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Alex Mourão Terzi
DISCURSO DA TOLERÂNCIA: UMA REPRESENTAÇÃO
DO BUDISMO NA MÍDIA BRASILEIRA
Programa de Pós-Graduação em Letras:
Mestrado em Teoria Literária e Crítica da Cultura
Agosto de 2006
Alex Mourão Terzi
DISCURSO DA TOLERÂNCIA: UMA REPRESENTAÇÃO DO BUDISMO NA
MÍDIA BRASILEIRA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
São João del-Rei, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras
Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da
Cultura
Linha de Pesquisa: Discurso e Representação Social
Orientador: Guilherme Jorge de Rezende
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS:
MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Agosto de 2006
Dedico esta dissertação a Viviane Cristina Almada de Oliveira, com quem divido
as alegrias, as esperanças e o amor em seu estado mais puro.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Guilherme Jorge de Rezende, excelente orientador e grande amigo,
com quem tive a honra de conviver e com quem muito aprendi nos passos da
produção desta pesquisa. Agradeço por ter confiado em nosso objeto.
À Profª. Drª. Dylia Lysardo-Dias e ao Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção por todo o
auxílio a mim prestado, sempre com incomensurável solicitude e por suas valiosas
contribuições acadêmicas ensinando-me os caminhos da Lingüística e da Análise
do Discurso.
Aos Professores Doutores Alberto Ferreira da Rocha Júnior, Cláudio Correia
Leitão, Magda Velloso Fernandes de Tolentino e Suely da Fonseca Quintana por
estarem constantemente presentes e interessados pela dissertação.
Ao Prof. Dr. Hugo Mari, mestre presente, detentor de ímpar generosidade.
Às colegas do Programa de Mestrado em Letras da UFSJ, Adriana, Ana Lúcia,
Carla, Elisângela, Lílian, Maria Teresa e Renata pelo prazeroso convívio.
À querida Filó, por sua dedicação, atenção e carinho.
Ao Prof. Heberth Paulo de Souza. Agradeço pelos ensinamentos a mim confiados
e por sua singela e importante amizade.
A minha querida mãe Zélia, a minha querida tia Lilia, e ao meu querido irmão Eric.
Agradeço porque vocês são os melhores, os mais presentes e os mais amorosos
incentivadores.
Ao meu pai Nicolangelo, por ter me mostrado, desde cedo, que a educação é uma
via segura.
Aos meus sogros, Aparecida e Hugo, por toda a ajuda. Sem eles eu não
conseguiria efetivar este trabalho. A eles, meu sincero muito obrigado.
A Viviane, pois, mais que esposa, é amiga, é companheira, é presente, é minha
luz e é a expressão mais singela do amor. Com ela, tudo tem mais poesia.
A minha pequena filha Ísis, por ser a fonte mais linda da minha inspiração e a
síntese da alegria mais indescritível em minha vida.
A todos os meus amigos, e em especial a Eduardo, Raquel, Rivael e David pelas
pertinentes considerações a respeito do budismo e da espiritualidade.
Ao Ishwara, ao Tao, a Bhrama, a Alá, a Júpiter, a Osíris, ou, simplesmente, a
Deus, pela misteriosa, insondável e efetiva presença.
– Santidade, qual é a melhor religião?
Esperava que ele dissesse: “É o budismo tibetano” ou “São as religiões orientais,
muito mais antigas do que o cristianismo”. O Dalai Lama fez uma pequena pausa,
deu um pequeno sorriso, me olhou nos olhos – o que me desconcertou um pouco,
porque eu sabia da malícia contida na pergunta – e afirmou:
– A melhor religião é aquela que te faz melhor.
Leonardo Boff. Espiritualidade – Um caminho de transformação.
RESUMO
Esta pesquisa busca identificar a representação do budismo na mídia
brasileira.
O corpus desta dissertação é composto por cinco revistas brasileiras:
Superinteressante (agosto de 2001); Época (16 de junho de 2003); Isto é (1º de
outubro de 2003); Qualidade de Vida – Budismo (abril de 2004) e SGI Quarterly
(abril – junho de 2005).
Utilizaremos como referencial teórico a noção de ‘Leitor-Modelo’ proposta
por Umberto Eco a fim de compreender como os textos postulam seus próprios
leitores. Igualmente tomaremos o conceito de ‘isotopia’ de Aldirdas Julien
Greimas, para analisar de que modo se opera a produção dos sentidos.
Outros conceitos serão importantes para a constituição da representação
daquela religião na mídia: ‘globalização’, ‘identidade’, ‘hibridismo’, ‘sincretismo’,
‘alteridade’, ‘compaixão’, ‘diálogo inter-religioso’.
Finalmente, a idéia de ‘vedetização’ extraída da obra de Edgar Morin será
relevante para entender o budismo enquanto um produto da mídia.
Analisando os textos poderemos perceber como será instituído um tipo de
‘leitor da apologia da tolerância’, quando as revistas veiculam matérias acerca do
budismo.
Palavras-chave: representação, mídia, budismo, tolerância
ABSTRACT
This research aims at identifying the representation of the Buddhism in the
Brazilian media.
Five Brazilian magazines compose the corpus chosen to develop this
dissertation: Superinteressante (August 2001); Época (16 June 2003); Isto é (1
October 2003); Qualidade de Vida – Budismo (April 2004), and SGI Quarterly
(April – June 2005).
We will use Umberto Eco’s notion of ‘Model Reader’ to understand how the
texts postulate their own readers, as our theoretical support. We will also take
Aldirdas Julien Greimas’ concept of ‘isotopy’, to analyse in which way the meaning
is built.
Other concepts will be useful to describe the representation of this religion in
the Brazilian media, like ‘globalization’, ‘identity’, ‘hybridism’, ‘syncretism’,
‘otherness’, ‘compassion’, ‘ religions dialogue’.
Finally, the Edgar Morin’s idea of ‘vedetização’ will be important to show
Buddhism as a media product.
By analyzing the magazines’ texts we will notice how it will institute a kind of
‘tolerance apology reader’, when they publish articles about Buddhism.
Keywords: representation, media, Buddhism, tolerance
Sumário
1. Introdução................................................................................................... 1
1.1. Modelo teórico de interpretação e análise............................... 4
2. Globalização, Identidade e Tolerância ....................................................... 11
2.1. A multiplicidade do ‘Eu’ ........................................................... 15
2.2. Diferença e Alteridade.......................................................... 19
2.3. Tolerância............................................................................. 21
2.4. Diálogo inter-religioso: movimento ao sincretismo .............. 24
3. Comunicação Globalizada ........................................................................ 32
3.1. Tempo e espaço relativizados ............................................. 36
3.2. Vedetização ......................................................................... 41
4. Da análise .................................................................................................. 46
4.1 . O budismo espetacularizado ............................................... 46
4.2. As isotopias nas revistas ..................................................... 49
4.2.1. Sincretismo / Hibridismo ...................................... 49
4.2.2. Compaixão: a alteridade no budismo .................. 60
4.2.3. Diálogo inter-religioso .......................................... 67
4.2.4. Tolerância ............................................................ 82
5. Considerações Finais ............................................................................... 96
6. Referências Bibliográficas ........................................................................ 102
7. Anexos
- Superinteressante, agosto / 2001 (capa, p. 46 – 54)
- Isto é, 1º de outubro / 2003 (capa, p. 48 – 53)
- Época, 16 de junho / 2003 (capa, p. 06, 70 – 79)
- Budismo, abril / 2004 (capa, p. 03, 09, 15, 19, 22 – 25, 28)
- SGI, abril – junho / 2005 (capa, p. 10 – 12, 18, 19, 24 – 27, 29 – 31)
1. Introdução
O panorama cultural brasileiro, no que concerne às manifestações religiosas, tem-se
mostrado marcado por uma característica preponderante: o fato da presença do sincretismo,
aqui considerado como a fusão e/ou conciliação de religiões e, necessariamente, de suas
tradições culturais.
Em que sentido a (pós-)modernidade leva a modificações e implica
interfaces entre as expressões religiosas; de que modo podemos conceber a
constituição de identidade em relação ao tema religião; como a globalização,
enquanto processo que relativizou drasticamente as noções de tempo e espaço,
faz-se presente nos valores culturais brasileiros e, mais proximamente a nosso
objeto de estudo e nossa hipótese central: pode, efetivamente, o budismo ser
representado como uma religião tolerante aos outros credos são questões que
perpassarão a análise de nosso trabalho.
Percebe-se que o budismo se popularizou na mídia escrita e culturalmente
isso deve ser levado em conta.
Conforme o censo realizado em 2000, o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE – indicou que há 246 mil brasileiros que se autodenominam
budistas. Até que ponto ocorreu ou não uma conversão formal não é possível de
se verificar pormenorizadamente e talvez aí mesmo comece a residir um traço de
sincretismo. Ainda segundo a pesquisa, o crescimento desses budistas foi de 4%
de 1990 a 2000. Apesar de esse número ser considerável, não será encarado
como um dado imprescindível para a elaboração da dissertação.
Teremos, sim, o intuito de explicitar que importantes são os fatos de que (a)
o budismo tornou-se um “fenômeno-produto” da mídia e (b) existem categorias
discursivas, denominadas isotopias, tais como o Sincretismo, a Alteridade e o
Diálogo inter-religioso que podem ser estudadas no discurso sobre o budismo
veiculado na mídia brasileira. Ademais, falar em tolerância e diálogo inter-religioso
acarreta reflexões e atitudes sociais e culturais e, como veremos, os autores aos
quais nos filiamos têm promovido discussões teóricas a respeito do assunto. Por
esses motivos, acreditamos que esses pontos, os quais serão analisados,
inserem-se na via da Crítica da Cultura e nas considerações sobre discurso e
representação social.
“Com aliados famosos e best-sellers, o Dalai Lama faz crescer a simpatia
pelo budismo no Ocidente”. Com esse subtítulo, a revista Época (jun. 2003, p.
71), cuja capa estampa a figura desse líder religioso, introduz uma matéria que
aborda o crescente interesse pela religião budista no Brasil. Aqui começa a se
esboçar um ponto que merecerá atenção no processo de nossa análise: como
uma religião, originalmente oriental, começa a influenciar ou, pelo menos, ser
mostrada, para tantos indivíduos brasileiros.
É necessário aclarar que o recorte que procuraremos dar preocupa-se
eminentemente com a cultura do país na atualidade. Não teremos por finalidade
descrever a trajetória da disseminação da religião budista no Brasil, visto que
nosso enfoque não tem pretensões etnográficas, tampouco daquelas da Ciência
da Religião, que pontua com dados estatísticos – quantitativos e qualitativos –
como o budismo se instaurou no território nacional. A delimitação de nosso
trabalho permeará uma crítica da cultura no Brasil, no que concerne à
representação do budismo na mídia, em alguns de seus diferentes meios, os quais
serão analisados adiante.
Especificamente com relação ao corpus, utilizamos matérias veiculadas em
cinco revistas brasileiras, de diferentes linhas editoriais. A escolha se justificou em
vista do intuito de corroborarmos as isotopias mesmo em suportes diversificados:
Superinteressante, de agosto de 2001 (p. 46-54); Época, de 16 de junho de 2003
(p. 70-79); Isto é, de 1º de outubro de 2003 (p. 48-53); Qualidade de Vida
(especial Budismo), a partir daqui nomeada apenas Budismo (34 páginas),
veiculada em abril de 2004 e SGI Quarterly, abril-junho de 2005 (sendo por nós
denominada SGI), sobre as atividades da instituição budista Soka Gakkai
International (Edição em português, 31 páginas ). No entanto, iremos tecer alguns
comentários a respeito de outros meios midiáticos, tais como cinema (e vídeo) e
mercado literário, que abordaram o tema budismo, pois pensamos que assim
poderemos traçar um panorama de como ele é representado socialmente, sob o
nosso ponto de vista.
Nossos objetivos serão os seguintes:
a) geral:
Analisar a construção da representação social do budismo na mídia,
especificamente em textos veiculados em revistas nacionais, tomando por base a
crítica da cultura no Brasil.
b) específicos:
1) Compreender como o discurso, por meio da ativação de Autor e Leitor
como estratégias textuais, interfere na constituição da representação social
do budismo.
2) Analisar como os enunciados nas revistas e suas circunstâncias de
enunciação contribuem para a formação de uma identidade budista.
3) Verificar em que sentido o budismo na mídia e na cultura brasileiras pode
ser representado enquanto uma religião tolerante às demais nomenclaturas
religiosas.
Como perspectiva de análise, pretenderemos perceber como os textos, por
meio de seus autores, têm como característica a postulação de um destinatário,
ao qual chamaremos leitor-modelo e que isso implica estratégias textuais que irão
objetivar a construção desse mesmo leitor. Igualmente, há traços semânticos nos
textos que são recorrentes, apontando para as chamadas ‘isotopias’. Nas revistas,
o que tem mais pertinência para nosso trabalho é estudar o processo de
instauração de um leitor-modelo que nos remonta à isotopia do discurso da
apologia da tolerância. No momento de descrevermos a nossa metodologia,
mostraremos o arcabouço teórico ao qual nos filiaremos. Apesar de nosso foco ser dado ao modo como a representação budista
pode ser construída nas bases do discurso de tolerância, analisaremos como
outros discursos (por meio das isotopias) permeiam os enunciados ora escolhidos
para o trabalho, papel em que nos colocamos no processo de cooperação
interpretativa dos textos. Para Eco (2002, p. 36), o texto possui um ‘não-dito’, ou
seja, o que não está mostrado na superfície e é isso que deverá ser atualizado em
nossa análise, pois valoraremos sentidos que nos remetem às isotopias do
sincretismo / hibridismo, da alteridade / compaixão e do diálogo inter-religioso,
convergindo para uma isotopia maior acerca da tolerância religiosa.
Para tanto, necessária e importante se faz a abordagem de concepções tais
quais: ‘globalização’, ‘comunicação intercultural’, ‘identidade’, ‘descentramento do
sujeito’, ‘tradição’ x ‘tradução’, ‘vedetização’ e ‘espetacularização’.
Nesse sentido, iremos nos filiar basicamente em Umberto Eco (1997, 1998
e 2002), Stuart Hall (2003), Michel Foucault (1997), Leonardo Boff (2001), John B.
Thompson (1998), Edgar Morin (1987), Roger-Gérard Schwartzenberg (1978),
José Jorge de Carvalho (1991 e 2000), passando ainda pelas considerações
teóricas de Jacques A. Wainberg (2005), Enrique Sánchez Ruiz (2000), Ben H.
Bagdikian (1993) e Douglas Kellner (2006).
1.1. Modelo teórico de interpretação e análise
O arcabouço teórico em que iremos nos filiar é proposto por Umberto Eco,
em Lector in Fabula (2002). Ao longo da obra, o autor explicita a aplicação de seu
quadro tendo como referência a noção de texto, não se restringindo somente à
categoria narrativa e por isso pretendemos utilizá-lo na análise dos textos
extraídos das revistas, ora recortadas como corpus para esse trabalho.
Segundo Eco (2002, p. 35), um texto representa uma cadeia de artifícios de
expressão que devem ser atualizados pelo destinatário. Nesse sentido, existe uma
mecânica de cooperação interpretativa do texto, por parte do leitor.
Para ele (op. cit. p. 36), um texto teria necessariamente uma maior
complexidade que outros tipos de expressão, principalmente pelo fato de ser
perpassado por um ‘não-dito’, que seria aquilo não manifestado em superfície, a
nível de expressão: mas é justamente este não-dito que tem de ser atualizado a
nível de atualização do conteúdo. Para tanto, necessários são os movimentos
cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor.
O texto teria determinados “espaços brancos” a serem preenchidos por dois
motivos: primeiramente, pela característica de ser um mecanismo econômico que
vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu e em segundo
lugar, pelo fato de que o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa (op.
cit. p. 37). Será desse modo que postularemos nosso trabalho de interpretação
com relação aos enunciados e às matérias veiculadas nas revistas. Nossa busca é
por esse “não-dito”, que não foi expresso na superfície do texto, mas que traz seus
sentidos no âmbito do implícito.
Relevante é ainda mencionar que para Eco, um texto apontará o próprio
destinatário como condição indispensável não só da própria capacidade concreta
de comunicação, mas também da própria potencialidade significativa (op. cit. p.
37).
O texto teria, pois, a capacidade de prever o leitor, na medida em que o
produtor (emitente ou autor, para Eco) executará uma estratégia de que fariam
parte as previsões dos movimentos de outros (op. cit. p. 39).
Assim, os textos instituem, mesmo que implicitamente, o que Eco chama de
LEITOR-MODELO. Às vezes, aludida estratégia é clara. Ele fala que podemos
fornecer sinais de gênero que selecionam a audiência: / Queridas crianças, era
uma vez um país distante.../, podemos restringir o campo geográfico: /Amigos,
romanos, concidadãos!/ (op. cit. p. 40). A previsão do LEITOR-MODELO não deve
ser entendida apenas como a suposição de que esse leitor exista, mas refere-se a
mover o texto de modo a construí-lo (op. cit. p. 40, grifos nossos). Essa
perspectiva é fundamental para alcançarmos nossos objetivos na pesquisa,
sobretudo para entendermos em que sentido o budismo na mídia brasileira pode
ser representado como sendo uma religião que exerce a tolerância com relação a
outros credos, já que, a nosso ver, são instituídos LEITORES-MODELO, que nos
remontam ao próprio discurso de tolerância, bem como aos de alteridade,
hibridismo, sincretismo, pluralidade cultural e diálogo inter-religioso.
Tomando por base os textos das revistas, procuraremos, então, verificar de
que forma os enunciados ditos por Dalai Lama fixam o LEITOR-MODELO da
tolerância religiosa e, evidentemente, isso repercute na cultura como um valor
simbólico. Pretenderemos compreender de que modo esse líder, os demais
dirigentes religiosos, os entrevistados e os próprios autores das matérias das
revistas vão instituindo esse tipo de LEITOR-MODELO.
No que concerne mais detidamente ao Dalai Lama, pretenderemos analisar
como ocorre essa construção de leitor. No caso dele, pensamos com Eco (op.cit.
p.41) que certos autores conhecem com perspicácia sociológica e com brilhante
mediedade estatística o seu leitor-modelo (...) e farão com que todo termo, que toda maneira de dizer, que toda referência enciclopédica, seja aquilo que previsivelmente o seu leitor pode entender. Empenhar-se-ão no sentido de estimular um efeito preciso.
Principalmente nas investidas que fizermos comparativamente das obras literárias
do Dalai Lama com seus enunciados nas revistas, observaremos de que forma se
dá a escolha das palavras e o já mencionado ‘não-dito’ que sinaliza a
possibilidade de inferirmos um discurso de tolerância e, muito correntemente, da
necessidade do diálogo inter-religioso. Isso porque nosso processo hermenêutico
irá fundamentar-se numa dialética entre estratégia do autor (dos textos e
enunciados explicitados nas revistas) e resposta do LEITOR-MODELO. Sendo
que, tanto aquele quanto este, serão considerados como estratégias textuais (op.
cit. p. 44). Eco cita um exemplo que pode auxiliar na análise: Vejamos este trecho extraído das ‘Investigações Filosóficas’, de Wittgenstein (...): Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Entendo com isto jogos de xadrez, jogos de baralho, jogos de bola, competições esportivas, e assim por diante. O que é comum a todos estes jogos? – Não diga: “deve haver alguma coisa comum a todos, porque, se assim não fosse, não se chamariam ‘jogos’ ” (...) Todos os pronomes pessoais (implícitos ou explícitos) não indicam absolutamente uma pessoa chamada Ludwig Wittgenstein ou um leitor empírico qualquer: representam também estratégias textuais. A interferência de um sujeito falante é complementar à ativação de um Leitor-Modelo cujo perfil intelectual só é determinado pelo tipo de operações interpretativas que se supõe ( e se exige ) que ele saiba executar: reconhecer similaridades, tomar em consideração certos jogos... Do mesmo modo, o autor não é senão uma estratégia textual capaz de estabelecer correlações semânticas: / entendo.../ (...) Neste texto, Wittgenstein não é outra coisa senão um ‘estilo filosófico’ e o Leitor-Modelo não é senão a capacidade intelectual de compartilhar este estilo, cooperando para atualizá-lo.
Especificamente no que tange ao nosso corpus, buscaremos investigar o
processo no qual é representado o Dalai Lama e de que modo se instaura o
Leitor-Modelo da apologia da tolerância religiosa. Conforme Eco, a cooperação
textual é fenômeno que se realiza (...) entre duas estratégias discursivas e não
entre dois sujeitos individuais (op. cit. p. 46). Entretanto, como o próprio Eco
afirma, não podemos esconder o peso que adquirem as ‘circunstâncias de
enunciação’, levando a formular uma hipótese sobre as intenções do sujeito
empírico da enunciação, ao determinar a escolha de um Autor-Modelo (op. cit. p.
48, grifos nossos). Não é possível, nem indicado, que nos distanciemos do sujeito
empírico Dalai Lama e tampouco do contexto sócio-histórico em que se deram as
circunstâncias enunciativas dos textos que serão analisados. No que tange à
globalização, iremos enfocar como os poderes político, econômico e simbólico
fazem parte preponderante de nossa pesquisa, mesmo porque esse contexto
influenciará relevantemente na configuração do estudo sobre a crítica da cultura.
Por isso, ponto crucial para a elaboração da dissertação é entender essa dupla
sinalização:
a) análise das estratégias textuais, levando-se em conta o Autor-Modelo e o
Leitor-Modelo, com os resultados da valorização e atualização de novos
sentidos para os textos, momento no qual os sujeitos empíricos não são
considerados;
b) compreensão do modo como os discursos a que os textos se remetem
repercutem teórica e socialmente sob o ponto de vista de uma crítica da
cultura.
Dessa forma, levando em consideração o discurso e o contexto sócio-
histórico em que foram veiculadas as matérias das revistas, teremos o fim de
compreender a constituição da identidade budista e a conseqüente representação
social dessa religião na cultura brasileira.
As isotopias de Greimas
Igualmente fundamentais para a metodologia utilizada nesta dissertação e
para o processo de análise são os estudos de Greimas (1966) e Greimas e
Courtés (1979).
Um texto não se configura por um emaranhado de palavras. Imprescindível
se faz que haja uma unidade de sentido, ou em outras palavras, um conteúdo
semântico global. Somente dessa maneira é possível afirmar que um texto pode
ser tratado como coerente. E é, pois, essa coerência semântica alcançada por
meio das chamadas ‘isotopias’.
Conforme Greimas (1966, p. 72,73), (...) uma mensagem ou uma seqüência qualquer do discurso só podem ser consideradas como isotópicas se possuírem um ou mais classemas2 em comum.
Pelo menos duas unidades são necessárias para existir o conceito de
isotopia, visto que ela se refere à recorrência ou redundância de traços
semânticos ao longo do texto (ou dos textos), uma vez que Greimas (op. cit. p. 73)
propõe que textos inteiros se encontram situados em níveis semânticos
homogêneos e nesse sentido, buscaremos explicitar como se dá a interação entre
os textos das revistas analisadas, com o objetivo de verificar como se operam as
isotopias). Característica intrínseca do discurso é a pluralidade de interpretações,
de leituras. Por esse motivo, Greimas (1975, p. 22) afirma que é justamente a
isotopia que permite superar os obstáculos opostos à leitura pelo caráter
polissêmico do texto manifestado.
Numa ampliação ao conceito de isotopia, Greimas e Courtés (1979, p. 246)
assinalam que é necessária a recorrência de categorias sêmicas, sendo estas
temáticas (ou abstratas) ou figurativas.
Nessa perspectiva, há, basicamente, dois percursos de construção do
sentido. No primeiro, existe a ocorrência de ‘figuras’ (um conteúdo dado, quando
este tem um correspondente no nível de expressão da semiótica natural (ou do 2 Na terminologia da análise sêmica, o conjunto de semas (traços semânticos, unidades mínimas de significação) genéricos que identificam a classe de conceitos à qual um conceito específico pertence.
mundo natural), de acordo com GREIMAS e COURTÉS, op. cit. p. 187, 188). As
figuras são, pois, palavras concretas que fazem referência ao mundo ‘real’
(realidade esta do universo discursivo). Nesse nível de leitura, denominado
figurativo, tem-se o objetivo de representação da realidade. Como exemplo, se
fazemos alusão aos vocábulos ‘sol’, ‘ondas’, ‘mulheres de biquíni’, ‘homens de
sunga’, partimos para uma operação de abstração, que nos remete ao segundo
percurso de leitura, o temático (componente temático (ou abstrato), GREIMAS e
COURTÉS, op. cit. p. 188), o qual pode sugerir a possibilidade de ‘um dia de
praia’. Greimas e Courtés (op. cit. p. 188) citam outro exemplo: o tema “sagrado” pode ser assumido por figuras diferentes, tais como a do “padre”, do “sacristão” ou do “bedel”: nesse caso, o desdobramento figurativo da seqüência se encontrará afetado por elas; os modos de ação, os lugares e o tempo em que esta deverá realizar-se, de acordo sempre com a figura inicialmente escolhida, diferirão entre si nas mesmas proporções.
Dessa forma, podemos observar a isotopia, enquanto a reiteração de
‘figuras’ e / ou ‘temas’ no decorrer do (s) texto (s) e verificaremos nas revistas,
objeto do corpus de nossa pesquisa, em que sentido é possível, por meio de
leituras, ora no nível figurativo, ora no temático, ora em ambos, alcançarmos as
propostas isotopias do sincretismo / hibridismo, da alteridade, do diálogo inter-
religioso e da tolerância religiosa do budismo com relação a outros credos.
Não poderia deixar de ser citado nesta metodologia de análise o conceito
de ‘formação discursiva’ pela proximidade que guarda com a noção de isotopia.
Robin (1973, p. 88) menciona que o discurso é sempre relacionado a suas
condições de produção e que essa Lingüística do discurso integra ao seu objeto tudo o que ultrapassa a simples lógica da comunicação denotativa. Pretende estar atenta ao universo conotativo da linguagem, ao jogo das implicações e das pressuposições, a tudo enfim que está no campo da enunciação.
Na seqüência, Robin (op. cit. p. 95) retoma Michel Focault afirmando que o
discurso será o conjunto dos enunciados enquanto no âmbito da mesma formação
discursiva, definindo-se para cada empreendimento (discursivo) as regras de
formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos e das
escolhas teóricas1.
Gregolin (2004, p. 90) aborda a questão trazendo o conceito de formação
discursiva, na concepção de Focault: Sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva.
No que concerne à nossa perspectiva de análise, serão, pois, propostas as
concepções teóricas de Umberto Eco (2002), Greimas (1966), Greimas e Courtés
(1979), Stuart Hall (2003), Leonardo Boff (2001), John B. Thompson (1998), Edgar
Morin (1987), José Jorge de Carvalho (1991 e 2000), bem como as obras de
Tenzin Gyatso, o Dalai Lama (1998, 2000, 2001 e 2004), que servirão de
referência para compreendermos pontos da doutrina budista, aos quais os textos
das revistas se remetem explícita e implicitamente.
2. Globalização, Identidade(s) e Tolerância
1 O assunto é tratado detalhadamente em FOCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
Como religião, o budismo é milenar. Siddharta Gautama, o príncipe que
abandonou o palácio paterno na Índia Central, mais tarde considerado um Buda
(etimologicamente a palavra vem do particípio passado do verbo sânscrito budh,
que significa ‘iluminado’ ou ‘desperto’) nasceu em 563 a.C. e hoje influencia o
pensamento de um número aproximado de 400 milhões de pessoas.
No Ocidente, o budismo somente chegou no século XIX, via imigrantes chineses e
japoneses e, posteriormente, foi sendo difundido pelos mestres da corrente Zen. Outro fator
importante para o seu crescimento foi a invasão chinesa no Tibete, em 1959, em que muitos
mestres budistas migraram para a América e criaram centros de meditação.
