ardente perigo - perse.com.br · para mim o que você é. um tom ríspido de escárnio penetrou sua...
Post on 08-Nov-2018
215 Views
Preview:
TRANSCRIPT
1
Ardente Perigo
2
Ardente Perigo
Larissa Siriani
2ª Edição
São Paulo, 2011
ISBN 9788580450132
3
Seja feita a vossa
vontade
Assim na terra como
no céu
[...]
Perdoai as nossas
ofensas
Assim como nós
perdoamos
Aqueles que nos tem
ofendido
4
E não nos deixei cair em
tentação
Livrai-nos de todo
o mal
Amém
(Pai
Nosso)
5
Capítulo 1
- O que você fez depois? – perguntou ele,
após um minuto.
- Pesquisei um pouco na Internet.
- E isso a convenceu? – sua voz não
demonstrava interesse. Mas as mãos estavam
agarradas ao volante.
- Não. Nada se encaixava. A maior parte era
meio boba. E então... – eu parei.
- O quê?
- Concluí que não importava – sussurrei.
- Não importava? – Seu tom de voz me fez
olhar – eu finalmente tinha rompido sua máscara
cuidadosamente composta. A expressão dele era
incrédula, com um toque de raiva que eu temia.
- Não. – eu disse suavemente – Não importa
para mim o que você é.
Um tom ríspido de escárnio penetrou sua
voz.
- Você não liga que eu seja um monstro?
Que eu não seja humano?
- Não.
Aquela já devia ser a quarta ou quinta vez
que eu lia aquelas mesmas linhas. Ainda assim, o
arrepio e a eletricidade que percorreram a minha
espinha, o riso que tomou conta do meu rosto, tudo
era o mesmo. Eu não podia evitar que todas as
vezes que eu relesse as discussões e diálogos
complexos entre Bella e Edward eu me sentisse
desse jeito.
Fui cortada quando a minha mãe se
aproximou e se sentou ao meu lado no sofá da sala,
me fazendo erguer os olhos do livro. Ela sorriu pra
mim e ergueu a capa para ler o título: Crepúsculo.
Apenas uma dentre as dezenas de obras do gênero
que eu guardava com cuidado no meu quarto.
6
- Não acredito que você está lendo esse livro
de novo. – ela me disse, perplexa. Minha mãe não
tinha absolutamente nada a ver comigo: ela não era
amante dos livros, era sempre muito aérea e
impulsiva. Eu já fazia o tipo decidida, teimosa e pé
no chão da família.
- Se você lesse, ia entender o porquê. –
afirmei, mostrando a língua. Ela riu e me passou o
livro de volta.
- Você devia parar de ler e cuidar da vida
real. – apontou, me estendendo o telefone sem fio
– O Pablo já ligou três vezes hoje. Se ele ligar a
quarta vez, pare de fingir que saiu e atenda logo o
menino.
- Eu não mereço isso! – bufei e peguei o
telefone, olhando pra ele por alguns segundos,
querendo mesmo é jogá-lo na parede com toda a
minha força.
- Laura, o que é isso, filha? O garoto é seu
namorado! Se as coisas estão desse jeito, por que
você simplesmente não fala e termina com ele?
- Porque... porque...
Porque eu era uma covarde. Eu tinha essa
resposta na ponta da língua fazia mais de um mês.
Minha mãe não era a primeira e nem seria a última
a me perguntar isso, mas Pablo era um caso
delicado. O nosso namoro tinha demorado a
ingressar, e depois de sete meses juntos eu
simplesmente não estava mais no clima de
continuar com ele.
O problema é que nem todo o meu jeito
decidido de ser colaborava quando eu tentava
terminar com ele. Pablo era gentil, meigo e me
amava – até demais. Ele era tão grudento que eu
acabei enjoando. Mas ele era tão sensível que toda
vez que eu tentava terminar ele já ficava a ponto de
chorar, e eu simplesmente desistia.
7
- Amanhã começam as aulas, mãe. – falei,
com um ar derrotado – Eu vou vê-lo e falo com
ele. Não posso fazer isso pelo telefone!
Mamãe simplesmente me lançou um olhar
desconfiado e foi embora. Eu fiquei ali, na sala
ampla e fria da nossa casa, encarando a parede com
a lareira que era acesa somente nos dias mais
absurdamente frios do ano e as fotos que traziam
pequenos momentos da nossa vida.
Pregados na parede estavam três quadros: o
primeiro, do casamento dos meus pais. Minha mãe,
com seus rebeldes cachos negros e o seu sorriso
sempre aberto, e meu pai, com o mesmo bigode
estranho e a careca já ameaçando aparecer. Logo
em seguida, uma foto da minha mãe com a minha
irmã mais velha, Loren, enquanto ela ainda era um
bebê, e uma foto da minha tia, Gilda, comigo no
colo logo após o meu nascimento.
Era uma história confusa, a da nossa família.
Meus pais eram casados havia quase trinta anos, e
minha irmã nascera uns três anos depois de eles
terem se casado. Não haviam planejado mais
filhos, até minha tia ficar grávida – de mim. Ela era
muito nova e solteira, não queria uma filha pra
cuidar. Minha mãe me adotou, e eu cresci, sabendo
de tudo, mas nunca considerando tia Gilda como
minha mãe biológica.
As fotos menores, que seguiam sobre a
lareira, eram antigas e algumas recentes.
Começavam com uma foto da nossa família
reunida, no meu aniversário de sete anos e
terminava numa foto minha com Pablo, cujo
cabelo ralo castanho entrava em contraste com a
pele branca demais, e os óculos, que antes eu
achava fofos, agora pareciam emoldurar um rosto
que eu não suportava mais olhar.
Suspirei e me agarrei ao meu livro. Se ao
menos eu tivesse Edward Cullen, ou uma vida tão
8
complicada e tão melhor como a da sortuda Bella
Swan, tudo seria melhor. Mas eu não podia contar
com isso. Certas coisas apenas não se tornavam
reais.
- Loren, quer fazer o favor de tirar os meus
sapatos?
Dez anos de diferença e eu dividia o quarto
com a minha irmã mais velha. Loren era mais
parecida com a minha tia Gilda do que eu deveria
ser, considerando o rolo familiar – tinha os cabelos
de um louro escuro, os mesmos dentes pequenos e
a covinha no queixo. E a odiosa mania de achar
que tudo o que era meu era dela também. A única
coisa que trazia da minha mãe eram os cachos.
- Eu vou sair com um cara, eu preciso desses
sapatos! – ela justificou, se admirando no espelho.
Eu balancei a cabeça e comecei a jogar sobre a
cama dela tudo o que ela havia lançado sobre a
minha: roupas, meias, bolsas, maquiagem. Loren
era a rainha da bagunça, e infelizmente eu sempre
estava metida no meio dela.
- Você tem quase trinta anos, devia estar
pensando em se casar com um cara! – apontei,
rolando os olhos. Ela riu enquanto tirava a blusa e
a jogava para o alto, fazendo com que caísse sobre
a mesinha do nosso computador.
- Eu estou na idade perfeita pra sequer me
lembrar da palavra casamento! – remexeu na pilha
de roupas que eu estava fazendo sobre a sua cama
e achou outra blusa – Sério, esses romances estão
acabando com você. A última vez que eu peguei
um livro seu ele falava sobre uma garota que
descobriu que era princesa. Quem lê isso?
- O Diário da Princesa é um livro muito
bom, sabia?
- Claro. Esse e aquele outro dos vampiros
bonitinhos. Eu até concordo que o cara do filme é
9
um gato, mas daí a suspirar por vampiros pelos
cantos da sala, fala sério!
- Loren... – parei com uma saia dela na mão
e suspirei. Como eu iria explicar pra ela de uma
forma que ela me entendesse? – Eu não fico
suspirando. Eu nem acredito que dez por cento das
coisas que eu leio sejam até remotamente possíveis
de se tornarem reais, mas é legal imaginar,
entende?
- Não. – ela tirou os meus sapatos e os jogou
no topo da pilha de roupas – Eu posso pegá-los
emprestado essa noite, certo?
- Há alguma coisa que eu possa fazer sobre
isso? – indaguei, já sabendo a resposta.
- Claro que não! – Loren me disse, naquele
tom zombeteiro que ela parecia usar sempre, não
importava qual a situação.
Ficamos em silêncio por um tempinho,
enquanto eu pensava em Crepúsculo. Eu agia uma
idiota cada vez que relia a série, sempre
relembrando as cenas, literalmente suspirando
pelos cantos – por menos que eu gostasse de
admitir.
Nessas horas, eu tinha que concordar com a
Loren. Aquilo não me fazia muito bem.
- Com quem você vai sair hoje? – resolvi
perguntar, por puro hábito. Naquelas férias, minha
irmã tinha saído com uns dez caras diferentes, e
nunca rolava nada além de uns beijos vez ou outra.
Ela era super descolada e totalmente não-adepta ao
conceito de se apegar a alguém. Pra ela, já era o
fim do mundo que eu estivesse namorando.
Embora eu tivesse que concordar com ela
sobre isso.
- Com o meu professor de informática! – ela
disse, animada – Sabe, ele me lembra o Pablo.
Toda aquela cara de nerd fofinho e coisa e tal. Eu o
acho um encanto.
10
- Tomara que dure até depois da meia-noite.
– ironizei, e ela riu e me atirou um ursinho de
pelúcia que estava no chão, ao lado da cama.
- Falando nisso, e você e o Pablo? Vão ficar
nesse chove-não-molha até quando?
- Não tem chove-não-molha nenhum.
- Corrigindo, então: quanto tempo mais você
vai demorar pra dar um fora nele?
- De amanhã não passa. – respondi, de
cabeça baixa. Loren parou sua seção prova de
roupas e veio se sentar na beira da minha cama,
com uma mão sobre o meu joelho.
- Você diz isso já tem semanas, Laurinha. –
ela me deu uns tapinhas que deveriam ser
encorajadores – Quanto antes você fizer isso,
melhor. Eu não sei o que você está esperando.
