anais do iii congresso nacional de pesquisadores … · danÇa como provocadores de procedimentos...
Post on 19-Nov-2018
215 Views
Preview:
TRANSCRIPT
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
1
PROCESSO DE CRIAÇÃO: ALUNOS DE COMPOSIÇÃO COREOGRÁFICA DO CURSO DE LICENCIATURA EM
DANÇA COMO PROVOCADORES DE PROCEDIMENTOS ARTÍSTICOS DO PROFESSOR-ORIENTADOR.
Paula Francisco Salles (FPA)*
RESUMO: O conceito de artista-docente trabalha com a proposta de cruzamento entre os
papéis de artista e de professor. A partir dessa ideia, este artigo pretende demonstrar
como o processo de orientação de composição coreográfica provoca procedimento
artístico e criativo também no professor-orientador. A pergunta em torno desta
investigação é: em que medida os procedimentos pedagógicos, organizados de maneira
lógica e racional, podem ser atravessados (ou substituídos) pelo pensamento artístico
que, muitas vezes, não ocorre de maneira linear, uma vez que – mesmo planejado – nem
sempre é previsível.
PALAVRAS-CHAVE: Artista-Docente. Professor-orientador. Composição Coreográfica.
CREATION PROCESS:
STUDENTS CHOREOGRAPHIC COMPOSITION OF COURSE BACHELOR OF DANCE ARTS PROCEDURES AS PROVOCATEURS TEACHER – ADVISOR.
ABSTRACT: The concept of artist-teacher works with the proposal for a cross between
the roles of artist and professor. Starting from this idea this article intends to demonstrate how the guidance process of choreographic composition causes an artistic and creative procedure also on the teacher Advisor. The question behind this investigation is to what extent the pedagogical procedures organized logically and rationally can be replaced by the artistic thinking that often does not occur in a linear fashion and can not always be planned and predictable. KEYWORDS: Artist-Teacher. Professor-tutor. Students coachees. Choreographic
Composition.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
2
A proposta deste artigo surgiu primordialmente das experiências de orientações
dos Trabalhos de Composição Coreográficas dos alunos do curso superior de
Licenciatura em Dança da Faculdade Paulista de Artes e parte do questionamento sobre
o que é um curso de licenciatura em dança que tenha como pressuposto formar artistas-
docentes, ou seja, que assuma o cruzamento de papéis entre as profissões de professor
e artista.
A formação desse conceito de artista-docente, oriundo de lsabel Marques (1999), é
consequência de uma série de desdobramentos teóricos que passam pela proposta
triangular de Ana Mae Barbosa sobre o arte-educador (1991, 1992, 1995), pela
emancipação da liberdade e autonomia na construção de conhecimento de Paulo Freire
(1982,1983) e pelos conteúdos específicos da dança categorizados por Rudolf Laban
(1966, 1975, 1978, 1985).
No entanto, outras redes teóricas importantes estão presentes na formulação do
conceito do artista-docente; entre elas um ensino de dança preocupado em não perpetuar
a formação de corpos docilizados, como revelam os estudos produzidos pelo filósofo
Michel Foucault (1991), fruto de um processo de subjetivação institucionalizado pelos
órgãos governamentais ou privados.
Sobre esse viés, que pensa a formação de um “corpo-crítico” em dança, é
essencial considerá-lo em todos os âmbitos. Desse modo, cabe a preocupação na
formação dos alunos de licenciatura da área, prováveis responsáveis pelo ensino de
dança nas escolas, assim como dos docentes que atuam no nível superior, responsáveis
pela formação destes professores.
Feitas essas considerações, traremos para esta discussão duas definições sobre
dispositivos que auxiliam a pensar de que maneira é possível reconhecer o artista através
dos seus procedimentos pedagógicos em sala de aula, bem como de que maneira esses
dispositivos contribuem para a formação de artistas-docentes no curso de licenciatura em
dança da Faculdade Paulista de Artes.
Sobre dispositivos
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
3
O Novo Dicionário Aurélio (2009, p. 689) traz sobre dispositivo as seguintes
definições:
(...) Regra, preceito, prescrição; Mecanismo disposto para se obter certo fim;
Conjunto de meios planejadamente dispostos com vista a um determinado fim.
