antónio patrício leitor de nietzsche - roberto

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  • 7/26/2019 Antnio Patrcio Leitor de Nietzsche - ROBERTO

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    ANTNIO PATRCIO LEITOR DE NIETZSCHE

    Roberto Nunes Bittencourt

    (FAMA/Faculdade Machado de Assis)rnb.roberto@gmail.com

    Antnio Patrcio, numa entrevista a Joo Ameal para o Dirio deNotcias(PATRCIO, 1929, p. 1), confessa-se, enquanto escritor dram-tico, herdeiro daquilo que, para Nietzsche, a origem da criao esttica:o apolneo e o dionisaco, alis, como fica patente pelas prprias citaesnietzschianas, que se encontram esparsas, no s nos textos dramticos,

    mas por toda a obra do escritor portugus.De fato, sua obrae, sobretudo, seus textos dramticosrevelam

    uma vivncia expressa em permanente tenso dionisaca, de inspiraonietzschiana, na fronteira da morte a todo o instante apreendida (COE-LHO, 1989, p. 802). Esse mesmo elo entre o pensamento nietzschiano ea obra de Patrcio referido por Jorge de Sena ao caracterizar, do seguin-te modo, as virtualidades poticas do autor de Sero Inquieto:

    Antnio Patrcio desenvolve as suas virtualidades poticas j dentro doambiente esteticista, no qual a literatura portuguesa mergulha ento, no encal-o das pedanterias to opostas de Eugnio de Castro e de Antnio Nobre [...] eem que era duma rara elegncia citar, em verso, o nome de Beethoven ou prepgrafes de Nietzsche em francs. (SENA, 1950, p. 137-138)

    Joo de Barros, que tambm se debruou sobre a sua obra, chamaAntnio Patrcio de o poeta da energia. Num de seus ensaios, intituladoTragdia e glria de Antnio Patrcio, de 1932, escreve:

    Muitas vezes, lendo ou, antes, relendo a obra de Antnio Patrcio, a mimmesmo pergunto se esse grande poeta, no seu mpeto vital veementementeafirmado, seria um nitzcheniano [sic] puro, criao de ideias e concepes

    hauridas na admirao e convvio do estranho filsofo. Mas breve reconheo omeu erro, o erro da minha interrogao. Antnio Patrcio foi apenas - o que tudo, alis - um artista excepcional, um artista que viveu, sofreu, amou e lutou

    perenemente, em funo do seu amor da Beleza. (BARROS, s/d, p. 90-91)

    A filosofia nietzschiana, portanto, que reconhecia haver mais ver-dade nos pontos interrogativos do que nas afirmaes, admitindo a auto-contradio como um dos pontos fundamentais, j que para Nietzsche oque orienta o pensamento a paixo de buscar as razes na existnciaatravs de uma crtica constante, na procura da verdade autntica ser

    presena marcante na obra de Antnio Patrcio, como, por exemplo, nos

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    poemas Aum cadver e O amor e a morte (fbula), de Oceano. Noprimeiro, uma reflexo sobre a dialtica morte-vida, cujos tercetos, so-bretudo interrogaes a respeito da prpria condio existencial, revelam

    um desejo do eu lrico:A tua dor, teu sonho, o que sero?o que ser, meu pobre irmo, na morte,teu dio, teu amor, teu corao?...

    Que ser agora a vida que eu vivi?Quem me dera saber qual foi a sortede tudo o que eu chorei e do que eu ri...

    (PATRCIO, 1989, p. 34)

    A existncia uma surpreendente confluncia entre a vida e amorte, e tal percepo torna-se uma glorificao incondicional da exis-tncia. Morte e vida so instncias indissociveis, e ao se compreenderintrinsecamente essa dinmica existencial, alcana-se uma jubilosa com-

    preenso do valor da vida e da prpria morte.

    Para Nietzschee, da mesma forma, na interpretao de Patrcio, a viso dionisaca da existncia faz o homem ver o quo ditoso viventeele , no como indivduo, mas como o prprio uno vivente, com cujogozo procriador est fundido (NIETZSCHE, 1996, 17). A morte e a

    destruio da vida seriam parte da prpria vida, refletindo assim a per-cepo global da epifania dionisaca de que existe uma grande unidadeentre todas as expresses da natureza, mesmo que biologicamente mor-tas.