- Eu não quero magoá-lo, Loren.
Como já era esperado, Loren abanou as
mãos para o ar e rolou os olhos, sem compreensão
nenhuma do tamanho da minha agonia. Se ela
soubesse como era difícil terminar com um cara
depois de tanto tempo, ela poderia me ajudar. Mas
não. De todas as irmãs do mundo, eu tinha que ter
a única que nunca ficou com ninguém por mais de
duas noites seguidas.
- Olha, me faça um favor, ta legal? – ela
pediu, se levantando de novo – Quando você
terminar com esse garoto, vai sair mais comigo e
não vai arranjar outro gato fixo por um bom tempo.
- “Gato fixo” não é bem como eu imagino
os garotos por quem eu me apaixono, Loren. –
afirmei, com uma pontada de irritação.
- Paixão tem que ser como as minhas,
rápidas e fáceis.
- Eu nem vou responder.
Ela riu, e eu não pude resistir acompanhá-la.
Logo a conversa morreu e, lentamente,
acompanhei e opinei no longo processo que era
11
Loren escolhendo uma roupa. Quando ela saiu, já
estava escurecendo, e meu coração começava a
pesar de novo.
Ela estava certa, é claro. Mamãe estava
certa, todo mundo estava certo. Pablo tinha se
tornado um problema pra mim, algo que estava me
impedindo de ser feliz, e eu tinha que resolver
aquilo depressa. Na segunda-feira, prometi a mim
mesma, eu iria fechar os olhos na hora do
intervalo, ignorar sua carinha triste e soltar logo o
que eu tinha pra dizer.
Não ia ser fácil. Não ia ser nada fácil.
Eu estava quase dormindo quando o meu
celular vibrou sob o meu travesseiro. Abri os
olhos, irritada, e peguei o celular, forçando os
olhos para enxergar as letrinhas no visor do
aparelho.
Pablo. Às onze da noite, no domingo que
precedia a volta às aulas. Ele devia estar realmente
incomodado com alguma coisa. Ou talvez ele
estivesse me ligando pra dizer que queria terminar
comigo. Tornaria as coisas muito mais fáceis.
Eu fiquei um bom tempo sem saber se
atenderia ou não a ligação. Eu já o tinha ignorado
tantas e tantas vezes ao longo do dia que eu não
achava que faria mal fazê-lo novamente. Amanhã,
quando eu falasse tudo – se eu falasse, completei
mentalmente – Pablo ia entender e tudo ficaria
bem. Não havia necessidade de atender um
telefonema àquela hora da noite.
Mas ele era insistente. Muito insistente.
Qualquer garoto normal já teria desistido.
Qualquer cara que se preze já teria desistido de
ligar pra mim e tentaria o número de outra garota.
Mas de todos os garotos da minha escola, eu fui
namorar justamente aquele que grudava pra nunca
mais desgrudar. Eu estava mesmo feita na vida.
12
- Alô? – atendi, com uma voz sonolenta
meio falsa, meio verdadeira. Eu estava com sono,
mas não tanto quanto eu estava fingindo.
- Laurinha, eu te acordei? – Pablo quis
saber. Ele tinha a voz chorosa, sempre baixa, como
se estivesse sempre sofrendo. Eu vinha trabalhando
isso nele desde que havíamos começado a namorar,
mas quando começou a me irritar demais eu
simplesmente parei de tentar.
- Mais ou menos. – falei, sem nem pensar no
que eu estava dizendo. Suspirei e resisti ao impulso
de dizer a ele que parasse de pegar no meu pé –
Você não deveria estar dormindo? Nós temos aula
amanhã.
- Eu não consigo dormir. – sério? Eu
também não.
- E o que eu tenho a ver com isso, Pablito?
- Eu tentei falar com você o dia todo, mas
você nunca estava, e eu liguei pra Keyla e você
também não estava lá, e...
- Você ligou pra Keyla? – nem eu conseguia
acreditar. Keyla era a minha melhor amiga, mas
nem ela tinha que aturar o desespero desmotivado
do meu namorado. O que ele estava pensando?
- Desculpa. – pediu, sentindo a descrença
raivosa na minha voz – Eu fiquei teimado com
isso, Laurinha, porque parecia que você não queria
falar comigo...
- Não, é que eu... – bufei. Eu não podia mais
dar desculpas, simplesmente não podia. Não era
certo. Então voltei atrás e cortei de uma vez – Nós
nos falamos amanhã, ta bem? Quando eu não
estiver de pijama tentando dormir.
- Tudo bem. – concordou. Pablo me dava
nos nervos até com a sua mania de sempre
concordar com tudo. Não brigar era ótimo, claro.
Mas namorar alguém sem opinião própria era
deprimente.
13
- Boa noite.
Não esperei que ele dissesse nada e não falei
o cotidiano “amo você”, tão sem sentimento nos
últimos tempos. Às vezes eu tinha a impressão de
que eu apenas falava pra não deixá-lo naquele
silêncio horroroso pós-declaração, pra que ele não
se sentisse incomodado e começasse a reclamar e
ficar triste. Eu me preocupava demais com a
sensibilidade do Pablo pra minha própria sanidade.
Não era nada saudável.
Quando amanheceu, meu telefone começou
a soar o alarme. Eu tinha essa mania de dormir
com ele debaixo do travesseiro, a despeito de todos
os alardes da minha mãe, sobre como era perigoso
fazer isso. Era o único modo de eu acordar com o
alarme sem ter que acordar Loren também.
Tentei me mexer praticamente em silêncio,
mas assim que abri os olhos percebi que não era
necessário: Loren não estava em casa. Sua cama
estava tão desarrumada quanto estivera na véspera,
e eu preferia não dar palpites sobre onde ela
passara a noite. Ao invés disso, preocupei-me em
pegar uma muda de roupa e ir tomar banho.
Enquanto lavava o cabelo, ficava repetindo
para mim mesma as várias formas de dizer o que
eu queria com delicadeza.
“Pablo, você é muito especial e eu realmente
gosto de você, mas não do mesmo jeito.”
Estava péssimo. Ele provavelmente iria me
interromper no “realmente gosto de você” pra dizer
que gostava de mim também e que adorava me
ouvir dizendo isso, e eu acabaria desistindo.
Reformulei a frase.
“Pablo, você é muito especial pra mim, mas
eu não acho que eu gosto de você do mesmo jeito.”
Hm, não. Conhecendo o Pablo, ele faria cara
de cachorro perdido e me diria que ele entendia
14
que eu estava confusa, que ele ia me ajudar a
passar por isso, e que juntos nós iríamos passar por
mais essa batalha e não sei mais o quê. Melhor
tentar de novo.
“Pablo, você é muito especial pra mim, mas
eu não gosto mais de você como antes.”
Ainda assim ele faria cara de cachorro
perdido e ia me implorar pra repensar. Mas que
coisa!
“Pablo, eu não agüento mais olhar pra sua
cara e eu já to cheia de ser a sua namorada. É, eu
estou terminando com você. Tchau.”
Assim seria melhor, à prova de dúvidas e de
tempo pra caras de cachorro perdido. Mas seria
como enfiar cem facas no peito magrelo dele, e eu
realmente não queria isso. Pablo podia ter se
tornado um desagradável grudento nos últimos
meses, mas eu não estava mentindo quando dizia
que ele era muito especial pra mim. Tínhamos
vivido tempos legais juntos, e eu não me esquecia
de nada disso.
Talvez seja por isso que nem refazendo a
frase dez vezes durante o banho eu tenha
conseguido chegar a algo decente pra dizer.
Enquanto colocava o uniforme do colégio, me
convenci de que não havia certo ou errado quando
a matéria era não machucá-lo: ele iria se magoar de
qualquer maneira. Eu apenas tinha que ignorar sua
carinha de cachorro perdido daquela vez.
Mas só de lembrar, já me enchia de um
misto de raiva e agonia, porque parecia que ele
fazia de propósito. A carinha, eu quero dizer. Ele
sabia que eu não suportaria vê-lo sofrer e faria
qualquer coisa pra que ele não se chateasse, e por
isso lançava aqueles olhos pidões pra mim. Não
era justo.
Depois de enfiar uma camiseta branca gasta
com o logotipo do colégio e uma calça jeans
15
surrada que eu usava todo santo dia na escola,
peguei minha mochila, meu fichário e desci para
tomar um café da manhã rápido, toda hora
repetindo na cabeça as diversas formas de terminar
de vez o meu namoro. Nenhuma delas parecia boa
o suficiente.
Engoli um copo de café com leite e um pão
murcho com manteiga, joguei a louça suja na pia e
peguei as chaves de casa. Eram quase sete e dez da
manhã quando saí, com um leve tremor de frio.
Meu corpo ainda estava quente e aquela manhã,
como praticamente todas desde que eu me entendia
por gente, estava fria.
Andei a passos curtos e rápidos, respirando
o ar gelado e olhando a paisagem bonita e calada
das ruas de São Joaquim. Eu precisava de pouco
mais de dez minutos para chegar ao Colégio
Paradigma, onde eu estudava, mas sempre
desviava do caminho para passar na casa da minha
melhor amiga, Keyla. Ela morava na rua atrás da
minha, e nós sempre íamos juntas pra escola.
Cheguei à frente da casa dela em questão de
minutos. Os pais de Keyla tinham a mania de
sempre encontrarem algum defeito na casa, razão
pela qual eu não conseguia me lembrar uma só vez
nos últimos seis anos em que eu a conhecia em que
sua casa não estivesse em reforma. Quando
acabava o dinheiro, eles simplesmente paravam,
como era o caso. Desde setembro do ano anterior,
a frente da casa estava com apenas metade dela
reformada e o jardim estava completamente
destruído, esperando para ser consertado. A janela
da sala ainda era uma série de tábuas pregadas para
não deixar um buraco no lugar.