Nessa definição cabe também a ideia dos dispositivos biológicos, aqueles
presentes em qualquer organismo vivo, cujos processos evolutivos diferenciam-se entre
si, responsáveis pelo desencadeamento da série de reações químicas e neuronais que
interferem no comportamento do organismo.
Em relação ao corpo humano serão consideradas aqui as formas de elaboração de
pensamentos, propostas pelo neurocientista António Damásio (2012, 2013).
Para esse estudioso do cérebro e dos processos mentais, a racionalidade e a
razão são aplicadas e operadas de maneiras diferentes, conforme os tipos de decisões a
se tomar. Há decisões que estão no âmbito mais pessoal e social imediato, por exemplo:
com quem se casar, perdoar ou não a alguém, em quem votar; ou outras como carreira,
emprego; enfim, aquelas em que, segundo o autor, aplicam-se racionalidade e razão
práticas. No entanto, há outras decisões de âmbito social, não tão imediato, como
resolver um teorema, construir um edifício ou mesmo compor uma peça musical –
diretamente proporcional a compor uma coreografia. Todos esses exemplos demandam
consequências que exigem conhecimento prévio da situação, para que a decisão tomada
seja a mais vantajosa, isto é, garanta os meios de sobrevivência do indivíduo ou da sua
espécie. Essas decisões requerem estratégia de planejamento lógico e investem-se tanto
de razão teórica quanto de razão pura.
Existem ainda outras decisões que, embora não prescindam de raciocínio lógico,
muitas vezes não chegam à consciência explícita, pois se tratam de situações
automatizadas pela experiência e, assim, são desencadeadas no cérebro, como
respostas rápidas para determinados estímulos. Nesse aspecto, o autor exemplifica o
desvio brusco da cabeça ao perceber a queda de um objeto em direção a ela. (DAMÁSIO,
2012).
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
4
Os mecanismos que operam cada uma dessas formas de decisões são de
naturezas bem distintas; por isso agem com dispositivos mentais e neuronais diferentes
que auxiliam nas escolhas. Apesar do nível de complexidade que envolve esses
processos há, segundo o autor, um fio condutor que os une, um núcleo neurobiológico
comum. As emoções e os sentimentos emocionais seriam, para Damásio (2012, 2013),
esse núcleo biológico comum.
As emoções fazem parte de um princípio evolutivo de regulação da vida, entre
punição e recompensa, que antecede a consciência; trata-se de programas corporais
complexos, geralmente automatizados que sincronizam ações e sentimentos. Quando
alguma emoção ocorre, como raiva, alegria ou medo, ela desencadeia uma série de
reações químicas e neuronais que resultam em uma ação, como a liberação de moléculas
e secreções, que podem provocar a dilatação da pupila ou a fuga – no caso do medo, por
exemplo.
Quando se inicia um processo de tomada de decisão, a mente não está vazia, e
todos os registros necessários e conhecidos suscitam no cérebro em forma de imagens,
mapeamento, em sobreposição, para que a escolha seja a melhor opção de resposta –
consciente ou não. No entanto, quando essas imagens são mapeadas no cérebro, elas
vêm acompanhadas de outros registros corporais fora dele; em outros locais do corpo –
os chamados sentimentos emocionais (as sensações – grifo meu). Esses sentimentos
são as percepções de como a nossa mente e as outras regiões do corpo agem quando a
emoção ocorre. Damásio (2012, 2013).
