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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ 9ª Promotoria de Justiça da comarca de Foz do Iguaçu Proteção aos Direitos Constitucionais, à Saúde Pública e ao Meio Ambiente
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AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Autor:
Ministério Público do Estado do Paraná
Réus:
Município de Foz do Iguaçu e
Fundação Municipal de Saúde
Objeto:
Obrigação de fazer. Compelir o município de Foz do Iguaçu e a Fundação Municipal de
Saúde a atenderem diretamente as requisições do Ministério Público do Estado do
Paraná destinadas ao fornecimento de documentos médico-hospitalares.
SUMÁRIO
I. SÍNTESE DA PETIÇÃO INICIAL
II. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E PARA ASSEGURAR SUAS PRÓPRIAS PRERROGATIVAS
III. DOS FATOS QUE DERAM ENSEJO À PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
IV. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
DO PODER REQUISITÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
V. DA IMPOSSIBILIDADE DE SE OPOR O SIGILO PROFISSIONAL E O DIREITO À INTIMIDADE DO PACIENTE ÀS REQUISIÇÕES MINISTERIAIS. DA AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO SIGILO PROFISSIONAL MÉDICO
VI. BREVES APONTAMENTOS SOBRE OS PRONTUÁRIOS DE SAÚDE
VII. DO PEDIDO
VIII. DOS REQUERIMENTOS
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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE FOZ DO IGUAÇU, ESTADO DO PARANÁ
O Ministério Público do Estado do Paraná, por seu
Promotor de Justiça infra-assinado, com fulcro no art. 127, caput, art. 129,
incisos III e lX da Constituição Federal; no art. 1º e 2°, letra b, da Lei n.º 4.771,
de 15 de setembro de 1965 (Código Florestal), modificado pela Medida
Provisória 2.080-60 e outras que foram editadas posteriormente; no art. 3°,
inciso IV, da Lei n.° 6.938, de 31 de agosto de 1981; no art. 5°, caput, da Lei n.°
7.347, de 24 de abril de 1985; no art. 25, inciso IV, letra a, da Lei n.° 8.625, de
12 de fevereiro de 1993, combinados com o art. 282, do Código de Processo
Civil e demais diplomas normativos pertinentes a espécie, vem a presença de
Vossa Excelência para propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA IMPOSIÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER
em face de em face do município de Foz do Iguaçu, pessoa jurídica de direito
público interno, a ser representado pelo Senhor Prefeito Municipal Reni Clóvis de
Souza Pereira, que poderá ser encontrado na prefeitura municipal, localizada à
Praça Getúlio Vargas, n. º 280, centro, e da Fundação Municipal de Saúde,
inscrita no CNPJ sob n. º 18.236.227/0001-04, pessoa jurídica de direito privado,
com sede junto ao Hospital Municipal Padre Germano Lauck, rua Adoniram
Barbosa, n. º 370, em Foz do Iguaçu/PR, pelas razões de fato e de direito
adiante expostas.
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I. SÍNTESE DAS IDEIAS DESENVOLVIDAS
Ao longo da petição inicial, o autor da ação pretende
desenvolver e demonstrar os seguintes argumentos:
a) A judicialização da saúde é uma realidade nos dias
atuais. Diante das notórias deficiências do serviço prestado pelo Sistema Único
de Saúde, a população tem procurado o Poder Judiciário para que se possa ver
atendida com um mínimo de eficiência. Neste diapasão, o Ministério Público,
diante do seu novo perfil constitucional, tem sido o canal escolhido
prioritariamente por estas pessoas. Assim, na defesa do aludido direito
individual indisponível, o parquet cotidianamente tem se dirigido até as Cortes
de Justiça para reclamar o fornecimento de medicamentos, a disponibilização
de exames, cirurgias, internações hospitalares etc.
b) Ao lado disto, não podemos nos esquecer da esfera
criminal, onde, para a apuração da materialidade delitiva, não raras vezes há a
necessidade da análise dos prontuários médicos, dos dados cadastrais, das
fichas de atendimento, dos relatórios de cirurgias, documentos que ficam sob a
posse das unidades de saúde e que retratam o quadro clínico e o atendimento
prestado às vítimas. São informações que, em regra, só podem ser encontradas
nestes prontuários, mas fundamentais à persecução criminal.
c) Contudo, não se sabe o motivo, nos últimos tempos
alguns gestores do Sistema Único de Saúde, bem como de hospitais públicos e
particulares localizados em Foz do Iguaçu, têm criado obstáculos ao acesso a
tais documentos por parte do Ministério Público. O pretexto utilizado é que os
prontuários médico-hospitalares estariam protegidos pelo sigilo médico,
impossibilitando, assim, seu fornecimento ao órgão ministerial sem a
autorização expressa destes pacientes ou intervenção judicial.
d) O principal argumento utilizado para tentar coibir a
requisição direta de prontuários médicos pelo Ministério Público é conteúdo da
Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.931, de 17.09.2009, que
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instituiu o novo Código de Ética Médica. Nela está prevista a proibição de
divulgação de dados ou fatos presentes no prontuário médico, bem como da
disponibilização de prontuário médico sem a autorização escrita do paciente
ou por decisão judicial.
e) Mas, quando os réus se pautam nesta assertiva,
esquecem-se que a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.931, de
17.09.2009 – Código de Ética Médica - dirige-se a disciplinar a conduta dos
médicos, não criando obrigações ou vedações a terceiros, em respeito ao
princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inciso I, da Constituição Federal.
Descuidam-se, também, que o Ministério Público, ao requisitar a cópia dos
prontuários médicos para instruir seus procedimentos de investigação, age
escudado em prerrogativa assegurada no art. 129, inciso VI, da Constituição
Federal e no art. 26, incisos I, “b”, e II, da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público). Por fim, ignoram que as limitações ao poder
de requisição do Ministério Público são somente aquelas indicadas em sede
constitucional, com o que essas limitações não podem ser ampliadas por leis
infraconstitucionais, muito menos por regramentos administrativos, como
resoluções.
f) Por isso é necessário relembrar que, conforme a teoria
da hierarquia das normas jurídicas, uma Resolução Administrativa não tem o
condão de revogar e afastar o cumprimento de texto expresso da Constituição
Federal ou de leis complementares ou ordinárias, com o que o Código de Ética
Médica não têm força normativa para estabelecer vedações a prerrogativas
constitucionais e legais dos membros do Ministério Público.
g) Outro argumento contrário que normalmente é
contraposto às requisições de prontuários médicos feitas diretamente pelo
Ministério Público reside na pretensa defesa da intimidade do paciente.
Contudo, ao trazer a tona esta equivocada justificativa, os réus invertem
absurdamente os valores ligados à defesa da intimidade do paciente, pois – nem
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seria preciso dizer - a preservação da intimidade deve ser voltada para atender
os interesses dos pacientes, não para lhes prejudicar. Ora, as investigações do
Ministério Público que demandam a requisição de prontuários normalmente se
dirigem à apuração de atos de imprudência, negligência ou imperícia na
prestação de serviços por parte de profissionais de saúde. Assim, é paradoxal
que estes acabem, por vezes, utilizando o alegado “sigilo médico” em seu
próprio favor, a fim de dificultar ou inviabilizar a apuração destes fatos. As
regras legais devem visar a proteção da vítima e não do responsável pelos
danos a ela causados.
i) No caso em espécie, repita-se que o Hospital Municipal
Padre Germano Lauck, através da Fundação Municipal de Saúde, pautado na
errônea interpretação das mencionadas normas regulamentares, passou a
recusar o fornecimento de documentos médico-hospitalares requisitados pela
9ª Promotoria de Justiça de Foz do Iguaçu. Ao fazê-lo, contudo, ignora que a
aludida interpretação conflita com as normas constitucionais e legais,
conforme anteriormente exposto.
j) Por fim, pontue-se que as requisições ministeriais foram
previstas pelo legislador constituinte em defesa de toda a sociedade. São
verdadeiras ordens legais, representação do poder conferido à instituição com
o objetivo de viabilizar e instrumentalizar sua atividade investigatória, seja no
âmbito civil ou penal, permitindo-lhe um eficaz desempenho das funções que
lhe foram atribuídas pela Carta Magna, garantindo, assim, uma prestação
jurisdicional mais célere e eficiente.
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II. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E PARA ASSEGURAR AS SUAS
PRÓPRIAS PRERROGATIVAS
O Ministério Público, na seara cível, tem legitimidade
abrangente na tutela dos direitos difusos, coletivos, individuais homogêneos e,
também, para assegurar as suas próprias prerrogativas constitucionais e legais.
Por sua vez, o objeto da presente ação civil pública é
assegurar que a observância do poder de requisição constitucionalmente
assegurado pela Constituição Federal ao Ministério Público, o qual
reiteradamente vem sendo inobservado pelo município de Foz do Iguaçu e pela
Fundação Municipal de Saúde. Por isso é que, ao perpetram esta omissão ilícita,
os réus, além de desrespeitarem as prerrogativas da Instituição, acabam por
prejudicar os direitos sociais difusos ligados à segurança pública e à tutela da
saúde pública que ao parquet cabe tutelar.
Nesse sentido, o art. 129, inciso III, da Constituição da
República, estabelece expressamente que o Ministério Público tem legitimidade
para a instauração de inquérito civil e a propositura de ação civil pública para a
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos, sendo incumbido, ainda, de “defender a ordem jurídica, o
regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis”, em
consonância com o estatuído no art. 127 da mesma Carta.
Igualmente, o art. 24, inciso IV, a Lei Federal nº 8.625/1993
(Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), reforça ainda mais a legitimidade
do Ministério Público para a propositura de ação civil pública para proteção de
quaisquer interesses difusos ou coletivos.