    Assim , tambm, na fbula potica O amor e a morte, em quePatrcio revela, de acordo com sua perspectiva dionisaca, no haver amorte propriamente dita, pois que todo tipo de forma de vida, ao per-der as suas funes orgnicas, apropriada pela natureza, que entotransforma essa matria em energia dinmica a ser assimilada por outroscorpos:

    O Amor encontrou num jardim encantadoa Morte a soluar perdidamenteTinha nas mos um rouxinol inanimadoe falava a uma fonte docemente:[...]Eu nem sei o que fao, vou sem tinoe cada passo meu, cai morto um corao[...]s vezes morrem astros pela altura

    s porque ergui o meu pressago olhar...

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    A minha dor, fonte, no tem cura...Quem fora como tu sempre alegre a chorar!

    Curvado de piedade,

    o Amor beijou ento perdidamente a Morte...V tu que s para mim j quase uma saudade,como brotou desse jardim a nossa sorte!

    (PATRCIO, 1989, p. 35-36)

    No poema Viver, tambm de Oceano, Antnio Patrcio cita,como epgrafe, uma frase de Assim falouZaratustra, em francs, servin-do-lhe de mote: L'homme est quelque chose qui doit tre surmont Ohomem algo que deve ser superado. Assim, se na obra de Nietzsche Za-ratustra prope a morte do homem o apagar de um passado, uma mor-

    te-superao, uma morte para culminar em um renascimento l-se emPatrcio:

    Viver s fundir a nossa almaem toda a vida imensa e misteriosacomo o plen cai fecundando uma rosa...[...] odiar a dor e tanto e tantoter os olhos de febre no futuro,que a pedra de tortura que eu levanto,seja dentro de mim um ser que eu transfiguro.

    [...] ir numa santssima alquimiatransformar um remorso num perdo...Cultivar como um campo, noite e dia,a f na vida em nosso corao...

    (PATRCIO, 1989, p. 68)

    A vida, que se revela como o sentido profundo do simbolismo dasatividades dionisacas, encerra como significado uma bendio trgica daexistncia: a vida exuberante retorna e ressurge eternamente da destrui-

    o e da dor que ela prpria inelutavelmente conjura: toda expresso devida decorre de uma fuso entre os estados de prazer e de dor. Em NaMorte, Antnio Patrcio refere o remorso e a saudade daqueles que en-traram na morte sem terem sabido viver a vida, fazendo de seu poema,

    portanto, autntica celebrao da vida:

    E todosque na vida pisaram sangue e lodose num gibo de febre e de amargura

    partiram para a paz da Morte escura,ho-de sentir uma saudade intensa,

    ho-de compreender,

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    que a Vida bela, a Vida santa, a Vida imensae que todo o seu mal foi no saber viver.

    (PATRCIO, 1989, p. 58)

    E em Spleen, poema que integra a edio dePoesias, evidencia-se a ideia do Eterno Retorno, que entra em conflito aberto com o dioni-sismo e com o mpeto vital que animam a obra de Patrcio, como se podeler:

    Tudo vir igual e friamente,Eternidade alm ... Rastejar de serpente.

    o ternel retour de Zarathustra,ideia de terror que tudo gela e frustra.

    (PATRCIO, 1989, p. 94)

    Em seu livro de contos, Patrcio tambm traz, em epgrafe, umacitao nietzschiana deAssim falou Zaratustra: cris avec du sang et tuapprendras que le sang est esprit Escreve com sangue e aprendersque o sangue esprito; erigindo, portanto, o pensamento do filsofoalemo como um motivo inspirador.

    o que se percebe, por exemplo, no conto Dilogo com umaguia, em que se l um dilogo travado entre o narrador e uma guia en-

    jaulada, tambm se revelam fortes vestgios do pensamento nietzschiano,como se percebe na figura do Hebreu que, na hora derradeira, sentiu-seinvadido pela saudade e pelo remorso de no ter sabido viver a vida quecomeava a lhe escapar. Segundo conta a guia, uma antepassada suaveio sobre o Hebreu, que se encontrava pregado na cruz e lhe cravou asgarras no peito e lhe picou, com o bico, o corao, bebendo seu sangue.Esta guia seria a mesma que, mais tarde, viria a fazer companhia a Zara-tustra, na montanha. O Hebreu crucificado faz dela, ento, a sua confi-denterevelando-lhe o que ela, ento, transmitiria a Zaratustra e diz-

    lhe do:remorso de no ter vivido, a tristeza infinita, o desespero e o mal sem remdiode ser virgem, de morrer no corpo morto duma rvore, nico corpo que sentiu,o dum cadver... [...]. Queria largar a cruz para poder dar-se, terra desse cer-ro, a alguma forma, a um corpo de mulher, a algum, a algum... (PATRCIO,1995, p. 14)