A distinção geral entre emoção e sentimentos, portanto, é razoavelmente clara. Enquanto as emoções constituem ações acompanhadas por ideias e certos modos de pensar, os sentimentos emocionais são principalmente percepções daquilo que o nosso corpo faz durante a emoção, com percepções do nosso estado de espírito durante esse mesmo lapso de tempo. Em organismos simples capazes de comportamentos mas desprovidos de um processo mental, as emoções também podem estar vivas, mas não necessariamente são seguidas por estados de sentimento emocional. (DAMÁSIO, 2013, p.142)
A esse mecanismo – que envolve o processo de racionalidade que relaciona
mente, cérebro, outras regiões do corpo e ambiente – Damásio (2013) denominou de
marcador-somático.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
5
Em suma, os marcadores somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários. Quando um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador-somático positivo, o resultado é um incentivo. (DAMÁSIO, 2012, p.163)
Vale lembrar que o marcador-somático, mecanismo automatizado que auxilia na
tomada de decisões, não é suficiente para realizarmos a escolha; ele atua aliado a uma
série de outros procedimentos complexos do cérebro, de modo consciente ou não, na
elaboração da forma de pensamento. Há simbiose entre os processos cognitivos e
processos geralmente designados como “emocionais”. “No entanto, apesar de muitas
escolhas importantes envolverem sentimentos, boa parte de nossas decisões cotidianas
ocorre aparentemente sem eles” (DAMÁSIO, 2012, p.172)
O pensamento intuitivo é consequência de ação oculta, inconsciente, de um
estímulo inibidor ou de aproximação de um marcador-somático, que gera mecanismo pelo
qual chegamos à solução de um problema sem raciocinar, com vistas a essa solução. É
esse tipo de pensamento que parece ser comum entre cientistas e artistas, entre os quais
nem sempre o raciocínio lógico é necessário. Damásio (2012, p.175) cita o físico e
biólogo, Leo Szilard, com quem compartilha essa ideia:
O cientista criador tem em comum com o artista e poeta. O pensamento lógico e a capacidade analítica são atributos necessários a um cientista, mas estão longe de ser suficientes para o trabalho criativo. Aqueles palpites na ciência que conduziram a grandes avanços tecnológicos não foram logicamente derivados de conhecimento preexistente: os processos criativos em que se baseia o progresso da ciência atuam no nível do subconsciente. (SZILARD, 1992) apud (DAMÁSIO, 2012, p. 175)
Por meio desses conceitos, podemos perceber que, conforme a natureza dos
pensamentos humanos e os estímulos provocadores, os dispositivos biológicos vão atuar
de maneiras muito diferentes, a fim de que possamos fazer a escolha que garanta a
sobrevivência da espécie, seja em nível pessoal ou social mais imediato, seja sob o
aspecto das consequências sociais que essa escolha possa acarretar. Existem casos em
que as opções apresentam-se em milésimos de segundos de imagens cerebrais, que
permitem a percepção de nós mesmos e projeção de ideias e sentimentos do outro a
nosso respeito.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
6
Algumas decisões prescindem de um raciocínio lógico e logarítmico, outras
requerem respostas mais automatizadas pelas experiências registradas em nosso corpo
e, muitas vezes, dispensam o raciocínio. O que não se nega é que todas elas, de forma
mais ou menos consciente ou mais ou menos perceptível, são acompanhadas da emoção
que, dentro do processo evolutivo do ser humano, tornou-se mecanismo de regulação da
vida. Esses mecanismos biológicos, que interferem na maneira como decidimos por algo,
são construídos numa relação direta com a cultura, ou seja, com o ambiente no qual eles
estão inseridos. Desse modo, segundo Damásio (2012), nunca se pode deixar a emoção
de lado para se tomar uma decisão.
Outro conceito de dispositivo que apresentamos aqui é o, primeiramente, elaborado
pelo próprio Foucault e recontextualizado pelo filósofo italiano contemporâneo, Giorgio
Agamben (2009), e utilizado pela pesquisadora Christine Greinner (2010) para identificar
quais são os norteadores que interferem no processo de criação da dança
contemporânea no Brasil.
Segundo Agamben (2009), Foucault – ao usar o termo dispositivo – referia-se a
três pontos:
a) É um conjunto heterogêneo linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. o dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b) O dispositivo tem sempre uma função estratégia concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c) Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e relações de saber (AGAMBEN, 2009, p.29)
O autor salienta que, para Foucault, o dispositivo está a serviço do processo de
subjetivação, ou seja, da formação de um sujeito que seja conivente, ou melhor, que
tenha incorporado, no sentido próprio de ter tornado corpo, corporificado, as relações de
poder e políticas estabelecidas pela máquina do Estado.
