anais do ix simpÓsio nacional de direito constitucional
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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ANAIS DO IX
SIMPÓSIO NACIONAL
DE DIREITO
CONSTITUCIONAL
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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ABDCONST ACADEMIA BRASILEIRA DE DIREITO CONSTITUCIONAL
Publição Oficial da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDCONST
Rua XV de Novembro, 964 – 2º andar
CEP: 80.060-000 – Curitiba – PR
Telefone: 41-3024.1167 / Fax: 41-3027.1167
E-mail: abdconst@abdconst.com.br
Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira
Simpósio Nacional de Direito Constitucional da ABDConst ( 9. : 2010 : Curitiba, PR)
Anais do [Recurso eletrônico] IX Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst. - Curitiba, PR : ABDConst., 2011.
432 p. ; 21 cm.
Inclui bibliografia.
ISBN
Modo de acesso: http://www.addconst.com.br
Direito constitucional – Brasil – Congressos.
I. Academia Brasileira de Direito Constitucional. II. Título.
CDD ( 22ª ed.)
342.81023
Endereço para correspondência:
Editor responsável: Ilton Norberto Robl Filho
E-mail: ilton@abdconst.com.br.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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APRESENTAÇÃO
Em 2010, a Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) completou dez anos
de existência. Há muito que celebrar nesses dez anos e inúmeras foram as atividades acadêmicas
concretizadas nesse ano. Por exemplo, foi lançada a Constituição, Economia e Desenvolvimento:
Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, inaugurou-se a coleção Grandes Nomes do
Direito editada pela Lumen Juris Editora e a ABDConst, consolidaram-se os grupos nacionais de
pesquisa da ABDConst nas cidades de Porto União (SC), Joinville (SC), Franca (SP) e Francisco
Beltrão (Paraná) nos anos de 2009 e 2010 e a ABDConst firmou sua contribuição para a pesquisa e a
reflexão jurídicas por meio da concretização de Pós-Graduações em Direito Lato Sensu.
O IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional, que ocorreu de 20 a 22 de maio de 2010,
no Teatro Guaíra, em Curitiba, Paraná, representou o ponto alto da comemoração dos 10 anos de
Academia Brasileira de Direito Constitucional. A relevância social e acadêmica dos temas enfrentados
e a qualidade dos conferencistas e palestrantes podem ser vistos na programação do evento que se
encontra abaixo:
20 de maio - QUINTA-FEIRA
08h00 Credenciamento
08h30 Cerimônia de abertura e posse do Prof. Luigi Ferrajoli como Membro Correspondente da ABDConst
09h00 às 10h00
CONFERÊNCIA DE ABERTURA
Tema: Humanismo Jurídico: base do novo constitucionalismo
Presidente de mesa: Gustavo Swain Kfouri - Mestre Unibrasil; advogado; Membro Fundador e Prof. ABDConst e Relator: Marco Aurélio Marrafon - Doutor UFPR; Prof. UERJ e ABDConst. Conferencista: DALMO DE ABREU DALLARI - Presidente de Honra da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Prof. Titular Aposentado e Emérito USP.
10h15 às 12h00 - PRIMEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Garantismo e Constitucionalismo Contemporâneo
Presidente de Mesa: Flávio Pansieri - Mestre USP; Prof. PUC-PR e ABDConst; Presidente Executivo ABDConst e Relator: Sérgio Cadermatori - Mestre UFSC; Prof. Universidade de Granada – Espanha. Conferencistas: LÊNIO LUIZ STRECK - Pós-Doutor - Universidade de Lisboa; Prof. Titular da UNISINOS; Prof. e Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: A Resposta Hermenêutica ao Pan-principiologismo em terrae brasilis. LUIGI FERRAJOLI
Prof. Università di Roma Tre – Itália. Enfoque: Constitucionalismo Garantista.
14h30 às 16h15 - SEGUNDA CONFERÊNCIA
Tema: Advocacia como Mecanismo de Realização da Democracia
Presidente de Mesa: Fábio Alessandro Fressato Lessnau - Procurador Federal; Especialista em Direito Público e Direito Tributário e Relator: Alexandre Rocha - Mestre UFSC; Prof. UEPG; Coord. de Direito de Jaguariaíva-PR. Conferencistas: LUÍS INÁCIO LUCENA ADAMS - Ministro de Estado - Chefe da Advocacia Geral da União. Enfoque: A Função Social e Política da Advocacia Pública Federal. FREDIE DIDIER JUNIOR - Doutor PUC-SP; Prof. Titular da Faculdade Baiana de Direito. Enfoque: A Metodologia do Novo CPC
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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ALEXANDRE MORAIS DA ROSA - Pós-Doutor Universidade de Coimbra; Prof. UFSC, Univali e ABDConst; Juiz de Direito – SC. Enfoque: Os Advogados e as Garantias do processo, ainda.
16h30 às 18h15 - TERCEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Ciências Criminais e Constituição: a perene construção de um diálogo. Presidente de Mesa: Francisco Assis do Rego Monteiro Rocha Júnior
Relator: André Ribeiro Giamberardino - Mestre UFPR; Mestre Universidad Pádua – Itália. Conferencistas: RENÉ ARIEL DOTTI - Doutor UFPR; Prof. Titular UFPR; Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: As Omissões do Poder Judiciário Brasileiro em Face das Garantias do Processo Penal. AURY CELSO LIMA LOPES JUNIOR - Doutor - Universidad Complutense de Madrid; Prof. PUC-RS e ABDConst. Enfoque: A (busca pela) Conformidade Constitucional do Processo Penal. JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO - Doutor Universidad Complutense de Madrid; Prof. Titular da UFPR; Prof. e Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: Reforma Global do CPP e Constituição
18h30 às 20h30 - QUARTA CONFERÊNCIA
Tema: Tributação e Intervenção do Estado na Atividade Econômica. Presidente de Mesa: Luciano Marchesini - Mestre PUC-PR; Assessor Jurídico SMA-PR; Coord. Direito Dom Bosco e Relator: André Folloni - Doutorando UFPR; Prof. PUC-PR, ABDConst, UP e Unicuritiba. Conferencistas: HELENO TAVEIRA TORRES - Doutor PUC-SP; Prof. USP. Enfoque: Políticas Públicas e Tributação Sobre Investimentos: (in)segurança jurídica. JAMES MARINS Pós-Doutor - Universidade de Barcelona; Prof. Titular PUC-PR; Prof. ABDConst. Enfoque: Extrafiscalidade Socioambiental. EDVALDO DE BRITO - Livre Docente USP; Prof. Titular UFBA; Prof. ABDConst; Vice-Prefeito Salvador/BA. Enfoque: A Constitucionalidade da Compensação em Detrimento da Ordem de Pagamento dos Precatórios.
FESTA DE ABERTURA
21 de Maio - SEXTA-FEIRA
08h45 às 10h30 - QUINTA CONFERÊNCIA
Tema: Democracia e Inclusão em Sociedades Complexas. Presidente de Mesa : Fausi Hassan - Doutor USP; Promotor de Justiça; Prof. do Programa da FADSP e Relator: Rafael Brugnerotto - Mestre Universidade Paranaense; Prof. FAG; Advogado. Conferencistas: ARNALDO MIGLINO - Prof. da Università di Roma “ La Sapienza” – Itália. Enfoque: A Cor da Democracia. LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO - Prof. Titular da PUC-SP - ITE; Prof. e Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: O Dever de Inclusão Social e as Pessoas com Deficiência. PIERGIORGIO ODIFREDDI - Prof. Università di Torino – Itália. Enfoque: Para-doxa da Democracia.
10h45 às 12h30 - SEXTA CONFERÊNCIA
Tema: A Evolução Constitucional do Direito e do Processo do Trabalho. Presidente de Mesa: Aryanna Manfredini - Especialista ABDConst e Universidade Cândido Mendes e Relatora: Matilde da Luz Martins - Mestre Univali; Prof. da FG; Assessora Jurídica da Prefeitura de Pinhão. Conferencistas: ALDACY RACHID COUTINHO - Doutora UFPR; Prof. e Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: Constituição e Sindicalismo. RENATO SARAIVA - Procurador do Trabalho, atualmente, ocupando o cargo de Procurador-Chefe na PRT/6ª Região. Enfoque: Boicote à Competência Constitucional da Justiça. MORGANA DE ALMEIDA RICHA - Conselheira CNJ; Membro Honorário da ABDConst. Enfoque: Grandes transformações do Direito do Trabalho a partir dos recentes marcos normativos.
14h30 às 16h15 - SÉTIMA CONFERÊNCIA. Tema: Direito Concorrencial como Mecanismo de Desenvolvimento. Presidente de Mesa: Jefferson Augusto de Paula - Mestre Univali; Especialista ABDConst. Relatora: Marcela Cristina Brasão. Especialista Universidade Rio de Janeiro; prof. FAG; Advogada.Conferencistas: FÁBIO NUSDEO - Prof. Titular Aposentado USP e Prof. ABDConst. Enfoque: Tutela da Concorrência no Contexto da Política Econômica. JOÃO BOSCO LEOPOLDINO DA FONSECA - Doutor - UFMG; Prof. Titular UFMG. Enfoque: Direito Econômico. MARÇAL JUSTEN FILHO - Doutor PUC-SP; Ex- Prof. Titular UFPR; Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: Direito e Crescimento Econômico: a Importância da Defesa da Concorrência.
16h30 às 18h15 - OITAVA CONFERÊNCIA
Tema: O Judiciário e a Eficácia da Constituição. Presidente de Mesa: Maria de Lourdes Bello Zimater - Mestre Univali; Prof. Univille e FCJ e Relatora: Raquel Dias da Silveira Motta - Mestre e
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Doutora UFMG; Diretora Acadêmica da Faculdade Dom Bosco. Conferencistas: FRANCISCO JOSÉ RODRIGUES DE OLIVEIRA NETO Doutorando UFSC; Vice-Presidente de Assuntos da Infância e Juventude da AMB; Prof. ABDConst. Enfoque: O Juiz como Instrumento de Realização dos Direitos Fundamentais. CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO - Enfoque: Eficácia da Constituição e Capacidades Institucionais. JULIANO BREDA - Mestre e Doutor UFPR; Secretário Geral da OAB/PR. Membro da Direção do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal. Enfoque: Judicialização do Sistema Penal e Eficácia da Constituição.
18h30 às 20h15 - NONA CONFERÊNCIA
Tema: Situações Existenciais e Patrimoniais no Direito Civil Constitucional. Presidente de Mesa: Marcos Alves da Silva - Doutor UERJ; Mestre UFPR; Prof. UP e Unibrasil e Relator: Marcelo Conrado - Doutorando UFPR; prof. e Coord. Unibrasil. Conferencistas: LUIZ EDSON FACHIN - Prof. Titular UFPR e PUC-PR; Prof. e Membro Catedrático ABDConst .
Enfoque: Princípios Constitucionais da Nova Contratualidade. SILVIO DE SALVO VENOSA Prof. e Autor do Código Civil Interpretado. Enfoque: O Direito de Superfície como Manifestação da Função Social da Propriedade. FRANCISCO AMARAL - Professor Titular UFRJ; Doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica de Lisboa. Enfoque: “Constituição e Código Civil na crise do pensamento jurídico.As situações jurídicas subjetivas”.
22 de Maio - SÁBADO
08h45 às 10h30 - DÉCIMA CONFERÊNCIA
Tema: Direito Administrativo e Constituição
Presidente de Mesa: Hamilton Rafael Marins Schwartz - Mestre Unibrasil; Juiz de Direito da Comarca da RM/Ctba e Relator: Marcelo Lebre Cruz - Mestre Unibrasil; Prof. FEMPAR e ABDConst. Conferencistas: CLÈMERSON MERLIN CLÈVE - Doutor PUC-SP; Prof. Titular UFPR e Unibrasil; Membro Catedrático ABDConst . Enfoque: Parcerias Público Privadas. ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO - Prof. Titular UFPR e PUC-PR e Membro Catedrático ABDConst. Enfoque: Processo Administrativo Disciplinar. CARLOS ARY SUNDFELD Prof. FGV-SP e PUC-SP; Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Publico. Enfoque: ‘' As Novas Parcerias da Administração Pública''.
10h45 às 12h30 - DÉCIMA PRIMEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Justiça Eleitoral e Democracia no Brasil. Presidente de Mesa: Ivan Lèlis Bonilha Mestre PUC-SP; Prof Unicuritiba; Ex-Procurador Geral do Município. Relator: Leandro Souza Rosa - Membro da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos OAB/PR. Conferencistas: CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO - Ex-Ministro do STF; Prof. e Membro Catedrático ABDConst . Enfoque: Inelegibilidade X Vida Pregressa e o Projeto de Iniciativa Popular nº 518/09. GUSTAVO BONATO FRUET - Doutor UFPR; Deputado Federal pelo Paraná; Prof. ABDConst. Enfoque: Os Limites do Poder Regulamentar do TSE e seus Impactos nas Resoluções Eleitorais. FERNANDO NEVES - Ex-Ministro do TSE. Enfoque: O Papel da Justiça Eleitoral do Processo Democrático Brasileiro.
14h30 às 16h15 - DÉCIMA SEGUNDA CONFERÊNCIA
Tema: O Novo Código de Processo Civil Presidente de Mesa: Sandro Marcelo Kosikoski - Doutor UFPR; Mestre UFPR; Prof. Instituto Bacellar e ABDConst e Relator: Eduardo Camargo Righi - Mestre Faculdade Autônoma de Direito; prof. ABDConst. Conferencistas: ALEXANDRE FREITAS CÂMARA Desembargador do TJRJ; Membro da International Association of Procedural Law. Enfoque: Como deve ser o novo Código de Processo Civil? TERESA ARRUDA ALVIM WANBIER Doutora e Livre Docente PUC-SP; Presidente do IBDPC ; Relatora do Anteprojeto no Novo CPC. Enfoque: O Novo Código de Processo Civil. FLÁVIO PANSIERI - Mestre USP; Prof. PUC-PR e ABDConst; Presidente Executivo ABDConst. Enfoque: Processo de Abstrativização das Decisões Judiciais.
16h30 às 18h15 - DÉCIMA TERCEIRA CONFERÊNCIA
Tema: Novas Perspectivas do Pensamento Jurídico Contemporâneo. Presidente de Mesa: Ilton Norberto Robl Filho - Doutorando e Mestre UFPR; prof. ABDConst e Unibrasil e Relator: João Fontoura - Mestre UFSC; Prof. Cenecista Joinville. Conferencistas: ANTÔNIO CARLOS WOLKMER - Doutor UFSC; Prof. Titular UFSC: Prof. ABDConst
Enfoque: Pluralismo e Crítica do Constitucionalismo na América Latina. MARCO AURÉLIO MARRAFON - Doutor UFPR; Prof. UERJ e ABDConst. Enfoque: O Caráter Complexo da Decisão em Matéria Constitucional. MARCELO NEVES - Livre Docente pela Universidade de Fribourg Suíça; Prof. USP e ABDConst; Conselheiro CNJ. Enfoque: Transconstitucionalismo.
18h30 às 18h45 - Apresentação do Relatório Geral e Premiação do Concurso de Artigos Jurídicos. Relator Geral: Zulmar Fachin - Doutor UFPR; Fundador do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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19h00 às 20h00 - CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO. Tema: Os Riscos da Hegemonia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Presidente de Mesa: Luciano Bernart - Mestre PUC-PR; Diretor Executivo ABDConst. Conferencista: LUIS ROBERTO BARROSO - Prof. Titular da UERJ;
Prof. e Membro Catedrático ABDConst.
FESTA DE ENCERRAMENTO
Apresentação e debate dos Grupos de Estudos Nacionais da ABCONST 2009-2010
20/05 – A repercussão Geral e os Efeitos no Sistema Brasileiro de Controle de Constitucionalidade – Edimara Sachet Riso – Cesul.
21/05 – A Teoria da Constituição no Pensamento de Carl Schmitt – Fábio Kampmann e Fernando Perazzoli – Universidade Contestado.
Mutação Constitucional e Democracia – Rafael Tomaz de Oliveira e Tayara Lemos – Faculdade de Direito de Franca
Hermenêutica Constitucional e Pós-Positivismo – João Fábio Silva de Fontoura – FCJ – Cenecista.
Grupos de Discussão
20/05 – Constitucionalização do Direito Administrativo – Paulo Ricardo Schier –ABDConst e UniBrasil.
Direito Sucessório do Companheiro: uma Reflexão com Acento Constitucional – Marcos Alves da Silveira - Unicemp e Unibrasil.
Projeto de Alteração do CPC – Sandro Gilbert Martins – UniCuritiba.
Reflexos dos novos efeitos das decisões em Mandado de Injunção na Adin por Omissão – João Luiz Esteves – UEL.
21/05 - Análise Civil-Constitucional do art. 1.128 do Código Civil: Possíveis Inconstitucionalidades – Pablo Malheiros da Cunha Frota – UCB.
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal e a promessa de constitucionalização do sistema processual penal vigente – Clara Roman Borges – UFPR.
Constituição e Barbárie: re-pensando o direito (através da literatura) com Kavafis, Coetzee e Baricco – André Karam Trindade – Unisinos.
Eleições Gerais de 2010: novas perspectivas da advocacia eleitoral brasileira em face do advento da Lei n. 12.034/2009.
22/05 – Terceirizações na Administração Pública – Aryanna Manfredini e Rafael Tonassi Souto – ABDConst.
Além de as conferências, palestras e apresentações dos grupos de pesquisa e discussão
terem sido ministradas no IX Simpósio, alguns dos conferencistas e palestrantes remeteram por
escrito suas manifestações para a Diretoria da ABDConst. Esses textos com grande alegria são
publicados nesta obra.
Ilton Norberto Robl Filho
Coordenador de Pesquisa da Academia
Brasileira de Direito Constitucional
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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SUMÁRIO
VENCEDORES DO CONCURSO DE MONOGRAFIA
CATEGORIA PROFISSIONAIS
A CONCRETIZAÇÃO ATIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO POR MEIO DA SUPERAÇÃO DO LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA DA NEUTRALIDADE
THE ACTIVE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN CONTEMPORARY CONSTITUTIONALISM THROUGH OVERCOMING THE LEGACY OF EPISTEMOLOGICAL-POSITIVE NEUTRALITY
Jairo Néia Lima ....................................................................................................................... 11
VENCEDORES DO CONCURSO DE MONOGRAFIA
CATEGORIA GRADUANDOS
SEGURANÇA HUMANA E EFETIVIDADE DO HUMANISMO JURÍDICO
HUMAN SAFETY AND EFFECTIVENESS OF LEGAL HUMANISM
Rene Sampar .......................................................................................................................... 37
PALESTRAS NOS PAINÉIS DO
IX SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL
A CONSTITUCIONALIDADE DA COMPENSAÇÃO EM DETRIMENTO DA ORDEM DE PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS
CONSTITUTIONALITY OF COMPENSATION AT THE EXPENSE OF THE ORDER OF PAYMENT OF PRECATORIES
Edvaldo Brito........................................................................................................................... 54
A DEMOCRACIA COMO DIFUSÃO DO PODER
DEMOCRACY AS DIFFUSION OF POWER
Arnaldo Miglino ....................................................................................................................... 83
CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA E NEOCONSTITUCIONALISMO
WARRANTY CONSTITUTIONALISM AND NEOCONSTITUTIONALISM
Luigi Ferrajoli / Trad. de André Karam Trindade ..................................................................... 95
DIREITOS REAIS SOBRE COISAS ALHEIAS. SUPERFÍCIE
REAL THINGS ON RIGHTS OF OTHERS. SURFACE
Sílvio de Salvo Venosa ......................................................................................................... 114
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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FRANCHISING JUDICIAL OU DE COMO A MAGISTRATURA PERDEU A DIGNIDADE POR SEU TRABALHO, VIVO?
FRANCHISING LAW OR HOW THE JUDICIARY LOST DIGNITY FOR THEIR WORK, LIVE?
Alexandre Morais da Rosa .................................................................................................... 131
PLURALISMO E CRÍTICA DO CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA
PLURALISM AND CRITIQUE OF CONSTITUTIONALISM IN LATIN AMERICA
Antonio Carlos Wolkmer ....................................................................................................... 143
OS PARA-DOXA DA DEMOCRACIA
THE PARADOXES OF DEMOCRACY
Piergiorgio Odifreddi ............................................................................................................. 156
RUMO À EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL: TRIBUTAÇÃO DIANTE DO DESAFIO SOCIAL E AMBIENTAL CONTEMPORÂNEO
TOWARDS SOCIOENVIRONMENTAL OVERTAXATION: TRIBUTATION FACING CONTEMPORARY SOCIAL ENVIRONMENTAL CHALLENGE
James Marins / Jeferson Teodorovicz ................................................................................... 170
GRUPOS DE DISCUSSÃO
AS ATUAIS TENDÊNCIAS DE REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A PROMESSA DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL VIGENTE
CURRENT TRENDS OF THE REFORM OF THE CODE OF CRIMINAL PROCEDURE AND PROMISE CONSTITUTIONALIZATION AND DEMOCRATIZATION OF CRIMINAL PROCEDURE FORCE
Clara Maria Roman Borges ................................................................................................... 201
DENÚNCIA ANÔNIMA EM PROCESSO DISCIPLINAR NA EXPERIÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES: ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DE INVESTIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
ANONYMOUS COMPLAINT IN DISCIPLINARY PROCEEDINGS IN THE EXPERIENCE OF SUPERIOR COURT: BETWEEN FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE DUTY OF PUBLIC ADMINISTRATION INVESTIGATION
Paulo Ricardo Schier ............................................................................................................ 224
TRABALHOS APRESENTADOS NO IX SIMPÓSIO NACIONAL DE
DIREITO CONSTITUCIONAL PRODUZIDO PELOS GRUPOS DE
ESTUDOS NACIONAIS DA ABDCONST
A REPERCUSSÃO GERAL E OS EFEITOS NO SISTEMA BRASILEIRO DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE: O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
THE IMPACT AND EFFECTS ON THE BRAZILIAN SYSTEM OF CONTROL OF CONSTITUTIONALITY: THE ROLE OF THE FEDERAL SUPREME COURT
Edimara Sachet Risso / Chaiane Maria Bublitz / Jaclyn Michele Damaceno / Jaqueline
Pedrozo Bitencourtt / Josiane Soares Sai / Mariana Rosa Ribeiro / Tamara Paola Leite ...... 251
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO NA OBRA DE CARL SCHMITT
THE THEORY OF THE CONSTITUTION IN THE WORK OF CARL SCHMITT
Fábio Roberto Kampmann / Fernando David Perazzoli / Orleans Antunes de Oliveira Neto /
Elisa Mayara Bostelmann / Cainã Domit Vieira ..................................................................... 292
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E PÓS-POSITIVISMO: NOTAS SOBRE A METÓDICA ESTRUTURANTE E SOBRE A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO
CONSTITUTIONAL HERMENEUTICS AND POST-POSITIVISM: NOTES ON THE STRUCTURING METHODIST AND WEIGHTING TECHNIQUE
João Fábio Silva da Fontoura / Diego dos Santos Lima / Alice Cardozo da Silva / Antônio
Carvalho Martins Filho / Jayson Cícero de Souza / Rosângela Victório Eugenio .................. 310
MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: UMA (DES)CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA DO PROBLEMA DA INTERVENÇÃO DO SENADO EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO DA CONSTITUCIONALIDADE
CONSTITUTIONAL CHANGES AND DEMOCRACY: A HERMENEUTICS (DES)CONSTRUCTION OF THE PROBLEM OF INTERVENTION OF THE SENATE LONGING DIFFUSE CONTROL OF CONSTITUTIONALITY
Tayara Talita Lemos / Rafael Tomaz de Oliveira / Rafael Shinhiti Kato / Marina Monteiro /
Joaquim Eduardo Pereira / Gabriela Vidotti Ferreira ............................................................. 355
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E SUPREMACIA JUDICIAL: DIREITO E POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
CONSTITUTION, DEMOCRACY AND JUDICIAL SUPREMACY: LAW AND POLITICS IN CONTEMPORARY BRAZIL
Luís Roberto Barroso ............................................................................................................ 385
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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VENCEDORES DO CONCURSO DE
MONOGRAFIA
CATEGORIA PROFISSIONAIS
A concretização ativa dos direitos fundamentais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
11
A CONCRETIZAÇÃO ATIVA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO CONSTITUCIONALISMO
CONTEMPORÂNEO POR MEIO DA SUPERAÇÃO DO
LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA DA
NEUTRALIDADE
THE ACTIVE IMPLEMENTATION OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN CONTEMPORARY CONSTITUTIONALISM THROUGH OVERCOMING THE LEGACY OF EPISTEMOLOGICAL-
POSITIVE NEUTRALITY
Jairo Néia Lima1
Resumo
O presente estudo que ora se descortina tem por escopo a análise de um dos legados do positivismo jurídico, quais sejam, os seus pressupostos epistemológicos, dando ênfase à neutralidade imposta pelo juspositivismo. Característica esta que fundamentava o alcance do verdadeiro conhecimento imune a qualquer valoração por parte do sujeito.
Palavras-chave: Direitos fundamentais; constitucionalismo; contempora-neidade.
Abstract
The present study reveals that it is now scope to an analysis of the legacy of legal positivism, that is, their epistemological assumptions, emphasizing the neutrality imposed by juspositivismo. Characteristic that cemented the power of true knowledge immune to any evaluation by the subject.
Keywords: Fundamental rights, constitutionalism; contemporary.
Sumário: Introdução. 1. Positivismo Jurídico. 2. A neutralidade (legado epistemológico-
positivista) como óbice à concretização dos direitos fundamentais. 3. Da superação
da neutralidade. Conclusão. Referências bibliográficas.
1 Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus
Jacarezinho-PR. Professor da Faculdade do Norte Pioneiro – FANORPI. Bolsista da CAPES.
Jairo Néia Lima
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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INTRODUÇÃO
Tornou-se constante no meio da pesquisa acadêmica o debate em torno do
positivismo jurídico e, principalmente a partir da segunda metade do século XX, a
discussão em torno de sua crise e possível superação. Tal fato se deve à inegável
contribuição dessa doutrina que se iniciou no campo filosófico e aportou em terras
jurídicas para fundamentar um modo próprio de formação e aplicação do direito. O
presente estudo que ora se descortina tem por escopo a análise de um dos legados
do positivismo jurídico, quais sejam, os seus pressupostos epistemológicos, dando
ênfase à neutralidade imposta pelo juspositivismo. Característica esta que
fundamentava o alcance do verdadeiro conhecimento imune a qualquer valoração
por parte do sujeito.
A concretização dos direitos mais elementares do ser humano é imposição
do constituinte originário que vislumbrou a possibilidade de transformação da
realidade brasileira tão excludente e marginalizante. Tais direitos da pessoa humana
podem acabar inefetivos se o responsável pela decisão levar em conta somente a
observação distante e neutra do objeto para a formação do seu julgado, uma vez
que, nem sempre é possível subsumir os fatos de uma sociedade tão complexa e
dinâmica em uma moldura legislativa prévia, ainda que geral e abstrata. Por isso,
faz-se necessário o debate em torno do caráter epistemológico do modo de
aplicação do direito com base positivista e sua possível superação a fim de que essa
atividade seja norteada pela realização máxima dos mandamentos constitucionais.
Para trilhar esse caminho, a pesquisa elaborada traz em seu início
considerações breves em torno do jusnaturalismo e o surgimento do positivismo
jurídico, apresentando ainda as principais características que envolvem o tema, sem
pretensão de esgotá-las. Na sequência, levanta reflexões acerca dos modelos
exclusivo e inclusivo do positivismo jurídico e sua possível (in)compatibilidade com o
atual ordenamento constitucional. Já num segundo item, apresentam-se os
pressupostos epistemológicos do positivismo, sua pretensão de cientificidade bem
como a neutralidade como uma das suas consequências, sem deixar de levar em
conta a forma como essa neutralidade se infiltrou na concepção do julgador.
A concretização ativa dos direitos fundamentais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
13
A pretensa neutralidade como característica essencial do sujeito
cognoscente e do julgador é analisada ainda sob o viés do novo constitucionalismo
que exige a realização máxima dos direitos fundamentais, como verdadeiros centros
irradiadores de transformação social. Esse comprometimento com a transformação
social dos mais necessitados é fundado no pensamento filosófico da Filosofia da
Libertação, que é abordada em determinado ponto do texto.
Por fim, o trabalho discute a respeito da neutralidade do julgador como um
possível obstáculo à realização dos direitos fundamentais e sua superação ou não
em tempos de Estado Democrático de Direito com constituições principiológicas e
normativas. Ressalte-se que o presente estudo não tem o intento de esgotar a
temática, tampouco trazer conclusões descomprometidas com a concretização plena
da dignidade da pessoa humana – vetor valorativo do ordenamento jurídico
brasileiro.
1 POSITIVISMO JURÍDICO
As origens históricas do jusnaturalismo remetem à Antiguidade Clássica,
com relação mais direta com a cultura grega, e seu eixo central gira em torno da
existência de um direito natural. Esse direito seria universal, imutável, conhecido por
meio da razão e imposto pela natureza ou pelo próprio Deus (modelo metafísico). O
direito natural é anterior ao homem, por tal motivo este deve obediência àquele.
O surgimento da modernidade, que também pode ser relacionado com a
conquista da América em 1492, trouxe consigo a passagem do teocentrismo
medieval para o antropocentrismo, entre outros legados. O jusnaturalismo passa
então a dar ênfase à razão humana e não mais à origem divina; nesse contexto é
importante a contribuição de Hugo Grócio (1583-1645) em sua obra De jure belli ac
pacis.
O direito natural é um ditame da justa razão destinado a mostrar que um ato é moralmente torpe ou moralmente necessário segundo seja ou não conforme à própria natureza racional do homem, e a mostrar que tal ato é, em conseqüência disto vetado ou comandado por Deus, enquanto autor da natureza. (GRÓCIO apud BOBBIO, 1995, p. 20-21, grifo do autor)
Jairo Néia Lima
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
14
A desvinculação do caráter metafísico possibilita ainda o crescimento do
conhecimento fundado na razão e do ideal de liberdade em confronto com a
Monarquia Absoluta. Sob essa influência, a burguesia ascendente tomou os
postulados libertários do jusnaturalismo para derrotar o absolutismo e assim chegar
ao poder, pois “os princípios teóricos do jusnaturalismo consagram a anárquica
rebeldia contra a ordem opressora e discricionária, bem como a via revolucionária
para a libertação e para a conquista do poder” (WOLKMER, 2000, p. 156).
Nesse mesmo sentido,
A crença de que o homem possui direitos naturais, vale dizer um espaço de integridade e de liberdade a ser preservado e respeitado pelo próprio Estado, foi o combustível das revoluções liberais e fundamento das doutrinas políticas de cunho individualista que enfrentaram a monarquia absoluta. (BARROSO, 2006, p. 20-21)
A tomada do poder pela burguesia aponta o apogeu do jusnaturalismo,
todavia as promessas anunciadas por essa doutrina não ultrapassaram os limites da
própria classe burguesa, não beneficiando dessa forma aqueles que mais
precisavam dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O auge do
jusnaturalismo pode ser observado outrossim na transposição do direito racional
para os códigos – nova forma de sistematização do direito iniciada pelo Código Civil
napoleônico de 1804. Ao ser incorporado sob a forma codificada não se via outra
fonte de direito que não a própria legislação. O caráter revolucionário foi substituído
pelo da manutenção/estabilização, abrindo espaço para uma nova forma de explicar
e aplicar o direito: o positivismo jurídico.
O positivismo no seu aspecto jurídico tem como solo sobre o qual é
construído o fenômeno das grandes codificações do século XIX. O direito natural
transposto para os códigos deixa de ter suas características essenciais e se
transforma num instrumento formal de aplicação jurídica. Para Bobbio, “o positivismo
jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”
(1995, p. 26, grifo do autor). No processo histórico que erigiu o direito positivo como
o único direito, a dualidade direito natural e direito positivo foi vista de variadas
formas. Na Antiguidade o direito natural não era superior ao positivo, pois esse era
visto como especial em relação àquele. Já no período medieval houve uma
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superioridade do direito natural porque era visto como emanação da vontade divina.
Ao final desse processo, o direito natural deixa de ser considerado direito e somente
o direito positivo é qualificado como tal (BOBBIO, 1995, p. 25-26), demonstrando a
partir daí a sua supremacia que iria influenciar sobremaneira o modo pelo qual o
direito seria compreendido.
O positivismo apontado até o presente momento vincula-se ao positivismo
denominado de jurídico com forte influência da Escola da Exegese francesa, no
entanto, essa corrente de pensamento pode ser verificada em diversos setores das
ciências: tem-se o positivismo filosófico de Augusto Comte, o positivismo sociológico
de Émile Durkheim, o positivismo histórico utilizado por Leopold Von Ranke e outros
(FONSECA, 2009, p. 144-146), para estabelecer uma delimitação mínima o estudo
apresentado abordará apenas o positivismo jurídico.
Em que pese as diferentes formas em que o positivismo jurídico foi
analisado (Bentham, Kelsen, Hart e inúmeros outros), alguns pontos em comuns
podem ser encontrados nessa doutrina. As principais características do positivismo
jurídico podem ser assim elencadas (BOBBIO, 1995, p. 131-134):
a) Direito como fato e não como um valor: o positivismo objetivava dar um
caráter científico ao direito, por isso, a atitude do positivista se encerra na
observação do objeto tal como ele é e não como deveria ser, caberia somente a
descrição da norma e não uma tomada de posição frente a ela.
b) Direito em função da coação, ou seja, o direito estabelece a forma como a
coação estatal irá ser utilizada a fim de conformar os comportamentos sociais.
c) Legislação como única fonte do direito: em contraposição ao direito do
século X ao XII em que predominava o pluralismo das fontes (direito das
corporações, das comunas, dos reinos, equidade, costumes), o positivismo jurídico
ao promulgar os grandes códigos sepulta as formas extraestatais de formação
jurídica e o Estado assume a monopólio da produção do direito dando início ao
monismo jurídico2.
2 O monismo “atribui ao Estado Moderno, o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas,
ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas
de relações sociais que se vão impondo” (WOLKMER, 1997, p. 40-41). Em contraposição, o
pluralismo jurídico “não só deixa de associar o Direito com o Direito Positivo, como, sobretudo,
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d) Teoria imperativa da norma jurídica: a definição da norma jurídica tem a
estrutura de um comando (autoridade do sujeito ativo, obrigação do sujeito passivo,
a razão de obedecer está na vontade superior de quem emana e o não cumprimento
da obrigação gera sanção).
e) Coerência e completude do ordenamento jurídico: diversamente do
período pré-codificação quando o direito era essencialmente fragmentário, as
codificações objetivaram formar um documento único que pudesse regular todas as
condutas humanas, por tal motivo, o ordenamento jurídico deveria ser completo e
coerente, isento de lacunas e antinomias.
f) Interpretação mecanicista: a atividade interpretativa deveria restringir-se à
declaração e reprodução do direito preexistente, não podendo ter qualquer
conotação criativa ou produtiva de um novo direito.
g) Positivismo jurídico como ideologia: não bastava a obrigação de
obediência aos postulados juspositivistas era necessário considerar correto tal
procedimento, como se houvesse uma obrigação moral de obediência ao positivismo
jurídico, “por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como
também de querer o Direito” (BARROSO, 2006, p. 26, grifo do autor).
André-Jean Arnaud também traz os pressupostos de uma Teoria do Direito
positivista:
a) não há Direito Natural e só o Direito Positivo existe; b) o Direito é tido como um conjunto de regras, ou seja, de mandamentos que expressam um produto da vontade humana ou da autoridade; c) esses mandamentos emanam do soberano ou do Estado; d) eles são relacionados a sanções, que garantem a aplicação do Direito pela força; e) eles formam um sistema fechado, completo e coerente; f) a atividade dos juízes é uma atividade lógica, posto que toda decisão pode ser deduzida de regras previamente emitidas pelo soberano, sem referência aos fins sociais ou às regras morais. (ARNAUD apud ARCELO, 2009, p. 21)
Tais características podem ser encontradas com maior ou menor
intensidade a depender do referencial teórico adotado, todavia, de alguma forma
admite a existência do Direito sem o Estado e, mais ainda, que pode existir até Direito Positivo
sem Estado e equivalente ao do Estado” (WOLKMER, 1997, p. 56).
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pelo menos uma delas esteve presente nas construções teóricas que tinham como
ponto de partida o positivismo jurídico.
O juspositivismo, ademais, conheceu outras vertentes que resultaram dos
debates entre Herbert Hart e Ronald Dworkin na década de 70 do século XX.
Quero lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário. Minha estratégia será organizada em torno do fato de que, quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigações jurídicos, particularmente naqueles casos difíceis
3 nos quais nossos problemas com
esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões. Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras. (DWORKIN, 2002, p. 32-33)
Dworkin propôs um modelo diferenciado de regras e princípios e Hart
rebateu as críticas feitas sobre a sua obra O Conceito de Direito, trazendo uma nova
defesa do positivismo jurídico. “Ao se defender, Hart assume uma posição menos
radical do positivismo e abre espaço ao que veio a ser consagrado como ‘modelos
qualificativos de positivismo jurídico’” (MOREIRA, 2009, p. 237).
Os modelos qualificativos de positivismo jurídico podem ser divididos em:
positivismo exclusivo e positivismo inclusivo. O positivismo jurídico exclusivo
“acentua que, como uma questão de necessidade conceitual, as determinações do
direito nunca podem estar em função de considerações morais” (DUARTE;
POZZOLO, 2006, p. 42). O membro que mais representa essa forma de positivismo
está no nome de Joseph Raz. Para aqueles que defendem essa corrente, a
categoria de “direito” só pode advir das fontes sociais e jamais de qualquer
3 É importante observar a crítica que Lenio Streck faz em torno da divisão entre casos fáceis e
difíceis. Para ele, considerar a existência dessa dualidade é desconsiderar a pré-compreensão de
um problema, ou seja, é manter o esquema sujeito-objeto onde ser fácil ou difícil estaria no objeto
independente dos pré-juízos do sujeito. “Casos fáceis (easy cases) e casos difíceis (hard cases)
partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes é condição de possibilidade: a
pré-compreensão (Vorverständnis). Esse equívoco de separar easy cases de hard cases é
cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teoria discursivo-argumentativas, valendo
citar, por todos, Alexy e Atienza” (STRECK, 2008, p. 299). Streck conclui dizendo, “o problema de
um ‘caso’ ser fácil (easy) ou difícil (hard) não está nele mesmo, mas na possibilidade – que advém
da pré-compreensão do intérprete – de se compreendê-lo” (2008, p. 301).
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referência sobre o mérito ou conteúdo da norma, há uma separação completa entre
direito e moral. A sanção e a autoridade competente são os critérios exclusivos para
a legitimação das normas jurídicas. Objetiva ainda conhecer o direito tal como é,
abstraindo-se de qualquer tentativa de corrigi-lo ou questioná-lo (DIMOULIS apud
MOREIRA, 2008, p. 238).
Essa forma de positivismo não é adequada ao atual estágio de
desenvolvimento do direito, principalmente em tempos de constituições normativas e
principiológicas em que os direitos fundamentais ocupam um local de destaque no
ordenamento jurídico representando ainda o foco de resistência contra as possíveis
arbitrariedades cometidas tanto na esfera pública como na particular. O positivismo
jurídico exclusivo não se preocupa com a legitimidade do direito já que permanece
distante dos anseios sociais sendo transformado em instrumento mecânico de
perpetuação do status quo, assim, deixa de ser visto como obrigação de
transformação da realidade social.
Do outro lado, a vertente do positivismo jurídico inclusivo contou como
primeiro adepto com Herbert Hart na publicação do posfácio à sua obra O Conceito
de Direito quando rebate as críticas feitas por Dworkin. O positivismo inclusivo
ameniza as afirmações do positivismo exclusivo afirmando que é possível que o
direito possa estar em função de considerações morais, no entanto, essa relação
não é necessária.
Para o positivismo exclusivo os critérios morais não pertencem ao sistema
jurídico, já para o positivismo inclusivo a moralidade poderá ser uma condição de
legalidade desde que haja uma regra de reconhecimento para tanto.
É preciso deixar assentado que, quando a regra de reconhecimento incorpora algum princípio moral junto aos outros critérios de reconhecimento de um sistema jurídico, nitidamente ela está transformando uma determinada fonte social com caráter moral em condição de legalidade naquele sistema. É dizer, que a regra de reconhecimento, como regra convencional, adota determinadas razões morais como critérios de reconhecimento e validação de outras regras jurídicas aceitas pelos indivíduos de uma comunidade. (DUARTE; POZZOLO, 2008, p. 49)
A questão que se impõe é se o positivismo inclusivo pode ser uma teoria
apta a explicar o fenômeno jurídico em tempos de neoconstitucionalismo. Em que
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pese a abertura aos parâmetros morais que essa forma de positivismo possibilitou,
não se deve perder de vista que as raízes continuam plantadas em solo positivista. A
possibilidade de padrões morais serem fontes de legitimação do direito não quer
dizer muita coisa para essa vertente, pois ficam na dependência da regra de
reconhecimento. Se essa regra não permitir não poderá haver a relação entre direito
e moral. O positivismo inclusivo ainda recebe críticas no sentido de que os princípios
enquanto padrões morais são distanciados do ordenamento jurídico não gerando
qualquer obrigação no âmbito do direito.
O problema reside no fato de que o positivismo – renovado ou não – possui vícios que o tornam incompatível com as exigências do direito entendido nos quadros do novo constitucionalismo do século XX, que passa por uma verdadeira revolução de conteúdo. [...] Desse modo, o que deve ser considerado como superado no positivismo – nas suas mais variadas formas – é a análise que deve ser feita não apenas sobre a vigência da lei, mas sobre sua validade substancial. E isso faz a diferença, exatamente porque na diferença – que é ontológica – entre texto e norma e entre vigência e validade, que se encontra o ponto de superação da lei plenipotenciária, “blindada” pelas posturas positivistas contra os valores substanciais da Constituição e da intervenção da jurisdição constitucional. (STRECK, 2005, p. 157-158, grifo do autor)
Denota-se, portanto, que o positivismo jurídico em ambas as formas
apresentadas não consegue dar conta de forma suficiente à abertura proporcionada
pelos princípios constitucionais que trazem consigo uma carga moral e exigem um
comprometimento maior do operador jurídico com as necessidades concretas,
afastando-se da concepção formal e avalorativa que o positivismo jurídico impõe.
Paolo Comanducci elenca ainda três formas de abortar o positivismo:
ontológico, ideológico e metodológico (2008, p. 340), que muito se aproximam dos
aspectos do positivismo jurídico trazidos por Bobbio4. Para o positivismo ontológico
4 Para Bobbio (1995, p. 233-238), o positivismo jurídico apresenta-se sob três aspectos, quais
sejam, um método para o estudo do direito, uma teoria do direito e uma ideologia do direito. A
ideologia do direito positivista pode se expressar tanto de forma extremista como moderada. Como
teoria, o positivismo jurídico abarca as seguintes concepções: a teoria cognitiva, legislativa e
imperativa do direito (formam a teoria juspositivista em sentido amplo), a teoria da coerência e
completude do ordenamento jurídico e a teoria da interpretação mecanicista do direito (juntamente
com as teorias anteriores formam uma teoria juspositivista em sentido estrito). No tocante ao
método, o método positivista corresponde ao método científico para se fazer ciência jurídica. Ao
concluir o seu estudo, Bobbio afirma: “dos três aspectos nos quais se pode distinguir o positivismo
jurídico, me disponho a acolher totalmente o método; no que diz respeito à teoria, aceitarei o
positivismo em sentido amplo e repelirei o positivismo em sentido estrito; no que concerne à
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o único direito existente é aquele posto artificialmente pelos seres humanos dotados
de autoridade para tanto. Já o positivismo ideológico encara o fenômeno jurídico em
razão da obrigatoriedade de obediência das normas. Por fim, o positivismo
metodológico defendido por Comanducci resume-se na afirmação de que é possível
identificar e descrever o direito tal como ele é (COMANDUCCI, 2008, p. 340-343).
Como visto, o debate em torno do positivismo jurídico alcançou um novo
status a partir da segunda metade do século XX. O reconhecimento da
normatividade dos princípios possibilitou uma evolução do direito que até então
havia convivido apenas com os princípios como pautas metafísicas (jusnaturalismo)
e posteriormente com os princípios com caráter supletivo da legislação (positivismo).
Tal redirecionamento foi denominado de pós-positivismo. A respeito do tema, são as
palavras de Luis Roberto Barroso: “o pós-positivismo não surge com o ímpeto da
desconstrução, mas como uma superação do conhecimento convencional. Ele inicia
sua trajetória guardando deferência relativa ao ordenamento positivo, mas nele
reintroduzindo as ideias de justiça e legitimidade” (2006, p. 28). Paulo Bonavides se
manifesta no seguinte sentido:
é na idade de pós-positivismo que tanto a doutrina do Direito Natural como a do velho positivismo ortodoxo vêm abaixo, sofrendo golpes profundos e crítica lacerante, provenientes de uma reação intelectual implacável, capitaneada sobretudo por Dworkin, jurista de Harvard. Sua obra tem valiosamente contribuído para traçar e caracterizar o ângulo novo de normatividade definitiva reconhecida aos princípios. (2000, p. 237)
Ao se reconhecer a normatividade dos princípios, o ordenamento jurídico se
abre para que por meio deles se penetrem conteúdos morais de justiça5.
As divisões trazidas até aqui têm o objetivo de dar uma visão ampla em
torno das discussões atuais em torno do positivismo jurídico, sem a pretensão de
esgotá-las. O fenômeno do positivismo jurídico abarca um rol extenso de disputas
teóricas e filosóficas que não caberiam no presente trabalho. Todavia, o esforço até
ideologia, embora seja contrário à versão forte do positivismo ético, sou favorável, em tempos
normais, à versão fraca, ou positivismo moderado” (1995, p. 238). 5 Frise-se a posição de Lenio Streck que vê na compreensão hermenêutica dos princípios uma
possibilidade de “fechar” a interpretação com o objetivo de diminuir o espaço da discricionariedade
do intérprete (2008, p. 304-305).
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aqui despendido é suficiente para avançar-se na análise e partir-se para o viés
epistemológico do positivismo.
2 A NEUTRALIDADE (LEGADO EPISTEMOLÓGICO-POSITIVISTA) COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O positivismo, como demonstrado acima, gerou influências em diversos
ramos do pensamento humano, seu objetivo maior era dar um caráter científico a
eles. Com o direito não poderia ser diferente, para o positivismo jurídico o fenômeno
jurídico, de forma especial o estudo da norma jurídica, deveria ser encarado tal qual
as ciências físico-matemáticas (unitarismo epistemológico) e para isso era
necessária a adoção de alguns pressupostos epistemológicos a fim de que o
conhecimento produzido pelo direito pudesse ser qualificado como verdadeiramente
científico, estes foram trazidos por Boaventura de Sousa Santos quando cita
Anthony Giddens6.
O primeiro pressuposto está na constatação de que a realidade é dotada de
exterioridade. Segundo essa afirmação, o objeto existe independentemente do
sujeito, é bastante em si e não precisa do sujeito para ter sua existência confirmada
(FONSECA, 2009, p. 146). O sujeito deve se manter do lado de fora para que não
interfira no processo de conhecimento do objeto, sob pena de subjetivar o referido
processo, situação essa que se afasta das bases positivistas que viam na
objetivação o caminho indispensável para a verdadeira ciência.
Como consequência da concepção anterior, o segundo pressuposto está na
asserção de que o conhecimento é representação do real. Se o objeto é dotado de
exterioridade própria, ou seja, é em si mesmo, a operação de conhecimento do
6 “Para os efeitos aqui prosseguidos, entendo por positivismo o que Giddens designa por filosofia
positivista, ainda que caracterize de modo algo diferente. Trata-se de uma concepção que se
assenta nos seguintes pressupostos: a “realidade” enquanto dotada de exterioridade; o
conhecimento como representação do real; a aversão à metafísica e o caráter parasitário da
filosofia em relação à ciência; a dualidade entre fatos e valores com a implicação de que o
conhecimento empírico é logicamente discrepante do prosseguimento de objetos morais ou da
observação de regras éticas; a noção de “unidade da ciência”, nos termos da qual as ciências
sociais e as ciências naturais partilham a mesma fundamentação lógica e até metodológica”
(SANTOS, 1989, p. 52). Para uma delimitação mínima, o trabalho apresentado restringe-se a
apenas alguns desses pressupostos.
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sujeito será capaz de descrever a essência do objeto. Assim explicita Ricardo
Marcelo Fonseca:
A tarefa do sujeito (do “pintor”) é meramente mecânica, é meramente passiva. Ele não pode “representar” a paisagem – pois isso implicaria no fato dele ter que imprimir na pintura a sua técnica, o seu conhecimento de pintura, enfim, a sua “subjetividade”; ele deve, isso sim, “apresentar a paisagem” como ela é, pois o conhecimento, segundo o positivismo, tem essa capacidade de apresentá-lo. (2009, p. 148)
Dessa concepção resulta o ideal de objetividade do conhecimento científico
conforme as palavras de José Carlos Köche:
O ideal de objetividade, por sua vez, pretende que as teorias científicas, como modelos teóricos representativos da realidade, sejam construções conceituais que representem com fidelidade o mundo real, que contenham imagens dessa realidade que sejam “verdadeiras”, evidentes, impessoais, passíveis de serem submetidas a testes experimentais e aceitas pela comunidade científica como provadas em sua veracidade. (2009, p. 32, grifo do autor)
Sob esse pressuposto, a apresentação do objeto deve estar desvestida de
qualquer subjetividade por parte do sujeito, denotando uma atitude essencialmente
neutra por parte de quem irá conhecer.
O terceiro e último pressuposto epistemológico consiste na existência da
dualidade entre fatos e valores. Nessa separação incisiva os fatos relacionam-se
exclusivamente com os objetos e os valores restringem-se à ordem dos sujeitos. “No
processo cognitivo, entende-se que não existem valores no objeto bem como não se
pode encontrar uma instância fática com o sujeito” (FONSECA, 2009, p. 149).
Complementando, Luiz Fernando Coelho afirma:
A partir de algumas teses de Carnap e Wittgenstein, sobretudo, o paradigma epistêmico do positivismo lógico propôs-se a desenvolver um discurso que assegurasse o autocontrole do discurso teórico e, por outro lado, estivesse apto a identificar-se como representação fiel do mundo, legitimada pela verificação, seja a compreensão empírica, seja a demonstração analítica. Aceitando as premissas basilares da filosofia positivista, procuraram privilegiar a consistência lógico-formal do discurso científico, submetendo-se
ao ideal de sua axiomatização. (2003, p. 57)
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Adotando-se todos esses pressupostos epistemológicos os positivistas
acreditavam alcançar o conhecimento puro e verdadeiro do objeto, principalmente
pela atitude neutra por parte do observador. A respeito da origem histórica do
problema da neutralidade científica, Hilton Japiassu afirma:
No clima da sociologia alemã, onde o problema surgiu de modo mais explícito no início de nossos séculos, duas posições se defrontam: de um lado, situam-se os defensores da neutralidade cientifica; do outro, os partidários de um engajamento por parte dos cientistas. Os “neutros” acham que os “engajados” acabam por envolver-se no sistema social vigente e por justificá-lo. Os “engajados” acusam os “neutros” de absenteísmo: quem cala consente; e o silêncio contra o regime é uma forma de justificá-lo. (1975, p. 32)
Todavia, essa neutralidade infiltrou-se de forma incisiva na forma de
conhecer e aplicar o direito transformando-se num verdadeiro dogma da
neutralidade que se impôs como característica essencial dos julgadores. Sua
atuação deveria ter cunho descritivo dos dados objetivos repassados pela realidade
fática, se atuasse de forma prescritiva comprometeria a neutralidade e por
consequência todo o processo científico.
Nesse sentido,
O cérebro do magistrado receberia imparcialmente e passivamente as informações advindas e já prontas de fora, provenientes da relação jurídica processual e das normas jurídicas positivadas. O conhecimento não seria nada mais do que o resultado do processamento de tais informações. O conjunto de informações captadas pelo magistrado é proveniente do primado da lei como regra geral abstrata e universalmente obrigatória (positivismo jurídico). A atividade do juiz não passaria de uma tarefa vinculada ao conhecimento, sendo a interpretação uma mera leitura da norma escrita. (SOUZA, 2008, p. 183-184)
Nesse ponto, é importante diferenciar, ainda que modestamente, a
neutralidade da imparcialidade judicial. A neutralidade que recebeu forte influência
da epistemologia positivista, como demonstrado acima, está relacionada com a
abstenção ideológica por parte do julgador, a desconsideração com o direito a ser
protegido. A imparcialidade, por outro lado, configura-se como um legado garantista
da Modernidade relacionado com a atividade jurisdicional a fim de que não houvesse
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subordinação do Poder Judiciário em relação aos demais poderes. Artur César de
Souza ao tratar do tema aduz:
A partir do término da 2ª Guerra Mundial, a exigência da imparcialidade judicial tornou-se um postulado universal consubstanciado nos diversos tratados internacionais difundidos nas democracias ocidentais. Atualmente, esta garantia encontra-se reconhecida na Declaração dos Direitos Humanos (art. 10), Declaração Americana dos Direitos do Homem (art. 26, 2), Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 14, I), Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (art. 6, 1) etc. (2008, p. 28)
No âmbito processual a imparcialidade está ligada aos casos de
impedimento e suspeição que estão disciplinados nos artigos 252 e 254 do Código
de Processo Penal e artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil.
José Renato Silva Martins afirma:
A posição aqui assumida é que neutralidade é a possibilidade da manutenção da indiferença diante de um quadro que manifesta posições antagônicas; posições estas que precisam ser pacificadas no âmbito do intermediário social, que é o local privilegiado assumido pelo Direito. [...] pode-se afirmar que a imparcialidade é um pressuposto processual de existência válida do processo, dando às partes igualdade de condições para exercerem suas atividades postulatórias e instrutórias na formação do convencimento do magistrado. (2007, p. 69-70)
A neutralidade enraizada no positivismo jurídico afasta o julgador da relação
jurídica processual que se impõe diante dele, mantém-no então do lado de fora, pois
a realidade é dotada de exterioridade própria, exclui a interação-construção do
julgador com o caso concreto. Essa forma de atuar apresenta, outrossim, outra
incompatibilidade com a atual fase de desenvolvimento histórico do homem (a qual
este trabalho reputa a mais grave), qual seja, continuar postulando a neutralidade
como uma característica essencial para o julgador impede que o mesmo atue de
forma mais efetiva na proteção dos direitos fundamentais e, por consequência, das
minorias sociais. Em outras palavras, o rol de direitos e garantias que a Constituição
Federal de 1988 elenca pode estar comprometido se encontrar na prática forense
julgadores que levantam a bandeira da neutralidade como impedimento à
participação ativa na concretização daqueles direitos.
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A Constituição Federal de 1988 inaugurou em terras brasileiras o que se
denominou de Estado Democrático de Direito, que inovou na peculiar atenção dada
aos princípios constitucionais e em especial aos direitos fundamentais. As inovações
nesse campo relacionam-se com sua situação topográfica no início do texto
constitucional; o extenso rol desses direitos; o status reforçado conferido pelo art. 5°,
§ 1° (aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais) bem como a cláusula de
abertura do art. 5°, § 2° e o amplo sistema de controle de constitucionalidade. Não
se pode deixar de levar em conta o destaque inovador no tocante à dignidade da
pessoa humana como fundamento da República (art. 1°, III, da CF) bem como aos
objetivos fundamentais da República brasileira elencados no artigo 3° do referido
texto7.
Esse legado do constituinte originário não pode ser desprezado pelos
operadores do direito sob pena de a Constituição não irradiar toda a sua
potencialidade. O real significado da ordem jurídica em tempos atuais está na
seguinte afirmação de Lenio Streck:
É preciso compreender que o direito – neste momento histórico – não é mais ordenador, como na fase liberal; tampouco é (apenas) promovedor, como era na fase conhecida por “direito do Estado Social” (que nem sequer ocorreu na América Latina); na verdade, o direito, na era do Estado Democrático de Direito, é um plus normativo/qualitativo em relação às fases anteriores, porque agora é um auxiliar no processo de transformação da realidade. (2008, p. 289, grifo do autor)
Os direitos fundamentais são a arma que o operador jurídico tem à sua
disposição para enfrentar os abusos, desmandos, arbitrariedades e corrupção que
mancham e destroem a estrutura política brasileira. Diante dessa exigência
normativa, o Poder Judiciário deve tomar posição a favor da Constituição e de suas
normas, tal fenômeno tem sido designado de ativismo judicial. Para LuÍs Roberto
Barroso, ativismo judicial é “uma atitude, a escolha de um modo específico e
7 Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
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proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e o seu alcance”
(2009, p. 06). As condutas ativistas podem ser assim elencadas:
(i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de
políticas públicas. (BARROSO, 2009, p. 06)
Na esfera infraconstitucional,
a partir do momento histórico em que se postula a existência de um processo justo e équo, legitima-se maior atuação do órgão jurisdicional tanto na esfera do processo civil como no âmbito do processo penal, uma vez que eventual atividade probatória ex officio não tem o condão, por si só, de ferir o direito fundamental ao juiz imparcial. (SOUZA, 2008, p. 106-107)
8
Tais posturas denotam um Judiciário preocupado com as necessidades que
emergem dos casos conflituosos com vistas a sanar tais problemas mediante a
realização máxima dos princípios e direitos fundamentais, fazendo uma opção pela
transformação da realidade social por meio do direito, principalmente daqueles que
mais necessitam do amparo estatal e que muitas vezes não o encontram na
legislação e nas políticas públicas. Resta ao Judiciário, como última trincheira, a
concretização dos direitos mais elementares ao pleno desenvolvimento humano9.
8 A produção probatória ex officio por parte do juiz recebeu atenção especial pela Lei 11.690/2008
que alterou o Código de Processo Penal, em especial o artigo 156 Para Eduardo Cambi: “extrai-se
do novo art. 156 do CPP que são as parte que têm o ônus de alegar e de provar, exercendo o juiz
função complementar na atividade de produção da prova. Os poderes instrutórios do juiz somente
se justificam para assegurar elementos de provas, considerados necessários, adequados e
proporcionais (art. 156, I), ou dirimir dúvidas sobre pontos relevantes (art. 156, II), mas a iniciativa
judicial deve ser sempre motivada (art. 93, IX, CF/1988)” (2009, p. 30, grifo do autor). 9 Essa consciência crítica e pró-ativa também é vislumbrada por Luiz Fernando Coelho quando
afirma: “O jurista situado na dimensão crítica é ao mesmo tempo um político consciente, que,
conhecedor das mazelas e do grau de manipulação a que estão sujeitas as leis e os próprios
valores que as informam em favor dos privilegiados da sociedade e contra os reais interesses do
povo, luta contra o status quo, também, denominado establishment, e faz de seu lugar profissional
uma trincheira nessa batalha ingente contra as injustiças sociais” (2003, p. 190, grifo do autor).
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Assim, a atitude pró-ativa dos julgadores é incompatível com a permanência
do dogma da neutralidade judicial10, pois este impede a aproximação do julgador
com o conflito e as necessidade sociais que dali defluem, principalmente no Brasil
onde as camadas mais desfavorecidas sofrem com o constante descaso por parte
dos poderes públicos. Chaïm Perelman afirma: “Um juiz não é expectador objetivo e
desinteressado, cujo julgamento seria justo porque, descrevendo fielmente o que se
vê, se amoldaria a uma realidade exterior dada. Com efeito, ele não pode contentar-
se em deixar os próprios fatos falarem: deve tomar posição a respeito deles” (1996,
p. 196).
A postura crítica defendida no presente trabalho tem como pano de fundo
um embasamento filosófico, pois não há que se falar em teoria crítica sem
fundamento na filosofia. A superação da neutralidade tem como objetivo a
aproximação do julgador com a realização dos direitos fundamentais que, em última
instância, são a salvaguarda dos excluídos sociais – chaga histórica em países
latino-americanos especialmente.
Esse é o ponto de partida da Filosofia da Libertação que tem como
referência Enrique Dussel.
Sem querer me arrogar o direito de representar um movimento amplo, a Filosofia da Libertação, que eu ponho em prática desde 1969, toma como ponto de partida uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da população latino-americana; a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central, a tomada de consciência da impossibilidade de uma filosofia autônoma dentro dessas circunstâncias; a existência de tipos de opressão que estão a exigir não apenas uma filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação”. (DUSSEL, 1995, p. 45-46, grifo do autor)
Tal filosofia pretende romper com a tradição eurocêntrica instituída a partir
do paradigma da Modernidade (1492), onde não há humanidade fora dos domínios
10
Para Artur César de Souza essa discussão deve ir além, pois precisa atingir a própria
imparcialidade judicial a fim de instrumentalizá-la em prol da inclusão social, numa atitude
denominada por ele de “parcialidade positiva”. Assevera: “A desigualdade social, econômica e
cultural deve ser a mola propulsora para se postular uma nova leitura da (im)parcialidade do juiz,
uma leitura que não deixe de levar em consideração essa grave distorção interiorizada no âmbito
do processo penal e civil” (2008, p. 20).
Jairo Néia Lima
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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europeus. É uma filosofia voltada àquele que sempre esteve fora do sistema-mundo
europeu, ou seja, o “Outro”.
Da nossa parte, como latino-americanos, participantes de uma comunidade de comunicação periférica – dentro da qual a experiência da “exclusão” é um ponto de partida (e não de chegada) cotidiano, isto é, um a priori e não um a posteriori – nós precisamos obrigatoriamente encontrar o “enquadramento” filosófico dessa nossa experiência de miséria, de pobreza, de dificuldade para argumentar (por falta de recursos), de ausência de comunicação, ou pura e simplesmente, de não-fazermos-parte dessa comunidade de comunicação hegemônica. (DUSSEL, 1995, p. 60)
Pretende ainda encontrar a racionalidade desse povo pobre, oprimido e
miserável que não é diferente em relação àqueles que o dominaram, simplesmente
é “Outro”, que necessita de desenvolvimento das suas potencialidades humanas. O
pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do
ópio, o judeu dos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita
a manipulações ideológicas não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e
simplesmente a “estima de si mesmo”, é preciso então encontrar a Razão daqueles
que estão fora da Razão dominadora (DUSSEL, 1995, p. 18-19).
Essa base filosófica exige que o julgador veja o oprimido como pessoa
liberta da dominação, pois só assim será possível assegurar-lhes os direitos
fundamentais que a eles protegem11. Para tanto é imprescindível o abandono do
dogma da neutralidade judicial.
Por fim, deve-se ter em mente que a tomada de posição ativa em favor da
concretização dos direitos fundamentais dos mais necessitados por parte do julgador
não tem o intento de transformar o Judiciário num super-poder ou ainda numa
ditadura de juízes, pois tais situações vão de encontro ao próprio princípio
democrático. O que se postula é uma posição intermédia que dê conta de efetivar os
mandamentos constitucionais de dignidade humana sem, por outro lado, ruir a
estrutura dos poderes constituídos e a soberania popular.
11
“O juiz não deve tematizar o outro (vítima inferiorizada na relação jurídica processual), mas deixar
transparecer um desejo metafísico de proferir uma decisão équo e justa, pois o juiz, em relação às
vítimas do sistema, tem uma responsabilidade ética pré-originária à totalidade do sistema jurídico
dominante” (SOUZA, 2008, p. 254).
A concretização ativa dos direitos fundamentais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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3 DA SUPERAÇÃO DA NEUTRALIDADE
A necessidade de neutralidade para se alcançar a realidade do objeto tal
como ele é (no campo jurídico, a norma) não se sustenta até mesmo no terreno das
ciências físico-matemáticas, pois “a simples escolha de um artefato (e não de outro),
de uma hipótese (e não de outra), com o fito de realizar um experimento ou orientar
um raciocínio, importa em um juízo de valor, que impregnará todo o processo, ainda
que, desta opção em diante, seja orientado pela rigorosa lógica” (AZEVEDO, 2000,
p. 48-49, grifo do autor). O argumento da separação rígida entre fatos e valores
também é contestado nesses termos:
Todo conhecimento, enquanto processo de apreensão de um objeto por um sujeito, inclui o trabalho do sujeito sobre o objeto: o sujeito seleciona o que lhe interessa na realidade. É por isso que todo fato é de algum modo valorado. Se não é valorado, é porque não é conhecido, isto é, não despertou interesse no sujeito. Este só vê na realidade os pontos que lhe interessam. [...] Na realidade, o fato é resultado de uma valoração. Nesse sentido, o conceito de neutralidade é irreal: é um modo de conferir valor a uma atitude de preferência a outras. (JAPIASSU, 1975, p. 41)
Abordando o aspecto epistemológico, Luiz Fernando Coelho afirma:
A problemática epistemológica viu-se totalmente repensada a partir da epistemologia crítica contemporânea, a qual relativizou e reduziu a suas reais dimensões o conhecimento pretensamente objetivo e “verdadeiro” da ciência e desmistificou a pretensão de neutralidade do saber acumulado ao longo dos séculos. (2003, p. 59)
Na esteira do mesmo raciocínio, verificou-se que a metodologia científica
tradicional com bases positivistas não dava conta de responder o seguinte problema:
os progressos das ciências naturais não eram acompanhados pelas ciências sociais,
logo, “a consciência crítica passou a exigir novas posturas a partir do momento em
que se verificou ser muito mais importante construir uma sociedade justa e
compatível com a dignidade humana, do que descrever neutralmente como se
processam as relações sociais” (COELHO, 2003, p. 59).
O próprio conceito de ciência é atualizado a fim de vê-lo não como uma
descrição objetiva e avalorativa da realidade, mas como ordenação racional dessa,
visando transformá-la (COELHO, 2003, p. 61). Assim, é possível falar em Ciência
Jairo Néia Lima
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Jurídica, pois abandona-se o conhecimento descritivo de uma realidade desvestida
de qualquer valoração. Se a neutralidade, portanto, não se sustenta no seu ramo de
origem, com maior razão não se pode mantê-la como um pilar sólido do direito. A
descrição do objeto de conhecimento como se fosse uma realidade exterior ao
sujeito contrapõe-se à ideia de que o conhecimento é um construído, ou seja, o
conhecimento não é passivo, mas deriva das interações do ser vivo com o mundo.
Humberto Mariotti ao prefaciar a obra de Humberto R. Maturana e Francisco
J. Varela, assim expõe a síntese do pensamento desses autores: “A
transacionalidade entre o observador e aquilo que ele observa, além de mostrar que
um não é separado do outro, torna indispensável a consideração da subjetividade do
primeiro, isto é, a compreensão de como ele experiencia o que observa” (2001, p.
16). Para Maturana e Varela todo conhecer depende da estrutura daquele que
conhece (2001, p. 40), por isso a incompatibilidade entre a pretensa neutralidade por
parte do sujeito cognoscente, do observador, do intérprete, do julgador.
Para Luiz Fernando Coelho, “nas ciências sociais, a neutralidade ideológica
é uma impossibilidade epistêmica, pois o sujeito não é mero observador que
descreve um objeto enquanto se situa fora dele, mas um partícipe do social,
enquanto o reconstrói como ordem real e conceitual” (2003, p. 63). A afirmação de
que sujeito e objeto existem separadamente serve como fundamento para a
manutenção da neutralidade judicial, pois mantém o julgador externo à relação
jurídica-processual em que as partes são objetos integrantes.
Importante destacar nesse ponto a nova visão epistemológica denominada
de biocêntrica trazida por Maturana e Varela. Propõem romper com a concepção
representacionista cuja principal característica é a separação sujeito-objeto12. Nesse
sentido:
12
A proposta dos referidos autores não se restringe à superação do representacionismo sujeito-
objeto, mas vai além ao sugerir que os seres humanos são autônomos, isto é, “autoprodutores –
capazes de produzir seus próprios componentes ao interagir com o meio: vivem no conhecimento
e conhecem o viver. [...] Por serem autônomos, eles não podem se limitar a receber passivamente
informações e comandos vindos de fora” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 14). Esse modo
contínuo de produção de si próprio é denominado de organização autopoiética.
A concretização ativa dos direitos fundamentais...
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Hoje, mais do que nunca, o representacionismo pretende que continuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiência. Foi exatamente para mostrar que as coisas não são tão esquemáticas assim que surgiu A Árvore do Conhecimento. Eis a sua tese central: vivemos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto compartilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vivemos durante nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói ao longo dessa viagem comum. (MATURA e VARELA, 2001, p. 10)
No âmbito processual, o juiz é guiado pelo processo e pelas partes, bem
como por suas experiências de vida que nele interferem. Quem se diz neutro
apegando-se exclusivamente à lei, já nesse momento não é mais, pois a lei carrega
em si a ideologia de um momento histórico de uma determinada classe detentora de
poder e quem faz essa escolha está se comprometendo com a manutenção daquela
ordem. Não se pode perder de vista, além disso, que a consequência do abandono
da neutralidade científica repercute na tarefa jurisdicional e de forma mais específica
na pessoa do julgador.
Ao se postular a “neutralidade” na função de julgar, distante dos conflitos internos e externos do magistrado, eleva-se essa imagem pública a um corolário sobre-humano ou divino, o que, na verdade, nada mais significa do que um produto de manipulação de imaginação coletiva que passa a assimilar e a exigir uma conduta do juiz nessa perspectiva. (SOUZA, 2008, p. 136)
O conceito de neutralidade é incompatível com o de ser humano, pois este
tem suas opiniões, experiências de vida, traumas, objetivos, que não podem ser dele
apartados. Bem exemplifica essa situação a frase do poeta e dramaturgo romano
Terêncio: “homo sum, humani nihil a me alienum puto”, “sou humano, nada do que é
humano me é estranho”. O homem, ao interpretar ou conhecer, leva em conta a sua
compreensão prévia do mundo que é única em decorrência das particularidades da
vida de cada um. Zaffaroni ainda complementa: “Não pode o juiz ser neutro porque a
neutralidade ideológica não existe, salvo sob a forma de apatia, do irracionalismo ou
da decadência do pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém, muito
menos de um juiz” (1994, p. 109)
A concretização dos direitos fundamentais em prol daquelas pessoas que se
encontram excluídas do jogo social (fora da totalidade dominante) não alberga um
juiz neutro e insensível aos problemas sociais que o Brasil enfrenta. O
Jairo Néia Lima
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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comprometimento com os valores constitucionais afasta a ficção da neutralidade do
julgador.
A neutralidade proposta pelo positivismo se enraizou no seio teórico e
prático do direito, no entanto, em tempos de neoconstitucionalismo não se pode
deixar de levar em conta que o direito deve ser encarado como um instrumento de
transformação da realidade a fim de realizar a inclusão social daqueles que sempre
tiveram negados os direitos minimamente essenciais a uma vida digna. Para
Herkenhoff: “Na sociedade de classes em que vivemos, dividida e antagônica,
agravada, no caso do Brasil, pelas imensuráveis diferenças econômicas entre ricos
muito ricos e pobres muito pobres, ninguém é neutro, e o jurista também não é
neutro” (1999, p. 58).
Ao se defender a neutralidade não se está fazendo outra coisa senão a
manutenção de uma ordem elitista e excludente, mansa com os ricos e dura com os
pobres (BARROSO, 2006, p. 05). A realização pró-ativa dos direitos fundamentais
não pode se afastar das necessidades humanas ainda mais em países de grande
exclusão social como é o caso do Brasil. Para tanto, alguns mitos ou paradigmas
precisam ser superados, pois impedem a realização da justiça em cada caso
específico.
A venda da deusa da Justiça necessita ser retirada para que se possa reconhecer no processo a racionalidade do outro, a sua diferença sociocultural-político-econômica. A balança, diante da realidade latino-americana, deve ser desequilibrada, a fim de representar as desigualdades sociais, econômicas e culturais, existentes num contingente regrado por injustiças sociais. E a espada, por fim, deveria ser substituída por uma “lupa”, para que possam avistar as concepções ideológicas que existem por detrás de um determinado ordenamento jurídico de cunho capitalista e globalizante. (SOUZA, 2008, p. 255, grifo do autor)
Por fim, não se pretende defender o caos jurídico ou ainda a ditadura do
Judiciário, mas a função Judiciária como também as outras funções não podem se
afastar da observância dos mandamentos valorativos da República Federativa do
Brasil que demonstram um caráter eminentemente inclusivo. Esse comprometimento
revela a impossibilidade de se manter a neutralidade. “Pode-se tentar ver as coisas
com a maior objetividade possível; mas não se pode vê-las com outros olhos exceto
os nossos próprios” (CARDOZO apud SOUZA, 2008, p. 141).
A concretização ativa dos direitos fundamentais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Que os olhos dos julgadores brasileiros estejam focados na realidade em
que se inserem, visto que a sua miopia pode comprometer a realização efetiva da
dignidade humana.
CONCLUSÃO
Denota-se, assim, a grande influência que o legado epistemológico da
neutralidade exerceu sobre o modo como o direito é definido e compreendido.
A neutralidade científica penetrou no âmbito do direito e atrelou-se à
concepção do julgador, ou seja, ao sujeito cognoscente do mundo jurídico. Colocou-
se o juiz no patamar de um cientista que, analisando a realidade dos autos, proferiria
uma decisão neutra, desvestida de qualquer comprometimento com os direitos
fundamentais. Todavia, tal concepção não está adequada ao atual Estado
Democrático de Direito inaugurado entre nós em 1988, pois a partir dessa data, a
República brasileira assume com a anuência popular o compromisso de realizar a
transformação da realidade por meio da concretização dos direitos e garantias
fundamentais. Essa promessa é voltada principalmente para aqueles que sempre
foram marginalizados, excluídos e oprimidos pela classe dominante.
Portanto, superar a neutralidade é medida que se impõe não só pelas atuais
contestações de âmbito epistemológico que afirmam que o conhecimento é um
construído pela interação, mas principalmente pela necessidade de se utilizar o
direito como uma bandeira daqueles que acreditam na transformação social.
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales. Buenos Aires: Ediar, 1994.
Rene Sampar
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
36
VENCEDORES DO CONCURSO DE
MONOGRAFIA
CATEGORIA GRADUANDOS
Segurança humana e efetividade...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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SEGURANÇA HUMANA E EFETIVIDADE
DO HUMANISMO JURÍDICO
HUMAN SAFETY AND EFFECTIVENESS OF LEGAL HUMANISM
Rene Sampar1
Sumário: 1. Introdução. 2. Histórico e evolução conceptiva dos direitos fundamentais. 2.1
Revoluções do séc. XVII e XVIII, constitucionalismo e primeira dimensão dos direitos
fundamentais. 2.2. Segunda dimensão de direitos fundamentais e hecatombe
fascista do século XX. 2.3. Supraconstitucionalidade dos direitos fundamentais e a
terceira dimensão dos direitos fundamentais. 3. Direitos fundamentais na atualidade
e a segurança humana: novas perspectivas jurídicas na efetivação dos direitos
humanos. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Os direitos fundamentais2 são o epicentro de uma grande revolução na
hermenêutica jurídico-constitucional e da própria concepção do direito, constituindo-
se o cerne dos ordenamentos jurídicos modernos. Nas lições de Walter Claudius
Rothenburg (1999, p. 55), “os direitos fundamentais constituem a base (axiológica e
lógica) sobre a qual se assenta um ordenamento jurídico”.
Partindo de uma noção mais abstrata, Norberto Bobbio (1992, p. 18-19)
argumenta pela inexauribilidade e constante transformação dos direitos
fundamentais:
1 Bacharel em Direito.
2 Oportuno desde então exprimir a lição de Gomes Canotilho (2003), compartilhada por Paulo
Bonavides, de que a expressão “direitos humanos” possui conotação genérica em relação ao lugar
e ao tempo, ou seja, possuem validade a todos os povos e em todas as gerações. Já o termo
“direitos fundamentais” denota os direitos do homem relacionados a uma ordem jurídica concreta e
num período determinado.
Rene Sampar
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
38
Os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.
E conclui:
O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas.
No dizer do autor italiano, os direitos fundamentais não são determináveis,
mas estão em constante criação, identificação e evolução, sendo imperiosa sua
verificação em paralelo aos contextos históricos da sociedade.
2 HISTÓRICO E EVOLUÇÃO CONCEPTIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Por sua abrangência própria, a preocupação em delimitar os direitos
fundamentais eclode a partir das primeiras tentativas de organização e limitação do
poder político (COMPARATO, 2003, p. 40).
Desde as civilizações do mundo antigo, há quase cinco milênios, o homem
busca constituir regras para que seus direitos sejam preservados e, diante da
outorga de parte de sua liberdade a um ente legitimado, delimitar a atuação de seus
governantes, sejam eles sacerdotes, monarcas ou chefes de Estado.
No transcorrer da história, inúmeros foram os documentos de inestimável
valia e momentos de ímpeto de pequena e grandes proporções que possibilitaram a
evolução de um arcabouço de direitos ínsitos ao homem.
Permeando a história do mundo ocidental e vislumbrando-na desde o
período em que os hérulos tomavam o poder e depunham Rômulo Augusto,
marcando a queda do Império Romano do Ocidente ocorrida em 476, a sociedade
se viu mergulhada na era medieval, cujas características fundamentais eram a
supersticiosidade e a ultraconservação tirânica do poder.
Segurança humana e efetividade...
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O período renascentista denota a ruptura a estes paradigmas e o repúdio ao
mundo feudal. A idade média representava para os renascentistas “uma longa noite
de mil anos”, a idade das trevas em que mergulhara a cultura clássica. Todas estas
considerações justificavam a intensa busca por novos vieses em diversas áreas do
conhecimento, notavelmente nas ciências, nas artes e na filosofia.
Tais singularidades, juntamente com a nova estrutura comercial que se
afirmava, constituíram o amálgama basilar para a inovação também nas
perspectivas do poder e do Estado.
2.1 REVOLUÇÕES DO SÉC. XVII E XVIII, CONSTITUCIONALISMO E PRIMEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A consagração normativa dos direitos fundamentais é resultado do
recrudescimento intelectual ante a propositura de novos padrões sociais em
detrimento às decadentes seculares certezas ortodoxas medievais.
Nas lições de Jorge Miranda (2003, p. 363) “nada se afigura, na verdade,
mais gerador de Direito do que uma revolução, nada há talvez de mais
eminentemente jurídico do que o facto ou acto revolucionário”3. Deste modo, o
fomento para que se estabelecesse a proteção jurídica aos direitos fundamentais
teve seu apogeu a partir dos episódios ocorridos na Europa e Estados Unidos da
América nos séculos XVII e XVIII.
Dentre todos estes acontecimentos, a Declaração dos direitos da Virginia de
junho de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, oriunda da
Revolução Francesa de 1789, merecem especial destaque.
A primeira, que logo em seu artigo de abertura, proclamava que “todos os
homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e
naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua
posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir
3 Acerca desta assertiva, complementa o doutrinador português: “a revolução não é o triunfo da
violência; é o triunfo de um Direito diferente ou de um diverso fundamento de validade do sistema
jurídico positivo do Estado. Não é antijurídica; é apenas anticonstitucional por oposição à anterior
Constituição”. (MIRANDA, 2003, p. 363).
Rene Sampar
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”, contemplou
ainda em seu texto os princípios da legalidade, da liberdade de imprensa e da
liberdade religiosa.
Apesar de sua importância histórica, o grande marco na positivação dos
direitos humanos se deu com a Declaração francesa, pois, de acordo com
Comparato, os revolucionários de 1789 consideravam-se apóstolos de um novo
mundo, a ser anunciado a todos os povos e em todos os tempos, ao contrário dos
norte-americanos, desejosos em firmar sua independência (COMPARATO, 2003, p.
130).
Neste emblemático ano de 1789 foi proclamada a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, que em seu texto de apenas dezessete artigos previa os
princípios da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão,
associação política, legalidade, reserva legal e anterioridade em matéria penal,
presunção de inocência, liberdade religiosa e livre manifestação de pensamento
(MORAES, 2007, p. 9).
A este respeito, lapidares as considerações de Hannah Arendt (2007, p.
324):
A Declaração dos Direitos do Homem, no fim do século XVIII, foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o homem, e não o comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Independentemente dos privilégios que a história havia concedido a certas camadas da sociedade ou a certas nações, a declaração era ao mesmo tempo a mostra de que o homem se libertava de toda a espécie de tutela e o prenúncio de que já havia atingido a maioridade.
Por se revelar uma revolução com ideais iluministas e financiada pela
burguesia liberal ascendente e sedenta para tomar para si os privilégios da nobreza
e do clero, o principal objetivo deste período sublevador era a criação de um
ambiente juridicamente seguro à propriedade privada, impedindo vedações
desmotivadas por parte da elite dominante. Para tanto, as consequências mais
relevantes foram o fortalecimento do constitucionalismo, com a formação da teoria
do poder constituinte a partir da publicação de Qu’est-ce que le tiers état? (O que é o
Segurança humana e efetividade...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
41
terceiro Estado?) de Emmanuel Sieyès, e a proteção à liberdade, um dos maiores
fundamentos da obra de Immanuel Kant4.
Publicada pouco antes de deflagrada a revolução, a obra de Sieyès possui
mérito porque justifica a retirada do poder das classes privilegiadas e afastadas da
realidade social para transferi-lo à nação, justamente por conta da inexistência de
mecanismos de proteção do cidadão comum frente ao Estado.
Conforme salienta o autor francês:
É bem verdade, porém, que um homem não é ninguém na França se ele não possui mais do que a justiça comum para o protegê-lo. Se não faz parte de uma casta com privilégios, terá de se resignar ao desprezo, injúria e todo o tipo de perseguição. Para evitar ser totalmente oprimido, o que deve fazer uma pessoa desprivilegiada? Ele terá de se apegar a um magnata utilizando todos os seus meios; para comprar, pelo preço de seus valores e de seus direitos humanos a capacidade de ser tutelado quando necessário
5.
Eis os chamados direitos de primeira dimensão, contexto em que o Estado
age como algoz da população menos priivilegiada.
Segundo Cunha Junior (apud DE PAULA, 2006, p. 41):
Esses direitos de primeira dimensão foram reconhecidos para a tutela das liberdades públicas, em razão de já verem naquela época uma única preocupação, qual seja proteger as pessoas do poder opressivo do Estado. Em razão disso, eles se voltavam exclusivamente à tutela das liberdades, tanto na esfera civil, quanto na esfera política
6.
4 A liberdade, na obra de Kant, revela-se como o direito que uma sociedade possui de direcionar
seus objetivos a partir da legislação, ponto comum entre os iluministas. Consoante lições de
Norberto Bobbio, Kant define o tema como “liberdade jurídica é a faculdade de só obedecer a leis
externas às quais pude dar o meu assentimento”. E conclui o mestre italiano: “nessa definição, era
claríssima a inspiração de Rousseau, que definiria a liberdade como a obediência à lei que nós
mesmos nos prescrevemos”. (BOBBIO. 1992, p. 86). 5 Tradução livre: O texto original é: “It is only too true, however, that a man is a nobody in France if
he has no more than the common system of law to protect him. Without some sort of connection
with privilege, one has to resign oneself to scorn, injury, and every kind of harassment. To avoid
being entirely crushed, what can an unfortunate non-privileged person do? He has to attach himself
to some magnate by every sort os base means; to buy, for the price of his values and humans
dignity, the capacity to call, when necessary, upon the protection of a somebody”. (SIEYÈS, 2003,
p. 99-100). 6 Conforme lições de Sieyès “a liberdade não deve se originar dos privilégios, mas dos direitos dos
cidadãos, direitos que pertencem a todos” (tradução livre). O texto original é: “freedom does not
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
42
Certo é que a partir de então, todos estes ideais atuaram como verdadeiro
epicentro do constitucionalismo liberal, influenciando inúmeras constituições quanto
à previsão de direitos individuais, tais como: Constituição espanhola de 1812,
conhecida como Constituição de Cádis, que previa o princípio da legalidade e
impunha restrições ao poder real; a Constituição portuguesa de 1822 que previa
direitos individuais; Constituição belga de 1831 que também previa direitos
individuais; a Declaração francesa de 1848 que ampliou os direitos fundamentais já
proclamados na declaração de 1789, como liberdade de trabalho e da indústria,
assistência aos desempregados, às crianças abandonadas, aos enfermos e aos
idosos sem recursos.
2.2 SEGUNDA DIMENSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E HECATOMBE FASCISTA DO SÉCULO XX
Arrefecida a Revolução, a sociedade francesa percebe que a efetivação dos
direitos fundamentais proclamados em 1789 vai além de apenas sua previsão no
texto da Declaração.
Logo em junho de 1791 é publicada a Lei de Le Chapelier, proibindo a
formação de sindicatos e restringindo a reunião de trabalhadores. Ainda antes de
findar o século XVIII, especificamente em 1799 no “Golpe 18 de Brumário”, a França
espreita a ascensão de Napoleão Bonaparte e, de forma adjunta, da burguesia
fortalecida pelos efeitos da consolidada Revolução Industrial na Inglaterra.
Consoante se observa, o panorama do século XVIII é marcado pela
dicotomia existente entre os proprietários de indústrias e trabalhadores. O preço da
busca incessante pelo lucro neste período foi a cabal violação aos direitos
fundamentais já prescritos nas constituições, mas sem qualquer real aplicabilidade.
Nos estritos termos delineados pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori
Albino Zavascki (1998, p. 227-232):
Superada a fase de combate ao absolutismo, percebeu-se que era insuficiente, e até mesmo falsa, a idéia de harmonia social espontânea.
derive from privilege but from rights of the citizen, rigths which belong to all”. (SIEYÈS, 2003, p.
99).
Segurança humana e efetividade...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
43
Como a experiência histórica acabou demonstrando, o liberalismo puro aniquilava o segundo ideal dos revolucionários franceses: o ideal da igualdade. Num estado absenteísta e omisso, a igualdade entre as pessoas era simplesmente formal, desprovida de qualquer representatividade no plano dos fatos, um mero catálogo de ilusões.
As péssimas condições de trabalho e a total indignidade decorrente da
omissão do Estado liberal foram os principais aspectos que incitaram a eclosão dos
movimentos sindicalistas na Europa e na equalização de doutrinas, marxistas,
anarquistas, filosófico-humanistas e até eclesiásticas, tendentes a denunciar os
abusos praticados em nome do estólido acúmulo de capital.
Os chamados direitos de segunda geração fazem parte desta trama de
acontecimentos e atrocidades à indignidade humana, e compreendem à proteção ao
trabalho, aos direitos econômicos e culturais. Conforme leciona Gomes Canotilho
(2003, p. 385):
Independentemente da adesão aos postulados marxistas, a radicação da idéia da necessidade de garantir o homem no plano econômico, social e cultural, de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade.
Os acontecimentos da primeira metade do século XX demonstram que o
Estado, por si, não possui mecanismos hábeis a obstar a violação destes direitos
intrínsecos ao homem.
Em meados de 1945 a sociedade coteja os estragos produzidos pela
máquina da guerra estatal. Enquanto na Primeira Guerra Mundial a maioria das
vítimas eram militares induzidos por conquistas territoriais, sobretudo pela Alemanha
e Itália que tiveram seus processos de unificação tardios, o conflito de 1939 a 1945
teve como base puramente a subjugação de povos conclamados inferiores, sendo
encerrado pelo lançamento de duas ogivas nucleares contra cidadãos
absolutamente desprotegidos. As declarações de estrito cumprimento da legislação
nacional nos julgamentos perante os Tribunais de Guerra de Nuremberg e de Tókio
apresentaram o Estado como o possível maior violador dos direitos fundamentais.
Zygmunt Baumann (apud STOLCKE, 2002, p. 93-112), sociólogo polonês,
afirma:
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44
O holocausto não foi simplesmente um problema judeu e, tampouco, um fato exclusivo à história judaica. O holocausto nasceu e foi executado em nossa sociedade racional moderna, em um ponto alto de nossa civilização, na culminação das conquistas culturais humanas, sendo, por essa razão, um problema dessa sociedade, civilização e cultura.
Findas as duas grandes guerras, era preciso que a sociedade internacional
repensasse todos os seus aparatos de proteção aos direitos fundamentais. “Se a 2ª
Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar
a sua reconstrução” (PIOVESAN, apud DE PAULA, 2006, p. 216).
2.3 SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A TERCEIRA DIMENSÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os horrores da Segunda Guerra representaram um limite intransponível para
a humanidade, no qual não se permitiria qualquer avanço sem se reavaliar as
consequências nefastas promovidas pelo Estado e a própria razão de ser do direito.
A violação aos direitos fundamentais neste período pode ser metaforizada a
partir do poema “No caminho com Maiakóvski”, em que as pequenas transgressões
diárias aos direitos ínsitos do homem culminaram no extermínio de 18 milhões de
pessoas somente em campos de concentração, sem mencionar o conflito direto nos
campos de guerra7.
A par de todo este contexto fático, nasce em 1948 a Declaração Universal
dos Direitos do Homem apresentando inúmeros direitos do homem. Tais direitos
caracterizam-se por sua unicidade e indivisibilidade, sendo pertencentes a toda a
humanidade, representando marco maior na reconstrução dos direitos humanos
(PIOVESAN, apud DE PAULA, 2006, p. 216).
Na abalizada lição de Flávia Piovesan (apud DE PAULA, 2006, p. 218), a
adoção de mecanismos tendentes a proteger os direitos do homem “não deve se
restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição exclusiva, porque revela
7 “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na
segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até
que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo
nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada”.
Segurança humana e efetividade...
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45
tema de legitimo interesse internacional”, quebrantando o dogma da absoluta
soberania estatal rumo a concepção do fraternité da Revolução francesa de 1789.
Ato contínuo, as constituições passam a prover meios de internalizar estes
tratados suplementares à ordem jurídica nacional, incitando aos Estados signatários
a necessidade de se fomentar a discussão e proteção aos direitos e garantias
fundamentais.
Desta forma, note-se que no alvor da segunda metade do século XX os
direitos humanos são colocados no centro dos debates jurídicos, vislumbrando-se a
efetiva garantia da dignidade da pessoa humana de modo coletivo.
Martin (2006, XXIX) expõe que as primeiras décadas após a Segunda
Grande Guerra foram devotadas ao reconhecimento de normas de direitos humanos;
recentemente, estão sendo criados os mecanismos visando a implementação de tais
normas.
Nesta esteira, acrescenta Paulo Bonavides (2003, p. 369):
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado.
Salienta ainda o insigne doutrinador que já se identificou cinco direitos
relacionados a dimensão do fraternité: o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio
ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.
Esta nova perspectiva universal consentiu na adoção de um sistema de
normas e instrumentos de controle em âmbito internacional tendo em vista a guarida
dos direitos humanos, os chamados international accountability.
Conforme expõe Flávia Piovesan (apud DE PAULA, 2006, p. 220):
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção desses direitos, integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, à medida que invocam o consenso internacional acerca dos temas centrais aos direitos humanos.
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46
Neste sentido, acrescenta Paulo Bonavides (2003, p. 573):
A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e fraternidade.
A título meramente exemplificativo, a elaboração deste sistema de proteção
internacional dos direitos humanos a partir da Declaração Universal dos Direitos
Humanos culminou na formação das seguintes convenções e pactos em nível
universal: Pacto Universal dos Direitos Humanos de 1948; Convenção Internacional
sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial de 1965; Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966; Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Convenção sobre a Eliminação de todas
as formas de Discriminação contra a Mulher de 1979; Convenção contra a Tortura e
outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes de 1984;
Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; Tribunal Penal Internacional e a
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.
3 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ATUALIDADE E A SEGURANÇA HUMANA: NOVAS PERSPECTIVAS JURÍDICAS NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Consoante ao exposto, e limitando-se às três dimensões de direitos
fundamentais apresentadas8, vê-se que as perspectivas atuais do direito situam o
tema da preservação dos direitos humanos acima de ideologias, sociedades e até
mesmo grau de desenvolvimento econômico9.
8 Bonavides (2003, p. 570-574) leciona que a quarta dimensão de direitos está relacionada a
recente fase de globalização. Assim, seriam direitos fundamentais sob esta ótica a democracia, à
informação e ao pluralismo. 9 Conforme assevera Paulo Bonavides (2003, p. 574): “a nova universalidade procura, enfim,
subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da tríplice geração na titularidade de um
individuo que antes de ser homem deste ou daquele país, de uma sociedade desenvolvida ou
subdesenvolvida, é pela sua condição de pessoa um ente qualificado por sua pertinência ao
gênero humano, objeto daquela universalidade”.
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Os ordenamentos jurídicos já identificam, dadas as suas peculiaridades,
quais são os direitos fundamentais e até mesmo os mecanismos e formas de sua
preservação. O principal desafio da atualidade se relaciona à efetiva garantia dos
direitos do homem, ou seja, a busca pela isonomia material dos direitos, que não se
realizará somente em âmbito jurídico, mas que deve envolver amplos setores da
sociedade e do Estado.
Nem tudo o que é desejável e merecedor de ser perseguido é realizável. Para a realização dos direitos do homem, são freqüentemente necessárias condições objetivas que não dependam da boa vontade dos que o proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los. [...] Sabe-se que o tremendo problema diante do qual estão hoje os países em desenvolvimento é o de se encontrarem condições econômicas que, apesar dos programas ideais, não permitem desenvolver a proteção da maioria dos direitos sociais (BOBBIO, 1992, p. 45).
Em meio a toda a aspiração em conquistar a efetividade das três dimensões
de direitos humanos, importantes considerações e estudos estão sendo
desenvolvidos a partir da temática da “segurança humana”.
Esta recente doutrina começa a ser desenvolvida a partir do declínio União
Soviética e do especial interesse nos fóruns internacionais a respeito dos direitos
humanos. Sua terminologia foi utilizada pela primeira vez no relatório do “Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento” – PNUD10 em 1994
Juan Pablo Fernández Pereira desenvolveu a temática da segurança
humana em sua tese de doutoramento no ano de 2005 pela Universitat Autònoma
de Barcelona, e traz as seguintes considerações:
A segurança humana em sua acepção mais ampla representaria muito mais que a mera ausência de conflitos violentos. Abarca direitos humanos, boa gestão pública, acesso a educação e saúde, e vela pelo oferecimento de oportunidades aos seres humanos de desenvolverem seu próprio potencial
11.
10
Em inglês: UNDP – United Nations Development Programme. 11
Tradução livre. O texto original é: “La seguridad humana em su acepción más amplia representaría
mucho más que la mera ausencia de conflictos violentos. Abarca derechos humanos, buena
gestión pública, acesso a la education y la atención médica y vela porque cada ser humano tenga
oportunidades que aprovechar y elleciones que efectuar para realizar su proprio potencial”.
(PEREIRA, 2006, p. 78).
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O foco do direito internacional no assunto da segurança, notadamente de
âmbito estatal a par da tradicional noção de soberania do Estado, se justifica pela
complexidade evocada pelo tema na atualidade e pela busca incessante de meios
para integrar outros setores na defesa dos direitos humanos além da esfera
governamental.
Segundo Bernando Sorj (2005, p. 42):
O conceito de segurança humana é inovador em sua ênfase no cumprimento das leis de defesa dos direitos humanos individuais. Considera-se esta a principal tarefa da ordem internacional, mesmo contra a vontade dos Estados, mencionados como uma das principais fontes de insegurança individual.
Elucidativo também o “Relatório da Comissão de Segurança Humana” das
Nações Unidas (2002-2003), ao exprimir que:
A segurança humana complementa a segurança do Estado, promove o desenvolvimento humano e reforça os direitos humanos. Complementa a segurança do Estado concentrando-se nas pessoas e tomando em consideração as inseguranças que não foram consideradas uma ameaça para a segurança do Estado. Ao contemplar este outro tipo de riscos faz com que o desenvolvimento humano vá mais além do conceito de “crescimento em equidade”. O respeito pelos direitos humanos está no cerne da proteção da segurança humana.
Deste modo, para a Organização das Nações Unidas (Human Development
Report, 1994), sete são as categorias potencialmente nocivas à segurança humana
e que necessitam de especial atenção, quais sejam:
segurança econômica: desemprego e trabalho informal.
segurança alimentar: escassez e baixa qualidade dos alimentos:
segurança na saúde: novas moléstias e transmissões por meios
desconhecidos.
segurança ambiental: poluição ambiental em níveis alarmantes.
segurança pessoal: criminalidade e terrorismo.
segurança comunitária: violação às diferentes etnias e culturas.
segurança política: violações aos direitos humanos.
Segurança humana e efetividade...
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Partindo-se das orientações traçadas em busca da efetivação dos direitos
humanos pelo paradigma da segurança humana, a ONU fomenta a cooperação
entre os Estados, a sociedade civil e as entidades de iniciativa privada formadoras
do terceiro setor – fundações, entidades filantrópicas, Organizações Não
Governamentais, OSCIP’s (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público),
associações sem fins lucrativos, empresas, entre outras –, isto é, todos os setores
que possam tornar efetivas as atividades relacionadas na proteção,
acompanhamento e fiscalização dos projetos que inclusive já estão sendo
desenvolvidos.
O Japão é um dos países que têm atuado neste cenário, com planos que
beneficiam o Brasil. Por meio do programa de “Assistência a Projetos Comunitários e
de Segurança Humana (APC)”, que teve início em 1999, e até o ano de 2006, “foram
realizados 266 projetos (numa média de 20 a 50 projetos / ano), totalizando
aproximadamente US$ 11 milhões de fundos doados”, prioritariamente nas áreas de
assistência médica (construção, reforma de hospitais, aquisição de equipamentos
médicos, etc.), educação (construção, reforma, aquisição de materiais, etc., para
estabelecimentos de ensino fundamental, bibliotecas, instituições de qualificação
profissional, etc.) e assistência social (construção, reforma, aquisição de materiais,
etc., para creches, asilos e instituições para deficientes físicos)12.
Partindo-se destes pressupostos e tomada de iniciativa por alguns países,
Bernando Sorj aponta questões importantes a serem analisadas para a plena
realização dos objetivos primários traçados pela ONU a respeito da segurança
humana:
Focalizar de modo mais preciso a idéia de “insegurança”. No cerne do conceito de segurança humana está a proteção contra a violência armada ou descontrolada que constituem ameaças para: (1) a estabilidade das instituições democráticas da região e (2) a segurança física da população; além disso, (3) são capazes de gerar uma reação da comunidade internacional (por exemplo, no caso de genocídio ou de treinamento de terroristas). Assim, as crises humanitárias relacionadas à fome, às epidemias ou aos desastres naturais ou ecológicos não estão incluídas num conceito mais estrito de segurança humana.
12
Fonte: Site da Embaixada do Japão no Brasil. Disponível em: <http://www.br.emb-
japan.go.jp/apc.htm>. Acesso em: 12 abr. 2010.
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Referir-se ao quadro institucional e social que pode garantir, ou não, a segurança humana. Com efeito, o quadro institucional está no cerne das diferentes políticas orientadas por uma análise da segurança humana. A maioria dos episódios de intervenção humanitária ou internacional diz respeito a Estados falidos, ou a países que passam por crises humanitárias. Superestimar a capacidade de as ONGs e a sociedade civil em geral resolverem os problemas de segurança é uma atitude irrealista, ineficiente e escapista, que não atende à necessidade de fortalecer as instituições do Estado democrático. Não existe segurança humana individual se o Estado não dispuser de estruturas políticas e administrativas capazes de assegurá-la.
Estabelecer uma relação entre os problemas de segurança e os de desenvolvimento, mas sem reduzi-los um ao outro. Uma agenda de segurança insensível a questões de desigualdade global e nacional – epidemias, degradação do meio ambiente, frustração das expectativas e pobreza relativa – estará condenada a travar uma guerra contra os sintomas. A agenda de desenvolvimento não pode reduzir as questões de segurança a um epifenômeno – que não requer tratamento específico, investimentos e preparo institucional (SORJ, 2005, p. 46-47).
Em que pese alguns países se destacarem na implementação de projetos a
partir dos estudos e indicadores apresentados pela ONU, a exemplo do Japão,
imperioso salientar que ainda é necessário um longo processo de aprimoramento
destes planos iniciais e a efetiva colaboração de Estados e da sociedade
objetivando a garantia real dos direitos humanos.
4 CONCLUSÃO
Dialogar com todos os setores da sociedade nacional e transnacional a fim
de salvaguardar os direitos humanos é o grande desafio do século XXI, tarefa não
somente do operador do direito, mas de todos, na medida de suas especificidades, e
tendo como parâmetro os ordenamentos jurídicos constitucionais e os tratados
internacionais.
A efetivação dos direitos fundamentais depende de ampla e significativa
alteração no paradigma das ciências jurídicas em busca da dignidade da pessoa
humana por meio da efetivação de seus direitos mais basilares, “Dignidade da
pessoa a considerar em si e por si, que o mesmo é dizer a respeitar para além e
independentemente dos contextos integrantes e das situações sociais em que ela
concretamente se insira” (CASTANHEIRA NEVES apud MIRANDA, 2006, p. 476-
477). Nas palavras de Jacy de Souza Mendonça (apud FERREIRA R., [s.d.]) “o
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
51
século XX exorciza em seu ocaso os demônios do estado todo poderoso e a
aceitação de um Direito meramente formal, independente de conteúdo justo e
injusto”.
Segundo estudos da professora Marlene Kempfer Bassoli (2008, p. 132), em
ampla comparação da Constituição Federal de 1988 com as cláusulas enumeradas
pela ONU e citadas anteriormente, o Brasil já possui normas jurídicas concernentes
às propugnadas pela doutrina para implementar a segurança humana13.
A partir de então, nas palavras do Ministro Teori Albino Zavascki (1998, p.
227-232):
Portanto, o que esperar do jurista afinado com o novo tempo? Diria que o jurista há de ter, em primeiro lugar, uma visão do seu ofício voltada à eficácia social das normas. E o que isso significa? Significa dirigir a sua energia e a sua inteligência no sentido de reduzir, o quanto possível, a ainda imensa distância que existe entre o mundo normativo e o mundo real. Cumprida toda uma trajetória de avanços sociais no plano formal, já não se reclamam direitos, mas garantias de cumprimento dos direitos. Os direitos, na esfera programática, foram quase todos atendidos pelo constituinte, de modo que não deve ser esse o objeto principal de nossos cuidados. Formalismos à parte, o verdadeiro problema da nossa época consiste em criar mecanismos para garantir a efetividade dos direitos sociais básicos previstos nos textos legislativos. Decididamente, os tempos atuais já não comportam juristas encastelados num mundo de elucubrações teóricas, de costas para a realidade e para a sociedade em que vivem.
Na linha de Hannah Arendt, os direitos – todos os direitos – não são dados,
mas construídos. Cabe a nós, sociedade, estipulá-los e tutelá-los, de forma irrestrita
e categórica a todos, indistintamente.
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003
13
Segundo a autora “pode-se concluir que o Estado Brasileiro está entre aqueles que têm todos os
requisitos jurídicos para viabilizar todas as dimensões da segurança humana e contribuir para
diminuir o sofrimento da humanidade. É preciso aprimorar a interpretação jurídica que possibilite a
efetividade destes direitos e esta responsabilidade está, primordialmente, nas mãos do Legislativo,
do Executivo e do Judiciário brasileiro, nesta ordem”. (FERREIRA, J. et al., 2008, p. 132).
Rene Sampar
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Segurança humana e efetividade...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
53
PALESTRAS NOS PAINÉIS DO
IX SIMPÓSIO NACIONAL
DE DIREITO CONSTITUCIONAL
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
54
A CONSTITUCIONALIDADE DA COMPENSAÇÃO EM
DETRIMENTO DA ORDEM DE PAGAMENTO DOS
PRECATÓRIOS
CONSTITUTIONALITY OF COMPENSATION AT THE EXPENSE OF THE ORDER OF PAYMENT OF PRECATORIES
Edvaldo Brito1
Sumário: 1. Precatório. 1.1. Noção. 1.2. Pressuposto. 1.3. Características. Aspectos
inconstitucionais da emenda constitucional nº 62. 1.4. Origem. 1.5. As novas regras.
2. A compensação tributária em detrimento da ordem de pagamento dos precatórios.
2.1. O poder liberatório na prestação tributária. 2.2. Ofensa a princípios
constitucionais em detrimento da ordem de pagamento dos precatórios.
1 PRECATÓRIO
1.1 Noção
É uma ordem de pagamento de uma prestação, em dinheiro, expedida para o
órgão da Administração Pública devedor, pelo presidente do Tribunal de Justiça
competente em cujo âmbito foi proferida a decisão exequenda, já transitada em julgado.
1.2 Pressuposto
O precatório tem como seu antecedente necessário a existência de uma
decisão exequenda, cujos elementos constitutivos são:
1 Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, onde leciona no curso de pós-graduação
(Mestrado e Doutorado). Professor Emérito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo).
Professor Titular de Direito Civil e de Legislação Tributária, aprovado em concurso de provas e de
títulos na USP – Universidade de São Paulo. Doutor e Livre Docente na USP. Mestre em Direito
Econômico na UFBa. Advogado na Bahia e em São Paulo.
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
55
a) – trânsito em julgado;
b) – liquidez e certeza do objeto;
c) – dívida de quantia em determinado metal;
d) – inclusão no mapa de ordem cronológica – MOC.
a) – trânsito em julgado – consiste na transformação da decisão em coisa
julgada e, portanto, excluída do alcance da retroatividade, tal como dispõe a
Constituição2 , assim, aplicável ao legislador, inclusive o competente para a reforma
do texto constitucional, aqui, inserido o princípio da segurança jurídica cuja matriz é
a previsibilidade das normas; a sentença, por ser uma delas, participa desse
contexto, tendo de ser preservada da forma como foi proferida, se ela transita em
julgado.
Conclui-se, de logo, por uma primeira inconstitucionalidade da Emenda
Constitucional nº 62, de 09 de dezembro de 2009, por fazer retroagir situação não
pertinente por não ter sido contemporânea da irreformável sentença exequenda,
qual seja o direito de abatimento do valor de prestação, que seria devida ao sujeito
passivo do precatório, atribuída ao credor desta ordem de pagamento, tudo
mediante compensação.
b) – liquidez e certeza – implica em uma dívida cujo montante está
indiscutivelmente apurado, calculado (dívida líquida) e, por isso, o seu objeto é
inquestionável (dívida certa).
c) – dívida de quantia em determinado metal – fala-se, aqui, de uma
prestação pecuniária cujo objeto tem de ser dinheiro, mas, na única moeda
convencionada que, no caso, tem de ser aquela de curso legal e, também, forçado,
no Brasil. Ora, dívida de dinheiro não pode ser considerada prestação de coisas,
ainda quando tenha por objeto determinada espécie monetária. Assim, não poderá
ser satisfeita, senão pelo determinado metal, a moeda convencionada (GOMES,
2009). A emenda constitucional não tem o condão de transformar naturezas
jurídicas, ou seja, a essência de institutos, conceitos e categorias jurídicos formada a
2 cf. art. 5 º [...] XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada.
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
56
partir da sedimentação das instituições jurídicas. Afinal o direito não se confunde
com a forma de sua positivação. Ele, em essência, é a conduta humana quando na
sua interferência intersubjetiva, sendo a positivação, apenas, o pensamento dessa
conduta formulado em técnica normativa (COSSIO, 1964; 1954). Essa emenda
padece, também, desses vícios, porque substitui o pagamento pela compensação.
d) – inclusão no mapa de ordem cronológica – MOC – a determinação do
presidente do Tribunal para o pagamento deve ser recebida, pela Administração
Pública devedora, até 1º de julho do respectivo ano de sua expedição, a fim de que
seja incluída no mapa, pela ordem cronológica de chegada da indicação do valor
que comporá o total da verba a ser inscrita no Orçamento Público, a qual responderá
pelo cumprimento da prestação devida.
1.3 Características. Aspectos inconstitucionais da Emenda nº 62
1.3.1. Ato de presidente de Tribunal – Esta particularidade de ser uma ação
da autoridade maior da organização judiciária conduz à perquirição quanto à
natureza jurídica desse ato, se administrativa ou se jurisdicional.
É jurisdicional porque a) – determina um pagamento; b) – autoriza um
sequestro.
Todo ato cujo conteúdo exprime o poder de julgar de um magistrado
consiste em resolver pendências ditando o comportamento alheio. É a espécie. O
presidente do Tribunal, em cujo âmbito foi proferida a decisão que, então, executa-
se, tem, ao praticar esse ato, o poder de resolver o litígio entre a Administração
Pública e a parte que logrou a proteção do seu direito subjetivo que a si irroga. A
Constituição outorga-lhe a competência de determinar à autoridade administrativa o
pagamento integral da prestação pecuniária devida ao titular do crédito.
O ato presidencial reveste-se, também, de jurisdicionalidade porque autoriza
o sequestro do valor da prestação pecuniária, quando a autoridade administrativa
descumpre a determinação presidencial de pagamento, tal como será descrito infra.
1.3.2. Ato de execução de sentença – Remanesce a natureza jurisdicional
desse ato ao perscrutar-se o seu efeito: o de efetivar a execução de uma sentença
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
57
condenatória contra a Fazenda Pública, pois, ele integra o procedimento judicial
respectivo, desde que a requisição de pagamento, formulada pelo presidente do
Tribunal, tem origem no juiz do feito, em 1º (primeiro) grau, após a citação do
devedor para opor embargos e este não o faz no prazo legal. Um iter dessa natureza
não poderia ser completado por ato administrativo, ou seja, de mera gestão.
1.3.3. Ato irrecorrível – O ato de requisição é irrecorrível quanto ao mérito.
Ele não participa de processo cognitivo cuja essência é verificar elementos de fato e
o enquadramento jurídico deste, que conduz à certeza, de modo a que o magistrado
diga que a situação existe ou não (CARNELUTTI, [s.d.]).
Consequentemente, no processo de conhecimento, a sentença é ato que
participa do procedimento para dizer da certeza sobre a existência ou a inexistência
da situação colocada à busca de ser dirimida uma disputa entre as partes. Nesse
ponto, o da requisição de pagamento, cabe, apenas, cumprir uma solenidade e,
assim, somente sobre a forma é possível recorrer, se esta for inobservada.
Portanto, a requisição de pagamento é ato irrecorrível quanto ao mérito.
1.3.4. Ato solene – O exercício da função do presidente do Tribunal, no
particular, obedece a uma solenidade, a partir da solicitação do juiz do feito que
executa quantia certa contra a Fazenda Pública. Ela é, como dito supra,
subsequente à citação do devedor para opor embargos à execução e logo que, no
prazo legal, tal não ocorra opera-se o início do procedimento de requisição.
Tem, enfim, forma própria, não só pelos aspectos expostos, mas também,
pelos seus efeitos: a) – a responsabilidade da presidência do Tribunal, de ser
partícipe da efetivação da execução e b) – as sanções que lhe são cominadas pela
Constituição.
Efetivamente, não há alternativa para o presidente o Tribunal. Ele tem de
determinar o pagamento da prestação pecuniária, sob as penas capituladas pela
própria Constituição que lhe proíbe sequer de retardar a liquidação regular do
precatório.
Por isso, as sanções para sua omissão ou para a sua ação de que resulte
não só o retardo, mas também a frustração do pagamento. Elas são de duas
Edvaldo Brito
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58
espécies: 1ª – crime de responsabilidade; 2ª – responsabilidade funcional perante o
Conselho Nacional de Justiça.
1ª – O crime de responsabilidade, na verdade, não é uma ilicitude punida
com pena de natureza criminal. É uma infração sancionada com perda do cargo para
a qual não há, propriamente, restrição de liberdade.
Regula-o a lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, em cujo art. 2º estabelece
que assim se entendem os crimes, ainda quando simplesmente tentados, passíveis
da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de
qualquer função pública.
Argua-se, aqui, o “due process of law”. O devido processo legal não atina
somente com procedimentos estritos, legalmente, previstos, mas também, e dentro
deles, com a prática dos atos respectivos pela autoridade competente, incluída neles
a sentença do magistrado, quando for o caso.
Tudo isto vem a pelo porque a Constituição dispõe que o presidente do
Tribunal que retarda ou tenta frustrar a liquidação de precatórios incorrerá em
crime de responsabilidade. A lei que a regula, a de nº 1.079/1950, define que são
crimes de responsabilidade aqueles que ela específica, quais sejam os atos: a)
contra a existência da União; b) - contra o livre exercício dos poderes
constitucionais; c) – contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; d)
– contra a segurança interna do país; e) – contra a probidade na administração; f) –
contra a lei orçamentária; contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos; g)
– contra o cumprimento das decisões judiciárias.
Define, outrossim, os elementos constitutivos da infração, dentro da
tipicidade cerrada — princípio fundamental do direito de o Estado punir — quando,
então, discrimina cada “facti species”, estipulando-lhe o elemento subjetivo. Então,
os presidentes de Tribunais Superiores, dos Tribunais Regionais Federais, do
Trabalho e Eleitorais, dos Tribunais de Justiça e de Alçada dos Estados e do Distrito
Federal são discriminados, de modo explícito, como convém à hipótese, pela
inclusão que fez a lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000, mas, para as condutas
previstas como crimes contra a lei orçamentária.
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59
Ora, se a tipicidade cerrada exigiu tal procedimento legislativo, por que não o
há para a conduta do presidente de tribunais “que, por ato comissivo ou omissivo,
retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatórios”?
O questionamento prevalece, ainda que se argumente que essa conduta
ilícita já está contemplada no tipo do art.12, item 4, quando a lei nº 1.079/1950 traz a
cláusula genérica: “impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença
judiciária”, porque parece não ser, nesse caso, o presidente o destinatário dessa
norma. Enfim, cabe a dúvida que, aqui, pretende-se dirimida com as considerações
formuladas nas linhas antreriores.
2ª – A responsabilidade funcional perante o Conselho Nacional de Justiça foi
objeto, em 29 de junho de 2010, de Resolução desse órgão competente para o
controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, aprovada pela
maioria do colegiado. Foi da relatoria do conselheiro Ives Gandra Martins Filho, mas,
houve conselheiro questionando a sua constitucionalidade, face ao texto submetido
ao plenário, por isso, fala-se em maioria e não em unanimidade.
Efetivamente, a norma integrativa da Constituição, requerida através dos
termos da Emenda Constitucional nº 62, de 09 de dezembro de 2009, é uma lei
complementar, de modo específico, para estabelecer o regime especial para
pagamento de crédito de precatórios com a vinculação da receita corrente líquida.
A inconstitucionalidade que se poderia vislumbrar, à mingua do
conhecimento do autor deste trabalho quanto aos fundamentos adotados pela
minoria dos conselheiros, seria quanto a essa vinculação por ofensa à proibição
contida no item IV do art.167 da Constituição. Mas, antes disso a questão deveria
ser em torno da própria Emenda ao dispor sobre a receita corrente líquida, forma e
prazo de liquidação de precatórios estaduais, municipais e distritais, atingindo a
forma federativa de Estado, a partir de ofensa à autonomia assegurada pelo art.18
da Constituição nos termos plasmados pelo texto original, cuja incolumidade é
defeso à ação do legislador da reforma pela via da emenda.
É certo que nem toda matéria pode ser objeto de emenda, diante do núcleo
irreformável do § 4º do seu art. 60. E, parece, que esta mexe com a forma
federativa, quando, no acrescentado art.97 ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, dispõe sobre o referido regime ferindo a autonomia dos Estados,
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
60
Distrito Federal e Municípios, ditando-lhes o procedimento, com
sanções institucionais para o descumprimento.
É certo, também e porém, que, para argumentar, afaste-se a apreciação
dessa inconstitucionalidade da emenda, e se entenda a norma constitucional dela
decorrente como eficaz e, então, o problema resume-se na sua aplicabilidade.
A norma é eficaz quando emitida pela fonte a quem a convenção atribuiu o
poder (aptidão para gerar consequência: eficácia formal) e tem um relato como
mensagem a ser recebida pelo destinatário sem possibilidade de ele desconfirmá-Io
com sucesso (“eficácia” social ou, propriamente, efetividade), pois, no repertório
jurídico não pode haver a desconfirmação (BRITO, 1993).