Bati palmas três vezes assim que cheguei,
nosso código secreto para que Keyla soubesse que
eu estava ali sem que eu tivesse que gritar ou tocar
a campainha. Ela apareceu na porta com um pão na
16
boca, pedindo pra que eu esperasse, e eu
concordei. Cinco minutos depois ela estava de
volta, correndo apressada com a mochila pendendo
num braço e meio pão ainda na boca.
- Não precisa sair correndo, hoje é só o
primeiro dia! – exclamei, rindo dela. Ela tirou o
pão da boca e engoliu um pedaço.
- Não quero chegar atrasada, você sabe. –
falou, e eu ri de novo. Eu sabia, e como sabia. Era
graças a ela que eu nunca faltava ou chegava
atrasada. Keyla era especialmente boazinha e
certinha em tudo o que fazia.
Ela saiu e trancou o portão e começamos a
andar em direção à escola. Eu deixei que ela
comesse, tentando acompanhar seu ritmo rápido de
andar. Era sempre difícil, apesar de fazer isso há
tantos anos.
Passados alguns minutos de silêncio, ela
olhou pra mim com os olhos semi-cerrados: o jeito
dela de demonstrar preocupação. Devolvi o olhar
sem dizer nada, simplesmente porque não
conseguia: na minha cabeça, eu ainda repassava as
300 formas diferentes de dizer ao Pablo que eu
estava terminando sem deixar que ele se
machucasse (muito).
- Você está quieta. – Keyla declarou,
respirando fundo. Eu não entendia como ela
conseguia praticamente correr e ainda manter a
respiração tão calma daquele jeito.
- Eu estou pensando. – falei, com a voz
soando distante até mesmo para mim. Tentei
respirar fundo também, mas o ar gelado pareceu
cortar o meu nariz por dentro e desisti.
- Sobre o quê? – ela quis saber. Mordi o
lábio antes de dizer alguma coisa.
Porque Keyla desaprovava o meu namoro
desde o início. Ela me dizia que já podia ver no
que ia dar, que eu ia acabar ficando de saco cheio e
17
magoando o garoto, e que no fundo eu não gostava
dele, que namorar desse jeito era errado. Por isso,
eu já sabia o que ela iria me dizer, do mesmo jeito
que já sabia que ela tinha certeza sobre a razão do
meu silêncio antes mesmo de perguntar.
Mas eu não poderia simplesmente virar pra
ela e dizer “estou cansada” ou “voltaram as aulas”
ou qualquer outra mentira boba pra desconversar.
Não era o fato de a Keyla ser minha amiga; era
engraçado, mas alguma coisa nela simplesmente
tornava impossível mentir ou disfarçar. Eu não
conhecia uma única pessoa naquela cidade que
conhecesse a Keyla e a tivesse enrolado alguma
vez. É só olhar pra ela que a verdade simplesmente
pula da nossa boca.
Por isso eu bufei e nem tentei dizer o
contrário quando abri a boca pra falar e soltei:
- É o Pablo.
Ela me olhou por alguns segundos antes de
dar de ombros.
- Eu não preciso e nem vou dizer “eu te
disse”. Isso não vai resolver nada. – Keyla me
disse, já adivinhando tudo.
- Obrigada.
- Quando vai ser?
- Hoje. Eu acho. Estive pensando nisso a
noite toda, num jeito de dizer, sabe?
- Não tem jeito certo de fazer isso. Apenas
seja honesta.
Honestidade. Se eu fosse honesta, Pablo
ficaria tão magoado que não seria surpresa se eu o
visse se atirando de uma ponte com uma pedra
amarrada no pescoço. Ele era muito exagerado, e
eu tinha que ter cuidado com a escolha de palavras
toda vez, por qualquer coisa. Agora seria ainda
mais complicado. Ser honesta e direta não estava
nem de perto nos meus planos.
18
Eu não disse isso em voz alta, mas acho que
Keyla entendeu o recado. Ela balançou a cabeça, e
então viramos na esquina da rua do colégio. Ela
parou a uns cinco metros do portão e virou-se de
frente pra mim.
- Eu sei o quanto você se preocupa com ele,
e eu realmente admiro isso em você. – ela falou,
pondo uma mão sobre a minha – Mas se você não
for honesta, mesmo que isso o faça sofrer, essa
história só vai ficar mais longa. Diga o que você
tem a dizer, certo? Diga ao Pablo que ele... que ele
vai sofrer mais e te fazer sofrer se ficarem juntos.
Eu não sei. Diga a verdade e o faça entender.
Assenti, sem conseguir evitar o pensamento
raivoso de como era fácil pra ela falar. Eu devia
experimentar colocar Keyla e Pablo numa gaiola
de interação direta pra ver se ela se sairia tão bem
na prática quando é na teoria. Enquanto
entrávamos no colégio, só pude pensar como teria
sido mais prático dar o fora nele pelo telefone, ou
por correspondência. Qualquer coisa que eu
pudesse fazer ser olhar pra ele, ou que fosse fácil
de ser ignorado caso ele decidisse responder.
Eu estudava no Paradigma desde a primeira
série, mas aquela era a primeira vez que passar
pelos seus portões realmente me causava um
arrepio que vinha de dentro pra fora. Pablo já devia
estar lá, mas eu não tinha certeza se falava agora
ou se deixava pra quando a aula acabasse. O que
seria pior, cinco horas de aula com ele sendo meu
namorado ou cinco horas tendo que tolerar a sua
carinha triste? Difícil dizer.
Quando um par de mãos cobriu os meus
olhos, eu já sabia dizer quem era. Bufei e tirei as
mãos dele de lá, já sem paciência pra entrar no
clima das suas brincadeiras. Quando me virei,
Pablo estava sorrindo pra mim, como sempre.
19
O problema é que eu não suportava mais ver
aquele sorriso. Eu o achava bobo e infantil agora,
pendurado no rosto dele sem mais me fazer sorrir
de volta. Ele abriu os braços e me puxou pra um
abraço apertado sem esperar que eu desse algum
sinal de retribuição.
Devolvi seu abraço sem nenhum
entusiasmo, por pura educação, com um tapinha
nas costas pra enfatizar o fato de que seria melhor
ele ter mantido a distância. Mas quando ele se
inclinou pra vir tentar me beijar, eu desviei e me
afastei.
A mudança no rosto dele foi imediata, mas
eu tentei me manter forte, impenetrável. Primeiro
ele pareceu confuso, torcendo o nariz e enrugando
a testa, fazendo os óculos ficarem tortos na casa.
Então a expressão foi relaxando aos poucos, até
que ele parecia ter sido atingido por um meteoro
no meio da testa.
- Nós precisamos conversar. – afirmei, antes
que a cara de cachorro perdido viesse – É sério,
Pablo.
- Eu sabia, eu sabia que tinha alguma coisa!
– Pablo exclamou, com a voz tristonha – Eu
percebi porque você não me atendeu quando eu
liguei e parecia brava quando me atendeu ontem à
noite e...
- É claro que eu estava brava! Você tem
noção da hora em que você me ligou? Eu estava
quase dormindo!
- Tem razão. Desculpe. – ele suspirou,
parecendo derrotado – Sobre o que nós temos que
conversar?
Balancei a cabeça e olhei em volta,
procurando algum lugar mais vazio. Não havia.
Embora a população estudantil fosse pequena, todo
mundo tinha a mania de se aglomerar no mesmo
lugar. Teria que ser ali mesmo.
20
- Pablo, eu... – droga, onde estavam todas as
minhas frases montadas agora? – Eu quero
terminar.
Olhei pras minhas próprias mãos trêmulas
enquanto falava, e me arrependi profundamente ao
erguer os olhos e encontrar a expressão facial que
eu mais odiava nele. Os lábios caídos, os olhos
grandes, as sobrancelhas erguidas, os ombros pra
baixo como se mal conseguisse se manter de pé.
Naquele segundo, desejei ter ficado de boca
fechada. Meu estômago pareceu vir parar na boca,
tamanha foi a repulsa que eu senti de mim mesma
por machucá-lo daquela forma.
- Por quê? – foi tudo o que ele disse.
Eu já tinha ouvido aquela pergunta vezes e
vezes mais. Às vezes, não acreditava em como era
possível que ele não percebesse. Será que Pablo
realmente não notava o que me incomodava nele?
Será que ele nunca ia se tocar que o que o afastava
de mim era o fato de ele ser tão incrivelmente
apaixonado, dependente e... grudento?
Mas quando eu fui dar as minhas razões, o
sinal tocou, e fomos interrompidos por uma
enxurrada de pessoas indo em direção às suas
salas. De longe, vi Keyla me olhar como se
quisesse me forçar a continuar falando e ao mesmo
tempo me dando força.
E eu não sei o que me deu. Eu realmente não
sei o que me deu, mas quando eu olhei pro Pablo
de novo, tão absorto em sua tristeza quanto um
mocinho de cinema, eu simplesmente amarelei.
Peguei na mão dele e sussurrei um “continuamos
mais tarde” e o arrastei comigo para a nossa sala.
Dentro da minha cabeça, eu cantarolava
maldições à minha própria vida. Existia mais
alguma garota tão totalmente idiota quanto eu
nesse mundo? Não era Pablo quem não me
merecia: era eu quem não o merecia. Primeiro
21
porque eu o estava machucando mais desse jeito, e
segundo porque eu não parecia conseguir ser
honesta com ele. Não sem me arrepender e estragar
tudo depois.
Fui afundando na cadeira à medida que a
aula passava, com Pablo atrás de mim, tão
obviamente me encarando que dava pra sentir o
olhar dele penetrando a minha pele.
E não era nada legal.
Quando o sinal anunciou o intervalo, fiz
sinal à Keyla pra que ela me encontrasse no
banheiro feminino e deixei a sala o mais depressa
que pude, tentando não ligar pro fato de que Pablo
vinha logo atrás de mim. Lá dentro, me espremi
contra a parede pra que ele não me visse – como se
mudasse alguma coisa! – até que Keyla entrou e
me olhou, preocupada.
- O que aconteceu? – ela quis saber – Você
falou com ele?