Dessa forma, percebe-se que a religião, no Brasil, é relativamente recente. Com
relação ao nosso objeto de estudo, a representação do budismo na mídia brasileira,
observamos que, antes de 1999, a circulação do budismo não era muito extensa. Em março
de 1968, por exemplo, a Revista Mensal de Cultura – Enciclopédia Bloch – trazia em sua
capa um monge budista com o título Segredos e Mistérios do Budismo. Em seu interior, 8
páginas foram destinadas ao assunto. Destacamos o fato de, desde aquela época, haver
missionários budistas no Brasil, como era o caso do autor da matéria e monge Ven
Piyadassi Maha Thera, do Ceilão, que estava propagando a religião no Rio de Janeiro (p.
55)
Apesar de nosso foco ser o de abordar a representação do budismo na mídia na
contemporaneidade (iremos mencionar revistas que circularam a partir de 2001),
observamos que, já nessa matéria há um momento no qual podemos inferir um sentido de
tolerância nessa religião:
Buda não fazia distinção de castas, clãs ou classes quando comunicava o Dhamma2. Homens e mulheres de diferentes setores da vida, o pobre e o necessitado, o mais baixo e o mais perdido, o letrado e o iletrado, aristocratas, brâmanes e parias, príncipes e mendigos, santos e criminosos – todos ouviam aquele que mostrava o caminho da paz e da iluminação (p.59)
Nesse momento histórico (1968), ainda não se podia falar em um budismo
brasileiro. Isso é percebido pela própria contextualização feita pelo monge, autor
do artigo: ele não fala da religião no país, mas sim da época de seu fundador.
Também a nomenclatura usada é típica da Índia: ‘castas’, ‘clãs’, ‘brâmanes’,
‘párias’, ‘príncipes’. Interessante é perceber como essa enumeração aglomera
diferentes setores da sociedade indiana, o que leva o leitor a já inferir que no
budismo há soma de diferentes posturas políticas e ideológicas e que tais
distinções não são importantes para os membros da religião. Em outras palavras:
‘não importa quem seja você, o que importa é conhecer o budismo’.
Somente a partir da década de 90 a religião começou a ter uma maior
circulação na mídia brasileira. Primeiramente, porque em 1989 Tenzin Gyatso, o
XIV Dalai Lama ganhou o prêmio Nobel da Paz. No ano de 1999, esse
representante do budismo tibetano e uma das figuras mais respeitadas por todos
os ramos da religião visitou o Brasil pela segunda vez (em 1992 ele participou da
Conferência ECO 92) e se transformou num fenômeno editorial no país. Aqui
começa, no nosso ponto de vista, um dos papéis cruciais da globalização:
promover a conexão, a mistura de diferentes povos. Somente seria possível que
um monge tibetano começasse a ser conhecido de forma expressiva no Ocidente
– e especialmente no Brasil – se considerarmos não a concepção do ‘local’, mas
do ‘global’.
Stuart Hall (2003, p. 67) afirma que o que estava tão poderosamente
deslocando as identidades culturais nacionais no fim do século XX era um
complexo de processos e forças de mudança, que, por conveniência poderia ser
sintetizado sob o termo globalização.
2 Dhamma ou Dharma refere-se à doutrina budista.
Ao longo de nosso trabalho, procuraremos desenvolver a idéia de que a globalização
implica uma transformação da concepção de sociedade enquanto um sistema organicamente
delimitado de maneira fechada para um processo de comunicação e mistura de novas
comunidades, amplamente heterogêneas.
Especificamente tendo por base a cultura nacional, iremos fazer uma leitura da
mídia que representa o budismo (brasileiro) como religião que considera a
necessidade intrínseca do convívio plural, sobretudo com indivíduos de outros
credos e para isso faz uso de estratégias discursivas que serão estudadas na
elaboração do trabalho.
Ainda conforme Hall (op. cit. p. 69), desde os anos 70, a globalização
cresceu amplamente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações o que nos
levou à conseqüência de que as identidades nacionais começaram a se diluir,
dando cabo a novas identidades – ‘híbridas’, fato que retomaremos
detalhadamente em nossa dissertação.
Percebemos que, hoje, fala-se de budismo, uma religião originalmente
oriental (iniciada na Índia, em seguida difundida na China, Vietnã, Coréia, Japão,
Tailândia etc) aqui no Brasil de uma maneira recorrente e isso se deve à agilidade
da informação e à conexão de comunidades e organizações em novas
combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em
experiência, mais interconectado (HALL, op. cit. p. 67)
Hall (p. 70) cita Harvey (1989, p.240), o qual diz que À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunicações e uma “espaçonave planetária” de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e à medida em que os horizontes temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais.
O importante nesse sentido de entender a globalização é que o budismo do
Tibete, tal qual concebido pelos praticantes desse país, não nos chega de forma
original, intocada.
A questão do sincretismo (à qual iremos nos deter mais detalhadamente
adiante) é veiculada na mídia ao se representar o pensamento budista.
Repetidamente, os líderes dessa religião mencionam a necessidade de se
conviver de modo harmônico com os povos de diferentes credos. Embora nosso
estudo se concentre nas revistas, vemos essa preocupação de modo recorrente
em outros textos do Dalai Lama. Em Uma ética para o novo milênio (2000), ele
enfatiza que uma revolução se faz necessária. Mas não política, econômica ou
tecnológica. É proposta uma revolução espiritual, apesar de ele dizer que isso não
pressupõe uma solução religiosa. Meus encontros com inúmeros tipos de pessoas pelo mundo afora, porém, ajudaram-me a perceber que há outras crenças e outras culturas que, tanto quanto as minhas, podem fazer com que os indivíduos levem vidas construtivas e satisfatórias. E mais: cheguei à conclusão de que não importa muito se uma pessoa tem ou não uma crença religiosa (p. 29).
As palavras por ele escolhidas buscam a todo momento fazer alusão ao tema do
diálogo inter-religioso e, evidentemente, ele demarca a forma de ler e ativa o discurso da
tolerância.
Na revista Budismo (2004, p.24) há um texto em que se diz que,
diferentemente do que ocorre em algumas religiões, os ditos mestres budistas
acreditam que as pessoas não devem depender do monge, do lama ou do
budismo para ter fé – devem se voltar para espiritualidade por si só.
Essa é uma concepção que se remonta a discursos atribuídos ao próprio
Buda. Conforme a tradição, ele afirmava que, se praticados os seus
ensinamentos, o indivíduo deveria se fiar em si mesmo. Em A doutrina de Buda
(2000), Bukkyo Dendo Kyokai, responsável pela Fundação para propagação do
Budismo, menciona o que seria, supostamente, o último sermão de Siddharta
Gautama, no qual ele fala àqueles que o escutam: Fazei de vós mesmos uma luz.
Confiai em vós mesmos: não dependais de ninguém (p. 20).
Um outro livro do Dalai Lama, composto por uma compilação de
conferências, que levou o título de Amor, verdade, felicidade, aborda também essa
questão:
A comunicação ou a troca constante com as outras religiões é necessária. Esta manhã na última Conferência Mundial sobre Religião, em Nova Délhi, eu disse que, para que a verdadeira harmonia se desenvolva, deveriam ser realizadas reuniões constantes (p. 93).
O sincretismo, entendido enquanto a conciliação e / ou fusão de diferentes
doutrinas, não é uma preocupação solitária dos discursos do budismo
representado em revistas. Laurence Freeman, monge beneditino inglês, abordou a
meditação, prática considerada unicamente de correntes orientais, em entrevista à
Superinteressante (novembro de 2002, p. 86,87). A jornalista Maria Fernanda
Vomero, dirigindo-se ao monge, afirmou: O senhor é um grande defensor do
diálogo inter-religioso. Um exemplo foi o programa The way of peace (O caminho
da Paz), com o Dalai Lama e, em seguida, perguntou: Como o senhor avalia a
experiência? Freeman disse que foi um programa que durou três anos, de 1998 a 2000. Queríamos explorar o diálogo entre budistas e cristãos, por meio da meditação, em três diferentes caminhos: uma peregrinação, um retiro espiritual e um trabalho conjunto pela paz. No primeiro ano, estivemos com o Dalai Lama em Bodhgaya, na Índia, um lugar sagrado para o budismo. No ano seguinte, o diálogo foi um retiro na Itália. E, por fim, fomos a Belfast, na Irlanda do Norte, refletir sobre a amizade entre as religiões e o processo de paz. Quisemos mostrar que a amizade espiritual entre budistas e cristãos, via meditação, podia colaborar para a solução dos conflitos entre católicos e protestantes. Em outras palavras, a amizade espiritual, em profundidade, contribui de modo poderoso para a paz entre as pessoas. Acho que fomos bem-sucedidos. Tivemos encontros com políticos, líderes religiosos, jovens e vítimas da violência. O Way of peace continua com encontros anuais, quando refletimos sobre a ligação entre a meditação e o processo de paz. Tentamos mostrar que a violência não leva a lugar algum.
Essas reflexões e manifestações de líderes religiosos e intelectuais são de algum
modo, discursos de resistência a regimes (sejam políticos, religiosos etc) que buscam
ditatorialmente se fazer valer pela força. Hall (op. cit. p. 91) afirma que
algumas pessoas argumentam que o “hibridismo” e o sincretismo – a fusão entre diferentes tradições culturais – são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura
e, desse modo, entendemos que essa representação atual do budismo pode colaborar para a
produção de discussões acerca de um novo processo cultural no Brasil: o de uma identidade
budista dispersa, múltipla, a qual pode significar uma heterogeneidade típica de um sujeito
descentrado.
2.1. A multiplicidade do ‘Eu’
Hall (op. cit. p. 34) indica que as identidades modernas atualmente estão
fragmentadas e que isso se deve ao deslocamento do próprio sujeito, que ocorreu
através de uma série de rupturas nos discursos do conhecimento moderno. Para
ele, houve cinco descentramentos do sujeito cartesiano, entendido como aquele
detentor da razão, localizado no centro do conhecimento. O primeiro refere-se às
tradições do pensamento marxista; o segundo à descoberta do inconsciente por
Freud; o próximo ao trabalho do lingüista estrutural Ferdinand de Saussure; o
quarto ao trabalho do filósofo e historiador francês Michel Foucault e o último ao
impacto do feminismo.
Interessa-nos a abordagem de Foucault para percebermos como opera seu
descentramento do sujeito associado às questões – discursivas – de tolerância.
Em A Arqueologia do Saber (1997), Foucault aponta para a necessidade de
nos libertarmos de toda noção que nos remeta ao tema da continuidade. Apesar
de ele tratar de práticas discursivas constitutivas do conhecimento em uma
ciência, mais precisamente nos discursos das ciências humanas (tais como a
medicina, a psiquiatria, a economia e a gramática), pensamos ser possível
perceber que o sujeito, segundo esse autor, deve ser entendido enquanto um
sujeito disperso, constituído por diversos ‘eus discursivos’. Dessa forma, não
podemos colocá-lo numa estrutura fixa, estática porque sua identidade tem de
levar em consideração sua historicidade. Ora, se o sujeito em si é disperso, não
podemos falar de uma identidade original, pura, que constitui e representa
somente um povo. Objetivaremos ver, como é possível tratar a questão da
identidade budista representada nos textos das revistas, inserida no contexto
social brasileiro; formada por diferentes indivíduos que absorvem, de distintas
maneiras, os preceitos de uma doutrina.
Nosso objetivo não é, pois, estudar o conteúdo das normas religiosas, mas,
sim, perceber como o tema da tolerância é recorrente quando se faz alusão ao
budismo na mídia brasileira, embora sejam necessárias certas investidas nos
preceitos dessa religião a fim de compreendermos sua representação.
O cânone budista trata o ‘eu’ como uma ilusão criada pela mente. Kyokai
(2000) menciona que o homem, levado por sua ignorância, apega-se ao seu “ego”
e, conseqüentemente, entranha-se cada vez mais na própria tristeza e
lamentação, as quais também são produtos da mente. Continua dizendo que o
homem faz de seus atos o campo de satisfação do ego (p.47). Segundo o
budismo, tudo é transitório e a mente é também inconstância e sofrimento, nada
possui que possa ser considerado um ‘eu’ (p.48). A esse respeito, a revista
Galileu, de outubro de 2002, deu destaque ao assunto, e cuja matéria de capa
estampou o título Você é uma ilusão - as ciências da mente chegam à idéia central
do budismo.
Já no texto, assinado por Pablo Nogueira, o título faz alusão a Descartes,
parodiando sua célebre frase: Penso, logo não existo (grifo nosso).
O trecho a seguir ilustra essa questão da multiplicidade de eus: Na verdade, nossa mente abrigaria uma profusão de diferentes ‘eus’, que disputam espaço entre si, executam ações especializadas sem que saibamos e, mais impressionante, nos mantém na ilusão de que somos ‘apenas um’ (p. 14).
Essa assertiva é atribuída a cientistas e pesquisadores das áreas de
neurociêcias, psicologia, filosofia da mente e ciências cognitivas. Em seguida,
menciona-se que ensinamentos semelhantes sobre a natureza humana têm sido
difundidos por várias correntes do pensamento oriental e, especificamente, do
budismo.
Daniel Dennet, neurocientista americano, é citado neste artigo por Nogueira
que fala que temos uma falsa imagem pré-concebida da mente como uma espécie
de teatro; as imagens e idéias se sucedem em nossa cabeça e nós a olhamos “a
distância”, exatamente como faz o espectador na platéia. (p. 17) Haveria uma
suposta organização nesse processo. Mas o que percebemos, segundo esse
texto, é que há uma constante sucessão de idéias, lembranças, sensações,
projetos, sentimentos. (p.17) que busca ter supremacia na nossa consciência;
tudo isso acontecendo de forma não linear. Esse EU unificado e racional seria
apenas um conceito.
O filósofo paulista João de Fernandes Teixeira, professor da Universidade
Federal de São Carlos, que trabalhou com Dennet, afirma que criamos esses
conceitos por diversos motivos: primeiramente pelo funcionamento do cérebro que
proporciona a sensação de que as coisas estão dentro de nós (embora as
imagens das coisas é que são geradas). Segundo, porque passamos
constantemente por transformações químicas, físicas e ambientais e essa
concepção de um EU único nos faz pensar que somos os mesmos, sempre.
Finalmente, porque a idéia de unificação do EU possibilita que pessoas sejam
responsabilizadas jurídica e eticamente por suas atitudes e isso viria a sustentar o
conceito de cultura.
Ao se pensar em um ‘eu’ contínuo e único, temos a forte propensão de
recair numa concepção de cultura única e isso, por si só, já beiraria ao risco de
xenofobia ou, até mesmo, a eugenia.
Ainda nessa matéria, o biólogo chileno Francisco Varela, estudioso das
ciências cognitivas, textualmente fala que: Todas as tradições reflexivas da história da humanidade – filosofia, religião, ciência, psicanálise, meditação – desafiaram o sentido ingênuo de ‘self’ (termo que significa senso de identidade). Nenhuma afirmou ter descoberto um ‘self’ independente, fixo ou unitário. Acreditamos que as doutrinas budistas da ausência de ‘self’ e do não-dualismo podem dialogar com as ciências cognitivas, pois a doutrina do ‘self’ retratado no cognitivismo. (p.20)
Professor de história da USP aposentado e reverendo budista da tradição
Terra Pura, Ricardo Mário Gonçalves, igualmente, vê uma similaridade entre
estudos das ciências cognitivas e o pensamento central do budismo, nessa revista
ele fala: A postura básica do budismo em relação ao Eu é que se trata de uma
ilusão resultante da união de vários fatores agregados e está em contínua
transformação. (p.20)
Para a monja Coen, responsável por um espaço da corrente zen-budista e
personagem que será posteriormente retomada em nossa pesquisa, Aquilo que
chamamos de Eu é como uma colcha de retalhos feitas de coisas que fomos
pegando e criando e depois taxamos de nossa personalidade, nossa identidade”.
(p. 21)
Nesse ponto do nosso trabalho, a respeito do descentramento do sujeito ou do “Eu”
quisemos, não fazer uma aproximação identicamente coincidente entre ciência, filosofia e
budismo, mas simplesmente levantar hipóteses. Devido ao assunto ser relativamente novo
(Hall faz alusão ao primeiro descentramento remontando-se ao pensamento marxista, que
teve sua origem apenas no século XIX) não é nosso intuito esgotá-lo nem oferecer uma
conclusão definitiva, porém questionar a noção de uma identidade fixa, que pode tender a
considerar a si própria como a mais adequada ou a melhor. Remetemo-nos, desse modo, à
possibilidade de uma convivência plural, sobretudo religiosa, por ser o objeto de nosso
estudo a representação isotópica da tolerância no discurso da mídia, no que diz respeito ao
budismo.
2.2. Diferença e alteridade
No nosso ponto de vista, pensamos que somente é possível falarmos em
tolerância, se passarmos a uma reflexão do papel do outro, do diferente. Também
teremos o objetivo de perceber como há uma isotopia da alteridade em
determinados enunciados das revistas. Na medida em que se questiona noções
prontas e acabadas de identidade (seja ela cultural ou religiosa) e passa-se a
refutá-las para deixar emergir novas identidades heterogêneas, pode-se,
conseqüentemente, pensar em tolerância.
Para o budismo, toda verdade é relativa. Isso é veiculado na revista
Superinteressante (agosto de 2001), na qual Gimenez diz que para o Dalai, não
existem verdades absolutas (p.50) e, a seguir, há uma citação dele próprio: Não
existe nada absoluto, tudo é relativo, por isso devemos julgar de acordo com as
circunstâncias (p.52). Gimenez alega que, segundo ele, a mente humana teria a
tendência de elevar as próprias idéias à condição de verdades incontestáveis e o
sujeito se enche de argumentos que o levam a tomar determinadas atitudes a
partir do seu ponto de vista unilateral, desconsiderando a trajetória dos outros
envolvidos (p.53)
O desejo de elevar as experiências ao patamar de verdades absolutas
tende a obstruir a pluralidade cultural a qual tem sido discutida neste trabalho.
Desse modo, para que se lance vistas à tolerância há o requisito imprescindível de
se levar em conta as diferenças e a noção de alteridade.
Ao falar sobre ‘identidade’, Hall argumenta que em vez de tratá-la como
uma coisa acabada, deveríamos falar de ‘identificação’ e considerá-la como um
processo em andamento. Diz ainda que a identidade surge não por sua plenitude
que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (op. cit. p. 39, grifo nosso).
Eco (1998, p. 95) enfatiza que assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir, não é possível entender quem somos sem o olhar e a resposta do outro.
A preocupação de lançar a atenção ao “outro” é representada no discurso
budista. O Dalai Lama, na obra O mundo do budismo no Tibetano (2001),
expõe o que vem a ser a meditação para cultivar “Bodhcitta” ou a aspiração à
iluminação para o bem de todos os seres e diz que as técnicas para esse cultivo
são explicadas segundo o método que consiste em equiparar o “nós” e os “outros”,
e intercambiá-los (p. 127). Em seguida, cita a importância de dissolver a atitude
que considera a nós mesmos como sendo separados e distintos dos outros (p.
128). Nessa religião, acredita-se que há uma cadeia de causas e conseqüências
nos atos de todas as pessoas e que, nesse sentido, os outros são uma
continuação de nós a ponto de não haver separação entre nós e eles. Essa é a
visão radical que acentua a questão da alteridade: o outro não é apenas levado
em consideração, mas é parte de nós.
Na revista O Globo, de 28/11/04, é tratada essa concepção da
alteridade. Com o título Lama à brasileira, a matéria de Márcia Cezimbra aborda
também a já mencionada ‘bodhcitta’, que estaria sendo considerada por
psicanalistas que vêm, tais como Jurandir Freire Costa e Benílton Bezerra Jr., que
vêm buscando no budismo novas maneiras de ser mais solidário e compreender
os outros.
Ex-professor de Física Quântica da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRS, o gaúcho lama Padma Samten se reuniu com dezenas de
psicanalistas no seminário “Em torno da questão do ‘self’”, num auditório da PUC,
do Rio de Janeiro (a data não foi divulgada pela revista). Ele comenta nessa
matéria que o ponto central do budismo consiste na capacidade de olhar para o
outro e oferecer alguma coisa (p. 22), haja vista que não temos existência
sozinhos, mas vivemos em processos de relação. Também lançou o livro O lama e
o economista, escrito em conjunto com o economista Vitor Caruso Jr., da
Universidade de São Paulo – USP, no qual criticam o sistema neoliberal e a
cultura contemporânea. Ele finaliza comentando que as escolas deveriam ter
disciplinas ‘psis’ como felicidade, como ser feliz nas relações com os outros e
consigo mesmo (p.23)
Não vamos entrar em juízos de valor sobre o que é ou não felicidade, pois
esse é tampouco o objeto de nosso estudo.
2.3. Tolerância
Entendemos a tolerância enquanto uma postura de aceitação, respeito e
reconhecimento das diferenças originadas pela presença do outro, ainda que haja
discordância acerca de sua maneira de pensar ou agir. Para Rouanet, tolerância é
uma passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio
das diferenças (FSP, 09/02/03).
A revista Superinteressante de março de 2002 (que não está
especificamente em nosso corpus) trouxe estampada na capa a imagem de Buda
em posição de meditação, tamanha a ênfase que quis ser dada ao tema. Nela,
vemos a descrição da história do fundador da religião por Caco de Paula. À página
40, há uma frase em destaque: Não existe religião mais tolerante, nem menos
fundamentalista.
A monja Coen dá um depoimento à revista (p. 46), dizendo que como as técnicas (do budismo e, especificamente, da meditação) funcionam independentemente da religião de quem as pratica, tem despertado o interesse também dos judeus, cristãos e muçulmanos.
Observa-se uma representação – explicitada por uma religiosa – que o
budismo pode ser praticado por pessoas que professam outra religião. Isso
igualmente estampa a identidade como sendo um conceito perpassado pelo
hibridismo. Conforme o modo de construção do significado, não há, pois, uma
identidade budista porque não se pode enquadrar o praticante dessa religião de
um modo ortodoxo ou estanque. Ele não tem que abdicar de suas convicções
religiosas para praticar determinados procedimentos aí ensinados, mas, em vez
disso, incorpora-os ao seu cotidiano remetendo-se à idéia de heterogeneidade.
Um exemplo de como ocorre essa identidade híbrida é o caso da monja
zen-budista Adriana Thomaz que, de acordo com a matéria da revista Oi, de
outubro / novembro de 2004, de autoria de Ronaldo Villardo, gosta de forró, faz
‘spinning’, tem duas filhas, namora e é médica acupunturista pela Universidade de
Sorbonne, na França. Quem imagina um religioso 24 horas por dia em estado de
contemplação ou meditação poderia se surpreender com a figura da monja
Adriana. Hoje não há possibilidade de fixar uma identidade cultural (nem religiosa)
como sendo única, estável e imutável, não há que se buscar uma pureza, nem
originalidade para taxarmos de uma só maneira a questão da identidade.
Também capa da revista Isto é, de 1º de outubro de 2003, o assunto
budismo é posto em destaque. Com o título “Além do templo”, ela menciona que a
religião abrirá a primeira universidade budista da América Latina. Alguns
enunciados dessa revista serão retomados no momento do resultado das análises,
sob a perspectiva de estudar as isotopias percebidas nos outros textos
constituintes do corpus, já que aqui são citados apenas a título de exemplificação.
Segundo o especialista Frank Usarski, professor de pós-graduação em
Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica – PUC de São Paulo, é o
caráter não proselitista do budismo que pode ser o responsável pelo seu
crescimento no Brasil e aí incluímos a notoriedade da concepção de tolerância.
Ele pensa que a falta de compromisso com uma única doutrina é uma
característica básica do budismo na cultura brasileira:
Muitas vezes, o praticante freqüenta um templo durante um ou dois anos, abandona por determinado período e volta a visitá-lo sem constrangimento. Milhares de brasileiros praticam meditação e adoram os livros do Dalai Lama, mas continuam indo a missas ou cultos (p. 51)
Existe, de alguma maneira, a veiculação de um discurso de preocupação
com a promoção do ser humano para que este venha a ter acesso a recursos nas
esferas sociais. Ainda conforme Isto é, há o exemplo da Associação Brasil Soka
Gakkai Internacional, considerada como o maior grupo budista do país, com
aproximadamente 120 mil associados (uma das revistas que compõe o corpus foi
editada por essa associação). Ela promove cursos gratuitos de alfabetização e
hoje conta com pré-escola budista.
O mesmo procedimento é utilizado no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em
Ibiraçu (distrito de Vitória), no Espírito Santo, onde há retiros e aulas de educação
ambiental e solidariedade para policiais militares.
Nesse aspecto, também percebemos que se configura a hibridização da
identidade: como um policial, que em sua atividade, supostamente, convive com
conflitos de toda espécie e violência constante pode praticar meditação e aprender
a tranqüilizar a mente? Isso somente é mostrado face à mudança na perspectiva
de identidade que atualmente se mostra diversificada e multifacetada.
De acordo com Hall (op. cit. p. 62), em lugar de pensarmos as culturas
nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um
dispositivo discursivo que representa a diferença. As culturas nacionais, e aí
incluímos a brasileira, representada na mídia em estudo, são perpassadas por
profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas” apenas através do
exercício de diferentes formas de poder cultural. Ora, não há possibilidade de
pensarmos em uma cultura ou em uma identidade nacional. Se assim
entendermos, estaremos acionando discursos hegemônicos, objetivando que se
reiterem e, por conseqüência, mantenham a ‘ordem’ instaurada, a tradição
imutável e o senso de unidade. Não somos “um único povo”, puro, original. Somos
vários povos cujas fronteiras hoje são ultrapassadas com uma facilidade
estrondosa, possibilitando, assim, que sejamos (apenas) diferentes.
Eco (1998, p. 106) nos fala do conceito de melting pot (situation in which a
large number of people, ideas etc are mixed together. In: Oxford – Advanced
Learner’s Dictionary, 2000), em que diversas culturas coexistem. Esse fenômeno é
uma realidade atual no Brasil, especialmente, nessa questão da cultura religiosa e
no interior do budismo entendemos que isso é uma característica discursiva
fundamental para sua constituição.
Uma interessante contribuição para o que nos parece ser uma nova
proposta para a concepção de ‘identidade’ é aquela oferecida por Hall (op. cit. p.
76). Ele fala que sempre houve uma tensão entre identificações mais particulares,
locais e identificações mais universalistas (é citado o exemplo de uma
identificação maior com a “humanidade’ do que com a “inglesidade” (englishness))
e que a globalização teve um efeito sobre esse modo de pensá-las. Em vez de
considerarmos o global como substituindo o local seria mais acurado pensar numa
nova articulação entre “global” e “local”, não se entendendo, todavia, este “local”
enquanto velhas e imóveis identidades, mas sim atuando sob a lógica da
globalização. Esta irá, portanto, produzir novas identificações “globais” e novas
identificações “locais”, promovendo uma ruptura no conceito de identidades
fechadas para dar-lhes um efeito pluralizante, lançando mão de uma variedade de
possibilidades e novas posições de identificação.
Em lugar da ‘tradição’ funcionando como a tentativa de recuperar uma
suposta pureza e originalidade, apontamos para o que Robins (seguindo Homi
Bhabha), ambos citados por Hall (op. cit. p. 87), chama de ‘tradução’, ou seja, o
fato de que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da
representação e da diferença e, assim, é impossível que elas sejam outra vez
unitárias ou “puras”. A identidade teria de assumir um estado ‘traduzido’, plural,
híbrido e as pessoas inseridas na sociedade teriam de abrir mão irrevogavelmente
de qualquer tipo de absolutismo étnico ou religioso. Não haveria, nesse sentido, o
budista original, isso seria uma ilusão, como o são os próprios conceitos de ‘eu’ e
‘identidade’.
2.4. Diálogo inter-religioso: movimento ao sincretismo
Acreditamos ser conveniente abordar, ainda que de forma panorâmica, o
cenário religioso no Brasil, uma vez que apontamos nosso olhar à mídia brasileira,
enquanto manifestação cultural, sobretudo porque queremos discorrer acerca do
diálogo entre as diferentes religiões.