Assim, trabalha-se na área da acepção ampla em que se reconhece, como
pressuposto, um mínimo de eficácia ao Direito e se pode distinguir eficácia e
efetividade e, com muito mais propriedade, adotar a lição de José Afonso da Silva
(1968) de que é premissa o enunciado: “não há norma constitucional alguma
destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre
numa inovação da ordem jurídica preexistente a entrada em vigor da Constituição
que aderem, e na ordenação da nova ordem instaurada”.
Premissa de tal grandeza é incompatível com a doutrina tradicional da
norma programática, segundo a qual os direitos econômicos e sociais, debuxados
nas hipóteses normativas constitucionais, seriam, na realidade, conteúdos ético-
sociais ou econômico-sociais constitutivos de programas a serem posteriormente
implementados se e quando as autoridades competentes deliberarem fazê-lo. Por
isso, essas hipóteses normativas não seriam, propriamente, normas, mas, simples
enunciados sem natureza deôntica. Não há, neste sentido, norma programática.
Toda norma do tecido constitucional tem natureza jurídica e, por isso, participa de
todas as características desse tipo de regra.
Ruy Barbosa (1933) sepulta as dúvidas, afirmando que não há, numa
Constituição, cláusulas, a que se deva atribuir meramente o valor moral de
conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras, ditadas pela
soberania nacional ou popular aos seus órgãos.
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61
A origem dessa ideia, a do valor programático de disposições
constitucionais, estaria nas transformações sociais do após-primeira-guerra mundial,
quando os textos legais desse nível começaram a agasalhar direitos sociais e
econômicos como compromisso entre as tendências que se chocam nos grupos
sociais: as progressistas e as conservadoras. Suas características não se
esgotariam nessa questão de mérito, mas também, no plano formal, porque seriam
normas dependentes de integração legislativa e, assim, teriam apenas função
eficacial negativa resultando em bloqueio para a atividade do poder público que,
tendo a faculdade de editá-las se e quando deliberar, não tem o direito de contrariá-
las.
Logo, enquanto faltasse lei integrativa, no mínimo essas normas não
irradiariam efeitos, salvo o de não poderem ser contrariadas pelo legislador infra
constitucional(?!).
Vezio Crisafulli (1985), há quase sessenta anos passados, elaborou
elucidativo estudo sobre o tema, recentemente republicado. Lembra que este
verdadeiro cavalo de batalha da doutrina que sustenta essa distinção entre a norma
a que chama de imediatamente preceptiva e a que denomina de norma
programática envolve a questão da entrada em vigor de uma nova Constituição e
das controvérsias consequentes, como, por exemplo, entre essa nova lei e as
normas legislativas anteriores em contraste com suas normas ditas programáticas
que geram dificuldades no campo da abrogação e da inconstitucionalidade
sucessiva ou hereditária.
Os limites deste trabalho não comportam o aprofundamento deste aspecto,
mas, ele serve para demonstrar quão saliente é adotar, ou não, a ideia aqui referida,
tendo em vista identificar qual a função eficacial das normas do tipo inventado. Os
limites deste trabalho, pois, vão admitir, apenas, apreciá-las sob a ótica da revisão
constitucional: se elas existirem, podem constituir princípios federativos, direitos e
garantias, etc. que não possam ser alterados? Por outro lado, elas inibem as normas
infraconstitucionais preexistentes, que lhe são contrárias? O próprio Crisafulli, à p.
56 do livro citado, oferece conclusão favorável à juridicidade do conteúdo dessas
normas, ajudando, assim, a responder as questões formuladas, ao asseverar:
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62
1) – o reconhecimento da eficácia normativa, também, das dispoções
constitucionais exclusivamente programáticas, as quais enunciam verdadeiras
normas jurídicas, tão preceptivas quanto qualquer outra, ainda que se dirijam
originária e diretamente, apenas, aos órgãos do Estado, de modo especial, aos
legislativos;
2) – o reconhecimento, no ordenamento vigente, da natureza propriamente
obrigat6ria do vínculo derivado da norma constitucional programática, aos órgãos
legislativos, como consequência da eficácia formal prevalente da sua fonte (a
Constituição) em relação às leis infraconstitucionais;
3) – o reconhecimento, por isso, da invalidade da lei sucessiva que disponha
em contrário da norma constitucional programática e, segundo a corrente doutrinaria
que parece preferível, também, a invalidade da disposição de lei preexistente, e
enquanto com ela contraste:
Esta festejada conclusão desse autor italiano forra a aqui exposta, quanto à
inexistência de norma programática, no sentido, em contrário, defendido pela
doutrina que o adote; cuja origem, está no fato de que as transformações sociais do
após-primeira-guerra mundial, agasalhadas nos textos constitucionais coevos, não
ensejaria normas jurídicas, mas sim, meras diretrizes destituídas de sanção ou dita
origem está na natureza dessa norma tida como proposição que enunciasse essas
transformações no texto, e, assim, essa norma não seria materialmente
constitucional, mas, não há, também, norma que, estando inserida na Constituição,
não seja matéria de sua típica disciplina (BRITO, 1993).
Logo, todas as normas do texto constitucional são normas com juridicidade;
a natureza jurídica dessas normas, todas elas, é a de norma constitucional.
Partind8o daí, é que se enfrenta o problema da eficácia da norma constitucional e da
sua aicabilidade. Todas, sem exceção, são eficazes, porque todas irradiam efeito,
após a promulgação do texto; apenas, a sua aplicabilidade, às vezes, fica
relacionada com lei integrativa requerida pela própria Constituição, tal como lição de
Crisafulli, entre nós adotada por José Afonso da Silva (1968) , considerando uma
tríplice característica dessas normas, discrimina-as nas seguintes categorias:
I - normas constitucionais de eficácia plena e de aplicabilidade direta,
imediata e integral;
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63
II - normas constitucionais de eficácia contível e de aplicabilidade direta,
imediata, mas não integral;
III - normas constitucionais de eficácia limitada e de aplicabilidade indireta,
mediata e reduzida.
É importante fixar essa categoria porque, para que seja eficaz, é necessário
que a norma seja aplicável, porque a aplicabilidade e a qualidade que uma norma
tem de incidir. E a norma somente pode incidir se ela é eficaz, se ela gera efeito. Daí
a classificação ser feita, de um lado, quanto à eficácia e, de outro, quanto à
aplicabilidade.
Assim, se a eficácia é plena, os efeitos são irradiados imediatamente. Se e
contível, os efeitos, também, são irradiados imediatamente, mas, poderão ser
contidos pelo legislador infraconstitucional, nas condições autorizadas pelo
constituinte. Já a eficácia limitada, embora esteja irradiando efeitos inibidores de
disposições em contrário, tem a aplicabilidade mediata porque a norma
constitucional, assim categorizada, pede uma lei futura que regule os seus limites,
mas, nada impede, exatamente, por ser eficaz, que o juiz aplique-a quando se
configure situação correspondente ao seu relato.
Consequentemente, a eficácia e a aplicabilidade das normas envolvem a
questão das leis integrativas de que dependeriam a eficácia e a aplicabilidade das
chamadas normas programáticas e suas relações com certas garantias: mandado de
injunção, ação de inconstitucionalidade por omissão, etc.
Toda norma constitucional de eficácia plena não precisa de nenhuma lei
integrativa para ser aplicável. Toda norma de eficácia contível ou de eficácia limitada
carece de lei integrativa. Portanto, na contível, a lei integrativa é para reduzir-lhe a
aplicabilidade que, até o seu surgimento, está sendo integral. É evidente que,
também, pode não reduzir. Só não pode, porém, é aumentar; é óbvio. Na eficácia
limitada, a lei integrativa é toda necessária, porque sem ela ainda não se pode dar
aplicabilidade à norma, salvo se acontecer o fato descrito pela norma constitucional,
hipótese em que o aplicador há de fazê-la incidir, diretamente, face a sua natureza
eficaz, fonte de direitos subjetivos.
Edvaldo Brito
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64
Consequentemente, dada a sua eficácia, a falta de lei integrativa não impede
a aplicação da norma constitucional, tanto mais a partir do texto de 1988 que lista,
entre os direitos subjetivos públicos, o de impetrar mandado de injunção (art. 5º,
LXXI) toda vez que a falta de lei integrativa esteja impedindo que o seu titular exerça
os direitos e liberdades que a Constituição lhe outorga, bem assim as prerrogativas
inerentes à cidadania, tal como essa situação do não pagamento dos precatórios.
A discussão, segundo a qual o mandado de injunção deve ser impetrado
para forçar o legislador a emitir a norma, é descabida. A sua finalidade é assegurar o
exercício de um direito de que é titular o impetrante face à ausência da lei
integrativa. Opera, assim, efeitos limitados ao impetrante. O mandado de injunção
resolve a questão da aplicabilidade das normas constitucionais, na medida em que
não haja lei integrativa e a pessoa titular do direito subjetivo, esteja impedida de
exercê-lo por causa dessa inércia legislativa. O juiz, assim, não substitui o legislador,
mas, sim, aplica, diretamente, a norma constitucional fonte imediata desse direito.
Dessa forma, no Brasil, nem há espaço para admitir que haja norma constitucional
com conteúdo simplesmente ético-social, sem qualquer juridicidade.
É nesse contexto jurídico que opera a Resolução do Conselho Nacional de
Justiça. Admitida como válida a Emenda Constitucional nº 62/2009, se se puder
superar a circunstância de ela mexer com a forma federativa de Estado, ao dispor
sobre a receita corrente líquida, forma e prazo de liquidação de precatórios
estaduais, municipais e distritais, então, não haveria vício para a dita Resolução que
opera na inércia legislativa, passados que foram os 90 (noventa) dias, para a edição
de lei complementar integrativa, fixados pelo art. 3º da dita Emenda para a
implantação do regime de pagamento criado pelo art. 97, por ela incluído no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
Enfim, o art. 39 dessa Resolução dispõe sobre a abertura de procedimento
administrativo adequado, por omissão na adoção das medidas nela previstas, por
parte do presidente do Tribunal, sem prejuízo da punição por crime de
responsabilidade.
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65
1.4 Origem
1.4.1. Regime constitucional - A trajetória da disciplina jurídica do precatório
revela que o seu regime jurídico sempre teve ambiência constitucional. Surgiu,
inserido nas Disposições Gerais da Constituição de 1934, como a regra do art.182,
mas, com determinação para os pagamentos devidos pela Fazenda federal, ainda
que o entendimento corrente fosse o da sua extensão compreensiva às
condenações das Fazendas estadual e municipal (NUNES, 1960). Aí está o embrião:
pagamento de acordo com a ordem de apresentação dos precatórios; à conta dos
créditos consignados pelo Poder Executivo ao Poder Judiciário; proibição da
designação de caso ou de pessoas nas verbas legais; sequestro por preterição.
1.4.2. Causas dessa regência constitucional – O agasalho da regra a esse
nível normativo deveu-se ao princípio da moralidade administrativa, porque o
procedimento, dessa forma, impediria a “advocacia administrativa que se
desenvolvia no antigo Congresso para obtenção de créditos destinados ao
cumprimento de sentenças judiciárias. Não raro, deputados levaram o seu
desembaraço ao ponto de obstruírem o crédito solicitado, entrando no exame das
sentenças, prática viciosa” [...] de examinar “os fundamentos destas e, se lhe não
agradavam, negava o crédito solicitado. Assim se sobrepunha um julgamento
político ao Judiciário; era um poder exautorado no exercício pleno de suas funções”
(NUNES, 1960). Nessas circunstâncias, melhor foi vedar a designação de caso ou
de pessoas nas dotações orçamentárias.
1.4.3. As Constituições sucessivas – A de 1937 tem redação igual, art. 95,
mas, a inserção é apropriada na parte do Poder Judiciário. A de 1946 mantém
redação idêntica (art. 204), porém, já inclui referência expressa às Fazendas
estadual e municipal e, assim, não fala em audiência do Procurador Geral da
República e sim do chefe do Ministério Público. Coloca a regra de volta às
Disposições Gerais. O texto primitivo da Constituição de 1967 mantém redação igual
ao de 1946, volta a ser disciplinado na parte do Poder Judiciário e cria a
obrigatoriedade de inclusão de verba orçamentária necessária ao pagamento de
todos os precatórios apresentados até 1º (primeiro) de julho (art. 112 e §§ 1º e 2º). O
texto de 1967, resultante da Emenda nº 1/1969, é “ipsis literis”.
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66
1.4.4. A Constituição de 1988 – O texto primitivo, contido no seu art.100,
inova em relação ao de sua antecedente, apenas, para acrescentar que o
pagamento teria de ser feito até o final do exercício seguinte.
Restaria, então, o pagamento do estoque. Por isso, na forma de sua
natureza jurídica de direito intertemporal, o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias estabeleceu no seu art. 33 que, ressalvados os créditos de natureza
alimentar, os precatórios judiciais pendentes poderiam ser pagos com juros e
correção monetária, em prestações anuais, no prazo máximo de oito anos, a partir
de 1º de julho de 1989, conforme decisão que teria de tomar o Poder Executivo em
até cento e oitenta dias da promulgação da Constituição (até 03.04.1989), podendo
emitir, em cada ano, títulos de dívida pública não computáveis para efeito do limite
global de endividamento.
O tema sugere o estudo da natureza jurídica do Ato das Disposições
Transitórias, tal como o autor deste trabalho fez às ps. 67 a 70 do seu livro citado na
nota de rodapé nº 2, a fim de, identificando o seu conteúdo típico, saber-se da
possibilidade, ou não, de alterá-lo.
O Ato é um conjunto de normas-regra, logo, não acolhe princípios. É que, a
par de sua natureza normativa, a matéria de que cuida participa do regime próprio
dos preceitos que constituem o chamado direito transitório ou direito intertemporal.
Por isso, já se advirta com Josapaht Marinho (1992) que nem tudo, por exemplo, que
está no ato do texto de 1988, tem as suas características específicas; são, no seu
dizer, verbas testamentárias, tais como exemplifica: deliberações concessivas de
vantagens funcionais, de benefícios previdenciários, de efetivação de servidores de
plano; dispensa de correção monetária nos empréstimos feitos por bancos e
instituições financeiras a pequenos e médios empresários e produtores rurais entre
1986 e 1987. Assumem feição de liberalidade de testamento.
Os preceitos de direito transitório operam o efeito integrativo e, no caso do
ato, as suas disposições assim se comportam porque é necessário conciliar a
eficácia imediata da nova ordem constitucional com as pendências herdadas como
efeitos futuros dos fatos pretéritos submetidos ao seu domínio, até porque essas
pendências, as mais das vezes, são veiculadas por normas de nível legal que não
Constitucionalidade da compensação...
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67
podem conviver com a nova ordem constitucional por incompatibilidade e, por isso,
não recebidas (princípio da recepção).
Essas disposições transitórias impõem-se, pelo que já foi dito. Todas as
Constituições incorporam-nas, exceção, obviamente, da de 1824, porque não havia
ordem constitucional precedente a que ela tivesse de fazer integração.
Contudo, nem sempre foi pacífica a sua incorporação no texto. Na
Constituinte de 1946, Gustavo Capanema ofereceu emenda, de nº 3.616,
pretendendo substituir o Ato por um texto autônomo, uma lei constitucional especial,
com o nome de lei de transição, inspirado pelo projeto de Kelsen para a Constituição
federal da Áustria, de 1920, justificando essa sua proposta no fato de que não seria
de boa técnica incorporar ao texto constitucional, destinado a vigorar
indefinidamente, preceitos de curta duração que, logo, deixariam de ter aplicação
(DUARTE, 1947). Essa reminiscência vem a pelo para que se fixe bem a natureza
das normas do ato, a de “lei transitória” que, nas lições de Roubier (1960), tem por
finalidade estabelecer um regime intermediário entre duas outras leis, permitindo a
conciliação das situações jurídicas pendentes com a nova ordem legislativa.
A Constituição jurídica, como toda outra lei, tem como regra geral a eficácia
imediata de suas normas, isto as torna, obviamente, obrigatórias, desde o momento
de sua promulgação, pondo-as, potencialmente, em conflito com aquelas que, na
ordem anterior, regulavam a matéria por outro modo. É, como acentua Clóvis
Bevilaqua (1955), o conflito das leis no tempo, que se resolve pelas regras do direito
intertemporal. Portanto, o ato é uma das convenções da Ciência do Direito
Constitucional, destinado a solucionar antinomias que ocorreriam, se ele não
existisse, face a que a nova ordem constitucional atingiria atos e fatos pretéritos, já
submetidos à ordem anterior; atingiria efeitos já consumados de atos e fatos
pretéritos; atingiria efeitos contemporâneos da nova ordem e futuros, ambos
decorrentes de atos e fatos pretéritos. Ao atingi-los, a nova ordem tem a
possibilidade de agravá-los criando situações subjetivas gravosas não previstas,
nem previsíveis, à época em que tais atos e fatos submeteram-se a uma outra
disciplina jurídica sob a égide da ordem constitucional anterior. As Constituições, em
razão disto, contêm, na parte final, determinações de caráter não permanente, mas,
na ocasião, necessárias para entrarem em execução certas disposições
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68
constitucionais, para se ressalvarem certos direitos que, sem isso, entender-se-iam
suprimidos (BARBALHO, 1924).
Face a esta natureza, é possível, como lembra João Barbalho, que
disposições com este caráter transitório achem-se na própria parte dogmática como
eventual aspecto de uma regra permanente, ou que se achem, nessa parte final, sob
o titulo de transitórias, disposições que não o sejam, por exemplo, os arts. 72 e 82
do ato do texto de 1891, ou os arts. 2º, 43, § 4º, 69, § 4º, 83 e 91 da parte dogmática
desse mesmo texto que têm a natureza transitória. Somadas essas observações às
de Josaphat Marinho, cumpre cuidar de identificar no ato o que lhe é próprio,
porque, aquilo que o for, não pode, por natureza, ser objeto de qualquer alteração,
sob pena de desvio de competência.
Com efeito, as normas transitórias realizam a sua função quando atuam,
integrativamente, na solução das antinomias ora como lei de conflito, ora como lei de
transição, para usar expressões clássicas de Roubier. O objeto do direito transitório
é o conflito de normas jurídicas no tempo e a sua respectiva solução que pode estar
na própria lei que o provoque ou pode estar numa lei particularmente editada para
isto.
Modernamente, as leis contêm, elas próprias, com frequência, regras desse
gênero, sob o nome de disposições transitórias, na sua parte final, como precauções
para assegurar a ligação com a lei anterior.
Essas disposições organizam um regime especial para as situações
intermediárias e são chamadas por Roubier de lei de transição, diferentemente,
daquelas a que denomina de leis de conflito que decidem pela aplicação, no tempo,
das normas antigas ou das novas.
Ora, as disposições transitórias nas Constituições brasileiras,
tradicionalmente, ocupam a sua parte final e contêm, não só normas típicas do
direito intertemporal, mas também, outras estranhas à sua natureza, tal como já foi
advertido.
Certamente, que estas podem ser objeto de alterações; aquelas, ao
contrário, não se prestam a tal, porque ou o emissor discerne sobre qual norma é
aplicável (a da velha ou a da nova ordem constitucional); ou concede, aos titulares
Constitucionalidade da compensação...
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69
de direitos, um certo prazo para conformá-los às disposições da nova lei (tempus
vacationis); ou outorga competência aos órgãos do Estado incumbidos do exercício
das mais diversas funções públicas (de governo ou de administração) para o
cumprimento de atribuição na linha da solução dos conflitos dessas normas no
tempo; ou estabelece procedimentos que, ao serem observados, exaurem situações
jurídicas atinentes ao ajuste das duas ordens normativas.
Consequentemente, estas normas típicas do direito transitório não são
alteráveis porque fazem parte da técnica jurídica em que o próprio legislador que
emite as normas novas, expedem-nas para solucionar conflitos com as normas
antigas conciliando problemas dos chamados efeito imediato e efeito retroativo que
elas irradiam. Alterá-las, insista-se, resulta em desvio de competência. Toda
competência é limitada porque quem a outorga dá a medida do seu exercício
(BRITO, 1993). Esse desvio avulta se se considerar uma modificação para atribuir
direitos, prerrogativas, munus, ônus, deveres, etc. a quem não tenha,
originariamente, titularidade ou sujeição; ou uma modificação que infirme os
princípios, ou o regime, ou os preceitos ostentados no preâmbulo e na parte
dogmática.
O legislador competente para a reforma da Constituição não tem sido
obediente, porque não vem observando este procedimento. Isto leva à lembrança de
que há distinção entre potência e competência o que faz chegar ao “jogo de lógica” a
que alude a autorreferência de Alf Ross nos seus estudos que remontam a 1929
(ROSS, 1963; 1969).
Pois bem: uma fonte normativa é potência quando representa uma
autoridade suprema cujas atribuições não derivam de nenhuma outra autoridade. Ao
contrário, é competência, quando derivam.
Por ser potência, o poder constituinte tem atribuições diferentes de entes
que exercem competência, v.g., o legislador que emenda e o que revisa a
Constituição jurídica. O seu procedimento, também, não é, previamente, estipulado.
Os seus titulares são indicados pelas circunstâncias dentro das quais as forças reais
de poder manifestam as suas condições de plena consecução do seu objeto que é a
criação de uma ordem nova. Logo, na oportunidade de uma emenda ou de uma
revisão do texto da Constituição jurídica não há exercício do poder constituinte.
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70
Essas duas formas de alteração revelam funções distintas, entre si; e entre elas e o
poder constituinte. Este é origem, é causa, por isso, é titular de prerrogativas, ou
seja, tem atribuições próprias. É potência. Diversamente, os entes a que incumbe a
emenda ou a revisão da Constituição jurídica têm competência.
À semelhança de Kelsen, Alf Ross, nas obras e páginas citadas, explica que
a competência para emitir normas não está, geralmente, limitada a uma única
autoridade. Parte do direito que é criado mediante leis, consiste em novas normas
de competência que, por sua vez, constituem novas autoridades, também,
competentes para estabelecer outras autoridades, surgindo, assim, um complexo
sistema de autoridades de diversos níveis, obviamente, ocupando sempre o nível
mais baixo aquela cuja competência está determinada por normas criadas pela
última. Gozam do mesmo status autoridades que têm suas competências criadas
pela mesma autoridade superior.
Assim, é uma característica fundamental de uma ordem jurídica a de que a
maioria das regras que a constituem seja estabelecida mediante um ato de criação,
quer dizer, mediante uma decisão humana, conforme outras regras jurídicas,
chamadas regras de competência, as quais prescrevem as condições para que um
ato de criação seja válido e, por isso, tenha força normativa. Essas condições
classificam-se em três tipos: 1º) condições que indicam a pessoa ou as pessoas
qualificadas para realizar o ato de criação; 2º) aquelas que descrevem o
procedimento de criação; 3º) as que limitam a matéria objeto da regra que há de ser
criada por estas pessoas e segundo este.procedimento. Consequentemente, toda
regra de competência (c) constitui uma autoridade (A), o que permite esquematizá-
la, assim:
A¹ é autoridade suprema do sistema
A¹ cria C² e, portanto, cria A²
A² cria C³ e, portanto, cria A³
e, sucessivamente, vão-se constituindo as autoridades, ressalvando-se A¹
que, sendo a autoridade suprema do sistema, teve origem em norma pressuposta
que juridiciza o fato fundamental fonte das atribuições dessa autoridade. Por isso, no
plano da Lógica, é impossível que uma norma de competência determine as
Constitucionalidade da compensação...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
71
condições para a sua própria criação, ou que uma proposição possa referir-se a si
mesma.
As normas que constituem uma autoridade (no exemplo, A² e A³) e em
competência, são, ao mesmo tempo, as que determinam o procedimento de como
pode ser reformado o direito criado pela autoridade criadora ou constituinte que,
dessa forma, estabelece as condições para a validez das normas subordinadas.
Consequentemente, as normas constituintes regulam tanto a emissão,
quanto a reforma das normas subalternas e, por isso, constituem a própria
autoridade que irá emiti-las. A Constituição jurídica, por exemplo, que opera o efeito
de norma que institui o processo legislativo, indica em que forma pode ser reformada
uma lei e, inversamente, as normas que nela regulam o procedimento especial para
a sua reforma, são, ao mesmo tempo, normas que estabelecem uma autoridade
reformadora distinta daquela que emite as leis conforme o procedimento comum.
Teran (1967) examina essa estrutura hierarquizada das fontes, para explicar
que a subordinação destes elementos opera a partir de uma esfera de maior
generalidade para esferas de menor, obedecido o escalonamento que consiste em
um processo derivativo ou seja a delegação de jurisdição ou competência que é uma
prerrogativa que o seu titular entrega a outrem, em parte, para que seja exercida em
determinada esfera. De referência ao poder constituinte, esclarece que ele não
baseia seus atos em qualquer Constituição, porque ele tem de ser, como
constituinte, originário. Toda esta construção doutrinária aqui desfilada, prova que as
reflexões dos cientistas do Direito resultam na afirmação de que o poder constituinte
é um conceito em cujos elementos insere-se a circunstância de ser absolutamente
livre para criar uma nova ordem jurídica, enfim, de ser uma potência. Daí porque, se
essa potência estabeleceu a competência para a reforma (emenda ou revisão) da
Constituição jurídica ela descreveu as três condições antes faladas: quem é o
outorgado dessa faculdade jurídica ou desse um múnus ou, até, de um poder-dever;
que conteúdo tem essa outorga; que procedimento deve ser observado pelo
outorgado.
Juridicamente, pois, não pode o outorgado alterar essas condições dentro do
sistema de direito legislado, sob pena de romper com a hipótese inicial e, então, já
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se encontrará no campo dos fenômenos extrassistemáticos regado pelas mudanças
fáticas.
A conclusão é a de que o outorgado não pode ditar as condições para
reforma da outorga recebida, porque essas condições foram ditadas pela autoridade
suprema do sistema, a qual criou a regra (de competência) da emenda ou da
revisão, inserida na Constituição jurídica, por isso, Ross demonstra que somente há
uma forma possível de impugnar esse raciocínio expresso no esquema
anteriormente apresentado: poderia sustentar-se que autoridade suprema A¹ pode
ser estabelecida em norma emitida por ela mesma, o que equivale a dizer que é
possível que uma norma determine as condições para a sua própria emissão,
incluindo a maneira pela qual ela pode ser reformada. Uma “reflexibilidade” deste
tipo, porém, é uma impossibilidade lógica, tal como o reconhecem os lógicos. Uma
proposição não pode referir-se a si mesma.
Assim, a regra da revisão ou a da emenda é regra de competência e se
submete aos limites consubstanciados nos três tipos de condições que dão validez a
um ato de criação dessa natureza (C).
A diversidade de natureza entre as funções do poder constituinte e daquelas
que ele incumbe aos entes competentes para emendar e para revisar a Constituição
jurídica, conduz à diversidade de natureza entre esse poder e esses entes e à das
alterações nessa Constituição, demonstrando que, para elaborá-la, originariamente,
as funções são ilimitadas, mas, para alterá-la há limites, quais sejam os estatuídos
pela autoridade que cria a regra de competência respectiva, seja a da emenda, seja
a da revisão.
Conclua-se, enfim: é defeso mexer na parte dogmática da Constituição e,
pior ainda, no Ato das Disposições Transitórias, tal como se tem feito e se fez, no
caso sob exame, acrescentando esse art. 97 estatuindo o regime especial, para
pagamento de precatórios estaduais, municipais e distritais, atentatório ao princípio
federativo.
A matéria precatório constitui, por outro lado, um direito individual do tipo
subjetivo público porque atina com a propriedade protegida, constitucionalmente,
como direito fundamental. Assim, é infensa às alterações constitucionais, a que foi
submetida, por essa emenda nº 62.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
73
Mas, já que tal procedimento irregular ocorreu, cabe examiná-lo, com essa
ressalva. A parte dogmática sofreu no seu art. 100, três emendas, as de
nºs.30/2000, 37/2002 e 62/2009. Cada uma pior do que a outra para a incolumidade
desse direito individual. O Ato das Disposições Transitórias não ficou atrás. Foi
emendado pelas mesmas três modificações, com idêntica péssima qualidade. A
Emenda nº 62/2009 consolidou o texto do art100 com a absorção de todas as
antecedentes. Já o Ato tem os arts. 33 e 78 (Emenda nº 30/2000) submetidos às
novas regras da Emenda nº 62/2009, mas, a regra dos seus arts.86 e 87 (Emenda
nº 37/2002) deverá ser interpretada em comum com as da Emenda nº 62/2009,
porque esta não trata inteiramente a matéria disciplinada por aquela.
1.5 As Novas Regras
1.5.1 Conteúdo
1.5.1.1. Manutenção da classificação dos precatórios pela natureza do
crédito – O crédito de natureza alimentícia é o resultante do trabalho
compreendendo aqueles decorrentes de contraprestação arrolada pelo dispositivo (§
1º do art. 100); porém, repete-se, no mérito, a redação anterior, razão pela qual não
se deve entender que abrange somente a remuneração resultante de relação de
emprego, desde que o Supremo Tribunal Federal compreendeu como alimentares os
honorários resultados do trabalho sem vínculo empregatício, como o são o dos
profissionais liberais, por exemplo (RE146.318-0, rel. Min. Carlos Velloso, 2ª T.
04.04.97).
1.5.1.2. Idosos – O credor idoso, aquele com 60 anos ou mais, prefere aos
alimentares, qualquer que seja a natureza, mas, até o valor de um triplo do chamado
de “pequeno valor”.
1.5.1.3. Pequeno valor – é o precatório de valor mínimo igual ao do maior
benefício do regime geral da previdência social, fixado pelas respectivas leis próprias
dos entes federados, na ausência das quais — que seriam editadas até 09.06.2010
— será adotado o correspondente a 40 (quarenta) salários mínimos para Estados e
Distrito Federal e 30 (trinta) para os Municípios.
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1.5.1.4. Inclusão e pagamento obrigatórios – Todos os precatórios
apresentados até 1ª de julho serão obrigatoriamente incluídos no orçamento; o
pagamento terá de ser feito até o final do exercício seguinte, com atualização
monetária, apurada nessa ocasião e com juros moratórios, excluídos os
compensatórios.
1.5.1.5. Pagamento da compra de imóveis – O precatório tem poder
liberatório na compra de imóveis públicos do respectivo ente federado, conforme
estabelecido em lei de sua edição. Mas, na ausência desta, valem os fundamentos
já expendidos, neste trabalho, para regular essa omissão.
1.5.1.6. Cessão de crédito – O titular do precatório pode ceder, total ou
parcialmente, sem necessidade da concordância da Fazenda devedora, o crédito
nele instrumentalizado, porém, sem as preferências reconhecidas a esse titular se
ele for idoso ou se o seu precatório for enquadrado como de pequeno valor.
1.5.1.7. Compensação tributária – é outra inovação objeto de análise nas
linhas infra, tal como o regime especial.
1.5.2. O regime especial – Traz novas regras, na medida em que dispõe, de
modo diverso, sobre as antigas e em que cria novas situações jurídicas. Enfim, o
regime especial normatiza o pagamento de crédito de precatórios de Estados,
Municípios e Distrito Federal vinculando-o à respectiva receita corrente líquida
desses entes federados. É regrado pela própria Emenda nº62/2009, ainda que
requeira uma lei complementar a ser editada em noventa dias dessa promulgação
da alteração constitucional e, como tal não ocorreu, o Conselho Nacional de Justiça
supriu a omissão com uma Resolução que, no seu próprio seio, foi questionada
quanto à constitucionalidade e que, neste trabalho, busca-se validar pelos
fundamentos já expendidos, linhas supra.
Esse regime tem dois objetivos: 1º - o efetivo pagamento do crédito de
precatório; 2º - a garantia desse pagamento, mediante a vinculação do cumprimento
dessa prestação à respectiva receita corrente líquida.
Tomara que dê certo e não resulte nas frustrações que a história dos
precatórios registra.
Constitucionalidade da compensação...
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75
Começa pela omissão legislativa, pois passou “in albis” o período de noventa
dias e se não fosse o Conselho Nacional de Justiça, constitucionalmente ou não,
agindo, não se teriam as regras de efetivação desse pagamento, ressalvado o
disposto no acrescentado art. 97, ao ato, pela própria Emenda, determinando que,
até a edição da lei complementar instituindo o regime especial, o ente federado que
esteja em mora com o pagamento de precatórios terá de fazê-lo ou adotando o
regime especial, tal como disciplinado pela própria Emenda, ou mediante o depósito
mensal, em conta especial, de 1/12 (um doze avos) do valor calculado
percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no
segundo mês anterior ao mês de pagamento.
Se o ente opta, expressamente, pelo regime especial, terá de adotá-lo por
ato do respectivo Poder Executivo, para viger por quinze anos; deverá depositar,
anualmente, na conta especial, sob pena de sequestro, o valor do saldo total dos
precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta
de poupança e de juros simples no mesmo percentual e juros incidentes sobre a
caderneta de poupança para fins de compensação da mora, diminuído das
amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de
pagamento.
Admitido, pois, o regime especial, as suas regras estipulam critérios
diferentes para os Estados, para o Distrito Federal e para os Municípios,
considerando-se o estoque de precatórios pendentes.
A Emenda define como receita corrente líquida o somatório das receitas
tributárias + as receitas patrimoniais + as receitas industriais + as receitas
agropecuárias + as receitas de contribuições + as receitas de serviços + as
transferências correntes + outras receitas correntes + as receitas da participação no
resultado ou da compensação financeira pela exploração de petróleo ou de gás
natural ou de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros
recursos minerais no respectivo território, na plataforma continental, no mar territorial
ou na zona econômica exclusiva; este somatório diminuído das duplicidades e
deduzidas as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional e a
contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência
social, bem assim as receitas provenientes da compensação financeira recíproca
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dos diversos regimes de previdência social em razão da aposentadoria resultante da
contagem do tempo de contribuição na administração pública e na atividade privada.
Esta formulação assegura uma efetiva receita como base de cálculo para o
pagamento dos créditos de precatórios e para o cumprimento da prestação por parte
do ente federado devedor.
As contas especiais de depósito serão administradas pelo Tribunal de
Justiça e os recursos não poderão retornar para a Fazenda depositante. 50%
(cinquenta por cento), no mínimo serão utilizados para o pagamento dos precatórios
constantes do MOC (mapa de ordem cronológica), respeitadas as preferências. Os
recursos restantes destinar-se-ão:
I) – ao pagamento dos precatórios por meio de leilão, sob procedimento
regido pela própria Emenda nº 62/2009;
II) – a pagamento a vista de precatórios não incluídos nas duas hipóteses
anteriores, em ordem única e crescente de valor por precatório;
III) – a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida
por lei da própria da entidade devedora que poderá prever forma de funcionamento
de câmara de conciliação.
O descumprimento dos deveres decorrentes do regime especial gera
sanções pessoais para o chefe do Poder Executivo, na forma da legislação de
responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa e, enquanto perdurar a
omissão, também, sanções institucionais, pois, a entidade devedora: a) – não
poderá contrair empréstimo externo ou interno; b) – ficará impedida de receber
transferências voluntárias; c) – os Estados, o Distrito Federal e os Municípios terão
retidos, pela União, os respectivos Fundos de Participação, que serão depositados
nas contas especiais já referidas.
2 A COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA, EM DETRIMENTO DA ORDEM DE PAGAMENTO DOS PRECATÓRIOS, É UMA DAS INCONSTITUCIONALIDADES
A Emenda nº 62/2009 admite a forma de extinção do crédito tributário
mediante a compensação com valores constantes de precatórios: a) – no momento
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da expedição do precatório; b) – quando o precatório participar de leilão; c) – no
caso de não liberação tempestiva dos recursos destinados às contas especiais.
Cada hipótese tem sua própria regra:
a) – compensação no momento da expedição do precatório ocorre,
independentemente de regulamentação, com o abatimento do valor correspondente
aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o
credor original, tudo feito pela Fazenda Pública devedora do precatório, sem o
necessários contraditório, incluídas as parcelas vincendas de parcelamentos,
ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação
administrativa ou judicial. Ora, se não há a inscrição em dívida ativa, não há liquidez
e certeza, nem mesmo por presunção relativa. Consequentemente, não pode ser
objeto de compensação.
O Tribunal deverá solicitar à Fazenda Pública devedora, antes da expedição
do precatório e para resposta em até 30 (trinta) dias, sob pena de perda do
direito de abatimento, informação sobre os débitos que preencham tais condições as
quais se encontram estabelecidas no § 9º do art. 100 com a redação da Emenda nº
62/2009.
O dispositivo ao mencionar débitos constituídos contra o credor, refere-se,
sem dúvida, àquele que corresponda ao chamado crédito tributário exigível, ou seja,
já apurado mediante a atividade administrativa de lançamento tributário, tanto que —
embora de modo errado — a emenda dispensa a inscrição em dívida ativa, ato que o
transformaria em crédito tributário exequível.
A relação jurídica tributária efetiva-se pelo crédito tributário. O direito
tributário brasileiro tem-no — pode-se dizer — como o céu cerne. Ele tem um regime
jurídico diverso daquele adotado pelo legislador para a obrigação tributária de cuja
estrutura participa, como o seu lado ativo, mas, em relação à qual sobrevive, mesmo
quando a relação obrigacional extinga-se (GOMES, 2009). É neste sentido que a lei
estabelece que a vida do crédito, quanto à sua modificação, efeitos, extensão,
garantias ou privilégios, não afeta a da obrigação de que faz parte.
A consequência deste regime próprio está nas diversas fases pelas quais
passa o crédito, podendo-se, por isso, denominá-las, tal como anunciado supra, em:
Edvaldo Brito
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Crédito existente
Crédito exigível
Crédito exequível
Crédito existente, em uma fórmula matemática, é igual à hipótese legal do
fato gerador realizada pelo acontecimento por ela tipificado como origem da
obrigação tributária: crédito existente = lei + fato gerador. Pressupõe, com efeito, o
cumprimento exato da regra de competência, a partir da formulação constitucional,
feito pelo sujeito ativo titular da atribuição para exigir o tributo. Lembre-se com Alf
Ross (1963) que toda regra de competência comporta três critérios ditados pela
autoridade suprema do sistema normativo, conforme visto linhas supra.
Ora, cada vez que o acontecimento, descrito pelo legislador, ocorrer na vida
real, realizará o tipo contido na hipótese legal do fato gerador da obrigação tributária
e, então, o crédito tributário é existente. Nem por isso, o sujeito ativo, seu titular, está
apto a cobrá-lo. Necessita, então, transformá-lo em crédito tributário exigível. Assim:
Crédito tributário exigível é o existente que foi submetido à atividade
administrativa de lançamento tributário, assim entendida a operação realizada pela
autoridade, privativamente, competente para, além de outros procedimentos,
também, “liquidar a obrigação”, ou seja, tornar exato o valor da prestação tributária
compulsória, isto é, do tributo.
A liquidação da obrigação é operação somente deferida ao juiz, nunca ao
credor, nas hipóteses de
a) – inadimplemento da obrigação porque este torna incerto o valor da
prestação, face à incidência dos seus consectários: juros, multas, atualização
monetária, etc.;
b) – obrigação delitual, porque nesta há de mensurar-se o dano.
O lançamento é uma exceção a essa regra, certamente, pela nota de
soberania que carrega. É por essa circunstância, que o operador, a autoridade
administrativa, também, não tem o privilégio admitido para as demais situações
jurídicas administrativas, nas quais há a presunção de legitimidade e a auto-
executoriedade dos atos por ela praticados. Por isso, tornado o crédito exigível, a
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legitimidade da prática respectiva há de ser examinada pelo juiz, bem como a
execução forçada do crédito não é “interna corporis” da Administração terá de ser
perante o juiz, também.
O crédito somente estará constituído — para que assim se atenda ao
disposto no § 9º do art. 100 da Constituição, com a redação da emenda — quando
submetido ao lançamento, passando, então a exigível. Porém, com esse
procedimento administrativo, ele, ainda, não é exequível e, portanto, é passível de
discussão, não tendo liquidez e certeza que é requisito da compensação,
advertindo-se que, para isso, não bastará, apenas, a atuação unilateral da
Administração que conduziria à informação referida no §10 desse mesmo artigo
constitucional.
Crédito tributário exequível é a etapa final legalmente exigida para que
possa haver a execução forçada. Consiste no crédito exigível inscrito como dívida
ativa, na repartição competente, depois de esgotado o prazo fixado, para
pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular.
A inscrição há de conter o nome das pessoas que ocupam o polo passivo da
obrigação tributária, a quantia devida, origem e natureza do crédito, data da
inscrição e número do processo de que se origina o crédito.
Daí, extrai-se o título executivo extrajudicial que é a certidão de dívida ativa,
gozando o seu conteúdo de presunção relativa, isto é, sob prova em contrário.
Por conseguinte, a compensação estabelecida no § 9º do art. 100, para
efetivar-se, bastaria o débito corresponder ao crédito tributário exigível e que o
devedor da Fazenda Pública contra a qual se expediu o precatório, seja o credor
original deste. Logo, mesmo se não tivesse os defeitos, aqui, apontados, não pode
essa compensação ser feita em relação ao cessionário, de referência a débitos
deste.
Observe-se, afinal, que a norma abrange “parcelas vincendas de
parcelamento”, para o que o Código Tributário Nacional, no parágrafo único do seu
art. 170, perfeitamente, aplicável na hipótese, prevê a apuração do seu montante,
não podendo, porém, cominar redução maior que a correspondente aos juros de 1%
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(um por cento) ao mês pelo tempo a decorrer entre a data da compensação e a do
vencimento.
b) – compensação quando o precatório participar de leilão é permitida, por
iniciativa do Poder Executivo, com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em
dívida ativa e constituídos contra o devedor originário pela Fazenda Pública
devedora, até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja
exigibilidade esteja suspensa ou os que já tenham sido objeto do abatimento referido
na hipótese supra, em relação à qual foram feitas observações que cabem aqui,
inclusive quanto ao cessionário.
c) – compensação automática, no caso de não liberação tempestiva dos
recursos destinados às contas especiais, constituir-se-á, alternativamente, por
ordem do presidente do Tribunal requerido, em direito líquido e certo, auto-aplicável
e independentemente de regulamentação e será feita com débitos líquidos lançados
pela respectiva Fazenda contra o titular do precatório, não havendo, nesta hipótese
restrição ao cessionário.
Conclua-se: a compensação regida pela emenda, conquanto revista-se
da espécie chamada de legal, ofende a essência dessa categoria jurídica e — repita-
se, por necessário — emenda constitucional não tem o condão de transformar
naturezas jurídicas, ou seja, a essência de institutos, conceitos e categorias jurídicos
formada a partir da sedimentação das instituições jurídicas. Afinal o direito não se
confunde com a forma de sua positivação. Ele, em essência, é a conduta humana
quando na sua interferência intersubjetiva, sendo a positivação, apenas, o
pensamento dessa conduta formulado em técnica normativa (COSSIO, 1964; 1954).
Essa emenda padece, também, desses vícios, porque substitui o pagamento pela
compensação.
2.1 O Poder Liberatório na Prestação Tributária
O poder liberatório vem sendo reconhecido por alguns tribunais, inclusive
para cessionários. A Emenda nº 62/2009 é explícita, mas, relativamente, ao caso de
não liberação tempestiva, pela Fazenda devedora de precatório, dos recursos
referentes ao regime especial, quando ocorra a compensação automática descrita
Constitucionalidade da compensação...
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linhas acima, feita com débitos líquidos lançados pela Fazenda respectiva contra
credores de precatórios — originários ou cessionários — porque, havendo saldo em
favor destes, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de
tributos, até onde se compensarem.
O Código Tributário Nacional é integrativo dessa norma constitucional
porque o seu art. 3º estabelece a alternativa de que um valor, legalmente admitido,
possa exprimir moeda, assim entendida a instituição social de natureza pública,
objeto de monopolização pelo Estado, com curso legal e/ou forçado no respectivo
território, razão porque exerce influência sobre a Economia, considerando que ela é
um dos meios pelos quais o Estado intervém nas relações econômicas. Tem duas
funções: a) é intermediária nas trocas e b) tem poder liberatório que decorre do
curso forçado, circunstância que impossibilita a sua rejeição, sob pena de
contravenção (BRITO, 1982), pois qualquer devedor pode liberar-se de uma
prestação — se a obrigação não for pecuniária — com a entrega de quantidade
suficiente de moeda ao credor.
2.2 Ofensas a Princípios Constitucionais em Detrimento da Ordem de Pagamento dos Precatórios
O legislador da emenda constitucional exerce competência e, por isso, as
suas funções têm os limites descritos supra (cf. item 1.4.4) impostos pelo ente que
tem potência o qual estabeleceu a vedação à ofensa a direitos e garantias
individuais. Um desses direitos, o de propriedade, está frontalmente atingido pela
Emenda nº 62, pois, com a compensação compulsória, desapossa bem que
somente o seu titular poderia dispor, ou seja, o credor originário do precatório é
proprietário do bem por ele expresso ou nele contido: o valor em dinheiro. Se o
legislador da emenda não pode alterar a essência dessa categoria jurídica, então, da
maneira como ele a regrou, está transformando-a em pagamento antecipado ou
mesmo na imputação de pagamento, categoria que não se confunde com a
compensação, mesmo a compulsória (GOMES, 2009; FREITAS, 1983).
Além desse princípio constitucional, considerando a mexida que a emenda
faz no MOC – mapa da ordem cronológica – a Doutrina arrola, com razão, a ofensa
Edvaldo Brito
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
82
aos seguintes: segurança jurídica, irretroatividade, coisa julgada, reserva da lei
complementar tributária, devido processo legal, contraditório e ampla defesa,
isonomia, razoável duração do processo, proporcionalidade, dignidade da pessoa
humana.
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A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
83
A DEMOCRACIA COMO DIFUSÃO DO PODER
DEMOCRACY AS DIFFUSION OF POWER
Arnaldo Miglino1
A trindade intelectual composta pelo sociólogo Max Weber, pelo economista
Joseph Schumpeter e pelo jurista Hans Kelsen consagrou a mais elegante e notória
noção de democracia, enquanto sistema institucional de escolha dos governantes de
uma nação e que lhes torna politicamente responsáveis em relação aos governados.
Para Weber, a democracia é uma luta entre leaders que disputam entre si a simpatia
eleitoral do povo: os mais fracos são eliminados2. Tal pensamento deve muito à
teoria de Schumpeter3, para o qual «o método democrático é o instrumento
institucional para se chegar a decisões políticas, mediante o qual particulares obtêm
o poder de decidir através de uma competição que tem por objeto o voto popular»4.
De acordo com a teoria, assim como os empresários lutam para vencer a
concorrência no mercado, os políticos combatem pela vitória na concorrência com
outros políticos: «o princípio da democracia significa tão somente que as rédeas do
governo devem ser entregues ao concorrente que obtém apoios superiores aos
demais, seja de indivíduos ou grupos»5. A democracia é, portanto, uma competição
entre grupos de elite, os partidos, dirigidos por seus líderes. Trata-se de uma
“concorrência pelo comando” na qual os leaders combatem pela conquista do poder
com as palavras, ao invés da violência, propondo si próprios aos eleitores. A esses
cabe apenas estabelecer, através das eleições, qual líder e grupo de poder deve
1 Professor Doutor da Universidade de Roma.
2 Cfr. Weber Max (1971), Politik als Beruf, in Gesammelte Politische Schriften, coord. J.
Winckelmann, Tubingen, Mohr, trad. it. La politica come professione, in Il lavoro intellettuale come
professione (1976), Torino, Einaudi. 3 Sobre a estreita relação entre o pensamento de Weber e de Schumpeter, v. David Held (2006)
Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, trad. it. Modelli di democrazia (2007), Bologna,
Società editrice Il Mulino. 4 Cfr. Schumpeter Joseph Alois (1954), Capitalism, Socialism and Democracy, London, George
Allen & Unwin, trad. it. Capitalismo, socialismo e democrazia (2001), Milano, ETAS, p. 279. 5 Cfr. Schumpeter, op. cit. p. 283.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
84
prevalecer. Os programas de um partido e a ação dos governantes respondem aos
interesses dos eleitores e dos governados apenas na medida em que sirvam para se
obter o consenso e a vitória política.
Também para Kelsen a democracia é um método de criação de líderes e
uma ordem social6. Sua formação de jurista o permite perceber que tal método é
«em primeiro lugar e especificamente um procedimento»7, inspirado nas ideias
fundamentais de liberdade e igualdade8.
A democracia é certamente caracterizada por normas que instituem
procedimentos, através dos quais os conflitos devem encontrar uma saída, a fim de
se conquistar o poder político e fazer valer os diversos interesses das partes.
Através do procedimento os contrastes sociais são racionalizados, ao invés de
desembocarem em violência, sendo geridos por um método que privilegia a dialética,
o intercâmbio de opiniões e o compromisso, ainda se afirmando a vontade da
maioria. Portanto, segundo Bobbio, «por sistema democrático hoje se entende,
preliminarmente, um conjunto de regras procedimentais»9 cuja observância faz com
que o adversário não seja mais considerado um inimigo, mas um opositor10.
Também quem afrontou a questão desde um prisma filosófico expressa conceitos
que atendem a uma concepção procedimental de democracia. Popper evidenciou
como esta é «um conjunto de instituições (e entre essas especialmente as eleições
gerais, ou seja, o direito do povo de dispensar o governo) que permitem o controle
público dos governantes e seu afastamento por parte dos governados e que
permitem a esses de obterem reformas sem recorrer à violência e ainda contra a
vontade dos governantes »11. E «há, na verdade, apenas duas formas de Estado:
6 Cfr. Kelsen Hans (1929), Vom Wesen und Wert der Demokratie, Tübingen, J.C.B. Mohr, trad. it.
Essenza e valore della Democrazia na edição italiana La democrazia (1984), Bologna, Società
editrice Il Mulino, pp. 129 e 137. 7 Cfr. Kelsen (1955–1956), Foundation of Democracy in Ethics, LXVI, n. 1, parte II, trad. it. I
fondamenti della democrazia, na edição italiana La democrazia (1984), Bologna, Società editrice Il
Mulino, p. 188. 8 Cfr. Kelsen, op. cit., p. 218.
9 Cfr. Bobbio, Norberto (1995), Il futuro della democrazia, Torino, Giulio Einaudi Editore S.p.A., p.
63. 10
Cfr. Bobbio, op. cit., p. 29. 11
Cfr. Popper Karl R. (1945), The Open Society and its Enemies, Routledge, trad. it. La società
aperta e i suoi nemici (1996), Roma, Armando, p. 179.
A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
85
aquela na qual é possível se libertar do governo sem derramamento de sangue, com
uma votação, e aquela na qual isso não é possível. É o que importa, e não como
vem a ser denominada uma forma de governo. Em regra, designa-se como
‘democracia’ a primeira forma e a segunda como ‘ditadura’, ou ‘tirania’»12.
Considerando que a concepção ainda prevalente de democracia é a
procedimental e que sua primeira formulação decisiva, em âmbito jurídico, deve-se
ao pensamento de Kelsen, a ele é necessário voltar o olhar.
…
Democracia não é apenas procedimento. A própria dialética procedimental é
já um valor que pressupõe a operatividade de outros princípios: liberdade de opinião
e de expressão, liberdade para se obter uma imparcial e correta informação,
publicidade dos fatos que dizem respeito à esfera pública. Dado que um momento
essencial da democracia é a escolha dos líderes, como poderia o povo efetuar, de
forma eficaz, uma seleção meditada se não gozasse das liberdades intelectuais e
não pudesse dispor de informações sobre a realidade? São aspectos essenciais ao
funcionamento dos procedimentos eleitorais mas que, evidentemente, estão para
além desse.
Para se contestar a tese de Kelsen é possível partir do que ele mesmo
afirma: «o poder é a capacidade de influenciar os outros. Uma pessoa tem poder
sobre os outros se pode os induzir a se comportar conforme sua própria vontade. O
poder, portanto, não é político nem econômico; enquanto político e econômico é o
meio pelo qual se obtém tal comportamento»13. Não se pode descrever de maneira
mais incisiva o fenômeno do poder entre seres humanos. Poder que era pleno no
sistema feudal, onde a aristocracia gozava de uma confusa soma de prerrogativas
econômicas, políticas, militares e sociais: o domínio senhorial sobre a terra
compreendia o domínio sobre os homens que a povoavam14. O poder de indivíduos
e grupos em se servirem das energias de outrem para realizarem os próprios
12
Cfr. Popper (1992), Alles Leben in Problemlosen Ueber Erkenntnis, Geschichte und Politik, trad. it.
Tutta la vita è risolvere problemi. Scritti sulla conoscenza, la storia, la politica, (1996), Milano,
Rusconi, p. 190. 13
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 334. 14
Cfr. Baschet Jérôme (2004), La civilisation féodale, trad. it. La civiltà feudale (2005), Roma,
Newton & Compton editori, pp. 18, 93, 109, 115, 116, 134.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
86
escopos15 formava um bloco monolítico que no curso de um longo processo histórico
gradualmente se fragmenta. O soberano absoluto consegue se impor com sua força
militar, o que assegura uma arrecadação tributária estável e centraliza o poder
político. Enquanto isso, desenvolve-se uma economia burguesa, de pessoas não
nobres que enriquecem sem recorrer aos poderes de governo, mas gerindo um
sistema de relações contratuais. O poder político, portanto, distingue-se e se separa
do poder econômico. Com as grandes revoluções liberais inglesa, americana e
francesa, afirma-se a base ideológica do estado como instrumento de tutela dos
direitos ‘naturais’ de liberdade e propriedade. Esses, no momento em que são
recepcionados pelas Declarações e Constituições, ganham relevância jurídica e se
transformam em direitos civis: ou seja, posições jurídicas subjetivas reconhecidas
expressamente pela lei em favor de toda pessoa, a fim de protegê-la da intervenção
estatal. Constituem um limite à ingerência do poder político na esfera individual, são
o instrumento através do qual o cidadão pretende que os governantes respeitem sua
propriedade e sua liberdade individual, religiosa, de manifestação do pensamento,
de iniciativa econômica. A afirmação de direitos civis nas legislações do século XIX
coincide com o sucesso da classe burguesa a qual, no parlamento, participa da
elaboração das regras que disciplinarão os poderes de governo. Assim, também o
poder político, que no Estado Absoluto se concentrava no soberano, separa-se em
funções distintas: legislativa, executiva e jurisdicional, exercidas mediante a
intervenção de órgãos diversos. Os direitos civis, na medida em que atribuídos a
todos, realizam a igualdade formal dos cidadãos que, porém, permanecem desiguais
politicamente e socialmente. Entre o final do século XIX e início do século XX, as
classes trabalhadoras reclamam do Estado direitos de participação na vida política,
até então reservados aos que não gozavam de determinadas condições de renda e
instrução, e o cumprimento de serviços de utilidade social. Os direitos políticos são,
portanto, estendidos aos menos abastados e aos analfabetos: também o poder
político, antes apanágio da burguesia, difunde-se. Além disso, os poderes públicos
se encarregam de prestações dirigidas aos cidadãos que precisam mas não
conseguem obtê-las mediante os mecanismos do livre mercado: o Estado garante o
15
Sobre tal noção de poder, como poder social, v. Poggi Gianfranco (1992), Lo Stato, Bologna,
Società Editrice Il Mulino, pp. 11–17.
A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
87
direito à educação, o direito dos indigentes a terem cuidados médicos, o direito à
assistência e à previdência social. São direitos sociais, pretensões que impõem ao
Estado a intervenção pela satisfação de uma necessidade individual e que são
expressões do princípio da igualdade substancial e de solidariedade. De igualdade
substancial, porque tendem a atenuar as disparidades sociais que impedem, de fato,
a todos os homens o exercício das liberdades que lhes são abstratamente
reconhecidas: os direitos sociais são uma «condição para o bom funcionamento da
democracia, logo, para uma fruição efetiva das liberdades civis e políticas»16. São
garantidas através da oferta de serviços: o direito à educação necessita de
atividades de ensino, o direito a cuidados médicos só se realiza mediante atividades
terapêuticas... Os serviços oferecidos pelos poderes públicos têm um custo, os quais
são garantidos pelo sistema fiscal. Faz-se assim uma redistribuição da renda: o
emprego da riqueza dos mais abastados para a satisfação das necessidades do
extrato de menor renda concretiza uma forma de solidariedade entre os cidadãos.
Como sustenta Rawls17, a solidariedade dentro de uma sociedade faz com que
sejam atenuadas as consequências da “loteria natural” pela qual algumas pessoas
mais afortunadas podem gozar de maiores recursos que outras.
A introdução dos direitos sociais nao foi hostilizada pela burguesia
reformista, que compreendeu como a prestação de serviços aos extratos em
desvantagem econômica, por parte do Estado, poderia ter por efeito a atenuação da
luta de classes. Hoje, os direitos sociais são parte integrante do conceito de
cidadania. Assim como os direitos civis, políticos e sociais são considerados “direitos
do homem”, no sentido de que contribuem à definição e à tutela da dignidade
humana, e enquanto tais são reconhecidos pela Declaração universal dos direitos do
homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948. Sendo as exigências do ser humano estritamente vinculadas, e não mais
separadas em compartimentos estanques, também os direitos públicos que as
tutelam são fundamentais e indivisíveis na medida em que são necessários, em seu
conjunto, à realização de valores que assegurem ao cidadão dignidade, respeito e
16
Cfr. Mazziotti di Celso Manlio (1964), Diritti sociali, in Enciclopedia del diritto XII, Milano, Giuffré
Editore, p. 805. 17
Cfr. Rawls John (1971), A theory of justice, Cambridge, The Belknap Press of Harvard University
Press, trad. it. Una teoria della giustizia 1997, Milano, Giangiacomo Feltrinelli Editore.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
88
desenvolvimento da personalidade18. Enquanto nas constituições da Europa
continental os direitos públicos são classificados segundo o prisma que, definindo-os
como políticos, civis e sociais, indica sua diversa origem histórica, na Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada pelo Conselho Europeu em
Nice, entre 7 e 9 de dezembro de 2000, os direitos públicos foram colocados em
torno a seis valores: dignidade, liberdade, igualdade, solidariedade, cidadania,
justiça. O conceito de indivisibilidade dos direitos emerge plenamente, na medida em
que são considerados instrumentos necessários, e portanto interdependentes e
conexos, para a consecução dos princípios em torno aos quais se reuniram.
Tal mundo de valores pressupõe certamente o processo como instrumento
de resolução dos conflitos e produção das normas que dão ordem à vida coletiva,
mas nele não se exaure. Substancialmente, as instituições da democracia se
inspiram em princípios de liberdade, igualdade e solidariedade, que se realizam
impedindo a concentração dos poderes políticos, econômicos, sociais e culturais
existentes na sociedade e promovendo a sua difusão.
…
Que a desconcentração e a difusão do poder são uma consequência natural
da democracia foi também provado pelo fato de que foram concretizadas no primeiro
ordenamento que se pode dizer genuinamente democrático, que é o da antiga
Atenas, ao qual talvez se deva conceder boa dose de atenção, a fim de se
demonstrar tudo o que se disse. Foram, de fato, os atenienses a descobrirem como
os conflitos sociais podem ser compostos através do processo. A praça de Atenas
se torna o lugar de exercício do poder político quando se permite a cada cidadão
homem exprimir a própria opinião e participar, com seu voto, nas decisões que
dizem respeito à coletividade. Narra Homero, na Ilíada, que Tersites, feio e disforme,
convida a assembleia dos soldatos Aquivos a retornarem à Grécia, abandonando
uma guerra que serviria apenas para enriquecer seu líder, o rei Agamenon. Ulisses o
faz calar, golpeando-o com o cetro. Todos riem de Tersites “apesar de aflitos”19,
18
Cfr. Miglino Arnaldo (2004), Per una critica del libero mercato, in PRISMA, Rivista trimestrale,
Anno XXII n. 26, febbraio 2004, pp. 121-126, Ancona, Editore IRES Marche (Istituto Ricerche
Economiche e Sociali), p. 124. 19
Cfr. Homero, ΙΛΙΑΔΟΣ Α, Livro II, versos 220-270.
A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
89
evidentemente reconhecendo haver razão em suas palavras. Episódios do gênero
serão impedidos pelo processo democrático. Cada ateniense, na idade clássica, tem
o direito de falar na Assembleia: basta que se coloque na tribuna e, recebida uma
coroa de murta que lhe confere caráter sagrado pelo tempo de sua intervenção20,
exprime a sua opinião. Após a discussão da questão, cada um tem o direito ao voto,
que vale tanto quanto o dos demais, a favor da opção que lhe pareça justa. A
maioria decide. O direito que cabe a todos de manifestar livremente o próprio
pensamento, e de tomar a palavra em público, é tão importante que o termo que o
indica, isegoría, é também sinônimo de isonomía (lei igual para todos) e de
demokratía. Heródoto utiliza o termo isegoría21 até mesmo para indicar o regime
político ao qual se filiava a potência militar de Atenas.
A democracia como procedimentalização dos conflitos é, portanto, uma
invenção grega. Todavia, para os Atenienses a democracia não era simplesmente
um conjunto de procedimentos que realizavam os ideais de liberdade e igualdade:
esses haviam institucionalizado um sistema solidarístico através do qual os recursos
dos cidadãos eram reunidos proporcionalmente à sua capacidade econômica.
A democrática Atenas não apenas paga aqueles que desenvolvem funções
para a coletividade (tornando-as assim acessíveis a todos) mas, a fim de equilibrar
as condições dos cidadãos, assegura também outras prestações. Os doentes que
não têm recursos para custearem um médico privado podem se tratar gratuitamente:
a pólis redistribui médicos públicos e lhes disponibiliza locais para as visitas,
sustenta o ônus econômico dos tratamentos de recuperação, das intervenções
cirúrgicas e dos medicamentos22. Além disso, responsabiliza-se pela educação dos
órfãos de guerra23, subsidia não apenas mutilados de guerra24 mas também os
inválidos (uma lei reconhece o direito do fisicamente mutilado, que não pode realizar
20
Cfr. Flacelière Robert (1959), La vie quotidienne en Grèce au siècle de Pèriclès, trad. it. La vita
quotidiana in Grecia nel secolo di Pericle (1994), Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, RCS Libri &
Grandi Opere S.p.A., p. 58. 21
Cfr. Erodoto, ΊΣΤΟΡΙΑΙ, trad. it. Le storie (1989), Milano, Garzanti Editore, V, 78. 22
Cfr. Flacelière, op. cit., pp. 185–186. 23
Cfr. Cambiano Giuseppe (1999), Diventare uomo, in L’uomo greco a cura di Jean–Pierre Vernant,
Bari, Editori Laterza, p. 105. 24
Cfr. Flacelière, op. cit., p. 336 e Bermani Forti , (1972) I Greci inventano la democrazia, in L’uomo
e il tempo, vol. IV, Il suddito e il cittadino, Milano, Arnoldo Mondadori Editore, p. 101.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
90
nenhum trabalho e possui menos de três minas, a obter dois óbulos por dia, pagos
pela comunidade25). A partir da metade do século IV a.C., prevê-se até mesmo um
estipêndio diário àqueles que comparecem aos espetáculos teatrais26, dado que o
teatro constitui o mais importante instrumento de formação cultural dos Atenienses.
Os impostos incidentes sobre a renda recaíam sobre os cidadãos em casos
excepcionais, em ocasiões de guerra ou outras emergências, não abrangendo
aqueles com condição inferior à de um soldado de infantaria27. Normalmente,
atende-se às necessidades da coletividade com as liturgias (ou seja, “serviço para o
povo”28), consistentes na assunção direta das despesas relativas a um serviço
público por parte dos mais ricos. Através do sistema de distribuições dirigidas e das
liturgias, os recursos são redistribuídos a fim de favorecerem a integração do tecido
social a partir de quem se encontra em condições de desvantagem. O aspecto
redistributivo dos recursos, na democracia ateniense, pode ser sintetizado, ainda se
de forma polêmica, no escrito anônimo de um antidemocrático do século V
denominado Velho oligarca: “...Sacrifícios, vítimas, festas, recintos sagrados. O povo
sabe bem que não é possível a nenhum dos pobres individualmente realizarem
sacrifícios e banquetes sacros, fazer-se vítimas, morarem em uma cidade bela e
formosa, em suma, e assim criou o modo de se obter tudo isso. Sacrificam às custas
públicas muitas vítimas, e o povo come e reparte entre si os animais trucidados.
Ginásios, banheiros, vestiários, alguns ricos possuem os seus. Já o povo constrói
para si, para seu uso, academias, vestiários, banheiros em grande quantidade: e de
tudo isso se aproveita a massa, mais que os poucos e os ricos”29.
25
Cfr. Aristotele, op. cit., XLIX, 4. 26
Cfr. Funke Peter (1999), Athen in Klassischer Zeit, Műnchen, Beck, trad. it. Atene nell’epoca
classica (2001), Bologna, Società Editrice Il Mulino, p. 61. 27
Cfr. Finley, op. cit., p. 48. 28
Cfr. Funke, op. cit., p. 61. 29
Cfr. Anonimo ateniese, Αθηναίων πολιτεία in La democrazia come violenza a cura di Canfora -
1996 -, pp. 19-20. Segundo Gschnitzer Fritz (Griechische Sozialgeschichte, trad. it. Storia sociale
dell’antica Grecia (1988), reimpressão 2001, Bologna, Società editrice Il Mulino, p. 228) os
esforços da democracia em relação aos pobres em Atenas «da guerra do Peloponeso em diante,
colocam-se tão à frente que o estado democrático considerava um de seus deveres mais
importantes assegurar aos seus cidadãos o seu suficiente sustento... aproximando-se assim muito
ao moderno «estado social», e mesmo o superando em certos aspectos».
A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
91
Mas nem o aspecto redistributivo dos recursos econômicos, e tampouco o
aspecto procedimental, são a principal característica da democracia ateniense. Ela é
o resultado da libertação da classe camponesa em relação à nobreza, o que
desencadeia um processo de independência e liberdade individual que da esfera
produtiva se propaga à organização política30: realiza-se assim uma evolução
histórica através da qual o poder político, econômico e militar, concentrado nas mãos
da nobreza, fragmenta-se e é compartilhado por amplos extratos sociais.
Em meados do século VII a.C. em Atenas o controle dos recursos públicos,
sociais e econômicos reside saudavelmente nas mãos da aristocracia, que possui
grande parte das melhores terras cultiváveis. Os nobres escravizam os camponeses
aos quais haviam concedido empréstimos garantidos pelo seu próprio corpo, e se
apropriam de suas propriedades. A vida da pόlis está nas mãos do Areópago, um
conselho de aristocratas que coordena todas as atividades de relevância coletiva. O
que não impede lutas sangrentas entre as famílias nobres. Sob tal estado de coisas,
em 594 a.C., Sólon busca uma solução: proibindo que a terra pudesse ser adquirida
“à vontade”, impede a concentração da propriedade fundiária31 e estimula
investimentos no setor artesanal e comercial. Isso para evitar que os cidadãos sem
terra permanecessem no estado de trabalhadores braçais agrícolas, que para
sobreviver poderiam tão-somente realizar atividades assalariadas sob a
dependência dos grandes proprietários de terras. Na metade do século VI a. C. o
tirano Pisístrato, com um sistema de crédito público aos pequenos e médios
camponeses, assegura a consolidação das modestas propriedades agrárias sobre
as quais iria se fundar a economia da pólis32; dá início a um amplo programa de
trabalhos públicos que oferece oportunidades de trabalho para artesãos e operários;
impulsiona o comércio marítimo e a produção de vinho, óleo e produtos de cerâmica.
Assim a riqueza se difunde, principalmente entre a população, que vê se reduzir sua
dependência econômica da nobreza. A classe média se fortalece. No início do
século V a.C., Clístenes realiza uma grande reforma em virtude da qual o Areópago
30
Sobre este ponto, vide amplamente Wood Ellen Maiksins (1998), Peasant – Citizen and Slave. The
Foundations of Athenian Democracy, trad. it. Contadini – Cittadini & Schiavi. La nascita della
democrazia ateniese, Milano, EST, periódico semanal. 31
Cfr. Gschnitzer, op. cit., p. 129. 32
Cfr. Anderson Perry (1974), Passages from Antiquity to Feudalism, trad. it. Dall’antichità al
feudalesimo (1978), Milano, Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., p. 31.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
92
fica privado de importantes poderes de decisão, que passam aos organismos que
podem representar todos os cidadãos, sem distinções de renda: a Assembleia, o
Conselho, o Tribunal. Por volta de 462–461, por obra de Efialte e Péricles, o
Areópago perde completamente sua influência na vida pública. Péricles, que domina
a política ateniense por cerca de trinta anos, fortalece a democracia, por um lado
desenvolvendo as instituições que permitem a participação popular, e por outro,
iniciando um vasto programa de obras públicas que difundem a riqueza entre a
população.
O desmantelamento do sistema de poder aristocrático abatera as posições
institucionalizadas de predomínio e possibilitara, para todos os cidadãos, uma igual
liberdade de agir e influenciar a vida coletiva, na medida em que o controle dos
recursos políticos, econômicos, sociais e culturais, controle que poderíamos chamar
tout court o “poder”, não era mais privilégio de poucos. A difusão de poder, que
porém não alcança os escravos, as mulheres e os estrangeiros, é assim o
denominador comum da ação e dos institutos democráticos dos Atenienses. Esses
temem a concentração do poder, mais do que qualquer outra coisa. O presidente do
Conselho dos quinhentos, que é o líder representativo da pólis, permanece no cargo
por apenas um dia e uma noite de sua vida e, em um primeiro momento, preside
também a Assembleia. Sucessivamente, sua segunda função é excluída a fim de
evitar que ele pudesse concentrar poder demais... nas vinte e quatro horas em que
permanece na função!
…
Bem se vê que o caminho que conduziu à criação das democracias dos
antigos e dos modernos tem em comum um processo de difusão do poder. É preciso
reconhecer que os ideais de liberdade, igualdade e solidariedade que caracterizam a
democracia podem ser plenamente realizados somente se os recursos políticos,
econômicos, sociais e culturais de uma nação não estiverem concentrados, sob
pena de a capacidade de alguns indivíduos influenciarem os demais se tornar
máxima. O que contrasta com a liberdade e a igualdade que, justamente segundo
Kelsen, são os ideais que caracterizam a democracia33. Esta, aliás, segundo o autor,
33
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 218.
A democracia como difusão do poder
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
93
é apenas um meio de realização de tais valores34. Todavia, se é um instrumento de
persecução da igualdade e da liberdade, não pode se exaurir em mero procedimento
que, no pensamento kelseniano, assume um valor preponderante sobretudo no que
tange ao momento da escolha de quem deve exercitar o poder. A democracia,
compreendida especialmente como procedimento eleitoral, constitui-se como um
critério que se refere à legitimação do poder, mas não ao seu exercício. Mas caso se
queira realizar liberdade e igualdade não apenas no momento da escolha eleitoral, e
sim durante toda a vida civil de um corpo social, não se pode conceber a democracia
apenas em função do momento no qual se legitima um determinado sistema de
poder, mas se deve olhar ao modo de exercício e ao âmbito de extensão do próprio
poder. Quando os recursos que permitem a incidência na esfera jurídica de outrem
se concentram nas mãos de poucos, verifica-se inafastavelmente o sacrifício da
liberdade e da igualdade e, consequentemente, da coesão social.
O pensamento sociológico adverte que “impedir a acumulação do poder
político, econômico e cultural nas mesmas mãos, e diferenciar dentro do Estado
diversos poderes e funções foram reconhecidas, na era moderna, como critérios
fundamentais do bom governo”35. Uma definição jurídica de democracia também não
pode se conciliar com a concentração de prerrogativas, seja quais forem, que
incidam sobre a vida coletiva. Quando Montesquieu deseja um sistema no qual o
«poder contenha o poder»36 está a falar nas prerrogativas de natureza política, mas
o princípio de separação dos poderes, atualizado, deve valer para qualquer forma de
domínio sobre os homens. Tal não ocorre se os recursos estiverem centralizados em
mãos estatais ou privadas. Há quem, nas pegadas do pensamento kelseniano,
tenha observado que uma definição de democracia em termos procedimentais é
“mínima”37 ou “preliminar”38, deixando assim a porta aberta a definições mais
complexas. Entretanto, uma referência às ordens econômicas, sociais e culturais da
34
Cfr. Kelsen, op. cit., p. 268. 35
Cfr. Bagnasco–Barbagli–Cavalli (2001), Sociologia III. Organizzazione sociale, popolazione e
territorio, Società editrice il Mulino, Bologna, p. 116. 36
Cfr. Montesquieu (de) Charles - Louis Secondat (1748), De l’esprit des lois, trad. it. Lo spirito delle
leggi (1999), Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, RCS Libri S.p.A., Libro quinto, Capitolo
quattordicesimo. 37
Cfr. Bobbio, op. cit., p. XXII. 38
Cfr. Bobbio, op. cit., p. 63.
Arnaldo Miglino
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
94
sociedade não pode se limitar à sua inserção em uma definição “máxima” de
democracia, que seja capaz de integrar a noção procedimental. É essa mesma
noção “mínima” que se revela inadequada. Já Tocqueville ponderava sobre a
importância de «decompor o poder»39. Uma definição essencial de democracia não
pode legitimar qualquer concentração de poder e, portanto, não é compatível com
um sistema econômico que esteja totalmente nas mãos do Estado ou dos oligopólios
privados, nem é compatível com qualquer outra forma de concentração dos
recursos, sejam esses políticos, econômicos, sociais e culturais. O que conta, na
democracia, é a realização da liberdade, da igualdade e da solidariedade. Alcança-
se tais objetivos também com o procedimento, porém não se trata do único dos
elementos que valem para definir, de maneira essencial, um ordenamento
democrático40.
39
Cfr. Tocqueville (de) Alexis (1835), De la Démocratie en Amérique, trad. it. La Democrazia in
America (1971), Bologna, Casa Editrice Licinio Cappelli S.p.A., vol. I, parte I, IV. 40
Cfr. Miglino, op. cit., pp. 190-192.
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
95
CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA E
NEOCONSTITUCIONALISMO
WARRANTY CONSTITUTIONALISM AND NEOCONSTITUTIONALISM
Luigi Ferrajoli1
Trad. de André Karam Trindade
Sumário: 1. O constitucionalismo entre o jusnaturalismo e o juspositivismo. 2. O Neo-
constitucionalismo e seu tendencial jusnaturalismo. 3. O Constitucionalismo
garantista como completamento e reforço do positivismo jurídico. 4. Uma crítica à
distinção entre princípios e regras. O enfraquecimento da normatividade das
Constituições. 5. Conflitos entre princípios e ponderações. 6. A normatividade forte
das Constituições segundo o constitucionalismo garantista.
1 O CONSTITUCIONALISMO ENTRE O JUSNATURALISMO E O JUSPOSITIVISMO
Há muitas concepções diferentes de Constituição e de constitucionalismo2.
Uma característica comum entre elas pode ser identificada na ideia da submissão
dos poderes públicos a uma série de normas superiores que, nas atuais
Constituições, sancionam direitos fundamentais. Nesse sentido, o constitucionalismo
equivale, como sistema jurídico, a um conjunto de limites e de vínculos impostos a
todos os poderes, inclusive àquele legislativo; e, como teoria do direito, a uma
concepção de validade das leis que não é mais ancorada apenas na conformidade
1 Professor Ordinário de Teoria e Filosofia do Direito da Università degli Studi Roma Tre (Itália).
2 A respeito das características do neconstitucionalismo, ver PRIETO SANCHÍS, Luis. Justicia
constitucional y derechos fondamentales. Trotta: Madrid 2003, em especial o cap. 2. Sobre o
neoconstitucionalismo, consultar POZZOLO, Suzana. Neocostituzionalismo e positivismo
giuridico. Torino: Giappichelli, 2001; MAZZARESE, T. (Org.). Neocostituzionalismo e tutela
(sovra)nazionale dei diritti fondamentali. Torino: Giappichelli, 2002; CARBONELL, Miguel
(Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003; QUARESMA, R.; DE PAULA OLIVEIRA,
M. L., OLIVEIRA, F. M. R. de (Orgs.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
Ver, ainda, o ensaio crítico de STRECK, L. L. Verdad y Consenso. Constitución, hermenéutica
y teorías discursivas. De la posibilidad a la necesidad de respuestas correctas en derecho.
Lima: Ara Editores, 2009.
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
96
das suas formas às normas procedurais sobre a sua elaboração, mas também à
coerência dos seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente
estabelecidos.
Para além desta característica comum, porém, o constitucionalismo pode ser
concebido de duas maneiras opostas. De um lado, ele pode ser entendido como a
superação – em sentido tendencialmente jusnaturalista – do positivismo jurídico; ou,
de outro, como o seu completamento. A primeira concepção, etiquetada como
“neoconstitucionalista”, é certamente a mais difundida. A finalidade desta
intervenção é sustentar, ao contrário, uma concepção juspositivista do
constitucionalismo, que aqui chamarei “garantista”3.
2 O NEOCONSTITUCIONALISMO E SEU TENDENCIAL JUSNATURALISMO
A tese segundo a qual o constitucionalismo, com sua pretensão de submeter
as leis a normas superiores estipuladas como inderrogáveis, exprime uma instância
clássica do jusnaturalismo é uma ideia recorrente, sustentada desde quando a
expressão “constitucionalismo” passou a integrar o léxico filosófico-jurídico4. O
constitucionalismo, segundo esta tese, equivaleria à superação – ou, pior, a uma
negação – do positivismo jurídico, que não é mais idôneo para dar conta da nova
natureza das atuais democracias constitucionais. Com a incoporação nas
Constituições de princípios de justiça de caráter ético-político, como a igualdade, a
dignidade das pessoas e os direitos fundamentais, desaparece o principal traço
distintivo do positivismo jurídico: a separação entre direito e moral, ou seja, entre
validade e justiça. Segundo esta tese, a moral, que no velho paradigma juspositivista
correspondia a um ponto de vista externo ao direito, agora faria parte do seu ponto
de vista interno. Acrescento que esta concepção de constitucionalismo é defendida
3 Devo a Luis Prieto Sanchís o destaque das diferenças mais relevantes entre estas duas
concepções do constitucionalismo. Cf. PRIETO SANCHÍS, Luis. “Principia iuris”: una teoria del
derecho no neo-constitucionalista para el Estado constitucional. Doxa. Cuadernos de Filosofia
del Derecho, Alicante, n. 31, pp. 325-353, 2008; e, ainda, PRIETO SANCHÍS, Luis. La teoria del
derecho de “Principia Iuris”. In: MARCILLA CORDOBA, Gema (Ed.). Constitucionalismo y
garantismo. Bogotá: universidad Externado de Colombia, 2009. p. 15-42. 4 MATTEUCCI, Nicola. Positivismo giuridico e costituzionalismo. Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile, Milano, ano XVII, n. 3, pp. 985-1100, 1963, p. 1046.
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
97
não apenas pelos principais expoentes do neoconstitucionalismo, como Ronald
Dworkin, Robert Alexy, Carlos Nino, Gustavo Zagrebelsky e Manuel Atienza, mas
também por alguns dos seus críticos, como Michael Troper, juspositivista rígido, para
quem o constitucionalismo é incompatível com o positivismo jurídico tradicional5.
Existe também um segundo aspecto das orientações neoconstitucionalistas:
a configuração das normas constitucionais não como regras suscetíveis de
observância e de aplicação, mas sim como princípios suscetíveis de ponderações e
balanceamentos, porque se encontram virtualmente em conflito; e,
consequentemente, a centralidade conferida à argumentação na própria concepção
de direito. “O direito” – afirma Atienza, por exemplo, – “não pode ser entendido
exclusivamente como um sistema de normas, mas também como uma prática
jurídica”6. Por outro lado, acrescente-se, os direitos fundamentais são “valores”7
ético-políticos, de maneira que não apenas o direito tem uma inevitável conexão com
a moral, como uma teoria do direito dotada de capacidade explicativa e em
condições de oferecer critérios de solução para os casos difíceis também não pode
deixar de incluir uma teoria da argumentação8. Analogamente, recorda Atienza,
Ronald Dworkin considera o direito “como uma prática interpretativa”; Robert Alexy
associa ao direito “uma pretensão de correção” e, portanto, o ônus de uma certa
justificação moral; e Carlos Nino entende que as normas jurídicas têm sua
5 “Agora está claro que o positivismo, nos três sentidos deste vocábulo [aqueles apresentados por
Norberto Bobbio], é absolutamente incompatível com o constitucionalismo”, que “parece
estritatemente ligado às doutrinas jusnaturalistas” (TROPER, Michel. Il concetto di
costituzionalismo e la moderna teoria del diritto. Materiali per una storia della cultura giuridica,
ano XVIII, n. 1, 1988, p. 63). 6 Cf. ATIENZA, Manuel. Tesis sobre Ferrajoli. Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho,
Alicante, n. 31, 2008, § 6, p. 215. Tais teses estão desenvolvidas mais amplamente em ATIENZA,
Manuel. Sobre Ferrajoli y la superación del positivismo jurídico. In: FERRAJOLI, Luigi;
MORESO, José Juan; ATIENZA, Manuel. La teoría del derecho en el paradigma
constitucional, op. cit., §§ 5 e 6, pp.144-164: e, ainda, em minha resposta: Constitucionalisno y
teoría del derecho. Respuesta a Manuel Atienza y José Juan Moreso, §§ 2 e 3, pp.173-195.
Ver, também, o meu Garantismo. 2. ed. Madrid: Trotta, 2009, cap. 2, pp. 23-38, em respostas ás
críticas de Alfonso García Figueroa e de Marisa Iglesias Vila (CARBONELL, Miguel; SALAZAR,
Pedro (Orgs.). Garantismo. Estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid:
Trotta, 2005, pp. 267-284 e 77-104, respectivamente). 7 ATIENZA, Tesis sobre Ferrajoli, op. cit., § 8, p. 215. O termo “valores”, come observa Atienza,
não figura entre os meus termos teóricos e nem mesmo no índice analítico dos argumentos dos
dois volumes de meu Principia Iuris (Roma: Laterza, 2007). 8 Recorde-se o título do livro de Manuel Atienza: El derecho como argumentación.
Concepciones de la argumentación. Barcelona: Ariel, 2006.
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
98
justificação não em si, mas em razões morais9. Da mesma forma, José Juan Moreso
considera essencial à ciência jurídica a argumentação moral, sendo “uma obviedade
que as Constituições incluem conceitos e teses morais” e que, portanto, “incorporam
a moral no direito”10. “O déficit de racionalidade e de legitimidade que pode derivar
disso”, observou justamente Luis Prieto Sanchis, “vem compensado, em grande
parte das abordagens constitucionalistas, por uma complexa e potente teoria da
argumentação jurídica, na qual talvez se confia mais do que se deveria”11.
Este constitucionalismo, de nítida matriz anglo-saxã, caracteriza-se então,
como disse Prieto Sanchís, por dois elementos: o ataque ao positivismo jurídico e a
tese da separação entre direito e moral; e o ativismo judicial promovido pela tese de
que os direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras, mas sim
princípios, objetos de ponderação e de imediata argumentação jurídica, sem a
necessidade de interpositio legislatoris12. Sob todos estes aspectos, pode-se
registrar uma singular convergência do neconstitucionalismo com o realismo e com
aquele que podemos chamar “neopandectismo” ao minar os fundamentos
juspositivistas do direito sobre a base de uma tese comum: o direito, na verdade, é
aquele que é produzido pelos juízes, consistindo, em última análise, nas suas
práticas interpretativas e argumentativas13. Esta tese, que certamente registra a
fenomenologia do direito vivente, vem frequentemente assumida nao apenas como
descritiva, mas também como prescritiva, confundindo, assim, a eficácia com a
validade. E, por isso, contrapõe-se à abordagem normativista, unindo o
neoconstitucionalismo tanto ao realismo como ao neopandectismo, que igualmente
enfatiza o papel dos juízes e das suas práticas, isto é, o “direito como fato” ao invés
9 ATIENZA, Tesis sobre Ferrajoli, op. cit., § 6, p. 215.
10 MORESO, José Juan. Ferrajoli o el constitucionalismo optimista. Doxa. Cuadernos de Filosofia
del Derecho, Alicante, n. 31, 2008, § 4, p. 285. 11
PRIETO SANCHÍS, La teoria del derecho de Principia Iuris, op. cit., § IV, pp.67-68. 12
Id., “Principia iuris”..., op. cit., § 1, p. 329. 13
Esta é a tese sugerida já no título do livro de Manuel Atienza – El derecho como argumentación. Concepciones de la argumentación (Barcelona: Ariel, 2006). Mas uma concepção análoga é aquela realista expressa por Riccardo Guastini: “os textos normativos não têm, por assim dizer, vida própria independentemente da interpretação e da dogmática”, de maneira que “aquilo que nós chamamos o direito é indistinguível dos conceitos e das doutrinas que os juristas usam: aparentemente, para descrevê-lo em nível de metalinguagem; na verdade, para modelá-lo. Sob este ponto de vista, o direito é em cada tempo e lugar – simplesmente indistinguível, teria dito Giovanni Tarello, da cultura jurídica” (GUASTINI, Riccardo. Algunos aspectos de la metateoria de “Principia iuris”. Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n. 31, 2008, pp. 254-255). Sobre estas convergências, remeto o leitor a Principia iuris. Una discusión teorica, op. cit., §§ 1.2 e 1.3, pp. 398-406.
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
99
do “direito como norma”14, e propõe, em alternativa à crise considerada irreversível
da lei15, um renovado “papel dos juristas” e da ciência jurídica16, inspirado em uma
nítida opção jusnaturalista17. Uma concepção análoga, como se verá, é justamente
aquela que subjaz às interpretações neoconstitucionalistas do paradigma
constitucional, que também se caracterizam pelo papel criativo associado, na forma
da ponderação, à ciência jurídica e à jurisdição constitucional.
3 O CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA COMO COMPLETAMENTO E REFORÇO DO POSITIVISMO JURÍDICO
Oposta é a concepção que denominei “garantista” do constitucionalismo18. O
constitucionalismo rígido, como escrevi inúmeras vezes, não é então uma
14
É a orientação expressa de maneira exemplar por Paolo Grossi, que interpreta as transformações do direito provocadas pela globalização – a crose do “monopólio jurídico estatal”, a desterritorialização do direito, a fuga da jurisdição através do recurso crescente das grandes empresas transnacionais ao juízo de árbitro privados – como um retorno a “um direito privado dos privados”, que se manifesta em “dois resultados historicamente importantes: pluralismo jurídico, por causa da pluralidade das fontes; re-privatização de grandes zonas do planeta jurídico” (GROSSI, Paolo. Globalizzazione, diritto, scienza giuridica. In: GROSSI, Paolo. Società, Diritto, Stato. Un recupero per il diritto. Milano: Giuffrè, 2006, § 5, p. 288).
15 “Codice”, escreve Grossi com destaques que recordam a polêmica pandectista contra a
codificação, “significa a grande utopia e a grande presunção por parte de um legislador (um
legislador que se tornou presunçoso pela legolatria iluminista) de poder manter o universo jurídico
em um texto, mesmo que articuladíssimo e sensatíssimo; a cavar um pouco mais fundo se
descobre aquele que é o nó de toda a operação, isto é, o exercício de um controle rigoroso sobre
a produção do direito” (id., ibid., § 7, p. 291). 16
GROSSI, Paolo. Il diritto tra potere e ordinamento. In: GROSSI, Paolo. Società, Diritto, Stato. Un recupero per il diritto. Milano: Giuffrè, 2006, § 12, p. 195: “acredito firmemente que estamos adentrando em um período histórico no qual só se pode aumentar o papel dos juristas”. Um papel desenhado também ele sobre o modelo pandectista: “Mas o jurista, seja como cientista, seja como juiz, pode também se considerar no dever de ser herdeiro daquele personagem fecundo que, na Roma Antiga, na sábia civilização do segundo medievo, na longa experiência do Common Law até os dias de hoje, fez-se leitor de exigências objetivas, percebeu o dever de sistematizar com a finalidade de uma consciência ética da responsabilidade e as traduziu em princípios e regras de convivência” (id., ibid., p.196).
17 GROSSI, Paolo. Aspetti giuridici della globalizzazione economica. In: GROSSI, Paolo.
Società, Diritto, Stato. Un recupero per il diritto. Milano: Giuffrè, 2006, § 7, pp. 311-312: “Será preciso” que os juristas desenvolvam “a consciência de homens da ciência e de práticos unidos por um certo pensamento, por certos conhecimentos, por certas técnicas, e se unam pela certeza do valor ôntico do direito para a vida de uma comunidade local ou global”. Aqui é claro o êxito jusnaturalista de uma conceção similar: “Ôntico é grande palavra, que pode soar também obscura; quer somente sublinhar que o direito não é, para a comunidade humana, nem um artifício, nem uma coerção; pertence, ao contrário, à sua própria natureza e deve, portanto, expressa-la compeltamente (id., ibid., p. 312).
18 Uma análise aprofundade destas divergências foi desenvolvida em PRIETO SANCHÍS, Luis.
”Principia iuris”: una teoría del derecho no (neo)constitucionalista para el estado constitucional. Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n. 31, 2008, pp. 325-354; e, ainda,
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
100
superação, mas sim um reforço do positivismo jurídico, por ele alargado em razão de
suas próprias escolhas – os direitos fundamentais estipulados nas normas
constitucionais – que devem orientar a produção do direito positivo. Representa, por
isso, um completamento tanto do positivismo jurídico como do Estado de Direito: do
positivismo jurídico porque positiva não apenas o “ser”, mas também o “dever ser”
do direito; e do Estado de Direito porque comporta a submissão, inclusive da
atividade legislativa, ao direito e ao controle de constitucionalidade. Graças a isso a
legalidade não é mais – como no velho modelo paleojuspositivista – somente
“condicionante” da validade das normas infralegais, mas é ela mesma
“condicionada”, na sua própria validade, ao respeito e à atuação das normas
constitucionais. O clássico e recorrente contraste entre razão e vontade, entre lei da
razão e lei da vontade, entre direito natural e direito positivo, correspondentes ao
clássico e igualmente recorrente dilema e contraste entre o governo das leis e o
governo dos homens, mesmo nas formas democráticas da onipotência da maioria,
foi assim resolvido pelas atuais Constituições rígidas através da positivação da lei da
razão na forma dos princípios e dos direitos fundamentais neles estipulados, como
limites e vínculos à lei da vontade, ou seja, à lei da maioria, expressa pela vontade
de maiorias eventuais.
Mas precisamente por isto – ao contrário do que entendem Dworkin, Alexy e
Atienza, para quem as Constituições haveriam incorporado a moral no direito e,
portanto, deveria se tratar de uma conexão entre direito e moral – continua a valer,
contra aquela enésima e insidiosa versão do legalismo ético, que é o
constitucionalismo ético, o princípio juspositivista da separação entre direito e moral,
uma vez que este princípio não quer dizer, de todo modo, que as normas jurídicas
não tenham um conteúdo moral ou alguma “pretensão de justiça”. Estas seriam
teses sem sentido. Mesmo as normas (a nosso entender) mais imorais e mais
injustas são consideradas “justas” para quem as produz e exprimem, portanto,
conteúdos “morais” que, mesmo se (nos) parecem desvalores, são considerados
“valores” por quem os compartilha. E mesmo o ordenamento mais injusto e criminal
expressa aquela que, ao menos para o seu legislador, é (subjetivamente) uma
PRIETO SANCHÍS, Luis. La teoria del derecho de Principia Iuris. In: MARCILLA CORDOBA, G. Constitucionalismo y garantismo. Bogotá: Universidad Esternado de Colombia, 2009. pp. 43-74.
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
101
“pretensão de justiça”. Isto quer dizer que as Constituições expressam e incorporam
valores, nem mais nem menos, da mesma maneira como o fazem as leis ordinárias.
Aquilo que representa o seu traço característico é o fato de os valores nelas
expessos – aqueles que chamei “normas substanciais sobre a produção” e que nas
Constituições democráticas consistem, sobretudo, em direitos fundamentais – serem
por elas incorporados em um nível normativo supraordenado àquele da legislação
ordinária e serem, por isso, em relação a esta vinculantes.
É, portanto, insustentável a derivação – em razão da banal circunstância de
que leis e Constituições incorporam “valores” – da tese de uma “conexão conceitual”
entre direito e moral, mediante a qual todo ordenamento jurídico (não somente
pretende subjetivamente mas) satisfaz (objetivamente?) alguma “pretensão de
justiça” e algum “mínimo ético”, que integrariam, por isso, uma conotação necessária
do direito e uma condição de validade das normas jurídicas. Esta é uma tese
jusnaturalista exatamente oposta à tese juspositivista da separação – segundo a
qual a validade de uma norma não implica a sua justiça, assim como a sua justiça
não implica a sua validade –, e que é simplesmente o corolário do princípio de
legalidade como norma de reconhecimento do direito existente. Tampouco as
Constituições, em razão deste princípio, podem pretender-se objetivamente justas
somente porque são Constituições. De fato, historicamente, elas nascem como um
“nunca mais” às opressões precedentes, incorporando valores e princípios
democráticos que, geralmente, consideramos justos. Mas podem muito bem surgir
Consituições ou normas constitucionais singulares (que acreditamos) injustas
(pense-se no direito a “ter e portar armas”, previsto na segunda emenda da
Constituição norte-americana) e que como tais são moral e politicamente
contestadas. Em suma, o constitucionalismo garantista, mesmo teorizando a
dimensão estática inserida no positivismo jurídico pelas normas substanciais das
Constituições, rejeita a tentação de voltar a confundir direito e moral, inclusive na
forma do constitucionalismo ético. Restará ainda, como ponto de vista autônomo do
direito – o ponto de vista a ele externo da moral e da política, que é, portanto, o
ponto de vista crítico, também nos confrontos das normas constitucionais, de cada
um de nós.
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
102
Em suma, a separação entre direito e moral, longe de ignorar o ponto de
vista moral e político sobre o direito, permite que se funde não somente a sua
autonomia, mas o primado sobre o ponto de vista jurídico interno, como ponto de
vista da crítica externa, da projeção e da transformação institucional19. Desse modo,
mantendo não só a distinção, mas também a divergência entre justiça e validade,
não se incorrerá nas falácias provenientes desta confusão: a falácia jusnaturalista,
consistente na identificação (e na confusão) da validade com a justiça; e a falácia
ético-legalista, consistente – mesmo na variante do constitucionalismo ético – na
oposta identificação (e confusão) da justiça com a validade. Ao mesmo tempo, a
própria abordagem juspositivista serve para evidenciar o caráter normativo da
Constituição, porque supraordenada a qualquer outra fonte, e, portanto, as outras
duas virtuais divergências deônticas – entre validade e vigência e entre vigência e
eficácia – cujo desconhecimento está na origem de outras duas graves falácias:
aquela normativista, que impede de reconhecer a existência de normas inválidas,
mesmo se vigentes, e de normas ineficazes, mesmo se válidas; e aquela realista,
que impede, ao contrário, de reconhecer a existência de normas válidas ou vigentes,
mesmo se ineficazes, e de normas inválidas mesmo se eficazes.
Tais divergências certamente não podem ser reparadas pela interpretação e
pela argumentação jurídicas. No modelo normativo por mim teorizado, o
preenchimento das lacunas e a resolução das antinomias nas quais elas se
manifestam não são confiados ao ativismo interpretativo dos juízes, mas somente à
legislação – e, por isso, à política –, no que diz respeito às lacunas e ao anulamento
das normas inválidas; e à jurisdição constitucional, no que diz respeito às
antinomias. Certamente, os juízes devem interpretar as leis à luz da Constituição,
ampliando ou restringindo o seu alcance normativo de acordo com os princípios
constitucionais20. Mas é ilusório supor que eles possam colmatar aquelas que
19
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale (1989). 9. ed. Roma-Bari:
Laterza, 2008, cujo último capítulo intitulei “O primado do ponto de vista externo”, isto é, da moral
e da política. 20
No Brasil, Lenio Streck entende que o constitucionalismo democrático é incompatível com o
ativismo judicial, que se manifesta através da criação de novas normas pelo Poder Judiciário. Para
ele, o juiz está obrigado a aplicar a lei, sempre que não a considerar – no todo ou em parte –
inconstitucional. A aplicação da lei representa um direito fundamental do cidadão (STRECK, L. L.
Verdade e consenso. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 561-562).
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
103
denominei “lacunas estruturais” e suprir a necessária interpositio legis. Eles podem,
no máximo, evidenciar as lacunas: os juízes constitucionais cientificam o
Parlamento, como previsto no art. 103, §2, da Constituição brasileira; e os juízes e
tribunais, determinando, no caso concreto submetido a sua apreciação, uma forma
qualquer de satisfação ou reparação.
Quase todos os direitos fundamentais exigem, na verdade, leis de atuação:
os direitos à educação e à saúde restaria apenas no papel se não houvesse a
introdução pela via legislativa da escola pública e da assistência sanitária garantidas
gratuitamente a todos; e, até mesmo, o direto à vida permeneceria inefetivo, em face
do princípio da legalidade penal, se não houvesse a criminalização do homicídio.
Quanto aos conflitos entre direitos, a sua existência foi impropriamente
enfatizada, eis que não se trata de conflitos, mas sim relações de subordinação
daqueles direitos de autonomia, cujo exercício, por causa da estrutura escanolada
do ordenamento, está sempre em grau subordinado à lei. Existe, assim, uma
hierarquia ligada à própria estrutura dos direitos: as simples imunidades, não
comportando atos de exercício, são limites, por sua vez, não limitáveis pelo exercício
de outros direitos; e os direitos de liberdade ativa, cujo exercício não interfere na
esfera jurídica dos outros, são, ao seu turno, um limite não limitável pelo exercício
negocial dos direitos de autonomia, que está sempre em grau subordinado à lei. Os
conflitos entre normas de grau diverso e os descumprimentos de normas
supraordenadas dão lugar, em suma, a antinomias e a lacunas estruturais, isto é, a
“vícios” que a ciência jurídica tem o dever de denunciar, mas que podem ser
resolvidos somente através da produção legislativa ou mediante o anulamento pela
via jurisdicional.
Em síntese, bem mais que no modelo neoconstitucionalista – que confia a
solução das aporias e dos conflitos entre direitos à ponderação judicial,
inevitavelmente discricionária mesmo quando argumentada, enfraquecendo, assim,
a normatividade das Constituições e a fonte de legitimação da jurisdição –, o
paradigma do constitucionalismo rígido limita e vincula de modo bem mais forte o
Poder Judiciário, em conformidade com o princípio da separação de poderes e com
a natureza tanto mais legítima quanto mais cognitiva – e não discricionária – da
jurisdição. Os juízes, com base em tal paradigma, não podem criar normas, o que
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
104
implicaria uma invasão no campo da legislação, mas somente censurar a sua
invalidade por violação à Constituição, anulando-as no âmbito da jurisdição
constitucional, ou, então, desaplicando-as ou suscitando exceções de
inconstitucionalidade no âmbito da jurisdição ordinária; em ambos os casos,
intervindo, assim, não na esfera legítima, mas na esfera ilegítima da política. A
legitimidade da jurisdição se funda, na verdade, a meu ver, sobre o caráter mais
cognitivo possível da subsunção e da aplicação da lei, dependente por sua vez –
bem mais do que pela formulação como regra – do grau de taxatividade e de
determinação da linguagem legal; enquanto a indeterminação normativa e a
consequente discricionariedade judicial são um fator de deslegitimação da atividade
do juiz. O cognitivismo judiciário (veritas non auctoritas facit iudicium), mesmo como
ideal regulativo, é, na verdade, a outra face do princípio da legalidade (auctoritas
non veritas facit legem). É óbvio que a satisfação de um ideal similar é uma questão
de grau, dependente do grau de determinação ou de estreita legalidade da liguagem
legal. Mas, ao ultrapassar um certo grau de indeterminação, quando se converte em
poder criativo ou de disposição, o Poder Judiciário perde qualquer legitimidade21.
4 UMA CRÍTICA À DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS. O ENFRAQUECIMENTO DA NORMATIVIDADE DAS CONSTITUIÇÕES
A partir daqui, submeterei à análise crítica os dois aspectos do
neoconstitucionalismo identificados no § 2, sobre os quais se baseia uma concepção
da Constituição e do constitucionalismo extamente oposta àquela garantista recém-
apresentada. Iniciarei pelo segundo aspecto: a distinção entre regras e princípios
proposta por Ronald Dworkin22 e retomada por Robert Alexy como “um dos pilares
fundamentais do edifício da teoria dos direitos fundamentais”23: as normas
constitucionais, afirma-se, têm a forma dos princípios – mais precisamente dos
21
FERRAJOLI, Diritto e ragione, op. cit., § 12, pp. 147 e segs. 22
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously (1977), tr. it., I diritti presi sul serio (a cura di G.
Rebuffa). Bologna: Il Mulino, 1982, pp. 90-121. 23
ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte (1985), tr. sp., Teoría de los derechos
fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, cap. III, § 1, p. 82, onde
“norma” é adotado como termo de gênero e “princípios” e “regras” como termos de espécie (id.,
ibid., § 2, p. 83).
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
105
princípios de justiça, de caráter ético-político –, e não das regras. E, enquanto as
regras se aplicam, os princípios se respeitam, se pesam, se ponderam entre eles,
ainda mais quando, como geralmente ocorre, estão em conflito entre eles.
Diversamente das regras, acrescenta Zagrebelsky, que tem fattispecie e admitem,
portanto, a subsunção, os princípios não têm fattispecie24 e, por isso, não são
aplicáveis, mas apenas ponderáveis.
Trata-se, a meu ver, de um sofisma. Princípios e regras são, igualmente,
normas, simplesmente formuladas de maneira diversa: uns com referência ao seu
respeito; outros com referência à sua violação e à sua consequente aplicação. Prova
disso é que mesmo as regras, inclusive aquelas penais às quais se exige a máxima
taxatividade, quando são observadas exsurgem como princípios, que não se
aplicam, mas se respeitam: por exemplo, a observância das normas sobre o
homicídio ou sobre as lesões corporais ou sobre o furto equivale ao respeito dos
princípios da vida, da integridade corporal e da propriedade privada. Inversamente,
também os princípios, quando são violados, aparecem como regras, que não se
respeitam, mas se aplicam: por exemplo, o princípio constitucional da igualdade,
quando é violado, surge como regra em relação à sua violação: a regra,
precisamente, que proíbe as discriminações25. E a discriminação é seguramente
uma fattispecie da relativa proibição, cuja verificação não consiste com certeza numa
ponderação, mas sim numa subsunção. Mesmo princípios vagos e imprecisos, como
a dignidade da pessoa ou princípios penais da determinação ou da ofensividade,
quando são violados por comportamentos lesivos da dignidade ou das leis penais
que imputam como crimes fatos indeterminados ou inofensivos, aparecem como
regras, cuja violação é nestas subsumida, não diversamente do que ocorre com
qualquer ato ilícito ou inválido; e a possibilidade da subsunção não depende, nestes
24
ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Legge, diritti, giustizia. Torino: Einaudi, 1992, cap. VI,
p. 149; ZAGREBELSKY, Gustavo. Introduzione a R. Alexy, Begriff und Geltung des Rechts
(1992), trad.it., Concetto e validità del diritto. Torino: Einaudi 1997, p. XX; e, ainda,
ZAGREBELSKY, Gustavo. La legge e la sua giustizia. Bologna: Il Mulino, 2009, pp. 213-214. 25
Tal regra é aplicada, e não simplesmente respeitada, em sede de garantia secundária, pelo juízo
de inconstitucionalidade. Defendi uma tese análoga em Pil, § 12.8, pp. 884-885, onde afirmei que
“as normas primárias”, entre as quais se encontram todas as normas constitucionais substanciais,
“quando são violadas, exsurgem, durante o controle jurisdicional da sua inobservância, como
normas secundárias em relação ao ato jurisdicional mediante o qual vêm aplicadas (T12.78)”.
Todas as normas, em suma, sejam elas elaboradas em forma de regras ou de princípios, são
respeitadas, em via primária, se observadas, e são aplicadas, em via secundária, se violadas.
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
106
casos, da formulação das relativas normas em princípios, mas somente, como
acontece também nas regras, do uso de expressões vagas e imprecisas como
“dignidade”, “determinação” e “ofensividade”.
A diferença entre princípios e regras é, portanto, a meu ver, uma diferença
que não é estrutural, mas de estilo. A formulação das normas constitucionais na
forma dos princípios e precisamente dos direitos fundamentais não é apenas um fato
de ênfase retórica, mas também tem uma relevância política, uma vez que serve
para explicitar, com a titularidade dos direitos das pessoas, a própria titularidade das
normas constitucionais nas quais os direitos consistem e, por isso, a sua colocação
em posição supraordenada ao artifício jurídico, como titulares de outros tantos
fragmentos da soberania popular. Mas deixando de lado o estilo, qualquer princípio,
ou ao menos qualquer direito fundamental, pela recíproca implicação que liga as
expectativas nas quais os direitos consistem e as obrigações e proibições
correspondentes, equivale à regra consistente na obrigação ou na proibição
correspondente26. Precisamente porque os direitos fundamentais são universais
(omnium), eles consistem em normas, isto é, em regras27, às quais correspondem
deveres absolutos (erga omnes) igualmente consistentes em regras. Por exemplo, o
art. 32 sobre o direito à saúde é equivalente à norma que, de resto, está nele
explicitada, segundo a qual a República “garante tratamentos gratuitos”; o art. 21
sobre a liberdade de manifestação de pensamento equivale à regra “é proibido
impedir ou turbar ou limitar a livre manifestação de pensamento”; o art. 16 sobre a
livre circulação, que a mesma Constituição tutela nos limites da saúde e da
segurança equivale à proibição de limitar a liberdade de circulação senão “por
motivos de saúde e de segurança”. Compreende-se, assim, que não existe uma
diferença real de estatuto entre princípios e regras: sempre a violação de um
princípio faz deste uma regra, que enuncia as proibições ou as obrigações
correspondentes. Por isto, a Constituição é definida, na sua parte substancial, mais
do que como um conjunto de direitos fundamentais, isto é, de princípios, também
como um sistema de limites e de vínculos, isto é, de regras destinadas aos titulares
26
Ver FERRAJOLI, Pil, op. cit., as teses T2.60-T2.63, no § 2.3, pp.155; e as teses T10.170-T10.185,
no § 10.13 pp. 651-655. 27
Id., ibid., § 11.1, pp. 729-731, teses T11.16-T11.20.
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
107
dos poderes. Precisamente, aos princípios consistentes em direitos de liberdade
(universais ou omnium) correspondem as regras consistentes em limites ou
proibições (absolutos ou erga omnes); aos princípios consistentes em direitos sociais
(universais ou omnium) correspondem as regras consistentes em vínculos ou
obrigações (absolutos ou erga omnes)28. Direitos e deveres, expectativas e
garantias, princípios em matéria de direitos e regras em matéria de deveres são, em
suma, uns a face dos outros, equivalendo a violação dos primeiros, seja ela por
comissão ou por omissão, a violação das segundas.
Não se trata de uma questão de palavras. A contraposição, ao meu ver
logicamente inconsistente, instituída pelo neoconstitucionalismo entre regras e
princípios, tem relevantes implicações práticas. O seu aspecto mais insidioso é o
radical enfraquecimento do valor vinculante dos princípios, ainda mais se de nível
constitucional. Significativa, nesse sentido, é a caracterização, ao meu entender
juridicamente arbitrária, que dos princípios é oferecida pelos seus defensores mais
ilustres. “O elemento decisivo sobre o qual se baseia a distinção entre regras e
princípios”, escreve Robert Alexy, “é que os princípios são normas que comandam
que se realize qualquer coisa na medida do possível, levando em conta aquilo que é
factual e juridicamente possível. Os princípios são, então, mandados de otimização,
que se caracterizam pelo fato de poderem ser satisfeitos em diversos graus e pelo
fato de a medida devida para sua observância depender não apenas das
possibilidades factuais mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das
possibilidades jurídicas é determinado pelas regras e pelos princípios de maneira
oposta. As regras, contrariamente aos princípios, são normas que podem ser
somente observadas ou violadas. Se uma regra é válida, então deve se fazer
exatamente aquilo que ela dispõe, nem mais nem menos. Portanto, as regras
determinam o âmbito daquilo que é factual e juridicamente possível. Isto significa
que a diferença entre regras e princípios é qualitativa, e não de grau”29. E, aqui, não
28
Id., ibid., § 11.9, pp. 772-776, teses D11.24-D11.26, T11.102-T11.103 e T11.107-T11.108. 29
ALEXY, Teoría de los derechos fundamentales, op. cit., cap. III, § 2, pp. 86-87. O mesmo passo
é dado em ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón practica. "Doxa.
Cuadernos de Filosofia del Derecho, n. 5, 1988, pp. 143-144. Análoga distinção é traçada por
DWORKIN, I diritti presi sul serio, op. cit., pp. 93-95: “A diferença entre princípios jurídicos e
regras é de caráter lógico. Tanto uns quanto outros orientam a decisões particulares, mas se
diferem pelo caráter de orientação que sugerem. As regras são aplicadas na forma do tudo-ou-
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
108
se vê – o que confirma que a determinação da norma, seja ela uma regra ou um
princípio, depende somente da determinação dos termos nela empregados – em que
sentido o âmbito de aplicação do princípio da igualdade e da correlativa proibição de
discriminação, ou da liberdade de expressão e da correlativa proibição de restrições,
seja mais indeterminado daquele, por exemplo, das regras penais que, no
ordenamento italiano, punem os não melhor definidos “maus-tratos em família” ou os
“atos obcenos em lugares públicos”30. Por sua vez, Manuel Atienza e Juan Ruiz
Manero rebaixam os princípios e os direitos neles estipulados para “objetivos
coletivos que se recomendam aos poderes políticos perseguirem”, ou, então,
“diretivas ou normas programáticas das quais deriva, para o legislador não mais,
como pensa Ferrajoli, o dever de instituir as relativas garantias primárias e
secundárias”, mas simplesmente aquele de “promover políticas (também
legislativas)”, diretas à realização de tais objetivos31.
nada. Quando se dão os fatos estabelecidos por uma regra, então se determinam as
consequências por eles predispostas”. Os princípios, ao contrário, exprimem “uma razão que
empurra em uma direção, mas que não necessita de uma decisão particular”. No mesmo sentido,
ZAGREBELSKY, La legge..., op. cit., pp. 213-214. 30
Ver a análise da indeterminação dos princípios constitucionais desenvolvida por BERNAL
PULIDO, Carlos. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid:
Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, 2005, pp. 99-100, onde o autor elenca inúmeros
tipos de indeterminação que afligiriam os princípios constitucionais que enunciam direitos
fundamentais. Tenho, porém, a impressão de que, na maior parte dos casos por ele apresentados,
não há nenhuma indeterminação que também não seja verificadanas regras. Não me parece, por
exemplo, que na norma que preve o direito de associação haja uma “indeterminação semântica” a
ponto de colocar em dúvida seriamente que ela implique a proibição do Estado de impor o
ingresso em uma determinada associação; ou que o art. 19 da Constituição argentina apresente
uma “indeterminação sintática” a ponto de admitir ser interpretado no sentido de que a não-
punibilidade nele estabelecida das ações “privadas” “que de nenhum modo ofendem a ordem ou a
moral pública” e que “não produzem danos a terceiros” refira-se a três classes de ações
consideradas separadamente (entre as quais, paradoxalmente, todas as “ações privadas”), ao
invés de três características das ações verificadas conjuntamente, ou, ainda, que s epossa duvidar
de que o direito à informação ou aquele à educação sejam marcados por uma “indeterminação
estrutural”, como se não fosse claro que as prescrições por eles impostas digam respeito aos
resultados que formam o objeto dos direitos, e não aos meios para efetivá-los, obviamente
dirigidos à discricionariedade administrativa, ou, então, que o direito à difusão da informação seja
marcado por uma “redundância”, como se não fosse óbvio que ele pressupõe o direito a criar
meios de informação, em todo caso implicado pelo direito à livre iniciativa econômica. 31
ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Tres problemas de tres teorías de la validez jurídica. In:
MALEM, J.; OROZCO, J.; VAZQUEZ, R. La función judicial. Etica y democracia. Barcelona:
Gedisa, 2003, pp. 94 e 99. O mesmo passo é retomado em ATIENZA, Manuel. Sobre Ferrajoli y la
superación del positivismo jurídico. In: FERRAJOLI, Luigi; MORESO, José Juan; ATIENZA,
Manuel. La teoría del derecho en el paradigma constitucional, op. cit., § 6.1, pp. 153-155; e,
ainda, a minha risposta (id., ibid., § 4, pp.195-206). Não é supérfluo recordar que, na Itália, a
expressão “normas programáticas” foi utilizada, nos anos 50 do século passado, pela Corte de
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
109
O resultado desta operação é, em suma, o ofuscamento do alcance
normativo dos princípios constitucionais. Ronald Dworkin, por exemplo, escreve: “A
primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos contém a previsão normativa
de que o Congresso não limitará a liberdade de expressão. Esta é uma regra tal que,
se uma lei especial limitasse a liberdade de expressão, seria inconstitucional?
Aqueles que exigem que a primeira emenda seja ‘um absoluto’ dizem que deve ser
entendida deste modo, isto é, como uma regra. Ou, ao contrário, simplesmente
afirma um princípio, de modo que, quando for descoberta uma limitação da liberdade
de expressão, será inconstitucional se o contexto não evidenciar algum princípio ou
alguma consideração de oportunidade política que, em determinadas circunstâncias,
seja suficientemente importante para permitir a limitação? Esta é a posição daqueles
que defendem aquele que é chamado o fator de “claro e atual perigo” ou de qualquer
outra forma de ‘ponderação’”32.
5 CONFLITOS ENTRE PRINCÍPIOS E PONDERAÇÕES
A ponderação é, precisamente, o tipo de racionalidade que vem proposta
pelo neoconstitucionalismo como pertinente aos princípios, em oposição à
subsunção que, ao contrário, caberia somente às regras. Através dela,
paralelamente ao enfraquecimento do caráter vinculante das normas constitucionais,
mesmo dotadas de rigidez, vem endossado o enfraquecimento do caráter cognitivo
da jurisdição, no qual reside a sua fonte de legitimação, e promovidos e facilitados o
ativismo judicial e a discricionariedade da jurisdição.
Obviamente, não teria sentido negar ou subestimar o papel da ponderação,
do balenceamento e, de maneira mais ampla, da argumentação na atividade de
produção normativa: em primeiro lugar, a ponderação legislativa, que é fisiológica na
Cassação, a fim de neutralizar o alcance normativo dos princípios constitucionais. Para uma crítica
da redução – consequente as estas leituras ético-política e antijuspositivista do paradigma
constitucional – da normatividade jurídica das Constituições àquela de “meras declarações de
intenções políticas”, ver MAZZARESE, T. Diritti fondamentali e neocostituzionalismo: un inventario
di problemi. In: MAZZARESE, T. (a cura di). Neocostituzionalismo e tutela (sovra)nazionale dei
diritti fondamentali. Torino: Giappichelli, 2002, em especial § 1.4, pp.14-22; e, ainda,
MAZZARESE, T. Towards a Positivist Reading of Neo-constitutionalism, "Associations", 6 (2),
2002, pp. 233-260. 32
DWORKIN, I diritti presi sul serio, op. cit., p. 97 e 100-101.
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
110
esfera política do decidível e naquela da implementação das funções e das
instituições de garantia da esfera do não decidível, que não estejam em contraste,
por comissão ou por omissão, com as normas constitucionais; em segundo lugar, a
ponderação judicial nos espaços, igualmente fisiológicos, da interpretação jurídica.