- Falei. – eu disse, soltando o ar devagar.
Parecia que eu tinha alguma coisa presa na
garganta.
- Graças a Deus. Como foi?
Eu tive vontade de chorar ao escutar essa
pergunta. Porque eu queria sinceramente poder
dizer a ela que tinha sido difícil, mas que estava
feito, que eu tinha terminado e que ia ficar tudo
bem. Mas ao invés disso, eu baixei os olhos, mordi
o lábio inferior e soltei justamente o contrário:
- Não foi.
- Ah, não, Laura. Como assim não foi?
- Não foi, Keyla. Estava indo tudo bem, eu
juro. Ele sequer estava discutindo, apenas
perguntou por que, mas ai eu...
- “Olhei pra ele e simplesmente não pude”. –
Keyla completou minha frase com perfeição, sem
tirar nem pôr uma única palavra. Eu suspirei, e ela
22
me lançou um olhar repreensivo – Você já me deu
essa desculpa umas cem vezes, Laura.
- O que eu posso fazer, Keyla? – indaguei,
cobrindo o rosto com as minhas mãos suadas de
tão nervosa que eu estava – Eu disse a ele que
iríamos conversar mais tarde, mas eu sei no que
isso vai dar!
- Laura, pelo amor da minha Virgem Maria,
você é mais forte do que isso! – Keyla bufou – Eu
sei que você é uma pessoa boa, e sei também o
quanto você detesta fazê-lo sofrer desse jeito, mas
ele não está mais feliz com você do que estaria
sozinho.
- Talvez você esteja certa, mas quando eu
vejo aquele olhar no rosto dele eu me sinto a pior
pessoa do mundo!
- Mas você não é. – ela pôs as mãos sobre os
meus ombros e me balançou de leve – A sua
felicidade também conta. Eu sei que você é forte o
suficiente pra fazer o que é certo.
Eu apenas fiz que sim e fiquei em silêncio.
Virei o rosto pra não ter que encará-la nos olhos e
dei de cara com o meu reflexo no espelho,
parecendo tão abatido e derrotado que eu imaginei
se era só eu ou se todos me viam daquela maneira.
Era vergonhoso.
Quando saímos do banheiro, não havia mais
ninguém no corredor ou nas salas de aula do nosso
andar. Keyla disse que ia comprar alguma coisa
pra comer, e eu nem precisei dizer a ela que ia me
refugiar na nossa classe, pra não ter que ver Pablo
de novo. Entrei e acendi a luz, e tão logo o fiz,
tomei um susto.
Tinha alguém na sala. Não era o Pablo –
graças a Deus – nem um funcionário da escola nem
ninguém que eu conhecesse, pra ser mais exata.
Mas sim um garoto cujo rosto eu não podia ver,
porque ele estava debruçado sobre a mesa,
23
dormindo. Um garoto que não estivera presente nas
primeiras aulas do dia.
Me apressei a apagar de novo a luz enquanto
ia com todo o cuidado do mundo até a minha
carteira. Não queria que ele acordasse. Não queria
que ele olhasse pra minha expressão derrotada,
nem queria que aquele silêncio incômodo que
sempre paira entre duas pessoas que não se
conhecem pairasse sobre nós. Era melhor que ele
dormisse.
Eu o ouvi dar um ronco silencioso, fraco,
seguida de um suspiro abafado. O que eu podia ver
com a claridade que vinha de fora era que o garoto
era moreno – muito moreno. Do tipo que se via no
Rio de Janeiro, não ali no meio da Serra
Catarinense. Ele era tão moreno que parecia ter
dormido no sol e acordado com um bronzeado
fantástico. Seus cabelos eram bem escuros e ele
aparentemente era imune aos poderes mágicos do
clima da cidade mais fria do país. Porque ele vestia
apenas uma camiseta, uma bermuda e um par de
tênis.
Eu estava sentada, olhando distraidamente
para o garoto estranho na fileira ao lado, quando
ouvi passos do lado de fora e virei a cabeça tão
rápido na direção da porta que meu pescoço
estalou. Vi a cabeça de Pablo aparecendo e não
pensei duas vezes antes de me sair por baixo da
carteira numa manobra dolorida e me agachar no
chão, atrás das carteiras e das mochilas.
Pablo abriu a porta e acendeu a luz. Eu não
estava nem olhando pra que não houvesse a menor
chance de ele me ver quando o escutei dizendo,
com a voz desanimada:
- Ah, desculpe.
- Tudo bem, cara. – uma outra voz, grave e
masculina, tão masculina que me deixou arrepiada,
disse. Só percebi que se tratava da voz do garoto
24
estranho quando me lembrei de que não havia mais
ninguém na sala.
- Uma garota de cabelo castanho passou por
aqui? – Pablo perguntou. Eu esperei, ansiosa, pelo
momento em que o garoto diria que não. Ele
sequer tinha me visto.
- Ah, sim, ela se escondeu atrás da carteira.
– falou, contudo.
Fiquei paralisada por um segundo ou dois, e
logo eu só senti meu rosto ficando vermelho,
milhares de xingamentos me vindo à cabeça. Que
filho da mãe.
Sem escapatória, me levantei. Pablo estava
olhando para mim, parecendo cada vez mais
desolado. Sequer olhei para o lado, onde o garoto
estranho parecia assistir a tudo.
- Se não queria falar comigo, só precisava
falar. – Pablo me disse. Eu tentei ir até ele, mas
bati o joelho na carteira. Tinha esquecido onde eu
estava.
- Pablo, não é isso. – falei, em vão. Era
exatamente isso – Por favor, não dificulte as
coisas.
- Laura, não tem que ser assim! – exclamou,
na sua voz chorosa, e veio até mim, ficando a
apenas uma carteira de distância – A gente se gosta
tanto!
- Pablo, não é que eu não goste de você, é só
que... não é mais a mesma coisa.
- Então me diz o que eu posso fazer pra que
seja de novo a mesma coisa. Eu faço qualquer
coisa que você pedir.
Eu queria chorar e sair correndo, queria
poder fazer algum tipo de lavagem cerebral nele
pra que Pablo entendesse que não tinha mais jeito.
Ao invés disso, eu estava ali parada, me sentindo
completamente indefesa, sem coragem de dizer
mais uma só palavra, ainda tendo que agüentar
25
uma platéia que emitia um som muito parecido
com... risadas.
Lancei ao garoto um olhar fulminante. Ele
não pôde ver. Estava ocupado demais com o rosto
entre as mãos, se acabando de dar risada de mim.
- Nunca mais vai ser a mesma coisa. – eu
declarei, com a voz rouca – Me desculpe, Pablo.
Você é muito especial pra mim, mas o nosso
namoro acabou.
- Laura... – começou a dizer, mas eu o
interrompi dando as costas a ele.
- Acabou.
O sinal tocou, e logo a sala começou a se
encher de gente. Pablo se sentou, e eu também o
fiz. O garoto ainda ria, mesmo quando o professor
entrou em sala.
Capítulo 2
- Ei, calma! Ta tudo bem!
Keyla tentava me acalmar havia quinze
minutos. Depois que a aula acabou, Pablo me
lançou um olhar tão magoado e pesaroso que
parecia que ele tinha me cortado no meio. Quando
ele saiu, fui invadida por uma onda de alívio, que
acabou no instante em que eu vi a nuca do garoto
estranho saindo da sala.
- Não, não está tudo bem, Keyla! – eu
exclamava, pela décima vez naquela tarde.
26
Eram duas horas da tarde e nós estávamos
sentadas no chão do quarto dela, com a cabeça
encostada na cama. Eu estava chorando e não fazia
a menor idéia por que exatamente.
- Eu sei que você está se sentindo péssima
por estar fazendo o Pablo sofrer, mas no fundo
você sabe que é melhor desse jeito. – Keyla
insistiu, passando a mão na minha cabeça.
- Eu nem sei se é só por isso que eu estou
chorando. – falei, com a voz embargada pelas
lágrimas. Minha amiga tirou uma caixa de lenços
da gaveta do seu criado mudo e me passou.
- O que é, então? – perguntou – Fale, você
vai se sentir melhor. Falar pode não resolver nada
às vezes, mas alivia a nossa alma quando está
pesada demais.
- É só que... o jeito como aconteceu, sabe?
Eu queria que tivesse sido diferente, eu não tive
tato. Eu meio que fui... forçada a fazer tudo errado.
- Forçada?
- Eu voltei pra sala na hora do intervalo, se
lembra? – ela concordou – Aquele garoto novo da
nossa sala estava lá, dormindo. Quando eu vi o
Pablo, me escondi atrás das carteiras, e o garoto
simplesmente... me dedurou.
- Olha, eu sei que isso não vai ajudar em
nada... – Keyla respirou fundo e mordeu o lábio –
Mas você não devia tê-lo evitado, Laura. A gente
não foge dos problemas. A gente enfrenta antes
que eles fiquem maiores e mais complicados.
- Eu sei, Keyla... – solucei – Mas eu achava
que se eu segurasse a onda até depois da escola a
gente poderia conversar melhor. Aquele garoto
disse ao Pablo onde eu estava, e eu fui forçada a
falar tudo o que eu não queria dizer. Eu não soube
lidar com a situação.
- Eu sinto muito, Laura. Me dói muito ver
você desse jeito e eu gostaria de melhorar as
27
coisas, se eu pudesse. – ela me abraçou, e só de me
apoiar no ombro dela eu já me senti em paz – Mas
já passou. O que está feito, está feito.
- Você tem razão. – dei um suspiro longo,
que pareceu tirar um grande peso de dentro de mim
– Já está feito. O Pablo vai entender, com o tempo.
- Vai sim.
Mas ele não entendeu. A primeira semana de
aula se passou, e o que eu percebi foi que ele não
estava entendendo e certamente não iria entender
nada tão facilmente.
Na escola, Pablo mudou de lugar. Deixou de
se sentar atrás de mim e foi parar do outro lado da
sala. Durante a hora do intervalo, eu não tinha nem
coragem de sair de dentro da sala, porque eu sabia
que ele ia ficar me encarando até eu ter vontade de
chorar.