Para José Jorge de Carvalho (1991, p. 2), a variedade de movimentos,
igrejas, seitas, cultos e grupos religiosos inseridos em nosso país apresenta graus
distintos de inserção na sociedade, entretanto, todos dialogam, fundamentalmente
- com maior ou menor possibilidade de compatibilizar suas visões de mundo –
com a religião até agora hegemônica no país: o catolicismo (por isso essa religião
é tomada por base em nossa dissertação). O autor menciona sua experiência
pessoal, de morador da cidade de Brasília (ele é professor de antropologia da
Universidade Nacional de Brasília – UnB), cidade na qual o campo das religiões é
particularmente vasto e cheio de invenções. Cita um exemplo (especulativo) do
típico adulto brasiliense que (op. cit. p. 3):
pode ser alguém que nasceu no interior do país, criado dentro de uma tradição católica ou protestante. Quer pratique ou não sua religião de origem, pode fazer uma terapia corporal rajneeshiana para desbloquear a libido; pode tomar “johrei” de vez em quando na Igreja Messiânica para repor as energias; e pode ainda freqüentar cursos ou seminários sobre Lamaísmo, Teosofia, Chakras, poder dos cristais, que qualquer tipo de espiritualidade ou de manipulação de forças e energias das tantas em voga.
É nessa esfera que Carvalho expõe suas convicções, buscando analisar a
questão geral da religiosidade sob uma ótica sincrética. Contudo, ele faz uma
digressão no tempo, mais precisamente referindo-se ao que chama de
modernidade ocidental, na metade do século XIX, período no qual se consolidou o
processo conhecido por desencantamento do mundo. Segundo ele (op. cit. p.4),
um primeiro sintoma presente desse desencantamento foi o estabelecimento de
um certo agnosticismo, uma certa rejeição da religião estabelecida. Afirma ainda
que isso é uma característica básica do que denominamos modernidade.
Referindo-se, pois, ao catolicismo, o autor menciona que houve algum tipo de
crítica, de distanciamento, de repulsa ou de reavaliação da religião fundante da
civilização ocidental. Duas foram as posturas básicas adotadas: uma representada
por céticos e agnósticos e outra por aqueles que trouxeram à discussão outras
tradições religiosas, sem que fossem consideradas inferiores, sobre as quais
Carvalho (op. cit. p. 5) cita o Vedanta (no dicionário Houaiss, 2001, p. 2.835,
sistema filosófico surgido por volta do século VI a.C., e caracterizado pela
suposição de que o indivíduo, para que alcance a sua libertação final (mocsa),
deve superar a ilusão (maia) de que vive em um mundo material e múltiplo,
compreendendo o seu pertencimento à realidade original, única e absoluta
(brâman)), tão presente na obra de Schopenhauer, e o budismo, também presente
nas reflexões filosófico-religiosas de Nietzsche. A modernidade teria propiciado o
surgimento de diálogos com a religião dominante (op. cit. p. 5), ora com simpatia,
ora com rejeição.
Muitas vezes esse repúdio parte justamente daqueles que já estiveram no
interior do clero católico. Leonardo Boff, ex-padre, (em Espiritualidade – Um
caminho de transformação, 3.ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001, p. 20) faz uma
distinção entre ‘espiritualidade’ e ‘religião’. Aquela, citando ele próprio o conceito
do Dalai Lama, estaria relacionada com qualidades do espírito humano, tais como
amor, compaixão, paciência e tolerância (...) que trazem felicidade tanto para a
própria pessoa quanto para os outros. Esta, por sua vez, relacionar-se-ia com a
crença no direito à salvação pregada por qualquer tradição de fé (...) Associados a
isso estão ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações, e assim por
diante. Continuando, num capítulo intitulado Jesus pregou o Reino e em seu lugar
veio a Igreja (op. cit. p. 37 – 41), Boff tece sérias críticas à igreja que se coloca
como a própria salvação (p. 39), afirmando que não se pode confundir a figura do
Cristo com a instituição religiosa ou com as autoridades eclesiásticas.
Textualmente fala (p. 41):
(...) se ela (a religião cristã) não transforma a nossa interioridade, se continua a ser apenas a religião do consolo e meio de salvação por
medo da perdição, ela se transmuta em ópio. Se permite que seus ritos e símbolos sejam usados e abusados no mercado religioso, especialmente pela grande mídia, para apenas suscitar comoção e não aquela transformação interior decorrente da experiência do Deus vivo e do engajamento pela justiça, pela paz e pela integridade do Criador, ela se transforma em simples fetiche.
Boff Também faz menção a épocas no Ocidente em que o poder sagrado
detinha a absoluta dominação e que, justamente, por isso, esses séculos de
aliança entre trono e altar, mas sob a hegemonia do altar tenham sido os de maior
violência no Ocidente, nos quais a religião queimou dois milhões de ‘bruxas’ na
Santa Inquisição. Finaliza (op. cit. p. 28) dizendo que, ao substantivar-se e
institucionalizar-se em forma de poder, seja sagrado, social, cultural e militar (...)
as religiões perdem a fonte que as mantém vivas – a espiritualidade.
Ex-sacerdote, professor de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas
pela American University por cinco anos (de 1946 a 1951) e, posteriormente,
fundador da Instituição Cultural e Beneficente Alvorada, de cunho espiritualista,
Huberto Rohden também relata sua posição acerca da hegemonia da Igreja
Católica (os trechos a seguir foram extraídos de SANTOS, Verdi Gonçalves dos. O
pensamento vivo de Huberto Rohden, São Paulo: Martin Claret Editores, 1988).
Rohden (1988, p. 14) explica que o termo ‘católico’ advém do radical katholikós,
que significa “segundo o todo”, ou “total”, “universal”. Diz-se essencialmente
universalista e por isso alega não poder admitir um catolicismo não universal, o
que viria a ser um pseudocatolicismo. Segundo esse autor: O pseudocatolicismo do clero romano – salvo honrosas exceções – é a mais flagrante antítese da catolicidade do Evangelho do Cristo. E toda essa adulteração começou no século IV, quando o sacerdócio, de ideal apostólico, passou a ser uma profissão lucrativa, fonte de prestígio social, político e econômico (...) A grande alternativa é: Cristo ou clero!(...)
Ainda como padre, Rohden escreveu 25 livros, todos aprovados por D.
Sebastião Leme (arcebispo do Rio de Janeiro até 1942) ou por outros bispos.
Entretanto, conforme menciona à p. 15, não dizia uma só palavra contra o clero;
mas o simples fato de eu enaltecer o Cristo e silenciar o clero me granjeou
crescente antipatia e hostilidade no seio do clero romano. Após um mês da morte
do cardeal Leme, D. José Gaspar de Afonseca e Silva baixou uma circular
condenando todos os livros de Huberto Rohden, taxando-os de perniciosos à fé
católica (op. cit. p. 15), ao que este rebate dizendo que isso ocorreu porque neles
(nos seus livros) proclamava eu a redenção pelo Cristo, quando a teologia romana
advoga a redenção pelo clero.
Retomando Carvalho (1991, p. 6), percebemos que outro movimento que
manteve uma relação conflitiva com o cristianismo foi o que o autor chama de
esoterismo. Resurgido no século XIX, inicialmente restrito à elite intelectual
européia, posteriormente influenciou muitos indivíduos que questionavam a falta
do caráter iniciático e hermético nas igrejas cristãs. Carvalho alude que considera
o esoterismo moderno como sendo um grande movimento, intelectual e espiritual,
constitutivo da religiosidade contemporânea.
Com relação ao simbolismo presente na arte, que poderia refletir um traço
esotérico-iniciático e importante para a constituição desse percurso teórico do
caráter sincrético, que culminou naquilo que nomeamos diálogo inter-religioso,
iremos comentar o exemplo citado pelo mesmo Carvalho (op. cit. p. 7, 8), sobre a
ópera Parsifal, de Richard Wagner, de 1882. Nela, Wagner retrata uma crise
sofrida pela sociedade do Graal (constituída por nobres responsáveis pela guarda
do cálice considerado sagrado pois teria sido utilizado por Jesus na Última Ceia).
Faz-se alusão a vários outros símbolos cristãos, como o batismo do personagem
Kundry (para Carvalho, a reencarnação de Herodes, visto que na ópera é culpado
pela decadência do Graal e, contraditoriamente a personificação de Maria
Madalena, visto que Kundry lava os pés de Parsifal, tal qual o fez aquela com o
Cristo); também a associação crística na figura do próprio Parsifal, uma vez que é
inocente e tem os poderes da purificação e da redenção. Outra aproximação seria
o pão e o vinho que são elementos de uma missa ‘pagã’ realizada em
Montsalvate.
Cabe lembrar que Wagner igualmente se interessava pelo budismo, e
chegou a esboçar uma ópera tendo como tema a vida do Buddha (op. cit. p. 7).
Em determinado momento da ópera Parsifal, há mulheres-flores do jardim de
Klingsor que tentam seduzir esse herói, ao que Carvalho pensa que elas lembram
uma tentação sofrida pelo Buddha em situação similar. Parsifal, pois, pode ser
Cristo e pode ser ainda Buddha (...). Conclui dizendo (op. cit. p. 8): Vemos então
que, com a aparência externa do cristianismo, Wagner criou um drama que seria
uma síntese de concepções pagãs, celtas, cristãs, islâmicas e budistas.
Dessa forma, começa uma ascensão no Ocidente de vários movimentos à
margem do discurso cristão oficial, outrora silenciados, por serem considerados
heréticos – os templários, os maçons, os rosacruzes, os herméticos, os gnósticos,
os alquimistas etc. (op. cit. p. 8). Acreditamos que isso possa ter contribuído para
fazer emergir novos discursos, que possibilitaram e fizeram necessário o diálogo
entre religiões. No momento de análise das matérias das revistas abordaremos
mais detidamente como se dá essa representação no que concerne ao tema
budismo.
Uma pergunta formulada por Carvalho (op. cit. p. 8) torna-se imprescindível
nesse contexto e cuja resposta pode ser considerada um pressuposto teórico que
servirá de fio condutor para a compreensão de todos os conceitos que perpassam
nosso trabalho, ou seja, para melhor entendermos o porquê da constituição dos
discursos de sincretismo, de hibridismo, do próprio diálogo inter-religioso, da
alteridade, os quais culminam no discurso maior da tolerância religiosa: (...) por
que me parece ser esse movimento esotérico tão importante? A que o autor
responde: Porque ele enfatizou um hábito de olhar para todas as religiões
mundiais, em busca de equivalências, de complementações, de sínteses. (grifo
nosso).
Nesse sentido, é citada Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da
Sociedade Teosófica, a quem Carvalho destaca um lugar central no cenário
moderno. Ela percorreu o mundo no século XIX, analisando diversas tradições
espirituais e tecendo uma contundente crítica ao cristianismo então estabelecido,
justamente por considerar que este perdera seu cunho iniciático e seu lado
profundo, sobretudo se comparado às religiões indianas, as quais, segundo sua
concepção, continuariam uma espiritualidade mais plena e primordial.
A partir daí, novas idéias extraídas sobretudo de textos hinduístas, budistas
e sufistas vão se difundindo de um modo mais institucionalizado e alcançando uma gama cada vez maior de pessoas, abrindo campo para sucessivas
tentativas de se recolocar, já não mais o “problema da religião”, como queriam os filósofos e teólogos mais ortodoxos, mas as chamadas tradições de espiritualidade, parte fundamentalmente viva de todas as religiões conhecidas. (op. cit. p. 9)
Relevante é a análise de Carvalho, com relação à maior conseqüência para
o cristianismo – e aqui acreditamos, para toda a sociedade ocidental,
especialmente para o Brasil – dessa presença cada vez mais expressiva das
tradições esotéricas e orientais, a qual transcreveremos literalmente:
(...) começa a surgir um deslocamento da figura de Jesus Cristo, na medida em que crescem as propostas de diálogo inter-religioso: o Cristo passa a ser entendido como um princípio divino (como a natureza búdica, o Ishwara) e Jesus como uma encarnação, um avatar, uma manifestação histórica da divindade, equivalente ao Buddha Shakyamunie, a Krishna, a Zoroastro, a Maomé etc. (op. cit. p. 9, grifos nossos).
José Jorge de Carvalho não está solitário nesse ponto de vista, de que há
um ‘princípio’ que se uniria aos chamados ‘mestres’ do caminho espiritual.
Rohden, já citado nesse trabalho, afirma em seu livro Assim dizia o mestre. 3.ed.
São Paulo: editora Alvorada (o ano de publicação não foi indicado), p. 14,15 que:
Todo o mal está na confusão de dois elementos distintos: Jesus e o Cristo. O Divino Logos, ou Verbo, se uniu inseparavelmente ao humano Jesus (...) O divino Logos encarnou-se em Moisés, em Isaías, em Jó, em Krishna, em Buda, em Zaratustra, em Maomé, em Gandhi, e muitos outros veículos humanos.
Nessa mesma perspectiva, há o pensamento do monge indiano
Paramahansa Yogananda, fundador Self-Realization Fellowship, organização que
hoje conta com aproximadamente 500 centros de meditação, espalhados em 54
países, conforme informação extraída de seu site oficial
(http://www.selfrealizationfellowship.com/aboutsrf/index.html).
Na Revista das Religiões (especial da Superinteressante), de julho de
2004, há uma matéria especial sobre o místico. À página 23, lemos que o iogue
indiano tinha uma profunda admiração por Jesus e apontava, em diversos textos
bíblicos, a harmonia existente entre os ensinamentos cristãos e hindus. O
antropólogo José Jorge de Carvalho tece seu comentário na revista, afirmando
que a tradição hinduísta incorpora, sem nenhuma dificuldade, todas as outras.
Para os hindus, Cristo é um avatar, uma manifestação do Absoluto. Isso se
confirma na obra Autobiografia de um iogue, em que, no capítulo 33, denominado
Bábají, o Cristo-Iogue da índia Moderna, Yogananda associa o Cristo a outros
considerados mestres: Na vastidão da onipresença, como se poderia seguir o
Cristo, exceto em Espírito circunvidente? Krishna, Rama, Buddha e Patânjali
contam-se entre os antigos avatares.(...) Bábají vive sempre em comunhão com
Cristo (Yogananda, 1981, p. 284, grifo nosso). No prefácio à edição brasileira,
Premavatar (monge que o redigiu, op. cit. p. 11) fala que imerso em Consciência
Crística, ele (Yogananda) pronunciava palavras de encorajamento e de inspiração.
São feitas referências a um Cristo-Iogue, bem como à Consciência Crística, numa
clara alusão não ao Cristo histórico, mas a um princípio divino.
Também é feita menção aos indivíduos que são considerados fundadores
de religiões ou continuadores de uma doutrina espiritual, não colocando nenhum
deles numa posição hegemônica em relação aos outros, mas numa esfera de
convivência, de co-existência e, portanto, de diálogo. Boff, citado por Carvalho (1991, p. 9) como uma vertente de uma
espiritualidade letrada, extremamente viva e livre do peso institucional, afirma na
já mencionada obra (2001, p. 29) que os pais fundadores dos caminhos espirituais
– Buda, Isaías, Jesus Cristo, São Paulo (...) são sempre pessoas profundamente
carismáticas, que mergulharam de forma extraordinária no mistério do Ser (...).
Finalizando esse item acerca da revisão bibliográfica do diálogo e da
aproximação entre os credos, citamos um livro do Dalai Lama, cujo título é
Conselhos espirituais (2004), no qual em diversos momentos ele toca nessa
questão, como podemos verificar nos trechos a seguir selecionados: (...) sempre digo às platéias que o diálogo inter-religioso pode gerar um entendimento mais profundo entre as diferentes tradições religiosas. Um tipo de diálogo envolve um encontro de estudiosos, numa situação mais acadêmica, para esclarecer as diferenças e as semelhanças entre suas tradições (...) (p. 17, 18) Uma segunda espécie de diálogo é a peregrinação realizada por seguidores de diferentes tradições religiosas. Eles podem ir juntos, em
grupo, numa romaria aos lugares sagrados das diferentes religiões (...) (p. 18) Um terceiro tipo de diálogo é um encontro como o Dia da Oração pela Paz, que se deu em Assis em 1986. Líderes religiosos se reuniram lá e trocaram algumas amáveis mensagens. (p. 18) Um quarto tipo de diálogo consiste num encontro entre praticantes genuínos de diferentes tradições religiosas (...) Um exemplo foi meu encontro com o agora falecido Thomas Merton. (sacerdote cristão)(p. 19)
Assim, no momento específico de análise do corpus, buscaremos perceber
como se dão, textualmente, as chamadas isotopias do diálogo inter-religioso.
3. Comunicação Globalizada
Segundo Thompson (1998, p. 135), a reordenação do espaço e do tempo
provocada pelo desenvolvimento da mídia faz parte de um conjunto mais amplo de
processos que transformaram (e ainda estão transformando) o mundo moderno.
Na mesma perspectiva de Hall (2003), tais processos são o que atualmente
chamamos de globalização. Para Thompson, necessário se faz que a entendamos
enquanto atividades que aconteçam numa arena que é global (op. cit. p. 135). E é
nesse sentido que estamos focalizando o budismo, não como uma religião
originada no Oriente, mas como um forte conjunto de valores simbólicos, os quais
passam a ser veiculados nessa escala global.
Invariavelmente, atrelamos o poder econômico como uma força sempre
emergente no processo globalizado. Esse fator não pode ser deixado de lado.
Todavia, concordamos com Thompson (op. cit. p. 136) que também identifica
outras formas de poder, tais como o político e o simbólico contribuíram para esse
processo e foram afetadas por ele. Especial atenção é dada pelo autor à
organização social do poder simbólico e nós procuraremos descrever de que
modo isso pode ser observado em nosso estudo sobre cultura.
A globalização possibilita que um monge tibetano, como é o caso do Dalai
Lama, possa passar a influenciar o estilo de vida de um sem-número de indivíduos
brasileiros. Não se pode considerar o local, a tradição pura do Tibete, mas sim
uma mestiçagem cultural, na qual um brasileiro venha a absorver práticas
budistas, sem, necessariamente, ter uma conversão formalizada. A caracterização
religiosa começa a carecer de uma definição restrita, pois o que se verifica é uma
mescla de tradições, ideologias e maneiras de atuar.
Aqui, nosso intuito é o de pensar como a globalização, entendida no âmbito da
comunicação, influencia nesse processo, já que acreditamos em seu papel preponderante
para a circulação do budismo no Brasil e para a conseqüente compreensão de algumas
representações que serão discutidas nesta dissertação.
Conforme Thompson (op. cit. p. 143), o processo de globalização da
comunicação é um fenômeno tipicamente do século XX, visto que nesse período o
fluxo de comunicação e informação em escala global se tornou uma característica
regular e penetrante da vida social. Os canais de comunicação e os diferentes
recursos midiáticos tiveram um aumento considerável, o que possibilitou que a
informação passasse a circular rapidamente e a recepção de valores culturais de
diferentes povos tornou-se uma constante.
Podemos pensar na existência de um sistema cultural global, no qual as
idéias de pureza e originalidade têm necessariamente de ser descartadas.
Mencionamos a recepção da cultura e a observaremos como um fato que varia
para cada indivíduo. A esse respeito nos ateremos mais adiante.
Para Thompson (op. cit. p. 144), durante o século XX, os conglomerados de
comunicação começaram a produzir suas atividades em locais fora de seus países
de origem, o que ocorreu por meio de fusões e compras, promovendo, assim, o
“crescimento corporativo” e a presença massiva na “arena global do comércio de
informação e comunicação”. Esses conglomerados, na sua maioria, têm suas
sedes na América do Norte, Europa Ocidental, Austrália e Japão, o que provocou
a concentração do poder econômico e simbólico.
Os difusores do budismo no Brasil, estrategicamente, fazem uso desses
recursos de comunicação global. Numa matéria intitulada “Monja Coen – a porta-
voz brasileira do zen-budismo”, assinada por Maria Di Cesare, veiculada na revista
Budismo (2004, p. 15), a missionária é perguntada por que o número de pessoas
interessadas pelo budismo aumenta cada vez mais, ao que diz
Há uma procura pelo desenvolvimento da espiritualidade e, dentro disso, o budismo é uma alternativa atraente no Brasil (...) 1Além disso, a imprensa dos EUA tem falado muito sobre a questão do Tibete e do Dalai Lama sempre pregando a compaixão e não-violência, o que acaba servindo de propaganda para o budismo. (grifos nossos).
O poderio americano passa a ser potencializado em prol da divulgação
dessa religião, fato que é divulgado numa revista do Brasil, como se verifica nos
dizeres da monja.
Existe substancial importância na descrição da influência de outro poder, o
político, para entendermos a relação globalização-budismo. Necessária se faz,
portanto, uma breve digressão ao cenário do Tibete.
Em 1950, o governo chinês invadiu o território tibetano, anexando-o ao
mapa chinês. A China justificara a invasão alegando que, até o século XVII, o
Tibete pertencia aos chineses. Todavia, o interesse efetivo pode ter sido a riqueza
mineral das terras tibetanas. Estima-se que mais de 6000 construções histórico-
culturais, como templos e monastérios, foram destruídas. O número de pessoas
assassinadas não é preciso, entretanto sabe-se que no final dos anos 40, havia
um total de 7 milhões de habitantes na região e atualmente, são 2,5 milhões,
dados informados pelo United States Census Bureau, órgão recenseador
internacional, com sede nos EUA, de acordo com a revista Superinteressante
(ago. 2001, p. 50).
Até 1959, o Dalai Lama permaneceu no Tibete, procurando uma solução
pacífica para o conflito. Não obstante seus pronunciamentos, o povo formou
guerrilhas contra os chineses, o que exaltou ainda mais os ânimos no local. As
ameaças ao monge criaram uma comoção social generalizada e a reação popular
foi intensa, fato que ele receou ser o possível desencadeador de um massacre.
Por isso, como relata em seu livro Minha terra e meu povo (1998), decidiu buscar
exílio na Índia.
Desde então, sua atuação política (e religiosa) não é menos intensa. O
próprio monge utiliza os distintos recursos midiáticos em prol de sua causa de
libertação do Tibete e também da propagação do budismo, apropriando-se, assim,
dos meios de comunicação globalizada. Perguntado, em entrevista concedida à
revista Época (p. 75), sobre o que aconteceria com a liderança no exílio caso ele
morresse antes de regressar ao Tibete, respondeu: Meu retorno ao Tibete é irrelevante. Emocionalmente, os tibetanos me querem de volta. Mas, intelectualmente, gostam de minha presença no exterior. Eu divulgo a situação do Tibete, consigo apoio para nossa causa, difundo a cultura, converso com autoridades (...) (grifos nossos)
Propusemo-nos a falar brevemente a respeito do contexto tibetano, para
percebermos como o poder político influencia e é influenciado pelo processo de
globalização. No primeiro sentido, exerce influência, pois, ainda que no exílio, o
Dalai Lama é um representante político e chama a atenção de outros países com
maior hegemonia no controle dos meios de comunicação e, conseqüentemente,
na circulação de informações; e é influenciado, na medida em os líderes religiosos
budistas dependem do que as autoridades desses países farão pela causa
tibetana e pelo próprio budismo. Temos dois exemplos ocorridos no Brasil,
relatados por Lia Diskin, responsável pelas duas visitas daquele monge
(Superinteressante, ago. 2001,p. 51): Em 1992, na Eco 92, a delegação chinesa ameaçou não comparecer ao evento, realizado no Rio de Janeiro, se o Dalai Lama desembarcasse por aqui. Em 1999, em visita ao país, outra vez a burocracia brasileira complicou as coisas, diz Lia.
Karen Gimenez, autora da matéria, completa: Naquela ocasião, o presidente Fernando Henrique Cardoso não recebeu o Dalai Lama no Palácio da Alvorada. Só aceitou conversar com o Dalai fora do círculo oficial, em uma visita informal à casa do então senador Antônio Carlos Magalhães, na Bahia.
Ainda na mesma revista (p. 49), há uma informação alusiva ao ano de
2001, dizendo que o presidente americano, George W. Bush, recebe-o como líder
religioso e não como líder político, prometendo, contudo, ajudar na tentativa de
diálogo com a China.
Na entrevista de Época (p. 76), vemos a seguinte pergunta:
Incomoda ser recebido por líderes mundiais extra-oficialmente ou apenas
como líder religioso? Reconhecendo o status de seu poder político, o Dalai fala
Eles estão sendo realistas (risos). Não me importo com uma recepção mais ou menos oficial, o que me interessa é encontrar as pessoas.
Claro, se um ministro me recebe no aeroporto, pode ser bom para a questão tibetana. No Ocidente, as pessoas levam muito em consideração o modo como alguém é recebido, como a pessoa sorri ou se veste. Para mim, isso não importa.
Dessa forma, vemos que a causa política da tentativa de libertação do
Tibete do julgo do governo chinês, promovida pelo Dalai Lama, só pode ter
alcance mundial devido à globalização. E ele sabe disso.
3.1. Tempo e espaço relativizados
O sub-título de Superinteressante (ago.2001, p. 46, 47) tem ao fundo uma
imagem do Dalai e traz os seguintes dizeres: Nunca se falou tanto sobre ele no Ocidente. Nunca se leram tantos livros seus no Brasil. Afinal, o que o pensamento desse monge tibetano tem de tão especial?
O conteúdo em si das mensagens do religioso não tem maior interesse
nesse ponto de nosso trabalho, mas sim como são dispostas as palavras pela
autora da matéria da mencionada revista, Karen Gimenez.
Os enunciados acima explicitados, da forma como foram ditos, funcionam
como uma ‘propaganda’ globalizada: Nunca o Dalai Lama foi tão falado no
Ocidente e também nunca suas obras foram tão lidas no Brasil. Ela conclui com a
pergunta sobre o que o pensamento desse monge tibetano teria de tão especial. A
disposição dos vocábulos une o Ocidente – e, especificamente, o Brasil – e o
Tibete. Não há distância geográfica, nem ideológica entre os locais: tudo parece
efetivamente global e o leitor sente-se aguçado a ler a matéria para conferir os
porquês do sucesso do personagem. Os “nuncas” garantem a valorização de
sentido e instituem o Leitor-Modelo para a caracterização de um fenômeno; não é
algo corriqueiro, que se daria a qualquer tempo, mas que acontece de modo
único, não antes presenciado pelas pessoas.
Interessante ressaltar outro enunciado dessa revista sobre o religioso, em
que se afirma: para os adeptos do budismo em suas mais diversas ramificações,
ele é Sua Santidade (p. 48), pelo fato de percebermos que os próprios budistas,
independentemente das diversas correntes existentes, consideram a figura do
monge (do Budismo Tibetano) como um importante protagonista na difusão de
suas causas religiosas, tal qual o já mencionado exemplo da monja Coen, que
embora seja da nomenclatura zen, cita o Dalai Lama, como sendo uma influência
para o crescimento da religião no Brasil.
Esse líder sabe da importância de sua presença em distintos ambientes
para difundir suas idéias e, conscientemente, usa a mídia com o intuito de noticiar
sua forma de pensar e também as visitas efetuadas pelo mundo. Ainda na
Superinteressante (p. 48) diz-se que O Dalai Lama viaja muito e acaba ficando pouco tempo em Dharamsala (cidade indiana, na qual foi formada uma comunidade nos anos 60 por monges budistas e refugiados tibetanos e onde ele mora). As visitas ao Brasil foram agendadas com mais de dois anos de antecedência. Num dia, suas palavras encontram milhares de pessoas no Vale do Silício, o cérebro eletrônico da indústria tecnológica americana. No dia seguinte, ele conversa com comunidades isoladas nas montanhas do Nepal.
Em Época (p. 71) lemos que Ele passa quase seis meses do ano em viagens, encontrando-se com parlamentares e chefes de Estado, arrebanhando multidões em audiências públicas nas quais prega a paz, ensinando preceitos do budismo a platéias lotadas.