Desse modo, no caso em espécie salta aos olhos a
legitimidade e o interesse do Ministério Público para o ajuizamento desta Ação
Civil Pública, cujo escopo é assegurar o exercício de uma prerrogativa
constitucionalmente atribuída aos órgãos ministeriais e conferida.
III. DOS FATOS QUE DERAM ENSEJO A PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA No exercício regular das atividades atribuídas ao Ministério
Público pela Constituição Federal (art. 129), os membros desta Instituição
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habitualmente requisitam documentos e informações de órgãos públicos e
privados com o fim de angariarem provas, esclarecerem dúvidas sobre fatos
relevantes ou instruírem procedimentos investigatórios próprios, exercitando uma
prerrogativa estabelecida na Constituição da República (art. 129, VI), no Código
de Processo Penal (art. 47) e em diversas outras leis, repita-se.
Em relação à 9ª Promotoria de Justiça de Foz do Iguaçu,
especializada na Defesa da Saúde Pública, cotidianamente é necessária a
requisição de documentos médico-hospitalares voltados para os mais variados
fins. Por exemplo, eles servem para comprovar a existência ou não de crimes
decorrentes de erros médicos. Do mesmo modo, tais documentos são
imprescindíveis para que a equipe técnica do Ministério Público possa avaliar e
se posicionar, diante da eventual negativa do gestor público, sobre a cessão de
certo medicamento ou disponibilização de uma cirurgia a um determinado
paciente. Desta forma, é corriqueiro que os Promotores de Justiça, no regular e
legítimo exercício de suas funções públicas, requisitem tais documentos.
Pois bem, fixada esta premissa, no tocante ao Hospital
Municipal Padre Germano Lauck, a partir do ano de 2014, a nova direção da
Fundação Municipal de Saúde – pessoa jurídica responsável pela administração
do hospital - passou a se negar a atender as requisições do Ministério Público
para o fornecimento de documentos médico-hospitalares sob o argumento de
que os mesmos estariam protegidos pelo sigilo médico, o que impossibilitaria o
seu fornecimento. Segundo a ótica dos réus, estas informações só poderiam ser
fornecidas mediante ordem judicial ou autorização dos respectivos pacientes,
restrição que persistiria inclusive em caso de morte da pessoa atendida.
Em razão dessa recusa indevida, a fim de evitar maiores
contratempos decorrentes da demora na discussão sobre a licitude da negativa,
em diversas ocasiões o parquet peticionou ao aos Juízos Criminais buscando a
intervenção judicial para a obtenção da documentação médica.
Nesta seara, a título de reconhecimento, é importante dizer
que os Juízes de Direito de Foz do Iguaçu invariavelmente deferiram este pleito.
Contudo, o que preocupa é a possiblidade de futuramente algum destes
magistrados deixar de apreciar tais requerimentos sob o fundamento de que ao
Ministério Público faltaria interesse processual, considerando que a instituição
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possui a prerrogativa constitucional e legal de requisitar diretamente tais
documentos e, portanto, não necessitaria da tutela jurisdicional para tanto.
Aliás, ainda neste diapasão, convém relembrar que o
Conselho Nacional de Justiça determinou que a tramitação dos inquéritos
policiais passasse a ser feita diretamente entre o Ministério Público e a Polícia
Judiciária, sem a intermediação do Poder Judiciário. Pela nova sistemática,
inaugurada no início do ano de 2011, os inquéritos policiais, em regra, só são
levados à apreciação do Juiz Criminal quando houver denúncia, pedido de
arquivamento ou requerimento de alguma providência cautelar sujeita à reserva
de jurisdição, ou seja, quando efetivamente houver a necessidade de uma
providência de caráter jurisdicional. Esta medida visou a desafogar os Juízos
Criminais e, sobretudo, preservar a imparcialidade do julgador, afastando-o das
atividades tipicamente administrativas (pré-processuais) de investigação
criminal.
Por sua vez, essa nova forma de tramitação dos
procedimentos investigatórios criminais obrigou o Ministério Público e a Polícia
Judiciária a buscarem, por meios próprios, todas as provas necessárias ao
esclarecimento dos fatos investigados, reiterando-se que somente será admitida
a provocação do Poder Judiciário quando houver necessidade efetiva de um
provimento jurisdicional, o que significa dizer: quando a providência buscada só
puder ser operacionalizada mediante ordem judicial. Quanto à obtenção dos
prontuários médicos, denota-se que eles não se enquadram nesta categoria,
tendo em vista que são documentos que, por expressa previsão constitucional e
infraconstitucional, o Ministério Público pode e deve obter por meios próprios,
não é demais repetir.
Senhor Juiz, a recusa sistemática às requisições ministeriais
não pode se pautar nos argumentos trazidos pelos réus, não sem o risco de
vermos subvertido todo o sistema processual e constitucional brasileiro,
contrariando toda a lógica do funcionamento das instituições que compõem o
sistema de justiça criminal (Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia
Judiciária). Note-se que, a permanecer como está, a postura dos réus fará com
que o parquet se veja na iminência de sempre provocar, ainda que de forma
desnecessária, a tutela jurisdicional, caso a caso, ensejando a movimentação
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dispendiosa da estrutura judiciária (Juiz e Serventuários), o que implica em
custos e, naturalmente, em assoberbamento das Varas Criminais1.
Diga-se, contudo, que a requisição de prontuários de
pacientes pelo Ministério Público tem amparo na Constituição Federal, art. 129,
inciso VI, além da Lei Federal n. º 8625/93, art. 26, inciso I, alínea “b” e inciso II.
Por outro lado, as limitações a este poder de requisitório são aquelas previstas
somente pela própria Constituição, com o que não se pode ampliá-las através de
leis infraconstitucionais, muito menos por regramentos administrativos, como no
caso em espécie.
Estas requisições ministeriais são verdadeiras ordens legais,
razão pelas quais devem ser atendidas pelas autoridades a quem são dirigidas,
inclusive fugindo à esfera de discricionariedade de seus destinatários a avaliação
da oportunidade e/ou da conveniência de cumpri-las. São representações do
poder conferido à instituição, que têm o objetivo de viabilizar e instrumentalizar
sua atividade investigatória, seja no âmbito civil ou penal, permitindo-lhe um
eficaz desempenho das funções que lhe foram atribuídas. Tudo para garantir
uma prestação jurisdicional mais célere, desafogando, aliás, o próprio Poder
Judiciário.
Por sua vez, o dever de sigilo médico tem o propósito de
proteger a intimidade do paciente. Esse sigilo, porém, não é absoluto,
comportando diversas exceções, dentre as quais, por exemplo, os casos de
notificação obrigatória de algumas doenças. Assim, o direito à intimidade não
prevalece diante da necessidade de se proteger outros direitos também
considerados fundamentais.
Ademais, o alegado sigilo é voltado à proteção do paciente,
não à proteção do médico que o atendeu, não permitindo que profissionais que
assistem o paciente venham a utilizar o alegado “sigilo médico” em seu próprio
favor, a fim de dificultar ou inviabilizar a apuração destes fatos.
Estes temas serão mais bem abordados a seguir.
1 Em que pese a reiterada recusa ser, ainda, conduta isolada da atual diretoria do Hospital Municipal Padre Germano Lauck, é possível vislumbrar que outros gestores passem a se utilizar o mesmo artifício. Vale observar, por outro lado, que o referido hospital recebe pacientes (e vítimas de crimes) de toda esta região do Estado Paraná, podendo, portanto, receber requisições de membros do Ministério Público de outras comarcas, configurando, assim, um dano regional.
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IV. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO PODER REQUISITÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Com o advento da Constituição da República de 1988,
coube ao Ministério Público, como instituição permanente essencial à função
jurisdicional do Estado, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da CF). Neste contexto,
foram reconhecidas como funções institucionais do Ministério Público aquelas
elencadas no art. 129 da Constituição Federal e, no exercício deste seu mister,
foi-lhe outorgada a instrumentalização de meios para desempenhar, de forma
célere e eficaz, suas funções institucionais.
Sobre a atuação do Ministério Público como titular da ação
penal pública, destacando, inclusive, sua função investigatória, interessante é a
lição de Lenio Luiz Streck2: Chegamos, agora, ao ponto de enlace entre o perfil jurídico-constitucional do
Ministério Público, o modelo de Estado Social e Democrático de Direito e a
consequente necessidade de prestigiar-se sua função investigatória: essa atuação
na seara criminal – isso é fundamental – implica a disponibilização, em favor do
Ministério Público, de um aparato estrutural e funcional apto ao cumprimento do
desiderato constitucional.
É consentâneo com a suas funções institucionais que,
quando da tutela dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, o
parquet instaure e presida os procedimentos investigatórios adequados,
instruindo-os com as provas necessárias. Nos inquéritos policiais que lhe sejam
apresentados e/ou remetidos pela Polícia Judiciária, tem-se a possibilidade de
que o Ministério Público obtenha diretamente as provas que entende válidas,
complementando aquelas que tenham sido produzidas na fase inquisitorial.
Nesse contexto é que surge, portanto, o poder requisitório
do Ministério Público, com o intuito de melhor instruir os Inquéritos Civis,
Inquéritos Policiais ou outras peças de investigações submetidas à sua análise.
2 STRECK, Lenio Luiz. Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 43.
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Para que se possa melhor compreender essa prerrogativa
conferida aos órgãos Ministeriais, cumpre esclarecer, de início, o significado do
termo requisição. No dizer de Luis Roberto Proença3: Requisitar é o poder jurídico de exigir uma prestação, de determinar que algo se
faça. Quem requisita determina, exige, não pede. É poder sem intermediários para
o seu exercício, vinculando diretamente o expedidor ao destinatário, tendo por
objeto uma atividade deste. Possui o atributo da autoexecutoriedade.