Quando eu chegava em casa, uma infinidade
de emails se acumulavam na minha caixa de
entrada, com horários de envio variando da meia-
noite até as duas da manhã. Todos sem assunto. Eu
os deletava sem me atrever a abrir, para não piorar
as coisas.
E como se tudo não bastasse, vinham as
ligações.
Inúmeras. Eu reconhecia o número que eu
havia levado tanto tempo pra decorar e muitas
vezes não atendia. Durante aquela semana, mais de
uma vez minha mãe reclamou de que estavam
passando trotes pra nossa casa; ligações que ela
atendia e ninguém dizia nada do outro lado da
linha.
Eu não sabia mais o que fazer. Quando
chegou a segunda semana de aula, eu já não estava
mais agüentando. Keyla me dizia pra lidar com
tudo do modo mais calmo e adulto que eu pudesse,
que eu tinha que simplesmente relevar e deixar
28
passar. Não demonstrar fraqueza ou raiva, porque
seria pior. Mas estava ficando difícil.
Simplesmente estar no mesmo ambiente que ele já
me deixava com a consciência pesada.
E, pela primeira vez, meus livros não
estavam me ajudando em nada. Nem Crepúsculo
era capaz de tirar da minha cabeça o peso de estar
magoando Pablo daquele jeito, ainda que fosse
melhor assim.
Na quarta-feira, eu estava a ponto de
explodir. Keyla foi comigo até a escola, como
sempre, mas obedeceu à minha vontade de ficar
sozinha mesmo sem eu dizer uma só palavra.
Faltavam ainda vinte minutos pra começar a aula,
então eu simplesmente entrei no prédio e comecei
a andar.
Fui andando pelos corredores que eu já
conhecia até chegar ao auditório. A única sala
cujas portas estavam sempre abertas, como se
esperassem por mim. Lá dentro estava escuro – as
cortinas estavam fechadas – e quentinho. Me
acomodei numa cadeira qualquer e joguei minha
mochila na cadeira da frente.
Quando eu era pequena, adorava vir ao
auditório pra assistir apresentações ou festas da
escola. Lembro que uma vez os alunos do Ensino
Médio haviam montado uma apresentação de Dia
das Crianças, e que eu tinha ficado tão encantada
que tinha decidido ser atriz. Viver grandes
aventuras impossíveis, viver o inimaginável –
mesmo que só de faz-de-conta.
Então eu cresci, o sonho morreu, e eu
afoguei a vontade de conhecer coisas incríveis nos
livros. Nos grandes amores e nos momentos de
vida ou morte, nas decisões mais simples que
alteravam uma vida inteira, nos amores fadados ao
destino. Sempre acreditando que fosse ser real um
dia, sempre achando que um dia seria a minha vez.
29
Mas quando eu acordei, eu estava presa a
um namoro infeliz com um garoto que eu não
amava, e o conto de fadas tinha virado um novelo
de lã bem grosso e cheio de nós, onde eu ia
precisar cortar algumas linhas – e corações – pra
poder me soltar.
Funguei, pra só então perceber que eu estava
chorando. Me senti idiota, mas ainda assim
levantei as pernas, apoiando os pés na cadeira da
frente, e abracei os joelhos. Apoiei a cabeça ali e
pisquei os olhos pra espantar mais uma dose de
lágrimas.
Tomei um susto ao perceber que não estava
sozinha.
Estava escuro, mas dava pra ver os olhos
estreitos e até o traçado do rosto. Me olhava com
curiosidade, e tão logo eu percebi sua presença,
meu coração disparou. Tentei me levantar e só fiz
tropeçar nas cadeiras. Quase caí, mas uma mão
forte, firme e quente me segurou pelo braço.
Puxei o braço assim que retomei o equilíbrio
e já me apressei em limpar as lágrimas e tentar
parar de fungar, me afastando depressa, recuando
de costas em direção à porta.
- Por que você está chorando?
A voz era calma, curiosa, e tão cheia de tons
que chegava a me deixar confusa. Ainda assim, era
familiar. Eu só não sabia de onde eu a conhecia.
- Porque eu tenho vontade. – respondi,
petulante, e tentando não demonstrar a minha
curiosidade súbita. Ouvi uma risada que parecia
um latido.
- E por que tem vontade? – insistiu. Eu dei
de ombros, embora soubesse que meu estranho
acompanhante não pudesse me ver.
- Tenho as minhas razões.
- Hunf... – bufou, como se tentasse segurar o
riso – Vocês são estranhos.
30
- Vocês?
- É. Garotas. – seu tom de voz me fez
duvidar que fosse essa sua resposta verdadeira à
minha pergunta. Ainda assim, deixei passar.
Lá fora, o sinal tocou, indicando que a
primeira aula iria começar. Eu olhei para trás, em
direção à porta, quando isso aconteceu, por puro
reflexo. Contudo, não me mexi.
- Não vai para a aula? – o tal guri me
perguntou. Forcei meus olhos para tentar enxergar
alguma coisa além dos seus olhos, mas era como se
a voz viesse do nada.
- Você não vai? – indaguei em resposta.
Mais um riso.
- Talvez. – considerou. Houve uma pausa, e
então um suspiro – Ouvi dizer que não é muito
educado deixar donzelas em apuros.
- Não estou em apuros. – não me atrevi a
retirar o “donzela”. O elogio me fizera enrubescer
– Não preciso de ajuda.
- Como quiser.
No segundo seguinte, fui levemente
empurrada para o lado pelo que pareceu ser uma
onda de vento, e a porta do auditório se abriu e se
fechou. Logo, eu estava sozinha de novo.
Peguei minhas coisas e fui embora dali em
direção à minha sala, com o coração pulsando ao
som da adrenalina que corria nas minhas veias.
Tive que ficar de fora da primeira aula do
dia, mas não me importei. Meus batimentos
custavam a desacelerar enquanto eu inspirava
fundo e soltava o ar devagar. Por alguma razão,
tudo me parecera simplesmente tão irreal. Eu já
nem sabia mais por que estava chorando.
E aquela voz... quem seria? Não havia tanta
gente assim no Paradigma que eu não conhecesse.
E ainda assim, que grande idiota eu tinha sido. Por
31
que não simplesmente perguntara quem era?
Facilitaria muito a minha vida.
Abri ao acaso meu exemplar de Crepúsculo
que levava comigo na mochila, tentando tirar da
cabeça aquela voz e ao mesmo tempo me
perguntando se eu voltaria a ouvir aquela voz.
- Onde você estava?
A pergunta no tom preocupado e
desconfiado veio logo que o sinal soou anunciando
o intervalo. Eu estava completamente distraída,
incapaz sequer de prestar atenção se Pablo estava
ou não me encarando com ares de quem queria me
matar (ou se matar).
Keyla me deu um susto quando pegou no
meu braço e me fez essa pergunta. Só ai eu me dei
conta de que a sala estava quase toda vazia –
exceto pelo guri novo, que só pra variar estava
dormindo, debruçado sobre a sua mesa. Ele dormia
tanto que eu sequer me lembrava de ter visto o seu
rosto naquelas quase duas semanas de aula.
- Onde eu o quê? – perguntei de volta,
balançando a cabeça, com uma expressão perdida
pendurada no rosto – Han?
- Durante a primeira aula! – Keyla
exclamou, franzindo a testa – Nós viemos juntas,
mas aí você foi não sei pra onde e não entrou pra
aula...
- Ah, sim, eu estava... – hesitei. Lancei um
olhar para o garoto que dormia, e decidi que era
melhor não dizer nada na presença dele, mesmo
que aparentemente ele estivesse dormido. Eu já
havia pagado por esse erro uma vez.
Assim sendo, me levantei e puxei Keyla
junto comigo para o corredor. Me certifiquei de
que não havia ninguém por perto para escutar a
loucura que eu ia dizer, e então respirei fundo.
32
- Eu estava no auditório. – falei, baixinho.
As sobrancelhas de Keyla se juntaram ainda mais,
deixando várias rugas na sua testa.
- Fazendo o quê? – quis saber. Senti o rosto
corar um pouco enquanto admitia mais um
momento de fraqueza.
- Eu estava chorando. – respondi, mas assim
que ela abriu a boca para dizer alguma coisa,
interrompi – Mas não é isso o que eu quero contar.
Tinha alguém comigo lá, Keyla.
- Alguém com você no... – Keyla hesitou,
pôs a mão na testa, então prosseguiu – No
auditório?
- É. E eu não sei quem é, mas era um garoto.
Não dava pra ver o rosto, mas a voz era de homem.
- Certo.
- Foi muito... estranho. Quem mais fica no
auditório antes de começar a aula?
- Eu não sei. Realmente não sei.
Um momento de silêncio. Finalmente decidi
ir comprar alguma coisa para comer, e Keyla me
acompanhou. Eu sentia um arrepio na espinha só
de lembrar dos poucos minutos daquela manhã
onde eu falara sobre nada em especial com um
estranho.
Talvez, pensei, eu devesse apenas deixar de
lado. Uma curiosidade sem sentido, um esbarrar ao
acaso de duas pessoas que estudavam na mesma
escola. Com que freqüência isso acontecia? Eu ia
trombar e ouvir a voz de mais um monte de
pessoas naquele mesmo dia, e eu não ficaria
cismada com isso.
Mas fosse a voz, ou o lugar, os olhos
estreitos e curiosos, fosse a estranheza da situação
ou o jorro de adrenalina bombardeado pelo meu
coração naquele momento, alguma coisa me
impedia de tirar isso da cabeça.
33
Assim sendo, naquela noite, enquanto eu
tentava dormir e ignorar o fato de que Loren estava
no computador, digitando insistentemente e
fazendo o som das teclas entrar fundo na minha
cabeça, decidi que aquela não seria a última vez
que eu ouviria aquela voz. Amanhã eu voltaria ao
auditório e esperaria só pra ver se ele ia aparecer.
