam uma ruptura
em relação aos conceitos do passado. Independentemente de se defender ou não a ideia de que
os nacionalismos teriam chegado ao fim, importa reconhecer essa mundança de rumos e
reavaliar o papel dos nacionalismos na atualidade – assim como, na abordagem definida neste
ensaio, avaliar o papel da afirmação da língua nesse contexto.
No capítulo 2, explicitou-se a opção pelo processo de construção discursiva das
identidades, o que implica o entendimento de que estas se constroem repetida e
incessantemente, pela via do discurso. Afastou-se, assim, o caráter essencialista,
frequentemente associado à caracterização das identidades, especialmente as nacionais. A
filiação deste ensaio à perspectiva da análise do discurso e, em especial, a opção pela
86
metodologia e pelas ferramentas oferecidas pela Linguística Sistêmico-Funcional também
foram explicitadas.
No capítulo 3, teve início a análise propriamente dita do texto, complementada no
capítulo seguinte. Foram privilegiados os critérios associados a questões de textualização. Em
primeiro lugar, procurou-se identificar as estratégias de abordagem e apresentação adotadas
pelos autores. Num jogo de aproximação e afastamento, os recursos utilizados para criar
empatia com o leitor e, ao mesmo tempo, imprimir credibilidade ao texto foram explorados. A
seguir, considerou-se a opção de apresentação da Eslovênia a partir de coordenadas
geográficas, que parece refletir as preocupações do país com sua posição no mapa do mundo e
seu esforço de afastamento do oriente – e, com ele, do seu passado comunista – e de
aproximação com o ocidente. Por fim, o texto sob análise foi descrito em função de sua
organização e fragmentação em blocos, levando-se em conta os aspectos históricos relevantes e
as personagens destacadas.
No capítulo 4, prosseguiu-se com a análise da introdução à coletânea de contos, mas,
dessa vez, os critérios utilizados recaíram sobre aspectos de representação. A partir da
identificação das palavras que surgiram com mais frequência, procurou-se determinar os
diferentes significados que estas imprimem ao texto. Dos três termos recorrentes, dois
classificam-se como adjetivos – slovene e literary – e um como substantivo - literature. A
análise dos grupos nominais dos quais tais palavras fazem parte serviu de enquadramento para
esta reflexão. A seguir, procurou-se identificar o papel desempenhado pela ideia de nação e
pelo conceito de literatura por meio da representação dos atores sociais. Com a aplicação do
critério de agenciação, foram identificadas as orações em que tais palavras/entidades
assumiram o papel de protagonistas. Por fim, procurou-se contabilizar a incidência dos
processos relacionais e explorar a significação dos mesmos ao longo da introdução.
No capítulo 5, o discurso esloveno de afirmação e valorização da língua, com fins de
reconhecimento e justificativa de uma certa identidade nacional, foi retomado e confrontado
com os novos significados que esse discurso parece assumir na atualidade. Os desafios
resultantes da mudança de posição relativa da Eslovênia no cenário mundial – quer na condição
de país idependente, desde 1991, quer na condição de membro da União Europeia, desde 2004
– apontam para a necessidade de se repensar esse discurso.
A partir da análise da introdução à coletânea de contos, pode-se perceber o modo como
a questão nacional está arraigada ao discurso identitário esloveno e a sua grande relevância. Tal
fato condiz com o histórico de desenvolvimento da Eslovênia, que culmina com sua
independência recém-adquirida – afinal, vinte anos representam apenas um instante na história
87
de um país. Não se trata apenas de constastar a forte associação entre a afirmação da língua e da
literatura eslovenas e o processo de construção discursiva de sua identidade, mas também de se
perceber a importância da questão nacional no contexto esloveno.
O apelo à lingua e à literatura como essência e como prova de uma identidade nacional
eslovena, apesar das semelhanças com alguns dos discursos identitários do século XIX, assume
hoje significados distintos, pois se realiza num outro contexto. Parece razoável afirmar, ao
menos, que esse dicurso resulta de escolhas diferentes, uma vez que o universo de ofertas deste
século XXI, no que se refere aos nacionalismos e aos conceitos de identidade, também é
distinto.
Cada vez mais, a língua parece assumir seu valor simbólico. Com a ampliação do
universo de atuação do ser humano, motivado em grande parte pela globalização e pela
concomitante evolução dos meios e tecnologias da comunicação, a função comunicativa da
língua, muitas vezes, acaba circunscrita a um dado território. Na maioria dos casos, ela deixa de
ser capaz de cumprir essa função nesse universo alargado. Tal fato parece, em certa medida,
realçar outras funções da língua, como o seu papel de identificação e sua capacidade de
representação, ou seja, seu valor simbólico.
O momento atual do discurso de afirmação da língua eslovena parece ser de impasse,
como exemplifica a tensão que se estabelece entre a língua inglesa – uma língua global – e a
língua eslovena no processo de internacionalização do país, ou seja, de conquista de
visibilidade internacional e de maior integração. Nesse contexto, o discurso identitário
esloveno também é afetado, mas a tensão que se destaca agora é a estabelecida entre as visões
essencialista e construtivista das identidades nacionais. Adotando-se uma visão essencialista, o
discurso que vincula língua e identidade pode se transformar numa espécie de amarra,
convertendo-se em obstáculo à consecução dos objetivos definidos pelo país. Tal risco não se
verifica, no entanto, se a perspectiva adotada for a construtivista, o que representa mais um
incentivo a favor dessa abordagem.