As requisições ministeriais constituem verdadeiras ordens
legais, e não meros pedidos, motivo pelo qual devem ser atendidas pelas
autoridades a que são encaminhadas, inclusive fugindo da esfera de
discricionariedade de seus destinatários a avaliação sobre a oportunidade e/ou
conveniência de cumpri-las. Foi um poder conferido o com o intuito de viabilizar
e instrumentalizar a atividade investigatória do Ministério Público, seja no âmbito
civil ou penal, permitindo-lhe um eficaz desempenho das funções que lhe foram
atribuídas pelo constituinte originário, seguramente também com o objetivo de
garantir uma prestação jurisdicional mais célere.
O poder requisitório tem seu fundamento primeiro no art.
129, inciso VI, da Constituição da República, que estabelece como função
institucional do Ministério Público a prerrogativa de expedir notificações nos
procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e
documentos para instruí-los.
Em complemento ao comando constitucional, temos a Lei
Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Federal nº 8.625/93). Ela, em seu
art. 26, regulamenta o tema, conferindo ao Ministério Público a prerrogativa de
instaurar e presidir inquéritos civis e procedimentos administrativos, podendo,
com o escopo de instruí-los, “requisitar informações, exames periciais e
documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos
órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
Nesse sentido, merecem destaque, ainda, disposições
contidas na Lei Complementar Estadual nº 85/1999 (Lei Orgânica do Ministério
3 Apud ALMEIDA, Gustavo Milaré. Poderes Investigatórios do Ministério Público nas Ações Coletivas. São Paulo: Atlas, 2010. p. 79.
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Público do Estado do Paraná): Art. 58. Os membros do Ministério Público, no exercício de suas funções,
poderão:
I - instaurar inquéritos civis e procedimentos administrativos pertinentes e, para
instruí-los:
b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades municipais, estaduais e federais, de órgãos ou entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios.
II - requisitar informações, exames periciais e documentos a entidades privadas ou pessoas, para instruir procedimento ou processo em que oficie;
O próprio Código de Processo Penal, em vigor há mais de
70 (setenta) anos, no seu art. 47, estabelece que, se o Ministério Público, com
relação ao inquérito policial, julgar “necessários maiores esclarecimentos e
documentos suplementares ou novos elementos de convicção”, deve “requisitá-
los, diretamente, de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou
possam fornecê-lo”.
Do exame dos dispositivos acima mencionados, denota-se
que, salvo os casos em que a própria Constituição Federal exige prévia
autorização judicial, todas as autoridades ou servidores públicos têm o dever de
atender às requisições ministeriais, sob pena de a recusa indevida caracterizar
crimes de ocultação de documento, desobediência e/ou favorecimento pessoal
(CP, arts. 305, 330 e 348), além de ato de improbidade administrativa por
obstrução da Justiça e omissão de ato de ofício.
Corroborando este posicionamento na seara criminal,
Guilherme de Souza Nucci4 aduz: Poder de requisição do Ministério Público: quando legalmente possível, cabe ao
representante do Ministério Público exigir a apresentação de documentos ou a
realização de diligências complementares para auxiliar na formação da sua
convicção. Essa possibilidade, segundo entendemos, deveria ser utilizada com
maior frequência pelo promotor, que, ao invés de tudo requerer através do juiz,
4 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 165/166.
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poderia requisitar diretamente a quem de direito. (...) Necessitando de um
documento, oficia diretamente à repartição encarregada de fornecê-lo. Poupa-se
tempo e a ação penal está em pleno curso, sem necessidade de tudo ser
realizado através do juízo. Entretanto, há situações para as quais o Ministério
Público não está, constitucionalmente, autorizado a agir, como, por exemplo, nos
casos em que somente o juiz pode requisitar determinado documento, porque
resguardado pelo sigilo fiscal ou bancário. (gn)
É o que se depreende igualmente dos seguintes julgados do
Superior Tribunal de Justiça, cuja linha vem sendo seguida por outros Tribunais
do país: CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO
ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REQUISIÇÃO FEITA PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO COM A FINALIDADE DE INSTRUIR PROCEDIMENTO
DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR PREPARATÓRIO DE INQUÉRITO CIVIL.
PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL ASSEGURADA AO PARQUET. ART. 129
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INFORMAÇÕES E DOCUMENTOS CUJA
AFERIÇÃO DA RELEVÂNCIA SÓ COMPETE AO MINISTÉRIO PÚBLICO.
AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. 1. Recurso ordinário em
mandado de segurança no qual se discute a possibilidade de autoridade
administrativa negar solicitação do Ministério Público de fornecimento de
informações e documentos necessários à instrução de Procedimento de
Investigação Preliminar que visa a apuração da existência de irregularidades
administrativas na contratação de pessoal no âmbito do Tribunal de Contas do
Estado de Pernambuco. 2. A requisição de informações e documentos para a
instrução de procedimentos administrativos da competência do Ministério Público,
nos termos do art. 129 da Constituição Federal de 1988, é prerrogativa
constitucional dessa instituição, à qual compete a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. No âmbito
da legislação infraconstitucional, essa prerrogativa também encontra amparo no §
1º do artigo 8º da Lei n. 7.347/1985, segundo o qual "o Ministério Público poderá
instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo
público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que
assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis". 3. Tanto o
Procedimento de Investigação Preliminar, quanto o inquérito civil, servem à
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formação da convicção do Ministério Público a respeito dos fatos investigados e o
resultado consequente pode dar ensejo ao ajuizamento de qualquer das ações
judiciais a cargo do parquet. 4. A "análise prévia" (conforme referiu a Corte de
origem) a respeito da necessidade das informações requisitas pelo Ministério
Público é da competência exclusiva dessa instituição, que tem autonomia
funcional garantida constitucionalmente, não sendo permitido ao Poder Judiciário
ingressar no mérito a respeito do ato de requisição, sob pena de subtrair do
parquet uma das prerrogativas que lhe foi assegurada pela Constituição Federal
de 1988. 5. Recurso ordinário provido para conceder o mandado de segurança.
(Superior Tribunal de Justiça, RMS 33.392/PE, Primeira Turma, Rel.: Min.
Benedito Gonçalves, julgado em 07/06/2011)
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FORMAÇÃO DE QUADRILHA.
CONCUSSÃO. AÇÃO PENAL. ATOS INVESTIGATÓRIOS. MINISTÉRIO
PÚBLICO. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. DENÚNCIA. SUBSCRIÇÃO.
PROMOTOR. CONDUTOR. INVESTIGAÇÃO. LEGITIMIDADE. APLICAÇÃO.
SÚMULA 234/STJ. 1. Conquanto não se desconheça o debate travado no
Supremo Tribunal Federal acerca da matéria, esta Corte assentou entendimento
no sentido de que, em princípio, são válidos os atos investigatórios realizados pelo
Ministério Público, cabendo-lhe ainda requisitar informações e documentos, a fim
de instruir os seus procedimentos administrativos, com vistas ao oferecimento da
denúncia. (...) 3. Ordem denegada. (Superior Tribunal de Justiça, HC 37316/SP,
Rel.: Min. Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 11.12.2008)
PENAL. RECURSO ESPECIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. REQUISIÇÃO DE
DILIGÊNCIAS NEGADA PELO JUIZ. CORREIÇÃO PARCIAL INDEFERIDA.
POSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO PELO PRÓPRIO ÓRGÃO MINISTERIAL.
TUMULTO PROCESSUAL INEXISTENTE. RECURSO IMPROVIDO. 1. O
Ministério Público, por expressa previsão constitucional e legal (art. 129, VI e VIII,
da Constituição Federal, art. 26, I, b e II, da Lei Complementar n.º 75/90 e art. 47
do Código de Processo Penal), possui a prerrogativa de conduzir diligências
investigatórias, podendo requisitar diretamente documentos e informações que
julgar necessários ao exercício de suas atribuições de dominus litis. (...) 3.
Recurso especial improvido. (Superior Tribunal de Justiça, REsp 589766/PR, Rel.:
Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 19.05.2005)
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CERCEAMENTO DE ACUSAÇÃO. DILIGÊNCIA REQUERIDA PELO MINISTÉRIO
PUBLICO. INDEFERIMENTO PELO JUÍZO. Situa-se, por expressa disposição
constitucional (CF, art. 129, inc. III), entre as atribuições institucionais do Ministério
Público, a requisição de diligências investigatórias. E a própria legislação
processual confere ao agente ministerial o poder de requisitar, diretamente, a
quaisquer autoridades ou funcionários, esclarecimentos, documentos ou
elementos de convicção (CPP, art. 47). Somente se afigura necessária a
intervenção do juízo, em se tratando de pedido que contemple restrição a direito
fundamental (v.g. busca e apreensão, quebra de sigilo, interceptação telefônica
etc.), a demandar, necessariamente provimento judicial (...) Nulidade inexistente.
Apelo improvido. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Recurso Crime nº
71001727353-2008/Santa Maria, Rel.: Juiz Honório Gonçaves da Silva Neto,
Turma Recursal Criminal, julgado em 04.08.2008)
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REMESSA NECESSÁRIA. MANDADO
DE SEGURANÇA. Direito líquido e certo do Parquet assegurado pela Constituição
Federal. Legitimidade ministerial para requisição de documentos. Recusa
injustificada da autoridade coatora na disponibilidade dos documentos públicos.