Contudo Agamben (2009) reconhece que o mecanismo político contemporâneo tem
outras estratégias de subjetivação em que não é mais necessário o “corpo a corpo”
promovido por máquinas, órgãos institucionais políticos tradicionais, mas que ficam a
encargo das atuais tecnologias de comunicação como Internet, celulares, televisão,
câmeras de monitoramento urbano e outros aparelhamentos afins, nos quais não é mais
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
7
possível constatar a produção de um sujeito real, mas de uma recíproca indiferenciação
entre subjetivação e dessubjetivação, da qual surge apenas um sujeito espectral.
Para Agamben (2009, p.41) dispositivo passa a ser definido como:
Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de orientar, determinar, interceptar, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata-provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiram – teve a inconsciência de se deixar capturar.
Diante dessa definição, Greinner (2010) elaborou uma cartografia da dança, feita
em diferentes regiões do Brasil, entre 2009 e 2010, pelo programa Rumos Dança do Itaú
Cultural. A partir dessa pesquisa identificou os principais dispositivos invisíveis que
interferem no processo de criação em dança contemporânea no país: descontinuidade,
regras de empregabilidade e reverência colonial.
A descontinuidade faz referência: ao tempo das iniciativas e aprendizados de
trocas de pesquisas artísticas, em diferentes esferas institucionais, seja de caráter público
ou privado, que por motivos diversos têm suas ações enfraquecidas ou interrompidas; e
às mudanças rápidas, nos modos de produção dos próprios artistas, uma vez que são
constantes as alterações no mercado cultural, que desarticulam vários processos
investigativos na linguagem da dança contemporânea e interrompem, segundo Greinner
(2010), a construção de um corpo crítico em dança:
O corpo crítico é aquele que elabora corporalmente uma questão e, para tanto, o tempo é fundamental. Em poucos dias ou meses é possível estudar alguma coisa, mas para desenvolver uma pesquisa (única forma de desenvolver um pensamento crítico), a dinâmica é bastante diferente e exige longos períodos de dedicação (...) Fazem parte dessa classe de dispositivos os tempos dos editais, os cursos de curta duração, os workshops eventuais, a pressa para ingressar no mercado de trabalho, a pressa para conseguir um diploma assim por diante. (GREINNER, 2010, p.22)
Para a autora esses mesmos dispositivos, associados às regras de
empregabilidade, flexibilidade, adaptabilidade e competitividade, identificadas pelo
comunicólogo Martins-Barbero (2003), são responsáveis por inibir a pesquisa crítica e
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
8
desenvolver capacidades, destrezas e competências temporárias que permitem a rápida
inserção no mercado de trabalho.
Por fim, o último dispositivo identificado pela autora, a reverência colonial, trata da
hierarquia de saberes que valoriza as formas de conhecimentos estruturadas por
europeus, que migraram para o Brasil e deram início a história da dança cênica
profissional; ou de bailarinos brasileiros, formados no exterior, que passaram a atuar aqui.
Essa reverência colonial ainda se reproduz em várias instâncias, uma delas é, por
exemplo, a valorização de coreógrafos estrangeiros que são chamados para criação de
trabalhos em companhias brasileiras. Greinner (2010) entende que é necessário adotar o
que propõe a teoria crítica do autor Santos (2006) uma epistemologia local e
descentralizada dos saberes.
Neste artigo pretendemos demonstrar como esses dispositivos interferem na
atuação do professor-orientador de trabalhos de composição coreográfica, considerado
seu papel simultâneo de artista-docente. A pesquisa baseia-se em registros e análises, no
âmbito das experiências de orientações de trabalhos de composição coreográfica,
realizadas com alunos de 5º e 6º semestres de Dança, entre 2013 e 2014, na Faculdade
Paulista de Artes.
À medida que reorganiza as metodologias de ensino de composição coreográfica,
o professor-orientador reorganiza os próprios métodos de criação em Dança, seus
registros automatizados e corporificados, uma vez que é contaminado pelas temáticas
desenvolvidas pelos alunos. Sem perceber se distancia do que afirma Marques (1999),
sobre a escolarização do ensino de arte, na qual o papel de professor restringe-se em
informar de que maneira devem ser aplicados os métodos de elaboração de um discurso
em determinada linguagem.