Pode-se também admitir que as normas formuladas através de princípios
apresentam, geralmente, uma maior indeterminação e se prestam, mais do que
aquelas expressas mediante regras, a ser objeto de ponderação. Contudo, tenho a
impressão de que a ponderação, nestes anos, terminou por transformar-se em um
tipo de bolha terminológica, dilatada até chegar às formas mais casuais de
esvaziamento e de desaplicação das normas constitucionais.
É evidente, na verdade, que a ponderação legislativa, se não se limita às
escolhas discricionárias fisiologicamente próprias da legislação, em relação aos
meios e às formas de implementação dos direitos fundamentais, mas se estende à
escolha de quais princípios constitucionais devem atuar e quais não devem, então
se corre o risco de se decidir no Poder Legislativo, em contraste com a hierarquia
das fontes, de frustar ou, ainda, derrogar a Constituição e, assim, ocultar os seus
descumprimentos.
Quanto à ponderação judicial, ela se parece um pouco mais do que uma
nova palavra para denominar a velha “interpretação sistemática”, desde sempre
conhecida e praticada pelos juristas e consistente na interpretação do sentido de
uma norma à luz de todas as outras normas do sistema. Não existe, de fato,
nenhuma diferença de caráter epistemológico entre a argumentação constitucional
dos juízes constitucionais e a argumentação penal ou civil ou administrativa dos
juízes ordinários ou administrativos, não havendo diferença de estatuto entre as
normas constitucionais e as normas ordinárias. Ponderação e balanceamento,
quando se aplicam mais normas diversas mesmo que não estejam necessariamente
em conflito, estão por isso presentes na jurisdição ordinária tanto quanto na
jurisdição constitucional: no direito penal, por exemplo, a ponderação entre
circunstâncias agravantes e circunstâncias atenuantes do crime está, inclusive,
prevista na lei, para fins de equivalência, ou, então, de juízo de prevalência de umas
sobre as outras. De outro lado, opções ético-políticas oponíveis e variadamente
argumentáveis, como documentam os infinitos repertórios de jurisprudência, estão
Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
111
inevitavelmente por detrás de qualquer interpretação jurídica de um mesmo texto,
em face das margens de ambiguidade e de indeterminação da linguagem legal, seja
ela expressa em regras ou em princípios. De outro lado, a própria
constitucionalização dos princípios em matéria de direitos reduz, geralmente, o
espaço da discricionariedade interpretativa, uma vez que, de todas as possíveis
interpretações admitidas em um mesmo texto, são escolhidas como válidas somente
aquelas coerentes com a Constituição. Se, além disso, pela indeterminação
semântica das normas e pela impossibilidade da subsunção, o poder dos juízes
acaba sendo, de fato, um poder criativo, então ele se converte naquilo que venho
chamando “poder de disposição”, que é, todavia, um poder ilegítimo,
independentemente da natureza de princípios ou de regras das normas, uma vez
que invade a competência da política e das funções de governo, não podendo,
portanto, ser aceito sem que se negue a separação dos poderes e a própria
conservação do Estado de Direito33.
Mas é sobre a tese de que os princípios e os direitos neles expressos estão
sempre em conflito que os neoconstitucionalistas fundam o papel substanciamente
criativo por eles associado à ponderação judicial, através da qual os princípios são
pesados e ponderados, mas não se aplicam a fattispecie neles subsumíveis e a
garantia de um deles resulta, assim, sempre no detrimento daquela de um outro34.
Esta tese, como já disse, foi bastante enfatizada: na maior parte dos casos referidos
– discriminações que violam o princípio da igualdade, medidas policias introduzidas
em contraste com o princípio da liberdade pessoal, limitações à liberdade de
imprensa e outras –, os princípios aplicam-se em face da sua violação, sem que
intervenham necessariamente ponderações e tampouco, mais do que em outros
juízos, opções subjetivas de valor. Repito: não é preciso confundir a questão da
aplicabilidade dos princípios com a possibilidade de discutir em concreto a sua
33
Sobre o tema, remeto o leitor ao meu Diritto e ragione, op. cit., cap. III, § 12, pp. 147-160. 34
Cf. ALEXY, Teoría de los derechos fundamentales, op. cit., § 2.2.2.3, pp. 160-169, onde são
elevados a “regra” ou “lei da ponderação” o “grau de importância” atribuído pela jurisprudência
constitucional, com argumentos obviamente oponíveis, à segurança em relação à liberdade de
imprensa ou vice-versa. Recorde-se, além disso, a tese segundo a qual os direitos
“frequentemente entram em jogo de relações recíprocas a soma zero”, sustentada por PINTORE,
A. Diritti insaziabili. In: FERRAJOLI, Luigi. Diritti fondamentali. Un dibattito teorico (a cura di E.
Vitale). Roma-Bari: Laterza, 2001, pp. 189-190; e, ainda, a minha respostas (id., ibid., § 6, pp. 328-
332).
Luigi Ferrajoli
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
112
aplicação, compartilhada por muitas regras e determinada pelas margens de
incerteza da sua interpretação. Obviamente, também os princípios e os direitos, não
menos do que as regras, podem estar – e, frequentemente, estão – em conflito entre
eles. Geralmente, todavia, as relações entre direitos são, sobretudo, de sinergia:
sem a garantia dos direitos sociais, em especial à educação e à informação, os
direitos de liberdade não são exercitáveis com conhecimento de causa, e sem
garantia dos direitos de liberdade não o são os direitos políticos. Mas, sobretudo,
como já disse, os teóricos da ponderação veem, frequentemente, conflitos onde não
há, trocando por conflitos as relações de subordinação que ocorrem entre os direitos
constitucionalmente estabelecidos e os atos de grau subordinado que consituem seu
respectivo exercício: particularmente, entre os direitos primários, de liberdade e
sociais, e os direitos secundários de autonomia, sejam civis ou políticos, que são
direitos-poderes cujo exercício consiste em atos e cujos efeitos estão em grau
subordinado à lei, seja constitucional ou ordinária35.
6 A NORMATIVIDADE FORTE DAS CONSTITUIÇÕES SEGUNDO O CONSTITUCIONALISMO GARANTISTA
O neoconstitucionalismo, não diversamente do realismo e do
neopandectismo, comporta, em suma, um enfraquecimento e, em última análise, um
35
Para uma análise das múltiplas relações entre liberdade e direitos fundamentais, muitas das quais não envolvem conflitos mas subordinação, remeto o leitor ao meu Pil, § 1.6, p. 134; § 2.4, pp. 159-161; e § 11.6, pp.752-759, bem como a PiII, §§ 13.14, pp. 72-77; § 15.1, p. 308; e §15.7, pp. 336-337, onde distingui, grosso modo, quatro níveis de liberdade: as liberdades de fato, que podem ser limitadas pelo exercício dos poderes direta ou indiretamente, expressões dos direitos de autonomia, nos limites impostos pelos direitos de liberdade constitucionalmente estipulados, dos quais as liberdades de são, por sua vez, limitadas pelas liberdade para ou imunidades fundamentais, que, não estando associadas a faculdade ou potestade e não comportando, por isso, nenhum exercício, são apenas limites aos outros direitos, e não limitaveis por outros. Ver, também, o meu Garantismo. Una discusión sobre derecho y democrácia. Madrid: Trotta, 2006, §§ 5.1-5.3, pp. 83-93, em resposta a MORESO, José Juan. Sobre los conflictos entre derechos, In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro (Eds.). Garantismo. Estudios sobre el pensamento jurídico de Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 159-170. Naturalmente, seria oportuno que a cultura jurídica, ao invés de assumir como inveitáveis a indeterminação da linguagem constitucional e os conflitos entre direitos – e, talvez, enfatizá-los com base no ativismo judicial –, promovesse o desenvolvimento de uma linguagem constitucional o mais precisa e rigorosa possível e a formulação explícita dos limites, mesmo que considerados como implícitos mediante uma interpretação sistemática, ao exercício de alguns direitos: como, por exemplo, a proibição da difamação ou da violação da privacidade, no exercício da liberdade de expressão, à tutela de imunidades relativas; ou a sujeição à lei e, sobretudo, aos direitos fundamentais, no exercício dos direitos civis de autonomia privada.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
113
colapso da normatividade das normas constitucionais e uma degradação dos direitos
fundamentais nelas estabelecidos a genéricas recomendações de tipo ético-político.
Subverte, além disso, a hierarquia das fontes, confiando a atuação das normas
constitucionais à ponderação legislativa e àquela judicial e, por isso, à
discricionariedade potestativa do legislador ordinário e dos juízes constitucionais.
Ciência jurídica e jurisprudência, graças ao papel associado à ponderação dos
princípios, voltam assim a reivindicar o seu papel de fontes supremas do direito.
Com o resultado paradoxal que a experiência jurídica mais avançada da
modernidade, representada pela positivação do dever ser do direito e pela sujeição a
limites e a vínculos jurídicos de todos os poderes, a ponderação vem interpretada
como um tipo de regressão ao direito jurisprudencial pré-moderno.
Ao contrário, o constitucionalismo garantista, teorizando os desnível
normativo e a consequente divergência entre normas constitucionais sobre a
produção e normas legislativas produzidas, impõe reconhecer, como sua inevitável
consequência, o direito ilegítimo, inválido por comissão ou inadimplente por omissão,
porque violao seu “dever ser jurídico”. E, portanto, confere à ciência jurídica um
papel crítico do próprio direito: das antinomias, geradas pela indevida presença de
normas em contraste, e das lacunas, geradas pela indevida falta de normas
implícitas em princípios constitucionais. Comporta, em síntese, o reconhecimento de
uma normatividade forte das Constituições rígidas, em razão da qual, posto um
direito fundamental constitucionalmente estabelecido, se a Constituição é levada a
sério, não devem existir normas com ele em contradição e deve existir – no sentido
de que deve ser encontrado através de interpretação sistemática, ou deve ser
introduzido mediante legislação ordinária – o dever correspondente por parte da
esfera pública. Trata-se de uma normatividade relacionada, em via primária, à
legislação, à qual impõe evitar as antinomias e colmatar as lacunas com leis idôneas
de atuação; e, em via secundária, à jurisdição, à qual impõe remover as antinomias
e apontar as lacunas.
Direitos reais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
114
DIREITOS REAIS SOBRE COISAS ALHEIAS.
SUPERFÍCIE
REAL THINGS ON RIGHTS OF OTHERS. SURFACE
Sílvio de Salvo Venosa1
Sumário: 1. Propriedade e Direitos Reais Limitados. 2. Direito de Superfície. Noção histórica.
Conceito e Compreensão. 3. Direito de Superfície no Estatuto da Cidade. Cotejo com
o Código Civil. 4. Direitos das Partes. Pagamento. Transmissão do Direito.
Preferência. 5. Extinção.
1 PROPRIEDADE E DIREITOS REAIS LIMITADOS
A propriedade é o direito real mais amplo. Em seu âmbito exercemos, com a
mitigação já examinada, o direito de usar, gozar e dispor da coisa (ius utendi, fruendi
et abutendi).
Em nosso sistema, os direitos reais constituem um número fechado
(numerus clausus). Somente a lei pode constituir direito real, em contrapartida aos
direitos obrigacionais ou pessoais os quais dependem exclusivamente da iniciativa
ou da vontade das partes.
O Código Civil de 1916 estampava no art. 674, ao abrir o título Dos Direitos
Reais sobre Coisas Alheias, o elenco legal e restrito dos direitos reais entre nós:
São direitos reais, além da propriedade: I – a enfiteuse; II – as servidões; III – o usufruto; IV – o uso; V – a habitação;
1 Juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do Primeiro Tribunal de
Alçada Civil. Atualmente é consultor e assessor de escritórios de advocacia. Foi professor em
várias faculdades e é professor convidado e palestrante em instituições docentes e profissionais
em todo o País. Membro da Academia Paulista de Magistrados.
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VI – as rendas expressamente constituídas sobre imóveis; VII – o penhor; VIII – a anticrese; IX – a hipoteca.
O legislador, no curso de nossa história jurídica, criou outros institutos
conversíveis em direitos reais. São mencionáveis as chamadas obrigações com
eficácia real, que são avenças de natureza eminentemente negocial as quais, para
maior proteção de determinada categoria de contratantes, permitem o registro
imobiliário e obtêm o status de direito real. Exemplos característicos são o direito de
preferência do inquilino na aquisição do imóvel locado, nos limites e termos do art.
33 da Lei nº 8.245/81, bem como o direito do compromissário comprador de imóvel,
com contrato registrado, de acordo com o Decreto nº 58/37 e Lei nº 6.766/79.
Pode, portanto, a lei, mas somente ela, ampliar ou restringir o rol de direitos
reais. Desse modo, a existência de direitos reais em diplomas legais fora do rol do
art. 674 não infirma o princípio do numerus clausus.
O Código de 2002 inicia, a partir do art. 1.225, a disciplinar os direitos reais
sobre coisas alheias: propriedade fiduciária, superfície, servidões, usufruto, uso,
habitação, direito do promitente comprador, penhor, hipoteca e anticrese. A Lei nº
11.481/2007 acrescentou a esse rol a concessão de uso especial para fins de
moradia e a concessão de direito real de uso.
Nesses direitos reais, menos amplos que a propriedade, o titular fica privado
de alguns dos poderes inerentes ao domínio. Basicamente, haverá dois titulares
sobre a mesma coisa, cada com âmbito de atuação próprio e definido pela lei, na
extensão de exercício do domínio.
Alguns desses direitos oferecem modernamente grande interesse prático,
tendo em vista a finalidade social atual a que se destinam, como o usufruto, exemplo
dinâmico de direito de desfrute da coisa, e a hipoteca e penhor, com finalidade
precípua de servir de garantia a negócios jurídicos, importantes auxiliares do direito
obrigacional e da circulação de riquezas.
Outros perderam totalmente a atualidade. O curso da história e as
transformações sociais tornaram-nos obsoletos, como a enfiteuse, quando não
meras velharias jurídicas, como a anticrese, ainda mantida no Código em vigor,
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geralmente trazidas à baila somente quando há necessidade de exemplificar e
comparar o mecanismo de outros institutos.
No entanto, todos eles apresentaram sua utilidade em determinado
momento histórico. Nunca é demais lembrar que o estudo do direito nunca se
desvincula da História. Por vezes, um instituto dormente há séculos, em total
desuso, tem seus princípios reavivados para estruturar novos institutos, que nada
mais fazem do que arejar antigos postulados da tradição romana. Destarte, não se
pode afirmar na ciência jurídica que existem institutos do direito positivo, ou do
passado, que não possam ser rejuvenescidos por novas necessidades sociais.
Lembre-se, a propósito, dos princípios que regem a alienação fiduciária em garantia
entre nós, regida pelo Decreto-lei nº 911/69, e recepcionada pelo vigente Código,
que se utiliza de princípios da antiga fidúcia romana.
Do ponto de vista utilitarista de que se reveste o clamor da vida moderna,
para o profissional e para o estudante, não há sentido aparente no aprofundamento
doutrinário da anticrese ou das rendas constituídas sobre imóveis, por exemplo. No
entanto, ao menos o conhecimento de noções fundamentais de todos os institutos,
qualquer que seja a disciplina jurídica, é útil também para fins meramente
imediatistas, porque o profissional terá maior facilidade em resolver problemas
práticos na miríade de situações concretas com que se defronta. Assim, terá
melhores instrumentos de raciocínio sobre toda a ciência jurídica, particularizando a
compreensão se necessário e buscando com frequência analogia em soluções
preconizadas por institutos aparentemente em desuso. Tal se dá também, podemos
recordar, na Medicina, em que por vezes novas e desconhecidas moléstias
encontram soluções em singelas doenças do passado, que se acreditavam
desaparecidas. Tal como nas demais ciências, e as ciências sociais não são
exceção, o conhecimento dos meandros da disciplina nunca são inúteis. É evidente,
no entanto, que institutos em desuso não devem merecer o mesmo aprofundamento
teórico de problemas latentes, do dia a dia das questões do foro. Aliás, os
repertórios de jurisprudência, que refletem a repetição mais ou menos intensa das
lides levadas aos tribunais, traduzem a ênfase que deve ser dada a determinadas
disciplinas, em detrimento de outras. Nunca se olvidará que o realce da atualidade
poderá perder valor axiológico no futuro, e vice-versa.
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A enfiteuse, por exemplo, cumpriu seu papel de adequação social no
passado, não justificando mais sua manutenção como direito positivo, tanto que não
foi contemplada pelo vigente Código. Nada, porém, pode assegurar-nos que novas
exigências sociais façam ressurgir sua necessidade no futuro, assim como a
anticrese e as rendas constituídas sobre imóveis. Velhos e novos problemas nas
ciências sociais, e o Direito é ciência social e humanista por excelência, transmitem
tão-só a noção de tempo e espaço ao estudioso. Por isso, requer-se do julgador
atualidade no tempo que julga e presença efetiva no espaço onde aplica o Direito,
ambos aspectos que apresentam situações fáticas mutantes essencialmente
dinâmicas, em face da evolução muito rápida dos padrões sociais e econômicos
atualmente. Decisão desvinculada do tempo e do espaço deixa de lado um dos
aspectos importantes da aplicação tridimensional do direito. No exame do fato social,
levam-se em conta esses aspectos, sob pena de prejudicar os outros dois pontos da
trilogia, o valor e a norma.
Sob a epígrafe Direitos Reais sobre Coisas Alheias, o Código Civil, do qual
não se afasta o mais recente ordenamento, trata de duas categorias de direitos
sobre coisa alheia: de gozo ou fruição e de garantia.
Os direitos de fruição ou gozo permitem a utilização da coisa de forma
semelhante ao proprietário pleno, com maior ou menor espectro. São a enfiteuse, as
servidões prediais, o usufruto, o uso, a habitação e as rendas constituídas sobre
imóveis. A esses podemos acrescentar o direito do promitente comprador, como
menciona o Código.
São direitos de garantia aqueles que vinculam a coisa a uma relação
obrigacional: o penhor, a anticrese e a hipoteca. A estes acrescentamos a alienação
fiduciária em garantia, disciplinada pelo mercado de capitais e admitida pelo Código
de 2002. A anticrese também permite a fruição da coisa, embora seja
essencialmente de garantia.
O art. 1.226 reporta-se aos direitos reais sobre coisas móveis, referindo-se
ao princípio pelo qual estes somente se adquirem pela tradição, quando constituídos
ou transmitidos por ato entre vivos. O princípio da saisine na transmissão causa
mortis independe da tradição dada à modalidade especial fixada na lei. O artigo
reporta-se ao princípio geral em nosso direito que estipula que as coisas móveis não
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se transmitem pelos contratos antes da tradição (art. 1.226), salvo quando ocorrer o
constituto possessório e as hipóteses analisadas do art. 1.267, parágrafo único, do
vigente Código.
O art. 1.227 reitera o princípio da inscrição imobiliária para constituição ou
transmissão de imóveis também no tocante ao negócio entre vivos. O sistema
apresenta, contudo, algumas exceções: o usufruto decorrente do direito de família,
por exemplo, independe de registro (art. 1.391).
Os direitos reais limitados conservam-se no imóvel independentemente de
sua transmissão. Acompanham o domínio, assim como os impostos, salvo aqueles
comprovadamente pagos até o ato da transmissão. Nesse sentido o art. 677 do
antigo Código:
Os direitos reais passam com o imóvel para o domínio do adquirente. Parágrafo único. O ônus dos impostos sobre prédios transmite-se aos adquirentes, salvo constando da escritura as certidões do recebimento, pelo fisco, dos impostos devidos e, em caso de venda em praça, até o equivalente do preço da arrematação.
A regra decorre da natureza de cada direito real sobre coisa alheia. Verifica-
se, portanto, que, na hipótese de arrematação em praça, o Fisco continuará
impondo o mesmo ônus ao imóvel adquirido, cabendo ao arrematante assumir o
encargo de liquidar impostos, que também são obrigação propter rem.
A alienação de imóvel sob hipoteca, pois, em nada prejudica o credor
hipotecário, cuja garantia permanece incidindo sobre o imóvel.
Os direitos reais, denominados sobre coisas alheias pela doutrina
tradicional, não modificam a natureza do domínio. Estabelecem natureza diversa de
grau em seu exercício. Dois ou mais titulares exercem concomitantemente poderes
inerentes à propriedade em graus jurídicos diversos.
Admite-se que os direitos graduados sejam atribuídos a mais de dois
titulares: o enfiteuta pode hipotecar o imóvel aforado, por exemplo. Se o credor
hipotecário adquire o bem enfitêutico, substitui o transmitente em seu grau,
diversamente das limitações impostas pela vizinhança, em que inexiste graduação
no exercício sobre a coisa pelo mesmo titular, que é pleno, mas há restrição sobre o
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exercício do direito sobre a coisa, decorrente do fato da vizinhança. Nos direitos
reais limitados, existem restrições jurídicas no próprio conceito de domínio, no
exercício da propriedade. Nas restrições decorrentes da vizinhança, estas são de
ordem material, podendo decorrer expressa ou tacitamente do ordenamento. No
dizer de Pontes de Miranda (1971, Tratado, v. 18:7), “todos os direitos reais limitados
têm limites de conteúdo interiores ao conteúdo do direito de domínio; por isso são
limitados”. É possível afirmar nesse contexto que os direitos reais limitados
restringem internamente o domínio. Essas restrições podem desaparecer num dado
momento, fazendo emergir o domínio pleno. Nas restrições de vizinhança, existem
limites externos ao exercício da propriedade. No entanto, especificamente nas
servidões, o aspecto material da restrição imposta ao prédio muito se aproximará da
limitação de vizinhança.
Nos direitos reais limitados, subtraem-se um ou alguns dos poderes
inerentes ao domínio em prol de outro titular, como ocorre entre nu-proprietário e
usufrutuário, por exemplo. O domínio, porém, não se reparte. Cada titular o exerce
em grau jurídico diverso, diferentemente, pois, do que sucede no condomínio, no
qual o exercício do domínio é horizontal, isto é, coloca-se no mesmo grau. Os
condôminos exercem concomitantemente todos os poderes de proprietário. Nos
direitos limitados, os titulares exercem simultaneamente poderes específicos e
diversos inerentes à propriedade. Em consequência disso, por mais que os direitos
reais limitados subtraiam poderes do domínio de um titular em favor de outro, como
ocorre na situação mais ampla que é da enfiteuse, o domínio não desaparece e
permanece único.
A diferenciação de graus no exercício do domínio sucede tanto nos imóveis
como nos móveis. Há também direitos reais limitados sobre bens incorpóreos, como
o usufruto de crédito ou cauções de títulos de crédito.
Cada direito real limitado pode ter forma específica de extinção. Todos eles
permitem a renúncia pelo titular, desde que não prejudiquem terceiros. O credor
hipotecário não pode renunciar à hipoteca em prejuízo de seus credores. O mútuo
consentimento, como regra geral, também permite a extinção de grau no direito
limitado. De forma geral, extinguem-se os direitos reais limitados pelas modalidades
de perda da propriedade e extinção de direitos em geral.
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2 DIREITO DE SUPERFÍCIE. NOÇÃO HISTÓRICA. CONCEITO E COMPREENSÃO
O direito real de superfície constitui instrumento importante para a proteção
e o exercício da função social da propriedade, conforme nossos princípios
constitucionais.
Segundo a maioria da doutrina contemporânea, o direito de superfície
substitui com vantagem o regime de enfiteuse, com o qual não se confunde.
Diferentemente da enfiteuse, a superfície é instituto de origem exclusivamente
romana, cuja primeira manifestação é obscura. No direito romano clássico, tudo que
se agregava ao solo passaria ao domínio do proprietário (superfícies solo cedit), o
que impediria uma propriedade desvinculada do solo. No ius civile o direito de
superfície desenvolveu-se como um direito pessoal, sob a forma de arrendamento.
Sob as vestes mais modernas, esse instituto pode ter decorrido da necessidade
prática de se permitir a construção em solo alheio, principalmente sobre bens
públicos. Os pretores permitiam que comerciantes instalassem tabernas sobre as
ruas, permanecendo o solo em poder do Estado. Esse direito fica mais claro quando
os pretores passam a conceder ação de proteção a essas situações, primeiramente
o interdictum de superficiebus e, posteriormente, a actio superficie (Frederico
Henrique Viegas de Lima, O direito de superfície como instrumento de planificação
urbana. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar; 2005:4).
Entre particulares, o instituto estabelecia-se por contrato. É consagrado
como direito real em coisa alheia na época clássica. Permitia-se a plena atribuição
do direito de superfície a quem, sob certas condições, construísse em terreno alheio.
Assim, passou-se a permitir que o construtor tivesse obra separada do solo. No
entanto, sob o ponto de vista romano, o direito de superfície somente era atribuído a
construções, não se aplicando às plantações em terreno alheio. O instituto não foi
introduzido no Código Civil francês, pois era visto então como forma de manutenção
da propriedade feudal.
Originalmente, o revogado Código Civil português, assim como o Código
francês, também não reconheceram o direito de superfície, que somente foi
introduzido na legislação lusitana por uma lei de 1948. No ordenamento português
atual, uma vez abolida a enfiteuse, o Código Civil lusitano conceitua a superfície
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como “faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra
em terreno alheio, ou nele fazer ou manter plantações” (art. 1.542). Trata-se, no
dizer de Oliveira Ascensão (Direito civil: reais. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora,
1987:459), “do direito de ter a coisa incorporada em terreno alheio. Pode ter como
contrapartida uma prestação única, ou prestação anual, perpétua ou temporária”.
Pouco a pouco, em época moderna, o direito de superfície foi ganhando
espaço em várias legislações como instrumento de política urbanística.
O objetivo é mais amplo do que na enfiteuse, permitindo melhor utilização da
coisa. O proprietário do solo mantém a substância da coisa, pertencendo-lhe o solo,
no qual pode ter interesse de exploração ou utilização do que dele for retirado. Tem
esse proprietário, denominado fundeiro, a fruição do solo e do próprio terreno
enquanto não iniciada a obra ou plantação pelo direito lusitano. O superficiário tem
direito de construir ou plantar. O fundeiro tem também a expectativa de receber a
coisa com a obra, se o instituto é estabelecido na modalidade temporária. Comenta
o autor de além-mar Augusto Penha Gonçalves sobre a importância prática do
instituto,
muito particularmente como instrumento técnico-jurídico propulsor do fomento da construção, tão necessário, sobretudo, nos grandes centros populacionais, onde a carência habitacional alimenta, em boa parte dos que neles vivem, uma das angústias do seu quotidiano (.....1993:423).
O superficiário assume a posse direta da coisa, cabendo ao proprietário a
posse indireta. O proprietário não pode turbar a posse do superficiário. Alguns
aspectos marcantes podem ser destacados nesse instituto, que é altamente
complexo:
(a) há um direito de propriedade do solo, que é direito que necessariamente
pertence ao fundeiro;
(b) há o direito de plantar ou edificar, o direito de implante; e
(c) há o direito ao cânon, ou pagamento, se a concessão for onerosa. Após
implantada, há que se destacar a propriedade da obra, que cabe ao superficiário; a
expectativa de aquisição pelo fundeiro e o direito de preferência atribuído ao
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proprietário ou ao superficiário, na hipótese de alienação dos respectivos direitos
(Ascenção, ob.cit., p.466). Esses aspectos serão analisados a seguir.
Como mencionamos, o Código Civil de 2002 aboliu novas enfiteuses,
introduzindo o direito de superfície gratuito ou oneroso (arts. 1.369 a 1.377),
estabelecendo, no entanto, obrigatoriamente o prazo determinado. É vedada no
nosso ordenamento a modalidade perpétua. Não se confunde o prazo indeterminado
com a perpetuidade, que entre nós ficou proibida. Cuida-se também de direito real
limitado sobre coisa alheia, que apresenta inegáveis vantagens sobre a enfiteuse,
embora com muita analogia com esta. Costuma-se apontar as cadeiras cativas em
estádios de futebol e os camarotes dessa natureza em teatros como exemplo desse
fenômeno. Permite a lei mais recente, da mesma forma, que o proprietário atribua a
alguém a conservação de seu imóvel, por determinado prazo, mais ou menos longo,
sem que o proprietário tenha o encargo de explorá-lo pessoalmente ou mantenha ali
constante vigilância contra a cupidez de terceiros. Nesse aspecto se aproxima muito
da finalidade originária da enfiteuse.
Dispõe o art. 1.369:
O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.
Trata-se, como menciona a lei, de uma concessão que o proprietário faz a
outrem, para que se utilize de sua propriedade, tanto para construir como para
plantar. O direito de superfície depende de escritura pública para possibilitar o
registro imobiliário. O Código Civil de 2002 se refere apenas ao direito de o
superficiário construir ou plantar, não mencionando o direito correlato, mencionado
pelo Código português, qual seja, o de manter no local as plantações ou construções
já existentes. Parece ser inafastável também essa possibilidade em nosso direito,
por participar da natureza do instituto, não havendo razão para a restrição, embora
essa opinião não seja imune a dúvidas. Desempenha importante função social não
só quem constrói e planta, mas também quem mantém plantações ou construções já
existentes no terreno de outrem. Veja, por exemplo, a situação de um prédio
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inacabado ou abandonado que o superficiário se propõe a terminar ou manter.
Trata-se do que a doutrina lusitana denomina direito de sobre-elevação, que não
contraria nossa legislação. Nesse sentido se coloca também o Estatuto da Cidade,
que citaremos a seguir. Essa lei dispõe que o direito concedido é para o superficiário
utilizar o solo, subsolo ou espaço aéreo, de forma geral. No direito italiano também
se admitem as duas modalidades de concessão, para manter uma construção
existente ou para a edificação de construção nova. O já esquecido Projeto nº
6.960/2002, atendendo a esses aspectos, apresentou redação nova a esse
dispositivo que menciona igualmente o direito de o concessionário executar
benfeitorias em edificação, também se referindo à utilização do solo, subsolo e ao
espaço aéreo, na forma estabelecida em contrato e obedecida a legislação
urbanística.
Dá-se o nome de implante à obra ou plantação que decorre do direito de
superfície, como já referimos.
O contrato que lhe dá origem somente gera efeitos pessoais entre as partes.
A eficácia de direito real somente é obtida com o registro imobiliário. Nossa lei
também deveria ter aberto possibilidade de o testamento instituir a concessão, como
faz o Código português. Como não o fez expressamente, o testamento pode impor
ao legatário ou ao herdeiro a obrigação de constituir o direito de superfície em favor
de alguém. Nosso Código também não se refere à possibilidade de aquisição do
direito de superfície por usucapião, que poderia dar margem a infindáveis confusões,
pois a disposição nesse sentido é criticada no direito português.
A contratação do direito de superfície se destina, em princípio, a obras
permanentes, não sendo instituto destinado a obras transitórias ou provisórias.
Como regra geral, em princípio, o superficiário não pode se utilizar do
subsolo em nosso sistema do Código Civil, salvo se essa utilização for inerente ao
próprio negócio, como, por exemplo, a exploração de argila para fabricar tijolos. É
conveniente que os interessados sejam claros no pacto a esse respeito. Como
vimos, a alteração proposta pelo Projeto nº 6.960 ao art. 1.369 refere-se
expressamente à utilização do subsolo e do espaço aéreo.
O art. 1.377 menciona que o direito de superfície, constituído por pessoa
jurídica de direito público interno, rege-se pelo Código, no que não for diversamente
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disciplinado em lei especial. Lembre-se de que, originalmente, em época mais
recente, o direito de superfície é derivado do direito administrativo, tendo sido
absorvido pelo direito privado.
Como exemplo claro do instituto da superfície, recorde-se as cadeiras
cativas nos estádios, camarotes cativos em teatros, ancoradouros privados
(marinas) etc., cuja forma de exercício de direito real apresenta seus princípios.
Para a instituição de direito de superfície em imóvel pertencente a mais de
uma pessoa, será necessária a aquiescência de todos os condôminos, nos termos do
art. 1.314, parágrafo único, do Código Civil. Nada impede, também, em princípio, que
imóvel hipotecado seja dado em superfície. O credor hipotecário poderá se opor se a
situação lhe acarretar prejuízo, como a diminuição de sua garantia.
O superficiário pode também estabelecer servidões para facilitar o uso da
construção e do imóvel.
3 DIREITO DE SUPERFÍCIE NO ESTATUTO DA CIDADE. COTEJO COM O CÓDIGO CIVIL
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, atravessou o Código Civil, pois
são leis da mesma época, porque também disciplina o direito de superfície, nos arts.
21 a 23. Essa situação de conflito de normas obriga o intérprete a definir a
aplicabilidade de ambos diplomas legais sobre a mesma matéria. Esse Estatuto
entrou em vigor noventa dias após sua publicação, portanto antes do vigente Código
Civil. É de se perguntar se, no conflito de normas, o presente Código, como lei
posterior, derroga os princípios do Estatuto. Se levarmos em conta a opinião aqui
tantas vezes defendida de que o Estatuto da Cidade institui um microssistema, uma
lei de natureza especial, tal como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do
Inquilinato, portanto, sob essa óptica, o Estatuto vigorará sobranceiro no seu alcance
de atuação, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores. A matéria, no
entanto, é polêmica, e longe está da unanimidade. O desleixado legislador, para
dizer o mínimo, poderia ter facilmente dado uma diretriz única e não o fez.
Inconcebível que temas idênticos como usucapião e superfície estejam presentes
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em dois diplomas legais paralelos, sem necessidade de tratamento legislativo
distinto.
De qualquer forma, como sua própria autodenominação, o Estatuto da
Cidade dirige-se exclusivamente aos imóveis urbanos com política específica.
Dentro dessa perspectiva, deve-se adequar o direito de superfície a seu exercício. A edificação que se pretenda realizar tem que estar ajustada às determinações dos plenos urbanísticos e às demais normas vigentes para sua área (LIMA, ob. cit., p. 195).
O Código Civil de 2002 se aplicará sem rebuços aos imóveis rurais e aos
imóveis urbanos onde não houver plano urbanístico. O Estatuto da Cidade possibilita
o direito de superfície como um dos instrumentos gerais de política urbana,
juntamente com a concessão de direito real de uso e a transferência do direito de
construir. Não se confunde esse direito de superfície descrito no Estatuto da Cidade
e no Código Civil com a concessão de uso da superfície, instrumento também de
direito urbanístico, na seara do direito público, embora ambos guardem
semelhanças.
Inobstante, o instituto da superfície descrito no estatuto possui, em princípio,
a mesma compreensão dada pelo Código Civil, apresentando, porém, algumas
poucas nuanças diversas.
Assim dispõe o art. 21:
O proprietário poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis. § 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística. § 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
Note que nessa lei o direito de superfície pode ser concedido por prazo
determinado ou indeterminado. O Código Civil em vigor expressamente só admite o
prazo determinado. A admissão do prazo indeterminado é inconveniente, mormente
porque o Estatuto não disciplina o prazo razoável de resilição. Assim, nesse aspecto,
temos dois tratamentos diversos para o mesmo instituto em nosso ordenamento. De
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qualquer forma, quando o direito de superfície for concedido por prazo
indeterminado, devem as partes se acautelar prevendo um prazo razoável para a
denúncia vazia. Se não o fizerem, haverá querela a ser dirimida pelo Judiciário, que
deverá levar em conta o art. 473, parágrafo único do presente Código. Veja o que
falamos a esse respeito na obra dedicada à teoria geral dos contratos. Aduz
Caramuru Afonso Francisco que, nesse caso de denúncia imotivada, o superficiário
terá direito à retenção por benfeitorias e acessões até a satisfação da indenização,
salvo se se tratar de hipótese de descumprimento contratual (Estatuto da cidade
comentado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001:178). Conveniente será, portanto,
que no instrumento negocial as partes já acordem sobre o destino das benfeitorias e
construções.
Perante o silêncio da lei, as partes devem estabelecer prazo para o término
da edificação. Não havendo prazo para que definir inadimplemento, o superficiário
deve ser constituído em mora.
Outra particularidade na dicção legal do Estatuto é a menção de que o
direito de superfície abrange o direito de usar o solo, o subsolo e o espaço aéreo. Se
não há dúvidas a respeito da utilização do solo e do espaço aéreo no vigente
Código, este restringe o uso de obra no subsolo, “salvo se for inerente ao objeto da
concessão” (art. 1.369, parágrafo único). Em qualquer situação, no entanto, deve ser
analisado se a utilização do subsolo é essencial ao direito de superfície que foi
constituído, mesmo porque, pela própria denominação do instituto, a utilização deve
ser da superfície do solo. É claro que as fundações para a edificação devem ser
consideradas necessárias para o exercício do direito. Da mesma forma, se foi
contratada a construção de garagens ou pavimentos no subsolo, essa utilização
deve ser admitida.
O art. 1.371 do Código afirma que o superficiário responderá por encargos e
tributos que incidirem sobre a propriedade fiduciária. O Estatuto da Cidade vai mais
adiante, pois além de estipular essa responsabilidade tributária no art. 21, § 3º,
acrescenta que o superficiário arcará, ainda, “proporcionalmente à sua parcela de
ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do
direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo”. Essa
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mesma disposição foi sugerida pelo falecido Projeto nº 6.960/2002 para estar
presente no Código Civil.
4 DIREITOS DAS PARTES. PAGAMENTO. TRANSMISSÃO DO DIREITO. PREFERÊNCIA
O contrato que institui a superfície pode ser gratuito ou oneroso. Na dúvida,
há de se presumir a onerosidade, pois se trata de cessão de parcela importante da
propriedade. O pagamento poderá ser feito de uma só vez ou parceladamente (art.
1.370). O dispositivo não indica qual a periodicidade do pagamento. Quando o
pagamento é parcelado, quanto maior a frequência de periodicidade, mais se
aproximará do arrendamento e mais se afastará da enfiteuse. Esse pagamento é
denominado “cânon superficiário”. O Código português é expresso no sentido de o
pagamento poder ocorrer em uma única prestação ou de forma anual.
A falta de pagamento pode dar margem à ação de cobrança e de extinção
da concessão, por infração contratual.
O art. 1.372 (Estatuto da Cidade, art. 21, §§ 4º e 5º) dispõe que o direito de
superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus
herdeiros. O contrato não pode obstar a sucessão causa mortis, tendo em vista a
natureza do instituto. Para evitar abusos que certamente ocorreriam, na sucessão
entre vivos não poderá ser estipulado, pelo proprietário, qualquer pagamento pela
transferência (art. 1.372, parágrafo único). Essa proibição não é mencionada no
Estatuto da Cidade e pode dar margem à interpretação que não se aplica às
concessões de superfície urbana. A nosso ver, essa restrição deve permanecer em
qualquer caso, pois o Código Civil deve ser empregado supletivamente no que for
omissa a lei especial.
Caso exista a alienação, tanto da superfície, como da propriedade do solo, o superficiário e o concedente não têm que pedir autorização um ao outro, senão que esta deve ser precedida do oferecimento a ambas as partes, que tem direito de preempção de direito civil, conhecida de aquisição preferente, contido no Estatuto da Cidade. Por esta prescrição, as partes devem exercer seu direito de prelação (LIMA, ob. cit., p. 218).
Esse direito de preferência está expresso no art. 1.373 do Código Civil.
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O título constitutivo pode, contudo, proibir a cessão a terceiros por ato entre
vivos, dentro da autonomia de vontade das partes.
Ao estatuir a preempção ou preferência nesse instituto, traduz-se tendência
natural de extinção de direito real sobre coisa alheia, tornando propriedade plena.
No primeiro caso, terá preferência o superficiário e, no segundo, o proprietário, em
igualdade de condições com terceiros. A finalidade desse direito de preempção é
consolidar a propriedade em um único titular, quando possível. O Código não
disciplina no capítulo específico a forma pela qual deve ser dada a preferência. O
proprietário ou superficiário deve tomar conhecimento da proposta respectiva para
poder exercer sua preferência tanto por tanto. A preempção é regulada, no Código,
nos arts. 513 ss. O art. 517 se refere ao prazo de 60 dias para os imóveis, para o
exercício da prelação, após a notificação. Quando não for concedido esse direito de
preferência, responderá aquele que deixou de concedê-la por perdas e danos,
respondendo também, solidariamente o adquirente, se tiver agido de má-fé (art.
518). Não existe a possibilidade de o preterido na preempção depositar o preço e
haver para si a coisa, como autoriza a lei do inquilinato. Não existe na lei nada que
autorize a conclusão que o direito de preferência na superfície seja de natureza real.
5 EXTINÇÃO
Além das causas comuns de extinção, como, por exemplo, o
desaparecimento da coisa, há que se analisar as situações específicas que afetam a
concessão da superfície.
A falta de pagamento do cânon é motivo de rescisão, levando-se em conta o
que estiver estabelecido no contrato. Há que se verificar se é dado ao superficiário
purgar a mora. A resposta, como regra geral, deve ser afirmativa. A discussão se
transfere para até que momento pode a mora ser purgada.
Estabelecido por prazo determinado, o advento do termo final extingue o
direito. Veja o que falamos acima sobre a modalidade de prazo indeterminado
possibilitada pelo Estatuto da Cidade. Questão que logo se planta no pacto
estabelecido por prazo determinado é se o instituto se prorroga por prazo
indeterminado se as partes não se manifestam no final e se, também, a situação de
Sílvio de Salvo Venosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
129
superfície se mantém inalterada. A questão é importante mormente no tocante a
terceiros adquirentes e ao direito de preferência. A melhor solução é entender que
no silêncio das partes o contrato passa a vigorar por prazo indeterminado, assim
como o direito real. O caráter de permanência dos direitos reais não permite outra
solução. Assim, haverá necessidade de notificação para a extinção do negócio, com
prazo razoável, segundo as circunstâncias, conforme expusemos. Incumbe às partes
que sejam cuidadosas na redação das cláusulas. Enquanto não cancelado o registro
imobiliário, o instituto prossegue gerando efeitos erga omnes. O art. 24, § 2º, do
Estatuto da Cidade, dispõe que a extinção do direito de superfície será averbada no
cartório de registro de imóveis. Essa extinção também pode decorrer de sentença
em processo no qual a matéria é discutida.
O direito de superfície também pode ser extinto por infração às cláusulas
contratuais. O art. 1.374 menciona que “antes do termo final, resolver-se-á a
concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela que foi
concedida”. A mesma regra está presente no Estatuto da Cidade (art. 24, § 1º). Não
é a única possibilidade, porém, de denúncia motivada. A superfície pode ser
rescindida igualmente, por exemplo, se o imóvel é deixado em estado de abandono,
permitindo o superficiário sua deterioração ou se o superficiário não edifica ou planta
o que prometeu. Outras infrações contratuais podem ocorrer, cujo exame da
gravidade dependerá do caso concreto. O Estatuto da Cidade menciona
expressamente que o direito de superfície extingue-se pelo advento do termo e “pelo
descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário”. Apesar
de ser um direito real, a concessão será sempre regida pela dicção contratual.
Levando em conta esse aspecto, o Projeto nº 6.960/2002 pretendeu acrescentar no
art. 1.374 que a resolução da superfície se dará, além da hipótese de destinação
diversa pelo superficiário, também pelo descumprimento contratual.
Uma vez extinta a concessão superficiária, o proprietário readquirirá a
propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de
indenização, salvo se as partes não tiverem estipulado o contrário (art. 1.375,
Estatuto da Cidade, art. 24). A presença do superficiário ou de seus prepostos ou
familiares no imóvel, após extinta a concessão, caracteriza posse injusta, que
autoriza a reintegração de posse.
Direitos reais...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
130
Ocorrendo desapropriação do imóvel concedido em superfície, a
indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente ao
direito real de cada um (art. 1.376). Se as obras e benfeitorias pertencerem
integralmente ao superficiário, a ele caberá seu respectivo valor.
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
131
FRANCHISING JUDICIAL OU DE COMO A MAGISTRATURA
PERDEU A DIGNIDADE POR SEU TRABALHO, VIVO?
FRANCHISING LAW OR HOW THE JUDICIARY LOST DIGNITY FOR THEIR WORK, LIVE?
“E você ainda acredita Que é um doutor Padre ou policial Que está
contribuindo Com sua parte Para o nosso belo Quadro social...” Raul
Seixas.
Alexandre Morais da Rosa1
1. Para iniciar nosso debate farei uma indagação simples, até ingênua, partindo
de um exemplo. Consta na Wikipédia que: “Havainas é uma marca brasileira de chinelos
de borracha produzidas pela São Paulo Alpargatas, uma empresa do Grupo Camargo
Corrêa. A marca, que possui participação de 80% no mercado brasileiro de chinelos de
borracha, comercializa cerca de 162 milhões de sandálias anualmente, dos quais 10%
para mais de 80 países dos cinco continentes, podendo ser encontrada em mais de 200
mil pontos de venda. As exportações chegam a 22 milhões de pares (somente nos
Estados Unidos está presente em 1.700 pontos de venda). A cada três brasileiros, dois
em média consomem um par de “Havaianas” por ano. As vendas da sandália de
borracha Havaianas, produto de sucesso da Alpargatas, já representam metade do
faturamento da companhia, que no ano passado foi de R$ 1,6 bilhão. O investimento em
marketing da marca, de 12% a 13% do faturamento, tem mantido a Havaianas em
trajetória de crescimento. O percurso para a sandália ganhar status de marca fashion foi
longo. Ele começou a ser traçado em 1994, quando a marca estava em crise, com
queda de vendas. A empresa reagiu e lançou, com uma grande campanha de
1 Realizou estágio de pós-doutoramento em Direito pela Faculdade de Direito de Coimbra e
UNISINOS. Doutor em Direito (UFPR). Juiz de Direito. Professor do Programa de Graduação e
Mestrado da UFSC. E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/
4049394828751754.
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
132
marketing, a Havainas Top, um novo modelo de sandálias de uma única cor. De 1994 a
2000 o produto foi aos poucos “sofisticado” pela empresa em campanhas e em muitos
lançamentos. Foi quando modelos e celebridades começaram a desfilar com a sandália
nos pés. As exportações aceleraram e a marca ganhou espaço em revistas e nas
principais vitrines de moda no mundo.”
2. Imaginemos que qualquer um de nós foi escolhido para ser Presidente da
fábrica que produz as sandálias “havaianas”. Para se chegar a tal posto, claro, não se
fez concessões “abusivas” aos direitos dos trabalhadores, mas sim aos acionistas da
empresa que “acreditaram” nas possibilidades de “Boa Governança”. Pois bem, dia
destes sentei-me ao lado de um destes “técnicos de automação” durante um voo.
Conversamos amenidades até que ele começou a falar do projeto em que estava
trabalhando, diria eu, “efusivamente”. Contou-me que a fábrica das Havaianas, em
Campina Grande, na Paraíba, era feita de maneira quase manual, com “muitos
empregados” e com um “custo de produção” muito alto. A nova fábrica que por minha
incompetência não descobri onde é, precisará de poucos trabalhadores e, assim,
diminuirá os custos da produção. A pergunta que faço é: quem de nós, na condição de
presidente, não optaria por este modelo mais eficiente? Quem não optar – e na verdade
não há opção – perderá o emprego. Isto me fez lembrar o fato de dia destes, também,
fui ao Banco depositar uns cheques e aproveitei para dar um olá para o gerente de
minha conta. Conversamos banalidades e entreguei os cheques – os juristas diriam
cártulas. Qual não foi a minha surpresa quando ele disse que já voltaria. Levantou-se e
foi fazer o depósito no caixa eletrônico, entregando-me o comprovante de depósito.
Perguntei-lhe o motivo e ele, sem peias, disse-me: estás vendo a caixa do banco.
Respondi que sim. Continuou: entre as minhas metas está o aumento dos depósitos no
caixa eletrônico. Se eu não cumprir as metas, perco o emprego. Se eu cumprir as
metas, ela perde. Entendeu?, perguntou ele. Disse: perfeitamente.
3. Este dois exemplos do cotidiano podem, quem sabe, apresentar uma das
chaves do que se passa no contexto brasileiro não só no “trabalho objetivado”, mas
também sobre a impossibilidade econômica do “trabalho vivo” no contexto do
pensamento único neoliberal. A par disto, também, cabe refletir sobre o que se passa
nos últimos anos no campo da Administração Pública e, especialmente, no Poder
Judiciário. Dito diretamente: é preciso entender que o Poder Judiciário deixou de ocupar
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
133
um lugar de “instituição” para se postar como uma mera “empresa” encarregada da
solução de conflitos ao menor “custo coletivo”, atendendo a uma lógica pragmática do
custo-benefício.
4. Jean Pierre Lebrun aponta que “instituir” significa um lugar de exceção, de
primeira vez, de alguma noção de hierarquia que não se perde em consensos
horizontais habermasianos, enfim, um lugar de comando no qual a diferença dos lugares
promova um certo respeito pelo dito. Não se trata, claro, de resgatar a legitimidade do
lugar autoritário, nem muito menos aceitar a “democracia sem fricções”, onde tudo é
deliberado em uma “ética discursiva”. Isto seria desconsiderar que para além do pano
de fundo discursivo há normas constitutivas e ideológicas, jogadas no campo do político.
Entretanto, este possível lugar de Referência, anteriormente ocupado pelo Estado,
diante do desmonte neoliberal, não pode ser substituído pelo Mercado, como Davos não
cansa de dizer que é viável. Slavoj Zizek, neste sentido, adverte que na matriz Davos e
Porto Alegre se afirmaram como cidades gêmeas da anti x globalização. Enquanto
Davos promove encontros “seguros” em que as discussões eram conduzidas para o
convencimento de que a globalização é o melhor para o mundo, Porto Alegre procurava
demonstrar que a globalização neoliberal leva à morte. O que não se percebe é que a
promessa de morte fascina, sabia o velho Freud. Houve, assim, na última década, uma
transferência paulatina, inclusive das personalidades, do foro de Porto Alegre para
Davos, quando não aparições performáticas em Porto Alegre, rumo a Davos. Mais uma
vez o pensamento único prevaleceu... (Rui Cunha Martins).
5. Retomando o argumento, pode-se dizer que os “Aparelhos Ideológicos”
(Athusser) hoje são governados por práticas de gestão administrativas da eficiência,
cujo preço democrático é percebido por poucos. E os que percebem, de alguma
maneira, encontram-se coarctados na possibilidade de resistência. O sintoma disto pode
ser visto pelos inúmeros Relatórios que o Conselho Nacional de Justiça - CNJ obriga a
preencher a todo o momento. O culto pela “avaliação”, até porque não se sabe, de fato,
quais são os critérios de quem analisa, se é que analisa, ganha contornos patológicos
nesta virada de século, tudo em nome da “Boa Governança”. Cada vez mais os
magistrados são obrigados a enquadrar suas atividades em fichas técnicas de
cumprimento de obrigações conforme o Protocolo, também editado ou reiterado pelo
CNJ, com o primeiro reflexo de se jogar conforme as regras do jogo, a saber, cada vez
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
134
mais só se valoriza o que gera bônus, transformando a atividade jurisdicional em uma
verdadeira atividade de “franqueado jurisdicional”. Claro que abusos acontecem no
Poder Judiciário. Contudo, eles não podem ser o “Cavalo de Troia” da eficiência. O
resultado mais evidente é a “homogeneização” das decisões, voluntariamente ou de
maneira forçada (Súmulas, Reclamação, Recusa recursal, etc.), com a transformação
dos antigos juízes em meros gestores de unidades jurisdicionais. Aliás, quem não
cumpriu a Meta 2 do CNJ preencheu uma proposta de gestão do acervo para 2010.
6. Aldacy Rachid Coutinho, professora de Direito do Trabalho da UFPR, aponta
que dentre as diversas questões ocultas na atualidade, algumas podem e devem ser
enfrentadas. Não se pode mais fingir cinicamente que não se sabia! Passamos de um
Judiciário em que a figura do juiz era autônoma para uma “jurisdição monitorada”. Basta
perceber que os Tribunais controlam desde a quantidade de julgados até o numero de
audiências designadas, bem assim indaga o motivo de não se marcar, eventualmente,
audiências em alguns dias... Este tipo de ingerência abusiva implica na adoção
eficientista da magistratura, numa verdadeira confusão do que se configura o “trabalho”
da magistratura. A lógica, perdoem-me a possível ingenuidade, é a conversão do que
ainda restava – para usar categorias fora de moda – de “trabalho jurisdicional vivo” em
“trabalho jurisdicional objetivado”, bem demonstra Leonardo Wandelli. É impossível
continuar-se a fingir/negar/mascarar a quantidade de colegas nossos que se tornaram
dependentes químicos (fluoxitina, ritalina, cocaína, maconha, psicofármacos em geral),
com irritação desmesurada, separações, assédio moral contra servidores da Justiça e
familiares, terceirização das decisões (nunca se viu tanta dependência aos ditos
assessores)... Há uma verdadeira perda das referências simbólicas que antes
seguravam a atividade jurisdicional, podendo-se arriscar uma verdadeira “Síndrome do
Pânico Jurisdicional - SPJ”. Entenda-se por esta SPJ a verdadeira substituição da
atividade jurisdicional por um “curto-circuito” da atividade ritualizada de julgar,
transferida para decisões já-dadas, de maneira acelerada, cuja angústia dispara o
pânico. Jorge Forbes fala “da angústia própria à decisão. Não há decisão que não seja
arriscada e que não induza à perda. O mal chamado estresse nada mais é do que a
consequência do medo de decidir, que provoca o empanturramento de opções.” É que o
sujeito juiz encontra-se num dilema: se decide como deve decidir, com reflexão e
enunciação, demora mais do que o Sistema exige, e traz consigo a acusação de julgar
contra o que já está estabelecido, dando falsas esperanças....; se decide como já-está-
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
135
decidido apaga seu nome da decisão, a saber, não faz diferença quem assina, pois
qualquer um poderia assinar esta decisão (sic) sem enunciação. E uma das
características da Modernidade foi a de legar o lugar da enunciação, a saber, de alguém
pontuar do lugar do juiz, transformada hoje em dia numa verdadeira lógica de
“Franchising”, modo pelo qual a administração da Justiça, via Análise Econômica do
Direito – Law and Economics, promove um sistema de decisões judiciais fixadas, ex
ante, pelo franqueador. A licença da marca é previamente valorizada – uma decisão do
TST, do STJ ou STF, a qual implica num reconhecimento do valor da decisão no
mercado jurisdicional, sob o pálio de uma efusiva e – arrisco – canalha “eficiência”.
7. Como exemplo desta lógica homogeinizante pode-se invocar o processo
eletrônico, o qual pode ter funções democráticas, mas na lógica que está sendo
pensado servirá para dar “conforto jurisdicional ao julgador, dado que as “fórmulas”
estarão, em breve, pré-dadas pelo Franqueador e o trabalho do Juiz-Franqueado será o
de mero alimentador do Sistema, então, economicamente eficiente. A resistência de
alguns setores da magistratura é tida como de gente ultrapassada, conservadora,
quando, na verdade, é gente que procura demonstrar que não quer ser um franqueado.
Contudo, estes resistentes, estão perdendo a batalha em nome da “segurança jurídica”
e diminuição do “custo país”.
8. Com isto, em breve, da velha tarefa de julgar sobrarão apenas lembranças
nostálgicas? O ambiente democrático que permeava o Poder Judiciário é tomado por
um totalitarismo em que, diante da “burocratização eficiente” da atividade, pouca
democracia se poderá buscar (Marco Marrafon). O tempo de um magistrado cada vez
mais será tomado pelo preenchimento de infinitos relatórios de gestão, sistemas de
monitoramento, coerções de uniformidade, e a consequência é que não restará,
parafraseando Lebrun, nem tempo, nem espaço, e sobretudo desejo para que alguns
assumam essa função, de tanto que estarão sujeitos a tarefas de controle e de gestão.
Dito diretamente: Gestão sem Jurisdição. Alguns poderão objetar que não é assim, nem
que os passos dados na história recente indicam neste sentido. Por isto vale a pena
insistir nos sintomas de tal caminhar, lembrando-se sempre que os modelos totalitários
sempre se impuseram em nome do combate à corrupção, como no golpe de 1964.
9. Mas não é só isto. Há mais. Por que o subsídio dos juízes brasileiros, após a
EC 45, é um dos maiores da América Latina? Ao pensar sobre este tema cabe a
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
136
advertência de Milton Friedman: não existe lanche grátis! Dito de maneira mais direta:
alguma coisa se esconde por detrás deste movimento, manifestamente ideológico. No
pós-Constituição de 1988 o Judiciário passou a responder com maior veemência às
demandas populares, especificamente no cumprimento das promessas da Modernidade,
na efetivação dos Direitos Fundamentais (Lenio Streck, Ingo Sarlet). Embora não tenha
sido a pretensão do próprio Poder Judiciário, no pós/88 (Werneck Vianna), a
magistratura passou a ser a alavanca de modificacões estruturais, com o aumento do
“custo país”, a saber, a atividade econômica precisava compor o “custo da produção”
com o fator Poder Judiciário, manifestado pelo binômio “previsibilidade” e “eficiência”.
Isto porque houve uma postura de parcela significativa da magistratura no sentido da
Justiça Social.
10. Cabe marcar que o “Princípio da Eficiência” produziu um câmbio
epistemológico do Direito, tornando a forma de pensar a partir de meios, reproduzindo
vítimas. Claro. Vítimas de um modelo de Estado do Bem-Estar Social não realizado e
que se encontra, paradoxalmente, em desconstrução. Dito de outra maneira, o Estado
Social é imaginariamente desfeito sem nunca ter sido, efetivamente, erguido. Trata-se
da destruição de ruínas-sociais. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta: “Neste
quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência,
principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta,
a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios.” O discurso neoliberal
promove, assim, uma “despolitização da economia”, como argumenta Zizek, abrindo
espaço para que o significante da eficiência penetre no jurídico como sendo a nova
onda redentora, verdadeiro “grau zero” (Barthes) da releitura do Direito. A economia
acaba se tornando algo praticamente sagrado da “Nova Ordem Mundial”, sem que se
possa fazer barreira pelo e no Direito (Avelãs Nunes). A eficiência inserida no caput do
art. 37 da Constituição da República, percebida desde o ponto de vista de Pareto,
Coase ou Posner, passa a ser o critério pelo qual as decisões judiciais devem,
necessariamente, submeter-se. Não se trata mais de num cotejo entre campos –
econômico e jurídico –, mas na prevalência irrestrita da relação custo-benefício. Este
discurso maniqueísta entre eficientes de um lado e ineficientes de outro, seduz aos
incautos de sempre, os quais olham, mas não conseguem perceber o que se passa. A
questão é mostrar que este é um falso dilema, adubado ideologicamente (Julio Cesar
Marcellino Jr). Sair deste quadro de ideias colonizadas é tarefa individual. Faz-se ao
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
137
preço de um estudo sério que não se apazigua com frases feitas emitidas pelo senso
comum teórico (Warat) e vendidas no mercado de decisões judiciais. Até porque as
utopias da Modernidade não geram mais o engajamento de justificar uma razão para
morrer. Um fim último, perdido no mercado das pequenas satisfações pulsionais diárias,
efêmeras, cuja satisfação não implica na prometida completude. Mesmo neste quadro
parece que o engajamento se perde na preguiça e ausência de esperança de um projeto
coletivo. O individualismo hedonista, nesta quadra, no campo do Direito Estético de
hoje, esbarra no muro das lamentações, sempre. Os sonhos coletivos viraram
souvernirs, mercadorias. Camisetas de “Che Guevara” sem que saiba quem é, ou o que
representou... são um exemplo limítrofe.
11. Com efeito, a resposta ao questionamento, já antevista no Documento 319
do Banco Mundial, passava por Reformas pontuais e silenciosas (Gerivaldo Neiva). Não
sem razão a publicação da FGV e do Ministério da Justiça (I Prêmio Innovare) sobre o
Judiciário chama-se: A Reforma Silenciosa da Justiça. Antônio Gramsci apontava que a
cooptação dos intelectuais pelo Sistema Hegemônico era uma das estratégias de poder
utilizadas para domesticar o pensamento crítico. A atualidade desta categoria se
manifesta na maneira pela qual as decisões no âmbito do Poder Judiciário brasileiro se
apresentam. O cotejo do Documento n. 319 do BID, dentre outros, aliada a frase de
Milton Friedman de que o Direito é por demais importante para ficar nas mãos dos
juristas bem demonstra a pretensão de pensamento único, neoliberal, em que o Poder
Judiciário é metaforizado como uma grande orquestra, a saber, por um maestro (STF),
com músicos espalhados nos diversos “instrumentos”. Estes músicos, ainda que
arregimentados, eventualmente, por sua capacidade técnica e de reflexão, ficam
obrigados a tocar conforme indicado pelo maestro, sob pena de exclusão da “Orquestra
Única”. Não há outra para concorrer; ela é a portadora da palavra. Diz a Verdade. Ainda
que alguns dos músicos pretendam uma nota acima ou abaixo da imposta, não lhe dão
ouvidos, porque o diálogo é prejudicado. O slogam é: toque como queremos ou se
retire. A “Orquestra do Poder Judiciário” ainda está em formação e a harmonia
pretendida pelos donos do poder foi se adaptando por Emendas Constitucionais e
Reformas Legislativas. Primeiro, claro, a (in)eficiência de um Poder paquidérmico, caro,
oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir os contratos e a propriedade privada,
em nome da confiabilidade no mercado internacional. Para tanto foram articuladas
diversas técnicas: 1) Súmula vinculante: por ela o maestro (STF) pode impor,
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
138
definitivamente, a nota a ser tocada, retificando a interpretação mediante uma simples
Reclamação, podendo, ainda, responsabilizar o músico juiz faltoso; 2) Reformas
legislativas: a) abreviação do julgamento, mesmo sem o estabelecimento do
contraditório; b) Relativização da coisa julgada inconstitucional (Paolo Otero iniciou e
ganhou fôlego no Brasil), a qual quebra a ficção que se estabelece o Processo: a coisa
julgada, bem sabia Carnelutti. A ficção maior do sistema, a coisa julgada, virou, também,
flexível. Há uma reflexibilidade no ar... c) Repercussão Geral, em que se decide em
bloco os temas ditos mais relevantes; d) jurisprudência dominante (CPC, art. 557); f)
Súmula impeditiva de recurso (CPC, art. 518); g) julgamento do mérito sem processo
(CPC, art. 285-A); ..., com o toque fundamental.
12. O fundamental, neste contexto, é a aplicação das lições de Gramsci, a
saber, era preciso cooptar os atores judiciais, e a melhor maneira de assim proceder é
pagando bem. Diz o ditado popular que pagando bem mal não tem. E a sabedoria
popular, no caso, pode ser invocada, porque com ela, entende-se o motivo de o subsídio
dos magistrados ser o teto do funcionalismo. Assim, de um momento para o outro, sem
alarde, a classe dos juízes, então pertencente ao que se denominava de média, ganhou
um up-grade; passou a fazer parte da Elite que consome e, então, passa a defender
seus privilégios, os quais acabam se confundindo com os demais, ou seja, grande parte
é farinha do mesmo saco. O lanche (subsídio e auxílio moradia), pois, não foi de graça!
Pagou-se com a possibilidade do fim da Independência e da Democracia. O resultado
efetivo foi um grande “cala a boca” nos juízes que passaram, não raro, a adotar uma
postura mais complacente, sem alardes, nem contestações… de ver a banda passar
cantando coisas de amor…
13. Isto contracena com o quadro de músicos formados por, pelo menos, dois
corpos distintos. O primeiro de velhos músicos, na sua maioria acostumados e desde
antes cooptados pelo poder, sem qualquer capacidade crítica e que ocupam os
Tribunais da Orquestra. Talvez os “ceguinhos”, “catedráulicos” e “nefelibatas” apontados
de Lyra Filho. Os segundos, mais jovens, bem demonstrou Werneck Vianna, fruto de
uma pedagogia bancária (Paulo Freire), sem fundamentação filosófica adequada,
alienados da dimensão humana e capazes de decorrar milhões de regras jurídicas,
somente (Lédio Andrade e Horácio Rodrigues). Logo, incapazes, na sua maioria, de
qualquer resistência constitucional, até porque formados na cultura manualesca. A
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
139
ambos grupos, todavia, deve-se acrescentar dois fatores: a) a sedução cooptativa de um
subsídio polpudo. Imaginariamente aderidos, vestem ou querem vestir Prada por
possuírem, agora, condições financeiras de consumir. Curtir a vida de maneira diversa
dos magistrados antes da Constituição/88. Viajam, compram, estão preocupados no
consumo de objetos da moda. Aceitam facilmente o convite para adentrar neste
mercado de ilusões, ficando, pois, na mais ampla “ausência de gravidade”, bem
demonstrou Charles Melman. Os novos carros do mercado, a nova coleção da estação
ocupa o lugar de algo que pode importar, “consumindo”, por assim dizer, o sujeito do
enunciado. Torna-se uma maria-vai-com-as-outras. Pensar e resistir, para quê? Quer
gozar!; b) Este poder gozar, entretanto, cobra um preço. A alienação da capacidade
crítica e uma obscena pretensão de eficiência, de quantidade, na melhor linha da
Análise Econômica do Direito (Posner), implica o apagar do sujeito. O sintoma desta
situação se mostra na aderência sem precedentes aos precedentes, numa
americanização da “Orquestra Judiciária Brasileira”. De outro lado, também, cabe
apontar que o poder gozar exige, cada vez mais, números de julgamentos,
apresentações sinfônicas perfeitas, conforme a partitura, sem limites. Bulimina, stress,
cardiopatias, baixa autoestima, adições, dentre outras saídas, quando não budismo,
induísmo, seitas, Juízes de Jesus, acabam se instalando.
14. Christophe Dejours aponta o dilema contemporâneo do trabalho: entre o
“desespero” e o “reencantamento”. Isto se aplica do trabalho da magistratura. Após a
CR-88, cabe insistir, o trabalho da magistratura modificou-se brutalmente. Antes
decidiam-se questões individuais e em velocidade morosa, por assim dizer. No pós/88 o
Poder Judiciário é demandado por questões sociais, com a aplicação horizontal dos
direitos fundamentais, ingerências na liberdade de contratar (CDC, função social dos
contratos e da propriedade, dentre outras questões), com muita aceleração. Daí, em
muito, o mal-estar da magistratura individualmente entendida. Claro que ao se falar do
coletivo invoca-se o individual (Agostinho Ramalho Marques Neto). Não porque são
idênticos, pois cada singularidade é específica, mas justamente porque no enredo
destas novas demandas, uma surge como fundante do outro campo, dado que não faz
sentido falar-se em exterioridade neste lugar. A atuação do magistrado na seara
trabalhista era a de aplicar no caso específico o direito incidente, no paraíso positivista
da subsunção da regra geral a um caso específico. Entretanto, nos dias de hoje, com a
constitucionalização da vida cotidiana, com o trabalho passando a ser produto de um
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
140
mercado sem fronteiras e sem limites, via processo flexionado e célere, as coordenadas
simbólicas da resposta se modificaram. De um lado o protagonismo na realização do
Estado Democrático de Direito e, por outro, o aumento da angústia da função, do
“desespero”.
15. Não se trata do aspecto negativo da perda da função, mas das
consequências que a função implica em sujeitos que enunciam, do seu lugar. E, claro,
há um ser humano no lugar de juiz, cujas relações familiares, de identificação individual
e política são atingidas diretamente pelo exercício (in)autêntico da magistratura. Mas
discutir o lugar do magistrado é tarefa proibida, nos diz Pierre Legendre.
Ideologicamente é melhor não deixar ver o sujeito que se esconde por detrás da toga.
Problematizar este lugar é uma atividade clandestina, de borda, que procura dialogar
com o imaginário social e o real de um sujeito. Enfim, há uma centralidade para o sujeito
em seu reconhecimento diretamente ligado à sua atividade judicante, cujo afastamento
não pode ser universalizado. A saber, não se trata de um sujeito diverso, totalmente
diferenciado no Foro e outro no seu dia a dia. O exercício da magistratura causa um
efeito decorrente da função. Isto é das leis da linguagem. Não se trata de um
conteudismo, ou seja, de um conteúdo que possa ser colocado em todo o que exerce a
magistratura. Não! A questão passa sobre os efeitos que o discurso promove no sujeito
e seu lugar, bem assim sobre as possibilidades de “reencantamento”.
16. Resistir a isto, todavia, é ir contra a maré das “Almas Belas” (Zizek), gente
que em nome do politicamente correto, da aceitação das ditas evoluções sociais, aceita
deferir toda-e-qualquer-pretensão para não posar de reacionário, totalitário e
conservador. Aceita o jogo do mercado, fabricando e vendendo decisões conforme a
moda da estação. Trata-se de um lugar, um lugar que deveria ser de Referência, um
lugar cuja função é a de dizer, muitas vezes, Não, disto eu não participo! Entretanto,
para que se possa dizer Não é preciso se autorizar responsável, embora o discurso do
senso comum o desresponsabilize, coisa que a grande maioria não se sente, por se
estar eclipsado em nome do direito do conforto. Este lugar do Julgador precisa ser
ocupado com responsabilidade pelo que se passa na sociedade. Não para se tornar o
salvador, o novo Messias, e sim para recolocar o Direito no lugar da Referência, de
limite. Por aí se pode entender, quem sabe, pelo qual as posturas reacionárias, de
indiferença, voltaram com todo o vigor. Pode ser que agora os juízes brasileiros estejam
Alexandre Morais da Rosa
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
141
mais interessados nas viagens das próximas férias, em trocar de carro, em comprar as
roupas da moda, porque, enfim, na contabilidade do capital, este foi o preço que se
pagou. Existem, claro, os que se dão conta e que precisam apontar para isto. A estes se
dirá que perderam o juízo... A grande maioria dos Juízes brasileiros não sei se vestem
Prada, mas com certeza querem vestir!
17. Um exemplo disto pode ser indicado. O enfrentamento da questão por
políticas judiciais de “punitive demages”, ou seja, de decisões que além da reparação
apliquem ‘sanções pedagógicas’, só aparentemente resolvem a questão. Implicam na
aparente solução. Entretanto, no contexto dos “litigantes habituais”, esta condenação
será “contabilizada” nos “custos de produção” e servirá apenas para uma pequena
parcela beneficiada, bem como para aplacar a “sede de Justiça Social” de alguns
aplicadores do Direito. O pano de fundo da questão não é tocado. E ouso dizer: não
pode. Tocar na matriz da questão é impossível por dois fundamentos básicos. O
primeiro é que o modelo capitalista mantêm, mesmo nesta compreensão, intocável a
troca do trabalho por dinheiro, e estas decisões servem, no fundo, para relegitimar o
sistema. O segundo é o de que se atacada a matriz do problema a Justiça do Trabalho
perderá, em curto prazo, o glamour. Esta última afirmação é forte e precisa ser lida sem
o primeiro sentimento de autopreservação. Enfim, superada, de fato, a compreensão do
trabalho objetificado, no horizonte, a Justiça do Trabalho perde seu sentido. Enfim, se é
manipulado, mesmo com as melhores intenções. O sistema neoliberal colocará, no fim,
dois freios. O primeiro pelos Tribunais Superiores, como já aconteceu nos EUA e, por
último, contabilizará as condenações nos “custos” futuros. A vitória, pois, é de Pirro.
18. Parece, assim, complicado falar em Não desde dentro da Orquestra. Porque
assim proceder pode significar a impossibilidade de gozar na esfera privada, mediante a
mais-valia cobrada na esfera pública, tornando-se quase que o músico solista, incapaz
de fazer frente à Orquestra Total. Fundar uma Orquestra paralela é impossível. Talvez,
então, seja necessário sabotar a Orquestra Principal, assumindo-se, com Gramsci, a
condição de intelectual orgânico. A questão é saber se se pode pedir dos magistrados
brasileiros isto? Neste estado de coisas, talvez, o ato que se possa fazer seja o de
apontar para a cooptação e mostrar que ao mesmo tempo em que os atuais ganharam
tudo, os novos magistrados, pós 2004, não terão mais aposentadoria integral,
Franchising Judicial...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
142
justamente foram estes que deram os aneis. A questão é que quando se dá os aneis,
não raro, a mão vai junto..., dia Ângela Konrath.
19. O que se pode pedir ao Poder Judiciário e aos magistrados em 2010? Não
mais do que eles podem dar. Esta advertência de Avelãs Nunes precisa ser levada a
sério. A escolha está aí: ou o magistrado aceita a lógica de um Presidente das
Havaianas/Gerente de Banco, ou garante a dignidade da função. Umberto Eco, em
recente entrevista, disse: “Em 1931, o fascismo impôs aos professores universitários –
1200 na época – um juramento de fidelidade ao regime. Apenas 12 recusaram e
perderam seus empregos. Talvez os 1.188 que ficaram tivessem razões nobres. Mas os
12 que disseram não salvaram a honra da universidade, definitivamente, a honra do
país.” Pensar novas coordenadas de atuação, bem assim sustentar posturas críticas
desde dentro do Poder Judiciário, sem medos, nem acovardamento, na perspectiva do
“reencantamento” é a aposta desta mesa. Por fim, caso tudo que falei tenha sido apenas
uma projeção sem sentido para os outros, terei pelo menos a companhia imaginária de
Barthes que disse: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
143
PLURALISMO E CRÍTICA DO CONSTITUCIONALISMO
NA AMÉRICA LATINA
PLURALISM AND CRITIQUE OF CONSTITUTIONALISM IN LATIN AMERICA
Antonio Carlos Wolkmer1
Sumário: 1. Introdução: Constituição e Pluralismo. 2. Para uma crítica do Pluralismo Jurídico
do século XIX na América Latina. 3. Trajetória sociopolítica do constitucionalismo no
Brasil. Conclusão. Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO: CONSTITUIÇÃO E PLURALISMO
A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos
políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um
dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade. Enquanto pacto político
que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se legitima pela
convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas.
Assim, toda sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas
tradições, costumes e práticas que ordenam a tramitação do poder. Ora, não é
possível reduzir-se toda e qualquer constituição ao mero formalismo normativo ou ao
reflexo hierárquico de um ordenamento jurídico estatal (WOLKMER, 1989, p. 13-14)
A constituição material expressa o Poder Constituinte (força singular, absoluta e
ilimitada) “que dá racionalidade e forma ao Direito”. Certamente, o Poder
Constituinte que tem no povo seu titular é o “sujeito de fundação da constituição
1 Professor Titular de História das Instituições Jurídicas, dos cursos de graduação e pós-graduação
em Direito da UFSC. Doutor em Direito e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ). É
pesquisador do CNPq. Professor visitante de cursos de pós-graduação em várias universidades
do Brasil e do exterior. Autor de diversos livros, dentre os quais: Pluralismo jurídico:
fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001; Direitos
humanos e filosofia jurídica na América Latina (Org.) Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004;
Sintesis de uma história das ideias jurídicas: da Antiguidade clássica à Modernidade. 2. ed.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008; Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009; História do Direito no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
144
material”. (NEGRI, 2002, p. 44). A constituição em si não só disciplina e limita o
exercício do poder institucional, como também busca compor as bases de uma dada
organização social e cultural, reconhecendo e garantindo os direitos conquistados de
seus cidadãos, materializando o quadro real das forças sociais hegemônicas e das
forças não dominantes. Para Ferdinand Lassalle, refere-se “à soma dos fatores reais
de poder que regem um país”. (LASSALE, 1985, p. 30). Por sintetizar um espaço
estratégico e privilegiado de múltiplos interesses materiais, fatores socioeconômicos
e tendências pluriculturais, a constituição congrega e reflete, naturalmente, os
horizontes do Pluralismo.
Assim, a partir de um nível mais amplo e teórico de constatação acerca do
papel da constituição como instrumento formal de materialização de direitos, cabe
trazer para a discussão o marco epistêmico e metodológico do Pluralismo, mas
enquanto conceito dinâmico que reconhece o valor da diversidade e da
emancipação. Em sua natureza, a formulação teórica do Pluralismo designa “a
existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da
diversidade de campos sociais ou culturais com particularidade própria, ou seja,
envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se
reduzem entre si”. (WOLKMER, 2001, p. 171-172). Dentre alguns de seus princípios
valorativos, assinala-se: 1) a autonomia, poder intrínseco aos vários grupos,
concebido como independente do poder central; 2) a descentralização,
deslocamento do centro decisório para esferas locais e fragmentárias; 3) a
participação, intervenção dos grupos, sobretudo daqueles minoritários, no processo
decisório; 4) o localismo, privilégio que o poder local assume diante do poder central;
5) a diversidade, privilégio que se dá à diferença, e não à homogeneidade; e,
finalmente, 6) a tolerância, ou seja, o estabelecimento de uma estrutura de
convivência entre os vários grupos baseada em regras “pautadas pelo espírito de
indulgência e pela prática da moderação”. (WOLKMER, 2001, p. 175-177); Vide
(GALUPPO, in: SAMPAIO, 2001, p. 52-53)
Na composição e dinâmica do Pluralismo, compreende-se a
interdependência na diversidade de instituições sociais: Igrejas, sindicatos,
associações civis e empresas.
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
145
Obviamente, o Pluralismo engloba fenômenos espaciais e temporais com
múltiplos campos de produção e de aplicação, os quais compreendem, além dos
aportes filosóficos, sociológicos, políticos ou culturais, uma formulação teórica e
prática de pluralidade no Direito. Ora, o Pluralismo no Direito tende a demonstrar
que o poder estatal não é a fonte única e exclusiva de todo o Direito, abrindo escopo
para uma produção e aplicação normativa centrada na força e na legitimidade de um
complexo e difuso sistema de poderes, emanados dialeticamente da sociedade, de
seus diversos sujeitos, grupos sociais, coletividades ou corpos intermediários. Sem
adentrar numa discussão sobre as variantes de Pluralismo jurídico, seja do
paradigma “desde cima”, transnacional e globalizado, seja do modelo “desde
abaixo”, das práticas sociais emancipadoras e dos movimentos sociais, importa
sublinhar a proposição de um constitucionalismo pluralista e emancipador. Daí a
aproximação e integração entre constituição e Pluralismo democrático, projetando a
perspectiva de um novo Estado de Direito. De uma constituição que consagre e
reafirme o Pluralismo como um de seus princípios basilares, prescrevendo não só
um modelo de Estado Pluridimensional, mas, sobretudo, como projeto para uma
sociedade intercultural.
Para um pensamento epistemológico e um avanço metodológico na direção
de um constitucionalismo pluralista, sem deixar de ser democrático e emancipatório,
torna-se necessário um repasse crítico sobre a trajetória do constitucionalismo do
tipo convencional, individualista, estatal e liberal, que marcou a trajetória latino-
americana e brasileira. É o que se verá na análise subsequente.
2 PARA UMA CRÍTICA DO PLURALISMO JURÍDICO DO SÉCULO XIX NA AMÉRICA LATINA
A independência das colônias na América Latina não representou no início
do século XIX uma mudança total e definitiva com relação à Espanha e Portugal,
mas tão somente uma reestruturação, sem uma ruptura significativa na ordem social,
econômica e político-constitucional. Paulatinamente, incorporaram-se e adaptaram-
se princípios do ideário econômico capitalista, da doutrina do liberalismo
individualista e da filosofia positivista. Por certo, para responder às necessidades
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
146
locais, compatibilizavam-se as velhas estruturas agrárias e elitistas com o surto
eclético e com as adesões às novas correntes europeias.
Na verdade, as assertivas ideológicas do positivismo adquiriram extrema
importância para a construção dos novos Estados oligárquicos, pois tal filosofia não
só simbolizava a ruptura com um passado incômodo, como ainda expressava uma
nova ordem política e legal.
Essa colonização e dependência da cultura jurídica latino-americana da
época ao modelo hegemônico eurocêntrico de matriz romano-germânica não se
realizou somente no âmbito geral das “ideias jurídicas”, mas, igualmente, em nível
de construções formais de Direito público, particularmente da positivação
constitucional. Isso se comprova no processo de constitucionalização dos Estados
latino-americanos que foram doutrinariamente marcados pelas Declarações dos
Direitos anglo-francesas, pelas constituições liberais burguesas dos Estados Unidos
(1787) e da França (1791 e 1793), e pela inovadora Constituição Espanhola de
Cádiz (1812).2 Já a positivação moderna de codificação do Direito privado ibero-
americano foi modelada pelo ideário individualista, romanístico e patrimonial da
legislação civil napoleônica (1804) e do estatuto privado germânico (1900).
(ANDRADE, 1997, p. 91-110).
Não é por demais relevante lembrar que, na América Latina, tanto a cultura
jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial, quanto as
instituições jurídicas formadas após o processo de independência (tribunais,
codificações e constituições) derivam da tradição legal europeia, representada, no
âmbito privado, pelas fontes clássicas dos Direitos romano, germânico e canônico.
Igualmente, na formação da cultura jurídica e do processo de constitucionalização
latino-americanos pós-independência, há de se ter em conta a herança das cartas
políticas burguesas e dos princípios iluministas inerentes às declarações de direitos,
bem como provenientes agora da nova modernidade capitalista, de livre mercado,
pautada na tolerância e no perfil liberal-individualista. Nesse sentido, a incorporação
do modo de produção capitalista e a inserção do liberalismo individualista tiveram
uma função importante no processo de positivação do Direito estatal e no
2 Constatar: Torre Villar; García la Guardia (1976); Gargarella (2005); Colomer Viadel (2009);
Caducci (2003).
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
147
desenvolvimento específico do Direito público das antigas colônias ibéricas. Cabe
reconhecer que o individualismo liberal e o ideário iluminista dos Direitos do Homem
penetraram na América hispânica, no século XIX, dentro de sociedades
fundamentalmente agrárias e, em alguns casos, escravagistas, em que o
desenvolvimento urbano e industrial era praticamente nulo. Desse modo, a
juridicidade moderna de corte liberal vai repercutir diretamente sobre as estruturas
institucionais dependentes e reprodutoras dos interesses coloniais das metrópoles.
(DE LA TORRE RANGEL, 1997, p. 69-70 e 72-73)3.
Tem sido próprio na tradição latino-americana, seja na evolução teórica, seja
na institucionalização formal do Direito, que as constituições políticas consagrassem,
abstratamente, igualdade formal perante a lei, independência de poderes, soberania
popular, garantia liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea e a
condição idealizada de um “Estado de Direito” universal. Na prática, as instituições
jurídicas são marcadas por controle centralizado e burocrático do poder oficial;
formas de democracia excludente; sistema representativo clientelista; experiências
de participação elitista; e por ausências históricas das grandes massas campesinas
e populares. Certamente, os documentos legais e os textos constitucionais
elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e
do interesse de setores das elites hegemônicas, formadas e influenciadas pela
cultura europeia ou anglo-americana (WIARDA, 1983, p. 82, 85-86)4. Poucas vezes,
na história da região, as constituições liberais e a doutrina clássica do
constitucionalismo político reproduziram, rigorosamente, as necessidades de seus
segmentos sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-
americanas, as massas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos.
3 TRAJETÓRIA SOCIOPOLÍTICA DO CONSTITUCIONALISMO NO BRASIL
A dinâmica histórica do Direito público no Brasil tem sua formação, como em
toda a América Latina, a partir dos parâmetros institucionais consolidados com a
3 Para um maior aprofundamento, constatar: Wolkmer (2006, p. 95-97).
4 Consultar igualmente: Carbonell; Orozco; Vazquez (2002).
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
148
Independência do país no início do século XIX. Alguns fatores mais imediatos
podem ser reconhecidos como causas impulsionadoras da doutrina política do
Direito público emergente desse processo. Dentre elas, a influência das revoluções
francesa e norte-americana, movimentos do século XVIII que propuseram
declarações de filosofias liberais e individualistas; a vinda da Família Real e a
instalação da Corte no Brasil em face da ameaça e da invasão napoleônica, abrindo
novas direções para a emancipação política e para o esboço originário de uma
consciência nacional; e, finalmente, a eclosão de um exacerbado nacionalismo
aliado à aspiração ardente de independência dos povos latino-americanos.
As ideias e os interesses que politicamente dominavam os países latino-
americanos no início do século XIX, fortalecidos pelas guerras de independência,
iriam oferecer um campo propício para o surgimento, no âmbito do Direito público,
de uma doutrina político-jurídica específica (trata-se do constitucionalismo moderno
de tipo liberal), que demarcava a necessária limitação do poder absolutista das
metrópoles europeias e sintetizava a luta lenta, tenaz e histórica do povo periférico,
explorado e dominado, em prol de sua liberdade, emancipação, participação e busca
de seus direitos de cidadania5.
Naturalmente, o perfil ideológico do constitucionalismo político, enquanto
sustentáculo teórico do Direito público do período pós-independência, traduziu não
só o jogo dos valores institucionais dominantes e as diversificações de um momento
singular da organização político-social, como expressou a junção notória de algumas
diretrizes, como o liberalismo econômico, sem a intervenção do Estado, o dogma da
livre iniciativa, a limitação do poder centralizador do governante, a concepção
monista de Estado de Direito e a supremacia dos direitos individuais.
A primeira constituição do país que inaugura o constitucionalismo brasileiro
foi a Lei Fundamental de 1824, que fixa e sistematiza um regime monárquico,
imperial e monista. Seus fundamentos, ainda que repousassem fortemente no
constitucionalismo francês (Constituição de 1824), não estavam imunes ao
liberalismo inglês, que aglutinava preceitos que consolidavam uma estrutura de
Estado parlamentar com um poder moderador atribuído ao imperador, bem como um
5 Obs.: Grande parte deste item 2 teve como fonte subsidiária (com adaptações) o IV capítulo de
nosso livro: História do Direito no Brasil. (4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 133 et seq.).
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
149
governo monárquico hereditário, constitucionalmente representativo. Sedimentava a
forma unitária e centralizada do Estado, dividindo o país em entidades
administrativas denominadas de províncias. A divisão clássica dos poderes também
se articulava no funcionamento do Executivo, presidido pelo imperador e exercido
por um conselho de ministros. O Legislativo modelava um bicameralismo sustentado
por Câmara temporária e Senado vitalício.
A queda do Império Monárquico possibilita a emergência da República, sob
a forma de um Estado liberal-oligárquico, consolidando uma cultura jurídica monista.
Mais uma vez, como já tinha ocorrido com a Independência, a República foi
proclamada de “cima para baixo”, fundada no ideário positivista-castrense e na
complexa exclusão do povo. Certamente, ao erradicar a força monárquica do poder
moderador, o advento da República Federativa marca o triunfo e a hegemonia do
militarismo positivista, anticlerical e caudilhesco (WOLKMER, 2007, p. 137).
O arcabouço ideológico do texto constitucional de 1891 expressava valores
assentados na filosofia política republicano-positivista, pautados por procedimentos
inerentes a uma democracia burguesa formal, gerada nos princípios do clássico
liberalismo individualista.
As duas primeiras constituições, elaboradas no século XIX (a Constituição
Monárquica de 1824 e a Constituição da República de 1891) foram, portanto, cada
uma em seu tempo, e com especificidades próprias, imbuídas profundamente pela
particularidade de um individualismo liberal-conservador, expressando formas de
governabilidade e de representação sem nenhum vínculo com a vontade e com a
participação popular, descartando-se, assim, das regras do jogo, as massas rurais e
urbanas e outros tantos segmentos minoritários.
Na verdade, os fundamentos individualistas e monistas da prática
constitucional republicana incidiam, basicamente, nas formas clientelísticas de
representação política, na conservação rigorosa da grande propriedade, na defesa
desenfreada de um liberalismo econômico, bem como na introdução “aparente” e
“formalista” de direitos civis, os quais, na verdade, expressavam o esvaziamento do
que se poderia conceber como cidadania no seu sentido autêntico de processo
participativo.
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
150
Sem dúvida, os textos constitucionais em questão configuram o controle
político-econômico das oligarquias agroexportadoras, as quais, enquanto parcelas
detentoras do poder, acabavam impondo seus próprios interesses e moldavam a
dinâmica do Direito público compreendido entre a Independência do país e o fim da
Velha República nos anos 30 do século XX (WOLKMER, 2007, p. 139-140)
A tradição do constitucionalismo brasileiro, seja em sua primeira fase
político-liberal (representada pelas Constituições de 1824 e 1891), seja em sua
etapa social posterior (Constituição de 1934), expressou muito mais os intentos de
regulamentação das elites agrárias locais do que propriamente a autenticidade de
movimentos nascidos das lutas populares por cidadania ou mesmo de avanços
alcançados por uma burguesia nacional constituída no interregno de espaços
democráticos republicanos.
A Constituição de 1934 irá se constituir no primeiro texto com um perfil
nitidamente pluralista, rompendo com a tradição do individualismo monista anterior,
que sustentava um constitucionalismo de tipo clássico liberal. O pluralismo
disfarçado da Carta Política de 1934 pode ser reconhecido não somente pelo seu
ecletismo político-ideológico, mas pela introdução de inovadores direitos sociais e
econômicos, bem como por consagrar, além de uma representação política (própria
da tradição republicana federativa), a representação formal classista de grupos
sociais, órgãos de cooperação (os Conselhos Técnicos) e entidades profissionais
presentes no Congresso (DOBROWOLSKI, p. 138-142; WOLKMER, 2007, p. 142-
144)
As demais constituições brasileiras (as autoritárias de 1937, 1967 e 1969,
bem como a liberal burguesa, com certos matizes mais sociais, de 1946)
representaram sempre um constitucionalismo formal de base não democrática (no
sentido popular), sem a plenitude da participação do povo, utilizado muito mais como
instrumental retórico oficializante de uma legalidade individualista, formalista,
programática e monista. Tais tradições constitucionais desconsideram integralmente
os horizontes da pluralidade, do multiculturalismo e da diversidade.
Nesse interregno histórico entre a Constituição autoritária do Estado Novo e
a Carta redemocratizadora do pós-guerra, menciona-se o aparecimento da nova
legislação penal, processual e laboral. Ainda que tenham nascido durante o regime
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
151
ditatorial de Vargas, é de se registrar o avanço e a autonomia do Código Penal de
1940 (presença surpreendente de princípios liberais, refletindo doutrinariamente
concepções vinculadas à Escola Clássica e à Escola Positivista italiana) e do Código
de Processo Penal de 1941 (que restringia a ação do tribunal do júri, particularmente
a crimes dolosos contra a vida), que passou também pelo regime militar e pela
repressão dos anos 1960.
As diretrizes que embasaram o Direito público, na década de 1960, foram
geradas pelas cartas constitucionais centralizadoras, arbitrárias, ilegítimas e
antidemocráticas (1967 e 1969), cuja particularidade foi reproduzir a aliança
conservadora da burguesia agrária/industrial com parcelas emergentes de uma
tecnoburocracia civil e militar.
A tradição de nosso constitucionalismo, portanto, buscou sempre por
formalizar a realidade oficializada da nação, adequando-a a textos político-jurídicos
estanques, plenos de ideais e princípios meramente programáticos. Em regra, as
constituições brasileiras recheadas de abstrações racionais não apenas abafaram as
manifestações coletivas, como também não refletiram as aspirações e necessidades
mais imediatas de grande parcela da sociedade (WOLKMER, 2007, p. 144-145).
A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, não obstante manter ainda
certo perfil republicano liberal, analítico e monocultural, foi a mais avançada,
relativamente a qualquer outro momento da história brasileira. Tal traço deve-se por
haver ampliado a gama de direitos fundamentais (e suas garantias) e por ter
inaugurado amplas perspectivas pluralistas em seus diferentes campos de ação,
como o religioso, filosófico, político e cultural. Assim, a chamada “Constituição
Cidadã” consagra o Pluralismo, agregando a ele o adjetivo “político”, num sentido
muito mais abrangente. Trata-se do art. 1º, inciso V, da Constituição Federal, que
proclama, como um de seus eixos fundamentais, o princípio do pluralismo político
pautado na convivência e interdependência de diversos grupos sociais (minorias
especiais, movimentos sociais, organizações não governamentais, etc.), não
obstante suas diferenças e suas diversidades quanto a crenças, valores e práticas.
O texto constitucional brasileiro de 1988, ao reconhecer direitos emergentes
ou novos direitos (direitos humanos, direitos da criança e do adolescente, do idoso e
do meio ambiente) resultantes de demandas coletivas recentes engendradas por
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
152
lutas sociais, introduziu em seu Título VIII (Da Ordem Social) um capítulo exclusivo
aos povos indígenas (arts. 231-232). A norma constitucional em seu art. 131 deixa
muito claro seu entendimento nitidamente pluralista e multicultural, no qual “são
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Assim, pela primeira vez o legislador brasileiro dedica um capítulo especial
às nações indígenas, resgatando uma dívida histórica do Brasil a um de seus povos
originais e constitutivos da própria nação. (SANTOS, mimeo, fl. 10) De fato, o texto
constitucional oficializa a existência do índio como um ser juridicamente
reconhecido, com sua organização social, humana, cultural e, sobretudo, com “o
direito de ser índio, de manter-se como índio [...]. Além disso, reconhece o direito
originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Essa concepção é nova e
juridicamente revolucionária porque rompe com a repetida visão integracionista. A
partir de 5 de outubro de 1988, o índio, no Brasil, tem o direito de ser índio”.
(SOUZA, 1998, p. 107) Igualmente, importa recordar que, sob os influxos do preceito
constitucional no sentido de garantir a execução dos direitos indígenas e de avançar
na efetivação de sua autonomia e respeito a sua diversidade pluriétnica, vem
tramitando no Congresso Nacional, o Projeto de Lei n.º 2.057/97, que objetiva
normatizar o Estatuto das Sociedades Indígenas.
Em suma, ainda que de forma limitada e pouco satisfatória, a Carta Política
de 1988 contribui para superar uma tradição publicista liberal-individualista e social-
intervencionista, transformando-se num importante instrumento diretivo propulsor
para um novo constitucionalismo, de tipo pluralista e multicultural.
CONCLUSÃO
O constitucionalismo moderno tradicional não é mais integralmente
satisfatório, pois, na advertência do advogado indígena bolivariano Idon M. Chivi,
“tem sido historicamente insuficiente para explicar sociedades colonizadas; não teve
clareza suficiente para explicar a ruptura com as metrópoles europeias e a
continuidade de relações tipicamente coloniais em suas respectivas sociedades ao
Pluralismo e crítica do constitucionalismo...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
153
longo dos séculos XIX, XX e parte do XXI”. (CHIVI VARGAS. In: VERDUM, 2009, p.
158). Tendo em conta essa preocupação é que se introduz e ganha força a proposta
de um novo constitucionalismo (denominado por alguns de Constitucionalismo
Andino), que começa a gestar-se nos países latino-americanos, diante das
mudanças políticas e dos novos processos constituintes. O impulso inicial desse
novo constitucionalismo na América Latina foi marcado pelo ciclo social e
descentralizador das Constituições, Brasileira (1988) e Colombiana (1991)6.
Na sequência, perfazendo um segundo ciclo, encaminhou-se para um
constitucionalismo participativo e pluralista, em que a representação nuclear desse
processo constitucional passa pela Constituição Venezuelana de 19997.
O terceiro ciclo do novo constitucionalismo latino-americano passa a ser
representado pelas recentes e vanguardistas Constituições do Equador (2008)8 e da
Bolívia (2009);9 para alguns publicistas, tais textos políticos expressariam um
constitucionalismo plurinacional comunitário, identificado com um outro paradigma
não universal e único de Estado de Direito, coexistente com experiências de
sociedades interculturais (indígenas, comunais, urbanas e camponesas) e com
práticas de pluralismo igualitário jurisdicional (convivência de instâncias legais
diversas em igual hierarquia: jurisdição ordinária estatal e jurisdição
indígena/camponesa).
6 Dentre algumas das significativas conquistas da Constituição Colombiana de 1991, ressalta-se: a)
proclama, dentre seus princípios, a Democracia Participativa e Pluralismo (art. 1); b) jurisdições
especiais: indígena (art. 246), juízes de paz (art. 247); c) jurisdição arbitral e conciliadores (art.
116); d) jurisdição eclesiástica (art. 42).
Consultar, a propósito: Velásquez Betancur (2008). 7 Em seu Capítulo IV do segundo título (Dos Direitos Políticos e do Referendo Popular), dispõe nos
arts. 62, 70, da Participação Popular, mesclando representação com democracia participativa. Já
em seu art. 136, introduz inovadoramente um Poder Público Nacional, dividido em cinco poderes:
Legislativo, Executivo, Judicial Cidadão (art. 273) – é a instância máxima – e Poder Eleitoral.
Algumas observações sobre a Constituição Venezuelana, cf.: (PISARELLO, 1999. In: DUSSEL,
2007, p. 153-154). 8 A Constituição do Equador de 2008, além de ampliar e fortalecer os direitos coletivos (arts. 56-60:
povos indígenas, afrodescendentes, comunais e costeiros), estabelece um inovador capítulo VII,
que prescreve dispositivos (arts. 340-415) sobre o “regime de bem viver” e a “biodiversidade e
recursos naturais”, ou seja, sobre o que vem a ser denominado “direitos da natureza”. Sobre a
Constituição do Equador, observar alguns capítulos da obra coletiva: (VERDUM, 2009, capítulos 4
e 5). 9 Sobre a Constituição da Bolívia de 2009, consultar: Verdum (2009, capítulos VI e VII). Igualmente:
Chivi Vargas (2009); Martinez Dalmau (2008); Clavero (2009).
Antonio Carlos Wolkmer
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
154
Parece evidente que as mudanças políticas e os novos processos sociais de
luta nos Estados latino-americanos engendraram não só novas constituições que
materializaram novos atores sociais, realidades plurais e práticas desafiadoras, mas,
igualmente, propõem, diante da diversidade de culturas minoritárias e da força
inconteste dos povos indígenas do Continente, um novo paradigma de
constitucionalismo, o que poderia denominar-se Constitucionalismo Pluralista
Intercultural (compreendendo, aqui, as expressões que já vêm sendo utilizadas:
constitucionalismo andino ou indígena).
Enfim, nesse processo, é essencial que a Teoria do Direito e do Estado
Constitucional tome em consideração o exame do Pluralismo Jurídico10, para
compreender a nova realidade constitucional latino-americana.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
156
OS PARA-DOXA DA DEMOCRACIA
THE PARADOXES OF DEMOCRACY
Piergiorgio Odifreddi1
Sumário: 1. A votação por maioria. 2. O paradoxo de Condorcet. 3. Problemas de peso. 4. O
teorema de Arrow. 5. O paradoxo de Alabama. 6. Proporcional ou majoritário?
Winston Churchill dizia que a democracia é a pior forma de governo, à parte
todas as outras antes experimentadas. Sabia, porém, que o melhor argumento
contra a democracia são cinco minutos de conversa com um eleitor (ou político)
médio. George Bernard Shaw definia a democracia como a garantia de não sermos
governados melhor do que merecemos. E acrescentava que seu advento substituíra
a nomeação de poucos corruptos pela eleição de muitos incompetentes. Gustave
Flaubert identificava o sonho da democracia como a elevação do proletariado ao
mesmo nível de estupidez alcançado pela burguesia. Bertrand Russell observava
que os eleitos não podem jamais ser mais estúpidos que seus eleitores.
Parece, portanto, que a democracia tem seus problemas, com soluções
indicadas por algumas propostas literárias paradoxais. Por exemplo, O parlamento
de Jorge Luis Borges sugere que, para se obter uma representação
verdadeiramente representativa, uma eleição deva eleger todos os eleitores. No
extremo oposto, Direito de voto de Isaac Asimov considera suficiente que um só
votante participe das eleições, desde que suficientemente representativo. Nós de
Evgenij Zamjatin, por fim, propõe que se considerem como efetivamente
democráticas apenas as votações públicas e unânimes.
Tais provocações literárias podem ser facilmente postas de lado com um
sorriso. Não é assim com as questões lógicas e matemáticas, cuja remoção é menos
simples. Os paradoxos da democracia são, de fato, variados e enganosos, como já
sabiam os antigos2. Por exemplo, pode-se instaurar uma ditadura de maneira legal?
1 Professor da Università di Torino – Itália.
2 D. Daube, “Greek and Roman reflections on impossibile laws”, Natural Law Forum, 12 (1967): I-84.
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
157
Se sim, a liberdade poderia ter seus dias contados; se não, é desde já limitada3. Ou
ainda, pode-se eliminar o dispositivo que permite as revisões constitucionais? Se
sim, o poder de revisão está em perigo; se não, ele é incompleto4.
Talvez o mais óbvio dos paradoxos da democracia seja uma simples
variação sobre o tema do sorites, sobre o qual voltaremos em seguida: dado que nas
eleições com muitos eleitores nunca ocorre uma vitória por apenas um voto de
diferença, nenhum voto em particular é determinante. Portanto, não ir votar não faz
diferença.
Já os paradoxos ulteriores que iremos anunciar dizem respeito à prática da
vida democrática, uma vez que se tenha decidido a votar, não obstante tudo. Não é
efetivamente claro como (ou ainda se) se possa determinar os eleitos, ou distribuir
os lugares, de maneira logicamente satisfatória.
1 A VOTAÇÃO POR MAIORIA
“Democracia” é um termo bastante vago, que na Grécia significava apenas
“governo do povo”. No inconsciente coletivo ocidental, adquiriu o significado, mais
preciso, de “governo da maioria”. E de fato, em geral, a votação por maioria é
considerada como o meio através do qual o povo governa. Seja diretamente,
optando entre alternativas em um referendum, seja indiretamente, escolhendo entre
candidatos em uma eleição.
Que as coisas não são tão simples foi demonstrado pelo paradoxo das
eleições de 2000, nas quais um país como os Estados Unidos, que se considera o
mais democrático do mundo, elegeu para a presidência um candidato como George
W. Bush com um número de votos menor que seu opositor, Al Gore.
O primeiro problema a se afrontar é, portanto, se a redução do governo do
povo àquele da maioria é justificada. Ou ao menos justificável. No fim das contas, o
conceito de democracia contém implicitamente toda uma série de aspectos, que
3 I. Tammelo, “The antinomy of parliamentary sovereignty”, Archiv für Rechts- und
Sozialphilosophie, 44 (1958): 495-513. 4 A. Ross, “On self-reference and a puzzle in Constitutional Law”, Mind, 78 (1969), I-24.
Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
158
talvez sejam melhor expressos por outros métodos de governo em geral e de
votação em particular.
Poder-se-ia pensar que as únicas justificativas possíveis, em tal âmbito, são
inconcludentes discussões de filosofia política. Em 1952, porém, o economista
Kenneth May demonstrou matematicamente5 que a votação por maioria é o único
procedimento de escolha entre dois candidatos que satisfaz as seguintes condições:
1) Liberdade de escolha: cada um é livre para votar no candidato que prefere.
2) Dependência do voto: o resultado de uma votação é determinado unicamente
pelos votos dados aos candidatos.
3) Monotonicidade: se um candidato vence uma votação com um determinado
número de votos, vence também em qualquer votação na qual tenha mais
votos.
4) Anonimato: não há votantes privilegiados.
Mesmo estando contidas implicitamente, as assunções precedentes, no
conceito de democracia, o teorema de May demonstra que não há alternativas
democráticas à votação por maioria, no caso de apenas dois candidatos. E mostra
também como uma discussão política, quando fundada (como raramente ocorre)
sobre argumentos concretos, pode ser simples e precisa.
Para os leitores curiosos, ofereceremos de imediato uma breve
demonstração de May (quem não estiver interessado pode passar sem perdas, mas
também sem ganhos, à proxima seção do texto). Denominemos os dois candidatos
como A e B. Pela dependência do voto, o resultado depende somente de como se
repartem os votantes: aqueles que preferem A e B, e aqueles que preferem B e A.
Pelo anonimato, cada voto conta da mesma maneira: portanto, o resultato depende
apenas de quantos votam em A e quantos em B.
Suponhamos agora que A obtenha a maioria dos votos, mas que seja B a
vencer. Pela liberdade de escolha, pode-se imaginar uma situação na qual todos os
votantes troquem seus votos: ou seja, que votem em A se antes votavam em B, e
5 K. May, “A set of independent, necessary and sufficient conditions for simple majority decisions”,
Econometrica, 20 (1952): 680-684.
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
159
votem em B se antes votavam em A. Neste caso a situação seria simétrica à
precedente, com os papéis de A e B trocados.
Agora A obtém o mesmo número de votos que antes tinha B, e que
bastavam a este para vencer: pela dependência do voto, desta vez deveria vencer
A. Mas B obtém o mesmo número de votos que antes tinha A, e, portanto, mais que
aqueles que já lhe haviam bastado para vencer: pela monotonicidade, B deveria
continuar a vencer, em tais circunstâncias.
Para evitar equívocos, por ora não há qualquer paradoxo. Se não, talvez, o
fato de que a demonstração da inevitabilidade do voto por maioria tenha sido dada,
nos Estados Unidos, por May, que era membro do Partido Comunista.
2 O PARADOXO DE CONDORCET
Buscando um verdadeiro paradoxo chegamos em Marie Jean Antoine
Nicolas de Caritat, mais conhecido como marquês de Condorcet (1743-1794). Tendo
vivido na época da Revolução Francesa, o marquês fora primeiramente
enciclopedista e depois girondino. Com a chegada ao poder dos jacobinos,
escondeu-se por vários meses. Quando finalmente se decide por fugir, travestido
pelos campos, trai a si mesmo pedindo, como bom aristocrata, uma omelete com um
número despropositado de ovos. Morreu na prisão três dias depois; talvez suicida,
visto que levava veneno sempre consigo.
Em 1785, poucos anos antes que a revolução pretendesse, paradoxalmente,
instaurar um sistema democrático com a guilhotina, o marquês descobrira o seguinte
problema6. Ele sabia, mesmo sem a demonstração de May, que a votação por
maioria era um método eficiente de escolha entre duas alternativas. Na presença de
mais alternativas, uma ideia óbvia seria votar duas de cada vez, optando por aquela
que obtivesse a maioria contra todas as remanescentes. Condocert demonstrou que,
infelizmente, não é certo que haveria tal alternativa: mesmo se as preferências dos
votantes singulares, em respeito às diversas alternativas, fossem ordenadas
linearmente, a votação poderia de fato produzir uma ordem social circular7.
6 M. de Condorcet, Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à
la pluralité des voix, Paris, 1785. 7 A propriedade matemática em questão é chamada de transitividade: se x precede y e y precede z, então
x precede z. No exemplo seguinte, as preferências individuais são transitivas, mas não as sociais.
Os para-doxa da democracia
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160
Para ilutrar o paradoxo, consideremos outra das eleições presidenciais
estadunidenses: aquela de 1976. Na ocasião Jimmy Carter vence Gerald Ford, que
obtivera a nomination republicana vencendo Ronald Reagan. Mas as pesquisas
diziam que Reagan teria vencido Carter (como depois acontece efetivamente, não
obstante com um outro eleitorado, em 1980).
Uma situação circular, na qual três candidatos têm condições de vencer, é
obviamente embaraçante para um sistema no qual os dois candidatos são
selecionados em eleições sucessivas, dois a dois. O vencedor depende, de fato,
somente da ordem em que são realizadas as votações. Por exemplo, para que
vencesse Ford em 1976 teria bastado fazer primeiro a votação entre Carter e
Reagan, e depois a votação entre o vencedor (Reagan) e Ford.
O paradoxo de Condorcet não deixa escolhas. Ou se votam todas as
alternativas, umas contra as outras, podendo assim obviamente acontecer que
nenhuma obtenha a maioria; ou se votam as várias alternativas em uma certa
ordem, caso em que a vencedora dependerá da ordem escolhida. Como se não
bastasse, uma ordem particular de votações pode permitir a uma alternativa que
vença ainda quando exista outra unanimemente preferida.
Considerando que a votação por maioria sobre mais de duas alternativas é
um sistema largamente aplicado em contextos locais, nacionais e supranacionais, a
relevância do paradoxo é evidente. Entre outros, explica as denominadas batalhas
procedimentais, por vezes furiosas, sobre a ordem das votações. Longe de ser
bizantinismos, como poderia parecer, são na verdade essenciais para determinar o
resultado final segundo a direção desejada, relegando as votações ao papel de
cobertura democrática de verdadeiros golpes.
Vale a pena sublinhar que, para que o paradoxo de Condorcet seja possível,
não pode haver uma alternativa a qual ninguém considere como a pior. De fato, se A
vence B por maioria, ao menos a metade mais um dos votantes prefere A a B. Se B
vence C por maioria, ao menos a metade mais um dos votantes prefere B a C. Logo,
ao menos um dos votantes prefere A a B e B a C, e C é considerada a pior
alternativa por alguém. Por simetria, o mesmo vale para A e B. Para que a ordem
social produzida pela votação por maioria possa ser circular, é portanto necessário
que cada alternativa seja considerada a pior por alguém.
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
161
Expõe-se assim uma incompatibilidade entre liberdade individual, que
permite a cada um optar por determinada ordem de preferências, e harmonia social,
que por sua vez requer uma certa uniformidade entre as ordens individuais. E
explica, também, tanto a inadequação da votação por maioria nos momentos de
instabilidade política como a sua impotência nos momentos de transformação. Nos
primeiros, há alternativas que ninguém considera as piores: aquelas de centro. Já
nos segundos, a radicalização das preferências cria as condições para o paradoxo.
3 PROBLEMAS DE PESO
A votação por maioria proposta no parágrafo anterior não é, obviamente, a
única solução possível para a escolha entre mais alternativas. Outra é a votação por
pluralidade: apresentam-se todas as alternativas simultaneamente, cada votante
escolhe uma, e vence aquela que recebe o maior número de votos.
Em 1781, porém, Jean-Charles de Borda (1733-1799) percebeu que se
impunha uma escolha entre os dois métodos, visto que pluralidade e maioria são
incompatíveis entre eles8. Consideram-se quinze votantes, por exemplo, que devam
optar entre alternativas A, B e C. Suponhamos que as ordens de preferências
individuais sejam as seguintes:
- 6 votantes preferem A a B, e B a C.
- 4 votantes preferem B a C, e C a A.
- 5 votantes preferem C a B, e B a A.
Quando se coloca em votação as alternativas por pluralidade, A vence C por
6 a 5, e C vence B por 5 a 4. Já quando se coloca a votação por maioria, B vence C
por 10 a 5, e C vence A por 9 a 6. Os dois sistemas de votação produzem, portanto,
ordens sociais contrapostas.
Borda não se deu conta que a votação por maioria poderia não ser transitiva,
mesmo porque no exemplo precedente o é: B vence A por 9 a 6. Mas identificou um
problema no fato de que na votação por pluralidade se considera somente uma parte
8 J.-C. de Borda, “Mémoire sur les élections au scrutin”, Mémoires de l’Académie Royale des
Sciences (1781): 657-665.
Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
162
das informações contidas nas várias ordens de preferência individuais:
precisamente, a primeira alternativa.
A coisa pode ser remediada com sistemas de voto por peso, no qual os
votantes associam, direta ou indiretamente, pesos numéricos às várias alternativas.
Por exemplo, no assegnamento canônico se dão n pontos à primeira de n
alternativas, n-1 pontos à segunda, e assim por diante. A construção da ordem social
se efetua, neste caso, somando os pesos das alternativas nas várias ordens
individuais. Mas, já como no caso da votação por maioria, também os sistemas de
voto por peso apresentam situações paradoxais.
Estabelecer a atribuição dos pesos coloca de imediato várias dificuldades.
Em primeiro lugar, psicológicas: como medir as intensidades das preferências de
cada indivíduo? Em segundo lugar, sociológicas: como equiparar, entre si, os vários
sistemas de medida individuais? Em terceiro lugar, e sobretudo, lógicas: o resultado
pode, de fato, depender da atribuição dos pesos.
Por exemplo, considere-se cinco votantes, que devam optar entre
alternativas A, B e C. Suponhamos que as ordens das preferências individuais sejam
as seguintes:
- 3 votantes preferem A a B, e B a C.
- 2 votantes preferem B a C, e C a A.
Caso se assinale um ponto à primeira de cada lista e nenhum às demais,
como na votação por pluralidade, A vence B por 3 a 2. Mas se forem assinalados
dois pontos à primeira, um à segunda e nenhum à terceira opção, de cada lista, B
vence A por 7 a 6.
De qualquer forma, quando estiverem fixadas a atribuição dos pesos e as
ordenações individuais, a ordem social entre duas alternativas dependerá da
presença ou não de outras alternativas em jogo.
Por exemplo, se a atribuição é da maneira canônica e as ordens individuais
são aquelas do exemplo precedente, então A perde de B por 11 a 12. Sendo a
alternativa C não apenas a última em absoluto, com 7 pontos, mas também não
sendo a preferida por nenhum votante de B, que é a primeira opção em absoluto,
poder-se-ia pensar que a presença de C fosse irrelevante para a vitória de B. Ela
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
163
resulta, porém, determinante. Se a alternativa C for efetivamente eliminada,
permanece-se com três votantes que preferem A a B e dois que preferem B a A.
Desta vez, portanto, A vence B por 8 a 7.
Problemas de tal gênero tornaram os sistemas de voto por peso, em regra
mais complicados que os sistemas de voto por maioria, pouco praticáveis. São
usados, hoje, quase exclusivamente em multicompetições esportivas, como o
decatlon. Neste caso, as alternativas são os atletas participantes, os votantes são as
várias competições, as preferências são as ordens de chegada, e os pesos são os
pontos assinalados.
4 O TEOREMA DE ARROW
Os paradoxos de Condorcet e Borda expuseram algumas dificuldades dos
sistemas de votação então conhecidos, sem porém parar a história. A guilhotina era,
de fato, tema dos mais afiados dentre os paradoxos, e a democracia se mostrou
historicamente inevitável, não obstante logicamente inconsistente.
A discussão de Condorcet caiu no esquecimento, sendo redescoberta
periodicamente, de Lewis Carroll em 1876 a Duncan Black em 1948, para ser
pontualmente reesquecida. Foi enfim retomada em 1951 por Kenneth Arrow9, um
jovem economista que havia estudado lógica matemática com Alfred Tarski. Sua
formação o estimulou a não parar diante do paradoxo e ir além, fazendo-o perguntar
se era tudo fruto do acaso ou da necessidade.
Em outras palavras, Arrow se questionou sobre a possibilidade de se
encontrar ao menos um sistema de votação que permitisse estender a transitividade
das preferências individuais àquelas sociais. Até então, tanto os idealistas à la Kant
como os racionalistas à la Bentham haviam suposto que a ordem social existisse, e
divergiam somente na crença que essa fosse, respectivamente, independente ou
deduzível das ordens individuais.
9 K. Arrow, Social choice and individual values, Yale University Press, 1951.
Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
164
Já o realista Arrow descobriu que ambos se equivocavam, porque a ordem
social não existe. Mais precisamente, demonstrou que nenhum sistema de votação
que satisfaça as seguintes condições preserva a transitividade das preferências:
1) Liberdade de escolha: toda ordem transitiva de preferências individuais é
aceitável.
2) Dependência do voto: o resultado da votação entre duas alternativas é
determinado univocamente pelos votos a elas conferido.
3) Monotonicidade: se uma alternativa vence uma votação, continua a vencer
em toda votação na qual obtenha mais votos.
4) Rejeição da ditadura: não existe ninguém cujas preferências individuais ditem
o resultado de cada votação, independentemente das preferências dos
demais votantes.
A analogia com as condições de May salta aos olhos. Em particular, dado que
o anonimato implica a rejeição da ditadura, o teorema de Arrow demonstra que o
teorema de May não pode ser estendido a mais de duas alternativas.
Não obstante o resultado seja exatamente um teorema, para exorcizá-lo se
costuma o chamar de paradoxo. Em inglês soa bem, pois Arrow’s paradox é
traduzido como “paradoxo da Flecha”, invocando um outro homônimo: aquele de
Zenão, segundo o qual uma flecha em movimento não pode se mover, porque em
cada instante está parada. Isto não impediu que o teorema de Arrow fosse objeto de
estudos aprofundados, que agora compõem a denominada teoria das escolhas
sociais. Nem descuidou o comitê de Estocolmo, que em 1972 conferiu a Arrow o
prêmio Nobel de economia (paradoxalmente, com uma votação).
