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AS CADEIAS DA HUMANIDADE SÃO FEITAS DE PAPEL O testemunho da ditadura civil-militar no romance K.
por LUCIANE MARIA SAID ANDERSSON
aluna do curso de Doutorado em Literatura Comparada (Programa de Ciência da Literatura)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura Comparada. Orientador: João Camillo Penna
Faculdade de Letras da UFRJ Dezembro de 2014
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Luciane Maria Said Andersson AS CADEIAS DA HUMANIDADE SÃO FEITAS DE PAPEL O testemunho da ditadura civil-militar no romance K.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura Comparada. Orientador: João Camillo Penna
Banca examinadora: __________________________________________ Prof. Dr. João Camillo Penna (orientador) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ____________________________________________ Prof. Dr. Jaime Ginzburg Universidade de São Paulo (USP) _____________________________________________ Prof. Dra. Flavia Trocoli Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _____________________________________________ Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) _____________________________________________ Prof. Dra. Rosana Kohl Bines Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) _______________________________________ Ricardo Pinto de Souza Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Suplente ______________________________________________ Paulo Roberto Tonani do Patrocínio Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Suplente
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CIP -‐ Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Said Andersson, Luciane Maria
S543c As cadeias da humanidade são feitas de papel - O testemunho da ditadura civil-militar no romance K. / Luciane Maria Said Andersson. -- Rio de Janeiro, 2014. 204 f.
Orientador: João Camillo Penna. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós Graduação em Ciência da Literatura, 2014.
1. Literatura Comparada. 2. Literatura
Brasileira Contemporânea. 3. Memória. 4. Testemunho. 5. Ditadura civil-militar. I. Penna, João Camillo, orient. II. Título.
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Dedico esta tese à memória das vítimas da violência estatal brasileira.
Para você, Olie.
Obrigada por sempre me resgatar quando desapareço em mim.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, devo agradecer a João Camillo Penna pela orientação
cuidadosa, pela paciência, pelo carinho, e por, em diversos momentos, extravasar o
papel de orientador e abraçar o de amigo. Muito obrigada. Ao Olie, que foi e é meu
companheiro inseparável, e, durante esses anos, foi meu cozinheiro, meu
conselheiro, meu amigo, e sem o qual esse percurso não teria sido concluído. Devo
essa pesquisa a ele. Ao CNPQ, pelo auxílio financeiro para que eu pudesse me
dedicar aos estudos e ainda comprar os necessários livros e mais livros e mais livros.
As contribuições críticas de Rosana Kohl Bines e Jaime Ginzburg na banca de
qualificação foram imprescindíveis para a conclusão desse trabalho. Devo aos dois
professores a mudança de caminho e a forma “final” da pesquisa. Devo também aos
inteligentes e lúcidos comentários de Luanna Belmont a versão “final” do texto.
Minha irmã Rosane foi quem, durante todo o processo, apesar de tão longe, esteve
comigo todos os dias, segurando virtualmente na minha mão. Um beijo. Eliane,
sempre. Outro beijo. Aos meus pais pelo amor e pela torcida. Ao Dr. Francisco por
catar e colar os meus cacos. E a todos que, nesses anos, foram obrigados a me ouvir
falando sobre a tese, a tese, a tese. Meus agradecimentos e meu brinde.
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“O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestí-gio da própria imagem - então percebeu o seu mistério. Para isso há de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha. Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito. E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro - e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante - nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.”
Clarice Lispector
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RESUMO
A tese tem por objetivo analisar a tensão entre literatura e testemunho que
move o romance K., de Bernardo Kucinski. A contribuição original da pesquisa é
demonstrar a maneira como o autor construiu um relato a partir da ausência da cena
central do romance: o desaparecimento. A partir desta hipótese, trata-se de
investigar as implicações éticas suscitadas pela utilização da ausência como metáfora
da representação em um relato tardio sobre uma cena inexistente, com a finalidade
de representar aquilo que não se dá à representação ou não se quer representado.
A tese investiga a maneira com que a ficção testemunhal de Bernardo
Kucinski, K., resgata e apresenta através da ficção o passado de um país afogado no
estado de exceção e no trauma. A hipótese defendida pela tese é a de que a ficção
tem embutida nela a possibilidade de testemunho, assim como, por outro lado, todo
testemunho jurídico tem implícito nele a possibilidade do perjúrio e da mentira, ou
seja, de ficção.
Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea; Memória; Testemunho;
Ditadura civil-militar.
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ABSTRACT
The thesis intends to analyse the tension between literature and testimony
that drives the novel K., by Bernardo Kucinski. The original contribution of this
research is to show how the author weaved the narrative around the novel’s missing
central piece of: the disappearance. Drawing from this hypothesis, the point of the
research is to investigate the ethical implications raised by the use of absence as a
metaphor of representation in a belated narrative about a non-existing scene, with
the goal of representing what cannot or will not allow itself to be represented.
The thesis investigates how the fictional testimony by Bernardo Kucinski, K.,
salvages and presents, through fiction, the past of a country taken over by state of
exception and trauma.
The hypothesis argued by the thesis is that fiction has an intrinsic possibility of
testimony, in the same way as, on the other hand, every juridical testimony contains
the possibility of perjury and lies, that is, of fiction.
Keywords: Brazilian contemporary literature; Memory; Testimony; Civil-Military
dictatorship.
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Sumário
• Introdução 10 A ficção testemunhal... 1. K., um retrato em ausência 19 1.1. Estrutura 25 1.2. A ausência em cena 36 1.3. Inventário de perdas da perda de uma vida 41 1.3.1 “As cartas à destinatária inexistente” 46 1.4. Cartas 58 1.5. A literatura como caminho 62 1.6. Não há fatos, apenas interpretações 70 2. Desmontando K. 81 2.1. Futuro do pretérito 81 2.2. Alice – não mais que de repente 83 2.3. A culpa em K. 99 3. K. e Kafka 102 3.1. Prismas de K. 102 3.1.1. O processo 104 4. K., sujeito fragmentado 132 4.1.Continuum trágico 137 4.2. O despertar 143 5. Dissecando K. 146 6. Considerações finais 183 7. Referências 187
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Introdução
O tema desta tese está sintetizado em seu próprio título: “As cadeias da
humanidade torturada são feitas de papel” 1 – O testemunho da ditadura civil-militar
no romance K.
Consideremos, em primeiro lugar, a seguinte hipótese: todo testemunho
jurídico tem implícito nele a possibilidade do perjúrio e da mentira, ou seja, de
ficção; e por outro lado, toda ficção tem embutida nela a possibilidade de
testemunho. Apoiando-me nesta lógica, pretendo ler K. como ficção que é também
testemunho – uma ficção testemunhal.
Portanto, partindo desta premissa, investigarei nesta tese os traços ficcionais
do testemunho (ou os traços do testemunho) na obra de Bernardo Kucinski, e em
especial no romance K. Para tanto, recorrerei ainda à primeira novela escrita pelo
autor, “Alice – não mais que de repente”, e ao seu último livro de contos, Você vai
voltar para mim. Alguns outros textos escritos a partir da experiência da ditadura
civil-militar brasileira, contexto maior em que se insere a pesquisa, também serão
revistos, quais sejam: Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, e Em câmera
lenta, de Renato Tapajós2.
A esta leitura, mais focada nos pontos ficcionais do testemunho, somaremos
outra, a política, que muito me interessa, e que não poderia ficar de fora. É claro que
entendo que o romance de Kucinski não produz discursos, tampouco pretende-se ou
apresenta-se como panfleto ideológico. Porém sua matriz é o desaparecimento de
sua irmã, Ana Rosa, e de seu cunhado, Wilson Silva, durante a ditadura civil-militar
brasileira. A origem da trama é justamente o estado de exceção pelo qual passava o
país, momento que define a trama e a vida das personagens. Ou momento que
1 Franz Kafka, citado em Conversas com Kafka, Gustav Januch. Apud LOWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 14. 2 KUCINSKI, Bernardo. K. São Paulo: Expressão Popular ed., 2a ed, 2012; SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988; TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 2a ed., 1979.
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define a história e a vida dos familiares do autor, os quais se encontram
desaparecidos até os dias de hoje, desde 1974.
Vale lembrar que o desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa, e de seu
cunhado, Wilson Silva, durante a ditadura civil-militar brasileira, se deve ao fato de
os dois fazerem oposição ao regime. A disputa ideológica, portanto, é a mola do
conflito. Então, bloquear os ecos ideológicos de esquerda seria aceitar e curvar-se à
falsa polêmica sobre a vontade de persuasão do texto, porque sabemos que todo
texto quer persuadir, angariar, atrair o leitor para a sua trincheira, mesmo os que
não são eminentemente políticos. A questão que se coloca não pode ser centrada na
tendência ideológica e nos seus possíveis usos e/ou abusos. Menos ainda se há, por
ter-se escolhido a ficção, nessa escolha uma tentativa de isenção de
responsabilidade sobre o relato. A questão central é a responsabilidade do autor para
com a memória e a história de sua família, que foi despedaçada por uma contenda
ideológica; logo, desnudar a sombra do texto, a sua ideologia, é uma questão ética,
de compromisso com os (seus) mortos.
É através da memória pessoal que a memória histórica é construída no
romance, e essa desembocadura o insere no combate contra o esquecimento
(pessoal e histórico) e o lança no centro da discussão sobre a disputa da verdade da
memória – um problema que talvez tenha sido amenizado no início do livro, em uma
carta endereçada ao leitor. Na sua primeira linha, o autor avisa que “tudo neste livro
é invenção, mas quase tudo aconteceu”, o que nos leva a pensar a relação entre
história, memória e invenção. E o esquecimento, núcleo da trama. Sim, porque a luta
de K., protagonista do romance, contra o vazio, a ausência deixada pelo
desaparecimento de sua filha, é também a luta contra o abismo do esquecimento e
da negação dos fatos. A luta, representada pela busca, revela a essência de K.: um
romance sobre ausências, em ausência, em busca da ausência, para provar a
existência e explicar e aplacar a ausência.
O desaparecimento da filha de K. associa, na literatura de Kucinski, o Estado
autoritário à ausência – o que pode ser considerado como marca de sua temática,
levando em consideração que ditadura é ausência. Ausência de liberdades, de
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direitos, de um ser autônomo, de sentido. A partir disso, e por isso, ele faz da
ausência o combustível narrativo, a estrutura e os personagens principais de sua
obra. Para os personagens “presentes”, na obra, a ausência é o ditame, o impulso
para seguir em frente e continuar na busca, algo que faz sentido, em meio a tudo
mais ter perdido sentido. A ausência faz a obra de Kucinski ser tão marcante, pois
ela suscita mais dúvidas do que oferece respostas e, ironicamente, faz com que,
como literatura, o romance repouse no campo ideal, onde não pode e não quer ser
comprovado, como relato, no terreno perfeito, onde, se comprovado ou desafiado,
alcança seu objetivo de testemunho, de relato.
Essa falta é sentida já no título K.: uma letra, vestígio de um nome partido, do
sujeito fragmentado, que nos compele a continuar imaginando o que falta e
perseguindo essa ausência junto com o personagem principal. K., o título, sugere a
ausência como ponto de partida, estratégia narrativa e estética de criação
verbal/literária. Diz Umberto Eco que um título é, infelizmente, uma chave
interpretativa. Eco incomoda-se com a condução do olhar e a força sugestiva dos
títulos, portanto, para ele “[o]s títulos mais respeitosos para com o leitor são os que
se reduzem ao nome do herói epônimo (...), mas até mesmo essa referência ao
epônimo pode constituir ingerência indevida por parte do autor” 3 . Na obra de
Kucinski, a ingerência nos títulos obedece à análoga forma de produção de sentidos
do romance. Produção de sentidos entendida aqui na esteira proposta por Bakhtin,
como aquilo que responde a uma pergunta.
E pode-se dizer que a pergunta central do livro revolve em torno do que
aconteceu com a filha de K. e, por extensão, com seu marido. Uma pergunta que
não será respondida pois sua resposta encontra-se no abismo criado pelo estado de
exceção, no buraco, na falta. Essa falta que indica a impossibilidade da narrativa (ou
o fracasso) não é assumida como elemento essencial da construção, mas sim como
estratégia estruturante, que se autocorrói e autodescentra, dissolvendo-se e
deslocando-se até a desconstrução da narrativa única e totalizadora.
A negação de uma narrativa totalizadora, que tome para si a palavra e a
3 ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 8.
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apresente como palavra testemunhal, credível, incapaz de carregar inverdades e
acima de quaisquer dúvidas. Em lugar disso, assume o vácuo da ausência e a
construção da narrativa com vistas apenas à pretensão de verdade. A tensão do já
tensionado terreno da ficção e do testemunho é intensificada.
Essa tensão está exposta na citada “Carta ao leitor”. O aviso de Kucinski de
que tudo é invenção, mas quase tudo aconteceu, ameniza, porém não encerra a
problemática relação ficção-testemunho. A tensão se revela na dicotomia óbvia e
fácil entre a “verdade” objetiva, jurídica, dos fatos (testemunho) e uma criação,
invenção ou ficção. Essa falsa oposição fica evidente se considerarmos o testemunho
como relato factual, registro, documento (seja ele escrito ou oral), e a ficção como
fingimento. Mas a definição dicionarizada do testemunho é sobrepujada quando
alargamos seu alcance e seu sentido e pousamos na sua potência subjetiva,
sobretudo daquele que tenta dar conta de um trauma passado, de revelar uma
verdade particular de experiências vividas, de sofrimentos individuais que, de modo
geral, são compartilhados com outros sujeitos, atingindo uma dimensão coletiva. O
testemunho, portanto, oscila entre a objetividade dos fatos e a subjetividade da
interpretação de uma experiência traumática. Em geral, o testemunho é elaborado
por uma testemunha que, por excelência, viveu a experiência que narra, porém não
a viveu integralmente. Ela, a testemunha, depara-se com a primeira impossibilidade:
testemunhar aquilo que não viveu em sua completude. Falar pelos que morreram e
por aqueles que voltaram em silêncio. Ela é uma superstes4, uma sobrevivente. Há,
além da testemunha sobrevivente/vítima, a que presencia, vê, é testemunha ocular
do evento, sem necessariamente ser parte dele. Ela é um terstis - que,
etimologicamente, segundo Émile Benveniste, é aquela que assiste como um terceiro
(terstis) a um caso em que dois personagens estão envolvidos. Um texto sânscrito
enuncia: “todas as vezes que duas pessoas estão presentes Mitra é por natureza a
‘testemunha’”5. Quer dizer, Mitra será aquela que oferecerá, caso necessário, a prova
testemunhal. Completando o quadro, as “testemunhas solidárias”, identificadas por
4 Nas palavras de Benveniste, superstes é aquele que sobreviveu a uma desgraça ou à morte, passou por um acontecimento qualquer e subsistiu muito mais além desse acontecimento. Ele foi, portanto, “testemunha” de tal fato. BENVENISTE, Emile. O vocabulário das instituições indo-europeias. Vol II. Poder, Direito, Religião. Campinas: Unicamp, 1995, p. 277-278. 5 Ibidem.
14
Jeanne Marie Gagnebin. Vejamos:
Testemunha não é somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha é aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.6
Bernardo Kucinski, de acordo com a definição de testemunha apresentada
acima, é ao mesmo tempo terstis e superstes, é espectador da busca empreendida
por seu pai, Meir Kucinski, para encontrar sua irmã, e sobrevivente da ditadura civil-
militar7. No romance, ouvimos sua voz reverberar, principalmente, na do narrador,
onisciente, onipresente, que partilha a narração da busca com outra testemunha,
que apresenta um outro ponto de vista: seu pai, um outro terstis e superstes,
representado na figura de K. Tanto o pai quanto K. são sobreviventes de uma outra
catástrofe, a Shoah. Portanto, K., o romance, é ficção testemunhal em camadas, em
diferentes graus e perspectivas.
A obra de Kucinski não apenas questiona a abrangência e a constituição das
fronteiras (literária, descritiva, ficcional), mas as dissolve, assumindo para o leitor
que não existe escrita, narração, reflexão sem a ajuda da imaginação. O que o autor
está (re)produzindo é um mundo que existe fora do livro, um mundo que foi “real”,
cujo acesso é pela memória, a qual é também um tipo de manifestação da
imaginação. “Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, sublinha o
autor. Eis a razão pela qual não se pode desmerecer a ficção como recurso para o
testemunho: porque o testemunho é o do quase, do que não se viveu, mas foi
vivido, em toda a sua intensidade iminente. E o quase é também uma verdade, ou,
pelo menos, a verdade mais próxima da verdade, a qual alguém que sobreviveu
6 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 57. 7 Bernardo Kucinski foi militante estudantil enquanto cursava Física na Universidade de São Paulo (USP), nos anos 60. Em 1970, foi morar na Inglaterra depois de ter participado do mapeamento da tortura no Brasil, que foi publicado em duas reportagens na revista Veja. Morou na Inglaterra por quatro anos e retornou ao Brasil em 1974, ano do desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa.
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pode nos contar, e pode saber. Por isso, Kucinski conta o que sabe e o que o leitor
não sabe; mas deixa para o alter ego de seu pai contar aquilo que ele, Bernardo, não
sabe, e que K. está procurando saber, e que o leitor também não sabe. Dizendo de
outro modo, Kucinski, através do narrador, é testemunha da busca do pai pela irmã
e da devastação que o desaparecimento dela causou nele, no pai, e na família por
gerações, porque a desgraça é hereditária e essa é a herança deixada pelos
militares. Bernardo oferece o testemunho da tragédia pessoal, histórica e da saga do
pai, deixando para K. (alter ego de Meir) a missão de relatar a vida, a trajetória e o
sumiço de sua filha (alter ego de Ana Rosa) e de seu marido (alter ego de Wilson
Silva). O imbricamento desses dois olhares, as diferentes perspectivas e as múltiplas
vozes que compõem o romance possibilitam uma visão ampla e multifacetada da
história. E aqui compartilho com Derrida a noção de que da junção de várias vozes e
dos relatos ficcional e “real” emerge o verdadeiro testemunho: “a possibilidade da
ficção literária assombra o chamado testemunho verdadeiro, responsável, sério, real,
como a sua possibilidade adequada...”8
Em resumo, neste trabalho, investigo a maneira como a ficção testemunhal,
em especial na obra K., de Bernardo Kucinski, resgata e apresenta, através da ficção,
o passado de um país afogado no estado de exceção e no trauma, consequência das
ações arbitrárias desse mesmo estado. Ademais focamos nosso olhar crítico na
estratégia narrativa de assumir a ausência como representação, ou melhor, na
assunção do fracasso da narrativa a partir da incorporação do vácuo deixado pela
impossibilidade de representação, já que não há “nada” a ser representado. Em
outras palavras, focamos na construção da narrativa a partir da anulação da “cena
central” do romance: o desaparecimento da filha de K.
O método de leitura que faremos é duplo: político e estético. À luz da teoria
de Jacques Derrida, desenvolvida a partir da obra de Maurice Blanchot, O instante da
minha morte, que resultou no livro Demeure: Fiction and Testimony, corroboramos a
ideia central da nossa pesquisa que é a da possibilidade do testemunho na ficção. Ou
8 Jacques Derrida: “The possibility of literary fiction haunts so-called truthful, responsible, serious, real testimony as its proper possibility... The testimony testifies to nothing less than the instant of an interruption of time and history, a second of interruption in which fiction and testimony find their common resource.” Ibidem, p. 73.
16
melhor: a única possibilidade do testemunho é pela ficção. Tal afirmação baseia-se
na noção de que a ficção seria o símbolo necessário, uma forma de reconstruir os
fatos históricos que já teriam sido exaustivamente explorados, desgastados,
distorcidos, sensacionalizados e/ou banalizados pelo senso comum, pela mídia, pelos
relatos policiais e pela própria literatura. Só a ficção devolveria ao personagem real a
autoridade, a autonomia e a autoria sobre os fatos de que participou, sem, para isso,
desprezar a verdade, porque a ficção recria, e assim recoloca o sujeito na posição
central da narrativa: de vítima impotente ou derrotada, de objeto da narrativa alheia,
a autor de sua própria história.
É importante ressaltar que o objeto do estudo é o romance K.. Em câmera
lenta, de Renato Tapajós, e Retrato calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, assim
como trechos de obras de Franz Kafka, a saber: O processo, O Castelo e A
metamorfose, não são centrais na pesquisa, mas servem de contraponto e/ou apoio.
Escolhemos ainda esta linha paralela de análise por entendermos que as obras de
Kafka, em especial as três escolhidas como referência para o nosso trabalho, de
alguma forma influenciam o romance de Kucinski, além de propiciarem a exposição,
na época da ditadura civil-militar, pela via ficcional, do que estava sendo silenciado
pela censura.
A tese foi estruturada de forma que as duas partes correspondentes aos dois
aspectos que a cercam – a sua textualidade, no que nela identifiquei como literatura,
e o testemunho, ou seja, a ficção e a teoria do testemunho – fossem integradas em
uma única parte dividida em cinco capítulos.
No primeiro capítulo, dediquei-me a esmiuçar a forma do texto e as vias
escolhidas pelo autor para enfrentar e dominar o impasse estético e ético
desencadeado pela narrativa testemunhal, e a viabilidade única desta pela ficção.
Um recuo ao passado e à primeira novela escrita por Bernardo Kucinski, no
segundo capítulo, fez-se necessário para entendermos como a ditadura civil-militar e
a memória pessoal influenciam toda a obra do autor e a possível tentativa de
“criação” de um tipo particular de leitor.
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No terceiro capítulo, a partir de uma análise comparativa livre de três livros de
Kafka com o romance K., apresento diversas possibilidades de leitura do texto, que
vai se amplificando e expandindo em inúmeras direções, seja por recuos e saltos
espaçotemporais, ou por referências e associações, ou por concessão de novo
sentido àquilo que se imaginava visto e sabido.
Em “K. sujeito fragmentado”, quarto capítulo da pesquisa, voltei ao passado
do autor e, de certa forma, do personagem principal, K., para não apenas entender
melhor os traços caracterizantes que o moldam/moldaram, mas principalmente
compreender a história da família Kucinski. Para tanto, não recorri a “documentos
biográficos”, mas sim à literatura de Meir Kucinski, pai do autor.
No quinto e último capítulo, “Dissecando K.”, faço uma análise mais detida de
cada fragmento do livro, focando na tensão entre testemunho e literatura, que, para
mim, é a dinâmica que modula o romance.
Por fim, é importante dizer que me inspirei na estrutura modular da obra para
construir a estrutura da tese. É também inspirada na dor e na história alheias que,
como leitora, realizo, oportunamente, meu projeto de pesquisa, a minha própria
pretensão, menos planejada antes e mais vivida durante, na pulsação de um desejo
comum de acertar contas com um passado que insiste em não passar.
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A ficção testemunhal...
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1. K., um retrato em ausência
E como eu queria que fosse considerada agradável a única coisa que faz alguém tremer, isto é, o calafrio metafísico, só me restava escolher (entre os modelos de trama) a mais metafísica e filosófica, o romance policial.
Umberto Eco
Quando Bernardo Kucinski publica seu romance-testemunho, K., em 2011, o
contexto histórico brasileiro, a ditadura civil-militar, que é o epicentro da trama, sofre
um pequeno abalo: a sanção da lei criando a Comissão Nacional da Verdade (CNV),
com a finalidade de apurar violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de
setembro de 1946 e 5 de outubro de 19889. Um sopro de esperança para as vítimas
e os familiares. E, como todo sopro, foi refrescante, porém efêmero, pois os poderes
da Comissão Nacional da Verdade10 são limitados, quase inócuos: a CNV tem poder
investigativo, não condenatório; pode convocar, não intimar 11 . Além disso, os
9 Para mais informações, ver o sítio. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnv. Acesso em 30 de julho de 2014. 10 Bernardo Kucinski afirma não ter nenhuma esperança em ver os responsáveis pelas mortes, sequestros e desaparecimentos responsabilizados criminalmente pelos crimes cometidos e na eficácia da Comissão da Verdade. “Nenhuma esperança. Pelo pouco que li, não acredito. Parece que foi esvaziada, o objetivo é meio limitado”, declarou aos jornalistas Paulo Donizetti de Souza e Paulo Salvador, do jornal Rede Brasil Atual, em 27 de outubro de 2011. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2011/10/contos-de-b.kucinski-sao-metafora-de-si-mesmo-e-dos-espinhos-da-nossa-historia. Acesso em 5 de agosto de 2014. Ainda sobre a Comissão da Verdade, em entrevista concedida à jornalista Patrícia Homsi, da revista Cult, o autor afirma acompanhar as investigações pelos jornais porque as sessões, em geral, são realizadas a portas fechadas, o que para ele é um erro. Diz ele: “Considero esse procedimento um equívoco fundamental, pois já que essa comissão não tem o poder de indiciar, sua única função seria a de despertar uma consciência nacional contra os crimes da ditadura para que nunca mais aconteça o que aconteceu. E isso não se consegue a portas fechadas, apenas emitindo um relatório final. Tenho acompanhado, isso sim, a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, cujas sessões são abertas, e estou muito impressionado com as histórias de vida ali narradas.” Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/02/memorias-de-um-tempo-que-nao-deve-ser-esquecido/. Acesso em 05 de agosto de 2014. 11 No blog A verdade sufocada, do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, num artigo publicado em 16 de abril de 2013 pelo também coronel reformado e aspirante a escritor Juvêncio Saldanha Lemos, os militares são orientados a não comparecer à Comissão Nacional da Verdade: “Caso você seja ‘convidado’, ‘convocado’, ‘intimado’ ou ‘receba uma ordem’ para comparecer à Comissão Nacional da Verdade, não compareça e não dê qualquer satisfação. E por agora, nem constitua advogado. Não precisa. A Lei de criação da Comissão da Verdade diz que ela tem poderes para ‘convocar’ pessoas para depor. Não para ‘intimar’ um depoimento. Para nossa sorte, eles bobearam na seleção do verbo.” Podemos perceber que, apesar de todos os esforços, muitas perguntas ficarão sem respostas por causa da falta de cooperação dos militares. Interessante notar a parapraxia cometida por esse senhor, que nega qualquer tipo de envolvimento do Exército com
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arquivos contendo documentos do período ainda são vistos como sigilosos e
propriedade do Estado pelos ministérios militares e pelo Itamaraty. A lei impeditiva
da abertura dos arquivos é parte da Lei de Anistia, sancionada em 1979 por um
Congresso sequestrado e dominado pelo regime de exceção. Sendo assim, enquanto
a Lei de Anistia não for revogada ou pelo menos reinterpretada, as mortes, os
desaparecimentos, os sequestros não serão esclarecidos, e as 437 famílias à espera,
não mais de seus filhos ou de notícias que confirmem suas mortes, apenas da
ossada para poderem enterrá-la, continuarão sem respostas, e sem o direito a uma
matzeivá, ou a uma lápide, e ao merecido luto. Da mesma forma, os outros 80 mil
presos e torturados do período não terão direito a reparação.
Nesse ambiente sem perspectivas concretas para as vítimas e as famílias dos
desaparecidos, Bernardo Kucinski escreve e lança a história de K.12, um pai em busca
da filha que fora desaparecida13 pelo regime de exceção.
A ditadura civil-militar, contra a qual Bernardo Kucinski militou e em
consequência da qual partiu em exílio voluntário14, é temática recorrente de seus
sequestros, torturas e mortes, no seu livro-resposta à CNV, “Memórias”, mas demonstra profundo alívio com o equívoco semântico. Disponível em: http://www.averdadesufocada.com/index.php/comisso-da-verdade-especial-107/8404-60413-nao-compareca-se-for-chamado. Acesso em 29 de julho de 2014. 12 Existe uma questão, que abordaremos mais à frente, sobre a relação entre o momento em que o autor está recuperando a memória de sua família para escrever sua ficção memorialística e o passado. Ademais, o que fazer no presente com esse passado carregado de dor? 13 Estou empregando o verbo “desaparecer” com outra regência não prevista pela gramática. Esse verbo é sabidamente intransitivo (quem desaparece, desaparece, sem complemento), como aponto na segunda parte dessa pesquisa. Mas o estou empregando como transitivo direto (quem desaparece, desaparece alguém, portanto quem está desaparecido, foi desaparecido por alguém). Ao pressupor um agente da passiva (por alguém), estou instituindo explicitamente um culpado, um responsável, enfim, um agente. É clara a intenção política, a motivação ideológica dessa minha interferência na gramática. A língua está aí para isso mesmo, para ser politizada em sua forma, em seu corpo, em sua estrutura. Porém, acredito que vale explicitar esses meandros gramaticais do texto, tanto para apontar o erro consciente de regência, tanto para reforçar a manipulação consciente da língua como reforço do meu ponto de vista. 14 Bernardo Kucinski é um dos mais experientes e respeitados jornalistas do Brasil. Graduado em Física pela Universidade de São Paulo (1968), entrou para o jornalismo a convite do amigo e mentor Raimundo Pereira. Trabalhou na revista Veja, de onde saiu para o exílio em Londres. Entre 1971 e 1974, foi produtor e locutor da BBC, correspondente da revista Opinião e do jornal Gazeta Mercantil. Nessa mesma época, no exterior, se especializou em economia. De volta ao Brasil, em 1974, participou da fundação dos jornais alternativos Movimento e Em Tempo (desse último, foi o primeiro editor, em 1977). Trabalhou como editor de “commodities” do jornal Gazeta Mercantil e foi correspondente do The Guardian, da revista Euromoney, e do boletim Latin America Political Report, todos periódicos londrinos. Colaborou para a newsletter nova-iorquina, Lagniappe Letter. Produziu cadernos especiais para a revista Exame e colaborou para a revista Ciência Hoje, da SBPC (Sociedade
21
livros e contos. Segundo Kucinski, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, de
Londrina (PR), a “grande novela ou romance sobre esse período ainda precisa ser
escrito. E lamento ter começado tão tarde e não ter mais o tempo e talvez a
capacidade para isso”. Na ficção, estreou como autor publicado após completar 70
anos, porém já havia se arriscado por esses bosques em “Alguma memória”15, conto
editado na coletânea Fragmentos de memórias, e em “Correstrangeiros: como me
tornei correspondente do The Guardian e outras histórias”, artigo que compõe outra
coletânea, O Brasil dos correspondentes estrangeiros16. Como jornalista, publicou
seu primeiro livro17 no auge da repressão, expondo os casos de tortura pelo Brasil.
Considerado a primeira denúncia sistemática, de caráter internacional, das violações
de Direitos Humanos ocorridas no país desde a instalação do regime militar, escrito
Brasileira Para o Progresso da Ciência). Polêmico e com fama de briguento, deixou o jornalismo em 1986, e iniciou a carreira acadêmica, na USP, como professor da Escola de Comunicações e Artes. Em 1991, apresentou sua tese de doutoramento, Jornalistas Revolucionários - Nos tempos da imprensa alternativa, um estudo mapeando cerca de 150 periódicos surgidos entre 1964 e 1980. Em 1997, ganhou o Prêmio Jabuti com o livro Jornalismo Econômico (1996), resultado de sua tese de livre docência e do pós-doutorado realizado em Londres. Sobre sua decepção com o jornalismo e o abandono da profissão, diz ele: “Antes da universidade houve um momento importante que foi quando voltei de Londres para o Brasil e me tornei correspondente do The Guardian, um jornal inglês importante. Enviei uma matéria em que afirmava que o Brasil fornecia urânio para o Iraque. Foi um momento importante porque toda a mídia me acusou de ser um espião do Mossad [serviço israelense], acusações das mais grosseiras. Mesmo depois que se comprovou que a história era verdadeira, continuaram falando. Naquele momento senti grande desgosto com o jornalismo brasileiro. Acho que foi meu momento da verdade. Foi quando conheci o jornalismo brasileiro, no sentido bíblico. Senti como é um jornalismo em grande parte canalha. Desgostei muito e passei a desconsiderar esse jornalismo como algo importante. Daí para a universidade foi um passo.” Declaração concedida aos jornalistas Carlos Costa e Dulcília Buitoni e publicada no fórum do seu blog pessoal. Disponível em: http://kucinski.com.br/forum/viewtopic.php?f=5&t=2. Acesso em 15 de julho de 2014. 15 KUCINSKI, Bernardo. In: Fragmentos de Memórias. Avraham Milgram (org.). Rio de Janeiro: Imago, 2010, pp. 187-198. Disponível também em: http://kucinski.com.br/visualiza_noticia.php?id_noticia=390. Acesso em 8 de maio de 2013. 16 KUCINSKI, Bernardo. In: O Brasil dos Correspondentes. Jan Rocha (org.). São Paulo: Editora Mérito, 2008, pp. 35-45. Disponível também em: http://kucinski.com.br/visualiza_noticia.php?id_noticia=389. Acesso em 20 de abril de 2013. 17 Daí por diante, foram mais 18 livros publicados: Fome de lucros (1976), O que são multinacionais (1981), Abertura: a história de uma crise (1982), A ditadura da dívida (1987), Jornalistas e revolucionários (1991), The Privatization of Brazil’s Eletricity Sector (1995), Brazil: Carnival of the Opressed (1995), The Privatization of Public Services in Brazil (1996), Jornalismo econômico (1997), A Síndrome da Antena Parabólica (1998), As cartas ácidas da campanha de Lula (1998), O fim da ditadura militar (2001), Lula and the Workers Party (2003), Jornalismo na era virtual (2005), Diálogos da perplexidade (2009), K. (2011), Você ainda vai voltar para mim (2014), Alice – não mais que de repente (2014).
22
em parceria com Ítalo Tronca, Pau-de-arara – a violência militar no Brasil18, foi
publicado sem identificação de autoria na França (1971) e no México (1972) e é
resultado da passagem dos dois jornalistas pela redação da revista semanal Veja.
Como nos conta Ítalo Tronca:
Eu e Bernardo Kucinski andávamos de olho nas longas tiras vomitadas semanalmente pelo teletipo (não havia computador na época nas redações), enviadas pelos correspondentes da revista nas principais capitais do país, relatando atrocidades praticadas pela repressão. Não podíamos publicar nada, tínhamos censores dentro da redação, que liam as matérias antes de irem para a mesa dos editores, inclusive da do Mino Carta, diretor de redação na época. Bernardo e eu juntamos aquela papelada e escrevemos um livrinho apócrifo, que o Luiz Merlino, morto posteriormente pelo DOI-CODI, levou para Paris. [...] Ao que eu saiba, nunca fomos descobertos como autores. Se fôssemos, provavelmente não estaria aqui para contar essa história.19
O mapeamento das torturas, que deu origem ao livro, foi publicado em duas
matérias de capa da revista Veja (n. 65 e 66, de 3 e 10 de dezembro de 1969)20. A
ideia surgiu da declaração do presidente Emílio Garrastazu Médici de que “no
governo dele não aceitaria torturas”21. Aproveitando-se desse “gancho” dado pelo
próprio sistema, surge o dossiê para “ajudar o presidente a combater essa
deformação”22:
Na Veja, por inspiração do Raimundo [Pereira], fizemos o Dossiê sobre as Torturas, partindo para o pau mesmo. Raimundo mandou telex para todas as sucursais, fez levantamento, mandou entregar o resultado para o presidente Médici, como uma espécie de colaboração. Com esse guarda-chuva de prestar um serviço ao presidente, fizemos um imenso mapeamento, que foi publicado em duas edições, que o Mino Carta, editor
18 O livro foi retraduzido e publicado no Brasil pela Fundação Perseu Abramo em abril de 2014. Pode ser baixado do seguinte endereço eletrônico: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/pauararacompleto.pdf. 19 Entrevista de Ítalo Tronca concedida a Jardel Dias Cavalcanti, em 2003, para o site Digestivo Cultural. Disponível em http://www.digestivocultural.com/colunistas/imprimir.asp?codigo=1060. Acesso em 31 de julho de 2014. 20 Anexos 1 e 2. 21 CHAVES, Rogério; KAREPOVS, Dainis; SONCINI, Luana. Entrevista com Bernardo Kucinski. In: KUCINSKI, Bernardo; TRONCA, Ítalo. Anexos da Edição Brasileira. “Pau de arara – A violência militar no Brasil”. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013, p. 221. 22 Idem.
23
da Veja na época, bancou. Quando o dossiê foi publicado, tivemos de ir embora. A história da minha ida para Londres foi essa [risos]23.
Em virtude da reação apática dos outros meios de comunicação, que não
aproveitaram a oportunidade para publicar matérias correlatas, ampliadas, como eles
esperavam, a revista ficou isolada e sem respaldo para enfrentar a reação dos
militares, que, irritados, arrumaram uma desculpa para pressionar pela saída dos
envolvidos no mapeamento. O exílio em Londres durou quatro anos (1970-1974).
Antes, porém, Kucinski deu um outro esbarrão na repressão ao ser preso durante
uma reunião do sindicato na época em que trabalhava como desenhista-projetista
em uma fábrica de eletrônicos. A história desse encontro inoportuno está relatada no
conto “A lista”: “Eu sou aquele Jacó do conto. Claro que todos os acessórios do
conto são invenções. O fato básico aconteceu: assembleia no sindicado, discurso
antissemita, reação e prisão”24. Mesmo tendo ficado detido por poucas horas, até
hoje esse incidente provoca muitos enganos: “A informação em alguns sites de que
eu fui torturado é falsa, mas persiste apesar de meus desmentidos...”, esclarece25.
Sua própria biografia parece seguir o ritmo de suas obras e oscilar entre fatos
e invenções. Tamanho equívoco ocorre por causa da dimensão absurda, ilógica e
brutal da história de sua irmã, que resulta por respingar na dele.
O mergulho nas memórias pessoais e coletivas, a fim de garimpar e extrair
resíduos para montar tramas, enredos, personagens e cenários, traço caracterizante
de seus três livros26 e dos contos, revela a sua disposição em equilibrar-se entre arte
e vida, entre fatos e invenções, e indica, além do mais, sua afinidade com autores
que, como ele, não podem se descolar das histórias que contam por estarem elas, de
23 Entrevista a Carlos Costa e Dulcília Buitoni Disponível em http://kucinski.com.br/forum/viewtopic.php?f=5&t=2. Acesso em 31 de julho de 2014. 24 Declaração feita à autora via e-mail (Vide anexo 3). A prisão demorou apenas algumas horas e foi como “operário subversivo” e não como “estudante subversivo”, apesar de, à época, Kucinski ser estudante de Física na Universidade de São Paulo – USP. 25 Idem. 26 A saber: Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014; K. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2 ed., 2012; Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
24
alguma forma, enredadas em suas vidas. Refiro-me particularmente a Roberto
Bolaño e a Ricardo Piglia.
25
1.1. Estrutura
Num primeiro olhar, constata-se que a estrutura porosa de K., característica
do texto de Bernardo Kucinski, afasta-se do sentido de fragmentação como
fenômeno moderno e expressão marcante do texto pós-moderno e o aproxima do
testemunho e de sua construção a partir dos restos, sobras, ruínas, ou fragmentos
da memória e, sobretudo, das ausências. A evidência dessa característica, que nos
parece própria do testemunho, desafia a delimitação da obra de Kucinski em um
gênero, como: romance, novela, conto – sim, o próprio autor afirma que o livro pode
ser lido em pedaços, como se os capítulos fossem contos independentes27 (ficção) ou
testemunho – que não é propriamente um gênero. Esse primeiro estranhamento
causado pela obra nos leva a questionar, junto com o filósofo francês Jacques
Derrida, a possibilidade de se “identificar uma obra de arte, de qualquer tipo, mas
especialmente uma obra de arte discursiva, se ela não tiver a marca de um gênero,
se não sinalizar, mencioná-lo, ou torná-lo notável de alguma forma?”28 K. acolhe
diferentes gêneros literários – epistolar, narrativo, autobiográfico, ficcional – que são
compostos com base em documentos ou apenas apoiados na fabulação, mas com o
claro propósito de recuperar a História (particular e geral). A partir dessas
diferenças, o autor constrói um texto que não se quer testemunho, mas que vai no
seu rastro; que recusa ser autobiografia, apesar dos seus fortes traços
autobiográficos; que não se pretende mimese, mesmo deixando claro o seu desejo
de “verdade”. Nesse jogo múltiplo, a obra pode “participar” de diferentes gêneros, o
que não significa que ela “pertença” a nenhum deles. Dessa forma, a própria noção 27 Em entrevista ao jornalista Rogério Pereira do jornal Rascunho, Kucinski afirma ter escrito muitos contos, incluindo os capítulos de K.:” (…) escrevi cerca de 150 contos nos últimos três anos, incluindo os capítulos de K., que funcionam como contos autônomos (…)”. Sobre a narrativa curta, seca, diz ele: “Percebi que me realizo bem em narrativas curtas e secas, nas quais não é necessário explicitar ou trabalhar exaustivamente os personagens e os ambientes. Nos contos transmite-se através de referências, por assim dizer, simbólicas.” Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 15 de agosto de 2014. 28 Jacques Derrida: “Can one identify a work of art, of whatever sort, but especially a work of discursive art, if it does not bear the mark of a genre, if it does not signal or mention it or make it remarkable in any way?” Cf. DERRIDA, Jacques. The law of genre. University of Chicago Press, 1980, p. 64. Disponível em: http://www.jstor.org/discover/10.2307/1343176?uid=3*737664&uid=2129&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21104962996017.
26
de gênero é diluída a ponto de sua característica passar a ser a “participação”, a
diversidade, “por causa do efeito do código e da marca genérica. Fazendo do gênero
a sua marca, um texto demarca-se”29. Ou seja, torna-se autônomo, livre das amarras
debilitantes de um só gênero. Dessa independência, ou talvez, ausência, emerge a
escrita de Bernardo Kucinski.
E, a partir de outra ausência, a da linearidade narrativa, Kucinski monta seu
mosaico, assentando-o num sólido alicerce ideológico, que se sustenta sem precisar
apoiar cada fragmento no anterior ou se completar no posterior. A lacuna deixada
pela ruptura da sequência pode ser30 preenchida pelos desdobramentos internos ora
da própria trama ficcional, ora da História nacional. Desse modo, apostando na
ruptura (causa) e na lacuna (efeito) como ferramentas da narrativa, Kucinski utiliza-
se da ausência como meio para ir além da própria ausência. Esse subterfúgio –
arriscado, pois há sempre a possibilidade de fracasso – de alimentar-se das
fraquezas – ou daquilo que poderia ser problemático e extenuante – da narrativa,
ou, mais grave ainda, da ausência dela, pode funcionar como oxigênio, como em K.,
ou anoxia, caso o autor não consiga cumprir a difícil tarefa empreendida por Kucinski
de estruturar capítulos-contos que, apesar da independência, dialoguem entre si,
sejam coesos e completem um/o mosaico.
A fragmentação, caracterizante do testemunho31, (co)responde a ele no texto,
e é também recurso estético e técnico, que influencia o tipo de leitura que o autor
pretende que o leitor faça do texto. Kucinski, na “Carta ao leitor”, indica o caminho a
ser percorrido:
Cada fragmento ganhou forma independente dos demais, não na ordem cronológica dos fatos e sim na da exumação imprevisível desses despojos da memória, o que de novo me obrigou a tratar os fatos como literatura e não como História.
[...] o fragmento que o introduz [K.] inicia o conjunto, logo após a abertura. E o que encerra suas atribulações está quase no final. A ordem dos demais
29 Idem, p. 65. 30 Digo pode ser, pois não podemos descartar e anular a independência e autonomia de cada capítulo
em relação ao conjunto. 31 Porém não exclusiva.
27
fragmentos é arbitrária, apenas uma entre as várias possibilidades de ordenamento de textos.32
A definição dos capítulos/contos como fragmentos, se, por um lado, sugere a
efemeridade, a urgência de lembranças fugidias e incompletas, isto é, de lampejos,
por outro lado, significa assumir a ruptura com o presente e a ideia de que este seria
de alguma forma a continuação de um passado concluído que só pode adquirir
sentido no presente. É ir além: é arrancar o passado do seu contexto originário e
colocá-lo à prova em outro contexto. É aceitar a escrita como risco33, em afinação
com o pensamento de Maurice Blanchot, que enxergou na natureza inconclusa do
fragmento a abrupta ruptura que o desastre causa. O esfacelamento da escrita, a
fragmentação – ou a escrita do desastre – seria, segundo Blanchot, a possibilidade
de finitude de uma narrativa fadada ao inacabamento. Diz ele:
Fragmentos são escritos como separações inacabadas. O que eles têm de incompletos, de insuficiência, a decepção atuando neles, é a sua deriva sem rumo, a indicação de que, nem unificáveis nem consistentes, eles acomodam uma certa variedade de marcas - as marcas com que o pensamento (em declínio e se declinando) representa o furtivo agrupamento que ficticiamente abre e fecha a ausência de totalidade. Não que o pensamento jamais pare, fascinado, na ausência; ele sempre é levado adiante, pelo relógio, o sempre ininterrupto estar acordado. Daí a impossibilidade de dizer que há um intervalo. Pois fragmentos, destinados em parte para o espaço em branco que os separa, encontram nesta lacuna não o que os termina, mas o que os prolonga, ou o que os faz aguardar seu prolongamento – o que já os prolongou, levando-os a persistir por conta de sua incompletude. E, assim, eles estão sempre prontos a deixarem-se ser trabalhados pela infatigável razão, em vez de permanecerem como enunciados decaídos, deixados de lado, o segredo vazio de mistério que nenhuma elaboração jamais poderia preencher34.
32 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. s/n. 33 Segundo Maurice Blanchot: “Fragmentary writing is risk, it would seem: risk itself. It is not based on any theory, nor does it introduce a practice one could define as interruption. Interrupted, it goes on. Interrogating itself, it does not co-opt the question but suspends it (without maintaining it) as nonresponse. Thus, if it claims that its time comes only when the whole - at least ideally - is realized, this is because that time is never sure, but is the absence of time, absence in a nonnegative sense, time anterior to all past-present, as well as posterior to every possibility of a present yet to come.” In BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. University of Nebraska Press, 1986, pp. 59-60. 34 Maurice Blanchot: “Fragments are written as unfinished separations. Their incompletion, their insufficiency, the disappointment at work in them, is their aimless drift, the indication that, neither unifiable nor consistent, they accommodate a certain array of marks – the marks with which thought (in decline and declining itself) represents the furtive groupings that fictively open and close the absence of totality. Not that thought ever stops, definitively fascinated, at the absence; always it is carried on, by the watch, the ever-uninterrupted wake. Whence the impossibility of saying there is an interval. For fragments, destined partly to the blank that separates them, find in this gap not what ends them, but what prolongs them or what makes them await their prolongation – what has already
28
K., a exemplo dessa “escrita do desastre”, não se esgota nos limites do que
foi/está escrito, se prolonga nos vazios, nos intervalos deixados pela incompletude
dos seus fragmentos, aumentando, em consequência dessas ausências, as
interrogações, as possibilidades de descobertas e de produção de sentidos. A forma-
fragmento seguida e sugerida por Kucinski permite o movimento infinito de ir e vir
da lembrança que erra pelo tempo, que é anterior, mas também posterior ao da
narrativa – e até mesmo da história – e cria na leitura uma amplitude infinita que vai
ultrapassar o presente porvir.