Se os dispositivos biológicos atuam de modo semelhante, em pessoas sem
distúrbios neurológicos, é necessário que identifiquemos quais são os dispositivos de
poder que permeiam o processo criativo dos Trabalhos de Composição Coreográfica dos
alunos do curso de Dança da FPA, com certeza, descontinuidade, regras de
empregabilidade e reverência colonial, são dispositivos que também estão presentes
nesses processos, porém há outros que devem ser levantados:
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
9
No curso em questão, a maioria dos alunos é formada em academias1 de dança e,
por priorizarem a reprodução de formas ou adquirem a primeira formação na própria
faculdade, falta-lhes a prática na criação em dança.
Uma estética de dança associada às apresentações de final de ano de academias,
como forma de exibir para os familiares o progresso da escola durante o ano na formação
de seus alunos, bem como a estética vinculada a festivais competitivos de dança que
enfatizam o virtuosismo técnico, as performances espetaculares e a narrativa linear.
Assim, nota-se a dificuldade em reconhecer a linguagem da dança como forma de
elaborar um discurso.
Unem-se a esses fatores as exigências burocráticas do curso, necessárias em
qualquer instituição de ensino superior, para a obtenção do certificado de licenciado em
dança: a criação prática de uma composição coreográfica articulada à escrita de uma
monografia cuja proposta pedagógica evidencie o papel do artista-docente. Ambas as
propostas devem ser relacionadas e construídas concomitantemente em
aproximadamente 9 a 10 meses, considerado o período de férias (julho) em que as
pesquisas deveriam prosseguir sem orientação do professor. Outra exigência feita é que
as composições devem conter um pensamento contemporâneo de dança, ainda que não
haja, num primeiro momento, rompimento com os padrões técnicos nos quais os alunos
foram formados antes da faculdade.
Um pensamento contemporâneo de dança seria aquele que, segundo Marques
(1999), tenha sido propagado pelas experiências realizadas em Nova York entre as
décadas de 1960 e 1970, pelo grupo Judson Dance Theater, em que a dança pós-
moderna seria lida muito mais como questionamento dos alicerces que animavam a
dança moderna do que uma rejeição de seus estilos.
Outra definição que entendemos como um pensamento contemporâneo de dança e
que dialoga com os princípios formulados por Marques é a adotada por Greinner (2010),
trazida pelos autores Adolphe e Louppe (2007), os quais definem,
a dança contemporânea como uma dança apta a criar corpos críticos que não apenas replicam modelos mas produzem questionamentos com base nas próprias
1 O termo academia de dança será lido neste artigo como escolas de formação em dança fora do ensino superior: faculdades e universidades.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
10
experiências corporais. Nesse viés, para aprender a dançar é preciso articular conexões. Assim a “crítica” a qual os autores se referem não deve ser entendida como no senso comum (criticar algo ou alguém). O corpo crítico é aquele que elabora corporalmente uma questão e, para tanto, o tempo é fundamental”. (GREINNER, 2010, p.22)
Desse modo, além dos antecedentes de formação em dança, trazidos pelos
alunos, a burocracia – pertinente a uma instituição de ensino superior de dança privado –
acaba por enfatizar ou reafirmar alguns dispositivos de poder que interferem na criação e
no ensino da dança no país, bem como na possibilidade de exercer o cruzamento de
papéis do artista-docente.
O reduzido tempo para elaboração da pesquisa seja ela de caráter teórico ou
prático, a criação de um trabalho para obter nota, avaliação, a descontinuidade de um
processo que pode se encerrar no momento da formatura. Sabemos, no entanto, que
regras como essas, que delimitam as relações criativas, ocorrerão em instâncias maiores
ou menores, dentro ou fora das instituições de ensino, entretanto cabe pensar como
esses acordos podem ser construídos ou transgredidos considerando a preocupação de
formarmos artistas e professores que devem ser críticos.