    Momento em que Ele, enfim,

    previu bem claramente como se mentiria Vida em nome dEle, [...] sculos esculos de vida envenenada pelo sangue de amor que Ele vertera, e iria embe-

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    bedar os homens por muito tempo, para sempre talvez, talvez para sempre.(PATRCIO, 1995, p. 15)

    O Hebreu, na hora da morte, comunga da condenao da doutrina

    do sangue redentor, componente do dogma cristo e caracterstica damoral dos escravos, tal como se l emAssim falou Zaratustra e em O An-ticristo, ambos de Nietzsche. Como confirma a velha guia: afirmoucom pompa, l para o Norte, que Ele decerto se teria retractado se to ce-do o no crucificassem (PATRCIO, 1995, p. 15). E continua a infor-mar: Foi minha me que o disse a Zaratustra. Zaratustra ouviu mal, nodisse tudo. A verdade assim, como eu lha conto. Parece que os homensriram do filsofo, acharam tudo isso uma tolice... (PATRCIO, 1995, p.15) mas hora da morte, a uma guia, aos lenis ou ao travesseiro,

    todos os homens tm, como esse Hebreu, um segredo supremo a revelar. apenas isto: a confisso de que morrem sem viver (PATRCIO, 1995,p. 19).

    Em Humano, demasiado humano, Nietzsche (2003, 475) deno-mina Jesus como o mais nobre dos homens, da mesma forma no Assim

    falou Zaratustraem que, apesar de depreciar a obra evanglica de Jesus,por consider-la marcada pela tristeza judaica, considera o Nazareno do-tado de carter nobre:

    Na verdade, morreu cedo demais aquele hebreu, que os pregadores damorte lenta reverenciam; e para muita gente, desde ento, foi uma fatalidadeque ele tenha morrido demasiado cedo. Ainda o hebreu Jesus s conhecia aslgrimas e a melancolia judaicas, juntamente com o dio aos bons e justos,quando o acometeu a nsia da morte. Se ao menos tivesse ficado no deserto elonge dos bons e dos justos! Talvez tivesse aprendido a viver e amar a terra e, alm disso, a rir! Acreditai em mim, meus irmos! Morreu cedo demais; ele

    prprio teria revogado a sua doutrina, se tivesse chegado at minha idade!Era suficientemente nobre para abjurar! (NIETZSCHE. Assim falou Zaratus-tra, Da morte voluntria)

    Antnio Patrcio busca, portanto, no pensamento de Nietzsche os

    elementos filosficos de Dilogo com uma guia. Nele o Hebreu cruci-ficado se retrata e faz uma apologia da vida plena, arrependido por t-ladesperdiado. V-se, portanto, disposto, se assim lhe fosse possvel, alargar a cruz e reviver a vida, sorvendo-a em plenitude, para que nuncamais, em seu nome, se mentisse a essa mesma vida.

    Num ensaio intitulado Sero Inquieto: anti-Nietzsche?,publica-do na Colquio Letras (n 125-126, julho-dezembro, 1992), MassaudMoiss, ao ttulo interrogativo de seu texto d, no corpo do artigo, uma

    resposta afirmativa pergunta inicial, pois, como cr:

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    condicionados que possamos estar pela epgrafe do volume, as coisas no sepassariam diferentemente. E at possvel que Antnio Patrcio partilhasse asideias de seu autor. Mas ao redigir os contos e os aforismos de Words,acabou negando aquilo que, deliberadamente ou no, pretendia afirmar.

    (MOISS, 1992, p. 66)

    Considerando, assim, Sero Inquieto uma obra antinietzschiana,porque os contos que a integram so histrias pessimistas e niilistas,afirma que as cinco histrias so pessimistas, niilistas. A morte, a mis-ria e a loucura rondam todos, ainda quando traos de idealismo pareamconduzir as personagens a destinos menos inglrios (MOISS, 1992, p.66) e afirma isto, sobretudo, no primeiro conto, Dilogo com umaguia, por haver na imagem da ave enjaulada e velha a negao do mitoda superao humana.