A organização livre que obedeceu o fluxo da inconstância da memória, como
nos revelou o autor, engendrou peças para um jogo de armar35 a serem trabalhadas
pela razão do leitor. Fica a cargo do leitor colar os cacos, os fragmentos, para
compreender o que foge à explicação, porque a violência fratura, e fratura num
mundo já fragmentado, é multiplicação de potências. Cabe a ele, leitor, a elaboração
final.
“Fragmentos: as peças do jogo de armar”36, diz o narrador de Em câmera
lenta, indicando a sintonia entre os dois romances, e entre os dois romances e a
escrita do desastre. Continua ele: “E uma tênue linha de ligação, um fio quase
invisível capaz de organizar as peças – a tensão. Cada momento não existiu isolado,
nem se ligou linearmente aos outros”. A tensão da violência37, da ruptura, da
separação, da instabilidade da totalidade ausente, da ausência de sentido e do risco
da busca de novos sentidos é apresentada pelo autor, o qual, ao expor suas
angústias, revela a estrutura da narrativa fragmentária que segue o compasso “do
tempo psicológico” do romance:
prolonged them, causing them to persist on account of their incompletion. And thus are they always ready to let themselves be worked upon by indefatigable reason, instead of remaining as fallen utterances, left aside, the secret void of mystery which no elaboration could fill. Op. cit, p. 58. 35 Expressão retirada do livro Em câmera lenta, de Renato Tapajós. 36 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 112. 37 Maurice Blanchot: “Writing is per se already (it is still) violence: the rupture there is in each fragment, the break, the splitting, the tearing of the shred - acute singularity, steely point. And yet this combat is, for patience, debate. The name wears away, the fragment fragments, erodes. Passivity passes away patiently, lost stakes”. Em tradução livre: “A escrita já é, por si só, (ainda é) violência: a ruptura existe em cada fragmento, a ruptura, a separação, o rompimento do fiapo - singularidade aguda, ponto de aço. E ainda este combate é, para a paciência, debate. O nome se desgasta, o fragmento fragmenta, corrói. Passividade passa pacientemente, apostas perdidas.” Idem, p. 46.
29
A tensão trabalhava – e trabalha ainda – como um mecanismo de buscar sempre mais fundo a chave do jogo de armar. Chave eternamente provisória, porque o jogo de armar é interminável: o próprio fato de organizar as peças representa a criação de uma peça nova, de uma configuração nova – e exige uma nova solução38.
Na narrativa fragmentária de Tapajós, o jogo psicológico é armado pelo
narrador investido nas múltiplas perspectivas; no texto fragmentado de Kucinski, o
jogo textual pode ser também montado pelo leitor e não apenas pelo autor. Se
quisermos seguir a sugestão de leitura do autor, estaremos embarcando no seu
processo de escrita, que é o de garimpagem dos “despojos da memória” ao ritmo
“imprevisível” da “exumação”. Esse processo resultou numa não observância
espaçotemporal – outra característica da estrutura fragmentada –, possibilitou que a
narrativa saltitasse no tempo e no espaço, e permitiu sua expansão, recolhimento ou
até restrição, sendo submetida apenas à vontade do autor – se acompanhada a
sequência sugerida – ou à colaboração do leitor – se lida seguindo o seu compasso.
Em resumo: o livro pode ser lido em conjunto, como romance, ou em pedaços, como
contos.
A fragmentação da narrativa e o modelo formal de escrita curta e seca39, com
uma estrutura modular e combinatória, marcam a contemporaneidade do romance
“como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os
fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo”40. Numa época marcada pela
efemeridade e pela velocidade, um romance em que os “capítulos” breves, concisos
38 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 113. 39 Segundo Bernardo Kucinski, as narrativas breves são as que ele prefere e as quais ele melhor constrói: “Percebi que me realizo bem em narrativas curtas e secas, nas quais não é necessário explicitar ou trabalhar exaustivamente os personagens e os ambientes. Nos contos transmite-se através de referências, por assim dizer, simbólicas”. Declaração feita em entrevista concedida ao jornalista Rogério Pereira do suplemento literário Rascunho, do jornal Gazeta do Povo. Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 06 de outubro de 2014. O estilo de escrita de Kucinski, assim como sua preferência pela narrativa sucinta, de certa maneira, está em acordo com a noção de escrita breve de Ítalo Calvino: “Sou inclinado por temperamento à ‘escrita breve’ e essas estruturas [articuláveis e combinatórias] me permitem aliar a concentração de invenção e expressão ao sentimento de potencialidades infinitas”. Cf. In CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 135. 40 Idem, p. 121.
30
remetem ao movimento do corte seco do cinema ou da TV, e a leitura livre concorda
com o salto comum dado por quem cresceu “lendo o mundo” em frente a uma tela
de computador e conectado à internet, indica a assimilação da influência da
hipertextualidade e o diálogo com outras formas de arte e outros meios de
comunicação.
K. é dividido em 28 fragmentos narrativos. Uma carta ao leitor41 e um post
scriptum abrem e fecham, respectivamente, a narrativa e concedem ao leitor um
certo grau de intimidade com o narrador, pois este fala diretamente àquele. O breve
contato, ainda que pretenda situar o leitor em relação ao processo de criação e a
suas consequências formais, estéticas e temáticas e introduzi-lo no jogo de armar da
estrutura, efetivamente, o desestabiliza, empurrando-o para fora de sua zona de
conforto ao ser apresentado à natureza ambígua da obra. Ambígua também é a voz
narrativa pois não fica claro quem fala, se o narrador ou o autor ele mesmo.
Podemos dividir o romance em quatro grupos distintos: o primeiro, com 15
fragmentos, tem como personagem central K. e revolve em torno da busca dele pela
filha desaparecida. Nesses, a voz narrativa é apresentada na terceira pessoa, oscila
entre subjetividade e objetividade, e sinaliza a intimidade do narrador com o
personagem principal e com a trama central. Em grande parte desses fragmentos, o
foco da narrativa está colado no personagem e o discurso indireto livre do narrador
deságua no discurso indireto livre do personagem, se misturando e se confundindo
num só discurso, denso de emoções e impressões. Esse recurso humaniza o relato e
vitamina a força estética do romance42.
O segundo grupo é formado por cinco fragmentos em que a narrativa está na
primeira pessoa. Nesses, um policial que prendeu a filha de K. e seu marido narra as
dificuldades para “dar um fim” à cadela do casal; o delegado Fleury aparece,
resistindo ao afrouxamento e à possibilidade de abertura do regime e transferindo
41 Essa carta foi retirada da terceira edição do livro, da Cosac Naify (2014), porém está nas duas primeiras edições publicadas pela Expressão Popular. 42 Podemos dizer que a eficácia estética é responsável pela força humana do romance e por sua capacidade de produzir formas pertinentes e permanentes.
31
das vítimas para seus familiares o alvo de sua ira; o pai do genro-desconhecido de K.
faz um comovente relato da perda do filho, daquele que era o orgulho e o arrimo da
família; uma reflexão é feita por um narrador, que não sabemos ao certo quem é –
se o próprio K., o autor ou o narrador dos fragmentos da busca –, sobre um pai que
procura a filha desaparecida, e o paradoxo entre perda e privilégio, entre impotência
e autoridade, entre tudo e nada, que tal ato representa; conhecemos, por essa
mesma voz, a história de um militante que roubava livros, e que esses mesmos
livros, formaram uma biblioteca revolucionária de mais de mil tomos, os quais, por
fim, se tornaram suas lápides e o vestígio de sua existência; a amante do delegado
Fleury desabafa com uma mãe desesperada, que procura o torturador para implorar
pelo filho, sobre a angústia de ser irmã de uma de suas vítimas e a contradição de
estar apaixonada por quem não merece ser objeto de paixão. A mudança do foco
narrativo da terceira para a primeira pessoa, de uma unicidade para a multiplicidade
narrativa, sublinha o caráter plural do texto, dos sujeitos, das vozes e das visões
sobre o regime. Nesses fragmentos, a polifonia (re)afirma o caráter ficcional da
história anunciado na “Carta ao leitor”.
O terceiro grupo de fragmentos tem quatro histórias com diferentes
personagens. O foco narrativo está na terceira pessoa e a relação do narrador com
os personagens é distante e estabelecida pela mediação descritiva e crítica.
Conhecemos, nesses fragmentos, um agente do regime infiltrado num grupo armado
e suas artimanhas para continuar vivo; uma ex-faxineira da Casa da Morte de
Petrópolis e seus traumas; um general cassado e sua avaliação das figuras
proeminentes envolvidas no golpe; os detalhes da reunião da Congregação do
Instituto de Química da USP, em que foi decidida a demissão da filha de K. por
“abandono de função”.
No quarto grupo, um texto e duas cartas completam o conjunto de 28
fragmentos. São eles: “as cartas à destinatária inexistente”, “carta a uma amiga” e
“mensagem ao companheiro Klemente”. Comecemos pelas duas cartas. A primeira é
endereçada a uma amiga e escrita por A., que pode ser a filha de K., pois, na carta,
ela discorre sobre um irmão que virou jornalista e está de partida para a Inglaterra,
sobre um pai que se casou de novo, que está mais próximo dela e que se refugia no
32
iídiche, e sobre a angústia de estar lutando por uma causa sem perspectiva e na qual
não acredita mais; a segunda é de um militante chamado Rodriguez para um
companheiro – a quem ele não sabe se deve ou não continuar se referindo dessa
maneira –, onde ele faz um balanço indignado dos erros e da insistência em
continuar com a luta armada. No texto, escrito com a mesma fonte cursiva usada
nas duas cartas e no post scriptum – o que demarca imageticamente uma relação
entre esses fragmentos – a voz narrativa está em primeira pessoa e parece ser o
autor ele mesmo falando diretamente ao leitor e estabelecendo, desse modo, um
vínculo de proximidade e confiança. Os laços do narrador com a personagem
ausente e seus sentimentos em relação a ela são sinais que indicam a presença da
voz autoral, já que expõem emoções e motivos que estimularam a escrita do
romance-testemunho. O texto termina com a indicação do local e da data de sua
escrita. Como esse fragmento é o de abertura e deve ser lido antes daquele que
inicia o conjunto [“Sorvedouro de pessoas”], segundo a orientação dada na “Carta ao
leitor”, fica clara a intervenção de um autor-narrador que, mesmo incentivando o
leitor a romper a estética literária tradicional que limita a sua atuação e aprisiona o
texto ao curso temporal do início-meio-e-fim, mantém o controle da forma do seu
mosaico retendo para si as peças de abertura e conclusão. O post scriptum, que
conclui a obra, foi escrito no mesmo dia e local do texto de abertura, conforme a
indicação colocada no rodapé do texto. Esses dois fragmentos dão o contorno e são
o extremo e a base do quebra-cabeças, além da marca da pena unificadora do autor-
narrador.
Esse estilo de composição textual contemporânea, montada como um
caleidoscópio, exige a participação ativa do leitor para escolher as peças/os
fragmentos e combiná-los, a fim de descobrir e ampliar a produção de sentidos, e
multiplicar as vias de acesso de um mundo a outro. Na obra de Kucinski, a
imaginação do leitor é alimentada e instigada ao exercício porque, nos buracos
deixados pela fragmentação, como mencionamos anteriormente, a escrita fica por
conta do leitor, que, de lacuna em lacuna, é solicitado a produzir significações. O
leitor encontra ainda uma estrutura que pode ser articulada e combinada conforme
sua particular leitura da escrita. Essa narrativa construída com acumulações do
passado e do sentido atualizado (e particularizado), organizada com uma estrutura
33
modular, intercambiável, móvel, e que provoca vertigem por causa do vazio deixado
pela ruptura da fragmentação oferece a perspectiva do universo pelo vácuo43; da
totalidade44 pela parte; da presença pela ausência.
Os labirintos criados pela escrita de Kucinski – pelos quais o leitor vai se
aventurar, seguindo ora para frente, ora para trás, ora saltando adiante, ora
somente dando um passo à frente, em suma, perseguindo a trajetória errante dos
caminhos escolhidos por ele, leitor, ou a constante da proposta apresentada pelo
autor – solicitam que o leitor desenvolva seus próprios dispositivos para entender os
meandros dessa escrita-labiríntica – tão própria ao tema do enredo e ao modelo
formal do romance – e para descobrir a combinação pertinente entre significado e
significante.
O autor rompe com o tecido linear da narrativa, combina diferentes gêneros,
diferentes vozes e diferentes visões, valoriza as características imaginativas e
simbólicas da literatura para atribuir sentidos múltiplos ao texto. Essas estratégias
são viabilizadas pela ficção, que assume a narrativa como construção e a
idiossincrasia do relato, afinal de contas, quem o acessa e o produz sofreu a
interferência debilitante do choque – voltando ao testemunho do trauma –, e ele
mesmo, o autor/a testemunha, é resultado de diversas experiências, interações,
leituras e imaginações. No testemunho-ficcional polifônico, polissêmico de Kucinski, a
aproximação da verdade, ou pelo menos, de uma possibilidade de verdade, é
buscada e pretendida através da confluência e do confronto de relatos, ideias e
fatos, e estilos de expressão 45 , apresentados num movimento de dispersão e
convergência, que, além de traço formal da obra, reproduz a peculiaridade de cada
vida como “uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
43 Ítalo Calvino, em seu livro Seis propostas pra o próximo milênio, fala em “o universo e o vácuo”. Eu aproveitei os termos e os adaptei à análise. 44 Mais uma vez lembrando que a ideia de totalidade é a de uma totalidade conjectural, potencial e multíplice – a possível. 45 Noção usada por Ítalo Calvino.
34
amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado
de todas as maneiras possíveis”46.
Kucinski abre sua literatura à polifonia, construindo, com tal característica,
uma rede de subjetividades e, principalmente, de testemunhos em camadas que
são/serão acessadas pela capacidade de arrebatamento e transcendência do leitor
pela palavra. O escritor outorga grande influência e importância à palavra. Algo
normal e até esperado de um escritor, imagina-se. Pois, no fim das contas, são elas,
as palavras, as ferramentas do escritor e os veículos que carregam a potencialidade
da sua enunciação. Os anos exercendo o jornalismo sob censura o ensinaram a
enxergar o poder das palavras, e a aptidão delas para serem aliadas ou inimigas. Ele
concebe que, quando colocadas onde não cabem, ou situadas no local de outras, ou
retiradas de seu contexto original para um diferente, ou deslocadas no interior de
uma frase, um parágrafo, um texto, elas podem trair a ideia, o enunciado e o
enunciador.
As estratégias para lidar com a censura durante os anos de exceção foram
muitas e variadas. Lembremo-nos da bastante célebre publicação da notícia da
morte de Salvador Allende, durante o Golpe Militar do Chile, em 1973. A manchete
em destaque foi proibida pelos censores. Como a edição do Jornal do Brasil já estava
fechada, portanto aprovada, mas precisaria ser refeita, Alberto Dines, editor-chefe,
sugeriu a seguinte estratégia: “vamos dar a primeira página sem o título forte, só
com a história, mas num corpo tão grande que a história vai ser em manchete”47.
Dines perdeu o emprego, assim como Kucinski perderia, um ano mais tarde, da
revista Veja, por ter também desafiado as ordens dos militares. Podemos estabelecer
a hipótese de que foi nessa escola que Kucinski desenvolveu a arte de revelar sem
exibir e de esconder em plena vista, a partir da experiência do jornalismo sob
censura. Em seus textos, ele brinca ora com a exatidão semântica ora com a
obliquidade, pois sabe que, assim, evita a traição e/ou deixar traços. Ele produz seu
46 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 138. 47 DINES, Alberto. Apud FORTES, Rafael e LAIGNIER, Pablo (org.) Introdução à História da Comunicação. Rio de Janeiro: E-papers, 2009, p. 116.
35
próprio claro-escuro48 – e essa é também uma forma de subversão, como nos contou
Roland Barthes.
48 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987, p. 44.
36
1.2. A ausência em cena
Um paradoxo estrutura a narrativa de K.: a representação de algo que não se
dá à representação. O autor assume como estrutura da sua representação a
impossibilidade da representação: a ausência e seus correlatos, a falta de sentido e o
desastre.
K. é uma narrativa tecida em torno de ausências, sobre ausências, e
apontando em direção à cena central ausente: o encontro de quem “foi
desaparecido”. K. é o rastro, o indício de que algo houve e do abismo deixado por
esse “algo”, signo vazio que indica uma possibilidade, e cuja materialização em
“fato” se dá na falta da protagonista. Em vista disso, a essência de K., a nosso ver, é
a ausência. Dito de outra maneira, levando em conta a sua especificidade de rastro,
diremos que K. figura a presença da falta dos corpos e do sentido.
No texto de abertura indicado pelo autor, em ”As cartas à destinatária
inexistente”, ouvimos uma voz (autoral/testemunhal) discorrendo sobre a ausência
considerada presença por aquele que provocou a ausência, o Estado, e que, ainda
assim, continua, no seu âmago burocrático, a mantê-la como presença. Ou seja,
ouvimos um diálogo do autor-testemunha com o leitor presente ou, quem sabe?,
com o Estado ausente, sobre presença e ausência, esquecimento e memória. No
discurso, que modula o lamento pela personagem ausente, os ecos da ausência
ressoam como se o autor estivesse falando ao leitor a partir de um túmulo vazio,
sem corpo, cuja falta de lápide, de uma inscrição em pedra do rastro daquela vida,
impingisse a ela mais uma ausência, a de um nome. Digo mais uma, porque, além
da “radical ausência” determinada pela falta de um corpo que justificasse uma
sepultura, seu avesso concreto, como pontuou Jeanne Marie Gagnebin, é a ausência
da palavra49.
Ao longo da maior parte da narrativa, acompanhamos a busca de K. por
indícios que o levem ao encontro de sua filha querida. Nesse percurso, em que leitor
49 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 46.
37
e personagem se irmanam na coleta de pistas, o que os dois encontram são faltas,
ausências de vestígios, apesar das repetidas tentativas e dos mais diversos caminhos
e canais tentados – tanto privados quanto públicos. Essa escolha estilística da
repetição da procura que constantemente encontra a falta, que pouco contribui para
o avanço da narrativa (se olharmos para K. como para a história de uma busca), a
forma cíclica, de sempre voltar ao ponto inicial da busca, de repetição de um padrão
é também a do trauma vivido pelos diversos narradores e personagens, tal qual
definido pela psicanálise. Em outras palavras, K. apresenta nos fragmentos da busca
e na imobilidade do tema a falta de sentido provocada pela ausência – tanto da
violência em relação à pessoa ausente e aos que ficaram – e, na forma, o trauma.
Os outros “contos” que compõem o livro, fragmentados e compostos de
vozes, de cenários e de histórias, apresentam cenas que parecem dispersas e
aleatórias em relação ao eixo principal, a busca de K., conquanto ampliam, com a
multiplicidade de perspectivas que oferecem, a abrangência e o sentido ou a falta de
sentido que é/foi a ditadura civil-militar brasileira. Contudo, todas as cenas
convergem na direção dessa cena central, a cena ausente. Nessa parábola da
ausência, a apresentação da personagem principal, a filha de K., é feita de forma
refratária, pelo passado negligenciado ou pelo futuro negado; por aquilo que fez e
por aquilo que não teve; pelos poucos desafetos e raros afetos. Sua breve “aparição”
é mediada por outra ausência, uma carta. Essas ausências sobrepostas projetam a
miragem da presença sem com isso anularem a força da ausência dos personagens,
da estrutura e da narrativa, que, de forma abrupta, em todos os fragmentos, é
interrompida, deixando o leitor à beira do precipício da lacuna.
A negação da presença do corpo da personagem no corpo da escrita reforça a
notação da ausência e da “escrita em direção ao infinito negativo”, como definiu
Renato Lessa, no posfácio da terceira edição do livro, o horizonte da narrativa de
Kucinski. O dar a ver da presença da personagem significaria o encontro com a
irredutibilidade da morte e da finitude, inclusive narrativa 50 , além da ideia de
aceitação da falta de sentido da violenta ausência do desaparecimento. Mais do que
uma imitação da “realidade” que impõe a ausência da vida e do corpo, a não- 50 Explicarei melhor esse ponto mais adiante.
38
presença da protagonista responde à impossibilidade da representação da violência,
assim como é uma afirmação da nulidade de elementos representáveis diante de sua
falta. E é a essa exegese, a da ausência, que voltamos o nosso olhar crítico.
A história de K., em K., abraça, talvez por sua qualidade de rastro, a dualidade
presença-ausência. Ela apresenta a história da busca de um pai desesperado pela
filha desaparecida e um testemunho histórico das atrocidades cometidas pelo Estado
autoritário. Essa presença de um personagem histórico e de um definido ambiente
material dilui-se na ausência dos nomes dos personagens principais, abrindo a
narrativa para a análise a partir das infinitas possibilidades oferecidas pelas
ausências. Para entendermos o romance, temos que, antes de tudo, enfrentar as
tensões e dicotomias inerentes a ele, como o próprio autor o fez: assumindo a
ausência constitutiva dele, enquanto obra literária e testemunho.
Trocando em miúdos, como obra literária, K. assume a ausência de rigidez
estrutural, espaçotemporal e de sentido; e embarca no jogo de armar para montar a
sua própria estrutura e completar as lacunas e o vazio deixado pela ruptura da
escrita, que se (re)escreve a cada vez que nos deparamos com essa falta
estruturante. Como testemunho, segue a escrita vertiginosa, que nos empurra a todo
momento para a beira do abismo, que talvez possa ser pensado, seguindo Renato
Lessa, como o Real traumático lacaniano, em sua mais perfeita irrepresentabilidade
do insondável e do tenebroso. O espaço histórico da filha de K. é o de sua negação
pelo desaparecimento. Nesse sentido, sua história negativa, porque consequência de
um evento negativo, torna-se parte da história e da memória nacional à medida que
tem todo o seu sentido histórico e memorável destituído e apagado pela violência
estatal.
No lugar do evento individual, particularizado, baseado nas versões hipotéticas
do ocorrido51 , colocou-se a ausência, quer dizer, deixou-se a ausência, o vazio
causado pela violência. A ausência é o traço universalizante (ou a falta de) e o indício
51 Com esse artifício, Bernardo Kucinski evitou o que Walter Benjamin descreveu como “a arte de experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual se refere o sonho que chamamos de o ocorrido. Elaborar o ocorrido na recordação do sonho”, Cf. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007b, p. 434.
39
(ou a falta de) de que o que é histórico e memorável não é somente essa/uma
história, porém as de todos os que sofreram com a violência e a brutalidade do
Estado – o que, por outro lado, não relativiza ou diminui sua dimensão de evento
particular e único. A presença histórica de Ana Rosa Kucinski (matriz da personagem
principal do romance) só será reconhecida depois de “desaparecida” pelas forças do
Estado, ou seja, depois de ter sua vida aniquilada da história particular familiar e do
bolo formador da história coletiva. Ana, a matriz e a personagem, é a figuração da
presença histórica produzida pela ausência. Por causa disso, a ausência,
representada no nome cindido que dá título ao livro e na falta de nome da
personagem-ausente, exibe a violência e o rastro de destruição deixado por ela.
Vale lembrar que a violência, no contexto da ditadura, é elemento constitutivo
do sistema autoritário e, por conseguinte, da sociedade reprimida por ela. Contudo,
ela não comparece no romance de forma direta; sua presença é sentida, repito, nos
rastros de destruição e em seu poder de controle da vida dos personagens. A
violência é um dos dispositivos de que lançamos mão para decifrar a instalação e a
manutenção do arbítrio. Todos os outros dispositivos acionados têm como base os
interesses econômicos, mas esses detalhes não nos importam no momento. O que
importa é notar que essa presença ausente foi a responsável pela construção da
personagem histórica através da sua destruição. Portanto, a violência é responsável
tanto pela paradoxal construção da personagem, como pela origem do texto, já que,
retomando a célebre frase de Walter Benjamin, não há documento de cultura que
não seja também um documento de barbárie52.
K. não tropeça nas barreiras impeditivas da linguagem, da moral e da ética
impostas pela missão de figurar o horror em narrativa, porque sua narrativa é sobre
o buraco, a falta e o impacto dessa falta na vida de quem, a bem dizer, ficou para
trás e tem que continuar vivendo. Sua narrativa versa sobre os efeitos que essa falta
causa em quem continua presente. Por isso, ao longo de todo o livro, os fatos são
suscitados por cenas ausentes (desaparecimentos, torturas, assassinatos,
sequestros) e seus resultados são percebidos, porém também ausentes, pois quem 52 Expressão de Walter Benjamin na Tese VII do texto Sobre o Conceito de História. Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In “Magia e técnica, arte e política”. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 225. (obras escolhidas, vol 1).
40
os sofre não os apresenta; e sim representa-os através de ações que visam a mitigá-
los, ou simplesmente optam pelo esquecimento salutar53. O universo de K. é um
lugar onde representações e sentimentos são suprimidos. Segundo Renato Lessa:
Outra escolha formal menos óbvia, é a de lidar com a dimensão complementar da perda. Escolha que obriga a narrativa a considerar o tema da negatividade e da vivência introspectiva da supressão do sentido por parte dos personagens que permanecem vivos e vinculados indelevelmente a um vazio.54
K. participa do debate entre a (im)possibilidade da representação do trauma
no seu estilo de narrativa em abismo, caindo dentro dos próprios buracos criados por
ela, pela narrativa, onde, da ausência da apresentação, emerge a presença da
articulação do que é ou merece ser dizível ou não, do que é ético ou não.
Desaparecida pelas mãos da violência estatal, a filha de K. é/representa o
abismo de uma vertiginosa negatividade55 e simboliza a incrível proximidade entre as
causas da ausência e sua representação quarenta anos mais tarde. Nesse sentido, a
exumação dos restos soterrados na memória foi o único caminho de acesso possível
para reconstruir os cenários onde os episódios sobre o impacto da ausência serão
encenados, porque a filha de K. é um sintagma vazio que nega sua própria função
de nomear. Segundo Maurice Blanchot:
Estes nomes, áreas de deslocamento, os quatro ventos da ausência de espírito, forma fôlego em nenhum lugar - os nomes do pensamento, quando ele se deixa ser desfeito e, por escrito, fragmento. Do lado de fora. Neutro.56
53 Ou seja, esquecer é uma medida sanadora. 54 KUCINSKI, Bernardo. K. São Paulo: Cosac Naify, 3a ed., 2014, p. 186. 55 Expressão cunhada por Renato Lessa. 56 Maurice Blanchot: “These names, areas of dislocation, the four winds of spirit's absence, breath form nowhere - the names of thought, when it lets itself come undone and, by writing, fragment. Outside. Neutral.” Cf. In BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. University of Nebraska Press, 1986, p. 57.
41
Não se pode extrair sentido da violenta ausência a não ser pelo fragmento,
pelo neutro, pela negação. Ou pela dobra oferecida pela literatura em que a
presença é apresentada pelo seu oposto, a ausência; e a imagem retilínea pelo seu
avesso, a oblíqua. É nessa forma que se constrói a narrativa em K., nas cenas
ausentes, em suas versões e em sua trajetória oblíqua. Vamos a elas.
1.3. Inventário de perdas da perda de uma vida
É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água.
Clarice Lispector Se o romance tivesse que ser resumido em uma palavra, ausência, como se
percebe, seria a adotada. Não apenas pelo fato de a narrativa ser construída a partir
da ausência (ou ausências, considerando todos os outros personagens que
desapareceram sorvidos pela máquina de sumir pessoas da ditadura, e que fazem
parte da constelação de personagens) e em direção a ela. Ou por conta da estrutura
porosa do texto marcado pela fragmentação, no qual se alternam o som e a
ausência, o dito explicitamente e o silêncio significativo57. Mas também pelo meio
que o autor elege para embalar sua história: com cartas – símbolos de “uma
ausência”, como disse Lacan, e objeto de identidade ambígua58. As cartas são várias.
Uma abre e outra fecha a história, seguindo o arranjo proposto59 pelo autor: “Carta
ao leitor” e “Mensagem ao companheiro Klemente” dão o contorno pessoal e
histórico à obra e evidenciam a presença do autor-narrador-testemunha.
Completando o conjunto, “Carta a uma amiga”, onde a figura fantasmática da filha
de K. é delineada.
O fragmento de abertura não é uma carta, mas sobre cartas que foram
enviadas para a casa de uma pessoa desaparecida. Em “As cartas à destinatária
inexistente”, o narrador, como num jorro, expõe a um só fôlego seus pensamentos,
57 Pensando em termos do diálogo que alterna momentos de som e de silêncio. 58 LACAN, Jacques (1966). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 27. 59 Esse arranjo não é estanque, como vimos.
42
suas dúvidas, suas sensações, suas memórias em tom melancólico e confessional.
Começa assim:
De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um produto ou serviço financeiro. A mais recente apresentava um novo cartão de crédito, válido em todos os continentes, ideal para reservar hotéis e passagens aéreas; tudo o que ela hoje mereceria, se sua vida não tivesse sido interrompida. Basta assinar e devolver no envelope já selado, dizia essa última carta.60
De supetão, o leitor é empurrado para o centro do redemoinho temporal. A
locução adverbial “de tempos em tempos” figura a medida da inconstância desse
“compositor de destinos” 61 , o tempo – fio condutor da memória, identidade e
história. Questões fundadoras do relato de K. apresentadas logo no primeiro
parágrafo do fragmento. A relação da memória, do passado, e sua ligação com o
presente, melhor dizendo, seu efeito no presente e no futuro ainda por vir são
apresentados por meio do envio de cartas de bancos para “a destinatária ausente”62,
que não poderá aceitar e usufruir dos benefícios que lhe são oferecidos, porque
nunca irá recebê-las. As cartas, ao não cumprirem o destino esperado, passam a
desempenhar a função de protagonistas. Nesse espaço do não cumprimento, da
negação, elas deixam de ser meio e se tornam o sujeito do fragmento, deflagrando o
“inventário de perdas da perda de uma vida”. Aqui diremos que é pela ótica
lacaniana, das cartas como significantes materializados, como locus do
inconsciente63, que Kucinski dispõe desse símbolo. Diz o narrador-autor: “É como se
as cartas tivessem a intenção oculta de impedir que sua memória na nossa memória
descanse”64. As cartas, não o remetente, veja bem. Elas portam ofertas sedutoras
impossíveis de serem aceitas, e, a partir dessa impossibilidade de cumprirem o seu
destino em virtude da inexistência da destinatária, refletem a promessa de um futuro 60 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 15. 61 Peguei essa expressão emprestada da música “Oração do Tempo”, de Caetano Veloso. 62 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 17. 63 LACAN, Jacques (1964). O seminário, livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 64 Idem.
43
que nunca se realizará. “Eu sempre lamentei em especial essa consequência de tudo
o que aconteceu”65, queixa-se o narrador-autor após ter feito “a contagem dos
tempos”66 e percebido que aquela casa para onde as cartas são enviadas a irmã não
conheceu, assim como não conheceu seus filhos – os sobrinhos dela. Elas são
símbolos das ausências (no plural). Da ausência inerente a toda carta e da ausência
de um corpo que permita que o nome da “destinatária inexistente” seja retirado do
“rol dos vivos”. Elas, as cartas, materializam a instância da morte.
A ausência do corpo do morto é retomada em outros dois contos do autor
publicados no livro Você vai voltar para mim. Em “O velório”, um pai, um senhor de
noventa anos, temendo a aproximação da morte, decide fazer o enterro do filho
desaparecido para não, segundo ele, “morrer sem enterrar o meu Roberto” (grifo
nosso). Quando o velho Antunes usa o pronome possessivo meu antes do nome do
filho, expressa a dimensão da força dos laços familiares e da dor que a ruptura
brutal desses laços causa. O meu encerra o ente de quem foi roubado o direito de
vida e de morte, aquele de quem, com a negação do corpo, querem provar que nada
lhe pertencia, nem mesmo a morte, “e que ele não pertencia a ninguém”67. O
pronome possessivo meu, colocado estrategicamente por Kucinski, nocauteia a
tentativa torpe do Estado autoritário de apagar a memória dos seus desafetos. Ele
prova que Roberto pertencia, tinha nome, sobrenome, e uma família que lamenta a
sua morte:
Ao contrário do marido, que se tornou um homem seco e calado, dona Rita ainda chora quase todas as noites a ausência do filho. Também por isso o velho Antunes decidiu fazer o enterro. Pela sua Rita, pelas irmãs do Roberto, pela família toda. Os mortos têm que ser enterrados.68
A família, privada da “terapia do luto” e sentenciada ao mergulho eterno na
melancolia, rompe com esse fardo e mitiga o seu sofrimento por intermédio daquilo
65 Ibidem. 66 Idem. 67 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 501. 68 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 50.
44
que lhes foi negado e proibido: o ritual funerário. Seu Antunes deseja enterrar o filho
e, assim, realizar um “sonho de tantos anos”, para, depois, poder “morrer em paz”.
Curioso que o “sonho” não é rever o filho ou ver os culpados pelo seu sumiço
pagarem pelos crimes que cometeram. Não. Nada tão absurdo e distante quanto o
sugerido. Somente o direito ao corpo, a essa altura, à ossada, vai permitir cumprir o
rito de passagem do velório seguido de um sepultamento, ou seja, cumprir os ritos
funerários e o luto – manifestação que integra a memória individual e também
coletiva, particularmente a da comunidade à qual o morto pertencia. Como vemos
abaixo:
Às três da tarde tem-se a impressão de que todos os viventes da cidade estão no velório tão concorrido. Não se vê ninguém nas outras ruas, na praça da matriz, na rodoviária. Virou cidade fantasma.69 [...] E toda a cidade compreendeu. Isso foi o mais importante.70Toda a cidade. Até o padre Gonçalves, que primeiro lavou as mãos, depois deu a benção.71
A cidade inteira comparece para se despedir de Roberto, um de seus filhos e
parte de sua memória. Mas o enterro simboliza mais do que isso. É o
reconhecimento pela sociedade do erro cometido pelo Estado. Se não houve
reparação oficial, pública, que tenha resgatado Roberto da condição de pária à qual
fora lançado, nem mesmo a devolução do corpo, da ossada, o que seria uma prova
de que a vítima foi ele, Roberto, e não o Estado, houve a reparação privada, a da
comunidade.
As Mercedes são solteironas e vivem sós. No começo fofocaram sobre o sumiço de Roberto, depois não. A Rita diz que não foi por maldade. (grifo nosso)72
69 Idem, p. 54. 70 Ibidem, p. 55. 71 Ibidem, p. 54. 72 Ibidem, p. 51.
45
Eis a síntese de um processo que é ao mesmo tempo individual, social, e,
também, estético. Síntese discursiva que não admite desperdícios verborrágicos, no
estilo que Proust gostaria para Flaubert: “coeso, de pórfiro, sem fendas, sem
acréscimo”73, no qual se vê apenas a “aparição” das coisas. E a “aparição” se dá
através do discurso do narrador sobre o comportamento das irmãs Mercedes:
“fofocaram” – de viés é revelado como a história oficial é/foi aceita como verdadeira
(por ingenuidade e talvez falta de informação) e o contágio nocivo dessa
desinformação através do boato. A fofoca sempre prenhe de informações, que
raramente se comprovam, mas que são eficazes em semear a dúvida, é prolífica e
tem o poder de se propagar e multiplicar. Ela foi/é importante aliada na construção,
divulgação e manutenção da narrativa autoritária. A ruptura e a anulação do poder
da fofoca, todavia, acontece porque entre a narrativa oficial e a seu esfacelamento,
interpõe-se o tempo, e, hoje, dia do enterro, toda a cidade comparece, inclusive o
prefeito, o delegado e o padre. A culpa jurídica (do filho) e moral (dos pais)
imputada a eles pelo Estado e pela sociedade (respectivamente) parece absolvida.
Seu Antunes e sua família finalmente conseguiram “uma anistia ampla, geral e
irrestrita”, porque “toda a cidade compreendeu. Isso foi o mais importante”74. É a
redenção.
Aqui vale recorrer à análise do filósofo italiano Giorgio Agamben sobre a
absoluta confusão entre categorias jurídicas e categorias éticas, em que culpa e
responsabilidade, inocência, julgamento, absolvição etc. foram alçadas a supremas
categorias éticas pela ética laica. “Ter” uma culpa ou uma responsabilidade “significa
sair do âmbito da ética para ingressar no do Direito”75. Resistir, dentro dessa lógica,
e no contexto das famílias e das vítimas da ditadura brasileira, é retornar ao campo
de onde nunca deveria ter saído: o da ética.
O segundo conto é a história de Joana, uma mulher que há vinte e seis anos
procura pelo marido desaparecido pelo Estado. Raimundo, o marido operário, ligado
73 PROUST, Marcel apud ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 42-43 74 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 55. 75 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 33.
46
a um grupo da AP (Ação Popular), foi levado de casa pela polícia e, segundo relatos,
foi espancado tão brutalmente que morreu no mesmo dia em que fora sequestrado.
No entanto, nada convence Joana de que o marido está morto. “Cadê o corpo?”,
pergunta. “Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado
de óbito de Raimundo e mostrarem a sepultura”. Nem o cardeal assegurando a ela
que o marido foi espancado e morto a convenceu. Para ela, Raimundo ficou
desmemoriado ou cego com a surra que levou. Por isso, percorre as ruas atrás de
pistas sobre o marido. Vaga pelas ruas do centro de São Paulo falando com os
indigentes na esperança de encontrá-lo. A busca de Joana pelo marido é um eterno
tropeçar em fracassos. Uma constante imobilidade em direção ao mesmo ponto de
partida. A perseguição infinita àquela ausência-presente, mais-que-presente, que
define e dá sentido à sua vida. A busca de Joana é a de K., a de seu Antunes e a de
todas as famílias de desaparecidos. “Sim, pensando bem acho que essa é sobretudo
uma história de amor, um desses amores intensos que nem o tempo nem a ditadura
conseguiram extinguir” 76 . Nem o tempo nem a ditadura conseguiram extinguir
porque não podemos desprezar a força dos afetos, tampouco a sugestão de
invencibilidade e destemor que os atravessa. Afinal, “[que] poderiam eles fazer que
já não tenham feito?”77
1.3.1 As cartas à destinatária inexistente
É assim, como inexistente, que o narrador (autor?) denomina a tia de seus
filhos, sua irmã, a destinatária das cartas. Hannah Arendt, no livro As origens do
totalitarismo, afirma que “os campos de concentração, tornando anônima a própria
morte e tornando impossível saber se um prisioneiro está vivo ou morto, roubaram
da morte o significado de desfecho de uma vida realizada. Em certo sentido
roubaram a própria morte do indivíduo, provando que, doravante, nada — nem a
morte — lhe pertencia e que ele não pertencia a ninguém. A morte apenas selava o 76 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 60. 77 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 71.
47
fato de que ele jamais havia existido”78. (grifo nosso) Se substituirmos o início da
afirmação da filósofa alemã, de “os campos de concentração” para “a ditadura civil-
militar”, perceberemos que o processo de apagamento dos vestígios da existência
intentado pelo regime autoritário brasileiro foi semelhante, em certa medida, e
guardadas as devidas diferenças entre os dois regimes, ao mencionado por Arendt.
Reparo a apropriação e a utilização da linguagem, dos símbolos e da máquina
do Estado para denunciar o arbítrio, a incoerência, a incompetência e a crueldade do
próprio Estado. Estratagema que não apenas legitima o relato, como inocula no leitor
a prevenção contra a desconfiança – tão própria ao testemunho-ficcional. Ao
inscrever “jamais tinha existido” no texto, a expressão do inimigo e inimiga da
memória (porque o que inexiste não pode deixar lembranças), Kucinski apropria-se
do vocábulo que expressa a condição que o sistema tenta impingir aos
desaparecidos e o vincula à destinatária. Uma imprecisão, ou (quem sabe?) prova da
naturalização da mentira contada pelos militares, não fosse a certeza da habilidade
lapidar do autor com as palavras79. A apropriação e a reprodução da palavra alheia,
para, através dela, da própria palavra, contestá-la, comprovam que Kucinski
compreende a especificidade desse objeto do discurso, “pois pode-se falar da palavra
do outro somente com a ajuda da própria palavra do outro”, diz Michail Bakhtin,
“trazendo a ela nossas próprias intenções e esclarecendo-a à nossa maneira, pelo
contexto”80.
Então, a expressão “jamais tinha existido” é tomada do inimigo, colocada em
novo contexto, em destaque, para a exibição do projeto de apagamento que se
construiu pela negação da existência. In-existente – entendido como a anexação de
negação da vida ao vivente, um ato de eliminação dupla daquele que existe. E
subversão: a negação pela negação, uma afirmação, por fim. A afirmação da vida
pela negação da existência revela-se na via escolhida para a comprovação da 78 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 501. 79 Acreditamos que a escolha da palavra “inexistente” foi consciente e estratégica, pela via da ironia, pelo desejo de problematizá-la. Trata-se de um diálogo travado com o discurso do outro sobre si mesmo, o quanto podemos ou queremos lutar contra a apropriação que o outro faz da nossa própria história, o quanto podemos ou queremos recontá-la com nossas próprias palavras ou ressignificar as palavras alheias, ou se aceitamos ser só objetos-personagens em vez de também narradores. 80 BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2002, p. 153.
48
existência. Vejamos:
Correio e banco ignoram que a destinatária já não existe; o remetente não se esconde, ao contrário, revela-se orgulhoso em vistoso logotipo. Ele é a síntese do sistema, o banco, da solidez fingida em mármore; o banco que não negocia com rostos e pessoas, e sim com listagens de computador.81
A via de afirmação da existência a que me referi é o banco: a “síntese do
sistema”82. Do sistema político, social e econômico atual, seguimento do sistema
repressivo passado, financiado e sustentado por esses mesmos bancos para garantir
a constância dos lucros. Essa instituição que encerra o seminal fator motivacional
para a instauração do golpe e que, de forma indireta, compactuou com a prisão, o
desaparecimento e a tentativa de rasura da vida da filha de K. (e de tantos outros),
é a mesma que atesta e comprova a presença da filha. O banco não lida “com rostos
e pessoas”83 , com a presença. Para ele, o que importa são as “listagens”, os
registros, o ser inscrito na papelada administrada pela burocracia, a única que tem o
poder de provar, comprovar e atestar que o ser está aí, diríamos, jogando com a
noção de “ser-aí” heideggeriana, que ele existe, é individual e finito. A burocracia
que, no mundo de Kafka, é o centro e a definição do universo e, também, síntese do
sistema, porque é a partir dela, de seus registros, de suas certidões, que a existência
concretiza-se em existência social.
Kucinski, desde o texto de abertura, denuncia a feição da burocracia, não
como fenômeno social, mas como essência do mundo84, ao modo de Franz Kafka.
Ele utiliza-se dela para dar sentido ao que não faz sentido e explicar o que não
merece explicação. E vai longe, concede a ela o papel duplo de testemunha e de
prova da existência denegada (no sentido de rasurada e de eliminada) de sua irmã.
Essa casa ela nunca conheceu. Fiz a contagem dos tempos e descobri
81 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 15. 82 Idem. 83 Ibidem. 84 KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ed., 1986, p. 95.
49
que já haviam transcorrido seis anos de seu desaparecimento, quando compramos a desgastada casa de velhos imigrantes portugueses. Não, ela nunca conheceu a nossa casa. Nunca subiu os degraus íngremes do jardim da frente. Nunca conheceu meus filhos. Nunca pôde ser a tia dos sobrinhos. Eu sempre lamentei em especial essa consequência de tudo o que aconteceu.85
A destinatária inexistente é apresentada através de uma relação de objetos
que não vai ter, ou ver, e pelo futuro que não vai acontecer, perspectiva que reforça
a sua ausência e dialoga produtivamente com o “centro da poética do regime
estético da arte”86, de Jacques Rancière. O estado transitório do inumano para o
humano, exemplificado acima e no corpo da carta, subscreve ao regime estético da
arte, ou seja, a um tecido de permutas intensas entre reinos considerados
impermeáveis entre si87. A desvinculação de uma descrição pessoal, calcada nos
sentimentos e nas emoções, segundo Rancière, exibe a força da ficção, porque
“desfaz a lógica automática que vincula determinado acontecimento ou tema a
determinada forma de dizer, quando mostra que ao fim e ao cabo não há forma
apropriada para contar isto ou aquilo, mas uma disponibilidade radical de trânsito
entre as coisas e as expressões disponíveis para dizê-las”88. Essa assimilação da
condição de inexistente, do inumano, para explicar o humano, e o uso das cartas
como sujeito são, acima de tudo, a tentativa do autor de entender a “violenta
ausência” – apossando-me da belíssima imagem construída por Clarice Lispector e
reproduzida na epígrafe deste capítulo – para poder recriá-la, para dela fazer uso e
recriar os dias em que K. a perseguiu. Kucinski recorda o futuro de sua irmã,
enxerga na impossibilidade de realizações e, no que ela não vai ter ou ser, a
dimensão incessante da tragédia, porque, sem porvir, não há possibilidade de
redenção.
O carteiro nunca saberá que a destinatária não existe; que foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura militar. Assim como o ignorarão, antes dele, o separador das cartas e todos do seu entorno.
85 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 17. 86 RANCIÈRE, Jacques. Figuras do testemunho e democracia. Revista Intervalo, maio/2002, pp. 177-186. 87 BINES, Rosana Kohl. Pela voz de um menino? Artigo apresentado no XII Congresso Internacional da Abralic, julho, 2011. Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0132-1.pdf. Acesso em 30 de outubro de 2014. 88 Idem.