O fato de que um teorema de ciência política como o de Arrow, sobre a
impossibilidade de um sistema democrático de votações, tenha lhe concedido um
prêmio Nobel de economia, não deve surpreender. À parte as óbvias e hoje
evidentes conexões e acordos entre economia e política, pela sua natureza abstrata
o resultado se aplica a qualquer situação na qual seja necessária uma escolha
coletiva entre um conjunto limitado de alternativas. Por exemplo: de produtos em um
mercado, de políticas comerciais em um conselho de administração, de
representantes em uma assembleia de acionistas... O teorema de Arrow torna
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
165
manifesta, portanto, uma dificuldade na passagem da microeconomia dos sujeitos
individuais, tais como produtores e consumidores, à macroeconomia dos grupos,
como os mercados. Vem à mente, mais genericamente, uma série de situações
análogas, nas quais fica difícil, ou impossível, justificar o comportamento global de
um sistema sob a base dos comportamentos individuais de seus componentes.
Quanto às consequências filosóficas do teorema de Arrow, não se pode
tratar de maneira melhor da que fez Paul Samuelson10, prêmio Nobel de economia
em 1970. Em primeiro lugar, ele admite candidamente que “a busca da democracia
perfeita por parte das grandes cabeças da história se mostrou como a busca de uma
quimera, de uma autocontradição lógica”. Sem querer ofender os políticos e meios
de informação mundiais que hoje apenas cantam, incessantemente, o mantra do
suposto triunfo da referida quimera.
Em segundo lugar, Samuelson traça um paralelo que é para nós
extremamente significativo: “A devastante descoberta de Arrow é, para a política, o
que o teorema de Gödel é para a matemática”. Em particular, ambos os resultados
mostram limitações intrínsecas de seus respectivos âmbitos de maneira simples e
inequívoca, destruindo assim ingênuas ilusões.
Nem mesmo o teorema de Arrow é, porém, a última palavra em termos de
limitações da democracia. Um resultado igualmente impressionante, se não mais, foi
obtido em 1970 por Amartya Sen11, prêmio Nobel de economia em 1998. Partindo de
hipóteses análogas àquelas de Arrow, Sen efetivamente demonstrou que, em uma
sociedade, um indivíduo pode no máximo ter direitos!
5 O PARADOXO DE ALABAMA
O teorema de Arrow fez explícitas algumas condições mínimas implícitas no
conceito de democracia e demonstrou que não há nenhum sistema de votação que
as satisfaça contemporaneamente. O que explica a proliferação de leis eleitorais em
vários países e a disparidade de panoramas por parte dos partidos políticos: não
10
In Scientific American, outubro 1974, p. 120. 11
A. Sen, Collective choice and social welfare, Holden-Day, 1970.
Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
166
havendo sistemas ideais para todos, cada um busca fazer prevalecer aquele que no
momento lhe parece o mais conveniente para si.
O tipo de votação para a escolha dentre vários candidatos é, de qualquer
forma, apenas um dos problemas que uma lei eleitoral deve resolver, não obstante
seja certamente o mais visível aos eleitores. Antes de votar, é preciso de fato
distribuir os lugares, entre os colégios eleitorais, com base em suas populações. E
depois do voto, é preciso distribuir os lugares, entre os partidos, com base nos votos
por eles obtidos.
Considerando que o número de postos é obviamente muito inferior ao
número de eleitores ou de votantes, a divisão não dará como resultado, em regra,
um número inteiro. Por razões de equidade, dever-se-ia aplicar um princípio de
proporcionalidade: o número de lugares conferido a um colégio ou a um partido
deverá ser uma das duas aproximações inteiras, por aproximação ou por excesso,
do número racional que se obtém da divisão. Por exemplo, se os postos a se
distribuir são 10 e um colégio possui um terço da população, os lugares a este
reservados deverão ser 3 ou 4.
A proporcionalidade diz respeito à consistência dos colégios ou dos partidos
tomados singularmente. O ulterior princípio de monotonicidade se refere à sua
consistência relativa: os colégios com mais eleitores não deverão receber menos
lugares que os colégios com menos eleitores, e o mesmo deve valer para os
partidos com mais votos em relação àqueles com menos votos. Além disso, isto
deveria valer tanto para as situações sincrônicas, relativas a uma eleição apenas,
como para as situações diacrônicas, referentes a eleições em períodos diversos,
reguladas pelas relações entre os percentuais.
Como já podemos prever, tais condições são difíceis de satisfazer. É o que
se constatou pela primeira vez em 1880, quando os Estados Unidos decidiram
aumentar o número de deputados do Congresso de 299 para 300. Esperava-se que
um estado teria obtido um deputado a mais. Descobriu-se, porém, que dois estados
ganhavam um deputado, enquanto o Alabama perdia um!
O problema estava no sistema de distribuição das cadeiras então em vigor.
Proposto em 1791 por Alexander Hamilton (1755-1804), ministro do Tesouro de
George Washington, procedia-se do seguinte modo: antes de mais nada,
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
167
calculavam-se as cotas cabíveis a cada estado, que eram depois arredondadas para
baixo, conferindo a cada estado o número mínimo de lugares aos quais tinha direito.
Enfim, distribuía os postos remanescentes aos estados que mais haviam perdido
com o arredondamento. O que ficou claro, como mostrou o paradoxo do Alabama,
foi que tal sistema, mesmo se racional, tinha consequências paradoxais, devidas ao
fato de que o acréscimo de novos lugares elevava, obviamente, a cota de cada
estado, mas não com o mesmo percentual.
Em 1907 se apresentou um novo problema, devido à entrada de Oklahoma
nos Estados Unidos. Ao novo estado foram conferidas cinco novas cadeiras, mas se
constatou que a atribuição das remanescentes (e invariáveis) aos outros estados
acabava sendo modificada: o estado de Nova York deveria ceder um de seus
lugares ao Maine. Dessa vez, falou-se em paradoxo do novo estado.
As polêmicas conseguintes a tais embaraços provocaram uma angustiante
busca por um sistema imune de paradoxos. Infelizmente, em 1982, Michel Balinsky e
Peyton Young demonstraram12 que não existe nenhum método de distribuição dos
postos que satisfaça os princípios de proporcionalidade e de monotonicidade.
Basta, de fato, que hajam ao menos 7 cadeiras a se distribuir entre ao
menos 4 colégios, para que se possa verificar problemas. Primeiramente, no
momento de uma primeira eleição o percentual da população em relação ao número
de cadeiras pode realmente ser redistribuído no seguinte modo:
- 5,01 no colégio A
- 0,67 no colégio B
- 0,67 no colégio C
- 0,65 no colégio D
A única distribuição de postos compatível com as condições de
proporcionalidade e monotonicidade é: cinco para o colégio A, um para cada um dos
colégios B e C, e nenhum posto ao colégio D.
12
M. Balinski e P. Young, Fair representation, Yale University Press, 1982.
Os para-doxa da democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
168
No momento de uma segunda eleição, o percentual da população pode ser
redistribuído da seguinte maneira:
- 3,99 no colégio A
- 2,00 no colégio B
- 0,50 no colégio C
- 0,51 no colégio D
Desta vez, as únicas distribuições de lugares compatíveis com as condições
de proporcionalidade e monotonicidade são: três ou quatro postos para o colégio A,
dois postos para o colégio B, um ou nenhum posto ao colégio C, e um posto ao
colégio D.
Na passagem da primeira para a segunda eleição, portanto, o colégio A
perdeu ao menos um lugar, e o colégio ganhou outro. O que contrasta, porém, com
o princípio de monotonicidade, pois A cresceu, em relação a D, de cerca de 7,5 para
8 vezes.
6 PROPORCIONAL OU MAJORITÁRIO?
Os teoremas de Arrow e de Balinsky e Young impuseram golpes mortais ao
princípio de proporcionalidade. Muitas democracias o abandonaram, por isso, com
mais ou menos pudor. Também a italiana, sob o golpe de referendum e mattarellum,
por alguns anos pensou que a solução dos problemas da democracia estivesse na
adoção de alguma forma de sistema majoritário.
Infelizmente para eles, os sistemas majoritários não estão em melhor
situação que os proporcionais. No majoritário puro, por exemplo, é possível que um
partido com quase 50 por cento dos votos nacionais não obtenha nem mesmo uma
cadeira, ao passo que cada posto pode ir para partidos locais de representação
mínima. Basta, de fato, que em cada colégio um mesmo partido nacional obtenha 50
por cento dos votos menos um, e que um partido local obtenha 50 por cento dos
votos mais um, para que o lugar fique com o segundo.
Um outro paradoxo dos sistemas que, assim como o majoritário, apresentam
a opção entre somente dois candidatos ou grupos, pode ser eficazmente ilustrado
Piergiorgio Odifreddi
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
169
com o exemplo dos sorveteiros (sem o intento de denegrir ninguém). Suponhamos,
assim, que nos encontramos em uma praia ensolarada ao longo de um quilômetro,
plena de banhistas acalorados, quando chegam dois sorveteiros vendendo seus
produtos.
Para os banhistas, o mais sensato seria que ambos se colocassem a 250
metros do extremo da praia, ou seja, a um quatro e três quartos. Dessa maneira, de
fato, nenhum banhista teria de caminhar mais de 250 metros para alcançar o mais
próximo dos sorveteiros.
Mas estes pensam em termos diversos: a eles convêm se colocar o mais
próximo possível entre eles para disputarem os banhistas da zona intermédia, visto
que aqueles que estão nos extremos irão, de qualquer modo, comprar o sorvete do
mais próximo. Do ponto de vista dos sorveteiros, a sistematização mais racional é,
portanto, que ambos se situem no centro da praia. É o que em regra ocorre para os
candidatos ou grupos dos sistemas majoritários consolidados, que acabam por
resultar indistinguíveis em seus programas políticos. O paradoxo reside, obviamente,
no fato de que não há sentido em se incomodar com a escolha entre dois candidatos
que propõem o mesmo programa.
Retornamos, assim, ao ponto de partida: que as pessoas racionais não
teriam motivos para ir votar. Mas se apenas os irracionais votam, não podemos
depois nos surpreender com os resultados das votações, nem com a consequente
série de juízos sobre a democracia com a qual iniciamos a discussão. Para terminar
com uma boa palavra, devemos admitir que ao menos uma vantagem a democracia
tem: agora se contam todos os votos, enquanto outrora votavam apenas os
Condes13.
13
N.T.: trocadilho com os termos em italiano referentes a “contar” (contare) e “Condes” (Conti).
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
170
RUMO À EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL:
TRIBUTAÇÃO DIANTE DO DESAFIO SOCIAL E
AMBIENTAL CONTEMPORÂNEO
TOWARDS SOCIOENVIRONMENTAL OVERTAXATION: TRIBUTATION FACING CONTEMPORARY SOCIAL ENVIRONMENTAL CHALLENGE
James Marins1
Jeferson Teodorovicz2
Resumo
A tributação extrafiscal está presente na história das finanças estatais desde os primórdios da civilização, sempre representada como corolário do caráter político da atividade financeira. Sendo assim, a extrafiscalidade, aliada ao caráter político que permeia as finanças estatais na atualidade, é importante instrumento para a aplicabilidade dos fins públicos, estes sempre variáveis conforme os períodos históricos distintos. Hoje surge a extrafiscalidade socioambiental, manifestação que decorre dos atuais debates sobre a sustentabilidade sistêmica ou desenvolvimento sustentável. Nesse aspecto, Identificamos três fases históricas no reconhecimento das finalidades extrafiscais na doutrina financeira, sendo que a última, em nossa opinião, é reflexo da sociambientalidade aplicada à atividade tributária, ou seja, a tributação extrafiscal socioambiental. Este trabalho objetiva pôr em evidência essa nova roupagem à extrafiscalidade, que se revela útil instrumento para a proteção dos objetivos a serem alcançados pela noção de sustentabilidade, que o direito tributário e seus doutrinadores deverão reconhecer.
Palavras-Chave: Tributo; Ciência das Finanças; Política Fiscal; Direito Tributário; Função Extrafiscal; Função Fiscal; Função Socioambiental; Sustentabilidade; Socioambientalidade.
Abstract
The overtaxation is present in the history of state finances since the dawn of civilization, always represented as a corollary of the political nature of financial
1 Professor Titular de Direito Tributário e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná, nos cursos de graduação, Mestrado e Doutorado. Pós-doutor pela Universitat de
Barcelona, na Espanha. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito do Estado
pela PUCSP. Presidente do Instituto Brasileiro de Procedimento e Processo Tributário – IPPT.
Advogado e Consultor Jurídico em Curitiba-PR. 2 Mestre em Direito pela PUCPR. Advogado e Pesquisador. Professor de Direito Empresarial e
Direito Tributário na Faculdade Internacional de Curitiba - FACINTER. Atua nas áreas de Direito
Empresarial e Direito Tributário. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário –
IBDT – SP.
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
171
activity. Thus, the overtaxation, coupled with the political character that permeates the state finances nowadays, is an important tool for the applicability of public purposes, these always varied according to different historical periods. Today comes the socioenvironmental overtaxation, as a clear manifestation arising out the current discussions on the systemic sustainability or sustainable development. This sense, we can identify three historical phases in the recognition of the purposes of the overtaxation in the financial doctrine, and the last one of them, in our opinion, reflects the socioenvironmentally applied to the tax activity, that is, the socioenvironmental overtaxation. This paper aims to highlight this new package to the overtaxation, which proves an useful instrument for the protection of goals to be achieved by the notion of sustainability, that the Tax Law and its scholars should recognize.
Keywords: Tax, Science of Finance, Fiscal Policy, Tax Law, Overtaxation Function; Taxation Function; Socioenvironmental Function, Sustainability, Socioenvironmentally.
Sumário: Introdução. 1. Extrafiscalidade: Noções Gerais. 2. Breve Contexto Histórico: da
Primeira à Segunda Fase do reconhecimento da Extrafiscalidade. 3. A Doutrina e a
concepção tradicional de Extrafiscalidade: da Segunda à Terceira Fase do
reconhecimento da Extrafiscalidade. 4. A Terceira Fase no Reconhecimento da
Extrafiscalidade: Rumo à Extrafiscalidade Socioambiental. 5. O Direito Tributário
Arrecadatório e a Extrafiscalidade Socioambiental. 6. Direito Tributário e o exemplo
brasileiro contemporâneo da extrafiscalidade socioambiental. Considerações Finais.
Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa breve aporte histórico-doutrinário acerca da
denominada “extrafiscalidade”, fenômeno que tem sido relacionado à própria noção
tradicional de fiscalidade, enquanto ideia antagônica, pela doutrina financeira. Seja
enquanto antítese, acessória, complementar, principal ou inerente à função fiscal do
tributo, a extrafiscalidade foi debatida constantemente nos fóruns pela doutrina
contemporânea. A partir de Keynes, a extrafiscalidade encontrou suporte teórico e
contexto histórico propício para diversas aplicações, na área da Política Fiscal
Anticíclica, não obstante a extrafiscalidade já ter sido apontada por doutrina anterior.
Mas a visão que temos de extrafiscalidade na atualidade corresponde à mesma
extrafiscalidade experimentada por Keynes e seus seguidores, ou pelos
doutrinadores que o antecederam? De que extrafiscalidade estamos falando hoje em
dia? Esta é a resposta que pretendemos oferecer ao leitor, elaborando breve
contexto histórico-evolutivo da extrafiscalidade – em sua visão clássica –, seu
caráter político inerente, e a importância da renovação doutrinária frente ao novo
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
172
perfil de extrafiscalidade: a extrafiscalidade socioambiental, estabelecida conforme
as atuais necessidades contemporâneas.
1 EXTRAFISCALIDADE: NOÇÕES GERAIS
O uso do termo “extrafiscalidade” ou, “extrafiscal”, ou “tributo extrafiscal”
poderia, em primeiro momento, causar certa confusão terminológica3. Afinal, como
poderia um tributo ser extrafiscal? O que é tributo extrafiscal? Ou melhor, o que é
extrafiscalidade? É o oposto da fiscalidade, sua antítese? É tudo que foge à
fiscalidade? Para responder a essas perguntas, é importante partirmos de um rápido
pressuposto. Em análoga alusão à já clássica diferenciação entre o “jurídico” e o
“extrajurídico”, a extrafiscalidade poderia ser remetida no sentido de tudo que não é
fiscal, ou seja, de tudo que não diz respeito à fiscalidade, ao tributo, ao direito
tributário. No entanto, estamos nos referindo à “extrafiscalidade” enquanto técnica
vinculada à ideia de fiscalidade. Fiscalidade no sentido de fisco, fiscalismo,
arrecadação pura e simples. Atrelada a essa ideia de fiscalidade, a noção de
extrafiscalidade significa tudo que, dentro do âmbito de atuação dos tributos, alcance
3 Mencionamos a opinião de Luís Eduardo Schoueri, quando estudou as normas tributárias
indutoras e a intervenção econômica. Para Schoueri, existem algumas finalidades existentes na
norma tributária, dentre as quais destaca: a) função fiscal (arrecadatória); b) função simplificadora
– função de simplificar o sistema tributário, vinculado ao princípio da praticidade (ex: introdução da
sistemática do lucro presumido, destinado a simplificar a legislação do imposto de renda); c)
função extrafiscal – normas tributárias de indução de comportamentos(normas extrafiscais em
sentido estrito); e normas de políticas sociais. Nesse contexto, a extrafiscalidade (gênero) inclui as
normas de função indutora (extrafiscalidade em sentido estrito) e as normas de política social, que
possuem “(...) inspiração social, mas cujo único efeito é a melhora da situação do beneficiário,
sem por isso constituir um incentivo a que a situação desafortunada permaneça”. No entanto, a
noção utilizada pela doutrina em geral para se remeter à extrafiscalidade, está atrelada à noção de
extrafiscalidade em sentido estrito (indução de comportamentos). Portanto, a extrafiscalidade
apresenta possibilidade significativa quanto ao gênero e quanto às espécies. E o autor faz
interessante apontamento, ao afirmar que, ao mesmo tempo, essa expressão poderia remeter-se
a todas as normas que não se incluíssem da extrafiscalidade, “(...) com isso se desvencilhando
dos ditames próprios do direito tributário”. Por esses motivos, opta o autor por utilizar a expressão
“normas tributárias indutoras”, pois esta expressão, em sua opinião, lembraria necessariamente o
fato de que estas sejam normas sujeitas aos princípios e regras tributárias. Por outro lado, serviria
para também desvencilhar o estudo das normas de política social, partindo para as normas de
indução, cuja especialização em seu estudo está remetida ao tema “intervenção econômica”. Para
fins introdutórios, essas concepções iniciais servem-nos para atestar que nosso estudo se
concentrará na extrafiscalidade em sentido geral, para permitir um estudo mais generalizado das
variadas manifestações históricas, doutrinárias, legislativas, econômicas e sociais atreladas a esse
fenômeno, mas apresentando expressa preferência pela extrafiscalidade especializada na
sociambientalidade. (SCHOUERI, 2005, p. 32-34).
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
173
objetivos que escapem, primária ou secundariamente, à meta de arrecadação, ou
finalidade fiscal. Portanto, em primeira aproximação, a extrafiscalidade pode ser
entendida como a utilização de tributos (e por isso a ideia de fiscalidade), com o
objetivo que não seja prioritariamente a arrecadação. E os tributos, no aspecto da
fiscalidade e da extrafiscalidade, alcançam importância fundamental, praticamente o
núcleo da delimitação conceitual, a ferramenta que a fiscalidade e a extrafiscalidade
utilizarão4.
A par das variadas finalidades pelas quais a extrafiscalidade
tradicionalmente é aplicada, e sendo o tributo um instrumento de natureza
financeira, interferindo no patrimônio, na atividade econômica, na vida social,
cultural, político e ambiental, torna-se hábil instrumento para a modelagem de
comportamentos humanos. A lógica é bastante simples. Tributa-se mais a atividade
que se pretenda desincentivar. Ao contrário, tributa-se menos a atividade que se
pretenda incentivar. Com esse simples mecanismo, o Estado descobriu, ou
reconheceu, uma ferramenta quase ideal, e até melhor que outras medidas
coercitivas como as penas restritivas de liberdade ou de direitos (afinal, é quase uma
verdade universal que não há lugar melhor para atingir o cidadão do que algo que
ele sinta no próprio bolso), mas será que somente no século XX a extrafiscalidade
alcançou o reconhecimento dos Estados? Ademais, o que significa extrafiscalidade
socioambiental? Em qual contexto histórico se insere e quais objetivos representa
enquanto vórtice para a extrafiscalidade? Para responder essa pergunta, somente
com um apanhado histórico para analisar a pertinência desse questionamento, e
identificarmos o momento e os objetivos a serem alcançados pela extrafiscalidade
socioambiental.
4 Nesse aspecto, destaca-se a doutrina de Souto Maior Borges, que estabeleceu lista
exemplificativa das finalidades pelas quais a extrafiscalidade é chamada a atender, descrevendo
de maneira muito didática alguns objetivos que podem ser atingidos através da extrafiscalidade:
“a) combate às depressões, à inflação e ao desemprego; b) proteção à produção nacional (v.g.,
estímulo industrial por meio de isenções a indústrias novas, direitos alfandegários protecionistas,
etc.,); c) absorção da poupança e restabelecimento da propensão para o consumo; d) tributação
fragmentadora dos latifúndios improdutivos, pelo imposto territorial fortemente progressivo, e
imposição incidente sobre a exploração de jogos de azar; e) incentivos à urbanização, pela
tributação de terrenos baldios e áreas inaproveitadas; f) tributos gerais fortemente progressivos
sobre as grandes fortunas, reditos e heranças (política de nivelamento e redistribuição); g)
impostos suntuários de repressão ao luxo; h) combate ao celibato pela imposição,
estabelecimento de isenções em favor de famílias prolíficas e agravamento da tributação sobre
casais sem filhos”. (BORGES, 1998.)
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
174
2 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO: DA PRIMEIRA À SEGUNDA FASE DO RECONHECIMENTO DA EXTRAFISCALIDADE
A teoria da extrafiscalidade tem como pressuposto a ideia de que a atividade
fiscal tem conotação política. E a essência política sempre esteve presente na
atividade tributária, contudo, variando quanto aos momentos históricos quanto ao
seu reconhecimento5. A primeira fase do reconhecimento da extrafiscalidade ocorreu
como uma síntese entre o liberalismo econômico individualista (que pregava a
função fiscal ligada à não intervenção e ao equilíbrio orçamentário) e o socialismo
marxista. Nesse contexto, surge Adolph Wagner que vai apresentar um “meio-termo”
entre as duas ideologias. Não afastando a importância da “Função Fiscal”,
acrescentou também que os tributos poderiam ser utilizados para alcançar uma
“finalidade social”, qual seja a de redistribuição de receitas. Essa opinião foi
contrariada por E.Seligman, que embora não deixasse de reconhecer a função
social do tributo, acreditava que esta deveria ser efetivada na utilização das
despesas financeiras, e não nas receitas financeiras (na fase de arrecadação)
(DEODATO,1949, p. 20-21; WAGNER, 1909, p. 111-113; SELIGMAN, 1914, p. 01 e
ss.; SELIGMAN, 1914, p. 05-09).
Esses dois posicionamentos vão servir de inspiração para a posterior
doutrina financeira a respeito da extrafiscalidade e da fiscalidade. Portanto,
5 A atividade tributária, se inicialmente é vista como instrumento de submissão a povos vencidos em
guerra, gradativamente vai ganhando outras funções, sobretudo a partir da Idade Antiga, com
ênfase em Roma, com a finalidade expressa de financiamento da estrutura estatal, ideia que se
manteve na idade média, muito embora nessa época também o tributo estivesse ligado às
necessidades “reais” e ao financiamento de gastos bélicos. A atividade tributária, no entanto, era
geralmente marcada pela grande arbitrariedade e pelos abusos em sua arrecadação,
características que favoreceram o surgimento de revoltas como a Revolução Francesa, e a Boston
Tea Party, nos Estados Unidos. Naquele contexto a atividade tributária já encontrava grande
refração, o que foi reforçado através da ideologia liberal-individualista. No século XIX, com o ideal
de intervenção mínima estatal na economia e sociedade, a atividade tributária sofreu severa
restrição, pois propagava-se a ideia de que a função do tributo reduzia-se somente à função
precípua de arregimentar receita para satisfazer as despesas estatais, ou seja, de alcançar o
equilíbrio financeiro. Por isso o termo “fiscal”, que significa o emprego da atividade tributária para a
finalidade única e exclusiva de arrecadação. É claro que a doutrina liberal também defendia que o
Estado deveria intervir minimamente na vida dos seres humanos, garantindo apenas o que lhe era
essencial enquanto Estado, mas deixado para o mercado a decisão sobre seus rumos. Por isso a
ideia de neutralidade. (VANONI, [s.d.], p. 16 e ss; ALLIX, 1921, p. 354 e ss.; (SELIGMAN, 1914, p.
04 e ss.; COSTA, 2005, p. 51 e ss.).
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
175
poderíamos afirmar que no século XIX jazia a “primeira fase” do reconhecimento da
doutrina quanto à extrafiscalidade.
Com o declínio do Liberalismo econômico, a partir do século XX, a
desestruturação econômica promovida pela Primeira Guerra Mundial e, na
sequência, pelo Crack da Bolsa de Nova York, temos o contexto favorável a
profundos questionamentos quanto à efetividade de uma doutrina que pregava a
autossuficiência da iniciativa privada frente às grandes crises econômicas.
A política de não intervenção estatal na economia não fazia mais sentido, e
o papel diminuto da política social frente à política econômica começava a ser
severamente questionado. Nesse contexto econômico-social, surgiram novos
estudiosos, como Lord John Maynard Keynes, que apresentou o contraponto do
liberalismo econômico (ou economia clássica). Com críticas frente à não intervenção
estatal, defendia o uso da atividade tributária para alcançar mudanças econômico-
sociais, sobretudo, na busca pelo pleno emprego e pela redistribuição de riquezas
(ideal já verificado no século XIX). Graças à Keynes a Política Fiscal ganha um novo
redimensionamento, passando a ser identificada como Política Fiscal Anti-Cíclica,
isto é, direcionada (KEYNES, 1984, p. 170) à superação de dificuldades, ou
momentos de crise, buscando, nesse sentido, o desenvolvimento econômico e
social6. A partir desse momento, a extrafiscalidade (ou função extrafiscal do tributo)
ganha reconhecimento pelos elaboradores de políticas fiscais e chega-se à
conclusão de que o tributo, enquanto instrumento de política fiscal, seja em um
estado liberal ou de bem-estar social (ou até socialista), nunca foi neutro, pelo
simples fato de refletir como consequência da implantação de um ideal (liberal ou
social) que influencia no desenvolvimento das relações intraestatais e interestatais
(DEODATO, 1949, p. 20 e ss.)7. Podemos afirmar que nesse período (a partir das
6 Cria-se o termo “política fiscal anticíclica”, que se funde à noção de política fiscal, culminando em
uma alteração terminológica. (MARINS, 2005, p. 49 e ss.). V. (KEYNES, 1971, p. 92 e ss.;
KEYNES, 1992, p. 23; PAJISTE, [s.d.], p. 26). Não é por outro motivo que, Aliomar Baleeiro (2000,
p. 28-29), analisando o conteúdo da política fiscal anticíclica, afirmou que esta seria apenas uma
nova formatação da aplicação da extrafiscalidade direcionada a superar o momento de crise da
época. De qualquer forma, a política fiscal anticíclica vai apresentar importante contribuição para o
reconhecimento da extrafiscalidade enquanto instrumento apto a contribuir com a realidade
econômica e social. 7 Sobre o assunto, sugerimos também a leitura de Laufenburger, que destacou vários exemplos de
manifestação ideológica para as Políticas Fiscais, “capitalistas” e “anticapitalistas”, promovidas
após a Segunda Guerra Mundial. (LAUFENBURGER, 1951, p. 268 e ss.).
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
176
ideias de Keynes) poderia ser fixado o marco inicial para a “segunda fase” do
reconhecimento da extrafiscalidade, porque a partir daí a extrafiscalidade atinge
pleno reconhecimento pelos teóricos e políticos sobre a sua utilidade no combate às
situações hostis vivenciadas naquele período.
No impulso das ideias formuladas por Keynes, e levando em consideração
as propostas de Wagner e Seligman, em meados do século XIX, verificamos a
expressa preocupação da doutrina financeira quanto à extrafiscalidade, contando
com defensores e opositores8.
A função extrafiscal do tributo, nas décadas posteriores, vai alcançando
desenvolvimento doutrinário pelos financistas e políticos fiscais, de modo a ganhar
vários exemplos de aplicação empírica nos sistemas tributários contemporâneos. A
finalidade extrafiscal que o tributo apresenta não é concebida mais como uma
aberração que desvia o papel fundamental do tributo enquanto financiador do
aparelho estatal, mas vai sendo construído sólido pensamento, reconhecendo-se
que a extrafiscalidade é instrumento de que os estudiosos não podem se esquivar.
Hodiernamente, existem autores que, inclusive, não negam que o caráter extrafiscal
do tributo esteja presente em todas as manifestações tributárias, em maior ou menor
grau.
3 A DOUTRINA E A CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE EXTRAFISCALIDADE: DA SEGUNDA À TERCEIRA FASE DO RECONHECIMENTO DA EXTRAFISCALIDADE
No âmbito da doutrina do direito tributário, estrangeiro e brasileiro, o
reconhecimento da extrafiscalidade deu-se rapidamente. O pioneiro Franz Von
8 No Congresso de Roma, realizado em 1948, palco da grande explosão dos estudos sobre a
função extrafiscal do tributo, contrapuseram-se opiniões e calorosos debates. Fritz Newmark, por
exemplo, no seu estudo “O Imposto como instrumento de Política Econômica, Social e
Demográfica”, defendeu ferozmente as finalidades extrafiscais pela qual o imposto era chamado a
cumprir naquele período. Por outro lado, Newmark contrapôs-se a financistas como o francês
Henry Laufenburger que, pelo contrário, evidenciou a importância do papel financiador de recursos
ao Estado, para que este, através dos tributos obtidos, pudesse cumprir com o papel para o qual
estaria destinado. Desta forma, essas duas posições, em maior ou menor intensidade, foram as
duas grandes correntes da doutrina da função do tributo, no Congresso de Roma, e nos anos que
sucederam a esse evento. (NEWMARK, 1974, p. 46 e ss.; DEODATO, 1949, p. 49 e ss.;
LAUFENBURGER, 1951, p. 251 e ss.).
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
177
Myrbach-Rheinfeld (1910, p. 107-108) embora apresentando obra claramente
afetada pelo caráter fiscalista-liberal do tributo em seu Compêndio de Direito
Financeiro, não ignorava o fato de que a atividade tributária era motivada muitas
vezes por razões de ordem econômica e social. Por sua vez, Ernst Blumenstein
(1954, p. 164), bem como Albert Hensel (1956, p. 344), Giannini (1956, p. 59; 357),
Bielsa (1951, p. 357-364), dentre outros, também já apresentavam remissões à
tributação voltada a objetivos sociais. Mario Puglièse (1958, p. 05-06) lembrava
interessante exemplo, relativo à tributação que incentivava a natalidade, muito
oportuna no final da década de quarenta em certos países devastados pela Grande
Guerra.
Por outro lado, Griziotti (1958, p. 05-06), defensor ferrenho do caráter
político da atividade financeira, e, por extensão, da atividade tributária, também não
esqueceu deste aspecto extrafiscal, especialmente para a tributação vinculada a
finalidades sociais, evidenciando a antiguidade dessas medidas. Sainz de Bujanda
(1962, p. 37-39) também não se afastou da consideração política do fenômeno
financeiro, muito embora esse financista espanhol tivesse predileção pela função
fiscal do tributo frente à extrafiscalidade.
Vê-se que, na doutrina estrangeira, seja pela defesa ou pela oposição à
ideia de extrafiscalidade aplicada à atividade tributária, é notório o reconhecimento
dessa finalidade. E as finalidades relacionadas à extrafiscalidade estavam
geralmente ligadas à função social dos impostos, destinados à redistribuição de
riquezas, ou à justiça social. Também lembravam da motivação econômica, p. ex.,
quando da aplicação da tributação aduaneira para a defesa da economia nacional,
ou da tributação sobre o consumo menos elevada para determinados produtos,
considerados essenciais. Portanto, na visão estrangeira, afigurava-se, que a
extrafiscalidade estaria consubstanciada nesses aspectos, seja de intervenção na
atividade econômica ou de favorecimento a políticas sociais.
Na doutrina brasileira, o que se verificou foi o expresso reconhecimento,
quase como um reflexo das doutrinas estrangeiras, da finalidade extrafiscal do
tributo9. Nesse sentido, Aliomar Baleeiro (2000, p. 30-31), como já destacamos,
9 Por outro lado, com anterioridade, no início do século XX, João Pedro da Veiga Filho já citava
Alberto Nogueira, que reconhecia no imposto o caráter de norma econômica, política e social,
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
178
reconhecendo a extrafiscalidade, chegou a afirmar que a Política Fiscal Anticíclica,
influenciada por Keynes, nada mais era do que uma nova terminologia para indicar a
aplicação da extrafiscalidade a objetivos específicos naqueles tempos.
Entre nossos juristas, Rubens Gomes de Sousa (1975, p. 174-175) já tratava
com especial atenção do fenômeno, denominando-o de “parafiscalidade”. Entendia
que os fenômenos por nós já relatados (extrafiscalidade) deveriam ser inseridos na
classificação geral denominada “parafiscalidade”. Este gênero também englobaria
àqueles tributos cobrados por entes descentralizados. Veja-se que a “classificação
geral” de tributo parafiscal serviria para designar, além daqueles cobrados por entes
descentralizados, aqueles tributos cujos objetivos não fossem precipuamente a
arrecadação, mas destinados a finalidades diversas. Para evitar confusões
terminológicas, parece que melhor medida é a adoção da expressão
“extrafiscalidade”, ainda que este termo mantenha suas confusões terminológicas,
como as indicadas por Luís Eduardo Schoueri.
Na esteira de Rubens Gomes de Sousa, os autores José Souto Maior
Borges (1998), Alfredo Augusto Becker (1963, p. 541-545), Ruy Barbosa Nogueira
(1999, p. 184-187), Ricardo Lobo Torres (2005, p. 06), Antônio Rodrigo Sampaio
Dória (1964, p. 237-238), Geraldo Ataliba (1968, p. 150), Paulo de Barros Carvalho
(2005, p. 234-236), Bernardo Ribeiro de Moraes (1993, p. 441), Hugo de Brito
Machado (2006, p. 87), Ives Gandra Martins (1998, p. 163 e ss.), dentre outros,
manifestaram semelhante opinião à de Rubens, muito embora preferindo a
terminologia por nós adotada. É claro que a doutrina é praticamente uníssona no
reconhecimento dessas finalidades que ultrapassam a finalidade fiscalista
tradicional, e só citamos alguns autores como exemplos para referendar nossa
descrição.
De qualquer forma, a visão da extrafiscalidade brasileira não destoava da
visão estrangeira, inclinando-se às possibilidades tradicionais de intervenção na
economia e às políticas sociais, transparecendo a visão tradicional que se mantinha
demonstrando, em interessante aporte, o viés político e a influência dessas esferas da realidade
na moldura do fenômeno financeiro. Já De Plácido e Silva e Francisco D’Auria afirmavam esse
caráter político e, ainda, destacavam a influência estrangeira quanto a essa visão para a doutrina
brasileira. (VEIGA FILHO, 1906, p. 97-99; DE PLÁCIDO E SILVA [s.d.], p. 151-153; D’AURIA,
1962, p. 43-44).
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
179
sobre a extrafiscalidade, constituindo-se na síntese dos ideais defendidos entre a
primeira fase (Wagner) e a segunda (Keynes). Porém, é de se verificar, que a
concepção de finalidades sociais que se tinha à época de Wagner, Seligman e,
posteriormente, em Keynes, também não são as mesmas que temos hoje em dia.
Se naquela época a finalidade social servia ao objetivo de garantir alguns
benefícios ao trabalhador, ou à própria sociedade desfavorecida, hoje as finalidades
sociais superam em muito a finalidade de redistribuição de riquezas, ou de
favorecimento ao pleno emprego, grandes corolários das duas épocas citadas. No
entanto, verificaremos que, no período contemporâneo, apenas a extrafiscalidade
utilizada com finalidades econômicas e sociais não é o bastante, haja vista as novas
necessidades introduzidas pela contemporaneidade (DUE, 1974, p. 45-46). De
qualquer modo é preciso asseverar a existência de uma tênue linha entre a
extrafiscalidade e a fiscalidade, afinal, na realidade, é praticamente impossível
dissociar uma característica da outra. Mesmo aquela atividade essencialmente fiscal,
guardará um mínimo de extrafiscalidade, e vice-versa10.
De todo modo, se a extrafiscalidade e a fiscalidade não se separam, mas
caminham lado a lado, muitas vezes misturadas de tal forma que seja quase
impossível dissociá-las, ou identificá-las, é preciso entender que a visão de
extrafiscalidade muda conforme o contexto em que vivemos e conforme os objetivos
almejados em cada sociedade.
3.1 O Paradigma da Contemporaneidade: a Sustentabilidade Sistêmica
Atualmente, novos fenômenos chamam a atenção da doutrina econômica,
que são novas concepções criadas para fazer frente às novas necessidades globais,
que eclodiram nas décadas finais do século XX. Chamaremos atenção ao novo
termo criado nas Conferências Internacionais cuja temática que se dirigia às novas
concepções atreladas ao desenvolvimento e aos direitos humanos, originou o termo
“sustentabilidade”.
10
É o caso clássico dos sistemas tributários estruturados pela ideologia liberal-capitalista norte-
americana, e o sistema liderado pela ideologia social-marxista, da ex-URSS, que mesmo em uma
tributação cuja finalidade possa se auferir de fiscalista, sempre refletirá o perfil ideológico
(LAUFENBURGER, 1951, p. 251 e ss.).
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
180
Originalmente esse termo foi incorporado na Agenda 21, programa das
Nações Unidas cujo objetivo era a discussão sobre os grandes problemas
contemporâneos, naturalmente dando ênfase especial à temática ambiental11. Mas
esse termo vai se especializando devido à produção doutrinária e às convenções
internacionais, sempre ligando a sustentabilidade às necessidades contemporâneas
de inserção de direitos humanos e também de proteção ecológica (PERRONE-
MOISÉS, 1999, p. 180 e ss.).
Por sua vez, o termo desenvolvimento sustentável, foi também produto dos
trabalhos promovidos pelas Nações Unidas, cuja criação é devida à Comissão
Mundial sobre o Ambiente e o Desenvolvimento, criada em 1972. No ano de 1987, a
Comissão publicou relatório sobre os problemas globais relativos ao
desenvolvimento e ao meio ambiente, cuja denominação “Nosso Futuro Comum”,
acabou ficando conhecida como “Relatório de Brudtland”. Neste relatório ficou
expressada uma definição de “sustentabilidade”, que significava “(...) suprir as
necessidades da geração presente sem afetar a habilidade das gerações futuras de
suprir as suas (...)”.12/13.
11
“A Organização das Nações Unidas – ONU realizou, no Rio de Janeiro, em 1992, a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD). A CNUMAD é mais
conhecida como Rio 92, referência à cidade que a abrigou, e também como “Cúpula da Terra” por
ter mediado acordos entre os Chefes de Estado presentes. 179 países participantes da Rio 92
acordaram e assinaram a Agenda 21 Global, um programa de ação baseado num documento de
40 capítulos, que constitui a mais abrangente tentativa já realizada de promover, em escala
planetária, um novo padrão de desenvolvimento, denominado “desenvolvimento sustentável”. O
termo “Agenda 21” foi usado no sentido de intenções, desejo de mudança para esse novo modelo
de desenvolvimento para o século XXI. A Agenda 21 pode ser definida como um instrumento de
planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas,
que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica”. Fonte:
Ministério do Meio Ambiente. <www.mma.gov.br> (último acesso em 10 out. 2009). 12
Essas causas, por expressa influência do Relatório Brudtland, foram inseridas na Agenda 21
Global, constituindo na Seção I - Dimensões Sociais e Econômicas - os primeiros capítulos
dedicados à cooperação internacional dedicada a acelerar o desenvolvimento sustentável dos
países em desenvolvimento e de políticas internas correlatas, assim como o combate à pobreza e
a mudança dos padrões de consumo. Agenda 21 da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento. Disponível em: <www.mma.gov.br> (último acesso em 12 out. 2009). 13
Assim, no Relatório Brudtland, as causas de instabilidade ambiental global estariam fixadas em dois fatores principais: a) a pobreza no hemisfério sul; b) o consumismo extremo aplicado nos países ricos do hemisfério norte. Portanto, na discussão ambiental era evidente que o aspecto social e econômico apresentavam nítida relação, de forma a não se poder dissociar um aspecto do outro, pois contribuíam incisivamente para aquele contexto. Por isso o Relatório Brudtland desenvolveu, em paralelo à problemática ambiental, o retorno à temática do desenvolvimento. Que desenvolvimento queremos? Era essa a pergunta principal buscada pelo relatório. O desenvolvimento econômico tradicional, pura e simplesmente? Ou o desenvolvimento consciente,
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
181
Nesse contexto, devemos lembrar também que a adoção do termo
“sustentabilidade” vai se inserindo em vários ramos do conhecimento, sendo
trabalhada em seu aspecto econômico, social, ambiental e até cultural, não se
limitando mais à noção ambiental pura e simplesmente. E a temática do
desenvolvimento não fugiu à regra. A sustentabilidade incorporou-se à noção
primordial do desenvolvimento econômico, agregando a esse desenvolvimento os
aspectos sociais e ambientais. De desenvolvimento econômico puro e simples,
passa-se a chamar o desenvolvimento sustentável, que para alguns autores é o
próprio sinônimo de “sustentabilidade”14.
Fruto das necessidades sistêmicas contemporâneas, a sustentabilidade
passa a ser identificada, na temática do desenvolvimento, como desenvolvimento
sustentável, traduzindo-se em atuação conjunta de propostas que viabilizem o
desenvolvimento das nações, sem esquecer as necessidades de proteção ao meio
ambiente, e à própria sociedade. Preservar para progredir, em outras palavras.
Garantir a preservação do meio ambiente, e a proteção dos direitos humanos, antes
de se pensar em falar no desenvolvimento econômico. Assim, a noção de
desenvolvimento passa a apresentar uma complexidade que só poderia ser
explicada no estudo conjunto desses três aspectos, sociais, econômicos e
ambientais, e que traduzem as necessidades contemporâneas.
A eficiência do desenvolvimento passa por uma remodelação conceitual,
pois, se antes essa noção estava ligada somente a critérios econômicos, hoje aliam-
se critérios sociais e ambientais. É óbvio que essas três facetas não excluem outras
buscando alcançar o aprimoramento das relações econômicas, mas levando consigo a proteção ao meio ambiente e o combate à probreza, enquanto freios e contrapesos que serviriam para afastar a busca descontrolada e inconsequente do desenvolvimento econômico? Nesse contexto, sugeriu o Relatório que fosse promovida uma Conferência Mundial pela ONU para a discussão desses temas, em face de sua pertinência na época. Dois anos depois, em 1989, a ONU aprovou, em assembleia extraordinária, a necessidade da discussão de temas relativos ao meio ambiente e ao desenvolvimento. Após muitas revisões e ensaios, organizou-se a ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, onde compareceram representações de 179 países que aprovaram o programa de desenvolvimento vinculado às necessidades contemporâneas de proteção ambiental durante a mesma Conferência. Sugerimos visita na página eletrônica da ONU, para aprofundamento das atuais medidas destinadas a promover a sustentabilidade global: <http://www.un.org/en/>. (último acesso em 12 out. 2009).
14 Para José Casalta Nabais (2007, p. 369 e ss.), “desenvolvimento sustentável” e “sustentabilidade”
são sinônimos, e significam o desenvolvimento orientado para a luta contra a pobreza, por sua vez enfatizada pelo “(...) desenvolvimento comprometido com uma vida digna de ser vivida das gerações futuras(...)”.
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
182
possíveis de serem atreladas à noção de desenvolvimento sustentável, que, aliás,
pode apresentar muitas outras especializações, como, no aspecto social, promover a
proteção à cultura das sociedades, ou, no aspecto econômico, promover também o
desenvolvimento tecnológico, sem alterar o meio ambiente, de forma irreversível. E a
legislação também pode ser retratada nesse espectro, haja vista o evidente teor
instrumental que essa pode apresentar frente ao reconhecimento e promoção
desses ideais.
Aliás, a reflexão sobre a noção de sustentabilidade torna-se tão forte que
hoje em dia, adquiriu feições sistêmicas, apresentando diversos sentidos
especializados em múltiplos feixes da realidade, fruto da própria complexidade e
abertura do conceito original, vinculando elementos sociais, culturais, econômicos,
tecnológicos e até legislativos, por assim dizer.
O termo torna-se objeto de investigação e reflexão em vários ramos do
conhecimento, que buscam responder ao modo como essa expressão se insere e se
contextualiza nos objetos de conhecimento por eles investigados. Afinal, se o termo
sustentabilidade é passível de especialização temática, é óbvio que na esfera de
conhecimento por ela “invadida”, deverão haver necessárias adaptações conceituais
à realidade do objeto investigado, que, por sua vez, manterá relações com esse
novo conceito15.
4 A TERCEIRA FASE NO RECONHECIMENTO DA EXTRAFISCALIDADE: RUMO À EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL
No âmbito econômico, poderíamos afirmar que essa mudança de
perspectiva tem importância igual ou maior que a mudança feita por Keynes, e sua
Política Fiscal Anticíclica, ou às críticas sociais ponderadas de Wagner, no período
15
Graças à Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Agenda 21, bem como à Reunião de Copenhague para o Desenvolvimento Social, realizada em 1995, tem-se a maximização dos sentidos para o desenvolvimento sustentável, sempre referido ao desenvolvimento econômico, social, ambiental e cultural. Trata-se, portanto, de importantíssima mudança de visão quanto a postulados originalmente intocáveis, referentes ao desenvolvimento econômico pura e simples, que foram remodelados frente às novas necessidades provocadas pela alteração da visão acerca de certos problemas que não poderiam mais serem ignorados pelos povos da humanidade. Em uma política de desenvolvimento econômico que não mais atende aos anseios globais, busca-se a alteração dessa visão, objetivando atender às necessidades sociais e ambientais.
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
183
de declínio do liberalismo econômico clássico. Nesses dois periodos distintos, houve
a necessidade de nova roupagem para ideias tradicionais que já não satisfaziam
mais as necessidades daquelas realidades. Portanto, os paradigmas daquele
período incutiam novas necessidades em conceitos já desgastados. Seja agregando
o aspecto social ao liberalismo econômico, seja reformulando a política liberal para
uma política de intervenção na economia e na sociedade, duas etapas distintas –
porém complementares –, o atual paradigma que se encontra aos nossos olhos está
consubstanciado na necessidade de repensarmos a ideia de qual desenvolvimento
queremos. E essa pergunta também é válida no âmbito das finanças, já que o
aspecto financeiro sempre teve primordial papel para o desenvolvimento das
políticas estatais.
Aqui encontramos o ponto que liga a noção de sustentabilidade ao tema de
nosso estudo. Se a sustentabilidade apresenta aspectos políticos, econômicos,
sociais, ambientais, etc., evidente que sua reflexão também recai sobre o fenômeno
financeiro, e por extensão, sobre a atividade tributária. Mas isso não pode ser
novidade para os financistas, haja vista que a tributação sempre foi útil instrumento
para a implementação de políticas pré-determinadas, seja através da tributação
fiscal ou da tributação extrafiscal, veja-se o exemplo de Wagner e Keynes, sempre
incorporando à tributação, papel primordial para o desenvolvimento de determinados
objetivos, refletindo-se nos ordenamentos jurídicos nacionais. Nesse aspecto, o
elemento instrumental da tributação adquire relevância, quando analisamos as
possibilidades já apontadas pela doutrina para a utilização da tributação finalista.
Se partirmos da visão de Seligman, depois defendida por Laufenburger,
poderíamos aqui afirmar a conveniência da tributação fiscal (direcionada unicamente
à arrecadação) cuja utilidade serviria para alcançar a finalidade de distribuição dos
recursos arrecadados (pós-arrecadação). Ou seja, utilizar-se-ia a tributação fiscal,
para arrecadar receita e direcionar esses fundos aos objetivos previamente
estipulados e, nesse contexto, poderíamos inserir a noção de sustentabilidade, ou
desenvolvimento sustentável, aplicando-se políticas de favorecimento a esses ideais
preestabelecidos. Porém, nesse aspecto, a tributação não teria tantas modificações,
permanecendo com seus moldes conceituais e ideais originários, já que apenas
após a arrecadação, ou seja, escapando à esfera tributária, é que se daria
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
184
atendimento à sustentabilidade. Para nós, essa medida seria de pouca relevância,
haja vista que, muito mais interessante é a adoção direta da extrafiscalidade frente
ao ideal da sustentabilidade, ou desenvolvimento sustentável. Esta extrafiscalidade
já era incentivada por Wagner, remodelada por Keynes, e instigada por Newmark,
mas que agora encontra objetivo suficientemente forte para agregar novas ideias à
noção de extrafiscalidade, reconhecendo-a como conteúdo ainda em franco
desenvolvimento, cuja alteração dependerá do contexto histórico na qual é inserida
e dos próprios objetivos a serem alcançados.
Antes de relacionarmos a noção de extraficalidade é importante relacionar a
política fiscal contemporânea à noção de extrafiscalidade.
A política fiscal contemporânea tem recebido a divisão entre política geral
(visão tradicionalista liberal) e a política anticíclica ou compensatória (pós-Keynes),
geralmente atrelando a política anticíclica à ideia de extrafiscalidade (DOMINGUES
DEL BRIO, 1971, p. 24). Essa divisão estaria vinculada à noção de política fiscal
relacionada aos objetivos gerais como crescimento econômico, equilíbrio
orçamentário, e, naturalmente, no âmbito da política fiscal anticíclica, a objetivos
atrelados direta ou indiretamente às finalidades de intervenção na economia e na
sociedade. Para essa visão tradicional da política fiscal, o desenvolvimento se
limitaria à escolha de dados econômicos majoritariamente.
Portanto, a política fiscal contemporânea (seja na concepção clássica ou
anticíclica) que nos interessa, é aquela que serve aos ideais de desenvolvimento.
Mas a visão que temos de desenvolvimento é variável conforme a perspectiva
tradicional que se tenha sobre esse termo, ou a mais atual. Se a ideia de
desenvolvimento é a tradicional, estaremos falando da noção de desenvolvimento
manifestada pelos objetivos precipuamente econômicos (BALEEIRO, 1975, p. 102;
HICKS, 1967, p. 75-56; DUE, 1974, p. 16-17), como o crescimento econômico, a
estabilização dos preços, a aceleração do progresso, etc. Por outro lado, vimos que
a sustentabilidade proporcionou a rediscussão da noção de desenvolvimento, que,
não se esquecendo do aspecto econômico, também vincula a noção de
sustentabilidade, ou, em melhores termos, o desenvolvimento sustentável. O
desenvolvimento sustentável é aquele que não se limita aos objetivos econômicos,
avançando sobre as perspectivas econômicas e apontando objetivos na esfera
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
185
social (novamente) e ambiental. Essas novas perspectivas servem tanto para
estender a discussão do desenvolvimento às políticas sociais (renovadas) e
ambientais, como também servem de freios de uma política de desenvolvimento que
almeje o objetivo econômico pura e simplesmente.
Por isso, sustentar, tornar o desenvolvimento sustentável para as gerações
futuras. Se o desmatamento é inevitável para o desenvolvimento, que ele seja feito
atendendo a objetivos ambientalmente orientados, que podem ser, p. ex., a
vinculação do agente em garantir o reflorestamento futuro dessas mesmas áreas,
ou, em outra situação, garantir que o desenvolvimento esteja atendendo a objetivos
de índole social, visando proporcionar melhores condições de saúde, condições de
emprego, educação, assistência social, enfim, diversos pontos que interessam
diretamente à sociedade.
Por isso, o termo socioambiental é tão pertinente quando tratamos de
sustentabilidade, e, no âmbito da política fiscal para o desenvolvimento, a
socioambientalidade representa o novo paradigma que orienta as novas políticas
nesse setor, e limita a preferência exagerada aos aspectos econômicos, fornecendo-
nos, portanto, uma dúplice função, qual seja, a diretiva, e a limitadora.
Ademais, se a política fiscal de desenvolvimento está em vias de
transmutação, acrescentando à economicidade a socioambientalidade, é verdade
também que a política legislativa não escapa à influência da realidade e, nesse
caso, é possível já visualizarmos exemplos práticos dessa mudança de concepção.
Hoje em dia, tanto na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil podemos
visualizar a experiência contemporânea das Green Taxes, que conjuntamente às
medidas de proteções sociais, que embora sempre presentes, reforçam
progressivamente sua importância, são os maiores exemplos da extrafiscalidade
socioambiental. Afinal, se estamos tratando de impostos com objetivos ecológicos, é
claro que estamos falando também da socioambientalidade, objetivo que orienta a
política fiscal contemporânea.
Muito embora, o “desenvolvimento sustentável”, esteja geralmente atrelado à
locução inglesa “sustainable development”, que significa “(...) desenvolvimento
econômico com preservação”, aliando aspectos econômicos, ambientais e sociais
em uma única expressão, isso não impede a doutrina de tecer as pertinentes
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
186
especializações conforme a dimensão analisada (econômica, ambiental, social, etc).
(DINIZ, 1998, p. 482).
Seria possível também apresentar a noção de sustentabilidade vinculada
inclusive à estruturação ótima do sistema jurídico, já que sua amplitude permite essa
inserção. Porém, neste trabalho, optamos por apenas discorrer sob os aspectos que
tradicionalmente têm sido vinculados a essa expressão, qual seja, o aspecto
econômico, social e ambiental, reconhecendo que, no entanto, o aspecto jurídico
esteja necessariamente vinculado a esses aspectos anteriores, enquanto
instrumento de utilização de uma política orientada ao desenvolvimento sustentável.
Mas enquanto conceito que ganha cada vez mais espaço no âmbito das
Políticas Públicas e, sobretudo, fiscais, ocorre a pertinência de analisarmos como
esse conceito tem sido encarado diante do direito tributário atual.
5 O DIREITO TRIBUTÁRIO ARRECADATÓRIO E A EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL
O direito tributário, de idade relativamente recente, manifestou aspectos que
representavam a expressa preferência pela tributação fiscal, guardando poucas
menções à extrafiscalidade. Essa preferência visível remonta ao próprio período em
que foi criada a primeira codificação tributária, da ordenação tributária alemã de
1919. O Código Tributário, elaborado com assumida finalidade arrecadatória, deixou
poucos espaços para a adoção da extrafiscalidade em seu bojo. No entanto,
gradativamente, a extrafiscalidade vai permeando os ordenamentos posteriores, cuja
antecedência já era visualizada na Constituição Mexicana e na Constituição de
Weimar. De qualquer modo, a extrafiscalidade, como uma tendência histórica que
vai se manter, apresentará focos de instabilidade no reconhecimento da função
extrafiscal, atendo-se geralmente a objetivos sociais e, por vezes, econômicos como
a tributação aduaneira e políticas de proteção ao mercado interno, por exemplo.
Por outro lado, a doutrina do direito tributário acanhava-se quando tratava de
temas correlatos aos aspectos que fugiam à esfera do tradicional fiscalismo. De fato,
é de se asseverar que o direito financeiro nasceu com índole evidentemente liberal e
individualista. E essa característica, em grande medida, manteve-se,
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
187
convenientemente, pelas Codificações e Constituições tributárias, muito embora o
avanço arrecadatório sobre o patrimônio do contribuinte não possa ser considerado
efetivamente fruto de uma política liberal, pelo contrário. No entanto, essa tendência
individualista combatia a noção de atuação estatal direta através da tributação para
objetivos outros que não a arrecadação, ou seja, vincular o poder estatal à
instrumentalização dos tributos a objetivos econômicos e sociais, antes mesmo da
arrecadação.
Sejam esses motivos legítimos ou não, é perfeitamente compreensível que a
tributação fiscalista tenha ganhado terreno nessa época. Os juristas que se
dedicavam ao direito tributário, embora reconhecendo o fenômeno da
extrafiscalidade, limitavam-se timidamente a estabelecer descrições, muitas vezes
voltando-se à doutrina econômico-financeira, ou realizando breve descrição desses
fenômenos que estavam agora incorporados nas legislações nacionais, como
fenômenos aleatórios, acessórios, complementares da verdadeira função “fiscal”,
principal núcleo de suas controvérsias. Essa causalidade negativa também pode ser
relacionada ao perfil positivista-formal que gradativamente inseriu-se na doutrina do
direito tributário, afinal, se a codificação também foi uma demonstração de que o
positivismo jurídico estava superando, no campo da filosofia do direito, o
jusnaturalismo, é evidente que esse teor positivista também marcava os estudos de
direito tributário.
É claro que, no âmbito da doutrina jurídica, a clara intenção de Enno Becker,
responsável direto pelo Código tributário Alemão de 1919, em fortalecer a autonomia
do direito tributário frente ao direito privado, e a necessidade de estabelecer regras
de interpretação específicas para esse ramo do direito, também favoreceram em
muito a especialização da doutrina. Mas não foi só isso, afinal, se o direito tributário
estava permeado em várias de suas obras jurídico-doutrinárias de elementos de
origem econômico-financeira, esta característica também foi gradativamente retirada
pela doutrina posterior, sempre visando a “pureza” da matéria, e afastando-se de
critérios políticos, econômicos, sociais e filosóficos, caminhando para o reducionismo
epistemológico.
Nesse contexto, não é difícil compreender o limitado avanço alcançado pela
doutrina jurídica frente ao fenômeno que é tão amplo ou até mais (afinal, sua
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
188
abertura permite uma extensão de objetivos que só serão descobertos
gradativamente, conforme as variáveis necessidades da realidade), que a própria
fiscalidade. Para a doutrina contemporânea do direito tributário, guardando o
tradicional desapego aos outros aspectos do fenômeno financeiro, trabalhar com a
noção de extrafiscalidade, detidamente, significaria o risco de avançar sobre
aspectos que não seriam interessantes para a doutrina positivista-fiscalista.
Os tributaristas, muitas vezes revoltados com eventuais excessos na carga
tributária, e quase sempre servindo de escudo para possíveis abusos de poder
tributário, quando não manifestavam visão ideológica liberal individualista, viam não
raramente o papel da tributação como uma invasão ao contribuinte, concentrando
muitas vezes seus esforços em garantir uma estrutura normativa sistematizada e
harmônica do sistema tributário. Este, por sua vez, serviria para fundamentar a
sensível relação de forças entre o contribuinte e Estado (relação jurídica, por assim
dizer), que não acompanhava as vastas capacidades que a tributação extrafiscal
oferecia à sociedade.
É compreensível que o direito tributário e os próprios tributaristas, tenham se
privado do avanço na doutrina da extrafiscalidade, explorando suas possibilidades
aplicativas, em prol do embate frente ao ideal fiscalista arrecadatório, princípio
máximo do estado fiscal contemporâneo16. É fácil observar a aparente antítese entre
o Estado arrecadador, ou seja, o estado que estrutura o ordenamento jurídico com o
único objetivo de arrecadação de receita, do Estado promotor de políticas
econômicas e sociais, agindo pelos instrumentos financeiros, em especial o
tributário. Portanto, a dificuldade histórica para os avanços legislativos nessa área é
compreensível. Entretanto, quase um século se passou e a doutrina, e o próprio
Estado, ainda mantém como prevalecente aquela tradicional visão fiscalista
arrecadatória, de cunho prioritariamente econômico, caminhando contra a corrente
da realidade contemporânea e do próprio processo de desenvolvimento natural do
conhecimento científico, afastando-se das possibilidades de rediscussão de
16
Para o aprofundamento das consequências nefastas que a ideia de direito de arrecadação
enquanto causa para as complexas relações entre Fisco versus Contribuinte, bem como para a
compreensão da visão minimalista do Direito Tributário, sugerimos a leitura de: Marins (2009, p.
12 e ss.).
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
189
determinadas prioridades que a atualidade reclama, veja-se, p. ex., o caso da
socioambientalidade.
É bastante claro que, quanto mais a doutrina do direito tributário procurou
investigar e descrever o objeto fechado e protegido constitucionalmente de abusos
do poder público, com suas limitações ao poder de tributar, criou, por outro lado, um
efeito colateral constrangedor, que é o de compreender o direito tributário
restritivamente, como se fosse uma caixa fechada, que não se abre para novos
conceitos, sob o pretexto de que o risco da inserção de novos conceitos, oriundos de
outras áreas do conhecimento, serviriam para desprestigiar e descaracterizar a
doutrina do direito, tão esforçada em ver o reconhecimento científico das ciências
naturais ou exatas.
Essas causas contribuem em muito para a limitada esfera dos estudos da
extrafiscalidade que têm no Brasil alguns poucos estudos dignos de nota, muito
embora o fenômeno tenha sido sempre especificado na história dos ordenamentos
jurídicos brasileiros. Felizmente, com o novo paradigma da socioambientalidade,
especialização da extrafiscalidade frente ao ideal de sustentabilidade, abre-se novo
espaço para as discussões também jurídicas desses novos conceitos que são
gradativamente inseridos nos ordenamentos jurídicos. Afinal, se o direito tributário
pode ser entendido enquanto instrumento para a adoção dessas políticas, também
aos estudiosos do direito tributário interessa conhecer as novas concepções que vão
surgindo, possibilitando assim o progressivo avanço e atualidade da matéria frente
às inovações trazidas da realidade e que logo estarão impressas em seus
ordenamentos.
Trata-se de rara oportunidade para os estudiosos de variados ramos do
conhecimento, inclua-se a ciência do direito, para apreender novos conceitos que
representam essa nova (mas nem tanto assim) realidade. O direito tributário não
deve manter sua visão à anacrônica extrafiscalidade de quarenta a sessenta anos
atrás, enxugada pelas discussões dos financistas e adaptada literalmente à
realidade jurídico-tributária. Essa estreita visão, só pode prejudicar a adequada
instrumentalização da tributação às finalidades pela qual fora criada.
Se o jurista não compreende esse novo perfil, dificilmente interpretará
adequadamente a norma que a representa no ordenamento jurídico, pois, onde ler
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
190
“função social”, sua mente remeterá aos esforços wagnerianos – não
necessariamente conhecendo a obra de Wagner - em divulgar o ideal de justiça
redistributiva, ou de promoção ao pleno emprego de Keynes. Hoje a função social é
muito mais ampla e indica inclusive a necessidade à promoção da dignidade da
pessoa humana e à proteção das futuras gerações afetadas por qualquer medida
econômica presente, abarcando todas as medidas que promovam direta ou
indiretamente tais finalidades.
Por outro lado, a tributação ambientalmente orientada, se sequer era
imaginada há sessenta anos, torna-se o principal chamariz da extrafiscalidade
contemporânea, de modo que esta – desenhada hoje –diverge daquela de ontem.
Diverge porque as necessidades em jogo são diferentes. Se antes não fazia sentido
falar em tributação ambientalmente orientada, hoje as Green Taxes são uma das
medidas fundamentais da Política de proteção ao meio ambiente, gerando inclusive
o fenômeno mundial que tem sido denominado de Green Tax Reform, tamanha sua
importância contemporânea. Se antes a seletividade incutida constitucionalmente em
alguns impostos, estava atrelada a ideais econômico-sociais que refletiam na noção
de “essencialidade”, hoje poderíamos inclusive evidenciar que a
socioambientalidade deveria ser incorporada como índice para identificação do que
é essencial, servindo de fundamento para que determinadas condutas
socioambientalmente orientadas passassem a ser reconhecidas como “essenciais”,
e, por isso, merecedoras do benefício da seletividade.
Nesse contexto, julgamos conveniente apresentarmos breve proposta de
definição sintética do fenômeno atinente à extrafiscalidade socioambiental: a
extrafiscalidade socioambiental é a utilização de mecanismos tributários vetorados
para a obtenção de resultados sociais e ecológicos sistemicamente sustentáveis.
Logo, a extrafiscalidade socioambiental é instrumento de natureza tributária de
intervenção do Estado na ordem econômica, com o objetivo de promover (induzir)
melhores condutas sociais e ambientais e inibir comportamentos econômicos
geradores de externalidades negativas.
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
191
6 DIREITO TRIBUTÁRIO E O EXEMPLO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO DA EXTRAFISCALIDADE SOCIOAMBIENTAL
Como já afirmamos, o grande exemplo contemporâneo do redirecionamento
da função extrafiscal está consubstanciado na extrafiscalidade socioambiental,
verdadeiro instrumento para a consecução do desenvolvimento sustentável, ou da
sustentabilidade. Logo, sustentabilidade e socioambientalidade caminham juntas,
pois a primeira é o ideal a ser alcançado pela segunda, que manifestada na
tributação, ganha espaço na extrafiscalidade. Assim, podemos citar como exemplo
dessa nova visão a crescente atenção às green taxes, ou tributos “verdes”, com
evidente característica extrafiscal socioambiental, já que a socioambientalidade está
ligada diretamente ao correto desenvolvimento da sociedade, protegida por medidas
ambientalmente orientadas.
De fato, a Green Tax Reform, ou Reforma Fiscal Verde, tem acrescentado
adeptos dessas políticas no mundo inteiro, alcançando sensíveis resultados
positivos17.
No Europa, a Green Tax Reform e a Política Tributária Energética alcançam
notável ponto de partida, demonstrando a preocupação a respeito das
consequências ambientais da atividade econômica, e promovendo políticas
preventivas e repressivas de orientação do comportamento ambientalmente
estruturado. Por exemplo, na Inglaterra, houve reduções em determinadas
contribuições sociais para que os contribuintes tivessem maior aceitação na criação
da CCL – Climate Change Levy. A Política Ambiental Tributária Inglesa está
baseada em acordos voluntários, e aquelas empresas que se inscrevem nos
Voluntary Agreements, aceitando as suas condições, poderão ter reduções no CLL
de até 80%. Situação análoga é encontrada nas demais Políticas Tributárias
Ambientais na Europa, onde a Green Tax Reform recebeu forte acolhida18.
17
“Ecotributos não apenas são considerados a forma superior de política fiscal em relação a outro
meios mais convencionais de tributação, como são tidos como instrumento superior de política
ecológica em comparação com outras ferramentas mais convencionais de política ambiental”
(Green Budget Germany, FÖS – Förderverein Ökologische Steuerreform). 18
Existem medidas tributárias dessa natureza em diversos países europeus, como na Alemanha,
França, Suécia, Noruega, Holanda, Finlândia, Dinamarca, etc.
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
192
Já no Brasil, a tributação extrafiscal socioambiental também abraçou as
Green Taxes (FERRAZ, 2005, p. 333 e ss.; SCHOUERI, 2005, p. 235; MORAES,
2005, p. 597), que proporcionaram aproximação do sistema tributário brasileiro
frente às perspectivas ambientais da sustentabilidade, lembrando que a proteção
ambiental, em virtude das peculiaridades do nosso próprio país, já havia sido objeto
de tributos extrafiscais, como a criação de incentivos tributários19 com finalidades
ambientais.
Também apresentam papel de relevo para o impulso das Green Taxes o art.
170 (inc. VI) 20 e o art. 225 da atual Carta Magna, relativo ao meio ambiente. Estes
dispositivos foram influenciados pelos debates ambientalistas promovidos pelas
Conferências Internacionais na época, sobretudo aquelas promovidas pela ONU. Por
isso a necessidade de se garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, impondo-se o dever ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para que as gerações futuras possam desfrutar do meio
ambiente protegido. Note-se que esta ideia está atrelada diretamente à noção de
sustentabilidade – ou desenvolvimento sustentável – o que demonstra a grande
influência daquelas conferências internacionais na elaboração desse notável
dispositivo. São, portanto, dois dispositivos constitucionais que reputamos essenciais
no estudo jurídico desses instrumentos tributários no ordenamento jurídico brasileiro.
19
Por exemplo, o Decreto Federal 755 de 1993 estabeleceu alíquotas diferenciadas para o IPI para
carros movidos à gasolina (de 25% a 30%) e à álcool (de 20% a 25%). Muito embora não tivesse a
finalidade extrafiscal ambiental, mas de incentivar o consumo de álcool, acabou propiciando uma
diminuição da poluição ambiental nas cidades. Por outro lado, a Lei 9393 de 1996, referente ao
ITR – Imposto Territorial Rural - apresenta medidas de desestímulo às propriedades improdutivas.
Ainda, a Lei 5.106 de 1966 apresentava semelhante caráter, pois também apresentava a
tendência ambiental, pois autorizou o abatimento (de até 50% dos impostos de pessoas jurídicas)
dos montantes gastos em florestamentos e reflorestamentos. A própria Constituição da República,
quando trata da repartição das receitas tributárias, destaca, em seu art.158, a parcela cabível aos
municípios (inc. I), apresenta finalidades extrafiscais. 20
Além disso, a Constituição de 1988 também apresenta outros dispositivos extrafiscais, como,
p.ex., no art.146, que estabelece competência da Lei Complementar para definição de tratamento
diferenciado e favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte, concedendo
também a possibilidade de regimes especiais ou simplificados para o ICMS (alínea d). Também
previu a seletividade para determinados produtos essenciais tributados pelo ICMS
(facultativamente) (inc.155, parágrafo 2º, inc.III) e pelo IPI. (art. 153, parágrafo 3º, inc. IV).
Naturalmente, o próprio art. 225 que estabelece a política ambiental brasileira, também merece
destaque.
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
193
Dentre os exemplos mais conhecidos de Green Taxes, obviamente
destinados ao objetivo extrafiscal socioambiental, citamos, em primeiro lugar, o
chamado “ICMS Ecológico”, que é compreendido como sendo a denominação para
qualquer critério ou a conjunto de critérios de caráter ambiental, usado para
estabelecer o percentual que cada município de determinado Estado tem direito de
receber quando do repasse constitucional da quota-parte do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Portanto, com o ICMS Ecológico não
se criou novo imposto, mas foi instituída nova orientação (extrafiscal) para a
destinação de imposto já existente, a de observar exigências destinadas à proteção
ambiental21.
A Política Nacional Energética22 também abriu espaço para a
implementação da Green Tax, manifestada na CIDE Combustíveis. A CIDE –
Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico – Petróleo apresenta
previsão constitucional de destinação que se remete às questões ambientais. Veja-
se, portanto, a grande abertura à Política Ambiental fornecida pela destinação e
redução do imposto atendendo às finalidades extrafiscais. A CIDE é instrumento
fundamental da Política Extrafiscal Socioambiental no Brasil, consubstanciada na
atual tendência da criação das Green Taxes.
Quanto ao aspecto ambiental da CIDE Combustíveis, a Lei 10.336 de
200123, ao instituir a CIDE Combustíveis, destinou o produto da arrecadação, em
seu parágrafo primeiro, na forma de lei orçamentária, ao: “I - pagamento de
subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus
derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais
21
O Estado Pioneiro é o Paraná, através da Lei Complementar 59 de 1° de outubro de 1991 – Lei do
ICMS Ecológico (que está previsto no art.4º) ou Lei dos Royalities Ecológicos. 22
No que diz respeito à Política Energética, a tributação extrafiscal no Brasil também apresenta
importante manifestação legal. Nesse sentido, algumas leis vieram estabelecer o regime jurídico
geral para a política energética de combustíveis: a) Lei 8176 de 1991 – lei que define crimes
econômicos e dispõe sobre estoques de combustíveis; b) Lei 9748 de 1997 – Lei do Petróleo -
Dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo,
institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e dá outras
providências, que flexibilizou a política de exploração petrolífera no Brasil; c) Lei 11.097 de 2005 –
Introduz o Biodísel na matriz energética brasileira; d) Lei 11.909 de 2009 – Dispõe sobre as
atividades de transporte de gás natural no Brasil. 23
Art.1º da Lei nº 10.336, de 19 de dezembro de 2001.
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
194
relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de
programas de infraestrutura de transportes”.
Nesse contexto, a Lei 10.636 de 2002, em seu artigo 4º, apresentou-nos
manifesta característica extrafiscal ambiental, destinando os projetos ambientais
relacionados com a indústria do petróleo e do gás a serem contemplados com os
recursos da CIDE, conforme a previsão da alínea “b”, inciso II do parágrafo 4º do
artigo 177 da Constituição Federal, que devem ser administrados pelo Ministério do
Meio Ambiente.
De qualquer modo, podemos afirmar que a extrafiscalidade socioambiental
estará inevitavelmente inserida nos próximos anos com maior força no sistema
tributário nacional. Isso porque a socioambientalidade está prevista nos atuais
projetos de Reforma Tributária. Muito embora seja improvável a veiculação da
Reforma Tributária para este ano e, provavelmente, para 2011, podemos confirmar,
pela leitura desses projetos, que já existem importantes alterações a serem
realizadas no regime tributário das Green Taxes brasileiras, e, consequentemente,
representando o passo adiante no que diz respeito à extrafiscalidade
socioambiental. Ademais, também vinculam conceitos à Constituição Tributária que,
por sua vez, apontam o caminho para o reconhecimento da terceira fase da
tributação extrafiscal no sistema tributário brasileiro.
Podemos citar, dentre as propostas principais, a PEC 233/08 – referente à
reforma tributária, e à PEC 353/09, destinada à reforma tributária ambiental, que, por
sua vez, apresenta as seguintes características: (a) introdução da extrafiscalidade
ambiental em todos os impostos e contribuições; (b) criação de imunidades
tributárias em favor de bens e serviços ambientalmente interessantes; (c) repartição
de receitas tributárias em razão de critérios ambientais24.
É de se notar que o uso da expressão “socioambiental” é expressamente
reconhecido pelos elaboradores do Projeto, demonstrando a influência das atuais
necessidades contemporâneas vinculadas à noção de sustentabilidade. Ora, como
24
No que diz respeito às contribuições de intervenção no domínio econômico (art. 149), por
exemplo, há, na PEC 353, a seguinte redação “Sempre que possível, deverão se orientar pela
seletividade socioambiental e terão suas alíquotas fixadas em função da responsabilidade
socioambiental das atividades desempenhadas pelo contribuinte”.
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
195
afirmamos em linhas anteriores, a atividade tributária não escapa de seu perfil
político, e das influências externas. Por isso não é de se estranhar que o termo
“socioambiental” esteja presente nas propostas legislativas e até em Emendas à
Constituição, motivo pelo qual reforçamos ainda mais a necessidade de que nossos
tributaristas atenham-se com maior afinco à nova etapa da extrafiscalidade.
Outro exemplo atualíssimo que demonstra a importância da tributação
extrafiscal socioambiental diz respeito, na legislação infraconstitucional, à proposta
que institui o “Regime Especial de Tributação para o Incentivo ao Desenvolvimento e
à Produção de Fontes Alternativas de Energia Elétrica” (Reinfa), fixando medidas de
estímulo à produção e ao consumo de energia limpa, que foi aprovada no dia 08 de
outubro de 2009, pela Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI)25.
O Projeto de Lei que introduz o citado Regime Especial contribui para nossa
fundamentação, no sentido de que a extrafiscalidade socioambiental é realidade que
não escapa mais aos olhos de nossa Política Legislativa. Nada mais natural, afinal,
como já havíamos afirmado no início deste estudo, a atividade tributária extrafiscal
contemporânea vive nova remodelação em face dos ideais contemporâneos de
sustentabilidade sistêmica. Evidente que o Reinfa, se inserido em nosso sistema
tributário, vem a contribuir ainda mais para o reconhecimento da extrafiscalidade
socioambiental.
E dentro dessa nova realidade, é imperiosa a adaptação da doutrina
brasileira, pois a perspectiva da tributação extrafiscal socioambiental já se encontra
reconhecida em nossos projetos vinculados por nossos legisladores. O Sistema
Tributário Nacional não poderá mais afastar-se das perspectivas extrafiscais
socioambientais que inundam nossos atuais projetos de alteração constitucional ou
infraconstitucional.
25
O Projeto de Lei (PLS 311 de 2009) estabelece a possibilidade do recebimento de benefícios
fiscais oriundos do Reinfa, para aquelas empresas que trabalhem com geração de energia elétrica
com fonte eólica, solar ou marítima, assim como para as empresas que exerçam atividade de
pesquisa, desenvolvimento e produção de equipamentos destinados à geração dessa natureza de
energia, ou na produção de novas tecnologias ou de armazenamento de energia, dentre outras
medidas. No entanto, ressaltamos que já existem emendas a esse Projeto.
Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
196
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tributação extrafiscal seguiu o revivamento proporcionado pela expressa
tendência à utilização da tributação extrafiscal socioambiental, que representa a
nova manifestação contemporânea da política extrafiscal influenciada pela crescente
conscientização mundial para as necessidades de conservação e proteção
socioambiental, sempre remetidas aos atuais discursos em defesa da
sustentabilidade sistêmica, inspirando o Brasil e as demais nações do planeta.
Se o sistema tributário brasileiro já dá sinais de adaptação às exigências da
sustentabilidade sistêmica, da qual a extrafiscalidade socioambiental é seu veículo
principal, não nos parece aceitável que a doutrina ainda se mantenha tímida frente à
realidade tão evidente.
É imprescindível que hoje, para uma adequada interpretação das normas
que direta ou indiretamente relacionam-se a essa manifestação da extrafiscalidade,
os estudos jurídicos aproximem-se, sem pré-conceitos, dos conhecimentos
adquiridos por outros ramos do direito, sobretudo, neste caso, a economia e a
política fiscal, social e ambiental. Seja para entender como esse fenômeno procede
nessas realidades, seja para realizar as adequadas adaptações conteudísticas à
exigência do ordenamento jurídico tributário, é evidente que a socioambientalidade
está cada dia mais perceptível aos olhos dos intérpretes do direito tributário. Apesar
da histórica tendência de “direito de arrecadação” que se vinculou ao direito
tributário, e, por sua vez, às tendências individualistas, restritivas, e fiscalistas, além
dos entraves metodológicos desenvolvidos pela doutrina frente a estudos
interdisciplinares, a chave para a compreensão de fenômenos correlatos escapa à
perspectiva minimalista já consolidada em nossa doutrina.
Despidos desses entraves que só prejudicam a correta análise do fenômeno
financeiro, este sempre complexo, independentemente da perspectiva que seja
analisado, a extrafiscalidade socioambiental deverá ser estudada com maior afinco
progressivamente frente às novas exigências socioambientais direcionadas ao
desenvolvimento sustentável, que a cada dia ficam mais fortes, na medida em que a
consciência de que o progresso econômico muitas vezes possui seu preço, na
James Marins e Jeferson Teodorovicz
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
197
maioria das vezes, imperceptível em curto ou médio prazo, mas devastadores em
longo prazo.
Portanto, esse redimensionamento da finalidade extrafiscal, agora orientada
pelos ideais de sustentabilidade, é realidade de que os financistas, economistas,
legisladores e juristas não poderão se esquivar.
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Rumo à extrafiscalidade socioambiental
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
200
GRUPOS DE DISCUSSÃO
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
201
AS ATUAIS TENDÊNCIAS DE REFORMA DO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL E A PROMESSA DE
CONSTITUCIONALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO DO
SISTEMA PROCESSUAL PENAL VIGENTE1
CURRENT TRENDS OF THE REFORM OF THE CODE OF CRIMINAL PROCEDURE AND PROMISE CONSTITUTIONALIZATION AND DEMOCRATIZATION OF CRIMINAL PROCEDURE FORCE
Clara Maria Roman Borges2
Resumo
O presente texto analisa as últimas alterações pontuais realizadas na legislação processual penal brasileira no ano de 2008, de modo a ponderar os avanços e retrocessos no caminho de constitucionalização e democratização do processo penal brasileiro. Além disso, busca estudar o PLS nº 156/09, que propõe a reforma global do atual CPP, de modo a identificar as falhas que podem afastar a futura legislação dos referidos objetivos.
Palavras-chaves: direito processual penal; Constituição; Democracia.
Resúmen
Este trabajo analiza los últimos cambios realizados en la legislación específica de procedimiento penal en Brasil en el 2008, para examinar los avances y retrocesos en el camino de la democratización y la constitucionalización del proceso penal brasileño. Por otra parte, se busca estudiar el PLS nº 156/09, que propone la reforma del actual CPP, con el fin de identificar las deficiencias que pueden impedir la futura legislación de lograr esos objetivos.
Sumário: 1. Uma breve análise dos sistemas processuais penais contemporáneos. 2. A
reforma parcial de 2008 e seus retrocesos. 3. As modificações propostas PLS nº
156/09: uma tentativa de constitucionalização do processo penal. Referências
bibliográficas.
1 Palestra proferida em 21.05.2010, no Grupo de Estudos do IX Simpósio Nacional de Direito
Constitucional, realizado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, em Curitiba-PR. 2 Mestre e Doutora pela UFPR. Professora Adjunta de Direito Processual Penal na UFPR.
Advogada.
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
202
1 UMA BREVE ANÁLISE DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS CONTEMPORÂNEOS
Segundo Franco Cordero, na tradução de Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho, verifica-se na atualidade a existência de duas espécies de sistemas
processuais: o inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, que impõe a gestão das
provas ao juiz, e o acusatório, regido pelo princípio dispositivo, que atribui a gestão
das provas às partes (COUTINHO, 2000).
Nas palavras do processualista italiano, esses sistemas se originaram
respectivamente na Inquisição Medieval, estruturada pela Igreja Católica para
manter seu poder abalado pela racionalidade aristotélica das caravanas de judeus e
árabes3, e no trial by jury inglês, forjado também na Idade Média pelo Rei Henrique II
para manter seu domínio sobre os barões4.
Contudo, ele ressalta que com o passar dos anos tais sistemas não
conservam mais sua forma pura e o que se vê nos dias de hoje são sistemas
inquisitórios em sua essência e permeados por elementos secundários advindos do
sistema acusatório e vice-versa (COUTINHO, 2000).
Como se vê, ao contrário da grande maioria dos processualistas pátrios,
este italiano utiliza o critério da gestão das provas para diferenciar os sistemas e
refuta a visão tradicional que os identifica a partir da existência ou não de partes no
processo, isto é, nega que os sistemas inquisitórios são aqueles cujo processo não
comporta partes, os acusatórios cujo processo possui partes5, ou ainda que os
sistemas mistos têm um processo bipartido, com uma fase inquisitória e outra
acusatória6.
3 O sistema inquisitório foi estruturado pela Igreja Católica por volta de 1215 para punir os hereges,
isto é, os que contrariavam suas escrituras, uma vez que seu número havia aumentado
consideravelmente desde que a racionalidade aristotélica penetrara nos feudos e colocara em
risco o domínio dos bispos. Vide: Cordero (1986, p. 43 e ss.). 4 O sistema acusatório surgiu na Inglaterra, em 1166, quando Henrique II, criou no Tribunal de
Assise, o procedimento do Trial by jury, por meio do qual um órgão colegiado composto de
membros da comunidade e organizado por sheriff (juiz real itinerante) decidia inicialmente as
questões de terra e mais tarde todas as demais. Com este procedimento, o rei inglês submeteu
todos aos seus tribunais, inclusive os seus opositores barões, e ganhou consequentemente o
apoio popular. Vide: Cordero (1986, p. 41 e ss.) e Gilissen (1988, p. 210 e ss.). 5 Veja-se por todos Marques (1960, p. 9-14).
6 Veja-se por todos Tourinho Filho (2003, p. 91).
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
203
Adota tal posicionamento em razão do estudo histórico que desenvolveu a
respeito dos sistemas processuais, os quais o permitiram verificar em determinados
momentos civilizatórios a existência de sistemas cujos processos formalmente
comportavam partes, embora estas não possuíssem liberdade para produzir a prova
necessária à comprovação de suas alegações.
Desta maneira, constatou que estes sistemas se aproximavam muito mais de
uma racionalidade inquisitória do que da democracia acusatória, inclusive porque
admitiam que o juiz atuasse enredado em quadros mentais paranoicos, isto é,
formulasse sua versão dos fatos e se utilizasse da gestão da prova para confirmá-la
por meio da confissão (CORDERO, 1986, p. 51). Aliás, exemplifica esta situação
com o sistema reformado napoleônico, estruturado pelo Código de Instrução
Criminal, que entrou em vigor no ano 1811 e foi responsável pela criação de um
processo que sob uma máscara acusatória escondia a verdadeira essência
inquisitória herdada do velho regime7.
Ademais, em seus escritos Franco Cordero também afasta a possibilidade
de um sistema misto, na medida em que a concepção kantiana por ele adotada não
admite a existência de um sistema regido por um princípio unificador que expresse
ideias tão incompatíveis, ou seja, não consegue vislumbrar um sistema processual
em que a gestão das provas se encontre simultaneamente nas mãos do juiz e das
partes8.
7 Nas palavras de Franco Cordero, o processo reformado napoleônico implicou verdadeiro retorno
ao sistema inquisitório estruturado pelas Ordenações Criminais de 1670: “E assim, em 17 de
novembro de 1808, nasce o processo dito misto, monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros
da instrução reina Luís XIV, segue uma cena pública disputada e com a participação popular.” Ou
seja, segundo ele, tratava-se de um processo cuja instrução era secreta e o julgamento público,
não passava de um verdadeiro golpe de cena para ocultar a inquisitoriedade do sistema. [trad. da
autora] “E così, dalla l. 17 novembre 1808, nasce il processo cosiddetto misto, mostro a due teste:
nei labirinti bui dell’instruction regna Luigi XIV, segue una scena disputata coram populo.”
(CORDERO, 1986, p. 73) 8 “Salvo os menos avisados, todos sustentam que não temos, hoje, sistemas puros, na forma
clássica como foram estruturados. Se assim o é, vigora sempre sistemas mistos, dos quais, não
poucas vezes, tem-se uma visão equivocada (ou deturpada), justo porque, na sua inteireza, acaba
recepcionado como um terceiro sistema, o que não é verdadeiro. O dito sistema misto, reformado
ou napoleônico é a conjugação dos outros dois, mas não tem um princípio unificador próprio,
sendo certo que ou é essencialmente inquisitório (como nosso), com algo (características
secundárias) proveniente do sistema acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns
elementos característicos (novamente secundários) recolhidos do sistema inquisitório. Por isto, só
formalmente podermos considerá-lo como um terceiro sistema, mantendo viva, sempre, a noção
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
204
Destarte, nos termos da classificação corderiana é possível afirmar que o
sistema processual penal brasileiro, estruturado pelo CPP de 1941 com base na
legislação italiana fascista9, é essencialmente inquisitório, uma vez que tal legislação
prevê expressamente em seu art. 156 a possibilidade do juiz produzir provas de
ofício10, bem como em vários outros dispositivos admite que o julgador indefira o
requerimento de produção de provas feito pelas partes11.
Ainda quanto ao sistema estruturado neste Código, entende-se que mesmo
após a reforma de meados de 2008, mantém a sua matriz autoritária incompatível
com os princípios processuais estabelecidos no rol de direitos e garantias
fundamentais da Constituição de 1988.
A labuta diária nos fóruns criminais faz sentir na pele que, apesar das boas
intenções dos responsáveis pelas últimas reformas inspiradas ainda no velho Projeto
Frederico Marques, a lógica inquisitória se faz presente na produção das provas e a
recente opção pela oralidade diminuiu ainda mais o espaço de defesa daqueles que
não possuem condições de contratar advogados juridicamente preparados
(COUTINHO, 2008).
A grande questão que agora martela a mente daqueles que anseiam pela
democratização do processo penal brasileiro é justamente saber se a alteração
referente a seu princípio unificador, até porque está aqui, quiçá, o ponto de partida da alienação
que se verifica no operador do direito, mormente o processual, descompromissando-o diante de
um atuar que o sistema está a exigir ou, pior, não o imunizando contra os vícios gerados por ele.”
(COUTINHO, 2000, p. 17-18). 9 ‘Aprovado em 19 de outubro de 1930, nr. 1399, o novo código vige desde 1º de julho seguinte: No
plano técnico vale alguma coisa a mais que seu predecessor. Alfredo Rocco e Vincenzo Manzini
desenvolveram sobretudo em lógica quadrada o assunto criptoinquisitório do velho texto,
enterrando impiedosamente aquele semigarantismo; não falta uma rude moralidade na operação;
eis o que significa ‘processo misto’, para ser coerente.” [trad. da autora] ““Approvato dal r. d. 19
ottobre 1930, nr. 399, il nuovo codice vige dal 1º luglio seguente. Sul piano tecnico vale qualcosa
più del predecessore. Alfredo Rocco e Vicenzo Manzini hanno soltanto sviluppato in logica
quadrata l’assunto criptoinquisitorio del vecchio testo, afossando impietosamente quel
semigarantismo; non manca una rude moralitá nell’operazione: ecco cosa significa ‘processo
misto’, a essere coerenti.” (CORDERO, 1986, p. 100). 10
“Art.156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
(...)” 11
Por exemplo, em seu art. 212, o atual CPP abre espaço para que o juiz indefira as perguntas feitas
pelas partes às testemunhas: “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à
testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.”
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
205
legislativa proposta pelo Projeto de Lei nº 156/09 será capaz de retirar a gestão da
prova das mãos do juiz e superar a falta de democracia da legislação anterior.
2 A REFORMA PARCIAL DE 2008 E SEUS RETROCESSOS
Como mencionado, as reformas do Código de Processo Penal, que
ocorreram em meados de 2008, foram concebidas em projetos que iniciaram o seu
trâmite legislativo em 2001, porém gestados ainda na década de setenta sob o nome
de Projeto Frederico Marques.
Este projeto, que recebeu seu nome em homenagem ao grande
processualista brasileiro, tem uma história marcada por interrupções e não chegou a
encerrar sua tramitação no Congresso Nacional. Sua primeira versão foi entregue
em 1970, ao ora Ministro da Justiça Alfredo Buzaid e tinha por inspiração o Projeto
Helio Tornaghi (1963), porém antes que se tornasse projeto de lei teve que ser
redesenhado e republicado para compatibilizar-se com as alterações feitas pela Lei
nº 601/1973 no vigente Código Penal. Então, somente em 1975 retomou a sua
tramitação e se tornou o PL nº 633/75, que foi publicado por ordem do Presidente da
Câmara dos Deputados, Sérgio Murilo, e discutido no âmbito de uma Comissão
Especial. Contudo, seu texto não chegou a ser aprovado pelo Senado. Diante deste
impasse, o referido Deputado apresentou na Câmara Federal um novo projeto de lei,
com o mesmo texto do PL nº 633/75, mas não logrou êxito em sua aprovação.
Somente em 1981, após revisão realizada sob a batuta do próprio professor
Frederico Marques, o Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel por meio de uma portaria
autorizou a publicação do anteprojeto de Código de Processo Penal, que tinha por
base o velho e conhecido PL nº 633/75. Todavia, este texto logo foi retirado
novamente da pauta de discussões, pois incompatível com as exigências do
contexto da reabertura política pela qual passava o Brasil. Muitos anos depois,
algumas das ideias do Projeto Frederico Marques foram retomadas nos projetos de
reforma parcial do CPP, concebidos entre 1990 e 2001, que culminaram com as
recentes alterações concretizadas em agosto de 2008. Estes projetos tinham por
objetivo dar ao Código fascista que serviu à perseguição dos inimigos do regime
getulista uma nova sistematização capaz de lhe fornecer maior apuro técnico e
assim aproximar definitivamente o processo penal do perfeito processo civil, nos
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
206
moldes arquitetados pela Teoria Geral do Processo (PIERANGELLI, 1983, p. 170-
171).
Apesar das críticas que se possa tecer a respeito da adesão a esta teoria
que torna míope a visão do processo penal na medida em que retira a nitidez de
suas peculiaridades em relação ao processo civil, não se pode negar que os antigos
reformadores tinham por objetivo democratizar o processo penal brasileiro, abrindo
espaço para o contraditório e oportunizando a ampla defesa.
Contudo, após inúmeras alterações esses projetos foram deformados e sua
antiga missão parece ter sido esquecida, pois o texto aprovado em 2008 representa
verdadeiro passo atrás neste caminho que levava, ainda que de forma acidentada, à
destruição gradual da matriz inquisitória do processo penal vigente.
Um estudo detalhado das Leis nos 11.689/08, 11.690/08, 11.719/08, que
reformularam respectivamente o procedimento do Tribunal do Júri, os dispositivos
relativos à produção probatória e os procedimentos comuns ordinário e sumário,
permite perceber este evidente retrocesso no caminho de efetivação das garantias
processuais previstas no texto constitucional há quase vinte anos.
Ressalte-se que Lei n° 10.719/08 (que entrou em vigor dia 22.08.2008) deu
nova redação ao novo texto do art. 36212, com a introdução da citação por hora certa
nos casos em que o oficial de justiça constata que o acusado se oculta para não ser
citado, isto é, permitiu nessas situações que o acusado não seja citado
pessoalmente, mas por meio de um vizinho ou familiar.
Note-se que a reforma realizada em 199613 na estrutura da citação teve o
condão de acabar com qualquer possibilidade de processamento do caso penal sem
a ciência do acusado, isto é, foi responsável por impedir que os acusados fossem
condenados sem que lhes fosse oportunizada a participação no processo. Sabe-se
que tal alteração legislativa tinha por objetivo compatibilizar o CPP com o texto
constitucional de 88 e os recentes tratados internacionais daquela época, que
asseguravam a ampla defesa e o contraditório.
12
“Art. 362. Verificando que o réu se oculta para não ser citado, o oficial de justiça certificará a
ocorrência e procederá a citação com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 da Lei
5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.” 13
Lei nº 9.271/96.
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
207
Em suma, o legislador da década de noventa entendeu que para
concretização da nova ordem constitucional democrática era preciso acabar de uma
vez por todas com aquelas situações em que por desídia de um oficial de justiça o
acusado acabava condenado sem sequer saber da acusação, tal como o cidadão
Josef K, na obra O Processo, de Franz Kafka (2003).
Assim, facilmente se conclui que neste aspecto a reforma de 2008
representou verdadeiro retrocesso na tentativa de tornar o velho processo penal
inquisitório permeável às garantias processuais previstas no texto constitucional.
Ora, a partir do momento que se permite o curso do processo após uma
citação ficta, novamente se coloca a sorte do acusado nas mãos do oficial de justiça
ou no mínimo cria-se uma infinita fonte de nulidades. Noutras palavras, o dia a dia
do processo penal brasileiro será uma reprise da velha obra do escritor tcheco e nos
veremos imersos no bizarro mundo do processo que se torna uma pena ainda mais
drástica do que a própria privação da liberdade14.
As distorções da reforma não param por aí e seguem no rumo à
consolidação de um direito processual penal destinado à contenção dos inimigos,
mais precisamente, dos excluídos. Veja-se que o juiz penal, de acordo com a nova
redação do art. 387, IV15, poderá fixar um valor mínimo para a reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos do ofendido, sem que este
participe efetivamente do processo penal.
Note-se que esta foi uma tentativa frustrada de adoção do modelo europeu,
em que o ofendido participa do processo penal como parte civil para pleitear a
indenização dos danos causados pelo crime16. Obviamente, o legislador da reforma
14
“Para além de duvidosa constitucionalidade, pensamos que em caso de citação por hora certa
deve-se ter extrema cautela, citando-se o réu por edital, para após suspender-se o processo o
processo e a prescrição. É uma cautela adequada, diante do imenso retrocesso de ter-se um
processo penal sem que o acusado tenha ciência da imputação, ressuscitando o instituto da
revelia que infelizmente foi sepultado em 1996, quando a Lei 9.271 alterou a redação dos arts. 366
e 367 do CPP (LOPES JR., 2009, p. 18) 15
“Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: (...) IV – fixará o valor mínimo para a
reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.” 16
“Tra le parti c.d. eventuali – potendo il processo penale prescindere dalla loro presenza – va
collocata in primo piano la parte civile, il cui intervento è finalizzato ad ottenere le restituzioni o il
risarcimento del danno ricollegabili al reato oggetto di accertamento in sede penale.” [trad da
autora: Entre as partes eventuais – podendo o processo penal prescindir da sua presença –
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
208
não chegou nem perto de inserir em nosso ordenamento tal estrutura, pois em
nenhum momento prevê a participação do ofendido no processo penal, que nos
casos de ação penal pública continua restrita a de assistente do Ministério Público e
para os que têm condições de contratar um advogado.
Diante disso, é possível afirmar que este novo dispositivo é inconstitucional,
na medida em que admite fixação de uma indenização unilateralmente pelo juiz, sem
que se discuta a respeito de ser ela cabível ou não e de ser o seu valor suficiente ou
não, tal como exige a garantia do contraditório17.
Talvez uma das poucas alterações positivas perpetradas por esta nova lei
tenha sido concretizada pelo texto deste mesmo dispositivo, mais especificamente
de seu parágrafo único, que estabeleceu a necessidade do juiz explicitamente
fundamentar a respeito da manutenção ou da imposição da prisão preventiva após o
proferimento da sentença condenatória.
Então, após esta modificação, a prisão processual decorrente de sentença
condenatória recorrível caiu em desuso, tal como já era prenunciado pela
jurisprudência que desde a promulgação da CR/88 exigia para sua decretação o
preenchimento dos requisitos da prisão preventiva.
Assim, a mera condenação não determina o recolhimento do acusado na
prisão, faz-se necessário que o acusado se encontre numa das situações que
autorizam a prisão preventiva, afastando ao menos aparentemente uma execução
provisória da sentença penal18.
Quanto aos procedimentos, a referida Lei estabeleceu alterações
significativas que vão desde a reclassificação das suas espécies até a inversão da
coloca-se em primeiro plano a parte civil, cuja intervenção tem como finalidade obter a restituição
ou o ressarcimento do dano causado pelo ao crime objeto do acertamento em sede penal.]
(CONSO; GREVI, [s.d.], p. 114) 17
“Da mesma forma, a doutrina tem caminhado no sentido de que a fixação do valor mínimo
independe de pedido expresso de quem quer que seja, pois “o dever de reparar o dano é um dos
efeitos da sentença”, devendo o juiz fundamentar a sua decisão em ‘elementos objetivos que o
levaram ao valor da condenação’. Ousamos dissentir, vez que a luz da Constituição o juiz deve ser
imparcial, portanto, inerte, não sendo possível prestar a jurisdição sem que haja pedido. Quanto à
legitimidade, esta será do assistente habilitado, devendo em todo o caso ser observado o
contraditório.” (NICOLITT, 2009, p. 166). 18
V. Lopes Jr., 2009, p. 127 e ss.
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
209
sequência de seus atos, sempre de modo a implementar maior celeridade e
oralidade.
Ademais, ressuscitou o velho procedimento sumário, que havia entrado em
desuso com o surgimento do procedimento dos juizados especiais criminais, criado
justamente para dar um tratamento despenalizador às chamadas infrações de menor
potencial ofensivo.
Destarte, o processo nos crimes cuja pena máxima cominada não supere os
quatro anos segue um procedimento que nada mais faz do que concentrar e
acelerar os atos do procedimento comum ordinário, o que sem dúvida importa na
diminuição de oportunidades para a defesa e, consequentemente, na supressão de
garantias do acusado. Mais uma vez, demonstra-se que a atual reforma significou
um evidente passo atrás na efetivação das garantias constitucionais previstas na
CR/88.
Quanto ao procedimento comum ordinário, é possível afirmar as inovações
têm por objetivo mais uma vez a celeridade processual, já que privilegiam a
oralidade e concentram a instrução e o julgamento numa única audiência.
Num primeiro momento, esta oralidade pode apresentar a falsa ideia de
concretização de um genuíno diálogo entre as partes e democratização do processo
penal. Contudo, um olhar mais atento faz perceber que esta alteração serve para
mascarar a manutenção da estrutura inquisitória do processo, uma vez que o juiz
continua gestionando a prova.
Não é difícil antever que a realização de todos os atos instrutórios numa
única audiência levará a simplificação da produção probatória e por este motivo a
limitação da atuação da defesa. Ademais, não há dúvidas de que a formulação oral
das alegações finais exigirá do promotor e do advogado um profundo conhecimento
do caso e do direito, o que é praticamente impossível em razão do volume de
trabalho dos promotores e, principalmente, dos defensores públicos que promovem
a defesa da grande massa de acusados; bem como pela deficiência na formação
jurídica desses profissionais, que saem das precárias Faculdades de Direito. Então,
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
210
pode-se concluir que no lugar destas alegações serão apresentados memoriais e
neste passo a sentença também será escrita19.
Se não bastasse isso, esta lei também nos passa uma falsa ideia
democratização processual quando abre espaço para que a defesa responda a
acusação, como se estivesse oportunizando ao acusado uma verdadeira defesa
prévia. Entretanto, é preciso atentar para o fato de que essa resposta ocorrerá após
o juízo de admissibilidade da peça acusatória e por este motivo não pode ser
chamada de defesa prévia. Além disso, tal defesa em nada se assemelha à defesa
oferecida em procedimentos que comportam o contraditório prévio, tal como a
prevista no art. 4º20, da Lei n° 8.038/90, que tem por finalidade o afastamento das
condições da ação e dos pressupostos processuais. A resposta da nova lei serve à
arguição de eventual nulidade ocorrida até o momento de sua apresentação, assim
como à alegação da existência manifesta de causa de excludente da ilicitude ou de
culpabilidade (salvo a inimputabilidade), de que o fato evidentemente não constitui
crime ou de que a punibilidade se encontra extinta, pois após a sua apresentação
haverá a possibilidade de absolvição de sumária do acusado nos moldes de um
julgamento antecipado do mérito do processo civil21.
19
“A Lei 11.719/2008 desenhou um procedimento fundado na aglutinação de todos os atos de instrução numa mesma audiência. Essa regra, como dissemos no início, é aplicável em processos simples, mas inviável nos complexos, que demandarão várias audiências, seja pelos excessivo número de testemunhas ou porque, ao final da instrução, são postuladas e deferidas diligências. O art. 402 abre a possibilidade de as partes diante da prova produzida, requerem diligências (perícias, oitiva de testemunhas referidas, juntada de documentos etc.) ‘cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução.” Nesse caso, não haverá debate oral, mas sim alegações finais, por memorial, no prazo sucessivo de 5 dias, cabendo primeiro ao acusador apresentar suas alegações e após, sucessivamente (ou seja, sem nova intimação), a defesa ou defesas.” (LOPES JR., 2009, p. 199).
20 “Art. 4º. Apresentada a denúncia ou a queixa ao Tribunal, far-se-á a notificação do acusado para
oferecer resposta no prazo de 15 (quinze) dias.” 21
“É elementar que essa não era a melhor solução legislativa e todos os que acompanharam a
tramitação do Projeto de Lei ficaram estupefatos com a inserção da mesóclise (que nunca esteve
no projeto). O modelo pretendido deveria prever um contraditório prévio ao recebimento da
acusação, com a decisão sendo proferida após a defesa escrita. Mas, infelizmente, não foi essa a
opção legislativa e. como ensinam Trib e Dorf, não se pode incorrer no erro de pensar a
Constituição e demais leis ordinárias como se fossem espelhos, por meio do qual é possível
enxergar aquilo que se tem vontade. Em outras palavras, há que se ter cuidado na interpretação
da legislação ordinária, para não olhá-la como um ‘espelho’, a refletir a imagem que gostaríamos
muito de ali ver. Uma coisa é o que a lei diz, a outra é aquilo que gostaríamos (muito) que ela
dissesse, mas não diz...” (LOPES JR., 2009, p. 194)
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
211
Aliás, não se pode deixar de comentar que este julgamento antecipado do
mérito pode trazer mais uma vez sérios prejuízos para a defesa do acusado, na
medida em que permite um prejulgamento condenatório de difícil reversão. Isto
porque no processo inquisitório o juiz normalmente atua enredado em quadros
mentais paranoicos e a possibilidade dele proferir logo no início um juízo negativo
sobre a alegação absolutória pode fazê-lo conduzir toda a produção da prova para
confirmá-lo, o que tornaria ainda mais árduo o trabalho da defesa22.
Finalmente, é preciso apontar a falta de precisão técnica da nova legislação,
que ao estabelecer as hipóteses de rejeição da peça acusatória torna ainda mais
confuso tratamento das condições da ação e dos pressupostos processuais. Os
autores do direito processual penal nunca chegaram a um consenso na
determinação das condições da ação e esta foi sempre uma matéria controvertida. A
maioria deles optou pela adoção da estrutura do processo civil, que sempre
encontrou problemas na adaptação do interesse de agir e da possibilidade jurídica
do pedido à ação penal; alguns poucos trataram de defender uma definição própria
para as condições da ação no processo penal, a qual se apresentou igualmente
problemática quando confundiu tais condições com o mérito do caso penal.
A Lei n° 11.719/08 aparentemente retirou a justa causa do rol das condições
da ação e não definiu os requisitos capazes de determinar a inépcia da peça
acusatória. Ademais, revogou o art. 43, do CPP, e agora não há mais previsão
expressa dessas condições, que dependem exclusivamente de um tratamento
doutrinário. Em suma, a nova legislação tornou ainda mais complicada a questão da
ação, já suficientemente controversa.
As modificações introduzidas pela Lei no 11.690/08, que entraram em vigor
no dia 09.08.08, também importaram uma série de retrocessos na caminhada pela
constitucionalização e democratização do processo penal brasileiro.
A nova redação do art. 15523 frisa que o juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar
22
Sobre os quadros mentais paranoicos do julgador no sistema inquisitório, ver: Cordero (1986, p. 51). 23
“Art. 155. O juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
212
sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na fase de
investigação, ressalvadas as provas cautelares, as não repetíveis e as antecipadas.
Desde logo é inevitável observar que a nova lei continua permitindo que o
juiz fundamente sua decisão em provas produzidas no inquérito policial. Ao invés de
acabar com este procedimento administrativo, sigiloso e inquisitorial, o legislador
preferiu deixar claro algo que foi questionado durante muitos anos pela doutrina: a
constitucionalidade desta espécie de investigação preliminar e da utilização de
algumas provas nela produzidas.
Se antes era possível protestar pela inconstitucionalidade do inquérito e
reivindicar a sua extinção, agora parece estar pacificado que este procedimento está
em conformidade com a Constituição e suas provas podem ser utilizadas para
respaldar uma sentença condenatória.
Faz-se necessário lembrar que num passado recente vozes otimistas
bradaram que o inquérito teria seus dias contados e que o texto constitucional não
havia recepcionado tal estrutura concebida numa época em que se tentava por meio
de um acordo político limitar os poderes da polícia que haviam se estendido por toda
a fase processual.
Entretanto, constata-se que tais vozes não encontraram ressonância e aos
poucos foram caladas pelo discurso capitalista neoliberal, que aposta na
manutenção de um sistema inquisitorial para contenção dos excluídos.
No mesmo sentido, é possível afirmar que a nova redação do art. 15624
estabeleceu algumas alterações textuais que não passaram de um artifício para
esconder a opção política pela manutenção de um sistema inquisitório.
Pela primeira vez em muitos anos o legislador teve a oportunidade de alterar
a matriz sistêmica inquisitória que nos acompanha desde a ditadura getulista.
Contudo, como já foi mencionado, os interesses daqueles que exercem poder em
24
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I- ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada das provas
consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade
da medida
II- determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências
para dirimir dúvida sobre ponto relevante.”
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
213
tempos de neoliberalismo prevaleceram e assistiu-se a perpetuação do sistema que
foi criado na idade média para perseguir hereges. Aponte-se que continua facultado
ao juiz determinar de ofício a produção de provas.
Todavia, o grande retrocesso vem impresso no inciso I, do citado art. 156,
que abre espaço para que o juiz, mesmo antes de iniciado o processo e não a ação
penal tal como erroneamente grafado, determine a produção das provas
consideradas urgentes e relevantes.
Note-se que o próprio juiz pode de ofício determinar a produção de provas
na fase da investigação preliminar sem que o contraditório se efetive. Isto reforça o
que já foi dito no caput do art. 155 e deixa claro que o juiz poderá produzir provas na
fase do inquérito policial, ou seja, sem a interferência das partes, e depois utilizá-las
como fundamento de sua decisão.
Para amenizar os efeitos desta regra contrária ao que dispõe o texto
constitucional, no qual se encontra assegurado o contraditório, o legislador
estabeleceu que a produção antecipada de provas somente ocorrerá se forem
observados os critérios da necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.
Ressalte-se que desta maneira o legislador atribuiu ao juiz a responsabilidade de
decidir quando serão produzidas tais provas longe do contraditório e o fez por meio
da previsão da famosa técnica da proporcionalidade.
No art. 15725, também se pondera a regra constitucional da inadmissibilidade
da prova ilícita (art. 5o, LVI, da CR), isto é, pondera-se o imponderável. É verdade
que este dispositivo legal veda a admissão no processo penal das produzidas
ilicitamente e também das derivadas das ilícitas, determinando inclusive o seu
desentranhamento, entretanto admite as derivadas das ilícitas que puderem se
obtidas por uma fonte independente, ou seja, aquelas que o juiz escolher e justificar
25
“Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim
entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. §1º São também
inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de
causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte
independente das primeiras. §2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo
os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de
conduzir ao fato objeto da prova. §3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada
inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o
incidente.”
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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que poderiam ter sido obtidas de forma independente. Ademais, de nada adianta
desentranhar a prova ilícita após o juiz ter tomado conhecimento dela, certamente
nada o impedirá de silenciosamente utilizá-la para fundamentar a sua decisão
convencer de que decidiu com base nos fatos, tal como ensina Nilo Bairros de Brum
em sua obra Requisitos retóricos da sentença penal (BRUM, 1980).
O texto do art. 15926 foi alterado no sentido de admitir a perícia realizada por
um perito oficial e afastar a exigência de dois peritos prevista no texto anterior, o que
torna a prova pericial mais frágil e passível de fraude.
Ao que parece, esta mudança ocorreu em função da possibilidade de
nomear assistente técnico para atuar após a conclusão do exame realizado pelo
perito oficial. Assim, o legislador entendeu dispensável nomeação de mais um perito
já que facultada a atuação de assistente técnico. O grande problema é que só terão
direito a nomeação de assistente técnico os acusados que têm condições
financeiras para tal nomeação. Mais uma vez percebe-se o processo penal
arquitetado para punir os excluídos.
O dispositivo que mais promete mudanças na matriz sistêmica é o art. 21227,
mas infelizmente serve apenas de ornamento superficial para o que já existia. De
acordo com sua nova redação, as perguntas às testemunhas deverão ser
formuladas diretamente pelas partes, não admitindo o juiz aquelas que puderem
induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem em repetição de
outra já respondida.
Veja-se que o fato das partes realizarem perguntas diretamente às
testemunhas se apresenta como importante inovação, porém não há alteração
significativa no velho sistema quando se admite que o juiz indefira as perguntas que
podem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem em
repetição de outra já respondida. Ora, em última instância, o juiz pode de ofício
indeferir as perguntas que reputar impertinentes, sem ouvir a outra parte. Se
26
“Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador
de diploma de curso superior.” 27
“Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o
juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na
repetição de outra já respondida.”
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realmente houvesse o desejo de alteração da matriz do sistema processual
inquisitório para o acusatório, o juiz poderia indeferir a pergunta se a sua
impertinência ou defeito fosse arguido em forma de objeção pela outra parte. Neste
mesmo sentido, o dispositivo acrescenta que o juiz poderá complementar a
inquirição da testemunha, produzindo de maneira direta a prova, no mais conhecido
estilo inquisitório.
Finalmente, nova redação do art. 21728 prevê que o juiz ao verificar que a
presença do acusado causa humilhação, temor ou sério constrangimento à
testemunha ou ao ofendido, de modo que a prejudicar-lhe o depoimento, poderá
inquirir as testemunhas por meio de videoconferência e na impossibilidade dessa
forma, poderá determinar a retirada do acusado, prosseguindo na audiência com a
presença do defensor. Note-se que a retirada do acusado da sala de audiência se
tornou a segunda alternativa diante do constrangimento que sua presença pode
causar na testemunha ou no ofendido. Entretanto, ainda se permite tal
arbitrariedade, já que é um direito do acusado participar dos atos processuais. Além
disso, é preciso ressaltar que tal dispositivo prevê a possibilidade de realização do
interrogatório por videoconferência, o que é um retrocesso diante da decisão do STF
que tratou de enumerar todos os problemas na utilização desta tecnologia para
interrogatório do acusado. A mediação é extremamente necessária no processo
penal.
Quanto às modificações introduzidas pela Lei n° 11.689/08 no procedimento
do júri, pode-se afirmar que seguiram a mesma linha daquelas realizadas no
procedimento comum ordinário.
A reforma do júri também foi responsável por uma série de violações ao
texto constitucional, veja-se a possibilidade de desaforamento por excesso de
serviço, que representa clara afronta ao princípio do juiz natural29, e a do julgamento
28
“Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério
constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento,
fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a
retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor. Parágrafo único. A
adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste artigo deverá constar do termo, assim
como os motivos que a determinaram.” 29
V. Borges (in: CLÈVE et al., 2007); Borges (2005).
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
216
a revelia do acusado que não foi encontrado para ser intimado da pronúncia e da
data da sessão, que desrespeita o princípio da ampla defesa.
Em suma, todas essas alterações têm o único intuito de incrementar o
atual Estado penal que surgiu para conter a grande massa de excluídos do
mercado. Estas inovações legislativas que permitem o rápido encarceramento,
sem direito ao contraditório e a ampla, só servem para manter a globalização
neoliberal e excludente, só resta saber por quanto tempo. Isto porque os excluídos
quando não tiverem mais nada a perder reagirão violentamente, como já têm
eventualmente reagido, e os grandes atingidos seremos nós, os provisoriamente
incluídos que clamamos por uma legislação processual penal dura como títeres
dos únicos beneficiados por toda esta exclusão: aqueles que controlam o
mercado30.
3 AS MODIFICAÇÕES PROPOSTAS PLS Nº 156/09: UMA TENTATIVA DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL
Numa leitura dos primeiros parágrafos da exposição de motivos daquele que
pode vir a ser o próximo Código de Processo Penal percebe-se que seus autores
têm por intento a elaboração de uma nova legislação que tome por pressuposto a
ordem constitucional vigente, bem como se afaste do Decreto-lei nº 3.689/1941.
Ademais, tal anseio se consubstancia no Título I, que enumera os princípios
fundamentais da persecução penal: (i) o devido processo legal constitucional, a ser
observado em todas as formas de intervenção penal, inclusive na aplicação da
medida de segurança; (ii) o contraditório e a ampla defesa, garantida pela
possibilidade de efetiva manifestação de defensor técnico em todas as fases
procedimentais; (iii) a acusatoriedade do processo, assegurada pela vedação da
iniciativa do juiz na fase de investigação e reafirmada pela impossibilidade do juiz
substituir a atuação probatória do órgão acusador ao longo do processo, e (iv) a
30
V. Borges (2008, p. 325-358).
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
217
exigência de interpretação restritiva das regras que suprimem ou restringem direitos
e garantias fundamentais31.
Contudo, a primeira observação a ser feita na leitura do referido texto é que
todos esses princípios são definidos a partir de uma Teoria Geral do Processo. A
exposição de motivos estabelece “a vedação da atividade instrutória ao juiz na fase
de investigação não tem nem poderia ter o propósito de suposta redução das
funções jurisdicionais. Na verdade, é precisamente o inverso. (...) a decisão judicial
qualquer que seja o seu objeto, sempre terá uma dimensão transindividual, a se
fazer sentir e repercutir para além das fronteiras dos litigantes. Daí a importância de
se preservar ao máximo o distanciamento do julgador, ao menos em relação à
formação dos elementos que venham a configurar a pretensão de qualquer das
partes.”
Note-se que falar em litigantes significa falar que o processo penal resolverá
um litígio entre o Ministério Público e o acusado, o que não corresponde à realidade
já que aquele tem por função zelar pela correta aplicação da lei independentemente
de conflitos, tal como refere o art. 58, do próprio Projeto32.