Obrigação de atender ao requerimento do Ministério Público. Remessa oficial
conhecida e improvida. Precedentes (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte,
Remessa Necessária nº 2007.003793-6, Rel.: Des. João Rebouças, Terceira
Câmara Cível, julgado em 19.07.2007).
Consoante o que foi exposto, às autoridades a que são
dirigidas as requisições ministeriais, não lhes cabe a realização de nenhuma
espécie de avaliação sobre a oportunidade ou conveniência das mesmas,
análise que compete exclusivamente ao órgão requisitante, o qual passa a ser
responsável pelo uso legítimo dos documentos ou informações requisitadas, sob
as penas da lei.
Impende registrar, ainda, que o poder requisitório do
Ministério Público não se restringe à instrução de procedimentos administrativos
(inquéritos policiais ou inquéritos civis), visto que a Constituição não trouxe tal
limitação. Pelo contrário, as funções elencadas do art. 129 da Constituição
Federal são meramente exemplificativas. Tanto o é que seu inciso IX prevê que
o Ministério Público exercerá “outras funções que lhe forem conferidas, desde
que compatíveis com sua finalidade”.
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É o que se extrai também da Lei Federal n. º 8.625/1993,
que diz competir ao Ministério Público a prática de “atos administrativos
executórios, de caráter preparatório" para avaliações preliminares acerca de
fatos que, posteriormente, poderão dar ensejo a instauração de tais
procedimentos. Depreende-se deste dispositivo que a expedição de requisições
poderá ocorrer sem o prévio procedimento administrativo, que poderá ou não ser
iniciado dependendo do teor das informações encaminhadas.
Sobre o tema, bastante válido é o teor do seguinte julgado
do Superior Tribunal de Justiça: MANDADO DE SEGURANÇA. PREFEITO MUNICIPAL. REQUISIÇÃO DE
INFORMAÇÕES PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PESSOAS CONTRATADAS
PELA PREFEITURA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. VIOLAÇÃO AO ARTIGO
535, DO CPC. SÚMULA 284/STF. DIREITO DE CERTIDÃO. DECISÃO NOS
LIMITES CONSTITUCIONAIS. INDEPENDÊNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
DIRETRIZES TRAÇADAS PELA ADMINISTRAÇÃO SUPERIOR DO PARQUET
ESTADUAL. OBRIGATORIEDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULA 282/STF. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE
INQUÉRITO CIVIL OU PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. ARTIGO 26, I, "B",
DA LEI Nº 8.625/93. I - Trata-se de mandado de segurança impetrado pelo ora
recorrente, prefeito municipal de Minas Gerais, contra o ato do Ministério Público
consubstanciado na requisição de informações sobre as pessoas nomeadas,
contratadas e terceirizadas por aquela Prefeitura a partir de 05.10.98. (...) V - Não
se faz necessária a prévia instauração de inquérito civil ou procedimento
administrativo para que o Ministério Público requisite informações a órgãos
públicos - interpretação do artigo 26, I, "b", da Lei nº 8.625/93. VI - Recurso
parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido. (Superior Tribunal de Justiça,
REsp 873.565/MG, Rel.: Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em
05.06.2007).
Do exposto, conclui-se que o poder requisitório do Ministério
Público, além de expressamente previsto pelas Constituições Federal e Estadual
e pela legislação infraconstitucional, traz em si grande importância na medida em
que atua como verdadeiro instrumento de concretização das funções
institucionais do Ministério Público brasileiro. Por outro lado, repise-se, as
limitações ao poder de requisição do Ministério Público são previstos apenas em
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sede constitucional, não podendo ser ampliadas por leis infraconstitucionais,
muito menos por regramentos administrativos.
V. DA IMPOSSIBILIDADE DE SE OPOR O SIGILO PROFISSIONAL E O DIREITO À
INTIMIDADE DO PACIENTE ÀS REQUISIÇÕES MINISTERIAIS. DA AUSÊNCIA DE
VIOLAÇÃO AO SIGILO PROFISSIONAL MÉDICO O principal argumento utilizado para negar atendimento o às
requisições de prontuários médicos ao Ministério Público reside na suposta
defesa da intimidade do paciente.
Já de início convém frisar que a defesa da intimidade do
paciente deve ser utilizada em benefício deste, não em seu prejuízo. Assim,
considerando que as investigações do Ministério Público que demandam a
requisição de prontuários normalmente se dirigem busca de intervenção judicial
para garantir assistência integral à saúde ou, na seara criminal, para apuração
de atos culposos na prestação de serviços por parte de profissionais de saúde
que tenham causado danos aos pacientes, não é difícil concluir que, por vezes,
valendo-se do chamado “sigilo médico”, alguns profissionais investigados negam
o acesso aos prontuários para dificultar a apuração de suas próprias condutas.
Indiscutivelmente, quando o Ministério Público deflagra esse
tipo de investigação tenciona a aplicação da lei, com a busca da verdade real.
Quase sempre esses procedimentos investigatórios são iniciados por
reclamações feitas pelo próprio paciente ou por familiares destes que, ao
procurarem uma Promotoria de Justiça em busca de direitos que entendem
violados, estão autorizando o acesso a informações médicas a seu respeito.
Neste ponto, demonstrando que a existência de interesse
para o próprio paciente na obtenção de prova na defesa de seu direito, afasta-se
o sigilo para as autoridades requisitantes. Transcrevemos o contido na página do
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul
(www.cremers.org.br), em “perguntas mais frequentes” – “perguntas e respostas
mais frequentes na ouvidoria”: Requisições de prontuários pelo juiz, Ministério Público e da Delegacia:
As requisições dos Juízes, Ministério Público e fiscais da Delegacia Regional do
Trabalho devem receber acolhida, pois visam atender interesses do empregado,
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pois o paciente, ao oferecer seu prontuário como prova, abre tacitamente mão o
sigilo.
Contudo, ainda que não haja essa autorização do
paciente ou de seus familiares, expressa ou tácita, devemos nos lembrar de que
estamos diante de direitos indisponíveis (à vida e à saúde), com o evidente
interesse social e coletivo. Por isso não se pode impedir a obtenção por parte do
Ministério Público de fundamental elemento de prova, inviabilizando o primado
da Justiça.
Indo diante, observa-se que a Resolução do Conselho
Federal de Medicina nº 1.931, de 17.09.2009 – Código de Ética Médica, em seu
art. 90, prevê o seguinte: É vedado ao médico:
(...)
Art. 90. Deixar de fornecer cópia do prontuário médico de seu paciente quando de
sua requisição pelos Conselhos Regionais de Medicina.
Ocorre que, ao prever a requisição de prontuários
médicos de pacientes pelos Conselhos Regionais de Medicina, órgãos
administrativos, sem jurisdição, o próprio Código de Ética Médica acaba por
chancelar as requisições de outros órgãos de investigação, como Ministério
Público e a Polícia Judiciária, desde que baseados em justa causa, como
indiscutivelmente ocorre na apuração de ilícitos5.
Repise-se que o interesse de agir, mais propriamente a
necessidade de interpor a presente ação, decorre da recente alteração de
postura por parte da direção da Fundação Municipal de Saúde que passou a
recusar o fornecimento de documentos médico-hospitalares ao Ministério Público
do Estado do Paraná. Reitere-se, ainda, que o principal argumento levantado
para tentar justificar a indevida recusa diz respeito ao sigilo profissional do
médico e à intimidade do paciente. De acordo com os réus, apenas se o
paciente ou seu representante legal autorizar, ou se houver decisão judicial
específica, seria juridicamente possível fornecer certidões, declarações e
prontuários médicos hospitalares, posição que encontraria amparo no Código de
5 apud http://www.mpro.mp.br/documents/10180/561151/Revista+Informativa+33.pdf/3650e3d0-99f6-4d77-beed-c889fc8b6743
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Ética Médica (Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009) e em atos
correlatos emitidos pelos Conselhos Federal e Estadual de Medicina.
Trata-se, em verdade, de uma interpretação
completamente equivocada do Código de Ética Médica. O seu objeto envolve,
portanto, o conflito aparente – mas só aparente – entre Ética e Direito. Para o
deslinde da questão, são pertinentes algumas indagações a seguir abordadas,
quais sejam:
- O que significa ética?
- O cumprimento de normas (legais ou constitucionais) pode implicar
em violação ética?
- O Código de Ética Médica proíbe o fornecimento de documentos
médicos quando requisitados por autoridade pública com poder legal para tanto?
- Em caso de investigação de crime de ação penal pública
incondicionada (que não depende da vontade do ofendido) o direito da vítima à
privacidade pode impedir a obtenção de prova da materialidade do crime?
- É razoável, diante da dinâmica da investigação criminal, que o
Ministério Público necessite sempre buscar no Poder Judiciário a tutela cautelar
para ter acesso às informações sobre a natureza e sede das lesões sofridas por
alguém que é vítima de um crime?
- É razoável que o argumento da defesa da intimidade do
paciente seja utilizado não em benefício deste, mas para dificultar a apuração de
casos de erros médicos, sendo, portanto, utilizado em seu prejuízo?
- Existem a prerrogativa legal e a presunção de legitimidade dos atos
dos agentes públicos do Ministério Público?
- Em caso de eventual abuso do poder de requisição ou de mau uso
das informações obtidas mediante requisição esses agentes públicos podem ser
responsabilizados?
Numa democracia se vive sob o império das leis, que são
formuladas, presume-se, visando o bem comum. As leis, de uma forma geral,
estabelecem regras de conduta, seja estabelecendo um dever ou proibindo e
punindo uma conduta. Pode-se dizer que, em regra, as normas legais são a
positivação de prescrições éticas. Seria exceção, uma verdadeira aberração, a
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produção de leis antiéticas, ou seja, carecedoras de virtude ou de lucidez.