50
O nome no envelope selado e carimbado, como a atestar autenticidade, será o registro tipográfico não de um lapso ou falha do computador, e sim de um mal de Alzheimer nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vivos será, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos.89
Percebe-se que, mesmo optando por um discurso no qual o narrador fala em
primeira pessoa e sua visão é subjetiva, o autor estrutura a narrativa de maneira que
sua voz se camufle por trás dos “fatos” e que eles, os “fatos”, esclareçam aquilo que
o carteiro, o separador das cartas e todos no entorno deles não sabem: “que a
destinatária não existe; que foi sequestrada, torturada e assassinada pela ditadura
militar”90. O narrador não declara o que aconteceu, ele meramente revela algo que
os funcionários públicos ignoram e que, talvez, seja o motivo pelo qual as cartas
continuarão sendo entregues. Ele, mesmo falando diretamente ao leitor, não afirma
as circunstâncias do desaparecimento, limita-se a demonstrar uma hipótese para a
“falha” do sistema.
O sistema é representado pela coisa pública (correios e bancos), anônimo,
secreto, indecifrável, inatingível, lacunar, e que, já na abertura do romance, aparece
como substrato e personagem da história. Kucinski começa a exibir os primeiros
tijolos da muralha burocrática que vai se construindo ao longo da narrativa para
manter K. à parte da verdade, através da exposição do resultado da burocratização
das atividades sociais, que são, no fim das contas, responsáveis por transformar
“todas as instituições em labirintos a perder de vista”, resultando na
despersonalização do indivíduo91. Kucinski expõe que a burocracia não vê “pessoas
ou rostos”, apenas listagens de papel, e a lógica da impessoalidade e da opacidade.
Ponto vital para a construção e o entendimento da história: apagamento e
esquecimento, em eterno processo de retroalimentação e de contraposição.
Retornando à “falha” (ou brecha) do sistema na entrega de cartas à
destinatária inexistente, diz o narrador:
89 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 17. 90 Idem. 91 KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 97.
51
O nome no envelope selado e carimbado, como a atestar a autenticidade, será o registro tipográfico não de um lapso ou falha do computador, e sim de um mal de Alzheimer nacional. Sim, a permanência do seu nome no rol dos vivos será, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos92.
A carta, produto da brecha do sistema, passa pelas mãos ignorantes do peso
do seu significado, não cumpre o seu destino original, mas, ainda assim, é o arauto
que denuncia o “mal de Alzheimer nacional”93. A beleza simbólica desse arranjo, em
que, por sobreposições de ausências (carta/destinatária/corpo), a presença constrói-
se diante dos olhos do leitor, confere ao relato melancólico, duro, indignado, o ponto
de fuga da “realidade” acachapante rumo ao lirismo da subjetividade. “O ato
testemunhal é poético, ou não é, a partir do momento em que ele deve inventar a
sua linguagem e formar-se em um performativo incomensurável”94 , diz Jacques
Derrida a propósito de O instante de minha morte de Blanchot. Podemos argumentar
que a atitude poética do testemunho ficcional de Kucinski relaciona-se com dois
aspectos distintos. O primeiro, mais relacionado à reflexão derridiana do ato poético,
tem a ver com o fato de a poesia estar na mediação do sujeito que se apropria da
realidade e precisa dar conta dela com os recursos de que dispõe e, muito
frequentemente, inventando outros. Às vezes inventa até outra realidade, porque a
sua é dura e indizível. Até que o sujeito consegue, finalmente, dizê-la, por
estratégias e subterfúgios muito particulares, ou muito particularmente rearranjados.
Então, a poesia do ato estará sempre no embate do sujeito com a dureza e
irredutibilidade da realidade, e também com a flexibilidade das palavras que podem
ser usadas para sua apropriação. Embora o que se deseje mesmo, muitas vezes, é
sua transformação. E, diante desse desejo, o sujeito lida com o que a palavra tem de
mágica, ou de impotente. O segundo aspecto diz respeito à poesia do ato estar na
própria apropriação e ressignificação, pelo autor, das palavras “do sistema”,
92 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 17. 93 Idem. 94 Jacques Derrida: “(...) the testemonial act is poetic or it is not, from the moment it must invent its language and form itself in an incommensurable performative”. Cf. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony, loc.cit., p. 83.
52
empregadas e devolvidas pelo narrador-personagem como índices de
problematização da realidade.
Em “As cartas à destinatária inexistente”, a colocação do termo que nega a
existência da personagem principal no título do fragmento reafirma a ausência como
tema, enredo, ponto de convergência e fascínio. As cartas simbolizam essa ausência
e ainda carregam e deixam o rastro dessa ausência: a inscrição da lembrança “de
uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar
definitivamente”95. As cartas, na função dual que exercem, atiçam o conflito entre
lembrar e esquecer, e deixam à mostra o processo dialético entre lembrança e
esquecimento. Elas reafirmam ainda a relação do esquecimento como função do
lembrar. O paradoxo exposto pelas cartas é o de Kucinski e o da testemunha. Do
autor/narrador como testemunha. No rastro que trazem, ou deixam, as cartas
impedem “que a sua memória [a de Ana] na nossa descanse [na da família]”96.
Nessa afirmação, há uma vontade de repouso, uma mostra de “força inibidora
positiva”, contra uma possível potência nociva e debilitante da memória para a
economia vital do organismo humano, sobre a qual Nietzsche falou na segunda
dissertação da Genealogia da moral. Vamos ao primeiro parágrafo que nos interessa:
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.97
95 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 44. 96 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 16. 97 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 17.
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Seguindo essa linha de reflexão, e pensando nas histórias coletivas, podemos
inferir que não são construídas apenas pela memória, são também produzidas pelo
esquecimento momentâneo/passageiro (salutar) e pelo silêncio 98 . Na esfera
individual, no caso de Kucinski, a necessidade do esquecimento é uma precaução
salutar a fim de não terminar louco, num quarto escuro, como o personagem
borgiano, que é pura memória, que de tudo se lembra, sem, contudo, e, por isso,
conseguir assimilar o presente. Jeanne Marie Gagnebin afirma, a partir de Nietzsche,
que diante do apelo do presente é preciso saber esquecer99. O ato racional de
deslocar-se da morte e da perda e voltar-se para a vida, que, arranjado pela
memória, o enlutado deveria realizar, precisa equilibrar-se na sutil dinâmica entre
lembrar e esquecer, na qual se corre o risco de intensificação da dor100. “Como se,
além da morte desnecessária, quisessem estragar a vida necessária, esta que não
cessa e que nos demanda filhos e netos”101. Kucinski, seguindo na direção apontada
pelo filósofo, optou pelo esquecimento, pela repressão da experiência traumática
para seguir vivendo pelos que estão vivos, pela vida no presente. Seu período de
“latência” 102 entre a experiência e “o desencadeamento do processo mental e
psicológico”103, que o levou à rememoração e à narração do “fato”, durou 40 anos.
Período em que, apesar de todo esforço do esquecimento, a lembrança sempre
compareceu como potência, em especial porque não há saudade sem memória.
“[C]omo se, além de nos haverem negado a terapia de luto, pela supressão do seu 98 Michael Pollack no texto Memória, Esquecimento, Silêncio afirma que “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” In POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf . Acesso em 21 de janeiro de 2015. 99 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 12. 100 SILVA, Paulo José Carvalho. Lembrar pra esquecer: a memória da dor no luto e na consolação. São Paulo: Rev. latinoam. psicopatol. fundam. vol.14 no.4, Dec. 2011. 101 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 16. 102 Aqui estamos usando na acepção Freudiana que indica o tempo ocorrido entre a experiência traumática e o aparecimento dos sintomas. A propósito ver: CARUTH, Cathy. “Introduction”.In Trauma – Explorations in Memory. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995, p. 7. Em capítulo posterior, usaremos o mesmo conceito de latência definido por Paul Ricouer. 103 KUCINSKI, Bernardo em entrevista concedida à jornalista Tainã Mansani, do jornal Deutsche Welle Brasil. Disponível em: http://www.dw.de/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/a-17131513. Acesso em 31 de outubro de 2014.
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corpo morto, o carteiro fosse um Dybbuk, sua alma em desassossego, a nos apontar
culpas e omissões”104. Essa imagem do carteiro como Dybbuk – que, na mitologia
judaica, figura a alma insatisfeita que se cola a uma pessoa, em geral, para
atormentá-la105 – medeia as noções de rastro relativas ao esquecimento, que é a de
apagamento e destruição106; e a de rastro e memória, que indica a tensão entre “a
presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado
desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção
em um presente evanescente”107. O Dybbuk é aquele que relembra a Kucinski e à
sua família a fragilidade da memória e do rastro, e que apresenta ao leitor outro
paradoxo: o do esquecimento e o do luto. Pois, em sentido oposto, para completar o
processo de luto, é preciso, antes, lembrar. Visto que Freud, em “Luto e Melancolia”,
declara que, para o trabalho psíquico no luto, deve-se pronunciar interiormente a
morte de quem se foi (ato quase impossível no caso das famílias que não tiveram um
corpo para expiar a dor através dos ritos). Ora, tal exercício demanda a exigência da
lembrança para o esquecimento, e não de um esquecimento passivo, fruto da vis
inertiae [força inercial], como a mencionada por Nietzsche. Esse processo de lembrar
para conseguir esquecer, Kucinski completará ao escrever sua ficção-memorialística:
“Nesse momento se dá o processo de catarse, eu entendo o livro como uma
catarse”108. E aí uma outra encruzilhada surge: a do esquecimento consequente da
lembrança e da narração. Nas palavras de Cathy Caruth: “a capacidade de lembrar é
também a capacidade de omitir ou distorcer (...), e em outros casos, pode significar
a capacidade de simplesmente esquecer” 109 . Eis o dilema da testemunha: a
possibilidade do esquecimento ao traduzir sua experiência em discurso.
104 Idem. 105 Ibidem, nota de rodapé. 106 RICOUER, Paul. Memória, história, esquecimento. Artigo escrito e apresentado na conferência “Haunting memories? History in Europe after authoritarism”. Budapest. Março, 2003, p. 6. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia. Acesso em 03 de novembro de 2014. 107 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 44. 108 KUCINSKI, Bernardo em entrevista concedida à jornalista Tainã Mansani, do jornal Deutsche Welle Brasil. Disponível em: http://www.dw.de/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/a-17131513. Acesso em 31 de outubro de 2014. 109 Cathy Caruth: “the capacity to remember is also the capacity to elide or distort (…), and in other cases, may mean the capacity simply to forget”. CARUTH, Cathy. “Introduction”. In Trauma – Explorations in Memory. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995, p. 154.
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No entanto, para além da perda de precisão há outra, mais profunda, o desaparecimento: a perda, precisamente, da incompreensibilidade essencial do evento, a força da sua afronta ao entendimento. É o dilema que sublinha a relutância de muitos sobreviventes de traduzir sua experiência em discurso.110
As incertezas relacionadas ao paradoxo relativo à memória do trauma, ao
processo de restabelecimento dos fragmentos em memória passível de verbalização,
e à eventual perda da sua essência, são curiosamente superadas por uma outra
dicotomia: “falar é impossível, e não falar é impossível”111.
Diante desse panorama, imaginamos Kucinski ponderando essas forças
antagônicas e paralisantes, enfrentando questionamentos éticos inerentes à narrativa
do evento, e, finalmente, decidindo-se pelo arriscado projeto de rememoração, a
partir dos rastros deixados por sua irmã e seu pai.
Só então me dei conta que se tivesse vendido essa casa, como tantas vezes cogitei, teria perdido as referências de metade da minha vida. Só não entendi o filho mais velho que disse não, essa não é para vender nunca. Para ele essa casa é a totalidade de suas lembranças.112
Curioso notar que, para o filho mais velho, a casa representa a “totalidade de
suas lembranças”, as quais, evidentemente, envolvem a tia nunca conhecida por ele,
tia que, por sua vez, nunca soube, esteve ou conheceu a casa. Se pensarmos no
imóvel como o vestígio de lembrança, como rastro, mas não como presença na
ausência, no caso, como ausência na ausência, talvez possamos compreender a
projeção da lembrança a partir da noção de rastro.
Bernardo Kucinski, nesse texto de abertura, onde estabelece um vínculo de
intimidade entre o leitor e o romance, estabelece também a forma de sua narrativa
labiríntica – onde expressões, palavras, por vezes imagens são a chave para outra
110 Cathy Caruth: “Yet beyond the loss of precision there is another, more profound, disappearance: the loss, precisely, of the event's essential incomprehensibility, the force of its affront to understanding. It is the dilemma that underlines many survivors' reluctance to translate their experience into speech”. Idem. 111 Ibidem. 112 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 16.
56
camada de informação, de conhecimento, de testemunho – o que estimula o
pensamento do leitor a vibrar e a navegar na frequência das imagens e das
sensações oferecidas pelo texto-labirinto.
Vale destacar a unicidade que permeia os fragmentos e as relações entre eles.
Há, entre o texto de abertura, as cartas de A. para uma amiga e a de Rodriguez ao
companheiro Klemente, conforme apontado na descrição da estrutura narrativa, uma
afinidade visual delineada pela fonte tipográfica empregada. A fonte cursiva, cuja
aparência é a de escrita feita à mão, é adotada também no post scriptum. Essa
fonte, geralmente usada em cartas, diários, bilhetes, mensagens, recados e em
comunicações informais, onde o tom é pessoal e íntimo, foi utilizada também nos
textos que embalam o romance, sugestionando o leitor a vê-los como cartas. No
entanto, se os compararmos à carta do autor endereçada ao leitor, na qual o projeto
do livro é apresentado, observaremos a diferença entre o tom formal e seco dessa
carta, em oposição ao sentimental e coloquial dos textos que, claro fica, pretendem
dialogar com o leitor. Chama atenção que, no único fragmento em que o autor se
revela e fala diretamente ao leitor, a estrutura hierarquizada seja mantida pela
distância do discurso formal e até, se levarmos em conta o uso de fonte com
característica pessoal, pela fonte padrão.
Na “Carta ao leitor”, o autor estabelece uma ponte de mão única, onde
explicita seu propósito e o processo de construção da narrativa, num tom didático
próprio às explanações; nos textos, a voz possivelmente autoral transmite
intimidade, estabelece uma via de mão-dupla, reforçada pelos questionamentos (“Se
ela não tinha esse endereço, quem deu ao sistema?”), sem alimentar, contudo, a
ilusão do pacto referencial entre leitor-autor, ao avisar o leitor, na carta endereçada
a ele, que “é tudo ficção”. Assim Kucinski assume a vacância do “eu” textual,
conforme a definição de Paul de Man, descrita por Beatriz Sarlo, no livro Tempo
passado: “[c]omo na ficção em primeira pessoa, tudo o que uma ‘autobiografia’
consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz chamar eu,
toma-se como objeto. Isso quer dizer que esse seu eu textual põe em cena um eu
57
ausente, e cobre seu rosto com essa máscara”113. De tal modo, coberto também pela
máscara do “eu” do escritor, e não apenas do “eu” textual (personagem/objeto
ausente), Kucinski apresenta o testemunho-ficcional, prenhe de biografemas, dessa
outra ausência: a do escritor.
113 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 31.
58
1.4. Cartas
As duas cartas, a de A. para uma amiga e a mensagem de Rodriguez para o
companheiro Klemente, despertam a impressão de presença, dado que os próprios
personagens se revelam sem a mediação do narrador, criando um simulacro de
verdade. E, para temperar um pouco mais o romance com “efeito de realidade”, as
cartas podem ser lidas como escritas por Ana Kucinski e por seu marido, Wilson
Silva. A referência a ela é sugerida pela inicial “A.”, que assina a mensagem; no caso
de Silva, é necessário que o leitor conheça o codinome dele – Rodrigues – na
organização da qual ele fazia parte, a Aliança Libertadora Nacional (ALN). Contudo
percebemos, nessa estratégia sutil, uma manobra para tensionar ao extremo a ilusão
de um “pacto de verdade” entre o leitor e os personagens, ao corporificá-los através
da voz. Soma-se a esse artifício o fascínio da ausência, que imprimiu a esses
personagens uma aura mais pulsante e “verdadeira” do que a dos “presentes” na
ação.
Nesse caminho, e estendendo o alcance dessa miragem, a carta escrita por A.
trava um próximo diálogo com os outros fragmentos, quase como se os estivesse
respondendo ou complementando. Se olharmos pela ótica do jornalismo, podemos
afirmar que o autor está mostrando o outro lado da história, visto que é a versão dos
fatos, que nos foram apresentados antes, pela voz espectral da personagem
ausente. Vejamos:
Com o meu pai ainda me encontro uma vez por semana, ou a cada duas semanas. Depois que casou de novo ele se tornou mais carinhoso comigo, quer me agradar; acho que se agarra em mim por necessidade, como a filhinha daquela família que ele formou e que não existe mais. Ao mesmo tempo, ocupa-se cada vez mais dos seus amigos escritores. Acho que pelo mesmo motivo. Acabou a família e para ele existe agora o iídiche. Refugia-se no iídiche. Você acredita que se reúnem todas as semanas? (...) Mas ai de quem interrompe a reunião114.
Impossível não reconhecer nessa voz a figura fantasmática da filha de K. A.
corrobora as informações passadas pelo narrador sobre K., faz referência às reuniões
114 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., pp. 52-53.
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do grupo de escritores de iídiche, aos “bundões” da Química, ao fato de se sentir
“sem chão” no departamento e de não se alegrar na companhia dos colegas, em
especial dos homens. Ela menciona também o irmão, que está de partida para a
Inglaterra e que se acha intocável depois que “vestiu a camiseta de jornalista” – uma
clara referência ao autor. Vemos aqui a dissociação, supramencionada, entre o
escritor e o autor, que funciona, também, como uma breve interrupção do
movimento centrípeto de absorção115 do leitor. A oscilação entre forças centrífugas e
centrípetas ocorre tanto no texto quanto na arquitetura do romance, fazendo com
que o leitor experimente a vertigem e o mal-estar da incerteza que acompanha a
busca empreendida por K. O caminho sinuoso armado pelo autor corresponde à
proposta de uma narrativa que se equilibra entre a arte e a vida, que se quer quase-
verdade e que, por isso, não pode deixar o leitor nem muito confortável na ficção,
nem muito confiante na “realidade” dos “fatos”.
Eu que gosto tanto de cinema, virei uma reclusa. (...) Da Química, volto direto para casa. Tenho evitado encontros com amigos. Só mesmo as saídas para almoçar na Biologia. Quando tem feriado prolongado, vamos para bem longe, fora de São Paulo, onde ninguém nos conheça. (...) Às vezes eu me pergunto: por que tudo isso? Não sei se é paranoia, mas sinto um perigo me rondando. Todo dia prendem alguém no campus. Não preciso falar do que tem acontecido. O clima está muito pesado. Como sair disso?116
A expressão da vida tolhida pelas escolhas apaixonadas, pela desilusão, pelo
sentimento desesperador de estar num beco sem saída e pelo medo do que possa vir
a acontecer confere ao personagem um caráter humano e ao romance a
possibilidade de desconstruir a versão oficial do personagem “terrorista”, que
infelizmente perdura até os dias de hoje no imaginário de boa parte dos brasileiros.
Para simbolizar o lado humano dos opositores, a paixão da personagem pelo
companheiro (pelo marido, imaginamos) e pela cachorrinha de raça:
Minha única alegria hoje, além da paixão de que já te falei, é uma cachorrinha que ganhei dele, uma graça, tratamos como filha, banho de shampoo toda semana, passeio no parque toda tarde. Se chama Baleia.
115 Estou usando esse termo nos dois sentidos que ele acumula, como assimilação e como desaparecimento figurado. 116 Idem, p. 51.
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Homenagem ao Graciliano, claro. Mas não é vira-lata, tem pedigree e tudo. Até desses passeios com a Baleia tenho medo, mas como negar isso a ela? Você ia gostar da Baleia, é uma poodle branca, toda peluda.117
O verbo na primeira pessoa do plural sugere a convivência compartilhada do
casal – importante detalhe que aproxima/revela as biografias –, e a prática de levar
a cadelinha para passear, apesar da iminência do perigo, sublinha o abandono e a
generosidade dos opositores ao regime em colocar ideais e ideias antes da própria
segurança e bem-estar.
Retomemos brevemente o pensamento de Mikhail Bakhtin sobre a poética de
Dostoievski no que ele nos interessa. Ao identificar no sentido da forma artística de
Dostoievski a libertação e a descoisificação118 do homem, o filósofo percebeu na
configuração do herói, na relação de sua voz com a voz do autor, que ele, o autor,
“não fala do herói, mas como o herói”119, não conferindo a ele, dessa maneira, uma
existência acabada, e dando a ele uma voz própria, independente e, assim,
concedendo a ele uma consciência dialogizada, diz Bakhtin:
Assim, a nova posição artística do autor em relação ao herói no romance polifônico de Dostoiévski é uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução do herói. Para o autor o herói não é um “ele” nem um “eu” mas um “tu” plenivalente, isto é, o plenivalente “eu” de um outro (um “tu és”). O herói é o sujeito de um tratamento dialógico profundamente sério, presente, não retoricamente simulado ou literariamente convencional. E esse diálogo – o “grande diálogo” do romance na sua totalidade – realiza-se não no passado mas neste momento, ou seja, no presente do processo artístico.120
Aproveitando essas pegadas filosóficas para entender a dinâmica da escrita de
Kucinski, no que tange às vozes que povoam os discursos e à “coisificação” do
117 Ibidem, p. 52. 118 Segundo Bakhtin: “Com imensa perspicácia, Dostoiévski conseguiu perceber a penetração dessa desvalorização coisificante do homem em todos os poros da vida de sua época e nos próprios fundamentos do pensamento humano”. BAKHTIN, Mikhail. Problemas na poética de Dostoievski. Forense Universitária ed., 2005, p. 64. 119 Idem, p. 65. 120 Ibidem, p. 64.
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homem, faremos uma leitura do romance pelas lentes da polifonia. Seguindo essas
pegadas, percebe-se, nesse fragmento, que Kucinski dá voz à personagem ausente,
possibilitando que, por um breve momento, ela se faça presente na trama. A
corporificação de A. é fundamentada na palavra e na interação com o outro, em que
a personagem “se faz sujeito forjando seu próprio eu”121 ao se relacionar com um tu,
uma amiga. A partir do diálogo, ouvimos A. (re)afirmando sua existência,
apresentando sua visão/versão dos “fatos”, e desconstruindo a narrativa
desumanizadora oficial. Ouvimos também os ecos da voz do autor no discurso de A.
Ou seja, ouvimos o autor pela voz de A. Essa sobreposição de vozes, da palavra do
autor sobre a de A., mais uma vez recorrendo a Bakhtin, da “palavra sobre alguém
presente, que o escuta (ao autor) e lhe pode responder”122, confere ao romance uma
camada afetiva e ao autor a possibilidade de interação dialógica com o espectro de
sua irmã. Portanto, para além dos evidentes discursos social e político da carta, há o
discurso afetivo, no qual o autor devolve à sua irmã – e ao seu pai – a sua
existência, presenteia-os com a devolução da palavra e, em retorno, ouve-se nas
palavras pronunciadas por ela123. Ele concede a ela, a si mesmo e à sua família “uma
anistia ampla geral e irrestrita”, ao estilo concebido por Salinas Fortes.
Essa proposição nos compele a fazer um pequeno desvio. Luiz Roberto Salinas
Fortes se pergunta o motivo de escrever. “Por que relembrar águas passadas e
repassadas e bem passadas? Qual a importância, afinal, do gênero – como chamá-
lo? – memorial? A única coisa que sou capaz de dizer no momento é que se as
escrevo – as memórias – é para dar a mim mesmo, conceder-me em benefício
próprio, uma ‘ANISTIA AMPLA GERAL E IRRESTRITA’, já que ninguém me
concede”124. O romper o silêncio mediante a palavra é um ato em busca do sentido,
121 BUSBNOVA, Tatiana. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin. Bakhtiniana, São Paulo, 6 (1): 268 - 280, Ago./Dez. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/bak/v6n1/v6n1a16. Acesso em 12 de outubro de 2014. 122 BAKHTIN, Mikhail. Problemas na poética de Dostoieviski. Forense Universitária ed., 2005, p. 65. 123 Esse efeito é um dos tons do bivocalismo identificado por Michail Bakhtin na literatura. Conquanto, como estamos analisando uma obra com traços autobiográficos, para aprofundarmos a medida do discurso afetivo, de seu estranhamento e, ao mesmo tempo, não reconhecimento como familiar, apesar de muito familiar, por parte do autor, faremos uma analogia com a fotografia de família e o assombro que, por vezes, causa nos reconhecermos em semblantes que não são nossos (i.e. irmãos e pais), e não nos reconhecermos em nós mesmos (i.e. infância e adolescência). 124 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 80.
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de algum sentido, no excesso da linguagem. Para Salinas, representou recuperar a
voz que lhe havia sido roubada para “não deixar que tudo se perca e evapore”125 e
consumar seu testemunho-testamento. Uma subversão do mutismo, corolário do
trauma, que afoga o sujeito na ausência de som e no vazio do sentido. Um ato ético
concretizado na palavra que age sobre o mundo e sobre o outro.
Para Kucinski, a encarnação do narrador sucateiro126, idealizado por Walter
Benjamin, cuja missão é a de recolher as sobras do discurso histórico e manter viva
a memória daqueles que não têm nome, os anônimos, e daquilo “que não deixa
nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua
existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que
ninguém lembra de seus nomes” 127 . Por mais que a motivação de cada um
transforme o ato do rompimento do silêncio por meio da escrita em algo
personalizado e distinto, Kucinski e Salinas são, acima de tudo, a expressão do
narrador moderno de Benjamin: “a figura na qual o justo128 se encontra consigo
mesmo”.
Ambos optaram pelo ato ético da escrita para não deixar o passado cair no
esquecimento, e ambos escolheram a escrita como ferramenta de luta contra o
esquecimento – pedra lapidar onde inscrevem seus nomes e os de seus mortos,
tentando reverter ou anular, com esse gesto, a radical ausência do corpo, da
sepultura e da palavra129.
1.5. A literatura como caminho
No capítulo em que Kucinski narra “O abandono da literatura” pelo
personagem principal, a aporia entre o dever da memória e o esquecimento se 125 Idem. 126 Expressão de Jeanne Marie Gagnebin. 127 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 54. 128 Segundo Gagnebin, o Justo é “uma figura mística da cultura judaica cuja característica mais marcante é o anonimato; o mundo repousa sobre os sete Justos, mas não sabemos quem são eles, talvez nem eles mesmos o ignorem”. Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 53. 129 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 46.
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coloca e desencadeia no texto (e a partir dele) a reflexão sobre a re-presentação da
dor em literatura. Através do narrador, ele questiona a dificuldade que K., “um poeta
premiado”, encontra para “expressar sua desgraça”. Ele apresenta o conflito entre a
necessidade e a (im)possibilidade de representação da catástrofe quando K.
sucumbe à necessidade de narrar e decide, ele mesmo, virar testemunha – o que
faz, nas suas palavras, para lidar com o próprio infortúnio.
Mas os dias foram se passando, as semanas, os meses, e ele nada escreveu. Agora estava arrependido, deveria ao menos ter mantido um diário de seus contatos, de suas buscas. Agora quando já não havia mais esperanças, quando seus dias custavam a passar na agonia de não ter mais o que procurar ou a quem falar, só lhe restava mesmo retomar seu ofício de escritor, não para criar personagens ou imaginar enredos, para lidar com seu próprio infortúnio.130
O chamamento da escrita o leva a trilhar o caminho do paradoxo entre
memória e esquecimento. Como afirma Geoffrey Hartman, o conflito imbuído na
representação “ecoa a dialética entre memória e esquecimento: a impossibilidade de
separar um do outro.” O testemunho como forma de esquecimento, segundo ele,
seria uma “fuga para frente, em direção à palavra, um mergulho na linguagem”, que
teria ainda como finalidade “a libertação da cena traumática.” K., perseguindo
intuitivamente esse intento, segue por uma via oposta, porém não contrária, à teoria
de Hartman, pois, para seguir em frente e retomar a escrita, precisa dar um passo
atrás. Dessa vez, de forma utilitária, como mecanismo para lidar “com seu próprio
infortúnio” que, na verdade, irá destrancar a porta de acesso ao processo do
trabalho de luto – a sua própria libertação. O texto, o depositário do “segredo”, do
fardo que ele vem carregando consigo, será cúmplice e prova da sua dor. A escrita,
o remédio contra o sofrimento. Apesar do desejo e da necessidade de escrever, não
é missão sem percalços. A problematização dos limites impostos pela língua, que
parece não dar conta da tarefa de comportar o repertório da tragédia do
desaparecimento de um ente querido, ainda que manejada por um “poeta
premiado”, emerge junto com a necessidade da escrita. Vejamos:
130 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit, p. 131.
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Mas, ao tentar reuni-los numa narrativa coerente, algo não funcionou. Não conseguia expressar os sentimentos que dele se apossaram em muitas situações pelas quais passara, por exemplo no encontro com o arcebispo. Era como se faltasse o essencial; era como se palavras, embora escolhidas com esmero, em vez de mostrar a plenitude do que ele sentia, ao contrário, escondessem ou amputassem o significado principal. Não conseguia expressar sua desgraça na semântica limitada da palavra, no recorte por demais preciso do conceito, na vulgaridade da expressão idiomática. Ele, poeta premiado da língua iídiche, não alcançava pela palavra a transcendência almejada.131
O narrador reclama da dificuldade de elaboração mimética do trauma que,
como já vimos, está relacionada à sua condição de evento que transborda a
capacidade de assimilação da mente. Apoiados na pista teórica de Freud, nos
atreveremos a absolver a língua e a devolver a ela a capacidade de (re)apresentação
da experiência, porque, seguindo nessa lógica, a impotência da linguagem não está
perante o inenarrável, mas o “invivível”, como dizia Jorge Semprún. Afinal, não se
pode testemunhar aquilo que não se viveu. Todavia, é da natureza do testemunho
apontar para a dificuldade de narrar os acontecimentos132, como faz Kucinski em K.
Seria uma limitação da língua iídiche? Será que esse povo tão maltratado não conseguia expressar sofrimento na sua própria língua? (...) Além disso, ponderava K., se o iídiche era uma língua de diminutivos carinhosos, uma língua doméstica de artesãos e gente muito pobre, de carroceiros e camelôs, mais motivo ainda para poder expressar seus sentimentos em iídiche.133
Mas, se o iídiche, a língua falada por um século por mais de 10 milhões de
pessoas antes da Shoah, a língua que seria própria do narrador benjaminiano, do
cidadão que pertence a uma comunidade (o artesão que conhece todas as
tradições), do viajante (o carroceiro que traz de longe histórias insólitas134), do
131 Idem, p. 132. 132 SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes: Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 382. 133 KUCINSKI, Bernardo. K. loc. cit, p. 133. 134 Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 119, (obras escolhidas, vol. 1).
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contador de histórias, daqueles que têm a capacidade de transmitir a experiência;
esta língua tão rica e acostumada a ser veículo portador da experiência não
consegue transpor o impedimento. O que a estaria bloqueando, qual seria este
impedimento, pergunta-se K:
(..) havia um impedimento maior. Claro, as palavras sempre limitavam o que se queria dizer, mas não era este o problema principal; seu bloqueio era moral, não era linguístico: estava errado fazer da tragédia da filha objeto de criação literária, nada podia estar mais errado. Envaidecer-se por escrever bonito sobre uma coisa tão feia.135
O impedimento moral que perturba K. o faz compartilhar da noção embutida
na célebre frase que o filósofo Theodor Adorno lançou ao final do texto sobre a
mercantilização das relações artísticas e sobre o papel do crítico cultural no
capitalismo tardio:
Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação. Mesmo a mais extremada consciência do perigo corre o risco de degenerar em conversa fiada. A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas.”136 (grifo nosso)
Adorno está propondo uma reflexão sobre o papel da lírica na crítica à
desumanização promovida pela barbárie, como a que havia sido protagonizada há
poucos anos (o texto é de 1949) pelos nazistas na tentativa de extermínio dos
judeus durante a Segunda Guerra Mundial137. O receio é de que a estética se descole
135 KUCINSKI, Bernardo. K. loc. cit., p. 133. 136 ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998, p. 26. 137 Num olhar mais profundo, temos que pensar o postulado de Adorno dentro de um contexto de reconhecimento da barbárie. O filósofo está pensando a crítica cultural a partir da tensão do crítico como aquele que informa sobre a qualidade da obra no papel de mediador entre mercado e compradores, e a partir do uso que o fascismo faz da “crítica”. É dentro desta perspectiva que o filósofo encerra o seu ensaio com a passagem citada acima. Com a repercussão do texto, em especial da frase “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”, outras interpretações foram sendo
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da ética e de que haja a estetização do horror através da obra de arte a ser usada
para promover a reconciliação com um evento irreconciliável. Nesse sentido, o
axioma pode ser lido como uma advertência contra o perigo da tendência humana de
explicação, compreensão, atribuição de sentido simbólico àquilo que não pode ou
deve ser entendido, apenas conhecido. Em outras palavras, contra o risco de explicar
e, por extensão, justificar o que não se pode explicar, nem ser aceito. Receio
compartilhado por K., que reconhece na literatura a potencialidade de gerar barbárie,
pois ainda estão vivos na memória dele a utilização do Romantismo pelo nazismo
como forma de alimentar o nacionalismo, e os padrões estéticos distantes da
realidade e em conformidade com a visão excludente de futuro histórico pretendido
pelos nazistas. O que ele não sabe, e por isso não pode ter em vista, é que a
literatura que está pretendendo compor é a de testemunho, e esta não se filia à
concepção de arte pela arte138, e que a estética, neste tipo de literatura, está, senão
colada, submissa à ética, para que o seu vigor – de atribuir voz aos excluídos139 –
não seja obliterado.
Retomando a aporia entre catástrofe e representação140 daquilo que está
circunscrito no âmbito do indizível – não por estar além da linguagem (da “mística
inefável” ou do “sublime espiritualista”), mas, daquilo que, em sua materialidade,
está aquém da linguagem141 –, cujo impacto traumático permite a expressão do
apuradas em relação ao que o filósofo pretendia com sua afirmação. A nossa pode-se dizer que se enquadra nesse contexto de derivação. 138 Definição proposta por Jaime Ginzburg no ensaio “Linguagem e trauma na escrita do testemunho”. 139 Noção emitida por João Camillo Penna no ensaio “Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano”. In SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes: Campinas, SP: Editora da Unicamp, p. 317. 140 Catástrofe e Representação foi o nome dado ao primeiro ciclo de palestras, realizado na PUC-SP, em 1997 e 1998, sobre o tema no Brasil. Do ciclo resultou um livro organizado por Márcio Seligmann-Silva e Arthur Netrovski. A coletânea de ensaios (e ficção de Bernardo Carvalho e Modesto Carone) introduz para o grande público a teoria do testemunho. A referência central do livro é uma reflexão sobre a Shoah. Dos dez ensaios, sete foram apresentados nos ciclos de palestras e três são traduções: Shoshana Felman (Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar), Cathy Caruth (Modalidades do despertar traumático – Freud, Lacan e a ética da memória) e Geoffrey Hartman (Holocausto, testemunho, arte e trauma). No ano anterior, o dossiê “Literatura de testemunho” organizado também por Seligmann-Silva foi publicado na revista Cult, no. 23, de junho de 1999. 141 Expressão usada por Mariana Camilo de Oliveira no ensaio “Aquém da linguagem: o indizível na poesia de Paul Celan”. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2016/J_%20TEXTO%20MARIANACAMILO.pdf. Acesso em 16 de março de 2014.
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horror somente “através do silêncio”142, revisito a obra Retrato calado para que, com
os questionamentos feitos pelo escritor, ilustremos o impasse. “Como evocar com
exatidão o primeiro ato do pesadelo que a consciência tem dificuldade em reviver e
se esforça em manter, recalcado, fora do seu âmbito?”143, indaga-se Luiz Roberto
Salinas Fortes, ao se encontrar no cruzamento entre a necessidade e a hesitação de
falar. “Como contornar a lógica da tendência se o sabotador, com toda sua malícia,
instalou-se dentro da cabeça, enfiou-se no interior do interior, sugando os esforços e
comprometendo a objetividade do pensamento?”144 Como construir uma narrativa se
“o novo abismo de consequências se pinta no interior da lógica incontornável, a
constelação dos suplícios encadeados no processo do sujeito desfalecente envolto
nas brumas das perversas opções” 145 . As impossibilidades, as dificuldades, os
impedimentos constroem e tematizam o romance de Salinas: é a literatura falando
daquilo que se cala146. O silêncio, como modo único de aniquilar o excesso de
aisthesis147 na representação, apresenta-se no lugar daquilo que quer evitar: o real,
fazendo dessa transposição quase imperceptível, mas lembrada pela força do que
está à margem da margem a ética da representação.
Relatos que apresentam a combinação perfeita entre perplexidade e
necessidade de fala são os do escritor Primo Levi, porque, segundo Jaime Ginzburg,
oferecem-nos o paradigma fundamental de testemunho por representarem-no como
sobrevivente do Lager (campo de concentração). A fruição da linguagem da narrativa
de Levi seria “a condição de ultrapassagem do contato com a morte”. Não ter
morrido faz toda a diferença, não simplesmente por não ter perdido a vida, mas por
ter experimentado a ideia, a iminência da morte, e poder falar sobre isso, sobre a
casualidade de viver, e de morrer. Ginzburg afirma ainda que o trabalho de Levi está
em um ponto tenso entre memória e esquecimento, “uma vez que o reencontro com
o que foi vivido pode trazer, em seu interior, um risco de repetição do sentimento de
142 ADORNO, Theodor. Teoria estética, p. 354. 143 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 29. 144 Idem, p. 100. 145 Ibidem, p. 50. 146 SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Ed. Edusp, 1997, pp. 27-28. 147 SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 55.
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dor.” A literatura de Salinas, construída a partir de questionamentos dolorosos –
“Que me espera agora? Que crimes cometi, afinal?”148 –, de hesitações – “Vestido.
De novo gente. Ou quase”149 –, e de silêncios, certamente dialoga com a de Levi e
reforça a suspeita de que o ato de narrar não acontece sem riscos e que este é,
geralmente, acompanhado pela dor. Ou, talvez, quem sabe, seja apenas a
manifestação da “ferida aberta latejando na memória”150.
Levi e Salinas são superstes, testemunhas sobreviventes, cujas narrativas são
fragmentadas, reticentes, claudicantes e pontuadas por silêncios. Traços bem-vindos
na literatura que, sim, tem um compromisso inegável com a imaginação – liga
fundamental para preencher os buracos deixados pela cena traumática –, mas que,
no testemunho que se quer negativo da realidade, é tida como “fonte não
fidedigna”151.
Partilhando dessa premissa, K. rejeita a literatura e a língua-pátria para se
tornar uma testemunha. Não integral. Esta, apenas sua filha poderia ser. Mas aquela
que vai falar por ela, pela filha. Um superstes. Aliás, K. representa as duas
definições: a de alguém que sobreviveu a uma desgraça e aquele que passou por um
acontecimento e que subsistiu muito mais além desse acontecimento. A literatura,
ele a abandona por relacioná-la ao belo e ao lúdico, e não compreendê-la como
possível depositária do “sofrimento e seus fundamentos”152; a língua, por culpá-la de
tê-lo impedido de ver “o que estava se passando bem debaixo dos seus olhos”153.
Naquela noite K. rasgou os cartões de anotações e picou-os em pedacinhos miúdos para que deles nada restasse e atirou tudo ao lixo. Jurou nunca mais escrever em iídiche. (...) Também foi empurrado a essa decisão por um acaso: queria relatar às netas em Eretz Israel tudo o que havia acontecido. E as netas não conheciam o iídiche, só o hebraico. Naquela mesma noite, K. escreveu sua primeira carta à neta em Eretz Israel, em hebraico impecável, como ele aprendera de criança em heder. Assim, não era mais o escritor renomado a fazer literatura
148 Op.cit. 37. 149 Op. cit. 44. 150 Op. cit., p. 29. 151 SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Narrar o Trauma. A questão dos testemunhos de Catástrofes Históricas”. Revista Psicologia Clínica: Rio de Janeiro, Vol. 20, n. 1, 2008, p. 65-82. 152 Termos usados por Jaime Ginzburg no texto op.cit. 153 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 133.
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com a desgraça da filha; era o avô legando para os netos o registro de uma tragédia familiar154. (grifo nosso)
O dictum adorniano é esgarçado ao limite por K., ao ponto de este deixar para
trás sua grande paixão e sua pátria: o iídiche. Ou seja, pela segunda vez, emigra.
Desta vez, não foge, abandona.155 Emigra de si mesmo. Deixa para trás o escritor e
abraça o mártir156; deserta seus afetos, seus mortos para incluir os vivos; renuncia à
imaginação e mergulha na objetividade. K. está em busca da narrativa testemunhal,
“primeira, atestação, fonte original da realidade”157, evidência que ele possa usar
como prova em favor de encontrar sua filha. Ele abraça a ruptura causada pela
tragédia em sua vida para tentar dar sentido ao que não faz ou tem sentido. A
experiência trágica inapreensível e inassimilável em conceitos disponíveis às pessoas
que a vivenciaram, no caso da tragédia de K., conta com um agravante: o vazio
deixado pelo desaparecimento é o da negatividade, o do não evento, o da negação,
por consequência, o da eterna tensão entre esperança e incerteza. Logo este tipo de
evento coloca uma outra camada de impossibilidade de testemunho. Quer dizer, K.
testemunha sobre a sua busca158, a sua dor, mas falar pela filha, sobre como ela foi
desaparecida, ele pretende, tenta, entretanto esse direito ele não pode se dar, ou
não lhe é concedido.
Há uma trajetória comum entre Bernardo Kucinski e seu personagem K.: os
dois tornam-se testemunhas, querem testemunhar, precisam testemunhar para
154 Idem, p. 134. 155 Em “K., sujeito fragmentado”, fica mais clara essa relação da fuga e do abandono, pois, na verdade, estou traçando um paralelo com o fato de ele ter emigrado para o Brasil fugindo da Polônia. 156 Aqui recorremos mais uma vez a Márcio Seligmann-Silva e ao texto “Narrar o trauma”. Nele, o crítico afirma que o testemunho se quer, ao mesmo tempo, compreensível e exemplar. Sim, porque aquele que testemunha muitas vezes o faz para servir de exemplo e, dependendo do fato, torna-se um modelo, uma figura exemplar. “Neste sentido reencontramos um veio tradicional do conceito de testemunho, que o articula à figura cristã do mártir. (...) Mártir é aquele que sofre e morre para testemunhar sua fé. O mártir (mártus-uros, aquele que testemunha, ou seja, que percebe o mundo), ao testemunhar de modo único essa fé universal, torna-se ele mesmo exemplo, um modelo, uma vida exemplar que as hagiografias até o século XX reproduziam com certo sucesso.” Cf. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Narrar o trauma. A questão dos testemunhos de Catástrofes Históricas”. Revista Psic. Clin, Rio de Janeiro, vol, 20, N.1, p. 65-82, 2008. 157 Idem. 158 Na terceira edição do livro, lançada pela editora Cosac Naify, houve um acréscimo ao título. Nas duas primeiras edições, publicadas pela editora Expressão Popular, o título original era apenas K. Nesta última K., Relato de uma busca.
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resguardar e reclamar a memória da irmã e filha e proceder ao trabalho de luto. Há,
porém, um ponto de divergência: o último opta pelo percurso extremamente difícil,
senão impossível, da memória recuperada; o primeiro, da memória imaginada, por
aquilo que “o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê”159. As trajetórias
opostas na aparência simulam uma contradição que será explorada no texto.
Bernardo Kucinski, ao realçar a ficcionalidade da narrativa, abre espaço para essa
aparente contradição: na já citada “Carta ao leitor”, na qual explica o projeto geral
do livro, e no capítulo “O abandono da literatura” – cujo título situa o paradoxo –, no
qual questiona a literatura como meio para o testemunho. Ele incorpora ao texto a
antinomia de estar tecendo um testemunho e colocando em xeque este mesmo
testemunho que está tramando, tensionando ao máximo a antítese, ao incentivar o
personagem principal a abandonar a literatura como uma espécie de purgação
contingente para que possa dar seu testemunho, enquanto ele, Bernardo Kucinski,
claro está, faz seu próprio testemunho através da literatura.
Esse estratagema é uma tentativa de resgate da narrativa testemunhal do
limbo da crise da representação e também uma tentativa de apontar, como solução,
a coexistência entre ficção e verdade, evidenciando não ser necessário negar-se
como ficção para afirmar-se como verdade ou buscar a forma do “relato sério” para
se afirmar como “fonte original da realidade”. Importa o compromisso com o real,
“em que real se entra e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”160.
Talvez o caminho seja mesmo o da coexistência ou do paradoxo –
dependendo do olhar.
1.6. “Não há fatos, apenas interpretações”161
Os medos externados por A. (“[t]enho o pressentimento de que as coisas aqui
159 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 75. 160 LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 52. 161 “Contra o positivismo, que para perante os fenômenos e diz: ‘Há apenas fatos’. Eu digo: ‘Ao contrário, fatos é o que não há; há apenas interpretações’”. NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. São Paulo: Contraponto Ed., 2007, p. 267.
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vão piorar muito.”) na carta que escreve para uma amiga se provam fundamentados
no fragmento “A cadela”:
O que fazer com a cadela? Com o casal tudo deu certo, do jeito que o chefe gosta, sem deixar rasto, sem testemunha, nada, serviço limpo, nem na casa entramos, para não correr risco com os vizinhos, casa muito colada nas outras; pegamos os dois no beco, de surpresa; uma sorte, aquela saída lateral do parque, meio escondida, quando os dois se deram conta, já estavam dentro do carro e de saco na cabeça; só a cadela latiu, mas já era tarde. Agora essa maldita cadela, filha da puta, não para de incomodar. Não tínhamos pensado na cadela. O Lima levantou tudo – o danado, até o nome da cachorrinha, Baleia, nome besta para uma cadelinha miúda e peluda pra caralho. De onde é que tiraram esse nome? (...) Devia estar no informe que o casal levava a cadela nas caminhadas, como é que a gente ia adivinhar? O Lima esqueceu de colocar, esta é que é a verdade. (...) Também não falou que a cadela era uma luluzinha de raça, parece cachorrinha de madame; não entendo o que dois terroristas faziam com uma cachorrinha assim, vai ver que não eram terroristas coisa nenhuma, não combina (...).162
É evidente o diálogo entre os dois fragmentos. Assim como é evidente a falta
da cena do momento da prisão do casal. A cena ausente se figura no silêncio do
diálogo e pelo jogo de espelhos, que apresenta diferentes perspectivas. Não há a
cena, mas há versões dela. Vale lembrar que, nesse caso, não podemos considerar
que o discurso esteja orientado pelo “já dito” e pelo “conhecido”, visto que – e aqui
traçando uma relação com o fora do texto163 – as circunstâncias da prisão do casal
são diferentes das relatadas pelo agente do terror. Circunstâncias, aliás, que foram
relanceadas no primeiro capítulo/conto: “[um] rapaz encontrou-se com a esposa no
Conjunto Nacional para almoçarem juntos e os dois nunca mais foram vistos”. Duas
linhas que ancoram, para o leitor atento, o romance na realidade histórica brasileira
e que representam, como se percebe, a “cena central”, i.e., o momento em que o casal
“foi desaparecido”, e razão do romance. Então, se o romance se quer testemunho,
porque não partir daqui? Por que esconder a “cena central”? Por que o afastamento
dessa “verdade”? Aqui voltaremos o olhar para “dentro” do texto. A clara eleição do
distanciamento do “real”, de um diálogo aberto e axiomático com a “realidade viva”,
162 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 65. 163 Considerando que os personagens são produto de um contexto histórico preexistente.