Embora muito mais possa ser dito a respeito do papel desempenhado pela afirmação e
valorização da língua no processo de construção discursiva das identidades nacionais e, nesse
contexto, sobre a realidade eslovena, não se pretende ir mais longe no âmbito deste estudo.
Algumas questões, no entanto, surgem e pedem desdobramentos. Identificar e analisar os
discursos de afirmação e defesa das identidades nacionais dessas novas nações tardias pode
dizer muito sobre os contornos que os nacionalismos assumem neste século XXI. Que papel
esses nacionalismos desempenham hoje? Num contexto tão distinto do seu apogeu, no século
XIX, como essas novas nações podem se afirmar no cenário atual?
88
Considerando o cenário europeu, marcado pela pluralidade de línguas e pela
necessidade de comunicação e integração internacional, que novos significados pode assumir o
discurso identitário baseado na afirmação da língua? Há viabilidade e longevidade para tais
discursos? Nesse ambiente, é possível afirmar que o prestígio associado às línguas e sua
capacidade de representação tornam-se mais importantes do que sua função comunicativa?
Outro ponto relevante diz respeito à associação entre uma língua e uma determinada
cultura nacional. Alargando, portanto, os termos dessa discussão, podemos considerar os
discursos que equacionam língua, cultura e identidade nacional. A cultura associada a um
universo linguístico pode ser compartilhada e vivenciada num outro universo, dissociado da
língua que lhe deu origem? Em outras palavras, qual é a natureza da relação que se estabelece
entre língua e cultura nacional? De que modo e em que medida essa relação participa do
processo de construção das identidades nacionais?
Neste início de século, marcado, como sempre, por novas oportunidades e vellhos
conflitos, a questão identitária nacional continua em evidência. Analisar de que maneira as
diferentes identidades nacionais são construídas pode ser de grande ajuda para promover o
diálogo e encontrar soluções pacíficas para os problemas que persistem e/ou surgem. Do
mesmo modo, compreender o papel da língua, que representa um importante recurso no
processo de construção identitário, parece ser um bom caminho para se evitar uma nova torre de
Babel.
89
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90
91
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Introduction
by Mitja Čander e Aleš Šteger
(Anexo 1)
94
95
96
97
98
99
100
101
102
103
Zdravljica
France Prešeren
(Anexo 2)
104
105
Zdravljica A Toast
1.
Prijatlji! odrodile, The vintage, friends, is over,
so trte vince nam sladkó, And here sweet wine makes, once again,
ki nam oživlja žile, Sad eyes and hearts recover
srce razjásni in oko, Puts fire into every vein.
ki utopi Drowns dull care
vse skrbi, Everywhere
v potrtih prsih up budi!
And summons hope out of despair.
2.
Komú narpred veselo To whom with acclamation
zdravico, bratje! čmo zapét'? And song shall we our first toast give?
Bog našo nam deželo, God save our land and nation
Bog živi ves slovenski svet, And all Slovenes where'er they live,
brate vse, Who own the same
kar nas je Blood and name,
sinov sloveče matere!
And who one glorious Mother claim.
3.
V sovražnike 'z oblakov Let thunder out of heaven
rodú naj naš'ga trešči gróm, Strike down and smite our wanton foe!
prost, ko je bil očakov, Now, as it once had thriven,
naprej naj bo Slovencov dom; May our dear realm in freedom grow.
naj zdrobé May fall the last
njih roké Chains of the past
si spone, ki jim še težé!
Which bind us still and hold us fast!
4.
Edinost, sreča, sprava Let peace, glad conciliation,
k nam naj nazaj se vrnejo; Come back to us throughout the land!
otrók, kar ima Slava, Towards their destination
vsi naj si v róke sežejo, Let Slavs henceforth go hand-in-hand!
de oblast Thus again
in z njo čast, Will honour reign
ko préd, spet naša bode last!
To justice pledged in our domain.
5.
Bog žívi vas Slovenke, To you, our pride past measure,
prelepe, žlahtne rožice; Our girls! Your beauty, charm and grace!
ni take je mladenke, There surely is no treasure
ko naše je krvi dekle; To equal maidens of such race.
naj sinóv Sons you'll bear,
zarod nov Who will dare
iz vas bo strah sovražnikov!
Defy our foe no matter where.
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6.
Mladenči, zdaj se pije Our hope now, our to-morrow -
zdravica vaša, vi naš up; The youths - we toast and toast with joy.
ljubezni domačije No poisonous blight or sorrow
noben naj vam ne usmŕti strup; Your love of homeland shall destroy.
ker po nas With us indeed
bode vas You're called to heed
jo sŕčno bránit klical čas!
Its summons in this hour of need.
7.
Živé naj vsi naródi, God's blessing on all nations,
ki hrepené dočakat dan, Who long and work for that bright day,
da, koder sonce hodi, When o'er earth's habitations
prepir iz svéta bo pregnan, No war, no strife shall hold its sway;
da rojak Who long to see
prost bo vsak, That all men free,
ne vrag, le sosed bo mejak!
No more shall foes, but neighbours be.
8.
Nazadnje še, prijatlji, At last to our reunion -
kozarce zase vzdignimo, To us the toast! Let it resound,
ki smo zato se zbrat'li, Since in this great communion
ker dobro v srcu mislimo; By thoughts of brotherhood we're bound
dókaj dni May joyful cheer
naj živí Ne'er disappear
vsak, kar nas dobrih je ljudi! From all good hearts now gathered here.
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