Mais uma vez vê-se o encurtamento de distâncias no mundo globalizado:
encurtamento no sentido espacial, físico e também no sentido da linguagem e da
ideologia. Antes da globalização, as idéias permaneciam mais isoladas num
território geográfico bastante delimitado. Atualmente isso não ocorre da mesma
maneira: um discurso religioso atravessa um continente em pouquíssimo tempo e
perpassa indivíduos conectados pela comunicação, não importando se estão na
América do Norte, no Nepal ou no Brasil, enquanto leitores de uma revista que
trata de uma religião oriental. É construída uma estrutura de apreensão dos bens
simbólicos e dos valores culturais que só pode ser analisada sob a luz do conceito
de hibridismo. Esse caráter mestiço é traço preponderante no processo
globalizado, pois o fluxo de informações e a circulação dos discursos se dão num
panorama internacional. Nesse sentido também buscamos o entendimento de
Thompson (op. cit. p. 146), o qual fala que Uma questão central da globalização da comunicação é o fato de que os produtos da mídia circulam numa arena internacional. O material
produzido em um país é distribuído não apenas no mercado doméstico, mas também – e em níveis sempre crescentes – no mercado global.
Outro aspecto que merece ser mencionado é que o budismo – via Dalai
Lama – tem circulação que extrapola, em dimensões internacionais, os locais de
produção e edição das obras literárias desse monge autor. Segundo a já citada
matéria de Superinteressante (ago. 2001, p. 48), os discursos do Dalai
originaram mais de 200 livros – 20 deles traduzidos para o português. No Brasil,
seus livros venderam 500.000 exemplares. A revista Época, que foi publicada em
junho de 2003, traz números diferentes e de maior expressão: No Brasil, vendeu
quase 900 mil exemplares de cerca de 30 títulos nos últimos quatro anos. Embora
nosso objetivo não seja analisar o mercado editorial especificamente, vemos que
essas informações a respeito dos livros são veiculadas na mídia e, por isso,
acabam configurando traços da representação do budismo, enquanto bem
simbólico na cultura brasileira.
A própria Superinteressante (p. 48,49) faz menção à revista Veja: A arte da felicidade – um manual para a vida, editado pela Martins Fontes, cuja seqüência o Dalai está escrevendo neste momento em parceria com o psiquiatra americano Howard Cuttler, aparece há quase 70 semanas na lista do livros mais vendidos da revista Veja.
O fato de Veja publicar nessa lista uma obra escrita por um religioso budista
faz com que a religião passe a ser conhecida e independentemente de o leitor
sentir-se atraído ou não por esse tipo de literatura, suscita nele alguns
questionamentos dos porquês de tamanho sucesso editorial no Brasil. Em outras
palavras, se não fosse por intermédio da mídia (e da comunicação globalizada),
possivelmente os livros sobre budismo não seriam tão lidos.
Comentando a tese do imperialismo cultural promovido pelos EUA,
discutida na tese Mass Communications and American Empire, de Herbert
Schiller, Thompson (op. cit. p. 148-154) tece críticas à possibilidade de os
americanos imporem seus valores culturais aos países do Terceiro Mundo, os
quais, supostamente, teriam tradições intactas. A questão é mais complexa. No
presente trabalho, percebemos que os budistas utilizam a mídia, divulgando as
suas visitas aos dirigentes políticos de países do Primeiro Mundo, a fim de, como
já dissemos, difundir o pensamento alusivo à sua religião. É interessante para
percebermos a representação social do budismo na cultura nacional o dizer de
Thompson (op. cit. p.152), que transcrevemos Muitas das formas culturais do mundo de hoje, em vários graus de extensão, são culturas híbridas em que diferentes valores, crenças e práticas se entrelaçam profundamente. (grifo nosso)
Apesar de acreditar que a globalização da comunicação através da mídia
eletrônica tenha promovido novas formas de dominação, o autor procura estudar
como se deu esse processo. No caso desta dissertação em especial, no qual a
análise tem basicamente por corpus cinco revistas brasileiras, necessário se faz
delimitar algumas questões:
a) quando se veiculam na mídia do Brasil, matérias cujo conteúdo diz respeito
a uma religião oriental, como é o caso do budismo, por si só já temos de
pensar na idéia de mistura cultural, a mestiçagem já falada, a cultura
híbrida.
Na matéria de Época (p. 78), podemos ver um traço relevante para a
representação social do budismo, no que concerne a esse hibridismo dos valores
culturais: (...) cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam
práticas budistas com suas próprias crenças.
Nessa reportagem (p. 79), o já mencionado cientista da religião Frank
Usarski, da Pontifícia Universidade Católica – PUC – de São Paulo e organizador
do livro O budismo no Brasil, editora Lorosae, fala a respeito do assunto: Nas
estatísticas, não se sabe até que grau o entrevistado segue sua fé (no budismo)
de maneira exclusiva ou em combinação com outras doutrinas e práticas.
Questionada sobre sua denominação religiosa, a advogada presbiteriana e
praticante regular do budismo, Perside Guimarães, responde: O budismo é uma
religião se você quiser que seja. É também uma filosofia e ciência;
b) nesse sentido, não se representa uma ideologia religiosa e portanto,
cultural, que seja dominante, nem que seja oriunda de um pensamento
hegemônico. Ocorre justamente o contrário: no Brasil, de maioria católica,
estão sendo veiculadas matérias que abordam o budismo, religião que
emergiu no Oriente, mais precisamente na Ásia Central e que somente
chegou no Ocidente no século XIX, via imigrantes chineses e japoneses;
c) aos budistas não interessa se quem veicula essas matérias é uma revista
americana, ou tibetana, ou brasileira, o que importa é se falar em budismo.
Esse é, pois, o grande recurso que a globalização da comunicação oferece
aos líderes dessa crença.
Ainda em Thompson (op. cit. p. 153), encontramos que os processos de
recepção, interpretação e apropriação das mensagens da mídia são muito mais
complicados do que pressupõe o argumento de Schiller (sobre o imperialismo
cultural americano). Continua afirmando que diferentes grupos (étnicos) têm diferentes maneiras de entender um programa, diferentes maneiras de “negociar” seu conteúdo simbólico. O processo de recepção não tem sentido único, mas é antes um encontro criativo entre uma complexa e estruturada forma simbólica, de um lado, e indivíduos que pertencem a grupos particulares e que trazem seus próprios recursos e pressuposições para os apoiar na atividade de interpretação, de outro lado.
Thompson está mencionando de maneira mais enfática a mídia televisiva,
mas pensamos ser totalmente possível fazer as mesmas considerações com
relação às revistas explicitadas neste trabalho. O autor fala de grupos étnicos, e
por isso entendemos que a recepção também é completamente individualizada
entre os brasileiros, como receptores de valores culturais, visto que as pessoas
irão incorporar de modos distintos os preceitos e as práticas budistas. Alguns irão
procurar um aprofundamento numa determinada corrente, outros somente irão
apreender conceitos veiculados na mídia, sem nenhuma preocupação em
diferenciar uma corrente da outra. Para tantos outros, o budismo significará
apenas um recurso de moda, para se enquadrar numa “onda esotérica”, na qual
as religiões orientais são muitas vezes representadas, propiciando a confecção de
artigos industriais, como camisas, pulseiras, brincos, cordões e tudo o que pode
ser apropriado por meio do mercado cultural. Thompson (op. cit. p. 154-158)
acredita, então, que há uma difusão globalizada. Para nós, o que interessa é que
o conteúdo das matérias das revistas tem a sua apropriação localizada no espaço
brasileiro. E acreditamos, ainda, que essa apropriação torna-se especificamente
individualizada, confirmando-se assim o caráter de hibridismo ainda mais pulsante
no que concerne ao estudo do simbolismo cultural.
Concluindo com Thompson (op. cit. p.153), os indivíduos dão sentido às
mensagens de uma forma ativa, as adotam com atitudes diversas e as usam
diferentemente no curso de suas vidas. Os enunciados transcritos nas revistas, a
respeito da apropriação do budismo por parte dos entrevistados, permitem que
percebamos como não se pode falar numa “identidade budista” única, passível de
uma análise, cuja categoria se torne fechada. A nosso ver, essa característica
múltipla, multifacetada faz parte do próprio processo de globalização.
3.2. Vedetização
Iremos abordar outra questão que, para nós, está intrinsecamente
relacionada à mídia e que ajudará a compreender a representação do budismo
veiculada nas revistas: a vedetização, considerada aqui como a associação das
matérias sobre a religião budista com alguma pessoa famosa no meio social.
Edgar Morin (1987, p. 28), ao tratar da indústria cultural (e por isso o
citamos por acreditar na possibilidade de aproximar seu pensamento ao nosso
estudo sobre a mídia escrita), menciona que o filme deve, cada vez, encontrar o seu público, e, acima de tudo deve tentar, cada vez, uma síntese difícil do padrão e do original: o padrão se beneficia do sucesso, mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar. É por isso que o cinema procura a vedete que une o arquétipo ao individual: a partir daí, compreende-se que a vedete seja o melhor anti-risco da cultura de massa, e, principalmente, do cinema.
Referindo-se em primeiro plano à política e logo ao cinema, Roger-Gérard
Schwartzenberg (1978, p. 7) fala acerca do star system, algo como o ‘sistema de
estrelas’, em que o que todos ambicionam é o personagem central, o papel
principal. Para esse autor antigamente, era o filme que impunha sua forma ao intérprete. Hoje, a estrela reduz a simples suporte ou veículo qualquer espetáculo em se apresente. Já não se avalia um ator pelo seu talento ao interpretar o filme. Avalia-se o filme por sua aptidão a favorecer o ator.
O tema budismo não escapou das telas de Hollywood e, obviamente, as
produções americanas chegaram ao mercado brasileiro. As conclusões de Morin
e Schwartzenberg propostas acima são confirmadas se analisamos alguns desses
filmes:
a) lançado em 1994 pela Top Tape, “O pequeno Buda” (Little Buddha) conta
a história de um monge que morre em Butão e que se reencarna em três
crianças, as quais viviam em locais diferentes. A direção é de Bernardo
Bertolucci, consagrado e respeitado no meio cinematográfico. A ênfase
maior é dada (inclusive na capa da fita para vídeo) para os atores
principais: Keanu Reeves, que faz o papel de Buda já adulto, e Bridget
Fonda, mãe de uma das crianças. No ano de lançamento, ambos eram do
primeiro time de atores da indústria cinematográfica americana e, com
certeza, chamavam a atenção do público apenas por participar do filme;
b) filme de Jean-Jacques Annaud (o mesmo diretor de “O nome da Rosa”), em
1997, houve a produção “Sete anos no Tibete” (Seven years in Tibet – Top
Tape), inspirado em um episódio real que conta a trajetória de uma alpinista
que buscava escalar um dos picos mais altos do Himalaia, mas que foi
capturado pelos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Depois de conseguir
fugir encontra-se com a figura do jovem Dalai Lama, com o qual convive por
sete anos. Quem vive esse papel principal é o ator Brad Pitt, até hoje um
dos mais famosos astros de Hollywood, que na época estrelara outro
grande sucesso: o filme “Seven – Os sete crimes capitais” (informação
estampada na capa da fita de vídeo de “Sete anos no Tibete”, em que
também vemos a foto de Pitt junto ao ator que interpreta o monge. A revista
Budismo (2004, p. 18) indica o filme para quem “quer conhecer um pouco
das tradições do budismo tibetano”).
c) Também em 1997, o grupo “Paris Filmes” lança “Kundun”, que traz a
história baseada na vida do próprio Dalai Lama e que teve quatro
indicações para o Oscar 98. O diretor foi o renomado Martin Scorsese.
Fator relevante que foi possível constatar é que o Dalai Lama admite a
presença dos famosos transitando nos meios budistas – talvez por ter consciência
da importância disso para suas causas. O exemplo mais marcante é a
participação recorrente do ator americano Richard Gere. Com uma atuação ativa
na difusão do budismo, patrocinou a publicação de livros do Dalai, através da
Fundação Gere. Entre eles: Opening the eye of new awareness, The meaning of
life from a Buddhist perspective e O mundo do Budismo Tibetano (2001), no qual
foi o responsável pelo prefácio. Neste, Gere conclui A Fundação Gere orgulha-se em se associar a Sua Santidade e a sua mensagem de responsabilidade universal e de paz, e tem o prazer de apoiar a Wisdom Publications em seus esforços para promover esses ideais. Que este livro possa ajudar a trazer felicidade e causas de felicidade futura para todos os seres. (p. 10)
Morin (op. cit. p. 105) fala que No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário, situam-se as vedetes da grande imprensa, os olimpianos modernos. Esses olimpianos não são apenas os astros de cinema, mas também os campeões, príncipes, reis, playboys, exploradores, artistas célebres (...)
Pode-se perceber que a mídia escrita – por meio das revistas ora
estudadas –também lança mão desse recurso, que aqui estamos nos referindo
como vedetização. Morin (op. cit. p. 35) igualmente faz menção a semanários
como o Paris-Match ou Life assinalando que tendem sistematicamente ao
ecletismo e que num mesmo número há espiritualidade e erotismo, religião,
esportes, humor, política, jogos, viagens, exploração, arte, vida prática de vedetes
ou princesas, etc.
Para Douglas Kellner (2006, p. 126): Na cultura da mídia globalizada, as celebridades são as divindades fabricadas e administradas. São ícones midiáticos, e deuses e deusas da vida cotidiana. Para se tornar uma celebridade, é necessário o reconhecimento como uma estrela o campo do espetáculo, seja com esportes, entretenimento, negócios ou política.
Podemos fazer alusão a aparições de pessoas conhecidas na mídia que se
atrelam ao budismo.
Isto é, de 1º de junho de 2005, cuja matéria de capa fala da relação positiva
entre fé e saúde, também associa uma pessoa do meio artístico brasileiro com o
budismo: a atriz Lucélia Santos, a qual aparece numa foto, com a seguinte fala:
Filosofia – Lucélia é budista e faz ioga para cuidar da saúde da mente e do corpo
(p. 78).
A revista Cult, de janeiro de 2005 (p. 8-12), faz uma entrevista com a
apresentadora Soninha, que declara expressamente de sua conversão ao
budismo, a propósito do lançamento de seu livro “Por que sou budista?”, da
editora Jaboticaba. Segue trecho em que ela fala sobre o assunto (p. 12): O
budismo não prescinde de lógica, você examina e vê se faz sentido, testa na sua
experiência, se não faz não adota, só é preciso ter uma linha de conduta.
Num suplemento do Jornal O Globo, de 08/02/05, denominado Megazine,
há uma seção sobre crítica musical, assinada por Bruno Porto, em que é mostrado
o CD “Mantra Mix” (com o Dalai Lama na capa), trazendo os seguintes dizeres: Mix solidário – o CD duplo “Mantra Mix (Indie, R$ 29) reúne faixas de pesos-pesados do rock, do pop e da eletrônica como REM, David Byrne, Madonna, Chemical Brothers e Moby. Parte da renda do disco vai para uma organização que ajuda refugiados tibetanos. (p. 05)
Tal como a sinopse informa, astros internacionais da música associam sua
imagem à causa do Tibete e à pessoa do Dalai Lama.
Cabe ressaltar que outros veículos midiáticos também abordaram o tema
budismo. Para citarmos apenas dois exemplos, temos:
a) a telenovela Começar de novo, da Rede Globo, exibida entre agosto de 2004 a
abril de 2005, fez apologia do budismo com o personagem interpretado por Cássio
Gabus Mendes, o qual chamava-se ‘Sidarta’, mesmo nome do príncipe fundador
da religião. A referência tinha um cunho jocoso uma vez que Sidarta era filho do
‘Vô Doidão’ e da ‘Vó Doidona’, interpretados respectivamente por Luís Gustavo e
Marília Pêra, sobre os quais havia uma representação de prática da ‘onda
esotérica’, sempre em tom de comédia.
b) o programa semanal Fantástico, também da Rede Globo, fez uma síntese do
budismo na série de matérias intitulada Êxtase – Ritos Sagrados, exibida em 06
de novembro de 2005. Acerca da vida do fundador da religião, a monja Sherab –
brasileira nascida no Amapá que participava de ritos no Templo da Terra Pura, na
cidade de Três Coroas, no Rio Grande do Sul – contou que (...) Sidarta se iluminou e começou a ensinar os seguintes princípios aos discípulos: Estamos presos em um ciclo de existências. Então nós
morremos e renascemos múltiplas vezes, devido a um estado (...) de ‘ignorância’, que significa não reconhecer o que é a nossa verdadeira natureza, ou verdadeira essência. O que nos impede de ver essa natureza são o que nós chamamos de ‘venenos da mente’, ou ‘paixões’: orgulho, inveja, ciúme, desejo, apego, aversão, ódio, raiva.
Buscaremos nos pautar nas aludidas bases teóricas e nesse processo
hermenêutico na análise do corpus de nossa dissertação.
4. Da análise 4.1. O budismo espetacularizado
Vemos em Época (p. 75) a foto do já mencionado ator, Richard Gere, com
a legenda: Richard Gere – ajuda financeira. Também na mesma página, mais dois
astros americanos ilustram a matéria com fotos: Sharon Stone (apoio ao Tibete) e
Brad Pitt (filme com o Dalai Lama), referindo-se ao citado “Sete anos no Tibete”.
Desse modo, a revista Época não escapa da dinâmica do ecletismo garantindo
uma maneira de se construir o sentido: fala-se sobre a religião budista, mas com
uma ‘pitada’ de erotismo, simbolizado por célebres figuras que protagonizaram
cenas sensuais nos filmes hollywoodianos, tais como Gere, Stone e Pitt.
Nessa revista, retomando o tema, há uma outra matéria com o título “A
ascensão do budismo no Brasil”, que traz em um de seus enunciados (p. 79): Nos anos 90 a linha tibetana tornou-se mais popular, principalmente depois que o Dalai Lama recebeu o Nobel e da conversão de celebridades como o ator Richard Gere e Harrison Ford. No Brasil, atraiu famosos como as atrizes Cristiane Torloni, Cláudia Raia e Letícia Spiller.
De igual forma, há fotos de Cristiane Torloni e Letícia Spiller, esta em
posição de meditação, sentada ao estilo oriental (com as pernas cruzadas), tendo
como cenário o que parece ser um templo budista.
A revista Budismo (2004) traz, à p. 25, um Box, em cujo título se lê:
Adeptos famosos, seguido de uma lista, em que são citados: Betty Faria,
Christiane Torloni, Edson Celulari e Cláudia Raia, Gilberto Gil, Maitê Proença,
Maurício Mattar, Patrícia Marx, Patrícia Travassos, Paulo Ricardo, Rita Lee, Sílvia
Pfeifer, Soninha e Odete Lara.
A cantora Rita Lee ilustra a página, em que diz: Ontem fui dormir e fiquei
emocionada quando pensei: puxa, que coisa bonita, estou dormindo na mesma
cidade que o Dalai Lama! (falando sobre a visita do monge ao Brasil, em 1999).
Já citado em diversos momentos no decorrer dessa dissertação, Tenzin
Gyatso, o 14º Dalai Lama, parece ser a figura mais importante para conseguirmos
analisar culturalmente a representação social da religião budista veiculada na
mídia brasileira.
A capa de Época estampa os dizeres: Como o líder espiritual do Tibete
atrai milhões de pessoas que buscam a paz interior. Há uma estratégia de
captação do leitor da revista. As opções lexicais querem denotar o suntuoso, as
proporções exageradas. O Dalai atrai. O verbo atrair, por si só, já garante a
atualização do sentido de algo que quase não se pode evitar, já que promove a
aproximação, conquista a atenção, desperta o interesse e provoca movimento,
atitude. E segundo a revista, isso não se dá apenas com alguns indivíduos, mas
com milhões de pessoas. O substantivo milhões igualmente expressa grandeza,
magnitude. E enunciado implica a pressuposição de não se tratar de um
acontecimento isolado ou sem expressão, mas de um fenômeno com números
densos. A seguir, temos a oração adjetiva que buscam a paz interior a qual se
converte num convite: “Se você busca a paz interior, leia essa entrevista com o
Dalai Lama!”.
Num segundo enunciado, na mesma capa, temos Por que o budismo
cresce no Brasil e conquista, mais e mais, fiéis de outras religiões, prometendo
explicar o motivo do fenômeno e trazendo explicitamente duas afirmações, que
funcionam como operadores argumentativos: cresce no Brasil e conquista, mais e
mais, fiéis de outras religiões.
Na Introdução deste trabalho, mencionamos que houve no cômputo do
Censo do IBGE do ano 2000, um aumento de 4% do número absoluto daqueles
que se denominaram budistas, com relação à estimativa anterior. Dissemos ainda,
que o número efetivo de membros da religião não seria o foco central de nossa
pesquisa, mas sim, de que maneira poderíamos caracterizá-la como um
‘fenômeno-produto’ da mídia. Época confirma isso, na medida em que afirma que
o budismo cresce no Brasil, não importando informar em que proporções. Basta
apenas dizer que cresce. Ainda com relação a números, à p. 71, menciona-se que
aqui, o líder já vendeu quase 900 mil exemplares de cerca de 30 títulos nos
últimos quatro anos, proporção considerável num país em que as pessoas lêem
pouco e numa época em que o livro tem que brigar por espaço, com outros
suportes, como a TV e a internet. Para a revista, não importa o que isso significa
em termos quantitativos, mas, sim, importa ser incisiva no fato de que a religião
cresce.
Retomando o último enunciado, o advérbio mais e mais pontua o sentido de
uma ‘continuação’. Não há só a conquista de fiéis de outras religiões, mas isso
ocorre num progressivo movimento. Ocorre, de certo modo, uma contradição entre
o esse enunciado da capa e outro emitido pelo Dalai Lama no interior da matéria,
ao afirmar que Não quero converter ninguém ao budismo (o qual será analisado
oportunamente), uma vez que, ao invés de querer conquistar fiéis, o monge
assevera que cada indivíduo tem sua própria disposição mental e deveria escolher
uma religião apropriada a ela (p. 73). Isso nos remete, textualmente, mais à
questão da tolerância a outros credos, do que à conversão ao budismo.
Atentamos para o fato de que para a revista importa construir a representação de
um fenômeno espetacularizado, cuja grande estrela é o próprio monge budista.
Sobre ele, as descrições nas revistas estudadas não são contrastantes, ao
contrário, propõem idéias recorrentes. Em Época (p.71): Sua presença é menos etérea do que se esperaria de alguém apontado como uma encarnação de Buda. Os gestos são entusiasmados, o aperto de mão é enérgico e a risada sem censura faz até o que não tem graça soar divertido.
Já na Superinteressante (ago. 2001, p. 48), vemos: Ele tem o riso fácil, a cabeça raspada, usa óculos enormes (...). É alegre e curioso. Demonstra querer saber de tudo como se, aos 66 anos, ainda fosse uma criança descobrindo o mundo. Inquire seus circundantes a todo momento.
Esse ar de alegria e “riso fácil” é ratificado se analisarmos o aspecto icônico
apresentado pela mídia. Percebemos que nas imagens em que o Dalai aparece, o
sorriso é uma constante: Época traz 11 fotos do monge, em oito ele está sorrindo:
capa, índice (p. 06), página 70 (inteira), duas da página 71, com o Papa João
Paulo II (p. 72), numa conferência (p. 73) e na p. 76, ao lado de alguns de seus
preceitos; a Superinteressante (ago. 2001) expõe menos fotos, são cinco ao
todo. Todavia, em três (capa, página 47 (inteira) e p. 49) ele esboça um semblante
sorridente. O mesmo gesto ele tem nas duas fotos em que aparece na revista
Budismo (2004).
4. 2. As isotopias nas revistas
Em itens passados já tivemos o cuidado de promover análises a respeito da
representação do budismo na mídia. Nesse ponto que agora iniciamos, mais detidamente
iremos abordar determinados enunciados (alguns serão retomados, numa perspectiva
diferente), lançando nosso olhar interpretativo, com o fim de verificarmos de que modo
podem se operar isotopias. Aqui, nosso foco é basicamente o corpus selecionado, muito
embora observemos outros suportes, a título de melhor aclarar nossas análises.
4.2.1. Sincretismo / Hibridismo
Consideramos nessa pesquisa a noção de sincretismo enquanto a fusão e / ou
conciliação de religiões e o desdobramento de suas tradições.
Na revista Época, p. 78, lemos que:
A cada ano, novos templos e centros das mais diversas linhagens são abertos no país. Há desde opções mais intelectualizadas, na linha zen, até opções mais devocionais, que privilegiam a figura do mestre ou lama (como na vertente tibetana), até o mais popular budismo de resultados, voltado para a solução de problemas de saúde ou financeiros. São 246 mil seguidores segundo o IBGE, número três vezes maior que o de judeus e duas vezes maior que o de seguidores do candomblé. Mais que isso, porém, cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam práticas budistas com suas próprias crenças. (grifos nossos)
A atmosfera budista é criada na matéria, pelo caráter narrativo que passa a se
instaurar. No nível figurativo, percebemos a construção desse sentido, com a utilização dos
termos templos, centros, mestre ou lama. Para a autora, é importante denotar uma idéia de
que templos e centros são erigidos, não de forma esporádica, mas A cada ano, ou seja, isso
garante o caráter espetacular do tema em questão.
Segundo GREIMAS e COURTÉS (1979, p. 398), no interior do nível figurativo do
discurso, há dois patamares, o da figuração e o da iconização. Aquele se refere à
disposição, ao longo do discurso, de um conjunto de figuras; este busca, num estágio mais
avançado, “vestir” essas figuras, torná-las semelhantes à “realidade”, criando a ilusão
referencial.
Particular ao budismo é a figura do lama, ou mestre (como a própria matéria
explica). Lama seria, pois, o instrutor dos ensinamentos, aquele que transmitiria aos
devotos as práticas alusivas a cada corrente, o que não exclui a possibilidade de professores
leigos, sem professar os votos necessários para se tornar um lama (verificamos essa
atividade em textos de outras revistas, conforme veremos adiante). Essas palavras fazem
parte do cotidiano daqueles que conhecem o budismo e a utilização delas na figuratização,
certamente está inscrita na estratégia discursiva da enunciadora. No aspecto icônico, que
busca justamente essa ‘corporalização’ de uma figura (no caso, do lama) há uma foto de
quase meia página do lama brasileiro Michel Rimpoche, um rapaz de 21 anos que, aos 12,
foi indicado como a encarnação um importante mestre tibetano (Época, p. 78). A
encarnação e, com ela, a reencarnação são igualmente termos relevantes para a
caracterização temática, uma vez que são abordadas recorrentemente no universo budista.
O que nos faz perceber a presença de sincretismo, concebido enquanto a fusão e/ou
conciliação de tradições religiosas, é a representação da pluralidade de ‘budismos’ no
Brasil: A cada ano, novos templos e centros das mais diversas linhagens são abertos no
país. Discursivamente, em seu próprio interior, a religião é representada como sendo não
pura, não decretando dogmas inquebrantáveis a serem obedecidos por todos que a seguem;
leva-se o leitor a verificar a idéia de diversas linhagens. Essa diversidade precisa ser
mostrada, no que tange à representação social do budismo na mídia. Opções são dadas, com
o uso de uma linguagem descontraída, que garante a proximidade com o leitor, podendo se
perceber algo do gênero: “Veja, o budismo traz a você várias alternativas, escolha a sua,
porque é muito fácil!”: zen, tibetano ou budismo de resultados. O artifício da linguagem
informal é muito usado em publicidades, em que é preciso levar as pessoas a consumir um
produto. De algum modo, a autora do artigo da revista quase se aproxima desses recursos
de persuasão publicitária, com essas múltiplas ofertas no texto.
Outro aspecto que permite-nos observar a isotopia do sincretismo é o enunciado
cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam práticas budistas com suas
próprias crenças. O próprio verbo misturar que remete o leitor ao significado de
heterogeneidade, diversidade, fusão. Qual é a identidade do religioso, dito budista, no
Brasil? Talvez não possamos ter, ao certo, uma resposta para isso, como já citado no
presente trabalho. Os atos de meditar ou de ler o Dhammapada (livro de aforismas de
Buda) não são um certificado de pureza religiosa, uma vez que os indivíduos, na sua
natureza multifacetada, não vêem inconveniente em misturar isso com aquilo que
acreditam na sua religião declarada ‘oficialmente’. O que é confirmado à página 79 de
Época: Nas estatísticas, não se sabe até que grau o entrevistado segue sua fé de maneira
exclusiva ou em combinação com outras doutrinas e práticas, esclarece Usarski, da PUC.