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em prol da criação literária que – por um movimento quase antropofágico – assimila
o “já dito” e o transfigura na palavra – que é permeável a diversos pontos de vista,
às forças dialógicas do discurso e do estilo da composição – atribui à tessitura textual
a qualidade plurissignificativa que, a nosso ver, é indispensável ao testemunho. Uma
faceta da força do estilo de Kucinski está na dialogicidade interna e externa do
discurso, na polifonia como produtora de sentidos a partir da confluência e/ou do
embate de vozes, levando o leitor a perceber, através da forma, a complexidade das
camadas que recobrem a “verdade” e a “realidade”. Ele lança mão da forma como
cura e tentativa de superação dos limites da linguagem.
Kucinski não apresenta a cena da prisão, mas perspectivas sobre ela. Ele
entendeu a violenta ausência de sentido do arbítrio, recriou o romance e, no caso, a
cena a partir de, e em paridade com aquilo que lhes é intrínseco: a ausência. A
forma, aqui, desnuda o motivo da escolha do autor pela quase-verdade, dado que,
para as famílias, o que existe são ausências e versões. Logo, o estratagema de não
usar a “cena central” – que representaria a “versão-verdade” do que teria ocorrido
no dia em que o casal foi desaparecido e aproximaria o romance da história de sua
irmã – é, acima de tudo, uma recusa em aceitar a versão capenga do que aconteceu
como verdade. E uma declaração de que as famílias precisam e querem saber “como
e quando se deu cada crime”164, porque, caso contrário, o que restam são versões e
ausências. Então não importa se o relatado no livro é a versão contada pelos amigos
ou a que ele “cria”, pois, no final das contas, todas são apenas versões. Importa a
sobra, o resto: a ausência.
Voltemos aos discursos e interdiscursos.
Percebemos no discurso de A. a presença do Outro como medida definidora
do seu caráter e do seu lugar no mundo. Seguindo o seu olhar, conseguimos
enxergá-la nas suas reflexões, conforme vemos no extrato abaixo:
Não sei como é o ambiente no Rio, mas aqui o que me impressiona mais
164 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 163.
73
é a alienação das pessoas. Não estou falando dos bundões da Química. Falo dos outros, que eu respeito. Sinto neles um fatalismo, uma frieza, até uma perda de humanidade, como se a política fosse tudo e nada mais interessasse. Alguns também são bem arrogantes. Vejo as pessoas criando suas objetividades fora da realidade, se enclausurando, e aí vale tanto para os bundões da Química quanto para os esclarecidos e engajados. Tem alguma coisa muito errada e feia acontecendo, mas não consigo definir bem o que é. Sabe, uma coisa é a gente sonhar e correr riscos mas ter esperanças, outra coisa muito diferente é o que está acontecendo.165
A representação pela imagem refletida, que exemplifica o pensamento
bakhtiniano da relação eu-tu, ou da constituição do eu pelo outro, aplicada também
em “A cadela” – citando o fragmento que estamos trabalhando –, produz diferentes
efeitos. Na carta de A. para a amiga, o leitor, imbuído pelo fascínio da ausência
caracterizante da personagem, é levado a reconhecer no reflexo de A. o seu próprio
olhar sobre ela, que, por esse artifício, é atraído, ainda mais, para a porção violenta
da verdade do romance.
Em contrapartida, o agente do terror, ao se revelar e revelar, no jogo de
vozes do interior do diálogo, o pensamento e o modus operandi do Estado,
encarnado nos seus agentes, empurra o leitor de volta para a conforto do “é tudo
invenção”, posto que o efeito aumenta o registro ficcional.
Sempre perguntando se deixamos alguma pista, se alguém viu, querendo saber de tudo, para ter a certeza de que nunca vão saber que nós sumimos com os caras; falo que tem a cadela, que pode nos delatar, que algum amigo deles pode reconhecer a cadela e fode com tudo, ele faz que não escuta. Quando eu disse que ela não comia desde que chegou ele botou a culpa em mim, disse que demos comida ruim para a cadelinha, ainda mandou comprar essa ração de trinta paus o quilo, mais cara que filé mignon; o pior foi ontem, quando eu falei em sacrificar a cadela, levei o maior esporro, me chamou de desumano, de covarde, que quem maltrata cachorro é covarde; quase falei pra ele: e quem mata esses estudantes coitados, que têm pai e mãe, que já estão presos, e ainda esquarteja, some com os pedaços, não deixa nada, é o quê? Ainda bem que não falei. Não sei onde estava com a cabeça. É essa maldita cadela filha da puta que não me dá sossego, o chefe só vem aqui quando chega algum preso novo. Carne nova – ele fala – arranca o que quer, manda liquidar e vai embora. Mas nós ficamos aqui o tempo todo, com essa cadela nos atormentando, mas eu já sei o que
165 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 53.
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vou fazer: dou mais dois dias, se ela não morrer sozinha, boto veneno na água, boto o veneno que demos àquele ex-deputado federal.166
O êxito do ritmo dessa cadência do texto sustenta-se na habilidade da criação
literária em recuperar aquilo que já foi dito e em orientar o discurso de forma a
alcançar uma resposta do leitor, um discurso-resposta ou, no caso de K., de torná-lo
uma nova testemunha. Ou seja, as “construções são orientadas no ouvinte e na sua
resposta”167. E nos parece bem claro que o encontro das duas instâncias de diálogos
propostas pelo autor foi cirurgicamente costurado a fim de instar no leitor o efeito de
realidade. Para tanto, o meio da “aparição” de A. é uma carta, na qual é apresentado
um mundo possível, porque acessível ao autor; do outro lado, uma narrativa em
primeira pessoa, que representa um mundo do qual o autor não faz parte e,
portanto, não teria como reproduzir, logo, impossível.
Afora a ampliação do efeito de realidade conseguido através da interação dos
mundos (possível e impossível), o entrecruzamento de vozes possibilita o
redimensionamento do ato de deixar viver e fazer morrer. A disputa em torno do
destino da cadela joga luz sobre a visão do Estado em relação aos dissidentes como
vida nua: vida matável e não sacrificável. Visão reforçada pelo nome da cadelinha,
Baleia, que remete ao nono capítulo/conto de Vidas Secas sobre o sacrifício da
cachorra da família para poupá-la do sofrimento de uma doença168. A analogia
sintetiza e reafirma a visão do Estado sobre quais vidas merecem ser vividas. Para
entendermos a simbologia do cão como dimensionador do valor da vida e da
humanidade do chefe e do seu lacaio, vale trazer, da nota de rodapé nº 309 (p. 124)
para o centro da pesquisa, um ponto da análise feita por Michael Löwy sobre a
alegoria do cão em Kafka. De acordo com Löwy, o cão em Kafka é uma figura
alegórica de servidão voluntária, “do comportamento daqueles que se deitam aos
166 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 67. 167 BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2002, p. 90. 168 Em Vidas Secas, o personagem Fabiano sacrifica a cadela Baleia por achar que ela estava com hidrofobia.
75
pés dos seus superiores hierárquicos e obedecem cegamente a seus senhores”169.
Assim sendo, a repulsa do chefe às tentativas do agente de matar o animal, e o juízo
de que quem maltrata cachorro é “desumano” e “covarde”, em vez de demonstrarem
uma centelha de humanidade, expõem a crueldade e o narcisismo que norteiam a
conduta do “chefe” – porta-voz do Estado. Kucinski, ao apresentar a faceta benévola
do “chefe”, não está subscrevendo a noção da “banalidade do mal”; pelo contrário,
está substanciando o caráter autoritário do poder em admitir apenas súditos
dispostos a serem servos voluntários, que obedeçam cegamente como um cão.
Ao longo de todo o texto, Kucinski não cede, não justifica e, certamente, não
perdoa o sistema e/ou seus agentes. Contudo não os antagoniza ou os critica sem
desvios, evitando, com esse proceder, a pecha de literatura ressentida. Em “A
cadela”, ouvimos a voz do “chefe”, do torturador, apesar de Kucinski negar que
tenha dado voz ao outro lado. Contudo, apesar de discordarmos, em certa medida,
podemos aceitar a negação do autor, pois, segundo Bakhtin, essa visão do outro,
através dos olhos do outro, acontece a partir do olhar para o nosso interior.
Trocando em miúdos: a partir de uma observação detida às nossas próprias falhas e
potencialidades (para o bem e para o mal), podemos traçar visões generalistas sobre
as possíveis ações do outro.
No discurso de A., a solidão e o isolamento apontados no comportamento
social, refletem a angústia da sua solidão (“virei uma reclusa”) e do isolamento
político (“[n]ão sei como sair, só sei que se antes havia algum sentido no que
fazíamos, agora não há mais”), assim como a angústia dos grupos que se opunham
ao sistema. O público e o privado se confundem no discurso pessoal e político,
mimetizando, nessa indissociável dinâmica, a rotina daqueles que optaram pelo
enfrentamento e, por consequência, pela clandestinidade. Nele, entrevemos a
dissolução do mundo pessoal em um mundo de indivíduos, e a desconstrução da
identidade pessoal para a construção da personagem-política. O discurso social
vitamina a crítica política, que permeia toda a carta, e é repartida entre o Estado e
os que o enfrentam.
169 LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, pp. 123-124.
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Na carta, identificamos também uma relação dialógica com o romance de
Renato Tapajós, Em câmera lenta. A mesma sensação de estar em um beco sem
saída, em um caminho sem possibilidade de retorno, em uma luta sem sentido, na
qual a esperança transformou-se em desilusão descrita por A., é narrada por ele:
Por isso que a gente está cada vez mais isolado, sozinho, desconfiado, mas tudo isso nem tem mais importância. Mesmo que apareça um gênio apontando uma saída, não dá mais. Quer dizer, pode dar para os outros, mas tem uns que não vão acreditar porque acham que o negócio é esse mesmo, arma na mão, um sonho distante e impreciso de marchas no mato, o herói de botas. Ou de sandálias com sola de pneu. Mas para alguns sempre vai dar porque para eles não é tarde demais.170
O tom melancólico do narrador de Em câmera lenta, e da narrativa de A.
marca o compasso da morte dos sonhos, das ilusões e da avaliação dos erros de
percurso. No mesmo tom em que lamentam, criticam os objetivos de quem ainda
acredita na luta, o desacordo com a realidade, a recusa em aceitar que a vitória,
naquela altura, seria a desistência, e a incapacidade de reconhecer o momento de
parar para sobreviver ao insano aparelho de moer do Estado. O desabafo de A. é
também uma autocrítica sobre a opção pela luta armada. Digo também, porque a
origem do romance de Tapajós é o manifesto Autocrítica (1967-1973), da Ala
Vermelha171. Manifesto redigido por Renato Tapajós, na cadeia, fruto das discussões
dos presos do grupo que se encontravam no Presídio Tiradentes, e da decisão pelo
rompimento172 com a prática de enfrentamento. É nesse sentido, no da autocrítica,
que outra relação dialógica entre o livro de Tapajós e o de Kucinski se desenvolve.
Na “Mensagem ao companheiro Klemente”, Rodriguez faz uma crítica indignada e
contundente à decisão da organização de continuar, de insistir, na luta armada,
apesar do endurecimento da repressão e do desequilíbrio de forças:
Já suspeitávamos que a ditadura decidira não mais fazer prisioneiros. 170 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 19. 171 O documento analisa profundamente os motivos da derrota. Segundo Jacob Gorender, a Autocrítica da Ala Vermelha foi pioneira ao assumir, como erro fundamental, a luta armada contra o regime militar. In GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, p. 230. 172 Cf. MAUES, Eloísa Aragão. Em câmera lenta, de Renato Tapajós: A história do livro, experiência histórica da repressão e narrativa literária. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-05022009-114612/pt-br.php. Acesso em 27 de outubro de 2014.
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Tínhamos que ter analisado; feito a autocrítica, reconhecido que estávamos isolados. Talvez ainda desse para preservar muitas vidas. Em vez disso, decidimos lutar até o fim, mesmo que não desse em nada. Ali começou a insanidade. A coisa religiosa, de “dez vidas eu tivesse dez vidas eu daria”. No fundo, entramos no jogo da ditadura de nos liquidar a todos. Senti depois em alguns companheiros um fatalismo mórbido, de que não restava outro caminho senão morrer como Che.173 (grifo nosso)
O acerto de contas feito por meio de uma mensagem, de um comunicado
crítico ao companheiro, estabelece diversas pontes com o romance de Tapajós. A
principal delas, a mais clara, e a que evidencia o diálogo entre os dois livros,
destacamos no trecho acima: “a autocrítica”. Não “uma” autocrítica, porém “a”
autocrítica – definição que evoca uma relação direta com a Autocrítica feita pela Ala
Vermelha. Esse estreito diálogo situa a narrativa no tempo e no espaço da luta
armada, assim como no centro do debate sobre a eficiência, os resultados e a opção
pelo enfrentamento. A multiplicidade de vozes, projetando-se no enunciado, faz do
texto uma arena de acusações e de denúncias que, ao mesmo tempo que elenca os
erros, lamenta e critica a cegueira para evitá-los, permitem que “a” autocrítica seja
finalmente realizada – o que altera e atualiza o espaço e o tempo da narrativa.
Autocrítica afinada ao tom da filosofia benjaminiana. Segundo o filósofo:
Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras, a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – não é uma progressão, e sim uma imagem que salta. – Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem. /despertar/174
A autocrítica de Kucinski não olha para o passado para compreender o
presente, quanto menos o presente para entender o passado. Ela evoca essa
173 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 173. 174 SOUZA, Ricardo Timm de. A filosofia como exercício: Walter Benjamin e Theodor Adorno. Tese de doutorado apresentada à PUC-RS. Disponível em: http://tede.pucrs.br/tde_arquivos/13/TDE-2011-10-18T042901Z-3474/Publico/434159.pdf. Acesso em junho de 2013.
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imagem dialética em que o momento ocorrido e o agora se encontram. Momento em
que acontece um rompimento com a ideia do presente como continuação do
passado; e do passado como parte completa e concluída, que somente alcançará
sentido no presente. Se alargarmos o escopo e a abrangência da teoria de Benjamim
para pensarmos a totalidade do romance, em vez de apenas a mensagem de
Rodriguez, perceberemos que, não obstante os laços que ligam o texto ao passado,
as imagens oferecidas por Kucinski são apresentadas em outro contexto e fora
daquele que as originou. Sendo mais precisa, as imagens são sugeridas porque não
são de fato apresentadas. Mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, por serem fruto
da criação de cada leitor (marca da presença na ausência), imerso em seu próprio
contexto, encerram em si “a potencialidade dialética”: Elas “são a dialética na
imobilidade”175.
Tal procedimento pavimenta o caminho para que a polêmica dos
justiçamentos seja abordada à luz da razão, sem os filtros do contexto histórico. A
agudez do diálogo entre o autor e Klemente sobre o justiçamento do companheiro
Márcio revela o lado nada romântico da brutalidade da luta, e como o que antes era
violência reativa (útil, talvez), com o passar do tempo, naturalizou-se e tornou-se
código de conduta.
A atemporalidade, ou melhor, a multitemporalidade da “Mensagem ao
companheiro Klemente” exemplifica o cruzamento temporal e espacial do romance.
Que, por essa característica, se situa no ausente: no tempo e no espaço da recriação
da memória atualizada pelo escritor e pelo leitor.
A configuração do fragmento reafirma a intenção do autor de fazer com que o
leitor se equilibre na linha tensionada entre a arte e a vida. De fato ou de verdade
(mas aqui novamente é algo que assinala a diferença entre a ficção e o
testemunho)176 , alguns detalhes da mensagem são equivocados, conquanto seu
175 Idem. 176 Jacques Derrida: “In fact or in truth (but here again is something which signs the difference between fiction and testimony)”. Peguei emprestada a frase de Jacques Derrida, pois, a meu ver, ela resume claramente o movimento da escrita de Kucinski. Cf. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 112.
79
conteúdo é verossímil177. A saber: Klemente é Carlos Eugênio Coelho da Paz, o
Clemente, que, aos 19 anos, já era um dos cinco integrantes da coordenação
nacional da ALN, e homem de confiança de Carlos Marighella, fundador da
organização. Rodriguez é Wilson Silva (marido de Ana Rosa Kucinski Silva), o
Rodrigues, um dos poucos membros da organização que conseguiu se manter na
militância por mais de cinco anos, sem ser preso ou sair do país, e também parte da
cúpula da ALN. E Márcio é Márcio Leite de Toledo, o companheiro justiçado pela
organização clandestina, que, assim como Clemente, aos 20 anos, já fazia parte da
coordenação do grupo. O esforço sutil para marcar a notação ficcional, para
tensionar a linha entre fatos e verdade – e aqui me apoio mais uma vez em Derrida
–, comprova que o autor-testemunha, cuja voz subjaz na narrativa, entende que está
apresentando uma versão, a sua, das muitas existentes. A sutileza da notação
embaça a noção da mensagem como verdade ou mentira, porque realça o resultado
do que lhe foi devolvido pela memória, que não é precisa. Portanto, o autor, nas
imprecisões, ratifica que está apresentando a possibilidade de uma verdade, uma
quase-verdade. Seu incansável vigor para provocar a oscilação entre “real” e
ficcional, que, claro está, é o ponto de equilíbrio da narrativa do romance, para além
de conferir diferentes efeitos de sentido (ora ficcional ora testemunhal), leva o leitor
a ser surpreendido com a força da história – nos dois sentidos da palavra. Indício de
que, no romance, pensando junto com Jacques Rancière, as forças antagônicas que
movem a arte, a força da ficção e a força do documento, em tensão, põem em causa
a lógica do testemunho pela ficção. Voltaremos a essa questão mais adiante, por
ora, continuemos na ausência estruturante do romance.
Fiel à forma, Kucinski embala o romance em cartas, que dão o tom
motivacional (a ausência que impulsiona a busca pela filha desaparecida) e histórico
(a exposição da ditadura) do romance. Elas têm como finalidade também conquistar
a intimidade do leitor, assim como os textos de abertura e conclusão, com a história,
uma vez que, diante dele, estão “documentos” que registram os sofrimentos e as
177 Segundo o repórter Lucas Ferraz, da Folha de São Paulo, em artigo publicado em 17 de junho de 2012, “Mensagem ao companheiro Klemente” é uma carta de três páginas que muitos ex-militantes pensaram ser real”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/49231-questao-de-ordem.shtml. Acesso em 20 de abril de 2014 ou disponível em: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/News/view/1862. Acesso em 10 de outubro de 2014.
80
críticas daqueles que talvez sejam os personagens principais, as figuras ausentes,
motivo da construção da narrativa e mola propulsora da história. As cartas, como
meio para dar voz aos parentes de K., inspiram no leitor a sensação de acesso a
registros íntimos, privados, que poucos viram, e que ele, leitor, cúmplice do autor,
está sendo privilegiado com informações confidenciais. Por meio desse artifício, o
leitor é transfigurado em testemunha.
Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros, descreve a única foto tirada
por Roger Fenton na guerra da Crimeia – o primeiro fotógrafo de guerra enviado ao
front pelo governo britânico – como a “foto que não precisaria ser posada, pois
mostra apenas uma estrada larga, sulcada por rodas, atulhada de pedras e balas de
canhão, que descreve uma curva através de uma planície árida e ondulada, rumo ao
vazio distante”. Segundo Sontag, a foto de Fenton, em memória aos soldados
mortos, “é um retrato em ausência: a morte sem os mortos”178.
Em sua essência, a busca da ausência para provar a existência e explicar e
aplacar a ausência é descrita por Rodriguez a Klemente, “[a]té para deixar de existir
a Organização precisa existir, tal é a determinação da repressão de sumir com todos
nós. Não sabemos como sair dessa armadilha”179.
O texto polifônico e dialógico de Kucinski demanda do leitor que ele exceda os
limites da construção pela interpretação e se aventure na produção conjunta do
texto. Às relações dialógicas soma-se a estrutura modulável para que o leitor possa,
ele mesmo, encontrar novos caminhos que levem a novos significados e
significações, o que se, por um lado, denota uma generosidade do autor, por outro,
revela uma ambição, uma exigência de que as conexões e os diálogos internos sejam
compostos e compreendidos, e que ele, leitor, ainda consiga erguer ele mesmo as
pontes para alcançar as conexões e os diálogos externos.
178 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 45. 179 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 175.
81
2.Desmontando K.
2.1. Futuro do pretérito
Diz-se que a epígrafe de um livro é um pré-texto que serve de bandeira ao
texto principal, por resumir de forma exemplar o pensamento do autor180. A trinca
que abre o romance K. de Bernardo Kucinski extrapola a definição e parece traduzir
as três últimas fases do luto, pelas quais o autor está passando ao escrever o
romance: negociação, depressão e aceitação.
Epígrafe (do grego, epi, que significa “sobre”, e graphéin, “escrever por cima”
e “inscrição”) é também a inscrição colocada na lápide para conservar a memória
daqueles que morrem e por quem entramos em luto. Processo que é o mesmo do
“trabalho de pesquisa simbólica e de criação de significação”, considerando o fato de
que a palavra “grega sèma significa, ao mesmo tempo, túmulo e signo” 181 :
significação que se funde outra vez na lápide – último documento de identificação do
sepultado. A primeira que se conhece foi a colocada sobre a campa da matriarca
Raquel: “E Jacob colocou um pilar sobre a sepultura dela; é o mesmo pilar que
marca a sepultura até o dia de hoje”182. Igualmente, até o dia de hoje, Ana Rosa
Kucinski não teve o direito a um enterro e a uma lápide onde estivesse registrado
seu nome completo, seu nome religioso, o local e a data do seu nascimento, o local
e a data da sua morte, o nome do seu pai; ornada com a estrela de David, talvez
com uma figura alegórica (ou levitas ou cohanim), certamente com a figura de um
tronco partido indicando a morte prematura aos 32 anos de idade. Por ventura uma
fotografia no alto do lado direito colocada para ilustrar em imagem o que o verbete
transmitiria em palavras, esse rastro que acentua “uma ausência dupla: da palavra
pronunciada (do fonema) e da presença do ‘objeto real’ [o corpo] que ele 180 Cf., CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=994&Itemid=2. Acesso em 07 de janeiro de 2014. 181 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 45. 182 GÊNESIS 35:20.
82
significa” 183 . Ana Rosa, porém, não tem um matzeivá 184 para homenagear sua
memória. A ela resta o esforço do seu irmão, típico do poeta, que com seu canto luta
para manter viva a memória dos mortos. Bernardo, seguindo na trilha de Heródoto,
que tomou para si “a tarefa sagrada do poeta épico, (...) lutar contra o
esquecimento, (...) isto é, fundamentalmente, lutar contra a morte e a ausência pela
palavra viva e rememorativa”, procura do mesmo modo no “alinhamento das
palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como resposta”185, já que não
tem um túmulo para gravá-la. Sua tarefa, apesar de pessoal, é também coletiva, e
semelhante a do narrador moderno186 benjaminiano que, “honrado”187, compreende
e assume a pobreza da experiência do tempo em que vive e faz “uma narração nas
ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em
migalhas”188. Como ressalta Jeanne Marie Gagnebin “tal proposição nasce de uma
injunção ética e política (...): não deixar o passado cair no esquecimento”189.
Para entender a estrutura da narrativa e os processos literários de que se
serve Kucinski para montar K., é preciso voltar à sua primeira novela, Alice.
Voltemos à origem.
183 Op.cit, p. 44. 184 Matzeivá – מצבה – lápide. 185 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 103. 186 Jeanne Marie Gagnebin descreve assim a tarefa do historiador moderno: “o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua ‘narrativa afirma que o inesquecível existe’ mesmo se nós não podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor vivermos hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que também possa ser verdadeiro”. Cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 20. 187 Walter Benjamin no ensaio “Experiência e Pobreza” afirma que “quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza”. (grifo nosso). Cf. BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986, p. 115. 188 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 53. 189 op.cit.
83
2.2. Alice – não mais que de repente
Em Alice –não mais que de repente190, Kucinski retorna à universidade na qual
estudou e lecionou para montar o palco de sua trama policial. Nessa, uma jovem
cientista é encontrada morta em sua sala, no Instituto de Ciências Físicas da
Universidade de São Paulo (USP). A morte que, a princípio, parecia ter sido por
causas naturais, é considerada suspeita pelo experiente detetive e admirador da
investigação científica, delegado Magno. Diante do corpo de Alice Nakamura, o
delegado percebe que ela segura um chumaço de seus cabelos nas mãos e um filete
de sangue escorre de suas narinas. Estão confirmadas suas suspeitas: morte por
envenenamento. Mas que veneno seria esse que não deixa nenhum vestígio,
tampouco consegue ser detectado pelo laboratório forense da polícia? A vítima,
gênio da matemática, estava prestes a fazer uma importante e revolucionária
descoberta. Jovem, bonita, com uma carreira promissora à frente, não tinha inimigos
nem problemas de saúde. Mas a vida pessoal de Alice é envolta em mistérios, assim
como sua morte, que acontecera em sua sala trancada por dentro. A única pista é a
letra “P” escrita em sangue pela vítima. Para desvendar o crime, junta-se ao
delegado Magno o professor Zimmerwald, um velho cientista cassado e expulso da
universidade à época da ditadura civil-militar por ser do “Partidão”, e hoje crítico de
arte; e Rogério, orientando de Alice. Os três solucionam o crime quase perfeito.
As referências ao regime militar, às relações promíscuas entre Brasil e Estados
Unidos, ao lançamento da bomba atômica como possibilidade de experimento
190 Alice – não mais que de repente foi a primeira novela escrita por Bernardo Kucinski, porém lançada apenas em julho de 2014, pela editora Rocco, três anos após K. Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, de Londrina, Kucinski conta que estava no outono de sua vida, quando, em uma viagem a Israel, leu uma novela de “Batya Gur, escritora já falecida, que tinha como método mergulhar num determinado ambiente e, a pretexto de elucidar um crime, fazer uma sociologia completa desse lugar ou comunidade. Havia tempos eu queria escrever algo expondo a decadência do mundo acadêmico de hoje no Brasil, as picuinhas, as disputas por cargos, a apropriação do trabalho feminino, a luta pela pontuação no CNPq. Tudo isso. Pensei: vou fazer como a Batya Gur, em vez de me dar ao trabalho de uma reportagem jornalística ou um texto acadêmico, ambos necessitando corroborações, provas e quetais, vou escrever um romance policial expondo tudo isso. No romance não preciso provar nada. Tudo é invenção. No avião mesmo, defini a vítima, os quatro suspeitos, cada um portador de um problema que eu queria expor. Escrevi essa novela com extrema facilidade. E foi isso que me iniciou na ficção.” Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 09 de agosto de 2014.
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humano, e ao universo em decadência da universidade aparecem na trama
detetivesca, que une um cientista a um delegado, e atribui aos dois um contorno
simbólico elucidativo, como iscas para aguçar a curiosidade do leitor e lançá-lo na
busca de mais conhecimento sobre o contexto político-social do país. O leitor é
instigado a se aventurar em uma outra investigação, visto que é “tomado por
suspeitas”191. Jorge Luis Borges, para quem o romance policial criou um tipo especial
de leitor, afirma que “o leitor de romances policiais é um leitor que lê com
incredulidade, com suspicácias, uma suspicácia especial”192. É o leitor tomado por
dúvidas, desconfiado, que questiona o que lhe é dado a ver. Esse leitor foi criado por
Edgar Allan Poe, pois, e ainda citando Borges, se Poe criou a narrativa policial, criou,
depois, o tipo de leitor de ficções policiais193. Apoiando-me na observação do escritor
argentino, parto da ideia de que a escolha do caminho do gênero policial para
enveredar pelos bosques da ficção sugere que Kucinski pretendia, de certa forma,
“criar” um certo tipo de leitor para sua obra194.
Numa esfera mais pessoal, o autor talvez estivesse tentando um gênero que
pudesse dar sentido ao que não faz sentido. No fim das contas, conforme apontou
Borges, o romance policial salva a ordem195 em uma época de desordem, pois “não
há como entender um conto policial sem princípio, sem meio e sem fim”196.
191 BORGES, Jorge Luis. “O conto policial”. In Obras Completas – vol. IV. São Paulo: Globo, 1999, p. 221. 192 Idem. 193 Ibidem. 194 É bem verdade que Alice foi o último dos livros a ser publicado, o que abala a estratégia do autor, porém não invalida nossa teoria, pois estamos pensando a escrita de Kucinski como um todo. 195 Vale lembrar que, ironicamente, a palavra ordem carrega duas acepções até certo ponto opostas e excludentes, embora uma derivada da outra, ambas muito conectadas com o ambiente político em que se passa e que motiva a narrativa de Kucinski: ordem como controle, autoridade, segurança, poder, e portanto até certa dose de absurdo e irracionalidade, medo e falta de sentido, já que não há ordem que resista por muito tempo admitindo que a questionem; mas ordem também como a busca da clareza, do entendimento, do respeito a alguma lógica, e portanto ordem como coerência, preservação do sentido, em última instância, do sentido da vida. Ao fim e ao cabo, essa palavra encerra um genuíno paradoxo, que nos faz pensar que a busca de uma de suas vertentes pode nos levar direta ou imperceptivelmente à outra vertente, no afã de garantir aquilo que nos parece correto e “dentro da ordem”, já que toda ordem sempre pressupõe uma perspectiva ideológica que a norteia. Assim, o que para mim está ordenado pode não estar em ordem para você, porque não compartilhamos os mesmos valores que sustentam nossos julgamentos. Novamente, a suposta busca dA ordem acaba sendo, invariavelmente, a busca de UMA ordem, à qual irão se submeter os que pensam diferente. Daí que essa busca seja um risco, e o motivo de sempre uma desordem subjazer a uma aparente ordem, e vice-versa. Daí também que a escolha de uma determinada estrutura
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Por Alice passeiam personagens facilmente identificáveis e reconhecíveis – o
que nos faz enxergar uma outra filiação: a do roman à clef, como bem lembrou o
crítico literário Flávio Aguiar na orelha do livro. O romance com uma chave (em
tradução livre) tem como marca situações e personagens pinçados diretamente da
“realidade” e embalados pelo véu da ficção. A chave fica por conta da relação entre
a invenção e os fatos, a vida e a arte. “Alice reflete uma realidade e se vale de
episódios reais, embora a trama central seja toda inventada”197, explica Kucinski. E
qual realidade seria essa? A acadêmica, vivida por ele como estudante de Física e
nas duas décadas em que lecionou jornalismo na Escola de Comunicação e Artes
(ECA) da Universidade de São Paulo (USP).
Alice – não mais que de repente foi a primeira novela escrita por Bernardo
Kucinski e, segundo ele, levou-o ao ofício de escritor: “Não fosse Alice, talvez não
tivesse escrito K.”198, completa. Mas as relações entre as duas obras estão para além
de a novela ser apenas a porta de entrada do autor no campo da ficção. Podemos
dizer, usando um termo pertinente ao universo do livro, o científico, que Alice foi um
laboratório para K., mormente por Alice ser uma novela policial. A começar pelo
estilo seco, enxuto, direto, com a mesma dicção jornalística dos períodos curtos, da
simplicidade e da clareza. E pela relação entre a lei e a verdade, que seria
constitutiva do gênero policial, segundo Ricardo Piglia. Aliás, somamos as
observações do escritor para tentar compreender a aposta inicial de Kucinski no
gênero policial como meio para críticas, e também como ensaio para o livro que está
gestando. Piglia, em um artigo sobre a relação entre literatura e psicanálise, assinala
que uma forma de pensar essa relação é o gênero policial. Para ele, esse é o grande
narrativa pré-definida (romance policial) signifique, ao mesmo tempo, a busca por uma ordem, um fio condutor, que seduza e enrede o leitor, estrutura essa com a qual o grande público já seja familiarizado em suas memórias de leitura, mimetizando a sedução que o discurso autoritário exerce sobre certa camada da população; mas também a opção por esse gênero como a oportunidade de uma explosão da ordem aparente das coisas, exercício do pensamento e da desconfiança que irrompem do fluxo controlado da realidade e rompem com esse mesmo fluxo, ou discurso autoritário, ao duvidar dele, na medida em que esse mesmo leitor enredado se dispõe a sondar os mistérios que pontuam os crimes das histórias. 196 BORGES, Jorge Luis. “O conto policial”. In Obras Completas – vol. IV. São Paulo: Globo, 1999, p. 230. 197 Entrevista concedida ao blog da editora Rocco. Disponível em: http://www.rocco.com.br/index.php/blog/bernardo-kucinski-e-o-oficio-de-escritor/. Acesso em 10 de agosto de 2014. 198 Idem.
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gênero moderno que inundou o contemporâneo. Hoje, segundo o autor, encaramos
o mundo com base nesse gênero, e “vemos a realidade sob a forma do crime, como
dizia Bertolt Brecht”. A partir do gênero policial, tentamos debater as relações entre
lei e verdade e o seu oposto, a não coincidência de verdade e lei. O gênero policial, a
exemplo dos grandes gêneros literários, é capaz de discutir o mesmo que a
sociedade, porém em outro registro. “É isto que faz a literatura: discute a mesma
coisa de outra maneira”199. Se a sociedade, de acordo com Piglia, não entende isso,
que a literatura discute os problemas dela de outra maneira, estará pedindo que a
literatura faça o que o jornalismo faria melhor. Para Ricardo Piglia, o detetive é uma
espécie de filósofo ou cientista que sempre questiona a natureza dos fatos200, noção
expressa anteriormente por Umberto Eco no seu livro Pós-escrito a O nome da rosa.
Foi o que resolveu Bernardo Kucinski: discutir os problemas da universidade
“de outra maneira” diversa da do jornalismo e da acadêmica. Sua crítica à
universidade não se restringe à vida acadêmica, aos seus prazos, condições de
trabalho, relações humanas; vai além, à medida que critica a intolerância, a
leviandade, e a veneração monástica à instituição. Kucinski começa por Alice seu
acerto de contas com a USP, que continuará mais explicitamente em K. Nas palavras
dele:
Essa foi a razão principal da novela, o motivo que me levou a escrevê-la. Eu tinha um antigo projeto de fazer uma crítica da universidade através de um paper acadêmico ou reportagem jornalística. Descobri que era mais fácil através da ficção policial. Você postula os problemas e não precisa provar nada.201
A contenda de Bernardo Kucinski e de sua família com a USP remonta à época
em que sua irmã, Ana Rosa, fora sequestrada pelo Estado: fato sabido pela reitoria,
pelo corpo docente e pelo discente, contudo ignorado pela direção, pelos colegas de
trabalho que, por conivência, ciúmes, medo, interesse ou descaso, demitiram-na por
199 PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Companhia das Letras: São Paulo, 2004, p. 57. 200 O que nos remete à nota 96 sobre o gênero romance policial. 201 Entrevista concedida ao blog da editora Rocco. Disponível em: http://www.rocco.com.br/index.php/blog/bernardo-kucinski-e-o-oficio-de-escritor/. Acesso em 10 de agosto de 2014.
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abandono de emprego. Uma pequena vista do que acontecia nas universidades e
aconteceu na USP emerge do diálogo entre dois professores veteranos e um aluno:
- Mas quando vieram as cassações ele protestou – retrucou Zimmerwald. - É verdade! Como é que você explica isso, Zimmerwald? – pergunta Heloísa. - Acho que é coisa de samurai. O fato é que muitos se encolheram, ele não.
Talvez as coisas tivessem sido diferentes se a maioria tivesse se portado como o Akira. Veja o caso da Congregação da Química, que demitiu, por abandono de cargo, uma professora que eles sabiam que tinha sido sequestrada pelos militares.
- Uma vergonha – diz Heloísa. – Eles não precisavam fazer aquilo. Rogério interrompeu. - Professora, pelo que eu sei, tinha agente do DOI-CODI dentro da reitoria.
Sendo assim, dava para contestar? - No nosso Instituto, nunca teríamos aprovado isso; a reitoria que demitisse. O professor Zimmerwald meneia a cabeça em concordância e diz: - Alguns cientistas tinham prestígio junto aos generais. O Akira colaborava com o programa nuclear e ainda colabora. Sei de fonte segura que ele enfrentou os militares, disse que estavam fazendo burrada. Disse também que não havia comunista nenhum na universidade, a não ser eu.202 (grifo nosso)
Mostra-se aí a atitude vergonhosa tomada pelo departamento de Química, a
covardia e/ou medo de alguns diante da repressão presente inclusive no campus, e a
possibilidade de mediação – caso houvesse boa vontade. Repara-se aí a paridade
entre a narrativa ficcional e os fatos ocorridos. Mais uma pista de que a matéria-
prima da obra de Kucinski está sendo garimpada de sua experiência pessoal, ou das
daqueles próximos a ele. Nesse sentido, e sendo esse o primeiro romance do autor,
aponta para um projeto que se concretizará em K., e se expandirá em Você vai
voltar para mim, a saber: a tentativa de cobrir (para usar um termo jornalístico), o
máximo possível, o período da ditadura203, porque sempre há algo a relatar, e
sempre algo que escapole. E o que escapole tem de ser retomado, mesmo que em
pedaços, porque a memória, uma vez remexida, não repousa mais no esquecimento.
Tal projeto insinua que, mesmo de maneira inconsciente, Kucinski talvez esteja
202 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 123. 203 Bernardo Kucinski revelou, na entrevista ao repórter Gabriel Pereira, do jornal Gazeta do Povo, que tem outras duas outras novelas escritas, “ainda não publicadas, nas quais a ditadura também está como pano de fundo (numa delas) e tema central (em outra).” Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 19 de setembro de 2014.
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perseguindo e montando a grande novela sobre a ditadura civil-militar. Ao menos
tentando.
No experimento Alice, o tom de roman à clef funciona como um rascunho
para o romance-testemunho a ser concebido em K. Na novela, a menção à
destituição arbitrária de Ana Rosa aparece como apêndice transitório; em K., um
capítulo inteiro é dedicado ao dia em que se realizou “A reunião da Congregação” em
que foi decidida a demissão de sua irmã “por abandono de função”.
Esta é a 46a. reunião mensal da Congregação, órgão supremo do Instituto. Estamos no dia 23 de outubro de 1975. Passaram-se dezenove meses desde o desaparecimento da filha de K. (...) Na ordem do dia, consta o processo 174899/74 da reitoria pedindo a rescisão do seu contrato “por abandono de função”, conforme o inciso IV do artigo 254 do Regimento. Outro item da ordem do dia é a proposta de recontratação do professor aposentado Henrique Tastaldi, por coincidência um dos três membros da comissão processante que pede a demissão da professora.204
É notável que a estrutura desse primeiro parágrafo é quase a de um texto
jornalístico, na precisão dos fatos – em qual congregação, na data, no tempo
transcorrido do sumiço, nas ordens do dia, no número do processo, no que é
solicitado e baseado em quê –, na linguagem enxuta e na descrição do ambiente,
bem no modo do jornalismo literário: “Em torno da mesa de mogno, longa, pesada,
de bordas entalhadas, como deve ser a mobília de uma universidade, sentam-se oito
ilustres professores do Instituto de Química (...)” 205 . Com uma fundamental
diferença: Kucinski nega a noção de imparcialidade ao intervir no texto usando aspas
para destacar a causa da demissão (semeando a dúvida) e no uso da expressão “por
coincidência” (opinando). De certa forma, o jornalismo, digo, a noção falaciosa da
prática jornalística de que não há tomada de partido é posta em xeque e negada. A
tomada de posição apresentada pelo confronto entre forma e linguagem ilumina a
discussão ideológica do autor com esse sistema que ele acusa de tê-lo “iludido”206
204 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 148. 205 Idem, p. 147. 206 Declaração concedida ao jornalista Maurício Meirelles do jornal O Globo durante a feira de literatura de Paraty – Flip. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/bernardo-kucinski-envereda-pelo-romance-policial-13470830. Acesso em 12 de agosto de 2014.
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por tanto tempo. Ainda assim, ele se apropria da forma e do sotaque íntimos ao
leitor – e a ele também – do jornalismo e fia-se em figuras de linguagem e desvios
semânticos para lançar-se no desmanche das “verdades”.
Inevitavelmente, enxergamos uma narrativa militante que se entrincheira nas
ideias e ideais e se propõe a intervir na “realidade” pelo golpe da palavra: “cada
traço inscrito é um tiro, é um golpe, il n’y a de bombe que le livre, cada linha é
lança, gume, faca que penetra na carne dura do inimigo vário. Plural...”207. Bem
como um diálogo com a literatura verdade dos anos 1970, no que tange a função
“parajornalística” de informar os leitores daquilo que foi omitido pelos jornais e/ou
veículos da imprensa, e tentar preencher a lacuna deixada, escrevendo a história não
oficial. Nessa linha, na época, Em câmera lenta denuncia e documenta os arbítrios
cometidos pelo governo militar. Uma literatura-documento de Renato Tapajós, que
romanceou o manifesto Autocrítica (1967-1973)208 da Ala Vermelha e divulgou a
forma bárbara como a militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) Aurora Maria
do Nascimento Furtado, a Lola, fora presa, torturada e assassinada. Identificamos
também influência da década seguinte, a de 1980, na acentuação ficcional operada
pelo autor, no uso dos recursos de romances policiais, da metaliteratura, na sutileza,
nos silêncios, nas lacunas, e nas sugestões em contraste com o excesso gráfico da
década anterior. Retrato calado, de Salinas Fortes, exemplo de literatura dessa
década, enquadra-se nessa linhagem gerada em uma época em que havia um
grande flerte com o pós-modernismo. A intertextualidade, a fragmentação da
narrativa, a mistura de estilos apontam para uma vontade de experimentação e
exalam um perfume pós-moderno. A despeito dessa influência, é oportuno destacar
que o teor testemunhal, característica principal do romance e traço antagônico à
proposta pós-modernista, é o que define o gênero (?) de Retrato calado.
Kucinski absorve essas influências estilísticas e as manipula para talhar o seu
romance-testemunho, no qual se ouvem ainda ecos da sua formação, que passa pela
USP (como aluno de Física e, depois, como professor), pelo jornalismo, pela
207 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 102. 208 O documento analisa profundamente os motivos da derrota. Segundo Jacob Gorender, a Autocrítica da Ala Vermelha foi pioneiro ao assumir, como erro fundamental, a luta armada contra o regime militar. In GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003, p. 230.
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militância de esquerda, pelo exílio, e pela assessoria da presidência durante o
primeiro governo do presidente Lula, para quem todas as manhãs escrevia cartas
críticas (antes, durante a campanha de 1998, eram cartas ácidas)209 . Ecos que
repercutem a ideologia de esquerda – de vários tons – tão própria dos dissidentes do
regime.
Por outro, a literatura de Kucinski não se pretende ou se apresenta como
panfleto ideológico, tampouco produz discursos; pelo contrário, ecoa, quando muito.
Na defesa dos ecos que repercutem no texto, vamos recuperar o pensamento de
Roland Barthes, para quem um texto sem ideologia é um texto sem sombra, um
texto sem produtividade, sem fecundidade, estéril. “O texto tem necessidade de sua
sombra: essa sombra é um pouco de ideologia, um pouco de representação, um
pouco de sujeito: fantasmas, bolsos, rastos, nuvens necessárias; a subversão deve
produzir seu próprio claro-escuro.”210
Voltemos à novela pelo questionamento do delegado Magno: “seria a
universidade essa sociedade estagnada e decadente? Será que sob seu manto de
cultura e saber acadêmico esconde-se um emaranhado de conflitos e negócios
escusos?”211. Ele certamente pensava nas intrigas, nas disputas, nos ciúmes e no
possível caso de corrupção envolvendo o administrador que conhecera na conversa
209 “Todas as manhãs, onde quer que estivesse, durante a campanha presidencial de 1998, Lula recebia um e-mail, analisando a mídia e os fatos do dia anterior, antecipando o dia que começava, sugerindo iniciativas, falas e atitudes, tudo o que pudesse ajudar a ganhar a eleição. Eram as "cartas ácidas". Apenas 30 a 40 linhas escritas em linguagem telegráfica, forte. Iam para ele e para mais quatro dirigentes da campanha.” Depois, com a vitória de Lula à presidência, Kucinski tornou-se assessor especial da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência. Nesse cargo, por sugestão do então presidente, as cartas deixaram de ser ácidas e se tornaram críticas. “A própria nomenclatura já tem um significado de mudança. O Lula achava que eu era ácido demais e muito mal-humorado, sempre vendo o lado negativo e então, por sugestão dele mesmo, mudamos para uma coisa mais amena, pois você pode ser crítico sem ser pessimista. O nome não mudou só porque ele virou presidente, mas já na campanha de 2002. Ele achou que não podia sair de manhã com raiva da imprensa, pensando mal das coisas, e a carta ácida realmente era ácida. Então, por exigência dele, mudamos o nome para carta crítica. No sentido de ser algo mais propositivo, menos mal-humorado. Porque na campanha o Duda Mendonça disse para o Lula aquela história de ‘Lula paz e amor’. E você lê aquela coisa do Kucinski e já sai de mau humor. Isso não é bom. Então, começou ali essa mudança de postura, uma coisa menos ácida. Quando o Lula virou presidente, foi mantido o nome carta crítica.” Entrevista concedida à jornalista Alice Sosnowski, do blog Observatório da Imprensa, em janeiro de 2006. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/lula-eliminou-a-necessidade-da-imprensa. Acesso em 20 de agosto de 2014. 210 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987, p. 44. 211 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 73.