    Leitura proposta pelo crtico e professor, mas com a qual discor-damos. Em nossa leitura, ao contrrio, Dilogo com uma guiarevela-se como um conto que pode ser lido na esteira nietzschiana, afinal aguia velha e enjaulada no deve ser lida como a negao da superaodo homem, mas como um desafio lanado ao prprio homem para que sesupere, vivendo a vida plenamente.

    Assim o tambm o conto Suze. O narrador autodiegtico serevela torturado pelo pensamento de Suze, uma mulher frvola, que se

    deu a saborear a tantos homens (PATRCIO, 1995, p. 75). No alto dastormentas de sua insnia, o narrador a imagina morta sobre o mrmoregelado do necrotrio, a meditar friamente num livro pstumo que se de-veria chamarA Filosofia de Suze - ensaio sobre a Supramulher. No livro,haveria a proposta que se dissesse: isso um detalhe, como outrora sedisse:penso, logo existo, como hoje se diz:o homem uma ponte pr-

    sobre-humano (PATRCIO, 1995, p. 76). Assim, Antnio Patrcio ima-gina um ensaio sobre a Supramulher, que corresponderia ao Super-Homem nietzschiano, na voz de Zaratustra. Ainda, na construo discur-

    siva que o narrador faz de Suze:A Suze [...] era escultada em lava: era algum. Prostituta ou esposa, seria

    sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre s. Pobre Suze!

    Alma apolnea, foi esbofeteada por fadistas que tm o nome em crnicasheroicas; sofreu-lhes, em noites de orgia besta, o suor e o vmito; e com umaclarividncia trgica pressentiu muita vez os haustos da manh subindo, aolhar com a pele arrepiada a mscara boal de algum cliente. (PATRCIO,1995, p. 81)

    Suze , portanto,a criao de uma feminae fatalea mulher di-

    fana, a mulher-sibila, a mulher-cadver, a que encanta, desconcerta e des-

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    tri os homens. Sedutora e fatal, excita no leitor a sensao do belo, emsua alma apolnea.

    Pode-se, ainda, citar um outro conto, O Veiga, em que Patrcioconstri na personagem que d ttulo ao conto um carter nietzschiano,caracterizando-o como algum magrssimo, cujo corpo traz enfiadasroupas de outros, muito largas: sobrecasacas, fraques, vestes ricas, esver-deando, j em plena decomposio, e mais vexadas nesse esqueleto cur-vo de pedinte que numa loja de adelo ou num palhao (PATRCIO,1995, p. 91). , descreve-o o narrador autodiegtico, como um mendigo,pobre diabo e doido que pede para comer, mas que come no por co-mer, mas pra viver a Vida, a Vida toda! (PATRCIO, 1995, p. 91). Erauma figura dionisaca, que:

    Perdia as noites num delrio gago, a proclamar no botequim o amor livre.[...] Inconscientemente, como rezava com devoo at h pouco, absorvia bro-churas anarquistas, e tinha cabeceira, como uma espcie de Flos-Sanctorumlaico, um hagiolgio pattico, ilustrado, com um Ravachol de aurola, hiper-Cristo, e os mrtires de Chicago nimbados. (PATRCIO, 1995, p. 99)

    a morte da me de Veiga que possibilita o encontro da persona-gem consigo mesma, pois a expresso de vida ocorre justamente median-te uma intensa experincia de choque: A pobre velha morrendo, iniciou-o. Nasceu da sua dor segunda vez... (PATRCIO, 1995, p. 112). Veiga

    libertar-se na natureza, numa patente influncia da filosofia de Nietzsche,pois Veiga, ao integrar-se natureza, inventa sua virtude: o esprito dio-nisaco imerge o indivduo nas foras telricas, dotadas de uma energiacriadora cuja percepo humana, usualmente limitada, incapaz de con-ceber na sua intensa plenitude. Busca-se, assim, um sentido para a exis-tncia, mesmo que na loucura: O Veiga, portanto, a trajetria de uma

    personagem na busca de um encontro modelar consigo mesma.

    No seu teatro, Antnio Patrcio busca uma decifrao da divinda-

    de da vida, privilegiando os sonhos, as loucuras, as paixes, os desejoshumanos, como em O Fim, em que alegoricamente se l o fim da Mo-narquia ou, mais apocalipticamente, o luto perptuo de uma nao sem-

    pre ameaada pela possibilidade de extino.