A priori, uma solução encontrada foi a de que cada aluno possa desenvolver o
próprio tema coreográfico; a exigência é que ele seja o coreógrafo da composição ainda
que não a interprete. Esse fato acaba, muitas vezes, por desarticular dispositivos de
composição coreográficos que são sugeridos como métodos de criação durante a
disciplina para essa finalidade.
O professor-orientador e o artista-docente
Os temas escolhidos, para serem coreografados pelos alunos, estão diretamente
vinculados a interesses pessoais e paixões e abrangem vasta discussão que exige
habilidade e cautela, na orientação, uma vez que as temáticas envolvem complexidade de
problemáticas pessoais e sociais que se tornam visíveis à medida que os procedimentos
de criação desenvolvem-se. Assim, conforme sugere Marques (1999), é o conhecimento
em dança que possibilita tecer os fios dessas urdiduras, quando as funções de
dançarinos, coreógrafos e diretores – neste caso específico de orientadores – não se
encontram formatadas ou escolarizadas.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
11
Marques (1999) ressalta, ainda, que o ensino de arte nas escolas é muitas vezes
pautado numa relação dicotômica e dualista, em que são tidos como opostos os
pensamentos de educador - professor - responsável pelo planejamento pedagógico e do
artista, responsável pela proposta de experiências artísticas.
É justamente sobre esse aspecto que este texto propõe-se a refletir, isto é, como o
cruzamento de papéis (artista-docente) torna-se identificável na figura do orientador das
composições coreográficas e que importância esse fato exerce na formação dos alunos
do curso de Licenciatura em Dança.
O que percebemos é que os dispositivos que interferem na elaboração de
pensamento de atuação do professor-artista alteram-se conforme o enfoque da
orientação, momento em que ressalta, mais ou menos, um desses papéis. Em
consequência, a reestruturação de metodologias de criação em dança possibilita a
desarticulação de dispositivos de poder e aproxima o diálogo com os contextos que
envolvem os temas escolhidos pelos alunos.
Cabe lembrar que a distinção entre os dispositivos de elaboração de pensamentos
não significa, de modo algum, que esses pensamentos ocorram de maneira dicotômica ou
dualista, e sim que abrangem formas diferentes do uso da razão, conforme explicou
Damásio (2012, 2013).
O pensamento pedagógico quase sempre é definido pelo planejamento das ações
e parece apontar para uma direção e uma finalidade mais clara e delimitada para onde o
aluno deve chegar, que tipo de aprendizado e comportamento esperar dele. Já o
pensamento artístico nem sempre tem claro, de imediato, por qual caminho e como o
artista deseja chegar ao ato da criação, ou mesmo de que forma o público deverá
vivenciar essa experiência artística, de modo que se pode chegar a lugares e
desdobramentos imprevisíveis.
Diante das exigências do curso que devem ser cumpridas e da necessidade de
aprendizado do aluno de elaborar um discurso crítico na linguagem da dança, as
metodologias de orientações modificam-se; num primeiro momento, o viés pedagógico
parece assumir a situação, é o professor – munido de pensamento, racional, lógico e
linear – quem primeiro instrui os caminhos de criação coreográfica.
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
12
Nessa primeira etapa, muitos alunos ainda estão por definir qual será o tema no
qual se debruçarão nos meses seguintes. O conteúdo programático da disciplina busca
cumprir os seguintes propósitos: ampliar a capacidade de criação em dança explorando
formas de movimentação, através de exercícios de improvisação e a prática de
elaboração de discursos utilizando técnicas e métodos de composições coreográficas,
como o sistema binário (AB), ternário (ABA) ou o rondó (ABACADA), repetição, variação e
contraste e muitos outros métodos conhecidos e utilizados.
Essas metodologias mostram-se eficientes na primeira etapa de formação desses
alunos. À medida que os temas das pesquisas se delineiam, torna-se deficitária a
unicidade nos modos de orientação sobre processos distintos, pois nem sempre um
mesmo estímulo de criação atingirá de modo profícuo a todos, dadas as temáticas
diferenciadas, assim como as personalidades, que geram respostas singulares.