Certamente uma lei assim conflitaria com regras e princípios constitucionais.
Nesse contexto, é possível definir a ética como o conjunto
de preceitos de ordem valorativa e moral que orientam o comportamento
humano. Ou, no dizer de Eduardo García Máynez, a ética se traduz no “conjunto
de regras de comportamento e formas de vida através das quais tende o homem
a realizar o valor do bem”.6 Constata-se, assim, que o cumprimento de normas
jurídicas, sejam elas legais ou constitucionais, significa, também, o respeito aos
próprios valores éticos de uma sociedade.
Feitos tais esclarecimentos iniciais, da análise da situação
que deu ensejo a presente demanda, não obstante o suposto o zelo dos
diretores da Fundação Municipal de Saúde e do Hospital Municipal Padre
Germano Lauck em preservar a intimidade dos pacientes e observar o sigilo
profissional fixado no Código de Ética Médica, não se afiguram válidos as suas
justificativas. Nem mesmo as garantias individuais previstas na Constituição são
absolutas, podendo ser relativizadas em prol do interesse público. Pode-se afirmar, sob o plano constitucional, que as garantias constitucionais da
proteção à casa, o respeito à intimidade, vida privada e à integridade física do
indivíduo não são absolutas. O exercício dos aludidos direitos deve ser conciliado
com o poder-dever estatal de punir, bem como o de manter e restaurar a paz
pública.7
O que se observa é uma aparente colisão entre direitos
dotados de fundamentalidade, estando, de um lado, o interesse público
consubstanciado no poder-dever de punir do Estado e, de outro, o direito à
intimidade e o sigilo profissional.
No entanto, em verdade, o Código de Ética Médica não
conflita com a Constituição nem com as leis. O que ocorre é uma interpretação
distorcida quanto ao dever de sigilo médico, que tem o propósito de proteger a
intimidade do paciente da curiosidade alheia. Esse sigilo, porém, não é um
dogma absoluto., comportando diversas exceções, como, por exemplo, nos
6 apud NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 3ª ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 36. 7 PITOMBO, Cleunice A. Valentim Bastos. Da busca e da apreensão no processo penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 90/91.
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casos de notificação obrigatória de algumas doenças e o fornecimento de
informações às autoridades públicas legitimamente constituídas, repita-se.
É o que se observa também com relação ao direito à
intimidade que, apesar de corresponder a um direito amplo, abarcando,
inclusive, em uma interpretação mais abrangente, a inviolabilidade do domicílio,
o sigilo da correspondência, e o segredo profissional, não é absoluto. Por isso é
lícito ao Estado, em alguns casos, adentrar nessa esfera íntima das pessoas.
Dito de outro modo, o direito à intimidade não prevalece diante da necessidade
de se proteger outros direitos também considerados fundamentais, como é a
hipótese ora analisada. Nesse sentido é o entendimento dos tribunais pátrios: PROCESSUAL PENAL – HABEAS CORPUS - QUEBRA DE SIGILOS
BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS (ARTIGO 5º, X E
XII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). I. Os direitos e garantias fundamentais do
indivíduo não são absolutos, cedendo em face de determinadas circunstâncias,
como, na espécie em que há fortes indícios de crime em tese, bem como de sua
autoria. II. Existência de interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente
sustentáculo. III. Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial
regularmente instaurado, intervenção do órgão do parquet federal e prévio
controle judicial, através da apreciação e deferimento da medida. (Tribunal
Regional Federal da 2ª Região, Habeas Corpus nº 95.02.22528-7/RJ, Terceira
Turma, Rel.: Des. Valmir Peçanha, julgado em 14.11.1995).
Observa-se, portanto, a relatividade dos direitos
fundamentais cujo sigilo, a depender do caso concreto, pode ser afastado frente
a outros direitos dotados da mesma importância, especialmente se o interesse
público assim o exigir. A segurança pública e a saúde são também direitos
fundamentais, na modalidade social (CF, art. 6º). Nesse contexto, ganham
relevância os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade como meios de
se determinar o alcance de certos direitos fundamentais.
No caso vertente, não se afigura razoável negar ao
Ministério Público o fornecimento de documentos indispensáveis ao exercício
do seu múnus público consistente na elucidação de crimes, pautada na
alegação de, com isso, preservar a intimidade daquelas que são as próprias
vítimas dos delitos. Também não se afigura razoável essa negativa quando o
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que se está apurando são erros médicos cujas vítimas são os próprios
pacientes ou, ainda, quando se busca a obtenção de um medicamento ou
cirurgia em atenção a uma demanda deste paciente.
Ainda em relação ao sigilo profissional, mesmo que se
abstraíssem as questões filosóficas relacionadas à ética para examinar a
questão sob o foco exclusivamente jurídico, levando em conta a sistematização
dos mandamentos éticos em normas escritas, como é o caso do Código de Ética
Médica, seria o caso de aplicar as regras de solução dos conflitos aparentes de
normas jurídicas, em especial o da hierarquia. Assim, não poderia jamais uma
norma regulamentar, editada por uma entidade de classe – por mais respeitável
que seja – se sobrepor à força normativa das leis em sentido formal nem
tampouco das regras e princípios constitucionais.
Dito de outra forma, o sigilo em questão, apesar de ser visto
por alguns como uma das vertentes do direito à intimidade, não se encontra
previsto no texto constitucional nem em lei, mas apenas numa mera resolução
do Conselho Federal de Medicina. Sendo assim, não há dúvidas de que
eventuais resoluções de conselhos profissionais, inclusive dos que congregam
médicos e outros trabalhadores da área de saúde não se sobrepõem à
Constituição nem revogam as leis do país, pelo que se afigura impertinente,
ilegal e desprovida de razoabilidade a sua invocação para recusar o
cumprimento de requisições do Ministério Público ou de qualquer autoridade
policial que apure crime de ação penal pública.
Muitas vezes, a falta de colaboração do ofendido inviabiliza,
na prática, a investigação. Com efeito, nem sempre é possível o exame médico-
legal direto, o que torna absolutamente necessário o conhecimento dos
documentos médico-hospitalares para que se possa comprovar a natureza e
sede das lesões físicas. É o que ocorre com frequência nos crimes de tortura
policial, em que o ofendido, por medo, prefere não informar o fato às autoridades
e consequentemente não é encaminhado para o exame de corpo de delito no
tempo adequado, isto é, enquanto as lesões são perceptíveis, de modo que
somente os documentos médico-hospitalares da época do atendimento podem
comprovar as lesões corporais.
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A persecução penal, realizada de conformidade com a
Constituição da República, é um instrumento de cidadania e de promoção da
dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, também e essencialmente uma
expressão ética. A Constituição é, em resumo, o conjunto de valores éticos, o
ideário, de uma sociedade, como assim afirma Eduardo Bittar: De fato, a Constituição inaugura um novo conjunto de preocupações éticas. Isso
porque, em verdade, a ordem jurídica constitucional visa mais que tudo a alcançar
a plenitude do convívio social pacífico. Dessa forma, as normas jurídicas são
predispostas a produzir efeitos práticos sobre o comportamento e a conduta das
pessoas, das sociedades, das organizações, das corporações, das cooperativas,
dos órgãos governamentais... no sentido de efetivamente causar repercussões
sobre a ética da população, a moral social e a consciência de uma sociedade.8
É importante ressaltar que o próprio preâmbulo do Código
de Ética Médica determina que suas normas devem se submeter aos
dispositivos constitucionais vigentes – e não poderia ser diferente. Nesse
sentido, igualmente são as considerações feitas pelo Conselho Federal de
Medicina sobre o referido Código ao afirmar que: O CEM não é determinado apenas pela profissão médica em si. Também verifica
o cumprimento dos regulamentos que regem a sociedade na qual os profissionais
praticam a Medicina. O Código está, portanto, subordinado à Constituição e às
leis.9
Desse modo, resta clara a estreita relação entre a ética e o
direito, na medida em que o agir ético, para assim ser considerado, deve estar
pautado nos valores trazidos pelo ordenamento jurídico vigente, mormente pelo
texto constitucional. Inexiste, assim, uma conduta ética que viole os ditames
constitucionais.
Dito isto, cumpre repisar que o Código de Ética Médica,
aprovado pela Resolução CFM nº 1.931/2009, publicada no Diário Oficial da
União de 24/09/2009, é uma mera resolução administrativa do Conselho Federal
de Medicina e que, portanto, não afasta o dever legal dos profissionais de saúde
de prestarem informações de interesse público às autoridades públicas. Aliás, já 8 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 164. 9 Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/destaques.asp> Acesso em 18 dez 2011.
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no preâmbulo, ao relacionar os princípios fundamentais do exercício da
medicina, o referido Código de Ética estabelece que “o médico guardará sigilo a
respeito das informações de que detenha conhecimento do desempenho de
suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”. O art. 73 do mesmo
Código de Ética excepciona do segredo médico a informação prestada por
motivo justo causa ou dever legal, exceção que evidentemente se aplica aos
prontuários e fichas de atendimento médico de urgência em vítimas de crimes
violentos. Vejamos: É VEDADO AO MÉDICO: ART. 73. REVELAR FATO DE QUE TENHA CONHECIMENTO EM VIRTUDE DO
EXERCÍCIO DE SUA PROFISSÃO, SALVO POR MOTIVO JUSTO, DEVER
LEGAL OU CONSENTIMENTO, POR ESCRITO, DO PACIENTE. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de
conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento
como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e
declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico
estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.