Keyla obviamente reprovou a idéia. Certo,
talvez “reprovar” não seja a palavra certa. Mas ela
não me deu nenhum tipo de suporte moral como
era esperado, contando o fato de que ela é a minha
melhor amiga.
Quando contei a ela os meus planos na
manhã seguinte, ela apenas me lançou um olhar
desacreditado e começou a rir. Não uma risada
irônica, duvidosa. Uma risada inconformada.
- Você não pode estar falando sério, Laura. –
me disse, entre risos. Eu olhei pra ela, mais séria
ainda do que antes.
- E por que não? – indaguei. Ela riu mais um
pouco, e então suspirou.
- Porque isso não tem o menor cabimento! –
exclamou em resposta – Ainda porque, o que te
garante que ele vai estar lá?
- Não estou dizendo que ele vai estar lá. –
bufei – Se ele não estiver, paciência. Eu vou pra
aula e assunto encerrado.
- Eu acho que você está seriamente fora de
si. Perder aula por causa de uma voz misteriosa?
- Não é só uma... – desisti no meio da frase e
deixei a voz morrer. Keyla não iria entender. Não
tinha sido ela quem escutara a voz misteriosa,
afinal de contas – Esqueça. Além do mais, é só
uma aula. E talvez eu nem perca a aula. Estamos
chegando bem cedo.
- Você é impossível...
34
Já na escola, eu não pensei duas vezes antes
de sair de perto de Keyla e ir decidida em direção
ao auditório. Pude sentir que havia um olhar nas
minhas costas, um olhar pesado – o olhar de Pablo.
Mas pela primeira vez, aquilo não me incomodou.
Ele que ficasse com a sua raiva e os seus
ressentimentos sobre mim. Eu tinha feito tudo o
que pude fazer. Não cabia a mim aceitar isso.
Meu coração começou a disparar tão logo
alcancei o corredor escuro, cheio de portas de salas
de aula. Fui olhando por cima do ombro pra ver se
havia alguém por ali, mas tive a sorte de não
avistar ninguém. Parei em frente à porta do
auditório e pus uma mão sobre a madeira e a outra
na maçaneta, respirando fundo.
Então entrei.
Tudo estava exatamente como no dia
anterior. Escuro, fechado. Entrei lentamente, como
se caminhasse em câmera lenta, dentro de um
filme ou debaixo da água. Fechei a porta com
cuidado e me aproximei das cadeiras. Pus minha
mochila em uma, e então me sentei.
Esperei por um minuto ou dois, mas estava
tão tensa que não podia parar quieta. Nos minutos
que se seguiram, troquei umas dez vezes de
posição: cruzava as pernas, então descruzava,
apoiava os pés nas cadeiras da frente e voltava a
baixá-los, batia com as mãos nas pernas num
batuque irregular para tentar ficar sob controle.
Mas à minha volta, tudo estava tão
silencioso e parado como devia estar. Sem voz
misteriosa. Sem feições quase invisíveis na
penumbra. Sem nada.
Dei um suspiro derrotado e percebi que
Keyla devia estar certa. Nada me garantia que ele,
quem quer que fosse, iria aparecer ali hoje. Talvez
tivesse sido só uma coincidência o fato de estarmos
os dois dentro do auditório. Embora eu realmente
35
não achasse provável. Admiti lentamente que eu
estava sendo ridícula, e peguei minha mochila, me
levantando para ir embora.
Mas quando virei em direção à porta, fui
surpreendida quando o par de olhos surgiu do
nada, bem à minha frente, tão mais real agora que
estava próximo o suficiente para ser tocado. Eu
não podia ver muito mais do que havia visto na
manhã anterior, mas podia sentir um calor
irracional irradiando do seu corpo (ou seria do
meu?) e o ar saindo da sua respiração.
Fiquei sem ação, travada. Meus braços,
meus olhos, minha voz, tudo estava paralisado. E
de repente o coração começou a bater depressa e
eu fiquei toda arrepiada, e ele se afastou. Seus
olhos pareciam me estudar, mas eu não tinha
certeza. Só queria poder ver o rosto dele.
- Você de novo. – aquela voz tão curiosa e
inigualável disse, num tom que dançava entre a
pergunta e a afirmação.
- E você também. – falei em seguida. Minha
voz parecia estranha até para mim, rouca e dura de
sair.
- Você é mesmo muito estranha. – houve
uma longa pausa, e senti ele se movendo, se
afastando de mim, os olhos se fechando como se
de algum modo ele tentasse enxergar o que havia
sob a minha pele – Por que veio?
- Eu não sei. – confessei, tentando recuperar
o ar que de repente me escapara dos pulmões.
- Isso não faz sentido.
- Eu estava... – respirei fundo – Curiosa.
Ele não disse nada. Apenas ficou olhando
para mim, e eu pude entender a razão. Ele
provavelmente devia achar que eu era louca.
Naquele instante, até eu me achava louca.
- E por que você está aqui? – perguntei, para
quebrar o silêncio e tentar dar mais razão às
36
minhas atitudes – Ontem eu vim aqui para me
esconder, mas e você?
- Se esconder de quê? – ele quis saber – Ou
de quem?
- Não importa. – desconversei, me sentindo
corar – E não fuja da minha pergunta.
- Que pergunta? – ele deu uma risadinha –
Se não importa pra mim de quem você fugia,
também não importa a você o que eu estava
fazendo aqui. Nem o que estou fazendo agora.
- Se eu te disser... – falei, com cuidado –
Você me conta por que estava aqui?
- Posso tentar.
- Certo. – hesitei, então resolvi ir em frente.
Minha vontade de saber era tamanha que eu não
me importava o quão ridículo os meus motivos
pudessem ser – Eu estava fugindo do meu ex-
namorado.
- Por quê? Ele é algum tipo de maníaco?
- Não, mas eu não consigo mais olhar pra
ele, porque toda vez que eu olho eu... – parei. Eu já
tinha dado a minha resposta, não fazia sentido
continuar a soltar meus dramas pra cima de um
guri misterioso – Deixa pra lá. Sua vez.
- Não, não, continue.
- Você só quer fugir da resposta.
- Hm, também, mas não só por isso. – ele riu
– Eu gosto de escutar histórias.
- Não é uma história, é a minha vida! –
exclamei, ofendida. Depois, me arrependi – É uma
história longa.
- Ainda faltam 7 minutos pra começar a
primeira aula, e praticamente uma hora até o
começo da segunda. Nós temos tempo.
Encarei aqueles olhos tão desafiadores e
curiosos, e me vi encurralada. Depois, pensei
melhor e vi que não faria mal nenhum dizer a ele o
37
que se passava. Não é como se ele fosse sair por aí
contando pra alguém. Quem se interessaria, afinal?
Então eu me sentei, e o ouvi sentando-se
numa cadeira na fileira logo atrás de mim. Respirei
fundo e comecei a contar a história sem sentido
que o meu namoro com Pablo havia se tornado.
Quando terminei, tudo parecia menor e mais
irreal pra mim. Pablo, meu sofrimento, tudo o que
eu passara para proteger seus sentimentos, tudo
tinha se tornado repentinamente patético. E eu me
senti completamente exposta e boba, como se fosse
uma guriazinha confessando uma brincadeira de
mal gosto a um estranho completo. O silêncio que
se seguiu só confirmou as minhas expectativas. Eu
tinha a sensação de que o meu amigo misterioso ia
começar a rir a qualquer instante.
Mas ao invés disso, ele bufou.
- Deve ter sido complicado. – ele disse –
Quero dizer, o cara... qual é mesmo o nome dele?
- Pablo. – respondi, segurando um riso que
eu nem sabia de onde tinha vindo.
- Esse Pablo não facilitou nada pra você. Ele
parece bem chato.
- Ele é uma boa pessoa.
- Um chato... – eu ri quando ele falou, e
então completei.
- Mas ainda assim uma boa pessoa. –
suspirei – Muito bem, eu já te dei as minhas
razões. Vai me dar as suas?
- Ahn, sim e não.
Franzi o cenho. Ele pareceu ter visto, e pude
jurar ver um pedaço de sorriso se espalhando pelo
seu rosto obscurecido.
- O que isso quer dizer? – perguntei.
- Quer dizer que eu vou te dar uma razão,
mas que você não vai acreditar nela. – respondeu-
me. Eu dei de ombros, sem ter certeza de que ele
podia ver.
38
- Não custa tentar.
Houve uma pausa, então. Ouvi um barulho,
mas me mantive parada, com medo de saber de
onde vinha, sem saber se devia ou não seguir seus
movimentos com meus olhos.
- Eu vivo aqui. – o ouvi dizer, enfim.
E o meu riso saiu meio engasgado,
descrente.
- Você o quê? – indaguei, ainda rindo – Ah,
fala sério! Me diga a verdade.
- Essa é a verdade! – insistiu – Eu sou
assombro esse lugar. Nunca te contaram do
fantasma do auditório?
- Fantasmas não deveriam ser espectros? –
desafiei. Ele riu, e logo vi que estava bem diante de
mim.
- Como você tem tanta certeza de que eu sou
sólido?
- Porque eu...
Então estiquei a mão e o toquei.
Fui de encontro a um antebraço nu, liso, e
surpreendentemente quente. Talvez eu estivesse
gelada, mas definitivamente me parecia que ele
estava em chamas. Eu ia dizer “porque eu consigo
sentir quando você se move”, mas agora isso já não
fazia o menor sentido pra mim.
De repente, ele tirou seu braço de perto de
mim, e ficamos nos encarando por longos
segundos. Então, sem mais nem menos, a porta se
abriu e ele havia desaparecido.
Keyla me lançou olhares preocupados
durante toda a segunda aula, quando eu entrei. Ao
meu lado, o guri novo dormia em paz e
profundamente, incapaz de acordar nem mesmo se
o teto da escola de repente desabasse. Atrás de
mim, Pablo parecia tentar furar a minha nuca com
um olhar laser.