Vale lembrar que, ao tentar descaracterizar formas de criação em dança ou mesmo
propor um caminho de composição, por meios já reconhecidos e codificados como tal,
também propomos pensamento pedagógico, bem como pensamento político e ideológico;
e corremos novamente o risco de instaurar novas “verdades universais”, agora revestidas
da justificativa do pensamento artístico contemporâneo. É assim que, muitas vezes, ao
frequentarmos os espaços destinados à exibição de trabalhos de dança, quase
acreditamos que exista uma estética definida para dança contemporânea, tamanha a
semelhança das propostas apresentadas.
As redes de relações educacionais implícitas em processos de criação semelhantes a este não raramente se transformam em redes de poder autoritário e de dominação que não permitem construção de conhecimento propriamente dita. Ao contrário, pode gerar a reprodução desse conhecimento, ou seja, do próprio produto artístico por parte de seus intérpretes. (MARQUES, 1999, p. 106)
Ao se deixar envolver por esse emaranhado de relacionamentos que formam a
orientação coreográfica é que emerge o artista-docente, muito mais no professor-
orientador dos processos do que nos próprios orientandos, preocupados em
desempenhar bem a parte prática e a teórica dos TCC. As temáticas desenvolvidas pelos
alunos contaminam não mais o professor, mas o artista, que se coloca ele mesmo como
experimentador dos próprios estímulos que partem dos múltiplos universos trazidos pelos
alunos, reinventando procedimentos de criação ao mesmo tempo em que os propõe para
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
13
eles. Assume-se, então, entre orientador e orientando, professor e aluno, um lugar de
risco, pois uma vez aberto o caminho de investigação não há controle para onde ele
possa seguir.
O pensamento artístico sobressai em relação ao pensamento pedagógico, pois há
rompimento nos dispositivos de criação do artista-orientador2, outra denominação dada ao
cruzamento desses papéis que procuram suscitar artistas-críticos e criadores.
É importante lembrar que o professor não é regido exclusivamente pelo
pensamento lógico, racional e planejado, da mesma forma que o artista não é movido
pela ausência dele por pautar-se exclusivamente na intuição. Ambos transitam sobre as
duas características, mas talvez cada uma dessas funções tenda a enfatizar uma das
formas de organização do pensamento, com a qual o praticante torna-se mais
familiarizado e habilidoso.
Dessa reflexão emergem, no mínimo, três indagações. A primeira delas é qual a
importância de – dentro de um curso de licenciatura em dança – identificar-se o artista-
docente na figura do próprio professor-orientador de composição coreográfica?
A segunda: como estipular um limite entre estes papéis dentro de sala de aula por
parte do orientador?
Por fim, como a orientação de processos de composições coreográficas serve para
alimentar a atuação artística do professor do ensino superior em dança comprometido
com as atribuições acadêmicas?
2 Termo criado e utilizado pelo Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, que
também procura definir o cruzamento de papéis que envolvem o ensino e a experiência artística. Neste programa o princípio pedagógico adotado é o do mestre ignorante, proposto por Ranciére, no qual se propõe uma observação dos fenômenos para se pensar uma ação artístico-pedagógica. “Nesse sentido, o trabalho é direcionado para uma observação contínua de si próprio para si próprio, pois o que estará em jogo é a possível alteração da própria percepção sobre um objeto. Essa reflexão pode ser vivenciada com a justaposição entre uma realidade esperada ou planejada para algum fim e a realidade do fenômeno observado. O contato entre esses dois universos poderá deixar em suspenso qualquer perspectiva de unidade do ser, qualquer relação pré-determinada com o outro, qualquer percepção condicionada, e como consequência disso, qualquer conhecimento adquirido ou construído até então; pois dificilmente haverá uma relação de causa e efeito entre o planejado e conhecido e o vivenciado e desconhecido. O que se estabelece são formas de diálogo entre plano e vida. Mesmo um especialista em determinada técnica, por exemplo, se verá sem saber o que fazer, se ele quiser instaurar um processo criativo emancipatório, pois terá que relativizar e, algumas vezes, até anular a metodologia já utilizada para que sua subjetividade seja produzida por sua curiosidade” (PROPOSTA ARTÍSTICO/PEDAGÓGICA: MATERIAL NORTEADOR. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/MATERIAL%20 NORTEADOR_1311018529.pdf. Acesso: 29.out.2014)
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
14
Considerações Finais
O conceito formulado por Marques (1999) de assumir o cruzamento de papéis,
através do artista-docente, é regido essencialmente pela preocupação de não se
escolarizar o ensino da arte e, principalmente, não reproduzir a formação de corpos
dóceis.