Há muito Jacinto Nelson de Miranda Coutinho alerta sobre os perigos da
adesão desavisada ou propositada à Teoria Geral do Processo e o faz
primeiramente demonstrando que esta foi construída tendo em vista o processo civil
e seus elementos privatistas, o que pode ser identificado na constatação da
imprestabilidade do conceito de lide para o processo penal, isto é, da
incompatibilidade do núcleo deste arcabouço teórico com algumas formas
processuais das quais pretende dar conta33.
Este processualista brasileiro, integrante da comissão responsável pela
elaboração do projeto ora discutido, enfatiza que a jurisdição penal não atua para
31
“Art.1º. O processo penal reger-se-á, em todo o território nacional, por este Código, bem como
pelos princípios fundamentais constitucionais e pelas normas previstas em tratados e convenções
internacionais dos quais seja parte a República Federativa do Brasil.” 32
“Art. 58. O Ministério Público é o titular da ação penal, incumbindo-lhe zelar, em qualquer instância
e em todas as fases da persecução penal, pela defesa da ordem jurídica e pela correta aplicação
da lei.” 33
Dizia Carnelutti (1930, p. 245): “ou a lide existe também no processo penal ou não existe nem no
processo civil.” [trad. da autora.] “...o la lite c’è anche nel processo penale o non c’è neanche nel
processo civil.”
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
218
resolver lides, sejam elas de qualquer natureza, carneluttiana34 ou leoneana35, e
insistentemente repete “a jurisdição atua para fazer o acertamento do fato, e o
processo é o meio que utiliza para concluir se o réu deve ser punido ou não. (...)
Para expressar essa reconstituição que se efetiva no processo penal – geralmente
de forma conflitual, mas não sempre –, e tem importância prática já na primeira fase
da persecução penal, o ideal seria uma expressão não comprometida com outros
significados relevantes: caso penal, por exemplo.” (COUTINHO, 1989, 134-135)
Em suma, ao atacar o núcleo da Teoria Geral do Processo e negar-lhe
existência ou relegá-lo a um segundo plano no processo penal, busca afastar a
nefasta influência desta nos estudos destinados à compreensão dos institutos
processuais penais.
Além disso, reforça seu intento ao deixar claro que no Brasil o processo
penal e o processo civil se estruturam em ambientes sistêmicos distintos, já que
aquele se constrói a partir de uma matriz inquisitória na medida em que a gestão das
provas se encontra nas mãos do juiz e este possui uma essência acusatória uma
vez que partes são encarregadas de gestionar a produção probatória.
Veja-se que tal preocupação em demonstrar a necessidade de conceber
uma Teoria Geral do Direito Processual Penal apta a compreender as
particularidades do seu objeto não é mero preciosismo ou capricho intelectual. Isto
34
“Por estas razões a definição de lide contida no art. 87 do meu código de processo civil, parece
mais complexa do que aquela, a qual propus nas Lições; agora me parece que poderei dizer,
ainda com mais exatidão, que existe a lide quando alguém pretende a tutela de seu interesse em
contraste com o interesse de um outro e este resiste mediante a lesão do interesse ou mediante a
contestação da pretensão.”. [trad. da autora] “Per queste ragioni la definizione della lite contenuta
nell’art. 87 del mio progetto del codice di procedura civile, apparisce più complessa di quella, che
ho proposto nelle Lezioni; ora mi pare, che potrei dire, ancora più esattamente, esistere la lite
quando taluno pretende la tutela di un suo interesse in contrasto con l’interesse di un altro e questi
vi resiste mediante la lesione dell’interesse o mediante la contestazione alla pretesa.”
(CARNELUTTI, 1928, p. 29). 35
As observações precedentes levam a estabelecer que no processo penal se delineiam duas
situações diversas: uma situação imanente de conflito entre o direito punitivo do Estado e o direito
de liberdade (jurídica) do imputado; e uma situação contingente de relação entre Ministério Público
e imputado, a qual pode reproduzir a primeira situação ou dela se afastar completamente.” [trad.
da autora] “Le osservazioni che precedono portano a stabilire che nel processo penale si delineano
due situazioni diverse: una situazione immanente di conflito tra diritto punitivo dello Stato e diritto di
libertà (giuridica) dell’imputato; ed una situazione contingente di relazione tra pubblico ministero ed
imputato, la quale può riprodurre la prima situazione oppure scostarsene del tutto.” (LEONE, 1951,
p. 31).
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
219
porque mirar o processo penal com os olhos privatistas da precária Teoria Geral do
Processo impõe uma miopia que faz enxergar o processo penal como mero reflexo
do processo civil, reduzindo sua complexidade, ocultando suas peculiaridades,
permitindo que não se tenha a nitidez de sua inquisitoriedade e, consequentemente,
abrindo espaço para que esta o permeie de forma sorrateira.
Como mencionado, o citado Projeto prevê na definição de seus princípios
estruturantes que o processo penal deve ser acusatório e que o juiz não poderá
produzir provas de ofício e nem substituir o órgão acusador em tal função.
Todavia, é preciso desde logo ressaltar que esta acusatoriedade não se
evidencia na primeira fase da persecução penal ou na chamada instrução
preliminar36, que no referido texto se identifica com o inquérito policial, ressalvados
os casos de crimes de menor potencial ofensivo em que este é substituído pelo
termo circunstanciado37.
Note-se que no inquérito, nos termos dos arts. 9º38, 2539, e 26, VI40, a
autoridade policial produz toda a prova que servirá à fundamentação da acusação e
tem poderes para representar pela prisão preventiva e temporária, isto é, o delegado
de polícia é responsável pela gestão da prova e atua como verdadeiro inquisidor.
Ademais, na redação desses dispositivos fica clara a admissão da prisão provisória,
36
Ver por todos Lopes Jr., (2006). 37
“Art. 25. Salvo em relação às infrações de menor potencial ofensivo, quando será observado o
procedimento previsto no art. 273 e seguintes, a autoridade policial, ao tomar conhecimento da
prática da infração penal, instaurará imediatamente o inquérito (...).” 38
“Art. 9º. A autoridade competente para conduzir a investigação criminal, os procedimentos a serem
observados e o seu prazo de encerramento serão definidos em lei.” 39
“Art. 25. Salvo em relação às infrações de menor potencial ofensivo, quando será observado o
procedimento previsto no art. 274 e seguintes, a autoridade policial, ao tomar conhecimento da
prática da infração penal, instaurará imediatamente o inquérito, devendo: I – registrar a notícia do
crime em livro próprio; II – providenciar para que não se alterem o estado e conservação das
coisas, até a chegada de perito criminal; III – apreender os objetos que tiverem relação com o fato;
IV – colher todas as informações que servirem para o esclarecimento do fato e suas
circunstâncias; V – ouvir a vítima; VI – ouvir o investigado, respeitadas as garantias constitucionais
e legais, observando, no que for aplicável, o procedimento previsto nos arts. 64 a 74; VII –
proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas e à acareações, quando necessário; VIII –
determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;
IX – providenciar, quando necessária, a reprodução simulada dos fatos, desde que não contrarie a
ordem pública ou as garantias individuais constitucionais; X – ordenar a identificação datiloscópica
e fotográfica do investigado, nas hipóteses previstas no Capítulo IV deste Título.” 40
“Art. 26. Incumbirá ainda à autoridade policial: (...) VI – representar acerca da prisão preventiva ou
temporária, bem como sobre os meios de obtenção de prova que exijam pronunciamento judicial;”
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
220
característica de sistemas autoritários, na medida em que permite o encarceramento
antes mesmo da condenação definitiva e a violação do princípio da presunção de
inocência41.
É verdade que a futura legislação permite em seu art. 2742, que a vítima, ou
seu representante legal, bem como o investigado, solicitem à autoridade policial a
realização de qualquer diligência, o que não encontra previsão no CPP em vigor.
Porém, a democracia tem espaço reduzido na instrução preliminar já que o mesmo
dispositivo pontua que tais diligências serão executadas se a autoridade policial
reconhecer a sua necessidade.
Por fim, é preciso observar que o projeto ora discutido definiu o interrogatório
como ato de autodefesa e por este motivo o postou fora do capítulo relativo às
provas. Contudo, no inquérito, este interrogatório será procedido pela autoridade
policial sem interferências, inclusive do defensor, conforme art. 64 e seguintes.
Deste modo, é difícil não vê-lo como ato de produção de prova ou da confissão, tão
almejada no sistema inquisitório, ainda que seu advogado ou defensor esteja
presente.
Quanto à fase processual, o problema que inicialmente salta aos olhos pode
ser identificado já na exposição de motivos quando o projeto deixa claro não ter o
intuito de conceber um juiz inerte. Por certo, esta opção é extremamente perigosa na
medida em que indica um juiz que pode produzir provas tal como no sistema
inquisitório, ainda que justificada de modo a suprir a hipossuficiência do acusado
frente ao judiciário criminal. Como se mencionou, esta é uma armadilha que pode
41
Neste sentido, Eugenio Raul Zaffaroni denuncia que os países da América Latina utilizam
irrestritamente a prisão cautelar para conter os inimigos, inclusive aponta a existência de dois
sistemas penais, um que opera antes da condenação e outro depois. Desta forma, demonstra que
tal prisão não tem propriamente caráter processual e esclarece que apesar de suas modalidades
estarem previstas nos códigos de processo penal, suas regras possuem natureza penal, pois não
buscam simplesmente assegurar o bom andamento da persecução penal e sim infligir sofrimento,
impor pena, principalmente quando decretadas para garantir a ordem pública ou econômica.
(ZAFFARONI, 2007, p. 109-114). 42
“Art. 27. A vítima, ou seu representante legal, e o investigado poderão requerer à autoridade
policial a realização de qualquer diligência, que será efetuada, quando reconhecida a sua
necessidade. § 1º Se indeferido o requerimento de que trata o caput deste artigo, o interessado
poderá representar à autoridade policial superior ou ao Ministério Público. § 2º A autoridade
policial comunicará a vítima dos atos relativos à prisão, soltura do investigado e conclusão do
inquérito.”
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
221
criar um juiz com super poderes e legitimado para cometer arbítrios, o que
indubitavelmente reconduziria o sistema processual pátrio para a vereda autoritária e
com destino à neutralização dos excluídos.
No mesmo sentido, desenha-se o art. 162, parágrafo único43, que prevê a
propositura de provas pelas partes, porém faculta ao juiz esclarecer dúvida sobre a
prova produzida, desde que não substitua a atuação do órgão acusador. Isto
significa que ele eventualmente poderá produzir prova a favor do acusado. Muitos
podem pensar que se trata de uma benesse do reformador, mas é preciso revelar
que por trás desta proposta aparentemente democrática, marcada pela intenção de
diminuir as desigualdades processuais, cria-se novamente espaço para aparecer o
super juiz. Ora, a grande questão é: quem vai decidir se a prova é mesmo a favor do
acusado. Provavelmente, será o próprio juiz, o que torna temerosa esta iniciativa.
Por fim, há que se observar, em complemento a esta iniciativa probatória,
que o juiz durante o processo poderá de ofício adotar medidas acautelatórias
quando destinadas a tutelar o regular exercício da função jurisdicional, isto é mais
um indicativo de que neste projeto ele não é inerte tal como exige o sistema
acusatório (arts. 548 e seguintes).
Para encerrar, conclui-se de maneira quase redundante que esta ausência
de um juiz inerte é extremamente preocupante e aproxima a nascente legislação de
um processo inquisitório. É lógico, que tudo depende das práticas e do dia a dia do
processo penal. Sabe-se que o maior desafio desses legisladores não é
propriamente estabelecer formalmente uma legislação que a partir dos princípios
constitucionais conceba um processo penal acusatório e democrático, onde a gestão
das provas se encontra nas mãos das partes, que dialogam e participam da
construção da decisão. O grande obstáculo consiste em tornar isto realidade, em
modificar as práticas inquisitórias corriqueiras e arraigadas nos sujeitos que
participam do processo e aproximar definitivamente o processo penal brasileiro da
Constituição44.
43
“Art. 162. As provas serão propostas pelas partes. Parágrafo único. Será facultado ao juiz, antes
de proferir a sentença, esclarecer dúvida sobre a prova produzida, observado o disposto no art.
4º.” 44
“Em consequência, os que resistem ou se rebelam contra uma forma de poder não deveriam se
contentar em denunciar a violência ou criticar uma instituição. Não é suficiente seguir o processo
Clara Maria Roman Borges
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
222
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utilizado pela razão geral. O que deve ser colocado em questão é a forma de racionalidade
presente nela. A crítica do poder exercido sobre os doentes mentais ou os loucos não deveria se
limitar às instituição psiquiátricas; os que contestam o poder de punir não deveriam se contentar
em denunciar as prisões como instituições totais. A questão é: como são racionalizadas as
relações de poder? Colocá-la é a única forma de evitar que outras instituições, como os mesmos
objetivos e os mesmos efeitos tomem o seu lugar” [trad. da autora] “En conséquence, ceux qui
résistent ou se rebellent contre une forme de pouvoir ne sauraient se contenter de dénoncer la
violence ou critiquer une institution. Il ne suffit pas de faire le procès de la raison en général. Ce
qu’il faut remmetre en question, c’est la forme de rationalité en présence. La critique du pouvoir
exercé sur les malades mentaux ou les fous ne saurait se limiter aux institution psychiatriques, de
même, ceux qui contestent le pouvoir des punir ne sauraient se contenter de dénoncer les prisons
comme des institutions totales. La question est: comment sont rationalisées les relations de
pouvoir? La poser est la seule façon d’eviter que d’autres institutions, avec les mêmes objectifs et
les mêmes effets ne prennent leur place.” (FOUCAULT, 1994, p. 161).
As atuais tendências de reforma do Código de Processo Penal...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
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Paulo Ricardo Schier
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
224
DENÚNCIA ANÔNIMA EM PROCESSO DISCIPLINAR NA
EXPERIÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES: ENTRE OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DE
INVESTIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
ANONYMOUS COMPLAINT IN DISCIPLINARY PROCEEDINGS IN THE EXPERIENCE OF SUPERIOR COURT: BETWEEN FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE DUTY OF PUBLIC
ADMINISTRATION INVESTIGATION
Paulo Ricardo Schier1
Resumo
O presente estudo analisa a interpretação que o instituto da denúncia anônima recebe dos tribunais superiores brasileiros, apontando o dissenso jurisprudencial existente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça – que aceita a denúncia anônima em nome da proteção do interesse público – e do Supremo Tribunal Federal – que oscila entre a aceitação e não aceitação da denúncia anônima. Em ambos os casos a jurisprudência anota, quando discute sobre a possibilidade de admissão da denúncia anônima, a existência de uma tensão entre direitos fundamentais e interesse público, variando as respostas para o problema conforme o tribunal adote um modelo de aplicação do direito fundado na lógica das regras ou na lógica dos princípios.
Palavras-chaves: Denúncia anônima; Direitos Fundamentais; Interesse público.
Abstract
The current study analyses the interpretation that the called institute of anonymous delation receives from the Brazilian Higher Courts, for their point over the non-equality of jurisprudential factor existent in the Superior Court of Justice - which accepts the anonymous delation in the sake of protection of the Public Interest – a fact also existent in the Supreme Federal Court – that waves between the acceptance and the denial of such possible right; the anonymous delation said. In both cases, jurisprudence makes notable, when discussing on the possibility of
1 Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Professor de Direito Constitucional, em nível de
graduação, especialização e mestrado, da Escola de Direito e Relações Internacionais das
Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil. Vinculado à Linha de Pesquisa "Constituição e
Condições Materiais da Democracia”. Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa
"Constitucionalização do Direito". Professor do Instituto de Pós-Graduação em Direito Romeu
Felipe Bacellar e da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro Honorário da
Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da
OAB/PR. Advogado militante. E-mail: <pauloschier@uol.com.br>
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
225
this acceptance, the realness of a tension between Fundamental Rights and Public Interest, working with variation of answers to this case in the accordance of the decision made on the grounds of the logical rules of law in their application or on the grounds of the logicality of principles contained.
Keywords: Anonymous Delation. Fundamental Rights. Public Interest. Autoprotection. Principles and Rules.
Sumário: I. Introdução. II. Referencial normativo e quadro jurisprudencial. III.
Análise crítica da jurisprudência. IV. Conclusão.
I INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 deflagrou importante momento de
transformação social a partir de sua normatividade – se considerada num plano geral
– emancipatória2. Dentre as mudanças de fácil percepção deve-se salientar a
consolidação do processo de afirmação da democracia3 e, no âmbito da teoria e da
práxis jurisdicional, o fenômeno da “constitucionalização do direito”4.
Deveras, muitas são as propostas de estudo que têm como mote central, por
exemplo, a constitucionalização do Direito Administrativo. É preciso reconhecer,
contudo, que embora o diálogo entre Direito Constitucional e Administrativo tenha
trazido importantes avanços ou, no mínimo, reflexões, não raro o que se tem
assistido, em verdade, é uma “constitucionalização de fachada” ou
“constitucionalização retórica”. Não são poucos os textos acadêmicos que, sob a
fachada do discurso da constitucionalização, fazem uma apologia ao diálogo entre
Direito Constitucional e Direito Administrativo nos prólogos dos estudos mas, no
desenvolvimento das análises, não abordam nenhuma categoria da dogmática
constitucional. Isso quando não se reduz o processo de constitucionalização a uma
leitura meramente formal, como se fosse suficiente, para tratar de uma compreensão
constitucionalizada, a simples referência a alguns poucos dispositivos da Lei
Fundamental5. Tem-se a impressão, assim, que o tema da constitucionalização
tornou-se um imperativo acadêmico que, ao menos formalmente, precisa ser
2 Neste sentido, dentre outros: Clève (2004, p. 223 e ss.); Barroso (2007, p. 1-4).
3 Neste sentido, conferir: Barroso, In: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm (2009, p. 28).
4 Para um panorama geral sobre o debate teórico e suas aplicações práticas do processo de
constitucionalização, conferir: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm, (2009, 1009 p.). 5 Este problema já havíamos delatado em outro texto: Schier (1999, introdução).
Paulo Ricardo Schier
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
226
referido. Cumprida a formalidade, parece manifestar-se uma autorização implícita
para se abordar qualquer tema ou utilizar-se qualquer espécie de fala.
Não é a proposta do presente estudo analisar as causas deste peculiar
processo de constitucionalização. Para atingir este fim seria preciso, quiçá, uma
reflexão mais detida sobre aquilo que Gustavo Binenbojm vem designando como
“déficit teórico do Direito Administrativo” (BINENBOJM, 2006, p. 14-15)6. O que se
pretende, aqui, é apenas alertar, preliminarmente, que qualquer processo dialógico
deve ser, antes de tudo, dialético e, logo, ele é incompatível com o silêncio de uma
das partes ou infrutífero quando não pondera os argumentos do outro sujeito da
interlocução.
O objeto deste ensaio tem como pano de fundo, mais uma vez, a
constitucionalização do Direito Administrativo. Pretende-se analisar a legitimidade da
denúncia anônima, no âmbito de processos administrativos disciplinares, em face da
ordem constitucional. E neste campo, como será demonstrado, existe um verdadeiro
abismo entre as jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal
de Justiça. Enquanto o STF vem admitindo a legitimidade da denúncia anônima com
reservas, determinando a necessidade de sopesamento dos diversos bens
envolvidos nos casos concretos, sem contudo admitir uma resposta definitiva nesta
seara, o STJ, praticamente sem qualquer reserva, admite este tipo de delação de
forma quase que indiscriminada.
Este descompasso de interpretação é fruto de uma construção normativa
que não tem levado em consideração a necessária compressão sistemática que o
processo de constitucionalização impõe. No âmbito do STF nota-se a pressuposição
da natureza principiológica dos direitos fundamentais em jogo (vedação de
anonimato, ampla defesa e contraditório, dentre outros) em face do “poder-dever” de
investigação da Administração Pública (decorrência da tutela constitucional do
interesse público e da “indisponibilidade” do interesse público). No âmbito do STJ
nota-se a prevalência de um entendimento do “poder-dever de investigação” com
natureza de regra, afastando totalmente dispositivos legais que vedam
expressamente a denúncia anônima.
6 Seguindo a esteira de Binenbojm, este tipo de análise é também proposta por Davi, (2008, p. 59-
62).
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
227
Neste trabalho, contudo, não será defendido nenhum dos dois modelos
adotados nos tribunais superiores, pois a conclusão será de que a denúncia
anônima não é meio legítimo para deflagrar processos disciplinares em nosso
sistema. E ainda que fosse legítima, no caso de se admitir como correta a leitura do
STF, o processamento das infrações deveria no mínimo exigir prévia instauração de
sindicância.
II REFERENCIAL NORMATIVO E QUADRO JURISPRUDENCIAL
Levando em consideração, como partida, o referencial normativo
constitucional, a instauração de processo disciplinar com base em denúncia anônima
é incompatível com o texto da Constituição Federal eis que, prima facie, representa
afronta ao art. 5º, IV, que confere especial proteção ao direito à honra, ao
contraditório e a ampla defesa, ao vedar o anonimato.
Além disso, no plano infraconstitucional, e densificando a dimensão
principiológica dos referidos direitos fundamentais mediante sopesamento de
valores, a Lei dos Servidores Públicos Federais - Lei n. 8.112/90, em seu artigo 144,
expressamente exige, para o processamento de denúncia contra servidor, a
identificação do denunciante, seu endereço e confirmação de autenticidade. Da
mesma forma o art. 6º, da Lei n. 9784/99, traz idênticas exigências. A Lei de
improbidade Administrativa, por sua vez, em seu art. 14, parágrafo único, impede o
processamento de denúncia anônima. E, agora no plano de normatividade infralegal,
a Portaria 4491/057, que regulamenta o processo administrativo realizado no âmbito
7 Art. 8º O servidor que tiver ciência de irregularidade no serviço público deverá, imediatamente,
representar, por escrito e por intermédio de seu chefe imediato, ao titular da Unidade, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal..
§ 2º A representação funcional de que trata este artigo deverá:
I - conter a identificação do representante e do representado e a indicação precisa do fato que, por ação ou omissão do representado, em razão do cargo, constitui ilegalidade, omissão ou abuso de poder;
II - vir acompanhada das provas ou indícios de que o representante dispuser ou da indicação dos indícios ou provas de que apenas tenha conhecimento; (...)
§ 3º Quando a representação for genérica ou não indicar o nexo de causalidade entre o fato denunciado e as atribuições do cargo do representado, deverá ser devolvida ao representante para que preste os esclarecimentos adicionais indispensáveis para subsidiar o exame e a decisão da autoridade competente quanto à instauração de procedimento disciplinar.
§ 4º Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a
representação será arquivada por falta de objeto.
Paulo Ricardo Schier
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
228
da Receita Federal, e citada aqui apenas exemplificativamente, exige igualmente a
identificação do denunciante.
O quadro normativo, como se nota, parece claro: denúncias anônimas não
são admitidas em nosso sistema jurídico. Nada obstante, não raro as experiências
administrativa e jurisprudencial desmentem a suposta “clareza da norma”. Afirma-se
isto pois, ao se analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no âmbito
dos julgamentos que envolvem denúncia anônima em processos administrativos o
que se encontra é exatamente o oposto: a admissão quase que indiscriminada de
denúncia anônima.
A título exemplificativo observe-se os seguintes julgados:
RECURSO ESPECIAL 2006/0153177-0 DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DENÚNCIA ANÔNIMA. NULIDADE. NÃO-OCORRÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Tendo em vista o poder-dever de autotutela imposto à Administração, não há ilegalidade na instauração de processo administrativo com fundamento em denúncia anônima. Precedentes do STJ. 2. Recurso especial conhecido e improvido (DJe 25/05/2009) MANDADO DE SEGURANÇA 2006/0249998-2 PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR FEDERAL. FALTA DE CITAÇÃO PESSOAL. PROVA EMPRESTADA. DENÚNCIA ANÔNIMA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS PENAL E ADMINISTRATIVA. 1. É válida a citação feita ao procurador constituído quando ausente o servidor acusado e não demonstrado o prejuízo à defesa (art. 156 da Lei n.º 8.112/1990 e art. 9º da Lei n.º 9.784/1999). 2. A jurisprudência do STJ admite o uso de provas emprestadas. 3. Não há ilegalidade na instauração de processo administrativo com fundamento em denúncia anônima, por conta do poder-dever de autotutela imposto à Administração e, por via de conseqüência, ao administrador público. 4. As instâncias administrativa e penal são independentes (Lei n.º 8.112/1990, art. 125). 5. Denegação da segurança (DJe 05/09/2008).
No mesmo sentido: Recurso em Mandado de Segurança n. 2005/0044783-5;
Recurso em Mandado de Segurança n. 2004/0162925-0; Mandado de Segurança n.
2000/0063512-0; Mandado de Segurança n. 2000/0125375-1; Recurso Ordinário em
Mandado de Segurança n. 1991/0018676-7; Recurso Ordinário em Mandado de
Segurança n. 4.435; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 1.278 e
Recurso em Habeas Corpus n. 7.329, todos do Superior Tribunal de Justiça.
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
229
Ou seja, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça,
nada obstante a vedação legal expressa da denúncia anônima, este instituto se
mostraria legítimo no sistema em vista do “poder-dever de autotutela” ou do “poder-
dever de investigação”.
Em suma, o resultado prático descortinado na experiência do STJ mostra
que a invocação dos princípios (i) da autotutela e (ii) da proteção dos bens e
interesses públicos autoriza a superação de regras legislativas que expressamente
vedam a denúncia anônima. Em outras palavras, o STJ trata referidos princípios
como se regras fossem, dando-lhes um caráter de definitividade8 para afastar a
aplicação de regras que vedam denúncia anônima em qualquer situação.
No plano do Supremo Tribunal Federal, contudo, a leitura é diversa e
apresenta contornos mais complexos. Isto porque no STF, tanto a vedação de
denúncias anônimas como os interesses vinculados com a autotutela,
impessoalidade, moralidade etc., vêm sendo tratados como se princípios fossem,
demandando, a solução dos diversos casos concretos, o devido sopesamento9. A
título exemplificativo, observe-se a seguinte decisão (apresentada de forma
resumida):
MS 24.369-DF
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA: DELAÇÃO ANÔNIMA. COMUNICAÇÃO DE FATOS GRAVES QUE TERIAM SIDO PRATICADOS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES QUE SE REVESTEM, EM TESE, DE ILICITUDE (PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS SUPOSTAMENTE DIRECIONADOS E ALEGADO PAGAMENTO DE DIÁRIAS EXORBITANTES). A QUESTÃO DA VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ANONIMATO (CF, ART. 5º, IV, “IN FINE”), EM FACE DA NECESSIDADE ÉTICO-JURÍDICA DE INVESTIGAÇÃO DE CONDUTAS FUNCIONAIS DESVIANTES. OBRIGAÇÃO ESTATAL, QUE, IMPOSTA PELO DEVER DE OBSERVÂNCIA DOS POSTULADOS DA LEGALIDADE, DA IMPESSOALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (CF, ART. 37, “CAPUT”), TORNA INDERROGÁVEL O ENCARGO DE APURAR COMPORTAMENTOS EVENTUALMENTE LESIVOS AO INTERESSE PÚBLICO. RAZÕES DE INTERESSE SOCIAL EM POSSÍVEL CONFLITO COM A EXIGÊNCIA DE PROTEÇÃO À
8 Sobre a aplicação das regras com caráter de definitividade, conferir: Alexy (2008, p. 103-106).
9 Sobre a aplicação dos princípios como mandamentos prima facie, conferir: Alexy (2008, p. 103-
106).
Paulo Ricardo Schier
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230
INCOLUMIDADE MORAL DAS PESSOAS (CF, ART. 5º, X). O DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO CIDADÃO AO FIEL DESEMPENHO, PELOS AGENTES ESTATAIS, DO DEVER DE PROBIDADE CONSTITUIRIA UMA LIMITAÇÃO EXTERNA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. LIBERDADES EM ANTAGONISMO. SITUAÇÃO DE TENSÃO DIALÉTICA ENTRE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL. COLISÃO DE DIREITOS QUE SE RESOLVE, EM CADA CASO OCORRENTE, MEDIANTE PONDERAÇÃO DOS VALORES E INTERESSES EM CONFLITO. CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS. LIMINAR INDEFERIDA.
DECISÃO:
... O veto constitucional ao anonimato, como se sabe, busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, pois, ao exigir-se a identificação de quem se vale dessa extraordinária prerrogativa político-jurídica, essencial à própria configuração do Estado democrático de direito, visa-se, em última análise, a possibilitar que eventuais excessos, derivados da prática do direito à livre expressão, sejam tornados passíveis de responsabilização, “a posteriori”, tanto na esfera civil, quanto no âmbito penal. Essa cláusula de vedação - que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação das liberdades do pensamento - surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, § 12), que objetivava, ao não permitir o anonimato, inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, viabilizando, desse modo, a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais ou panfletos, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele Estatuto Fundamental. ... Nisso consiste a ratio subjacente à norma, que, inscrita no inciso IV do art. 5º, da Constituição da República, proclama ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (grifei). Torna-se evidente, pois, que a cláusula que proíbe o anonimato - ao viabilizar, “a posteriori”, a responsabilização penal e/ou civil do ofensor - traduz medida constitucional destinada a desestimular manifestações abusivas do pensamento, de que possa decorrer gravame ao patrimônio moral das pessoas injustamente desrespeitadas em sua esfera de dignidade, qualquer que seja o meio utilizado na veiculação das imputações contumeliosas. ... A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. O art. 5º, V, o consigna nos termos seguintes: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Esse direito de resposta, como visto antes, é também uma garantia de eficácia do
Denúncia anônima em processo disciplinar...
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231
direito à privacidade. Esse é um tipo de conflito que se verifica com bastante freqüência no exercício da liberdade de informação e comunicação”. A presente impetração mandamental, nos termos em que deduzida, sustenta, com apoio na cláusula que veda o anonimato, a existência, em nosso ordenamento positivo, de impedimento constitucional à formulação de delações anônimas. É inquestionável que a delação anônima pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição. O caso ora exposto pela parte impetrante - que é entidade autárquica federal - pode traduzir, eventualmente, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos. Com efeito, há, de um lado, a norma constitucional, que, ao vedar o anonimato (CF, art. 5º, IV), objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade (como a honra, a vida privada, a imagem e a intimidade), buscando inibir, desse modo, delações anônimas abusivas. E existem, de outro, certos postulados básicos, igualmente consagrados pelo texto da Constituição, vocacionados a conferir real efetividade à exigência de que os comportamentos funcionais dos agentes estatais se ajustem à lei (CF, art. 5º, II) e se mostrem compatíveis com os padrões ético-jurídicos que decorrem do princípio da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput). Presente esse contexto, resta verificar se o direito público subjetivo do cidadão à rigorosa observância do postulado da legalidade e da moralidade administrativa, por parte do Estado e de suas instrumentalidades (como as autarquias), constitui, ou não, limitação externa aos direitos da personalidade (considerados, aqui, em uma de suas dimensões, precisamente aquela em que se projetam os direitos à integridade moral), em ordem a viabilizar o conhecimento, pelas instâncias governamentais, de delações anônimas, para, em função de seu conteúdo - e uma vez verificada a idoneidade e a realidade dos dados informativos delas constantes -, proceder-se, licitamente, à apuração da verdade, mediante regular procedimento investigatório. Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, “hic et nunc”, em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina.
...
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
232
Parece registrar-se, na espécie em exame, uma situação de colidência entre a pretensão mandamental de rejeição absoluta da delação anônima, ainda que esta possa veicular fatos alegadamente lesivos ao patrimônio estatal, e o interesse primário da coletividade em ver apuradas alegações de graves irregularidades que teriam sido cometidas na intimidade do aparelho administrativo do Estado. Isso significa, em um contexto de liberdades em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do método - que é apropriado e racional - da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais e/ou administrativas que teriam sido praticadas por entidade autárquica federal, bastaria, por si só, para atribuir, à denúncia em causa (embora anônima), condição viabilizadora da ação administrativa adotada pelo E. Tribunal de Contas da União, na defesa do postulado ético-jurídico da moralidade administrativa, em tudo incompatível com qualquer conduta desviante do improbus administrador. Na realidade, o tema pertinente à vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes, considerada a obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Não é por outra razão que o magistério da doutrina admite, não obstante a existência de delação anônima, que a Administração Pública possa, ao agir autonomamente, efetuar averiguações destinadas a apurar a real concreção de possíveis ilicitudes administrativas... ... Esse entendimento tem o beneplácito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. ... Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, indefiro, em sede de delibação, o pedido de medida liminar, sem prejuízo de oportuno reexame da questão ora veiculada nesta sede mandamental. 2. Requisitem-se informações aos órgãos ora apontados como coatores, encaminhando-se-lhes cópia da presente decisão. Publique-se. Brasília, 10 de outubro de 2002. Ministro CELSO DE MELLO (decisão publicada no DJU de 16.10.2002).
Referida decisão sintetiza o entendimento do STF que, em alguns casos
concretos, após sopesamento (admitido ora explicitamente e ora intuitivamente), por
vezes tolera a denúncia anônima (como no caso do MS 27339/DF) e por vezes a
rechaça (vg. Inquérito nº 1.957-PR).
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
233
Ou seja, no STF a questão é pensada no plano principiológico, aceitando,
sempre, respostas diferentes para cada caso concreto10. Parece não fazer diferença,
aliás, para o STF, o fato de a legislação infraconstitucional trazer regras explícitas
vedando a delação anônima (como se a prévia existência de um sopesamento
legislativo, neste campo, não trouxesse qualquer interferência no resultado dessas
decisões).
III ANÁLISE CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA
Tanto a jurisprudência consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal
como a do Superior Tribunal de Justiça, com o devido respeito, trazem alguns
problemas de cunho prático e teórico.
Com efeito, no quadro de um Estado Democrático de Direito, causa certa
estranheza o fato da jurisprudência dominante dos tribunais superiores, com
fundamentos diferentes, praticamente ignorar a regra do art. 144, da Lei n. 8.112/90
e do art. 6º, da Lei n. 9784/99.
No quadro do STJ, como se afirmou, a justificativa do entendimento transita
por dois grandes argumentos: (i) a aplicação da regra contida no art. 143, da própria
Lei n. 8112/90, segundo a qual a autoridade administrativa, tendo ciência de
irregularidade, é obrigada a apurá-la; (ii) aplicação direta do chamado “poder-dever
de autotutela” (em verdade, um princípio com fundamento implícito na Constituição e
com base normativa infraconstitucional, no campo em análise, no art. 53, da Lei
Federal n. 9784/99 – “A Administração deve anular seus próprios atos, quando
eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”).
Em relação ao primeiro argumento que justifica as decisões do STJ –
cabimento da denúncia anônima por aplicação da regra do art. 143, da Lei n.
8112/90 -, parece que referido Tribunal olvida uma necessária interpretação
10
Alerta sobre a necessidade de que a ponderação seja realizada apenas em vista de um caso
concreto, devendo-se evitar ponderações "abstratas", pode-se encontrar em: Sarmento (2003, p.
42-49).
Paulo Ricardo Schier
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
234
sistemática da legislação constitucional e infraconstitucional11. Deveras, na
realidade, tal raciocínio advém de um método de interpretação rude, qual seja, o
método literal. O art. 143, com efeito, obriga a apuração das irregularidades de que
se tenha ciência; em seguida, o art. 144 determina que não se apure as
irregularidades que tenham chegado ao conhecimento da autoridade por meio de
denúncia anônima. Lendo com atenção os dois dispositivos a única conclusão
possível é a de que a autoridade não pode deixar de averiguar irregularidades que
tenham chegado ao seu conhecimento da forma preconizado pela lei, ou seja, por
meio de denúncia realizada por pessoa identificada, de forma legítima, consoante o
meio lícito previsto em nosso sistema jurídico. O que significa dizer: a regra do art.
143, da Lei n. 8112/90, que impõe o dever de investigar, não nega a regra do art.
144, do mesmo diploma legal. Trata-se antes de um reforço. A autoridade
administrativa, quando a denúncia estiver revestida de seus requisitos – dentre, não
ser anônima -, tem o dever de investigar. O Poder Público não pode se furtar de
averiguar as delações de ilicitudes e irregularidade que, na forma da lei, chegam ao
seu conhecimento. Todavia este dever não pode prevalecer se se tratar de denúncia
anônima.
Esta parece ser a construção adequada da norma, que leva em
consideração o método de interpretação sistemático e salva a aplicação de ambos
os dispositivos. Neste modelo de interpretação, nem a vedação de denúncia
anônima retira a validade do dever de investigar e nem o dever de investigar retira a
validade ou a possibilidade de aplicação da vedação de denúncia anônima. De outro
lado, a interpretação literal suprime qualquer sentido prático do art. 144, retirando-lhe
completamente os efeitos e restringindo, também, os direitos do servidor.
Como se nota, portanto, a interpretação literal e isolada do art. 143 equivale
a uma peculiar declaração de inconstitucionalidade implícita do art. 144, da Lei n.
8.112/90. Ora, uma vez que o art. 144, da Lei 8.112/90, não foi, em momento algum,
declarado inconstitucional (nem em sede abstrata e nem em sede de controle
difuso), a sua não aplicação representa verdadeira violação ao Estado de Direito.
11
Sobre a necessidade de interpretação sistemática como imposição do princípio da unidade da
Constituição, consultar: Barroso (1996, p. 181-198).
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
235
Ademais, neste campo, a leitura conjunta dos art. 143 e 144, da Lei
8.112/90, na sequência como foi colocada, indicia a necessidade de uma leitura
ajustada em que, primeiramente, dever-se-ia considerar a existência do dever de
investigação e, em seguida, como se criasse verdadeira regra de exceção, “desde
que a denúncia não seja anônima”.
A segunda justificativa do STJ para admitir, em suas decisões, a denúncia
anônima, está na invocação da aplicação direta do princípio da autotutela, que tem
por escopo, como já restou adiantado, a tutela do interesse público, da moralidade,
finalidade, da eficiência etc.
Neste ponto, uma análise crítica deve ser desdobrada em dois pontos: (i) o
contido no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99 – dever de anulação (autotutela) dos
atos eivados de ilegalidade – e (ii) a possibilidade de aplicação direta dos princípios
constitucionais da administração pública, sejam explícitos ou implícitos.
Na primeira linha de raciocínio, no que tange com o “dever de autotutela”,
pode-se imaginar que, embora dotado de fundamentação constitucional, e no que
pertine com a sua aplicação em processos disciplinares, este princípio está
densificado, em nível infraconstitucional, no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99. A se
considerar, ainda, que a atividade legislativa manifesta uma decisão em relação ao
modo de realização das normas constitucionais, não se pode olvidar que, de forma
crua, referido dispositivo da Lei 9.784/99 em nenhum momento autoriza a utilização
da autotutela com a fim de tolerar denúncia anônima. O referido enunciado
normativo expressa, rememore-se, o seguinte: “A Administração deve anular seus
próprios atos, quando eivados de vício de legalidade... “. Como se nota, o dever
de anular seus próprios atos só é um dever em relação aos atos “eivados de vício de
legalidade”.
Considerando o dispositivo é preciso, logo, fazer uma distinção lógica: uma
coisa é o dever de anulação do ato ilegal e outra coisa e a possibilidade de
aplicação de sanção disciplinar a quem cometeu o ato ilegal. Com esta distinção,
fácil perceber que, uma vez constatada uma ilegalidade, a lei impõe o dever de
anulação do ato ilegal. Aqui há autotutela. Mas isso, reitere-se, vale para a
investigação do ato ilegal em sentido próprio. A aplicação de sanção disciplinar ao
agente que cometeu a ilegalidade deve se dar mediante processo disciplinar que
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236
garanta o contraditório e a ampla defesa, eis que se trata de imposição de medida
restritiva de direito de liberdade e/ou propriedade. A autotutela encontra, neste
campo, portanto, limite. Autotutela no plano do processo disciplinar será admitida
apenas quando algum ato do processo administrativo estiver eivado de ilegalidade;
jamais para justificar a abertura do processo disciplinar. Neste aspecto, ilegal seria,
sim, a abertura de processo disciplinar com fundamento no dever de autotutela
insculpido no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99, quando este dispositivo alcança
apenas o ato ilegal, e não a aplicação de sanção ao agente que o praticou.
Poder-se-ia, então, contra-argumentar que o dever de autotutela, neste
caso, não decorre própria e diretamente da lei mas, antes, decorre diretamente da
principiologia constitucional que protege o interesse público, a moralidade, a
eficiência, a isonomia, a finalidade etc. ou, em outras palavras, a supremacia do
interesse público contra o interesse privado do particular (revestido de agente
público).
Em face deste argumento pode-se opor o debate emergente das reservas
que parte da teoria do Direito Público tem levantado contra o discurso absolutizante
da supremacia do interesse público sobre o privado. Aqui, mais uma vez, as
preocupações manifestadas por esta doutrina se confirmam: de nada adianta
invocar a vedação constitucional do anonimato, mesmo confirmada por regra
inequívoca de legislação infraconstitucional, pois os interesses de um particular não
podem superar a invencível supremacia do interesse público. Algo como que se
afirmasse: o dever de autotutela protege o interesse público e a vedação de
denúncia anônima protege o indivíduo, aqui pressupostamente ímprobo. Logo,
interesses privados não podem prevalecer sobre os públicos e, assim, toda vez que
houver este tipo de colisão, a resposta está pronta: que vença o interesse público.
Não é o caso, aqui, novamente, de desenvolver uma linha de argumentação
neste sentido. Fazemos referência, neste momento, às observações lançadas em
trabalhos anteriores12.
12
Panorama do debate sobre o mito da supremacia do interesse público sobre o privado pode ser
encontrado em: Sarmento (2007, 246 p).
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
237
De outro lado, independentemente de se superar o problema da “questão”
da supremacia do interesse público, seria possível levantar, como crítica ao modelo
de interpretação do STJ, a forma como permite a aplicação direta de princípios
constitucionais, revestidos de elevada abertura e indeterminação, para afastar a
aplicação de regras legais muito claras que manifestam juízo de sopesamento do
legislador na aplicação de princípios13. Aqui, portanto, está-se a transitar por outro
problema metodológico: a aplicação direta de princípios constitucionais para afastar
a aplicação de regras legais14.
Este problema não está revestido de qualquer novidade. A produção teórica
do direito constitucional e a teoria do direito, de modo geral, já havia se dado conta
de certos perigos que o processo de constitucionalização, despido de critérios
racionais, pode ensejar no campo da realização da justiça. A insegurança jurídica, a
eventual incontrolabilidade das decisões, o excesso de subjetivismo e abertura para
os juízos morais no preenchimento dos conceitos indeterminados trazidos pelos
princípios, o eventual déficit democrático que o afastamento das opções legislativas
podem proporcionar, são alguns temas recorrentes que permeiam este debate15.
Não se pretende, neste estudo, abrir uma porta metodológica para a
discussão desses temas relevantes. A presente abordagem assumirá, aqui, alguns
pressupostos metodológicos para não fugir do tema central: (i) a aplicação direta de
princípios constitucionais em detrimento de regras infraconstitucionais revestidas de
presunção de constitucionalidade (ou seja, sobre as quais não recaia um juízo de
inconstitucionalidade evidente) é procedimento perigoso16; (ii) há que se conferir
uma certa deferência às decisões expressadas pelo legislador infraconstitucional em
homenagem ao princípio democrático e à segurança jurídica (MARRAFON, p. 362);
(iii) princípios, preferencialmente, devem ser aplicados através das regras que lhe
dão concretude e expressam as opções da sociedade em relação às concepções
dos conceitos trazidos por aqueles (BARCELLOS, 2005, p. 165-200).; (iv) logo,
13
O problema do afastamento da aplicação de regras não evidentemente inconstitucionais diante de
princípios dotados de elevada carga de indeterminação e abstração é interessantemente apontado
em: Guastini (2008, p. 73-91). 14
Este tipo de problema já havíamos, de forma formar, abordado no seguinte texto: Schier. In: Souza
Neto; Sarmento (p. 251-270). 15
Neste sentido, conferir: Sarmento. In: Souza Neto; Sarmento (p. 113-148). 16
Neste sentido, conferir: Ávila. In: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm (2009, p. 187 e ss.).
Paulo Ricardo Schier
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238
aplicação direta de princípios em detrimento de regras só pode ser levada a efeito
com reservas e mediante a demanda de um ônus argumentativo mais custoso
(MARRAFON, p. 362).
Neste quadro o que se nota, por tudo o que já se expôs, é que os
argumentos que podem justificar a eventual aplicação direta da autotutela contra a
vedação de denúncia anônima, no que tange com a linha de argumentação do STJ,
não resiste a um processo de debate mais apurado. Apenas a referência genérica à
possibilidade de aplicação direta dos princípios constitucionais da Administração
Pública é que tem fundado esta prática.
Conforme resta claro, a não aplicação da regra que veda denúncia anônima
se baseia, principalmente, na eventual aplicação direta do princípio da moralidade,
da impessoalidade e da supremacia do interesse público.
No entanto, como se tem admitido mais recentemente, entende-se que
apesar do reconhecimento da normatividade dos princípios se constituir uma
importante conquista no movimento constitucionalista e pós-positivista que ganha
força no Brasil a partir da luta pela efetividade da Constituição de 1988, que se
consolida em meados da década de 90 do século passado (BARROSO, 2007, p.
203-249), isso não implica que as regras de direito possam ser descartadas com
base em certos voluntarismos interpretativos típicos de novos jusnaturalismos e sua
incessante busca de uma justiça ideal e abstrata ou novos realismos, segundo os
quais o fim social se torna um critério interpretativo superador das fontes formais
estatais.
Recair nessas posturas pode significar, na prática, a ruína do Estado
Democrático de Direito, uma vez que a falta de densidade semântica dos princípios
jurídicos faz com que eles se tornem verdadeiras “chaves-mestras” da interpretação
jurídica, permitindo que se diga qualquer coisa acerca da moral, do justo ou ainda do
interesse social.
Ciente das armadilhas ocultas nessas perspectivas de realização do direito,
Norberto Bobbio lembra que as controvérsias entre o justo e o injusto, a moral e o
imoral são praticamente insuperáveis. Como exemplo é possível citar a crença de
Locke na propriedade como direito natural e o repúdio dessa ideia por parte de
socialistas utópicos (BOBBIO, 2001, p. 56).
Denúncia anônima em processo disciplinar...
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239
Sendo assim, há que se concordar com Antonio Cavalcanti Maia quando
defende que:
...falar de pós-positivismo não significa adotar uma posição radicalmente anti-positivista, mas sim propugnar por uma superação desta démarche
teórica na busca de uma compreensão mais ‘afinada’ da vida jurídica
contemporânea. Ora, por um lado, não podemos nos recusar a reconhecer as incontornáveis contribuições dadas pelos juristas filiados ao positivismo jurídico à inteligência da estrutura da norma jurídica, bem como sua preocupação com a clareza, a certeza e a objetividade no estudo do direito, tudo isso referenciado à preocupação central dos estados de direitos contemporâneos com a segurança jurídica. Por outro lado, advogar um enfoque pós-positivista não significa defender – como é, por vezes, salientado por autores críticos a esse posicionamento – um retorno a posições jusnaturalistas devedoras de concepções metafísicas incompatíveis com o atual estágio de compreensão científica (MAIA, 2009, p. 123).
Desta feita, não há que se descuidar de uma análise apurada e colocar as
questões envolvidas em seus devidos lugares.
Como já indicado anteriormente, a questão da moralidade, do interesse
público, da impessoalidade, não são necessariamente incompatíveis com a vedação
de denúncia anônima. Tenha-se em mente que os princípios são pontos de partida e
sua concretização não pode ser feita às custas de qualquer meio, especialmente
quando, no caso em debate, ela atinge dispositivos constitucionais ainda em vigor
(art. 5º, IV), superando claros limites textuais da Constituição e das opções do
legislador ordinário.
É preciso, então, para evitar arbitrariedades, identificar os parâmetros para
uma correta dimensão da aplicabilidade dos princípios.
Princípios e regras jurídicas, enquanto espécies do gênero norma jurídica,
operam funções diferenciadas, mas interligadas no sistema jurídico. Princípios
possuem maior carga axiológica e funcionam como instituidores de regras.
Estabelecem, os princípios, direitos prima facie. As regras, por sua vez, descrevem
condutas ou estruturas de modo mais objetivo, justamente porque sua finalidade é
tornar aplicável na vida prática os valores contidos nos princípios através de
escolhas e opções normativas indispensáveis à sua concretização. As regras, por
desempenharem esta função, estabelecem direitos definitivos.
Paulo Ricardo Schier
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
240
Assim compreendidos, há de se reconhecer uma relação paradoxal entre
ambos, na medida em que o princípio funda a normatividade e depende de
realização pela via de regra, as quais, por sua vez, apenas possuem “existência
jurídica” porque aferíveis por um princípio que também lhes serve de fechamento
interpretativo, dando o tom dos valores a serem juridicamente protegidos.
Um demanda o outro, com determinações recíprocas de sentido. Os
princípios permitem a oxigenação do sistema, trazendo para dentro de si os
conteúdos existencialmente dados em determinado período histórico. As regras
especificam a aplicação dos princípios, ao mesmo tempo que existem em função
deles.
Em decorrência, postula-se que na solução imediata dos casos jurídicos,
deve-se dar primazia às regras, vez que os princípios apenas adquirem
aplicabilidade direta em situações muito específicas, em que se impõe uma decisão
que deve suportar o ônus argumentativo.
Essa exigência de priorizar as regras surge como uma tentativa de alcançar
o ideal de segurança jurídica almejado pelo Direito, conforme assinala Marçal Justen
Filho:
o reconhecimento da importância dos princípios conduziu a um certo
desprestígio das regras, o que é um equívoco. A existência de regras é
essencial para a segurança jurídica e para a certeza do direito. A regra traduz as escolhas quanto aos valores e aos fatos sociais. Permitindo a todos os integrantes da sociedade conhecer a solução perstigiada pelo direito (JUSTEN FILHO, 2003, p. 53-54).
A argumentação com base em princípios é especialmente relevante nos
chamados “casos difíceis”. Com efeito, Ronald Dworkin diagnostica que,
frequentemente, a argumentação assentada em padrões normativos que não se
adequam às características de regra jurídica, mas sim de princípios, ocorre em
casos polêmicos, dotados de alto grau de problematicidade (DWORKIN, 2002, p.
36).
Para determinar quais são esses casos não existe um critério universal, uma
regra definidora ou um método que seja satisfatório. No entanto, é possível afirmar
Denúncia anônima em processo disciplinar...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
241
que eles possuem caráter problemático porque não se vislumbra uma resposta
jurídica ou então, do oposto, são detectadas inúmeras possibilidades decisórias.
Ocorre, todavia, que não parece ser esta a situação do caso aqui discutido.
A denúncia anônima é vedada expressamente na Constituição e em diversos
dispositivos infraconstitucionais jamais declarados inconstitucionais. O texto
constitucional, ademais, não estabelece diretamente qualquer exceção.
Simplesmente expressa a vedação de anonimato. Não há, ainda, uma cláusula geral
do tipo “é vedado o anonimato, salvo se ele for invocado contra o interesse, o poder
ou a moral pública”. Isso não significa, todavia, que o legislador, sopesando bens
constitucionais17, esteja impedido de estabelecer algum tipo de restrição nesta sede.
Ora, a intervenção estatal, neste campo sempre restritiva (SILVA, 2009, p. 65-125),
será legítima desde que justificada e preserve, numa perspectiva de
proporcionalidade, o núcleo essencial do direito restringido (SILVA, 2009, p. 183-
208). E, neste aspecto, a vedação do anonimato é apenas confirmada pelas regras
infraconstitucionais. Eventuais restrições, destarte, poderiam ser colocadas pelo
legislador infraconstitucional. Nada obstante, ao legislar sobre o “dever de
investigação” (no caso do art. 143, da Lei n. 8112/90) e sobre o “dever de autotutela”
(art. 53, da Lei n. 9784/99), no legislador ordinário não colocou tais deveres como
exceções à vedação de denúncia anônima.
Também não há suporte fático que autorize a conclusão de que a vedação
de denúncias anônimas, inevitavelmente, criará embaraços ao Poder Público no que
tange com a anulação de atos ilegais. Poderá criar algum custo, sim, na aplicação
de sanções ao agente público que cometeu a ilegalidade, mas isso integra o
chamado “ônus da democracia”, da aplicação do devido processo legal.
A importância de valorizar as regras estabelecidas pela via da legislação
democraticamente elaborada, destarte, surge como corolário do Estado Democrático
de Direito, que tem o princípio da legalidade como seu pilar fundamental,
imprescindível para que os cidadãos tenham condições de prever as condutas lícitas
ou não. Na lição de José Afonso da Silva:
17
Conferir Virgílio Afonso da Silva, ao demonstrar que a atividade de restrição realizada pelo
legislador ordinário é atividade de sopesamento em vista de um caso concreto: (2009, p. 140, nota
de rodapé n. 64).
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a lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização de seus interesses (SILVA, J., 1990, p.107).
Para Jorge Reis Novais o princípio da legalidade consagra, ainda, a ideia da
segurança jurídica, uma vez que sem a possibilidade, juridicamente garantida, de
poder calcular e prever os possíveis desenvolvimentos da actuação dos poderes
públicos susceptíveis de repercutirem na sua esfera jurídica, o indivíduo converter-
se-ia, em última análise com violação do princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana, em mero objeto do acontecer estatal (NOVAIS, 2004, p. 262).
Com efeito, além da possibilidade de antever as condutas juridicamente
reguladas, a noção de segurança jurídica implica na faculdade de invocar o aparato
jurídico como garantia de segurança social, através do instrumental dogmático
disponível, formado pelas normas de direito objetivo integrantes da ordem legal e
também por inúmeros princípios de cariz constitucional, tais como o princípio
legalidade, princípio ampla defesa, princípio da irretroatividade da norma, princípio
da presunção de constitucionalidade das leis, entre outros.
Esses princípios permitem que se vislumbre na ordem constitucional um
bloco de direitos fundamentais que atentam para a necessária preservação da
segurança jurídica, garantia de cidadania e previsivilidade jurídica, cuja origem
remonta aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estabelecidos no art. 5º,
incisos XXXVI a LXXIII, da Constituição da República de 1988.
Por certo, a ideia de segurança jurídica não pode servir para justificar
qualquer direito positivo existente, mas sim deve acompanhar a concretização da
justiça, em especial quando se trata de garantia fundamental do cidadão, na forma
assentada constitucionalmente.
Na situação aqui desenhada, percebe-se que a aplicação autônoma do
princípio da moralidade e da impessoalidade sem a devida contextualização e
adequação, contra regras inequívocas que vedam a denúncia anônima, acaba
promovendo a violação de uma outra série de princípios constitucionais de igual
relevância jurídica, como o contraditório, a ampla defesa, a defesa da honra, da
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243
imagem e, dentre eles, também, a segurança jurídica, em especial manifestada
através do princípio da presunção de constitucionalidade das leis.
Por isso, em caso de se configurar uma aparente colisão, a aplicação de um
princípio deve gerar menos danos à ordem constitucional do que os prejuízos
causados pela violação dos outros princípios. Na situação em comento, contata-se
que a aplicação dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da supremacia
do interesse público, para afastar a aplicação das regras que vedam a denúncia
anônima, acarreta grave prejuízo aos princípios acima declinados.
Daí porque é preciso concordar que a constitucionalização do direito, se
entendida de modo apressado, pode acarretar alguns efeitos indesejáveis que
devem ser evitados.
Ciente da problemática, Luis Roberto Barroso aponta duas consequências
negativas da má compreensão desse fenômeno teórico no direito brasileiro
contemporâneo: a primeira de natureza política, ocasionada pelo enfraquecimento
do poder democrático majoritário e pelo desprestígio da legislação ordinária e a
segunda de natureza metodológica, pois a textura aberta e vaga de algumas normas
constitucionais podem levar ao decisionismo judicial (BARROSO, 2009, p. 391-392).
Com base nesse diagnóstico, citado constitucionalista é taxativo ao destacar
a importância de coibir tais efeitos. Notadamente em relação à prática do chamado
decisionismo, diz ele:
É indispensável que juízes e tribunais adotem certo rigor dogmático e assumam o ônus argumentativo da aplicação de regras que contenha conceitos jurídicos indeterminados ou princípios de conteúdo fluido. O uso abusivo da discricionariedade judicial na solução de casos difíceis pode ser extremamente problemático para a tutela de valores como segurança e justiça, além de comprometer a legitimidade democrática da função judicial (BARROSO, 2009, p. 392).
Para tanto, nos mesmos termos da linha de raciocínio e da proposta
esboçada no presente estudo, Luis Roberto Barroso propõe dois parâmetros
metodológicos a serem seguidos pelos intérpretes em geral, quais sejam:
a) preferência pela lei: onde tiver havido manifestação inequívoca e válida do legislador deve ela prevalecer, abstendo-se o juiz ou o tribunal de produzir solução diversa que lhe pareça mais conveniente;
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b) preferência pela regra: onde o constituinte ou o legislador tiver atuado, mediante a edição de uma regra válida, descritiva da conduta a ser
seguida, deve ela prevalecer sobre os princípios de igual hierarquia que por acaso pudessem postular incidência na matéria.
Ora, transpondo essas lições para o caso em tela, verifica-se que as leis
ordinárias federais que tratam da matéria (i) contêm “manifestações inequívocas e
válidas do legislador”. Daí a aplicação do critério da preferência da lei em detrimento
da aplicação direta dos princípios na situação aqui analisada, mesmo porque,
reforce-se, ele “concretiza os princípios da separação dos poderes, da segurança
jurídica e da isonomia” (BARROSO, 2009, p. 393).
Também é visível que deve ser aplicado o critério da preferência pela regra,
vez que os dispositivos legislativos amplamente citados acima são válidos e
descrevem condutas específicas a serem seguidas, merecendo o privilégio da
prioridade.
Logo, portanto, pelo que se expôs, a interpretação predominante do STJ,
que admite denúncia anônima, ao não conceber a possibilidade de qualquer
sopesamento ou relativização da autotutela ou do dever de investigar: (i) tem tratado
princípios como se regras fossem, (ii) tem autorizado a aplicação direta de princípios
constitucionais abertos e indeterminados contra texto de lei e contra regra válida no
sistema, (iii) tem criado insegurança jurídica, (iv) tem cerceado a ampla defesa, na
medida em que a não identificação do denunciante impede a eventual possibilidade
de provar abuso de poder ou desvio de finalidade.
Todas as críticas lançadas ao modelo de interpretação predominante no
STJ, sob a justificação de aplicação autônoma dos princípios da moralidade,
impessoalidade, interesse público etc., servem também para o modelo de
interpretação predominante no STF.
Com efeito, e de acordo com o que se demonstrou, as soluções
colecionadas na experiência do Supremo Tribunal Federal mostram que nesta Corte
a questão vem sendo trabalhada a partir de uma dogmática estritamente
principiológica. As soluções apresentadas, normalmente, reportam-se à necessidade
de realização de juízos de ponderação em cada caso concreto. Com efeito, na
decisão acima citada, proferida no MS 24.369-DF, todo o raciocínio é construído a
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partir de enunciados constitucionais tomados pressupostamente como princípios.
Quanto a isso, de partida, nenhum problema. Há relevante produção teórica que
defende que direitos fundamentais são princípios18, e nada impede que este
entendimento fique pressuposto no discurso. Na argumentação, perceba-se, o
Ministro relator coloca, de um lado, a vedação do anonimato (art. 5, IV) e, de outro,
legalidade (art. 5, II) e moralidade (art. 37, caput). Toda a construção da decisão leva
em consideração uma abordagem genérica desses princípios e, reiteradas vezes,
refere-se à necessidade de resposta com base na ponderação, que seria método
racional de decisão. Ao fim a decisão nega a liminar e admite o processamento de
denúncia anônima afirmando que, cite-se novamente:
Na realidade, o tema pertinente à vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes, considerada a obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público. Não é por outra razão que o magistério da doutrina admite, não obstante a existência de delação anônima, que a Administração Pública possa, ao agir autonomamente, efetuar averiguações destinadas a apurar a real concreção de possíveis ilicitudes administrativas... ... Esse entendimento tem o beneplácito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O curioso, com a devida vênia, é perceber que toda a fundamentação
construída no voto poderia conduzir, ao final, a uma conclusão absolutamente
diferente. Ademais, em nenhum momento o voto tece considerações às disposições
legais e regras que vedam expressamente o anonimato. Todo o raciocínio se dá no
plano da normatividade constitucional, com total abstração das opções do legislador
ordinário.
Na decisão proferida no julgamento do Inquérito nº 1.957-PR, o STF, através
de julgamento levado a efeito no Plenário, deixou evidente que o anonimato é
postura afrontosa ao Estado de Direito, indigna de acolhimento ou defesa,
desprovida inclusive da qualidade jurídica documental que eventualmente pretenda
18
Conferir, exemplificativamente: Figueroa. In: Souza Neto; Sarmento, p. 3-34.
No mesmo sentido: Silva (2009, p. 108-113), ao defender a teoria do suporte fático amplo.
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246
ter (quando escrita ou reduzida a termo). Contudo ela é apta a deflagrar
procedimento de mera averiguação da verossimilhança se portadora de informação
dotada de um mínimo de idoneidade. A delação anônima, destarte, seria postura
repudiada em nosso direito constitucional pelo simples fato de colocar em risco a
integridade do sistema de direitos fundamentais.
Ou seja, com pequenas nuances entre os Ministros, firmou-se tese no
sentido de que a delação de autoria desconhecida não é instrumento dotado de
juridicidade, pois se constitui num desvalor em face do próprio ordenamento jurídico
que o repudia. A despeito de se tratar de um desvalor, caso a denúncia anônima
releve indícios confiáveis dos fatos por ela encaminhados, não pode o aparelho
estatal que recebe a informação simplesmente ignorar a notitia. Assim, um juízo de
ponderação autorizaria a superação desse desvalor para que a investigação da
ilicitude seja eventualmente levada a efeito “com discrição e cautela”.
Conclui-se, mais uma vez: apesar da lei, apesar da regra, no plano
principiológico, o juízo de ponderação permite o afastamento das decisões do
legislador que, por sua vez, também são juízos de sopesamento entre bens
constitucionais, todavia realizados em seara diversa.
Daí, então, o resultado prático da jurisprudência do STF supera uma das
críticas antes delineada à jurisprudência do STJ: no STF a autotutela, a moralidade,
a legalidade etc., ao serem tratados como princípios, não são absolutizados.
Contudo o entendimento ainda permite o afastamento de regras e de opções
legislativas que teriam “preferência” de incidência na solução do caso concreto.
IV CONCLUSÃO
Apesar do entendimento fixado no âmbito dos tribunais superiores, como se
demonstrou, o presente estudo defende a tese de que a denúncia anônima, ao
menos no campo de processos disciplinares, é vedada em nosso sistema jurídico. A
Constituição, expressamente, veda o anonimato. A legislação infraconstitucional,
revestida de presunção de legitimidade, por sua vez, também veda, em mais de um
dispositivo e em mais de um diploma, a denúncia anônima.
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247
Se o problema for tratado no “plano de regras”, os dispositivos que se
referem à autotutela e ao dever de investigar não substanciam exceções à vedação
de denúncia anônima.
O dever de investigar subsiste desde que a denúncia não seja proveniente
de delação anônima. A lei cria, primeiro, o dever de investigar e, em seguida veda a
denúncia anônima. Assim, até mesmo pela forma como se deu a construção
legislativa no seio da Lei 8112/90, não se trata de “vedação de denúncia anônima
que pode ser excepcionada em vista do dever de investigar”, mas o que se tem é
“dever de investigar, exceto se a denúncia for anônima”.
A previsão legislativa de autotutela eventualmente aplicável aos processos
disciplinares, decorrente de aplicação subsidiária da Lei n. 9.784/99, é autorizada –
ou imposta, melhor dizendo, pois a lei usa o termo dever – para a anulação dos atos
“eivados de ilegalidade”. A autotutela aplica-se, portanto, para nulificar o produto da
atuação do agente político, o “ato ilegal”. A punição disciplinar do agente que
cometeu a ilegalidade é coisa distinta. Este intento é possível, mas se submete a um
regime jurídico em que a autotutela encontra limite em face do devido processo
legal, previsto na Constituição e delineado na legislação infraconstitucional, que não
aceita a denúncia anônima nesta sede punitiva.
Ainda que se considere a discussão no plano principiológico, deveras, há
que se reconhecer que várias soluções, de mérito e metodológicas, seriam
possíveis.
Assim, na perspectiva metodológica, pressupondo os riscos, os perigos
subjacentes a uma exacerbada principiologização, parece necessário tomar-se o
cuidado de dar preferência para a aplicação dos princípios através da mediação
legislativa, manifestando, aqui, o estudo, uma clara opção pela primazia da regra,
produto do legislador democrático, desde que, como sucede no caso em tela, o
sopesamento legislativo não esteja revestido de flagrante inconstitucionalidade e
respeite, portanto, os pressupostos constitucionais exigidos para as medidas de
restrição.
Todavia, ainda no campo metodológico, nada obstante os riscos que a
análise pode trazer neste “plano dos princípios”, não é de destituído de fundamentos
sólidos o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, ao conduzir o debate como
Paulo Ricardo Schier
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248
se o problema fosse, sempre, uma questão de pura colisão entre princípios. Neste
caso, então, poder-se-ia admitir o sopesamento judicial mesmo contra as regras
legais dotadas de constitucionalidade. Porém este procedimento, sem dúvida,
demandará um ônus argumentativo maior, principalmente no que tange com a leitura
dos bens concretamente envolvidos na colisão.
A prevalecer esta linha de interpretação, que não é a que se defende no
presente texto, seria legítimo sustentar, nas situações em que restaria autorizada, no
caso concreto, a denúncia anônima, a abertura do processo disciplinar ficasse
condicionada a uma prévia instauração de sindicância com o fim de averiguar alguns
elementos que indiquem um mínimo de seriedade da denúncia anônima. Ou seja,
em tais hipóteses o processamento deveria, sempre, ficar condicionado à prévia
instauração de investigação preliminar.
Afinal, certo é que a instauração de sindicância não é providência obrigatória
para todos os casos. No entanto, diante de situações em que não existam elementos
suficientes para a criação da Portaria de instalação do processo disciplinar, impõe-se
a instauração de sindicância para que sejam reunidos estes elementos básicos.
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A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
250
TRABALHOS APRESENTADOS NO IX
SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO
CONSTITUCIONAL PRODUZIDO PELOS
GRUPOS DE ESTUDOS NACIONAIS DA
ABDCONST
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
251
FRANCISCO BELTRÃO – PARANÁ
A REPERCUSSÃO GERAL E OS EFEITOS NO SISTEMA
BRASILEIRO DE CONTROLE DA
CONSTITUCIONALIDADE: O PAPEL DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL1
THE IMPACT AND EFFECTS ON THE BRAZILIAN SYSTEM OF CONTROL OF CONSTITUTIONALITY: THE ROLE OF THE FEDERAL SUPREME COURT
Edimara Sachet Risso2
Chaiane Maria Bublitz3 Jaclyn Michele Damaceno
Jaqueline Pedrozo Bitencourtt Josiane Soares Sai
Mariana Rosa Ribeiro Tamara Paola Leite
Resumo
A pesquisa desenvolvida no presente trabalho tem por objeto os contornos teóricos que envolvem a repercussão geral como requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário, criado pela Emenda Constitucional nº. 04/2005, que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 102 da Constituição Federal. Visou-se, especialmente, à investigação de sua eficácia no sentido de garantir a valorização do trabalho e dos julgados do Supremo Tribunal Federal, contribuindo para o desempenho da Corte Constitucional. Perquiriu-se, ainda, se tal requisito é instituto inconstitucional, na medida em que fere os direitos fundamentais de acesso à
1 Trabalho resultante da pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Estudos da Academia Brasileira de
Direito Constitucional no ano de 2009, na cidade de Francisco Beltrão/PR. 2 Mestra em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP, especialista em
Direito Constitucional pelo INPG/Universidade Católica Dom Bosco/MS, graduada em Direito pela
Universidade de Passo Fundo/RS. Professora de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito
de Francisco Beltrão/PR, mantida pelo CESUL – Centro Sulamericano de Ensino Superior, e de
Direito Constitucional na UNIPAR – Universidade Paranaense. Advogada em Francisco Beltrão/PR. E-MAIL: <edimara@cesul.br/edimararisso@hotmail.com>.
3 Acadêmicas do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão, mantida pelo
CESUL – Centro Sulamericano de Ensino Superior. Contatos: chaianebublitz@hotmail.com;
jaclyndamaceno@hotmail.com; jack_bitencourtt@hotmail.com; josi2s@hotmail.com; marianarosa
ribeiro@hotmail.com; leitetamara@hotmail.com.
A repercussão geral e os efeitos...
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justiça e do devido processo legal. Para isso, partiu-se, pelo método dedutivo, da discussão sobre o papel do STF e sobre a crise institucional que levou à criação do requisito, até a análise da constitucionalidade do instituto, passando pela breve abordagem do sistema brasileiro de controle da constitucionalidade, no qual se insere o recurso extraordinário, seus requisitos e, dentre eles, o da repercussão geral. A relevância do tema reside no fato de que houve significativa modificação no sistema de controle difuso da constitucionalidade, ao se limitar o encaminhamento de Recursos Extraordinários, reconhecendo ao STF seu papel na jurisdição constitucional. O estudo firma-se na pesquisa bibliográfica, mais especificamente em instrumentos doutrinários, jurídico-normativos e jurisprudenciais, inclusive com registro de direito comparado.
Palavras-chave: Repercussão Geral; Recurso Extraordinário; Supremo Tribunal Federal; Constitucionalidade.
Abstract
The objective of the research developed in this paper is the theoretical outline that involves the general repercussion as a condition of admissibility of the extraordinary appeal, created by Constitutional Amendment 04/2005, which added the paragraph 3 to Article 102 of the Constitution. It is aimed especially to investigate its effectiveness in ensuring the value of work and the Brazilian Federal Supreme Court judgement, contributing to the performance of the Constitutional Court. It was also questioned if such requirement is an unconstitucional institute, as it violates the fundamental rights of access to justice and due process. To this end, we decided to move into the discussion of the role of STF and about the institutional crisis that led to the creation of the requirement to review the constitutionality of the institute, through a brief overview of the Brazilian control of constitutionality system, which incorporates the extraordinary appeal and its requirements and among them, the general repercussion. The relevance of this issue lies in the fact that there was a significant material change in the diffuse control of constitutionality, by limiting the routing of extraordinary appeals, recognizing the Supreme Court’s constitutional jurisdiction role. The study is based upon literature, more specifically in doctrinal instruments, legal and regulatory and case law, including registration of comparative law.
Keywords: General repercussion; extraordinary appeal; the Brazilian Supreme Court; Constitutionality.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Supremo Tribunal Federal; 2.1 A Constituição Federal Como
Referencial; 2.2 O STF Como “Guardião” da Constituição; 3. O Sistema de Controle
da Constitucionalidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro; 3.2. Sistemas
Jurisdicionais de Fiscalização da Constitucionalidade; 3.2.1 O Controle Concentrado;
3.2.2 O Controle Difuso; 4. A Repercussão Geral como Requisito de Admissibilidade
do Recurso Extraordinário; 4.1 A Arguição de Relevância domo Precedente Histórico;
4.2 A Terminologia; 4.2.1 A Repercussão Geral como Conceito Jurídico
Indeterminado; 4.3 Direito Comparado: A Experiência Estrangeira; 4.3.1 O Writ Of
Certiorari nos Estados Unidos; 4.3.2 A Transcendência da Matéria na Argentina;
4.3.3 A Significação Fundamental na Alemanha; 4.3.4 A Importância Pública na
Austrália; 4.3.5 A Relevante Questão de Direito no Japão; 5. A Repercussão Geral à
Luz dos Direitos Fundamentais: inconstitucionalidade?; 5.1 Direitos Fundamentais
como Direitos Absolutos; 5.2 A Repercussão Geral e o Direito de Acesso à Justiça;
5.3 A Repercussão Geral e o Direito ao Devido Processo Legal; 6. Considerações
Finais; 7. Referências.
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1 INTRODUÇÃO
Em 2004, o sistema brasileiro de controle difuso da constitucionalidade de
atos normativos sofreu relevante alteração com a introdução do instituto da
repercussão geral das questões constitucionais como requisito de admissibilidade do
Recurso Extraordinário.
A repercussão geral é instituto inspirado em similares existentes em outros
sistemas constitucionais, como o writ of certiorari, da Suprema Corte Norte-
Americana, ou o requisito de transcendência da Suprema Corte Argentina.
Há carência de estudos pátrios, especialmente no sentido de que, como
alegam aqueles que se posicionam contra o instituto, trata-se de ressuscitar a já
extinta arguição de relevância e, portanto, haveria uma inconstitucionalidade no
requisito.
Dentre aqueles que condenam a adoção do novo requisito, Roberto Busato,
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil à época da aprovação do projeto de
lei que regulamentava o instituto, afirmou que a repercussão geral é instituto
antidemocrático e contraria o princípio constitucional de livre acesso do povo à
justiça.
Além disso, o requisito é daqueles conceitos jurídicos indeterminados, uma
vez que não se pode, prima facie, definir e limitar matérias que sejam de
repercussão geral.
Ainda, levantam-se polêmicas as teses de inconstitucionalidade da exigência
da repercussão geral e de sua adoção como forma de diminuir o número de
processos no Supremo Tribunal Federal. Os números publicados pelo próprio STF
são animadores. Resta saber se, a par dessa diminuição e em atendimento ao seu
propósito inicial, a repercussão geral irá proporcionar maior tranquilidade à Corte,
para que se dedique, detidamente, à análise das questões de relevância social e
que transcendem aqueles que, em razão do novo requisito, jamais chegarão à sua
apreciação.
Assim, a pesquisa desenvolvida no presente trabalho visou à investigação
dos aspectos teóricos que envolvem esse novo requisito de admissibilidade do
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Recurso Extraordinário, especialmente a sua eficácia no sentido de garantir a
valorização do trabalho e dos julgados do mais importante Tribunal brasileiro.
Nesse sentido, formulou-se a seguinte proposição: a repercussão geral,
como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, contribui para o
desempenho do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional ou é instituto
inconstitucional, na medida em que fere direitos fundamentais?
O tema é relevante tendo em vista que, se por um lado entende-se pela
inconstitucionalidade da Repercussão Geral – ao argumento de que viola os direitos
fundamentais do livre acesso à justiça e do devido processo legal, e tendo em vista
que toda questão de cunho constitucional é relevante e, portanto, como tal deve ser
analisada, por outro lado, o instituto, modificando significativamente o sistema de
controle difuso da constitucionalidade, limita o encaminhamento de Recursos
Extraordinários “irrelevantes”, reconhecendo ao STF o merecido papel de corte
constitucional.
O estudo é respaldado em instrumentos doutrinários, jurídico-normativos e
jurisprudenciais, utilizando o método dedutivo. Em razão disso, está dividido em
cinco partes: da discussão sobre o papel do STF e a crise institucional que levou à
criação do requisito, até a análise da constitucionalidade do instituto, passando pela
breve abordagem do sistema brasileiro de controle da constitucionalidade, no qual
se insere o recurso extraordinário, seus requisitos e, dentre eles, o da repercussão
geral, mais detidamente analisado, inclusive sob o ponto de vista histórico e do
direito comparado.
2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
2.1 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO REFERENCIAL
A jurisdição está em crise. Em outros momentos históricos, discutia-se a
crise pela busca de garantias de direitos. Essa fase foi superada com a positivação
dos direitos do homem nos documentos constitucionais. Assim, hodiernamente, e
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com a imensidão de leis infraconstitucionais e com a prolixidade constitucional4, o
obstáculo instaura-se na segurança jurisdicional, em especial, a constitucional.
Afora isso, o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a
base das constituições democráticas (BOBBIO, 2004, p. 203).
Analisando-se a evolução das Constituições brasileiras, a constatação mais
relevante a ser apontada é que as Cartas Fundamentais deveriam, de maneira geral,
reger-se pela vontade do povo, mas, a voz da sociedade foi ouvida apenas em
alguns momentos raros, e a segurança fundamental dos cidadãos fora
rotineiramente usurpada.
Com efeito, constata-se, agora, uma nova face da Constituição. O texto de
1988, já em suas primeiras matérias, demonstra vasta amplitude de direitos e
garantias fundamentais. Na realidade, a Constituição Brasileira de 1988 deu início à
consagração dos princípios fundamentais e conduziu o Brasil ao cenário
internacional.
Para tanto, a Constituição de 1988 traz a ideia de rompimento da soberania
estatal absoluta, ao mesmo passo que contribui para o exercício da cidadania no
Brasil. Ou seja, “O desmonte de um Estado autoritário e a construção de um Estado
de Direito que respeitasse o cidadão foi o seu grande desafio” (MALISKA, 2006, p.
183). Com isso, surgem novos valores incorporados pelo texto da Constituição de
1988, sendo necessária uma nova forma de interpretação dos antigos conceitos.
Logo, uma nova era de constitucionalismo e de Direito foi semeada,
igualmente, com uma nova concepção de Estado.
A Constituição Federal não se contentou em consagrar, no papel, os fatores
reais de poder, não se limitou ao aspecto sociológico defendido sarcasticamente por
Ferdinand Lassalle (1985), mas quis, de maneira inequívoca, atingir e modificar a
realidade sócio-política brasileira, com a finalidade de realizar a plena cidadania, a
ponto de ser designada “Constituição-cidadã” por Ulysses Guimarães, quando da
4 A respeito, Miranda (2008, p. 163) assevera: “A Constituição de 1988 – apesar de escrita em
português jurídico claro e preciso – está longe de ser perfeita. É demasiado extensa e minuciosa
em muitos aspectos e tem uma sistematização pouco feliz, sobretudo no domínio dos direitos
fundamentais, por se aglomerarem num único artigo (5º) todas as liberdades e garantias(...)”.
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sua promulgação, e “a Constituição da esperança” por Jorge Miranda (2008, p. 164),
no sentido de que se deseja a sua efetividade.
A Constituição Federal põe-se como referência obrigatória de todo o sistema
jurídico brasileiro, como suporte de validade de todas as normas jurídicas
positivadas e sendo a matriz de toda e qualquer manifestação normativa estatal.
A Constituição representa um momento de redefinição das relações políticas e sociais desenvolvidas no seio de determinada formação social. Ela não apenas regula o exercício do poder, transformando a potestas em auctoritas, mas também impõe diretrizes específicas para o Estado, apontando o vetor (sentido) de sua ação, bem como de sua interação com a sociedade. A Constituição opera força normativa, vinculando, sempre, positiva ou negativamente, os Poderes Públicos (CLÈVE, 2000, p. 22)
Em suma, a Constituição autoproclama-se como Lei Fundamental e, dessa
maneira, garante a todos os cidadãos brasileiros o direito à invocação da normativa
constitucional em todo o exercício jurisdicional.
2.2 O STF COMO “GUARDIÃO” DA CONSTITUIÇÃO
Ademais, os Constituintes não pormenorizaram apenas as funções e a
importância da Lei Fundamental, mas atribuíram à cúpula do Poder Judiciário, ou
seja, ao Supremo Tribunal Federal, como tribunal característico do sistema federal, o
papel de guardião de todo um sistema constitucional (art. 102, caput, CF/88).
A efetividade das normas constitucionais pressupõe: (i) uma Constituição formal; (ii) a compreensão da Constituição como lei fundamental e (iii) a existência de um órgão competente, criado pelas regras secundárias de julgamento, a fim de salvaguardar o texto constitucional das eventuais violações por parte daqueles que se não enxergam dentro do ordenamento constitucional (MARRAFON, 2008, p. 119).
Diz-se guardião do sistema constitucional pois se destaca a Constituição e
seu espírito interno. “A terminologia sistema constitucional não é, assim, gratuita,
pois induz a globalidade de forças e formas políticas a que uma Constituição
necessariamente se acha presa” (BONAVIDES, 2008, p. 95).
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Pensando a partir do contexto brasileiro e considerando o momento de intensa movimentação na doutrina pátria pela luta da efetividade do texto constitucional, se compreende a Constituição de 1988 como sendo dotada de força normativa e, portanto, vinculante para todos os poderes do Estado e para a sociedade civil, até porque, como bem assinala Jacinto Nelson Miranda Coutinho, o avanço democrático reclama um sotaque constitucional irrenunciável (MARRAFON, 2008, p. 118)
Ademais, o encargo atribuído ao STF, de fazer valer o texto constitucional,
remete-o, principalmente, à noção de uma corte quase que de exclusividade política,
pois qualquer deliberação ou eventual lide política, que diga respeito à jurisdição
constitucional, cabe ao Supremo5.
Isso porque as características das normas constitucionais “dizem respeito à
superioridade hierárquica, à natureza da linguagem, ao conteúdo específico e ao
caráter político”, esse, em razão de que referidas normas “são políticas quanto à sua
origem, quanto ao seu objeto e quanto aos resultados de sua aplicação” (MALISKA,
2007, p. 59).
Com relação à função de jurisdição política atribuída ao STF, via de regra,
“as questões políticas, expressas em atos legislativos e de governo, fogem à alçada
judicial, não sendo objeto de exame de constitucionalidade, salvo se interferirem
com a existência constitucional de direitos individuais” (BONAVIDES, 2008, p. 324).
Rui Barbosa, porém, muito bem resume a necessidade de controle
jurisdicional dos atos advindos dos demais Poderes:
Atos políticos do Congresso, ou do Executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz exceção à competência da Justiça consideram-se aqueles a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição prudencial do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo. Em prejuízo destes o direito constitucional não permite arbítrio nenhum dos
5 Maia (2008, p. 376) adverte para o perigo da interpretação de tal papel político, uma vez que
determinadas decisões do STF demonstram suas pretensões de atuar como uma espécie de
“superego da sociedade”. E o faz contextualizando a diferença entre o direito e a política,
reservando a esta o papel de programação teleológica, enquanto que ao direito cabe um programa
na forma de condição (p. 385). Já Nery Junior (2009, p. 44) critica “o perfil constitucional de nosso
Tribunal Federal Constitucional não se nos afigura o melhor, porquanto não nos parece que um
órgão do Poder Judiciário possa apreciar, em último e definitivo grau, as questões constitucionais
que lhe são submetidas de forma abstrata (...), cujos membros são nomeados pelo Presidente da
República sem critério de proporcionalidade ou representatividade dos demais poderes.” E
complementa sugerindo que o STF deveria ser formado por juízes indicados pelos três Poderes,
com mandato por prazo determinado, como ocorre, por exemplo, na Alemanha.
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poderes. Se o ato é daqueles, que a Constituição deixou à discrição da autoridade, ou se, ainda que o seja, contravém às garantias individuais o caráter político da função não esbulha do recurso reparador as pessoas agravadas. Necessário é, em terceiro lugar, que o fato, contra que se reclama, caiba inteiramente na função, sob cuja autoridade se acoberta; porque esta pode ser apenas um sofisma, para dissimular o uso de poderes diferentes e proibidos.
(...) Numa palavra: A violação das garantias individuais, perpetradas à sombra de funções políticas, não é imune à ação dos tribunais. A estes, compete sempre verificar se a atribuição política, invocada pelo excepcionante, abrange em seus limites a faculdade exercida (Apud BONAVIDES, 2008, p. 324).
Ou seja, o título honroso de guardião encarrega o STF de zelar pelo texto
constitucional propriamente dito e ainda lhe atribui inúmeras outras competências de
caráter interpretativo e declaratório, em função da integralidade das normas
brasileiras, na qual vários ramos do direito dialogam.
Com a promulgação da Constituição de 1988, havia uma enorme esperança
de que, criado o Superior Tribunal de Justiça6, o STF pudesse efetuar, com maior
celeridade, a tarefa de julgar as ações originárias e os recursos de sua
competência7. Entretanto, não se atingiu tal objetivo. Inclusive, “A Constituição de
1988 ampliou significativamente a competência originária do STF, sobretudo em
relação ao controle abstrato de normas e ao controle da omissão do legislador”
(MENDES, 2007, p. 41), enaltecendo, assim, notoriamente, o papel do Supremo
Tribunal Federal direcionado ao controle concentrado de constitucionalidade8.
E, nesse passo, com todas essas atribuições (art. 102 da CF), é que se pode
afirmar que a corte máxima jurisdicional, no Brasil, está em crise. Afinal, os direitos
constitucionais foram garantidos e estão muito bem elencados na Carta
Fundamental. Entretanto, a tutela e a efetividade dessas prerrogativas tornaram-se
um dilema para o Poder Judiciário, que, mesmo com sua independência e
6 Algumas das competências anteriores do STF foram transferidas ao STJ, numa das inúmeras
tentativas de desafogá-lo da imensa carga de trabalho. 7 O Supremo Tribunal Federal não é uma Corte Constitucional pura, apesar de apreciar, mediante
recurso extraordinário, questões relacionadas à Constituição. Possui ele, também, competência
originária e para julgar recursos ordinários muito extensa, como se observa dos incisos I e II, do
art. 102 CF/88. 8 Para Bonavides apud Lima (2009, p. 124), o STF não tem condições práticas de analisar as
grandes questões constitucionais que lhe são submetidas diuturnamente, em razão do excesso de
competência que a CF/1988 lhe conferiu.
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autonomia financeira, não consegue desengarrafar a imensa quantidade de
processos aguardando julgamento que a banalização (leia-se sem um sentido
pejorativo) do acesso à justiça criou9.
Isso acaba por fazer com que
(...) as cúpulas tenham que se valer de equipes, às quais se delegam funções, tanto jurisdicionais (secretários e auxiliares que ‘redigem’ as sentenças), quanto administrativas (exercício do poder verticalizador). Por fim, cai-se em uma ficção, pois a cúpula não detém o poder, senão que na cúpula se encontra um conjunto de empregados e funcionários sem jurisdição, que são os que exercem o verdadeiro poder e que têm realmente mais arbítrio que os próprios juízes, que materialmente lhe estão subordinados (ZAFFARONI apud KOZIKOSKI, 2006, p. 679).
Não se tem cumprido, de igual forma, a celeridade processual que prevê o
inciso LXXVIII no art. 5º, o qual dispõe, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e
administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação” acrescentado, inclusive, pela mesma EC
n. 45/2004.
O STF é o legítimo titular da jurisdição constitucional, responsável pela
guarda da Constituição Federal. Nesse sentido, é de grande importância na
consolidação do estado brasileiro democrático de direito. É seu o papel de dizer a
última palavra acerca das normas constitucionais. Também lhe cabe o esforço de
garantir que suas decisões e as interpretações que dá às normas constitucionais
sejam legitimadas pela sociedade. E essa legitimação aumenta na medida em que
se reconhece que as decisões são fruto de ponderações consubstanciadas na
justiça e na razoabilidade. Deve-se ter em vista que a maioria das decisões que lhe
são submetidas são interpretações de normas de conteúdo aberto que, justamente
por essa razão, exigem uma profunda e detida reflexão acerca das reais
necessidades que a sociedade apresenta para atingir seu objetivo de garantir o
desenvolvimento e a dignidade da pessoa humana10
.
9 Segundo Lima (2007, p. 125), já o Ministro Celso de Mello, em seu discurso de posse na
presidência do STF (1997-1999) mostrava-se apreensivo com o volume de feitos existentes naquela Corte. Sua preocupação foi confirmada quando apresentou dados de que, até 17.12.1998, seriam julgados 51.086 processos, e anunciava a distribuição de outros 50.263.
10 No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio encontra-se na Constituição Federal, art. 1º, III.
Sobre ele, Nery Junior (2009, p. 76) ensina que “Dignidade humana constitui a norma
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Logo, para que conquiste tal reconhecimento, é necessário que o STF,
dentre inúmeras outras condições11
, tenha uma carga de trabalho compatível com
tarefa de tamanha envergadura e importância social.
3 O SISTEMA DE CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Certamente, uma das mais relevantes competências do Supremo Tribunal
Federal diz respeito ao Controle de Constitucionalidade, problema para o qual é
especialmente dotado.
Constitucionalidade e Inconstitucionalidade designam conceitos de relação, ou seja, a relação que se estabelece entre uma coisa – a Constituição – e outra coisa – um comportamento – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não em seu sentido. (MIRANDA apud PALU, 2001, p. 69) (...) A inconstitucionalidade reside no antagonismo e contrariedade do ato normativo inferior (legislativo ou administrativo) com os vetores da Constituição, estabelecidos em suas regras e princípios. A relação de compatibilidade ou incompatibilidade vertical implica uma relação de caráter normativo-valorativo e não simplesmente lógico-formal (PALU, 2001, p. 69)
Sendo a Constituição de 1988 rígida, os meios propostos para a salvaguarda
da constitucionalidade estão intrinsecamente ligados à ideia de um controle de
constitucionalidade mais formal e minucioso que o processo de instituição de leis,
ocorrido no Poder Legislativo. Assim, controlar a constitucionalidade significa
fundamental do Estado, porém é mais do que isso: ela fundamenta também a sociedade
constituída. Ela gera uma força protetiva pluridimensional, de acordo com a situação de
perigo que ameaça os bens jurídicos de estatura constitucional”. Logo, a dignidade
humana é o fundamento axiológico do Direito, o princípio central do ordenamento jurídico,
base para a fundamentação da ordem democrática. 11
Cite-se, como exemplo de outras condições, os recursos humanos, tecnológicos e orçamentários,
citados pelo Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, em seu discurso de encerramento do II
Encontro Nacional do Judiciário, em 16/02/2009. Na ocasião, assim se pronunciou o Ministro: “O
ponto central a ser buscado na gestão estratégica é o equilíbrio no alcance dos objetivos que aqui
definimos. Não há celeridade sem cidadania ou responsabilidade social; pouco adianta acesso à
justiça (porta de entrada) se não houver efetividade no cumprimento da decisão proferida; não se
faz gestão estratégica alinhada e integrada se não há orçamento compatível e proporcional; de
nada valem ferramentas tecnológicas potentes se os magistrados e servidores não estiverem
capacitados para a sua operação. A construção desproporcional dos pilares, assim como a não
construção de algum deles, pode comprometer a estrutura.”
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verificar a adequação (compatibilidade) de uma lei ou de um ato normativo com a
Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais (MORAES, 2003, p.
582).
Aferir a constitucionalidade de uma lei depende de uma miscelânea de
fundamentos jurídicos e sociais, em consonância não apenas com o ordenamento
jurídico positivado e fortalecido – o chamado bloco da constitucionalidade –, mas
também com a realidade material e com os anseios surgidos na sociedade.
O controle formal difere do controle material de forma bastante acentuada,
não se questionando a substância da lei, mas sua validade, sua legitimidade.
A inconstitucionalidade formal não resulta de contradição ou contrariedade, no sentido lógico dos termos, entre lei e Constituição. A incompatibilidade normativa, nesta hipótese, decorre da inadequação ou desconformidade do procedimento efetivo de elaboração legislativa (plano do ser) ao conteúdo de norma constitucional prescritiva do processo legislativo (plano do dever ser) (NEVES apud CLÈVE, 2000, p. 36).
O controle material, por sua vez, é de caráter prioritariamente substancial, e
de alçada mais política que jurídica. Ocorre quando a substância de um ato
normativo, isto é, seu conteúdo propriamente dito, é questionado. No que diz
respeito ao vício material, o ato normativo que confrontar matéria da Lei Maior deve
ser declarado inconstitucional, por possuir um vício material, não interessando a
elaboração da espécie normativa, mas unicamente o conteúdo. Trata-se, aqui, do
papel político do STF, como dito anteriormente.
O Controle de Constitucionalidade brasileiro ocorre primordialmente no
Poder Judiciário, mas os demais poderes também possuem ferramentas que
influenciam na concretização da constitucionalidade.
No Poder Legislativo (MORAES, 2003, p. 584), a verificação ocorre através
das chamadas “Comissões de Constituição e Justiça”. O art. 58 da Constituição
Federal prevê a criação destas comissões, e o art. 32, III, do Regimento Interno do
Senado Federal regulamenta sua atividade. Se houver algum vício que macule o
projeto de lei, a Comissão poderá apresentar emenda corrigindo a falha, embora o
mais recomendável seja a anulação e o arquivamento do mesmo, de acordo com o
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art. 101, §1º, do mesmo Regimento. Na Câmara dos Deputados, o procedimento
ocorre de maneira similar.
No Poder Executivo, o controle ocorre quando o Chefe do Executivo veta um
projeto, por entendê-lo inconstitucional. Em ambos os casos, está-se em face do
controle preventivo; isto é, o controle ocorrido antes de uma lei ser aprovada em
todas as fases de sua concretização formal e inserida no ordenamento jurídico. Tal
controle, embora real, exerce uma influência menos significativa que o controle
repressivo, portanto, aquele cuja prerrogativa é exclusiva do Poder Judiciário. Este
último busca excluir do ordenamento a norma incompatível com a Constituição; o
primeiro, impedir que ela se positive, barrando sua passagem pelas etapas do
processo legislativo.
Tradicionalmente e em regra, no direito constitucional pátrio, o Judiciário realiza o controle repressivo de constitucionalidade, ou seja, retira do ordenamento jurídico uma lei ou ato normativo contrários à Constituição. Por sua vez, os poderes Executivo e Legislativo realizam o chamado controle preventivo, evitando que uma espécie normativa inconstitucional passe a ter vigência e eficácia no ordenamento jurídico (MORAES, 2003, p. 581).
Logo, em relação aos órgãos que exercem, efetivamente, o controle de
constitucionalidade – com o poder de revogar uma lei depois de inserida no
ordenamento –, estes estão impreterivelmente vinculados ao Judiciário,
expressando, desta forma, a influência do modelo norte-americano de controle
jurisdicional.
3.2 Sistemas Jurisdicionais de Fiscalização da Constitucionalidade
3.2.1 O controle concentrado
No Brasil, no que concerne ao sistema de fiscalização, pode-se falar no
controle híbrido, assentando num mesmo ordenamento a possibilidade de se
suscitar a inconstitucionalidade pelo modelo difuso e incidental com o concentrado e
principal. No controle concentrado, permite-se inclusive a verificação da
inconstitucionalidade por omissão, sendo esta de caráter negativo. Ou, seja, quando
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o legislador não fizer aquilo a que, de forma concreta, estava constitucionalmente
obrigado (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 222).
No controle jurisdicional concentrado dos atos normativos, a invocação de
inconstitucionalidade ocorre por meio de um único órgão, neste caso, o Supremo
Tribunal Federal12
.
Mas, nem sempre tal controle é feito por órgão do Poder Judiciário. Casos
há em que o controle político, o “controle de constitucionalidade dos actos
normativos (sobretudo leis e diplomas equiparáveis) é feito por órgãos políticos (ex.:
assembleias representativas)” (CANOTILHO, 2002, p. 888-889).
Reconhece-se, no entanto, a existência da tarefa ser acometida à jurisdição
constitucional, ou seja, há a possibilidade de as decisões acerca da
constitucionalidade dos atos políticos ficarem a cargo de Tribunais Constitucionais.
À jurisdição constitucional atribui-se também um papel político-jurídico, conformador da vida constitucional, chegando alguns sectores da doutrina a assinalar-lhe uma função de conformação política em tudo semelhante à desenvolvida pelos órgãos de direcção política. As decisões do Tribunal Constitucional acabam efectivamente por ter força política, não só porque a ele cabe resolver, em última instância, problemas constitucionais de especial sensibilidade política, mas também porque a sua jurisprudência produz, de facto ou de direito, uma influência determinante junto dos outros tribunais e exerce um papel condicionante do comportamento dos órgãos de direcção política. O Tribunal Constitucional (...) não se pode furtar à tarefa de guardião da Constituição, apreciando a constitucionalidade da política normativamente incorporada em actos dos órgãos de soberania. (grifos no original) (CANOTILHO, 2002, p. 674-675).
Atribui-se a Hans Kelsen a criação do sistema de controle concentrado (por
isso mesmo também chamado modelo austríaco), o qual salienta que, se fosse
permitido a qualquer cidadão deferir ou não a constitucionalidade de uma lei,
dificilmente haveria o acato aos comandos jurídicos em sua totalidade; por esse
motivo, é vantajoso ao Estado que um único órgão fosse incumbido desta
competência.
12
WENDPAP e KOTOLELO (2008, p. 415) questionam “se a concentração do poder de controlar a
constitucionalidade é salutar para a democracia. À sensibilidade mais chã, democracia tem
afinidade com difusão do poder. A concentração ocorre, em regra, em autocracias”. E levantam
paradoxo entre a democracia como valor fundante da CF/88 e a concentração do controle de
constitucionalidade.
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Busca-se, com este controle, a derradeira segurança das relações jurídicas,
uma vez que um ordenamento legítimo e fortalecido deve estar em harmonia em
todas as suas bases.
Mais uma vez Rui Barbosa (apud ÁVILA, 2009, p. 21) explica que uma lei
considerada inconstitucional deve possuir efeitos retroativos, anulando todo e
qualquer ato realizado durante sua vigência que seja regulamentado por ela,
produzindo efeitos erga omnes (CF/88, art. 102, § 2º) e ex tunc13
.
3.2.2 O controle difuso
Note-se, todavia, que o STF não é o único órgão jurisdicional competente
para o exercício da jurisdição constitucional. No Brasil, por influência do sistema
norte-americano, o controle de constitucionalidade também é exercido de maneira
difusa, autorizando qualquer tribunal ou juiz a conhecer inconstitucionalidade de uma
norma, como via de exceção, em um caso concreto.
Este tipo de controle não acarreta a anulação da lei, apenas a invalida na
questão. Não é o objeto principal da ação verificar sua constitucionalidade, por isso
mesmo sendo chamado controle incidental ou via de defesa; a declaração de
inconstitucionalidade é sempre incidenter tantum, podendo ou não ser arguida pelas
partes. No Brasil, essa possibilidade existe desde a Constituição Republicana de
1891.
O controle difuso caracteriza-se, prioritariamente, pelo fato de ser realizado
somente no caso da lide em questão. Este controle nasceu na Suprema Corte dos
Estados Unidos, através do caso Malbury versus Madison, ocorrido em 1803. Tendo
o caso chegado até a última instância, o juiz Marshall entendeu a lei questionada
estar em desacordo com a Constituição Americana, julgando-a inválida, não
podendo então ser aplicada naquele litígio, ao afirmar: “the constitucion is superior to
any ordinary act of the legislature” (CANOTILHO, 2002, p. 890).
13
O art. 27 da Lei nº 9.868/99 prevê, no entanto, que a eficácia da decisão que declara a
inconstitucionalidade pode, de acordo com a interpretação que se der ao texto, se dar de um
momento até pro futuro requerida sempre por razões de segurança jurídica e de excepcional
interesse social.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
265
Foi aberto o primeiro precedente para o controle difuso, então, aquele no
qual qualquer juiz pode determinar algum ato normativo inconstitucional, e invalidá-
lo, com efeito inter partes.
Cabe ressaltar que a declaração de inconstitucionalidade só terá efeito para
aquele caso, não havendo possibilidade de ser aplicado o efeito erga omnes pelo
Supremo Tribunal Federal14
.
Da mesma forma, ao contrário do sistema concentrado, no qual a decisão de
inconstitucionalidade não produz efeitos retroativos, no sistema difuso a
característica é a retroatividade da lei compreendida como uma afronta à
Constituição; aplica-se a decisão atingindo a gênese da relação jurídica.
A grande relevância do controle difuso reside na possibilidade do acesso
mais democrático aos mecanismos de consolidação do ato normativo, a partir da
prerrogativa de qualquer cidadão poder arguir a inconstitucionalidade por meio de
qualquer instância ou tribunal primário, enquanto que no controle concentrado a
iniciativa da ação é dada apenas àqueles legitimados previstos no art. 103 da
Constituição Federal.
Assim, há a possibilidade de, em qualquer lide, as partes, via do recurso
extraordinário, chegarem ao STF para a apreciação de sua alegação de
inconstitucionalidade.
Essa possibilidade configura o momento liberal para as instituições pátrias,
volvidas preponderantemente, desde a Constituição de 1891, para a defesa e
salvaguarda dos direitos individuais (BONAVIDES, 2008, p. 325).
De qualquer sorte, há de se ver que o acesso, por meio do recurso
extraordinário, ao STF, no controle difuso, precisa preencher uma série de
pressupostos e requisitos, previstos na legislação processual e na jurisprudência e,
agora, também, na própria Constituição Federal, que prevê a necessidade de
demonstração da repercussão geral.
14
A CF/88 criou mecanismos para ampliar a eficácia da decisão de inconstitucionalidade
reconhecida dentro do controle difuso. A única possibilidade nesse sentido ocorre quando o
Senado Federal, conforme previsto no art. 52, X, o faz por resolução, suspendendo a execução
parcial ou total da lei.
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
266
O que houve, em verdade, foi um verdadeiro fortalecimento da via difusa:
“com a implantação do instituto da repercussão geral das questões constitucionais,
reforça-se a ideia de que o recurso extraordinário não tem por objetivo precípuo a
tutela imediata do interesse do recorrente” (KOZIKOSKI, 2006, p. 684).
Entende-se, com isso, que o objetivo é aproximar a tarefa do STF no
controle difuso àquela já exercida no controle concentrado.
4 A REPERCUSSÃO GERAL COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
O recurso extraordinário é uma forma excepcional de recurso15
, que tem por
finalidade manter a autoridade e a unidade da Constituição Federal. Trata-se de
mecanismo processual pelo qual se busca a análise, pelo STF, de questões
constitucionais no caso concreto, ou seja, que se iniciam em determinados
processos, no controle difuso.
Esse recurso não tem por objeto o reexame da matéria de fato, provas e
demais questões relativas ao mérito da lide em curso, mas tão somente a discussão
sobre uma questão constitucional controvertida.
As decisões sujeitas a recurso extraordinário são as proferidas quando o
recorrente percorreu todas as etapas processuais, isto é, quando tenham sido
esgotadas todas as possibilidades de recursos admissíveis perante as instâncias
inferiores.
A previsão do recurso encontra-se na Constituição Federal, que estabelece
no art. 102 que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição, cabendo-
lhe: “Art. 102. (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas
em única ou última instância, quando a decisão recorrida: (...)”
A dita democratização do acesso ao STF, pela via difusa, porém, trouxe um
número excessivo de processos e tornou-se um dos grandes problemas enfrentados
15
Em razão dos objetivos do presente trabalho, não se adentrará na análise das origens históricas
do recurso, nem mesmo nas hipóteses de cabimento.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
267
no desempenho satisfatório do seu papel16
. E, nesse sentido, uma das falhas
apontadas era a falta de um mecanismo de controle para que processos que não
possuem uma determinada relevância chegassem à apreciação da Corte
Constitucional.
A Emenda Constitucional n. 45/2004, conhecida como a Emenda
Constitucional que programou a Reforma do Poder Judiciário, dentre outras
inúmeras mudanças, adicionou o § 3º ao Artigo 102 da Constituição Federal, criando
um novo requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário: a Repercussão
Geral das questões constitucionais.
Diz o referido parágrafo:
Art. 102. (...) §3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Segundo o próprio STF, essa reforma tem por objetivo auxiliar na
padronização dos procedimentos de julgamento recursal, de maneira que possa
garantir a racionalidade dos processos e a segurança dos jurisdicionados17
. Nesse
sentido, busca-se, com a introdução do novo instituto, acentuar a tarefa do STF de
decidir questões de impacto para os interesses da nação, retirando, pois, da sua
pauta de julgamentos, a análise de controvérsias que, conquanto importantes para
as partes litigantes, não apresentem relevância erga omnes.
Dessa forma, o recorrente deverá, além de preencher os requisitos já
anteriormente exigidos pela lei processual18
e pela jurisprudência19
, demonstrar – ao
16
Estima-se que cada um dos onze ministros receba, por ano, atualmente, cerca de 6.700
processos. Acumulam-se na Corte aproximadamente 105.523 processos, já que ainda existe o
passivo da época em que uma maior variedade de processos era recebida e julgada pelo Tribunal.
Já foram rejeitados mais de 31 mil recursos extraordinários pela Corte desde que a regra da
repercussão geral está em vigor, tanto por não apresentar preliminar cabível para a norma, quanto
pelas regras que regulamentam o filtro e impedem os tribunais de enviar ao Supremo todos os
recursos sobre cada tema em análise, e os obriga a acatar a decisão final da Corte. (Fonte:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 abr. 2009). 17
Fonte: <www.stf.jus.br>. 18
Os requisitos extrínsecos, ou genéricos, comuns a todos os recursos são a tempestividade, a
regularidade formal e o preparo. Já os intrínsecos são específicos de cada recurso, abrangendo o
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
268
STF20
– que o tema discutido no recurso tem relevância que transcende aquele caso
concreto, revestindo-se de interesse geral, institucional21
.
A matéria foi regulamentada no Código de Processo Civil, no 543-A, e seus
parágrafos, acrescidos pela Lei n. 11.418/06, e no Regimento Interno do Supremo,
artigos 322-A e 328, com redação dada pela Emenda Regimental 21/07.
Diz o art. 543-A, caput que ”O Supremo Tribunal Federal, em decisão
irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão
constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste
artigo.”
Uma das marcantes diferenças com os demais requisitos de admissibilidade
encontra-se no fato de que este, a repercussão geral, não será objeto de análise
pelo juízo recorrido, mas pelo próprio STF, em sessão plenária22
.
4.1 A Arguição de Relevância como Precedente Histórico
A arguição de relevância da questão federal é o precedente histórico da
repercussão geral de maior relevância, pois, além de ser o mais recente que se
tenha notícias no ordenamento jurídico pátrio, trata-se de uma tentativa frustrada de
desafogamento do STF.
Em linhas gerais, a arguição de relevância da questão federal foi instituída
pela Emenda Regimental n. 3, de 1975, que alterou a maneira de admissão do
recurso extraordinário. Essa Emenda instituiu como competência do regimento
cabimento, a legitimação para recorrer, e a inexistência de fato impeditivo, ou extintivo do direito
de recorrer (WAMBIER, 2008). 19
Tais como o prequestionamento (Súmulas 282 e 356 do STF). 20
Art. 543-A,§ 2º. “O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação
exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.” (grifou-se). 21
O instituto tem inspiração no direito alienígena, como se verá a seguir. 22
O Regimento Interno do STF, atualizado pela emenda regimental 21/07, em seu art. 323, prevê a
sistemática: “Art. 323. Quando não for o caso de inadmissibilidade do recurso por outra razão, o(a)
Relator(a) submeterá, por meio eletrônico, aos demais ministros, cópia de sua manifestação sobre
a existência, ou não, de repercussão geral.”
Logo, como refere MALTEZ (2007, p. 194) “A repercussão geral acaba por se reduzir a uma
argüição de ‘irrelevância’. Isso porque a relevância é presumida e a irrelevância só será
reconhecida se neste sentido se manifestarem dois terços dos Ministros.”
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
269
interno do STF a admissibilidade do recurso em casos de relevância federal. Foi
criada com o intuito de diminuir os processos que chegavam ao STF, vez que se
encontrava abarrotado23
.
Entretanto, muitas foram as críticas a esse instituto, as quais alegavam que
não poderia caber ao Regimento do Tribunal a admissão do recurso extraordinário,
vez que as disposições constitucionais vigentes não outorgavam ao referido
instrumento interno do STF a possibilidade de restringir as hipóteses de cabimento
de recurso.
Para que então fosse constitucional a restrição do recurso, foi introduzida a
Emenda n. 7, de 1977, que implantou na Constituição de 1969 o critério da arguição
de relevância da questão federal para admissibilidade do recurso extraordinário.
Em regra, para este instituto, toda questão era irrelevante, devendo-se,
então, provar a sua relevância para ser admitido o recurso, o que exigia quatro votos
dos Ministros. O julgamento da arguição era feito em sessão secreta. Também não
era preciso justificar a irrelevância e a decisão era irrecorrível.
As expectativas quanto ao sucesso da arguição de relevância restaram
frustradas haja vista que se criticava a falta de definição, a ausência de
fundamentação das decisões, bem como o julgamento discricionário, sem
participação das partes, também, sob o argumento de cerceamento do direito de
acesso à Justiça.
Por se tratar de remédio concebido durante a ditadura militar, a reconstitucionalização democrática do país, levada a efeito pela Carta de 1988, repeliu-a (a argüição de relevância) por completo, ao invés de aprimorá-la ou substituí-la por outro meio de controle que desempenhasse a mesma função, mas de maneira mais adequada ao Estado Democrático de Direito (THEODORO JUNIOR, 2007, p. 102).
O que se nota é que o momento histórico clamava contra qualquer ato que
cerceasse direito, bem como contra o poder discricionário com que o STF decidia a
relevância, ou não, do recurso24
.
23
Dantas (2008, p. 78-79) refere que a crise do recurso extraordinário é quase tão antiga quanto o
próprio, tendo em vista que já em 1920 discutiam-se formas de solucionar o crescente número de
recursos que se avolumavam no STF.
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
270
Nota-se que a Constituição Federal de 1988 repeliu a arguição de
relevância, criando outro instituto, mais democrático, distribuindo a competência do
STF, com o fim de reduzir a quantidade enorme de processos que chegavam todo
ano no STF e se tratava de matéria Constitucional e infraconstitucional. Qual seja,
criou-se o STJ.
O STJ foi criado sob os aspectos contributivos dos estudos de José Afonso
da Silva, datados de 1963.
Sustentava, desde então, esse eminente jurista que a chave para a crise do recurso extraordinário passava ‘por uma reforma constitucional, no capítulo do Poder Judiciário Federal, com o fim de redistribuir competências e atribuições dos órgãos judiciários da União’ (DANTAS, 2008, p. 50).
Contudo, apesar de diminuída a atuação do STF, o número de recursos não
diminuiu, não pela frustração daquela tentativa de auxílio, mas em razão da já
apontada falta de filtragem dos processos que podem chegar ao STF, pela via
difusa.
4.2 A Terminologia
Clara é a intenção do legislador em não adotar novamente o termo “arguição
de relevância da questão federal”. Obviamente, a introdução de um instituto da
época ditatorial, reafirmando a terminologia, geraria ainda mais polêmica e
contrariedade ao instituto da repercussão geral, vez que repristinaria um requisito
arcaico utilizado com discricionariedade à época de sua criação.
Assim, há pelo menos dois motivos para não se ter adotado a mesma
terminologia: primeiramente, por ser a “arguição de relevância” instituto ditatorial,
querendo a CF/88 eliminar qualquer resquício do período; em segundo lugar,
“porque seria (...) difícil afirmar que alguma questão constitucional não é dotada de
24
MANCUSO (2007, p. 83-85) relata que, apesar das críticas dirigidas ao instituto da relevância nos
seus quase 13 anos de existência, vozes respeitáveis defendiam o sistema por ele inaugurado,
citando os Ministros Djaci Falcão, Moreira Alves e Evandro Gueiros Leite. Para este último, “não
há soluções ótimas para o para o problema das atribuições de uma Corte Suprema, de modo que
teremos que nos contentar com as soluções mais razoáveis, a exemplo da relevância da
questão federal” (grifou-se).
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
271
relevância (...). Assim, a admissão de que existem questões constitucionais
irrelevantes seria a própria negação de boa parte da teoria da Constituição (...)”.
(DANTAS, 2008, p. 29)
Outro aspecto que merece atenção é a expressão comumente utilizada
“repercussão geral do recurso extraordinário”.
Entender que a Repercussão Geral exigida pela Constituição se refere ao próprio RE significaria rompimento do sistema de Civil Law por nós adotado (...). É que, caso se exigisse no juízo de admissibilidade que o próprio RE tivesse o condão de causar repercussão geral, somente seriam conhecidos extraordinários referentes a ações de natureza coletiva, pois só nesses casos o RE em si acarretaria algum impacto na vida de outras pessoas além das partes (DANTAS, 2008, p. 50).
O que quer dizer o jurista é que o quesito da repercussão geral não se refere
ao recurso extraordinário em si, mas às questões nele discutidas. Logo, trata-se de
repercussão geral da questão constitucional.
4.2.1 A repercussão geral como conceito jurídico indeterminado
O artigo 543-A §1º do Código de Processo Civil tratou de conceituar
repercussão geral: “Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência,
ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou
jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”.
Nota-se, no entanto, uma vaguidade semântica do termo “repercussão
geral”, não ficando claro o que se deveria designar por “geral” ou mesmo
“relevantes”.
Percebe-se que o legislador faz uso de conceitos elásticos que permitem ao
intérprete e aplicador da norma uma atividade construtiva ou concretizadora
(THEODORO JUNIOR, 2007), fugindo à aplicação literal da norma, já que uma
“definição exata, taxativa, de repercussão geral por parte do legislador poderia até
mesmo levar a um indesejável engessamento do instituto e do próprio texto
constitucional” (REIS, 2008, p. 65).
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
272
Pode-se observar que, quando a lei não definiu repercussão geral, elaborou
um conceito jurídico indeterminado, de modo que a repercussão geral deve ser
interpretada, pelo STF, no caso concreto.
De qualquer sorte, pode-se verificar que repercussão geral significa o
transbordamento dos limites subjetivos do caso, de forma que a decisão do Supremo
Tribunal Federal normalmente encontrará eco em outras demandas similares, para
as quais é imprescindível formar-se jurisprudência (BARIONI, 2007, p. 218).
A partir deste conceito jurídico indeterminado de repercussão geral, chega-
se ao questionamento se não se estaria conferindo, novamente, como na arguição
de relevância, um poder discricionário ao STF.
Mas, tem-se que o preenchimento desses conceitos não é uma tarefa a ser
exercida arbitrariamente, e sim à luz dos valores e princípios constitucionais, i.e.
aqueles vetores que a própria constituição da República já indica como
fundamentais ao Estado brasileiro. “Com o passar do tempo e o paulatino
amadurecimento do instituto, aos poucos será adjudicada maior segurança e
previsibilidade à noção de repercussão geral” (REIS, 2008, p. 66). Assim, poder-se-
ia obter um maior controle social das atividades do STF, observando-se os casos já
decididos pelo Tribunal.
Numa tentativa de interpretar as hipóteses em que ocorre repercussão geral,
aponta-se:
I – No plano econômico (...) há que se levar em conta as questões em torno daquelas atividades de larga repercussão coletiva que se encontram regulamentadas a partir da própria Constituição, como os serviços públicos essenciais (...). São igualmente relevantes, para a coletividade, questões que envolvam pretensões reivindicadas por um número considerável de pessoas, a exemplo do que se passa com os índices de correção monetária, remuneração (...). (THEODORO JUNIOR, 2007, p.108).
Não se deve esquecer, porém, que não basta a repercussão de algum ponto
relevante para a coletividade, sendo sempre indispensável o nível constitucional da
questão. Afinal, a repercussão geral não é “chave” para se ter o recurso analisado
pelo STF; é, apenas, mais um requisito.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
273
Ainda há perspectiva de que, no plano político, a repercussão geral dar-se-ia
quando a questão pudesse influenciar relações com Estados estrangeiros e
organismos internacionais, ou, ainda, envolva atrito de competências entre órgãos
soberanos ou ponha em risco a política pública e diretrizes governamentais
(THEODORO JUNIOR, 2007, p.108).
Já a questão social ocorreria quando estivessem envolvidos direitos
protegidos constitucionalmente, como saúde, educação, moradia, dentre outros.
A relevância jurídica estaria presente quando algum instituto básico do
direito estivesse em risco, havendo necessidade de evitar que uma decisão forme
precedente perigoso ou inconveniente à preservação de tal instituto.
Com relação ao procedimento a ser adotado pelo recorrente, a
demonstração da repercussão geral há de ser feita na própria peça do recurso
extraordinário, em tópico a parte, em obediência ao que prevê o § 2º do art. 543-A
do Código de Processo Civil: “§ 2º. O recorrente deverá demonstrar, em preliminar
do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da
repercussão geral”.