(Frank Usarski, professor da PUC de São Paulo).
O substantivo grau, em si mesmo, pressupõe níveis, os quais, obviamente, não
podem ser mensurados quando se menciona o tema religião. Também no enunciado aparece
o adjetivo exclusiva. Questionamos, o que pode ser chamado ‘exclusivo’ no que concerne a
esse tema? O ser humano, na sua complexidade psicológica, não raro faz inúmeros
questionamentos sobre a dimensão religiosa. Não acreditamos ser possível professar
unicamente um pensamento religioso, muito embora, socialmente queiramos nos colocar
em categorias específicas, pela ilusão de uma identidade única.
Observamos o termo combinação, o qual se aproxima mais especificamente à noção
de sincretismo. O leitor vislumbra a possibilidade de atrelar diferentes modos de pensar,
ainda que possam parecer contraditórios (sobretudo se a fé ‘oficial’ se contrapuser aos
preceitos budistas). À continuação (Época, p. 79), lemos:
A advogada Perside Guimarães, por exemplo, foi presbiteriana por anos e hoje é praticante regular do budismo, mas hesita quando interrogada sobre sua denominação. “O budismo é uma religião se quiser que seja. É também filosofia e ciência”.
A entrevistada presbiteriana / budista hesita sobre a sua denominação e se justifica
ao classificar o budismo nas categorias da filosofia e da ciência. É quase que uma tentativa
de se sentir absolvida (caso seja pecado ser budista), pois, em seu discurso, demonstra sua
crença de que possa não ser religião. Independentemente do sentido que possamos inferir
com essa análise, textualmente se configura a reiteração do traço semântico do hibridismo,
do religioso sincrético, o qual não pode ter efetivamente apenas uma nomenclatura, mas é
inserido num patamar novo, do diverso.
Outro traço marcante, analisado na perspectiva do sincretismo, pode ser
representado a seguir (Época, p. 79):
Noções budistas, como a que enfatiza a possibilidade de aperfeiçoamento a partir da iniciativa individual, casam com o estilo de vida contemporâneo. A valorização da experiência pessoal era enfatizada pelo próprio Buda. Segundo o fundador da religião, cada pessoa deveria experimentar na pele o que ele dizia e não apenas aceitar as idéias do mestre como verdades absolutas.
Nesse sentido, são emparelhados dois momentos histórico-ideológicos
completamente distintos: o estilo de vida contemporâneo (leia-se o estilo ocidental, a que a
autora do artigo faz referência, visto ser ela mesma ocidental, falando para o público
brasileiro) e o da época do fundador da religião. No plano figurativo, a presença de Buda se
mostra um importante recurso de captação do leitor. Representa-se que aquilo que foi
ensinado por ele continua atualizado até os dias de hoje, entretanto sejam necessárias
‘adaptações’ ao período histórico pelo qual passamos. Semanticamente, acreditamos que
isso só seja plausível diante da noção de sincretismo. O ocidental, inserido no século XXI,
‘experimentando’, ou seja, vivenciando, trazendo para sua realidade cotidiana, as prédicas
do ‘mestre’ maior do budismo. Evidentemente, essa prática não é realizada de modo
original, puro, exatamente como o fez Buda, há 2.400 anos atrás, mas numa manifestação
sincrética e híbrida.
A capa da revista Isto é tem como título O BUDISMO SAI DO TEMPLO, também
apresentando como processo de figuratização a palavra templo. Acima, há uma das tantas
representações da figura de Buda, completando esse processo em seu aspecto icônico,
associando o leitor ao universo cultural da religião.
Em seguida, um subtítulo é apresentado:
A religião fica mais próxima da realidade brasileira, se engaja em projetos sociais, ganha
mais adeptos e abrirá, no Brasil, a primeira universidade budista da América Latina. No
interior da matéria (p. 49), os autores Ana Carvalho e Camilo Vannuchi falam que
No Brasil, o budismo encontrou o “caminho do meio”. Além de não excluir seguidores de outras religiões e não ser fundamentalista, ele sai do monastério e começa a se “abrasileirar”, sem, no entanto, 2222222abrir mão de seus preceitos.
‘Caminho do meio’ é uma alusão a uma das prédicas budistas, referindo-se a
alcançar o equilíbrio. Há uma forte estratégia de instituição do leitor-modelo, no sentido de
fazê-lo compreender que o budismo está irremediavelmente na cultura brasileira e que ele
aceita todos os tipos de pessoas, pois não exclui seguidores de outras religiões, pois não é
fundamentalista. Em termos históricos, Eco (1998, p. 111) diz que o fundamentalismo é um
princípio hermenêutico ligado à interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo
ocidental moderno nasce nos ambientes protestantes dos Estados Unidos do século XIX.
Atualmente, o termo fundamentalismo teve seu significado ampliado. Concebe-se como
fundamentalista qualquer movimento ou corrente supostamente conservadora ou integrista,
que visa à obediência irrestrita a princípios básicos. No enunciado acima expresso, faz-se
menção, obviamente, a um fundamentalismo religioso.
Ao aceitar indivíduos que hipoteticamente pertencem a outro credo, firma-se a idéia
da convivência harmônica entre os não-pares e, conseqüentemente, daqueles que são
diferentes, por isso, entendemos ser esse um caminho semântico de como o sincretismo é
representado.
Há a representação de uma religião que sai do monastério, figura comum a temas
religiosos, que, especificamente, constrói o sentido de isolamento e de introspecção, para se
“abrasileirar”, podendo-se fazer alusão ao senso comum das idéias de ‘alegria’ e
‘vivacidade’. O caráter de hibridismo, no que tange à identidade cultural e, mais
detidamente, religiosa, faz-se, necessariamente, presente. Imbricadas ficam as culturas
budista e brasileira, pois, ao se abrasileirar, o budismo passa a ter um pouco do país, apesar
de não abrir mão de seus preceitos. Mais uma vez percebemos a isotopia do sincrético, sem
a qual não se poderia entender a representação social da religião na mídia ora estudada.
O verbal continua a determinar o sentido da leitura que, figurativamente, aponta:
Majoritário na China, no Japão, no Tibete e no Sri Lanka, o budismo se alastra no país do
ecumenismo, quase 2.400 anos após sua formação (Isto é, p. 50). A seqüência dos países
faz com que o leitor primeiramente se distancie do budismo, fazendo-o parecer algo
distante de nossa ‘realidade’. Entretanto, em seguida, os autores usam dizem que ele se
alastra no Brasil. Não apenas cresce, alastra-se, numa escolha lexical que denota o exagero
e, ao mesmo tempo, a proximidade: ‘O budismo está aqui’, ‘diz’ o leitor-modelo. China,
Japão, Tibete, Sri Lanka e Brasil são postos, discursivamente, no mesmo patamar. Com
referência à opção do termo ecumenismo, nitidamente vemos o intuito de trazer ao leitor o
tema de “diferentes tradições religiosas”. Em termos semânticos, ecumenismo é um
movimento favorável à união de igrejas cristãs. Ou seja, no país que já tolerava a co-
existência entre diferentes credos cristãos, o budismo consegue seu lugar.
Igualmente na p. 50, da revista Isto é, lemos:
O censo realizado em 2000 pelo IBGE aponta que o budismo é a religião de 246 mil brasileiros. Desses, apenas 81 mil se declararam de cor amarela, o que reflete seu poder de conversão. Se o número absoluto cresceu 4% na última década, os budistas que não se identificam como orientais saltaram cerca de 13% no mesmo período.
A nosso ver, a leitura proposta enfatiza também a heterogeneidade das identidades.
O brasileiro, com uma forte tradição cristã (com a igreja católica, as protestantes e, mais
recentemente, as evangélicas), adere a preceitos budistas, embora, como já afirmado, não se
possa mensurar o grau dessa conversão, pois não se sabe até que ponto um cristão
permanece com suas crenças, executando ao mesmo tempo práticas, tal como a meditação,
lendo livros sobre temas budistas, como os do Dalai Lama, ou até mesmo freqüentando
templos desse credo. O fato de ter origem oriental não é levado em conta, uma vez que as
raças estão perpassadas umas pelas outras. Não se pode categorizar a religião das pessoas,
levando em consideração apenas as suas tradições ou as de seus ancestrais. O cenário
mundial (e o brasileiro também) requer um olhar sob o prisma daquilo que é cindido e
fragmentado, e as noções de pureza, originalidade dão lugar a essas novas concepções.
Já mencionado na matéria de Época, Frank Usarski (PUC-SP) aponta em Isto é (p.
50) que: Metade das pessoas que se consideram sem religião se aproxima muito da
filosofia budista. Religião? Filosofia? O enunciado do professor Usarski constrói um
sentido de que mesmo sem religião você pode ser budista. Discursivamente é apontado um
novo budista: aquele que talvez não professe nenhuma crença. Desse modo, verificamos
mais uma forma de representação disso que estamos chamando de sincretismo. Não é
necessário ser oriental, nem abandonar suas antigas crenças, nem mesmo ter uma religião
para se aproximar dos ensinamentos de Buda, segundo o modo de ler, instituído nos textos
das revistas.
Na seqüência, lemos em Isto é (p. 50): O resultado desse crescimento, que faz ultrapassar a casa do meio milhão de simpatizantes e adeptos, é a inevitável ocidentalização da doutrina e uma evidente preocupação em transpor as paredes dos templos e assumir práticas cada vez mais engajadas de inserção na comunidade. Historicamente identificado como religião individual e contemplativa – já que assume como princípio a idéia de que cada um é responsável por sua evolução –, o budismo brasileiro ganha força ao lançar projetos grandiosos que atendem às expectativas solidárias.
Nesse enunciado, o termo ocidentalização nos remete, quase que de modo
imediato, à idéia de globalização, em que tudo estaria interconectado. Nessa
perspectiva, para sobreviver, a religião também teria de se adequar ao modo de
vida ocidental, transpondo as paredes dos templos e se inserindo na comunidade.
Portanto, podemos inferir, textualmente, o sentido de que passa a existir um
budismo ‘abrasileirado’, mas com contornos não tão delineados e, por isso,
híbridos, já que ainda resta o princípio de que cada um é responsável por sua
evolução (isso continua prevalecendo na doutrina até os dias de hoje), entretanto
que passa também a assumir práticas solidárias. O discurso de solidariedade, que
tem grande circulação no Brasil, será mais detidamente analisado na abordagem
que nos propusemos acerca da isotopia da Alteridade / Compaixão.
Na mesma matéria (Isto é, p. 51), os autores mencionam que o caráter não proselitista do budismo é, talvez, o maior responsável por sua propagação no Ocidente. O especialista Frank Usarski considera a falta de compromisso com uma única doutrina a principal característica do budismo brasileiro. “Muitas vezes, o praticante freqüenta um templo durante um ou dois anos e volta a visitá-lo sem constrangimento. Milhares de brasileiros praticam meditação e adoram livros do Dalai Lama, mas continuam indo a missas ou cultos”, explica.
Semanticamente, prosélito é aquele indivíduo convertido a uma doutrina.
Esse caráter do brasileiro de não exclusividade a um só pensamento religioso
deve-se até certo ponto ao que Carvalho (1991, p. 4) disserta sobre a rejeição da
religião estabelecida, no caso, o catolicismo, acarretando a configuração de uma
tradição cultural nova, com seus padrões e estilos expressivos próprios (Carvalho,
op. cit. p. 6). Seguindo esse percurso, a relação entre a tradição religiosa budista e
a forma como o credo é assimilado no Brasil não pode ser entendida como algo
linear. Tradição no budismo e (Pós)Modernidade brasileira estão num estado de
interdependência e interpenetração, gerando, assim, identidades heterogêneas.
Por isso, vislumbra-se a possibilidade do cristão freqüente à missa que medita e lê
livros do Dalai nos quais invariavelmente são abordados temas que vão totalmente
de encontro aos dogmas católicos, como é o caso da reencarnação, somente para
citar um exemplo. Na fala do especialista Frank Usarski encontramos o sentido
construído sobre as bases do sincretismo, entendido enquanto a conciliação ou
fusão de tradições religiosas.
Isto é (p.51) traz uma entrevista com o monge Segyu Rinpoche. Assim ele
é descrito: Antônio Carlos nasceu em agosto de 1950, no Rio de Janeiro, numa família católica. (...)Mergulhou de cabeça na umbanda. (...) Em 1982 decidiu estudar budismo tibetano nos Estados Unidos (...) Atualmente, mora entre o Nepal e os Estados Unidos e está à frente de vários centros, inclusive um em Porto Alegre (...) falou a ISTOÉ sobre o abrasileiramento do budismo.
O monge assim fala: Sou totalmente favorável à adaptação dos ensinamentos do budismo à nossa cultura, sem alterar a sua essência. Trabalho muito nessa direção.
Esse abrasileiramento ou essa adaptação dos ensinamentos do budismo à
cultura brasileira são temas conhecidos e principalmente propostos pelo religioso.
Tal como o Dalai Lama e a monja Coen, ele demonstra consciência de que para a
religião ser difundida ela não pode se ‘fechar’ dentro dos templos e precisa, se
quiser alcançar as pessoas, adaptar-se a esse sujeito que tem como característica
marcante a heterogeneidade. Por outro lado, há a preocupação do religioso de o
budismo não perder sua essência, o que traz à tona a tensão entre a tradição (o
que pode ou não ser considerado original do budismo) e o sujeito multifacetado,
com sua identidade fragmentada, que não se pode rotular de modo pacífico e que
muitas vezes nem se admite um rótulo. Apesar desse jogo de forças antagônicas
expresso através do discurso, podemos inferir um sentido de que a religião não
pode ser entendida como algo exatamente fixado, delineado, estático.
Outro enunciado trazido pelos autores da matéria confere ao leitor a
construção do mesmo significado (Isto é, p. 52): Estima-se a existência de 160 grupos budistas no Brasil. Em alguns deles, a preocupação em adaptar os ensinamentos de Buda para a cultura ocidental é tamanha que há quem estude a tradução de orações e mantras para o português.
No interior da religião não se pode afirmar um estado de pureza, visto que
cada linhagem traz uma proposta diferente de interpretação e de vivência dos
preceitos contidos nessa fé. Outra característica que deve ser apontada é que não
há um único grande líder que rege todas as nomenclaturas budistas – cada grupo
do budismo tem sim um lama ou dirigente maior – mas não uma figura central
como a do Papa para o Catolicismo. Outro fator é que os membros das diferentes
correntes budistas promovem continuamente o diálogo entre si. Um exemplo
público disso foi a presença da monja Coen (zen-budista) no Ginásio do Ibirapuera
(São Paulo) quando da visita do Dalai Lama (budismo tibetano) ao Brasil, fato
ocorrido no dia 29 de abril de 2006.
O já citado lama brasileiro Segyu Rinpoche menciona que todas as pessoas
são Budas em potencial, o que oferece um plano de leitura que em outras
palavras, proporia ao leitor a seguinte idéia: ‘Você é uma pessoa comum e pode
vir a se tornar um Buda!’. Essa proposta tem um forte apelo de captação do
enunciatário. Ele se vê incluído na possibilidade de ser um ‘iluminado’ e isso já
cria uma atmosfera de simpatia pela religião.
Um interessante exemplo de como textualmente se dá essa isotopia do
hibridismo / sincretismo pode ser observado no trecho seguinte (Isto é, p. 53): “A meditação funciona como um fio terra. Tira o stress do corpo e da mente. É um antídoto para a tensão da nossa atividade”, conta o tenente Leonardo Nunes Barreto, 50 anos, que faz dois cursos no templo3e propõe inseri-lo na formação de oficiais.
Um dos ensinamentos difundidos pelo budismo é a meditação, a qual já traz
implicitamente em seu significado o ato de contemplação que proporcionaria um
estado de tranqüilidade. Já a profissão de policial militar (o tenente Barreto
aparece em foto no canto da página, fardado e em posição militar de descanso:
com as mãos para trás e as pernas levemente afastadas) nada tem de
contemplativa ou harmoniosa. Ao contrário, há no imaginário das pessoas a idéia
do policial truculento que tem de lançar mão da violência em seu trabalho. A fusão
budismo – polícia militar, outrora inimaginável, é estampada numa revista de
grande circulação nacional, demonstrando, icônica e discursivamente, que
significados tão diametralmente opostos podem se imbricar, apresentando o militar
meditativo.
Passemos agora a fazer considerações em torno da revista Budismo. À
página 24 há um pequeno box com o título: Para ser um budista. O que vale para
nosso estudo é o primeiro período: Mesmo quem já tem outra religião, pode se
tornar um, que continua a instituição do leitor-modelo, que pode ser caracterizado
como a apologia do híbrido, do sincrético, uma vez que não importa se é
professada uma fé, pois o budismo, segundo o enunciado, permite que esse leitor
torne-se seu praticante. No título é usada uma linguagem informal, quase como a
dos manuais: ‘Para ser um budista’ equivaler-se-ia a :‘Para acertar o relógio’, ‘Para
voltar ao menu’, trazendo um significado implícito de facilidade, simplicidade e até
mesmo comodidade. Dizendo de outro modo: ‘Leitor, veja como é fácil ser
3 O templo a que o excerto se refere é o Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu, no distrito de Vitória, no Espírito Santo, conforme cita a revista Isto é, p. 53.
budista!’, o que acaba gerando um tom, até certo ponto, mercadológico nesse
apelo. Ao lado desse box, observemos outra curta matéria (menos de meia
página), intitulada Mas o que o budismo tem de tão atraente? O articulador
sintático mas não traz consigo a idéia de oposição. O que se verifica é um sentido
afirmativo, de completa obviedade: o budismo é atraente, muito embora tenha sido
formulado um questionamento, a pergunta já oferece essa constatação. Ao longo
do texto (cujo autor não foi indicado) são apresentadas possíveis causas para
essa atração, como a que segue: Sem impor proibições, nem pregar conceitos
muito moralistas, o budismo possui uma doutrina bem realista, que enxerga o
sofrimento como algo intrínseco à existência humana. Denota-se nos enunciados
a mesma facilidade explicitada no trecho do parágrafo anterior, ao se negar a
concretização de temas que invariavelmente são particulares às religiões: as
proibições, o moralismo, aqui declarados de modo visivelmente pejorativo. Na
seqüência diz-se que Diferentemente de algumas religiões cristãs, o budismo não disputa fiéis e não estimula a fé cega (...) Os mestres budistas não procuram ser gurus. Eles acreditam que as pessoas não devem depender do monge, do lama ou do budismo para ter fé – devem se voltar para a espiritualidade por si só.
Novamente é construída uma forma de ler, que move a atualização
do texto para a noção de independência: não é necessário ter a presença de um
religioso budista para ser um praticante, diferentemente da figura do padre, que na
Igreja Católica é tido como o representante de Deus na terra e de quem os fiéis
dependem para ministrar os sacramentos e os rituais desta instituição. De acordo
com o enunciado, qualquer mortal poderia chegar a ‘iluminação’ preconizada por
Buda. No discurso dos dirigentes budistas, o sentido de se voltar para a
espiritualidade por si só é efetivamente reproduzido, como veremos com mais
detalhes no estudo da isotopia do diálogo inter-religioso.
4.2.2. Compaixão: a alteridade no budismo
Na perspectiva do nível temático, necessária se faz a abordagem da visão que o
budismo faz do ‘outro’, representada socialmente em nosso corpus. O Dalai Lama, em O
livro da Sabedoria (2000, p.91), fala sobre a importância de se conhecer o significado de
compaixão. Segundo o líder tibetano, ela
se baseia em uma clara aceitação ou reconhecimento de que os outros, como nós mesmos, querem a felicidade e têm o direito de superar o sofrimento. Com base nesse ponto, desenvolvemos algum tipo de interesse pelo bem-estar dos outros, independentemente da atitude deles para conosco. Isso é compaixão. (grifo nosso)
Nesse sentido, partindo do pressuposto de que compaixão é o interesse pelo bem-
estar dos outros, procuraremos perceber, por meio da análise do tema compaixão, como se
estabelece a isotopia da alteridade, nos textos estudados.
Algo que nos chama a atenção, é a quantidade grande de ocorrências desse tema
quando o budismo é tratado. Iniciando com a revista Época, p. 71, a autora Paula Pereira
cita que o Dalai Lama ‘arrebanha’ multidões em audiências públicas nas quais prega a paz,
ensinando preceitos do budismo a platéias lotadas e escrevendo livros sobre compaixão e
ética, que são best-sellers. À página 72, diz que ele Há anos repete as mesmas receitas
singelas de “desenvolver a compaixão pelos outros”. Dois os termos que implicam o
sentido de que o tema compaixão é recorrente: Há anos e repete. A escolha lexical pede ao
leitor para compreender que falar em compaixão é algo comum nos discursos do
representante budista. Não é um assunto novo, já que ele é ‘repetido’, ou seja, a
consideração do outro, segundo os ensinamentos da religião, é reiterada constantemente.
O tema está novamente explicitado em Época (p. 76), em nada menos que cinco
citações de Dalai Lama, o que nos permite apontar a isotopia da alteridade, pela estratégia
discursiva de fazer referência ao tema compaixão:
a) (...) A compaixão e o altruísmo nos trazem autoconfiança e paz mental. Nesse trecho, a
compaixão é associada ao altruísmo, o qual semanticamente passa pela abnegação, pela
tendência a se preocupar com o outro. Interessante é o fato de os dois conceitos, que se
referem àquilo que vemos no outro, relacionarem-se, conforme a visão do religioso, com a
autoconfiança, que é um sentimento ligado à própria pessoa. Existe, em seu discurso, uma
inversão: ‘Olhe para o outro, entretanto isso não será benéfico para aquele que você lança o
olhar, mas para si mesmo.’ Essa temática de ‘amor ao próximo’ não é privilégio do
budismo e sim do imaginário das religiões e o modo como são dispostas as palavras garante
a formação dessa classe de leitura.
b) Se não puder ajudar, ao menos não faça mal a outros: novamente a presença da isotopia
da alteridade, na qual está imbricada a compaixão. A dicotomia bem x mal está
representada pelos termos ajudar e mal. A constituição do sentido se opera na medida em
que o leitor deve inferir que o budismo prega o bem (se não puder ajudar) em detrimento
do mal (não faça mal a outros). Literalmente, o interesse pelo bem-estar do outro é citado.
c) Os ocidentais querem uma receita mágica para combater a raiva. Isso requer prática
constante de controle e compaixão. O enunciado faz sentido desde que nos remontemos ao
conceito de compaixão apontado acima pelo Dalai: ele menciona que devemos nos
interessar pelo bem dos outros, independentemente da atitude deles para conosco, isto é,
posso gradativamente vencer a raiva exercitando essa postura de aceitação. Todavia, para
isso é necessária a prática constante, incitando o leitor a construir um sentido de que no
budismo requer-se uma disciplina, pois não existe uma receita mágica. No nível figurativo,
são citados os ocidentais, nos quais há toda uma caracterização discursiva que promove a
apologia do ‘indivíduo pós-moderno’, daquele que vive no mundo da agilidade, em que
‘tempo é dinheiro’. A vida no ocidente é contrastada, implicitamente, por um não-dito que
nos remete ao modo de pensar oriental, em que a observação, a quietude, a serenidade
valem mais que a rapidez da informação e as constantes transformações culturais e sociais.
Em outras palavras, de certa forma o estilo ocidental precisaria ser ‘freado’ mediante um
controle e o exercício da compaixão.
d) Cada ato tem uma dimensão universal, por isso é preciso ter responsabilidade e
disposição para beneficiar os outros, em vez de cuidar apenas dos próprios interesses. Um
dos princípios do budismo é o da interdependência. Segundo ele, tudo no mundo estaria
relacionado, cada ato individual refletiria, pois, nas outras pessoas. Desse modo, o leitor é
interpelado a ter responsabilidade sobre os outros. O modo de produção do sentido
determina que suas ações e as dos semelhantes devem ser postas numa mesma dimensão,
visto que o leitor deve ser responsável. Contudo, isso não é suficiente, cabe ainda que se
tenha disposição para exercer a compaixão, já que ela implica um ato de benevolência.
e) A melhor forma de se aproximar da morte sem remorsos é agir de maneira responsável,
tendo compaixão pelos outros agora. Mais uma vez há a escolha lexical do termo
compaixão, atrelando-a a outro tema recorrente no que concerne às religiões: a morte. Aqui,
há uma forma de determinar a leitura por parte do enunciatário, na qual ele precisa ser
compassivo em vida, para não se arrepender na aproximação de sua morte. No budismo, até
que o discípulo se liberte dos desejos e da ignorância, não se livrará do incessante ciclo de
nascimentos e mortes. No Dhammapada – Caminho da Lei (2000, p. 34), dos aforismos
atribuídos ao próprio Buda, encontra-se uma relação com o enunciado acima exposto:
155. Aqueles que não levaram uma vida pura, disciplinada, que na juventude não recolheram as riquezas dos ensinamentos, perecem como velhas garças tristes às margens de um lago sem peixes.
Em Época (p. 77), ao final de sua entrevista, o Dalai Lama diz: (...) meu dia inteiro deveria ter sentido e ser útil para os outros. Toda a minha vida deveria ter esse propósito. É preciso servir de alguma maneira. E esse é apenas o primeiro passo para se tornar um Buda (risos).
Assim o monge conclui sua fala. Confere ao outro o sentido e meta da sua
própria existência. Faz alusão ao ‘serviço’. Servir às pessoas é um tema que faz
parte do imaginário religioso, o que o coloca num lugar do discurso: ao mesmo
tempo que se inclui no ato de ser útil, interpela o leitor a fazer o mesmo, uma vez
que ele afirma que É preciso servir de alguma maneira. Completa com a
informação de que esse é o primeiro passo para se tornar um Buda, tamanha a
importância do ato. A legenda contendo a palavra ‘risos’ também colabora no ato
interpretativo do leitor, demonstrando um ar de sutileza, intimidade, o que é
bastante presente nas representações icônica e textual do Dalai Lama.
Finalizando a análise de Época (p. 79), em matéria sobre A ascensão do
budismo no Brasil, Vera Andrada, psicóloga e autora da tese Conversão ao
Budismo Tibetano, afirma que as pessoas se interessam por itens como a
responsabilidade pelo meio ambiente, a ênfase na felicidade construída sobre
bases altruístas e o debate com as ciências. Há, pois, o atrelar da felicidade
conquistada em função do outro, pois ela está baseada no altruísmo. Constrói-se
o sentido de que, segundo a percepção budista, pode-se ser feliz se houver a
preocupação com os outros indivíduos. Isso funciona também como uma
interpelação. Assim sendo, o budismo encontra campo fértil em terras brasileiras,
principalmente levando-se em conta, que muitas vezes seu povo se auto-intitula
solidário.
No início da matéria Além do TEMPLO, veiculada em Isto é (p. 49), recorre-
se ao tema compaixão para se explicar a própria religião, visto que Sidarta
Gautama (assim os autores Ana Carvalho e Camilo Vannuchi redigiram o nome de
Buda) mostrava que todo sofrimento podia ser combatido com meditação,
moralidade, sabedoria e compaixão. Há, novamente, uma condução do leitor ao
seu lugar de interpretação: ‘Veja, todo sofrimento pode ser combatido, dentre
outras coisas, com a compaixão! Se você sofre, leia a matéria!’ O sofrimento é
inerente à existência, isso faz parte da doutrina budista (a que os budistas
chamam de a primeira ‘Nobre Verdade’) e a prática dos preceitos da religião (a
quarta ‘Nobre Verdade’) promoveria a cessação do sofrimento (a terceira ‘Nobre
Verdade’), que tem como causa o ‘desejo’ (a segunda ‘Nobre Verdade’). (Com
relação a nosso corpus, as Quatro Nobres Verdades foram explicadas na revista
Budismo (p. 27)).