Ao contrário, o aluno poderá reconhecer no professor alguém capaz de criar,
interpretar e dirigir dança. Particularmente, no curso de licenciatura em dança, é
importante que o aluno, além de reconhecer essas capacidades, possa também
reconhecer em seu professor um constante aprendiz de procedimentos criativos uma vez
que não se limita aos próprios conhecimentos e experiência adquirida; seja na atuação
artística, fora do universo acadêmico, seja como professor de composição coreográfica.
Ressalta-se, então, como é importante que ele reconheça alguém capaz de transitar nos
modos de organização do pensamento, sem, contudo, utilizar um em detrimento do outro.
Igualmente relevante é que, ao buscar outras metodologias de orientações que possam
auxiliar no desenvolvimento coreográfico das temáticas dos alunos, outros dispositivos
surjam como possibilidades de criação, reflexão e diálogo entre os contextos
socioculturais de alunos e professor.
Considere-se que a finalidade da disciplina é possibilitar que os alunos descubram
os próprios caminhos para desenvolver seus aprendizados em composição coreográfica
e, neste caso, é importante destacar que o pensamento “artístico” do orientador limita-se
a propor novos dispositivos, metodologias de criação e não a conduzir as escolhas que
esses alunos farão ao experimentarem os caminhos e – ao retornarem com seus
processos encaminhados – voltam a ter o olhar crítico do professor que analisa a
coerência das escolhas realizadas. O limite sobre o quanto se deve ressaltar o papel de
artista ou professor na orientação dos processos é encontrado durante a relação entre
orientador e orientando, que varia caso a caso.
Finalmente, a orientação coreográfica, faz uma ponte entre o que é produzido
dentro e fora do universo acadêmico para esse professor, que também atua
ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Dança em Mediações Educacionais – Setembro/2014
http://www.portalanda.org.br/anai
15
artisticamente, e ao propor novos dispositivos de criação para seus alunos reinventa os
próprios métodos investigativos.
Referências Bibliográficas:
AGAMBEM, Giorgio (2009). Tradução – Vinícius Nicastro O que é o contemporâneo? e
outros ensaios. Editora Unochapecó.
DAMÁSIO, António (2013) Tradução – Laura Teixeira Motta. E o cérebro criou o Homem.
Editora Companhia das Letras. São Paulo.
______________ (2012). Tradução – Dora Vicente e Georgina Segurado. O erro de
Descartes: emoção e razão e o cérebro humano. Editora Companhia das Letras. São
Paulo.
GREINNER, Christine (2010) – A trama política dos dispositivos da dança. In:
GREINNER, Christine; SANTO, Cristina; SOBRAL, Sônia. (Org.) Mapas e Contextos:
cartografia rumos Itaú cultural Dança 2009-2010.
MARQUES, Isabel (1999). Ensino de dança hoje: textos e contextos. Editora Cortez. São
Paulo.
PROPOSTA ARTÍSTICO/PEDAGÓGICA: MATERIAL NORTEADOR. (S/A) Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/MATERIAL%20 NORTEADOR_1311018529.pdf. Acesso: 29.out.2014)
* Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP como pesquisadora bolsista do CNPq, possui bacharelado e licenciatura em Dança pela UNICAMP. Atualmente é docente na Faculdade Paulista de Artes nos cursos de Licenciatura em Dança e em Teatro. Atuou como artista-docente da Caleidos - Cia de Dança e foi coordenadora artístico-pedagógica do Programa Dança Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Pesquisa: corpo, dança, imagem, comunicação, mídia e religião. Email – sallespaulete@hotmail.com
top related