Por outro lado, não há que se confundir natureza da matéria versada no
recurso com natureza da repercussão: a exigência da repercussão geral vale para
todos os recursos extraordinários, independentemente da natureza da matéria neles
veiculada (cível, criminal, trabalhista ou eleitoral) (STF – Pleno, AI 664.567-QO, Min.
Gilmar Mendes, j. 18.6.07, DJU 6.9.07). (Citado por NEGRÃO, 2009, p. 771)
Observa-se que são inúmeras as tentativas de elencar as matérias que
conteriam repercussão geral. Contudo, são meras tentativas, afinal, caberá ao STF,
em cada caso, resolver se há ou não a demonstração da repercussão geral. Resta,
apenas, aguardar os julgamentos do STF para que se possa formar um catálogo,
contendo as principais matérias com repercussão, a fim de se ter com maior clareza
e segurança quais são as questões relevantes do ponto de vista econômico, político,
social ou jurídico e que ultrapassam o interesse subjetivo da causa25
.
25
Neste sentido, ver os relatórios mensais publicados pelo STF, acerca das questões tidas como
relevantes.
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
274
A título de demonstração, elencam-se alguns casos em que houve a
repercussão geral reconhecida e negada26
.
Teve reconhecida a repercussão geral do ponto de vista econômico, político,
social e jurídico o agravo de instrumento que põe em análise a competência para
julgar causas envolvendo complementação de aposentadoria por entidades de
previdência privada. Também se reconheceu repercussão geral por transcender o
interesse subjetivo da causa a possibilidade de imposição de efeitos próprios de
sentença penal condenatória à transação penal prevista na Lei n. 9.099/95.
Em contrapartida, não se reconheceu a repercussão geral em agravo de
instrumento interposto contra decisão que indeferiu processamento de recurso
extraordinário contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que rejeitou
pedido de gratuidade de justiça, por constarem dos autos elementos no sentido da
efetiva capacidade econômica das recorrentes.
4.3 Direito Comparado: a Experiência Estrangeira
O conhecimento sobre a aplicabilidade da repercussão geral, instituto
“importado”, a realidade sociológica em que nasceu e as causas que fundamentam
seu sucesso ou fracasso, são basilares para melhor compreensão do tema. Afinal,
se o legislador inspirou-se em experiências estrangeiras, e o conhecimento destas
favorece a compreensão da lei nacional e até mesmo a previsão se a repercussão
geral está fadada ao sucesso ou ao fracasso.
Percebem-se, em primeiro plano, duas grandes aproximações nos objetivos
dos ordenamentos jurídicos dos países que adotam mecanismos similares à
repercussão geral: preservar o papel da Suprema Corte Constitucional como de fato
guardiã da Constituição, e não como última instância recursal; e, com isso, filtrar a
demanda processual, chegando ao conhecimento do Tribunal Constitucional
somente os casos em que a decisão transcenda o caso concreto, e seja útil para
26
Todos os exemplos foram tirados do Relatório da Repercussão Geral emitido pelo STF no mês de
Agosto de 2009.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
275
uma determinada classe, possuindo eficácia erga ommes, para os indivíduos a ela
pertencentes.
Foram identificados institutos semelhantes nos EUA, na Argentina, na
Alemanha, na Austrália e no Japão, os quais se passa a abordar, de maneira
sintética, tão somente com o intuito de se fazer o registro e no sentido de apontar-se
as experiências positivas na utilização do instituto similar.
4.3.1 O “writ of certiorari” nos Estados Unidos
A Suprema Corte Norte-Americana possui o poder discricionário27, baseada
no princípio da relevância, pelo qual os ministros fazem uma triagem e analisam
somente os casos em que a questão federal e constitucional possui relevância para
o interesse público. Portanto, a liberdade que a Corte tem é de decidir (como antes,
com a arguição de relevância, no Supremo brasileiro), administrativamente, o que
merece ou não se submeter à jurisdição máxima.
O papel da Corte Constitucional federal norte americana, é distinto do papel
do STF no Brasil, uma vez que as leis norte-americanas são em sua maioria
estaduais28
, e normalmente as questões são resolvidas nos próprios tribunais
estaduais.
Writ of certiorari, em 1891, era mecanismo de inclusão na competência da
Suprema Corte Norte-Americana que, após 1914, começou a acolher questões em
que se estivesse questionando, em ação ou defesa, matéria federal29
. Após 1926, a
Suprema Corte passou a julgar apenas questões que envolvam interpretações
constitucionais. Antes disso, ainda em 1922, o tribunal a quo poderia emitir
certificado ressaltando a importância da matéria, e permitindo assim a interposição
27
Conforme Levada (2007, p. 90-91) e Azem (2009, p. 41). 28
Em decorrência do federalismo norte-americano, no qual os Estados-membros possuem maior
força do que os Estados-membros brasileiros, em razão do tipo federalista (por secessão, no caso
brasileiro) e também em razão grande número de estados, seria impossível à Suprema Corte
resolvê-los com a rapidez necessária (SCHWARTZ apud AZEM, 2009, p. 41). 29
Cabe ressaltar que questões federais nos EUA, podem ser de tamanha relevância quanto no
Brasil, uma vez que lá o direito é majoritariamente por leis infraconstitucionais, já que o processo
de emendamento da Constituição é extremamente rígido, dependendo de aprovação de dois
terços de cada Casa do Congresso e da ratificação de três quartos dos Parlamentos estaduais.
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
276
recursal no ápice do Judiciário norte-americano. Em 1928, a Corte tinha autoridade
para decidir sobre quais questões constitucionais poderia manifestar-se: se a tese da
petição do certiorari contivesse duas questões constitucionais e o tribunal se
limitasse a julgar apenas uma, estaria autorizada a restringir a jurisdição a somente
aquela (DANTAS, 2009, p. 97).
Quanto ao procedimento, as petições protocoladas são distribuídas
simultaneamente – como no Brasil – aos oito juízes do tribunal, para que seja
concedido o certiorari faz se necessário quatro votos nesse sentido.
O poder discricionário é baseado no princípio da relevância, e não se
manifesta somente pela seleção dos casos que a corte pretende julgar, mas também
de quais questões do caso concreto, serão julgadas.
É comum a corte esperar que os tribunais se manifestem por inúmeras
vezes sobre questões de relevância, para que ele se manifeste a respeito, assim
como é comum ser concedido o writ of certiorari, nas questões em que a União é
autora, nas questões que hajam mais de três intervenções de amicus curiae e,
ainda, em questões que existam conflitos entre tribunais federais e estaduais
(DANTAS, 2009).
A finalidade desse filtro constitucional se dá, para que ocorra a
uniformização da jurisprudência uma vez que o stare decisis é uma das bases
fundamentais do common law.
4.3.2 A transcendência da matéria na Argentina
O que pra nós é a repercussão geral, os argentinos denominam
‘transcendência da matéria’. O recurso extraordinário, na Argentina, somente se
justifica quando a questão levada à Suprema Corte Argentina expressar o que se
designou como “gravedad institucional”, ou, por outras palavras, na hipótese da
questão mostrar-se transcendente em relação à hipótese concreta.
O filtro recursal semelhante ao requisito da repercussão geral foi inserido na
Argentina, após uma reforma no código de processo civil. Contendo o seguinte texto
“A Corte poderá rechaçar o recurso extraordinário, por falta de lesão federal
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
277
suficiente ou quando as questões discutidas carecerem de substancialidade ou de
transcendência.” (DANTAS, 2009, p. 115)
O conceito de lesão federal suficiente consiste em existir negativa de
vigência de direito federal e deve ser grave a ponto de por em risco a integridade do
ordenamento jurídico. A violação ao direito federal, assim como no sistema alemão,
deve ser qualitativamente e não quantitativamente analisada pela Corte Suprema.
Questões insubstanciais são aquelas que vão de encontro a linhas
jurisprudenciais consolidadas sem a utilização de argumentos suficientemente
sólidos para ensejar uma mudança de entendimento (DANTAS, 2009, p. 120).
Já a transcendência das questões define-se no conceito de gravidade
institucional, que consiste em que as questões ultrapassem o interesse individual
das partes e afetem de modo direto o interesse da comunidade.
As questões discutidas referem-se a violações constitucionais e federais
(MEDINA, 2009, p. 206). Quando se trata de questões federais sempre haverá
transcendência. Nas questões infraconstitucionais, quando: houver
comprometimento das instituições básicas da nação; para a preservação dos
princípios básicos da Constituição; casos em que haja a comoção da sociedade, que
afetem sua consciência ou impactem o consenso coletivo; preservação de serviços
públicos; cobrança de tributos; jurisprudência contraditória; cumprimento pelo Estado
de suas obrigações internacionais.
4.3.3 A significação fundamental na Alemanha
Revisão é o recurso dirigido a Corte Federal de Justiça (Bundesgerichtshof –
BGH) contra decisões de última instância proferidas pelas cortes regionais de
recurso (Oberlandesgericht – OLG). (DANTAS, 2009, p. 107).
Foi incluído em 2001 o requisito da significação fundamental para a
apreciação do recurso de revisão. A questão dotada de significação fundamental,
quando julgada, deve servir de modelo e repercutir alem da lide, e ainda deve ter em
sua essência uma dúvida de direito de difícil solução – não se encaixam aquelas que
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
278
possam ser sanadas com a interpretação razoável do texto legal – uma das
finalidades buscadas é o aperfeiçoamento das instituições jurídicas.
O requisito da significação fundamental, não depende da gravidade da lesão
causada pela decisão recorrida, mas da abrangência da resposta perante a
sociedade.
Não se pode fundamentar a significação fundamental, somente pelo número
de casos semelhantes discutidos no Poder Judiciário, uma vez que não é o fato de
existir um milhão de recursos a discutir uma questão banal que fará com que ela se
torne importante (DANTAS, 2009, p. 110).
Quando proferida decisão do OLG, o vencido deve pedir licença30
a este
tribunal para recorrer ao BGH. Essa licença vincula o BGH, e não pode deixar de
admitir o recurso por falta de significação fundamental. A licença será concedida
quando a questão jurídica for dotada de significação fundamental ou quanto a fim de
aperfeiçoar o direito ou uniformizar a jurisprudência.
No sistema Alemão, só chegam à Suprema Corte Constitucional
reclamações constitucionais que tenham por objeto a violação de direitos
fundamentais de especial gravidade. E também estão sujeitas à análise prévia de
admissibilidade. Assim como o recurso extraordinário brasileiro, o sistema alemão,
não admite qualquer espécie de debate sobre elementos fáticos ou legais, o que fica
restrito aos tribunais inferiores. Não apresenta qualquer característica de recurso,
mas apresenta feições de ação constitucional específica.
4.3.4 A importância pública na Austrália
Na Austrália, existem apenas duas formas de recurso à Corte Superior. Na
primeira, há necessidade de o recorrente postular licença especial para a ela
recorrer. A Corte examinará se a questão jurídica em discussão detém importância
pública, seja decorrente de aplicação geral, seja da necessidade de unificar o
entendimento pretoriano, ou, ainda se o interesse da administração da justiça, de
30
Segundo Azem (2009, p. 48), o juízo de adminissibilidade é feito, portanto, no órgão a quo.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
279
modo geral ou no próprio caso particular, requerer o posicionamento da corte sobre
a questão em discussão (DANTAS, 2009, p. 129).
Na segunda hipótese, recursos oriundos das cortes de família, quando há
importante questão jurídica de interesse publico envolvida, há a expedição de
certificado explicitando a relevância da questão e autorizando o ingresso com o
recurso.
4.3.5 A relevante questão de direito no Japão
No Japão existe filtro recursal semelhante à repercussão geral do Brasil,
porém distinto é o seu objeto: a discricionariedade de jurisdição se dá somente em
casos referentes à legislação infraconstitucional, enquanto os erros de índole
constitucional recebem jurisdição obrigatória da Corte Suprema.
Verifica-se que no Japão a parte prejudicada por decisão de segunda
instância poderá requerer à Suprema Corte o direito de recorrer, o qual será
concedido se a decisão impugnada for contrária à decisão anterior daquele Tribunal
ou envolver relevante questão de direito.
5 A REPERCUSSÃO GERAL À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: INCONSTITUCIONALIDADE?
A doutrina, como anteriormente referido, tem levantado a tese de que a
repercussão, como filtro do recurso extraordinário, pode afrontar direito fundamental,
em especial em razão do texto do art. 60 § 4°, inciso IV31
, da CF, logo, considerado
cláusula pétrea do ordenamento.
Este direito considerado fundamental é o de acesso à justiça, incluindo o
direito ao devido processo legal, que a Constituição pretende garantir – e não
apenas proclamar – a faculdade de todos exigirem-no indistintamente.
31
Diz o referido dispositivo legal: Art. 60 (...) 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de
emenda tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais.
A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
280
O direito do acesso à justiça está positivado no art. 5º inciso XXXV da CF:
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito;”.
Logo no anúncio da regulamentação do instituto, houve a seguinte
manifestação institucional:
A OAB se posiciona contra o retorno, ainda que dissimulado sob novas denominações, do fracassado instituto da argüição de relevância que, na prática, gerou a inexistência da própria prestação jurisdicional do Supremo Tribunal Federal. Trata-se da solução de matar o doente, ao invés de acabar com a doença. Em 1977, foi editado o chamado “Pacote de Abril”, e no bojo da reformulação constitucional, foi criado esse instituto que, com o tempo, se mostrou ineficiente e centralizador
32.
Mostra-se claro o medo da reafirmação de um instituto da época ditatorial,
sempre com a desconfiança de que, restringindo um direito, se está atentando
contra os princípios fundamentais constitucionais, não sendo, então, legítimo.
Ora, o Supremo Tribunal Federal sempre exerceu o seu papel de guardião da Constituição Federal, analisando apenas questões de direito com violação direta a nossa Carta Magna. Se algum operador do direito menos desavisado insistia em levar ao conhecimento da Excelsa Corte matéria de
fato, ao relator caberia, tão somente, aplicar o contido no Art 557 do CPC33
.
Da mesma forma, quando contrariasse súmula ou jurisprudência dominante do STF. Logo, criar mais um requisito de admissibilidade recursal não é sinônimo de desafogamento de processos. Como se sabe, a questão de morosidade do poder judiciário e do grande número de processos para julgamento perante o STF não é culpa dos processos repetitivos, que podem ser eliminados liminarmente pelo relator, mas uma questão estrutural. Temos um crescimento populacional exagerado para um número reduzido de ministros na nossa maior Corte de Justiça. Realmente, é humanamente impossível, para onze ministros, dar conta da crescente demanda (LIMA, 2008).
O temor existe principalmente por duas ordens de razão: (i) a existência do
precedente histórico da repercussão geral (a arguição de relevância) era aferida em
32
Roberto Busato, então Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em
pronunciamento quando da aprovação do projeto de lei que regulamentava o instituto. Disponível
em: <http://www.oabms.org.br/noticias/lernoticia.php?noti_id=2601>, veiculado em 02/06/2006,
Acesso em: 29 abr. 2009. Apesar disso, não se tem notícia, até hoje, de que a OAB, apesar de
legitimada pelo art. 103, VII da CF, tenha ajuizado qualquer Ação Direta de Inconstitucionalidade
da Lei n. 11.418/2006. 33
O artigo trata da possibilidade de o relator negar seguimento ao recurso, nos casos em que prevê.
Edimara Sachet Risso et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
281
sessão secreta e por decisão não motivada34
; não há possibilidade de recurso da
decisão de inexistência da repercussão geral, o que em tese feriria o princípio do
devido processo legal.
O julgamento a respeito da existência ou inexistência da repercussão geral,
ao contrário, deve ser público e motivado, por força do contido no art. 93, IX35
, da
Constituição Federal de 1988, garantia que não existia ao tempo da arguição de
relevância.
Da mesma forma, teme-se que a vaguidão semântica do instituto possa
levar à discricionariedade pelo STF.
mesmo que a regra utilize termos vagos ou conceitos indeterminados, há parâmetros e valores que se impõem ao julgador de maneira cogente. (...). Jamais estará ele livre para optar por uma deliberação que seja indiferente aos parâmetros e valores proclamados pela norma (THEODORO JUNIOR, 2007, p. 105).
A norma, obviamente, trata-se da própria CF. Em contrapartida,
não podemos admitir, nem mesmo conceder poderes ao magistrado para legislar por via oblíqua, sob pena de se estar violando, mais uma vez, a CF/88, no que tange ao princípio da separação dos órgãos do poder. Este é o grande risco deste instituto: deixar nas mãos de magistrados, escolhidos pelo Presidente da República, o poder de decidir quais são as questões políticas do país (BERALDO, 2005, p. 145)
Vê-se que ainda não se chegou a um consenso sobre a legitimidade do STF
para impor e julgar o requisito da repercussão geral.
Contudo, por mais vaga que seja a exigência do requisito da repercussão
geral, o STF nunca terá liberdade para, arbitrariamente, rejeitar um recurso sobre o
argumento de ausência de tal requisito. Terá, sempre, que demonstrar a ausência da
34
Conforme Medina (2009, p. 201), a justificativa para tanto “era a de que não se tratava de ato
jurisdicional, mas de ato de natureza legislativa, já que com isso, os Ministros, que estabeleciam
as hipóteses de cabimento do recurso extraordinário no Regimento Interno do STF, estariam pura
e simplesmente acrescentado ‘mais um inciso’ ao art. 325, em cujo caput eram previstos os casos
em que cabia”. 35
Art. 93. IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas
todas as decisões, sob pena de nulidade (...).
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
282
repercussão geral, “submetendo o caso concreto às exigências da razoabilidade”
(THEODORO JUNIOR, 2007, p. 106).
Efetivamente, uma análise prima facie dos dispositivos constitucionais, em
divergência com a nova previsão, também constitucional, de possibilidade do STF
recusar recurso extraordinário em casos em que não vislumbre a repercussão geral,
pode remeter à possibilidade de afronta a um direito fundamental. Isso porque, tal
decisão limitaria o acesso à última instância recursal. Da mesma forma, tendo em
vista que não há previsão de recurso para as decisões do plenário do STF acerca da
existência ou inexistência da repercussão geral.
De qualquer sorte, esse não é o único caso em que a Corte Suprema
funcione como única instância na análise de matéria de direito. Isso ocorre, inclusive,
nos casos de sua competência originária, havendo, obviamente, possibilidade de
recurso ao plenário, mas ainda do STF.
5.1 Direitos Fundamentais como Direitos Absolutos
Para a correta apreciação da existência ou não de inconstitucionalidade, é
necessário que se proceda à análise dos direitos fundamentais.
Há duas correntes que discutem a polêmica matéria acerca da aplicação dos
direitos fundamentais: uma que nega a existência de direitos fundamentais absolutos
e outra que afirma a sua existência.
Para a corrente que nega a existência, está presente a “teoria externa” da
limitação dos direitos fundamentais, defendida por Robert Alexy, que preceitua pela
ponderação sempre que ocorrer conflitos entre direitos fundamentais.
Em contrapartida está a corrente da teoria interna, a qual considera
inadmissível a ideia de restrições ou limitações externas aos direitos fundamentais,
no caso o acesso à justiça.
Os direitos fundamentais há muito tempo permeiam documentos, cartas e
declarações pretéritas, mundiais. Exemplo disso é a Magna Carta (1215-1225), a
Petition of Rights (1628), o Bill Of Rights (1688), a Declaração Francesa (que data
do final do século XVIII) etc.
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283
Tais direitos podem ser caracterizados como:
(...) direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais, e, portanto, que encaram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual (DIMOULIS e MARTINS, 2005, p. 119).
Esses direitos tidos como fundamentais, como base da Constituição, estão
em posição de destaque no ordenamento brasileiro e interagem como todo o
sistema jurídico. Na Magna Carta de 1988, eles se encontram positivados no Título
II, juntamente com as garantias fundamentais, embora por todo o texto constitucional
se possa perceber a sua presença, já que não houve um corte metodológico rígido
no enfoque jurídico positivo desta categoria de direitos.
5.2 A Repercussão Geral e o Direito de Acesso à Justiça
O que, em um primeiro momento, pode-se ter ideia, é que a efetividade da
justiça depende de seu acesso, e que são necessários instrumentos que facilitem
cada vez mais a sua eficiência e celeridade.
No Direito brasileiro, todos têm direito a um processo justo, ao acesso à
justiça (art. 5.°, XXXV, da CF). Esse direito pode ser identificado como uma cláusula
geral, a qual é necessária como sempre, à averiguação de casos concretos para
resolução de conflitos.
Logo, o direito de acesso à justiça apoia-se em bases mínimas, as quais são
primordiais para sua existência. São elas: o direito à tutela jurisdicional efetiva (art.
5.°, XXXV, da CF), o direito ao juiz natural (art. 5.°, XXXVII e LIII, da CF), o direito à
paridade de armas (art. 5.°, I, da CF), o direito ao contraditório (art.5.°, LV, da CF), o
direito à ampla defesa (art. 5.°, LV, da CF), o direito à prova (art. 5.°, LVI, da CF), o
direito ao processo com duração razoável (art.5.°, LXXVIII, da CF), entre outros.
Observa-se, em verdade, que
O “novo” instituto não fere o princípio de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF). Isso porque o acesso à justiça já é garantido por meio de inúmeras
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Justiças existentes (Estadual e Federal, Comum e Especial), dos Tribunais Estaduais e Federais e dos inúmeros recursos existentes. ... Importante ressaltar que, ao contrário do que ocorria com a argüição de relevância (em que a avaliação pelo STF era realizada em sessão reservada), o acolhimento da repercussão geral é pública e fundamentada (ainda que de forma sucinta), ante expressa disposição constitucional (art. 93, IX, da CF) e a garantia do devido processo legal. Dessa forma, visa-se evitar o arbítrio das decisões, considerando que, diante do sistema jurídico pátrio e do papel desempenhado pelo STF, não há possibilidade de julgamento exclusivamente político e não jurídico (MALTEZ, 2007, p. 193).
Nesses termos, o requisito de admissibilidade não fere o direito de acesso à
justiça uma vez que o STF é Corte Suprema, e deve ser especializada ao exercer
sua função primordial de resguardar a ordem constitucional. Há outros tribunais,
também competentes, capazes de julgar essas causas não apreciadas pela corte
suprema.
5.3 A Repercussão Geral e o Direito ao Devido Processo Legal
Não subsiste, da mesma forma, o argumento de que o instituto fere o direito
ao devido processo legal, positivado no art. 5º, LV, da CF (“LV - aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”).
A Lei n. 11.418, de dezembro de 2006, acrescentou o art. 543-A ao Código
de Processo Civil, com o intuito de disciplinar o instituto da repercussão geral.
Diz o referido artigo: Art. 543-A. “O Supremo Tribunal Federal, em decisão
irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão
constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste
artigo.”
A questão é complexa, uma vez que, ao haver a recusa da existência da
repercussão geral (por dois terços, o que corresponde a oito Ministros), exclui-se
qualquer meio de se provocar a apreciação ou a correção de uma eventual injustiça
cometida.
Para apreciar o processo, como já exposto anteriormente, há necessidade
de demonstrar-se que ele seja digno de relevância e transcendência, conceitos
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285
vagos e abertos, a depender da subjetividade de cada ministro interpretar, se cabe
julgar o processo ou não.
A Constituição Federal já conta com mais de vinte anos de vigência, e
mesmo assim as discussões a respeito dos direitos fundamentais ainda não estão
consolidadas na jurisprudência por critérios objetivos e límpidos diante das restrições
e ponderações desses direitos.
O que cabe destacar é que não se pode consentir uma série de direitos, de
cunho ilimitado, pois se assim fosse, esses direitos seriam conduzidos à ineficácia.
Sendo os direitos fundamentais atribuídos a todas as pessoas, não há como conceber sua fruição permanente e simultânea sem que haja uma disciplina ordenadora a viabilizar que estes coexistam. Só é possível tornar efetiva a titularidade universal dos direitos à medida que sejam harmonizados, o que implica logicamente a imposição de limites (PEREIRA, 2006, p. 133).
A partir do momento em que se concebem os direitos fundamentais, como
partícipes de um modelo normativo de normas e princípios, parece impossível
aceitar que os mesmos não são ilimitados. É nessa esteira que nascem as duas
correntes que discutem a aplicação dos direitos fundamentais, já citadas.
Para a corrente que lhes afirma existência absoluta, presente na teoria
interna, considera-se inadmissível qualquer ideia de restrições externas aos direitos
fundamentais. Ainda, não admite colisão e nem ponderação entre esses mesmos
direitos, tendo como um dos seus maiores representantes Friedrich Müller.
E assim o é tendo em vista que “para os adeptos dessa corrente os limites
permitidos aos direitos fundamentais jamais podem configurar recortes externos em
seu âmbito de incidência, mas sempre resultam da análise de seu conteúdo tal como
estatuído na Constituição” (PEREIRA, 2006, p. 141).
Dessa, forma a teoria interna critica as restrições feitas pela EC n. 45/2004,
pois não admite a ponderação na análise da repercussão geral das questões
constitucionais em detrimento do direito de recorrer, decorrente do direito de ação.
Em contrapartida, a teoria externa preceitua que nenhum direito, ainda que
fundamental, é absoluto, pois esses direitos podem sofrer limitações para possibilitar
o implemento de outros direitos fundamentais considerados de maior significância,
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286
seguindo-se a técnica da ponderação diante do conflito, entre direitos, teoria
defendida por Robert Alexy.
Dentre as características dos direitos fundamentais apontados pela doutrina,
está a limitabilidade, uma vez que, apesar de fundamentais e tendentes à
concretização da dignidade da pessoa humana, sua “aplicação concreta não pode
resultar na aplicação da norma jurídica em toda sua extensão e alcance” (ARAUJO e
NUNES JÚNIOR, 2009, p. 122).
A teoria externa, também foi recepcionada por outros doutrinadores:
Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflitos. Não pode falar-se em restrição de um determinado direito fundamental em abstracto, fora de sua relação com um concreto direito fundamental ou interesse constitucional diverso. (...) Os direitos fundamentais não nascem já com limites inerentes ou naturais não escritos. (...) A restrição é sempre a posteriori, face à necessidade de proceder à conciliação com outro direito fundamental ou interesse constitucional suficientemente caracterizado e determinado, cuja a satisfação não possa deixar de passar pela restrição de um certo direito fundamental. (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p.134-135).
Nesse sentido, vê-se que a técnica da ponderação está relacionada à
necessidade. Assim, tanto pelas ideias defendidas por Alexy quanto por Canotilho e
Moreira, a limitação é pertinente desde que o objetivo maior vise à promoção do bem
comum, erga omnes.
Nesse enfoque, ao haver colisão de direitos fundamentais é primordial
analisar se existe ou não um verdadeiro conflito, ou se se trata, apenas, de uma
aparência.
No que tange aos recursos, sempre se guardando paralelo com o direito de
ação, o juízo de admissibilidade é mais amplo e, compreensivelmente mais rigoroso,
até por haver um funcionamento suplementar da máquina judiciária (BARBOSA
MOREIRA apud FORNACIARI JUNIOR, 2007, p. 47).
Aliás, o próprio direito de ação não é ilimitado. Há que se preencher todos os
pressupostos e as condições previstos na lei processual para que se possa
efetivamente acessar o Judiciário.
Edimara Sachet Risso et al.
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287
O princípio do devido processo legal significa, inclusive, o direito a uma
decisão fundamentada e a um rápido e público julgamento (NERY JUNIOR, 2009, p.
84).
Existe um nexo imediato entre o acesso à justiça, entre o direito fundamental à tutela jurisdicional e o direito à motivação das decisões judiciais. Toda decisão jurisdicional, por força constitucional, tem de ser motivada, tendo em conta a necessidade de controle do poder jurisdicional por parte da sociedade, pendor de legitimidade dessa função em um Estado Constitucional (art. 1º CF). (MARINONI, 2008, p. 49-51).
De outra forma, não se pode admitir que a função jurisdicional, apesar de
indivisível, não possa ser especializada.
É o que se poderia chamar funcionarização do Judiciário, problema para o qual a comunidade jurídica brasileira precisa estar alerta, para detectar – enquanto é tempo – suas verdadeiras causas e oferecer alternativas para melhorar e agilizar a prestação jurisdicional. (...) o bom senso parece sinalizar no sentido da adoção de medidas, que possibilitem uma triagem razoável no afluxo de recursos excepcionais, dirigidos aos Tribunais (...). (MANCUSO apud KOZIKOSKI, 2006, p. 686).
Privilegia-se, com isso, também a Constituição Federal, que, a par de prever
o direito de ação, previu a organização judiciária, de forma a privilegiar que todos
tenham direito de acesso à justiça, mas nem todos tenham direito de acesso a
qualquer órgão do Poder Judiciário, incluindo o STF.
O direito a um processo justo tem de levar em conta, necessariamente, o perfil judiciário brasileiro. Vale dizer: tem que ter presente as normas de organização judiciária, dentre as quais se destacam aquelas que visam a delinear a função que se acomete aos tribunais superiores em nosso país e a maneira como essa vai desempenhada (MARINONI, 2009, p. 12).
Tanto no direito constitucional brasileiro como no direito comparado, há
registros históricos de uma orientação segura que prestigia o critério seletivo das
Cortes Supremas no exame das questões próprias do recurso extraordinário
(THEODORO JUNIOR, 2007, p. 101).
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Emenda Constitucional n. 45, criou o requisito da Repercussão Geral,
inspirado na antiga arguição de relevância, o qual permite ao STF deixar de apreciar
alguns recursos extraordinários que lhe são dirigidos. Com o filtro, a Corte passa a
analisar apenas processos que tenham reconhecida relevância social, política,
econômica ou jurídica. E, ainda, determina que os demais órgãos jurisdicionais
direcionem-se de acordo com o entendimento da Suprema Corte, evitando o
encaminhamento de processos idênticos ao Supremo.
Todos os recursos extraordinários que chegam ao STF devem conter uma
preliminar de Repercussão Geral. A ausência deste pressuposto pode levar à
rejeição do recurso pela Corte.
Já são 225 (duzentos e vinte e cinco) temas analisados sob o filtro da
repercussão geral. Em 168 (cento e sessenta e oito) deles, foi reconhecida a
existência da relevância para toda a sociedade. Desses 168, 35 (trinta e cinco) já
foram analisados no mérito e outras 13 (treze) reafirmaram jurisprudência dominante
na Corte (STF, p. 3-4)36
auxiliaram o Supremo na edição de Súmulas Vinculantes.
Dessa maneira, o filtro recursal, embora não completamente novo, é uma
grande inovação na jurisdição constitucional, pois proporciona uma solução mais
breve aos processos que, porventura, poderiam ter sua tramitação postergada em
face de um recurso descabido, e ainda, valoriza a autoridade do STF na
interpretação e na tutela da Constituição, sem ampliar sua carga de trabalho. Da
mesma forma, possibilita que a Corte desempenhe papel apenas subsidiário na
jurisdição incidental de controle de constitucionalidade, exercida pelos juízes e
tribunais inferiores, desafogando, consequentemente, a crise jurisdicional.
A doutrina não é unânime na aceitação do novo instituto como requisito de
admissibilidade do Recurso Extraordinário.
36
A pesquisa foi encerrada no dia 06 de novembro de 2009, quando ainda não havia sido divulgado
o Relatório da Repercussão Geral do mês de outubro. Os dados, portanto, são do Relatório do
mês de Setembro de 2009, divulgado em obediência à determinação do art. 329 do Regimento
Interno do STF, com a redação que lhe deu a Emenda Regimental n. 21/07, que diz: Art. 329. A
Presidência do Tribunal promoverá ampla divulgação do teor das decisões sobre repercussão
geral, bem como formação e atualização do banco eletrônico de dados a respeito.
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Para aqueles que apoiam a adoção da Repercussão Geral, o Brasil segue a
tendência mundial que já vem, há um bom tempo, tendo resultados positivos em
muitos países como os Estados Unidos, a Argentina e o Japão.
Logo, a novidade deve ser encarada como instrumento de efetividade do
direito fundamental da razoável duração do processo, uma vez que se trata de
verdadeiro mecanismo de racionalização do volume de trabalho que chega ao STF e
que, a um só tempo, busca resguardar dois interesses: das partes, na realização de
processos judiciais em tempo justo, e da justiça, no exame de casos que
ultrapassem a esfera individual dos litigantes.
Assim, o STF deixa de funcionar como uma instância superior e poderá
produzir uma jurisdição de melhor qualidade, no seu real papel de guardião da
Constituição Federal.
Os defensores da repercussão geral afirmam ser ela instituto constitucional,
uma vez que não colocará óbices ao acesso dos litigantes ao Poder Judiciário, que
continuam dispondo das instâncias ordinárias para a análise das suas pretensões.
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Constitucionales, 1993.
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A repercussão geral e os efeitos...
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
290
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BRASIL. Lei n. 11.418, de 19 de dezembro de 2006. Acrescenta à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 - Código de Processo Civil, dispositivos que regulamentam o § 3o do art. 102 da
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Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
292
PORTO UNIÃO – SANTA CATARINA
A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO NA OBRA DE
CARL SCHMITT1
THE THEORY OF THE CONSTITUTION IN THE WORK OF CARL SCHMITT
Fábio Roberto Kampmann2
Fernando David Perazzoli3
Orleans Antunes de Oliveira Neto
Elisa Mayara Bostelmann
Cainã Domit Vieira
Sumário: Introdução. Constituição e constituição. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
Carl Schmitt não possui seu significado acadêmico apenas por questões
políticas, inevitáveis para alguém que transitou por vias muito próximas àquelas em
que se desenvolvia o nacional-socialismo alemão nos anos da segunda grande
guerra: sua obra constitui um vasto trabalho dissertativo e criativo acerca de pontos
e estruturas jurídicas, filosóficas, éticas e culturais, tendo produzido efeitos concretos
tanto no campo da construção quanto no da compreensão acerca daquilo que é o
direito.
1 Trata-se de trabalho apresentado pelo Grupo de Estudos no IX Simpósio de Direito Constitucional
da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst, em Curitiba (PR), nos dias 21, 22 e
23 de maio de 2010. 2 Professor da Universidade Contestado e Especialista em Direito.
3 Mestre em Direito pela UFSC e Professor da Universidade Contestado.
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
293
A ideia de Constituição, como se poderia esperar, não aparece de forma
simples e determinada em sua obra, posto que é, acima de tudo, um termo limítrofe:
é lá, onde a política e o direito encontram uma nebulosa indeterminação, que
Schmitt colocará marcos teóricos e, sobretudo, de onde retirará subsídios para
sustentar que várias dentre as terminologias comumente empregadas no mundo
jurídico – entre as quais o próprio conceito de Constituição, por exemplo – teriam
diferentes significados, muito distantes do que pensam as correntes mais
tradicionais e pretensamente científicas do Direito.
De fato, é ao versar sobre temáticas como soberania, exceção, inimigo
e guerra que Schmitt mostra que o próprio Direito não é outra coisa senão um
momento secundário da história de qualquer sociedade, sendo precedido, sempre,
pela decisão primeira que o possibilitou existir. A ideia de um ordenamento jurídico,
portanto, caminha sempre à sombra da obra schmittiana e, mesmo com toda
oposição de Schmitt à limitação trazida por essa questão estritamente normativa,
percebe-se que a teoria que envolve a descrição das tradicionais normas postas
pelo legislador ordinário não é por ele negada, mas tornada diminuta.
Assim, dentro desse contexto é que surge a primeira problemática de estudo:
como saber onde está a teoria da Constituição na obra de Schmitt?
Observe-se que a mera tentativa de resposta a essa questão já demanda
um conhecimento prévio acerca da obra, eis que nela a ideia de Constituição não se
reduz ao campo jurídico e, tampouco, a uma Carta Constitucional. Por essa razão,
procurou-se em primeiro lugar tomar por ponto de ancoragem a obra “Teoria da
Constituição”, a qual foi estudada a partir da tradução espanhola, eis que inexiste
versão em língua portuguesa.
Em segundo lugar, procurou-se sondar a obra de Carl Schmitt atrás de
referências acerca da temática constitucional. Percebeu-se, assim, que é o próprio
Autor quem guia o pesquisador/estudante para os lugares onde o campo do
“constitucional” está descrito, e isto é feito, essencialmente, pela tentativa de
diferenciação entre os campos do político e do jurídico.
Aliás, esses dois temas – político e jurídico – estarão essencialmente ligados
na teoria da Constituição contida na obra de Schmitt, sendo que seus textos podem
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
294
tanto se voltar ao direito constitucional dentro de uma temática política quanto, ao
contrário, expressar ideias políticas ao se referirem a temas estritamente jurídico-
normativos. Nesse sentido, toma-se como exemplo o Prefácio escrito por Carl
Schmitt à edição de 1963 à obra “O Conceito do Político”, onde está expressamente
consignado:
A publicação sobre o Conceito do Político é uma tentativa de satisfazer às novas questões e de não subestimar nem ao desafio (challenge) nem a provocação. Enquanto a exposição sobre Hugo Preuss (1930) e os tratados O Guardião da Constituição (1931) e Legalität und Legitimität (Legalidade e Legitimidade) (1932) examinam a nova problemática intra-estatal e de Direito constitucional, encontram-se, agora, temas relacionados à teoria do Estado com temas de Direito internacional interestatal; não se trata apenas da teoria pluralista do Estado – ainda totalmente desconhecida na Alemanha daquele tempo –, mas também da Liga das Nações de Genebra. A publicação é uma resposta ao desafio de uma situação intermediária. O desafio que dela mesma parte, é direcionado, em primeiro lugar, aos especialistas em Direito constitucional e aos juristas de Direito Internacional (SCHMITT, 2008. p. 11).
Nota-se, assim, a preocupação de Carl Schmitt em apontar que, na sua
teoria, um livro sobre o “Conceito do Político” é dirigido a especialistas em Direito
Constitucional. Tal especificação, notadamente, atinge o plano central de seu
pensamento: há uma Constituição (neste escrito denominada com letra maiúscula) e
há um constituição (neste escrito denominada com letra minúscula), no sentido de
que a primeira contém o político e é materialmente existente, ao passo que a
segunda pressupõe e depende da primeira, sendo portanto formal e se confundindo
com a tradicional e ainda existente concepção de constituição (escrita, rígida e
produto final de um poder constituinte reconhecido por “originário”).
Dentro desse quadro teórico é que se apontará, com o objetivo de fornecer
ao estudando do direito e, em particular, do direito constitucional, chaves para a
leitura da Teoria da Constituição da obra de Carl Schmitt.
CONSTITUIÇÃO E CONSTITUIÇÃO
As ideias de Constituição e de constituição pensadas por Carl Schmitt
devem ser trabalhadas tendo como norte a existência de um povo em um
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
295
determinado tempo, ou seja, sua existência enquanto coletividade dotada de um
ethos próprio, onde se encontram reunidos princípios, tradições, regras morais e,
sobretudo, um propósito coletivo – são, pois, essencialmente valorativas. Frente a
esse quadro, o direito surgiria, portanto, como a objetivação desses valores e,
sobretudo, da decisão primeira dessa sociedade em se organizar como coletividade.
A Teoria da Constituição, dentro do pensamento schmittiano, é a teoria
daquilo que forma um Estado, isto é, da unidade política de um povo (SCHMITT,
2003, p. 29). Com essa assertiva já é possível perceber que há diferença entre a
ideia material de Constituição4 e o conceito formal de constituição5, o qual a coloca,
neste último caso, como um mero sistema de normas, sem obrigatoriedade de
consonância com a realidade do povo e sem obrigatoriedade de ser ideal
(SCHMITT, 2003, p. 29).
De forma comparativa, se se traçar um paralelo com a teoria normativista
elaborada por Hans Kelsen, verificar-se-á que ideia de constituição como lei de mais
elevado grau (norma) não passaria, nos moldes schmittianos, de uma ideia relativa
da Constituição. Por essa razão, aliás, Schmitt aponta que se poderia tentar
compreender a constituição sob vários prismas, os quais, individualmente, não
seriam suficientes para se alcançar o conceito de Constituição. A título de exemplo,
ao analisar a constituição através de sua maneira de ser, poderia se chegar a três
concepções:
a) a constituição representa a situação de unidade política e ordenação
social de um determinado Estado. A constituição diz o que o Estado, já
organizado, é6.
b) a constituição é a ordem normativa de um Estado, ou seja, diz a forma
de governo e o estatuto da sociedade organizada jurídica e
normativamente. A constituição aponta como o Estado deve-ser7; e
4 Novamente: tratada adiante com letra maiúscula = Constituição.
5 Novamente: tratada adiante com letra minúscula = constituição.
6 [...] la concreta situación de conjunto de la unidad política y ordenación social de um cierto Estado.
[...] El Estado no tiene uma Constitución – según la que – se forma y funciona la voluntad estatal,
sino que el Estado es Constitución, es decir, uma situación presente del ser, um status de unidad y
ordenación. (SCHMITT, 2003, p. 30).
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
296
c) a constituição é o devir histórico e contínuo de um Estado, isto é, algo
em constante mutação8.
Assim, percebe-se que somente pelo prisma normativo não se alcança o
conceito de Constituição, o qual é muito maior do que simples trabalho legislativo9.
Aliás, não é por outro motivo que Schmitt, ao trabalhar com o conceito de
Constituição, aponta que o nascimento do direito se deve à força da autoridade,
isto é, ao poder da ordem do ser que através de uma vontade unitária e soberana dá
origem a um dever-ser (SCHMITT, 2003, p. 34). Esse é, pois, o fundamento onde se
justifica não só a ordem jurídica, mas também a existência do Estado. E é
precisamente nesse ponto que se enlaçam os conceitos fundamentais da teoria
schmittiana: o político, a guerra, o inimigo e a decisão.
Diz Schmitt (2008, p. 20) que o conceito de Estado pressupõe o conceito
do Político. Ocorre que o político na concepção schmittiana não está vinculado a
um conteúdo. Antes, é pura indeterminação e, por isso, poderá ser qualquer coisa,
bastando que exista a força que o permite se afirmar – uma força, aponte-se,
também sem conteúdo, avalorativa, não organizada, precedente a qualquer
instituição, ou seja, tão radical quanto o velho conceito de maldade da teoria do
hobbesiana do Leviatã10, a qual, por sinal, atravessa a teoria schmittiana.
7 [..] una manera especial de ordenación política y social. [...] Constitución és aqui = forma de
gobierno. Em tal caso, la palavra “forma” designa igualmente algo existente, un Status, y no algo
acomodado a preceptos jurídicos o a lo normativamente debido. [...] Tambíem em este punto sería
lo más exacto decir que el Estado és la Constitución. (SCHMITT, 2003, p. 30-31). 8 [...] el principio del devenir dinámico de la unidad política, del fenómeno de la continuamente
renovada formación y elección de esta unidad desde uma fuerza y energía subyacente u operante
en la base. Aquí se entiende el Estado, no como algo existente, em reposo estático, sino como
algo em devenir, surgiendo sempre de nuevo. (SCHMITT, 2003, p. 31). 9 Haveria, porém, uma exceção, pela qual através da analise da força regulamentar de uma
constituição (sem fugir do conjunto de regras que ela encarta, portanto), seria possível
compreender o conceito absoluto de Constituição. Essa compreensão do todo pela análise da
parte é possível se o Estado, em suas normas, for igual à Constituição do povo, a qual é
organizada a partir decisão fundamental que a fez existir. Expressamente, diz Schmitt: [...] el
Estado es tratado como un Deber-ser normativo, y se ve em él sólo un sistema de normas, una
ordenación “jurídica”, que no tiene uma existencia del Ser, sino que vale como debe, pero que no
obstante – puesto que aquí se coloca una unidad cerrada, sistemática, de normas y se equipara
com el Estado – sirve para fundar um concepto absoluto de Constitución. (SCHMITT, 2003, p. 33). 10
Vale apontar que Carl Schmitt não só disserta como, também, encampa algumas ideias
externadas por Thomas Hobbes. Aqui, a título de dar substancialidade à afirmação feita no corpo
do texto, cita-se a passagem da obra “O Leviatã”, supra mencionada: Os desejos e outras paixões
do homem não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o sãs as ações que derivam
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
297
Logicamente, se o campo do político se afirma com base na força, a única relação
que o precede é a relação entre inimigos, ou seja, uma relação de guerra.
E aqui cabe uma indagação: a guerra não se constitui na disputa bélica
entre Estados já organizados para a defesa de seus interesses e de sua soberania?
Segundo a teoria schmittiana não, sendo esse o motivo pelo qual para a
tentativa de compreensão da Teoria da Constituição em sua obra é preciso avançar
além dos próprios limites do campo jurídico e, mais ainda, do político. A guerra, para
Schmitt, é a possibilidade que estabelece, a partir da relação entre amigo-inimigo o
campo político. A guerra, para ele, não seria o acontecimento de combate em si,
mas o estado fático onde a única questão normativa é a possibilidade de dizer, pela
força, qual é o caso decisivo que implicaria em combate e, principalmente, de decidir
se este caso estaria ou não presente na realidade do mundo (SCHMITT, 2008, p.
20). O mundo político, portanto, não poderia ter, aqui, qualquer conteúdo, posto que
se formaria na própria indeterminação da força, no momento crítico. Diz Schmitt:
Também hoje, o caso de guerra ainda é o “caso crítico”. Pode-se dizer que aqui, como em outros casos, é o caso excepcional que tem um significado excepcionalmente decisivo e revelador do cerne das coisas, pois é no combatente real que primeiramente se manifesta a extrema conseqüência do agrupamento político em amigo e inimigo. É a partir desta mais extremada possibilidade que a vida do ser humano adquire sua tensão especificamente política. Um mundo no qual a possibilidade de semelhante combate estivesse completamente eliminada e desaparecida, um planeta definitivamente pacificado, seria um mundo sem a distinção entre amigo e inimigo, por conseguinte, um mundo sem política (SCHMITT, 2008, p. 20).
Como ponto último dessa questão está, pois, a Constituição, que é esse
agrupamento primeiro entre pessoas que se reconhecem consoante um referencial
(amigos) e que, através da força, decidem como a vida será ordenada. Em outras
palavras, sendo vitoriosas, essas pessoas constituirão um mundo político segundo
aquilo que decidiram – a decisão que os permitiu ser se torna, assim, a decisão
política fundamental.
dessas paixões, até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que
será impossível até o momento em que sejam feitas as leis. Nenhuma lei pode ser feita antes de
se determinar qual pessoa irá fazê-la. (HOBBES, 2003. p. 99).
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
298
Esse processo pode assim ser resumido:
1°) a força que funda o política está ligada a relação entre inimigos, ou
seja, é a força que se saiu vitoriosa do confronto primeiro entre seres humanos. A
relação entre seres humanos possuirá uma materialidade, será Constituída de
determinada maneira segundo alguns princípios;
2°) o mundo político é aquele onde os que se reconhecem segundo
alguns princípios passam a se organizar. Dá-se condição de existência ao Estado;
3°) surge o Estado, o qual pressupõe o conceito do político, qualquer que
seja o seu conteúdo;
4°) é elaborada a constituição formal, dependente da existência de um
Estado, podendo-se dizer até mesmo que, a rigor do constitucionalismo moderno,
ambos se fundam a partir do político;
5°) a constituição formal está totalmente vinculada à Constituição
Material, posto que dela depende para continuar existindo.
Desta forma, o conceito de Constituição é aquele que captura seus
elementos em um lugar além do texto constitucional, qual seja, a efetiva organização
de um povo sob uma vontade unitária, anteriormente decidida e vitoriosa na relação
(de guerra) amigo-inimigo. Por derradeiro, a relativização do conceito de
Constituição, ao seu tempo, é aquele que fica estritamente vinculado a
características formais (SCHMITT, 2008, p. 37), ou seja, algo que compreende
unicamente aqueles dispositivos convertidos em leis constitucionais e que nivela
todas as regras, independente do conteúdo, como hierarquicamente inferiores à
Constituição.
Na teoria de Carl Schmitt, Constituição é fundamento de unidade, ao
passo que lei constitucional é a particularidade da ideia de Constituição convertida
em texto normativo. Importa notar, no entanto, que a constituição formal não adquire
esse status unicamente pelo fato de que alguém colocou algumas prescrições em
um papel e o chamou de constituição. A rigor, é preciso que vários fatores sejam
conjugados para que se tenha aquilo que na tradição constitucional ocidental
comumente se conhece por constituição escrita, tais como (i) documentação; (ii)
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
299
poder competente; (iii) demonstração de conteúdo; (iv) possuir estabilidade (o que
implica também em dificuldade de modificação) e (v) existir um procedimento de
elaboração material (ser convencionada, pactuada, jurada, etc.) (SCHMITT, 2008, p.
38-39)11. Uma constituição formal, portanto, ainda que aparente ser imensamente
inferior e frágil perto da Constituição, só terá esse um documento constitucional se
cumprir com os requisitos necessários à sua emissão (o que já revela que a decisão
política fundamental, pelo menos no mundo jurídico ocidental, é pelo Estado de
Direito).
Dentro desse contexto é que estão os elementos que ligam as duas
constituições: são os elementos de estabilidade que marcam a ponte entre a
Constituição e a constituição formal, pois compõem o núcleo único que representa a
vontade unitária do povo. Especificamente, o artigo 76 da Constituição de Weimar
(objeto de estudo de Carl Schmitt) seria o caso único de uma lei essencialmente
Constitucional e, ainda, demonstraria que todos os outros dispositivos não
passariam de simples formalidades12.
Por isso, a constituição em sentido positivo pressupõe um ato do poder
constituinte, o qual existe pela decisão de um povo em construir um sistema de
11
Novamente é possível perceber como Schmitt não nega a teoria normativa e a ideia de
ordenamento jurídico, mas o transforma em questão diminuta. 12
Article 76 The constitution may be amended by legislation. Constitutional changes become valid
only if at least two thirds of the members are present and at least two thirds of the present
members vote in favour of the amendment.
Decisions of Reichsrat regarding a constitutional amendment also require a two-thirds-majority. If,
requested by referendum petition, a constitutional amendment shall be decided by plebiscite, the
majority of the enfranchised voters is required in order for the amendment to pass.
If Reichstag decided on a constitutional amendment against Reichsrat objection, the Reich
president may not proclaim the amendment, if Reichsrat, within a period of two weeks, demands a
plebiscite to be held.
Tradução livre: Artigo 76 A constituição deve ser emendada pela legislação. Mudanças
constitucionais tornam-se válidas apenas se pelo menos dois terços dos membros estão presentes
e pelo menos dois terços dos membros presentes votam a favor da emenda.
Decisões do Reichrat considerando a emenda constitucional também requerem a maioria de dois
terços. Se, requisitada por referendo, a emenda constitucional deve ser decidida por plebiscito, a
maioria dos votos permitidos é necessária para a aprovação da emenda.
Se o Reichstag decidiu por uma emenda constitucional contra uma objeção do Reichsrat, o
presidente do Reich não deve proclamar a emenda, se o Reichsrat, dentro de um período de duas
semanas, demanda plebiscito para que seja mantido.
Disponível em <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_vve.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
300
direito (SCHMITT, 2008, p. 45). Desta forma, a constituição não é algo que se dá a si
mesma, como uma autorização ao seu existir, mas algo que é dado por unidade
política concreta e efetiva (SCHMITT, 2008, p. 46). A ideia de uma constituição
positiva, assim, traz como momento anterior uma decisão. Diz Schmitt:
No fundo de toda normatividade reside uma decisão política do titular do poder constituinte, é dizer, do Povo na Democracia e do Monarca na Monarquia autêntica. Assim, a Constituição francesa de 1791 envolve a decisão política do povo francês a favor da Monarquia com dois “representantes da Nação”, o Rei e o Corpo Legislativo. A Constituição belga de 1831 contém a decisão do povo belga a favor de um Governo monárquico (parlamentar) de base democrática (Poder constituinte do povo), ao modo do Estado burguês de Direito. A Constituição prussiana de 1850 contém uma decisão do Rei (como sujeito do Poder constituinte) a favor de uma Monarquia constitucional ao modo do Estado burguês de Direito, com o que resta conservada a Monarquia como forma de Estado (e não apenas como forma do Poder Executivo). A Constituição francesa de 1852 contém a decisão do povo francês a favor do Império hereditário de Napoleão III, etc.
13.
A decisão primeira – bem como os dispositivos constitucionais que
refletem – são mais que a constituição positivada e que as leis. São, antes, as
decisões fundamentais, políticas e concretas. Por essa razão é que teoria do direito
pensada por Carl Schmitt a partir da teoria da Constituição é chamada de
decisionista: o direito só existe por uma decisão que o permitiu existir, independente
do que foi decidido ou da maneira pela qual ele venha a se materializar. Em outras
palavras, a Constituição é intangível, enquanto que as leis constitucionais podem ser
suspensas durante o estado de exceção, e violadas pelas medidas do estado de
exceção14.
13
Tradução livre a partir de: En el fondo de toda normación reside una decisión política del titular del
poder constituyente, es decir, del Pueblo em la Democracia y del Monarca en la Monarquía
auténtica. Así, la Constitución francesa de 1791 envuelve la decisión política del pueblo francés a
favor de la Monarquía con dos “representantes de la Nación”, el Rey y el Cuerpo legislativo. La
Constitución belga de 1831 contiene la decisión del pueblo belga a favor de un Gobierno
monárquico (parlamentário) de base democrática (Poder constituyente del pueblo), al modo del
Estado burguês de Derecho. La Constitución prusiana de 1850 contiene una decisión del Rey
(como sujeto del Poder constituyente) a favor de uma Monarquía constitucional al modo del
Estado burguês de Derecho, con lo que queda conservada la Monarquía como forma del Estado (y
no sólo como forma del Ejecutivo). La Constitución francesa de 1852 contiene la decisión del
pueblo francés a favor del Império hereditário de Napoleón III, etc. (SCHMITT, 2008, p. 47). 14
Tradução livre a partir de: La Constitution es Intangible, mientras que las leyes constitucionais
pueden ser suspendidas durante el estado de excepción, y violadas por las medidas del estado de
excepción. (SCHMITT, 2008, p. 50).
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
301
De qualquer forma, frente a esse quadro é mister consignar que mesmo sendo a
constituição algo inferior e posterior à Constituição, o texto da lei constitucional não
poderá sofrer ataques reiterados e, tampouco, ser vilipendiado ou ter sua vigência
negada pelos poderes constituídos. Visto por outro ângulo, a constituição não
poderá ser modificada pelo Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário. Por essa
razão, quando da obra “O Guardião da Constituição”, Schmitt dissertou sobre a
necessidade de um Poder “Neutro” que, a exemplo do que foi o Poder Moderador na
constituição brasileira de 1824, estaria acima de todos os outros poderes e serviria
para a defesa da decisão política fundamental.
Vale destacar: o decisionismo na teoria de Carl Schmitt não é o
decisionismo político e, tampouco, judiciário. Tanto o mundo jurídico, como a divisão
dos poderes e o próprio campo do político pressupõe uma decisão. O Guardião da
Constituição, ao seu turno, é aquele que poderá, inclusive, suspender a constituição
formal e a atividade de todos os poderes instituídos para proteger a decisão política.
E é aqui que, retomando o conceito schmittiano de guerra e caso crítico, pode-se
entender a complexa sentença que abre uma das mais impactantes obras por ele
escrita (Teologia Política): soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção
(SCHMITT, 2006, p. 07). Ou seja, soberano é aquele que decide qual é o caso que
poderá (re)determinar a decisão fundamental e, portanto, é também aquele que
poderá, ao sentir que esse estado novamente se aproxima (a eminência do
combate), suspender in totum a constituição formal para assegurar a Constituição
Material – assegurar, portanto, que os amigos continuem como amigos e que os
inimigos não vençam.
A par dessas considerações, resta ainda o conceito ideal de constituição
e de direito, o que é construído por Schmitt com base na análise dos efeitos
provocados pelo advento do mundo liberal burguês e na organização do mundo
europeu pós-revolução francesa. Perante esses fatos, o ideal de constituição seria a
elaboração político-jurídica que contemple um sistema de garantias da liberdade
burguesa (SCHMITT, 2006, p. 59), a divisão dos poderes (SCHMITT, 2006, p. 60) e
que seja escrita. (SCHMITT, 2006, p. 61). De qualquer sorte, ainda que ideal, essa
forma de constituição contemplaria uma divisão: de um lado estariam todos esses
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
302
elementos constitucionais reunidos, formando o direito. De outro, a decisão que
permitiu a esses elementos existir.
Outra importante demarcação feita na teoria pensada por Carl Schmitt é a
necessidade de compreensão do que significa Lei Fundamental, haja vista que
somente desta forma se poderá compreender o que é o direito constitucional na obra
estudada. Lei Fundamental, segundo Schmitt, pode ser compreendida segundo nove
acepções15, observe-se:
a) todas as leis ou disposições que aparentem ser de singular
importância política a pessoas ou grupos politicamente influentes em
um momento dado;
b) uma norma absolutamente inviolável, que não pode ser reformada ou
transgredida/transposta;
c) toda norma relativamente invulnerável, que somente pode ser
reformada e transposta em hipóteses rígidas (processo dificultoso);
d) o último princípio da unidade política e da ordenação de conjunto;
e) qualquer princípio da organização estatal (direito fundamentais, divisão
dos poderes, princípio monárquico, o chamado princípio
representativo);
f) a norma última para um sistema de imputações normativas. Nesse
sentido, destaca-se o caráter normativo da lei fundamental, na qual se
acentua sua característica de lei;
15
Tradução livre a partir de: a) [...] todas las leyes o disposiciones que parecen de singular
importância política a las personas o grupos politicamente influyentes em um momento dado; b)
[...] una norma absolutamente inviolable, que no puede ser, ni reformada, ni quebrantada; c) [...]
toda norma relativamente invulnerable, que sólo puede ser reformada o quebrantada bajo
supuestos dificultados; d) [...] el ultimo principio unitario de la unidad política y de la ordenación de
conjunto; e) [...] cualquier principio particular de la organización estatal (derechos fundamentales,
división de poderes; principio monárquico, el llamado principio representtivo); f) [...] la norma ultima
para un sistema de imputaciones normativas. Aquí se destaca el carácter normativo, y em ley
fundamental se acentua ante todo el elemento “ley”; g) [...] toda regulación orgánica de
competência y procedimiento para las actividades estatales políticamente más importantes; y
tambíen, en una Federación, la delimitación de los derechos de ésta respecto de los de los
Estados miembros; h) [...] toda limitación normada de las facultades o actividades estatales; i) [...]
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
303
g) toda regulação orgânica de competência e procedimento para as
atividades estatais politicamente mais importantes. Dentro de uma
Federação, trata-se da delimitação dos direitos desta em relação aos
direitos dos demais entes federativos;
h) toda limitação normativa das faculdades ou atividades do poder
estatal; e
i) a constituição em sentido positivo.
Essas considerações, no entanto, mesmo sendo importantes para uma
compreensão o direito, a título teórico, caracterizam a fragmentação do conceito total
de Constituição e dissolveriam a consciência da existência política (SCHMITT, 2006,
p. 65). Constituição e constituição, portanto, não se confundem, embora esta esteja
contida naquela, que é, como visto, absoluta.
Feitos esses apontamentos, cabe demonstrar, afinal, quando é que a
Constituição nasce, haja vista que é dela, dentro das várias concepções apontadas
por Schmitt, que se desenvolverá a representatividade formal (constituição). Tem-se,
nesse sentido, que uma Constituição poderá nascer de duas formas:
a) mediante decisão política unilateral do sujeito de Poder constituinte; e
b) mediante convenção plurilateral dos vários sujeitos que compõe o
poder constituinte (SCHMITT, 2006, p. 66).
Aliás, é justamente por força dessas categorias que Schmitt diz ser a
Constituição um elemento posterior ao pacto social. O poder constituinte, portanto,
demanda uma unidade de poder, ou seja, que a pluralidade de sujeitos
(potencialmente constituintes) acordem na existência de um só poder constituinte
(SCHMITT, 2006, p. 86). Isso representa, também, que os pactos internacionais não
formam uma Constituição Internacional, posto que não estabelecem que haverá um
só poder constituinte – são, portanto, meras situações de conciliação (SCHMITT,
2006, p. 89). Para Schmitt, poder constituinte é
Constitución em sentido positivo, de donde la llamada ley fundamental no tiene por contenido
esencial una normación legal, sino la decisión política. (SCHMITT, 2006, 62-63).
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
304
[...] a vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando, assim, a existência da unidade política como um todo (SCHMITT, 2006, p. 94)
16.
Também importante é o fato de que, logicamente, Schmitt não visualiza na
elaboração da constituição formal o encerramento da possibilidade de (re)decidir
(cujo sujeito da decisão é representado historicamente pela figura do Poder
Constituinte), o que significa que, mesmo com a existência de um documento escrito
e materializado chamado constituição, a possibilidade de uma nova decisão
fundamental, totalmente diferente da tomada por uma sociedade, está mantida
(SCHMITT, 2006, p. 94). Pensar de outra forma, dentro da ideia schmitttiana,
implicaria reconhecer que a constituição formal teria mais força que a Constituição
Material – o que seria a total inversão das categorias. A força e a autoridade do
Poder Constituinte (independente de quem o constitua) sempre serão, assim, os
fundamentos do direito, da constituição positiva e, por consequência, das leis
constitucionais (SCHMITT, 2006, p. 104).
Ao contrário do que pensa Hans Kelsen, Carl Schmitt não pressupõe uma
norma hipotética como fundamento do direito. O direito, a constituição e a ordem
jurídica, a seu ver, nascem de um poder de fato, o que implica dizer que ela não
depende de nenhum precedente jurídico (SCHMITT, 2006, p. 104-105). O Poder
Constituinte está, nesse sentido, acima de toda determinação legal-constitucional, o
que tem como efeito direto uma solução de continuidade da constituição mesmo em
tempos de crise (SCHMITT, 2006, p. 109-110).
Resta, logicamente, que a mudança do sujeito detentor do Poder
Constituinte seria o momento em que haveria a completa destruição da constituição
e da ordem jurídica (SCHMITT, 2006, p. 110), o que implica no reconhecimento de
que essa destruição não se confunde:
a) com a destruição do texto constitucional formal;
16
Tradução livre a partir de: [...] poder constituyente es la vonluntad política cuya fuerza o autoridad
es capaz de adoptar la concreta decisión de conjunto sobre modo y forma de la propria existencia
política, determinando así la existencia de la unidad política como um todo. (SCHMITT, 2006, p.
94).
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
305
b) com o poder de Reforma Constitucional (revisão), pois esse apenas
representa a alteração de alguns dispositivos constitucionais e é feito
dentro dos limites do próprio texto constitucional; (SCHMITT, 2006, p.
116-126)
c) com a violação das prescrições legais;
d) com suspensão das normas constitucionais em casos especiais (o que
sequer a faz perder a vigência),
e) com a suspensão das normas constitucionais com perda provisória da
vigência (estado de exceção); (SCHMITT, 2006, p. 115-116)
f) com o Conflito Constitucional (que irá versar sobre as possibilidades
de arguição e petição contra o desvio fático a respeito de um comando
constitucional) (SCHMITT, 2006, p. 126-134); e
g) com a ideia de Alta Traição (ataque à constituição no sentido apenas
positivo) (SCHMITT, 2006, p. 134).
Portanto, para Schmitt, uma vez que se decidiu por uma forma de Estado, no
qual se reconhece a liberdade burguesa – consubstanciada em liberdade pessoal,
propriedade privada, liberdade de contratação, liberdade de indústria e comércio,
entre outras – o Poder Constituinte somente mudaria se essa decisão mudasse
(SCHMITT, 2006, p. 137). A decisão fundamental, na história constitucional ocidental
– como já citado alhures – corresponde atualmente à decisão pelo Estado Liberal de
Direito.
A decisão, portanto, é parte do próprio conceito de Estado de Direito, o que
implica dizer que este é apenas uma parte de toda a Constituição Moderna (tomada
em um sentido total) (SCHMITT, 2006, p. 137). E é pela própria ideia decisionista
que o conceito tradicional pelo Estado de Direito (todo Estado que respeite sem
condições o Direito objetivo e vigente e os direitos subjetivos que existem) se
mostraria equivocada (SCHMITT, 2006, p. 141), pois sua formulação colocaria aquilo
que é decidido ordinariamente acima daquilo que se decidiu fundamentalmente
(existência política e segurança do Estado) (SCHMITT, 2006, p. 141).
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
306
É somente com essas pontuações que o conceito de lei, dentro do Estado
Burguês de Direito, pode ser entendido. Afinal, considerar apenas o legislador ou
uma norma hipotética como o elemento pelo qual a lei (objeto supremo do Estado do
Direito) nasce, torna-se válida e passa a comandar o Estado, é insuficiente. Aliás, se
assim fosse, o Estado Soviético e o Estado Monárquico, diz Schmitt, seriam
exemplos claros de Estado de Direito (SCHMITT, 2006, p. 149). Fala-se, pois, em
Império da Lei (SCHMITT, 2006, p. 150) – pela qual o próprio Legislador estaria
vinculado e limitado pela lei – como o primeiro elemento fundante do Estado de
Direito (SCHMITT, 2006, p. 153). Ao seu lado, porém, reside o conceito político e a
Constituição Material, pela qual a vontade de uma sociedade se converte em norma
através de um ato de soberania (SCHMITT, 2006, p. 155). Descaracterizar a face
política da lei teria sido a aposta do Estado de Direito Burguês, para o qual a decisão
soberana apareceria como um conceito marginal ao texto legal, sem ser, contudo,
devidamente explicitada17.
Em síntese, a constituição e a lei, aos olhos da teoria decisionista, não são
somente os instrumentos estatais para intervenção ou limitação da vida, mas um
meio pelo qual será executada a vontade soberana, ou seja, são formas jurídico-
normativas de parte da Constituição Material. Em outras palavras, a constituição, as
leis e o direito demarcam o limite e estabelecem o que formalmente se pode fazer
(SCHMITT, 2006, p. 160-161), mas junto a eles reside, silenciosamente, a decisão
que os permite existir.
CONCLUSÕES
Frente às pontuações anteriormente expostas e na linha de trabalho do
Grupo de Estudos, cabem duas conclusões ao presente trabalho: uma encontrada
na própria teoria schmittiana e outra formulada pelo próprio Grupo de Estudos.
17
El esfuerzo de um consecuente y cerrado Estado de Derecho va en el sentido de desplazar el
concepto político de Ley para colocar una “soberania de la Ley” em el lugar de una soberanía
existente concreta, es decir, y en realidad, dejar sin respuesta la cuestión de la soberanía, y por
determinar la vonluntad política que hace de la norma adecuada un mandato positivo vigente.
(SCHMITT, 2006, p. 155).
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
307
Em primeiro lugar, Schmitt encerra seus postulados sobre a ideia de
Constituição de uma forma bastante problemática: ali, onde a decisão política
fundamental deveria estar regendo a práxis político-jurídica haveria, atualmente18,
uma névoa encobridora.
Schmitt, para quem o mundo se organizaria através da tomada e da divisão
do espaço (em especial do solo), colaciona na sua obra Nomos da Terra que o
declínio do Jus Publicum Europaeum, somado aos modernos meios de guerra e à
aproximação do poder estatal com o mundo econômico, teria ocasionado uma nova
forma de divisão do mundo, sem, contudo, ser possível conhecer quais seriam as
decisões que estariam efetivamente regendo – portanto como Constituição Material
– tanto referida divisão como as regra do jogo político-jurídico mundial.
Especificamente, viu-se na época contemporânea a Europa empregar sem
pudor algum esforços para a utilização dos mares e do ar em uma rodada
imperialista de divisão do espaço mundial (realização do combate entre amigo-
inimigo). Essa empreitada, que ao longo de décadas produziu efeitos no mundo
todo, teria se encerrado com a implosão dos Estados-nação e com o advento das
duas grandes guerras, gerando uma divisão indescritível do espaço geopolítico
mundial e impossibilitando aos dirigentes políticos uma atuação condizente com
suas próprias diretrizes, ideais, programas de governo, princípios e decisões
fundamentais. Trata-se, em outras palavras, de um mundo político onde não seria
mais possível reconhecer o que é, de fato, a Constituição Material de um Estado.
Nesse contexto é que a problemática deixada por Schmitt se externaria: quem seria,
atualmente, o soberano?
A partir dessa indagação é que expõe a segunda conclusão, consoante
discussões encetadas durante os trabalhos do Grupo de Estudos: se um véu hoje
encobre o cenário político, não permitindo aos diversos atores sociais atuar segundo
uma decisão política fundamental (qualquer que seja), o mundo do direito – pelo
menos naquilo que forma o ordenamento jurídico-normativo – está destituído de um
18
Carl Schmitt escreve tendo em mira a bipolaridade do mundo no pós segunda guerra, mas uma
leitura de seus textos nos permite, sem sombra de dúvida, trazer muitas de suas assertivas sobre
o que está acontecendo, para o nosso tempo.
Fábio Roberto Kampmann et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
308
sentido fundante, eis que a norma vigeria se remeter a um sistema axiológico de
referência pré-definido e conhecido.
Em outras palavras, os marcos teóricos deixados por Schmitt e a
possibilidade de leitura do mundo que ele oferece permitem pensar que o direito –
em especial no campo prático de sua aplicação – é pensado e conduzido por
decisões que não chegam a ser conhecidas (tampouco influenciadas) pela grande
massa de destinatários das normas. O problema, nesse contexto, não seria tanto a
da falta de respeito com a democracia, a inanição ideológica dos partidos políticos, a
dificuldade de organização e articulação social, a inexistência de pensamento na
configuração da atual Sociedade de Massa ou qualquer outro dentre os inúmeros
motivos sobre os quais diariamente se disserta na literatura jurídica – para estes
assuntos existem sempre mãos dispostas a escrever, uma gama de editoras
dispostas a publicar e, sobretudo, um grande contingente disposto a ler. A questão a
que se chega quando se pretende ler o mundo atual a partir da Teoria da
Constituição pensada Schmitt é muito mais profunda, e permite até mesmo colocar
em xeque vários dentre aqueles que há muito tentam dizer o direito. Trata-se, enfim,
de reconhecer: a guarda da constituição e a tentativa de concretização de suas
normas são hoje trabalhos que se realizam sem se saber o porquê.
Essas conclusões – que não são nem um pouco otimistas – devem ser
vistas não como convites ao menosprezo do direito e da academia jurídica, mas
como pontos sobre os quais os olhos dos juristas devem ao menos passar, isto
porque, malgrado os usos que fizeram da teoria schmittiana, os propósitos de sua
escrita e o tom totalitário de suas assertivas, ela nos permite perceber que no limiar
século XXI o direito que se estuda e que diariamente se aplica é algo muito diferente
daquilo que materialmente ele é.
REFERÊNCIAS
ALEMANHA. Weimar Constitution. Disponível em: <http://www.zum.de/psm/weimar/weimar_
vve.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.
SCHMITT, Carl. El Nomos de La Tierra en el Derecho de Gentes del Jus Publicum Europaeum.
Madrid, España: Centro de Estudios Constitucionales, 1979.
SCHMITT, Carl. I Tre Tipi di Pensiero Giuridico. Itália.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político / Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
A teoria da constituição na obra de Carl Schmitt
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
309
SCHMITT, Carl. La Defensa de la Constitucion. Prólogo de Pedro de Veja Colección de Ciencias
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SCHMITT, Carl. Legality and Legitimacy. Translated and Edited by Jeffrey Seitezer with na
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SCHMITT, Carl. Terra e Mare. Traduzione di Giovanni Gurisatti, con um saggio di Franco Volpi. Terza
Edizione. Milano: Adelphi Edizione S. P. A., 2006.
SCHMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
SCHMITT, Carl. Teoría de La Constitución. Presentación de Francisco Ayala. Primera edición em
“Alianza Universidad Textos” 1982. Cuarta reimpresión em “Alianza Universidad Textos”. Madrid.
España. 2003.
HOBBES, Thomas. O Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. São Paulo:
Martin Claret, 2003.
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
310
JOINVILLE – SANTA CATARINA
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E PÓS-POSITIVISMO:
NOTAS SOBRE A METÓDICA ESTRUTURANTE E SOBRE
A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO
CONSTITUTIONAL HERMENEUTICS AND POST-POSITIVISM: NOTES ON THE STRUCTURING METHODIST AND WEIGHTING TECHNIQUE
João Fábio Silva da Fontoura1
Diego dos Santos Lima2
Alice Cardozo da Silva3
Antônio Carvalho Martins Filho4
Jayson Cícero de Souza5
Rosângela Victório Eugenio6
Resumo
O objetivo do presente trabalho consiste em definir os elementos caracterizadores do pós-positivismo, e, a partir disso, expor e discutir as propostas de Friedrich Müller e Robert Alexy acerca do método jurídico. As proposições desses autores no plano da teoria do direito determinarão a pertinência de suas proposições sobre o método no âmbito do pós-positivismo. Neste ponto, a posição de Müller parece mais satisfatória a uma efetiva superação do positivismo do que a posição de Alexy.
Palavras-chave: Positivismo Jurídico, Pós-positivismo, Metódica Jurídica, Friedrich Müller, Robert Alexy.
1 Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional –
ABDCONST, Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina,
professor de Direito Constitucional da Faculdade Cenecista de Joinville – FCJ. 2 Acadêmico do 4º ano da Faculdade Cenecista de Joinville, monitor do grupo de estudos 2009 da
ABDCONST-FCJ. 3 Acadêmica do 4º ano da Faculdade Cenecista de Joinville.
4 Acadêmico do 5º ano da Faculdade Cenecista de Joinville.
5 Acadêmico do 5º ano da Faculdade Cenecista de Joinville.
6 Acadêmica do 4º ano da Faculdade Cenecista de Joinville.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
311
Abstract
The purpose of this study is to define the elements that characterize the post-positivism, and thus describe and discuss the views of Friedrich Müller and Robert Alexy on the matter of the legal method. The propositions of these authors in terms of theory of law will determine the relevance of their statements about the method in the context of post-positivism. In this regard, the position of Müller seems more satisfactory to effective overcoming of legal positivism than the position of Alexy.
Keywords: Legal Positivism, Post-positivism, Legal Method, Friedrich Müller, Robert Alexy.
Sumário: Introdução. 1. Positivismo jurídico e pós-positivismo. 1.1. Gênese do Positivismo
Jurídico. 1.2. O Conceito de Positivismo Jurídico. 1.2.1. Proposta de definição
positivismo jurídico. 1.3. Pós-positivismo: Sentido e Limites. 2. A proposta de
Friedrich Müller. 2.1. Aspectos de Teoria da Norma. 2.1.1. Norma e texto de norma.
2.1.2. Estrutura da norma e normatividade. 2.2. Aspectos da Metódica Estruturante.
2.2.1. Concretização e interpretação. 2.2.2. Processo de concretização e regras de
preferência. 3. A proposta de Robert Alexy. 3.1. Contextualização do Pensamento de
Alexy. 3.2. Teoria da Norma Jurídica na Teoria dos Direitos Fundamentais. 3.2.1.
Normas e disposições . 3.2.2. Regras e princípios e a técnica da ponderação. 3.2.3.
Ábaco representativo da relação espacial entre regra e princípio. 4. Considerações
finais. Referências Bibliográgicas.
INTRODUÇÃO
Tornou-se lugar comum no constitucionalismo brasileiro a assunção de um
posicionamento em termos de método — o que é tratado na literatura pátria
majoritariamente sob a rubrica de hermenêutica7 — que se intitula pós-positivista. De
uma forma geral, se pode dizer que os posicionamentos dos pós-positivistas do
Brasil, por fragmentada e indefinida que tal corrente se mostre, levam em conta para
suas conclusões uma entre duas perspectivas oriundas do direito alemão: Ora a de
Robert Alexy, ora a de Friedrich Müller8.
Contudo, parece-nos que, à luz da metódica estruturante de Müller, o termo
pós-positivismo não possa ser aplicado à perspectiva hermenêutica de Robert Alexy,
por razões adjacentes ao conceito de norma jurídica exposto por este autor,
7 Filiamo-nos à terminologia de Müller, que engloba a hermenêutica na sua metódica jurídica, que é
bem mais ampla, como se verá na seção 3 deste artigo. 8 Embora, como assinala Dimitri Dimoulis, o pós-positivismo brasileiro não se identifique com o pós-
positivismo germânico, redutível ao pensamento de Müller. (Vide DIMOULIS, 2006).
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
312
nomeadamente em sua monumental Teoria dos Direitos Fundamentais. De toda
sorte, não é totalmente correto dizer que Alexy se intitula como “pós-positivista”,
postura que, aliás, é mais comum entre os autores. Não se encontra em sua obra
uma preocupação capital em definir o que seja o positivismo jurídico, e muito menos
em contrapor sistematicamente as conclusões desta corrente. Deste prisma, o termo
pós-positivismo é vinculado mais propriamente à obra de Friedrich Müller, para
quem, ao contrário, a negação do positivismo jurídico representa uma questão
fulcral9.
O objetivo do presente artigo consiste na identificação das coordenadas
caracterizadoras do positivismo jurídico, bem como das ideias centrais da teoria da
norma de Alexy e Müller, para propor que a obra de Alexy não pode ser considerada
como pós-positivista. Como o pós-positivismo brasileiro é em sua maioria de matriz
alexyana, o artigo demonstrará que a sua discussão hermenêutica precisa tomar, no
mínimo, uma revisão terminológica. Na realidade, questionam-se aqui as condições
da própria existência de um autêntico pós-positivismo no quadro dos pressupostos
teóricos que informam a maior parte dos autores envolvidos no debate brasileiro.
O artigo parte de uma seção dedicada ao positivismo jurídico e ao pós-
positivismo, chegando-se a uma proposta de definição destes termos. A terceira
seção concentra as questões relativas à Teoria Estruturante do Direito. A quarta
seção concentra-se no pensamento de Robert Alexy. Na quinta seção, por fim,
avaliam-se comparativamente as perspectivas de Alexy e de Müller.
1 POSITIVISMO JURÍDICO E PÓS-POSITIVISMO
1.1 Gênese do Positivismo Jurídico
O positivismo, como é cediço, surgiu também como superação do
jusnaturalismo, embora atribuir ao positivismo a condição de mera antítese do direito
9 Uma abordagem que se assume pós-positivista e se embasa declaradamente em Alexy pode ser
encontrada em Bustamante (2005). Sobre o pós-positivismo na abordagem de Müller, vide as
seções seguintes do presente artigo.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
313
natural não seja adequado. Nas palavras de Dimitri Dimoulis “o positivismo jurídico
se relaciona causalmente com o processo histórico de derrota do direito natural” e,
igualmente, com “a substituição das normas de origem religiosa pelas leis estatais
nas sociedades europeias da Idade Moderna (...)” (DIMOULIS, 2006, p. 68).
Para uma correta compreensão de seu sentido, o positivismo deve ser
tratado dentro de sua historicidade específica. A transição de uma normatividade
jusnaturalista para o direito positivo guarda relações com a recriação das funções do
direito, de seus modos de operação e, muito especialmente, de sua base de
legitimidade e validade. Justamente por esta razão, uma digressão histórica se
mostra salutar.
Como assinala Fernando José Bronze, o positivismo jurídico foi uma
verdadeira inovação no que tange à concepção de direito. O direito até seu advento
“identificava antes uma normatividade muito complexa, que provinha de vários
fatores que os próprios juristas iam constituindo à medida que a realizavam.”
(BRONZE, 2002, p. 283). Muito diferentemente, o Positivismo representou a
identificação (ou redução) do direito com as leis previamente postas por uma
autoridade, radicada no soberano.
Assim, na era que Bronze alcunha de “pré-positivista”, o direito era
construído na medida em que surgia a necessidade de solução para os problemas
concretos. Pode-se dizer, portanto, que o direito pré-positivista era estritamente
ligado à filosófica prática. A filosofia prática constituía o próprio direito, ou melhor,
revelava o próprio direito na medida em que ele se realizava nas relações humanas.
Os juristas daquele período histórico compreendiam-se como “hermeneutas de uma
ordem pré-suposta e nunca como criadores dela” (BRONZE, 2002, p. 284). O
positivismo, em oposição, passou a considerar o direito como objeto de
conhecimento do pensamento jurídico. A lei era, portanto, aquela posta pelo
soberano e somente aquela.
Em sua sistematização da época pré-positivista, Bronze distingue três fases:
a fase clássica romana, a fase medieval e a fase do pensamento jurídico da era
moderna. No período clássico romano, nos termos do que foi dito acima, o direito
advinha do tratamento das situações concretas. Nesta fase as fontes legais eram
escassas, porque se entendia que não havia necessidade delas, uma vez que os
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
314
juristas cumpriam a sua tarefa mediante a solução de casos análogos, comparando-
os uns aos outros e utilizando-se dos precedentes. Os juristas, portanto, entendiam
que não constituíam o direito, mas apenas o revelavam.
No período medieval, o direito continuava sendo extraído da iuris-prudentia,
mas passou-se a considerar a hermenêutica com base no método escolástico, o
qual, conforme assevera Bronze, “é no fundo uma dialética problemática”. Esse
método consistia na apresentação de uma decisão provisória para um fato. Em
seguida discutiam-se os pontos a favor e os contra, e, através da dialética chegava-
se a uma conclusão definitiva10.
Por fim, o pensamento moderno consagrou a terceira fase da época pré-
positivista. A este ponto, passou-se a compreender o direito como uma “construção
dedutiva feita a partir de uma racionalidade axiomaticamente afirmada.” (BRONZE,
2002, p. 287). Esse pensamento rompeu com a anterior concentração jurisprudencial
por três razões fundamentais: (i) a leitura antropocêntrica, visto que o “homem
moderno libertou-se da transcendência teológica medieval e passou a pretender
constituir uma nova ordem a partir de si mesmo” (BRONZE, 2002, p. 287); (ii) o
aparecimento da racionalidade sistemática de Descartes, vinculada à filosofia
prática; e, (iii) o aproveitamento dessa racionalidade dedutiva para afirmar a ciência
moderna, pois “enquanto o homem pré-moderno lia a verdade na ordem
pressuposta, para o homem moderno a verdade estava na própria estrutura racional
do sujeito pensante.” (BRONZE, 2002, p. 288).
O autor conclui que “até a época moderna (inclusive) o direito se não
distingue da filosofia prática.” E é justamente neste ponto que o juspositivismo surge,
rompendo com esta visão das coisas e afirmando que a constituição do direito está
sujeita à vontade política do poder legislativo, ou seja, à vontade humana.
Essas novas construções do positivismo se deram em razão de alguns
fatores determinantes. O primeiro deles diz respeito ao fator filosófico-cultural geral,
sobretudo ao pensamento iluminista. Enquanto na época pré-moderna o homem
encontrava seu sentido fora de si (extraponência), na Idade Moderna o homem
10
Nota-se que nesta época utilizava-se o direito a partir dos textos, mas a estes textos não se
reduzia o direito. A solução do caso concreto, portanto, ainda se encontrava e se fundamentava
nos valores da filosofia prática.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
315
passou a compreender-se a partir de si mesmo. Ou seja, passou a existir uma nova
concepção de homem, livre e racional (BRONZE, 2002, p. 292)11.
O segundo fator determinante foi o fator cultural (assim denominado, embora
ligado à religião). O secularismo moderno passou a entender que o responsável
pelos valores do mundo era o próprio homem e não mais projeções da vontade ou
da razão divina. Apesar de afirmar que é o homem que constrói sua própria história,
o secularismo não deixou de ser exotérico, na medida em que não negava o “diálogo
do homem com a transcendência”. Todavia, esse estado de coisas reforçou o papel
da legislação, que era o único instrumento restante de que o homem dispunha para
regular a vida prática.
Tendo chegado a este ponto o pensamento jurídico, no quadro de um
“pensamento moderno-iluminista”12, o direito passou paulatinamente a ganhar a
forma paradigmática que nos foi legada no século XX, a forma de um direito
desvinculado da filosofia prática, e já imbuído da marca da criação humana pura
(tese social, como se verá a seguir), predominantemente positivado através de
textos legais. Já se tornam presentes, assim, alguns dos pressupostos histórico-
sociais que permitiram o surgimento do positivismo jurídico enquanto uma teoria de
explicação do fenômeno jurídico e uma metódica específica.
1.2 O Conceito de Positivismo Jurídico
No presente artigo o positivismo jurídico e o pós-positivismo serão
considerados especialmente em suas relações com a metódica jurídica. Cuida-se,
portanto, mais do chamado “positivismo da interpretação” ou “positivismo do
tratamento da norma”, do que do “positivismo da vigência do direito”. Contudo,
apesar de tal distinção conceitual, uma perspectiva metódica estará sempre ligada
aos pressupostos que lhe embasam em termos de teoria da norma13.
11
O autor destaca que o pensamento moderno tende a hipertrofiar o que vai afirmando, desse modo
a autonomia dará lugar ao individualismo, a secularização ao secularismo, etc.. 12
Bronze, (2002, p. 291), utilizando este corte histórico como a referência principal entre os
elementos genéticos do positivismo jurídico. 13
Adota-se, portanto, a distinção entre o positivismo da validade do direito – no qual os autores
“dedicam sua energia intelectual” em definir o que seja direito e traçar os parâmetros de sua
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
316
A exposição da gênese do positivismo jurídico, a partir do pensamento
clássico, desembocou no direito pré-posto e im-posto do pensamento moderno-
iluminista14. E a conclusão a que se pode chegar é a de que sob esta perspectiva do
direito abrigaram-se tendências variadas, que tornaram tanto mais complexo o
conceito de positivismo jurídico, e tanto maior seu arcabouço de ideias e postulados.
Neste norte, diante do escorço histórico que foi levado a efeito alhures, o positivismo
jurídico de que esta exposição mais se servirá será aquele situado entre os séculos
XIX e XX, nos quais já se possa referir um positivismo legalista. Do ponto de vista
jurídico-sociológico, o direito que segue à época moderno-iluminista foi impulsionado
pela necessidade de segurança e calculabilidade da sociedade burguesa em
desenvolvimento (KAUFMANN, 2002, p. 114-115). Do ponto de vista jurídico-
filosófico, descendeu da prevalência do direito posto pela autoridade soberana, ou,
com Bobbio, de um “impulso histórico para a legislação” (BOBBIO, 1995, p. 119).
Com arrimo em Castanheira Neves, pode-se dizer que o positivismo legalista
que chegou aos séculos XIX e XX é caracterizado, do ponto de vista metodológico:
a) por entender o direito como “entidade racional subsistente em si”, como sistema
estruturado considerável em termos absolutos e difusor de sua própria existência
concreta; b) pela compreensão do sistema jurídico como “sistema normativo
unitariamente consistente (sem contradições), pleno (sem lacunas) e fechado
(autossuficiente)”; c) pela concepção do concreto ato da decisão jurídico-normativa
como resultante da análise do texto da norma complementada por uma operação
lógico-silogística com os fatos; d) pela tomada de quaisquer valorações normativas
validade – e o positivismo no tratamento da norma – no qual são tratados propriamente dos meios
e formas de interpretação do direito e de sua realização. O que interessa especificamente ao
estudo é a segunda espécie mencionada, não se excluindo desde logo a possibilidade de invasão
de um campo pelo outro, como se verá adiante — a perspectiva do positivismo da vigência do
direito pode motivar, através principalmente da teoria da norma que lhe é própria, conclusões
relevantes do ponto de vista do tratamento da norma (p. ex., uma teoria da norma que a imagine
como texto legal dificilmente abrirá caminhos para uma visão que considere a realidade co-
constitutiva da prescrição jurídica). Cf. Müller (2008, p. 115-116). Cf., também, Dimoulis (2006, p.
209). O autor refere à distinção feita por F. Müller, embora não no trabalho que aqui indicamos, e
sim no livro Juristiche Methodik (edição de 1997, p. 74). Igualmente condicionando os destinos do
método jurídico à concepção de norma que se adote, vide Alexy (2001, p. 52). 14
Bronze (2002, p. 292): “O positivismo assentava na ideia geral de que o direito era posto (no duplo
sentido de im-posto e pré-posto) pelo poder legislativo. Para os juristas – tal como, de resto, para
os cidadãos – o direito era um dado pré-suposto, de modo que nada mais lhes restava do que
submeterem-se a ele.”
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
317
ou intenções sócio-políticas acopladas ao Direito como inaplicáveis à análise da
correção de uma decisão jurídica, que deveria ser feita apenas sobre o prisma de
uma “coerência sistemática num quadro dogmático-conceitual”, ou seja, por critérios
essencialmente formais (CASTANHEIRA NEVES, 1995, p. 307-308)15.
Os elementos até aqui arrolados já permitem uma caracterização dos
postulados centrais do positivismo jurídico. Contudo, antes de partir à definição aqui
proposta, cumpre referir a exposição de Dimitri Dimoulis acerca do positivismo
jurídico, emblemática no pensamento brasileiro. Em primeiro lugar, porque o próprio
autor declara-se um positivista, e é interessante que este ponto de vista seja aqui
levado em conta; em segundo lugar, porque o autor se fundamenta partir da
bibliografia positivista mais moderna, abordando especificamente o positivismo
jurídico atualmente defendido16. Na obra aqui consultada, em uma definição
preliminar do autor, o positivismo jurídico se classifica como o reconhecimento de
que o único objeto possível da ciência jurídica sejam as normas postas por um ente
dotado de autoridade legítima e que, por isso, possuem validade17. Entretanto,
Dimoulis estabelecerá a distinção entre positivismo jurídico lato sensu (oposto ao
jusnaturalismo) e positivismo jurídico stricto sensu (oposto ao moralismo jurídico); e,
neste último, distinguirá o positivismo jurídico inclusivo (que aceita a influência moral
na existência e no conteúdo do direito), o positivismo jurídico exclusivo (que defende
que o direito resulta exclusivamente de fatos sociais), e as “abordagens específicas”
no quadro do positivismo jurídico stricto sensu — a jurisprudência dos interesses
(que aqui poderia ser colocada ao lado de todas as escolas do século XIX e XX), o
realismo jurídico, a teoria autopoíética de Luhmann e, ainda, o pragmatismo jurídico-
político (corrente na qual se insere o autor).
O positivismo jurídico lato sensu encerra a oposição entre juspositivismo e
jusnaturalismo, porquanto opera a partir da “tese social”, ou “tese dos fatos sociais”.
15
Todo o parágrafo, incluindo os trechos entre aspas, é devido às ponderações do autor. 16
No qual se encontrarão, todavia, as características essenciais que servirão à proposta que
seguirá, cf. seção 2.2.1, infra. Na verdade, a utilização da obra de Dimoulis cumprirá o objetivo de
demonstrar que as teses centrais do positivismo jurídico permaneceram relativamente inalteradas
e que, a partir delas, o pós-positivismo encontra suas verdadeiras (e ainda atuais) motivações. 17
Dimoulis (2006, p. 68): “Isso indica que ser positivista no âmbito jurídico significa escolher como
único objeto de estudo o direito que é posto por uma autoridade e, em virtude disso, possui
validade.”
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
318
Alojada no plano das fontes do direito, esta proposta considera fundamentalmente o
direito como uma criação humana — não necessariamente legislativa, no sentido do
direito estatal —, negando a possibilidade do dualismo entre direito natural e direito
positivo (o jusnaturalismo, diz Dimoulis, é negado mesmo “enquanto teoria do
direito”). A expressão “social”, que ilustra a tese principal da corrente, decorre do fato
de que a autoridade necessária à criação de normas (que, na modernidade, tem sido
atribuída majoritariamente ao Estado) não se confunde com o complexo de fatores
que autorizam a atribuição desta autoridade a algum ente (DIMOULIS, 2006, p. 132).
18. Estes fatores podem variar de um contexto a outro, e outorgar às mais diversas
instâncias as autoridades criativas do direito, mas serão sempre resultado de
aspectos sociais da comunidade em questão. Neste sentido, o pluralismo jurídico,
que combate o monismo estatal, mas não o monismo social, pode ser caracterizado
como parte da abordagem positivista (lato sensu) (DIMOULIS, 2006, p. 78-85), na
medida em que vê também em fatos sociais (e não em aspectos da natureza, da
razão ou da graça divina) os fundamentos da autoridade a quem incumbe o
regramento das condutas humanas19.
Especificando sua análise, Dimoulis explica que o positivismo jurídico stricto
sensu, embora pertencendo àquele positivismo genérico que se opõe ao
jusnaturalismo, irá além da negação do jusnaturalismo e da postulação pelas fontes
sociais do direito (embora as mantenha). Cuida-se, mais que isso, de uma postura
teórica que admite a separação entre (i) o direito e a moral e (ii) o direito e a política
— proposições que, esclarece o autor, são conhecidas como “teses da separação”
18
Entre os fatores sociais que a doutrina positivista reconhece como possíveis fontes do direito
posto, encontram-se (i) a vontade do legislador; (ii) a vontade do aplicador; (iii) a eficácia social
das normas; (iv) o reconhecimento pelas autoridades e/ou para os cidadãos; e (v) a existência de
uma norma suprema e pressuposta que indica qual conjunto de normas possui validade jurídica. A
questão será objeto de nossa crítica na definição das tarefas do pós-positivismo. 19
Cf. Wolkmer, (2003, p. 216). Segundo nosso professor, o mais rigoroso e expressivo pensador da
corrente no Brasil, o pluralismo jurídico se define como “visão antidogmática e interdisciplinar que
advoga a supremacia de fundamentos ético-sociológicos sobre critérios tecnoformais. Assim,
minimiza-se ou exclui-se da legislação formal do Estado e prioriza-se a produção normativa
multiforme de conteúdo concreto gerada por instâncias, corpos ou movimentos organizados semi-
autônomos que compõem a vida social” (p. 183). Adiante, esclarecendo as dificuldades de uma
definição do termo, diante da variedade de abordagens, o professor Wolkmer averba: “Isso não
invalida a consensualidade comum entre todos de que, de um lado, em qualquer sociedade, antiga
ou moderna, ocorrem múltiplas formas de juridicidade conflitantes ou consensuais, formais ou
informais; de outro, de que o Direito não se identifica e não resulta exclusivamente do Estado”.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
319
(DIMOULIS, 2006, p. 99 e ss.; 105 e ss.). A separação entre o direito e a moral
operará em dois planos distintos, pois não será possível que esta última seja levada
em conta nem no plano teórico e metódico (“estudo e compreensão”) e nem no
plano da validade do direito. A moral não deverá ser necessariamente vinculada aos
elementos criativos do sistema jurídico — porque as prescrições, para serem
válidas, não têm de ser justas ou corretas, rectius avaliadas sob um ponto de vista
moral, posto que o direito seja “historicamente contingente”. De outro lado, o jurista
deve proceder, na ciência e na práxis, sem tentar impor ao direito positivo as suas
concepções morais, que serão sempre de natureza pessoal (o trabalho jurídico
deverá ser realizado com impessoalidade)20. A separação entre direito e política,
cumpre ainda referir, operará em nível conceitual, e não genético. Para o autor em
comento, o direito é resultado da atividade política (p. ex., vazada no parlamento),
mas distingue-se dela a partir daí, de sorte que “o conceito de direito não inclui em
sua definição referências à política” (DIMOULIS, 2006, p. 107). Disto decorre, em
primeiro lugar — dentro “modelo dos dois planos”, em que o espaço próprio da
política jurídica é outorgado à instância legislativa (ELLSCHIED, 2002, p. 214) —,
que a valoração política do operador jurídico, se é que pode existir, não pode jamais
ser diferente da valoração já realizada pelo legislador. Em segundo lugar, decorre
que o intérprete deva “entender e implementar a vontade dos criadores de normas,
distanciando-se de suas convicções morais e políticas” (DIMOULIS, 2006, p. 107-
20
Dimoulis (2006, p. 99-105). O autor relata a tese ontológica e a tese metodológica (p. 102),
perguntando a primeira “o que é direito”, e a segunda “como deve ser estudado o direito”. Deste
ponto de vista, quando o autor utiliza os termos “o estudo e a compreensão do direito” (p. 100),
sentimo-nos autorizados a pensar que se estava querendo referir a teoria e a metódica. Isto
porque a pergunta da tese ontológica, segundo o professor Dimoulis, é respondida
compreendendo o direito como uma realidade historicamente contingente (de acordo, inclusive,
com a tese social do positivismo jurídico lato sensu); e a pergunta da tese metodológica, por sua
vez, é respondida com a impessoalidade do “intérprete (que seguramente não é legislador)” e do
“estudioso do direito (que tampouco pode legislar)”. Após a explicação da tese metodológica, o
autor refere (p. 102, nota n. 120) que a impessoalidade do intérprete remete à questão relativa ao
tratamento científico do direito, que depende da possibilidade de demonstrar o caráter científico do
saber jurídico. O autor diz estar “convencido” da impossibilidade de levar-se tal demonstração a
efeito, e remete o assunto a uma obra futura. Julgamos importante esclarecer, a partir desta
afirmação, que na concepção do trabalho jurídico assente no pós-positivismo de Müller a
cientificidade do saber jurídico é irrenunciável. Esta cientificidade pode conviver com a tensão
entre direito e intérprete na medida em que a concepção de norma como ordem estruturada de
direito positivo e realidade assim o permite, já que toda esta tensão é documentada, é
fundamentada e publicada, de forma a tornar discutíveis os resultados — coisa que diz a
objetividade realizável pela ciência jurídica, identificada com a objetvidade dos seus métodos de
trabalho. Cf. Müller, (2004, p. 65).
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
320
108). Os critérios a que o jurista deve se utilizar para reconhecer a norma como
jurídica (na linguagem da corrente, positiva) devem ser apenas os relativos à
competência, ao procedimento, aos limites temporais e espaciais de validade e,
genericamente, às regras que permitem verificar a compatibilidade sistemática das
prescrições (como a especificidade) (DIMOULIS, 2006, p. 114)21, até o limite de um
eventual juízo de constitucionalidade.
Dimoulis refere ainda a diferença, no âmbito do positivismo stricto sensu,
entre o positivismo jurídico inclusivo e o positivismo jurídico exclusivo. Apesar de as
teses da separação funcionarem em termos gerais, uma corrente entre os autores
positivistas aceita que a moral possa, em determinadas circunstâncias, exercer
influência sobre a validade e a interpretação do direito. A esta vertente chama-se
positivismo jurídico inclusivo, por admitir a possibilidade de que um dado sistema
jurídico possa incluir a moral entre seus critérios de juridicidade (DIMOULIS, 2006, p.
137). Ao lado deste encontra-se o positivismo jurídico exclusivo, que refuta qualquer
possibilidade de influência da moral sobre o direito — aceita rigidamente a tese da
separação entre direito e moral (DIMOULIS, 2006, p. 135).
No plano da interpretação do direito, por fim, Dimoulis esclarece que o
positivismo se caracteriza pela ausência de uma teoria da interpretação unitária,
para além do consenso de que a autoridade decisória decide seus métodos de
trabalho, critério que o autor considera demasiadamente abrangente — e situação
esta que, tendo-se em vista que o positivismo é a principal corrente do direito atual,
reflete o estado fragmentário e irrefletido (a própria falta de consenso assim o
demonstra) em que se encontra a metódica jurídica de uma forma geral. Diante
disso, o autor defende seu “pragmatismo jurídico-político”, e abertamente propõe, na
esteira do já mencionado pensamento de Savigny, que o objetivo da interpretação é
“constatar a vontade do autor da norma, tal como esta foi fixada em dispositivos
jurídicos”. Reflete-se aqui, uma vez mais, o caráter de imposição e preposição que
marca a concepção positivista da norma jurídica.
21
O autor, como o positivismo em geral, persiste na confusão entre validade e normatividade, pois
está a avaliar os critérios de identificação do texto da norma, e não da norma. Adiante, Dimoulis
(2006, p. 131) atesta a “absoluta identidade entre o conceito de direito e o direito efetivamente
posto pelas autoridades competentes”, ao tempo em que perde toda a dimensão problemática da
normatividade.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
321
O autor refere, ainda antes de sua exposição da interpretação, algumas
abordagens específicas no plano do positivismo jurídico stricto sensu, as quais deixa
claro figurarem a título de exemplo, não portando a sua exposição qualquer
pretensão de exaustividade. Assim como se fará aqui, a partir das teses que foram
consideradas características do positivismo jurídico — no plano do positivismo
jurídico lato sensu, a tese de que o direito é posto por ato humano (social thesis); no
plano do positivismo jurídico stricto sensu, a prevalência das teses da separação
(com as diferenças no plano do positivismo jurídico inclusivo e do positivismo jurídico
exclusivo) — são apresentadas algumas propostas que podem ser classificadas
como integrantes do positivismo jurídico stricto sensu, uma vez que absorvem as
duas teses da separação (DIMOULIS, 2006, p. 132-165)22.
1.2.1 Proposta de definição positivismo jurídico
Do que foi dito até aqui resulta que o positivismo jurídico tem como
postulados básicos23:
a) No plano da validade do direito, o positivismo pergunta pela
positividade do direito, pois crê que somente o direito positivo é
direito. O direito positivo, por sua vez, encerra no conjunto de
normas dadas por uma autoridade constituída (pelos mais diversos
fatores sociais), de sorte que não possa haver direito que não seja
uma criação humana. As normas jurídicas constituintes do sistema
22
Nesta exposição, inclusive, está o pragmatismo jurídico-político defendido pelo próprio autor.
Deixamos de mencioná-la, entretanto, porque a crítica específica à sua obra não faz parte dos
objetivos do estudo; e, de outro lado, porque ele mesmo considera sua posição como sendo
integrante do positivismo jurídico (na modalidade stricto sensu). 23
Além da citada obra do professor Dimoulis (2006), que sintetiza rigorosamente as posições anglo-
americanas do século XX, as características aqui propostas podem ser encontradas, com algumas
variações, em: Castanheira Neves (1995, p. 307-308); Ellschied, (2002 p. 215); Hespanha (2005,
p. 375); Wieacker (1993, p. 499 e ss.); Bobbio (1995, p. 233-238); Goyard-Fabre (2002, p. 76);
Bronze (2002, p. 278 e ss.); Maynez (2002, p. 49 e ss.); Kelsen (1984, p. 14-17, 64 e 217); Höffe
(2001, p. 98 e ss.); Kaufmann (2004, p. 45); Kaufmann (2002, p. 123 e ss.); Hart (1996, p. 307 e
ss.); Barzotto (2007, p. 20 e ss.); Batiffol (1974, p. 11 e ss.); ATIENZA (2001, p. 101 e ss.); Coing
(2002, p. 109-110); Calsamiglia (1998, p. 209-210); Müller (2008, p. 16 e ss.); e, Müller (1996, p.
100-108).
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
322
são juízos hipotéticos que manifestam a vontade da autoridade que
as cria;
b) O positivismo estriba-se na separação entre ser e dever ser. Assim,
a moral e a política, bem como quaisquer outros elementos da
realidade, não devem orientar o reconhecimento ou a interpretação
do direito, salvo quando o próprio sistema jurídico adote
expressamente critérios desta natureza — que, de resto, os
realocam para o domínio do direito positivo, e não mais da
moralidade ou da política;
c) No plano da interpretação — e em decorrência de “a” e “b” —, a
norma deve ser compreendida e aplicada ao caso, em um processo
lógico-subsuntivo, deduzindo-se a solução do sistema jurídico
completo e coerente através da interpretação (mormente de textos).
As valorações do intérprete não devem influenciar a interpretação,
uma vez que tal atividade valorativa é realizada no seio da
autoridade criadora da norma. Disto denota-se uma exigência de
objetividade da interpretação.
1.3 Pós-positivismo: Sentido e Limites
Como dito, as posições do positivismo elencadas na seção anterior não
foram compreendidas por larga medida dos estudiosos do assunto no Brasil, que
acabaram identificando no positivismo jurídico características que a análise
empreendida demonstrou não lhe serem pertencentes. De outro lado, uma parcela
igualmente grande dos juristas dedicados à matéria — muitos deles pertencentes a
dissidências dentro da própria corrente positivista, como no caso do realismo jurídico
— cuidou de problematizar estes postulados, mas não logrou romper com o
“background teórico” que os sustenta (nomeadamente, a teoria da norma jurídica
que lhe subjaz).
Há respostas variadas para os problemas levantados nas teses centrais do
positivismo jurídico, mas as perguntas não parecem mudar. O eixo das
investigações continua partindo da positividade do direito (nos sistemas jurídicos de
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
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323
matriz romano-germânica, a positividade dos textos legais), tendo sido ignorada a
questão da normatividade própria do direito — que só pode ser percebida em uma
dimensão problemática do ser e do dever ser — a partir de uma separação entre o
direito e a realidade. Este estado de coisas encontra razão na teoria da norma
jurídica adotada pelo positivismo, ainda não substituída global e adequadamente.
De acordo com o que já se expôs, embora interesse mais ao estudo o já
referido “positivismo do tratamento da norma”, a crítica deverá se dirigir ao plano da
teoria da norma, captando a partir dela os reflexos para a metódica. A referida crítica
será por agora limitada a uma exposição de pontos centrais da tarefa do pós-
positivismo, tendo sua explicação e justificação aprofundadas na próxima seção,
onde será tratada a Teoria Estruturante do Direito de Friedrich Müller. Cuida-se
mais, neste momento, de pautar corretamente a discussão do que de efetivamente
levá-la a efeito.
Neste sentido, a divisão entre “positivismo da validade” e “positivismo da
interpretação” não deverá ocultar, recorde-se, o fato de que o positivismo da
interpretação, em sua abordagem “clássica” — leia-se, nos termos de uma
interpretação totalmente objetiva e científica do direito —, (quase) não é mais uma
postura unitariamente defendida (MÜLLER, 2008, p. 119), sendo atualmente
representada apenas por meio de reflexos da concepção de norma jurídica do
positivismo. De resto, recorde-se ainda que o positivismo jurídico é uma corrente
menos consensual (e refletida) no plano da interpretação do direito do que no plano
da teoria da norma jurídica (DIMOULIS, 2006, p. 218), onde ocupa, aliás, o centro do
debate no direito ocidental.
Como ensina Müller, a revisão do positivismo deverá estar ancorada numa
teoria do direito, e não em uma teoria sobre o direito. Não importará, prossegue o
autor, qual seja a inspiração desta teoria sobre o direito (sociológica, psicológica,
filosófica etc.). É mais produtiva para uma efetiva crítica ao positivismo uma teoria
que revise suas bases no que tange à norma jurídica. Assim como os postulados do
positivismo jurídico da interpretação decorrem diretamente da concepção de norma
jurídica que se enraizou entre as correntes positivistas, o pós-positivismo deverá
partir de sua revisão, desembocando, por consequência disso, em uma metódica
própria. A metódica pós-positivista, diz Müller, “circunscreve a peculiaridade
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
324
fundamental da estrutura normativa, diante de cujo pano de fundo devemos ver o
trabalho prático da metódica jurídica” (MÜLLER, 2004, p. 49).
Segundo Müller, no plano da teoria da norma, o positivismo, ao perguntar
pela positividade (descolada da realidade), acaba por perder a dimensão
estruturante do direito, de onde brota a sua normatividade. O preço a pagar por este
equívoco, além da contraposição entre a norma e realidade (i.é., entre ser e dever
ser), é a confusão da norma com o texto da norma. A concepção pós-positivista,
calcada na Teoria Estruturante do Direito, deverá reconhecer os nexos materiais que
unem direito e realidade, ao mesmo tempo em que deverá fornecer uma reflexão
sobre a práxis que possa torná-los fundamentáveis e discutíveis. Nesta direção, a
validade (positividade), que só pode pertencer ao texto da norma (dado de
conformidade aos padrões aceitos do Estado Democrático de Direito), será
diferenciada da normatividade, esta sim característica das normas jurídicas
(MÜLLER, 2008, p. 209 e ss.).
A concepção que se opõe ao positivismo, assim, deverá ser essencialmente
uma espécie de normativismo, que rejeita a separação entre ser e dever ser e
permite que o jurista apreenda o processo estruturado de formação da norma
jurídica diante de casos concretos (reais ou fictícios). A positividade do texto
continua sendo um imperativo do Estado de Direito24, devendo ser respeitada como
limite material da atividade jurídica não legiferante — e nisso o positivismo está
correto em insistir —, mas não bastará para a efetiva existência de uma norma
jurídica25.
Já no plano da realização prática do direito, consequentemente, o pós-
positivismo se pautará pela concretização das normas, e não por sua interpretação e
aplicação. O ideal de tecnicidade (isto é, a busca da neutralidade e da objetividade
24
“O Estado feudal mais antigo e ainda o Estado absolutista fundamentavam a sua legitimidade no
supramundano. O Estado Constitucional burguês funda-a na legalidade e com isso, por um lado,
na imanência, por outro, agora mais fortemente, na linguagem: em textos de normas (...)”.
(MÜLLER, 2000, p. 105). 25
Assim, além de Müller, em Luhmann (1983, p. 10 e 17). Para este autor, inclusive, esta positivação
textual a ser complementada (sem negar a função da positividade) seria a única capaz de dar
conta da complexidade da sociedade atual. Também na obra do professor de Heidelberg, a
“textificação”, embora fundamental, não basta, sendo que a legitimação do poder político não deve
ser transferida simplesmente aos textos, mas somente ao fato de o Estado atuar conforme estes
textos. Cf. Müller (1998, p. 103-104).
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
325
que se exige do titular da decisão jurídica) do positivismo não deve ser abandonado,
em prol do retorno a padrões decisórios que se podem dizer pré-modernos. Uma
superação do positivismo não deve renunciar à busca pela objetividade na aplicação
do direito, mas apenas promover a adequação desta busca às consequências da
natureza estruturante da norma jurídica e às condicionantes específicas que o
Estado Democrático de Direito impõe ao trabalho jurídico em todos os níveis (da
ciência jurídica, que é uma ciência normativa, à jurisprudência). Trata-se aqui, na
realidade, de “retomar o que foi reprimido pelo positivismo e elaborá-lo de forma
generalizável na dogmática, metódica e teoria” (MÜLLER, 2008, p. 119-120).
A metódica estruturante de Müller não é capaz — como não o é nenhuma
outra — de fornecer um catálogo de soluções prontas que sejam
“inquestionavelmente confiáveis” (MÜLLER, 2004, p. 21) (até porque isso seria uma
contradição, já que Müller compreende a normatividade como processo estruturado).
Contudo, pode tornar substancialmente mais coerente e defensável o trabalho dos
juristas. Como ela procede diretamente dos imperativos do Estado de Direito, visa à
exposição suficiente dos resultados do trabalho jurídico. Isto permite que se faça a
“vigilância política” (DIMOULIS, 2006, p. 204)26 — para que os textos de normas
possam ser criticados —, por um lado, e que se denuncie as decisões cuja
fundamentação seja materialmente discutível, de outro lado — a partir de sua
decomposição em momentos (suficientemente pequenos) de formação da norma, a
partir dos textos. O telos do pós-positivismo, assim, será a “controlabilidade” dos
processos decisórios, que, “dentro dos limites de rendimento efetivo da língua
natural”, só pode ser referida ao método de trabalho dos juristas, e não a um
resultado ou a um significado prefixado (MÜLLER, 2000, p. 104)27.
A metódica estruturante permite que toda a atividade jurídica — e não mais
somente a construção da “moldura”, como quis Kelsen — seja devidamente exposta.
Se o operador “acerta” ou não, faz parte do jogo democrático e dos riscos que nele
(vazado a partir de uma língua natural que não basta para significar tudo) são
pressupostos, mas sua decisão não esconde nada e se orienta por uma maior
honestidade quanto aos dados de realidade (para além do texto), que sempre fazem
26
A expressão é de Niklas Luhmann. 27
Cf. tb. Müller (2008, p. 12).
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
326
parte de qualquer decisão jurídica. E, que não se olvide, a decisão jurídica é sempre
um ato de poder-violência, embora o Estado Moderno de corte liberal tenha tratado
de discipliná-la e racionalizá-la o máximo possível (MÜLLER, 1995, p. 9).
Na realidade brasileira esta questão merece especial atenção. Não é aí, na
busca de discutibilidade e legitimidade (leia-se, objetividade e racionalidade) nas
decisões jurídicas que o positivismo deve ser superado. A impossibilidade de uma
total objetividade da decisão não pode servir de escusa para uma perspectiva
totalmente subjetiva do tratamento da norma, a promover um regresso a padrões
menos aceitáveis de trabalho jurídico do que os legados pelo positivismo. As
premissas do Estado de Direito, decorrentes da concepção da juridicidade como
limite permissivo da existência comum, com a consideração controlável (com as
reservas já mencionadas) de uma ordem pública e previamente acordada, seguem
dignas de proteção.
No Brasil, ademais, a história político-constitucional da república não é
capaz de documentar um autêntico positivismo (legalista) — e, como o que se disse
aqui, é totalmente fora de propósito qualquer tentativa de ligação do positivismo com
algum dos regimes autoritários a que o país esteve submetido. O sentido do pós-
positivismo deverá ser visto diante da realidade brasileira com maior atenção, uma
vez que a tradição político-institucional que se infere de nossa história ainda não foi
capaz de permitir a total implantação dos postulados do Estado Moderno. Há
consenso sobre a necessidade, alardeada pela bibliografia brasileira, de uma teoria
e uma metódica jurídicas que possam dar maior efetividade à Constituição, mas esta
teoria e esta metódica devem estar ainda orientadas pelas garantias da democracia
quanto ao método de trabalho dos juristas, sob pena de uma troca no mínimo
arriscada.
2 A PROPOSTA DE FRIEDRICH MÜLLER
2.1 Aspectos de Teoria da Norma
A história jurídico-filosófica clássica sacramentou que entre realidade fática
(ser) e as disposições emanadas pelo Estado com pretensão normativa (dever ser)
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
327
resta um campo de tensão. Na seara da prática jurídica não raras vezes, fruto de tal
hiato, emergem questões problemáticas a respeito da incidência do texto normativo
no locus a ele destinado pelo legislador. O ator jurídico, enquanto municiado pelo
aparato legal, incumbido de trabalhar com a realidade, encontra-se no centro deste
turbilhão, sendo tentado a “brincar de pretor romano”, a tornar-se o “Juiz Hércules”,
de forma a olhar a realidade de um pedestal, procedendo a uma arriscada cisão
entre interpretatio e applicatio. Diferenciação anacrônica, pois como menciona
Streck (p. 438), tal ato é cindir o incidível. Compreender é aplicar.
Conforme averba Konrad Hesse (1998, p. 13), o significado da ordenação
jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas –
ordenação e realidade – forem consideradas em sua relação, em seu inseparável
contexto, e no seu condicionamento recíproco. Face a tal assertiva do professor de
Freiburg, caminhando nos mesmos passos da teoria de Friedrich Müller, nota-se que
é imprescindível uma análise pormenorizada da estrutura da norma proposta por
Müller, no intento de flanquear o processo dialético de interpretação/aplicação em
prol de uma contribuição em nível factível, mormente pela proposta de concretização
das normas.
Em sua metódica, Friedrich Müller além de contestar a estrita contraposição
de matriz kantiana entre ser e dever ser, traz ao estudo também elementos de
validade da norma à medida que, conforme Larenz (1997, p. 155), questiona em vez
de norma e fato, a estrutura da normatividade jurídica, tal como se apresenta na
aplicação prática do Direito.
Mas o que é, portanto, a norma jurídica? (MÜLLER, 2008, p. 10) Neste
questionamento elementar tem-se a introdução ao substrato da teoria de Friedrich
Müller, onde a ideia fundamental é a de que a norma jurídica não equivale ao seu
texto, mas é resultado da interação entre direito e realidade. Tal operação deve ser
desenvolvida na própria aplicação do direito, na law in action, onde o texto da lei,
contendo apenas positividade, por meio da metódica estruturante torna-se de fato
norma capaz de produzir efeitos, a possuir normatividade.
Admitindo que os estudos que gravitam ao redor da teoria da norma
trataram-na até agora como uma questão própria da filosofia do direito, mas não
como um problema de aplicação prática do direito (MÜLLER, 2008, p. 17), Müller
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
328
arquiteta uma teoria que enfoque a norma jurídica como um modelo de ordenamento
materialmente determinado e determinante, ou seja, um elemento com pretensão
normativa que não possui existência autônoma; pelo contrário, uma norma que só se
justifica enquanto cabível à realidade de sua aplicação e que ao mesmo tempo fica
sempre condicionada por esta. Trata-se, pois de uma teoria da práxis (MÜLLER,
2008, p. 290) que concebe o texto legal como pré-formas legislatórias da norma
jurídica, que por sua vez está por ser produzida no decurso temporal da decisão.