    Ao trazer em epgrafe um fragmento de Crepsculo dos dolos, deNietzsche, Patrcio d ao seu texto dramtico justamente a ideia pormeio da tragdia de uma rainha enlouquecida pelo sofrimento e que de-

    pois do regicdio vagueia pelo palcio, rodeada apenas por dois aristocra-tasdo crepsculo dos dolos e dos deuses. na figura do desconheci-

    do que aparece no palcio em chamas e que concita o povo a lutar para

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    evitar o suicdio colectivo e contrape aos ltimos dias de um povo oherosmo desse povo levantado em armas contra o invasor. Ao toque in-sistente dos sinos, a Raa desperta numa vitria conseguida sobre os

    escombros:A AIA, com desespero.

    Ouviu bem? Ouviu?... Isto de endoidecer. De um lado uma esperanaabsurda, do outro uma viso de manicmio... (Pondo-se em frente dele)No evidente para si, no evidente para que ainda mesmo que se realizasse o im-

    possvel de evitar o desembarque das esquadras, outras viriam, mais, at es-magar-nos?... Quem exige um suicdio colectivo, um herosmo monstruoso eintil?

    O DESCONHECIDO

    A lgica da Raa. inevitvel. (PATRCIO, s/d, p. 27)

    Atravs de sua afirmao, a vida torna-se justificada, o mundo re-dimido, quando toda a dura realidade for percorrida por uma vontade de

    potncia mltipla. Tal leitura no ser diferente nos textos dramticos se-guintes, como Pedro, o Cru,Dinis e IsabeleD. Joo e a mscara, que

    podem ser lidos como hinos de adorao vida, numa tentativa de supe-rao da morte, justamente a partir dessa paixo, no pela vida comum,convencional, mas a verdadeira vida, desvelada em plenitude, a vida su-

    blime. Antnio Patrcio deixa todos os outros temas de lado e trata obses-sivamente o confronto do ideal de vida do homem com potncias superi-ores, da qual a morte maior antagonista.1

    EmPedro, o Cru, a morte e a dor emergem como parte de umprocesso que visa converso do amor em eternidade e plenitude.A noite da saudadea noite ritualconcretiza as bodas de Pedroe Ins, num amlgama da densa relao entre vida e morte, da dorespiritualizada em desejo de consubstanciao com o ser amado.

    Nas falas do prprio Pedro sua amada morta:

    PEDRO:

    O nosso amor, amor, ainda era pouco. S abraado morte le inicia [...]Mil vezes, minha Ins, mil vezes sofri na minha carne a tua morte [...] Viviacom o teu corpo na memria como um lobo no fojo com a prsa. E ento aminha dor todo o meu gzo foi reviver nesta carne o teu martrio. (PA-TRCIO, s/d, p. 146)

    1A respeito do drama simbolista, escreve Anna Balakian (2007, p. 99-100): Por que have-ria um desejo de superar obstculos na vida quando a morte, o maior obstculo, invenc-vel?

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    EmDinis e Isabel, h um violento embate entre o poder divino e avontade humana, em que a cena do milagre das rosas exemplar. ochamado de Deus da vida terrena para a vida espiritual. renegado, porm,

    por Isabel: Eu adoro Dinis: quero ser dele [...] Eu sou da dor como era,sou a mesma. E como ela mesma fala ao amado: Eu no sou d ele [deDeus], amor, eu sou s tua. Isabel no pode pertencer aos dois mundos.O milagre das rosas, ao mesmo tempo em que inscreve Isabel na santida-de, mostra a Dinis que no pode ter sua mulher, ainda que ela tambm re-lute contra a manifestao do divino. Revela-se, porm, a impotncia dodesejo humano, e a vida est fadada ao seu termo mximo, a morte. Di-ante da escolha de Isabel pelo amor de Dinis, o que a leva a renegar o mi-lagre das rosas, Deusque surge como um rival de Dinis, despertando

    nele a conscincia de um amor condenadotoma-a para si.EmD. Joo e a mscara, Patrcio traz cena a figura do burla-

    dor de Sevilha, um homem desejoso de atingir o Absoluto, mas, prisio-neiro das formas transitrias do mundo. Tudo para ele , portanto, mart-rio, pois que sob a mscara da luxria percebe, como em uma epifania,em um ato revelador, que seu desejo jamais encontraria saciedade noscorpos que amou: Os meus amores, os meus amores foram s sombra.[...] De corpo em corpo fui como um cego a tatear de muro em muro.Sempre a essncia das formas a fugir-me. E, em outra passagem da pe-

    a: tudo cenrio? Tudo? Tudo? nada existe? [...] como as mulheres anatureza? Vazio lgubre a mimar divino?.H em D. Joo a procura ob-sessiva, no corpo de todas as mulheres seduzidas, do objeto do seu dese-

    jo, da sua saudade que a morte em figura feminina.