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que tivera com a professora Heloísa, e como essas informações lhe seriam úteis para
desvendar o crime. Ele não sabia, porém, que os seus questionamentos seriam
seminais para a narrativa de K.: “(...) passemos à ordem do dia que tem como
primeiro item a recontratação do professor aposentado Henrique Tastaldi”212. Em
certa medida, as respostas às perguntas do delegado aparecem no trecho retirado
da ata da 46a reunião da Congregação e reproduzido por Kucinski, de onde se
confirma o interesse pessoal na demissão de Ana Rosa; a manobra em proveito de
um professor e em detrimento da renovação dos quadros; afora a conivência com o
regime, considerando que acolher a narrativa oficial é “ajudar a encobrir o
sequestro” 213 . Em Alice, a crítica ao silêncio da universidade e a tentativa
desesperada de “preservar a instituição”, “dever de todo cientista”214, irrompe no
desvio semântico feito por Kucinski para se referir ao crime: infortúnio – que,
segundo o dicionário Aurélio de língua portuguesa, quer dizer, “fortuna adversa,
desgraça, infelicidade, fato ou acontecimento funesto”. Isto é, deixa implícita a ideia
de acidente por falta de sorte e retira o peso da morte por assassinato. O incômodo
causado no leitor ao se deparar com a ressignificação do ato é sentido pelo
delegado, que se intriga com o fato de ouvir a mesma palavra várias vezes “em
poucos minutos”215. A palavra que tem por objetivo esvaziar a seriedade do fato é a
mesma que denuncia por sua persistente regularidade (ainda será repetida outras
quatro vezes) a orquestração da farsa.
Na metralhadora de escrever216 de Kucinski, a palavra é um projétil certeiro
que carrega a crítica perfuradora do texto. Vocábulos e expressões são empoderados
e adotados para a e pela crítica precisa e seca. Sem excessos. Sem verborragia.
Traço certamente desenvolvido nas décadas de escrita econômica jornalística, em
que a valorização dos signos em determinados contextos instigava o uso constante
da percepção para comprovar o que eles traziam de oculto. Kucinski retoma as
212 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 149. 213 Idem, p. 152. 214 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 215 Idem, p. 21. 216 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 102.
92
palavras e faz com que elas tenham sentido e nomeiem as coisas217. As aparições
são regras e não exceções, tanto nos romances quanto nos contos.
Seu texto traiçoeiro encoberto pelo manto da clareza é tão ambíguo quanto
essa imagem. O leitor fica sempre na dúvida sobre o que corresponde aos fatos ou à
imaginação. Nesse jogo, se um leitor resolvesse ler Alice comparando seus
personagens às pessoas que habitam a “realidade”, certamente teria uma surpresa,
visto que boa parte deles, como vimos, foi espelhada em pessoas “reais”. Digo
espelhada porque as profissões, os títulos, as histórias pessoais (das cassações, por
exemplo) são correlatas. Houve, contudo, o cuidado da troca de nomes. Método e
cuidado esperados em um romance que tem fortes laços com o gênero roman à clef.
Conquanto, Kucinski vai um pouco mais longe, fissura a fronteira da ficção e importa
da História alguns personagens que foram cassados pela ditadura civil-militar:
- A senhora não foi perseguida? - Escapei. Curioso. Agora que o senhor perguntou, eu me dei conta de que até nas
cassações houve desprezo pela mulher. Assim, de memória, não lembro de nenhuma cientista que tenha sido cassada. E foram mais de 300.
- Tantos assim? - Todos os importantes, os líderes. Não dá nem para acreditar. Na física, demitiram
o Schemberg; na medicina, o Isaias Raw, o Michel Rabinovitch, o Hidelbrando, nosso maior parasitologista; expulsaram o fundador da Universidade de Brasília, o Darcy Ribeiro. O Fernando Henrique, o Celso Furtado. Cassaram o Paulo Freire. Foi uma devastação.
- Não tinha ideia dessa amplitude; na minha cabeça, eram casos isolados.218
A ditadura, em Alice, não é pano de fundo, porém emerge nas conversas, nas
lembranças, nas pequenas informações. Por quê? Porque o ano da narrativa é o
primeiro depois do processo de “abertura lenta, gradual e segura” (conforme
imposição do governo militar), e da transição para a democracia. E como o leitor
sabe disso? Através das lembranças do professor Zimmerwald
217 Estabeleço um diálogo com Renato Tapajós que diz: “(…) as palavras não fazem mais sentido porque não nomeiam coisas.” In: TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 15. Interessa-nos mostrar, a partir desse diálogo com o texto de Tapajós, a relação visceral de Kucinski com a palavra, que é utilizada em sentido pleno, absoluto, e não manipulada. Pelo contrário, a manipulação é exposta por ela, num jogo perigoso em que as apostas são colocadas no leitor, na sua perspicácia, na sua capacidade de entender e “criar uma relação com a linguagem”. 218 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, pp. 82-83.
93
Enquanto esperava, recordou o velório de Prestes, dias antes. Lá estiveram os velhos companheiros: o Aldo, o Marco Antônio, a Lenina... Todos viveram intensamente. Ele, Abrahão Zimmerwald, também. Prestes chegou aos 92 anos. A morte depois de uma vida longa e intensa é como um descanso merecido. Mas no caso de Alice, tão jovem, é uma tragédia. Uma interrupção. Uma violência. Morreu na véspera de completar seu primeiro trabalho importante. Morreu na véspera da vida, pensou.219
Recorrendo a uma breve consulta, o leitor descobrirá que Luís Carlos Prestes
morreu em 7 de março de 1990; e Alice, dois dias depois. As lembranças do velho
cientista não apenas situam o leitor no espaço e no tempo, elas desenham o
espectro de Ana Rosa Kucinski (inspiração também da personagem-ausente de K.).
Vejamos: Alice é uma jovem pesquisadora, professora da USP, que teve sua vida
ceifada aos 33 anos. Uma tragédia similar à de Ana ou da filha de K., com pequenas
diferenças: Ana Rosa e a filha de K. são um ano mais novas e professoras do
departamento de Química. Não obstante as três tiveram a vida interrompida e
morreram “na véspera da vida”220 de forma violenta.
Percebe-se a tendência do autor em fornecer pistas ao leitor, em engajá-lo na
narrativa, em sugerir o acontecimento em vez de descrevê-lo, e, sendo essa uma
novela policial, em transformá-lo em um detetive-auxiliar, num leitor desconfiado,
“com suspicácias”, como sugeriu Borges.
Entretanto, se o mesmo leitor empírico pousar seu olhar no conto/fragmento
“A reunião da Congregação”, não precisará pesquisar sobre o histórico dos
personagens, em razão de que quase todos foram transportados de suas vidas para
as páginas do livro sem terem ao menos os nomes trocados – salvo a representante
dos auxiliares de ensino, professora Miriam. Os detalhes estão impressos, por
extenso, nome e sobrenome de cada um dos participantes da reunião. Sem pudor
algum, emulam, dessa forma, o comportamento da maioria dos membros que
votaram em favor da demissão.
Kucinski radicaliza, despe os “personagens” do traje ficcional e os deixa nus e
sem o amparo da mediação para serem julgados pelos leitores. Num tom e estrutura
219 Idem, p. 50. 220 No original a frase é um pouco diferente: “Morreu na véspera da vida”. In Ibidem, p. 50.
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que destoam dos outros fragmentos do livro, “A reunião” reproduz partes da ata na
qual estão registrados os discursos de cada um dos integrantes da Congregação e as
confronta com relatos imaginados. Comecemos pela imaginação:
O professor Francisco Jerônimo Sales Lara, oriundo da Faculdade de Filosofia, cogita pedir a palavra. Por enquanto pensa. Imaginemos que pense assim:
Esse malandro do Tastaldi; agora vai acumular a aposentadoria com salário de professor titular. Aprovam a recontratação e, em troca, ele reafirma os termos da comissão processante. É o seu prêmio pela cumplicidade com a repressão. Na Filosofia isso nunca teria acontecido. Todo mundo sabe que a professora foi presa pelos órgãos de segurança. O pai esteve aqui, teve anúncio em jornal, reportagem, a lista dos vinte e dois desaparecidos do cardeal. Meu Deus, onde é que eu vim parar. Esse antro de reacionários e gente sem espinha, e dizer que a maioria são judeus fugidos do nazismo ou seus orientandos.221
Na disputa de narrativas, o autor-narrador entende que o movimento é em
direção ao Outro, o de atração e não repulsão; portanto, na construção desse relato,
sugere que o leitor assuma sua parte no processo de criação. Ele sabe que “o
princípio da confiança é tão importante quanto o da verdade”222 . A intimidade
promovida com o uso da primeira pessoa do plural, “Imaginemos [Nós]”, engendra a
cumplicidade necessária para que K. seja reconhecido pelo que ele é: um romance-
testemunho.
Mas quem seria esse “nós”223 oculto a que o autor se refere? Somente o leitor
e aqueles que compartilham da sua mesma indignação, ou uma clientela bem mais
ampla224? É seguro imaginar que se refere àqueles que não viram, não quiseram ver,
ignoraram, e àqueles que não viveram o estado de exceção. Afinal de contas, “a
221 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 149. 222 ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 95. 223 Aqui me aproprio de uma indagação que Susan Sontag faz no livro Diante da dor dos outros sobre quem seria o “nós” a quem o remetente da carta a Virgínia Wolf se refere. 224 Expressão usada por Susan Sontag.
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ficção explica melhor a vida do que muito tratado científico”225.
Agora Sales Lara pede para falar. Mede cada palavra. A ata registra:
“Indubitavelmente o professor Tastaldi é uma figura histórica que muito contribuiu para o desenvolvimento da nossa bioquímica. Além disso, possui qualidades pessoais que o tornam pessoa querida por todos. Não obstante, julgo que sua contratação pelo instituto de Química não é oportuna. Sou contrário à recontratação de professores aposentados e acho que isto somente é justificável quando houver total impossibilidade de substituição, este não é o caso atual, há muitos doutores e pós-doutores de alto nível tanto no país quanto no exterior que se interessam pelas condições que podemos oferecer, é nossa obrigação dar oportunidade de carreira universitária a esses elementos.”226
Nesse jogo de relatos imaginados refletindo discursos documentados, o uso
do presente do indicativo227 é fundamental para o estabelecimento da credibilidade,
com vistas à verdade: “Muitos anos depois, a reitoria anunciaria de público a
injustiça da demissão da professora. Entretanto nunca admoestou nenhum dos
envolvidos, nunca resgatou suas dívidas com a família. Os presentes a esta reunião
da Congregação nunca se desculparam”228 , lamenta o narrador-autor. Bernardo
Kucinski, na mesma frequência de Luiz Roberto Salinas Fortes, entende que a
“inscrição é a resposta” e que “é aqui [no texto], neste exato momento, que se trava
a luta”229. Por isso os quer nus, despidos da prerrogativa da palavra, da defesa,
apenas acusados e avaliados, não por uma Congregação inimiga, não obstante por
uma massa de leitores críticos. Vingança? Literatura-vingança? “[C]reio que só se
pode dizer isso na medida em que um desejo de vingança alojado no nosso
inconsciente incida na narrativa ou no processo de criação, assim como outros
desejos e sentimentos do inconsciente. Nunca como desejo consciente ou como um
225 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 184. 226 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 149. 227 Somos testemunhas do acontecimento, da ação se concretizando. 228 Em abril, havia exatos quarenta anos do desaparecimento, a Congregação do Instituto de Química anulou a demissão da professora, e a direção do IQ apresentou um pedido formal de desculpas à família. Nesse dia, nos jardins do instituto, foi inaugurada uma escultura em memória de Ana Rosa Kucinski. Cf. O Estado de S. Paulo. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,usp-anula-demissao-de-professora-desaparecida-na-ditadura-imp-,1154643. Acesso em 3 de agosto de 2014. 229 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero, 1988, p. 102.
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dos objetivos das narrativas.”230
Mas Kucinski sabe que os gestos devem ser feitos, que não podemos
economizá-los – nem nos preservar231. Desse modo, não mediu consequências em
expor um a um, inclusive o governador de São Paulo à época, Paulo Egydio Martins,
“outro que nunca se desculpou”232.
Esse fragmento, mistura de fatos e imaginação, colocado próximo ao final do
livro, quando o leitor estava se acostumando com o narrador instável, absorto pela
narrativa ficcional, relembra o leitor e ilustra para ele que “tudo é ficção, mas quase
tudo aconteceu”.
Retornemos a Alice para apontar um outro entroncamento entre o romance
policial e o romance-testemunho K.
Alice, em linhas gerais, corresponde ao gênero romance clássico policial,
particularmente, de acordo com a descrição das “espécies”233 de gênero de Tzvetan
Todorov, a um romance de enigma, no qual uma característica global é a de
apresentar duas séries temporais superpostas: a dos dias do inquérito, que começam
com o crime, e a dos dias do drama que levam a ele234, o que aponta para uma
dualidade na base desse tipo de romance: a de ter duas histórias, a do inquérito e a
do crime. A primeira começa antes de começar a segunda. A primeira, a do crime, é
a história de uma ausência: “sua característica mais justa é que ela não pode estar
230 Resposta concedida ao jornalista Rogério Pereira, da Gazeta do Povo. Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 19 de setembro de 2014. 231 Estabeleço um diálogo com o livro de Renato Tapajós. TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 31. 232 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 153. 233 Quais sejam: romance de enigma, romance negro (série noire) e romance de suspense, que se subdivide em dois subtipos: um que conta a “história do detetive vulnerável” e outro, a “história do suspeito-detetive”. Cf. In TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 103. 234 No ensaio Tipologia do romance policial, Todorov afirma que houve várias tentativas de precisar as regras desse gênero – aliás, mais adiante no texto, ele apresenta vinte regras elaboradas por S.S. Van Dine –, no entanto, ele acredita que a melhor explicação foi dada no romance L’Emploi du temps, de Michel Butor, pelo escritor George Burton: “todo romance policial se constrói sobre dois assassinatos; o primeiro cometido pelo assassino, é apenas a ocasião do segundo na qual ele é vítima do matador puro e impune, do detetive”. Burton, autor de inúmeros romances policiais, explica ainda ao narrador sobre as duas camadas temporais superpostas. In TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 95.
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imediatamente presente no livro” 235 . Ou, por outra, ela será mediada por um
personagem, que nos contará o que ouviu e viu. Não obstante, a segunda história
não tem relevância e serve como mediadora entre o leitor e a história do crime.
K. assume a ausência no subtítulo de sua terceira edição: Relato de uma
busca. É evidente que K. não é um romance policial, ainda que guarde algumas
características do romance de suspense, uma das “espécies” identificadas por
Todorov. O mistério (real) em torno do desaparecimento de sua filha é a história que
impulsiona a outra, a segunda, a do relato. Passado e presente se sobrepõem na
incessante luta de K. para achar sua filha e/ou descobrir o que aconteceu a ela. Um
ponto importante e que está em consonância com o romance de suspense é o do
lugar central da segunda história, o da busca da cena ausente, porque o leitor tem
tanto interesse no que acontece no presente, durante a procura, quanto no que
acontece no passado, nas causas do desaparecimento. Assim como está interessado
no futuro, no que acontecerá com os personagens e no desfecho daquela trama que
não tem fim.
Nesse entroncamento entre os dois livros, encontramos mais uma indicação
de que Alice foi fundamental para a construção do testemunho K. Analisando as duas
obras pelas lentes do romance policial, é curioso constatar que o caminho percorrido
por Kucinski assemelha-se ao do próprio gênero, considerando o romance de
suspense uma derivação do romance policial clássico.
É importante, porém, sublinhar que, apesar de destacarmos alguns pontos
que transformam K. em um absorvente e vigoroso suspense, não perdemos de vista
a sua principal característica, e o norte dessa pesquisa: o seu teor testemunhal. E,
como já mencionamos anteriormente, acreditamos, em consonância com Derrida,
que a ficção não é apenas um elemento constitutivo do romance-testemunho, mas
que é, na verdade, sua possibilidade – em especial quando este é escrito quarenta
anos depois. E, seguindo nessa perspectiva (de K. ser uma ficção testemunhal),
estamos analisando seu valor estético, ético e ideológico. Com esse intuito, demos
essa longa marcha a ré, para podermos entender melhor o universo complexo e
235 Idem, p. 96.
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sofisticado de K.
A culpa no romance policial clássico funciona como mecanismo ordenador da
narrativa. A procura pelo assassino (presença-ausente crucial da história) e sua
consequente punição (a expiação da culpa do crime) são o caminho e o desfecho
esperado e possível. Uma vez respondida a primordial pergunta “quem é o
assassino?”, a ordem natural está salva e restaurada. E, em tempos caóticos e
incertos, como o da narrativa de Kucinski, o romance policial, como bem observou
Borges, salva a ordem em uma época de desordem236. Umberto Eco, reiterando
Borges sobre o romance policial ser, sobretudo, um romance intelectual, estende a
noção borgeana, aproximando-o da filosofia e da psicanálise. Vejamos:
Creio que as pessoas gostam de livros policiais não porque eles contêm assassinatos, tampouco porque neles se celebra o triunfo da ordem final (intelectual, social, legal e moral) sobre a desordem da culpa. É que o romance policial representa uma história de conjetura, em estado puro. Mas um diagnóstico médico, uma pesquisa científica, ou mesmo uma indagação metafísica também são casos de conjetura. No fundo, a pergunta básica da filosofia (como a da psicanálise) é a mesma do romance policial: de quem é a culpa? Para saber isso (para achar que se sabe) é preciso supor que todos os fatos têm uma lógica, a lógica que o culpado lhes impôs. Toda história de investigação e de conjetura fala de algo junto ao qual sempre vivemos (...).237
“De quem é a culpa?” é uma interrogação crucial também para a literatura de
teor testemunhal e, sem dúvida, central em K. É a pergunta que os sobreviventes
fazem a si mesmos sobre si mesmos (essa culpa é minha? é dele? é nossa? de
quem?). Perguntas com as quais “o esclarecimento dos sequestros e execuções, de
como e quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas
sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a
tragédia seria abortada”238.
A diferença entre os questionamentos sobre a culpa no romance policial e no
de testemunho está na esfera de onde é feita a pergunta. No romance policial, não
236 BORGES, Jorge Luis. “O conto policial”. In Obras Completas – vol. IV. São Paulo: Globo, 1999, p. 230. 237 ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ed., 1985, pp. 45-46. 238 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 163.
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há dúvidas de que ela é feita na esfera jurídica, em primeiro lugar; já no
testemunho, alonga-se ao campo ético e moral, filosófico e psicológico, e, em geral,
por último, ao jurídico. Como demonstrou Eco, no fundo, a pergunta básica (de
quem é a culpa?) é a mesma para o romance policial, a filosofia e a psicologia. E,
para conhecermos a resposta a esse questionamento, e supondo que “todos os fatos
têm uma lógica”, temos que admitir a “lógica” imposta pelo culpado. Que lógica seria
essa? A do motivo que o estimulou. Nesse ponto, devemos fazer uma distinção clara
entre conhecer e justificar o ato arbitrário: “Explicar não é desculpar; entender não é
perdoar” 239 . Com a perspectiva do historiador Christopher Browning em vista,
pautamos a nossa pesquisa.
2.3. A culpa em K.
Em K., a culpa é espinha dorsal (a “alma”) e um dos laços que o relaciona
com os romances de Kafka240.
A culpa. Sempre a culpa. A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a miserável indenização do governo, mesmo sem ter pedido. No fundo a culpa de ter sobrevivido.241
K. é transpassado com culpas. Uma culpa diferente e não apenas jurídica,
239 No original: “explaining is not excusing; understanding is not forgiving. Not trying to understand the perpetrators in human terms would make impossible (…)”. Cf. In BROWNING, Christopher R. 1992, p.36. 240 Segundo Bernardo Kucinski, quando estava escrevendo os fragmentos não tinha ideia de que eles viriam a compor um livro. Ao redigir o capítulo sobre a culpa do sobrevivente, percebeu que “a culpa” era o sentimento comum e os unia. Cf. Entrevista com Bernardo Kucinski. Blog do Centro de Cultura Judaica. Disponível em: http://www.culturajudaica.org.br/blog/entrevista-com-b-kucinski/. Acesso em 15 de setembro de 2014. 241 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 162.
100
suprema no romance policial242. A culpa nos testemunhos está mais relacionada aos
princípios éticos e aos valores morais. É uma culpa advinda de um sentimento de
indignidade243, do qual falou Freud, de um ideal que criamos de nós mesmos e que
rui quando criticamos a nós mesmos, fazendo com que nos sintamos indignos desse
ideal. É a culpa do pai que atribui à ausência dos ritos de família, e à sua falta de
atenção ao que acontecia no país, poder influenciador do rumo dos fatos. É a culpa
de ter se casado com uma mulher que a filha detestava. Ou de não ter ensinado
iídiche aos filhos. É a culpa de não conseguir erguer uma matzeivá para a filha e
assim poder provar que ela existiu. De não ter percebido o que estava acontecendo
no país, com ela, nem mesmo se estava casada. E com quem. É a culpa de não ter
procurado com mais afinco. Ou de não ter feito de tudo. Se ao menos... É a culpa da
indignidade de estar vivo.
São várias as culpas apontadas pelo narrador: a de K., pelo presente no Brasil
e pelo passado na Polônia; a do autor; a das famílias das vítimas; e a dos
sobreviventes da Shoah.
Porém, a nosso ver, a mais importante subjaz na trama: a culpa geracional244.
Das duas gerações (do pai e do filho), em dois campos distintos: no político e no
afetivo. No afetivo, fica clara a culpa que o pai sente por ter-se dedicado mais ao 242 É claro que – em geral, com ressalvas – é intrínseco a um crime a implicação ética e moral para consumação do ato, contudo não necessariamente o criminoso sente o peso da culpa advinda desses princípios e padrões. 243 Em Reflexões para o tempo de guerra e morte, Freud aponta para o fato de a história primitiva da humanidade estar repleta de assassinatos e mortes e ressalta que, por causa disso, a humanidade tem estado sujeita ao sentimento de culpa e que, em algumas religiões, foi traduzido como doutrina da culpa primeva, do pecado original, que provavelmente seria a expiação de uma culpa do homem pré-histórico. Ele ressalta também a exigência ética da proibição de não matar e que junto a ela havia o medo da própria morte – um sinal do sentimento de culpa. Com a definição do conceito de Édipo, “o sentimento (universal) da culpa é presentificado e revivido individualmente no que Freud identifica como intensos desejos de morte (desejo de matar o pai); estes podem se transfigurar em medo consciente da própria morte (como vingança) graças à ação da instância interna opressora que se origina com a resolução do Édipo – o supereu. Para Freud, à época do crime primevo, a autoridade era externa ao sujeito; agora, com a emergência do supereu e a internalização das normas, a instância opressora lhe é interna. Isso configura um problema: apenas uma renúncia não seria suficiente, uma vez que o desejo persiste e não escapa ao supereu. A culpa é compreendida, portanto, como sendo a forma pela qual o eu percebe a crítica do supereu. É, pois, um sentimento de
indignidade. Há um ideal do eu que “critica” o eu e este se sente indigno do ideal”. Cf. GELLIS, André e LIMA HAMUD, Maria Isabel. “Sentimento de culpa na obra freudiana: universal e inconsciente”. In Revista de Psicologia da USP. São Paulo, 2011, pp. 635-653. 244 A ideia da culpa geracional foi lançada pela professora Flávia Trocoli durante a arguição feita no dia da defesa.
101
iídiche e à literatura do que à família; a do filho por ser o único herdeiro e
sobrevivente da família; a dos dois por pouco conhecerem a filha e a irmã. No
político, percebemos a devida responsabilização da geração que criou a estrutura de
poder, a ditadura, que moldou, com a repressão, o desengajamento político da
sociedade, a falta de autonomia do sujeito e o esfacelamento dos laços sociais, cujos
efeitos são sentidos até os dias de hoje.
102
3. K. e Kafka
3.1 Prismas de K.
O inferno é esta vida aqui. August Strindberg
Nada existe de mais diabólico do que o que há aqui.
Franz Kafka
Nesse ponto, vamos traçar uma outra analogia, um possível intertexto com o
romance de Franz Kafka O processo, que começa assim: “Alguém certamente havia
caluniado Joseph K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. A
composição sintética, de uma simplicidade arrebatadora, contrasta com a
profundidade psicológica do romance, ao mesmo tempo que, de forma semelhante
ao início de K., de Kucinski, revela-se e revela que o processo narrativo é tão
importante (talvez mais) quanto a história apresentada, que é estrutura quase
sempre passível de ser traduzida por outros sistemas semióticos245. Circunstância em
que eclodem as diferenças entre o discurso literário, o jornalístico, o fílmico e o
testemunhal daquele apresentado perante uma igreja ou tribunal e que jura dizer a
verdade, nada mais que a verdade em nome de um Deus. No discurso literário
ficcional, na ficção testemunhal, as estratégias estilísticas, a linguagem, os
mecanismos que acionam o milagre, “a linha essencial de união entre testemunho e
ficção”, como definiu Derrida, permitem-nos ouvir/ler histórias das mais absurdas,
como a do sumiço de uma professora de química e de seu marido, ou a da acusação
de um funcionário público sem motivo palpável, sem taparmos os ouvidos ou rirmos
da aparente impossibilidade da trama. Permite-nos, também, não apenas acreditar
no que estamos lendo (comprovando o milagre da troca), bem como nos encantar,
emocionar e vibrar. Esse caminho é escolhido por Kucinski por entender que a
história de sua irmã, que era conhecida publicamente, ao menos havia sido
245 ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 41.
103
estampada em alguns periódicos à época em virtude da luta de seu pai, Meir
Kucinski, para obter respostas do regime que a sorveu e desapareceu. Assim sendo,
quarenta anos depois, após décadas de revisionismo histórico, negacionismos,
esquecimentos, mentiras e equívocos, a literatura parece a única via possível para
acolher esse excesso de realidade que transborda do fato em si.
Arriscando um argumento, do ponto de vista da escolha da mediação desse
Real – termo complexo de definir, afinal sabemos que ele mesmo não se apresenta,
apenas figurações suas são vistas, e que, no caso do testemunho, é a figuração
traumática que se manifesta –, a da tragédia que se abateu sobre a família de K., a
preferência pelo relato da busca, pelo processo penoso pelo qual passara K. no lugar
de recontar a vida e o desaparecimento de sua filha (irmã) insinuam a ausência
como temática e fascínio. K. perseguirá a ausência de sua filha e nós, leitores,
levados pelo narrador, acompanhá-lo-emos, fascinados por essa ausência, de um a
outro fragmento, que, juntos, irão convergir para essa cena ausente.
Ainda avançando por terreno minado, consideramos que essa mediação pela
narrativa da saga do pai seja também uma estratégia de proteção do autor e do
narrador contra a opacidade da violência que uma história de captura, prisão ilegal,
tortura, assassinato e ocultação de cadáver abarca, e paliativo para evitar as
previsíveis e possíveis reações (pensando no temor dos sobreviventes narrado por
Primo Levi) dos leitores.
Com esse intuito, já no primeiro parágrafo, o autor anuncia a ausência da
trama e das cenas centrais, e da personagem principal, e, no mesmo fôlego,
apresenta a ausência como estilo narrativo; afinal, exibe a obliquação (um dar a ver
de través) como característica da narrativa.
104
3.1.1. O Processo
Em O processo, de Kafka, sabemos que existe um processo contra Joseph K.,
que ele foi detido, mas não sabemos ao certo o motivo e o conteúdo desse processo.
Não temos acesso a ele, tampouco Joseph K. Logo, ele é uma das ausências do
romance. A ambiguidade do título246 nos remete também ao processo pelo qual o
personagem principal passa, assim como ao procedimento do Estado em relação a
ele. Ou, talvez, abrangendo um pouco mais o escopo da análise do que o título O
processo possa indicar, imaginamos que aponte para a “culpa” que todos aqueles
que foram acusados de alguma, qualquer coisa, carregam, a despeito de
efetivamente serem culpados, sugerindo que vivemos em um mundo onde inocentes
são apenas aqueles que nunca foram acusados. Todavia, todos (mesmo os inocentes
– os nunca acusados) e tudo pertence ao Tribunal de Justiça, como nos é dito uma e
outra vez por Kafka. Se esse (ainda) não é o retrato do nosso mundo, certamente é
o dos personagens kafkianos.
Walter Benjamin, no artigo “A propósito do décimo aniversário de sua morte”
(da morte de Kafka), afirma que a beleza surge no mundo kafkiano nos lugares mais
obscuros, por exemplo, entre os acusados. Reproduz ele:
É um fenômeno notável, de certo modo científico... Não pode ser a culpa que os faz belos... Não pode ser também o castigo justo que os embeleza... só pode ser o processo movido contra eles, que de algum modo adere a seu corpo.247
A beleza vislumbrada por Kafka no acusado e apontada por Benjamin está
relacionada à fatalidade da acusação, pois, segundo o filósofo, “esse procedimento
judicial não deixa, via de regra, nenhuma esperança aos acusados, mesmo quando
subsiste a esperança da absolvição” 248 . Aqui, Benjamin encontra a Poética de
Aristóteles, para quem o sublime é relacionado ao trágico porque “ambos despertam
246 Em alemão, der Prozess significa tanto processo como procedimento. 247 BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 141. (Obras escolhidas, vol. 1). Walter Benjamin, na verdade, reproduz um trecho de uma conversa entre o advogado e Joseph K. Cf. KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 226. 248 Idem.
105
o terror e a piedade”249.
O trágico pertence à história da filha de K., à de Salinas Fortes e à de Aurora
Maria do Nascimento Furtado, a Lola. Mas, se nos basearmos na visão benjaminiana
sobre o que inspira a aura do belo nos personagens, perceberemos que até essa
possibilidade fora retirada deles, já que não houve acusação, quanto menos
processo, apenas ilações que resultaram em ações sumárias. Seriam eles tão abjetos
que não mereceriam um processo?
No fragmento/conto “Os informantes” percebe-se a tentativa de manipulação
e de convencimento de que não houve prisão, logo, não há processo. K. insiste na
certeza de que “sua filha fo[ra] tragada por um sistema impenetrável”250, contra
todos os desmentidos feitos pelos informantes: o vitrinista de sua loja, o padeiro
português amigo de longa data, e o galerista que afirma que “sua filha está em
Portugal, para onde fugiu há mais de um mês”251. Nada o demove da convicção de
que a filha não o deixaria sem dar notícias, nem mesmo o teatro montado para
torturá-lo:
(...) chega à loja pelo correio um pacote cilíndrico de Portugal endereçado a K. com o nome da filha como remetente, escrito à mão. Contém cartazes políticos da Revolução dos Cravos. Não é a escrita da filha, ele logo vê. A letra da filha é ligeiramente inclinada para a direita e uniforme, de traços elegantes, como num exercício de caligrafia. Montaram uma farsa. Um teatro para me torturar. Estão todos mancomunados, esses informantes. É uma rede sórdida (...)252.
A constante negação através da mentira tem como intenção colonizar o Outro,
negando-lhe o conhecimento necessário para que ele seja manipulado a agir
respondendo a uma vontade e a uma intenção que não sejam as suas, nem em seu
benefício. Além disso, a mentira contada pelo sistema tem ainda a nefasta função de
assassinar o caráter daqueles que foram sorvidos por esse mesmo sistema. Foi o que
se passou com o general que recebeu K. no Clube Militar, no Rio de Janeiro: 249 ARISTÓTELES. In Poética. 250 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 37. 251 Idem. 252 Ibidem, p. 38.
106
(...) quando chegou ao general, que o recebeu com maus modos. Mandou-o sentar com rispidez. Reclamou que ele estava espalhando na comunidade judaica acusações pesadas e sem fundamento contra os militares. E se sua filha fugiu com algum amante para Buenos Aires? O senhor já pensou nisso?253
É digno de nota, antes de continuarmos traçando simetrias entre os processos
e/ou a falta deles, observarmos como Kucinski elabora a crítica à tentativa do
sistema de manipular e enganar K., ou, nas palavras do autor, em torturá-lo. Mais
uma vez, o autor não faz um juízo de valor direto. Ou sequer utiliza o narrador como
seu porta-voz. Somente delega a ele a função de repassar um dado: “contém
cartazes políticos da Revolução dos Cravos”, donde o leitor atento poderá retirar que
houve dois esforços por parte dos militares, um de provar que a filha de K., de fato,
fugiu para Portugal, já que ela sumiu no dia 22 de abril e a Revolução dos Cravos254
ocorreu três dias depois; e outro de associá-la a causas políticas e corroborar a
narrativa de que ela seria uma “terrorista”.
Porém, se o leitor for um pouco mais atento, perceberá a falácia da tentativa.
Que fugitivo, em sã consciência, enviaria uma correspondência indiscreta como essa,
cilíndrica, grande (imaginamos) contendo cartazes políticos de uma revolução que
depôs um regime ditatorial, para um país em que o novo regime é da mesma linha?
Ponto em que o ridículo é embalado em falta de inteligência. A falta é sublinhada
pelo sutil fio de ligação entre o momento histórico brasileiro e o português. A um só
tempo, Kucinski expõe e derruba a incoerência do discurso oficial que tacha os
opositores de terroristas e sugere que eles tinham planos de implantar uma ditadura
de esquerda nos moldes da de Cuba. Como? Referindo-se aos cartazes sobre a
Revolução dos Cravos, o autor ratifica a intenção dos militantes de lutar pela
democracia, pois, como sabemos, a revolução portuguesa contra o regime ditatorial
que vigorava desde 1933 resultou no início de um processo que implantaria a
democracia dois anos depois. E aqui nos deparamos com mais um dos raros
momentos de ironia do texto: esse movimento opositor ao regime em Portugal foi
liderado por militares ligados ao Movimento das Forças Armadas (MFA). Ora, se a
253 Ibidem. 254 Identificamos também a intenção de engajar o leitor na construção da narrativa, pois espera-se que o leitor ou tenha conhecimento da data exata da Revolução dos Cravos ou vá se informar.
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filha de K. fosse uma terrorista-comunista, ela não apoiaria um movimento
encabeçado por militares com a finalidade de reestabelecimento da democracia. Aliás
– e aqui sentimos o sarcasmo –, ela estaria apoiando militares? Ela apoiaria uma
revolução liderada pelo mesmo grupo que alguns anos antes tomou o poder no Brasil
prometendo uma transição que nunca se concretizou? Terroristas-comunistas apoiam
militares? Cartazes da Revolução dos Cravos?
A mesma referência (Revolução dos Cravos), por outro lado, aporta a
literatura na realidade histórica, concedendo a ela um caráter de veracidade e
conectando-a à exterioridade textual.
Percebo a técnica de narrativa elíptica, a utilização de referências e/ou
referentes que mobilizam memórias históricas e pessoais, (co)relações, significados
outros, conceitos que ampliam as possibilidades de leitura dessa escrita econômica e
dedutiva. Esse estilo palimpséstico parece-me que foi talhado e amadurecido durante
os anos de jornalismo em ambiente controlado pela censura estatal, no qual o risco
de ser preso rondava as redações e, por causa dessa ameaça constante, muitos
jornalistas apuraram a arte de manipular a linguagem para dizer através do não dito.
Vejamos um exemplo em que Bernardo Kucinski escreve sobre tortura na revista
semanal Veja, citada em capítulo anterior, durante o governo do general Garrastazu
Médici:
Para o presidente, os terroristas são grupos pequenos, que superam suas limitações pela audácia mas não têm condições de ao menos abalar a verdadeira “mulher de aço” com que as Forças Armadas e os serviços de segurança, especialmente armados e muito numerosos, garantem as instituições e o esquema instaurado pela Revolução de março de 1964. O presidente acha mesmo que os terroristas brasileiros chegaram a ser superestimados, pela importância com que suas ações isoladas – apesar de alguns lances sensacionais – foram recebidas pelas autoridades.255
A matéria realizada sob a alegação de ajudar o presidente a conhecer e a
erradicar a prática da tortura no país – e dividida em duas edições – é recheada de
informações que desconstroem o discurso oficial. Como vemos no parágrafo acima,
255 KUCINSKI, Bernardo. A violência fora da lei. In: Revista Veja. Rio de Janeiro: Ed. Abril. No. 65, edição de 03 de dezembro de 1969, pp. 18-24.
108
sob o tom elogioso do poderio bélico, da numerosa composição das Forças Armadas
e dos serviços de segurança, somos apresentados ao seu inimigo e opositor, os
terroristas, através da oposição comparativa e reparamos que eles não oferecem
tanto perigo quanto propagado por estarem em desvantagem numérica e técnica;
somos informados também da multiplicidade e da descentralização dos grupos pelo
uso do plural e pela menção a “ações isoladas”. E, em meio a tudo isso, a exaltação
das ações dos militantes aparece, de súbito, modificando o teor da suposta
declaração do presidente.
A forte influência do jornalismo na escrita de Bernardo Kucinski aproxima, a
nosso ver, sua literatura do rés do chão, o que nos reporta a Walter Benjamin.
Segundo o filósofo, desde a perda da aura, a arte deixa de ser elitista, deixa de
imaginar um público carregado de experiência, e adquire uma potencialidade
revolucionária por passar a ter a possibilidade de alcançar as massas. Para ele, o fim
da aura, da fidelidade única à tradição, possibilita a “politização da arte”.
Acompanhando essa linha de pensamento, localizamos, nesse contexto, a ficção
testemunhal de Kucinski por ela ser eminentemente política e falar tanto ao homem
cultivado quanto ao de poucas oportunidades. Ambos poderão acessá-la, entendê-la
e ser tocados por ela.
Continuando na mesma nota de análise da crítica de Kucinski à tentativa de
manipulação segundo à qual a filha de K. não teria sido presa e, por causa disso, o
caso não teria (ou mereceria) um processo, observamos que o autor estrutura a
narrativa de forma a demonstrar, por contraste, a desumanidade e o machismo das
Forças Armadas.
Ainda se remoía de culpas quando telefona um amigo escritor e advogado. Um general ia recebê-lo a pedido do tal dirigente da comunidade judaica do Rio de Janeiro. A oportunidade não deveria ser desperdiçada. E passou-lhe o endereço e a hora marcada. O general o receberá à noite. K. já nem sabia se ainda tinha esperanças, depois de tanto engodo, e do tempo já tão longo da desaparição. Mas o general não o receberia para dizer algo que um pai não pudesse ouvir. (grifo nosso)256
256 KUCINSKI, Bernardo. K. loc. cit., p. 38.
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Ao confrontar a certeza inocente de K., de certa maneira, sua única
esperança, com o comportamento mal-educado do general e com a pergunta que ele
faz ao final do encontro (“E se sua filha fugiu com algum amante para Buenos Aires?
O senhor já pensou nisso?”), Kucinski ilustra a crueldade da instituição, que não
perde a chance de impingir um pouco mais de sofrimento aos familiares, e o
machismo – uma das mais antigas formas de opressão e camada adicional de
sujeição sofrida pelas “mulheres subversivas” ou “putas comunistas”. Veja que o
general não se limitou a sugerir que a filha de K. havia fugido com o marido – algo
esperado, considerando que os dois foram sumidos juntos. Ao contrário, ao sugerir
que ela fugira com algum amante, fica claro que o general conhecia o estado civil
dela; e o uso do pronome indefinido insinua que ela teria mais de um amante, ou
seja, acentua a visão da militante política como uma “desviante”, “promíscua”, e não
uma mulher “honesta” que conhece o seu lugar na sociedade, a saber: de rainha do
lar, que se mantém no âmbito privado, cuidando do marido e dos filhos:
A mulher militante política nos partidos de oposição à ditadura militar cometia dois pecados aos olhos da repressão: de se insurgir contra a política golpista, fazendo-lhe oposição e de desconsiderar o lugar destinado à mulher, rompendo os padrões estabelecidos para os dois sexos. A repressão caracteriza a mulher militante como Puta Comunista. Ambas categorias desviantes dos padrões estabelecidos pela sociedade, que enclausura a mulher no mundo privado e doméstico.257
A questão do machismo e da desqualificação da militante política como sujeito
autônomo258 havia sido pincelada pelo autor no diálogo entre a professora Heloísa e
o delegado Magno, em Alice, na já citada e analisada primeira novela. Vejamos:
- A senhora não foi perseguida? - Escapei. Curioso. Agora que o senhor perguntou, eu me dei conta de que até nas cassações houve desprezo pela mulher. Assim, de memória,
257 COLLING, Ana Maria. As mulheres e a ditadura militar no Brasil. Disponível em: http://ich.ufpel.edu.br/ndh/downloads/historia_em_revista_10_ana_colling.pdf. Acesso em 08 de setembro de 2014. A militância feminina nos grupos armados de esquerda não ocorreu sem conflitos. Lutando contra o autoritarismo estatal e o masculino ao mesmo tempo, muitas mulheres tiveram que passar por um processo de “dessexualização”, ou seja, a militante tinha que se aproximar de um ideal masculino, sob a pena de viver na invisibilidade, caso não cumprisse o seu novo papel. Do outro lado, nas mãos do Estado, a questão do gênero era determinante inclusive na hora da tortura. Cf. RIDENTI, Marcelo Siqueira. “As mulheres na política brasileira. Os anos de chumbo”. São Paulo: Rev. Tempo Social – USP. Volume 1. 258 A caracterização da militante geralmente se dá como apêndice dos homens, sem autonomia nas decisões políticas. Cf. op.cit.
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não lembro de nenhuma cientista que tenha sido cassada. E foram mais de 300.259
Claro está que o autor ao trazer à tona a questão do gênero e sua relação
com a política e a repressão, assunto pouco abordado, senão e em geral por
mulheres, reafirma a ligação da história com “o fora” do texto, com a realidade
vivida por sua irmã durante a época de militância e depois como presa política.
Escavando um pouco a “aparição” do tema, entrevemos a denúncia das sevícias
sexuais sofridas principalmente pelas mulheres e que serão abordadas com mais
detalhes nos contos “Sobre a natureza do homem” e “Você vai voltar para mim”, que
compõem a antologia de contos homônima.
Por fim, vale ressaltar que Kucinski, ao retratar o encontro de K. com o
general, esboça aí a impenetrabilidade do sistema, a muralha de silêncio construída
em torno das desaparições, e a máquina desumana e cruel contra a qual ele, K., está
lutando.
Retomemos o tópico anterior sobre o processo ou a falta dele. A negação do
reconhecimento da prisão, de uma acusação, de um processo, demarca a abjeção de
como o Estado (e a sociedade que o apoiava) enxergava aqueles que se opunham a
ele. “Não seria eu nem mesmo digno de um processo político? Réu tão vil e
desprezível que a ele se concede, no máximo, aparecer como um suspeito marginal
misturado com traficantes de drogas? Pois é.”260, desabafa Salinas Fortes, de cujas
quatro prisões somente a última teve “uma existência oficial, tendo sido registrada
até com manchetes nos jornais”261. Interessante notar que a prisão teve “existência”,
uma vez que fora registrada pelo discurso da mídia. A noção de que os jornais são
porta-vozes do mundo real, descrita com ironia, é evidenciada no discurso do autor:
“as outras três prisões só gozam de um estatuto ontológico, por assim dizer,
puramente prático. Teórica e oficialmente nunca existiram: residem no território da
ficção”262. E aqui o conceito de ficção está relacionado à ideia de fingimento, de
invenção, de mentira. Ficção se coloca, também, como indício do expediente usado
259 KUCINSKI, Bernardo. Alice – não mais que de repente. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 82. 260 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 85. 261 Idem, p. 81. 262 Ibidem, p. 81.
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pelos militares para denegar as acusações de prisões ilegais, mortes e desaparições.
Se não há registro, não houve prisão. Se não houve prisão, não há processo. A
estratégia de negação do processo corresponde à possibilidade de sumiço e morte
sem deixar rastros. E se opõe ao fio de esperança que o preso tecia de continuar
vivo e existindo, visto que somente a abertura do processo concedia a ele essa
garantia. Mas tal estratégia se liga, sobretudo, à simplicidade, propiciada ao Estado
pela burocracia, de apagar da existência de quem ele escolhesse. É o Estado
deixando viver e fazendo morrer.
A conversa de que falei há pouco entre o advogado e Joseph K., e reproduzida
por Walter Benjamin, sobre os acusados serem belos por terem um “processo
instaurado, que, de algum modo, adere a eles”263, atesta, em vista do que vimos,
aquilo que Milan Kundera classificou como “o encontro do universo real dos Estados
Totalitários e do ‘poema’ de Kafka”, e o seu enorme alcance político e “profético”264.
A meu ver, a beleza do processo (inclusive da falta dele) está justamente no
deslocamento que essa peça jurídica promove da enunciação da narrativa no período
pós-ditatorial da instituição, do algoz para o sujeito, antes sofredor-passivo de toda
ação, agora senhor da enunciação. No caso da ausência de processo, o que, em
geral, pode ser assumido como subtração do sujeito, a palavra é tomada por uma
testemunha que vai ter a responsabilidade pelo enunciado. A aderência, nesse caso,
pode ser interpretada como marca consequente do posicionamento ideológico e selo
de veracidade na disputa da construção da narrativa. Em certa medida, essa
aderência atinge também o discurso da testemunha, do terstis, daquela que
sobreviveu para contar.
A delicada controvérsia em torno da disputa da narrativa – ou narrativas –
sobre as ditaduras é apresentada pela crítica literária Beatriz Sarlo no livro Tempo
passado. Abaixo um trecho em que ela salienta a não sacralidade do testemunho:
(...) os testemunhos de quem foi vítima das ditaduras; esse caráter, o de vítimas, interpela uma responsabilidade moral coletiva que não prescreve.
263 KAFKA, Franz. O processo .Trad. Modesto Carone. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 226. 264 KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ed., 1986, p. 105.
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Não é, em contrapartida, uma ordem para que seus testemunhos permaneçam subtraídos da análise. Até que outros documentos apareçam (se é que aparecerão os que dizem respeito aos militares, se é que se conseguirá recuperar os que estão escondidos, se é que outros vestígios não foram destruídos), eles são o núcleo de um conhecimento sobre a repressão; além disso, têm a textura do vivido em condições extremas, excepcionais. Por isso são insubstituíveis na reconstituição desses anos. Mas o atentado das ditaduras contra o caráter sagrado da vida não transfere esse caráter ao discurso testemunhal sobre aqueles fatos. Qualquer relato da experiência é interpretável.265
Sarlo, em sua investigação sobre os usos e abusos da memória e os discursos
enunciados em primeira pessoa, critica a aceitação acrítica, e sem análise, dos
testemunhos como verdade, comuns nos livros “não-ficcionais”, bem como nas
histórias de vida, autobiografias, memórias, biografias e entrevistas.