É feita referência em Isto é (p. 50) à primeira universidade budista da
América Latina, com sede na cidade de Cotia, estado de São Paulo. Descreve-se
a postura ideológica da monja Sinceridade, superiora do monastério onde funciona
a instituição, retomando-se, a nosso ver, o discurso da ‘solidariedade’: Entre
outras motivações, a inauguração de uma universidade gratuita e acessível à
população de baixa renda responde ao propósito missionário da religiosa. Em
seguida, vem a fala da monja que confirmaria a representação proposta pelos
autores do texto: Desenvolvemos um projeto educativo com crianças e
adolescentes carentes e precisamos dar continuidade a esse trabalho.
É tecida uma caracterização do budismo associado à solidariedade também
à p. 53, quando são mencionados os trabalhos da Associação Brasil Soka Gakkai
Internacional (BSGI), que tem uma de suas revistas informativas analisada em
nossa pesquisa. Fala-se que entre outras ações, a entidade desenvolve cursos
gratuitos de alfabetização (...) e há dois anos, inaugurou em São Paulo a primeira
pré-escola budista do Brasil, hoje estendida às duas primeiras séries do ensino
fundamental. A educadora Dirce Ivamoto, diretora da Escola Soka do Brasil refere-
se, de igual modo ao tema da alteridade, quando aponta que o budismo ensina
que não devemos causar sofrimento aos outros. Na escola, colocamos isso em
prática ao evitar castigos, comparações ou competições.
Há, nesse mesmo sentido de se formar uma isotopia da Alteridade /
Compaixão, enunciados na revista Superinteressante que merecem nossa
análise. Nela, o Dalai Lama é a figura central e é traçada uma descrição de seu
pensamento ao longo da matéria de 9 páginas (p. 46-54). Lemos (p. 49) que para
o Dalai, nada – nem ninguém – está isolado. Uns sempre precisam de outros para
realizar a própria felicidade. Assim, entendemos que novamente é feita a
associação entre a (auto)felicidade e a visão que se tem do ‘outro’. Isso é
confirmado pelo monge em sua obra O Livro da Sabedoria, 2000, p. 107, ao dizer
que quem se esquece dos outros, ou não se importa com eles, acaba agindo em
prejuízo próprio.
Ainda em Superinteressante (p. 51) há um subtítulo destinado à
‘compaixão’, corroborando que, na representação do budismo, ela está
inexoravelmente imbricada com o ‘outro’, conforme vemos: (...) a compaixão enxergaria o sofrimento de forma solidária. A postura aí seria encarar aquele que sofre como um ser em igualdade de condições que precisa de ajuda naquele determinado momento. Ter compaixão, para o Dalai, é lembrar que a dor do outro poderia ser sua. (...) A compaixão estaria intimamente ligada à ação.
Algumas observações devem ser destacadas: há um entrelaçamento entre
alguns temas que são constantemente reiterados no imaginário religioso, o que
colabora para a construção do sentido: a ‘compaixão’, o ‘outro’ (considerado como
um par, visto que é ‘igual’), a ‘solidariedade’ e a ‘ação’.
Explicando o que viria a ser a ética, segundo o ponto de vista do Dalai
Lama, Superinteressante (p. 52) representa esse valor afirmando que vale a
velha premissa de não fazer a ninguém o que não se deseja para si mesmo. Aqui,
é retomando algo do discurso religioso, difundido no Ocidente sobretudo pelas
correntes cristãs.
A humildade, conforme essa revista (p. 53) faz referência, seria, de igual
modo, um valor ligado ao ‘outro’. Diz-se que ser humilde seria enxergar todos os
circundantes como seres iguais – o garoto que pede um trocado no semáforo ou o
presidente da República, construindo o budismo como uma religião que pregaria a
igualdade entre as pessoas. Os extremos de pobreza-poder são mencionados
para dar um efeito de sentido de completude, ou seja, o budismo não se
esqueceria de ninguém, do menos importante (representado pela figura do garoto
mendicante) ao extremamente poderoso (na figura do representante do mais alto
cargo do Executivo), todos são considerados relevantes para o Dalai Lama.
Ao relatar como vencer a raiva, Superinteressante (p. 54) incita o leitor a
levar em consideração a figura de seus semelhantes: O correto seria o sujeito
sublimar a sua raiva por meio da dedicação a coisas que façam bem a ele e aos
outros. O antídoto para o sentimento, considerado negativo, seria exatamente
dedicar-se, ou seja, efetivamente, agir em prol de si mesmo e dos outros, numa
recorrente alusão ao tema da alteridade.
Em alguns de seus enunciados, a revista Budismo (2004) também fez
menção a esse tema, via desenvolvimento da compaixão, permitindo, pois, uma
leitura isotópica. Percebamos em quais pontos isso se deu. Para explicar acerca
da doutrina budista, o autor da matéria, Cassio Oliveira, trouxe o seguinte
subtítulo: Compaixão irrestrita – uma meta budista, o que por si só, textualmente,
já dimensiona a magnitude do tema, uma vez que aquela não pode ser mensurada
haja vista que é irrestrita, sem limites ou obstáculos que possam se interpor contra
ela. Na seqüência, o texto enumera valores básicos que constituem a conduta
budista, tais como ‘sabedoria’, ‘ética’ e ‘disciplina mental’. Contudo, Acima desses componentes estão (sic) valor máximo: o amor. Sentimento supremo que (...) manifestam-se (sic) na forma de compaixão. É exatamente pela compaixão que muitos seres iluminados, mesmo tendo alcançado o grau de perfeição (o Nirvana), preferem continuar reencarnando como homens ou mulheres para ajudarem (sic) seus semelhantes menos adiantados. A tais seres, o budismo chama de bodhisattvas.
O amor é o grande tema comum e objetivo máximo a ser buscado em todos os
discursos religiosos, possível de ser alcançado, no budismo, pela conduta
compassiva que também seria a responsável pela abnegação por parte daqueles
que chegaram ao Nirvana4 e optam por continuar reencarnando para auxiliar
4 Este estado é chamado Nibbana (em páli, ou Nirvana, em sânscrito: Absoluta Sabedoria, Libertação); caracteriza-se pela extinção de toda afirmação da vida e causa da morte, qualidade de individualidade, o que significa que, pela total eliminação de todos esses ardentes instintos que nos prendem ao processo da vida,
outras pessoas que ainda não estão ‘iluminadas’. A reencarnação, ou seja, o ciclo
de renascimentos, é novamente um tema retomado no que tange à representação
do credo.
Continuando a verificar a isotopia da Alteridade / Compaixão, recorremos
novamente à entrevista da monja Coen (Budismo, p. 15), no momento em que
Marília di Cesare pergunta: Quando alguém pode dizer que é um zen-budista, uma
vez que não há conversão formal? A religiosa responde que primeiramente a
pessoa começa com um curso de ensinamentos básicos e a partir do ponto que
passa a praticá-los, há a cerimônia de transmissão dos Preceitos Budistas, que nada mais é do que um comprometimento de viver de acordo com os ensinamentos de Buda, que pode ser resumido em: fazer o bem a todos os seres.
Coen aponta para a imprescindibilidade de fazer o bem a todos os seres. No
enunciado, o pronome todos garante a idéia de plenitude do ato de ser bom, numa
visão que engloba, necessariamente, a presença do outro. E, segundo o
direcionamento da forma de ler, o que vale não é apenas ter o intuito de fazê-lo,
mas o comprometimento, que denota a regra, a disciplina, a ordem, a obrigação.
Nesse momento, verificamos a interpelação do sujeito, que é chamado
discursivamente a tomar a determinada atitude diante do contato com a doutrina
budista.
Um dos grandes objetivos do credo é a eliminação dos desejos, dos eus,
conforme já discorremos anteriormente. Para tanto, há uma metodologia que
conduz ao Nirvana (Budismo, p. 28) denominada o Nobre Caminho Óctuplo (os
oito tópicos são enumerados e brevemente explicados). Importante para a
configuração da isotopia ora estudada é a proposta dos seguintes passos trazidos
pela revista: 3. O meio de vida correto – Viver sem prejudicar qualquer um que
esteja ao nosso redor e 7. O pensamento correto – Surge quando a pessoa
desenvolve as qualidades do desapego, da compaixão e da não-violência. Nesse
excerto, a compaixão é mencionada de dois modos diferentes: no primeiro, em
seu conceito de não causar sofrimento aos outros e no segundo fazendo-se
provoca repetidos renascimentos nesta e em outras esferas. (Dhammapada – Caminho da Lei, Trad. Georges da Silva, São Paulo: Pensamento, (o ano de publicação não foi informado), p. 7)
referência à própria temática. Existe, assim, uma forma de ler que institui a
apologia do ‘considerar o outro’ caso se queira ser budista.
Essa foi a nossa perspectiva com relação à análise da isotopia do binômio
alteridade / compaixão, que, no ponto de vista budista, não pode ser dissociado,
tal qual pudemos vislumbrar sobretudo com os movimentos do percurso temático.
4.2.3. Diálogo inter-religioso
Ao longo da análise de nosso corpus, podemos evidenciar a presença de enunciados
que se remontam a uma isotopia do diálogo inter-religioso. Passemos a descrevê-los.
Na revista Época (p. 72) há uma foto do Dalai Lama oferecendo um lenço de cor
branca (esse ato foi repetido em diversos momentos em sua visita ao Brasil) ao Papa João
Paulo II, com a seguinte legenda: DIÁLOGO – Nos cinco encontros que tiveram, o Papa
João Paulo II e o Dalai Lama partilharam a preocupação com a opressão comunista às
religiões. Procura-se ressaltar o número de encontros entre os dirigentes: cinco, o que nos
remete a uma atividade repetida, com o intuito de enfatizar a relevância desse ato. Existem
algumas similaridades entre esses líderes religiosos: ambos adotaram como estilo de
difusão de suas doutrinas as viagens internacionais. Esse Papa era considerado o que mais
países visitou levando a bandeira católica. Ele tinha, tanto quanto o Dalai tem, a
consciência da necessidade do carisma para se abordar o tema religião nos dias de hoje,
com a utilização reiterada dos meios de comunicação de massa e da mídia escrita. Outro
aspecto similar importante é o fato de que ambos mencionavam em seus discursos a
necessidade de diálogo e de maior tolerância entre as diferentes tradições religiosas.
O atual Papa, Bento XVI, tendo assumido tal posto, já na homilia de sua primeira
missa, igualmente fez alusão ao diálogo. O site Yahoo! Notícias, de 20/04/05 (acesso às
15h34) repassou nota da Agência Estado, com os seguintes enunciados:
Bento XVI se comprometeu oficialmente a uma abertura no diálogo com outros cristãos e também com outras religiões, garantindo a continuidade da obra de seu antecessor, João Paulo II. "O sucessor de Pedro assume como compromisso primário trabalhar sem economizar energias na reconstituição plena e visível da unidade dos seguidores de Cristo e promover os contatos e entendimentos com os representantes das diferentes igrejas e comunidades eclesiásticas."
Todavia, esse não era o pensamento do religioso enquanto era ‘apenas’ o
Cardeal Ratzinger. Em entrevista concedida ao semanário francês ´L´Express´,
em 20 de março de 1997, afirmou que o budismo seria uma espiritualidade auto-
erótica, que ofereceria transcendência sem impor obrigações religiosas concretas.
Ainda segundo ele, o budismo substituiria o marxismo como o principal inimigo da
igreja católica neste século. Essas afirmações denotam claramente uma postura
de intolerância ao budismo. Percebe-se de modo nítido, que houve uma mudança
estratégica (e política) no discurso do clérigo, que na atualidade sabe que não se
deve afrontar abertamente os membros de outras religiões – caso contrário, corre-
se o risco de criar animosidades com os próprios católicos – nem adotar uma
postura tão fundamentalista. Tal mudança realça a ciência da não mais total
hegemonia da Igreja Católica no Ocidente tal como preconizou José Jorge de
Carvalho (1991). Ainda na p. 72 da revista Época, é iniciada a entrevista com o líder budista,
introduzida pelos dizeres: Para o Dalai Lama, é mais importante promover o diálogo inter-
religioso e a paz mundial. Aqui, o tema ‘diálogo inter-religioso’ é citado literalmente,
associando-o ao da ‘paz mundial’. Textualmente, observamos a construção do sentido de
que para se chegar a essa paz, há que se ter como instrumento o diálogo entre as religiões.
Na atualidade, há um sem número de acordos de paz que visam a minimizar os conflitos
político-religiosos, muito embora verifiquemos que não adianta se falar em diálogo sem
efetivas transformações nas ações daqueles que detêm o poder político, bem como das
sociedades envolvidas em aludidos conflitos como um todo. Desse modo, vemos que
muitas vezes o discurso está dissociado das atitudes.
Citada pela revista Isto é (p. 53) como o maior grupo budista do país, com
aproximadamente 120 mil membros, a Associação Brasil Soka Gakkai (“Sociedade para a
criação de valores”) foi fundada há 30 anos por Tsunessaburo Makiguti e seu atual
presidente é o Sr. Daisaku Ikeda. Possui com veículos de difusão da doutrina budista
revistas que aqui no Brasil são trimestrais. A edição de abril, maio e junho de 2005 (a partir
daqui denominada SGI) foi selecionada como objeto de nosso corpus, pela relevância da
instituição, acreditando nós que dessa forma poder-se-ia traçar um panorama mais
detalhado acerca da representação do budismo no Brasil.
A SGI tem características editoriais um pouco distintas das outras revistas
analisadas no corpus, uma vez que o público-alvo ou leitor-modelo (aqui considerado no
sentido literal, como um leitor idealizado por aqueles que veiculam as matérias) é
constituído basicamente por indivíduos interessados mais estritamente no tema budismo.
Isso se comprova pelo fato de os números da revista não serem vendidos em bancas de
jornais, nem haver uma divulgação em massa feita pela mídia. Para adquirir os exemplares
é necessário entrar em contato com o Departamento de Comunicação da Associação Brasil-
SGI (situada na Rua Tamandaré, 1007, São Paulo, SP – CEP 01525-001) ou com outras
filiais constituídas no país.
Devemos lançar luzes ao tema ‘diálogo’ pelas inúmeras ocorrências na SGI. Á
página 18, há uma matéria cujo título é Educação de não-violência para jovens, assinada
por Jill Strauss, apresentada como coordenadora de Eduacação para a Não-Violência do
Templo da Compreensão, uma ONG global e inter-religiosa. Menciona-se que ela
desenvolve programas de educação para a paz e que esteve ativamente envolvida nas
relações de coexistência, inter-religiosidade e interetnicidade no Oriente Médio. Alguns
enunciados – todos na p. 18 – serão analisados com o intuito de ratificarmos a presença da
isotopia do ‘diálogo inter-religioso’. A autora diz:
Os seres humanos são extremamente diversos em sua forma de pensar e de ser. A questão não é se haverá ou não conflito, mas como os seres humanos lidam com a diferença: de opinião, de crença, de história, de cultura etc. Uma não-violência ativa preocupa-se com o bem-estar de todos.
A ‘diversidade’ entre os indivíduos é apontada como algo intrínseco à própria
condição humana. Segundo Jill Strauss os conflitos no modo de pensar e de se comportar
até existirão, entretanto é ressaltada a importância de saber lidar com a ‘diferença’.
Interessante para o nosso recorte, que preocupa-se com a isotopia do diálogo inter-religioso,
é o fato de fazer menção ao convívio com aquele que tem uma ‘crença’ e uma ‘cultura’
diferentes. Ambas estão imbricadas necessariamente: na cultura está inserida a dimensão
religiosa e é imprescindível que se as vislumbre com as lentes da heterogeneidade.
Retomando Hall (2003, p. 69), o mundo é menor e as distâncias mais curtas e com isso, a
cultura e a religião tornam-se ainda menos delineadas, formalizadas e originais. Isso
implica uma mudança de concepção de mundo: o outro, sendo diferente no modo de atuar,
de falar, de se vestir etc. pode estar ao meu lado, não mais existindo ‘fronteiras’
intransponíveis que supostamente poderiam me proteger contra aquele que não conheço ou
não compreendo. A articulista completa esse enunciado afirmando que a ‘não-violência
ativa’ tem de levar em conta esse ‘outro’ e continua:
Durante o biênio 2003 e 2004, fui coordenadora de um projeto de liderança juvenil que incluía um treinamento intensivo de seis semanas sobre educação
para a paz. Os jovens, entre 15 e 19 anos, vinham dos cinco condados da cidade de Nova York.
Mudanças reais
No final das seis semanas, os jovens adquiriram uma estima maior pelo outro e por suas crenças e etnias, valorizando tanto as similaridades quanto as diferenças.
Interessa-nos verificar como se constrói o sentido dos enunciados. Usa-se o termo
‘estima’, que denota um sentimento de carinho, afeto, respeito por alguém ou por algo. O
‘outro’, suas ‘crenças’ e suas ‘etnias’ passam a ser valorizados, já que por meio do diálogo
são postas em discussão similaridades e diferenças. Há uma forma de ler o enunciado:
‘podemos ter afeição um pelo outro, mesmo sendo diferentes’. Novamente a diversidade é
abordada.
Conclui-se a matéria com as seguintes afirmações:
Com o treinamento para a não-violência e para a paz, aqueles jovens vieram a aprender que, embora os muitos problemas na sociedade possam parecer insuperáveis, cada um de nós tem o poder de empreender ações e criar o diálogo.
É construída uma breve narrativa, cujos personagens são os jovens americanos que
participaram do evento e ainda, a autora do texto e o próprio leitor, que é incluído quando
se diz que cada um de nós tem o poder de agir e dialogar. No nível figurativo, a presença de
‘todos’ implica um chamado, uma interpelação, no sentido de que é necessário participar do
intuito de se criar oportunidades para o diálogo, nesse caso, inter-religioso, intercultural e
interétnico.
Apesar de o relato fazer referência a jovens americanos e as culturas e etnias não
terem sido descritas, quisemos demonstrar como é possível haver a isotopia do diálogo
Continuando o estudo sobre a SGI, logo na página seguinte (19), há outro artigo
com o título Uma nova era de diálogo: o triunfo do humanismo, assinado pelo presidente
da Associação, Daisaku Ikeda. Cabe ressaltar que a palavra diálogo é repetida, nessa
matéria de apenas uma página, por onze vezes (doze, se contarmos uma frase que é posta
em destaque ao centro e que já havia sido enunciada ao longo do texto).
Comecemos pelo título. A expressão nova era encerra em si mesma todo um
conteúdo místico, que diz respeito da passagem de um tempo de degeneração, sobretudo
espiritual, para um período de luz, paz e amor. Essa idéia de nova era começou a se
propagar principalmente após a década de 60, quando muitas pessoas passaram a buscar
uma maior espiritualidade. Esse é o pensamento da monja Coen, a qual ainda afirma que
dentro desse contexto, o budismo é uma alternativa atraente no Brasil, em virtude de um
certo desgaste da linguagem das igrejas tradicionais, referindo-se, possivelmente, as de
profissão cristã (Budismo, p. 15). Outra palavra utilizada por Ikeda é importante; triunfo.
Não é apenas uma vitória. O sentido é de algo perene, eterno, como se a expressão máxima
do diálogo tivesse como resultado o humanismo.
No primeiro parágrafo (SGI, p. 19), Ikeda diz que com o passar dos anos, engajei-
me em diálogos com líderes de vários campos do mundo inteiro. O presidente constrói sua
argumentação baseando-se na sua própria experiência de vida. Há um efeito de sentido da
apologia da sabedoria, de um discurso de autoridade. Sua sapiência é que busca demonstrar
a necessidade do diálogo. Conforme dissemos, Thompson (op. cit. p. 136) menciona que o
poder político contribui para o processo de globalização ao mesmo tempo em que é afetado
por ele. Nessa perspectiva, Ikeda, bem como já descrito a respeito do Dalai Lama, sabe da
importância de abordar temas aparentemente da esfera religiosa numa arena política e daí
nasce a crucial importância de se relacionar com diferentes líderes, no ‘mundo inteiro’. O
caráter ‘global’ mais uma vez se apresenta, em detrimento de uma visão exclusivamente
‘local’. Ele acrescenta: Encontrei-me com diversas pessoas e tratei com elas diferentes
pensamentos filosóficos, culturais e práticas religiosas. Representa-se, assim, o budismo,
da linha nitiren (nomenclatura dos membros da SGI), igualmente adotando a idéia de
tolerância, de aceitação (e da presença, via diálogo inter-religioso) do outro. Completa
dizendo (SGI, p. 19): Minha crença, fortalecida ainda mais por essa experiência, é a de
que o fundamento para o diálogo que o século XXI necessita deve ser o humanismo.
Voltamo-nos novamente à referência do tema ‘diálogo’, quando Ikeda fala (SGI, p.
19): Conforme revejo meu próprio esforço para fortalecer o diálogo (...) ganho nova
compreensão da necessidade urgente de redirecionar as energias do dogmatismo e do
fanatismo (...) para uma perspectiva mais humanística.
Em seguida, o budista menciona (SGI, p. 19) que a verdadeira essência e a prática
do humanismo são encontradas no diálogo sincero, de coração a coração. Nesse trecho, o
diálogo, além de ser a finalidade, passa igualmente a ser o meio, o instrumento para o
humanismo, o que demonstra ainda mais a imprescindibilidade daquele na construção de
sentido proposta pelo Sr. Ikeda. Enquanto autor, ele se coloca como aquilo que Eco (2002,
p. 44) chama de uma estratégia textual, lançando mão do discurso do ‘líder religioso’,
voltando-se especificamente ao leitor budista, ao citar a ‘verdadeira essência’ do
humanismo encontrada no diálogo. A ‘verdade’ e a ‘essência’ são termos eminentemente
religiosos, e aqui o Sr. Ikeda fala de um ‘lugar’ religioso, suas palavras não são, em
momento nenhum, isentas da ideologia religiosa, mas nesse trecho isso salta aos olhos
pelos termos escolhidos em sua argumentação, afirmando que o diálogo tem de ser sincero,
de coração a coração, expressões que nos remetem à pureza e à nobreza, valores almejados
tanto no budismo quanto em outros credos.
Vale a observância do enunciado seguinte (SGI, p. 19), no que concerne à análise
dos níveis temático e figurativo:
Tanto nas relações diplomáticas entre grandes potências como nas interações diversas entre cidadãos de diferentes nações, o diálogo genuíno possui a intensidade descrita pelo grande humanista e filósofo do século XX, Martin Buber (1878-1965), como um encontro “sobre uma ponte estreita” em que o menor descuido resulta em queda fatal. O diálogo é, de fato, encontro de alto risco.
O tema diálogo é retomado em dois momentos num espaço muito curto entre as
frases. Essa repetição garante, mesmo que inconscientemente no leitor, o não-esquecimento
de sua relevância, o que certamente direciona o modo de ler do texto, qual seja: “você tem
de dialogar!”. Com relação à figuratização, o autor recorre ao recurso de citar o humanista e
filósofo Martin Buber, o que também configura o argumento de autoridade, como se
dissesse: “Vejam, não estou solitário no que digo, o ‘grande’ ‘humanista’ e ‘filósofo’
afirmou que o diálogo tem um poder intenso!”. Continuando, o líder religioso faz uso de
outras figuras, relacionando-as numa metáfora: o diálogo guardaria as propriedades de uma
‘ponte estreita’, uma vez que o ‘menor descuido resulta em queda fatal’, explicitando a
dificuldade dessa prática, visto ser de ‘alto risco’.
Logo após, mais uma vez é feita referência ao tema diálogo (SGI, p. 19): As ondas
do diálogo se multiplicam e se propagam. Outra metáfora é apresentada. Tal como ondas, o
diálogo teria a característica de percorrer distâncias, passando por diferentes ‘terras’.
Fazendo referência ao humanismo, o autor (SGI, p. 19) fala que:
De certo, o humanismo sustenta a humanidade, tanto no sentido concreto quanto no abstrato, como critério fundamental. Mas não procura estabelecer
um conjunto de normas fixas de controle de julgamento e ações. Ao contrário, conduz a ações livres e espontâneas do espírito humano, no julgamento e na tomada de decisões.
É apontado o humanismo como um critério, um parâmetro, para a humanidade, mas
ele toma o cuidado (ainda que inconscientemente) de não transparecer que esse critério, que
é fundamental, seja fundamentalista. Quer-se dizer que ele é não dogmático, uma vez que
não determina ‘normas fixas de controle de julgamento’. Uma função libertadora é
conferida ao humanismo, que levaria os indivíduos à prática de ações livres e espontâneas
do espírito humano, aquele é, pois, indicado como sinônimo de ‘liberdade’. Um aspecto
importante é: se você não concebe aludidas normas como sendo fixas, necessariamente é
construído um sentido de ‘ser tolerante’, de aceitar o convívio, o pensamento e as atitudes
daqueles que lhe são diversos.
Os últimos dois parágrafos do artigo (SGI, p. 19) fazem menção ao ‘diálogo’ por
três vezes. Cabe a análise:
(...) Ao recusarmos a discriminação com base em estereótipos ou em restrições impostas, podemos reconhecer a unicidade subjacente da relação positiva e negativa, e nos engajar com força total no diálogo capaz até de transformar o conflito numa relação positiva.
Um dos significados possíveis para o ato de discriminar é colocar à parte por algum
critério e nesse caso, evidentemente, seria pôr o outro, o diferente, à margem, mantendo-o
distante, seja porque ele não é da mesma religião, da mesma etnia ou porque não
compartilha das mesmas práticas sócio-culturais. No mesmo sentido, podemos atualizar o
termo ‘estereótipo’ como a idéia preconcebida sobre algo ou alguém, com base num
julgamento ou em generalizações. Quando estereotipamos o outro, temos a proposta de
igualar todos, de cogitar a possibilidade de uma voz homogênea. Falar-se-ia de um ‘lugar’
privilegiado, superior, originário de um discurso de ‘verdade’, ou seja, seríamos os
detentores daquilo que deve ser ouvido pelos outros. Parte-se de um pressuposto de
desconsiderar as aspirações, os desejos e os pensamentos alheios. O diferente seria menor,
aquém daquilo que somos. Filosófica, cultural e religiosamente isso é altamente pernicioso:
dar-se-ia um sentido de totalitarismo, de um ‘centramento’ de onde partiria o que é certo ou
errado, o que pode ou não ser pensado, ser sentido ou ser executado. Contrária a isso, a via
do diálogo teria a capacidade, segundo a construção de sentido proposta por Ikeda, de
transformar o conflito numa relação positiva. Inferimos um significado de que as
diferenças são intrínsecas ao ser humano: as manifestações culturais, os espaços sociais e os
simbolismos religiosos afetam de modo diverso cada pessoa, são recebidos diferentemente
de acordo com cada período histórico e é preciso que haja uma conscientização de que essa
multiplicidade existe e tem de ser tolerada.
Na sua conclusão (SGI, p. 19), o presidente da associação afirma crer
que esse tipo de humanismo pode nos capacitar a enfrentar o eterno desafio de perceber, manter e fortalecer a paz por meio do diálogo – tornando o diálogo o caminho mais certo para a paz.
O diálogo volta a ser evocado como um meio, um instrumento para se alcançar a
paz, outro tema muito mencionado no discurso religioso. Traçando um roteiro, o
humanismo prescinde do diálogo e este é o caminho para a paz. Veja-se que não é usado o
artigo indefinido ‘um’, mas o definido ‘o’, já que é o mais certo, isto é, o melhor.
Realizando uma leitura panorâmica acerca da revista SGI, podemos corroborar
nossa hipótese de que há um direcionamento do modo de ler visando à construção de uma
isotopia, a qual se baseia na reiteração do tema ‘diálogo’. Vejamos em que sentido isso se
dá:
Na página 24 foi veiculada uma matéria (não assinada) que versa sobre a visita do
astrônomo brasileiro Ronaldo Rogério de Freitas Mourão à Soka Gakkai Internacional, no
Japão. O que nos interessa é o seguinte trecho:
(...) Mourão mencionou que conheceu a SGI em 2001, quando se tornou membro da comissão de honra da exposição “Diálogos pela Vida: Por uma Cultura de Paz”. A exposição apresentou diálogos do presidente da SGI com importantes pensadores de todo o mundo.