    Assim, a dor, a perda, a morte, enfim, so partes de um processovital. O cerne da potica de Antnio Patrcio est, justamente, na espiri-tualidade e apego vida na terra, em que, muitas vezes, a Natureza surgecomo manifestao da prpria divindade e, de tal maneira, que o divino

    , sobretudo, uma fora imanente prpria vida. H, em Antnio Patr-cio, o vitalismo dionisaco manifesto na Origem da Tragdia, de Nietzs-che, revelando-se na sua obra justamente a euforia orgistica e a vontadede viver. O dionisaco anseia pela vida intensiva, mgica, que no de-

    pende, necessariamente, de uma configurao orgnica, corporal e indi-vidual para se expressar, pois a sua vitalidade ontolgica se expressasempre de modo desmedido, para alm dos limites da figurao. ParaVernant e Vidal-Naquet:

    Dionsio encarna no o domnio de si, a moderao, a conscincia dos

    seus limites, mas a busca de uma loucura divina, de uma possesso exttica, a

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    nostalgia de um completo alheamento; no a estabilidade e a ordem, mas osprestgios de um tipo de magia, a evaso para um horizonte diferente; umdeus cuja figura inatingvel, ainda que prxima, arrasta seus fieis pelos cami-nhos da alteridade e lhes d acesso a uma experincia religiosa quase nica no

    paganismo, um desterro radical de si mesmo. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999, p. 158)

    A compreenso da eternidade da vida como uma grande totalidadede foras dissolve a perspectiva pessimista que considerava a morte, adissoluo individual, como o aspecto contrrio a modo de expresso davida A morte, portanto, aparece nos dramas de Patrcio como parte de um

    processo que visa converso da vida em eternidade e plenitude. Para ofilsofo alemoe assim, tambm, na leitura de Patrcio morte e vidaso considerados como polos complementares da existncia, de maneira

    que a fronteira entre ambos dificilmente pode ser delimitada. Uma vezque a natureza se desenvolve e se cria atravs de um eterno choque decontrrios, o mundo dependeria desse conflito fundamental para que pu-desse se efetivar na existncia. o que Nietzsche chama de vontade devida (NIETZSCHE, 2006, 4).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARROS, Joo de.Ptria esquecida. Lisboa: Bertrand, s/d.COELHO, Jacinto do Prado (Dir.). Dicionrio de literatura, 5 vols. Por-to: Figueirinhas, 1989.

    MOISS, Massaud. Sero inquieto: anti-Nietzsche? Revista Col-quio/Letras. Ensaio, n. 125/126, jul. 1992, p. 63-69.

    NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragdiaou helenismo e pes-simismo. Trad. de J. Guinsburg. So Paulo: Cia. das Letras, 1996.

    _________. Crepsculo dos dolos ou como se filosofa com o martelo .Trad. de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Cia. das Letras, 2006.

    PATRCIO, Antnio. O nosso inqurito literrio. Depoimento do ilustrepoeta e dramaturgo Antnio Patrcio, entrevista de Joo de Ameal. Di-rio de Notcias. 11-04-1929.

    _________.D. Joo e a mscara. Lisboa: Sam Carlos, 1972.

    _________.Dinis e Isabel. Aveiro: Estante. 1989.

    _________.Pedro, o Cru. Minho: Vercial, 2002.

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    _________. O fim. Minho: Vercial, 2010.

    _________. Sero inquieto. Lisboa: Relgio dgua, 1995.

    _________.Poesia completa. Lisboa: Assrio & Alvim, 1989.SENA, Jorge de. Antnio Patrcio e Camilo Pessanha. In: BARRETO,Costa (Org.).Estrada larga. Porto: Porto Editora, 1950.

    VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragdia naGrcia Antiga. Trad.: Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena Yoshie,Hirata Garcia, Maria M. Cavancante, Bertha H. Gurovitz e Hlio Guro-vitz. So Paulo: Perspectiva, 1999.

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