Ademais, do ponto de vista filosófico, considerando a ética
como o conjunto de preceitos que norteiam o comportamento humano, seja de
um indivíduo ou de um grupo, não se vislumbra nenhuma ética em acobertar
crimes ou proteger criminosos. A razão de ser do sigilo médico é a proteção do
paciente, e não do seu agressor ou do médico que supostamente tenha agido
com imperícia!
Desse modo, não se afigura plausível que, sob o
argumento de preservar a intimidade da pessoa que foi vítima de um delito, os
hospitais públicos ou privados venham opor o sigilo profissional para a entrega
de cópia do prontuário médico-hospitalar que descreve a lesão corporal sofrida e
que poderá ensejar a responsabilização e punição daquela pessoa que atentou
contra o ofendido. Por isso absolutamente insubsistente a justificativa utilizada –
resolução que fixou o Código de Ética Médica editada pelo Conselho Federal de
Medicina e atos e expedientes do Conselho Estadual de Medicina –, que
confronta diretamente com as normas constitucionais e legais que regem o
processo e fixam os instrumentos disponíveis ao Ministério Público para garantir
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o exercício da ação penal pública e da ação civil pública.
Pontue-se mais uma vez: as normas legais que conferem
aos representantes do Ministério Público e outros agentes estatais o poder de
requisitar documentos implicam, necessariamente, numa obrigação para o
destinatário da ordem. Logo, ao atendê-la, o destinatário não pratica uma
violação do seu dever profissional, pois, evidentemente, não pratica nenhum
comportamento reprovável. Da mesma forma que o profissional deve obedecer
as regras contidas no código de ética da categoria, deve também observar as
leis do país. A observância as primeiras não dispensa do cumprimento das
últimas. Portanto, as eventuais negativas da direção de hospitais e unidades de
saúde em atender às requisições ministeriais para o fornecimento de
documentos médico-hospitalares na verdade constitui violação às normas
constitucionais e legais antes referidas, além de afronta ao próprio Código de
Ética Médica, que claramente excepciona o sigilo médico nos casos em que
houver motivo justo ou dever legal.
Acerca da possibilidade de se afastar o sigilo profissional,
seguem os arestos do Superior Tribunal de Justiça, verbis: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. "QUEBRA DE SIGILO
PROFISSIONAL". EXIBIÇÃO JUDICIAL DE "FICHA CLINICA" A PEDIDO DA
PRÓPRIA PACIENTE. POSSIBILIDADE, UMA VEZ QUE O "ART. 102 DO
CÓDIGO DE ÉTICA MEDICA", EM SUA PARTE FINAL, RESSALVA A
AUTORIZAÇÃO. O SIGILO É MAIS PARA PROTEGER O PACIENTE DO QUE O
PRÓPRIO MÉDICO. RECURSO ORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (Superior
Tribunal de Justiça, RMS 5821/SP, Rel.: Min. Adhemar Maciel, Sexta Turma,
julgado em 15.08.1996)
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO E CRIMINAL.
REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIO. ATENDIMENTO A COTA MINISTERIAL.
ÉTICA. QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL. NÃO VERIFICAÇÃO. O sigilo
profissional não é absoluto, contém exceções, conforme se depreende da leitura
dos respectivos dispositivos do Código de Ética. A hipótese dos autos abrange as
exceções, considerando que a requisição do prontuário médico foi feito pelo juízo,
em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra
a vida. Precedentes análogos. Recurso desprovido. (Superior Tribunal de Justiça,
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ 9ª Promotoria de Justiça da comarca de Foz do Iguaçu Proteção aos Direitos Constitucionais, à Saúde Pública e ao Meio Ambiente
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RMS 11453/SP, Rel.: Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em
17.06.2003)
Deste contexto tem-se que não é razoável que, sempre que
se faça necessária obtenção de tais documentos para fins de subsidiar
determinada investigação, o Ministério Público se veja obrigado a provocar o
Poder Judiciário10. A interpretação equivocada de alguns não pode
reiteradamente prejudicar a eficiência da atividade ministerial (e o princípio da
eficiência está também previsto no texto constitucional) nem criar demanda
desnecessária para o Poder Judiciário. Mas, infelizmente, é o que vem
ocorrendo.
É importante relembrar, por fim, que os atos praticados
pelos Promotores de Justiça, na qualidade de agentes públicos e no exercício de
suas funções, gozam da presunção de legitimidade, de legalidade e de
veracidade, isto é, são presumidamente legítimos e obedecem às regras morais.
Por isso, partindo-se do pressuposto de que uma requisição é presumidamente
legítima, não cabe ao servidor a em quem ela foi dirigida realizar qualquer
espécie de avaliação sobre o seu conteúdo. A par disto, os agentes ministeriais
são legalmente responsáveis pela correta utilização dos documentos
requisitados no exercício de suas funções, podendo, em caso de uso indevido,
responder criminal, cível e administrativamente. HABEAS CORPUS. ESTABELECIMENTO HOSPITALAR. NEGLIGENCIA
MÉDICA. ENTREGA DE DOCUMENTOS. ILEGALIDADE DA RECUSA.
HABEAS CORPUS. INQUÉRITO. APURAÇÃO DE NEGLIGENCIA
MÉDICA. REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIO. RECUSA NO FORNECIMENTO.
VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL. INOCORRÊNCIA. NECESSIDADE
DO DOCUMENTO PARA ANALISE DO PROCEDIMENTO MÉDICO ANTES,
DURANTE E DEPOIS DA CIRURGIA FATAL. ATO LEGÍTIMO DO DELEGADO
DE POLÍCIA. DISPENSABILIDADE DE ORDEM JUDICIAL.
CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. A resolução do conselho federal
de medicina, invocada para justificar a recusa da paciente no cumprimento
da requisição policial, encerra inconcebível absurdo quando nos "considerandos"
10 Pois, além das exceções devidamente explicitadas na Constituição, ao Ministério Público instituição restou conferida expressamente a prerrogativa de requisitar documentos e informações diretamente, dando maior celeridade à investigação criminal ou à instrução dos seus próprios procedimentos.
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afirma que "é ilegal a requisição judicial de documentos médicos quando há
outros meios de obtenção de informação necessária como prova". Grifo nosso -,
pois em se tratando de investigação destinada a apuração de crime, cuja ação
penal é publica incondicionada, compete a autoridade reunir todas as provas
para averiguar, ao final, qual é a necessária ou não ao convencimento do
julgador. A par disso, a violação de segredo profissional só constituiu crime
quando a revelação é feita sem justa causa por quem tem ciência dele em razão
da função, ministério, ofício ou profissão, sendo ela capaz de produzir dano a
outrem, e mesmo assim a adequação típica exige a presença do dolo, o que não
se verifica no fornecimento de prontuário médico de vítima de homicídio em
cumprimento de requisição da autoridade competente para fazê-lo, sendo
oportuno lembrar que o crime de violação do segredo profissional somente se
procede mediante representação, direito que pertence ao interessado na
manutenção do segredo e que se extingue com a morte, não se transmitindo aos
herdeiros, que só poderão representar se forem atingidos pela revelação,
conforme ensinamentos de Heleno Cláudio Fragoso. No caso, não se está
exigindo que a paciente revele segredo que a vítima de um possível homicídio
tenha revelado ao médico que a operou, mas sim o fornecimento
do prontuário para se saber qual a rotina médica adotada antes, durante e
depois da cirurgia fatal, com o fim de se obter as informações necessárias à
elucidação da causa do óbito, sua autoria e se o médico responsável
negligenciou na observância de regra técnica de profissão. Ordem indeferida.
(TJRJ; HC 4055/2003; Rio de Janeiro; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des.
Gama Malcher; Julg. 29/05/2001)
VI. BREVES APONTAMENTOS SOBRE OS PRONTUÁRIOS DE SAÚDE
Tomando a liberdade de transcrever parte dos
ensinamentos do ilustre colega Ângelo Mazzuchi Santana Ferreira11, convém
relembrar que, segundo o Conselho Federal de Medicina (2002), prontuário de
saúde vem a ser: O conjunto de documentos padronizados, contendo informações geradas a partir
de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência
prestada a ele, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação 11 in O acesso do Ministério Público aos prontuários de saúde e o sigilo atribuído a tais
documentos.
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entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência
prestada ao indivíduo (Processo Consulta nº 1.401/02-Conselho Federal de
Medicina (30/02), de 21 de junho de 2002)
Merece ser destacado deste conceito a figura da “equipe
multiprofissional”, justamente para sustentar que hodiernamente não é o médico
que redige o prontuário; ele é apenas mais um dos atores da saúde que o
subscrevem, dado à complexidade e a densidade tecnológica dos serviços
modernos. Como tal, há de falecer a ideia de que o acesso do prontuário de
saúde constitui ato médico, mas, sim, um ato de serviço de saúde, que é muito
mais impessoal e dinâmico.
Os problemas propostos às promotorias, no âmbito
sanitário, são de regra bastante complexos e envolvem diversas informações
prévias que só podem ser encontradas nos prontuários Assim sendo, se, por
exemplo, determinado familiar alega que durante o tratamento de paciente SUS
falecido houve exigência de valor indevido, será imprescindível o acesso ao
prontuário, porque lá é que estará a Solicitação de Emissão de AIH, o Espelho
da AIH, os serviços que foram prestados, os exames realizados, quem os
custeou etc.. desta forma, sem o prontuário não saberemos nem por onde
começar a colheita dos dados necessários.
A relevância e o interesse público que recaem sobre o
prontuário de saúde é de tal ordem que, quando o Ministério da Saúde lançou a
Política Nacional de Humanização, em 2004, iniciou sua atuação com o
chamado “Prontuário Transdisciplinar”, a ser instruído pelas equipes da saúde da
família e destinado a relacionar dados clínicos e de acompanhamento de cada
paciente referenciado, contendo inclusive dados epidemiológicos.