39
Mas me descobri tão incrivelmente
despreocupada quanto a tudo isso que a aula
passou rapidamente diante de mim. Eu não
prestava a menor atenção a nada. Tentava só
descobrir de onde eu conhecia aquela voz, onde eu
já poderia ter visto aqueles olhos, quem era
realmente o garoto que estava me deixando
maluca.
Como já era de se esperar, minha melhor
amiga me cercou na hora do intervalo.
- E ai, o que aconteceu? – ela perguntou.
Não tinha ares de curiosidade, apenas de pura
preocupação.
- Ele estava lá. – respondi, tentando não
demonstrar o quanto eu estava fervendo por dentro
– E nós conversamos bastante.
- Sobre o quê?
- Ele queria saber por que eu estava lá
ontem, então eu contei. – dei risada, então – E ele
tentou me convencer de que ele era o “fantasma do
auditório”.
Entre risos, olhei para Keyla. Sua testa
estava enrugada, e por um instante, achei que ela
acreditasse em fantasma. Então apenas ri de novo e
me convenci de que nem ela seria capaz de engolir
uma coisa dessas.
- Ele não te disse quem ele é? – Keyla me
perguntou, então. Eu mordi o lábio.
- Não. – bufei – Mas se serve de consolo, ele
também não sabe quem eu sou.
- Eu aposto como sabe. – murmurou. Eu
ergui uma sobrancelha.
- Como? – indaguei, embora tivesse ouvido
muito bem. Keyla torceu o nariz.
- Olha, você vai achar que eu estou
exagerando, mas esse guri... eu não sei, Laura.
Estou com uma sensação ruim sobre isso.
40
- Você e as suas sensações ruins! Não há do
que ter medo!
- Não é medo. É só que quando eu tenho
esses pressentimentos, eu geralmente estou certa
sobre eles. Você sabe disso.
- A velha história do “eu te disse”. –
suspirei. Keyla já havia me dado tantos conselhos
que eu ignorara erroneamente que não podia nem
mais contar. Numa coisa ela estava certa: ela nunca
errava quando se tratava de pressentimentos.
Mas por mais que ela me aconselhasse e
tentasse me proteger à sua maneira, eu nunca dava
ouvidos. Eu preferia errar e escutar o famoso “eu te
disse” do que deixar de fazer alguma coisa por
saber que ia dar errado. E nesse caso, era
praticamente a mesma coisa.
Exceto pelo fato de que eu não estava
apenas considerando a hipótese de que Keyla
estivesse certa. Alguma coisa dentro de mim me
dizia que ela estava coberta de razão e que eu ia
me dar muito mal caso não a escutasse. Um
instinto estranho que eu nunca sentira antes.
Mas eu simplesmente não podia parar. Então
apenas disse a Keyla que ia ficar tudo bem, que eu
ia repensar o assunto, e fiz de conta de que não
tinha sentido nada a respeito.
Na manhã seguinte, eu voltei.
Ele estava lá de novo. Dessa vez, ele estava
me esperando. Eu podia ouvir sua respiração
ritmada, e escutei seus passos lentos na minha
direção quando eu fechei a porta atrás de mim.
Seus olhos estavam fixos nos meus, e eu ainda
tremia quando chegava perto demais.
- Achei que você não viria hoje. – ele me
disse, calmamente. Meu rosto pareceu estar em
brasa.
41
- E eu achei que você não estaria aqui. –
afirmei em resposta, e ele sorriu, fazendo seus
dentes brancos brilharem no escuro.
- Eu estou sempre aqui. Eu te disse que sou
o fantasma do auditório.
- E eu já deixei bem claro que não vou
comprar essa história.
- Tudo bem, então.
O silêncio caiu sobre nós, então. A pergunta
que eu queria fazer estava na ponta da língua, mas
eu não conseguia fazer com que ela saísse.
- Você quer me perguntar alguma coisa. – o
guri sugeriu. Eu sorri, surpresa pelo modo como
ele parecia ter lido a minha mente.
- Eu quero. – confirmei, e hesitei de novo.
Respirei fundo, e então continuei – Eu conheço
você? Fora daqui, quero dizer.
- Você me vê todos os dias. – respondeu-me,
me deixando ainda mais confusa.
- Nós já nos falamos alguma vez?
- Hm... – ele pensou um pouco – Não
diretamente, eu acho. Mas tenho certeza de que
você já escutou a minha voz.
- Isso não ajuda em nada.
Ele riu.
- Nós só nos conhecemos há três dias, e você
já quer ver o meu rosto. – ele comentou, como se o
meu desejo fosse algo extremamente absurdo. Eu
dei um risinho sarcástico.
- Nós não nos conhecemos, esse é todo o
ponto. – contrapus. Ele riu.
- O que muda se você não souber quem eu
sou?
- O que muda se eu souber? – cruzei os
braços – Eu já te falei sobre problemas meus e nem
sei o seu nome ainda.
- São meros detalhes...
42
- Por que você não quer que eu te conheça
de verdade?
A pergunta pairou no ar. Eu o ouvia respirar
e estava consciente de que minha mão pairava a
poucos centímetros da sua pele, já sentindo o calor
e ansiando por tocá-lo. Por fim, ele me deu as
costas.
- Por motivo nenhum. – ele disse, então.
Virou-se de novo e me olhou tão profundamente
que parecia enxergar minha alma – Então...
O sinal tocou, anunciando a primeira aula.
Ele pareceu sorrir.
- Não queremos perder uma aula, não é? –
ele começou a se afastar em direção à porta – Me
encontre na frente da sua sala durante o intervalo.
Ele se foi antes que eu pudesse responder.
Eu me sentia tão tensa que nem reparei
direito que o guri novo estava acordado pela
primeira vez em todas aquelas semanas de aula. Eu
só podia ver a cabeça dele e a sua óbvia falta de
sensibilidade para o clima – embora estivesse
fazendo apenas treze graus naquela manhã, ele
estava de camiseta e bermuda.
Teimando comigo, o tempo custou a passar.
Cada uma das três aulas que precediam o intervalo
pareceram durar milênios, e eu não conseguia
evitar olhar o relógio de cinco em cinco minutos,
exatamente. Nenhuma matéria conseguia prender a
minha atenção, não importava o quão totalmente
necessária ela fosse. Minha mente estava em outro
lugar.
E cada vez que eu pensava nisso, meu corpo
tremia. Tremia porque eu queria ver seu rosto,
completar o enigma que seus olhos e seu sorriso
haviam formado na minha mente. Eu queria saber
que ele era real, palpável, que estava ao meu
alcance, que nada daquilo tinha sido imaginado.
43
Quando o sinal tocou para, finalmente,
anunciar o intervalo, meu coração martelava tão
forte que achei que alguém poderia ver meu peito
se mexendo ao ritmo dos batimentos. Keyla me
olhou, mas entendeu quando eu lhe lancei o olhar
de “depois eu te conto”, indo embora logo em
seguida.
Esperei até que a sala estivesse totalmente
vazia pra sair. Eu não fazia idéia do que esperar do
lado de fora. Não sabia se era um rosto conhecido
que me aguardava, ou se apenas uma grande
decepção. Mas em três dias, que grande imagem eu
poderia ter criado sobre ele? Não havia como se
decepcionar com alguém que você mal conhecia.
Hesitei já na porta da sala, com aquele
instinto protetor ridículo soando na minha cabeça
como se fosse um apito, alto e claro. Ele não queria
que eu saísse. Queria que eu ficasse ali dentro e
não descobrisse quem o guri era, porque isso me
traria problemas.
Mas eu o tinha ignorado antes. Podia fazer o
mesmo agora.
Abri a porta e saí.
Apoiado na parede oposta à porta da minha
sala, estava ele, com seu cabelo escuro, a pele
intensamente morena e a cabeça baixa, apenas de
camiseta e bermuda.
Capítulo 3
Então era ele.
Três dias intrigada com um mistério para, no
final das contas, ser ele. O guri novo. O mesmo
44
guri que nunca acordava durante aula nenhuma e
que havia me forçado a terminar com o Pablo no
momento e de forma errada.
Por dentro, eu estava borbulhando de raiva,
enquanto eu ia até ele e parava em sua frente. Ele
não ergueu a cabeça, mas eu sabia que ele estava
me olhando, de certo modo. Já àquela distância eu
conseguia sentir o calor que vinha dele, e fiquei
transtornada por isso ter me causado arrepios
quando o que eu queria mesmo era dizer umas
boas verdades a ele.
- É você então? – foi o que eu disse, soando
mais estridente do que eu gostaria.
Ele respirou fundo e se ajeitou. Quando se
desencostou da parede e arrumou sua postura, a
primeira coisa que eu percebi era que ele era alto –
bem alto. Tipo um metro e uns bons 90
centímetros. Alto o suficiente pra fazer com que
eu, nos meus 1,68 metros me sentisse uma anã.
E a segunda coisa que eu não pude deixar de
notar foi o seu rosto. Os olhos e os traços que eu
vira no escuro estavam ali, e agora que o enigma
do seu rosto estava completo, eu estava sem ar. Ele
era lindo, de um jeito único e perigoso. Os olhos
eram pequenos, estreitos, a testa parecia
constantemente enrugada como se ele sempre
tivesse algo em mente, a boca não era nem fina
nem larga demais.
- Sou eu. – ele disse. Sua voz me causou
ondas de arrepios inexplicáveis e eu tive que
desviar o olhar porque simplesmente não estava
agüentando.
O que eu estava pensando mesmo? Antes de
encarar o rosto dele, quero dizer. Eu não conseguia
mais me lembrar.
- Você... – fechei os olhos com força e lhe
dei as costas, esperando que isso aliviasse a
45
confusão na minha cabeça de alguma maneira –
Você... é o cara novo da minha sala!
- Sou. – ele respondeu, apenas.
- E você é o mesmo cara que contou pro
Pablo onde eu estava e me forçou a terminar com
ele! – concluí, como se tivesse descoberto a
América. Então eu dei risada, ainda sem me virar –
E eu me abrindo com você, reclamando disso pra
você.