Bernardo Kucinski passa ao largo da controvérsia ao assumir a construção do
seu discurso, a ficção do seu testemunho e sua conexão com o perjúrio e com a
mentira, frisando a proximidade com a verdade (uma quase-verdade), nunca a
verdade, toda a verdade, mas a possibilidade de algo além da verdade, porque
quase tudo aconteceu, nem tudo – já que quem narra, narra o que pode, sabe e
lembra, depois de quarenta anos.
A ficção em K. acrescenta indivíduos, atributos e acontecimentos ao conjunto
do universo particular de Bernardo Kucinski (que serve de fundamento da história),
tornando-a maior que o mundo da sua experiência. “Desse ponto de vista, um
universo ficcional não termina com a história, mas se estende indefinidamente”266,
observa Umberto Eco.
A ficção, via de acesso ao passado, no caso de Bernardo Kucinski, para além
das motivações estéticas, propicia que o escritor apresente um mundo no qual a
noção de verdade seja indiscutível. E aí reside a beleza desse privilégio aletológico267
da ficção testemunhal de Kucinski, pois ela se protege com o mesmo véu de
265 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 61. 266 ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 91. 267 Noção cunhada por Umberto Eco.
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irrealidade que os militares pretendiam usar contra as narrativas dos opositores.
Trocando em miúdos, o que poderia ser classificado como mentira torna-se quase-
verdade. E as narrativas circundantes aos processos, e principalmente as dos
inexistentes, as que residem no território da ficção (como dito por Salinas), tornam-
se contraveneno, antídoto contra a “verdade” do discurso oficial.
O texto alimentou-se da negação daquilo que conformaria o belo e
transmudou essa ausência em poesia épica. Kucinski consegue transformar a história
condoída, sentimental de um pai que procura por sua filha, em epopeia, em mito,
em pura beleza268. K., o herói romântico, está – e aqui trocamos com Lukács269 – em
busca de uma coesão perdida, da harmonia como tentativa de explicar a realidade
que não faz sentido. Ele sai em busca de sua filha, e sua busca não deixa de ser uma
aventura que ele vive com destemor, ignorando os perigos e o tormento que é essa
busca em si. Ele não mede os riscos da descoberta, tampouco imagina a
possibilidade de se perder270, sua alma assimilou a essência da epopeia. Assim, uma
história que poderia ser mais uma, mais um testemunho271, é transfigurada em
tragédia épica, e K., em herói. A existência desse “herói problemático” é significada
por intermédio da ausência de sua filha, e sua relação com o mundo de ideias e
ideais é moldada a partir de um conflito lateral à sua vivência, porém vital para a
personagem da filha ausente. A concretização desses aspectos se dá através do
personagem K. e da experiência que ele realiza durante sua aventura. Ponto em que
a obra, articulando as possibilidades e impossibilidades do personagem, adquire
“sentido imanente”, torna-se autônoma e “perfeita em si mesma”272.
Contudo, apesar de termos apontado para uma possível dimensão épica e
268 Fazendo de Milan Kundera minhas palavras. 269 Segundo Lukács: “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. Cf. In: LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 218. 270 O que, afinal, acontece, como veremos no capítulo seguinte, no qual analisaremos o texto. 271 É preciso fazer a ressalva de que o advérbio “mais” não está sendo usado no sentido de dar ênfase a algo saturado. Não. Apenas para sublinhar que existem outros, muitos, mais do que deveria haver, testemunhos sobre desaparecidos, por causa da natureza do horror que compreendem. O que diferencia o de Kucinski, entretanto, é a qualidade literária do texto. E é nesse sentido que estou fazendo referência a esse excesso. 272 Peguei emprestada a expressão usada por Lukács ao se referir à vida do “indivíduo problemático”.
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trágica do personagem e da história, a obra de Kucinski é um romance
contemporâneo e, como sabemos, a modernidade é catastrófica e não trágica273. E,
como bem definiu Elie Wiesel, “se os gregos inventaram a tragédia, os romanos, a
epístola, e a Renascença, o soneto, nossa geração inventou uma nova literatura, a
do testemunho”274.
Em K., do processo narrativo depreendemos o testemunho que se imiscui no
enredo do pai que procura a filha. A paridade estilística entre os inícios dos dois
romances – O processo e K. – reforça a impressão de influência do autor tcheco na
literatura de Kucinski. Fato corroborado pelo autor em entrevista ao blog do Instituto
Moreira Salles: “Mas, como eu explico num dos capítulos de K. [“Sobreviventes, uma
reflexão”], a relação mais profunda e menos aparente é com o sentimento de culpa
que afeta os familiares em alguma medida, senão por outro motivo, pelo simples
fato de terem sobrevivido”275. E ao jornal Deutsche Welle Brasil, em que revela que
“o livro resulta do fato que li muito Franz Kafka”276.
Não há como negar que a primeira relação identitária que nos ocorre quando
pegamos K., de Kucinski, é justamente com o personagem Joseph K. de O processo.
Como não associar o K. de Kucinski ao Joseph K. de Kafka?
Essa associação um tanto quanto direta, fácil, e até preguiçosa, contudo,
mesmo parecendo óbvia, é pertinente, apesar de não tão exata assim. Voltaremos a
isso mais à frente. No momento, ater-nos-emos às correlações aparentes. O título do
romance, que é a inicial do sobrenome do autor e do personagem-pai, referencia e
remete ao personagem e ao autor de O processo, Joseph e Kafka, respectivamente.
A imediata referência (ou deferência) àquele que possivelmente seja um dos
personagens mais famosos da literatura, não deve ser lida apenas como uma
273 Apropriei-me da expressão usada por Alexandre Nodari na resenha do livro K., no blog da editora Cosac Naify. 274 WIESEL, Elie. “The Holocaust as Literary Inspiration”. In: Dimensions of the Holocaust. Evanston: Northwestern University Press, 1990, p. 9. 275 Declaração feita ao blog do Instituto Moreira Salles. Disponível em: www.blogdoims.com.br/ims/fragmentos-de-uma-historia-sem-fim-quatro-perguntas-a-bernardo-kucinski. Acesso em 13 de setembro de 2014. 276 Entrevista concedida à jornalista Tainã Mansani. Disponível em: http://www.dw.de/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/a-17131513. Acesso em 19 de setembro de 2014.
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homenagem ao personagem e ao autor tcheco, como também um símbolo que
encerra em si a história da diáspora judaica e dos imigrantes judeus que vieram para
o Brasil no início do século XIX até a primeira metade do século XX, formando a
segunda maior comunidade judaica da América Latina, depois da Argentina 277 .
Lembrando que K., personagem-pai, e K., pai do autor, são ambos imigrantes judeus
que vieram para o Brasil fugidos da Polônia.
O uso da letra inicial do sobrenome sugere, além do mais, a intenção de
Kucinski de atribuir um caráter universal ao personagem, de modo semelhante ao
que foi feito por Kafka, que concedeu a Joseph, de acordo com Michael Löwy, uma
simples inicial no lugar do sobrenome, com o intuito de reforçar a universalidade de
sua identidade, porque “ele é o representante por excelência das vítimas da máquina
legal do Estado”278. K., de Kucinski, por essa medida, figura o arquétipo de todos os
pais que procuram os filhos ausentes, que foram desaparecidos, vítimas da “natureza
desumana e mortífera dos aparelhos institucionais jurídicos e estatais”279. Modelo e
ícone280 da luta dos familiares, K. é a presença que evoca a ausência de sua filha
símbolo e filha de todos, e que, por isso, na obra, não é nomeada, apenas referida.
Kucinski universaliza o exemplo singular, faz aquilo que Derrida classificou como a
condição do testemunho: “(...) como qualquer exemplaridade, singular e universal,
singular e universalizável. O singular deve ser universalizável; esta é a condição do
testemunho”281.
Ser meramente referida como a filha de K. demarca, outrossim, o processo de
apagamento pelo qual passam aqueles que “foram desaparecidos” pela lógica
277 Para mais detalhes sobre o movimento migratório judaico, ver a cronologia e a história da imigração judaica no Brasil no portal do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro. Disponível em: http://www.ahjb.org.br/ahjb_pagina.php?mpg=03.01.00.00. Acesso em 25 de abril de 2014. 278 LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 117. 279 Idem, p. 111. A descrição feita por Michael Löwy para o romance de Kafka encaixa-se com perfeição ao de Kucinski. 280 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 91. “[Ele] dá-se conta, estupefato, da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, um ícone do pai de uma desaparecida política”. 281 Derrida: “(…) like any exemplarity, singular and universal, singular and universalizable. The singular must be universalizable; this is the testimonial condition”. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 41.
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desumanizadora do Estado. Ela deixou de ser a professora de química, a esposa, a
nora, a amiga, a militante... O seu modo de estar no mundo foi empalidecendo junto
com a sua lembrança, que encontra refúgio e resiste tão-somente na memória dos
familiares, lugar em que sempre será a tia, a irmã e a filha – a filha de K.
Na sequência de afinidades com a literatura de Kafka, destacamos uma
reflexão feita pelo narrador-autor de K. sobre Joseph K. Segundo ele, o personagem
examina o seu passado exaustivamente em busca do erro escondido, da razão por
estar sendo processado. Um procedimento semelhante ao do sobrevivente:
Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam282.
Partindo da pista oferecida por Kucinski, reconhecemos no relato da busca de
K. por sua filha a mesma ansiedade, solidão e frustração que Joseph K. sente na sua
busca a fim de descobrir o crime que cometeu e como livrar-se da acusação legal e
do escrutínio do Estado em um país onde não há vigilância aos princípios básicos
democráticos do direito.
Ele não podia saber que quarenta anos depois esse muro [de silêncio] ainda estaria de pé, intocado. Mas já sabia que estava tudo muito amarrado, para ninguém saber de nada283.
A tensão da trama, que gira em torno da interação de Joseph K. com uma
burocracia inacessível, porém onipresente, pode ser claramente relacionada à tensão
de K. diante da resistência do Estado autoritário, protegido por detrás da
intransponível cortina da burocracia, em fornecer respostas sobre o desaparecimento
de sua filha, e sua eterna vigilância (até hoje) para afastá-lo da verdade, como
demonstrado no relato feito pelo autor no post scriptum do livro sobre um
telefonema recebido por seu filho, em dezembro de 2010, de uma mulher dizendo
ter encontrado a “tia desaparecida” no Canadá:
282 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 162. 283 Idem, p. 142.
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Lembrei-me dos primeiros meses após a desaparição; sempre que chegávamos a um ponto sensível do sistema, surgiam as pistas falsas do seu paradeiro para nos cansar e desmoralizar284.
A história de K., em todo o seu absurdo e sua brutal violência, pode ser
entendida como kafkiana na acepção de ilógica e absurda 285 , graças ao
procedimento opaco286 do Estado, que instituiu a natureza desumana e mortífera dos
aparelhos jurídicos e estatais, e nos mostrou até onde pode ir o “arbítrio de um
poder sem escrúpulos”287.
Fazendo uma leitura paralela dos romances288, percebemos que os mesmos
questionamentos poderiam ser feitos: sobre O processo, questionamos o motivo de a
situação de Joseph K. ser tão inabordável. Por que ele foi preso? Que tribunal o
julga? Que crime é esse (tão grave) que não pode ser mencionado? Por que o ônus
da prova recai sobre ele e não sobre o Estado? Em outras palavras, por que ele tem
que provar inocência de algo de que está sendo acusado? Pior ainda, por que ele
tem que se defender de um crime cuja natureza desconhece e que, por isso mesmo,
não sabe se cometeu ou não? Como resistir a essa engrenagem mortífera da justiça
de Estado289?
No caso de K., que crime terrível é esse que cometeram sua filha e o marido
dela que não pode ser registrado e julgado por um tribunal de direito? Que crime
terrível é esse que merece ser combatido com confinamento em prisão clandestina,
punido com tortura, assassinato e subsequente desaparecimento dos corpos? Quem
284 Ibidem, p. 177. 285 Em entrevista à jornalista Tainã Mansani, do Deutsche Welle-Brasil, Kucinski admite que foi influenciado pelo autor tcheco e que “a primeira impressão é a situação de absurdo, de um sistema totalitário, um labirinto que o pai percorre, e não consegue nunca chegar à verdade. Uma situação que se consolidou como Kafkiana”. Disponível em: http://www.dw.de/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/a-17131513. Acesso em 19 de setembro de 2014. 286 Expressão cunhada por Michael Löwy. 287 LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 117. Essa frase está na nota de rodapé onde, segundo Rosemarie Ferenczi, Kafka aprendeu a partir do caso Hilsner até onde podia ir o “arbítrio de um poder sem escrúpulos”. 288 É preciso ressaltar que a não há nessa pesquisa a intenção de fazer uma análise comparada entre os dois romances, portanto, a leitura que fizemos foi superficial e focada em achar paralelos que interessassem ao nosso tema. 289 Repito em parte a frase de Michael Löwy.
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os prendeu? Por que não houve um tribunal? Por que o ônus da prova (até hoje)
recai sobre quem foi preso, acusado, sumido, e suas famílias? Pior, o que
efetivamente K. pode/está a/deve perseguir: a prova da inocência de sua filha e de
seu marido, ou a prova da existência dos dois?290 Como resistir a essa engrenagem
mortífera da justiça de Estado?
Nesse momento, identificamos uma outra ausência em K.: a da lei, que está
ausente também em O processo. Segundo Michael Löwy, ela é desconhecida e talvez
inexistente, em seu lugar, compensando sua ausência, a presença de uma
organização legal que dispõe do poder de vida ou morte sobre os indivíduos. Nas
palavras indignadas de Joseph K., a denúncia:
Uma organização que mobiliza não só guardas corrompíveis, inspetores e juízes de instrução pueris, no melhor dos casos simplórios, mas que, além disso, de qualquer modo, sustenta uma magistratura de grau elevado e superior; com o seu séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até carrascos, não recuo diante dessa palavra. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos...291
No mundo de Joseph K. os agentes do Estado não agem unicamente movidos
por sadismo ou maldade, mas sobretudo em prol do sistema que, em si, é
configurado para relembrar ao cidadão de que os seus direitos são, na verdade,
concessões benévolas, por isso, ele, indivíduo, vez por outra, tem seus direitos
negados, para nunca esquecer da dimensão autoritária e opressora do Estado. Nesse
mundo, o Estado está organizado de modo a subtrair direitos que sequer
disputaríamos por julgarmos naturais, como o de ter ciência do que se é acusado.
No de K., o Estado – que poderia ser descrito como a organização retratada
por Kafka – normatizado, autoritário e opressor, camuflado sob o verniz das eleições
indiretas, do bipartidarismo, do milagre econômico, do carnaval e do futebol,
manifesta-se através de seus agentes – diretos e indiretos – e colaboradores, que,
290 Ou ainda, a expiação de sua culpa, procurando, no passado, aquele momento em que poderia ter evitado a tragédia e, por algum motivo, falhou, se pensarmos na sua busca pelo olhar subjetivo. 291 KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 61.
119
muitas vezes, regozijam-se no sadismo e na maldade de seus atos, como vários que
o acossaram – como vemos no fragmento de “Os extorsionários”:
É um sargento. Apresentara-se naquela noite como general e não passa de um sargento. Ainda lembrava como o coagiram no banco detrás do carro, o falso general pressionando-o de um lado, e o magrela com cara de malfeitor, do outro. (...) E se eles de fato tivessem localizado a filha (...) Uma nesga de esperança. Foi traído pela esperança. (...) Não, o pior aconteceu depois, quando surgiu a nova oportunidade, quando aquele rabino lhe indicou o sujeito com nome alemão, que morava no Rio e já havia salvado uma moça. Uma moça judia. (...) Único caso comprovado. (...) O sujeito, de seus quarenta anos, elegante, trajando um terno de linho, nem o convida a entrar. Na calçada mesmo da Avenida Copacabana disse que o delegado que chefiava tudo lhe devia um favor muito grande. Que uma vez transportou um presunto do delegado no porta-mala do seu carro. Um cadáver – ele repetiu quando percebeu que K. não havia entendido. Livrara o delegado de uma enrascada. Tinha condições de tirar a filha se ainda estivesse viva. Mas ia custar caro. Muito caro. O senhor tem uma propriedade? Ele perguntou. Então venda. Vai custar o preço de uma casa292. (grifo nosso)
Na configuração autoritária do Estado, ambos os personagens são vítimas da
corrupção que, nesse ambiente, compõe pragmático tecido de benesses políticas,
sociais e econômicas.
O Estado não tem rosto nem sentimentos, é opaco e perverso. Sua única fresta é a corrupção. Mas, às vezes, até esta se fecha por razões superiores. E, então, o Estado se torna maligno em dobro, pela crueldade e por ser inatingível. Isto ele [K.] sabia muito bem293.
Na tentativa desesperada de encontrar a fresta pela qual pudesse penetrar a
opacidade do Estado e conseguir lançar uma nesga de luz para iluminar a situação
em que sua filha se encontra, Kucinski se submete “como um cão” aos
extorsionários, que são nada mais nada menos do que peças294 do “sistema que
engolia pessoas sem deixar traços”295. Ambos – Joseph K. e K. – travam uma luta
solitária contra o sistema. Sistema que nunca diz a verdade sobre sua filha, assim 292 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., pp. 144-145. 293 Idem, p. 22. 294 No sentido empregado aos escravos. 295 Ibidem, p. 23.
120
como nunca disse a verdade sobre o processo de Joseph K.
Antes de continuarmos no nosso rastreio dos indícios kafkianos no texto,
precisamos fazer uma pequena interrupção para reatar com a argumentação do
início deste capítulo sobre o tom intimista do narrador, questão que já mencionamos
anteriormente, mas que não podemos deixar de apontar no excerto acima. O
narrador é íntimo do personagem a ponto de ser capaz de repetir ipsis litteris o que
ele pensava (“por que será que o magrela não está no processo?” ou “como eu pude
ser tão ingênuo?”). Esse recurso realça a ambição do autor de aproximar e seduzir o
leitor acostumado à realidade contemporânea de interesse desmedido pelo privado,
seja na ficção ou na realidade. Esse leitor fica, então, mais suscetível à pretensão de
verdade do relato quando narrado em tom intimista – que, em K., não envolve tão-
somente narrador-personagem mas, de modo igual, narrador-leitor. Na colocação –
sorrateira, portanto habilidosa – do pronome demonstrativo aquele para se referir ao
rabino (“aquele rabino”, exemplo dessa vontade e esforço de aproximação, já que o
demonstrativo sugere um conhecimento compartilhado sobre algo ou alguém,
porque já mencionado antes no próprio texto ou porque pertence a uma realidade
extratextual comum ao narrador e ao leitor), o autor afirma a intimidade do leitor
com o narrador, com o texto, com os acontecimentos e com os personagens, o que,
para nós, é compreendido na esteira do parecer de Jeanne Marie Gagnebin sobre o
leitor ser transformado em nova testemunha – marca de que o texto concilia o
testemunho.
Prosseguindo em nosso rastreio, entrevemos em K., de Kucinski, o estrangeiro
K. – o agrimensor de O Castelo, de Kafka.
Citamos anteriormente a percepção de que a relação estabelecida entre o K.
de Kucinski e o de Kafka era fácil e até preguiçosa, em virtude da correspondência
imediata entre os dois personagens, ainda que o romance de Kafka não seja (ou
tenha sido) lido pelo grande público. Porém, sua atmosfera absurda e ilógica virou
adjetivo: kafkiana, e, por isso, tornou a obra um fenômeno. A saber: ser familiar sem
ter sido lida. O processo é um claro exemplo de livros dos quais se pode afirmar que
121
a grande maioria não leu, mas gosta296 e conhece as linhas gerais. Detalhe que nos
levou a conceituar a identificação da homologia entre os dois romances de
preguiçosa. Claro que essa observação, feita justamente para apontar a obviedade
da correlação por causa da estatura da obra, desmorona quando analisamos as
relações entre os dois romances com rigor, o que esboçamos acima.
Então, a partir da análise entre K. e O processo, verifica-se que não existe um
verdadeiro parentesco entre os personagens das duas obras297, salvo as iniciais do
sobrenome. Existe, contudo, com outro personagem de Kafka, o outro K., o de O
Castelo. Os dois são estrangeiros que desafiam a autoridade impessoal do aparelho
do Estado e não se curvam diante dessa máquina de deixar viver e fazer morrer.
Em O Castelo, a trama se desenrola justamente a partir da chegada do
estrangeiro K. à aldeia dominada pelo Castelo – símbolo de um poder anônimo,
hierarquizado, opaco e longínquo 298 , signo da lógica infernal da dominação e
submissão – e sua recusa à servidão voluntária. O poder de “um” contra “todos”,
segundo Etienne de La Boétie, no seu discurso acusatório da servidão voluntária, ou
do “O contra Um”, realiza-se graças à servidão e ao costume a ela. 296 Parafraseio a conhecida frase de Oswald de Andrade: “não li e não gostei”, sobre o romance de José Lins do Rego. 297 É importante apontarmos o fato de que, diferentemente de Joseph K., o protagonista de Kucinski, K., projeta a sua trajetória sobre a da própria filha. Ele é a vítima que restou, a testemunha que escapou, e seu discurso está atrelado ao que aconteceu com outra pessoa, não apenas consigo mesmo, como na história de Kafka. Aliás, o que aconteceu com K. é, em estreita medida, o que aconteceu com sua filha, a sua perda. No romance de Kafka, o discurso do processado injustamente levanta-se apenas em autodefesa, restando-lhe a potência lógica do questionamento, a sua derrota pelo absurdo e o sentimento de fracasso e falência do indivíduo contra tudo e contra todos. No romance de Kucinski, o discurso do pai estende-se sobre a injustiça contra a vida de outrem, que (não por acaso) é um desdobramento da sua própria vida, a sua filha, um prolongamento seu. A vida se expande e o discurso se expande para além de si mesmos, ambos se desdobram, transcendem as bordas individuais do sujeito, sem que, com isso, superem a solidão como condição. A história brasileira desdobra-se tanto no que diz respeito à vida, que, em última análise, é um bem social, político, familiar e afetivo, e portanto a vida alheia diz respeito e é responsabilidade de cada um (teor ontológico lançado a circunstâncias sociológicas), como também a história desdobra-se no que diz respeito ao discurso, que não é estritamente pessoal ou político, não é nem apenas jornalístico, nem somente ficcional, não é só testemunhal, de quem esteve lá, tampouco puramente espectador. Na história de Kucinski, o discurso de K. envolve a filha ausente, embala-a, dá corpo a ela e, até certa medida, a substitui como objeto de sua saudade e de sua culpa. O protagonista está só agora, mas carrega (duplamente, como bagagem e como atualização) a história de outrem, imiscuída na dele. Na de Kafka, o protagonista está só e carrega apenas a sua própria carga, que já é bastante trágica em sua solidão. Joseph não viu nada, não fez nada, portanto não tem do que se defender. E essa lacuna é que o condena. O K. de Kucinski também não viu nada, mas luta e reivindica sobre a ausência de alguém real, uma memória de vida que o preenche. 298 Adjetivos usados por Michael Löwy para definir o poder em outra novela de Kafka: O veredito.
122
Mas o costume, que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir - e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar veneno - para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão299.
Numa situação de opressão que impõe a servidão, a natureza humana – cujo
estado natural seria o da liberdade – exerce menos poder que o de costume, sendo
esta, portanto, a “primeira razão da servidão voluntária”300. Ou, após o decurso da
coerção e do consequente período de domesticação, pelo qual a natureza é
reprimida, limitada e vencida pelo novo hábito adquirido coercitivamente, o resultado
é abdicar da liberdade na subserviência ao Um. Uma vez domesticados e
acostumados, todos assumem com orgulho a condição de súditos, aceitam como
obrigação moral a aceitação do mal, e com o passar do tempo, eles mesmos
“fundam a posse dos que os tiranizam”301.
Kafka representa o Um todo-poderoso na figura do Castelo, cujo poder
alimentado pelo servilismo espontâneo dos aldeões é motivo de recriminação de K.:
Vocês têm aqui um respeito inato pelas autoridades; por todos os lados, das maneiras mais diversas, continua-se a insuflá-lo durante toda sua vida, e vocês mesmos contribuem quanto podem302.
Kucinski encarna o Um no Estado ditatorial implantado pelos militares, no qual
o poder é fundamentado na cooperação e na indiferença de uma classe média que
introjeta a tirania e assume como dever ampliar o alcance dos tentáculos do poder.
Em K., a classe média é censurada de través pelo narrador íntimo que partilha com o
personagem principal a visão crítica sobre o servilismo em torno do qual se estrutura
a capilarização do poder:
Lá fora segue a vida inalterada: senhoras vão às compras, operários trabalham, crianças brincam, mendigos suplicam, namorados namoram303.
299 BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 4. 300 Idem, p. 5. 301 Ibidem. 302 KAFKA, Franz. O Castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 303 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 29.
123
Mais um breve desvio faz-se necessário para apontarmos o diálogo entre a
passagem acima e o romance de Salinas Fortes, Retrato calado:
Lá fora, o melhor dos mundos, como se nada tivesse acontecido. Os generais prosseguiam, meticulosos, na patriótica azáfama; o povo brasileiro deixava-se salvar ao som estridente do “eu te amo meu Brasil” e se preparava para o grande espetáculo, enquanto seu pacífico esquadrão, sob o comando do Pelé e Tostão, apresentava-se para as próximas batalhas, que as TVs transmitiriam do México: alicerçando, cimentando, sedimentando os milagrosos benefícios que os magos do poder pretendiam estar produzindo. (...) Lá fora, a vida normal.304 (grifo nosso)
E Em câmera Lenta, de Renato Tapajós: “Olhar para as pessoas que passam
ao lado na rua: todas andam normalmente, não existe por aqui uma guerra? Não,
não existe”305.
Nos três romances, fica evidente a cumplicidade apontada pelo agrimensor K.
entre dominados e dominadores, sobre a qual se alimenta o poder e se marginaliza a
dissidência. Salinas recorre à ironia para apontar a conivência e a submissão,
sugerindo que o povo “deixou-se salvar”, e à metáfora, para criticar o ufanismo,
referindo-se a ele como um som áspero e penetrante, algo que entranha fundo e
incomoda. As figuras de linguagem do filósofo expõem o ridículo do argumento (qual
seja: o “perigo vermelho”) para a implantação e a manutenção do regime. Esse
também é o caminho seguido por Tapajós, que questiona a tão propagada guerra
em que o país estaria imerso, revelando a incoerência do discurso oficial ao
contrapô-lo à “normalidade” da vida que segue. A antítese reforça o absurdo do
argumento, enfatizado pela negação dupla da ideia de guerra para sublinhar a
comum e falsa noção de combate entre duas forças proporcionais.
Num tom diferente, sem ironia, que é tônica em Kafka, mas não em Kucinski,
a essencialidade da conivência popular para o estabelecimento do poder é
evidenciada, porém, como já mencionado, de través. Kucinski nos aponta o mundo
por caminhos oblíquos, obrigando-nos a enxergar através. Através da clareza da
304 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 33. 305 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 85.
124
narrativa, através dos indícios sinuosos, através da realidade, através da ficção. E é
atravessando o que é dado a ver, o que está presente, que enxergamos falsos-
milagres, explorações, sofrimentos e violências.
Nos três excertos, as notações de lugar: “lá fora”, nos dois primeiros, e “na
rua”, no último, registram muito além de um estar dentro versus um estar fora
espacial. Acionam mais propriamente a ideia de dicotomia daqueles que estavam
dentro da luta e fora dela; aclimatados ao autoritarismo e à margem dele;
coniventes com o sistema e contra ele.
Retomando. A servidão voluntária, esteio do autoritarismo representado pelo
Castelo, recusada e enfrentada pelo agrimensor, insuflada e animada pela ditadura
civil-militar, é combatida também por K. No enfrentamento, os dois personagens se
assemelham. Estrangeiros que desafiam o poder e incomodam. Que incorporam a
figura universal do imigrante articulada por Michael Löwy: “o estrangeiro, o imigrado,
aquele que não pertence a nada, que é de lugar nenhum, o Aussenseiter, o outsider,
à margem das instituições e das estruturas sociais estabelecidas”306 . Que estão
dentro e fora da relação dominação-subordinação e que, talvez por isso, sintam-se
destemidos para exigir seus direitos. A luta do agrimensor, apesar de não ter
intenção nem substrato de ação para a coletividade, é uma reclamação e exigência
universal do imigrante – e também do nosso personagem: ter seus direitos
assegurados. A principal reivindicação de K. às autoridades do Castelo é a de ter a
função para a qual fora convocado, a de agrimensor, reconhecida. “Ele não é um
contestador” 307 . Marca de que os traços dos personagens se afastam. K., de
Kucinski, foi um militante de esquerda, acostumado a fazer oposição ao governo.
Durante a sua saga em busca do paradeiro de sua filha, recuperou hábitos que
pensava esquecidos, mas que estavam apenas adormecidos, como o de não dar o
endereço de emergência da filha para o delegado quando foi dar queixa na
Delegacia de Desaparecidos, ou o de “contabilizar a duração da ausência da filha,
306 LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 176. 307 Idem, p. 177.
125
outro preceito dos tempos da juventude”308. K. é um contestador. E, como tal, não
aceita a fatalidade dos fatos nem se resigna como Joseph K.309 Ao contrário, ele
resiste, como o agrimensor; no entanto, repito, sua insubmissão não tem um caráter
unicamente individual, tal qual a do personagem de Kafka, mas coletivo. K. torna-se,
por isso, exemplo e ícone da recusa, da insubordinação, da luta, enfim, da exigência
da observância da dignidade humana.
O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. (...) esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapeando, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade. Descobre a muralha sem descobrir a filha.310
Não podemos perder de vista que a inacessibilidade ao Castelo, ao tribunal
(ao processo) e ao organismo estatal que responda pelo paradeiro da filha de K.
representa a autoridade impessoal hierárquica do aparelho do Estado – eixo central
nos três romances. Também a muralha burocrática e jurídica contra a qual os três
personagens travam batalhas desiguais e perdidas na origem apresenta a questão da
dominação que, certamente, está “no centro da reflexão da obra de Kafka”311 e é
inexorável na de Kucinski.
O sentimento de claustrofobia, de falta de ar, de beco-sem-saída, próprio de
uma trama kafkiana, por certo permeia os romances do autor tcheco e igualmente o
308 KUCINSKI, Bernardo. K. São Paulo: Expressão Popular ed., 2a.ed, 2012, p. 24. 309 Em O processo, a servidão voluntária aparece como o processo de domesticação do sujeito até a servidão voluntária, quer dizer, a engolir o veneno e não achar amarga a peçonha da servidão. Joseph K. de início não leva a sério sua prisão, diverte-se, resiste, não aceita conselhos e os despreza, assim como despreza o tribunal e as “naturezas submissas e servis, descritas como caninas”. Em certa medida, esse comportamento o aproxima de K. de Kucinski, que, de início, assim como Joseph K., sente-se intocável, empunha cartazes, marcha com destemor, desdenha da polícia. De acordo com Löwy, o cão em Kafka é uma figura alegórica de servidão voluntária, “do comportamento daqueles que se deitam aos pés dos seus superiores hierárquicos e obedecem cegamente a seus senhores”. Por isso, K. abomina tanto o advogado Huld, que, para ele, “se humilha de maneira completamente canina diante do tribunal”, e o comerciante Block, que, desesperado por estar na mesma situação infeliz, comporta-se como um cão, segundo K: “Não era mais o cliente, era o cão do advogado”. No final, ao se resignar e aceitar sua sentença de morte, K. declara estar morrendo “como um cão”: humilhado, submisso, servil. Cf. LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, pp. 123-124. 310 Idem, p. 89. 311 Ibidem, p. 94.
126
do brasileiro. Kucinski começa o romance estrangulando a narrativa e deixando o
personagem sem ar, como num acesso de síndrome do pânico, atingindo na mesma
medida o leitor. Vejamos um exemplo desse processo ainda no primeiro fragmento
do livro:
Pronto, estava instalada a tragédia. O que fazer? Os dois filhos, longe, no exterior. A segunda esposa, uma inútil. As amigas da universidade em pânico. O velho se sentia esmagado. O corpo fraco, vazio, como se fosse desabar. A mente em estupor. De repente, tudo perdia sentido. (...) Sentiu-se muito só.312
Mal-estar que o acomete e a quem percorre os labirintos absurdos e
aterrorizantes do poder em busca de uma ilusão: reencontrar a filha desaparecida ou
penetrar no Castelo, que, em alemão, quer dizer também cadeado (schloss). Ou
quem tenta ser recebido por algum representante do sistema, como o oficial Klamm,
aquele cujo nome deriva de klam, que, em tcheco, significa engano. Um jogo
semântico que, nas duas línguas, denuncia e anuncia o engano/equívoco do esforço,
da luta, e a impenetrabilidade do sistema. Em K., esse poder é descrito pela bela
imagem de uma muralha de silêncio: invisível e intransponível.
O servilismo desencadeado pela imponência da edificação, do Castelo, é
explorado por Maurice Blanchot no conto já citado, “O instante da minha morte”. A
residência do jovem, um castelo, é poupada e não queimada como tudo nas
fazendas ao redor. E por que não foi queimado o castelo, mesmo depois de o
tenente nazista retornar e descobrir que o jovem havia escapado? Por quê? “Porque
era the Château”313. Figura que exala e exerce autoridade. Que impede que os
soldados arrombem a porta, como de costume, e os oprime a ponto de os obrigar a
bater “timidamente”314. O Castelo “imóvel e majestoso” ilustra a memória histórica
da hierarquia do poder e relembra aos “súditos” da pouca e frágil liberdade, e da
servidão que lhes espera em troca.
312 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 64. 313 Maurice Blanchot: “Because it was the Château”. 314 Maurice Blanchot: “In a large house (the Château, it was called), someone knocked at the door rather timidly”. Cf. In: DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 3.
127
Uma sutil afinidade entre os dois romances pode ser entrevista nas histórias
de Amália e na de A. (a filha de K.).
A primeira relação observamos entre a luta dos dois pais para salvar as filhas
esmagadas pelo peso desumano do poder que não admite enfrentamento e liquida
quem o desafia. O crime de Amália foi recusar-se à servidão voluntária e a obedecer
como “um cão” – síntese que poderia descrever o crime de A., filha de K. Amália, ao
receber uma carta obscena de Sortini, funcionário do Castelo, intimando-a a
encontrá-lo na Hospedaria dos Senhores, sente-se ofendida e não vacila em rasgá-la
e jogar seus pedacinhos em cima do mensageiro. A reação dos aldeões, servis
voluntários, foi a de banir a família do convívio da aldeia espontaneamente, sem
precisarem ser incentivados pelo Castelo. O pai de Amália, desesperado, implora ao
Castelo que diga qual a natureza do crime da filha, para que ela possa pedir perdão,
visto que, para iniciar o apelo, precisa-se antes ter sido acusado. Ele não consegue
defender sua família, restituí-la ao convívio da sociedade, porque “não apenas o
autor do veredito não é encontrável, mas o próprio veredito não existe!”315. Apesar
dos inúmeros apelos, K. não consegue descobrir o que aconteceu com sua filha. O
Estado recusa-se a reconhecer que ela fora sequer presa. Nas duas histórias, o pai
desesperado embarca na lógica invertida “do castigado que suplica que o
reconheçam culpado!”316. De uma maneira triste, os dois pais, para salvar as filhas
da desgraça imposta a elas, colocam-se servilmente à disposição do poder. Eles não
mais procuram pela culpa, eles suplicam pelo reconhecimento da culpa. Qualquer
uma, desde que Amália tenha a possibilidade do perdão e A. tenha sua existência
salvaguardada.
Uma segunda relação, tênue, mas que, todavia, nos chamou muita atenção é
a que se estabelece entre as personagens Amália e a filha de K. As duas desafiam o
poder apesar da condição submissa da mulher, no contexto social em que vivem, na
sociedade e na política. A única pessoa, além do agrimensor, a se insubordinar
contra o Castelo foi Amália – uma mulher. Assim como a filha de K. foi uma das
poucas mulheres que se juntou aos grupos clandestinos de esquerda para enfrentar
315 KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ed., 1986, p. 94. 316 Idem.
128
o regime ditatorial317.
Reforçando esse encontro de semelhanças, gostaria de apontar que o leitor
que negar o “realismo”318 de Kafka e não entender que existe um castelo no qual a
entrada é impossível; que existe um processo contra o funcionário público Joseph K.,
e que é possível tornar-se um inseto após uma noite de sonhos perturbadores, não
entenderá o autor. O mesmo pode ser dito sobre o universo de Kucinski em K.
Surpreende-se com o teor testemunhal do livro quem não entende que os
personagens são produtos de um contexto histórico e insista em uma leitura
estritamente literária focada apenas no texto. O autor mesmo sinaliza a exterioridade
(ou o “fora” blanchotiano319) do texto ao nos advertir de que quase tudo aconteceu,
mas que é ficção. A advertência contida na afirmação ambígua do “quase tudo
aconteceu” não é uma tentativa de trapaça. Antes, a transferência para o leitor da
responsabilidade de acionar em que medida ele quer se envolver nesse jogo da
verdade e aceitar (ou não) a autenticidade dos fatos.
Não como obra de arte, mas sim - o que não é de todo a mesma coisa - na forma de uma obra de arte, talvez, fingindo ser ficção e, portanto, como a ficção de uma ficção, como se fosse uma questão de se responsabilizar por não responder mais por isso e de manifestar a verdade, deixando para o outro a responsabilidade de recebê-la através da mentira ou ficção320.
O comentário de Jacques Derrida sobre o fragmento de Blanchot no livro
Writing of the disaster, sobre a escrita autobiográfica, corrobora nosso entendimento 317 Segundo Marcelo Ridenti, apesar de o total percentual de mulheres nos grupos armados (18,3%) ser ínfimo se comparado com o número de mulheres na população brasileira em 1970 – que chegava a mais da metade da população, 50,3% - a participação feminina era bem próxima do percentual de mulheres “na composição da população economicamente ativa no Brasil, em 1970, em torno de 21% (IBGE,1970).” In: RIDENTI, Marcelo. São Paulo: Revista Tempo Social - USP, Volume 1(1), p. 2. 318 Sim, porque concordando com Milan Kundera: “seus romances são situados em um mundo perfeitamente real!” Cf. KUNDERA, Milan. A arte do Romance. 319 O “fora”, noção criada por Blanchot, e a que nos interessa, foi também utilizada por Gilles Delleuze e Michel Foucault. A ideia de exterioridade dos textos foi desenvolvida para caracterizar a ética e a estética da literatura moderna. A exterioridade invocada pelos textos seria um conjunto de forças e de possibilidades, algumas extra-linguísticas – como silêncios, vazios, figurações e ritmos – que aparecem também como marcas do passado e idealizam-se a partir da temporalidade fragmentária do desejo e da invenção. 320 Derrida: “Not as work of art, but rather - which is not altogether the same thing - in the manner of a work of art, perhaps by pretending to be fiction and thus as the fiction of a fiction, as if it were a matter of taking responsability by no longer answering for it and of manifesting the truth by leaving one the responsability of receiving it through lie or fiction”. Cf. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 44.
129
da relação-intenção entre o autor do testemunho-ficcional e o leitor.
K. é também Gregor Samsa – aquele que, consumido e massacrado, não
consegue mais (com)viver na própria pele e se metamorfoseia. K. abandona sua
essência, sua língua, emigra de si mesmo para purgar a culpa que sente pelo
desaparecimento da filha. Assim como Kafka, K. parte em exílio de si mesmo321.
Num salto arriscado, sugiro uma relação entre os dois romances a partir da
noção do sacrifício. Kafka confessou ao amigo Max Brod que o personagem Gregor
Samsa representa o sacrificado322. Sem mergulharmos na análise d’A metamorfose
para entender os sacrifícios de Gregor com e por sua família, contudo retendo desse
arranjo a figura do sacrificado, ficamos com essa alegoria e a contrapomos à filha de
K. O ato de “generosidade de quem oferece a vida pelos outros”323 é, por certo, um
ato sacrifical. Apesar da natureza generosa do gesto, para a sociedade que os alijou
(uso o plural, pois evoco a memória dos que perderam a vida em nome de uma
ideologia), o gesto, mesmo sacrifical, não é reconhecido, porque personagem
indesejado, terrorista, monstro não pode ser oferecido em sacrifício, pois é maculado
e não aceito por Deus (ou pelos deuses) – vide a eliminação do seu corpo. De modo
igual, o “verme monstruoso”, a criatura que não tem mais lugar na família, o animal
sujo não é adequado ao sacrifício, por não ser ele parte da ordem das criaturas de
Deus. Os dois personagens representam, na impossibilidade sacrifical, o homo sacer,
aquele que incorpora a vida matável porém não sacrificável. Vulto do estado de
exceção, a vida nua, condição que absolve o Estado de qualquer responsabilidade
e/ou culpa pelo descarte de vidas324. Estado esse que permite a mera vigência da lei,
sem significado, e que deixa subsistir diante de si a vida nua: a vida de Joseph K.,
321 Observação feita pela professora de filosofia e de estética musical da Universidade de Paris IV Sorbonne, Danielle Cohen-Levinas no seminário A filosofia sob risco da literatura, ministrado na UFRJ, de 26 a 28 de novembro de 2013. 322 Idem. 323 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 86. 324 Um dos paradoxos do estado de exceção, diz Giorgio Agamben, “quer que, nele, seja impossível distinguir a transgressão da lei e a sua execução, de modo que o que está de acordo com a norma e o que a viola coincidem, nele, sem resíduos (quem passeia após o toque de recolher não está transgredindo a lei mais que o soldado que, eventualmente, o mate esteja executando)”. Cf. AGAMEBN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 65.
130
aquela que se vive na aldeia ao pé do Castelo325, a de Gregor Samsa e a da filha de
K.
O nome Kafka está presente também no sobrenome de Gregor Samsa.
“Samsa” é semelhante a "Kafka" no jogo de vogais e consoantes: "Cinco letras de
cada palavra, o S na palavra Samsa tem a mesma posição que o K na palavra Kafka.
O ‘A’ está na segunda e na quinta posição em ambas as palavras”326.
À vista disso, Kafka é K. (ambos) e Samsa, já que, usando a primeira letra do
seu sobrenome, ou projetando-se através do jogo dos caracteres, Kafka assina seus
romances e personifica-os. Isso não quer dizer, em absoluto, que os personagens de
Kafka sejam seus alter egos ou retratos. Apenas crias que levam sua insígnia.
No rastro desse raciocínio, podemos afirmar que o título K. 327 deriva do
sobrenome do autor: Kucinski. Sem ser ele. Sequer seu alter ego. Oportuno é
ressaltar que K. é um personagem através do qual Kucinski apresenta a sua história
e de modo algum o personagem é o autor ele próprio ou seu pai. Mas, mesmo
fazendo parte de mundos diferentes, autor e personagem têm uma relação de
compaixão, amor pela literatura e cumplicidade, que alcança ainda o narrador e o
leitor. Então, com essa dinâmica em mente, parece-nos que a eleição da inicial do
próprio sobrenome para nomear a obra foi também uma estratégia do autor para
desmanchar no ar os imaginados gêneros definidores para sua literatura.
A multiplicidade de facetas que o nome, melhor, a letra sugere engrossa o
caldo de dúvidas (Testemunho? Ficção? Verdade? Imaginação?) e estampa a
literatura como possibilidade. A possibilidade do quase: quase-sobrenome, quase-
personagem; quase-ficção, quase-realidade; quase-romance, quase-tragédia; quase-
imaginação, quase-testemunho. Abriga, desse jeito, na multifacetada assinatura, a
325 Idem, p. 62. 326 KAFKA, Franz. The Metamorphosis and Other Stories. New York: Courier Dover Publications, 1996, pp. 3-75. No original: “The name Samsa is similar to "Kafka" in its play of vowels and consonants: Five letters in each word. The S in the word Samsa has the same position as the K in the word Kafka. The A is in the second and fifth positions in both words”. 327 Bernardo Kucinski em entrevista concedida à jornalista Tainã Mansani, do jornal Deutsche Welle-Brasil, afirma que “de fato há uma intencionalidade em usar a palavra K. O livro resulta do fato que li muito Franz Kafka.” Disponível em: http://www.dw.de/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/a-17131513. Acesso em 19 de setembro de 2014.
131
intenção de verdade mais próxima da verdade: a quase-verdade.
Ainda: sendo a letra K. uma abreviação limitada por um ponto que demarca a
ruptura ocasionada pelo choque e escora o fragmento restante do sujeito cindido e
atravessado pela tragédia, simboliza ela a mutilação da subjetividade e a ruptura do
eu. Símbolo do sujeito fragmentado pelo trauma, da testemunha que, cindida, pode
(pode?) contar aquilo que a dividiu e apresentar o que restou dessa divisão. Signo
daquele que sofreu uma experiência não experimentada.
132
4. K., sujeito fragmentado
Última flor do Lácio, inculta e bela És, a um tempo, esplendor e sepultura328
Olavo Bilac
Quando Caetano cantou minha pátria é minha língua inspirado e corrompendo
a frase de Fernando Pessoa, minha pátria é a língua portuguesa, o cantor dividia
também com o poeta português o sentimento de que o pertencimento não está
ligado à nação, à pátria como território, ao solo como pai, mas à língua. A língua-
pátria, assim, intrínseca, indissolúvel e eterna, conserva os vínculos culturais,
históricos e afetivos, e reverte o sentimento de perda de identidade mesmo no exílio,
nos levando a refletir sobre os sentidos de “habitar a linguagem e ser habitado pela
língua” 329 . A pátria linguística, seguindo essa lógica, é colocada no centro da
experiência do desterro, da sensação de não pertencimento, do estar entre-mundos.