É importante ressaltar que todos os serviços de saúde,
sejam públicos ou privados, ambulatoriais ou hospitalares, da atenção primária à
atenção terciária, de baixo a alto custo, estão obrigados a manter prontuários.
Por isso é comum que haja vários prontuários para um mesmo paciente. Isso
decorre da diversificação de atendimentos que aquele indivíduo recebe, situação
que tem sido combatida por meio da Política Nacional de Regulação do SUS,
que inclui a implantação de sistemas informatizados de regulação, o “Cartão-
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SUS”.12
O Conselho Federal de Medicina enfatizou no art. 87, §
1º, da Res. 1931/09 que os prontuários “devem conter os dados clínicos
necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada
avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de
registro do médico no Conselho Regional de Medicina”. Além disso, devem
registrar os seguintes documentos: “folha de rosto, prognóstico, diagnóstico,
exames físicos e complementares, relatórios médicos e paramédicos,
prescrições até a alta hospitalar” (www.saudedireta.com.br/legislacao.php),
conjunto que precisa ser mantido pelo prestador do serviço de saúde por 10
anos, a fluir da data do último registro de atendimento da paciente, nos termos
da Resolução CFM nº 1331/89, ainda em vigor.
Outrossim, nos prontuários gerados pelos serviços do
SUS, dois documentos são especialmente importantes para o Ministério Público,
notadamente quando se objetiva investigar fraudes e cobranças indevidas ao
SUS. Trata-se do Laudo para Solicitação de Emissão de Auto e Internação
Hospitalar e da Folha-Rosto do Auto de Internação Hospitalar.
O primeiro é de responsabilidade específica do “médico
solicitante”, que deverá estar perfeitamente identificado, com o nome, inscrição
no CRM e assinatura, contendo, ainda, dados de identificação do paciente,
anamnese, exame físico, resultados de exames complementares, justificativa da
solicitação, códigos de procedimentos de acordo com a Tabela do SUS e CID.
O segundo documento é a resenha do que foi
previamente autorizado pelo Gestor de Saúde e, está pronto ao pagamento13.
Por sinal, é válido que seja dada especial ênfase à
avaliação do Relatório de Enfermagem, área que deve conter informações
claras, legíveis e em linguagem acessível, trazendo o relato fiel da evolução
diária da condição de saúde do enfermo.
A propósito, veja-se o que diz Matzuda: Para todos os clientes internados (exceto aqueles do Pronto Socorro), a
12 Vide CONASS - Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Regulação em Saúde – Brasília-DF: Editora Oficial da União, 2011. Livro X, item 2.3 e 2.6 (Livro Eletrônico) 13 Vide Portaria SAS/MS n.º 743/05.
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enfermagem executa a Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), que
é composta de 3 fases: Histórico de Enfermagem, Prescrição e Evolução. Assim, a
Evolução de Enfermagem, é efetuada exclusivamente por enfermeiros. Já, os
Relatórios de Enfermagem são redigidos pelos profissionais de nível médio
(Auxiliar de Enfermagem - AE). Vale lembrar que, na UTI, durante um
turno/plantão, o cliente deve ter ao menos uma Evolução e um Relatório de
Enfermagem. Já, nos setores abertos (neste caso na Clínica Médica e na
Cirúrgica), o número exigido de Evolução em vinte e quatro horas é de apenas
uma, já os Relatórios, devem ser redigidos a cada plantão (2006, s/p).
A restrição do conhecimento sempre foi uma forma de
manutenção do poder e, com a medicina, não poderia ser diferente. Desde a
pré-história até às cirurgias de transplantes, a prática médica sempre foi
mergulhada em uma áurea de saber fantástico e oculto aos não iniciados.
Mesmo os hospitais, por séculos, só se destinavam aos pobres, conforme
Foucault14:
“O personagem ideal do hospital, não era o doente que
se precisava curar, mas o pobre que estava morrendo”.
Talvez isso explique a falta de transparência das
anotações do meio médico. Até hoje os prontuários são mal preenchidos,
incompletos, obscuros, de difícil entendimento, a folhas de anestesia não
passam de um gráfico com rabiscos, que podem ser interpretados de maneira
larga e flexível. De regra faltam exames, laudos. Não são raras as rasuras. Tudo
como se não fosse o instrumento mais importante para a identificação da
conduta terapêutica, como se a equipe e o serviço de saúde não estivessem
obrigados a prestarem satisfações sobre sua atuação.
O curioso é que as entidades de classe, diante desse
quadro, ao mesmo tempo em que se limitam a orientar brandamente médicos e
hospitais a cuidarem dos prontuários, são intransigentes na defesa do sigilo
absoluto do prontuário. Aliás, aqui cabe relembrar o que disse Hollingham15
sobre a terrível condição humana do médico e da medicina, cheia de milagres,
mas também de horrores: 14 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. 15 HOLLINGHAM, Richard. Sangue e entranhas – a assustadora história da cirurgia. São Paulo/SP:Geração Editorial, 2011.
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Os cirurgiões são pessoas admiráveis, mas, apesar da impressão que alguns
tentam passar, não são deuses. (...) Em muitos casos nossa confiança é
plenamente justificada, mas a história da cirurgia sugere que às vezes não é.
O fato é que racionalmente não há justifica para tamanha
resistência do meio médico à transparência dos prontuários. Estes devem ser
protegidos, devem ter acesso restrito, é fato, mas jamais podem ser tratados
como se fossem inquestionáveis, mesmo porque nada mais são do que
históricos documentais. Para que fossem absolutamente sigilosos teriam que ter
esta condição reconhecida por lei, em razão de manifesto risco que sua
publicidade viesse a gerar para a sociedade e/ou o Estado, nos termos do art.
5º. XXXIII da CF/88, o que não é o caso.
É claro que, embora não seja absolutamente sigiloso, o
conteúdo do prontuário de saúde é nitidamente personalíssimo, daí a restrição
de publicidade e conhecimento que o acompanha, quando e na medida em que
se faz necessária à proteção da intimidade do paciente. Mas o alcance desta
restrição de publicidade é relativo, cedendo diante de fatores que não apenas
seu caráter sanitário. No dizer de Kfouri Neto16: Síntese feliz é a encontrada em julgado do TJSP – O que a lei proíbe é a
revelação ilegal, a que tenha por móvel a simples leviandade, a jactância, a
maldade.
Em regra, as requisições do Ministério Público decorrem
de investigações sobre ação ou omissão do prestado, em sentido amplo, do
serviço de saúde. Trata-se de apurar erro médico, erro de procedimento,
negativa de fornecimento de insumos ou serviços de saúde, cobrança indevida,
dentre outros. Aqui não se está a defender seja devastada a intimidade do
paciente. Absolutamente. Mas o que se quer deixar claro é que ela não possui o
alcance que os réus querem lhe atribuir.
Ademais, como esta intimidade avilta-se como bem
personalíssimo, ela não se comunica em benefício do prestador hospitalar,
gestor de saúde, unidade de saúde, médico ou demais profissionais que atuaram
naquele atendimento, já que não afronta interesse do enfermo e de regra, pelo
16 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do erro médico. 5ª. edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
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contrário, o protege.
Assim, o hospital que detém a posse e guarda do
prontuário não pode alegar intimidade, porque esta não lhe pertence, mas sim ao
paciente. Pior ainda quando a investigação decorre de conduta que infringiu
direito da pessoa atendida...
Hugo Nigro Mazzilli explorou muito bem o tema ao
apregoar: Não há confundir o beneficiário do direito ao sigilo com seu depositário, pois este
último é o mero detentor da informação. Assim, por exemplo, o médico é detentor
da informação e é obrigado a resguardá-la em benefício da privacidade do
paciente, assim o paciente é o beneficiário do sigilo. O sigilo não foi imposto em
favor do depositário, por isso é absurda a objeção de sigilo profissional feita, por
exemplo, por médico sujeito a investigação criminal, quando acusado de erro
profissional pelo próprio paciente17·. (gn)
Tanto o Código de Ética Médica quanto as Instruções
Normativas do Ministério da Saúde são regulamentos exarados pela
administração pública direta18 e indireta19. Por terem a natureza de atos
hierarquicamente inferiores à lei jamais teriam aptidão para ampliar ou restringir
o conteúdo e o alcance das disposições legislativas, sob pena de afrontarem a
ordem constitucional vigente.
Ora, o poder investigatório do Ministério Público,
incluindo suas requisições, tem previsão na Constituição Federal, em Leis
Complementares Federal e Estadual e Lei Ordinária Federal, de sorte que são
as negativas supostamente pautadas nos regulamentos acima mencionados. Sigilo médico/profissional. Requisição de prontuários de pacientes pelo Ministério
Público. Ato que tem amparo na lei federal 8625/93, art. 26, inciso II, §2º, e, na
circunstancia de que o sigilo objetiva o resguardo de interesses individuais, não
podendo, todavia sobrepor-se a outros, de maior magnitude. Segurança
Denegada. (Processo no. 595198409 TJRS - Mandado de Segurança - Primeira
Câmara Cível. Decisão: Acórdão - Relator: José Vellinho de Lacerda - Comarca de
Origem: Porto Alegre).
17 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999. 18 Quando oriundos do Ministério da Saúde. 19 No caso do CRM.