Ele não respondeu. Quando achei que ele
tivesse ficado sem palavras, me virei de novo para
encará-lo. Ele parecia confuso, e havia cruzado
dois braços enormes na altura do peito.
- Eu achei que estivesse te ajudando. – falou,
pensativo.
- Você é um hipócrita! – exclamei, sem
poder acreditar como cabia tanto cinismo em
alguém tão bonito – Sabia de tudo, sabia quem eu
era o tempo todo e ainda assim fez de conta que
não sabia de nada. É por sua causa que eu estava
chorando naquele dia.
- Achei que fosse por causa do Pablo.
- Argh!
Avancei nele, mas ele não se moveu. Desisti
logo em seguida, vermelha de raiva e de vergonha.
Bufando, sai de perto dele e entrei no banheiro
feminino.
Abri a torneira e molhei o rosto com as
mãos, a fim de tirar um pouco da vermelhidão.
Quando olhei no espelho, ele estava atrás de mim.
- O que você está fazendo aqui? – perguntei,
assustada e me virando – Não pode entrar aqui, é o
banheiro das meninas!
- Ah. – fez, parecendo só então perceber -
Desculpe.
Na hora, ele saiu, mas ficou parado na porta,
um pé dentro e um pé fora.
46
- O que é um hipócrita? – ele perguntou de
lá. Eu franzi cenho.
- Um guri que diz uma coisa e faz outra. –
respondi, sem ter certeza se aquele era o real
significado da palavra. Eu nem sabia de onde havia
tirado aquilo quando resolvi xingá-lo.
- Certo. Então... me desculpe por ser um
hipócrita.
Olhei pra ele, sem acreditar no que havia
escutado. Parecia quase ensaiado, e ainda assim
meio que de coração. Aquilo me deu a sensação de
que ele estava se esforçando muito pra dizer
aquelas palavras.
- Ta. Tudo bem. – respirei fundo – Pode...
ah... me esperar lá fora?
Ele assentiu e foi. Fiquei olhando enquanto
ele sumia, sem saber o que fazer, presa ao chão e
ao que acabara de acontecer.
Naquele momento, tudo o que eu queria era
Keyla. Queria que ela se materializasse de repente
na porta do banheiro e me dissesse o que fazer,
porque eu mesma não sabia. Tudo aquilo tinha me
pegado tão de surpresa que minhas emoções e
meus pensamentos estavam misturados num bolo
irreconhecível, e se ela não viesse conversar
comigo, eu...
- Laura?
Quando ela me chamou, levei um susto tão
grande que gritei e pulei pra trás. Então vi Keyla
parada na porta, me olhando com uma preocupação
tão típica dela que não me surpreendia que ela
tivesse simplesmente adivinhado que eu estava
precisando. Quando conseguia respirar, fui até ela
e a puxei pelo braço para dentro do banheiro.
- Eu descobri quem ele é. – falei, de repente,
e Keyla pareceu ainda mais preocupada e até um
pouco assustada.
- E aí? – indagou. Eu respirei fundo de novo.
47
- E aí que ele é o guri novo, Keyla. –
respondi, dando risada de mim mesma sem nem
saber por que – E ele é absurdamente bonito.
- Não é a toa que eu estava tão cismada. Era
a mesma coisa que eu sentia quando olhava pra ele.
- Você é cismada com tudo, Keyla.
- Não, Laura, é diferente. E você sabe que eu
não estou errada. No fundo, você sabe.
Olhei pra ela, série, então. Keyla procurava
no meu rosto a confirmação para as suas certezas, a
certeza de que eu estava tão cismada com ele
quanto ela própria. E embora eu soubesse que ela
estava certa, embora cada pedacinho racional do
meu cérebro gritasse pra eu pular fora, o que eu fiz
a seguir foi bem diferente.
- Não há nada com o que se preocupar. –
declarei, fingindo um ar de despreocupação que
não combinava com o que no fundo eu sentia –
Não há nada de errado com ele. Ele é só...
- Um tremendo enigma! – Keyla revirou os
olhos – Laura, você sequer sabe o nome dele? Sabe
de onde ele vem, como ele chegou aqui?
- Eu o conheço a três dias e acabei de vê-lo
pela primeira vez! – justifiquei, ainda que as
perguntas que ela me fizera fossem as mesmas que
eu fazia a mim mesma no fundo da minha mente –
Eu vou descobrir assim que sair daqui e ir falar
com ele.
- Laura, por favor. – Keyla me deteve
enquanto eu tentava sair, me olhando de um jeito
tão profundo que me fazia querer gritar pra ela o
que eu estava realmente sentindo e pensando –
Quantas vezes eu já estive errada?
Mas, pela primeira vez desde sempre, eu
ignorei a vontade de soltar a verdade e apenas
balancei a cabeça, dizendo:
- Pra tudo tem uma primeira vez.
48
Sai do banheiro e deixei minha melhor
amiga falando sozinha. De algum modo, escutar as
verdades de Keyla me limpara a mente de modo
totalmente contrário. No fundo, eu esperava
desistir. Esperava voltar atrás e simplesmente
abandonar a idéia de falar com ele, saber mais,
mesmo sem fazer a menor idéia do que eu estava
procurando ou no que eu estava me metendo.
Contudo, o que eu conseguira fora apenas vontade
para dar as costas aos conselhos e ignorar meus
instintos indo atrás do perigo.
Então porque ainda que parecesse tão
errado, aquilo me fazia sentir tão bem?
Enquanto chegava ao pátio, me lembrei de
que Bella não havia desistido de descobrir o
mistério por trás de Edward só porque ele parecia
relutante em ceder. Afinal, se ela nunca tivesse
corrido atrás e descoberto tudo, não haveria
história a ser contada.
Foi pensando nisso que fui de encontro a ele
num canto que todo mundo parecia evitar. Como
antes, ele estava apoiado numa parece, de cabeça
baixa. Meu corpo pareceu entrar em curto-circuito
só de lembrar da visão do seu rosto.
Parei em frente a ele e fiquei em silêncio,
com o corpo tão rígido que chegava a doer. Esperei
até que ele me olhasse e me dirigisse a palavra,
primeiro porque eu não sabia o que falar e,
segundo, porque não conseguia sequer abrir a
boca.
Quando ele ergueu a cabeça, seus olhos
encontraram os meus por um átimo de segundo
antes que ele desviasse o olhar de modo
desinteressando para outra direção. Naquele
milésimo de segundo, pude jurar ver alguma coisa
ali, no fundo dos seus olhos, inundando sua íris
com uma luz obscura por um breve instante, para
então desaparecer.
49
Ele me pegou de surpresa quando limpou a
garganta, olhando para algum ponto além de mim,
e disse:
- Então...
Meu coração acelerou e eu olhei pra trás,
procurando o foco da sua atenção. Além de todos
os alunos e seus rostos conhecidos, pude
facilmente identificar o rosto cheio de preocupação
de Keyla, nos observando do outro lado do pátio,
com a testa enrugada e os braços cruzados. Quando
voltei a olhá-lo, ele parecia curioso.
- Quem é aquela que está olhando com uma
cara estranha pra cá? – quis saber. Senti um
momento de vergonha por admitir que ela estava
nos observando como uma forma de proteção
bizarra típica dela; Keyla fazia exatamente a
mesma coisa comigo e Pablo nos meses em que
havíamos namorado, embora de maneira mais sutil.
- Uma amiga. – respondi, vagamente, como
se não houvesse nada de interessante no fato de ela
estar realmente nos encarando sem parar –
Mudando de assunto...
Ele então me olhou. Parecia que era a
primeira vez que realmente o fazia, como se não
tivesse percebido que eu estava ali antes, falando
com ele, ou mesmo como se nunca tivesse me visto
na vida. Isso me fez ter vontade de estalar meus
dedos na frente dele e dizer “alô, lembra de mim?”
Ao invés disso, eu apenas sustentei o seu
olhar e prossegui:
- Eu te desculpo. Por essa bagunça toda,
sabe? E me desculpe por ter te chamado de
hipócrita.
- Não tem problema. – ele concordou, com
um breve sorriso de tirar o fôlego. Notei que, mais
uma vez, ele lançou os olhos para o ponto onde eu
sabia que Keyla se encontrava, e eu me detive de
acompanhar seu olhar outra vez.
50
- Na verdade, eu nem sei direito o que
significa. – afirmei, sem saber que outra coisa
dizer.
Só aí ele finalmente olhou pra mim. Digo,
olhou, de verdade, como costumava fazer quando
estávamos no auditório. Olhou de um jeito tão
intenso e curioso que os cantos da sua boca
subiram num sorriso que ia e vinha como se tivesse
vontade própria. Meu coração disparou outra vez e
senti que ia ter um ataque cardíaco se não
respirasse fundo.
- Você é estranha. – declarou, com um jeito
de quem saboreia a palavra. Pelo que dava pra
perceber, ser estranha era algo muito bom na
concepção dele – Não era bem o que eu esperava.
– completou.
- Não? – me ouvi dizendo, com um sorriso
incontrolável se abrindo – E o que você estava
esperando?
Então o sinal tocou e o intervalo acabou. Os
alunos começaram a se espalhar no seu trajeto para
suas respectivas salas de aula, e tudo o que eu
tinha, então, era o seu olhar tão fixo no meu que
parecia colado com Super Bonder. Mas ele nada
me disse. Apenas deixou seu sorriso e seus olhos
misteriosos me encararem por mais um instante
antes de me dar um pequeno aceno de cabeça e
começar a andar em direção à sala.
Cheguei em casa com um misto de excitação
e frustração que me fizeram jogar as coisas no sofá
da sala e deitar de barriga pra baixo, afundando o
rosto numa das almofadas.
Depois de vários minutos inerte, decidi que
precisava fazer alguma coisa útil. Me estiquei e
peguei meu Crepúsculo, abrindo-o na página e
localizando rapidamente o trecho em que eu
top related