A língua, manancial disponível e imprescindível, diferentemente da pátria subtraída,
desloca-se com o sujeito lhe oferecendo abrigo naquilo que lhe é familiar. A língua é
minha pátria. E eu não tenho pátria, tenho mátria. E quero frátria, canta Caetano,
aproximando-se da ideia exposta no Hino Nacional de que os filhos desse solo, do
Brasil, têm uma mãe gentil, que é a pátria amada. Transmuda, assim, a ideia de
pátria para mátria: mátria amada. Por outro lado, critica a hierarquização que está
implícita nessa estrutura familiar vertical e sugere uma sociedade horizontal, uma
frátria, de irmãos, naturalizando, assim, o Outro na relação de intersubjetividade
(eu-tu). Isso é fundamental para a constituição do sujeito como ser de linguagem e
328 BILAC, Olavo. Usei essa epígrafe porque discutiremos (entre outros assuntos) a diáspora e a língua como local de resistência. Portanto, quis fazer uma homenagem à língua portuguesa que uniu a todos nós, filhos e netos de imigrantes, e que, de certa forma, foi a sepultura daqueles que escolheram o Brasil como destino. Como disse Caetano: Flor do Lácio Sambódromo/Lusamérica latim em pó/O que quer /O que pode esta língua? As línguas neolatinas são conhecidas como flor do lácio, região perto de Roma, a última delas é a língua portuguesa e é considerada inculta, como vemos no poema de Bilac, porque deriva do latim vulgar. O interessante da letra de Caetano, que lida em confronto com a poesia de Bilac, é perceber que enquanto para um ela é a sepultura, talvez por ter se servido dos resíduos eruditos do latim, para outro é pura ressurreição: do pó à renovação. Da flor do lácio ao sambódromo. 329 A língua exilada e o silêncio do outro. Disponível em: http://www.sig.org.br/_files/uploads/file/7589A%20lingua%20exilada%20e%20o%20silencio%20do%20outro.pdf. Acesso em 20 de julho de 2014.
133
que se constitui através dela. Nas palavras de Paulo Freire: “com a palavra, o
homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume
conscientemente sua essencial condição humana”330.
K., polonês, militante “escolado em política”331, um dos fundadores332 do Linke
Poalei Tzion333, iidichista, escritor, ensaísta, jornalista, é o jovem imigrante que veio
fugido, deixando a mulher e o filho, “que só se juntariam a ele no Brasil um ano
depois”334. Aos trinta anos, “foi arrastado pelas ruas de Wloclawek335 [sua cidade
natal], acusado de subversão pela polícia polaca” 336 . Foi solto depois que “os
companheiros de partido fizeram uma vaquinha para tirá-lo da prisão”337 e após
prometer que deixaria o país para sempre. Para evitar ser preso novamente,
“emigrou às pressas”338.
K., sujeito-fragmentado, cujos pedaços biográficos, salpicados ao longo do
texto, lançam o leitor numa busca pelos estilhaços através dos fragmentos, para
reconstruir sua memória e sua história. Que começa seguindo o exemplo de outros
tantos judeus que vieram para o Brasil, desde o final do século XIX, nas ruas das
cidades, mascateando. Quase diariamente, com sua charrete de mascate, K.
percorre as ruas do Bom Retiro, visitando as clientes “com seus panos bonitos,
blusas e camisolas, que vendia a prestação”339. Ele não precisou proclamar e gritar
330 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 13. 331 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 19. 332 Através da lembrança da prisão da irmã Guita, conhecemos a filiação partidária de K. Cf. Idem, p. 39. 333 “Literalmente: Partido dos Trabalhadores de Sion de Esquerda, dissidência à esquerda da Polalei Tzion, partido sionista de orientação marxista criado no início do século XX na Europa Oriental, depois que o Bund, partido comunista judeu, rejeitou o sionismo.” Nota de rodapé. In Ibidem, p. 39. 334 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 39. 335 “Pequena cidade do Oeste da Polônia, onde se deu o primeiro massacre organizado da população judaica pelas tropas alemãs na invasão da Polônia”, In. Op. Cit. 336 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 39. 337 Idem, 114. 338 Idem, 39. 339 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 165. Em K. de o Castelo, Kafka descreve a opressão que é para um imigrante trabalhar unicamente para o seu sustento: “ele era chamado para tarefas às quais, assim constrangido, jamais poderia se dedicar; mesmo com a melhor vontade do mundo ele não poderia aceitar esse papel”. LÖWY, Michael. Franz Kafka, sonhador insubmisso. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2005, p. 178.
134
pelas ruas que era Shloime340, porque a maioria dos comerciantes o tratava com
“alguma deferência”341, por causa de seu passado de militância, literário, e presente
de intelectual dedicado ao iídiche. A mame-loshn342, língua materna, que o acolhe e
conforta é, sobretudo, sua mátria, seu espaço político, onde ainda se sente parte do
Linke Poaeli Zion, e pode deixar extravasar sua ideologia. No iídiche e através dele,
K. continua a integrar os círculos ativistas de esquerda, e ainda é o intelectual. No
iídiche, ele se reconhece e não perde sua identidade, como se sua judeidade fosse
reafirmada pela língua e confundida com ela. Talvez a explicação esteja no
significado de iídiche, que, em iídiche, quer dizer: judeu.
A estratégia de exílio na língua, por outro lado, atua como escudo contra o
idioma desconhecido, e contra a vergonha de não compreensão, que o indivíduo,
estranho aos códigos da cultura do novo país, eventualmente, irá enfrentar. A
imersão em uma nova comunidade linguística, na qual a língua materna não é
falada, empobrece a cadeia representativa e associativa do sujeito que não pode
contar com a ajuda de gestos, entonações e melodias na compreensão do discurso.
O exilado fica à margem, entre culturas e mundos, e sua capacidade de transmitir e
apreender a experiência, reduzida. Ele seria um prejudicado, segundo a análise de
Theodor Adorno, pois, isolado em um ambiente que não lhe é compreensível,
sempre estará desorientado, mesmo que conheça o “funcionamento” da sociedade.
Soma-se ao seu isolamento o sepultamento de suas raízes e a descaracterização de
sua língua nativa. O exilado estará fadado à cegueira, caso não insista em manter
uma constante diagnose de si mesmo e dos outros. Desse modo, o exilado precisa
alterar sua maneira de ver o mundo, sua própria ótica, olhar por outras perspectivas,
340 “Eu sou Shloime – refere-se ao Rei Salomão na Bíblia. Existe uma lenda a respeito do Rei, que foi raptado para um país estrangeiro onde ninguém o conhecia, portanto não podia dizer: Eu sou Shloime, o Rei, ninguém ia acreditar”. KUCINSKI, Meir. “A prédica”. In Imigrantes, Mascates & Doutores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 176. 341 Op. cit. 342 Em oposição ao Loshn Koidesh (termo retirado do hebraico-aramaico), a língua sagrada. Cf. SZUCHMAN, Esther. Língua e identidade: o iídiche e o hebraico no contexto histórico da educação judaica no Brasil. São Paulo: Revista Vértices, 2012, no. 13. Nesse artigo, a autora marca a língua iídiche no universo ashkenazita “como língua de identidade cultural e o hebraico como língua nacional, predominantemente após o renascimento nacional judaico e a criação do Estado de Israel”.
135
e, ao mesmo tempo, devorar e reter tudo a fim de aguçar sua consciência crítica – a
única forma de afastar a ameaça de morte por inanição ou pela loucura343.
Na diáspora judaica344 , a língua criada pelos ashkenazitas345 , e principal
“veículo de comunicação dos judeus na Europa, no decorrer do último milênio”346, é
também o elo que os une e os permite “conversar livremente”347, nos países de
destino. E é nessa “língua do povo”, no iídiche, que K. encontra seu local de refúgio
e resistência à experiência do desterro.
Refúgio que inevitavelmente, de acordo com o filósofo alemão, o levaria à
cegueira por não ter aprendido, ou querido ver, ou perceber o mundo a sua volta. E
o levou. O trecho abaixo dialoga com a teoria de Adorno, ao expressar o sentimento
de culpa de K., por ter se dedicado à língua, em vez de ter prestado atenção ao
clima político do país:
E como não perceber o tumulto dos novos tempos, ele, escolado em política? Quem sabe teria sido diferente se, em vez dos amigos escritores de iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam, prestasse mais atenção ao que acontecia no país naquele momento? Quem sabe? Que importa o iídiche? Nada. Uma língua-cadáver, isso sim, que eles pranteavam nessas reuniões semanais, em vez de cuidar dos vivos.348
Afinal o que é e o que pode essa língua-cadáver? Ela é a expressão dos
343 ADORNO, Theodor. “Proteção, ajuda e conselho”. In Minima Moralia. Portugal: Edições 70, pp. 22-23. 344 A maioria dos imigrantes judeus que vieram para Brasil no final do século XIX e início do XX era ashkenazitas fugidos dos progroms e do antissemitismo europeu. Por aqui, escolas foram fundadas para ensinar a cultura, as tradições e a língua dos antepassados. “O Hebraico, língua da Torá e das orações, ‘língua de prestígio’; e o iídiche, considerada uma segunda língua dos judeus, ‘língua do povo’”. Cf. op.cit. 345 Segundo a professor de língua hebraica Esther Szuchman: “Os ashkenazitas são originalmente judeus de ascendência alemã. O nome bíblico Ashkenaz (Gênesis, 10:3; Cr. 1:6; Jer. 51:27) era tido na Idade Média como referente à Alemanha. Como a maioria dos judeus de países cristãos da Europa Ocidental, Central e Oriental da Idade Média aos tempos modernos, eram culturalmente e demograficamente descendentes dos judeus franco-alemães, o termo ashkenazita veio a ser aplicado a todos eles. O complexo cultural ashkenazita envolve o uso de diferentes dialetos da língua iídiche como língua franca judaica, distintos rituais, costumes, liturgia, arquitetura sinagogal, método de estudo e pronúncia do hebraico, os quais diferenciam os ashkenazitas de seus correligionários sefaraditas e das comunidades judaicas orientais, mizrahim.” Cf. Op. cit. pp. 50-72. 346 Op. cit., p. 13. 347 Idem. 348 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 19.
136
afetos. E estes estão entre o escritor e seus mortos que ficaram para trás, na Polônia
invadida pelos russos e depois pelos alemães. Pela língua, o escritor vigia a dor e a
melancolia de ter deixado seus mortos para trás. Todos aqueles que conheceu na
sua outra vida, e todos aqueles por quem ele tem algum afeto direto e que foram
dizimados pelo horror do nazismo e enterrados juntos com o iídiche.
Os afetos são pensamentos pontes para outros pensamentos, o estado em
que nos deixam e nos encontram determinadas ideias, com a qual nos envolvemos,
o pensamento-sentimento que sempre acompanha um pensamento-ideia sobre o
qual geralmente não temos controle349. Que saem em jorro, como o lamento e a
reclamação: “Que importa o iídiche350? Nada. Uma língua-cadáver351, isso sim”,
pragueja o poeta contra os seus maiores afetos: sua pátria, sua língua, seus mortos.
Por isso, a escolha do trocadilho língua-cadáver, que designa a língua morta (o
iídiche) e os mortos (os guardiães da língua), traduz melhor a relação de K. com o
idioma do que se o autor tivesse usado o comum e esperado termo: língua morta.
Diz Jacques Derrida que um hífen é uma “linha de união e separação, um laço
disjuntivo, que marca o lugar de todas as modalidades lógicas”352; no caso, as
modalidades seriam: língua e cadáver, língua enquanto cadáver e língua que gera
cadáver – sinal da ligação entre a língua e a culpa. O hífen representa também a
ponte com o passado construída através da relação de afeto com os mortos,
reforçada imageticamente pela grafia hifenizada, que convida o leitor a atravessar do
primeiro ao outro testemunho: o da Shoah.
349 SPINOZA, Baruch. Apud BELMONT, Luanna. O texto total. Amplificação e alteridade no drama-poesia de Maria Gabriela Llansol. Dissertação de mestrado. 350 É interessante notar que o iídiche é considerado a língua maternal “mame-loshn”, em oposição a língua sagrada, o hebraico “loshn koidesh”. 351 Quando Isaac Bashevis Singer recebeu o prêmio Nobel de Literatura, em 1978, no discurso de agradecimento, ele explicou por que escrevia em iídiche: “Não apenas creio em fantasmas como também creio na ressurreição. Estou certo de que, quando o Messias regressar, milhões de cadáveres fluentes em iídiche se levantarão de seus túmulos e a primeira pergunta que farão será: ‘Há um algum novo livro em iídiche para ler?’ Para eles, o iídiche não será uma língua morta”. Disponível em: http://blogdo.yurivieira.com/2009/04/discurso-de-isaac-bashevis-singer-premio-nobel-de-1978/. Acesso em 20 de junho de 2014. 352 Jacques Derrida: “a hyphen, a line of union and separation, a disjunctive link wordlessly marks the place of all logical modalities”. Cf. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 67.
137
Nessa ponte, ilustra-se, em K., um romance-testemunho em camadas, em
diferentes graus e com diferentes perspectivas.
Atravessando a ponte.
4.1. Continuum trágico
Seria apropriado constatar que esse testemunho-ficcional, o do
desaparecimento da filha de K., assim como “todo testemunho depois de Auschwitz,
sempre, de alguma forma, faz menção a ele”353? Em K., e para K., essa constatação
se confirma, porque a tragédia, que se abateu sobre sua família, é para o poeta “a
continuação do holocausto”. Não um novo holocausto, porém a continuação do
holocausto. A ideia de prolongamento, de persistência, sublinhada pelo substantivo
na afirmação de K., tem duas dimensões: uma particular e outra universal. A
universal representada na noção de Auschwitz como o “marco zero”, evento-limite
fundador de um paradigma que se alonga e prolonga até outros tempos e espaços. A
particular, pelo desaparecimento de sua filha.
Para ilustrar, a cena mais triste e angustiante do romance, a que une, ou –
sendo fiel à lógica de K. – a que exibe esse continuum trágico: a da peregrinação de
K. para conseguir colocar uma matzeivá para sua filha no cemitério, um ano após o
seu desaparecimento, mesmo sem haver corpo. Na Sociedade do Cemitério, a
Chevra Kadisha, já haviam avisado que “[s]em corpo não há rito, não há nada”. K.,
irredutível, retrucara ao Avrum, alegando que na entrada do Cemitério do Butantã
“há uma lápide em memória dos mortos do holocausto, e debaixo dele não há
nenhum corpo”354.
353 Imre Kertész afirma em seu livro de ensaios A língua exilada que o campo de concentração é o marco zero e que, portanto, nada mais poderia ser escrito sem fazer menção a ele. Cf. KERTÉSZ, Imre. “Uma sombra longa, escura”. In A língua exilada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 75. 354 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 80.
138
Avrum o admoestara por comparar o que aconteceu com sua filha ao Holocausto, nada se compara ao Holocausto, disse; chegou a se levantar, tão aborrecido ficou. O holocausto é um e único, o mal absoluto. Com isso K. concordou, mas retrucou que para ele a tragédia da filha era a continuação do holocausto. E argumentou que em Eretz Israel, pelo mesmo motivo é costume acrescentar na matzeivá do morto os nomes dos seus parentes vítimas do holocausto355. (grifo nosso)
A frugalidade verbal e a precisão terminológica ensejam, num espaço que não
excede a quatro linhas do romance, a releitura do Holocausto como evento-limite,
único e incomparável, transportando a leitura de volta para a tragédia seminal, e, em
movimento contrário, alongando-a para o campo da crítica, no que se refere ao
esvaziamento do sentido da catástrofe a cada vez que o holocausto é tomado como
medida de comparação – conduta comum nos dias de hoje. A definição da tragédia
pessoal como continuação da anterior, por outro lado, sublinha, evidente está, que a
dimensão pessoal da catástrofe se sobrepõe à universal.
Na economia da narrativa, constatamos a influência do jornalismo na literatura
do autor e, na espessura textual, sua tradição formal crítica. A menção do costume
israelense de acrescentar na matzeivá do morto o nome dos parentes vítimas do
holocausto sublinha o estilo narrativo seco, contido. O argumento decisivo para que
o secretário concordasse com o pedido do pai aflito, além de responder à lógica do
desenvolvimento da narrativa, exemplifica a capacidade de continuidade e de
transmissão da tragédia, que se perpetua no tempo e no espaço.
Voltando ao passado 356 , à tragédia que recaiu sobre a família de K., à
dimensão pessoal da continuação do holocausto, e mais uma vez evidenciando o
355 Idem, 81. 356 Retomar o passado nesse contexto, em que se está investigando o testemunho do desaparecimento de uma militante, nos leva a indagar sobre o trauma coletivo que a sociedade brasileira vive por não ter nunca enfrentado e elaborado o passado, mas preferido esquecê-lo e/ou negá-lo. No caso da ditadura de 1964-1985, o Alzheimer coletivo que liquidou com a nossa memória recente, reforçado pela negação e/ou revisionismo da história, tem um impacto devastador no presente, com o aumento da violência do Estado. Os casos de tortura nunca foram debelados das prisões brasileiras, apesar de o Brasil ter ratificado todos os tratados e convenções de direitos humanos. Segundo o Relatório sobre Tortura preparado pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2010, casos de tortura foram verificados no interior de prédios do poder público, como em delegacias ou carceragens, pela polícia civil, e pela polícia militar, na rua, em residências ou estabelecimentos privados como supermercados para obter informação e castigar. Os crimes em estabelecimentos penitenciários são menos acessíveis para serem descobertos e geralmente ocorrem
139
vocábulo continuação, pergunto: não seria o uso desse termo um ato falho que nos
faz entrar em contato com aquilo que ficou recalcado no inconsciente? Ainda: não
seria essa continuação, na verdade, um retorno ao sofrimento original?
O fio que garantiu a ligação de K. à sua comunidade foi, como vimos, o
iídiche. Através da língua, da linguagem, ele manteve relações sociais próximas com
indivíduos que não estavam na sua realidade cotidiana, mas na subjetividade da
memória. “Conhecia essas comunidades como seus dez dedos. Elas lhe eram
familiares, como se nunca as tivesse abandonado. Na verdade, em pensamento,
nunca as havia deixado”, escreve Meir Kucinski, no conto “A prédica”, sobre um depois de conflitos com agentes penitenciários. Outro crime praticado pelo Estado, e que está cada vez mais comum, é o de desaparecimento, a saber: 18 Amarildos* somem mensalmente pelas mãos do Estado, segundo o pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) Francisco Teixeira, que atua no laboratório do tempo presente. Para ele, “a questão central é que o processo de democratização do Brasil após a ditadura foi truncado e algumas instituições do Estado Liberal não passaram por ele. Isso é notável no caso de São Paulo, quando a polícia colocou em seu site um elogio ao golpe militar de 1964. Eles continuam com a mesma mentalidade, que se concretiza num fator de ódio muito forte às classes populares. Nesse sentido não é exagero falar em fascistização das instituições do Estado de Direito, (...) ou seja, o Estado de Direito mantém a fachada de democracia formal, mas ele permite que suas instituições, como a polícia se comportem como instituições fascistas.” O diagnóstico de Teixeira é reforçado pela reação dos três chefes das Forças Armadas – general Enzo Peri, do Exército, o brigadeiro Juiniti Saito, da Aeronáutica e o comandante Julio Soares de Moura Neto, da Marinha – que se recusaram a bater palmas na sessão do Congresso Nacional, de 18 de dezembro de 2013, em que o presidente, Renan Calheiros, devolvia simbolicamente o mandato do presidente João Goulart a seu filho, João Vicente, corrigindo o erro histórico ocorrido em 2 de abril de 1964, quando foi declarada, pela mesma casa, vacante a presidência porque Jango estaria no exterior. A anulação da sessão, a rigor, lança a ditadura na ilegalidade, colocando um ponto final no simulacro jurídico que tenta legitimar o golpe de Estado. Esta atitude demonstra a total insubordinação dos chefes militares à presidente da república, a quem eles devem continência e obediência. Por outro lado, durante os protestos que eclodiram em junho de 2013, a reação violenta do Estado aos protestos parecia orquestrada. No entanto, durante a Copa do Mundo de futebol realizada em julho de 2014, a ação foi de fato nacional e controlada pelas Forças Armadas. O ministro da defesa, Celso Amorim, aprovou a portaria no final de 2013 que regulamenta o uso das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) em manifestações sociais, protestos e qualquer ação que o Estado julgue como perturbadora da “ordem social”. O manual “Garantia da lei e da ordem” validado junto com a portaria assustadoramente iguala movimentos sociais, de oposição e manifestantes a criminosos, e os classifica como “forças oponentes”, o que corrobora a ideia de que o Estado encara o povo como inimigo. No segundo capítulo, o documento ressalta que, “apesar do apreço ao conceito de não-guerra, as operações poderão ter o uso de força de forma ilimitada”. Portanto, estamos testemunhando – para usar um termo querido à nossa pesquisa – um retorno ao Estado Policial, onde os direitos civis dos cidadãos são abandonados em nome da segurança nacional. Enfim, a história se repete como um trauma. * Amarildo Dias de Souza era ajudante de pedreiro e morador da favela Rocinha, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ele desapareceu no dia 14 de junho de 2013 após ter sido detido por policiais militares que conduziam a operação Paz Armada para prender envolvidos num arrastão ocorrido nas proximidades da favela. Cerca de 30 pessoas foram detidas e levadas para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro (UPP). Amarildo era pescador e voltava de uma pescaria quando foi detido. Ele foi visto pela última vez entrando na sede da UPP. O pescador se tornou símbolo da violência do Estado do Rio de Janeiro contra a população, principalmente a negra e pobre.
140
jovem polonês emigrante que chega ao Brasil, pobre, sem um tostão no bolso,
deixando a mulher e o filho para trás, na Polônia, e que tem que mascatear para
sobreviver357. O conto, um dos três que compõem os “Ecos do holocausto”, do livro
Imigrantes, Mascates & Doutores, descreve o difícil processo de reinvenção pelo qual
o emigrante tem de passar para que seja aceito em uma nova comunidade, a
integração árdua e forçada entre diferentes culturas, e como a língua e a catástrofe
são os elos que unem os forasteiros: “Os nomes das comunidades que eram citados
nos telegramas vinham distorcidos e confusos na língua dos respectivos países de
origem e ele [Moiche Bialobieski] os tinha decifrado”358 e explicado que não estava
havendo uma destruição das cidades polonesas, “mas de antigas comunidades
judaicas”359.
A língua, importante e vital também para o personagem do conto, salva a
memória, a história das comunidades (coletiva) deixadas para trás, mas, por outro
lado, é, de certa forma, a sentença que faz Moische Bialobieski perder o pouco
crédito que tinha junto aos comerciantes, que, receosos por ele ser um intelectual e
possivelmente um idealista, imaginam que ele não será duro o bastante para cobrar
as dívidas dos clientes. Moische perde o necessário crédito para sua sobrevivência,
não antes, porém, de ser muito parabenizado pela prédica proferida na reunião
realizada para velar os mortos da Shoah: “Quando aqui chegaram os gritos dos
judeus europeus, a José Paulino, no Bom Retiro, estremeceu”360. O discurso do
“gringo” mal ajambrado de rosto grosseiro, que sempre levava um livro “suspeito”
sob o braço, queimado e machucado, que ofendia com sua aparência os influentes
negociantes, foi minucioso no relato da destruição das antigas comunidades
judaicas. Inflamado, conclamou a todos que “salvassem aqueles que ainda não
tinham sido queimados”:
357 As características do personagem principal, o mascate Moische Bialobieski e as condições da chegada de Meir Kucinski ao Brasil são muito próximas. 358 KUCINSKI, Meir. Imigrantes, Mascates & Doutores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 177. 359 Idem, p. 178. 360 op.cit.
141
Era como se os gritos das vítimas fossem ouvidos ali, como se as chamas da casa judia que ardia estivessem ali, como se o Shamá Israel, Ouve, ó Deus, fendesse os céus do Brasil.361
O elo entre a obra de Bernardo Kucinski e a de seu pai é formado na medida
em que pai e filho recorrem à mesma fonte, à memória particular e familiar, para
compor seus personagens e seus enredos. É interessante observar as semelhanças
entre os personagens K. e Moische Bialobieski. Ambos são imigrantes vindos para o
Brasil fugidos da Polônia: um por razões políticas, outro, econômicas; fora esse ou
algum outro detalhe, o que nos é dado a conhecer de cada um dos personagens
indica uma profunda similitude biográfica entre os dois. Em meio às semelhanças,
está a presença acentuada da literatura e da língua, como traços definidores e de
ruína.
O livro sob o seu braço era o silente e secreto sinal do seu passado, do seu eu. Era um tipo de bandeira em relação ao mundo materialista dos judeus brasileiros (...).362
De propósito, como se tivesse um pretexto, foi de loja em loja. Os comerciantes apertavam-lhe as mãos, batiam-lhe nas costas, balbuciavam os cumprimentos: não sabiam de suas qualidades. (...)
(...) Um outro, exatamente um polonês, secamente lhe jogou na cara depois de parabenizá-lo: - o senhor fará cartões literários de caloteiros – e, tirando-lhe o pacote, acrescentou: - Desista de mascatear. Torne-se um professor, um mestre-escola.
E Moische perdeu o pouco de crédito que ainda lhe restava.
Essas passagens, econômicas, porém repletas de significado363 sintetizam os
diversos matizes da tragédia do imigrante, inclusive a contida naquilo que antes era
motivo de orgulho e de alegria (a língua), e que, na nova vida, passa a ser um fardo.
Embasada no conto de Meir Kucinski, e tentando entender como se deu (se
dá) a transmissão do trauma, recorro a Michael Pollak e ao seu questionamento
sobre os elementos constitutivos da memória individual e/ou coletiva. Para o
361 op. cit, p. 178. 362 KUCINSKI, Meir. Imigrantes, Mascates & Doutores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000, p. 176. 363 Estou fazendo um breve comentário sobre as passagens, pois a análise delas não é importante para a nossa pesquisa. No entanto, vale apontar que, o estilo de escrita seca, econômica, de histórias que cabem em um conto, é comum aos dois autores.
142
sociólogo austríaco, em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente
e, em segundo lugar, os vividos “por tabela”. A saber:
(...) acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não364.
Com a transmissão do trauma da Shoah, a vivência desse trauma “por
tabela” 365 , a perda de entes queridos dizimados pelo horror da indústria de
extermínio, os ecos que ensurdeciam e o assombramento, K. recolhe-se em si e
passa por um período de esquecimento. Nesse hiato, a dedicação à língua e a
idealização da língua como substituto para o sofrimento e a impotência de não ter
lutado, ajudado e/ou salvado amigos e familiares, indica um obstáculo ao processo
de luto e um mergulho na melancolia.
Um sujeito que sofre um trauma e não o elabora não passa por um processo
de luto366, não reconhece aquela experiência como algo passado e, por isso, está
condenado a repeti-la. No caso dos sobreviventes, o retorno ao trauma acontece
quando eles sofrem novos eventos trágicos e não o experienciam como “catástrofes
passíveis de acontecer com qualquer pessoa” 367 , mas sim como um segundo
holocausto, como explica o psicanalista Dori Laub: “a vitória final de seu destino
cruel, no qual eles não conseguiram dar a volta, é a corroboração final da derrota de
seus poderes para sobreviver e reconstruir”368. O segundo holocausto, afirma Laub:
364 POLLAK, Michael.”Memória e identidade social”. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.5, no. 10, 1992, p. 201. 365 FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar. Trad. Cláudia Valladão de Mattos. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 13-71. 366 O luto é o desapego doloroso do objeto do desejo – libidinoso. No trabalho de luto, a dor da perda é superada a partir do esforço de compreensão da perda e do rompimento por ela representado. 367 No original, o texto é assim: “survivors will experience tragic life events not as mere catastrophes, but rather as a second holocaust (...)” 368 No original: “the ultimate victory of their cruel fate, which they have failed to turn around, and the final corroboration of the defeat of their powers to survive and to rebuild.” Cf. LAUB, Dori. Bearing
143
acaba por ser em si um testemunho de uma história de repetição. através de sua repetição estranha, o trauma do segundo holocausto testemunha não apenas a uma história que não acabou, mas, especificamente, para a ocorrência de um evento histórico que, de fato, não termina.369
Na explicação acima, as duas dimensões do sentido de continuação se
encontram – a pessoal e a universal; talvez fosse mais preciso afirmar que, na
verdade, acontece, para o sobrevivente, a repetição do trauma original.
4.2. O despertar
K. não sabia exatamente o que temer, porém sabia que havia motivo para
temer, pois a reminiscência lampeja sempre em momentos de perigo, como nos
recontou o filósofo:
Naquela noite sonhou ele menino, os cossacos invadindo a sapataria do pai para que lhes costurasse as polainas das botinas.370
K., ao ser confrontado com o evento insuportável, o desaparecimento de sua
filha, repete no sonho a cena traumática acontecida em sua infância: a de ter que
lidar com os cossacos. É curioso que, embora, conforme descrito por K., tendo os
cossacos aparecido na sapataria do pai para que as polainas das botinas fossem
costuradas, o menino K. percebe a presença daqueles soldados como uma “invasão”,
um evento traumático. E é essa invasão o ato falho, o tropeço, a semi-dita que
empurra K. para fora do sonho, da angústia paralisante e para o temido encontro
com o Real, a que ele certamente prefere não comparecer. O Real, de acordo com
Lacan, está além do sonho, e temos que procurá-lo naquilo que foi revestido, Witness, or the Vicissitudes of Listening. In FELMAN, Shoshana (Eds.). Testimony: Crises of Witnessing in Literature, Psychoanalysis and History. New York/ London: Routledge, 1992, p. 65. 369 Em inglês: “The ‘second holocaust’ thus turns out to be itself a testimony to a history of repetition. Though its uncanny reoccurrence, the trauma of the second holocaust bears witness not just to a history that has not ended, but, specifically, to the historical occurrence of an event that, in effect, does not end.” Idem, p. 67. 370 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 20.
144
envelopado e ocultado por ele, naquilo que está atrás da falta de representação, “da
qual lá só existe um lugar-tenente. Lá está o real que comanda, mais do que
qualquer outra coisa, nossas atividades”371. Como o despertar:
Despertou cedo, sobressaltado. Os cossacos, lembrou-se, haviam chegado justo no Tisha Beav, o dia de todas as desgraças do povo judeu, o dia da destruição do primeiro templo e do segundo, e também o da expulsão da Espanha.372
E o que o despertou? A lembrança de que os cossacos haviam aparecido no
dia maldito para os judeus, no nono dia do mês de Av do calendário judaico, no
Tisha Beav. K. desperta no trauma. E, ao despertar, num estado ainda de
semiconsciência, faz um inventário dos traumas fundamentais da história judaica: a
destruição do Primeiro Templo há 2.500 anos, do Segundo há 1.900, e a expulsão da
Espanha há 522 anos. Deixando de listar, sintomaticamente, aquele que pressente
estar (re)vivendo: a Shoah. Nesse caso, a sua particular.
Em um parágrafo é apresentada importante parte da história do povo judeu.
O trecho supracitado é um exemplo daquilo que Jacques Derrida identificou como
“economia genial e genealógica de uma narrativa elíptica”373, na escrita econômica e
metonímica de Blanchot, no relato O instante da minha morte. O mesmo estilo
permeia a obra de Bernardo Kucinski e é o modelo da narrativa em K., pouco afeita à
grandiosidade dos grandes discursos que abarcam o mundo com inspiração nos
clássicos, como Os sertões.
Essa nova catástrofe demolira a frágil tentativa de reconstrução de K. Sua
primeira mulher não teve a mesma sorte que ele: não conseguiu sobreviver à dor da
perda de todos os parentes (pais, irmãos, tios e sobrinhos, inclusive um primo que
fugira para França) em campos de extermínio e tornou-se uma mulher triste, que
371 LACAN, Jacques. O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1988, p. 61. 372 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 20. 373 DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 82.
145
depois morreria em consequência de um câncer de mama. A doença surgiu logo
após receberem o relatório feito pela comissão enviada pelos judeus de São Paulo
para investigar “os boatos assustadores sobre o que acontecia na Polônia”374. K.,
assim como muitos sobreviventes, tentou reconstruir sua vida, apesar da montanha
de ruínas que se acumulava às suas costas. Casou-se pela segunda vez com uma
judia alemã, “que sabia cozinhar batatas”, e que não “afinava” com a filha.
374 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit.,p. 42.
146
5. Dissecando K.
Essa longa exposição, demarcando a importância da língua no romance e para
o personagem, fez-se necessária porque o iídiche está diretamente ligado ao
sentimento de culpa de K. Melhor dizendo, o iídiche é o fundamento da culpa do
protagonista. E, se a culpa é a “alma” da história; e a língua, a sua espinha dorsal,
então essa interdependência põe em causa a lógica da constituição do sujeito e sua
relação com o mundo através da literatura – o que, pode-se dizer, reflete também a
lógica conflituosa entre literatura e testemunho. Essa autorreflexividade, que
identificamos na literatura de Kucinski, é o que os críticos literários chamam de mise
en abyme, ou seja, a escrita no/do abismo, caindo nas profundezas de si mesma,
infinitamente375. E, no cerne das profundezas dessa escrita, encontra-se o nó górdio
dessa pesquisa: a tensão entre testemunho e literatura.
Durante a leitura do romance, essa tensão marca o ritmo da narrativa,
transportando o leitor ora para dentro, ora para fora do texto, obrigando-o a oscilar
ao sabor dos interesses da dinâmica da história proposta pelo autor. Tanto que essa
tensão, a princípio, é apenas sentida no movimento do enredo, nas imagens da
ditadura (da violência) evocadas em meio às cenas narradas. No entanto, quando o
leitor já está familiarizado com o enredo e o tema, Kucinski interrompe a narrativa
para apresentar o dilema de K. e discutir essa tensão, evidenciando os pontos
principais da dicotomia trauma e representação, ética e estética, ficção e
375 Recopio a nota de João Camillo Penna a respeito: “Traduzido frequentemente por “narrativa em abismo”. Literalmente "posição-em-abismo". Termo de retórica e crítica de arte que designa o dispositivo autorreflexivo. Nessa acepção, foi André Gide quem resgatou a expressão de seu contexto de origem, a heráldica francesa do século XVII. O Dictionnaire des termes du blason, de Jean-Marie Thiébaud (Besançon, Edtions Cêtre, 1994), por exemplo, diz no verbete "abismo (em)": "Expressão que qualifica uma figura posta no centro do escudo". O sinônimo de "abismo", no caso, é "coração" (coeur), do escudo. O Dictionnaire historique de la langue française, de Alain Rey (Paris, Dictionnaires Le Robert, 1992), no verbete "mise en abyme", conclui dizendo: "Sua especialização em heráldica para designar o centro do escudo (1671) forneceu a [André] Gide a expressão mise en abyme (1893, no Journal), que restabelece o "y" etimológico [a grafia moderna é abîme].” NANCY, Jean-Luc. Demanda. Literatura e filosofia. Trad. João Camillo Penna et alii. Florianópolis: Ed. UFSC, 2015, no prelo.
147
testemunho. Nesse fragmento crucial, “O abandono da literatura”376 , uma outra
camada deixada pelo evento do desaparecimento da filha de K. – a da negatividade
do vazio, a do não-evento, e a do consequente impedimento de representação que
essa falta pode determinar – é exposta. Eis o dilema: como representar esse não-
evento, o desaparecimento da sua filha, o vazio. A primeira pergunta que se coloca
é: por que é um dilema? Não seria se K. – e Kucinski, claro, admitindo que autor e
personagem sobrepõem-se e ouvimos ambas as vozes – assumisse, com vigor e sem
restrições, sua palavra como a palavra testemunhal, credível, incapaz de carregar
inverdades e acima de quaisquer dúvidas. Parece-nos que não há/houve essa
intenção de se tomar a palavra e de distribuí-la como “fato”. Contudo, na lacuna
deixada pela recusa, desponta o dilema, que cria um duplo impedimento, que se
interpõe sobre um relato “totalizante e totalizador” de K. (e de Kucinski).
O primeiro provém da característica negativa do evento e da ética relacionada
ao relato desse não-evento. Kucinski não despreza a força dessa negatividade,
tampouco a persuasão ilusória, porém atraente, de receptáculo vazio a ser
preenchido. Ele serve-se da força dessa ausência para metáfora da narrativa, e deixa
o vazio intocado à disposição das versões existentes e vindouras. Com essa
manobra, subtraindo a pretensa dominância da linguagem sobre o discurso, dissolve
as implicações éticas. Em outras palavras, ele constrói o discurso da única maneira
ética possível: pela ausência – o que nos leva a deduzir que a utilização da ausência
como estética narrativa é, na verdade, a afirmação da ausência como medida ética
para representar aquilo que não se dá à representação, ou não se quer
representado. Aqui, nas distinções anuladas pelas oposições (testemunho e
literatura, ética e estética), nesse movimento de forças contrárias, encontramos o
conceito de arte para Jacques Rancière.
Parece-nos importante exemplificar a medida dessa analogia. Segundo
Rancière, o regime estético da arte suspende a lógica das divisões, tanto que o
desencontro entre a matéria e o que a ela se opõe, entre o sensível e o inteligível,
376 Esse fragmento foi analisado anteriormente. Na análise feita no capítulo 1 (tópico 1.5), tratamos da relação entre literatura, trauma e testemunho. Na que fazemos aqui, centramos a análise na ausência usada como metáfora, e em como este artifício influi na narrativa e na estrutura do texto, bem como nas suas implicações éticas e estéticas.
148
entre a imaginação e o conhecimento, desde sempre causou uma ruptura no coração
da experiência estética, incluindo a do belo, e não apenas na experiência do sublime.
Qualquer acordo entre forma e matéria, entre o conhecimento e a imaginação, já é
um desacordo; o consenso é já um dissenso compartilhado. A arte é sempre um
movimento dessas forças contrárias, na medida em que o estado estético é sempre
um nem / nem, em que essas distinções são anuladas em suas oposições. Por quê?
Porque a esfera autônoma da estética é, para Rancière, heterogeneamente
constituída.377
O segundo ponto do duplo impedimento está relacionado à palavra, à palavra
da testemunha, à palavra testemunhal. Ainda a reboque da filosofia de Rancière,
para quem o valor e o privilégio conferido à figura da testemunha na literatura “está
ligado neste caso [ele se refere ao testemunho da Shoah] a duas coisas: à ideia de
que ela pagou na sua carne o direito a que nela acreditem; e à ideia de que há
coisas que não se pode inventar”. A valorização da testemunha, ainda segundo ele,
que, hoje em dia, pode ser qualquer um que encontre a verdade e dela faça uma
narrativa, ameaça a democratização da palavra. A palavra da testemunha, seguindo
essa lógica, é “a palavra que silencia, a palavra que suspende todas as outras”.
Kucinski, em sintonia com o pensamento do filósofo, reparte a sua “autoridade” e a
sua palavra testemunhal com as vítimas, os familiares das vítimas, os colaboradores
do regime, os agentes do terror, os trabalhadores, e com todos aqueles afetados
direta ou indiretamente pelo arbítrio, promovendo, assim, a democratização da
palavra pensada por Rancière, pois o autor, ao distribuir a palavra, “reconhece a
capacidade de falar de qualquer um, logo, de pôr em ficção, e eventualmente de
mentir”. Identificamos nessa afirmação uma convergência com o pensamento de
Derrida e sua noção de que não existe testemunho que não tenha em sua estrutura
a possibilidade de “ficção, simulacros, dissimulação, mentira e perjúrio”378.
377 Dronsfield, John Lahey. “Nowhere is aesthetics contra ethics. Rancière the other side of Lyotard”. In Art & Research. A journal of Ideas, Context and Methods. Disponível em: http://www.artandresearch.org.uk/v2n1/dronsfield.html. Acesso em 05 de novembro de 2014. 378 Jacques Derrida: (…) there is no testimony that does not structurally imply in itself the possibility of fiction, simulacra, dissimulation, lie, and perjury”. Cf. DERRIDA, Jacques. Demeure: Fiction and Testimony. California: Stanford University Press, 2000, p. 29.
149
Nesse ponto, começamos a afrouxar o nó. Se localizamos na narrativa de K.
características do regime estético definido por Jacques Rancière e entendemos o
romance como um testemunho sobre um desaparecimento realizado, por terceiros,
quarenta anos após o evento que só é/foi possível pela via da ficção, e aqui
pensando junto com Derrida, admitimos a literatura como canal para o testemunho e
a coexistência – tensa, sim – dos dois estilos na narrativa de Bernardo Kucinski.
A referencialidade da realidade do romance sugere uma vontade de verdade,
entretanto o forte acento ficcional indica, sobretudo, uma vontade de trabalhar essa
verdade. “O que conta não é a suposta adesão da testemunha à verdade do
acontecimento, mas sua capacidade de construir uma cena de palavra litigiosa”379,
diz Rancière. Porém construir a cena de um evento ausente, superar a inexatidão da
ausência e a inadequação da linguagem – pois o evento abafou a palavra litigiosa –
implica não ter o objeto para construção da narrativa e ter que se voltar para os
rastros deixados por essa inexistência: a perda, a busca, e os silêncios. Afinal, ser
desaparecido pelo Estado é ser levado para um território da negação, da
dessublimação do sujeito, do apagamento da memória, que causa uma ruptura na
experiência e impede a construção do discurso, mesmo para quem a palavra é uma
ferramenta familiar e natural.
Portanto a derrota de K., o poeta premiado, ao não conseguir colocar em
palavras a sua desgraça, é também a figuração ética do ilógico, ou do absurdo, que
caracteriza a tentativa de apreensão e representação da origem narrativa.
Conquanto a recusa em não representar a cena principal, a do desaparecimento, é
assumir que não há cena original a priori, a impossibilidade de representação,
porque o que há é ausência, e representar a ausência é representar o fracasso e,
acima de tudo, assumir o fracasso da representação como narrativa380. É notável
nessa cena, em que a palavra do poeta é sequestrada junto com a (da) filha, a
justaposição dos argumentos contrários à representação da cena central, fazendo
379 RANCIÈRE, Jacques. “Figuras do testemunho e democracia”. Entrevista a Maria-Benedita Basto. In Revista Intervalo, No. 2 – “O testemunho” – Maio, 2006. 380 Se pensarmos nessa ausência como o locus onde se encontra o Real, a representação dessa ausência, que se dá pelos seus efeitos – ausência da ausência –, podemos entender que a impossibilidade da representação dessa cena, esse fracasso, é também a figuração da impossibilidade de representação do Real – um fracasso a que todos estamos fadados.
150
com que o leitor seja, ao mesmo tempo, confrontado com a impossibilidade da
representação da tragédia através do personagem K., bem como com a renúncia da
representação pelo autor, visto que o foco da cena na ausência provoca um infinito
adiamento da cena central: a do desaparecimento. Essa dobra de significados marca
a fronteira entre a vida e a literatura381.
É nessa fronteira que a tensão entre testemunho e literatura fica palpável,
como observamos em “Sorvedouro de pessoas”, fragmento de abertura. A relação
entre os personagens presentes na reunião dos familiares de desaparecidos e as
figuras ausentes, os desaparecidos, demarca essa fronteira entre a vida e a
literatura, ao oferecer-nos a “matéria” (o desparecimento) pela “arte” (a
narrativa)382. Na reunião, os familiares recontam os últimos dias da “existência” das
vítimas, evidenciando, nesses relatos marginais, a fissura entre a ausência e a
possibilidade de discurso. O leitor é informado sobre o desaparecimento, sem,
contudo, ser exposto à cena do acontecimento. É através de uma dupla camada
narrativa, da narrativa da narrativa, que o leitor fica sabendo do desaparecimento,
como no exemplo abaixo:
Depois falou outra senhora, de seus cinquenta anos, que se apresentou como esposa de um ex-deputado federal. Dois policiais vieram à sua casa, pedindo que o marido os acompanhasse à delegacia para prestar alguns esclarecimentos. Ele foi tranquilo, pois embora seu mandato de deputado tivesse sido cassado pelos militares, levava vida normal, tinha escritório de advocacia. Desde então, há oito meses, nunca mais o viram. Na delegacia disseram que ele ficou apenas quinze minutos e foi liberado. Mas como? Como poderia ter desaparecido assim por completo? Essa senhora, muito elegante, estava acompanhada de quatro filhos.383
381 Expressão de Jacques Rancière. 382 Fiz uma associação, importante para a argumentação, da arte com a narrativa, porém problemática. Por isso, acho necessário fazer esse adendo para sublinhar que entendo que narrar antecede qualquer expectativa ou impulso artístico, é algo primitivo, que depois se cola com a arte, na medida em que narrar abandona, por um lado, finalidades, digamos, comunitárias, ou de sobrevivência física, e assume compromissos estéticos e prioritariamente subjetivos, de sobrevivência emocional na complexidade das relações. 383 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., pp. 25-26.
151
A mistura de elementos facilmente verificáveis na cena imaginada contribui
para a ancoragem do leitor no universo das ausências, e na sua familiarização com
essa forma de narrativa de duplos: de ausências da ausência e de memórias da
memória. É digno de nota o respeito do autor para com a dor dos “outros”, evitando
reconstituições da memória que, mesmo hoje, sendo parte do bolo coletivo, é/foi,
ontem, individual.
O que trazia aquele grupo à reunião era algo insólito. O Exército alegava que nada disso tinha acontecido, apesar de um dos presos, apenas um, ter escapado e testemunhado tudo. Os familiares queriam enterrar os mortos – que eles já sabiam mortos, mais de cinquenta, diziam. Sabiam até a região aproximada em que foram executados, mas os militares insistiam que não havia corpo para entregar.384 (grifo nosso)
Kucinski, mais uma vez, inspira-se na narrativa oficial para a construção da
sua própria. Segundo os militares, nada aconteceu, portanto o nada é o
representado. Como? Por uma narrativa evasiva, simbolizando o nada como
figuração histórica do massacre ocorrido no Araguaia. Kucinski, simultaneamente,
figura o espaço vazio da negatividade e o espaço da negação, tal como o evento que
escapa à representação. A ênfase no nada institucional contraposto ao tudo pessoal
exibe a disputa de narrativas sobre o período, ao mesmo tempo que devolve a
palavra à testemunha; afinal quem tudo testemunhou tem o que narrar, ao contrário
de quem (ou o que) nada sabe sobre o assunto. Um detalhe que imprime uma
camada extra de irrealidade à irrealidade da ficção é o uso do imperfeito em dois
momentos: para descrever o motivo “insólito” da reunião (sobre as vítimas da
guerrilha do Araguaia) e para mencionar a alegação dos militares de que nada havia
acontecido: “O que trazia aquele grupo à reunião era algo insólito. O Exército
alegava que nada disso tinha acontecido (...)”. O uso do imperfeito marca ainda um
estado que se prolonga e se repete, ou seja, sublinha a disposição da instituição em
manter e repetir a mentira.385
384 Idem, p. 26. 385 O aspecto do imperfeito encerra também a noção de inconcluso, incompletude, interrupção, que tem muito a ver com a interrupção de vidas pelo desaparecimento e, consequentemente, com a
152
Vale ressaltar que essas descrições econômicas, além de serem uma técnica
estilística vigorosa, como já vimos, servem de trampolim para o fora do texto,
minorando a urgência descritiva. Essa extensão textual promovida em diversos
momentos do texto, indicando pistas de caminhos investigativos, conta com um
leitor acostumado a suspeitas, que lê com incredulidade, como bem definiu Borges, e
que, instigado pelo professor, o intelectual Kucinski, continua no caminho indicado –
o que nos remete à nossa aposta de que Kucinski escreveu primeiro um romance
policial a fim de “criar” um leitor ideal para a sua obra386.