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Em resumo, dada a importância dos prontuários de saúde
para a investigação de lesões ou risco de lesão de interesses sanitários, o
Ministério Público pode e deve requisitar prontuários de saúde que estiverem em
posse de hospitais ou de quaisquer serviços de saúde, públicos ou privados,
para instruir investigações formais e processos judiciais, fazendo-o com base na
Constituição Federal, LOMP, Lei Orgânica Estadual do Ministério Público e Lei
de Ação Civil Pública. A resistência em atender essa verdadeira ordem legal
fundada em sigilo ou disposição normativa de ordem do Conselho Regional de
Medicina ou de gestores da saúde constitui-se, portanto, flagrantemente ilegal e,
por isso mesmo, sujeita o autor da omissão às sanções do crime de
desobediência.
VII. DO PEDIDO Diante de todo o exposto, o Ministério Público do Estado do
Paraná, por seu agente de primeira instância, pede a este r. Juízo sejam o
município de Foz do Iguaçu e a Fundação Municipal de Saúde condenados à
seguinte obrigação de fazer:
a) Os réus devem ser compelidos a atender as
requisições que lhe forem encaminhadas diretamente pelo Ministério Público do
Estado do Paraná no tocante aos documentos médico-hospitalares que estejam
sob sua posse - dentre eles os prontuários médicos, os dados cadastrais do
paciente, as fichas de atendimento, relatórios de cirurgias etc. -, fornecendo-os
e/ou disponibilizando-os ao parquet, no modo, lugar e tempo preconizados pelo
órgão ministerial.
VIII. DOS REQUERIMENTOS b) Seja a presente ação autuada, distribuída e em seguida
ordenada a citação dos réus preambularmente qualificados para que, no prazo
legal, desejando, ofereça sua manifestação por escrito a respeito dos fatos
contidos nesta inicial.
c) Para o caso de descumprimento da sentença
condenatória, pugna-se que este r. Juízo comine multa diária (astreinte) para as
obrigações não adimplidas no modo, lugar e tempo previstos, com valor de R$
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1.000,00 (mil reais), conforme o art. 461, § 4.º, do CPC, bem como multa civil por
ato atentatório ao exercício da jurisdição, com base no art. 14, parágrafo único,
do CPC, na importância de 20% sobre o valor da causa, aplicados
cumulativamente.
c.1) Neste tópico, impõe-se que a multa diária
seja direcionada ao senhor Prefeito Municipal e ao gestor da Fundação
Municipal de Saúde - que, afinal, são as pessoas responsáveis por dar
cumprimento àquilo que vier a ser determinado por Vossa Excelência. Neste
sentido, LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA, citando recente decisão do
Superior Tribunal de Justiça: Para conferir efetividade ao comando judicial, cabe, portanto, a
fixação de multa, com esteio no parágrafo 4º do art. 461 do CPC, a ser exigida do
agente público responsável, além de se a exigir da própria pessoa jurídica de
direito público. Realmente, segundo anotado em precedente do STJ, 'A cominação
de astreintes prevista no art. 11 da Lei nº 7.347/85 pode ser direcionada não
apenas ao ente estatal, mas também pessoalmente às autoridades ou aos
agentes responsáveis pelo cumprimento das determinações judiciais' (Acórdão
unânime da 2ª Turma do STJ, REsp 1.111.562/RN, rel. Min. Castro Meira, .
25/08/2009, DJe 18/9/2009).
O referido precedente do STJ alude a dispositivo da lei da ação
civil pública, que também prevê as astreintes para forçar o cumprimento de
obrigação específica. Tal precedente, que se refere ao art. 11 da Lei nº
7.347/1985, aplica-se, por idênticas razões, à hipótese do art. 461, parágrafo 4º do
CPC, que trata da mesma multa cominatória, destinada a forçar o cumprimento de
obrigação de fazer ou não fazer.20 (gn).
No mesmo sentido são as palavras de Talamini, para quem
"cabe ainda considerar a possibilidade de a multa ser cominada diretamente
contra a pessoa do agente público, e não contra o ente público que ele 'presenta'
- a fim de a medida funcionar mais eficientemente como instrumento de pressão
psicológica"21.
Por fim, Cândido Rangel Dinamarco – ao tratar, em
20 CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo. A fazenda pública em juízo, 9. ed., São Paulo: Dialética, 2011, p. 162-163. 21 in Tutela Relativa aos Deveres de Fazer e de Não Fazer. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2003, p. 247.
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parecer, da questão da efetividade da tutela jurisdicional no que tange ao
mandado de segurança – observa, verbis: O § 4º do art. 461, que as contempla [astreintes], tem a força de
autorizar pressões psicológicas sem a necessidade de instaurar processo
executivo, de modo que o próprio juiz emissor de um mandamento possa cuidar
de dar efetividade ao mandamento que emitiu. É de plena legitimidade a
imposição das multas diárias ao Banco Central ou ao Tesouro Nacional, entidades
representadas pelos funcionários impetrados, e também a estes, separadamente e
em nome pessoal, para que cumpram. A multa deverá ter valor significativo
(percentual sobre o valor devido), sob pena de não exercer sobre os espíritos dos
recalcitrantes a desejada motivação a obedecer.22 (gn)
Atento às orientações da doutrina processualista civil, o
Superior Tribunal de Justiça firmou em novel precedente a juridicidade do
direcionamento das astreintes contra as autoridades estatais responsáveis pelo
cumprimento das determinações judiciais: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO E
OMISSÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ASTREINTES. FIXAÇÃO CONTRA AGENTE
PÚBLICO. VIABILIDADE. ART. 11 DA LEI Nº 7.347/85 (...) 2. Como anotado no
acórdão embargado, o art. 11 da Lei nº 7.347/85 autoriza o direcionamento da
multa cominatória destinada a promover o cumprimento de obrigação de fazer ou
não fazer estipulada no bojo de ação civil pública, não apenas ao ente estatal,
mas também pessoalmente às autoridades ou aos agentes públicos responsáveis
pela efetivação das determinações judiciais, superando-se, assim, a deletéria
ineficiência que adviria da imposição desta medida exclusivamente à pessoa
jurídica de direito público (...) (EDcl no REsp 1111562/RN, Rel. Ministro CASTRO
MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/06/2010, DJe 16/06/2010) (gn)
c.2) Contudo, se ainda assim as medidas pretendidas no item
anterior não surtirem os efeitos desejados, pugna-se seja determinado o
bloqueio das verbas publicitárias do município de Foz do Iguaçu, suficientes para
custear o pagamento da multa cominatória, com a exigência da imediata
reversão ao pagamento neste processo, devendo tal obrigação permanecer até
que o município de Foz do Iguaçu adote as providências cabíveis no sentido de
22 in "Execução de Liminar em Mandado de Segurança - Desobediência - Meios de Efetivação da Liminar", Revista de Direito Administrativo, n. 200, junho de 1995, p. 321 – grifos acrescidos.
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sanar a mencionada omissão.
c.3) Por oportuno, convém relembrar que o art. 1º, XIV do
Decreto-lei 201/1967 diz ser "crime(s) de responsabilidade dos prefeitos
municipais, sujeito(s) ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do
pronunciamento da Câmara de Vereadores (...) XIV – (...) deixar de cumprir
ordem judicial, sem dar o motivo da recusa ou da impossibilidade, por escrito, à
autoridade competente". Ademais, o art. 14, inciso V, do Código de Processo
Civil estipula como um dos deveres das partes e de todos aqueles que de
qualquer forma participam do processo "cumprir com exatidão os provimentos
mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de
natureza antecipatória ou final". No mesmo sentido, o art. 600, inciso III, do CPC.
A violação dos dispositivos em questão configura ato atentatório à dignidade da
jurisdição e jamais deve ser tolerada no âmbito de um Estado Democrático de
Direito.
Não se pode olvidar, ainda, que a Lei 8.429/1992 (Lei de
Improbidade Administrativa) enquadra como ato de improbidade administrativa
atentatório aos princípios da Administração Pública "qualquer ação ou omissão
que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às
instituições, e notadamente: (...) II – retardar ou deixar de praticar,
indevidamente, ato de ofício".
Em suma, o consciente e voluntário descumprimento, pelo
gestor público, de uma decisão judicial pode, em tese, configurar um ato de
improbidade administrativa, ao menos – desde que inexistentes o
enriquecimento ilícito ou o prejuízo ao erário – na modalidade de improbidade
por violação aos princípios da Administração Pública, dando, por conseguinte,
ensejo às sanções estabelecidas no art. 12 da Lei de Improbidade
Administrativa.
d) A observância do art. 18 da Lei 7.347/85 e do art. 27 do
Código de Processo Civil quanto aos atos processuais requeridos pelo Ministério
Público.
e) A condenação do réu ao pagamento das custas
processuais, dos honorários advocatícios e demais verbas de sucumbência, a
serem revertidos em favor do Fundo Especial do Ministério Público (Lei Estadual
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n. 12.241/98).
f) Seja o titular da 9ª Promotoria de Justiça da comarca de
Foz do Iguaçu intimado pessoalmente para todos os atos e audiências a serem
realizados durante o trâmite da presente ação.
g) Considerando a manifesta desnecessidade da produção
de qualquer prova em audiência de instrução e julgamento, pugna-se desde já
pelo JULGAMENTO CONFORME O ESTADO DO PROCESSO, na sua
modalidade JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE (art. 330, inciso I, CPC).
g.1) Contudo, diante da preclusão consumativa, caso não seja
esse o entendimento do Juízo, o autor se manifesta pela produção de todas as
provas em direito admitidas, inclusive o depoimento pessoal da parte ré.
Mostrando-se necessário, também devem ser ouvidas testemunhas, realizadas
perícias e juntados novos documentos ao processo.
Dá-se a causa o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais).
Foz do Iguaçu, 19 de novembro de 2014.
Ródney André Cessel Promotor de Justiça
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