Dois pontos merecem destaque: o texto tem como figuras centrais o líder da SGI e
Ronaldo Mourão. Este é conhecido nacionalmente, o que confere um caráter de importância
o fato de o presidente da SGI ter sido visitado por ele (há duas fotos dos dois, uma delas em
que é entregue a Ikeda o título de “Sócio Honorário Estrangeiro” do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB)) e, sobretudo é enfatizado que o astrônomo tornou-se
membro da comissão de honra da exposição “Diálogos pela Vida: Por uma Cultura de Paz”.
Apesar de não se referir exatamente ao diálogo inter-religioso, pensamos ser conveniente
apontar a menção ao tema diálogo, repetido por inúmeras vezes na edição da revista.
Em seqüência (SGI, p. 25), noticia-se a Conferência dos Jovens para a Não-
Violência no Dia Dr. Martin Luther King Jr, personagem que historicamente ficou
conhecido por ser um defensor dos direitos humanos nos Estados Unidos. Observemos
como se operam os sentidos:
Promovida pela SGI-USA no dia 17 de janeiro, no Centro Cultural da SGI de Nova York (...) a conferência reuniu cerca de 200 estudantes de Nova York, Nova Jersey e da Pensilvânia para conhecerem novas perspectivas e descobrirem formas de construírem uma nova cultura da não-violência. Os estudantes, representando seis crenças religiosas – sikhismo, jainismo, cristianismo, islamismo e o budismo Nitiren – planejaram o evento.
Nesse trecho, muito embora não se esteja tratando do budismo especificamente na
cultura brasileira, entendemos que a veiculação de semelhante matéria numa revista
nacional repercute claramente na representação dessa religião em nosso país,
principalmente pela leitura que se apresenta: textualmente é mostrada a reunião de seis
diferentes credos. No percurso figurativo, é construída uma narrativa, cujos personagens
são os próprios jovens (somente um deles tem seu nome expresso, Richard Prinz, um
estudante de 17 anos) os quais conviveram durante mencionada Conferência. O leitor, ao se
deparar com uma notícia assim explicitada, remete-se obviamente ao significado de um
diálogo inter-religioso, que prega a não-violência, o co-existir harmônico. Fica claro esse
plano de leitura, sobretudo porque se diz que foram os mesmos jovens que planejaram o
evento.
Prosseguindo o estudo relativo à revista SGI, apontamos mais uma vez a presença
do tema ‘diálogo’. Apesar de não se tratar especificamente do inter-religioso, entendemos
haver um processo de consolidação dessa isotopia, uma vez que os traços semânticos vão
permitindo uma leitura bem delimitada, tendo em vista a repetição do tema. Na página 26,
uma matéria intitulada O florescer da SGI-Bolívia em meio às dificuldades, assinada por
Alex Garnica Cruz, faz uma abordagem de como a Associação iniciou seus trabalhos
naquele país, levando-se em consideração os altos níveis de pobreza e analfabetismo na
região. Deparando-se com todos esses problemas, o autor diz:
Em 1992, a SGI-Bolívia criou e inaugurou uma exposição que apresenta o movimento pela paz da SGI. Ela realça a importância do diálogo para se superar as dificuldades e criar o respeito pela diversidade.
Associado ao tema diálogo, reitera-se também a relevância do respeito pela
diversidade. Há, novamente, uma condução do modo de ler o enunciado: o ‘outro’ é posto
em discussão, devendo ser respeitadas as suas diferenças. Essa alusão contribui para a
representação do budismo no Brasil, pois embora fale-se da difusão de programas da SGI
na Bolívia, veicula-se que é necessário respeitar aquele que é diverso. Dizendo de outro
modo: “Você, brasileiro, leia uma matéria acerca da Bolívia e saiba que os estrangeiros
estão aprendendo sobre a importância do respeito àquele que é diferente. Faça o mesmo!”
Ainda no mesmo texto (SGI, p. 27), com o subtítulo Atividade dos jovens, é
mencionado que
Em julho de 2004, os jovens realizaram uma série de seminários sobre o tema “Esforços dos Jovens, Construindo o Futuro”. (...) Os seminários, os quais focalizaram os “Diálogos com os Jovens” do presidente da SGI, tiveram a participação de dois mil estudantes. Educadores comentaram que os seminários apresentaram formas sensíveis de tratar os problemas que os jovens enfrentam. Também afirmaram que os diálogos proporcionaram esperança aos estudantes, inspirando-os a explorar seu próprio potencial.
Retoma-se em dois momentos o ‘diálogo’. O tema é ‘focalizado’, posto em
evidência, tomando-se por base os “Diálogos com os jovens” do presidente da SGI. A
figura deste é central na representação da religião realizada pela SGI. Evidentemente há o
argumento de autoridade: o líder tem um discurso privilegiado, doutrinal, que deve ser
ouvido e tido como parâmetro, sobretudo pelos jovens, como podem ser futuros membros e
continuadores da ideologia da Associação budista. Igualmente, os educadores expuseram
sua opinião associando o ‘diálogo’ com o valor ‘esperança’ e com a possibilidade de os
jovens explorarem seu próprio potencial.
Falando que Eventos no Brasil recebem a visita de vice-presidente da SGI, a revista
(p. 28 e 29) volta-se, novamente, ao diálogo, quando diz (a matéria não especificou seu
autor): Uma outra exposição, “Diálogos com a Natureza”, que apresenta as fotos do
presidente da SGI, Daisaku Ikeda, tiradas em suas viagens pelo mundo em prol da paz, foi
inaugurada (...) na cidade de Maringá. Podemos evidenciar que o tema tem um papel de
destaque bastante considerável nas falas propostas na revista SGI, haja vista que
invariavelmente ele é repetido, ainda que com nuances um pouco diferentes.
Concluindo a análise da SGI no que concerne à formação da isotopia do diálogo
inter-religioso, transcreveremos trechos do texto da última página (31), que trata das
atividades da Associação na Malásia. Continuamos nosso entendimento de que muito
embora seja mencionado outro país há um reflexo na representação do budismo aqui no
Brasil, porque a matéria foi veiculada na edição em português e, principalmente, pelo
percurso isotópico que está sendo apresentado em torno do tema ‘diálogo’. Sob o título
Atividades inter-religiosas, inicia-se o excerto do seguinte modo:
Reconhecendo que o diálogo genuíno entre as pessoas de diferentes crenças e culturas é necessário em uma sociedade multirreligiosa como a Malásia, a SGM vem promovendo e apoiando vários eventos que promovem a compreensão inter-religiosa.
A SGI auto-representa-se como uma associação que tem o intuito de agregar, pois
atesta a necessidade do diálogo entre pessoas de diferentes crenças e culturas, sobretudo
num local como a Malásia, que tem como característica a pluralidade de credos e por isso
promove e apóia eventos que versem sobre a compreensão entre as religiões. Elabora-se um
sentido de que esse ramo do budismo preocupa-se determinantemente com a harmonia
entre aqueles que não professam a mesma fé. É confirmada essa perspectiva à continuação
do texto:
A SGM, juntamente com a Rede Inter-Religiosa Malasiana, (...)organizou a exposição “Religiões Mundiais – Paz Universal – Ética Global” em julho de 2003.
(...)
A exposição (…) apresentou explicações sobre os princípios centrais encontrados nas principais religiões e os valores éticos universais que são comuns a todas as religiões (...) Mais de três mil pessoas de todas as crenças participaram dos eventos.
Nesse trecho, há um modo de leitura que se molda pela importância que é
conferida ao tema do diálogo entre as religiões. De certa forma, vemos uma
interface com aquilo que Carvalho (1991, p. 9) menciona acerca de um princípio
transcendente que nortearia as doutrinas e, por conseguinte, possibilitar-se-ia falar
em valores comuns.
O budismo difundido pela SGI não se encontra solitário nesse sentido. A
linha tibetana do Dalai Lama desenvolve semelhante trabalho de se difundir a
promoção de valores humanos que, segundo ele, teriam um caráter universal.
Essa perspectiva será abordada mais detidamente na isotopia relativa à tolerância
religiosa.
O autor do texto, Chee Choong Looi, da Malásia, incita o leitor a dar
atenção ao número de pessoas de diferentes crenças, as quais participaram da
exposição, construindo o sentido daquilo que é grande, de um número expressivo
e que, por isso, deve ser observado.
Prosseguindo a análise dessa matéria da SGI (p. 31), é citado o Dr. Amir
Farid Isahak, presidente da Amizade Espiritual Inter-Religiosa (INSaf), que disse:
(...) Pela reação de hoje, podemos ver que as pessoas da Malásia anseiam por oportunidades para unirem-se e quebrarem as barreiras que existem. Penso que SGM é esse veículo que pode forjar muitas interações e contatos interculturais, raciais e religiosos.
Há um outro enunciador no texto, que utiliza palavras que nos remetem ao
diálogo: as pessoas desejam se unir e quebrar as barreiras. A palavra em
destaque semanticamente nos dá a idéia de separação, de distanciamento, de
falta de contato. Destaca ainda que a SGM seria o veículo capaz de promover
interações e contatos, ou seja, a associação budista, na visão desse dirigente,
teria o poder de criar diálogos não só religiosos, como também culturais e raciais.
Com a referência a esses temas, constitui-se o plano de leitura que nos faz chegar
a isotopia do diálogo inter-religioso.
Observamos que a revista SGI foi a que mais se preocupou em incutir em
seus leitores a idéia de que o diálogo, sobretudo o religioso, tem de ser
continuamente (re)lembrado, uma vez que o tema é abundantemente retomado
em diferentes matérias ao longo de suas 31 páginas, como pudemos verificar.
Passemos agora à análise da revista Budismo (2004). Grosso modo, é
possível afirmar que o leitor-modelo, aqui entendido como um público alvo que o
veículo midiático busca alcançar, é formado por pessoas que, supostamente,
querem se inteirar sobre a religião, visto que suas 34 páginas são destinadas a
esse tema. São descritas resumidamente a história do seu surgimento, as
correntes tibetana e Zen, a parte doutrinária comum a todas as nomenclaturas,
bem como são trazidos ao conhecimento do leitor os mantras e contos budistas.
Iremos nos deter na constituição das isotopias, objetos de nossa pesquisa. Na p.
15, há uma entrevista realizada por Marília di Cesare com a monja Coen, já citada
anteriormente. Pergunta-se a ela: Quais são as suas atividades atualmente? Ao
que responde: Sou Missionária Oficial da Tradição Soto Shu, Zen-Budismo japonês e Primaz Fundadora da Comunidade Zen-budista, com sede em São Paulo e filiais no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Estamos iniciando esta nova comunidade, ao mesmo tempo em que estou muito envolvida nos encontros inter-religiosos.
Efetivamente esses encontros são realizados pelos praticantes budistas,
como aquele citado pelo Dalai Lama no livro Conselhos Espirituais (1998, p.
18,19), nomeado Dia da Oração pela Paz, que ocorreu em Assis, em 1986, em
que ele próprio participou. Mais do que uma análise discursiva, devemos atentar
para o fato de que isso implica atitudes concretas dos membros do budismo:
conforme já afirmado, a monja Coen também estava presente na visita do Dalai ao
Brasil, quando ele ministrou uma palestra no Ginásio do Ibirapuera (29/04/06),
intitulada O poder da compaixão, que reuniu 6 mil pessoas. Outro evento que se
verificou pela ocasião da vinda do monge budista em São Paulo foi a Celebração
inter-religiosa pelo entendimento entre os povos, na Catedral da Sé, que contou
com as seguintes participações: Rabino Henry Sobel, Presidente do Rabinato da
Congregação Israelita Paulista, Bispo Adriel de Souza Mais, Presidente do
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Sheikh Armando Hussein Saleh, Missionário
pela Paz Mundial, Swami Sunirmalananda, da Ramakrishna Vedanta Ashrama,
Pai Francelino de Shapanan, do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-
Brasileira e Dom Cláudio Cardeal Hummes, Arcebispo de São Paulo.
Com o título Um homem iluminado, fazendo-se alusão à própria palavra
Buda, que, como já dissemos, significa iluminado, Budismo (p. 24) traz um box
descrevendo Tenzin Gyatso, com as seguintes palavras: (...) O XIV Dalai Lama não é visto apenas como o líder espiritual do povo tibetano. Por ser um defensor da não-violência, do diálogo e da preservação do planeta, ele é reconhecido como patrimônio vivo da humanidade e admirado não só no oriente, mas no ocidente também. O Dalai Lama viaja o mundo, transmitindo-nos uma mensagem positiva e fazendo-nos refletir sobre a necessidade de termos mais tolerância para convivermos em harmonia com as diferenças – de raça, religião ou cultura.
O autor do texto (não mencionado) faz referência a temas os quais são
objetos de nossa pesquisa. Segundo o enunciado, o Dalai Lama defende a ‘não-
violência’, o ‘diálogo’. É construída uma relação de proximidade com o leitor,
primeiramente tendo em vista que o monge é patrimônio vivo da humanidade não
só no Oriente, mas no Ocidente, ou seja, ele está ‘aqui’ de algum modo, presente
na nossa cultura e admirado também por ‘nosso povo’. Segundo, porque o autor
utiliza o ‘nós’ (transmitindo-nos, fazendo-nos, termos, convivermos), um recurso
de linguagem que traz o leitor para uma atmosfera de intimidade, de inclusão, ao
mesmo tempo em que o interpela a se inserir na idéia apresentada, qual seja,
‘Você tem de refletir para ser mais tolerante e tem de conviver em harmonia com
as diferenças!’
Após a análise dos enunciados das revistas, podemos evidenciar que há a
instauração de um leitor-modelo, que é levado para o lugar que lhe é construído
nos textos, operando-se uma recorrência semântica considerável com relação ao
tema diálogo inter-religioso e, por conseguinte, formando-se essa isotopia.
4.2.4. Tolerância
Propusemo-nos, até o presente momento, a analisar de que forma se instauraram as
isotopias do sincretismo / hibridismo, da alteridade / compaixão e do diálogo inter-
religioso. Neste momento da pesquisa, ainda mergulhados em nosso corpus, iremos nos
ater aos enunciados que, a nosso ver, instituem o leitor-modelo da tolerância.
Em Época (p. 71), a autora da matéria O guru da felicidade, Paula Pereira,
começa dizendo que a felicidade é um de seus temas favoritos. Não é de
estranhar, portanto, que pessoas de qualquer credo – ou de nenhum – se
interessem cada vez mais pela figura e pelos ensinamentos do Dalai Lama. Ao
tratar da felicidade, há uma estratégia de captação muito grande no discurso do
religioso (e também da revista), pois esse valor, apesar de ser muito relativo – sua
conceituação sempre variará de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de
religião para religião – chama a atenção de todo indivíduo, ainda que seja para
refutar as idéias religiosas. A idéia de felicidade gera emoções em cada um, nunca
é carregada de neutralidade.
Segundo o enunciado aludido, constrói-se o sentido do não-proselitismo,
isto é, não é necessário se autodenominar budista para ter acesso aos preceitos
budistas, via Dalai Lama. Este assim é descrito na matéria (Época, p. 71): Virou
embaixador da paz, da causa tibetana e do budismo – embora ele represente uma
das muitas vertentes da religião no mundo. A vertente a que o texto se refere é a
do budismo tibetano, o qual possui cinco escolas: Nyingma, Kagyu, Gatanga,
Sakya e a de que o monge faz parte, a Gelukpa (todas foram apresentadas com
uma breve descrição na revista Budismo, p. 19). Nesse trecho molda-se um
sentido de tolerância no próprio interior do budismo, já que são mencionadas as
diversas nomenclaturas da religião, ressaltando-se, implicitamente, que há um
respeito e consciência da importância do Dalai Lama por parte delas para a
difusão do budismo como um todo. A legenda que acompanha uma foto do
dirigente em estado de prostração (Época, p. 74) garante o mesmo significado: O
DESPERTO – Apesar de haver quatro5 linhagens distintas no budismo tibetano, o
Dalai Lama (...), o Buda de Compaixão, é reconhecido por todas elas.
Já mencionada em alguns momentos de nossa dissertação, a visita do
Dalai Lama corrobora, de certa forma, essa apologia à tolerância dentro do
mesmo budismo, pois na conferência O poder da Compaixão, realizada no ginásio
do Ibirapuera, dia 29 de abril de 2006, foram distribuídos folders de outras
nomenclaturas budistas, como por exemplo da Comunidade Zen Budista Tenzui
Zen Dojo, liderada pela monja Coen, a qual, como já dissemos, lá estava
presente.
A enunciadora nos remete ao tema ‘não-conversão ao budismo’, abordado
em frases por ela atribuídas ao Dalai Lama, em nada menos que cinco
ocorrências na matéria de Época:
a) Não quero converter ninguém. (p. 71);
b) Não quero converter ninguém ao budismo (como o subtítulo da entrevista,
p. 72);
c) Eu não tenho interesse em converter pessoas ao budismo (ao longo de
uma de suas respostas na entrevista, p. 73);
d) Não quero converter ninguém ao budismo (como o subtítulo da entrevista,
p. 74);
e) Não quero converter ninguém ao budismo (novamente como o subtítulo da
entrevista, p. 76);
A reiteração semântica é notória e, por isso, configura uma isotopia a qual
determina que a matéria seja lida como o pensamento de um líder religioso que
não quer impor sua convicção, mas que respeita os pontos de vista religiosos
alheios. Essa escolha lexical que repete o tema de forma tão contundente
promove a instituição do leitor-modelo da tolerância aos outros credos.
Esse sentido é continuado quando é mostrada a legenda de outra foto em
que o Dalai Lama aparece sorrindo e acenando a muitas pessoas (Época, 73):
Nas audiências pelo mundo, o líder tibetano fala de paz para multidões de todas
5 Conforme já havíamos mencionado, o número de vertentes do budismo tibetano é cinco (revista Budismo, p. 19) e não quatro, tal como é veiculado em Época, p. 74.
as crenças. No percurso temático, a paz é citada, assunto de interesse político,
social e histórico. No figurativo, diz-se que as audiências são realizadas ao redor
do mundo e que o monge fala a multidões. Há a condução do significado para a
noção de uma quantidade grande o que é confirmado pelos vocábulos destacados
e que nessas reuniões, concorrem indivíduos de crenças distintas, valorando o
sentido de que essa diversidade é garantida quando se fala no budismo.
Pergunta-se ao monge se os enfoques dados ao budismo (com relação a
treinamento e desenvolvimento da mente) não o descaracterizam como religião.
Em sua resposta, diz não acreditar nisso, uma vez que já conta com mais de
2.500 anos. Dentro de nossa perspectiva, vale apontar sua citação quando fala:
Não quero dizer que é a melhor religião que existe. Cada indivíduo tem sua
própria disposição mental e deveria escolher uma religião apropriada a ela. Na
seqüência, faz-se a seguinte pergunta: Seus livros são best-sellers no Brasil. Por
que escreve para o público em geral sobre assuntos universais? Ao que ele
responde: Porque isso é de meu interesse (risos). Eu não tenho interesse em converter pessoas ao budismo. Reconheço que todas as diferentes tradições têm o mesmo potencial de ajudar a humanidade. Sempre achei errado tentar converter as pessoas. Se eu tentar propagar o Dharma (a doutrina budista), se os irmãos cristãos e os muçulmanos fizerem o mesmo esforço para divulgar sua fé, pobres dos 6 bilhões de habitantes da Terra (risos)! Se tivessem a oportunidade, mudariam para outro planeta. Seria um desastre (risos). Paz e harmonia é o essencial, não o nome da religião que a pessoa aceita (...) Meu maior interesse é promover os valores humanos.
É importante ressaltar novamente que o caráter informal e extrovertido que
perpassa o discurso do Dalai Lama é algo que traz o leitor para um imaginário de
intimidade. O monge budista fala de maneira descontraída, com momentos de riso
(a autora do texto opta por redigir legendas que descrevem uma cena hilária, o
que igualmente oferece um plano de leitura de um ambiente prazeroso, tranqüilo e
alegre).
O Dalai Lama, textualmente, coloca o budismo no mesmo patamar que as
outras religiões, já que todas as diferentes tradições têm o mesmo potencial de
ajudar a humanidade. Ele fala de um determinado lugar, qual seja, o do religioso,
pois confere à religião o poder de ajudar as pessoas. Todavia, propõe que sua
citação seja lida de maneira não dogmática ou exclusivista, uma vez que não
outorga ao budismo uma posição hegemônica. Outro ponto é a forma como ele se
dirige aos cristãos e aos muçulmanos, chamando-os de irmãos. O substantivo
adquire contornos adjetivos, que caracterizam, marcam, distinguem os cristãos e
muçulmanos. Dizendo de maneira diferente, o termo carrega o significado de
proximidade, de familiaridade, também de acolhida, respeito. Irmão, no sentido
biológico, é aquele que carrega o mesmo sangue, a mesma origem. Tudo isso
leva o leitor a apreender que apesar de existirem religiões diferentes, seus
praticantes podem se tratar com um sentimento de igualdade.
Quanto a dizer que seu maior interesse é promover os valores humanos, o
Dalai Lama infere que as religiões, independentemente de nomenclaturas, trariam
em suas doutrinas essa possibilidade. Podemos ratificar esse discurso com a sua
obra Uma ética para o novo milênio (2000, p. 30,31), em que afirma: (...) budismo, cristianismo, hinduísmo, islamismo, judaísmo, siquismo, zoroastrismo e outras – visam (sic) ajudar o homem a alcançar uma felicidade duradoura. E todas, na minha opinião, são capazes de proporcionar tal coisa. Nessas circunstâncias, é ao mesmo tempo desejável e útil que haja uma grande variedade de religiões promovendo os mesmos valores básicos.
Tais palavras vão ao encontro do pensamento de Carvalho (1991, p. 8), o
qual atribuiu ao movimento esotérico um hábito de olhar para todas as religiões
mundiais, em busca de equivalências, de complementações, de sínteses. O Dalai
Lama volta-se para direcionamento similar ao sugerir que as religiões tratariam de
valores humanos básicos e que estes seriam comuns àquelas. Ao nomear as
religiões no texto e dizer que é desejável e útil que haja uma grande variedade
delas, o monge direciona o modo de ler, pressupondo um sentido de tolerância e
interação entre as mesmas.
Na mesma revista Época (p. 77), segue-se outra matéria acerca do
budismo, cujo título é Muito longe do nirvana (de autoria de Marcelo Musa
Cavallari) , em que são relatados alguns aspectos políticos da disseminação da
religião no continente asiático. Importante para nós, é o que foi veiculado sobre
aquele dirigente: Para o Ocidente, o Dalai Lama é a própria face da tolerância e da
compaixão que o budismo prega. Em realidade, são apresentadas duas
afirmações: (i) o Dalai Lama é a imagem, a representação da tolerância e da
compaixão (o sentido conotativo da expressão face assume o significado de algo
que é mostrado à primeira vista, de imediato); (ii) O budismo é uma religião que
pode ser sintetizada tomando-se por base esses mesmos valores da tolerância e
da compaixão. Outro modo de leitura que nos é direcionado é a constatação de
que, se você é ocidental, tem de saber sobre o que foi dito do Dalai e do budismo,
já que não se menciona partes ou regiões do Ocidente, mas ele em sua totalidade.
Dito de outra forma: ‘Leitor, como você é ocidental, fique sabendo (e não
questione!) que o budismo prega a tolerância e a compaixão e que a melhor
expressão disso é a imagem do Dalai Lama’.
Uma terceira matéria concernente à religião segue-se em Época: A
ascensão do budismo no Brasil (já citada em outra perspectiva de análise, com
referência à Espetacularização). À página 78 lemos que: No Ocidente em geral, e
num país tolerante e aberto como o Brasil mais ainda, notamos uma franca
simpatia pelo budismo, diz o cientista da religião Frank Usarski, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (...). Novamente o budismo ganha contornos
‘ocidentais’, todavia o enunciador não é mais a jornalista Paula Pereira (ao que
tudo indica, acreditamos ser ela a autora também dessa matéria, uma vez que não
foi indicado outro pela revista), mas um estudioso do assunto religião, Frank
Usarski. Isso é uma estratégia discursiva qualificada como o argumento de
autoridade, em que se utiliza a citação de alguém que supostamente tem
conhecimento sobre um determinado assunto a fim de corroborar ou reforçar
aquilo que se deseja falar. Como é tratado o crescimento do budismo no Brasil,
nada melhor que veicular a hipótese de um professor universitário, especialista em
Ciência da Religião. Em sua fala, observamos mais uma vez uma associação
entre budismo e tolerância, porque ele afirma que o Brasil é um país tolerante
(evidentemente com relação ao tema religião) e aponta isso como uma das
causas da ascensão daquele no país, ou seja, Brasil e budismo são tolerantes.
Na seqüência (Época, p.78), fala-se sobre Daniel Calmanowitz, pai do lama
Michel Rimpoche (já foi feita referência a ele quando da análise da isotopia do
Sincretismo / Hibridismo): (...) é dos fundadores do Centro de Dharma,
comunidade tibetana tolerante em São Paulo (...) Tem-se o cuidado de qualificar,
marcar a comunidade: não é apenas budista, mas tolerante.
Em seguida (Época, p. 78,79), é explicitado um depoimento da esteticista
Eva Isabel Feyer, de 48 anos, judia que se converteu ao budismo: “(...) não vejo,
por parte dos budistas, uma preocupação de preservar ou aumentar o rebanho” e
logo retorna o enunciador autor: Na maioria das versões ocidentalizadas do
budismo não se exige, necessariamente, o abandono de uma crença anterior. A
seqüência é importante para a construção do sentido: Por um lado, é mostrada
uma senhora que se tornou budista (era judia) e que denota em sua fala o fato de
o budismo não se preocupar em crescer. Logo adiante, é mencionado que se o
leitor quiser adotar esta religião, não tem obrigatoriamente que abandonar a sua.
Os dois trechos, a nosso ver, retomam a idéia de sincretismo ao mesmo tempo
que instituem o leitor-modelo da apreensão do budismo enquanto um credo
tolerante aos outros.
Alguns trechos de Isto é igualmente proporcionam ao leitor um plano de
leitura, o qual possibilita a formação da isotopia da tolerância religiosa.
Verificamos que o tema da ‘não conversão ao budismo’ é reiterado nessa revista
(p. 51): Não queremos converter ninguém, mas mostrar o que sabemos para que
cada um aproveite o que achar interessante, cita Eduardo Martins Machado, 34
anos, professor de ginástica e candidato a estudante da primeira universidade
budista da América Latina, à qual foi feita referência anteriormente, na isotopia
sobre o Sincretismo / Hibridismo. Ainda na mesma matéria de Isto é (p. 53), ao
fazer menção à Escola budista Soka do Brasil, de São Paulo, os autores dizem: Procurada por famílias de quaisquer religiões, a escola concilia aulas de inglês e japonês com experiências tão diversas como tocar um instrumento, navegar na internet e cuidar da horta. E não há uma única imagem de Buda em todo o prédio. “Nosso princípio de ação é budista. Transmitimos isso em nossa educação sem falar a palavra Buda”, comenta Dirce Ivamoto. (grifo nosso)
O contorno a ser dado para a leitura é mostrado nas sentenças em
destaque: a escola é representada como um local tolerante, pois é procurada por
famílias de quaisquer religiões, lá não há uma única imagem de Buda em todo o
prédio e porque o processo educacional se dá sem falar a palavra Buda.
Na seqüência, outro enunciado que nos remete à isotopia da tolerância
(Isto é, p. 53) fazendo-se referência ao tema da ‘não conversão ao budismo’: A
estratégia é a mesma no Mosteiro Zen Morro da Vargem, em Ibiraçu (distrito de
Vitória), no Espírito Santo (...). Ninguém é induzido a se converter ao budismo,
apontam os autores do texto. Semelhante via de interpretação proposta ao leitor-
modelo é mostrada a seguir: “(...) realizamos um trabalho de preservação ambiental que recebe a visita de estudantes e atividades educativas com agricultores”, enumera o abade Daiju Bitti, superior no mosteiro. “Temos uma forte integração com a comunidade. Não convertemos ninguém”, comenta.