Isso quer dizer que a norma jurídica não existe ante casum: o caso da decisão é co-
constitutivo (MÜLLER, 2008, p. 11).
Para situar a norma no campo fático, Müller projeta uma sua estruturação,
de forma a identificar o texto da norma como um dado de entrada no processo de
concretização, o input no trabalho de produção da norma. Neste escalonamento a
norma jurídica compõe-se de programa da norma e âmbito da norma (MÜLLER,
2008, p. 11), onde não seria apenas o programa da norma (resultado das inferências
linguísticas) o fator produtor de efeitos, mas igualmente os dados conformes ao
âmbito da norma, ou seja, a parcela de realidade social destinada a ser regulada.
Apesar da pretensão de transcendência da dogmática clássica, tal
perspectiva não abandona determinados legados positivistas, trata-se não de um
anti-positivismo, mas de uma teoria pós-positivista do direito. A partir do aceite de
uma reciprocidade complementar entre norma jurídica e realidade — que, por isso
mesmo, intenta superar a redução da norma ao texto de norma — Müller demonstra
a impossibilidade de uma concepção redutora do método jurídico às subsunções
silogísticas — coisa que, aliás, sequer o próprio positivismo defendeu de forma
unitária.
Passemos então a análise pormenorizada da estruturação normativa
proposta por Müller e o meio pelo qual seus elementos são operados na metódica
estruturante com vistas à obtenção da normatividade.
2.1.1 Norma e texto de norma
Conforme mencionado, a fim de estabelecer um substrato seguro ao
exercício da metódica estruturante, rompendo com a matriz positivo-legalista
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
329
baluarte da tradição jurídica romano-germânica, Müller dissocia a norma de seu
texto normativo.
O abandono da clássica teoria ontológica do direito representa o caráter pós-
positivista aqui referido, na medida em que caracteriza o teor literal das disposições
normativas como apenas um dos elementos no processo de concretização, um
elemento de importância notável que deverá nortear as inferências do intérprete,
mas que não possui, porém, uma correspondência absoluta com os objetos a que se
refere. Os dados linguísticos promulgados possuem apenas positividade, elemento
distinto da normatividade, esta sendo a qualidade máxima objetivada pela teoria e
pela metódica estruturante, pois o caráter de normatividade de uma norma outorga-
lhe validade, vez que logrou êxito ao produzir efeitos perceptíveis na realidade. Daí
infere-se um problema de aplicabilidade, pois toda e qualquer norma somente faz
sentido com vistas a um caso a ser (co)solucionado por ela (MÜLLER, 2004, p. 63).
Forma de comprovar a não identificação entre a norma e o texto normativo é
o fenômeno do direito consuetudinário, do qual não se duvida da sua qualidade
jurídica, embora ele não apresente nenhum [ou pouquíssimos] texto definido com
autoridade (MÜLLER, 2004, p. 54). E ainda mesmo onde o sistema jurídico seja
fundado na norma positiva, é inegável a existência de influências sociais tão
determinantes na direção das decisões práticas quanto àquelas das disposições
propriamente textuais28.
Portanto, a norma não é um comando pronto, pois a lei não é a medida
exata do sentido, como afirmou até agora o positivismo clássico ao tratar o texto da
norma como premissa maior e subsumir as circunstâncias reais a serem avaliadas
aparentemente de forma lógica ao caminho do silogismo (MÜLLER, 2008, p. 192).
Para caracterização da norma se exige, muito mais, uma gama de elementos não
inerentes ao texto normativo, pois não é o texto o regulador do caso concreto, mas o
órgão legislativo, o órgão governamental, o funcionário da administração pública, o
tribunal que elaboram, publicam e fundamentam a decisão regulamentadora do caso
(MÜLLER, Friedrich. 2004, p. 54), sendo, pois, um trabalho ligado umbilicalmente à
realidade.
28
Cf. Konrad Hesse fala de uma “Constituição real”, fruto da convergência de forças sociais,
exercendo papel dominante ao lado da “Constituição jurídica”.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
330
O simples texto da norma é elemento volátil, carente de sentido e eivado de
indeterminações, porquanto pode facilmente ser manipulado pelo intérprete. Neste
ponto a teoria de Müller é pragmática ao buscar segurança nas decisões concretas
(e isso não apenas nos atos judiciários) por meio de um feedback, unicamente
possível dentro de um cenário que evidencie a norma como um conjunto de
elementos dispostos de forma estruturada e racionalmente aferível.
Se a norma só encontra seu sentido último quando aplicada a um
determinado caso concreto, é então neste momento em que obtém normatividade.
Presumir que a normatividade pudesse ser produzida pelo texto normativo seria
próprio de um pensamento anacrônico e insuficiente frente ao cenário social que
coloca cada vez mais à prova as respostas do direito. O teor de validade de uma
norma decorre então dos dados extralingüísticos de tipo estatal-social: de um
funcionamento efetivo, de um reconhecimento efetivo e de uma atualidade efetiva
(MÜLLER, 2004, p. 53-54).
É claramente perceptível, assim, a vinculação da norma ao substrato fático.
Acordado o fato de que o texto não é suficiente à configuração da normatividade,
temos o âmbito normativo, ou seja, o conjunto dos dados reais que gravitam acerca
das disposições textuais e fazem parte do processo de produção da norma, de sua
concretização. A finalidade desta integração entre dados reais e letra da lei, consiste
em averiguar que por meio desta concepção criadora e construtiva da norma, os
aspectos da realidade (dados reais) são sugeridos como integrantes da estrutura
normativa, e não simplesmente referidos externamente à norma (MAGALHÃES,
2006, p. 563).
Este conjunto de elementos da realidade que integram a norma são
condições para a verificação da normatividade, uma normatividade materialmente
determinada que torna o sentido dos dados linguísticos inferidos pela linguagem
enquanto práxis em determinados nichos. Enquanto ato humano, a linguagem é o
meio pelo qual a positividade produz efeitos ao integrar-se ao ambiente externo. Os
jogos de linguagem de Wittgenstein entram em cena no processo de realização da
norma, pois abandona-se uma teoria semântica tradicional, baseada num modelo
estruturalista, que via o significado como uma entidade rígida, em prol de uma virada
pragmática, que concilia interpretação e ação (BORNHOLDT, 2005, p. 39).
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
331
A teoria de Müller propõe justamente uma racionalização desta relação entre
texto de norma e dados reais, mas diferencia-se da nova (que já não é assim tão
nova) hermenêutica destinada a criticar os pressupostos positivistas, pois além de
reconhecer a ausência de semântica inerente ao texto filiando-se também à Filosofia
da Linguagem, propõe soluções ao problema da concretização das normas,
mormente constitucionais.
A ponta do iceberg (MÜLLER, 2004, p. 53) não é pois suficiente à fruição da
normatividade na realidade. O texto fornece unicamente a moldura dentro da qual
deve operar o processo de concretização. Destarte, tal processo é orientado por
uma estratégia que partirá sem dúvida do texto da norma, que é condição de
possibilidade da normatividade. Contudo, não há um pré-dado, a norma não existe
isoladamente circunscrita objetivamente ao texto como pretendeu a dogmática
tradicional. Ao contrário só é verificável na parcela social que fornece o âmbito
normativo, no cotidiano forense onde o cidadão comum experimenta na pele o teor
dos atos normativos, em sentenças de ação [Handlungssätze] (MÜLLER apud
BORNHOLDT, 2005, p. 38).
Não há uma mens legis a ser incorporada pelo ator jurídico, pois concretizar
não é (re)produzir valorações legislativas. A bem da verdade, a aplicação de
disposições legais convoca o jurista a manejar um denso leque de possibilidades de
forma alguma pré-solucionadas pelo texto normativo. O próprio conceito tradicional
de interpretação cai por terra na teoria proposta por Müller, pois agora a distinção
fundamental entre texto normativo e norma impede o intérprete de limitar-se à
interpretação, assim como ao desdobramento puramente filológico do texto
(MÜLLER, 2008, p. 201). O processo de integração entre texto normativo e dados
reais reclama ao jurista uma completa integração com dados sociais e políticos, bem
como demanda não raras vezes o uso de manuais de orientação [Leitfäden]
(MÜLLER, 2004, p. 93).
Em que pese o atributo de validade ter sido retirado do texto da norma, este
possui ainda suma importância no processo de produção da normatividade. Guiado
pelos dados da linguagem o operador deve delinear o programa da norma
paralelamente ao caso concreto. Aqui o texto exerce o dever de impulsionar o ato
judicativo, de estabelecer a ordem jurídica buscada no processo metódico
João Fábio Silva da Fontoura et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
332
concretizador, sendo ponto de partida deste processo — dir-se-á esta a eficácia de
determinação do texto da norma [Bestimmungswirkung]. Em paralelo, o texto deve
servir de limite às várias alternativas que são politicamente, filosoficamente e
metodologicamente aceitáveis, mas não juridicamente admissíveis — dir-se-á esta a
eficácia de limitação do texto da norma [Grenzwirkung] (MÜLLER apud SILVA J., p.
97).
No Brasil, a proposta de Müller é extremamente promissora, pois seu avanço
é buscar concretamente, ao integrar dados reais na estrutura normativa, alcançar
uma norma de decisão, quer dizer, fazer valer a relação norma-realidade
(MAGALHÃES, 2006, p. 565), em prol de um devir pós-moderno onde a sociedade
brasileira não mais viva sob a égide de uma Constituição com eficácia
marcadamente simbólica.
2.1.2 Estrutura da norma e normatividade
Estabelecida a distinção entre texto normativo e norma, cabe agora
pormenorizar o processo pelo qual a norma propriamente dita é gerada na teoria de
Müller, e como se perfaz a normatividade.
Conforme referido, tendo como lastro o programa da norma, contido no texto
normativo, o trabalho jurídico dirige-se então ao âmbito da norma, a porção da
realidade social referida pela norma.
Impende aqui um questionamento acerca da forma pela qual a
normatividade é observada no caso concreto, ou seja, como de fato o trabalho
jurídico deve ser orientado através da estrutura da norma de forma a efetivar e
justificar a normatividade, na direção de um além positivismo legalista, que abrange,
ao lado de elementos dogmáticos e metodológicos também a hermenêutica
(MÜLLER, 2004, p. 57).
Na estruturação proposta pelo professor Müller, a norma é um modelo
materialmente estruturado em programa da norma e âmbito da norma. O teor literal
expressa o programa da norma, a ordem jurídica, conforme tradicionalmente
compreendida, dotada de validade (positividade), o que não implica dizer que esteja
garantida sua normatividade (SILVA DA FONTOURA, p. 99). E, em mesmo nível
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
333
hierárquico pertence também à norma o âmbito da norma, ou seja, o recorte da
realidade social que o programa da norma “escolheu” para si ou em parte criou
(MÜLLER, 2004, p. 57).
Há que se ressaltar que estes elementos propostos por Müller carecem de
uma devida mediação. O programa normativo só possui sentido, e, de certa forma,
só é criado, em face do caso particular. Contudo, não se deve entender o âmbito
normativo e o programa normativo como peças com encaixe perfeito. Nas palavras
do próprio Müller, âmbito normativo e programa normativo não são meios para
encontrar, à maneira do direito natural, verdadeiros enunciados ônticos de validade
geral (MÜLLER, 2008, p. 245).
A delimitação do programa da norma passa inevitavelmente pela escolha
dos dados reais ou fictícios que farão com que a análise do âmbito normativo, como
parte integrante da concretização jurídica, fortaleça a normatividade da disposição
legal (MÜLLER, 2008, p. 245). Note-se que a realidade se faz presente já na
delimitação do próprio programa da norma, visto que posteriormente não haverá um
simples jogo autônomo entre os elementos textuais de interpretação, que não os
refira ao contexto, representado pelo caso (BORNHOLDT, 2005, p. 41).
Se o âmbito da norma é fator constitutivo desta, temos então que a parcela
da realidade não apenas vincularia o texto da norma, mas constituiria também
elementos de um questionamento que de antemão não estaria baseado nessas
abstrações. Nestes casos, diz Müller que o âmbito normativo não é gerado pelo
direito.
Há, no entanto, âmbitos normativos gerados pelo próprio direito (MÜLLER,
2005, p. 57), onde a realidade destinada ao programa da norma é ela própria gerada
por um programa de norma, e as formulações podem conter certo teor de
segurança, conforme exemplifica Silva da Fontoura (p. 101)
O preceito constitucional de que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”, apresenta um âmbito normativo totalmente gerado pelo direito e, assim, admite uma precisa formulação no texto da norma. Isto porque o programa normativo diz dever ser admitida uma “ação privada” em lugar de uma “ação pública” (figuras oriundas do direito processual penal), em certos “crimes” (em que também se deva já considerar a compreensão de elementos criados pelo direito penal), quando a ação pública não for intentada no “prazo legal” (e, portanto, no prazo estabelecido pelo direito).
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334
Há, contudo, outros tipos de disposições, com maior grau de abstração, que
submetem o intérprete a caminhar por polos indefinidos, tal como ocorre com a
“função social” da propriedade29. O exemplo acima citado oferece maior facilidade à
formulação do âmbito normativo, vez que o programa normativo não lida com
realidades autônomas ao direito, tornando o âmbito normativo mais precisamente
formulado no texto.
Contudo, mesmo que o âmbito normativo seja passível de ser deduzido do
texto da norma, isto não exclui a análise do caso concreto, que é por excelência o
dado elementar do âmbito normativo. Nas normas onde o âmbito seja materialmente
criado, o texto da norma oferece ainda menos segurança ao ator jurídico, servindo
unicamente para fixar os limites de estabelecimento do programa da norma, também
com base em recursos advindos do exterior do sistema constitucional, e muitas
vezes, da própria ciência jurídica estritamente entendida.
A normatividade está intimamente ligada ao potencial do âmbito da norma e
do âmbito do caso, ao passar pelo programa normativo, transformar-se em âmbito
normativo e gerar a norma de decisão, algo como energia potencial transformando-
se em energia cinética, em termos físicos. A qualidade de normatividade reside na
realidade. Com isso demonstra-se ser a norma jurídica um modelo de ordem
materialmente caracterizado (MÜLLER, 2005, p. 59).
2.2 Aspectos da Metódica Estruturante
Se, de fato, a norma não é suficientemente dada no texto da norma; se o
intérprete efetivamente constrói um sentido (e não meramente o declara); se o texto
e a realidade se interpenetram; então parece claro que a própria existência concreta
da norma será umbilicalmente ligada ao contexto histórico e social de sua
compreensão e, por consequência, de sua concretização A normatividade, perdoe-
se a insistência, não é uma propriedade do texto da norma, mas apenas da norma
jurídica e da norma de decisão. A norma jurídica e a norma de decisão, por sua vez,
29
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. art. 5º, XXIII.
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
335
surgem apenas no processo de concretização. Evidencia-se, assim, a inerente
temporalidade da normatividade.
Muller evidencia a necessidade da metódica jurídica estruturante no
argumento de que a concretização da constituição está diretamente ligada ao
trabalho — e, portanto, à metódica — de titulares de funções. Justifica esta
afirmação quando explica que cada prescrição constitucional motiva de modo
específico o comportamento de titulares de funções e outros destinatários (MÜLLER,
2005, p. 51). Quer dizer, também a postura dos trabalhadores do direito
[Rechtsarbeiter] é, ao menos no Estado de Direito, normativamente orientada.
Nas palavras de Muller a metódica deve permitir representar e verificar
racionalmente a relevância de critérios normativos de aferição para a decisão, a
relevância dos elementos do caso afetados por esses critérios de aferição e, de
forma geral, a sustentabilidade da decisão. Em outras palavras, a metódica deve
permitir que a norma de decisão seja reexaminada com perfeição à medida que
todos os elementos de concretização da norma possam ser definidos e
recapitulados, tornando a decisão mais democraticamente conformada (MÜLLER,
2005, p. 52).
Neste sentido, existe o processo dinâmico entre normatividade, norma e
texto da norma, conforme anteriormente discutido, de onde Muller parte para definir
a Metódica Estruturante, em cujo conceito encerram elementos puramente
hermenêuticos — no sentido de estarem referidos a dados textuais —, mas
igualmente elementos advindos da realidade a ser normatizada.
2.2.1 Concretização e interpretação
O processo de concretização, na metódica estruturante de Müller, é
composto de elementos de concretização. Os elementos de concretização da norma
são divididos em dois grupos. Um primeiro grupo corresponde ao trabalho com o
teor literal da prescrição, ou, simplesmente, aos textos envolvidos (mesmo que
sejam de textos de não normas). O segundo grupo corresponde aos passos de
concretização na análise do âmbito da norma, ou seja, dos elementos do conjunto
de fatos relevantes no processo de concretização.
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336
Demonstra-se com isto a maior adequação do termo concretização do que
do termo interpretação para designar a tarefa prática do jurista. Note-se que, sob o
prisma filosófico, o “conteúdo” de uma norma não reside somente em seu texto.
Note-se também que, sob o prisma juspolítico, as competências delineadas nas
constituições “não são competências para a “explicação” [Auslegung, Interpretation],
“recapitulação” [Nachvollzug] de textos de normas” (MÜLLER, 2005, p. 66-67), mas
sim competências para a efetiva concretização jurídica, para a resolução do caso
concreto e, por consequência, para o vazamento da violência estatal. A
interpretação do texto possui uma função restrita. A norma não é formada apenas
por “dados linguísticos”, de sorte que não se pode simplesmente falar em
“interpretação”, ou em “interpretação aplicadora”.
Ademais, é justamente no quadro de uma recíproca complementação com o
caso que emerge a conclusividade ou inconclusividade de uma prescrição jurídica, e
não no grau de clareza do texto (MÜLLER, 2005, p. 61). Müller ressalta que a maior
ou menor dificuldade de concretização não resulta da vagueza do texto, mas da
estrutura da norma jurídica, sobretudo da diferença entre os âmbitos normativos –
gerados ou não pelo direito. Assim vistas as coisas, o objeto do ato judicativo,
resultante na norma de decisão, é dizer de forma normativamente orientada o que
prescreve o direito para o caso concreto. O problema a ser resolvido é o de se
comprovar e embasar a conexão material que se construirá entre os textos de norma
pertinentes e os elementos seletos no conjunto de fatos, devendo fundamentá-la,
para que seja inserida num processo de verificação e conformação social, atendente
dos ditames elementares do Estado Democrático de Direito. Este processo deve
partir dos dados linguísticos pertinentes e desembocar na norma de decisão
individual e concreta30, como se passa a ver pormenorizadamente.
30
Cf. Adeodato (2002, p. 249). O professor da Faculdade do Recife sintetiza o percurso sugerido por
Müller da seguinte forma “Sprachdaten, Realdaten, Normtexte, Fallerzählung, Sachverhalt,
Sachbereich, Fallbereich, Normprogramm, Normbereich, Rechtsnorm e Entscheidungsnorm”. Cf.
também Müller (1996, p. 226).
Traduzindo os termos para o português, temos: dados linguísticos, dados reais, textos de norma,
relato (leigo) do caso, circunstâncias (juridicamente relevantes) da espécie, âmbito da matéria,
âmbito do caso, programa da norma, âmbito da norma, norma jurídica e norma de decisão.
Cumpre referir duas coisas a respeito. Em primeiro lugar, os dois primeiros elementos (os dados
reais e os dados linguísticos) são “dados de entrada”, não propriamente jurídicos, para o processo
de concretização. Eles fazem parte da pré-compreensão do trabalhador jurídico, e não dos
elementos próprios da metódica estruturante. Em segundo lugar, a tradução do termo Sachverhalt
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337
2.2.2 Processo de concretização e regras de preferência
O percurso pelos elementos principais da concretização foi exemplificado
por Müller por meio de um fluxograma (MÜLLER, 1996, p. 228)31, que parte já dos
elementos propriamente componentes da metódica jurídica. Antes deles, contudo,
há que se considerar a pré-compreensão do jurista, formada a partir de dados brutos
de origem linguística e não linguística, i.é., de dados reais [Realdaten] e de dados
linguísticos [Sprachdaten]. Estes são os chamados “dados de entrada” no processo
de concretização. Sob estes dados de entrada, o jurista confronta a “massa dos
textos de normas” [Normtextmenge], que são crivados por sua pré-compreensão,
que leva em conta dados reais e dados linguísticos relevantes. De outro lado, o
“relato leigo do caso” [Fallerzählung], permeado também pela atividade profissional
do jurista e pelos mesmos dados reais e linguísticos, resultará nas “circunstâncias da
espécie” [Sachverhalt]. Esta fase preliminar — de mobilização dos dados reais, dos
dados linguísticos, da massa dos textos de normas e do relato leigo do caso —
permite que o processo efetivo de concretização possa ter início.
A fase subsequente — a primeira marcadamente integrante da metódica —
é concentrada na análise e na complementação recíproca entre as “circunstâncias
da espécie” e a “massa dos textos de normas”. Müller designa esta fase como
“formação e rejeição de hipóteses relativas aos textos de normas e aos fatos”
(MÜLLER, 1996, p. 228). De um lado, o jurista selecionará as prescrições jurídicas
efetivamente pertinentes ao caso, diante da constelação de prescrições jurídicas
existentes (massa de textos de norma em vigor), chegando a um ponto de partida no
apresenta variações no Brasil. Adotou-se aqui a tradução proposta por Olivier Jouanjan para a
tradução francesa da Juristische Methodik, ou seja, “circunstâncias da espécie” [circosntances de
l´espèce]. O professor Adeodato, no trecho que citamos, traduz o termo como “conjunto de
matérias”. Peter Naumann ( p. 53) propõe a tradução do termo como “conjunto de fatos”. Rodrigo
Meyer Bornholdt (p. 27) opera já a tradução de Sachverhalt como “estado de coisas”. Nossa opção
deve-se ao fato de que o Sachverhalt representa a composição da pré-compreensão do jurista
(vazada nos Realdaten e nos Sprachdaten) com o relato leigo do caso [Fallerzählung], resultando
nas circunstâncias gerais do caso por ele visto, sem ainda a seletividade do que, de alguma forma,
é juridicamente relevante (a ocorrer no Sachbereich), nem do que é relevante para a configuração
do caso concreto (a ocorrer no Fallbereich), e nem do que foi in concreto recortado, a partir da
concretização, pelo programa da norma (a formar, in fine, o Normbereich). 31
O elemento gráfico, segundo nota que o acompanha, é de autoria de Lothar H. Fohmann. O
procedimento está descrito por Müller nas p. 345-347. Os parágrafos seguintes, em que se
esboçam as fases do processo de concretização, são inspirados por estes trechos.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
338
que se refere ao(s) texto(s) de norma [Normtexte] a trabalhar. De outro lado,
paralelamente à seleção do texto(s) de norma pertinente(s) — e em virtude destas
hipóteses textuais —, o jurista deverá depurar as “circunstâncias da espécie” até
aquilo que juridicamente interessa (aos textos de norma selecionados), pelo que
formará o “âmbito da matéria” [Sachbereich], isto é, o conjunto de fatos
diferentemente afetados pelas prescrições jurídicas.
A segunda fase da concretização, estando já o operador do direito seguro
em relação aos textos de norma e ao âmbito da matéria, é chamada de fase da
“interpretação (formação e rejeição), de hipóteses relativas ao programa normativo”.
Reduzindo os elementos principais do âmbito da matéria até aqueles que estão
efetivamente em jogo no caso concreto, o jurista chega ao “âmbito do caso”
[Fallbereich]. A partir disso, tem lugar a análise dos textos de norma com os
elementos sistemáticos, genéticos, históricos e teleológicos, além dos elementos
metodológicos, dogmáticos, teóricos e de política jurídica. Esta análise deverá
conduzir ao “programa da norma” [Normprogramm].
A terceira fase do processo de concretização tem lugar com a formação do
programa da norma e do âmbito do caso, quando o jurista já pode recorrer ao
primeiro para “recortar” do segundo os elementos que “escolheu para si ou em parte
criou para si” como seu espaço de regulamentação — esta terceira fase é, portanto,
dedicada à análise do “âmbito da norma” [Normbereich]. Como já se disse, os fatos
são selecionados sob o critério do programa da norma que os refere, formando o
âmbito da norma, devendo a conexão entre ambos, formada nesta fase, ser
devidamente fundamentada na decisão. O âmbito do caso não será
necessariamente pertinente em todos os seus elementos, e a “seleção” deverá
incluir ou excluir o conhecimento de elementos de fato — o que frisa a necessidade
de uma devida fundamentação.
Chegando a este ponto, partirá o operador do direito para as duas fases
finais da concretização. Em primeiro lugar, ele levará a efeito uma “síntese da norma
jurídica”, em que operará com a complementação recíproca entre “âmbito da norma”
e “programa da norma”, disso resultando uma “norma jurídica” [Rechtsnorm] geral e
abstrata. Logo após, ele partirá para a fase de “decisão do caso”, na qual se forma a
“norma de decisão” [Entscheidungsnorm] individual e concreta, e em que se
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
339
transforma o caso jurídico em caso decidido, a partir do confronto e da
complementação finais entre os dados provenientes do sistema jurídico e os dados
provenientes da realidade.
Como visto, a fase do processo relativa à formação do programa da norma é
a única entre os passos da metódica estruturante que pode ser de alguma maneira
cotejada com a hermenêutica tradicional, uma vez que esta última desconhece ou
nega o papel do “âmbito da norma” (e dos elementos que concorrem em sua
composição), e, com isso, os demais momentos da concretização. Todavia, no
estabelecimento da norma de decisão concorrem diversos elementos de
concretização — não mais métodos, mas elementos (MÜLLER, 2004, p. 69): (i)
metodológicos (cânones savignyanos, interpretação teleológica, princípios de
interpretação constitucional, concordância prática, interpretação conforme a
constituição e, por fim, unidade da constituição), (ii) do âmbito da norma e do âmbito
do caso (seja ele gerado ou não pelo direito), (iii) dogmáticos, (iv) teóricos, (v) de
técnica de solução, e, ainda, (vi) de política jurídica e de política constitucional.
Müller propõe a diferenciação dos elementos de concretização em dois
grupos distintos (MÜLLER, 2004, p. 70). Num primeiro grupo, estão os elementos de
tratamento do texto da norma — que são relacionados, todavia, com a interpretação
de textos de não normas. Por isso, em formulação mais precisa, trata-se dos
elementos que lidam com os componentes linguísticos de uma norma jurídica. Num
segundo grupo, alojam-se os elementos que lidam com o percurso que vai das
circunstâncias da espécie até o âmbito da norma, ou seja, os elementos que não
são referidos ao tratamento de textos (sejam eles normativos ou não). Cuida-se da
parte da concretização referida à parcela da realidade que é também constitutiva da
normatividade jurídica, do trabalho jurídico a partir da matéria de fato (sem jamais
reconhecer-lhe valor autônomo). Segundo Müller, o positivismo não seria capaz de
compreender nem uma dimensão nem outra. A dimensão problemática, já se viu,
seria uma pergunta respondida pela sua negação. Já a dimensão de interpretação
do texto, por sua vez, teria sido analisada de forma igualmente simplificada.
Entre os elementos de análise linguística, Müller inicia pelas regras
tradicionais da interpretação, que são os elementos gramatical, sistemático,
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
340
genético, histórico e teleológico de análise da prescrição jurídica. O ponto de partida
contumaz da concretização, diz Müller, é o sentido literal [Wortsinn] da prescrição,
de sorte que o elemento gramatical entra em jogo de plano, sendo mais fecundo,
como se viu, de acordo com a conclusividade do texto de norma (e, portanto, do tipo
de norma) (MÜLLER, 2004, p. 74-75). O elemento gramatical preside a formação
dos limites da eficácia de determinação e da eficácia de limitação do texto da norma,
mas não o faz de forma isolada. Os demais elementos são indissociáveis entre si e
do elemento gramatical. De um lado, eles também são referidos quase
invariavelmente a textos (embora às vezes a textos de não normas ou textos de
normas não vigentes), de sorte que a necessidade de interpretação gramatical
persiste. De outro lado, a prática da utilização dos cânones demonstra que eles
estão entrelaçados. Para que o operador do direito possa valer-se de critérios
sistemáticos, por exemplo, deverá aplicar às prescrições trazidas à baila os mesmos
elementos aplicáveis à prescrição principal. Já o elemento teleológico só seria
admissível na medida em que pudesse ser comprovado e documentado com a
concordância dos demais elementos (MÜLLER, 2004, p. 77-78). Ainda no plano dos
elementos de análise linguística, e referindo os elementos metodológicos strictiore
sensu, Müller menciona as outras regras tradicionais de interpretação (in claris
cessat intepretatio, interpretação restritiva de normas de exceção etc.) (MÜLLER,
2004, p. 80) e os princípios da interpretação constitucional (MÜLLER, 2004, p. 81 e
ss). O professor de Heidelberg conclui, no caso das primeiras, que são totalmente
dependentes dos demais elementos de análise de textos — até porque é necessário
saber se é caso de uma prescrição “clara” ou “de exceção” —; e, no caso dos
segundos, que se cuidariam de subcasos dos cânones de interpretação dos textos,
vazados na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal.
Em complemento, Müller refere os elementos do âmbito do caso e do âmbito
da norma. Estes elementos são relativos à reformulação pretendida pela apreensão
da estrutura da norma jurídica, e são produzidos pela diferenciação, fundamentação
e exposição do âmbito da matéria, do âmbito do caso e do âmbito da norma. Ao
contrário do que apregoa o positivismo jurídico, a análise dos elementos do âmbito
da norma reclamará a incessante interveniência de pontos de vista oriundos de
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
341
outros domínios do saber. Os elementos que Kelsen classificou como “impurezas”, e
que foram classificados pelos positivistas mais modernos de “não jurídicos”, serão
aqui muito bem vindos, auxiliando o jurista a construir, desde um relato leigo do
caso, o âmbito da norma (MÜLLER, 2004, p. 90).
Cumpre referir, ainda, os elementos dogmáticos, de técnica de solução, de
teoria e de política do direito e da constituição. Estes elementos têm em comum,
aforada a sua comprovada utilização na práxis decisória, duas características.
Partilham, em primeiro lugar, o destino de todos os demais elementos do processo,
na medida em que precisam de trabalho jurídico [Rechtsarbeit] para sua
operacionalidade, não estando prontos para utilização. E, em segundo lugar, eles
não se apresentam enquanto posturas vinculantes, uma vez que carecem de
normatividade própria, e, em sua maioria, referem-se somente de maneira parcial
aos textos de norma democraticamente dados (MÜLLER, 2004, p. 91-97).
Esta estruturação da norma jurídica e de seu processo de concretização
pressupõe necessariamente algum critério de prioridade entre os elementos de
tratamento do texto da norma e os elementos de análise do âmbito da norma. Trata-
se aqui de resolver os conflitos32 que possam surgir entre estas duas espécies de
elementos. O pensamento de Müller é estruturado, neste tópico, basicamente em
“regras de preferência”. Pautam-se estas últimas em dois argumentos básicos: (i)
deve-se levar em conta que os limites da metódica do direito constitucional são em
grande parte decorrentes da própria Constituição (devido processo legal, garantia do
direito adquirido, princípio da legalidade etc.); (ii) os elementos da concretização não
referidos diretamente aos textos de normas não têm necessária e irrefutável força
vinculante, devendo ceder aos elementos imediatamente referidos ao texto da
norma. Isto encontra justificativa nos próprios imperativos do Estado de Direito
contemporâneo.
Assim, em caso de conflito, postula Müller que devam prevalecer os
elementos normativamente orientados em relação aos demais (MÜLLER, 2004, p.
99 e ss. e 112). Logo, entre os elementos strictiore sensu, os elementos gramaticais
32
Müller (2004, p. 99) definirá o conflito como “oposição frontal entre aspectos fecundos no caso
individual”.
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342
e sistemáticos (diretamente referidos a textos de normas) devem ter precedência
sobre os demais (não referidos a textos de normas). Em caso, por outro lado, de
conflito entre os elementos sistemáticos e gramaticais, ou entre estes e os
elementos do âmbito da norma, a função limitadora do texto da norma impende que
os elementos gramaticais tenham precedência — mesmo no caso dos elementos do
âmbito da norma, que estão em pé de igualdade com os do programa da norma, a
eficácia de limitação é sempre uma decorrência do caráter textual do Estado de
Direito.
Em linhas gerais, os elementos de política jurídica e constitucional, e bem
assim os elementos dogmáticos, os princípios de interpretação constitucional e os
elementos de técnica de solução são produto da racionalidade jurídica: de nenhuma
forma, como dito, podem ser vetores efetivamente vinculantes do processo de
concretização, especialmente se confrontados com a eficácia de limitação do texto
da norma. Os conflitos entre elementos não normativos não têm solução
normativamente orientada, exigindo-se a devida fundamentação e exposição por
parte do jurista — até porque, como ocorre nos casos de falta de força enunciativa
das prescrições, a solução pode estar no reconhecimento de que não há texto de
norma no sentido que o caso reclama (como na doutrina americana da political
question) (MÜLLER, 2004, p. 107)33.
3 A PROPOSTA DE ROBERT ALEXY
3.1 Contextualização do Pensamento de Alexy
Antes do estabelecimento da plataforma teórica de Robert Alexy é mister
anteciparmos, ainda que de forma transversal, a inserção da teoria de Robert Alexy
dentro da polêmica hodierna da metódica jurídica constitucional, em especial dos
direitos fundamentais. A teoria da norma jurídica de Robert Alexy povoará este
33
O autor refere-se ao posicionamento, também visto sob a denominação de “judicial self-restraint”,
no qual as cortes reservam certas questões para o plano do debate político, excluindo
possibilidade de decisão jurídica sobre o tema.
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343
cenário, contribuindo para uma conexão lógica entre a norma, o direito fundamental,
a ponderação nos conflitos entre princípios e regras e subsunção desta norma presa
à validade ética e social plasmada no texto constitucional.
Há um ícone da teoria de Robert Alexy, no que toca à aplicação da
dogmática jurídica, que impõe seja ela vista como uma disciplina pluri-dimensional.
Esta assertiva é fundamental para entender o conceito de “proposições abertas”
talhadas do núcleo da teoria de Robert Alexy e que segundo Fernando José Bronze,
em sua Metodonomologia entre a semelhança e a diferença, traduz em boa medida
o pensamento de Alexy:
numa acepção ampla, a dogmática especificamente jurídica é uma “disciplina pluri-dimensional” que apresenta uma face “empírico-descritiva”, uma outra “lógico-analítica” (...) esta dogmática se traduz num conjunto de “proposições” abertas – porque experimentalmente reconstituíveis –, intencionalmente conectadas com os princípios, as normas legais e as decisões jurisdicionais (BRONZE, 1994, p. 523).
Para incursões, portanto, no ideário de Robert Alexy, é necessário absorver,
de plano, suas motivações, que resultaram no conceito de “norma”. Uma vez que
tenhamos claro que o conceito de “norma”, juridicamente posto, não se prende
unicamente a um conceito adstrito à ciência jurídica, Robert Alexy revela certa
transcendência axiológica deste conceito, sem a pretensão de encapsulá-lo ao
objeto de uma única ciência. Posto não ser conduta, uma “norma” não poderia
justificar-se sozinha como garantidora de sua eficácia, ou, nas palavras do autor, o
modelo de norma deve ser, de um lado, “solido o suficiente para constituir a base
das análises que seguirão” e, de outro lado, “suficientemente frágil para que seja
compatível com o maior número possível de decisões no campo dos problemas
mencionados” (ALEXY, 2008, p. 52).
O que garante a transcendência abstraída do conceito de norma no
pensamento do professor de Kiel é o caráter semântico que dito conceito assume.
Neste sentido o autor sugere um ponto de partida indispensável à formação de sua
teoria, qual seja a necessária distinção daquilo que seja norma e enunciado
normativo. Como diz o Autor, “uma norma é o significado de um enunciado
normativo”. Trata-se, essencialmente, de “algo que deve ser” (ALEXY, 2008, p. 54).
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344
Será possível identificar em Robert Alexy a importância da separação entre
questões semânticas de questões de validade, muito embora o autor nos previna do
risco que esta separação provocará com a inevitável expansão do universo das
normas. A validade de uma norma está associada à sua funcionalidade, quer se dê
pela linguagem coloquial ou quer se manifeste pela linguagem técnica. Aquilo que se
propõe válido sê-lo-á por determinados critérios, porque “tem que ter algo a partir do
que esta afirmação seja possível” (ALEXY, 2008, p. 62). Esta é a prevalência que
Robert Alexy impõe ao caráter semântico: a sua funcionalidade. Adiante será
evidenciado que a base da teoria da argumentação jurídica proposta por Robert
Alexy resulta na busca de um critério cingido no conceito da razão prática, tendo
Habermas como fonte inspiradora.
A ligação entre Alexy e Habermas prende-se, em um primeiro momento, à
semelhança da teoria de Habermas na busca de um discurso com razão prática,
cujo conteúdo lhe conferira procedimento comunicativo e um relativo grau de
satisfação e racionalidade, citando a lição de Bustamante. A influência de Habermas
em Robert Alexy verifica-se pela assunção do conceito de “verdade”:
um dos aspectos da teoria habermasiana que foram mais marcantes para o pensamento de Alexy é o conceito de verdade, que, para o professor de Frankfurt, está muito mais próximo da idéia de consenso do que da mera correspondência entre enunciados e fatos. Para Habermas, só “posso atribuir um predicado a um objeto se, também, qualquer um pudesse entrar em discussão comigo atribuísse o mesmo predicado ao mesmo objeto” (BUSTAMANTE, 2005, p. 69).
Na esteira do pensamento de Karl Larenz, Robert Alexy deduzirá a
dependência da subsunção lógica das normas derivadas de premissas formadas
abstratamente. Para defender este enunciado Bustamante acrescenta quatro
motivos através dos quais Alexy remedia tal dependência: “i) a imprecisão da
linguagem; ii) a possibilidade de conflitos entre normas; iii) a existência de lacunas; e
iv) a possibilidade de decisões que contrariem um dispositivo legal” (BUSTAMANTE,
2005, p. 60).
Alexy comporá o esteio de sua teoria criando, igualmente, uma Teoria da
Argumentação Jurídica, cujos elementos componentes serão apresentados na
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
345
medida da construção sistêmica desta teoria, e, como já antecipados, lastrear-se-ão
por um conceito de razão prática e por um discurso racional.
3.2 Teoria da Norma Jurídica na Teoria dos Direitos Fundamentais
Robert Alexy pondera que as normas de direitos fundamentais podem ser
compreendidas sob seu aspecto concreto ou abstrato. A abstração na criação de
uma pretensa norma dar-se-á se sua abrangência (eficácia) atingir ou pertencer a
um determinado ordenamento jurídico. O caráter concreto da formação de uma
norma prende-se à constatação se de fato esta norma está relacionando-se a um
direito fundamental posto, positivado.
Para Robert Alexy, assim, o conceito de norma está praticamente reduzido
aos textos do direito positivo, uma vez que os direitos fundamentais devem ser
considerados “nas normas que são expressas por disposições de direitos
fundamentais; e disposições de direitos fundamentais são enunciados presentes no
texto da Constituição alemã, e somente esses enunciados” (ALEXY, 2008, p. 66).
Há, portanto dois problemas lançados por Robert Alexy que devem ser sopesados: o
primeiro diz respeito à falta de critérios, tendo como referência a Constituição Alemã,
para identificar e segregar o conceito das normas que têm substância de direitos
fundamentais e as que não dispõem desta substância. O segundo problema posto é
saber se de fato existem “todos” os direitos fundamentais explicitados na
constituição e de que forma, ainda que subliminar, o Estado complementará o hiato
destes direitos ditos ausentes. Esta questão final Robert Alexy parece não ter
aprofundado na medida da consecução do que poderíamos chamar “direitos
fundamentais ausentes”.
É compreensível que a formação argumentativa do filósofo alemão utilize o
princípio dedutivo para, gerando a exceção (direitos fundamentais não pertencem
somente à Constituição), induzir à constatação de que de fato o conceito de norma
de direito fundamental precisa “confrontar” o texto constitucional para saber-se
“exauriente”.
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346
3.2.1 Normas e disposições
O autor dirá que se um enunciado expressa uma norma será este um
enunciado normativo, e, concomitantemente, conforme antecipado, se esta norma
expressa tiver aderência ao texto constitucional e fizer referência a um direito
fundamental, ressalvadas as condições de hiatos expostas no item anterior, esta
norma será uma “norma de direito fundamental”.
Por outro lado, a diferenciação entre norma e disposição restará, segundo
Alexy, ainda com uma definição muito “estreita”, porquanto as normas de direitos
fundamentais apresentam complexidades específicas tanto do ponto de vista
semântico quanto do ponto de vista estrutural. No plano semântico, uma norma pode
ser aberta pela indefinição dos termos que utiliza. Do ponto de vista estrutural, uma
norma pode ser aberta na medida em que não deixe claro qual é o tipo de conduta
que a norma exige (a liberdade de pesquisa e ensino, diz o autor, não deixa claro se
ela deve ser realizada mediante ações ou abstenções estatais). Para por termo a
tais indefinições o Autor propõe a criação de regras semânticas, no caso da abertura
semântica, e de normas atribuídas, no caso da abertura estrutural (ALEXY, 2008, p.
70-72).
Para aferir a pertinência e a validade de uma destas normas atribuídas,
deve-se levar em conta se é possível uma correta fundamentação referida a direitos
fundamentais. Terão papel preponderante nesta aferição os “argumentos práticos
gerais na fundamentação referida a direitos fundamentais”, no que diz respeito a
consensos dogmáticos, precedentes, textos de norma e elementos genéticos das
disposições (ALEXY, 2008, p. 74). Com isso, Alexy opõe-se diretamente a Müller,
porquanto não aceita que os argumentos decisórios possam integrar o conceito de
norma jurídica, uma vez que está decorrerá exclusivamente da disposição de direito
fundamental.
3.2.2 Regras e princípios e a técnica da ponderação
Alexy confere extraordinária importância à necessidade da distinção entre
regras e princípios, cuja relevância garantirá a “mobilidade” e a “elasticidade”
necessárias ao conceito de norma. Adianta-nos o filósofo alemão que “a distinção
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
347
(entre princípio e regra) é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos
fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos
direitos fundamentais” (ALEXY, 2008, p. 85).
Segundo o autor, “tanto regras quanto princípios são normas e estão
reunidos sob o mesmo conceito de norma” (ALEXY, 2008, p. 87). Diante desta
“verdade”, no sentido de Habermas, é forçoso reconhecer, de plano, que ambos os
conceitos compõem lados opostos de “uma mesma moeda”. No dizer do próprio
Alexy, regras e princípios são normas de “dever-ser”, portanto podem ser formuladas
por regras deônticas da permissão, proibição e do dever, que são, a rigor,
estereótipos conceituais de valor e validade propostos por Alexy para a
fundamentação de sua teoria. São paradigmas valorativos que servirão de
“estímulos” para gerar a força necessária à produção de normas de decisões,
respeitando a lógica de sobreposição de normas antecipadamente anunciadas.
Para a distinção entre regras e princípios, o autor utiliza-se inicialmente do
critério da generalidade, que é o mais comumente adotado e que aduz que os
princípios contêm elevado grau de generalidade, ao contrário das regras. Desta
generalidade resulta a “abertura” do sistema jurídico, diríamos sua “elasticidade”, a
representar o caráter fluídico intrínseco ao conceito de princípio. E outro lado, Alexy
expõe que os princípios são mandamentos de otimização, podendo ser satisfeitos
em “graus variados”, ao passo que as regras “são sempre ou satisfeitas ou não
satisfeitas” (ALEXY, 2008, p. 91)34. Ao antecipar o conceito de regras e princípios, o
autor demonstra a opção do critério segundo o qual regras e princípios podem ser
definidos por um critério de qualidade, ou diferença qualitativa. Desta forma a
distinção entre regra e princípio dar-se-á qualitativamente e não pelo grau ou peso,
pois as regras contêm somente determinações daquilo que é fática e juridicamente
possível.
Para Alexy, existem duas formas básicas de operação com as normas
jurídicas, a ponderação e a subsunção. A subsunção é o modelo adequado ao
tratamento das regras, ao passo que a ponderação é a técnica pertinente aos
princípios, uma vez que tal espécie normativa, como dito, pode ser operacionalizada
34
Vide também Alexy (2007, p. 64).
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348
em níveis diversos, requerendo sopesamento (ALEXY, 2007, p. 130-132).
O parâmetro que definirá conflito entre regras se fará através de exceção,
seguidas da pertinente subsunção. Neste sentido, Alexy assume a necessidade de
geração de uma lógica (ou decisão) de validade a que a regra deve submeter-se. A
colisão entre duas regras gera a necessária condição de que uma delas seja
inválida, ou de que uma das regras comporte exceção, de modo a autoexcluir sua
incidência, eliminando assim o conflito.
Como assevera Bustamante, “o conflito entre regras se opera no nível da
validade jurídica, que não é gradual (...) uma norma só pode valer ou não valer
juridicamente” (BUSTAMANTE, 2005, p. 189). Esta assertiva dará ao entendimento
justaposto entre regras e princípios uma possibilidade de análise sob a ótica da
“elasticidade” talhada aqui como modelo elucidativo de compreensão da lógica
estrutural sugerida por Alexy.
Colisões de princípios, por outro lado, têm dinâmicas e movimentos próprios,
diferentemente do que ocorre com as regras. Não se propõe supor que um princípio
em colisão deva ser “extirpado” do ordenamento jurídico através da exceção, em
detrimento a uma eventual “preponderância” de um sobre o outro. Alexy
empreendeu uma lógica segundo a qual haverá a necessidade de inserir nova
dimensão (ponderação ou sopesamento) que preponderará entre os espaços de
validade jurídica contingenciados entre dois princípios em colisão.
Como o autor evidencia, os princípios não se sobrepõem uns sobre os
outros como precedência da mesma mecânica empreendida no tratamento das
colisões de regras, cuja “eliminação” se dá pela exceção. O caráter “elástico” dos
princípios não permitirá, em função de sua vinculação a marcos históricos
constituídos politicamente, que se rompam pelo simples fato de serem pertinentes,
numa dimensão tempo/espaço, ao mesmo caso jurídico.
A contribuição da teoria de Robert Alexy repousa em permitir, através da
ponderação de um princípio em relação (e não um sobre o outro) ao outro, que o
momento de decisão de uma determinada norma (válida juridicamente) não gere um
hiato pela ausência de algum dos princípios que, por sua própria eficácia elástica,
sopesarão um em relação ao outro. Dirá o autor que “na verdade, o que ocorre é
que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas
Hermenêutica constitucional e pós-positivismo
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349
condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de
forma oposta”. E, prossegue Alexy, “isso é o que quer dizer quando se afirma que,
nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que o princípio com maior
peso tem precedência” (ALEXY, 2001, p. 94).
É importante ressaltar que a ponderação de que trata Robert Alexy não é,
exatamente, aquela intrínseca ao princípio. O princípio não é objeto, mas causa do
sopesamento. O que alimentará este mecanismo é o caso concreto em análise. É o
conflito que deve ser resolvido entre os interesses antagônicos. Princípios têm em si
sua prioridade que só será revelada quando relativizada através do sopesamento
motivado pela relevância (interesse) no caso concreto.
3.2.3 Ábaco representativo da relação espacial entre regra e princípio
O que está posto na teoria de Alexy acerca das colisões de princípios e de
regras pode ser sumariamente interpretado no ábaco acima, ao menos na ratificação
de seus principais fundamentos.
Princípios têm entre si tensões antagônicas com sentidos opostos (restrição
x realização), que pelo seu caráter “elástico” não romperão diante de uma situação
concreta, posto que a conclusão resulte numa ação de “dever”, de “realização”,
retornando ao equilíbrio anterior com todo vigor de antes.
As regras têm limites (R’ – R”) cujos esforços em ultrapassá-los serão
remediados somente pela aplicação da regra de exceção. Robert Alexy dirá que “as
regras exigem que seja feito exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma
determinação da extensão de seu conteúdo nos âmbito das possibilidades jurídicas
e fáticas” (ALEXY, 2001, p. 104).
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Sucede que as regras sinalizam interface com os princípios (P). No ábaco, a
reta resultante da limitação natural desta regra irradia no sentido de atingir
(transpassar) determinado conflito que, como já dito, mantém sua “energia elástica”
que permitirá ser sopesado em relação a outro princípio, diante, sempre, de um caso
concreto que envolva interesses conflitantes. A resultante deste processo de
“condensação de energia” atingirá os limites da validade jurídica (representado na
barra superior), imprescindível para a estabilidade do ordenamento jurídico.
Insta ressaltar, por fim, que após atingir e definir os limites da validade, a
“reta resultante” da relação regra x princípio demandará um limite de plena aplicação
da decisão da norma que é representada pela “prima facie”. Robert Alexy elenca a
aplicação do caráter “prima facie” entre regras e princípios, quando afirma que “os
princípios têm sempre um mesmo caráter prima facie, e as regras um mesmo caráter
definitivo”. Daí a área replicada pela “prima facie” no ábaco acima.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do que se expôs, nota-se que a concepção de Alexy permanece tributária de
alguns dos pressupostos centrais do positivismo jurídico, desde que este último seja
tomado em conta como realmente existiu e existe, e não na forma “caricaturada”
com que é frequentemente tratado. O problema persiste ainda que se considere a
ponderação realizada em concreto, e não no que Alexy chamou de “modelo
decisionista”.
Por sofisticada que possa se apresentar, a proposta de Alexy vincula o
conceito de norma ao de enunciado linguístico, sem a devida atenção ao mundo da
vida, ao mesmo tempo em que relega boa parte do trabalho jurídico à subsunção
(todo o trabalho com as regras é dado por meio do silogismo). Mais importante,
contudo, é o fato de que Alexy, pelo só fato de reconhecer a possibilidade de uma
subsunção, ou pela possibilidade de propositura da uma “ordem hierárquica de
valores”, concebe a norma jurídica como algo pré-dado, ontologicamente
estabelecido.
Assim, o principal equívoco do pós-positivismo defendido majoritariamente
no Brasil — que é baseado na obra de Alexy — é o de imaginar que a aporia
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
351
fundamental do positivismo jurídico seja o “apego à letra da lei”. Mas o desrespeito
ao texto da norma é algo que não rompe unicamente com o juspositivismo, e sim
com o próprio Estado de Direito. O que deve ser rediscutido pelo pós-positivismo,
como já adverte Müller há quatro décadas, é a concepção ontológica da norma
jurídica, como algo previamente dado e cujo processo de implementação prática seja
de caráter puramente hermenêutico.
O presente estudo, nos limites estritos em que se delineou, não traz a
resposta para todas as indagações que decorrem da visão da norma jurídica aqui
defendida. Contudo, o intento que reuniu o grupo de estudos em Joinville foi o e uma
contribuição para que a discussão do pós-positivismo possa ser amadurecida e
aperfeiçoada na ciência jurídica brasileira.
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Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
355
FRANCA – SÃO PAULO
MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: UMA
(DES)CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA DO PROBLEMA DA
INTERVENÇÃO DO SENADO EM SEDE DE CONTROLE
DIFUSO DA CONSTITUCIONALIDADE
CONSTITUTIONAL CHANGES AND DEMOCRACY: A HERMENEUTICS (DES)CONSTRUCTION OF THE PROBLEM OF INTERVENTION OF THE SENATE LONGING DIFFUSE CONTROL OF
CONSTITUTIONALITY
Tayara Talita Lemos1
Rafael Tomaz de Oliveira2
Rafael Shinhiti Kato
Marina Monteiro
Joaquim Eduardo Pereira
Gabriela Vidotti Ferreira
Sumário: Notas introdutórias. 1. Exploração histórica do sentido da intervenção do Senado no
controle difuso de constitucionalidade. 1.1. O Constitucionalismo – Limitação do
Poder e Pré-Compromisso – e a Jurisdição Constitucional. 1.2. A Judicial Review e
suas Implicações na Experiência Constitucional Brasileira. 1.3. Considerações
Globais Sobre o Problema “Genético” do Sistema Jurídico Romano-Germânico: a
Falta De um Mecanismo de Vinculação dos Precedentes. 2. É a mutação
constitucional fundamento suficiente e adequado para modificar o sistema de
controle de constitucionalidade?. 2.1. Breves Considerações a Respeito da Mutação
Constitucional. 2.2. Discussão Contextualizada. 2.2.1. O cabimento da reclamação.
2.3. O Entendimento Adotado Pelos Ministros que Votaram na Reclamação e o Texto
da Constituição, art. 52, X. 3. Mutação constitucional e democracia: como essas
questões repercutem no paradigma do Estado Democrático de Direito. 3.1. O Estado
Democrático de Direito, como Contexto Propício ao Desenvolvimento do
Neoconstitucionalismo e da Jurisdição Constitucional. 3.2. É a jurisdição
constitucional um poder constituinte permanente? O art. 52, X da CF: mutação
constitucional e seus reflexos na crise de democracia. Considerações finais.
Referências bibliográficas.
1 Mestranda em Direito pela UFMG.
2 Doutorando e Mestre em Direito pela Unisinos.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
356
NOTAS INTRODUTÓRIAS
As presentes reflexões tiveram por objetivo investigar uma questão que se
apresenta na ordem do dia no âmbito dos temas de interesse em torno do controle
de Constitucionalidade brasileiro. Trata-se do problema da supressão do mecanismo
da remessa/intervenção do senado em sede de controle difuso de
constitucionalidade (CF, art. 52, X).
Com efeito, o mecanismo da intervenção do senado em sede de controle
difuso da constitucionalidade é uma criação brasileira – incorporada à nossa tradição
jurídica desde a Constituição de 1934 – que procura sanar uma deformidade
estrutural deste mecanismo de controle em razão da falta de um mecanismo de
vinculação dos precedentes (stare decisis) em nosso sistema jurídico (Civil Law –
sistema romano-germânico).
A intervenção do senado tem a pretensão de fortalecer o sistema de freios e
contrapesos (check and balances) na relação interinstitucional entre as três funções
do poder do Estado. Nessa medida, qualquer alteração no desenho constitucional
em que figura tal medida implica no problema da democracia.
Em decisão recente3, dois ministros do Supremo Tribunal Federal – Gilmar
Ferreira Mendes e Eros Grau – firmaram posição no sentido de que, em virtude das
muitas reformas constitucionais operadas pelo Poder Constituinte Derivado e pela
própria formatação do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico
brasileiro, apontam in casu para uma transformação global do sistema; operando
assim uma verdadeira mutação constitucional que assinalaria para a supressão da
intervenção do senado para produzir eficácia erga omnes e efeito vinculante para as
decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade. Em outras
palavras, a decisão do STF em sede de controle difuso teria os mesmo efeitos
daquela proferida em sede de controle concentrado.
Diante disso, foram diagnosticados os seguintes problemas:
A) Qual o significado atual da intervenção do senado no contexto
apresentado, diante do fato de que tal medida serviria para solucionar um
3 Reclamação 4335 – AC.
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
357
problema genético (a falta de um mecanismo de vinculação dos
precedentes) do sistema jurídico romano-germânico?
B) Em que sentido é válida a afirmação de que exista mutação constitucional
(supressão da intervenção do Senado) no caso em tela, considerando o
problema hermenêutico inexoravelmente presente na questão?
C) Tal afirmação encontraria respaldo no paradigma do Estado Democrático
de Direito? É a intervenção do senado um mecanismo ainda importante
para a convivência democrática dos três poderes?
A exploração de tais problemas teve lugar, não de um modo aleatório,
desprendido de um quadro metodológico, mas sim a partir do revolvimento do chão
linguístico possibilitado pela hermenêutica contemporânea4.
O Método escolhido para a pesquisa ser realizada é o Fenomenológico-
Hermenêutico. Trata-se de um projeto transdiciplinar que pretende discutir a delicada
relação entre Direito e Política – no que tange ao momento concretizador da norma:
a decisão judicial – tendo como horizonte a experiência filosófica, notadamente
naquela corrente que se instituiu no século XX intitulada hermenêutica. O método da
pesquisa, portanto, tem sua fonte na própria discussão filosófica sobre o método.
Nessa medida, é importante destacar que a ideia de método se transformou
no interior da modernidade, de modo que é possível falar em pelo menos duas
acepções para o termo, que mencionaremos nesta pesquisa como “método” e
método. Quando utilizarmos o termo entre aspas, procuraremos apontar para a
fenomenologia, enquanto um como um modo de filosofar. Quando se mencionar o
termo sem aspas, estaremos falando do método em seu sentido produzido no
interior da modernidade, ou seja: ideia de certeza e segurança próprias da
matematicidade do pensamento moderno. Assim, e de modo decisivo, podemos
estabelecer a diferença específica entre os dois modos em que empregamos o
termo afirmando que o método da modernidade é sempre acabado e definitivo. São
4 Há várias pesquisas realizadas no direito brasileiro que levam em conta o referencial da
hermenêutica no modo como ela foi desenvolvida pelos trabalhos de Martin Heidegger e Hans-
Georg Gadamer. Isso se deu, principalmente, a partir dos caminhos abertos por Ernildo Stein no
campo da filosofia e por Lenio Streck no âmbito do Direito. Nesse sentido, Cf. Stein (2006); Streck
(2009); Streck (2008); Marrafon (2008); Oliveira, (2008). Oliveira; Abboud (2008, p. 27-70).
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
358
fórmulas previamente determinadas que, se seguidas corretamente, irão garantir
com certeza e segurança o resultado pretendido. Já o “método” (enquanto
fenomenologia) é sempre precário e provisório e não permite sua total apreensão e
domínio. Tanto é assim que Martin Heidegger – a quem devemos o desenvolvimento
do método fenomenológico para além das conquistas husserlianas – nunca chegou
a expor com precisão quais seriam os contornos de seu “método”. “Método” este que
receberá ainda o adjetivo de hermenêutico (OLIVEIRA, 2008, p. 36 e ss).
Quanto ao “método” propriamente dito, interessam-nos particularmente três
pontos que o próprio Heidegger oferece como descrição, e que parecem exprimir, de
um modo englobante, aquilo que o “método” fenomenológico comporta5. São elas: a)
a redução; b) a destruição; c) a construção.
Pela redução é preciso deslocar o olhar do ente em direção ao ser, de modo
que aquilo que permanece oculto no que se mostra, possa se manifestar. A
destruição apresenta-se como um procedimento regressivo através da história da
filosofia (autores como Günter Figal falam em repetição fenomenológica),
procurando destruir as sedimentações que se formam na linguagem e endurecem a
tradição. Ou seja, trata-se de ler a tradição de modo que seja possível perceber nela
possibilidades que ficaram inexploradas por uma série de encobrimentos. Neste
sentido, com Gadamer, ressaltamos que a palavra fenomenologia não implica
apenas em descrição daquilo que é “dado” à consciência, mas também inclui a
supressão do encobrimento que não precisa consistir apenas em falsas construções
teóricas (GADAMER, 2007, p. 16).
Esta afirmação de Gadamer é importante na medida em que, com
Heidegger, tem-se uma verdadeira renovação da intenção da filosofia e do próprio
método fenomenológico: quanto à filosofia, Heidegger a libera do corte
opressivamente teórico que a marcava desde Descartes e a matematização do
pensamento na modernidade, e abre caminho para sua invasão pela história, para a
colocação da história como modelo de pensamento; ao passo que, na
fenomenologia, enquanto como da investigação ou “método”, o filósofo rompe com a
orientação para a descrição daquilo que é dado à consciência pela intencionalidade,
5 Nesse sentido, Cf. Heidegger (2000), em especial a introdução.
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
359
para estabelecer a superação dos atrelamentos existentes na linguagem que
implicam em encobrimento das possibilidades existentes na tradição. Como já
ressaltamos em nota, Heidegger substitui o termo dado – tão caro à fenomenologia
transcendental de Husserl – por acontecer, que procura apontar para a
compreensão do ser na abertura do ser-aí. Isso é de extrema importância porque,
em Husserl, a fenomenologia continuava refém do dualismo metafísico entre
sensível e suprassensível e do esquema sujeito-objeto, o que tornava artificial
qualquer possibilidade de um pensamento da história – e consequentemente das
ciências humanas. Isto porque o conceito de intencionalidade e do “dado” a ser
descrito, continuam pressupondo um sujeito que recebe – monadologicamente – um
objeto intencionado em sua consciência. Para Heidegger, tanto o elemento sensível
como o suprassensível só podem ser pensados na radicalidade da própria
existência, estando excluída qualquer possibilidade de justificação de um “mundo
paralelo” no qual os dados sensíveis fossem pensados de um modo suprassensível.
(STEIN, 2006).
Tendo isso presente, podemos dizer que a destruição se mostra como o
elemento fenomenológico que nos permite olhar para a tradição orientados pelo
desentranhamento das possibilidades que nela permanecem enrijecidas. Como
lembra Figal, para Heidegger a grandeza da fenomenologia reside, basicamente, na
descoberta da possibilidade do investigar na filosofia (FIGAL, 2005). Mas uma
possibilidade compreendida em seu sentido mais próprio no qual ela permanece
retida como possibilidade. Esse permanecer retida como possibilidade não implica
num estado causal em relação à problemática “efetivamente real”, mas antes em
mantê-la aberta e liberá-la dos soterramentos atuantes.
O último elemento lembrado por Heidegger (a construção) pertence em
verdade à destruição. Isto porque a repetição da tradição com a consequente
supressão de seus encobrimentos linguísticos não representa uma pura negação
dela. Tampouco representa a destruição um prejuízo no qual a tradição tenha que
ser totalmente removida, a partir da instituição de uma espécie de “grau zero”, senão
que a destruição implica numa apropriação positiva do passado que sempre
possibilita a construção de novos projetos.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
360
Redução, destruição e construção são elementos do método
fenomenológico hermenêutico que apontam para uma necessária recolocação da
história no âmbito da investigação dos temas das ciências humanas e sociais. Ou
seja, essas ciências que têm a peculiaridade de explorarem o mundo da cultura,
precisam ter a história como modelo para poder colocar suas conquistas num
terreno mais robusto do ponto de vista existencial. É nesse sentido que os trabalhos
foram desenvolvidos e os problemas destacados nesta introdução, enfrentados.
1 EXPLORAÇÃO HISTÓRICA DO SENTIDO DA INTERVENÇÃO DO SENADO NO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE
1.1 O Constitucionalismo – Limitação do Poder e Pré-Compromisso – e a Jurisdição Constitucional
No contexto dos projetos democráticos, desenvolvidos no segundo pós-
guerra, diversos autores têm apontado para o papel estratégico desempenhado
pelos meios de concretização das previsões constitucionais. Essa constatação
relevante se elucida com a percepção de que todos os países que atravessaram um
período de exceção acabaram por optar por um modelo constitucional garantidor
(nos moldes daquilo que tem sido chamado neoconstitucionalismo) e, ao mesmo
tempo, deslocaram para o judiciário um inevitável foco de atenções, representado
pelo caráter incisivo assumido pela jurisdição constitucional.
Desse modo, o Poder Judiciário é chamado cada vez mais a participar do
deslinde das questões públicas e, concomitantemente, o problema de como será
proferida esta decisão também surge como uma questão salutar. Nessa medida,
pode-se dizer, com Lenio Streck, que o grande problema contemporâneo é o
desenvolvimento de anteparos para a atividade jurisdicional (STRECK,
(Apresentação ao livro de TRIBE e DORF, 2007).
De fato, o histórico do constitucionalismo, especialmente a partir das
grandes revoluções, aponta para o ideal de constituição como meio eficaz de
limitação do poder e consequente garantia das liberdades (MATTEUCCI, 1998, em
especial a introdução).
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
361
Revestem-se, assim, as constituições modernas com a roupagem de pré-
compromisso, no sentido de que operam como restrições que os próprios atores
políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, na intenção de garantir um
governo que esteja sob o Direito, e não sobre ele. Ou seja, com Stockton, é possível
dizer que “constituições são correntes com as quais os homens se amarram em
seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia
de frenesi”. Bem como se poderia asseverar, como o faz Cass Sunstein, que “as
estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a
miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”6.
Jon Elster propõe um modo bastante elucidativo para compreender as
estratégias limitadoras desenvolvidas pelo constitucionalismo. O autor estabelece
uma sequência de três estágios, que podem ser visualizados de modo distinto nos
três modelos constitucionais (ING, FRA, EUA):
No primeiro, há uma forte monarquia que é percebida como arbitrária e tirânica. No segundo, esta é substituída por um regime parlamentar sem restrições. No terceiro, quando se descobre que o parlamento pode ser tão tirânico e arbitrário quanto o rei, são introduzidos freios e contrapesos (ELSTER, 2009, p. 167).
O último estágio, caracterizado pelo mecanismo de freios e contrapesos,
evoca a experiência constitucionalista estado-unidense. Neste país (ainda em
formação), algumas características vieram a fertilizar o terreno donde nasceria o que
6 Ambos citados por Elster (2009, p. 120). Aliás, é importante anotar, que foi Elster quem melhor
trabalhou a aproximação entre a ideia de pré-compromisso que aparece na Odisséia de Homero e
as modernas Constituições, principalmente aquela que representa a consagração do
constitucionalismo norte-americano. Com efeito, no épico de Homero, Ulisses, durante seu
regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria provações de toda sorte. A mais conhecida destas
provações é o “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus
objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível voltar. Ocorre
que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus subordinados
que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem de
soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso,
cria uma auto-restrição para não sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituições poderiam
ser vistas como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas
restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou
monocráticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construção e a entende, atualmente, apenas
parcialmente correta. Isso por uma série de questões que não cabem serem aqui analisadas. Para
efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a ideia de pré-compromissos
constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
362
atualmente conhecemos como controle difuso da constitucionalidade. Isso porque os
norte-americanos conheciam as construções teóricas do iluminismo inglês e francês
e sabiam das medidas que a Inglaterra e a França vinham tomando para moderar o
poder do Rei. Ao se aproveitar dessas construções, a revolução americana edifica
uma série de aportes teóricos que transformam profundamente o constitucionalismo:
a) em primeiro lugar, a afirmação de um sistema federalista de governo que
garantiu autonomia administrativa e legislativa aos Estados (treze colônias
independentes);
b) a criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a
construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais
– prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que
os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de
“aristocracia de fato”7 – a partir da garantia dos direitos da minoria. Estratégia
justificada na desconfiança de Madison formulada no seguinte enunciado: “em todos
os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os
direitos da minoria estão em perigo”.
c) A criação de um ambiente cultural no interior do qual a lei ocupa o lugar
do rei, em contraposição aos modelos absolutistas em que o rei é a lei. Desse modo,
a afirmação de Thomas Paine de que “uma Constituição não é um ato de um
governo, mas sim o ato de um povo que cria um governo”, ou, em outras palavras,
“um governo sem Constituição é um poder sem direito”, encontra terreno fértil para
brotar e dar frutos (MATTEUCCI, 1998, p. 164)
O resultado disso é uma construção histórica – herdada dos arestos de Sir
Edward Coke – que institucionalizou a revisão dos atos do congresso e do executivo
pelo poder judiciário. Assim, a jurisdição constitucional8 – no caso em análise, o
7 A expressão é de Mirabeu e utilizada por Elster ( 2009, p.169).
8 Importante salientar que o termo jurisdição constitucional tem um sentido decisivo naqueles países
que, adotando a fórmula de Tribunais Constitucionais ad hoc, possuem um órgão especializado
para se pronunciar sobre questões envolvendo a constitucionalidade das leis e demais matérias
determinadas pela própria constituição. Dessa maneira, se diferencia a jurisdição ordinária
(comum) da jurisdição constitucional, que aparece como uma espécie de jurisdição especializada.
No Brasil, essa significação perde sentido, na medida em que nos ordenamos por um sistema
misto de controle da constitucionalidade no qual convivem o modelo difuso, baseado no judicial
review americano e o modelo concentrado, de inspiração continental. Ademais, a despeito de o
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
363
exercício da judicial review of legislation – veio a tornar-se a garantia de que o pré-
compromisso constitucional seria devidamente cumprido. E isso é consequência da
verdadeira soberania da lei; não de qualquer lei, mas daquela que passa a ser
entendida como a lei das leis, a paramont law, dotada de supremacia e rigidez: a
Constituição. Nas palavras de Matteucci: “em lugar da velha lei consuetudinária, uma
Constituição escrita, que contém os direitos garantidos aos cidadãos por um juiz,
que fixa e declara a lei” (MATTEUCCI, 1998, p. 169).
Desse modo – e para se ter a dimensão da importância estratégica da
judicial review no contexto da democracia nos Estados unidos –, são esclarecedoras
as palavras de Tocqueville, que posiciona a Suprema corte como um verdadeiro
Tribunal da Federação:
Nas mãos dos sete juízes federais repousam incessantemente a paz, a prosperidade, a própria existência da União. Sem eles, a Constituição é obra morta; é a eles que recorre o Poder Executivo para resistir às intromissões do corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas do poder executivo; a União para se fazer obedecer pelos Estados; os Estados, para repelir as pretensões exageradas da União; o interesse público contra o interesse privado; o espírito de conservação contra a instabilidade democrática (TOCQUEVILLE, 1998, p. 169-170).
1.2 A Judicial Review e suas Implicações na Experiência Constitucional Brasileira
No Brasil, a judicial review passa a se chamar controle difuso, uma
referência ao caráter abrangente do controle, que se pulveriza por todas as esferas
do poder judiciário. No contexto atual, há também outros modos de se referir a essa
modalidade de controle da constitucionalidade: via de exceção; via de defesa;
controle concreto; incidenter tantum. De qualquer modo, as raízes de todas essas
nomenclaturas estão arraigadas na tradição que conforma o modelo norte-
americano de judicial review.
Supremo Tribunal Federal ter competência para julgar, de forma concentrada, a
constitucionalidade das leis, tal qual um Tribunal Constitucional europeu, não se pode dizer que
vivenciamos um modelo de jurisdição constitucional stricto senso. Em todo caso, o uso da locução
deve ser preservado por já estar, de certo modo, sedimentado em nossa tradição jurídica. Cf.
Streck, (2004).
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
364
Aliás, não é apenas a função de revisão judicial dos atos do parlamento que
a Constituição Republicana de 1891 irá incorporar do modelo constitucional norte-
americano, mas na verdade haverá uma pretensão de incorporação global da
engenharia constitucional estado-unidense. Isso fica claro pela posição firmada por
aquele que foi o grande articulista do projeto constitucional de 1891: Rui Barbosa.
Nas palavras do autor, a Constituição brasileira é “filha do direito americano”, sendo
que este estado de influência é notado inclusive na legislação da época que
prescrevia, nos artigos orgânicos da justiça federal, a seguinte disposição: “os
estatutos dos povos cultos, especialmente os que regem as relações jurídicas na
República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e
equity serão subsidiários da jurisprudência e processo federal” (BARBOSA, 2003, p.
19).
Os autores de nossa Constituição, em cujo nome tenho algum direito de falar, não eram alunos políticos de Rousseau e Mably (...), eram discípulos de Madison e Hamilton. Não queriam essa ilusória soberania do povo, da qual dizia o insigne professor de legislação comparada no Colégio de França que nunca foi, em seu país, “senão um grito de guerra explorado por ambiciosos”. E, sabendo que essa soberania tumultuária, inconsciente e ludibriada “não serve senão para destruir”, querendo utilizar com sinceridade a soberania do povo como peça regular, como força conservadora no mecanismo político, embeberam a sua obra exclusivamente no exemplo americano; porque a doutrina das revoluções francesas, onde a democracia aparece apenas um nome (BARBOSA, 2003, p. 30-31).
Essa questão fica muito clara, no momento em que, enquanto a Constituição
norte-americana trazia, apenas de forma implícita, o fundamento de legitimidade da
judicial review, a Constituição brasileira de 18919 – fortemente influenciada por Rui
Barbosa – introduziu expressamente uma cláusula que previa a possibilidade de
revisão judicial dos atos da legislatura e da administração pública.
De todo modo é certo que o cultivo de um poder limitado que garantisse as
liberdades individuais não logrou grande êxito em terras brasileiras. Há uma série de
acontecimentos que levaram à distorção daquilo que, nas outras tradições
constitucionalistas, eram mecanismos de freios ao exercício monolítico do poder.
Cumpre analisá-los.
9 Previsão esta encontrada no art. 60, a e art. 59, § 1º, a da Constituição de 1891.
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
365
A primeira ordem de fatores estreita-se com as dificuldades pelas quais o
Brasil passou (e ainda passa) para livrar-se de um certo “parasita” patrimonialista e
oligárquico nas suas estruturas sociais. Esse “parasita” representa um inimigo
simbólico que impede a penetração do espectro cultural que permeia todo
constitucionalismo. Toma-se, como exemplo, a própria criação do Supremo Tribunal
Federal.
A Constituição de 1824 não previa um controle de constitucionalidade a ser
exercido pelos órgãos jurisdicionais. Diante disso, os atores políticos, na cena da
instauração da República, tomaram qual iniciativa?
Criaram um Supremo Tribunal Federal e deram a ele o poder de julgar a inconstitucionalidade das leis. Com isso, estaria garantida a eficácia da Constituição, cujas violações poderiam ser objeto de controle. Os críticos da lei superior, lei meramente de papel, combateram um vício político com outra ação apenas política, desatentos à profundidade do mal. Rui Barbosa definiu bem o escopo da reforma, ambiciosamente planejada. “Formulando para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometam; mas que as constituições, entregues como ficam, ao arbítrio do parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto, fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da Constituição, demo-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado, resumimos-lhe a função específica nesta idéia” (FAORO, 2001, p. 76-77).
No entanto,
O resultado da defesa republicana ao arbítrio foi exatamente o contrário do pretendido. Se é certo que se temperou, em alguns casos, o excesso legislativo e o abuso da força, de nenhuma forma o novo mecanismo fixou a consciência e a prática da supremacia da Carta Magna, para que esta regulasse as relações do poder, sem margem ao residual capricho. [...] Rui viu no malogro apenas a covardia dos juízes. “Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interessem supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde (FAORO, 2001, p. 76-77).
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366
1.3 Considerações Globais Sobre o Problema “Genético” do Sistema Jurídico Romano-Germânico: a Falta De um Mecanismo de Vinculação dos Precedentes
A esses fatores – políticos e sociológicos – soma-se um problema de ordem
jurídica, com a adoção do modelo de judicial review pela Constituição de 1891. O
modo de dar unidade à declaração de inconstitucionalidade no direito norte-
americano faz parte da própria carga genética do sistema da common law10. Ou
seja, se um ato do congresso é declarado nulo pela Suprema Corte dos Estados
Unidos, a decisão que o declarou entrará na cadeia de precedentes e, deste modo,
deverá ser respeitada em todos os demais tribunais da federação.
Diversamente, no sistema romano-germânico, no qual o Brasil se insere, os
julgamentos precedentes orientam futuras decisões, sem vinculá-las. Repugna ao
jurista dessa família11 reconhecer, nas regras que decidiram certo caso, a
10
O direito inglês nasce com a conquista e consolidação da ocupação dos normandos na Inglaterra.
Esse processo, para se manter, exige uma forte centralização do poder do rei conquistador. Até o
período de 1066, não há o direito inglês, propriamente dito. Os costumes locais ainda prevalecem,
sendo aplicado pelos tribunais também locais. A common law é obra exclusiva dos Tribunais Reais
de Justiça. Os Tribunais de Westminster (localidade dos tribunais reais), até a data de 1875, são
jurisdição de exceção. Somente causas que interessem á Coroa são julgadas. As demais, ou são
decididas segundo os costumes pelos tribunais locais, ou são conhecidas pelos tribunais
eclesiásticos, conforme a matéria. O particular que pleitear a justiça do rei deverá dirigir-se a um
seu funcionário, o Chanceler, e pedir um writ, documento que move a jurisdição real. Ou seja, não
sendo observado o ato formal de buscar da chancelaria a chave de acesso ao tribunal, toda causa
ficará sem ser conhecida pelos juízes. René David explica que “a common law, nas suas origens,
foi constituída por um certo número de processos (forms of action) no termo dos quais podia ser
proferida uma sentença; qual seria, quanto à substância, esta decisão, era algo incerto. O
problema primordial era fazer admitir pelos Tribunais Reais a sua competência e, uma vez
admitida, levar até o fim um processo cheio de formalismo” (Cf. DAVID, 1998, p. 290). Tudo isso
contribui para o caráter eminentemente jurisprudencial do direito inglês, que se concentra em uma
técnica diversa da “técnica de interpretação das regras jurídicas; consiste, partindo das ’legal rules’
já estabelecidas, em descobrir a legal rule, talvez nova, que deverá ser aplicada em espécie; esta
tentativa é conduzida levando-se em conta os fatos de cada espécie e considerando com cuidado
as razões que existem para distinguir a situação que hoje se apresenta das que foram
apresentadas no passado”. (DAVID, 1998, p. 326). Arrematando: “a obrigação de recorrer às
regras que foram estabelecidas pelos juízes (stare decisis), de respeitar os precedentes
judiciários, é o correlato lógico de um sistema de direito jurisprudencial” (DAVID, 1998. p. 341). 11
O direito continental - essa terminologia diferencia o direito formado sob a égide da tradição
romana, no interior do continente europeu, do direito costumeiro e jurisprudencial inglês - é fruto
do labor de juristas que se ocupam do direito nos bancos da Universidade. De fato, desde a
retomada da literatura pagã e com seu auge no séc. XIII, o direito romano é o centro de
preocupação do homem medieval preocupado com a administração da justiça. Ao lado da tradição
romana, erguiam-se as obras dos canonistas, já que muitos assuntos da urbi eram resolvidos
pelos clérigos e autoridades eclesiásticas (casamento, testamento, matérias de disciplina
eclesiástica estavam sob a jurisdição da Igreja romana). “Talvez de forma ainda mais profunda,
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
367
obrigatoriedade que delimitará o trabalho de outro órgão julgador em outro caso.
Poder-se-ia afirmar que a herança romana exige uma norma racionalmente
impositiva (papel preponderante do legislador), não casualmente elaborada.
Assim, ao contrário do Direito estado-unidense, que empresta eficácia
vinculante às decisões da Suprema Corte pelo stare decisis, a tradição jurídica
herdada pelo Brasil o torna carente de mecanismo hábil à generalização (erga
omnes) dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal quando declara sobre
a constitucionalidade de uma lei.
Isso até 1934, quando o constituinte inovou e deu competência ao Senado
Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato,
deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo
Poder Judiciário” (Art. 91, IV, da Constituição de 1934). Essa disposição se manteve
na vigente Constituição da República, de 1988, com seguinte teor: “compete
privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de
lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”
(Art. 52, X).
Portanto, a intervenção do Senado no controle difuso de constitucionalidade
foi e continua sendo, por expressa previsão do texto da Carta Maior, o instrumento
imprescindível ao devido procedimento de generalização dos efeitos das decisões
em que a Corte guardiã da Constituição aprecia – de modo incidental, ao julgar
casos concretos – questões concernentes à constitucionalidade de leis ou atos
normativos.
fez-se sentir a influência da igreja ocidental. Pelo menos desde Constantino, ela tinha assumido
muitas das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império. Depois do colapso deste, ela
subsistiu com um abrigo para as populações romanas e, para os germanos, como algo aceite, na
maior parte dos casos, desde cedo e voluntariamente. A igreja aparecia aos jovens povos como
uma poderosa criação real, na qual sobreviviam ao mesmo tempo, como realidades presentes em
carne e osso, Roma e o império romano; isto muito depois de o império ter caído. Os seus
dignitários substituíram, de forma de longe mais eficaz do que tudo o resto, a administração, a
autoridade, a cultura, a jurisdição e as técnicas documentais, processuais e notariais das
autoridades seculares”. (cf. WIACKER, 2004, p. 17). No âmbito do direito influenciado diretamente
pelos cânones da disciplina eclesiástica e modelado pelo estudo dos escritos romanos, a regra
está prevista nos textos legais, bastando ao intérprete aplicar o seu conteúdo. O ápice da
confiança depositada no legislador se dá com a codificação.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
368
2 É A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTO SUFICIENTE E ADEQUADO PARA MODIFICAR O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE?
2.1 Breves Considerações a Respeito da Mutação Constitucional
A Constituição é um evento (Streck/Gadamer), em constante modificação.
Quando há apenas uma mudança natural/não intencional na aplicação da norma,
trata-se de mutação constitucional. Esse entendimento se estriba em doutrinadores
autorizados, para quem “mutações constitucionais nada mais são que as alterações
semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no
prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação”
(COELHO; MENDES; BRANCO, 2008, p. 130).
Não há alteração do texto da norma, como também assevera Nelson Nery
Júnior, ao dizer que “mutação constitucional (Verfassungswandlung) é a modificação
natural e não forçada que ocorre na Constituição, sem alteração do texto, em virtude
de interpretação legislativa, administrativa e jurisdicional, bem como por práticas,
usos e costumes” (NERY JÚNIOR, 2009, p. 94). Só poderá haver mutação
constitucional quando ocorrer fatos novos não previstos pelo legislador. Porém, deve
ser sempre um processo natural, como pode ser observado ainda no mesmo autor
(NERY JÚNIOR, 2009, p. 95):
A modificação forçada não se caracteriza como mutação constitucional, mas sim como ruptura do sistema. (...) quando se anuncia ou prenuncia que determinada circunstância está sendo modificada pelo tribunal constitucional porque se trataria de mutação constitucional, na verdade está ocorrendo ruptura do sistema, com ofensa flagrante ao texto e ao espírito da Constituição, porque o anunciador ou pronunciador está demonstrando à evidência sua intenção de modificar a Constituição sem o due process legislativo.
Ainda cabe aludir que Canotilho denomina de transição constitucional a
mutação constitucional, e diz que é uma “revisão informal do compromisso político
formalmente plasmado na constituição sem alteração do texto constitucional. Em
termos incisivos: muda o sentido sem mudar o texto” (CANOTILHO, 2004, p. 1.228).
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
369
2.2 Discussão Contextualizada
Há uma questão concreta – que ainda aguarda julgamento perante o STF12
– que serve de contexto à problemática suscitada. Trata-se do problema da
supressão do mecanismo de intervenção do Senado como condição de
possibilidade para suspender, com caráter erga omnes, a execução da lei declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso de
constitucionalidade.
No enfrentamento da Reclamação 4335 – AC, a Corte aponta para a tese de
que, em virtude de uma tendência à “concentração” do controle de
constitucionalidade no Brasil, estaria a ocorrer in casu uma verdadeira mutação
constitucional, restando autorizada a conclusão de que as decisões proferidas pelo
Tribunal em sede de controle difuso teriam eficácia erga omnes independentemente
da remessa ao Senado, como prevê o art. 52, X da CF.
Dois ministros, Gilmar Mendes e Eros Grau, firmaram posição no sentido de
que, em virtude das muitas reformas constitucionais operadas pelo Poder
Constituinte derivado e pela própria formatação do controle de constitucionalidade
no ordenamento jurídico brasileiro, apontam para uma transformação global do
sistema.
Ora, é permitida tal interpretação, diante da história institucional (Dworkin) do
direito brasileiro? Como ficou delineado, o controle de constitucionalidade é marcado
historicamente. pelo modo difuso, ou seja, pelo tipo de controle em que se demanda
julgamento preliminar – de matéria constitucional – à decisão do mérito de uma
causa levada a juízo. No Supremo Tribunal Federal, esse juízo se dá por via
recursal. Caso entenda oportuno, a mesma Corte remete ao Senado Federal sua
declaração de inconstitucionalidade de lei, para que o órgão do Poder Legislativo,
conforme seu poder discricionário, suspenda sua execução.
O modelo concentrado de controle de constitucionalidade foi implantado
tardiamente no Brasil, em 26 de novembro de 1965, pela Emenda nº 16 à
12
Até o momento da redação desse artigo, o julgamento está sob pedido de vista do Ministro
Ricardo Lewandowski.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
370
Constituição de 1946. Assim, desde esta data, o que existe é um sincretismo na
engenharia da jurisdição constitucional, havendo a convivência de dois mecanismos
de controle de constitucionalidade e sendo os efeitos da decisão no controle
abstrato/concentrado imposto a todos. Não obstante isso, o Poder Constituinte optou
por manter o mecanismo da remessa à Câmara Alta do Congresso quando a
decisão emanar via controle concreto.
2.2.1 O cabimento da reclamação
A Constituição Federal incumbiu ao Supremo Tribunal Federal o papel de seu
guardião (Art. 102, caput). Para preservar-lhe a competência, no inciso I, alínea l, do
mesmo dispositivo, prevê o instituto processual da Reclamação. Ao processá-la e
julgá-la, a Excelsa Corte garante a autoridade de suas decisões.
A Reclamação 4335-AC, ora analisada, foi ajuizada pela Defensoria Pública
do Estado do Acre em face de decisão de Juiz de Direito daquele Estado, que
indeferiu pedido de progressão de regime a pessoas condenadas por crimes
hediondos, a despeito da declaração de inconstitucionalidade do regime de pena
integralmente fechado. Por esta razão, o STF negou eficácia ao Art. 2°, §1° da Lei
8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) ao julgar o Habeas Corpus n. 82.959.
Ou seja, o reclamante pretende ver imposto aos demais órgãos julgadores o
entendimento que a Corte adotou para julgar um caso específico, apreciado via
recurso de habeas corpus. Já houve quem esclarecesse o problema do cabimento
desta via processual para estender erga omnes os efeitos de uma tese sustentada
de modo incidental ao julgamento de uma situação específica. O STF, em sede de
controle difuso de constitucionalidade
julga a aplicação dada à Constituição em situações jurídicas concretas, e não meras teses sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de leis e de atos normativos. (...) Assim, o resultado da atuação do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade nunca é o julgamento de uma tese, e dessa atuação não resulta uma teoria, mas uma decisão; e essa decisão trata da inconstitucionalidade com preliminar de mérito para tratar do caso concreto, devolvido a ele por meio de recurso, sob pena de se estar negando jurisdição (Art. 5°, XXXV e LV, da Constituição da República). (STRECK, CATTONI; LIMA, [s.d.], p. 3.)
Mutação constitucional e democracia
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371
Ao pesquisar o site do Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público
Federal não encontrou decisão proferida nesta instância máxima que tenha sido
descumprida pelo juízo de quem se reclama. Pois assim consta do parecer:
6. Esse fato [de não constar decisão descumprida] foi confirmado pela ilustre autoridade impetrada, em suas informações, quando afirmou que “não é do conhecimento deste Juízo, até o momento, que o STF tenha expedido ordem em favor de um dos interessados na reclamação [pessoas a quem se negou progressão de regime com base no art. 2°, §1° da Lei.8072/90] e, portanto, não é hipótese de garantir a autoridade de decisão da Corte” (fl. 20) 7. Assim, não existindo decisão proferida por essa Corte cuja autoridade deva ser preservada, a reclamação é descabida. (fl. 30-31)
A questão deveria se resolver pela remessa ao Senado da decisão quanto à
constitucionalidade do dispositivo legal mencionado. Embora tenha sido resolvida de
outro modo, mediante a edição de lei ordinária que alterou o texto da Lei dos Crimes
Hediondos, ainda persiste o problema de se reconhecer ao Supremo Tribunal
Federal a competência de conhecer e julgar reclamação contra tese sua, suscitada
no bojo de uma fundamentação a sustentar certa decisão concreta, ou melhor,
contextualizada a certa situação sub judice.
O Ministro Relator, Gilmar Mendes, aponta para uma evolução
jurisprudencial no sentido de caber reclamação a todos aqueles que “comprovarem
prejuízo resultante de decisões contrárias às teses do STF”. No entanto, essa
afirmação busca se ancorar no modelo concentrado, ao qual se reconhece eficácia
vinculante erga omnes.
Torna-se oportuna, aqui, a crítica de que, ao se reconhecer cabível
reclamação contra teses do STF, incorre-se “na imprecisão inerente ao papel das
cortes controladoras da constitucionalidade que é o de agirem somente diante de
uma situação contextualizada”. E essa mesma crítica arremata:
Agir no limite de um contexto significa obedecer aos ditames do poder constituído, condição existencial do Supremo Tribunal Federal como poder jurisdicional vinculado à Constituição. Esta compreensão, claro, origina-se do simples fato de que os poderes de um Estado estão submetidos a uma mesma vontade política, objetivamente identificada num determinado percurso histórico das sociedades, ou seja, o instante constituinte. E a importância disso é incontestável, bastando, para tanto, examinar o papel das constituições para consolidação das democracias no século XX (STRECK, CATTONI; LIMA, [s.d.], p. 4)
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372
2.3 O Entendimento Adotado Pelos Ministros que Votaram na Reclamação e o Texto da Constituição, art. 52, X
Em um primeiro momento, cabe construir breve esclarecimento entre as
diferenças entre texto e norma e também sobre a tensão que entre ambos existe. Há
que se admitir que existe uma diferença entre o texto – dispositivo – da norma e a
norma – sentido que o texto possui. Para definir melhor a diferença entre ambos,
valer-se-á da palavra autorizada de Lenio Streck:
Texto é evento; textos não produzem “realidades virtuais”; textos não são meros enunciados linguísticos; textos não são palavras ao vento; conceitos metafísicos que não digam respeito a algo (algo como algo). Eis a especificidade do direito: textos são importantes; textos nos importam; não há norma sem texto; mas nem eles são “plenipotenciários”, carregando seu próprio sentido(...) e nem são desimportantes, a ponto de permitir que sejam ignorados pelas posturas pragmatistas-subjetivistas, em que o sujeito assujeita o objeto (ou simplesmente o inventa). (...) o texto é inseparável de seu sentido; textos dizem sempre respeito a algo da faticidade (...) norma é, pois, a enunciação do texto, aquilo que dele se diz, isto é, o seu sentido (aquilo dentro do qual o significado pode se dar). (...) (STRECK, 2009. p.164-165).
Embora não se confundam em sua definição, texto e norma não podem ser
cindidos a ponto de se ignorar o texto na “produção” da norma. Ademais, nesse
mesmo contexto, é de se salientar a impossibilidade de se repartir em fases a
hermenêutica. Cabe sempre dizer e redizer com Gadamer que a hermenêutica é
momento único, ocorrendo a partir da fusão de horizontes do intérprete. Cabe então
expor as palavras de Marco Marrafon:
Sendo assim, a hermenêutica filosófica recusa a antiga divisão do problema hermenêutico em três, subtilitas intelligendi (compreensão), subtilitas explicandi (interpretação) e subtilitas aplicandi (aplicação), buscando amparo, inicialmente no reconhecimento, já presente no romantismo, da ligação interna entre o intelligere e o explicare. Ao vislumbrar que a indissociabilidade entre compreender e interpretar deixava o aplicar desconexo, Gadamer se vê forçado a ir além da hermenêutica romântica e conceber a compreensão, interpretação e aplicação como um processo unitário, em que todos os elementos são essenciais e complementares. Daí que “na compreensão sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido, à situação atual do intérprete”. No direito, o desdobramento dessa tese (chamada tese do ato unitário) leva à recusa da distinção entre função cognitiva e normativa na interpretação e a derrubada de postulados clássicos da hermenêutica jurídica, vez que, agora não subsiste a separação entre cognição do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto (MARRAFON, 2008, p. 179-180).
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
373
Texto e norma, portanto, não se confundem, mas se comunicam, ato perene
de interpretação e de se compreender superando a velha questão dos métodos de
interpretação e da hermenêutica clássica, já entendidos nesse ponto do estudo
como insuficientes e ultrapassados. E ainda sobre a tensão entre texto e norma é
Müller quem esclarece:
O texto da norma não contém a normatividade e a sua estrutura material concreta. Ele dirige e limita as possibilidades legítimas e legais da concretização materialmente determinada do direito no âmbito de seu quadro. Conceitos jurídicos em textos de normas não possuem “significado”, enunciados não possuem “sentido” segundo a concepção de um dado orientador acabado (MÜLLER, 2005, p. 41).
A alteração da constituição ocorre de forma consensual por meio
democrático, posto que quem a realiza é o constituinte reformador, representante do
povo quando se sente a necessidade de realizar modificações no texto que possam
contribuir com a evolução da presença de constituição no que diz respeito também à
sua efetivação, para acompanhar a faticidade. A alteração é algo intencional (NERY
JUNIOR, 2009, p. 94-95).
Já a mutação constitucional (Verfassungswandlung) não pode ser tida como
processo intencional, ou seja, se ela porventura ocorrer, deverá ter sido
imperceptível, sob pena de se colocar em cheque o caráter democrático do Estado
de Direito, uma vez que apenas se pode modificar a Constituição caso haja
procedimento legislativo específico para tanto, qual seja, a emenda constitucional13.
Diz-se ainda que na mutação o que ocorre não é a alteração do texto, mas a
alteração da norma, permanecendo o texto intocável.
Há que se ter enorme cautela quando se trata de mutação constitucional a
fim de que não se cometa equívocos quanto ao seu significado, à sua legitimidade e
à sua validade no que diz respeito à (também) validade do direito. Nessa
modalidade de modificação o texto permanece intacto e não há uma consciência
efetiva e intencional da mudança, que ocorre no que se refere ao conteúdo da
13
Conforme Nery Junior (2009, p. 104), “a mutação constitucional não pode ser prévia e
intencionalmente anunciada, pois isso constitui a ruptura da constituição, circunstância que ocorre
em Estados totalitários, não informados pelo princípio do Estado Democrático de Direito ou Estado
Constitucional (Verfassunsgsstaat)”.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
374
norma. Caso fosse explícita, poder-se-ia dizer que o que houve foi uma ruptura
antidemocrática com a Carta Magna, processo ditatorial, já que para se realizar
mudanças na Constituição é preciso se siga o devido processo legislativo14.
Isto posto, fica claro que ela não pode acontecer discricionariamente quando
o intérprete da Constituição assim o decidir. Ela sofre limitações do próprio texto da
Lei Fundamental de um Estado e da sua realidade institucional, bem como do
programa normativo que lhe pertence. Assim, conclui-se que é o Poder Constituinte
o legitimado a instituir os limites de mutação constitucional.
Se persistir e sair vitorioso o entendimento de que houve mutação, a
despeito de se querer impor um novo texto à Constituição15, correr-se-á o risco de
identificar no Supremo Tribunal Federal uma instância com poder constituinte
permanente.
3 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA: COMO ESSAS QUESTÕES REPERCUTEM NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
3.1 O Estado Democrático de Direito, como Contexto Propício ao Desenvolvimento do Neoconstitucionalismo e da Jurisdição Constitucional
O Estado de Direito se justifica pela sua origem (consentimento), sua técnica
(procedimentos pré-estabelecidos) e sua finalidade, essencialmente ética
(declaração e realização de direitos fundamentais). Nesse modelo de Estado
começa-se a falar em legitimidade do poder, devido ao fato deste se desenvolver
14
Devido processo legislativo que é apontado no caso brasileiro no art. 5º. LIV, da CF de 1988. 15
Há uma passagem no voto do Ministro Eros Grau em que ele afirma uma mudança no texto da
Constituição e não na forma de interpretação do art. 52, X. Dirigindo-se ao Relator, diz: “note-se
bem que S. Excia não se limita a interpretar um texto, a partir dele produzindo a norma que lhe
corresponde, porém avança até o ponto de propor a substituição de um texto normativo por outro”.
Ou seja, da redação atual do dispositivo constitucional parte-se para outro enunciado: “ao Senado
Federal está atribuída competência privativa para dar publicidade à suspensão da execução de lei
declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal
Federal”. A própria decisão do Supremo conteria força normativa para suspender a execução da
lei declarada inconstitucional
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
375
através do consentimento coletivo e dos ideais de justiça e legalidade, manifestos
inicialmente na realização das liberdades, nas esferas públicas e privadas.
Diferentemente do Estado Absolutista, no Estado de Direito não é suficiente a
justificação formal do poder, mas torna-se necessária a justificação material, ou seja,
a justificação do conteúdo dos direitos que legitimam o poder, o conteúdo daquilo
que se declara como valores e a sua atribuição aos indivíduos como bens jurídicos
e, como tais, juridicamente protegidos. Ademais, nesse modelo de Estado, a
justificação formal dessa autonomia de vontade é relevante, mas não apenas ela.
Complementando-a, busca-se aí a realização concreta do valor/direito absoluto que
o homem expressa, ou seja, a sua dignidade.
Último estágio na evolução do modelo estatal contemporâneo, o Estado
Democrático de Direito é um contínuo processo de construção. Nesse modelo de
Estado, a hermenêutica toma relevância incomparável, pois é através dela que os
direitos serão interpretados de forma sistêmica e efetivados. Seria impossível
visualizar a efetivação desvinculada da hermenêutica, sem que fosse necessário,
portanto, uma inflação legislativa a fim de prever todos os problemas que se
apresentam na ordem vigente.
Como já visto no início deste trabalho, o neoconstitucionalismo se afirma no
contexto do Estado Democrático de Direito, nas chamadas democracias
constitucionais (pós-segunda guerra mundial) ou Estados Democráticos
Constitucionais, que são aqueles nos quais há na sua Carta Política um rol exaustivo
de Direitos Fundamentais e, por essa razão, a construção dessa doutrina também
depende intimamente da forma como se concebe e se enxerga a Constituição.
O Brasil, assim como os demais países que passaram por um período de
exceção (no caso os regimes ditatoriais), optou por um modelo constitucional
garantidor. Inseriu, assim, o Poder Judiciário no centro das tensões, já que teria a
função de efetivar direitos constitucionalmente previstos por meio do que se chamou
de Jurisdição Constitucional – independentemente do número de regras, leis ou
mecanismos previstos no texto constitucional – realizando sua tarefa por meio da
hermenêutica.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
376
3.2 É a jurisdição constitucional um poder constituinte permanente? O art. 52, X da CF: mutação constitucional e seus reflexos na crise de democracia
Não há como negar que a Jurisdição Constitucional produz o direito ao criar
a norma (resguardadas as devidas diferenciações com o texto da norma), de forma a
efetivar os direitos constitucionalmente previstos e a fazer com que a Constituição
constitua, por meio da hermenêutica16. Cumpre ressaltar que, sob o ponto de vista
de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, como quis Häberle (1997),
cada cidadão é responsável por esse constituir da Constituição e é responsável pela
efetivação de direitos, o que não se confunde absolutamente com interpretação
realizada por meio de cláusulas gerais ou abertas. Entretanto, é o Judiciário, em um
país de democracia recente, o maior responsável por essa efetivação.
A partir dessa compreensão, insere-se no centro do debate democrático17 a
questão acerca do papel do Judiciário e de sua intensa atividade de efetivação que
variavelmente é chamada de ativismo judicial ou decisionismo. De resto, a Jurisdição
Constitucional vai tomando a forma de um ativismo ilimitado e desmedido chegando
ao absurdo de afirmar-se que o “direito é aquilo que os tribunais dizem que é”.
Uma fenda abissal cava-se entre texto e norma. A diferenciação é
importante, a distanciação genérica e sem freios é perigosa, uma vez que se inicia,
assim, o problema da validade do direito e da justificação da decisão18. Dessa feita,
ao legislador caberia a produção de textos de normas mais genéricos que
possibilitaria a expressão clara do que é significado e significante na hermenêutica
16
Lenio Streck ([s. d.], p. 1103-1105) esclarece como a hermenêutica deve ser realizada,
denunciando a impossibilidade de cisão em momentos de interpretação e de cisão entre sujeito e
objeto, ressaltando a importância da interpretação como movimento circular resultado da filosofia
da linguagem. Ressalta a superação de dualismos próprios da filosofia da consciência (sujeito e
objeto) para que se chegue a respostas adequadas no direito e para que a Jurisdição
Constitucional cumpra seu papel sem realizar uma ditadura do judiciário. Ademais denuncia
também o “extrair o sentido da norma”, como se fosse possível isolar a norma de sua
concretização. Para ele “hermenêutica é faticidade; é vida; é existência. 17
Debates acerca da Democracia e de sua crise. 18
Adeodato (2006, p. 404) insere o debate entre texto e norma dentro de conceitos de Kelsen e Carl
Schimitt, questionando o problema da justificação da decisão e relacionando tais problemas com a
tópica de Viehweg, para quem deve existir uma abertura excessiva em relação ao texto normativo,
orientando a interpretação por meio dos problemas que vão se apresentando, representando
assim um “método”livre em demasia e insuficiente para a decisão adequada.
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
377
como meio de efetivação, ato constante e circular, impedindo assim que houvesse
interferências drásticas de um poder em relação ao outro, Judiciário em relação ao
Legislativo e Judiciário transformando-se em Poder Constituinte Permanente.
João Maurício Adeodato assim expressa o alijamento do Poder Legislativo,
na medida em que a Jurisdição Constitucional adquire “super-poderes”:
Dentro desse direito dogmaticamente organizado observa-se uma outra sobrecarga na decisão concreta, mediante um crescente distanciamento entre textos legais e decisões, fazendo, por exemplo, com que aumente a importância do Judiciário em detrimento do Legislativo, inclusive e principalmente na concretização da Constituição (jurisdição constitucional). A complexidade vai tornando o direito mais e mais casuístico (ADEOTADO, 2006. p. 393).
O limite a esse ativismo desmedido está em compreender que a norma é
produzida constantemente tendo como fundamento o texto da lei, o qual, por sua
vez, não é meramente simbólico. Fica claro, então, que é a hermenêutica a
responsável pela diminuição da tensão entre texto e norma, não se podendo, assim,
desprezar o papel do Judiciário. Não se pode, também, deixar de lhe conferir os
devidos limites, a partir primordialmente do seu papel como um Poder dentro do
Estado Democrático de Direito, respeitando a existência dos outros Poderes e de
seus devidos papéis. Deve-se levar em consideração a importância de não se
admitir que o Judiciário tenha discricionariedade para (re)criar o texto da norma,
realizando mutações constitucionais.
É sabido que, no Brasil, a intervenção do Senado, prevista no art. 52, X da
CF de 1988 tem uma função democrática: a de fortalecer o sistema de freios e
contrapesos (checks and balances) na relação interinstitucional entre os três
poderes da República. Assim, a tarefa do Senado em sede de controle difuso de
constitucionalidade é a de suspender a norma que foi declarada inconstitucional,
efetivando a declaração de inconstitucionalidade e conferindo teor democrático a
esse ato.
Todavia, observa-se recentemente em parte da doutrina e da jurisprudência
do STF, de forma mais manifesta pelos ministros Eros Grau e Gilmar Mendes, uma
tentativa de se abolir essa função do Senado, de forma arbitrária e sem
fundamentos racionais. O argumento do presente estudo não é simplesmente de
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
378
manutenção da intervenção do Senado por uma mera questão de tradição
constitucional, mas de respeito ao Estado Democrático de Direito, na medida em que
se pretende preservar a separação de poderes prevista pela CF, o devido processo
legislativo de alteração de normas constitucionais e de diferenciação entre controle
de constitucionalidade concentrado e difuso, já que a suspensão sem intervenção do
Senado deve ocorrer apenas no modelo concentrado.
Sob o pretexto de que esteja ocorrendo uma mutação constitucional, tal ala
citada defende a supressão da manifestação do Senado. Ocorre que, como foi dito,
a mutação ocorre de maneira não programada, não planejada, de acordo com a
vivência da Constituição, pois planejar a mutação é fazer ruptura no sistema, no
Direito, na Constituição e no Estado Democrático de Direito. O STF também (!!!) está
subordinado à Constituição; não dita seus enunciados, mas os interpreta; não pode
cometer ativismos desmedidos e ditaduras judiciais. Na medida em que se admite
mutação constitucional, admite-se também que o texto não seja levado a sério19,
ferindo a tripartição de poderes e, consequentemente, o princípio democrático.
É impossível ao STF “realizar” essa espécie de mutação constitucional
ilimitada, pois, dessa forma, a Corte sutilmente realizaria emendas da maneira
antidemocrática, sacralizando o seu papel de Judiciário e, agora, de Constituinte,
arruinando o Estado Democrático de Direito, o poder do povo de escolher quem é
que faz a sua Constituição, legando um ranço de totalitarismo às gerações futuras. É
a continuidade da crise da Constituição de 1988 e um engrossamento nos
argumentos de quem já defende uma nova Constituinte. É a crise de democracia
que já se alastra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo o que foi dito, podemos destacar – a título de considerações finais –
os seguintes resultados:
19
Streck, (2009. p.164 nota de rodapé remetendo a Gadamer: “quem quer compreender um texto,
deve, primeiro, deixar que o texto lhe diga algo”).
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
379
1. De fato, o histórico do constitucionalismo, especialmente a partir das
grandes revoluções, aponta para o ideal de constituição como meio eficaz de
limitação do poder e consequente garantia das liberdades.
2. A criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a
construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais
– prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que
os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de
“aristocracia de fato” – a partir da garantia dos direitos da minoria. Essa estratégia,
inclusive, pode ser justificada na desconfiança do federalista John Madison,
formulada no seguinte enunciado: “em todos os casos em que a maioria está unida
por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo”.
3. As Constituições, portanto, podem ser encaradas como pré-compromisso.
Dizer que as constituições são pré-compromissos significa que “constituições são
correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade
para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. Bem como se
poderia asseverar, que “as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam
servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”.
4. O exercício da judicial review of legislation – veio a tornar-se a garantia de
que o pré-compromisso constitucional seria devidamente cumprido. E isso é
consequência da verdadeira soberania da lei; não de qualquer lei, mas daquela que
passa a ser entendida como a lei das leis, a paramont law, dotada de supremacia e
rigidez: a Constituição.
5. No Brasil, a judicial review passa a se chamar controle difuso, uma
referência ao caráter abrangente do controle, que se pulveriza por todas as esferas
do poder judiciário. No contexto atual, há também outros modos de se referir a essa
modalidade de controle da constitucionalidade: via de exceção; via de defesa;
controle concreto; incidenter tantum.
6. Ao contrário do Direito estado-unidense, que empresta eficácia vinculante
às decisões da Suprema Corte pelo stare decisis, a tradição jurídica herdada pelo
Brasil o torna carente de mecanismo hábil à generalização (erga omnes) dos efeitos
das decisões do Supremo Tribunal Federal quando declara sobre a
constitucionalidade de uma lei.
Tayara Talita Lemos et al.
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
380
7. Isso até 1934, quando o constituinte inovou e deu competência ao Senado
Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato,
deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo
Poder Judiciário” (Art. 91, IV, da Constituição de 1934). Essa disposição se manteve
na vigente Constituição da República, de 1988, com seguinte teor: “compete
privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de
lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”
(Art. 52, X).
8. Portanto, a intervenção do Senado no controle difuso de
constitucionalidade foi e continua sendo, por expressa previsão do texto da Carta
Maior, o instrumento imprescindível ao devido procedimento de generalização dos
efeitos das decisões em que a Corte guardiã da Constituição aprecia – de modo
incidental, ao julgar casos concretos – questões concernentes à constitucionalidade
de leis ou atos normativos.
9. O argumento de que há mutação constitucional no caso do controle
difuso e da intervenção do senado em virtude da tendência concentrada do controle
de constitucionalidade, não é suficiente para autorizar a Corte Constitucional a
deixar de lado a determinação do constituinte – que está ancorada na história
institucional do direito brasileiro – alterando de tal maneira a sistemática do controle
difuso de constitucionalidade que a feição democrática e garantidora de tal
instituição passa a ser colocada em xeque perigosamente.
10. Há uma diferença entre mutação constitucional e alteração formal da
constituição. A mutação constitucional é algo que se reconhece no contexto de toda
comunidade política. Não é uma criação stricto senso da Corte Constitucional; não é
algo que se determina a partir da vontade dos ministros que compõem a Corte; mas
sim algo imposto pela história institucional do direito. No caso do art. 52, X o que se
pretende fazer é uma verdadeira alteração formal no interior da qual o próprio texto
constitucional soçobraria. Ou seja, a Corte Constitucional seria uma espécie de turno
permanente do poder constituinte, que poderia (re)criar dispositivos constitucionais a
seu belvedere, contradizendo – de forma absoluta – toda história de limitação do
poder que caracteriza o movimento constitucionalista e que se apresenta de modo
emblemático na ideia de Constituição como pré-compromisso.
Mutação constitucional e democracia
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
381
11. Desse modo, é preciso ter claro que a função da Corte é concretizar a
norma e não textos de normas. Esse é um ponto fundamental, a norma é sempre
resultado de um texto; o texto, por sua vez, é um evento que compõe a cadeia
institucional do Direito professado por uma determinada comunidade política. Mas, o
que fica muito claro dessa discussão é que esse texto não pode ser estabelecido (ou
reformado) pelo poder judiciário. O que se modifica, altera ou adéqua à Constituição
é o sentido projetado por esse texto que produzirá a norma. No fundo, o importante
aqui – para adequada compreensão do problema da mutação constitucional – é o
manejo adequado da distinção entre texto da norma e norma.
12. E é justamente sob o pretexto de uma pretensa mutação constitucional,
que setores do pensamento jurídico pátrio defendem a supressão da manifestação
do Senado. Ocorre que, como foi dito, a mutação ocorre de maneira não
programada, não planejada, de acordo com a vivência da Constituição, pois planejar
a mutação – criando novos textos de norma – é fazer ruptura no sistema, no Direito,
na Constituição e no Estado Democrático de Direito. O STF também (!!!) está
subordinado à Constituição; não dita seus enunciados, mas os interpreta; não pode
cometer ativismos desmedidos e ditaduras judiciais. Na medida em que se admite
mutação constitucional, admite-se também que o texto não seja levado a sério,
ferindo a tripartição de poderes e, consequentemente, o princípio democrático.
13. É impossível ao STF “realizar” essa espécie de mutação constitucional
ilimitada, pois, dessa forma, a Corte sutilmente realizaria emendas da maneira
antidemocrática, sacralizando o seu papel de Judiciário e, agora, de Constituinte,
arruinando o Estado Democrático de Direito, o poder do povo de escolher quem é
que faz a sua Constituição, legando um ranço de totalitarismo às gerações futuras. É
a continuidade da crise da Constituição de 1988 e um engrossamento nos
argumentos de quem já defende uma nova Constituinte.
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Regras para a submissão de artigos
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
384
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
385
CONSTITUIÇÃO, DEMOCRACIA E SUPREMACIA
JUDICIAL: DIREITO E POLÍTICA NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
CONSTITUTION, DEMOCRACY AND JUDICIAL SUPREMACY: LAW AND POLITICS IN CONTEMPORARY BRAZIL
Luís Roberto Barroso1/2
Sumário: PARTE I - A ASCENSÃO INSTITUCIONAL DO JUDICIÁRIO. II. A JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL. III. A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES
SOCIAIS. IV. O ATIVISMO JUDICIAL. V. CRÍTICAS À EXPANSÃO DA
INTERVENÇÃO JUDICIAL NA VIDA BRASILEIRA. 1. Crítica político-ideológica. 2.
Crítica quanto à capacidade institucional. 3. Crítica quanto à limitação do debate. VI.
IMPORTÂNCIA E LIMITES DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NAS
DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS. Parte II - DIREITO E POLÍTICA: A
CONCEPÇÃO TRADICIONAL. I. NOTAS SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E
POLÍTICA. II. CONSTITUIÇÃO E PODERES CONSTITUÍDOS. III. A PRETENSÃO
DE AUTONOMIA DO JUDICIÁRIO E DO DIREITO EM RELAÇÃO À POLÍTICA. 1.
Independência do Judiciário. 2. Vinculação ao direito posto e à dogmática jurídica. 3.
Limites da separação entre direito e política. Parte III - DIREITO E POLÍTICA: O
MODELO REAL. I. OS LAÇOS INEVITÁVEIS: A LEI E SUA INTERPRETAÇÃO
COMO ATOS DE VONTADE. II. A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SUAS
COMPLEXIDADES: O ENCONTRO NÃO MARCADO ENTRE O DIREITO E A
POLÍTICA. 1. A linguagem aberta dos textos jurídicos. 2. Os desacordos morais
razoáveis. 3. As colisões de normas constitucionais. 4. A interpretação constitucional
e seus métodos. III. O JUIZ E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS: INFLUÊNCIAS POLÍTICAS
EM UM JULGAMENTO. 1. Valores e ideologia do juiz. 2. Interação com outros atores
políticos e institucionais. 2.1. Preservação ou expansão do poder da Corte. 2.2.
Relações com outros Poderes, órgãos e entidades estatais. 3. Perspectiva de
cumprimento efetivo da decisão. 4. Circunstâncias internas dos órgãos colegiados.
5. A opinião pública. IV. A AUTONOMIA RELATIVA DO DIREITO EM RELAÇÃO À
POLÍTICA E A FATORES EXTRAJUDICIAIS. Conclusão. ENTRE A RAZÃO E A
VONTADE
1 Professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Professor visitante da Universidade de Brasília – UnB e da Universidade de Wroclaw, Polônia.
Mestre em direito pela Universidade de Yale. Doutor e livre-docente pela UERJ. 2 Parte da pesquisa para este trabalho foi realizada na Universidade de Harvard – na Faculdade de
Direito e na Kennedy School of Government. Sou grato à instituição e, especialmente, ao
Professor Filipe Campante, pela acolhida que me deram como pesquisador visitante, nos meses
de julho de 2009 e janeiro de 2010. E à Renata Campante e ao Paulo Barrozo, pela amizade,
atenção e muitas dicas que tornaram a pesquisa e a vida mais fáceis. Sou grato, também, a Ana
Paula de Barcellos e a Thiago Magalhães Pires, pela leitura atenta e comentários importantes. E a
Daniel Sarmento por uma boa sugestão, que ficará para a próxima.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
386
I INTRODUÇÃO
O estudo que se segue está dividido em três partes. Na primeira, narra-se a
ascensão institucional do Judiciário nos últimos anos, no Brasil e no mundo. São
apresentados, assim, os fenômenos da jurisdição constitucional, da judicialização e
do ativismo judicial, bem como as críticas à expansão do Judiciário na vida
brasileira. O tópico se encerra com a demonstração da importância e dos limites da
jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas. A segunda parte é
dedicada à concepção tradicional das relações entre direito e política, fundada na
separação plena entre os dois domínios3. A Constituição faz a interface entre o
universo político e o jurídico, instituindo o Estado de direito, os poderes constituídos
e fazendo a distinção entre legislar, administrar e julgar. A atuação de juízes e
tribunais é preservada do contágio político por meio da independência do Judiciário
em relação aos demais Poderes e por sua vinculação ao direito, que constitui um
mundo autônomo, tanto do ponto de vista normativo quanto doutrinário. Essa visão,
inspirada pelo formalismo jurídico, apresenta inúmeras insuficiências teóricas e
enfrenta boa quantidade de objeções, em uma era marcada pela complexidade da
interpretação jurídica e por forte interação do Judiciário com outros atores políticos
relevantes.
A terceira parte introduz uma questão relativamente nova no debate jurídico
brasileiro: o modelo real das relações entre direito e política. Uma análise sobre o
que de fato ocorre no exercício da prestação jurisdicional e na interpretação das
normas jurídicas, e não um discurso convencional sobre como elas deveriam ser.
Trata-se de uma especulação acerca dos elementos e circunstâncias que motivam e
influenciam um juiz, para além da boa aplicação do direito. Com isso, procura-se
superar a persistente negação com que os juristas tradicionalmente lidam com o
tema, proclamando uma independência que não é desse mundo. Na construção do
argumento, examinam-se algumas hipóteses que produzem os chamados casos
difíceis, que exigem a atuação criativa de juízes e tribunais; e faz-se, igualmente,
3 É da tradição da doutrina brasileira grafar a palavra direito com letra maiúscula, em certos
contextos. Nesse trabalho, todavia, em que o termo é empregado em sua relação com a política, o
uso da maiúscula poderia passar a impressão de uma hierarquização entre os dois domínios, o
que não é minha intenção. Restaria a alternativa de grafar política com maiúscula. Mas também
não me pareceu ser o caso.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
387
uma reflexão acerca dos diferentes métodos de interpretação e sua utilização em
função do resultado a que se quer chegar. Por fim, são identificados diversos fatores
extrajurídicos relevantes, capazes de repercutir em maior ou menor medida sobre
um julgamento, como os valores pessoais do juiz, as relações do Judiciário com
outros atores políticos e a opinião pública, dentre outros.