Nesse trecho, percebemos uma estratégia discursiva que, por um lado
denota o sentido de que a religião mantém contato e abarca pessoas de todos os
tipos: do estudante ao agricultor, o que é corroborado pela afirmação do abade
sobre o fato de haver uma forte integração com a comunidade; e por outro, o
enunciador tem cuidado de finalizar sua fala focando o objetivo não proselitista do
budismo. Em outras palavras: ‘Seja quem você for, venha conhecer o budismo!
Não iremos tentar convertê-lo!’
A menção ao tema da ‘não-violência’ é recorrente no discurso relativo ao
budismo. Isto é (p. 53) veiculou o assunto da seguinte forma: Única religião que nunca empreendeu uma guerra, o budismo atrai pacifistas em todo o planeta. No dia 7 de setembro, o repúdio à violência foi um dos motivos para a presença de mais de 500 pessoas à Terceira Cerimônia do Fogo Sagrado em prol da paz e da purificação da Grande São Paulo, promovida pela Associação Budista Agon Shu (...)
Vejamos pontos relevantes no que concerne à representação do budismo.
Primeiramente, fala-se que nunca foi empreendida uma guerra por budistas. E
mais, que a religião foi a única a não tomar tal atitude. A afirmação é, no mínimo,
infundada. Ainda que o budismo não tenha promovido guerras em países onde é
professado, é impossível de se verificar se isso também não ocorreu com outras
religiões, uma vez que o número delas é quase incontável ou, pelo menos,
igualmente impossível de se determinar com precisão. Em seguida, aponta-se
como corolário disso, que o credo atrai pacifistas em todo o planeta. Menciona-se
o repúdio à violência. O termo repúdio traz um significado de contumácia,
veemência e força. Não é apenas não aceitar a violência, é rechaçá-la a todo
custo. Assim é mostrado o budismo, como uma religião totalmente intolerante à
violência. Passa-se, então, a descrever aludida cerimônia (Isto é, p.53): Uma fogueira é acesa em frente a um grande altar e os presentes, budistas ou não, se purificam ao lançar pedaços de madeira (gomagui) com pedidos gravados, queimando assim seus carmas pessoais, ancestrais e espirituais.
Em se tratando do nível figurativo, há, de certo modo, um percurso narrativo
no qual os personagens são os participantes do ato, sobre os quais os autores da
matéria apontam como sendo budistas ou não, direcionando o sentido para a
alusão à tolerância religiosa do budismo com outros credos. Note-se que a
abordagem central era acerca da cerimônia religiosa, no entanto é constituído o
leitor-modelo da apologia da tolerância. Com relação à análise do nível temático,
são citados os carmas pessoais, ancestrais e espirituais. Carma, para o budismo,
é uma lei de causa e efeito. No prefácio do Dhammapada – Caminho da Lei (2000,
p. 11), o tradutor e adaptador do texto, Georges da Silva, diz que: A atividade da volição em pensamento, palavra e ação é chamada kamma (carma); o resultado chama-se Vipaka, e em cada vida estamos cumprindo esse processo dual; somos, de uma só vez, os passivos sujeitos dos efeitos das nossas ações passadas e os ativos criadores de novo carma que, por sua vez, dará frutos aqui, ou no futuro.
Assim, o leitor é submetido a mais um tema budista. É construído um
sentido em seu imaginário de que os carmas são negativos, já que os presentes à
cerimônia são purificados deles, por meio do ato de jogar os pedaços de madeira
com os pedidos gravados.
A revista Superinteressante (agosto de 2001), objeto de nosso corpus,
retoma alguns temas já analisados nesta dissertação, no que concerne a não
necessidade de dependência de um dirigente budista para que o praticante possa
receber os supostos benefícios dos preceitos da religião. Na página 48 podemos
ratificar essa assertiva: A “iluminação” pode acontecer com qualquer um e é
justamente esse o cerne da doutrina budista, diz a autora da matéria A vida
segundo o Dalai, Karen Gimenez. No nível temático, faz-se menção à
“iluminação”, criando uma associação com a própria palavra ‘Buda’, que, como já
dissemos, significa ‘iluminado’. E, no enunciado, o fato de qualquer um poder se
tornar um iluminado é apontado como o cerne da religião. Cerne é a parte central,
essencial de algo. Cria-se, discursivamente, o sentido de que no budismo não se
depende de ninguém para se desenvolver espiritualmente.
A seguir, a dirigente do Centro de Estudos Filosóficos - Associação Palas
Athena, de São Paulo, Lia Diskin, descreve a figura do Dalai Lama: “Dificilmente
se encontra um líder religioso que encante tanto as pessoas quanto o Dalai. Não
só pelas palavras mas também por assumir a sua condição humana tão
claramente”, o que é confirmado pela autora da matéria: De fato, o Dalai se coloca
como apenas um velho monge que deseja paz e felicidade a todas as pessoas.
Não se arvora nenhum caráter divino. Vale apontar alguns efeitos de sentido da
representação mostrada por ambas. A primeira utiliza o verbo encante, ou seja, o
dirigente não é somente bom, é encantador, denotando a magnitude, o espanto, a
maravilha. Dessa forma, o leitor deve entender que isso merece a sua atenção
máxima. Ligada a esse caráter está a condição humana clara do Dalai. Ora, é
promovida, assim, há uma aproximação imediata entre o leitor e o budista
descrito. Já a segunda o descreve como um velho monge (dando a idéia de
simplicidade, humildade) que deseja paz e felicidade a todas as pessoas.
Novamente é feita alusão a temas que compõem o universo religioso. Veja-se que
o líder não é representado como um doutrinador, que visa à imposição de seus
ensinamentos, ele apenas deseja paz e felicidade a todos. E nem se arvora
nenhum caráter divino, ou seja, não se diz representante de Deus (nem de Buda)
na terra. Oferece-se um plano de leitura, que poderia ser assim construído:
‘Apesar de ele ser um líder religioso é humano como eu, então merece ser
escutado’.
No enunciado a seguir transcrito, um sentido de tolerância é instituído
(Superinteressante, p. 49):
Segundo ele (refere-se ao Dalai Lama), ninguém precisa sair em peregrinação ou praticar mendicância para se tornar um ser humano melhor (...) a verdadeira transformação espiritual do indivíduo está nas pequenas e fundamentais atitudes do dia-a-dia, independente do credo, do estilo de vida, das preferências sexuais ou políticas que se possa ter.
Não se determina uma dependência entre a religião budista e o fato de se
tornar uma pessoa ‘melhor’. De acordo com o trecho, o dirigente não tem o intuito
de que os indivíduos comecem a professar a crença em sua religião. Podemos,
igualmente, observar esse efeito de sentido no seguinte excerto
(Superinteressante, p. 49, 50): Quem for assistir a uma de suas conferências achando que vai escutá-lo falando das vantagens de se converter ao budismo perderá a viagem. O Dalai deixa muito claro em seus discursos que cada um deve seguir a fé que escolher. Ou até mesmo nenhuma, caso lhe pareça mais conveniente.
É importante assinalar que em mais uma ocorrência vemos explicitado o
tema da ‘não conversão ao budismo’ em uma das revistas de nosso corpus,
corroborando a formação dessa isotopia da tolerância religiosa. Sobre o Dalai,
veicula-se a representação de que ele, além de não querer incutir os preceitos
budistas aos seus ouvintes, até mesmo considera a possibilidade de que o
indivíduo não professe nenhuma fé, direcionando ainda mais a forma de ler para a
apologia à tolerância.
A lógica para isso se encerra na constatação apresentada pela revista (e já
analisada por nós): Para ele, há alguns valores, como a ética, que são
constitutivos do ser humano em qualquer cultura ou tempo e que deveriam ser
cultuados por todos. Em um tópico intitulado Ética e Religião (Superinteressante,
p. 51,52) é dito que segundo o líder não é preciso ter religião para ter ética. (...) Para ele, espiritualidade e religião não são sinônimos. O Dalai é um grande defensor de ações ecumênicas. Ele acredita que a ética transita em qualquer fé e é a viga central na construção de um mundo mais feliz.
Conforme explicitamos em outros momentos deste trabalho, existe a
representação do budismo separando espiritualidade de religião institucionalizada.
Notamos anteriormente, inclusive, que essa é uma preocupação recorrente nas
falas do Dalai Lama. A autora da matéria garante a formação de idéia de
tolerância uma vez que afirma que o mesmo é um grande defensor de ações
ecumênicas. Já dissemos que o ecumenismo é, mais especificamente, um
movimento favorável à união de igrejas cristãs. Talvez a autora tenha querido se
referir ao diálogo entre diferentes credos, o que se aproxima da conceituação que
demos para ‘sincretismo’, como sendo a conciliação e / ou fusão de religiões de
suas tradições culturais. O que nos interessa é a menção ao tema dessa
‘interação’ de credos distintos feita pela enunciadora da revista. Da mesma forma,
é relevante ressaltar a parte do enunciado sobre a afirmação de que a ética
transita em qualquer fé, referindo-se a toda religião, pelo fato de a representação
do budismo lançar vistas às religiões, naquilo que possuem de equivalências, de
complementações, de sínteses (Carvalho, 1991, p. 8).
Remontamo-nos ao que é dito à página 50 para concluir a análise da revista
Superinteressante: A ausência quase completa de proselitismo religioso (...) faz
com que até o mais empedernido dos ocidentais tenha condições de incorporar os
ensinamentos do Dalai em seu cotidiano. Em sua representação, o budismo, via
Dalai Lama, novamente é despido de um caráter doutrinário, pois não é carregado
de proselitismo. Textualmente é mostrado que qualquer pessoa pode
compreender e até mesmo passar a vivenciar o que o monge diz. Interessante a
escolha lexical da autora no momento em que usa o adjetivo empedernido,
buscando caracterizar o ocidental como alguém que não se deixa persuadir,
inflexível, mas que iria se sensibilizar frente à argumentação do líder budista.
A SGI (p. 10) entrevista a jornalista e integrante da associação, Mariane
Pearl, que teve seu marido, Danny Pearl, repórter do Wall Street Journal,
seqüestrado e morto em Karachi, no Paquistão, em 2002, por motivos religiosos,
não explicitados no texto. Ela relata que é uma batalha contínua lidar com a raiva,
a tristeza e o choque, entretanto menciona (SGI, p. 11): Ainda acredito no
altruísmo, na tolerância, na justiça e em todos os elementos que baseiam nossa
vida. São muito fortes e estão firmes em nós. São mencionados, em seqüência, os
valores do ‘altruísmo’, da ‘tolerância’ e da ‘justiça’, possibilitando inferir que podem
fazer parte de um mesmo campo semântico, ou seja, há uma equiparação no nível
do significado que direciona o enunciatário para uma leitura do tipo: ‘Ainda que
soframos muito, temos de ser altruístas, tolerantes e, conseqüentemente, seremos
justos’.
Pergunta-se, a seguir, à jornalista como podemos lutar contra o terrorismo?
Ela diz que esperança e compaixão são as únicas ferramentas contra o terrorismo,
Quanto mais as pessoas têm esperança, quanto mais têm empatia, maior será
sua determinação. Discursivamente observa-se a retomada do tema ‘compaixão’,
já estudado por nós anteriormente e que tem crucial importância na representação
do budismo na mídia escrita, tamanho o número de ocorrências em que aparece.
Nesse trecho, ‘compaixão’, ‘esperança’ e ‘empatia’ são postos como ferramentas
contra o terrorismo. A metáfora leva o leitor a considerar que esses valores – que
aqui fazem parte do discurso religioso, visto que a entrevistada fala de um ‘lugar’
budista – podem oferecer resistência ao terrorismo. Semanticamente, esse termo
pode assumir o significado de uma atitude intolerante, de não-consideração do
outro, em que valores próprios ganham um status de hegemonia sobre os dos
demais. Ou seja, o efeito de sentido que o terrorismo assume é o de antagonismo
à tolerância.
Em outro momento da entrevista (SGI, p. 12), diz: Como eu posso odiar os
paquistaneses? Captain, um de meus melhores amigos, é muçulmano e
paquistanês. Em seu discurso, percebe-se a contradição de sentimentos. Todavia,
ao perguntar como pode odiar os paquistaneses, a jornalista delimita, sim, uma
postura de ódio (com a própria marcação do verbo odiar), pois considera,
implicitamente, essa possibilidade. Em contrapartida, existe a instituição do leitor-
modelo da tolerância religiosa do budismo com relação ao islamismo, pois a
entrevistada cita um de seus melhores amigos, como sendo muçulmano e
paquistanês, mesma nacionalidade pelos executores de seu marido.
Na revista Budismo não há uma preocupação de se representar somente
um ramo da religião, o que pode ser verificado desde a capa, na qual há dois
subtítulos que assim se apresentam: Zen-budismo – Alcance a paz de espírito
através da MEDITAÇÃO e Budismo Tibetano – A vida dos monges seguidores do
DALAI LAMA, numa alusão às duas nomenclaturas budistas mais conhecidas – é
o que se verificou no corpus desta dissertação – na mídia brasileira.
A corrente zen-budista, através de seus mestres, teve um papel
fundamental na difusão do budismo no Brasil, após sua chegada no país, no
século XIX. Na atualidade, sua maior representante – e maior difusora – é a monja
Coen, uma das figuras centrais na representação da religião na mídia. Budismo
faz a seguinte chamada na capa: Budismo no Brasil – uma entrevista exclusiva
com Coen, a principal monja zen-budista brasileira. Passemos a explicitar nossas
análises acerca dessa revista.
No editorial (Budismo, p. 3), lemos: Uma nova visão de mundo – é isso que
a filosofia budista propõe. Uma visão calcada em princípios tão simples quanto
fundamentais: menos apego, mais compaixão e tolerância. Como todas as outras
revistas, os temas da ‘compaixão’ e da ‘tolerância’ são retomados pelo
enunciador, o que garante afirmarmos que são produzidas essas isotopias,
quando se representa a religião na mídia. No caso específico de Budismo, isso é
feito logo no editorial, demarcando a importância que os temas assumem ao se
falar nesse credo. Os valores, segundo o autor desse trecho, são simples, mas
fundamentais, associando-os à própria religião. Dito de outro modo, o leitor-
modelo deve-se entender: ‘Menos apego, mais compaixão, tolerância e o budismo
são simples, mas fundamentais!’
Com o título o Tibete é aqui (Budismo p. 23), Fabiana Oliveira assim inicia
sua matéria: Dificilmente um dia poderemos dizer que Buda é brasileiro, mas que
ele está prestes a conseguir cidadania, isto é certeza. Esse comentário nos
remete a uma passagem da última visita do Papa João Paulo II ao Brasil, quando
o líder católico, sorrindo, disse: Se Deus é brasileiro, o Papa é carioca! Os
trocadilhos com o dito popular ”Deus é brasileiro” lançam mão da estratégia do
uso do bom humor. Ao se referir ao budismo, a enunciadora leva o leitor a uma
atmosfera de descontração, o que não deixa de ser uma estratégia de captação:
‘Apesar de falarmos sobre uma religião, relaxe, leitor!’ A cidadania é um instituto
jurídico, no qual um indivíduo legal e oficialmente passa a ser considerado
membro de um país, com capacidade de adquirir direitos e de lhe serem
imputadas obrigações. Ou seja, por direito próprio, Buda já – quase – pode ser
considerado brasileiro. Evidentemente isso é uma extensão do cunho bem-
humorado de que a autora do texto fez uso.
Na seqüência, faz-se referência ao número do Censo 2000, em que 240 mil
pessoas se intitularam budistas e logo, especula-se uma possível causa para isso:
Uma das razões para esta expansão tardia certamente é o fato de o budismo não ter um perfil evangelizador (...). Nada de catequese, muito menos pregação ruidosa. O budismo cresce sem promover grandes agitações. Sem a intenção de ser predominante, os adeptos da religião não se preocupam em atingir números estrondosos: eles querem apenas oferecer às pessoas um caminho para a felicidade e paz.
Menciona-se a ausência de um perfil evangelizador, de catequese e da
pregação ruidosa, sendo possível inferir-se um sentido que nos remete às
religiões de tradição cristã, especificamente as evangélicas, que supostamente
teriam uma preocupação em aumentar o ‘rebanho’, ou seja, ter mais seguidores.
O meio pelo qual alguns pastores (dirigentes espirituais desses credos) investem
na busca de seus fiéis é através de uma pregação exaltada, que tem como
principal ingrediente a comoção generalizada dos participantes dos cultos. A
matéria de Budismo busca veicular a representação de uma religião que cresce,
sem, no entanto, produzir grande alarde e também sem o objetivo de ser
predominante. Um pressuposto de não querer ser hegemônico é exatamente
aceitar, tolerar aquilo que é diferente. Segundo a revista, assim o budismo é,
tolerante.
5. Considerações Finais
As análises realizadas não tiveram a pretensão de esgotar o tema, visto ser
ele mesmo bastante novo. Tanto a religião budista no país, quanto as matérias de
revistas que dela tratam são relativamente recentes. Conforme afirmamos, houve
uma maior veiculação do budismo na mídia brasileira após o Dalai Lama ter
recebido o prêmio Nobel da Paz, em 1989, o que posteriormente ensejou sua
primeira visita ao Brasil, em 1999.
Tal como demonstramos, nossas considerações não adquiriram contornos
de um estudo etnográfico, mas sim versaram acerca das características de uma
representação do budismo na mídia, motivo pelo qual acreditamos que nosso
trabalho se inseriu na crítica da cultura brasileira.
É importante ressaltar que o budismo enquanto fenômeno de mídia é objeto
de estudo relevante. Citando o exemplo da Rede Globo, as aparições do tema se
deram em diferentes suportes, tais como telenovelas (como foi o caso de Começar
de Novo), Jornal Nacional (nos dias 26, 27, 28 e 29 de abril foram feitas menções
à visita do Dalai Lama ao Brasil) e o programa semanal Fantástico, programas
líderes de audiência na televisão brasileira.
Ao representar um tema em seu noticiário, a mídia coloca-o na agenda
cotidiana da grande audiência a que se destina. Em diferentes segmentos da
população, essa questão objeto da divulgação midiática passa a ser assunto de
conversas e comentários, dias seguidos. Ser manchete em programas como o
Fantástico e o Jornal Nacional e matéria de revistas de grandes tiragens
asseguram ao budismo uma projeção extraordinária junto a milhões de pessoas.
Da condição de uma expressão cultural estranha e distante da nossa realidade
torna-se uma filosofia utilitária que podemos adaptar facilmente a práticas distintas
do dia-a-dia.
Não menos importante que as reflexões e constatações feitas acerca do
objeto de estudo foi o próprio processo de construção do referencial metodológico
que utilizamos para analisar os textos que constituem o corpus da pesquisa.
Poderíamos ter adotado outras metodologias que dessem conta da análise dos
discursos das revistas e de uma conseqüente representação social, contudo
encontramos na combinação de Eco (2002) – com a instituição do leitor-modelo –
e Greimas (1966, 1979) – com a concepção de isotopia – uma nova possibilidade
analítica que nos pareceu mais pertinente ao estudo do objeto, o que nos
proporcionou um ganho pessoal relevante. Pesquisas futuras seriam cabíveis no
sentido de desenvolver a aplicação e a amplitude da combinação das teorias
desses importantes estudiosos da linguagem.
Visando à compreensão do percurso temático, foi conveniente apresentar
tópicos relativos aos preceitos doutrinais do budismo com o intuito de aclarar os
conceitos abordados pelos autores das matérias das revistas, bem como pelos
personagens citados em nosso corpus. Evidentemente, isso facilitou o estudo da
representação da religião na mídia impressa.
Com relação ao nosso processo de análise, pudemos ver concretizadas
marcas de determinadas isotopias – a recorrência ou redundância de traços
semânticos (GREIMAS, 1966, p. 73) ao longo dos textos veiculados nas revistas.
Foi possível enumerar as isotopias: do sincretismo / hibridismo; da alteridade /
compaixão; do diálogo inter-religioso e, mais detidamente, da tolerância religiosa.
A revista Época (p. 78) ilustra convenientemente uma dessas constatações
ao afirmar que cresce o contingente de simpatizantes e pessoas que misturam
práticas budistas com suas próprias crenças. Cria-se todo um efeito de sentido
que leva o leitor a inferir um caráter de sincretismo, que, repetimos, em nossa
pesquisa deve ser entendido sob a luz da semântica, como sendo a fusão e / ou
conciliação de religiões e de suas tradições culturais, diferenciando-se de
ecumenismo, que é um movimento favorável ao diálogo entre igrejas de profissão
cristã.
Acreditamos que o que mais influencia nessa representação é o próprio
processo de globalização, que deslocou as identidades culturais. O sujeito pós-
moderno não pode mais ser caracterizado como tendo uma identidade fixa,
determinada ou permanente. A identidade torna-se uma celebração móvel (HALL,
2003, p. 13), sofrendo inúmeras transformações em relação ao modo como somos
representados culturalmente.
Nessa perspectiva, pensamos que a comunicação globalizada , emergindo
em seus diversos meios, exerce um papel fundamental nisso – produzindo aquilo
que podemos chamar de identidades não permanentes, móveis e, no caso do
budismo, sincréticas.
A constituição de uma identidade dita budista somente pode ser traçada se
levarmos em conta esse caráter híbrido, multifacetado e disperso no qual nos
encontramos historicamente. O poder simbólico, no qual estão necessariamente
inseridos os valores culturais – e religiosos –, exerce uma influência na vida dos
indivíduos e as implicações disso são diversificadas. Podemos dizer que a
representação do budismo veiculada nas revistas estudadas revela não“o”
budismo, mas sim vários “budismos”, nos quais as delimitações das tradições
religiosas são insuficientes para caracterizar uma única identidade budista.
Somente considerando uma identidade múltipla e cambiante é que
podemos compreender a representação que se faz de personalidades tão distintas
apresentadas nas revistas: a monja zen-budista, Adriana Thomaz, a qual diz
gostar de forró, fazer ‘spinning’, tem duas filhas, namora e é médica acupunturista
(revista Oi, outubro / novembro de 2004); o instrutor de ginástica Eduardo Martins
Machado, sobre quem se fala ter sido fã da banda Kiss e guitarrista de um grupo
de rock na adolescência e que transformou a academia Reebok de São Paulo,
onde trabalha, em um local de práticas budistas por ter criado o dia Zen (Isto é, p.
51); o policial militar Leonardo Nunes Barreto, que quer aulas de meditação para
todos os militares (Isto é, p. 53).
A representação social do budismo na mídia brasileira, sob a perspectiva
que nos propusemos a analisar, também precisa levar em consideração aquilo
que adotamos chamar de vedetização. Textualmente, os líderes religiosos
mostraram ter consciência de que, numa arena globalizada, as ‘vedetes’ ou
celebridades podem auxiliar na difusão da religião. As aparições de atores
nacionais e internacionais associando-se ao budismo demonstraram isso. No
percurso figurativo isso é relevante: cria-se um efeito icônico em que o leitor vê
seus ídolos fazendo parte do universo budista e evidentemente isso é uma
estratégia de captação.
Verificamos uma representação em que o Dalai Lama sabe de sua
condição de pessoa pública, mundialmente conhecida e que o fato de ser a maior
celebridade em torno do assunto budismo não o incomoda. Em seu índice, Época
(p. 06) traz a legenda: Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano, virou um
superstar da fé (grifo nosso). O termo destacado denota um sentido de
popularidade, de sucesso e, por isso, de estrelato. Na mesma revista (p. 77), ele é
perguntado: O que acha de ser tão popular entre as celebridades mundiais? Ao
que responde: Não há diferença. Não importa se me vêem como celebridade, estrela de rock ou guru. O que interessa é minha própria motivação. Toda manhã tento dar uma forma apropriada a ela. O ponto de vista das outras pessoas a meu respeito é uma questão delas. Alguns me acham um bom sujeito, outros me consideram um reacionário ou separatista. Não me importa. Muitos anos atrás, durante a Revolução Cultural, os chineses diziam que eu era um lobo em pele de cordeiro, enquanto outras pessoas me consideravam um deus vivo. Bobagem.
Percebemos que a motivação a que o Dalai Lama faz referência tem um
duplo direcionamento: chama-se a atenção dos líderes políticos para a questão do
Tibete, que continua sob o domínio da China; e divulga-se a religião ao redor do
mundo. Talvez sem a vedetização isso não seria possível.
No que tange à isotopia da alteridade, verificamos que a visão que o
budismo faz do outro, querendo a ele oferecer benefícios, é traduzida pelo termo
‘compaixão’. Inúmeras referências foram feitas ao tema, instituindo-se, pois, o
leitor-modelo da apologia da compaixão. Cria-se, textualmente, um plano de
leitura, uma maneira de ler, que determina que se faça uma associação quase que
imediata entre budismo e compaixão.
Num percurso temático, outros valores são reiteradamente mencionados:
‘altruísmo’, felicidade, bondade, serviço ao próximo, solidariedade, humildade,
igualdade, amor, temas que fazem parte do discurso religioso e que, igualmente,
determinam o modo de produção de sentido dos enunciados das revistas,
buscando constituir um leitor ‘atento’ para o fato de o budismo elevar aludidos
valores a elevados patamares.
A atual configuração histórica brasileira e a forma como os valores
simbólicos transitam na sociedade nacional influenciam o cenário religioso. Isso se
verifica no universo ‘local’ e também no ‘global’. Há uma forte representação dos
discursos budistas e do discurso sobre o budismo veiculados na mídia no sentido
de promover o diálogo inter-religioso. Fartamente são explicitadas falas do Dalai
Lama e de Daisaku Ikeda (presidente da Soka Gakkai International - SGI) fazendo
menção à necessidade do diálogo. Uma possível causa para isso seria o fato de
que as religiões guardariam equivalências, semelhanças, uma vez que apontariam
para a observância de valores comuns a elas. Essa é uma representação
recorrente na mídia impressa com relação ao budismo.
Foi possível constatar que todas as isotopias confluíram para uma isotopia
temática maior, qual seja, a da tolerância religiosa do budismo com relação aos
outros credos. Inúmeras marcas textuais foram encontradas nesse sentido e a
recorrência semântica, no nível temático, foi abundante. Segundo os textos
midiáticos, invariavelmente não é professada uma conversão formal a essa
religião. Os entrevistados são descritos como pessoas que não ‘abandonaram’
sua antiga crença, contudo passaram a incorporar ensinamentos budistas em
seus cotidianos.
Representado dessa forma, o budismo era apontado como uma religião
atraente. Em alguns momentos verificamos um certo tom mercadológico, como se
o credo fosse efetivamente um produto acessível a todos e fácil de ser
‘consumido’. Verificou-se uma estratégia de captação marcante de aproximação
entre o leitor e o budismo, lançando mão de uma linguagem carregada de
informalidade, criando-se assim uma atmosfera de intimidade. Isso ocorria de
modo especial quando o Dalai Lama era representado. Comumente os líderes
religiosos são associados à seriedade, à introspecção e ao distanciamento. No
entanto, o monge budista falava de maneira descontraída, com momentos de riso
– nos textos havia a preocupação de enfatizar a descrição de cenas hilárias, com
as legendas risos (Época, p. 73, p. 74 (duas ocorrências), p. 75 (três ocorrências),
p. 76, p. 77 (duas ocorrências)) – o que igualmente oferece um plano de leitura de
um ambiente prazeroso, tranqüilo e alegre.
Um ponto merece ser destacado nessas Considerações Finais: a
recorrência da alusão ao tema da ‘não conversão ao budismo’, atualizado em
diversos momentos nas revistas do corpus. Um motivo apontado textualmente é o
de que todas as religiões ‘beneficiariam’ os indivíduos, independentemente de sua
nomenclatura, razão pela qual não seria necessária uma conversão a essa religião
oriental, mas sim o fato de as pessoas buscarem uma transformação espiritual,
não necessariamente religiosa. Isso permitiria deduzir que um novo elemento se
consolida no quadro de uma cultura brasileira já tão híbrida, sincrética.
Dessa forma, verificamos através da análise dos enunciados selecionados
das revistas que, discursivamente, foi sendo tecida a isotopia da tolerância do
budismo com relação aos outros diversos credos. Complementarmente, esses
mesmos enunciados indicam um forte movimento de aceitação do budismo por
diversos segmentos da sociedade brasileira. E essa é a grande representação
dessa religião na mídia impressa nacional da atualidade.
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