Entre o ceticismo do realismo jurídico e da teoria crítica, que equiparam o
direito ao voluntarismo e à política, e a visão idealizada do formalismo jurídico, com
sua crença na existência de um muro divisório entre ambos, o presente estudo irá
demonstrar o que já se afigurava intuitivo: no mundo real, não vigora nem a
equiparação nem a separação plena. Na concretização das normas jurídicas,
sobretudo as normas constitucionais, direito e política convivem e se influenciam
reciprocamente, numa interação que tem complexidades, sutilezas e variações4. Em
múltiplas hipóteses, não poderá o intérprete fundar-se em elementos de pura razão
e objetividade, como é a ambição do direito. Nem por isso, recairá na
discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decisões políticas. Entre os dois
extremos, existe um espaço em que a vontade é exercida dentro de parâmetros de
razoabilidade e de legitimidade, que podem ser controlados pela comunidade
jurídica e pela sociedade. Vale dizer: o que se quer é balizado pelo que se pode e
pelo que se deve fazer.
PARTE I - A ASCENSÃO INSTITUCIONAL DO JUDICIÁRIO5
II A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa continental, a
partir do final da II Guerra Mundial. Até então, vigorava um modelo identificado, por
4 O termo ”política” é utilizado nesse trabalho em uma acepção ampla, que transcende uma
conotação partidária ou de luta pelo poder. Na acepção aqui empregada, “política" abrange
qualquer influência extrajurídica capaz de afetar o resultado de um julgamento. 5 A Parte I deste trabalho, especialmente os capítulos II e III, beneficia-se da pesquisa e de algumas
passagens de texto anterior de minha autoria, “Judicialização, ativismo judicial e legitimidade
democrática”, publicado na Revista de direito do Estado 13:71, 2009.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
388
vezes, como Estado legislativo de direito6. Nele, a Constituição era compreendida,
essencialmente, como um documento político, cujas normas não eram aplicáveis
diretamente, ficando na dependência de desenvolvimento pelo legislador ou pelo
administrador. Tampouco existia o controle de constitucionalidade das leis pelo
Judiciário – ou, onde existia, era tímido e pouco relevante. Nesse ambiente, vigorava
a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No Estado constitucional de
direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica. A partir daí, ela não
apenas disciplina o modo de produção das leis e atos normativos, como estabelece
determinados limites para o seu conteúdo, além de impor deveres de atuação ao
Estado. Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia
judicial, como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema
corte na interpretação final e vinculante das normas constitucionais.
A expressão jurisdição constitucional designa a interpretação e aplicação da
Constituição por órgãos judiciais. No caso brasileiro, essa competência é exercida
por todos os juízes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do
sistema. A jurisdição constitucional compreende duas atuações particulares. A
primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por
exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da
União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à
liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve
a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como
parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de
constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes
possibilidades (interpretação conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição
constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação
direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e
dos atos do Poder Público em geral e na interpretação do ordenamento
infraconstitucional conforme a Constituição.
6 V. Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro Del Estado de derecho. In: Miguel Carbonell (Org.).,
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 14-17; e Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil: ley,
derechos, justicia, 2005, p. 21-41.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
389
III A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DAS RELAÇÕES SOCIAIS7
Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político,
social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-
se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em
detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo.
Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica
no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico8. Fruto
da conjugação de circunstâncias diversas9, o fenômeno é mundial, alcançando até
mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês – a chamada
democracia ao estilo de Westminster –, com soberania parlamentar e ausência de
controle de constitucionalidade10. Exemplos numerosos e inequívocos de
judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo
contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a
criação e a interpretação do direito. Os precedentes podem ser encontrados em
7 Sobre o tema, v. o trabalho pioneiro de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho,
Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999. V. tb., Giselle Cittadino, Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de Poderes. In: Luiz Werneck Vianna (org.), A democracia e os três Poderes no Brasil, 2002. Vejam-se, ainda: Luiz Werneck Vianna, Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles, Dezessete anos de judicialização da política, Tempo Social 19:39, 2007; Ernani Carvalho, Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política, Análise Social 44:315, 2009, e Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem, Revista de Sociologia Política 23:115, 2004; Rogério Bastos Arantes, Judiciário: entre a justiça e a política, In: http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/images/9/9d/Arantes.pdf, e Constitutionalism, the expansion of justice and the judicialization of politics in Brazil. In: Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The judicialization of politics in Latin America, 2005, p. 231-62; Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, Judicialização da política e comissões parlamentares de inquérito – um problema da teoria constitucional da democracia, Revista Jurídica da FIC 7:9, 2006; Luciano da Ros, Tribunais como árbitros ou como instrumentos de oposição: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicialização da política com aplicação ao caso brasileiro contemporâneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007; e Thais Florencio de Aguiar, A judicialização da política ou o rearranjo da democracia liberal, Ponto e Vírgula 2:142, 2007.
8 V. Alec Stone Sweet, Governing with judges: constitutional polítics in Europe, 2000, p. 35-36
e 130. A visão prevalecente nas democracias parlamentares tradicionais de ser necessário evitar
um “governo de juízes”, reservando ao Judiciário apenas uma atuação como legislador negativo,
já não corresponde à prática política atual. Tal compreensão da separação de Poderes encontra-
se em “crise profunda” na Europa continental. 9 Para uma análise das condições para o surgimento e consolidação da judicialização, v. C. Neal
Tate e Torbjörn Vallinder (eds.), The global expansion of judicial power, 1995, p. 117. 10
V. Ran Hirschl, The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide,
Fordham Law Review 75:721, 2006-2007, p. 721. A referência envolve países como Canadá,
Israel, Nova Zelândia e o próprio Reino Unido.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
390
países diversos e distantes entre si, como Canadá11, Estados Unidos12, Israel13,
Turquia14, Hungria15 e Coreia16, dentre muitos outros. No início de 2010, uma
decisão do Conselho Constitucional francês e outra da Suprema Corte americana
produziram controvérsia e a reação política dos dois presidentes17. Na América
Latina18, o caso da Colômbia é um dos mais significativos19.
Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o
reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como
elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se
uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como
em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve
certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e
de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos,
muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas
11
Decisão da Suprema Corte sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com
mísseis em solo canadense. Este exemplo e os seguintes vêm descritos em maior detalhe em Ran
Hirschl, The judicialization of polítics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford
handbook of law and politics, 2008, p. 124-5. 12
Decisão da Suprema Corte que definiu a eleição de 2000, em Bush v. Gore. 13
Decisão da Suprema Corte sobre a compatibilidade, com a Constituição e com os atos
internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. 14
Decisões da Suprema Corte destinadas a preserver o Estado laico contra o avanço do
fundamentalismo islâmico. 15
Decisão da Corte Constitucional sobre a validade de plano econômico de grande repercussão
sobre a sociedade. 16
Decisão da Corte Constitucional restituindo o mandato de presidente destituído por impeachment. 17
Na França, foi anulado o imposto do carbono, que incidiria sobre o consumo e a emissão de gases
poluentes, com forte reação do governo. V. Le Monde, 12 jan. 2010,
http://www.lemonde.fr/politique/article/2010/01/12/m-devedjian-je-souhaite-que-le-conseil-
constitutionnel-soit-a-l-abri-des-soupcons_1290457_823448.html. Nos Estados Unidos, a decisão
em Citizens United v. Federal Election Commission, invalidando os limites à participação
financeira das empresas em campanhas eleitorais, foi duramente criticada pelo Presidente Barak
Obama. V. New York Times, 24 jan. 2010, p. A-20. 18
Sobre o fenômeno na América Latina, v. Rachel Sieder, Line Schjolden e Alan Angell, The
judicialization of politics in Latin America, 2005. 19
De acordo com Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International
Journal on Human Rights 6:49, 2007, p. 50, algumas das mais importantes hipóteses de
judicialização da política na Colômbia envolveram: a) luta contra a corrupção e para mudança das
práticas políticas; b) contenção do abuso das autoridades governamentais, especialmente em
relação à declaração do estado de emergência ou estado de exceção; c) proteção das minoriais,
assim como a autonomia individual; d) proteção das populações estigmatizadas ou aqueles em
situação de fraqueza política; e e) interferência com políticas econômicas, em virtude da proteção
judicial de direitos sociais.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
391
questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na
sociedade. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos,
como uniões homoafotetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras
indígenas20. No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da
constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise,
retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões
judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós,
em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas.
Como consequência, quase todas as questões de relevância política, social
ou moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente
perante o Supremo Tribunal Federal. A enunciação que se segue, meramente
exemplificativa, serve como boa ilustração dos temas judicializados: (i) instituição de
contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3105/DF); (ii) criação do
Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3367); (iii) pesquisas
com células-tronco embrionárias (ADI 3510/DF); (iv) liberdade de expressão e
racismo (HC 82424/RS – caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos
anencefálicos (ADPF 54/DF); (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91952/SP e
Súmula Vinculante nº 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do
Sol (Pet 3388/RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais
(ADI 3330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula nº 13); (x) não
recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia prosseguir
indefinidamente, com a identificação de casos de grande visibilidade e repercussão,
como a extradição do militante italiano Cesare Battisti (Ext 1085/Itália e MS
27875/DF), a questão da importação de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da
proibição do uso do amianto (ADI 3937/SP). Merece destaque a realização de
20
V. Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on
Human Rights 6:49, mimeografado, 2007, p. 57. V. tb. José Ribas Vieira, Margarida Maria
Lacombe Camargo e Alexandre Garrido Silva, O Supremo Tribunal Federal como arquiteto
institucional: a judicialização da política e o ativismo judicial. In: Anais do I Forum de Grupos de
Pesquisa em direito Constitucional e Teoria dos direitos, 2009, p. 44: “Em casos politicamente
custosos, os poderes Legislativo e Executivo podem, de um modo estratégico, por meio de uma
inércia deliberada, abrir um espaço para a atuação ativista dos tribunais. Temas profundamente
controvertidos, sem perspectiva de consenso na sociedade, tais como a abertura dos arquivos da
ditadura militar, uniões homoafetivas, aborto, entre outros, têm os seus custos políticos
estrategicamente repassados para os tribunais, cujos integrantes não precisam passar pelo crivo
do voto popular após suas decisões”.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
392
diversas audiências públicas, perante o STF, para debater a questão da
judicialização de prestações de saúde, notadamente o fornecimento de
medicamentos e de tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema Único
de Saúde (SUS)21.
Uma observação final relevante dentro deste tópico. No Brasil, como
assinalado, a judicialização decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de
constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de controle de
constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana – em que
todo juiz e tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto – e
a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional.
Nesse segundo caso, a validade constitucional de leis e atos normativos é discutida
em tese, perante o Supremo Tribunal Federal, fora de uma situação concreta de
litígio. Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro pela admissão de uma
variedade de ações diretas e pela previsão constitucional de amplo direito de
propositura. Nesse contexto, a judicialização constitui um fato inelutável, uma
circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política
do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada,
não têm a alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Todavia, o modo
como venham a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não
de ativismo judicial.
IV O ATIVISMO JUDICIAL
Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos22 e que foi
empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte
21
V. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude. 22
A locução “ativismo judicial” foi utilizada, pela primeira vez, em artigo de um historiador sobre a
Suprema Corte americana no período do New Deal, publicado em revista de circulação ampla. V.
Arthur M. Schlesinger, Jr., The Supreme Court: 1947, Fortune, jan. 1947, p. 208, apud Keenan D.
Kmiec, The origin and current meanings of ‘judicial activism’, California Law Review 92:1441,
2004, p. 1446. A descrição feita por Schlesinger da divisão existente na Suprema Corte, à época,
é digna de transcrição, por sua atualidade no debate contemporâneo: “Esse conflito pode ser
descrito de diferentes maneiras. O grupo de Black e de Douglas acredita que a Suprema Corte
pode desempenhar um papel afirmativo na promoção do bem-estar social; o grupo de Frankfurter
e Jackson defende uma postura de auto-contenção judicial. Um grupo está mais preocupado com
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
393
durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 196923. Ao longo
desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras
práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência
progressista em matéria de direitos fundamentais24. Todas essas transformações
foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial25. A partir
daí, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo judicial
assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao
exercício impróprio do poder judicial26. Todavia, depurada dessa crítica ideológica –
até porque pode ser progressista ou conservadora27 – a ideia de ativismo judicial
a utilização do poder judicial em favor de sua própria concepção do bem social; o outro, com a
expansão da esfera de atuação do Legislativo, mesmo que isso signifique a defesa de pontos de
vista que eles pessoalmente condenam. Um grupo vê a Corte como instrumento para a obtenção
de resultados socialmente desejáveis; o segundo, como um instrumento para permitir que os
outros Poderes realizem a vontade popular, seja ela melhor ou pior. Em suma, Black-Douglas e
seus seguidores parecem estar mais voltados para a solução de casos particulares de acordo com
suas próprias concepções sociais; Frankfurter-Jackson e seus seguidores, com a preservação do
Judiciário na sua posição relevante, mas limitada, dentro do sistema americano”. 23
Sobre o tema, em língua portuguesa, v. Luís Roberto Barroso, A americanização do direito
constitucional e seus paradoxos. In: Temas de direito constitucional, t. IV, p. 144 e s. (O legado
de Warren: ativismo judicial e proteção dos direitos fundamentais). Para uma interessante
biografia de Warren, bem como um denso relato do período, v. Jim Newton, Justice for all: Earl
Warren and the Nation he made, 2006. 24
Alguns exemplos representativos: considerou-se ilegítima a segregação racial nas escolas (Brown
v. Board of Education, 1954); foram assegurados aos acusados em processo criminal o direito
de defesa por advogado (Gideon v. Wainwright, 1963) e o direito à não-auto-incriminação
(Miranda v. Arizona, 1966); e de privacidade, sendo vedado ao Poder Público a invasão do
quarto de um casal para reprimir o uso de contraceptivos (Griswold v. Connecticut, 1965). Houve
decisões marcantes, igualmente, no tocante à liberdade de imprensa (New York Times v.
Sullivan, 1964) e a direitos políticos (Baker v. Carr, 1962). Em 1973, já sob a presidência de
Warren Burger, a Suprema Corte reconheceu direitos de igualdade às mulheres (Richardson v.
Frontiero, 1973), assim como em favor dos seus direitos reprodutivos, vedando a criminalização
do aborto até o terceiro mês de gestação (Roe v. Wade). 25
Jim Newton, Justice for all: Earl Warren and the Nation he made, 2006, p. 405. 26
V. Randy E. Barnett, Constitututional clichês, Capital University Law Review 36:493, 2007, p.
495: “Normalmente, no entanto, ‘ativismo judicial’ é empregado para criticar uma prática judicial
que deve ser evitada pelos juízes e que merece a oposição do público”. Keenan D. Kmiec, The
origin and current meanings of ‘judicial activism’, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1463 e
s. afirma que não se trata de um conceito monolítico e aponta cinco sentidos em que o termo tem
sido empregado no debate americano, no geral com uma conotação negativa: a) declaração de
inconstitucionalidade de atos de outros Poderes que não sejam claramente inconstitucionais; b)
ignorar precedentes aplicáveis; c) legislação pelo Judiciário; d) distanciamento das metodologias
de interpretação normalmente aplicadas e aceitas; e e) julgamentos em função dos resultados. 27
Como assinalado no texto, a expressão ativismo judicial foi amplamente utilizada para estigmatizar
a jurisprudência progressista da Corte Warren. É bem de ver, no entanto, que o ativismo judicial
precedeu a criação do termo e, nas suas origens, era essencialmente conservador. De fato, foi na
atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais reacionários encontraram amparo para a
segregação racial (Dred Scott v. Sanford, 1857) e para a invalidação das leis sociais em geral
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
394
está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na
concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço
de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas
mera ocupação de espaços vazios.
No Brasil, há diversos precedentes de postura ativista do STF, manifestada
por diferentes linhas de decisão. Dentre elas se incluem: a) a aplicação direta da
Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e
independentemente de manifestação do legislador ordinário, como se passou em
casos como o da imposição de fidelidade partidária e o da vedação do nepotismo; b)
a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador,
com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da
Constituição, de que são exemplos as decisões referentes à verticalização das
coligações partidárias e à cláusula de barreira; c) a imposição de condutas ou de
abstenções ao Poder Público, tanto em caso de inércia do legislador – como no
precedente sobre greve no serviço público ou sobre criação de município – como no
de políticas públicas insuficientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre
direito à saúde. Todas essas hipóteses distanciam juízes e tribunais de sua função
típica de aplicação do direito vigente e os aproximam de uma função que mais se
assemelha à de criação do próprio direito.
A judicialização, como demonstrado acima, é um fato, uma circunstância do
desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo
específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e
alcance. Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em situações de
retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a
sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de
(Era Lochner, 1905-1937), culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com
a mudança da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v.
Parrish, 1937). A situação se inverteu no período que foi de meados da década de 50 a meados
da década de 70 do século passado. Todavia, depois da guinada conservadora da Suprema
Corte, notadamente no período da presidência de William Rehnquist (1986-2005), coube aos
progressistas a crítica severa ao ativismo judicial que passou a desempenhar. V. Frank B. Cross e
Stefanie A. Lindquist, The scientific study of judicial activism, Minnesota Law Review 91:1752,
2006-2007, p. 1753 e 1757-8; Cass Sunstein, Tilting the scales rightward, New York Times, 26
abr. 2001 (“um notável período de ativismo judicial direitista”) e Erwin Chemerinsky, Perspective
on Justice: and federal law got narrower, narrower, Los Angeles Times, 18 mai. 2000 (“ativismo
judicial agressivo e conservador”).
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
395
maneira efetiva. O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual
o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes28. A
principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o
ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das
potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras
específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos
indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir
mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte
deferência em relação às ações e omissões desses últimos.
V CRÍTICAS À EXPANSÃO DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NA VIDA BRASILEIRA
Diversas objeções têm sido opostas, ao longo do tempo, à expansão do
Poder Judiciário nos Estados constitucionais contemporâneos. Identificam-se aqui
três delas. Tais críticas não infirmam a importância do papel desempenhado por
juízes e tribunais nas democracias modernas, mas merecem consideração séria. O
modo de investidura dos juízes e membros de tribunais, sua formação específica e o
tipo de discurso que utilizam são aspectos que exigem reflexão. Ninguém deseja o
Judiciário como instância hegemônica e a interpretação constitucional não pode se
transformar em usurpação da função legislativa. Aqui, como em quase tudo mais,
impõem-se as virtudes da prudência e da moderação29.
1 CRÍTICA POLÍTICO-IDEOLÓGICA
Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua
investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando
invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o
28
Por essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não
estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador
ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade
de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas. 29
V. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 2007, p. 70 e 77: “Em primeiro lugar, temos que observar que
as qualidades morais são de tal modo constituídas que são destruídas pelo excesso e pela
deficiência. (...) [O] excesso e a deficiência são uma marca do vício e a observância da mediania
uma marca da virtude...”.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
396
Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político. Essa possibilidade
de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos
gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade
contramajoritária30. A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário
têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua
legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos
fundamentais31. Ao lado dessas, há, igualmente, críticas de cunho ideológico, que
veem no Judiciário uma instância tradicionalmente conservadora das distribuições
de poder e de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicialização funcionaria
como uma reação das elites tradicionais contra a democratização, um antídoto
contra a participação popular e a política majoritária32.
2 CRÍTICA QUANTO À CAPACIDADE INSTITUCIONAL
Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com
base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa
30
Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16-23: “A questão mais profunda é que
o controle de constitucionalidade (judicial review) é uma força contramajoritária em nosso sistema.
(...) [Q]uando a Suprema Corte declara inconstitucional um ato legislativo ou um ato de um
membro eleito do Executivo, ela se opõe à vontade de representantes do povo, o povo que está
aqui e agora; ela exerce um controle, não em nome da maioria dominante, mas contra ela. (...) O
controle de constitucionalidade, no entanto, é o poder de aplicar e interpretar a Constituição, em
matérias de grande relevância, contra a vontade da maioria legislativa, que, por sua vez, é
impotente para se opor à decisão judicial”. 31
Um dos principais representantes dessa corrente é Jeremy Waldron, autor de Law and
disagreement, 1999, e The core of the case against judicial review, Yale Law Journal 115:1346,
2006. Sua tese central é a de que nas sociedades democráticas nas quais o Legislativo não seja
“disfuncional”, as divergências acerca dos direitos devem ser resolvidas no âmbito do processo
legislativo e não do processo judicial. 32
V. Ran Hirschl, Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism,
2004. Após analisar as experiências de Canadá, Nova Zelândia, Israel e África do Sul, o autor
conclui que o aumento do poder judicial por via da constitucionalização é, no geral, “um pacto
estratégico entre três partes: as elites políticas hegemônicas (e crescentemente ameaçadas) que
pretendem proteger suas preferências políticas contra as vicissitudes da política democrática; as
elites econômicas que comungam da crença no livre mercado e da antipatia em relação ao
governo; e cortes supremas que buscar fortalecer seu poder simbólico e sua posição institucional”
(p. 214). Nos Estados Unidos, em linha análoga, uma corrente de pensamento referida como
“constitucionalismo popular” também critica a ideia de supremacia judicial. V., dentre muitos, Mark
Tushnet, Taking the constitution away from the courts, 1999, p. 177, onde escreveu: “Os
liberais (progressistas) de hoje parecem ter um profundo medo do processo eleitoral. Cultivam um
entusiasmo no controle judicial que não se justifica, diante das experiências recentes. Tudo porque
têm medo do que o povo pode fazer”.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
397
primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um
tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância
hegemônica33, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a
limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos34.
Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado
a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos
técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o
árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico35.
Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem
recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz,
por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do
caso concreto, a microjustiça36, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto
de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um
serviço público37.
33
A expressão é do Ministro Celso de Mello. V. STF, DJ, 12 mai.2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min.
Celso de Mello. 34
V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory
Working Paper No. 28, 2002: “Ao chamarmos atenção para as capacidades institucionais e para
os efeitos sistêmicos, estamos sugerindo a necessidade de um tipo de virada institucional no
estudo das questões de interpretação jurídicas” (p. 2). Sobre o tema, v. tb. Adrian Vermeule,
Foreword: system effects and the constitution, Harvard Law Review 123:4, 2009. 35
Por exemplo: em questões como demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que
tenha havido estudos técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve
ser sopesada de maneira criteriosa. 36
Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos
fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de
direito do Estado 3:17, 2006, p. 34. Também sobre o tema, v. Daniel Sarmento, Interpretação
constitucional, pré-compreensão e capacidades institucionais do intérprete. In: Cláudio Pereira de
Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm (coords.), Vinte anos da Constituição
Federal de 1988, 2008, p. 317: “[U]ma teoria hermenêutica construída a partir de uma imagem
romântica do juiz pode produzir resultados desastrosos quando manejada por magistrados de
carne e osso que não correspondam àquela idealização...”. 37
Exemplo emblemático nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções
necessárias e meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em
matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das políticas
públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e comprometendo a alocação dos
escassos recursos públicos. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à
constitucionalização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e
parâmetros para a atuação judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo IV, 2009.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
398
3 CRÍTICA QUANTO À LIMITAÇÃO DO DEBATE
O mundo do direito tem categorias, discurso e métodos próprios de
argumentação. O domínio desse instrumental exige conhecimento técnico e
treinamento específico, não acessíveis à generalidade das pessoas. A primeira
consequência drástica da judicialização é a elitização do debate e a exclusão dos
que não dominam a linguagem nem têm acesso aos locus de discussão jurídica38.
Institutos como audiências públicas, amicus curiae e direito de propositura de ações
diretas por entidades da sociedade civil atenuam mas não eliminam esse problema.
Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas forças sociais, que passariam
a ficar à espera de juízes providenciais39. Na outra face da moeda, a transferência
do debate público para o Judiciário traz uma dose excessiva de politização dos
tribunais, dando lugar a paixões em um ambiente que deve ser presidido pela
razão40. No movimento seguinte, processos passam a tramitar nas manchetes de
jornais – e não na imprensa oficial – e juízes trocam a racionalidade plácida da
argumentação jurídica por embates próprios da discussão parlamentar, movida por
visões políticas contrapostas e concorrentes41.
38
V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal 115:1346, p.
133: “A judicialização tende a mudar o foco da discussão pública, que passa de um ambiente onde
as razões podem ser postas de maneira aberta e abrangente para um outro altamente técnico e
formal, tendo por objeto textos e ideias acerca de interpretação” (tradução livre e ligeiramente
editada). 39
Rodrigo Uprimny Yepes, Judicialization of politics in Colombia, International Journal on Human
Rights 6:49, 2007, p. 63: “O uso de argumentos jurídicos para resolver problemas sociais
complexos pode dar a impressão de que a solução para muitos problemas políticos não exige
engajamento democrático, mas em vez disso juízes e agentes públicos providenciais”. 40
Exemplo emblemático de debate apaixonado foi o que envolveu o processo de extradição do ex-
militante da esquerda italiana Cesare Battisti. Na ocasião, assinalou o Ministro Eros Grau: "Parece
que não há condições no tribunal de um ouvir o outro, dada a paixão que tem presidido o
julgamento deste caso". Sobre o ponto, v. Felipe Recondo e Mariângela Galluci, Caso Battisti
expõe crise no STF. In: Estado de São Paulo, 22.11.2009. 41
Em 22 abr.2009, diferentes visões sobre a relação Judiciário, mídia e sociedade levaram a uma
ríspida discussão entre os Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. V.
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/04/22/na-integra-bate-boca-entre-joaquim-barbosa-
mendes-179585.asp.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
399
VI IMPORTÂNCIA E LIMITES DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NAS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS
A jurisdição constitucional pode não ser um componente indispensável do
constitucionalismo democrático, mas tem servido bem à causa, de uma maneira
geral42. Ela é um espaço de legitimação discursiva ou argumentativa das decisões
políticas que coexiste com a legitimação majoritária, servindo-lhe de “contraponto e
complemento”43. Isso se torna especialmente verdadeiro em países de
redemocratização mais recente, como o Brasil, onde o amadurecimento institucional
ainda se encontra em curso, enfrentando uma tradição de hegemonia do Executivo e
uma persistente fragilidade do sistema representativo44. As constituições
contemporâneas, como já se assinalou, desempenham dois grandes papéis: (i) o de
condensar os valores políticos nucleares da sociedade, os consensos mínimos
quanto a suas instituições e quanto aos direitos fundamentais nela consagrados; e
(ii) o de disciplinar o processo político democrático, propiciando o governo da
maioria, a participação da minoria e a alternância no poder45. Pois este é o grande
papel de um tribunal constitucional, do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro:
proteger e promover os direitos fundamentais, bem como resguardar as regras do
jogo democrático. Eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos
elementos essenciais da Constituição se dará a favor e não contra a democracia46.
42
V. Dieter Grimm, Jurisdição constitucional e democracia, Revista de Direito do Estado 4:3, 2006,
p. 9: “A jurisdição constitucional não é nem incompatível nem indispensável à democracia. (...)
[Há] suficientes provas históricas de que um estado democrático pode dispensar o controle de
constitucionalidade. (...) Ninguém duvidaria do caráter democrático de Estados como o Reino
Unido e a Holanda, que não adotam o controle de constitucionalidade”. Sobre o tema, inclusive
com uma reflexão acerca da posição de Dieter Grimm aplicada ao Brasil, v. Thiago Magalhães
Pires, Crônicas do subdesenvolvimento: jurisdição constitucional e democracia no Brasil, Revista
de direito do Estado 12:181, 2009, p. 194 e s. 43
Eduardo Bastos de Mendonça, A constitucionalização da política: entre o inevitável e o
excessivo, p. 10. Artigo inédito, gentilmente cedido pelo autor. 44
Um dos principais críticos da judicial review, isto é, à possibilidade de cortes de justiça declararem
a inconstitucionalidade de atos normativos, Jeremy Waldron, no entanto, reconhece que ela pode
ser necessária para enfrentar patologias específicas, em um ambiente em que certas
características políticas e institucionais das democracias liberais não estejam totalmente
presentes. V. Jeremy Waldron, The core case against judicial review, The Yale Law Journal
115:1346, p. 1359 e s. 45
Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo, 2009, p. 89-90. 46
Para uma crítica da visão do Judiciário como instância de proteção das minorias e de defesa das
regras democráticas, v. Luciano da Ros, Tribunais como árbitros ou como instrumentos de
oposição: uma tipologia a partir dos estudos recentes sobre judicialização da política com
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
400
Nas demais situações – isto é, quando não estejam em jogo os direitos
fundamentais ou os procedimentos democráticos –, juízes e tribunais devem acatar
as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o
exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de
sobrepor-lhes sua própria valoração política47. Isso deve ser feito não só por razões
ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades
institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os
efeitos sistêmicos das decisões proferidas em casos individuais. Os membros do
Judiciário não devem presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás,
nessa vida –, supondo-se experts em todas as matérias. Por fim, o fato de a última
palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciário não o transforma
no único – nem no principal – foro de debate e de reconhecimento da vontade
constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nem
oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade.
Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes.
PARTE II - DIREITO E POLÍTICA: A CONCEPÇÃO TRADICIONAL
I NOTAS SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E POLÍTICA
A separação entre direito e política tem sido considerada como essencial no
Estado constitucional democrático. Na política, vigoram a soberania popular e o
princípio majoritário. O domínio da vontade. No direito, vigora o primado da lei (the
aplicação ao caso brasileiro contemporâneo, Direito, Estado e Sociedade 31:86, 2007, p. 100-1,
onde averbou: “Pode-se afirmar que tribunais são instituições que operam rigorosamente dentro
dos limites que a dinâmica das outras forças políticas e institucionais lhes impõem, raramente
decidindo fora do círculo de preferências dos atores políticos. A ideia de que tribunais
salvaguardam a democracia e a Constituição contra tudo e contra todos, como muitas vezes se
veicula nos círculos acadêmicos, pode ser considerada ingênua”. 47
Na jurisprudência norte-americana, o caso Chevron é o grande precedente da teoria da deferência
administrativa em relação à interpretação razoável dada pela Administração. De fato, em Chevron
USA Inc. vs. National Resources Defense Council Inc. (467 U.S. 837 (1984) ficou estabelecido
que, havendo ambiguidade ou delegação legislativa para a agência, o Judiciário somente deve
intervir se a Administração (no caso, uma agência reguladora) tiver atuado contra legem ou de
maneira irrazoável.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
401
rule of law) e do respeito aos direitos fundamentais. O domínio da razão. A crença
mitológica nessa distinção tem resistido ao tempo e às evidências. Ainda hoje, já
avançado o século XXI, mantém-se a divisão tradicional entre o espaço da política e
o espaço do direito48. No plano de sua criação, não há como o direito ser separado
da política, na medida em que é produto do processo constituinte ou do processo
legislativo, isto é, da vontade das maiorias. O direito é, na verdade, um dos
principais produtos da política, o troféu pelo qual muitas batalhas são disputadas49.
Em um Estado de direito, a Constituição e as leis, a um só tempo, legitimam e
limitam o poder político.
Já no plano da aplicação do direito, sua separação da política é tida como
possível e desejável. Tal pretensão se realiza, sobretudo, por mecanismos
destinados a evitar a ingerência do poder político sobre a atuação judicial. Isso inclui
limitações ao próprio legislador, que não pode editar leis retroativas, destinadas a
atingir situações concretas50. Essa separação é potencializada por uma visão
tradicional e formalista do fenômeno jurídico. Nela se cultivam crenças como a da
neutralidade científica, da completude do direito e a da interpretação judicial como
um processo puramente mecânico de concretização das normas jurídicas, em
valorações estritamente técnicas51. Tal perspectiva esteve sob fogo cerrado ao longo
de boa parte do século passado, tendo sido criticada por tratar questões políticas
como se fossem linguísticas e por ocultar escolhas entre diferentes possibilidades
interpretativas por trás do discurso da única solução possível52. Mais recentemente,
48
V. Larry Kramer, The people themselves: popular constitutionalism and judicial review, 2004, p. 7. 49
V. Keith E. Whittington, R. Daniel Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of
law and politics, 2008, p. 3. 50
Dieter Grimm, Constituição e política, 2006, p. 13. 51
O termo formalismo é empregado aqui para identificar posições que exerceram grande influência
em todo o mundo, como a da Escola da Exegese, na França, a Jurisprudência dos Conceitos, na
Alemanha, e o Formalismo Jurídico, nos Estados Unidos, cuja marca essencial era a da
concepção mecanicista do direito, com ênfase na lógica formal e grande desconfiança em relação
à interpretação judicial. 52
Para Brian Z. Tamanaha, Beyond the formalist-realist divide: the role of politics in judging, 2010,
a existência do formalismo jurídico, com as características que lhe são atribuídas, não
corresponde à realidade histórica. Segundo ele, ao menos nos Estados Unidos, essa foi uma
invenção de alguns realistas jurídicos, que se apresentaram para combater uma concepção que
jamais exisitiu, ao menos não com tais características: autonomia e completude do direito,
soluções únicas e interpretação mecânica. A tese refoge ao conhecimento convencional e
certamente suscitará polêmica.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
402
autores diversos têm procurado resgatar o formalismo jurídico, em uma versão
requalificada, cuja ênfase é a valorização das regras e a contenção da
discricionariedade judicial53.
II CONSTITUIÇÃO E PODERES CONSTITUÍDOS
A Constituição é o primeiro e principal elemento na interface entre política e
direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte originário – energia política em
estado quase puro, emanada da soberania popular – em poder constituído, que são
as instituições do Estado, sujeitas à legalidade jurídica, à rule of law. É a
Constituição que institui os Poderes do Estado, distribuindo-lhes competências
diversas54. Dois deles recebem atribuições essencialmente políticas: o Legislativo e
o Executivo. Ao Legislativo toca, precipuamente, a criação do direito positivo55. Já o
Executivo, no sistema presidencialista brasileiro, concentra as funções de chefe de
Estado e de chefe de governo, conduzindo com razoável proeminência a política
interna e externa. Legislativo e Executivo são o espaço por excelência do processo
político majoritário, feito de campanhas eleitorais, debate público e escolhas
discricionárias. Um universo no qual o título principal de acesso é o voto: o que
elege, reelege ou deixa de fora.
53
V. Frederick Schauer, Formalism: legal, constitutional, judicial. In: Keith E. Whittington, R. Daniel
Kelemen e Gregory A. Caldeira (eds.), The Oxford handbook of law and politics, 2008, p. 428-
36; e Noel Struchiner, Posturas interpretativas e modelagem institucional: a dignidade
(contingente) do formalismo jurídico. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria
constitucional contemporânea, 2009, p. 463-82. Sobre as ambiguidades do termo formalismo, v.
Martin Stone, verbete “formalismo”. In: Jules Coleman e Scott Shapiro (Eds), The Oxford
handbook of jurisprudence and philosophy of law, 2002, p. 166-205. 54
O poder constituinte, titularizado pelo povo, elabora a Constituição. A Constituição tem por
propósito submeter a política ao direito, impondo a ela regras procedimentais e determinados
valores substantivos. Isso não significa, todavia, quer a judicialização plena quer a supressão da
política, mas a mera existência de limites, de uma “moldura”, como referido por Dieter Grimm, que
acrescentou: “[U]ma política totalmente judicializada estaria no fundo despida de seu caráter
político e por fim reduzida à administração” (Constituição e política, 2006, p. 10). 55
Note-se que no âmbito da atuação política do Legislativo inclui-se, com destaque, a fiscalização do
governo e da administração pública. Importante ressaltar, igualmente, que nos países
presidencialistas – e no Brasil, especialmente –, o chefe do Executivo tem participação destacada
no processo legislativo, seja pela iniciativa seja pelo poder de sanção ou veto. Sobre o tema, v.
Clèmerson Merlin Clève, A atividade legislativa do Poder Executivo, 2000, p. 99-118.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
403
Já ao Poder Judiciário são reservadas atribuições tidas como
fundamentalmente técnicas. Ao contrário do chefe do Executivo e dos
parlamentares, seus membros não são eleitos. Como regra geral, juízes ingressam
na carreira no primeiro grau de jurisdição, mediante concurso público. O acesso aos
tribunais de segundo grau se dá por via de promoção, conduzida pelo órgão de
cúpula do próprio tribunal56. No tocante aos tribunais superiores, a investidura de
seus membros sofre maior influência política, mas, ainda assim, está sujeita a
parâmetros constitucionais57. A atribuição típica do Poder Judiciário consiste na
aplicação do direito a situações em que tenha surgido uma disputa, um litígio entre
partes. Ao decidir a controvérsia – esse o entendimento tradicional –, o juiz faz
prevalecer, no caso concreto, a solução abstratamente prevista na lei.
Desempenharia, assim, uma função técnica de conhecimento, de mera declaração
de um resultado já previsto, e não uma atividade criativa, suscetível de influência
política58. Mesmo nos casos de controle de constitucionalidade em tese – isto é, de
discussão acerca da validade abstrata de uma lei –, o Judiciário estaria fazendo
prevalecer a vontade superior da Constituição sobre a decisão política majoritária do
Legislativo.
III A PRETENSÃO DE AUTONOMIA DO JUDICIÁRIO E DO DIREITO EM RELAÇÃO À POLÍTICA
A maior parte dos Estados democráticos do mundo reserva uma parcela de
poder político para ser exercido pelo Judiciário, isto é, por agentes públicos que não
são eleitos. Quando os órgãos judiciais resolvem disputas entre particulares,
determinando, por exemplo, o pagamento de uma indenização por quem causou um
56
Salvo no tocante ao chamado quinto constitucional, em que há participação do chefe do Executivo
na designação de advogados e membros do Ministério Público para o tribunal (CF, art. 94). 57
Nos tribunais superiores – Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior Eleitoral, Tribunal
Superior do Trabalho e Superior Tribunal Militar –, a indicação de seus ministros é feita pelo
Presidente da República, com aprovação do Senado Federal (exceto no caso do TSE). Ainda
assim, existem balizamentos constitucionais, que incluem, conforme o caso, exigências de notório
saber jurídico e reputação ilibada, idade e origem funcional. V. CF, arts. 101, 104, 119, 111-A e
123. 58
Sobre a interpretação jurídica como mera função técnica de conhecimento, v. Michel Troper,
verbete “Interprétation”. In: Denis Alland e Stéphane Rials Dictionnaire de la culture juridique,
2003, p. 843.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
404
acidente, decretando um divórcio ou o despejo de um imóvel, não há muita polêmica
sobre a legitimidade do poder que exerce. A Constituição confere a ele competência
para solucionar os litígios em geral e é disso que se trata. A questão ganha em
complexidade, todavia, quando o Judiciário atua em disputas que envolvem a
validade de atos estatais ou nas quais o Estado – isto é, outros órgãos de Poder –
seja parte. É o que ocorre quando declara inconstitucional a cobrança de um tributo,
suspende a execução de uma obra pública por questões ambientais ou determina a
um hospital público que realize tratamento experimental em paciente que solicitou tal
providência em juízo. Nesses casos, juízes e tribunais sobrepõem sua vontade à de
agentes públicos de outros Poderes, eleitos ou nomeados para o fim específico de
fazerem leis, construírem estradas ou definirem as políticas de saúde.
Para blindar a atuação judicial da influência imprópria da política, a cultura
jurídica tradicional sempre se utilizou de dois grandes instrumentos: a independência
do Judiciário em relação aos órgãos propriamente políticos de governo; e a
vinculação ao direito, pela qual juízes e tribunais têm sua atuação determinada pela
Constituição e pelas leis. Órgãos judiciais, ensina o conhecimento convencional, não
exercem vontade própria, mas concretizam a vontade política majoritária
manifestada pelo constituinte ou pelo legislador. A atividade de interpretar e aplicar
normas jurídicas é regida por um conjunto de princípios, regras, convenções,
conceitos e práticas que dão especificidade à ciência do direito ou dogmática
jurídica. Este, portanto, o discurso padrão: juízes são independentes da política e
limitam-se a aplicar o direito vigente, de acordo com critérios aceitos pela
comunidade jurídica.
1 INDEPENDÊNCIA DO JUDICIÁRIO
A independência do Judiciário é um dos dogmas das democracias
contemporâneas. Em todos os países que emergiram de regimes autoritários, um
dos tópicos essenciais do receituário para a reconstrução do Estado de direito é a
organização de um Judiciário que esteja protegido de pressões políticas e que possa
interpretar e aplicar a lei com isenção, baseado em técnicas e princípios aceitos pela
comunidade jurídica. Independência e imparcialidade como condições para um
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
405
governo de leis, e não de homens. De leis, e não de juízes, fique bem entendido59.
Para assegurar que assim seja, a Constituição brasileira, por exemplo, confere à
magistratura garantias institucionais – que incluem autonomia administrativa e
financeira – e funcionais, como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de
remuneração60. Naturalmente, para resguardar a harmonia com outros Poderes, o
Judiciário está sujeito a checks and balances e, desde a Emenda Constitucional nº
45, de 2004, ao controle administrativo, financeiro e disciplinar do Conselho Nacional
de Justiça. Em uma democracia, todo poder é representativo, o que significa que
deve ser transparente e prestar contas à sociedade. Nenhum poder pode estar fora
do controle social, sob pena de se tornar um fim em si mesmo, prestando-se ao
abuso e a distorções diversas61.
2 VINCULAÇÃO AO DIREITO POSTO E À DOGMÁTICA JURÍDICA
O mundo do direito tem suas fronteiras demarcadas pela Constituição e seus
caminhos determinados pelas leis. Além disso, tem valores, categorias e
procedimentos próprios, que pautam e limitam a atuação dos agentes jurídicos,
sejam juízes, advogados ou membros do Ministério Público. Pois bem: juízes não
inventam o direito do nada. Seu papel é o de aplicar normas que foram positivadas
pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda quando desempenhem uma função
criativa do direito para o caso concreto, deverão fazê-lo à luz dos valores
compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu trabalho, portanto, não inclui
59
Registre-se a aguda observação de Dieter Grimm, ex-juiz da Corte Constitucional alemã: “A
garantia constitucional de independência judicial protege os juízes da política, mas não protege o
sistema constitucional e a sociedade de juízes que, por razões distintas da pressão política direta,
estão dispostos a desobedecer ou distorcer a lei (Dieter Grimm, Constitutions, constitutional courts
and constitutional interpretation at the interface of law and politics. In: Bogdan Iancu (ed.), The
law/politics distinction in contemporary public law adjudication, 2009, p. 26). 60
V. Constituição Federal, arts. 95 e 99. Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Constitucionalidade
e legitimidade da criação do Conselho Nacional de Justiça, Interesse Público 30:13, 2005. 61
Em texto escrito anteriormente à criação do Conselho Nacional de Justiça, e tendo como pano de
fundo disputas politizadas ligadas à privatização e aos planos econômicos, escreveu Carlos
Santiso, Economic reform and judicial governance in Brazil: balancing independence with
accountability. In: Siri Gloppen, Roberto Gargarella e Elin Skaar, Democratization and the
judiciary, 2004, p. 172 e 177: “Excessiva independência tende a gerar incentivos perversos e
insular o Judiciário do contexto político e econômico mais amplo, convertendo-o em uma
instituição autárquica, incapaz de responder às demandas sociais. (...) Independência sem
responsabilidade política (accountability) pode ser parte do problema e não da solução”.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
406
escolhas livres, arbitrárias ou caprichosas. Seus limites são a vontade majoritária e
os valores compartilhados. Na imagem recorrente, juízes de direito são como
árbitros desportivos: cabe-lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos,
marcar o tempo regulamentar, enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que
o jogo seja justo. Mas não lhes cabe formular as regras62. A metáfora já teve mais
prestígio, mas é possível aceitar, para não antecipar a discussão do próximo tópico,
que ela seja válida para qualificar a rotina da atividade judicial, embora não as
grandes questões constitucionais.
Não está em questão, portanto, que as escolhas políticas devem ser feitas,
como regra geral, pelos órgãos eleitos, isto é, pelo Congresso e pelo Presidente. Os
tribunais desempenham um papel importante na vida democrática, mas não o papel
principal. Dois autores contemporâneos utilizaram expressões que se tornaram
emblemáticas para demarcar o papel das cortes constitucionais. Ronald Dworkin
referiu-se a “fórum de princípios”. Em uma sociedade democrática, algumas
questões decisivas devem ser tratadas como questões de princípios – morais ou
políticos – e não como uma questão de poder político, de vontade majoritária. São
elas as que envolvem direitos fundamentais das pessoas, e não escolhas gerais
sobre como promover o bem-estar social63. Já John Rawls explorou a ideia de
“razão pública”. Em uma democracia pluralista, a razão pública consiste na
justificação das decisões políticas sobre questões constitucionais essenciais e sobre
questões de justiça básica, como os direitos fundamentais. Ela expressa os
argumentos que pessoas com formação política e moral diversa podem acatar, o
que exclui, portanto, o emprego de doutrinas abrangentes, como as de caráter
62
Em uma das audiências que antecederam sua confirmação como Presidente da Suprema Corte
americana, em setembro de 2005, John G. Roberts Jr. voltou a empregar essa metáfora frequente:
“Juízes são como árbitros desportivos (umpires). Eles não fazem as regras; eles as aplicam. O
papel de um árbitro, assim como o de um juiz, é muito importante. Eles asseguram que todos
joguem de acordo com as regras. Mas é um papel limitado”. A passagem está reproduzida em
Week in review, New York Times, 12 jul. 2009. V. a íntegra do depoimento em
http://www.gpoaccess.gov/congress/senate/judiciary/sh109-158/55-56.pdf. 63
V. Ronald Dworkin, A matter of principle, 1985, p. 69-71. “A fiscalização judicial assegura que as
questões mais fundamentais de moralidade política serão apresentadas e debatidas como
questões de princípio, e não apenas de poder político. Essa é uma transformação que não poderá
jamais ser integralmente bem-sucedida apenas no âmbito do Legislativo”. Por exemplo: a
igualdade racial, a igualdade de gênero, a orientação sexual, os direitos reprodutivos, o direito do
acusado ao devido processo legal, dentre outras, são questões de princípio, e não de política.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
407
religioso ou ideológico64. Em suma: questões de princípio devem ser decididas, em
última instância, por cortes constitucionais, bom base em argumentos de razão
pública.
3 LIMITES DA SEPARAÇÃO ENTRE DIREITO E POLÍTICA
Direito é, certamente, diferente da política. Mas não é possível ignorar que a
linha divisória entre ambos, que existe inquestionavelmente, nem sempre é nítida, e
certamente não é fixa65. Do ponto de vista da teoria jurídica, tem escassa adesão,
nos dias que correm, a crença de que as normas jurídicas tragam sempre em si um
sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E
que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo
preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua
concretização. Há praticamente consenso, na doutrina contemporânea, de que a
interpretação e aplicação do direito envolvem elementos cognitivos e volitivos. Do
ponto de vista funcional, é bem de ver que esse papel de intérprete final e definitivo,
em caso de controvérsia, é desempenhado por juízes e tribunais. De modo que o
Poder Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma
posição de primazia na determinação do sentido e do alcance da Constituição e das
leis, pois cabe-lhe dar a palavra final, que vinculará os demais Poderes. Essa
supremacia judicial quanto à determinação do que é o direito envolve, por evidente,
o exercício de um poder político, com todas as suas implicações para a legitimidade
democrática66.
64
John Rawls, Political liberalism, 1996, p. 212 e s., especialmente p. 231-40. Nas suas próprias
palavras: “(A razão pública) se aplica também, e de forma especial, ao Judiciário e, acima de tudo,
à suprema corte, onde haja uma democracia constitucional com controle de constitucionalidade.
Isso porque os Ministros têm que explicar e justificar suas decisões, baseadas na sua
compreensão da Constituição e das leis e precedentes relevantes. Como os atos do Legislativo e
do Executivo não precisam ser justificados dessa forma, o papel especial da Corte a torna um
caso exemplar de razão pública”. Para uma crítica da visão de Rawls, v. Jeremy Waldron, Public
reason and ‘justification’ in the courtroom, Journal of Law, Philosophy and Culture 1:108, 2007. 65
V. Eduardo Mendonça, A inserção da jurisdição constitucional na democracia: algum lugar entre o
direito e a política, Revista de direito do Estado 13:211, 2009, p. 212. 66
Sobre o conceito de legitimidade e sua evolução, v. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, 2008,
Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno, p. 33-47.
Constituição, democracia e supremacia judicial
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408
PARTE III - DIREITO E POLÍTICA: O MODELO REAL
I OS LAÇOS INEVITÁVEIS: A LEI E SUA INTERPRETAÇÃO COMO ATOS DE VONTADE
No mundo romano-germânico, é comum fazer-se referência ao direito como
uma ciência. A afirmação pode ser aceita, ainda que com reserva, se o termo ciência
for tomado no sentido de um conjunto organizado de conhecimentos, que guarda
uma lógica interna e tem princípios, conceitos e categorias específicos, unificados
em uma terminologia própria. Mas é intuitiva a distinção a ser feita em relação às
ciências da natureza. Essas últimas são domínios que lidam com fenômenos que se
ordenam independentemente da vontade humana, seja o legislador, o público em
geral ou o intérprete. São ciências que se destinam a explicar o que lá já está. Sem
pretender subestimar complexidades epistemológicas, são domínios em que o
anseio científico por objetividade e comprovação imparcial se realiza mais
intensamente. Já o direito se insere no campo das ciências sociais e tem, sobretudo,
uma pretensão prescritiva: ele procura moldar a vida de acordo com suas normas. E
normas jurídicas não são reveladas, mas, sim, criadas por decisões e escolhas
políticas, tendo em vista determinadas circunstâncias e visando determinados fins.
E, por terem caráter prospectivo, precisarão ser interpretadas no futuro, tendo em
conta fatos e casos concretos.
Como consequência, tanto a criação quanto a aplicação do direito
dependem da atuação de um sujeito, seja o legislador ou o intérprete. A legislação,
como ato de vontade humana, expressará os interesses dominantes – ou, se se
preferir, o interesse público, tal como compreendido pela maioria, em um dado
momento e lugar. E a jurisdição, que é a interpretação final do direito aplicável,
expressará, em maior ou menor intensidade, a compreensão particular do juiz ou do
tribunal acerca do sentido das normas. Diante de tais premissas, é possível extrair
uma conclusão parcial bastante óbvia, ainda que frequentemente encoberta: o
mantra repetido pela comunidade jurídica mais tradicional de que o direito é diverso
da política exige um complemento. É distinto, sim, e por certo; mas não é isolado
dela. Suas órbitas se cruzam e, nos momentos mais dramáticos, se chocam,
produzindo vítimas de um ou dos dois lados: a justiça e a segurança jurídica, que
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
409
movem o direito; ou a soberania popular e a legitimidade democrática, que devem
conduzir a política. A seguir se exploram diferentes aspectos dessa relação. Alguns
deles são ligados à teoria do direito e da interpretação, e outros às circunstâncias
dos juízes e órgãos julgadores.
II A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SUAS COMPLEXIDADES: O ENCONTRO NÃO MARCADO ENTRE O DIREITO E A POLÍTICA
1 A LINGUAGEM ABERTA DOS TEXTOS JURÍDICOS
A linguagem jurídica, como a linguagem em geral, utiliza-se de signos que
precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes, possuem determinados
sentidos consensuais ou de baixo grau de controvérsia. Embora nem sempre as
coisas sejam simples como parecem, há pouca dúvida do que signifique município,
orçamento ou previdência complementar. Mas a Constituição se utiliza, igualmente,
de inúmeras cláusulas abertas, que incluem conceitos jurídicos indeterminados e
princípios. Calamidade pública, relevância e urgência ou crime político são conceitos
que transmitem uma ideia inicial de sentido, mas que precisam ser integrados à luz
dos elementos do caso concreto. E, em relação a eles, embora possam existir
certezas positivas e negativas sobre o que significam ou deixam de significar, é
indiscutível que há uma ampla área de penumbra que se presta a valorações que
não poderão refugir a algum grau de subjetividade. O fenômeno se repete com
maior intensidade quando se trate de princípios constitucionais, com sua intensa
carga axiológica, como dignidade da pessoa humana, moralidade administrativa ou
solidariedade social. Também aqui será impossível falar em sentidos claros e
unívocos. Na interpretação de normas cuja linguagem é aberta e elástica, o direito
perde muito da sua objetividade e abre espaço para valorações do intérprete. O fato
de existir consenso de que ao atribuir sentido a conceitos indeterminados e a
princípios não deve o juiz utilizar-se dos seus próprios valores morais e políticos não
elimina riscos e complexidades, funcionando como uma bússola de papel.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
410
2 OS DESACORDOS MORAIS RAZOÁVEIS
Além dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a
determinação semântica de sentido da norma, existem, também, em uma sociedade
pluralista e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral razoável67.
Pessoas bem intencionadas e esclarecidas, em relação a múltiplas matérias,
pensam de maneira radicalmente contrária, sem conciliação possível. Cláusulas
constitucionais como direito à vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade dão
margem a construções hermenêuticas distintas, por vezes contrapostas, de acordo
com a pré-compreensão do intérprete. Esse fenômeno se revela em questões que
são controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, como, por exemplo,
interrupção de gestação, pesquisas com células-tronco embrionárias,
eutanásia/ortotanásia, uniões homoafetivas, em meio a inúmeras outras. Nessas
matérias, como regra geral, o papel do direito e do Estado deve ser o de assegurar
que cada pessoa possa viver sua autonomia da vontade e suas crenças. Ainda
assim, inúmeras complexidades surgem, motivadas por visões filosóficas e religiosas
diversas.
3 AS COLISÕES DE NORMAS CONSTITUCIONAIS
Constituições são documentos dialéticos e compromissórios, que consagram
valores e interesses diversos, que eventualmente entram em rota de colisão. Essas
colisões podem se dar, em primeiro lugar, entre princípios ou interesses
constitucionalmente protegidos. É o caso, por exemplo, da tensão entre
desenvolvimento nacional e proteção do meio-ambiente ou entre livre-iniciativa e
repressão ao abuso do poder econômico. Também é possível a colisão entre direitos
fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito de privacidade, ou entre a
liberdade de reunião e o direito de ir e vir (no caso, imagine-se, de uma passeata
que bloqueie integralmente uma via de trânsito essencial). Por fim, é possível cogitar
de colisão de direitos fundamentais com certos princípios ou interesses
67
Sobre o tema, na literature mais recente, v. Christopher McMahon, Reasonable disagreement: a
theory of political morality, 2009; e Folke Tersman, Moral disagreement, 2006.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
411
constitucionalmente protegidos, como o caso da liberdade individual, de um lado, e a
segurança pública e a persecução penal, de outro. Em todos esses exemplos, à
vista do princípio da unidade da Constituição, o intérprete não pode escolher
arbitrariamente um dos lados, já que não há hierarquia entre normas constitucionais.
De modo que ele precisará demonstrar, argumentativamente, à luz dos elementos
do caso concreto, mediante ponderação e uso da proporcionalidade, que
determinada solução realiza mais adequadamente a vontade da Constituição,
naquela situação específica.
Todas essas hipóteses referidas acima – ambiguidade da linguagem,
desacordo moral e colisões de normas – recaem em uma categoria geral que tem
sido referida como casos difíceis (hard cases)68. Nos casos fáceis, a identificação do
efeito jurídico decorrente da incidência da norma sobre os fatos relevantes envolve
uma operação simples, de mera subsunção. O proprietário de um imóvel urbano
deve pagar imposto predial. A Constituição não permite ao Chefe do Executivo um
terceiro mandato. Já os casos difíceis envolvem situações para as quais não existe
uma solução acabada no ordenamento jurídico. Ela precisa ser construída
argumentativamente, por não resultar do mero enquadramento do fato à norma.
Pode um artista, em nome do direito de privacidade, impedir a divulgação de sua
biografia, escrita por um pesquisador? Pode o autor de uma ação de investigação de
paternidade exigir que o indigitado pai se submeta coativamente a exame de DNA?
Em ambos os casos, que envolvem questões constitucionais – privacidade,
liberdade de expressão, direitos da personalidade, liberdade individual – a solução
para a disputa não é encontrável pré-pronta no sistema jurídico: ela precisa ser
desenvolvida justificadamente pelo intérprete.
4 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E SEUS MÉTODOS
Em todas as hipóteses referidas acima, envolvendo casos difíceis, o sentido
da norma precisará ser fixado pelo juiz. Como se registrou, são situações em que a
solução não estará pronta em uma prateleira jurídica e, portanto, exigirá uma
68
Sobre o tema, v. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 81 e s.; e Aharon Barak, The
judge in a democracy, 2006, p. xiii e s.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
412
atuação criativa do intérprete, que deverá argumentativamente justificar seu itinerário
lógico e suas escolhas. Se a solução não está integralmente na norma, o juiz terá de
recorrer a elementos externos ao direito posto, em busca do justo, do bem, do
legítimo. Ou seja, sua atuação terá de se valer da filosofia moral e da filosofia
política. Mesmo admitida esta premissa – a de que o juiz, ao menos em certos
casos, precisa recorrer a elementos extrajurídicos –, ainda assim se vai verificar que
diferentes juízes adotam diferentes métodos de interpretação. Há juízes que
pretendem extrair da Constituição suas melhores potencialidades, realizando na
maior extensão possível os princípios e direitos fundamentais. Há outros que
entendem mais adequado não ler na Constituição o que nela não está de modo claro
ou expresso, prestando maior deferência ao legislador ordinário69. Uma pesquisa
empírica revelará, sem surpresa, que os mesmos juízes nem sempre adotam os
mesmos métodos de interpretação70. Seu método ou filosofia judicial é mera
racionalização da decisão que tomou por outras razões71. E aí surge uma nova
variável: o resultado baseado não no princípio, mas no fim, no resultado72.
69
Cass Sunstein, Radicals in robes, 2005, identifica quatro abordagens no debate constitucional:
perfeccionismo, majoritarianismo, minimialismo e fundamentalismo. O perfeccionismo, adotado por
muitos juristas progressistas, quer fazer da Constituição “o melhor que ela possa ser”. O
majoritarianismo pretende diminuir o papel da Suprema Corte e favorecer o processo político
democrático, cujo centro de gravidade estaria no Legislativo. O minimalismo é cético acerca de
teorias interpretativas e acredita em decisões menos abrangentes, focadas no caso concreto e
não em proposições amplas. O fundamentalismo procura interpretar a Constituição dando-lhe o
sentido que tinha quando foi ratificada. Para uma dura crítica ao minimalismo defendido por
Sunstein, v. Ronald Dworkin, Looking for Cass Sunstein, The New York Review of Books 56, 30
abr. 2009 (também disponível em http://www.nybooks.com/articles/22636). 70
Sobre o ponto, v. Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questões políticas e científicas complexas, Revista de direito do
Estado 12:107, p. 139: “É importante destacar que não há um magistrado que em sua prática
jurisdicional seja sempre minimalista ou perfeccionista. Nos casos da fidelidade partidária, da
cláusula de barreira e da inelegibilidade, por exemplo, o Min. Eros Grau assumiu um
posicionamento nitidamente minimalista e formalista, ao passo que no caso do amianto
aproximou-se, conforme foi visto, do modelo perfeccionista”. 71
Para essa visão cética, v. Richard A. Posner, How judges think, 2008, p. 13, onde registrou que
as filosofias judiciais “são ou racionalizações para decisões tomadas por outros fundamentos ou
armas retóricas”. 72
V., ainda uma vez, Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo
Tribunal Federal diante de questões políticas e científicas complexas, Revista de direito do
Estado 12:107, p. 139: “Frequentemente, os juízes tendem a fazer um uso estratégico dos
modelos anteriormente descritos tendo em vista fins previamente escolhidos, ou seja, optam
pragmaticamente pelo modelo mais adequado para a resolução do problema enfrentado no caso
concreto”. Sobre o consequencialismo – isto é, o processo decisório fundado no resultado –, v.
Diego Werneck Arguelles, Deuses pragmáticos, mortais formalistas: a justificação
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
413
Nesse ponto, impossível não registrar a tentação de se abrir espaço para o
debate acerca de uma das principais correntes filosóficas do direito contemporâneo:
o pragmatismo jurídico, com seu elemento constitutivo essencial, que é o
consequencialismo. Para essa concepção, as consequências e resultados práticos
das decisões judiciais, assim em relação ao caso concreto como ao sistema como
um todo, devem ser o fator decisivo na atuação dos juízes e tribunais73. O
pragmatismo jurídico afasta-se do debate filosófico em geral, seja moral ou político –
inclusive o que mobilizou jusnaturalistas e positivistas em torno da resposta à
pergunta “o que é o direito?” – e se alinha a um empreendimento teórico distinto,
cuja indagação central é: “como os juízes devem decidir?”74. Não é o caso, aqui, de
se objetar que uma coisa não exclui a outra. A realidade incontornável, na
circunstância presente, é que o desvio que conduz ao debate sobre o pragmatismo
jurídico não poderá ser feito no âmbito desse trabalho. E isso não apenas por afastá-
lo do seu eixo central, como também pela complexidade da tarefa de qualificar o que
seja pragmatismo jurídico e de sistematizar as diferentes correntes que reivindicam o
rótulo.
III O JUIZ E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS: INFLUÊNCIAS POLÍTICAS EM UM JULGAMENTO75
No modelo idealizado, o direito é imune às influências da política, por força
de diferentes institutos e mecanismos. Basicamente, eles consistiriam: na
consequencialista das decisões judiciais, dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
mimeografado, 2006. 73
Sobre o pragmatismo filosófico, v. Richard Rorty, Consequences of pragmatism, 1982. Sobre o
pragmatismo jurídico, no debate norte-americano, vejam-se, dentre muitos: Richard Posner, Law,
pragmatism and democracy, 2003; e Jules Coleman, The practice of principle: in defence of a
pragmatic approach to legal theory, 2001. Em língua portuguesa, v. Diego Werneck Arguelhes e
Fernando Leal, Pragmatismo como [meta] teoria normativa da decisão judicial: caracterização,
estratégia e implicações. In: Daniel Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional
contemporânea, 2009; Thamy Pogrebinschi, Pragmatismo: teoria social e política, 2005; e
Cláudio Pereira de Souza Neto, A interpretação constitucional contemporânea entre o
construtivismo e o pragmatismo. In: Maia, Melo, Cittadino e Pogrebinschi (orgs.), Perspectivas
atuais da filosofia do direito, 2005. 74
Sobre esse ponto específico, v. Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, Pragmatismo como
[meta] teoria normativa da decisão judicial: caracterização, estratégia e implicações. In: Daniel
Sarmento (coord.), Filosofia e teoria constitucional contemporânea, 2009, p. 175 e 187. 75
As ideias que se seguem beneficiaram-se, intensamente, das formulações contidas em Barry
Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
414
independência do Judiciário e na vinculação do juiz ao sistema jurídico. A
independência se manifesta, como assinalado, em garantias institucionais – como a
autonomia administrativa e financeira – e garantias funcionais dos juízes, como a
vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. Como regra geral, a
investidura e a ascensão na carreira da magistratura se dá por critérios técnicos ou
por valorações interna corporis. Nos casos em que há participação política na
nomeação de magistrados para tribunais, ela se esgota após a posse, pois a
permanência vitalícia do magistrado no cargo já não dependerá de qualquer novo
juízo político. A autonomia e especificidade do universo jurídico, por sua vez,
consistem em um conjunto de doutrinas, categorias e princípios próprios, manejados
por juristas em geral – aí incluídos juízes, advogados, membros do Ministério Público
e demais participantes do processo jurídico e judicial – que não se confundem com
os da política. Trata-se de um discurso e de um código de relação diferenciados.
Julgar é distinto de legislar e de administrar. Juízes não criam o direito nem definem
as ações administrativas. Seu papel é aplicar a Constituição e as leis, valendo-se de
um conjunto de institutos consolidados de longa data, sendo que a jurisprudência
desempenha, crescentemente, um papel limitador dessa atuação, pela vinculação
aos precedentes. Direito e política, nessa visão, constituem mundos apartados.
Há um modelo oposto a esse, que se poderia denominar de modelo cético,
que descrê da autonomia do direito em relação à política e aos fenômenos sociais
em geral. Esse é o ponto de vista professado por movimentos teóricos de expressão,
como o realismo jurídico, a teoria crítica e boa parte das ciências sociais
contemporâneas. Todos eles procuram descrever o mundo jurídico e as decisões
judiciais como são, e não como deveriam ser. Afirmam, assim, que a crença na
objetividade do direito e a existência de soluções prontas no ordenamento jurídico
não passam de mitos. Não é verdade que o direito seja um sistema de regras e de
princípios harmônicos, de onde um juiz imparcial e apolítico colhe as soluções
adequadas para os problemas, livre de influências externas. Essa é uma fantasia do
formalismo jurídico. Decisões judiciais refletem as preferências pessoais dos juízes,
proclama o realismo jurídico; são essencialmente políticas, verbera a teoria crítica;
são influenciadas por inúmeros fatores extrajurídicos, registram os cientistas sociais.
Todo caso difícil pode ter mais de uma solução razoável construída pelo intérprete, e
a solução que ele produzirá será, em última análise, aquela que melhor atenda a
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
415
suas preferências pessoais, sua ideologia ou outros fatores externos, como os de
natureza institucional. Ele sempre agirá assim, tenha ou não consciência do que
está fazendo.
O modelo real, como não é difícil de intuir, terá uma dose razoável de cada
uma das visões extremas descritas acima. O direito pode e deve ter uma vigorosa
pretensão de autonomia em relação à política. Isso é essencial para a subsistência
do conceito de Estado de direito e para a confiança da sociedade nas instituições
judiciais. A realidade, contudo, revela que essa autonomia será sempre relativa.
Existem razões institucionais, funcionais e humanas para que seja assim. Decisões
judiciais, com frequência, refletirão fatores extrajudiciais. Dentre eles incluem-se os
valores pessoais e ideológicos do juiz, assim como outros elementos de natureza
política e institucional. Por longo tempo, a teoria do direito procurou negar esse fato,
a despeito das muitas evidências. Pois bem: a energia despendida na construção de
um muro de separação entre o direito e a política deve voltar-se agora para outra
empreitada76. Cuida-se de entender melhor os mecanismos dessa relação intensa e
inevitável, com o propósito relevante de preservar, no que é essencial, a
especificidade e, sobretudo, a integridade do direito77. Pois é justamente este o
objetivo do presente tópico: analisar alguns desses elementos metajurídicos que
influenciam ou podem influenciar as decisões judiciais. Confira-se a sistematização a
seguir.
1 VALORES E IDEOLOGIA DO JUIZ
Como assinalado, o realismo jurídico, um dos mais importantes movimentos
teóricos do direito no século XX, contribuiu decisivamente para a superação do
formalismo jurídico e da crença de que a atividade judicial seria mecânica, acrítica e
unívoca. Enfatizando que o direito tem ambiguidades e contradições, o realismo
76
V. Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 267 e p.
269, onde averbou: “Se, como os juristas vêm crescentemente reconhecendo, direito e política não
podem ser mantidos separados, ainda precisamos de uma teoria que possa integrá-los, sem abrir
mão dos compromissos com o Estado de direito que esta sociedade tanto preza”. 77
Sobre a ideia de direito como integridade, v. Ronald Dworkin, O império do direito, 1999, p. 271-
331.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
416
sustentava que a lei não é o único – e, em muitos casos, sequer o mais importante –
fator a influenciar uma decisão judicial. Em uma multiplicidade de hipóteses, é o juiz
que faz a escolha do resultado, à luz de suas intuições, personalidade, preferências
e preconceitos78. Em linha análoga, mas dando proeminência absoluta ao elemento
político, a teoria crítica79, no mundo romano-germânico, e os critical legal studies,
nos Estados Unidos, sustentaram que decisões judiciais não passam de escolhas
políticas, encobertas por um discurso que procura exibir neutralidade80. Tanto o
realismo quanto a teoria crítica refluíram drasticamente nas últimas décadas, mas
deixaram uma marca indelével no pensamento jurídico contemporâneo81. Mais
recentemente, um conjunto de estudos empíricos, oriundos, sobretudo, da ciência
política, recolocaram no centro do debate jurídico o tema dos valores, preferências e
ideologia do juiz na determinação do resultado de casos judiciais82.
Há, de fato, quem sustente ser mais fácil saber um voto ou uma decisão pelo
nome do juiz do que pela tese jurídica aplicável83. Essa visão cética acarreta duas
consequências negativas: deslegitima a função judicial e libera os juízes para
fazerem o que quiserem84. Há uma razão subjetiva e outra objetiva que se pode opor
a esse ponto de vista. A primeira: é possível assumir, como regra geral, que juízes
78
Sobre o tema, v. William W. Fisher III et. Al (eds.), American Legal realism, 1993, 164-5; Oliver
Wendel Holmes, Jr., The path of the law, Harvard Law Review 10:457, 1897; Karl Llewellyn,
Some realism about realism – responding to Dean Pound, Harvard Law Review 44: 1222, 1931; e
Jerome Frank, What courts do in fact, Illinois Law Review 26:645, 1932. Para uma análise da
incorporação de ideias do realismo jurídico americano no Brasil, sua “assimilação antropofágica”,
v. Paulo Macedo Garcia Neto, A influência do realismo jurídico americano no direito
constitucional brasileiro, mimeografado, dissertação de mestrado apresentada na Universidade
de São Paulo, sob orientação do Professor José Reinaldo Lima Lopes. 79
V. Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989; Carlos Maria Cárcova, Teorías jurídicas
alternativas: escritos sobre derecho y política, 1993; e Luiz Fernando Coelho, Teoria crítica do
direito, 1991. 80
V. Duncan Kennedy, Legal education and the reproduction of hierarchy, Journal of Legal
Education 32:591, 1982; Mark Tushnet, Critical legal studies: a political history, Yale Law Journal
100:1515, 1991. 81
V. Jeremy Waldron, Public reason and ‘justification’ in the courtroom, Journal of Law, Philosophy
and Culture1:107, 2007, p. 127: “A maioria dos juristas contemporâneos não aceita a visão crítica
do realismo jurídico”. 82
V. Cass Sunstein, David Schkade, Lisa M. Ellman e Andres Sawicki, Are judges political? An
empirical analysis of the Federal Judiciary, 2006; e Thomas J. Miles e Cass Sunstein, The new
legal realism. Public Law and Legal Theory Working Paper nº 191, dezembro de 2007. V. sítio
http://ssrn.com/abstract_id=1070283, acesso em 16 ago. 2009. 83
Robert H. Bork, Coercing virtue: the worldwide rule of judges, 2003, p. 9. 84
Michael Dorf, No litmus test: Law versus politics in the twentieth century, 2006, xix.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
417
verdadeiramente vocacionados têm como motivação primária e principal a
interpretação adequada do direito vigente, com a valoração imparcial dos elementos
fáticos e jurídicos relevantes85. Não se deve minimizar esse sentido de dever que
move as pessoas de bem em uma sociedade civilizada. Em segundo lugar, o direito
– a Constituição, as leis, a jurisprudência, os elementos e métodos de interpretação
– sempre desempenhará uma função limitadora. O discurso normativo e a dogmática
jurídica são autônomos em relação às preferências pessoais do julgador. Por
exemplo: o desejo de punir uma determinada conduta não é capaz de superar a
ocorrência de prescrição. O ímpeto de conhecer e julgar uma causa não muda a
regra sobre legitimação ativa ou sobre prejudicialidade86. De modo que o sentimento
pessoal de cumprir o próprio dever e a força vinculante do direito são elementos
decisivos na atuação judicial. Mas há que se reconhecer que não são únicos.
Com efeito, a observação atenta, a prática política e pesquisas empíricas
confirmam o que sempre foi possível intuir: os valores pessoais e a ideologia dos
juízes influenciam, em certos casos de maneira decisiva, o resultado dos
julgamentos. Por exemplo: na apreciação da constitucionalidade das pesquisas com
células-tronco embrionárias, a posição contrária à lei que as autorizava foi liderada
por Ministro ligado historicamente ao pensamento e à militância católica87, sendo
certo que a Igreja se opõe às investigações científicas dessa natureza88. Nos
Estados Unidos, fez parte da estratégia conservadora, iniciada com a posse de
Ronald Reagan, em 1981, nomear para a Suprema Corte Ministros que pudessem
reverter decisões judiciais consideradas progressistas, em temas como ações
85
Barry Friedman, The politics of judicial review. Texas Law Review 84:257, 2005, p. 270. 86
Foi o que ocorreu, por exemplo, em ação direta de inconstitucionalidade em que se questionava lei
que, supostamente, impediria o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas como entidade
familiar. O Ministro Relator, claramente contrariado, viu-se na contingência de extinguir a ação,
pois a superveniência do novo Código Civil revogou a lei impugnada (STF, DJ 9 fev. 2006, ADI
3300 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática). O mesmo se passou em habeas
corpus no qual se discutia a legitimidade da interrupção da gestação na hipótese de feto
anencefálico. O Relator chegou a divulgar o seu voto favorável ao direito de escolha da mulher,
mas a ocorrência do parto, seguido do óbito, anteriormente ao julgamento, impediu a sua
realização (STF, DJ 25 jun.2004, HC 84.025-6/RJ, Rel. Min. Joaquim Barbosa). 87
A referência é ao saudoso Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, falecido em setembro de 2009. 88
Na Adin nº 3.510, na qual se questionou a constitucionalidade do dispositivo legal que autorizava
as pesquisas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, representada pelo Professor Ives
Gandra da Silva Martins, foi admitida como amicus curiae e pediu a procedência da ação.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
418
afirmativas, aborto e direitos dos acusados em processos criminais89. Inúmeras
pesquisas, no Brasil90 e nos Estados Unidos91, confirmam que as preferências
políticas dos juízes constituem uma das variáveis mais relevantes para as decisões
judiciais, notadamente nos casos difíceis. É de se registrar que o processo
psicológico que conduz a uma decisão pode ser consciente ou inconsciente92.
Note-se que no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, o carimbo político é
menos relevante ou, no mínimo, menos visível, na medida em que a maior parte dos
cargos no Judiciário são preenchidos mediante concurso público e promoções
internas93. Mas não é este o caso das nomeações para o Supremo Tribunal Federal,
em que os parâmetros constitucionais são vagos – reputação ilibada e notável saber
jurídico – e a escolha pessoal do Presidente é o fator mais importante, sem embargo
da aprovação pelo Senado Federal. Na literatura norte-americana, tem sido
destacada a importância do gênero e da raça na determinação de certos padrões
decisórios do juiz. No caso brasileiro, em tribunais superiores, em geral, e no STF,
em particular, a origem profissional do Ministro imprime características perceptíveis
na sua atuação judicial: Ministros que vêm da Magistratura, do Ministério Público, da
advocacia privada, da advocacia pública ou da academia tendem a refletir, no
exercício da jurisdição, a influência de experiências pretéritas94. Note-se, todavia, em
89
Robert Post. Roe rage: democratic constitutionalism and backlash, Harvard Civil Rights-Civil
Liberties Law Review 42:373, 2007, p. 9: “É bem documentado que o Departamento de Justiça,
durante o Governo Reagan, de maneira pré-ordenada e bem-sucedida utilizou as nomeações de
juízes para alterar as práticas então predominantes em termos de interpretação constitucional”. 90
Alexandre Garrido da Silva, Minimalismo, democracia e expertise: o Supremo Tribunal Federal
diante de questões políticas e científicas complexas, Revista de Direito do Estado 12:107, 2008. 91
Theodore W. Ruger, Pauline T. Kim, Andrew D. Martin e Kevin M. Quinn, The Supreme Court
Forecasting Project: legal and political science approaches to predicting Supreme Courte
decisionmaking, Columbia Law Review 104:1150, 2004. 92
Ao produzir uma decisão, o juiz atua dentro de um universo cognitivo próprio, que inclui sua
formação moral e intelectual, suas experiências passadas, sua visão de mundo e suas crenças.
Tais fatores podem levá-lo, inconscientemente, a desejar um resultado e procurar realizá-lo. Tal
fenômeno é diverso do que se manifesta na vontade consciente e deliberada de produzir
determinado resultado, ainda que não seja o que se considera juridicamente melhor, com o
propósito de agradar a quem quer que seja ou para a satisfação de sentimento pessoal. Nessa
segunda hipótese, como intuitivo, a conduta não será legítima. Sobre o ponto, v. Brian Z.
Tamanaha, Beyond the formalist-realist divide: the role of politics in judging, 2010, p. 187-8. 93
Nos EUA, os juízes federais são indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo
Senado. No plano estadual, muitos são eleitos e outros são nomeados. 94
Um exemplo, colhido na composição atual do STF: Ministros que têm sua origem funcional no
Ministério Público – como os Ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie – têm uma visão mais
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
419
desfecho do tópico, que eventuais preferências políticas do juiz são contidas não
apenas por sua subordinação aos sentidos mínimos das normas constitucionais e
legais, como também por fatores extrajudiciais, dentre os quais se podem destacar:
a interação com outros atores políticos e institucionais, a perspectiva de
cumprimento efetivo da decisão, as circunstâncias internas dos órgãos colegiados e
a opinião pública.
2 INTERAÇÃO COM OUTROS ATORES POLÍTICOS E INSTITUCIONAIS
Como se vem enfatizando até aqui, decisões judiciais são influenciadas por
fatores múltiplos. Tribunais não são guardiães de um direito que não sofre o influxo
da realidade, das maiorias políticas e dos múltiplos atores de uma sociedade plural.
Órgãos, entidades e pessoas que se mobilizam, atuam e reagem. Dentre eles é
possível mencionar, exemplificativamente, os Poderes Legislativo e Executivo, o
Ministério Público, os Estados da Federação e entidades da sociedade civil. Todos
eles se manifestam, nos autos ou fora deles, procurando fazer valer seus direitos,
interesses e preferências. Atuam por meios formais e informais. E o Supremo
Tribunal Federal, como a generalidade das cortes constitucionais, não vive fora do
contexto político-institucional sobre o qual sua atuação repercute. Diante disso, o
papel e as motivações da Corte sofrem a influência de fatores como, por exemplo: a
preservação e, por vezes, a expansão de seu próprio poder; a interação com outros
Poderes, instituições ou entes estatais; e as consequências práticas de seus
julgados, inclusive e notadamente, a perspectiva de seu efetivo cumprimento.
2.1 PRESERVAÇÃO OU EXPANSÃO DO PODER DA CORTE
O primeiro impulso natural do poder é a autoconservação. É intuitivo, assim,
que um tribunal, em suas relações com os outros atores políticos, institucionais ou
sociais, procure demarcar e preservar seu espaço de atuação e sua autoridade, quer
rígida em matéria penal do que os que vêm da advocacia privada ou da academia, como Carlos
Ayres Britto e Eros Grau.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
420
pelo acolhimento de reclamações95, quer pela reafirmação de sua jurisprudência.
Alguns exemplos comprovam o argumento. Após haver cancelado a Súmula nº 394,
excluindo do foro privilegiado os agentes públicos que deixassem o exercício da
função96, o STF invalidou lei editada pelo Congresso Nacional que restabelecia a
orientação anterior. O acórdão considerou haver usurpação de sua função de
intérprete final da Constituição97. Em outro caso, o STF considerou inconstitucional
dispositivo legal que impedia a progressão de regime em caso de crime hediondo98.
Decisão do juiz de direito de Rio Branco, no Acre, deixou de aplicar a nova
orientação, sob o argumento de que a declaração de inconstitucionalidade fora
incidental e não produzia efeitos vinculantes. A Corte reagiu, e não apenas
desautorizou o pronunciamento específico do magistrado estadual, como deu início
a uma discussão de mais largo alcance sobre a atribuição de efeitos vinculantes e
erga omnes à sua decisão de inconstitucionalidade, mesmo que no controle
incidental, retirando do Senado a atribuição de suspender a lei considerada
inválida99. Um terceiro e último exemplo: após haver concedido habeas corpus a um
banqueiro, preso temporariamente ao final de uma polêmica operação policial, o STF
considerou afronta à Corte a decretação, horas depois, de nova prisão, dessa vez de
natureza preventiva, ordenada pelo mesmo juiz, e concedeu um segundo habeas
corpus100.
95
A reclamação é o remédio jurídico previsto na Constituição e regulamentado pela Lei nº 8.038/90,
pela Lei nº 11.417/06 e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, cujo objeto é a
preservação da competência da Corte, a garantia da autoridade de suas decisões e a observância
do entendimento consolidado em súmula vinculante (CF/88, arts. 102, I, l, e 103-A, § 3º). 96
Súmula n. 394: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial
por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação
daquele exercício”. O cancelamento se deu em decisão proferida em 1999. V. STF, DJ 9 nov.
2001, QO no Inq 687/DF, Rel. Min. Sydney Sanches. 97
STF, DJ 19 dez. 2006, ADIn 2.797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. 98
STF, DJ 1 set.2006, HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio. Decisão constante do sítio do STF:
http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=169&dataPublicacaoDj=01/
09/2006&numProcesso=82959&siglaClasse=HC&codRecurso=0&tipoJulgamento=M&codCapitulo
=5&numMateria=27&codMateria=1). 99
STF, Rcl nº 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes. Em setembro de 2009, o processo se encontrava
com vista para o Ministro Ricardo Lewandowski. Haviam votado favoravelmente ao caráter
vinculante da decisão do STF, mesmo que em controle incidental de constitucionalidade, os
Ministro Gilmar Mendes e Eros Grau. Divergiram, no particular, os Ministros Sepúlveda Pertence e
Joaquim Barbosa. 100
Med. Caut. no HC 95.009-4 – São Paulo, Rel. Min. Eros Grau. A decisão concessiva de ambos os
habeas corpus foram do Presidente do Tribunal, Ministro Gilmar Mendes, em razão do recesso de
julho.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
421
O segundo impulso natural do poder é a expansão101. No caso brasileiro,
esse movimento de ampliação do Poder Judiciário, particularmente do Supremo
Tribunal Federal, tem sido contemporâneo da retração do Legislativo, que passa por
uma crise de funcionalidade e de representatividade. Nesse vácuo de poder, fruto da
dificuldade de o Congresso Nacional formar maiorias consistentes e legislar, a corte
suprema tem produzido decisões que podem ser reputadas ativistas, tal como
identificado o fenômeno em tópico anterior102. Exemplos emblemáticos e sempre
lembrados são os dos julgamentos da fidelidade partidária – em que o STF criou, por
interpretação do princípio democrático, uma nova hipótese de perda de mandato
parlamentar103 – e do nepotismo, em que a Corte, com base na interpretação dos
princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, estabeleceu a
vedação do nepotismo nos três Poderes104. Ações como as que tratam da
legitimidade da interrupção da gestação em caso de feto anencefálico105 e da
extensão do regime da união estável às uniões homoafetivas106 também envolvem
uma atuação quase normativa do Supremo Tribunal Federal. Tudo sem mencionar a
mudança jurisprudencial em tema de mandado de injunção107 e o progressivo
questionamento que se vem fazendo, no âmbito da própria Corte, acerca da
101
V. Tom Ginsburg, Judicial review in new democracies: constitutional courts in Asian cases,
2003. Em resenha sobre diferentes livros versando o tema da judicialização, Shannon Roesler, em
Permutations of judicial Power: the new constitutionalism and the expansion of judicial authority,
Law and Social Inquiry 32:557, assim descreveu a posição de Ginsburg: “Os juízes são atores
estratégicos que buscam aumentar seu poder em vez de interpretar e aplicar normas de acordo
com a intenção ou os interesses originais dos agentes eleitos que as elaboraram. (...) Uma das
premissas dessa abordagem é que os juízes vão buscar aumentar o poder de um tribunal, mesmo
que divirjam entre si quanto ao direito substantivo” (tradução livre, texto ligeiramente editado). 102
Nesse sentido, v. também Forum de Grupos de Pesquisa em direito Constitucional e Teoria do
direito, Anais do I Forum de Grupos de Pesquisa em direito Constitucional e Teoria do
direito. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de direito, 2009, p. 54: “A hipótese assumida na
investigação reconhece, por parte dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, sim um ‘ativismo’,
mas de caráter jurisdicional. Isto é, um procedimento, construído a partir das mais relevantes
decisões, objetivando, precipuamente, não a concretização de direitos, mas o alargamento de sua
competência institucional”. Pesquisa “A judicialização da política e o ativismo judicial no Brasil”,
conduzida por Alexandre Garrido da Silva et. al. 103
STF DJ 17 out. 2008, MS nº 26602/DF, Rel. Min. Eros Grau; DJ 19 dez. 2008, MS nº 26603/DF,
Rel. Min. Celso de Mello; e DJ 3 out. 2008, MS nº 26604/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia. 104
STF, DJ 18 dez.2009, ADC 12, Rel. Min. Carlos Britto; e DJ 24 out.2009. RE 579.951/RN, Rel.
Min. Ricardo Lewandowski. 105
STF, ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio. 106
STF, ADPF nº 132, Rel. Min. Carlos Britto. 107
STF, DJ 6 nov. 2007, MI nº 670, Rel. Min. Maurício Corrêa; DJ 31 out.2008, MI nº 708, Rel. Min.
Gilmar Mendes; DJ 31 out.2008, MI nº 712, Rel. Min. Eros Grau.
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Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
422
jurisprudência tradicional de que o STF somente possa funcionar como legislador
negativo108.
Em 2009, o STF solucionou uma disputa constitucional – e de espaço
político – entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Superior Tribunal de
Justiça (STJ), em favor da expansão do poder desse último. De fato, acórdão da 2ª.
Turma do STF, por diferença de um voto, legitimou decisão do STJ de devolver lista
sêxtupla enviada pela OAB, sem motivação objetiva, sob o fundamento de que
nenhum dos nomes obteve quorum para figurar na lista tríplice a ser encaminhada
ao Presidente da República109. A decisão, de certa forma, está em desacordo com
precedente do próprio STF110 e esvazia a competência do órgão de representação
dos advogados, cuja lista, doravante, estará sujeita a ingerência do STJ. A matéria
não chegou ao Plenário do STF, onde o resultado, possivelmente, teria sido diverso.
2.2 RELAÇÕES COM OUTROS PODERES, ÓRGÃOS E ENTIDADES ESTATAIS
As manifestações processuais e extraprocessuais de outros Poderes, órgãos
e entidades estatais são elementos relevantes do contexto institucional em que
produzidas as decisões judiciais, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Em
tema de ações diretas de inconstitucionalidade, as ações movidas pelo Procurador-
Geral da República têm o maior índice de acolhimento dentre todos os
legitimados111. O parecer da Procuradoria-Geral da República – isto é, seu
108
V. voto do Min. Gilmar Mendes em STF, ADIn nº 3.510, Rel. Min. Carlos Britto: “Portanto, é
possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do
legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas
com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias. A assunção de
uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas
relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a
efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional”. 109
Decisão do STJ: DJ 22 out. 2008, MS nº 13532-DF, Rel. Min. Paulo Gallotti. Decisão do STF: DJ 4
dez. 2009, RMS 27920-DF, Rel. Min. Eros Grau. 110
STF, DJ 19 dez.2006, MS 25624/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence 111
V. Luiz Werneck Vianna, Marcelo Baumann Burgos e Paula Martins Salles, Dezessete anos de
judicialização da política, Tempo Social 19:38, p. 43, 48 e 79, de onde se colheram os dados a
seguir. Entre 1988 e 2005, foram ajuizadas 1.713 Adins. Destas, 810 foram ajuizadas pelo PGR
(22,2% do total). De acordo com a pesquisa, o PGR “teve nada menos que 68,5% das liminares
de Adins julgadas deferidas ou parcialmente deferidas”. No mesmo sentido, Ernani Carvalho,
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
423
pronunciamento nos casos em que não é parte – é visto como expressão do
interesse público primário que deve ser preservado na questão. A despeito da
ausência de pesquisas empíricas, é possível intuir que um percentual muito
significativo das decisões do STF acompanha a manifestação do Ministério Público
Federal112. Já a atuação da Advocacia-Geral da União expressará o interesse ou o
ponto de vista do Poder Executivo, especialmente do Presidente da República. Em
questões que envolvem a Fazenda Pública, estudos empíricos certamente
demonstrariam uma atuação favorável ao erário, revelada emblematicamente em
questões de vulto, como as relativas ao FGTS, à Cofins ou ao IPI alíquota zero, por
exemplo. Em todas elas, a Corte alterou ou a sua própria jurisprudência ou a do
Superior Tribunal de Justiça, dando ganho de causa à União113. A cultura política
dominante ainda considera aceitável que Ministros de Estado visitem pessoalmente
os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por vezes após iniciados os julgamentos,
para pedirem decisões favoráveis ao ponto de vista em que têm interesse114.
Também o Congresso Nacional apresenta defesa em processos nos quais
seja parte e, especialmente, em ações diretas contra leis federais. Sendo a ação
direta de inconstitucionalidade contra lei estadual, também participam do processo a
Assembleia Legislativa e o Governador do Estado. Note-se que o peso político do
Estado pode fazer diferença em relação à deferência para com a legislação
estadual. Por exemplo: após inúmeras decisões considerando inconstitucionais leis
estaduais que proibiam o uso do amianto, o STF deixou de conceder medida
Judicialização da política no Brasil: controlo de constitucionalidade e racionalidade política,
Análise Social 44:315, p. 327. 112
Recente pesquisa empreendida pelo autor revelou que em cem pedidos de extradição, apenas
três resultaram em decisões que não acompanharam a manifestação do Ministério Público. 113
No caso do FGTS, deixou de considerar o tema do direito adquirido como infraconstitucional. No
da Cofins, mudou a orientação sumulada pelo STJ, mesmo depois de haver recusado
conhecimento a diversos recursos extraordinários na matéria, e sequer modulou os efeitos, como
seria próprio em razão da alteração da jurisprudência. No IPI alíquota zero, considerou que uma
decisão do Plenário por 9 a 1, decisão de uma das turmas e mais de 5 dezenas de decisões
monocráticas não firmavam jurisprudência. Em seguida, mudou a orientação, igualmente sem
modular efeitos. 114
V. Blog do Noblat, 6 ago. 2009: “O ministro das Comunicações, Helio Costa, empenhou-se na
defesa dos interesses econômicos da ECT. Na terça-feira, após classificar de desastre a eventual
abertura do mercado de cartas comerciais à iniciativa privada, ele foi ao STF para conversar a
portas fechadas com Ayres Brito e Gilmar Mendes, presidente da Corte”. In:
<http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2009/08/06/decisao-do-stf-mantem-monopolio-dos-
correios-211690.asp>.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
424
cautelar para suspender lei do Estado de São Paulo que dispunha no mesmo
sentido, revisitando tema que se encontrava já pacificado na Corte115.
3 PERSPECTIVA DE CUMPRIMENTO EFETIVO DA DECISÃO
Tribunais, como os titulares de poder em geral, não gostam de correr o risco
de que suas decisões não sejam efetivamente cumpridas. E, portanto, esta é uma
avaliação ordinariamente feita por órgãos judiciais, ainda que não seja explicitada.
Tribunais Congresso ou mesmo da aceitação social para que suas deliberações
sejam cumpridas. Há exemplos, em diferentes partes do mundo, de decisões que
não se tornaram efetivas. Na Itália, aliás, o primeiro Presidente do Tribunal
Constitucional renunciou precisamente por essa razão116. Na Alemanha, a decisão
no célebre caso do crucifixo foi generalizadamente desrespeitada117. Nos Estados
Unidos, a dessegregação imposta por Brown v. Board of Education, em decisão de
1954, levou mais de uma década para começar a ser efetivamente cumprida118. A
decisão no caso Chada foi ignorada pelo Congresso119. No Brasil, há precedentes
em que o STF fixou prazo para a atuação do legislador, sem que tivesse sido
115
STF, Inf. STF nº 477 e 509, ADI nº 3937 MC/SP, Rel. Min. Marco Aurélio. O relator votou na linha
do entendimento tradicional, expresso em decisões como a das ADIs nºs. 2656/SP e 2396/MS.
Mas o Min. Eros Grau deu início à dissidência, suscitando a inconstitucionalidade da própria lei
federal que cuida da matéria. 116
Criada pela Constituição de 1948, a instalação efetiva da Corte Constitucional somente se deu oito anos depois, em 1956. Pouco tempo após, seu Presidente, Enrico de Nicola, renunciou ao cargo, indignado com a recalcitrância do governo democrata-cristão em dar cumprimento às decisões do tribunal. V. Revista Time, 1º out. 1956, “Italy: effective resignation”. In: http://www.time.com /time/magazine/article/0,9171,862380,00.html, acesso em 23 jan. 2010. V. tb. Georg Vanberg, The politics of constitutional review in Germany. Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 7.
117 A decisão declarou inconstitucional uma lei da Bavária que previa a exibição de crucifixos nas
salas de aula das escolas públicas de ensino fundamental. V. BVerfGE 93, I. Sob protestos e
manifestações que mobilizaram milhares de pessoas, os crucifixos terminaram não sendo
efetivamente retirados. V. Georg Vanberg, The politics of constitutional review in Germany,
2005, p. 2-4. 118
V. Robert J. Cottrol, Raymond T. Diamond e Leland B. Ware, Brown v. Board of Education:
case, culture, and the constitution, 2003, p. 183. 119
INS v. Chadda, 462 U.S. 919, 1983. Nessa decisão, a Suprema Corte considerou inconstitucional o chamado legislative veto, procedimento pelo qual uma das Casas do Congresso poderia suspender decisões de agências reguladoras que estivessem atuando por delegação legislativa. A Corte entendeu que a providência somente poderia ser tomada mediante lei, que inclui a manifestação das duas Casas e a possibilidade de veto pelo Presidente. Não obstante isso, inúmeras leis foram aprovadas, prevendo o veto legislativo por apenas uma das Casas do Congresso. V. Georg Vanberg, The politics of constitutional review in Germany. Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 5 e s.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
425
obedecido120. Em tema de intervenção federal, a despeito do manifesto
descumprimento por Estados da Federação do dever constitucional de pagar
precatórios, a Corte igualmente optou por linha jurisprudencial que não
desmoralizasse suas decisões, diante das dificuldades financeiras dos entes
estatais121. Outro exemplo emblemático, nesse domínio, foi a decisão proferida em
1955, quando da tentativa do Vice-Presidente Café Filho de retornar à
presidência122.
4 CIRCUNSTÂNCIAS INTERNAS DOS ÓRGÃOS COLEGIADOS
Inúmeros fatores extrajurídicos influenciam as decisões de um órgão
colegiado123. No caso do Supremo Tribunal Federal, em particular, a primeira
característica distintiva relevante é que o tribunal delibera em sessão pública. Na
maior parte dos países, sem embargo da existência de uma audiência pública, de
um hearing, com a intervenção dos advogados, o processo de discussão e decisão é
interno, em conferência reservada, na qual participam apenas os ministros ou juízes.
120
V. STF, DJ 3 ago. 2007, Adin 2240, Rel. Min. Eros Grau, No julgamento do Mandado de Injunção
nº 725, o STF determinara que o Congresso Nacional, no prazo de 18 meses, editasse a lei
complementar federal referida no § 4º do art. 18 da Constituição, o que não aconteceu. 121
O STF adotou a orientação de que somente autorizaria a intervenção federal o descumprimento
doloso do dever de pagar precatórios. A omissão na inclusão das verbas correspondentes em
orçamento e a falta de recursos são, assim, elementos suficientes para afastar a intervenção.
Nesse sentido, v., por todos, STF, DJ 25 abr. 2008, IF 5050 AgR/SP, Relª. Minª. Ellen Gracie. 122
Vice-presidente no segundo governo de Getúlio Vargas, Café Filho assumiu a presidência após o
suicídio de Vargas, em 1954. Dela afastou-se, por motivo de saúde, tendo sido substituído por
Carlos Luz. Após a eleição de Juscelino, em 1955, o Marechal Henrique Lott liderou um
“contragolpe preventivo” para assegurar a posse do presidente eleito, destituindo Carlos Luz.
Quando Café Filho, já recuperado, tenta voltar à presidência por via de ação impetrada no STF, a
Corte adia o julgamento até o fim do Estado de sítio, o que somente se daria por ocasião da posse
de Juscelino, quando o mandado de segurança já estaria prejudicado. Interessante registro
histórico é o do voto vencido do Ministro Nelson Hungria, que lavrou: “Contra uma insurreição
pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma contra-insurreição com maior força. E esta,
positivamente, não pode ser feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a
ingenuidade de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar a
insurreição. (...) O impedimento do impetrante para assumir a Presidência da República, antes de
ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurreicionais do Exército, contra a qual
não há remédio na farmacologia jurídica. Não conheço do pedido de segurança”. V. Luís Roberto
Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2009, p. 29-30. 123
Sobre o tema, v. José Carlos Barbosa Moreira, Notas sobre alguns fatores extrajurídicos no
julgamento colegiado” Caderno de Doutrina e Jurisprudência da Ematra XV, v. 1, n. 3, 2005, p.
79 e s.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
426
A deliberação pública é uma singularidade brasileira. A transmissão ao vivo dos
julgamentos, por uma televisão oficial, constitui traço distintivo ainda mais original,
talvez sem outro precedente pelo mundo afora124. Em parte como consequência
desse modelo de votação pública, o sistema brasileiro segue um padrão agregativo
e não propriamente deliberativo. Vale dizer: a decisão é produto da soma de votos
individuais e não da construção argumentativa de pronunciamentos consensuais ou
intermediários125. Isso não significa que não possam ocorrer mudanças de opinião
durante os debates. Mas o modelo não é concebido como uma troca de impressões
previamente à definição de uma posição final.
Nada obstante isso, um colegiado nunca será a mera soma de vontades
individuais, mesmo em um sistema como o brasileiro. Não é incomum um Ministro
curvar-se à posição da maioria, ao ver seu ponto de vista derrotado. Por vezes, os
julgadores poderão procurar, mediante concessões em relação à própria convicção,
produzir um resultado de consenso126. Alinhamentos internos, em função da
liderança intelectual ou pessoal de um Ministro, podem afetar posições. Por vezes,
até mesmo um desentendimento pessoal poderá produzir impacto sobre a votação.
Ainda quando possa ocorrer em qualquer tribunal do mundo, seria menos aceitável,
eticamente, a troca de apoios em casos diversos: um Ministro acompanhando o
outro em determinada votação, em troca de reciprocidade – em típica apropriação da
124
A despeito de críticas e de um ou outro inconveniente que se pode apontar, a transmissão ao vivo
deu visibilidade, transparência e legitimidade democrática à jurisdição constitucional exercida pelo
Supremo Tribunal Federal no Brasil. 125
Na Suprema Corte americana, coube a John Marshall a transformação do modelo agregativo ou
seriatim para o modelo de discussão prévia, com vistas à produção de consenso. V. William E.
Nelson, The province of the Judiciary, John Marshall Law Review 37:325, 2004, p. 345. V. tb.
Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 284: “No
modelo agregativo, as decisões colegiadas simplesmente cumulam as visões dos membros do
tribunal. No modelo deliberativo, os julgadores devem interagir de modo a que cada um considere
os pontos de vista do outro, produzindo-se, dessa forma, melhores decisões”. 126
Com efeito, pesquisa realizada nos EUA concluiu que juízes federais atuando em colegiados de
três membros são afetados pela forma como votam os colegas: se um juiz nomeado por
Presidente republicano atua com dois nomeados por Presidente democrata, seus votos mostram
padrões liberais, enquanto um juiz nomeado por um democrata vota em linha mais conservadora
quando atua com dois nomeados por Presidente republicano. Em qualquer dos casos, os padrões
tornam-se mais moderados se há, no órgão, juízes nomeados por Presidentes de partidos
diversos. O resultado da pesquisa é relatado por Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein, Nudge:
improving decisions about health, wealth, and happiness, 2009, p. 55.
Luís Roberto Barroso
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
427
linguagem político-partidária127. Também podem influenciar decisivamente o
resultado de um julgamento o relator sorteado, a ordem de votação efetivamente
seguida ou mesmo um pedido de vista. Por igual, o método de seleção de casos a
serem conhecidos e a elaboração da própria pauta de julgamentos envolve escolhas
políticas acerca da agenda da corte a cada tempo128.
5 A OPINIÃO PÚBLICA
O poder de juízes e tribunais, como todo poder político em um Estado
democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve
contas à sociedade. Embora tal assertiva seja razoavelmente óbvia, do ponto de
vista da teoria democrática, a verdade é que a percepção concreta desse fenômeno
é relativamente recente. O distanciamento em relação ao cidadão comum, à opinião
pública e aos meios de comunicação fazia parte da autocompreensão do Judiciário e
era tido como virtude129. O quadro, hoje, é totalmente diverso130. De fato, a
legitimidade democrática do Judiciário, sobretudo quando interpreta a Constituição,
está associada à sua capacidade de corresponder ao sentimento social. Cortes
constitucionais, como os tribunais em geral, não podem prescindir do respeito, da
adesão e da aceitação da sociedade. A autoridade para fazer valer a Constituição,
127
Sobre comportamentos estratégicos no âmbito de órgãos colegiados, v. Evan H. Caminker,
Sincere and strategic: voting norms on multimbember courts, Michigan Law Review 97:2297,
1999; Robert Post, The Supreme Court opinion as institutional practice: dissent, legal scholarship
and decisiomaking in the Taft Court, Minnesota Law Review 85:1267, 2001; e V. Barry Friedman,
The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 287. 128
A repercussão geral, introduzida pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, e regulamentada
pela Lei nº 11.418, de 19.12.2006, produziu significativa redução do volume de processos julgados
pelo STF. O número, todavia, ainda é muito superior ao máximo possível tolerável. A pauta das
sessões plenárias é elaborada pelo presidente da Corte, que seleciona, com razoável grau de
discrição, as prioridades. A própria ordem de inserção de um processo na pauta pode ter
repercussão sobre o resultado do julgamento. José Carlos Barbosa Moreira, Notas sobre alguns
fatores extrajurídicos no julgamento colegiado”, Caderno de Doutrina e Jurisprudência da
Ematra XV, v. 1, n. 3, 2005, p. 82. 129
Sobre este ponto, v. Luís Roberto Barroso, A segurança jurídica na era da velocidade e do
pragmatismo. In: Temas de direito constitucional, tomo I, 2002, p. 69 e s. 130
Sobre o modo como os juízes veem a si mesmos e à sua função, v. pesquisa realizada em 2005
“Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões”, patrocinada pela Associação dos Magistrados
Brasileiros, sob a coordenação de Maria Tereza Sadek. In: http://www.amb.com.br/portal/docs
/pesquisa/PesquisaAMB2005.pdf. Sobre a mudança de perfil da magistratura, pela incorporação
das mulheres e de magistrados cuja origem está em família mais humildes, v. entrevista dada pela
pesquisadora à revista eletrônica Consultor Jurídico, 8 fev. 2009.
Constituição, democracia e supremacia judicial
Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional
428
como qualquer autoridade que não repouse na força, depende da confiança dos
cidadãos. Se os tribunais interpretarem a Constituição em termos que divirjam
significativamente do sentimento social, a sociedade encontrará mecanismos de
transmitir suas objeções e, no limite, resistirá ao cumprimento da decisão131.
A relação entre órgãos judiciais e a opinião pública envolve complexidades e
sutilezas. De um lado, a atuação dos tribunais, em geral – e no controle de
constitucionalidade das leis, em particular –, é reconhecida, de longa data, como um
mecanismo relevante de contenção das paixões passageiras da vontade popular. De
outra parte, a ingerência do Judiciário, em linha oposta à das maiorias políticas,
enfrenta, desde sempre, questionamentos quanto à sua legitimidade democrática.
Nesse ambiente, é possível estabelecer uma correlação entre Judiciário e opinião
pública e afirmar que, quando haja desencontro de posições, a tendência é no
sentido de o Judiciário se alinhar ao sentimento social132. Três exemplos de decisões
do Supremo Tribunal Federal, no Brasil, que representaram revisão de
entendimentos anteriores que não correspondiam às demandas sociais: a limitação
das hipóteses de foro por prerrogativa de função (cancelamento da Súmula nº 394);
a proibição do nepotismo, conduta que por longo tempo foi social e juridicamente
aceita; e a imposição de fidelidade partidária, penalizando o “troca-troca” de partidos
após as eleições133. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte, na década de 30, após
se opor tenazmente às políticas sociais do New Deal, terminou por se alinhar com as
iniciativas de Roosevelt, que tinham amplo apoio popular. Mais recentemente,
passou-se o mesmo em relação à descriminalização das relações homossexuais134.
131
Robert Post e Reva Siegel, Roe rage: democratic constitutionalism and backlash, Harvard Civil Rigts-Civil Liberties Law Review 42:373, 2007, p. 373.
132 Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 321-2.
133 Exemplo inverso, em que o STF não seguiu a opinião pública dominante, envolveu a questão da elegibilidade de candidatos que tivessem “ficha-suja”, isto é, tivessem sofrido condenações judiciais, ainda que não transitadas em julgado. A Corte entendeu que só a lei complementar, prevista no § 9º do art. 14 da Constituição, poderia instituir outros casos de inelegibilidade. Inf. STF nº 514, ADPF 144, Rel. Min. Celso de Mello.
134 Em Bowers v. Hardwick, julgado em 1986, a Suprema Corte considerou constitucional lei estadual que criminalizava a sodomia. Em 2003, ao julgar Lawrence v. Texas, considerou inconstitucional tal criminalização. A Ministra Sandra O’Connor, que votou com a maioria nos dois casos – isto é, mudou de opinião de um caso para o outro –, observou em seu livro The majesty of the law: reflections of a Supreme Court Justice, 2003, p. 166: “Mudanças reais, quando chegam, derivam principalmente de mudanças de atitude na população em geral. É rara a vitória jurídica – no tribunal ou no legislativo – que não seja a consequência de um novo consenso social. Tribunais, em particular, são notadamente instituições reativas”.
Luís Roberto Barroso
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Todavia, existe nesse domínio uma fina sutileza. Embora deva ser
transparente e prestar contas à sociedade, o Judiciário não pode ser escravo da
opinião pública. Muitas vezes, a decisão correta e justa não é a mais popular. Nessas
horas, juízes e tribunais não devem hesitar em desempenhar um papel
contramajoritário. O populismo judicial é tão pernicioso à democracia como o
populismo em geral. Em suma: no constitucionalismo democrático, o exercício do
poder envolve a interação entre as cortes judiciais e o sentimento social, manifestado
por via da opinião pública ou das instâncias representativas. A participação e o
engajamento popular influenciam e legitimam as decisões judiciais, e é bom que seja
assim135. Dentro de limites, naturalmente. O mérito de uma decisão judicial não deve
ser aferido em pesquisa de opinião pública. Mas isso não diminui a importância de o
Judiciário, no conjunto de sua atuação, ser compreendido, respeitado e acatado pela
população. A opinião pública é um fator extrajurídico relevante no processo de tomada
de decisões por juízes e tribunais136. Mas não é o único e, mais que isso, nem sempre
é singela a tarefa de captá-la com fidelidade137.
IV A AUTONOMIA RELATIVA DO DIREITO EM RELAÇÃO À POLÍTICA E A FATORES EXTRAJUDICIAIS
Na literatura jurídica norte-americana, os autores costumam identificar
modelos diversos de comportamento judicial, dentre os quais se destacam o
135
V., a propósito, uma vez mais, o depoimento de Sandra O’Connor, Public trust as a dimension of
equal justice: some suggestions to increase public trust, The Supreme Court Review 36:10, 1999,
p. 13: “Nós não possuímos forças armadas para dar cumprimento a nossas decisões, nós
dependemos da confiança do público na correção das nossas decisões. Por essa razão, devemos
estar atentos à opinião e à atitude públicas em relação ao nosso sistema de justiça, e é por isso
que precisamos tentar manter e construir esta confiança”. 136
Na sustentação oral, no julgamento da ADI nº 3.510-DF, este foi um dos pontos destacados: o fato
de que as entidades da sociedade civil, maciçamente, e a opinião pública, em percentuais
bastante elevados, apoiavam a legitimidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. V. o
vídeo em http://www.lrbarroso.com.br/pt/videos/celula_tronco_1.html. 137
A sintonia com a opinião pública envolve diversas nuances. Por vezes, grupos de pressão bem
situados são capazes de induzir ou falsear a real vontade popular. De parte isso, a opinião pública,
manipulada ou não, sofre variações, por vezes abruptas, em curto espaço de tempo. Será preciso,
assim, distinguir, com as dificuldades previsíveis, entre clamor público, paixões do momento e
opinião sedimentada. Ted Roosevelt, antigo presidente norte-americano, referiu-se à distinção
entre “vontade popular permanente” e “opinião pública do momento. Sobre esse último ponto, v.
Barry Friedman, The will of the people: how public opinion has influenced the Supreme Court and
shaped the meaning of the Constitution, 2009, p. 382.
Constituição, democracia e supremacia judicial
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legalista, o ideológico e o estratégico138. O modelo legalista corresponde à
concepção mais tradicional, próxima ao formalismo jurídico, crente na objetividade
do direito e na neutralidade do intérprete. O modelo ideológico coloca ênfase nas
preferências políticas pessoais do juiz como fator determinante das decisões
judiciais. O modelo estratégico, por sua vez, leva em conta pretensões de juízes e
tribunais de conservação e expansão de seu poder, conjugada com a preocupação
de ver suas decisões cumpridas e, no limite, assegurar a própria sobrevivência. O
presente trabalho desenvolveu-se sobre a crença de que nenhum dos três modelos
prevalece em sua pureza: a vida real é feita da combinação dos três. Sem embargo
das influências políticas e das opções estratégicas, o direito conservará sempre uma
autonomia parcial139.
Ainda quando não possa oferecer todas as soluções pré-prontas em seus
enunciados normativos, conceitos e precedentes, o direito limita as possibilidades
legítimas de solução. De fato, deverão elas caber nas alternativas de sentido e de
propósitos dos textos, assim como harmonizar-se com o sistema jurídico como um
todo. De parte isso, os argumentos utilizáveis em um processo judicial na construção
de qualquer decisão precisam ser assimiláveis pelo direito, não somente por serem
de razão pública, mas por seguirem a lógica jurídica, e não a de qualquer outro
domínio140. Ademais, a racionalidade e a razoabilidade de qualquer decisão estará
138
V. Jeffrey A. Segal e Harold J. Spaeth, The Supreme Court and the attitudinal model revisited,
2002; Lee Epstein e Jack Knight, The choices justices make, 1998; Richard Posner, How judges
think?,, 2008, p. 19-56, identifica “nove teorias de comportamento judicial”: ideological, estratégica,
organizacional, econômica, psicológica, sociológica, pragmática, fenomenológica e legalista . V. tb.
Cass Sunstein, David Schkade, Lisa M. Ellman e Andres Sawicki, Are judges political? An
empirical analysis of the Federal Judiciary, 2006; e Richard Posner, How judges think, 2008. 139
Este é, também, o ponto de vista de Michael Dorf, em No litmus test: Law versus politics in the
twentieth century, 2006, xix. O autor defende uma posição intermediária entre os extremos
representados pelo realismo e pelo formalismo. Em suas palavras: “Os realistas prestam um
serviço importante ao corrigirem a visão exageradamente mecânica que os formalistas têm do
direito. Mas vão longe demais ao sugerirem que não há nada de especificamente jurídico na
metodologia de decisão empregada pelos tribunais e outros atores jurídicos”. 140
A lógica jurídica, como intuitivo, é diferente da econômica, da histórica ou da psicanalítica. Por
exemplo: um juiz não poderá se recusar a aplicar uma regra que exacerbe a proteção do inquilino
em um contrato de aluguel, sob o fundamento de que a teoria econômica já provou que o
protecionismo produz efeito negativo sobre os interesses dos inquilinos em geral, por diminuir a
oferta de imóveis e aumentar o preço da locação. Cabe-lhe aplicar a norma mesmo que discorde
da lógica econômica subjacente a ela.
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sujeita, no mínimo, à revisão por um segundo grau de jurisdição, assim como ao
controle social, que hoje é feito em sítios jurídicos na internet, em fóruns de debates
e, crescentemente, na imprensa geral. Vale dizer: a atuação judicial é limitada pelas
possibilidades de solução oferecidas pelo ordenamento, pelo tipo de argumentação
jurídica utilizável e pelo controle de razoabilidade e de racionalidade que restringem
as influências extrajudiciais de natureza ideológica ou estratégica. Mas não as
inibem inteiramente. Reconhecer isso não diminui o direito, mas antes permite que
ele se relacione com a política de maneira transparente, e não escamoteada.
CONCLUSÃO
ENTRE A RAZÃO E A VONTADE
Examinando cada uma das partes em que se dividiu o presente trabalho, é
possível enunciar, em proposições objetivas, três ideias básicas:
1. Um dos traços mais marcantes do constitucionalismo contemporâneo é
a ascensão institucional do Poder Judiciário. Tal fenômeno se manifesta na
amplitude da jurisdição constitucional, na judicialização de questões sociais, morais
e políticas, bem como em algum grau de ativismo judicial. Nada obstante isso, deve-
se cuidar para que juízes e tribunais não se transformem em uma instância
hegemônica, comprometendo a legitimidade democrática de sua atuação,
exorbitando de suas capacidades institucionais e limitando impropriamente o debate
público. Quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou a preservação
dos procedimentos democráticos, juízes e tribunais devem acatar as escolhas
legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável
de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor a eles sua
própria valoração política. Ademais, a jurisdição constitucional não deve suprimir
nem oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da
sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes.
2. Na concepção tradicional e idealizada, direito e política integram
mundos apartados, que não devem se comunicar. Para realizar tal propósito, o
Constituição, democracia e supremacia judicial
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Judiciário é dotado de garantias que visam a assegurar sua independência e os
órgãos judiciais são vinculados ao direito posto. Vale dizer: limitar-se-iam a aplicar a
Constituição e as leis, produtos da vontade do constituinte e do legislador, sem
exercer vontade política própria nem atividade criativa. Essa pretensão de autonomia
absoluta do direito em relação à política é impossível de se realizar. As soluções
para os problemas nem sempre são encontradas prontas no ordenamento jurídico,
precisando ser construídas argumentativamente por juízes e tribunais. Nesses casos
– ao menos neles –, a experiência demonstra que os valores pessoais e a ideologia
do intérprete desempenham, tenha ele consciência ou não, papel decisivo nas
conclusões a que chega.
3. Embora não possa oferecer soluções pré-prontas em muitas situações,
o direito limita as possibilidades legítimas de solução que podem ser construídas
pelos intérpretes judiciais. Com isso, contém-se parcialmente o exercício de
escolhas voluntaristas e arbitrárias. De parte isso, inúmeros outros fatores
influenciam a atuação de juízes e tribunais, como a interação com outros atores
políticos e institucionais, preocupações com o cumprimento das decisões judiciais,
circunstâncias internas dos órgãos colegiados e a opinião pública, dentre outros. Em
suma: o direito pode e deve ter uma vigorosa pretensão de autonomia em relação à
política. Isso é essencial para a subsistência do conceito de Estado de direito e para
a confiança da sociedade nas instituições judiciais. Essa autonomia, todavia, será
sempre relativa. Reconhecer este fato não envolve qualquer capitulação, mas antes
dá transparência a uma relação complexa, na qual não pode haver hegemonia nem
de um nem de outro. A razão pública e a vontade popular – o direito e a política, se
possível com maiúscula – são os dois polos do eixo em torno do qual o
constitucionalismo democrático executa seu movimento de rotação. Dependendo do
ponto de observação de cada um, às vezes será noite, às vezes será dia.
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