Curiosamente, a dialética da presença-ausência, motor da narrativa – qual
seja: o que está presente está irremediavelmente ligado ao que está ausente, e o
que está ausente, por sua vez, só é distinguível no que está presente –, intensifica a
aura de irrealidade, de ficção do romance, como vemos no fragmento Jacobo, uma
aparição. Jacobo, o jovem argentino, indicado pelo American Jewish Commitee,
quando K. esteve em Nova York à procura de ajuda para descobrir o paradeiro de
sua filha, e cuja missão é a de encontrar desaparecidos, por fim, também
desaparece.
“E como vai Jacobo?”, perguntou [K.]. “Por isso eu vim, e não ele”, diz Carlos. “O Jacobo desapareceu há dois meses. [logo após o encontro que K. teve com ele] Nós estamos muito preocupados. Desapareceu sem deixar nenhum vestígio”.387
O paradoxo estabelecido entre o título e o último parágrafo, em que aparecer
e desaparecer são contrapostos, sublinha a efemeridade de ambas as “ações” e da
própria vida, assim como é efêmera também a inverossimilhança sugerida pelo vazio
deixado tanto por quem aparece quanto por quem desaparece. Jacobo foi descrito
como uma aparição, e um outro paradoxo se apresenta a partir dessa descrição: o
redundância dos discursos que insistem, em círculos, de um lado e do outro, em sustentar a mentira, ou em buscar a verdade, sem sucesso para ninguém. Resta mesmo apenas o discurso em círculos, como objeto mais palpável diante do trauma insolúvel. 386 Essa aposta está mais detalhada no capítulo 2 (tópico 2.2), onde analisamos o primeiro romance do escritor, Alice – não mais que de repente. 387 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 64.
153
da negação a priori da presença e da antecipação da ausência como significante de
personagem vazio e da falta de sentido. Não podemos deixar de notar a influência
do jornalismo na escolha de um personagem a fim de “humanizar” a figura etérea do
desaparecido. Claro que as décadas dedicadas ao ofício respondem pelo rigor, pela
clareza, pela simplicidade e pela exatidão da escrita. O autor ele mesmo revela
preferir a brevidade da dicção jornalística aos longos tratados ensaísticos típicos da
academia, da qual ele também fez parte: “Percebi que me realizo bem em narrativas
curtas e secas, nas quais não é necessário explicitar ou trabalhar exaustivamente os
personagens e os ambientes. Nos contos, transmite-se através de referências, por
assim dizer, simbólicas” 388 . E Jacobo é uma dessas referências simbólicas
mencionadas pelo autor, ao incorporar a vulnerabilidade, a impotência e o fracasso
da tentativa de enfrentamento do Estado. Ele é um personagem chave no romance,
por ser quem coloca um rosto a um desaparecido; quer dizer, a sua aparição ilustra
para o leitor a evanescência do desaparecimento. Uma epifania carregada de
significados, colocada no texto para indicar a transição irreversível do processo de
apagamento. Ele é a presença que se torna ausência. Ele é, também, mais uma
marca do escritor-jornalista em ação, visto que, em reportagens, são sempre
colocados “personagens” (seguindo o jargão jornalístico) para ilustrar e “humanizar”
as histórias.
A mecânica da narrativa de Kucinski, centrada na dialética ausência/presença,
incita o leitor a seguir personagens-fantasmas, cenas de cenas, narrativas de
narrativas. Nada é escondido do leitor, por outro lado nada é dado a ver a ele; a(s)
história(s) não são concluída(s) (mimetizando suas matrizes) e continuam
infinitamente nas interrogações do leitor. A polêmica de ter uma narrativa definida
por algo que in-existe389, a cena do desaparecimento; a falta de sentido em tentar
representar o irrepresentável, a ausência, enfatiza a lógica irracional de uma
narrativa que tem origem na irracionalidade da falta de sentido.
388 Entrevista concedida ao jornalista Rogério Pereira do jornal Rascunho. Disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/a-libertacao-de-kucinski/. Acesso em 15 de agosto de 2014. 389 Digo “in-existe”, pois, se pensarmos na inspiração da obra, no sequestro de Ana Rosa Kucinski e de seu marido, concordaremos que houve “de fato” o ato, o sequestro, que poderia ser descrito, caso soubéssemos detalhes de como aconteceu. Como nunca foram revelados os detalhes do crime, o que há são versões, portanto podemos dizer que “existe” a cena, porém sua “materialidade” reside no nosso imaginário. Logo ela existe não existindo, ela in-existe.
154
O reconhecimento da ausência como figura viva implica uma dispersão de
olhares e de vozes, assim como deslocamentos de tempo e de espaço, dissolvendo
qualquer possibilidade de unicidade narrativa. O resultado, então, são histórias
ausentes, narradas por quem as viu ou ouviu. A cena central ausente, representada
a partir da busca, empurrada sempre para frente, promove um movimento de
permanente distanciamento e adiamento, que simula um desenvolvimento em
direção a. Na verdade, essa cena inalcançável realiza um movimento cíclico, de
repetição, repetição do fracasso (que também é ausência), levando a mais
ausências.
O processo de deixar que o “outro” conte a história é o do jornalista, que ouve
e reproduz, diferente do do escritor, que produz e conduz o leitor; não que o
jornalista não conduza o leitor, mas, na literatura, o olhar e a imagem são mais
livres, e a manipulação tanto mais eficaz quanto mais invisível for a linguagem
usada. No caso de K., a reconstrução da realidade por um efeito de corte e colagem
de imagens, ângulos e perspectivas, conseguido pelo formato conto-romance,
lembra a série de contos entitulada Short Cuts, de Raymond Carver (a partir da
adaptação em filme por Robert Altman), ou Cloud Atlas, de David Mitchell; ou ainda
os 69 excertos de vidas que narram e revelam a cidade de São Paulo, em Eles eram
muitos cavalos, de Luis Ruffato. Contudo, é com Estrela distante, de Roberto Bolaño,
que, por diversas vezes, pego-me cotejando a obra de Kucinski.
Bernardo Kucinski faz o caminho inverso e traz do jornalismo, de volta para a
literatura, “o modo de leitura que apreende o todo pelo pormenor”390. Assim como o
jornalismo, o testemunho – aceitando que temos em mãos um testemunho ficcional
– é narrativa do tempo presente, com um olhar para o tempo passado, numa
posição parecida com a do anjo da pintura de Paul Klee, interpretado por Walter
Benjamin. Nessa mesma posição, Bernardo Kucinski, aproveitando-se do local
privilegiado em que se encontra, olha para o passado com a familiaridade de um ex-
militante, com a curiosidade de um jornalista, com a dor de um sobrevivente, e com
o olhar crítico de um jornalista-militante-sobrevivente. Em diversos momentos do
390 RANCIÈRE, Jacques. “Figuras do testemunho e democracia”. Entrevista a Maria-Benedita Basto. In Revista Intervalo, No. 2 – “O testemunho” – Maio, 2006, p. 4.
155
enredo, somos trazidos de volta pelo narrador para o tempo presente, quando ele
faz referência ao futuro da história (“vão passar décadas até os raros sobreviventes
admitirem em retrospecto que a única saída era aceitar a derrota”391 e “a lista dos
232 torturadores que jamais serão punidos”392), ou usa um tempo verbal atual
(deletar393), ou ainda especula sobre como seria o presente se as ações do Estado
tivessem sido esclarecidas 394 . A transição temporal elimina a “suspensão da
descrença”395 inerente ao acordo ficcional aceito pelo leitor, e o aporta de volta à
“realidade” e às dúvidas. É esse leitor que, a nosso ver, Kucinski almeja: com
suspicácias e em alerta396.
A representação da filha de K. é realizada pelo olhar e pela linguagem do
Outro, obliquamente, por um processo de interpretação ou transferência de mundos,
como na revisitação da sua infância e da adolescência acessadas a partir da compra
dos primeiros óculos. O acesso ao reino humano pelo inumano irá resgatar, nas
lembranças da relação da menina com os pais, o impacto da Shoah em sua mãe, e,
por conseguinte, seus efeitos na sua criação. A elasticidade temporal, viabilizada pela
lembrança de um objeto comum, nos permite conhecer um pouco da mãe e dos
irmãos da filha de K., num fluxo narrativo breve e ligeiro. K. revela a sua relação e a
da mulher com a filha por meio de um outro duplo: um paradoxo armado com uma
afirmação no início, e o seu contraponto ao final do fragmento. “’Ficou bonita’,
comentou K., ao contemplá-la de óculos.” Por outro lado, a esposa, ao ver a menina
de óculos, diz: “’Como você ficou feia (...) Agora não tem mais jeito’”. Os óculos,
como catalisadores dos sentimentos familiares e dos pequenos choques diários, são
os responsáveis pela revelação da personalidade introspectiva da menina, e da
adulta reservada em que se transformou. Nada poderia ser mais improvável do que a
possibilidade de se revelar uma característica da personalidade de um personagem a
391 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 30. 392 Idem, p. 31. 393 Ibidem. 394 “Porque é óbvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas sombrias que fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido abortada”. Ibidem, 163. 395 Segundo o poeta Coleridge, para lidar com uma obra de ficção, o leitor tem que aceitar um acordo ficcional tácito com o autor. A esse acordo Coleridge chamou de “suspensão da descrença”. Cf. ECO, Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 81. 396 Essa noção está mais bem desenvolvida no capítulo 2 (tópico 2.2).
156
partir de um objeto que não foi sequer escolhido por ele; portanto não reflete um
gosto pessoal – o que, se assim fosse, poderia ser uma pista. A equiparação
improvável de mundos afasta da escrita a aderência da opacidade e do pesadume da
“realidade” e, seguindo a proposta de Ítalo Calvino, imprime certa leveza a uma
narrativa do contrário fadada ao peso e à inércia. O trânsito entre mundos opostos,
segundo o regime estético da arte definido por Rancière, afirma uma “identidade de
contrários”. A propósito, no centro da poética desse regime, a lógica da expressão
pessoal, dos sentimentos, das emoções é suspensa em proveito de estados
transitórios: “passagens do individual para o anônimo, da materialidade bruta para o
reino da expressão, do humano para o inumano, criando uma zona de metamorfoses
entre diferentes reinos”397. Vemos essa transição no inventário das perdas da perda
de uma vida, feito no texto de abertura, e no fragmento Inventário de memórias.
Uma breve digressão é essencial para que possamos entender o mecanismo
dialético da narrativa de K. Para tanto, pinçamos algumas considerações feitas por
Jaques Rancière sobre arte política, que, a nosso ver, complementam de forma
providencial a escrita de Kucinski. Diz o filósofo que “a arte para ser política precisa
ser dialética – política e apolítica – e "tomar-se a tensão entre dois polos". Assim, a
arte pode aproveitar alguma coisa de ambas as formas, a fim de reconfigurar a vida
coletiva e ainda retirar sensibilidade estética de outras esferas de experiência; uma
dialética que provocaria inteligibilidade política, mantendo ainda mantendo a
estranheza sensorial. Essa "colagem de opostos” implica o estabelecimento de
formas em conjuntos específicos de heterogeneidade e com elementos emprestados
de outras esferas da experiência.
Voltando ao duplo inventário, o de perdas e o de memórias, percebemos que
a forma narrativa, derivada do processo catártico do autor de revolver lembranças
doídas, estrutura-se na coleta de lembranças passadas e futuras e no seu arranjo
para montar o perfil da personagem ausente para o leitor e para ele, autor, a fim de
que o processo do trabalho de luto seja iniciado. Nesse processo também duplo,
porém não simultâneo, em que o leitor lembra para não esquecer, e o autor lembra
397 RANCIÈRE, Jacques. “Figuras do testemunho e democracia”. Entrevista a Maria-Benedita Basto. In Revista Intervalo, No. 2 – “O testemunho” – Maio, 2006, p. 6.
157
para esquecer, personagem e autor se encontram e confundem, porque, para
ambos, a figura da irmã e da filha também é ausente. Voltaremos a isso um pouco
mais adiante, pois é o ponto que influencia os constantes adiamentos e
deslocamentos da construção dessa presença-ausência da filha de K. Porém, por ora,
interessa-nos o movimento dessas lembranças marginais e da negação. No
inventário das perdas da perda de uma vida feito pelo autor, a irmã é discernida pelo
que não teve, ou pela vida que não poderá ter, ou seja, por aquilo que é ausente a
ela. O curioso é que são listados desejos da sociedade de consumo, que se chocam
com a sociedade desejada/imaginada/defendida por ela – admitindo que uma
militante de esquerda não apoiaria uma sociedade consumista e capitalista como a
que vivemos.
Talvez o autor esteja assumindo e/ou criticando por inteiro o fracasso das
ações da juventude, ou porventura criticando esses valores pelos quais somos
definidos. Ou talvez apenas esteja elencando os nãos, os nuncas, a negatividade
resultante de todas as perdas, inclusive as dos sonhos de uma sociedade mais
humana, e, claro, a maior de todas: a presença da irmã. O certo é que o que resta
da irmã desaparecida é o que ela deixou de ser e deixou de ter. Ou seja, o que resta
são as ausências da ausência. De modo que embarcar no infinito negativo, pensando
junto com Renato Lessa, parece-nos ser a possibilidade ética da lembrança, porque
qualquer positividade em relação à memória negativa resultante da violência seria,
para nós e para o autor (imagino, por ser ele um pessimista assumido), um
sacrilégio.
A tensão provocada entre o que é narrado e os traços conhecidos dessa figura
ausente notabiliza essa estética de contrários que está em movimento no discurso,
na forma e no conteúdo. Nessa “colagem de opostos”, Kucinski parece estar, na
verdade, negociando com o leitor, como definiu Rancière, entre “a leitura da
mensagem que ameaça destruir a forma sensível da arte e a radical ignorância que
158
ameaça destruir todo significado político”398. Trocando em miúdos, Kucinski está
mediando a tensão da literatura e do testemunho no romance.
O contraponto do inventário de perdas futuras aparece no “Inventário de
memórias” realizado a partir do encontro “por acaso” de uma caixa com fotografias e
cartas escondida atrás da enciclopédia iídiche encadernada na mesma cor e
tonalidade. “Era como se a filha a tivesse posto ali de propósito para só ele
encontrar” 399 . A primeira coisa que chama atenção nessa representação é a
referência do “acaso” madelêinico-proustiano como viabilizador do reencontro com a
memória. A segunda, a sobreposição da língua, do iídiche, à vida e até à memória,
reavivando o sentimento de culpa que atravessa K., Kucinski, e os sobreviventes. E,
por fim, como o olhar para o que passou não é menos crítico e melancólico, como o
que está sendo lançado ao que ainda não passou e não virá a ser?
Nos dois inventários, entretanto, a dialética da presença-ausência organiza as
lembranças. Se, em um inventário, a possibilidade de presença foi negada e o que
resta é lembrar de traços relativos à ausência; no outro, a presença/ausente nas
fotos reforça a ausência da presença da filha em sua vida. “Quando deparou com
fotografias da filha em situações e cenários que nunca imaginara, percebeu de novo
o quanto da vida dela ignorara e ainda ignorava”400. O inesperado contato com o
passado, e com a memória da ausência da filha anterior ao seu desaparecimento,
abre uma outra via de busca extremamente importante e difícil para K., a do
conhecimento da filha desconhecida. Sua busca, como se percebe, torna-se, então,
dupla: interior e exterior. Nesse ponto, o romance assume uma dimensão mais
íntima, pessoal, e biográfica401. A beleza poética desse paradoxo trágico, desse
desencontro, é que ele é também um encontro402, uma restituição da vida da filha
por inteiro, conseguida tardiamente, durante a busca de pistas sobre a sua morte, ao
colar os “pedaços”, a partir de “vestígios preciosos”, encontrados ao acaso nas caixas
398 Dronsfield, John Lahey. “Nowhere is aesthetics contra ethics. Rancière the other side of Lyotard”. In Art & Research. A journal of Ideas, Context and Methods. 399 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 113. 400 Idem. 401 Digo biográfica em relação ao texto e não ao que está fora dele. Ou seja, é como se o leitor, ao acompanhar a busca, estivesse “lendo” a biografia da filha que K. está montando. 402 Expressão cunhada pela professora Berta Waldman, no artigo “O texto como lápide”.
159
de memórias, ou entregues por desconhecidos – como aconteceu na reunião de
familiares das vítimas, onde conheceu a cunhada da filha e, desse modo, soube do
matrimônio clandestino –, ou quando foi visitar a outra família da filha no interior de
São Paulo. No caminho tenso e difícil da coleta de vestígios, K. vai (re)conhecendo a
filha, reencontrando-a e recuperando-a, o que parece compensador, por um lado,
pois a perda da filha é substituída pelo conhecimento de sua identidade, a revelação
de quem ela era. Por outro lado, é trágico, porque o perdedor não encontra “o
objeto” perdido, o pai não pode reaver a filha idealizada, ou a que um dia ela foi na
relação pai e filha que ele guarda na memória. Esse objeto só retorna transfigurado,
uma nova versão do que se perdeu. Ele perde a filha construída por ele, juntados os
fragmentos dessa antiga relação, que é a que o alimenta em sua busca,
originalmente, porém recupera outra filha, a que ele não conhecia.
Na visita que fez ao pai do marido de sua filha, K. encontrou também uma
pista da sua luta. Nesse fragmento, em que um homem simples, em linguagem
simples (e bonita) relembra o filho, arrimo da família, primeiro a ter diploma na
família, orgulho de todos, inclusive dos vizinhos, que explica os efeitos econômicos,
morais e sociais do arbítrio nos familiares das vítimas, encontramos o militante
Kucinski revisitando os sonhos da juventude, e a figura do homem do interior,
simples, símbolo do “povo” pelo qual eles lutaram. Um exemplo claro da exatidão
polissêmica está no título desse fragmento: “Os desamparados”. São vários: são os
pais (a família), é a comunidade; são os amigos, é o “povo”. Não podemos desprezar
a força semântica do título, que traduz a condição da população brasileira durante a
ditadura civil-militar (se pensarmos no coletivo) e a dos parentes das vítimas (se
pensarmos no individual).
A voz do senhor desamparado é a voz daqueles que, colateralmente, sofreram
os efeitos da violência da ditadura. Mas é também a voz do povo pobre com quem
os opositores ao regime se alinhavam, vide o anonimato do personagem. Nesse
fragmento, ouvimos, além da voz testemunhal do autor-militante, a do autor-vítima-
colateral, modulando o discurso do velho sogro. Nele, mais uma vez, deparamo-nos
com a mesma dinâmica de contrapontos entre o parágrafo inicial e o final. Vejamos
como começa:
160
O certo quando chega o peso dos anos, é o filho cuidar do pai e da mãe até o último sono e enterrar; os filhos dos filhos repetem e assim sempre.
E como conclui:
[N]ão é certo, os filhos é que deveriam enterrar os pais, e não os pais enterrarem os filhos. Pior que nem isso, nem enterrar podemos. (grifo nosso).
Esse movimento entre contrários, para além de corresponder ao mecanismo
dialético que move o romance, confere ao fragmento (a esse e aos outros) o tom de
independência para que ele(s) seja(m) lido(s) como conto(s). Ainda, tal movimento é
peça importante e essencial para que o motor narrativo funcione, já que é pelas
lembranças do pai sofrido que conhecemos um pouco o marido e, por extensão, a
filha de K. É pelo mesmo processo de lembrança e de tradução que a figura do
filho/marido é trazida à cena. A falta do corpo, da ossada, dos restos para que
possam ser enterrados, consequência do desaparecimento, e tema recorrente
também nos contos de Kucinski, representa o buraco deixado na vida dos familiares,
o que, segundo o mundo simbólico da psicanálise, poderia ser entendido como o
“real”. De acordo com Lacan, “o real é o que sempre volta ao mesmo lugar: o
número ou letra excluídos. Volta ao mesmo lugar onde o sujeito, na medida em que
pensa, a res cogitans ou coisa pensante, não o encontra – isto é, não cruza seu
caminho, já que ele está radicalmente excluído ali. Logo, a repetição envolve o
'impossível de pensar' e o 'impossível de dizer'.”403 Essas recorrências temáticas
frisam a impotência de um retorno ao real, da ir(real)idade do desaparecimento, do
vazio indizível. Nas palavras de Salinas Fortes, “este real que parece um delírio
circular, ele também. Pois não é que a coincidência repetida me roubou a palavra,
comeu a fala, cortou a língua?”404
Repara-se aí, em Os desamparados, a confirmação do romance como arte
política, a exemplo do conceito de política estética de Jacques Rancière, segundo 403 FINK, Bruce. “Prefácio” e “A causa real da repetição”. In: FELDSTEIN, Richard (org.) Para ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 241. 404 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero, 1988, p. 103.
161
quem a ideia de um reino autônomo da experiência estética tem no seu centro a
heterogeneidade que é o material que retira da vida. Sendo assim, é possível arriscar
o argumento de que K. pode ser definido pelo mesmo paradoxo que se encontra na
fundação do regime estético: como arte que se define por sua identidade com a não-
arte. Ou: como ficção que é também testemunho.
Vê-se que os inventários são possíveis somente a partir de rastros que
(re)lembrem quem, no caso, desapareceu. Diz Pierre Nora que surgem da
necessidade do indivíduo contemporâneo de identificação dos “lugares da memória”.
Esses lugares são formados por momentos híbridos, pela mistura de história e
memória, devido à impossibilidade de se ter somente memória, sendo necessário
saber a origem, o nascimento, uma referência pela qual se possa focalizar o
passado. Por política de preservação da história entende-se o espaço como locus
importante na criação de uma memória coletiva, que identifica grupos sociais
importantes na formação da identidade nacional. Segundo Nora, os lugares da
memória são meios de acesso a uma memória que não é só memória, é história
também, pois está reconstruída através dos rastros – uma memória reivindicada e
não espontânea. Essa memória é construída para o grupo pela história, para que
este possa encontrar naquela elementos que legitimem sua ação política no
presente: “O que nós chamamos de memória, é de fato, a constituição gigantesca e
vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório
insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de lembrar".
E qual o local da memória destinado à filha de K. e a outros poucos
desaparecidos? A “Vila Redentora”, um loteamento, na Baixada Fluminense405, ainda
não construído, onde as 47 ruas sem asfalto receberam o nome de 47
desaparecidos, conforme o projeto de lei de um vereador de esquerda. O espantoso
é que, até na homenagem, os desaparecidos foram engolidos pela ditadura. Ironia,
essa figura de linguagem, em raros momentos emerge no romance. Um desses é
nesse fragmento, onde Kucinski ironiza o local escolhido para “homenagear” os
desaparecidos, demonstrando, com esse jogo dos nomes, como a força da “ditadura”
continua presente e atuante no propósito de escamotear os rastros da memória. Se, 405 A rua Ana Rosa Kucinski Silva fica localizada no Rio de Janeiro, em Senador Camará.
162
conforme Nora, “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema
onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora", o local reservado à memória dos militantes pela sociedade é o do
esquecimento até o apagamento dos restos, visto que as placas apenas com nome,
sem datas de nascimento ou morte, foram fincadas numa esquina bem erma do
Estado do Rio.
No caminho de volta para casa, K. percebe as grandes construções da cidade
batizadas com os nomes dos generais dessa e das outras ditaduras, e pensa no
estranho costume que os brasileiros têm “de homenagear bandidos, torturadores e
golpistas como se fossem heróis ou benfeitores da humanidade”406.
Nesses fragmentos da busca, o narrador, em terceira pessoa, está colado no
personagem e percebe-se uma relação íntima e de profunda sensibilidade entre os
dois, narrador e personagem. Ao nos contar a história de K., o narrador coloca em
palavras as angústias, os temores, as dores desse pai sofrido. Curioso perceber que
a notação ficcional fica por conta do que é verdadeiro, de tão kafkiana a situação. A
ilogicidade e o absurdo não são construídos ou insuflados para efeito narrativo, são
apenas relatados. A inversão nos lembra a força profética dos romances de Kafka,
que, na visão de Milan Kundera, na verdade, apenas revelam uma possibilidade
extrema “de existência (do homem no seu mundo) e assim nos fazem ver o que
somos e de que somos capazes”407. Nesses fragmentos em que narrador e autor
estão unidos e compartilham as emoções e os sofrimentos, a vitalidade estética do
romance é percebida com toda clareza.
Antes de prosseguirmos na análise, parece-nos pertinente tentar entender a
importância e a relevância da escolha estilística do autor ao recuperar, no romance,
o conto como peça estrutural, isto é, como unidade independente e parte do todo.
Segundo Edgard Allan Poe, pioneiro em estabelecer os princípios do gênero, a
narrativa do conto deveria ser enxuta, com palavras exatas e fechada em si mesmo.
Outro fundamento estabelecido por Poe sobre o conto é relativo ao tamanho da
406 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 158. 407 KUNDERA, Milan. A arte do romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ed., 1986, p. 46.
163
narrativa. Para ele, um conto bom deve ser lido de uma assentada, pois somente
assim se pode manter a unidade de impressão sem que os acontecimentos do
mundo exterior atrapalhem a leitura. A brevidade do conto também é importante
para Jorge Luis Borges, que acrescenta que os “elementos indispensáveis [dos
contos] são a economia e uma formulação nítida de começo, desenvolvimento e
fim”408. Mas foi Tchekhov que, anos mais tarde, estabeleceu novos conceitos para o
conto que revolucionaram o gênero. Para Tchekhov, a história de um conto não
precisa ter início, meio e fim; apenas parte dela pode ser contada. Tchekhov, em
uma carta a um jovem escritor, descreve a sua filosofia composicional: “ausência de
palavrório político-sócio-econômico, objetividade total, brevidade extrema,
veracidade nas descrições, sinceridade, detalhes minúsculos, originalidade e ousadia
e recusa ao lugar-comum”409. Segundo Cortázar, “os contos de Tchekhov propõem
uma ruptura do cotidiano que vai muito além do tema; sua significação é
determinada por algo que está antes e depois do tema. E é então que o conto tem
de nascer ponte, tem de nascer passagem, tem de dar o salto que projete a
significação inicial, descoberta pelo autor, a esse extremo mais passivo e menos
vigilante e, muitas vezes, até indiferente, que chamamos leitor”410. Para Cortázar, a
brevidade, a síntese dos contos os transforma em máquinas literárias de produzir
interesse. O escritor diz ainda que o romance não tem a mesma força do conto por
não poder ser lido de uma assentada só. Por causa disso, segundo ele, o romance
“se vê privado da imensa força que deriva da totalidade”411.
Apoiada nessas observações para pensar nos efeitos dessa característica
formal do romance de Kucinski (a saber: a de ser composto por contos412), podemos
inferir que a força da totalidade do conto, somada ao interesse gerado pela
significação que excede a ele, operando em dois sentidos – autônomo e
interdependente –, resulta na potencialização da força narrativa, tanto a de cada
408 SILVA, Lucilene Conceição Silviera. “É isto um conto? Tradição e inovação no contista Jorge Luis Borges”. Porto Alegre: Cadernos do IL. No. 43, dezembro de 2011, pp. 211-221. 409 Idem. 410 CORTÁRZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 157. Apud SILVA, Lucilene Conceição Silviera. Op. cit. 411 Idem, p. 121. 412 Como curiosidade, gostaria de apontar que O processo, de Kafka, é também um romance desmontável (usando um termo de Graciliano Ramos).
164
fragmento, quanto a do romance como um todo. Como máquina de gerar interesse,
o conto, ao ser incorporado ao romance, aumenta a relevância de cada pedaço,
fixando a atenção do leitor, e levando-o a uma leitura mais cuidadosa e concentrada.
Essa estratégia de composição textual indica que o autor quer se inter-relacionar
com a resposta do leitor413, impondo-lhe um tempo e um modo de leitura. E, num
romance como K., em que a escrita causa dor, a brevidade da narrativa permite que
o leitor tome fôlego entre as pausas proporcionadas pelo intervalo da leitura. A
fórmula de Kucinski para narrar a saga de K., em pedaços concisos e precisamente
talhados para se encaixarem no prolongamento do romance, consegue o equilíbrio
entre sintonia e focalização414.
Prosseguindo.
Ele roubava livros.415
Assim começa o fragmento “Livros e expropriação”. Começa com uma frase
no pretérito imperfeito do indicativo e continua no mesmo tempo verbal, imprimindo
um ar de fantasia, de “faz-de-conta”, dobrando o tom ficcional da narrativa. A
primeira parte, a que descreve Ele416, suas ações, seus gostos e suas preferências, é
composta por imperfeitos do indicativo e alguns do subjuntivo. A beleza melancólica
desse tempo verbal, nos dois modos, define o ritmo do conto, relaciona os elos
objetivos e subjetivos do personagem, demarca a duração das atividades de sua vida
(e da sua vida) e compõe o cenário de irrealidade da história, ajudado pelo
titubeante subjuntivo e suas apreciações difusas. A aura poética desse “Bakhunin
inimigo da propriedade privada”, esse “revolucionário que estava armazenando
munição para o grande assalto ao poder”, é sacramentada pela revelação de suas
paixões: “Sua paixão pela revolução só tinha paralelo no amor aos livros”. Nessa
poética da exatidão, tomando emprestado um termo de Ítalo Calvino, Kucinski, em
um miniconto, descreve uma vida de paixões, desejos e sonhos, usando o
413 ECO, Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 63. 414 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 66. 415 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 55. 416 Vejo uma conexão, talvez uma homenagem ao personagem Ele de Em câmera lenta, romance de Renato Tapajós. Ou talvez Ele seja a representação dos militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura.
165
alongamento verbal do imperfeito. E, pelo preciso uso da linguagem, sintetiza
idealismos evocando o romantismo da educação como arma e dos livros como
revolução. A virada é marcada pela mudança temporal que substitui o tom irreal pelo
tangível, ditado pelo pretérito perfeito. A mudança do tempo verbal redimensiona a
“realidade” do cenário das duas outras partes da história, que se passam uma no dia
13 de dezembro de 1968, dia em que o AI-5 foi decretado, e outra, algum tempo
depois, quando Ele foi “capturado e desaparecido” pelos militares. A oposição entre
os tempos verbais define claramente o tom de cada parte do conto – a primeira, a
do sonho, a da incerteza dos imperfeitos; a segunda, a do pesadelo, a da certeza do
perfeito417 –, fundamentando o contexto histórico da história.
Não obstante, existe outra camada textual em que uma contradição diferente
está em movimento: a dialética. Vejamos: o narrador começa afirmando que ele
roubava livros, depois descreve seu gosto literário, elenca autores, afirma que a
maioria dos livros roubados são lidos, registra o fato de ele conhecer todas as
livrarias e os sebos da cidade, revela que ele não era pobre nem rico, que trabalhava
e estudava, para declarar que ele “podia pagar pelos livros, mas os roubava por
princípio. Expropriava-os em nome da revolução socialista”418.
Também conhecia as livrarias semiclandestinas do Partidão, do Partido Socialista e das duas alas do trotskismo, a Lambertista e a da Quarta Internacional. Mas dessas não expropriava. Era um revolucionário. Não um ladrão.419 (grifo nosso)
Enfim, ele roubava livros, mas não era um ladrão, porque o fazia por
princípios, por ser um revolucionário. Ouvimos claramente, aqui, a voz do autor-
professor-militante desconstruindo, com cuidado, a negação embutida na falsa
afirmação de que ele roubava livros. Falsa, porque ele “era um revolucionário. Não
417 Vale a pena esclarecer a noção de “perfeito” no âmbito do estudo dos verbos para demarcar a diferença de tom das partes do conto. Perfeito não designa ausência de defeitos, de falhas. Perfeito é o mesmo que concluído, terminado, feito por inteiro (per-feito, com o prefixo trazendo ao radical a noção de completude, de círculo fechado, como em perímetro, periferia, perscrutar, perfazer, performance etc.) Por extensão, o que é concluído, feito por completo, provavelmente não terá falhas ou erros. Por oposição, o imperfeito refere-se ao que não foi concluído, foi interrompido, interceptado, impedido de se completar, portanto contém falhas. 418 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 56. 419 Idem.
166
um ladrão”. E aqui, nesse fragmento, percebe-se claramente o movimento tenso de
forças entre literatura e testemunho. São claras as diferenças entre as duas camadas
textuais: em primeiro plano, está a poética de uma vida revolucionária organizada
pela contradição verbal; a outra, o que a move é a mecânica destrutiva da dialética.
Em outras palavras, nas duas camadas, as contradições sutis e/ou evidentes estão
em ação no texto, contudo, elas têm funções e finalidades diferentes. A camada
verbal organiza e demarca a camada textual poética para contar a história d’Ele; já a
camada dialética põe em movimento a oposição semântica entre roubar e expropriar
para destruir a noção de que quem expropriava, roubava, portanto, era ladrão.
Trata-se de um esforço para recuperar a memória daqueles que se envolveram em
expropriações para financiar a luta.
Ele roubava livros. (...) Queria demarcar uma posse? Não. Não faz sentido. Talvez soubesse, isso sim, e desde sempre, que os livros seriam os únicos vestígios de sua vocação revolucionária, pequenas lápides de um túmulo até hoje inexistente.420
A forma, aqui, obedece ao compromisso de Kucinski com a precisão. Cada
fragmento tem início, meio e fim, que corresponde e retorna ao início, cumprindo um
percurso circular e ordenado. Os excessos e extrapolações são possíveis apenas nos
significados que cumprem com o propósito da prática textual explícita para provocar
reflexão. Seguindo essa dinâmica, a pergunta do excerto acima refere-se à afirmação
inicial. Sua resposta, contudo, excede em significado e transborda para o texto,
inundando-o e aderindo a ele. O texto se figura, então, como lápide dos
desaparecidos. Por outras palavras, o autor ele mesmo, como se vê, indica a vocação
de seu romance para inscrição da existência de sua irmã, vocação de rastro, de ser a
lápide a que ela não teve direito.
420 Ibidem, p. 57.
167
Os personagens de K., homens e mulheres comuns, todos com alguma
relação direta com a ditadura civil-militar, ou conexão visível ou invisível com o
autor, são retratados numa luz generosa, mesmo os “cachorros” informantes, as
amantes de torturadores, os torturadores, os generais destituídos. Por mais torpe
que sejam suas funções ou condutas, têm sempre características que os humanizam,
que os fazem gente comum, como a gente, mas, ao mesmo tempo, e, em
contrapartida, são a face do horror. Travamos conhecimento com esses personagens
exercendo funções banais, comezinhas, tendo dúvidas, confessando, sendo
vulneráveis, ou arrogantes, em seus movimentos contínuos ordinários. Mas é na
pequenez dos atos encenados que ficamos conhecendo a vastidão de destruição e
crueldade de que foram e são capazes.
Como nos fragmentos em que o delegado Sérgio Paranhos Fleury é
protagonista direto ou indireto. Em “Dois informes”, um espião do poder infiltrado na
ALN participa da primeira reunião do comando, no Rio de Janeiro, depois do
assassinato de Carlos Marighella. O “cachorro”, ex-militante “virado” durante uma
sessão de tortura, é o provável responsável pelo engano que levou ao “justiçamento”
do companheiro Márcio, por suspeita de delação. Na intricada dinâmica do mosaico
montado por Kucinski, os fragmentos em que os personagens são ligados ao arbítrio
apresentam a história por um outro ângulo. Nesse, na reunião em que ficou decidido
pelo assassinato do delator, Ramirez – o autor da mensagem para Klemente – estava
presente. Assim como o próprio Márcio, o justiçado. Apesar de o tom ficcional ser
mais acentuado, a reprodução de um informe deixa o texto em suspenso e funciona
como contraponto, injetando o efeito de realidade. Pelo desabafo do dedo-duro
mediado por um narrador, cujo discurso se mistura ao dele, conhecemos um
personagem despolitizado, que entrou na luta armada por engano, e da qual quer
sair vivo, sobreviver a qualquer preço. Bernardo Kucinski delineia os tipos que
compunham o quadro de militantes e de seus algozes. Com a coragem de quem
escrevia cartas ácidas/críticas para o presidente, não se intimida em rasgar o manto
romântico que encobre o “personagem-militante”. Não é à toa que, em vez de
demonizar o alcaguete, apresenta-o como um aventureiro, despolitizado, egoísta e
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covarde. Como meio de “desemocionalizar”421 a história, não justifica ou critica as
ações do traidor, passa essa tarefa para o leitor.
Veja bem, não estou defendendo, não estou justificando, de jeito nenhum. Mas a senhora pensa que esses comunistas eram todos uns santos? Pois fique sabendo que ele [Fleury] tinha informantes em todos esses grupos, não era polícia infiltrada, era comunista mesmo traindo comunista, eram os cachorros, ele chamava de cachorros.422
Em “Paixão e compaixão”, ouvimos a confissão da amante do delegado Fleury
para uma mãe desesperada que recorrera a ela, a fim de saber do paradeiro do filho.
O inusitado arranjo de duas mulheres desconhecidas, com antagônicos interesses,
unidas por uma confissão423, causa um estranhamento, que é compartilhado com o
leitor. Afinal, a história da amante do Fleury, que se envolveu com ele, a princípio,
para salvar o irmão, e acabou se apaixonando, não comove, incomoda. Incomoda
mais ainda “um homem que todos dizem que é um monstro”424 ser apresentado
como alguém capaz de sentir e inspirar afeto. Essa lucidez incômoda de Kucinski
evita a armadilha de maniqueísmos fáceis e prováveis, visto que ele tem na ponta
dos dedos personagens que não provocam nenhuma empatia e que suscitam
sentimentos polarizados. Porém, evidencia as forças humanas por trás do horror
institucionalizado. Kucinski sublinha que a tortura não pode ser considerada
desumana, monstruosa, porque é uma prática que se “inscreve no laço social”,
concebendo que existia (e ainda existe) porque a “sociedade, explícita ou
implicitamente, admit[iu]”425.
Uma das virtudes do romance está justamente, como mencionado, no poder
de evidenciar as forças humanas por trás do horror institucionalizado. Tal e qual os
militares, que extirparam a identidade dos opositores e os rebatizaram com o nome 421 No sentido de retirar a carga dramática de. 422 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 107. 423 Segundo Lacan, a confissão voluntária para um estranho é um comportamento típico do neurótico traumático. 424 Idem, p. 102. 425 KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. Disponível em: https://www.scribd.com/doc/224571525/Tortura-e-Sintoma-Social-Maira-Rita-Kehl. Acesso em 15 de novembro de 2014.
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vazio de personalidade – como terroristas –, Kucinski, no caminho inverso,
personaliza o terror institucionalizado, deixando claro que existem culpados, que têm
rosto, nome, sobrenome, identidade, laços familiares e sociais. Kucinski poda
quaisquer idealizações e justificativas, exibindo que o horror é um feito “humano”, e
não de “instituições”.
As referências às vítimas de Fleury, que entrecortam o relato em primeira
pessoa e em tom de lamento e autopiedade, desautomatizam no leitor os botões da
empatia e da compreensão.
Ele odiava padre mais do que odiava comunista, acredita? O ódio a padre era pessoal, era dele. O ódio de comunista era diferente, tinham inculcado nele, foi assim que eu entendi, era missão, ele tinha que acabar com eles de qualquer jeito, era um acordo, para se livrar das outras acusações, era uma chantagem dos militares em cima dele. Veja bem, não estou defendendo, não estou justificando de jeito nenhum.426
Pelo texto rápido e sucinto, entretanto incessantemente exato, Kucinski toca
nos pontos nevrálgicos da ditadura e de seus personagens, sem ser condescendente
ou complacente. O autor exibe o que movia um lado e o outro: um lutava por
ideologia, inocência, romantismo e aventura; o outro, por poder, dinheiro e
ignomínia. A passagem citada é mais um exemplo do olhar arguto e da técnica
apurada do escritor. O leitor fica conhecendo alguns dos motivos427 que levaram
Fleury a torturar, matar e esquartejar: autopreservação e ódio. E nada parece
escapar ao escrutínio do escritor. À vista disso, não poderia deixar de aludir a um
dos eventos mais terríveis (se é que cabe qualquer medida de comparação entre os
casos) do carrasco, o do Frei Tito428. Uma homenagem ao padre barbaramente
426 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 107. 427 Os outros o autor vai expondo ao longo do texto, conforme veremos um pouco mais adiante. 428 1947 – Vietnam 1954: R.D.V É melhor morrer do que perder a vida corda (suicídio) 60’’. opção vizinha tortura prolongada – opção Bacuri 1918 – 1920 – 1974.
À tortura Frei Tito sucumbiu, como vemos no seu poema, transcrito acima. Não de imediato enquanto sofria nas garras do capitão Albernaz e de seu grupo do DOPS paulista liderado por Sérgio
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torturado e empurrado ao suicídio pelo delegado, e um lembrete de como a tortura
não libera o corpo do torturado.
A inclinação e o gosto pela torpeza não escapam à pena perfurante do
escritor. Em “A abertura”, Kucinski enfatiza como o processo sofria resistência, não
por ideologia, mas por ambição de poder. Um autocentrado, narcisista, arrogante e
vil Fleury é apresentado por ele mesmo, por suas palavras, por suas ações – que
correspondem e são o avesso das que sofreram os outros personagens –, e por sua
resistência em aceitar a mudança do vetor político. O universo de Fleury pintado por
Kucinski, por mais caricato que pareça, ainda é perfeitamente possível, ao passo
que, se delineado com toda a definição, desembocaria na inverossimilhança. A
irrealidade da realidade na qual se inspira exige um esforço contínuo de constrição
do autor – técnica refinada certamente pelos anos no jornalismo –, para impedir que
Paranhos Fleury. Não. Naquele momento resistiu. Negou-se a assinar um documento comprovando que os dominicanos haviam pego em amas. Preferiu a morte a prejudicar seus irmãos da batina. No limite de suas forças, cortou com uma gilete a artéria do braço esquerdo. Foi socorrido pelos militares, que queriam que ele sobrevivesse para “continuar sangrando até que a dor e o pânico atingissem o âmago de sua alma”. Foi o que aconteceu. No exílio, em Lyon, quatro anos depois, fadado à versão prolongada da tortura, aquela que o fez “experimentar o horror de si mesmo”, mais uma vez escolheu pela morte. “É melhor morrer do que perder a vida”, escrevera dois meses antes de se suicidar nas páginas de um livro emprestado pelo amigo, Frei Xavier Plassat**, em junho de 1974. Temia ser pego e torturado novamente e terminar nas mãos dos seus verdugos, do mesmo modo que o companheiro Bacuri***. Frei Tito, como bem descreveu um outro frade, frei Betto, teve o seu universo psíquico destruído, a paz roubada, “inocularam em sua subjetividade o veneno do medo e da angústia, profanaram seus símbolos religiosos, fizeram-no órfão da própria loucura. Viraram-no pelo avesso”. Torturaram-no de forma cruel e prolongada. ** Frei Xavier Plassat formou-se em ciências políticas em 1979 e no ano seguinte ingressou na ordem dominicana. Tornou-se amigo íntimo de Frei Tito durante seu exílio na França no convento dominicano de L’Arbresle. Hoje, vive numa casa simples em Araguaína, Tocantins, às margens da Amazônia. Seu trabalho na Comissão Pastoral da Terra e na luta contra o trabalho escravo no Brasil rendeu-lhe o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 2008. *** Nome de guerra de Eduardo Collen Leite, mineiro de Campo Belo, que se mudou jovem com a família para São Paulo, onde foi estudante. Integrou a Polop, depois a VPR (1968) e, em 1969, fundou a Rede (Resistência Democrática). Por fim, ingressou na ALN. Bacuri participara de dezenas de ações armadas, organizara dois sequestros e planejava mais um, o do embaixador inglês – sobre este assunto, ver Jacob Gorender, Combate nas Trevas, p. 218. Tornara-se uma lenda nos subterrâneos da clandestinidade. Assustava a “tigrada” ameaçando-a pelo telefone. Foi preso no Rio pela equipe do delegado Sérgio Fleury, do esquadrão da morte, e conduzido a um centro clandestino de torturas da Marinha, uma casa em final de construção em São Conrado na Zona Sul carioca. Foi interrogado e torturado por 109 dias, passando por: Cenimar/RJ, DOI-Codi/RJ, QG do I Exército/RJ, 41a. DP-SP, DOI-Codi/SP e Deops/SP, entre outros. Um dia, depois de ter sua “fuga” noticiada nos jornais e devidamente mostrada a ele por um oficial, apesar da vigília dos quase 50 presos políticos dos Deops, foi retirado do X-1, a cela do fundão, e nunca mais foi visto vivo. Eduardo, o Bacuri, tinha 25 anos e seu corpo foi abandonado no cemitério de Areia Branca, em Santos, com dois tiros no peito, um na têmpora e outro no olho direito. Em Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Dos Filhos deste solo, pp. 117 e 118 e Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada, pp. 300, 301 e 302.
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o tom do romance sofra com os excessos de “realidade” daquilo que, sem termos um
termo melhor para definir, chamamos de “real”. Constrição máxima percebida na
escolha de tematização da ausência.
Parto da ideia de que a ausência seria o que Lacan chama de Real – esse
impossível, que está sempre exterior à cadeia de significantes, à linguagem,
indomável, irrecuperável e, acima de tudo, inevitável. O real é irracional, não
concorda com a realidade, é o indizível, aquilo que escapa à representação e resiste
à simbolização. Não obstante o real não engana e “é imperativo sobre a verdade”429.
“O real é o resto inassimilável”430, que é repetidamente revisto e reestruturado. O
real sempre volta ao mesmo lugar. “O encontro com o real não está situado no nível
do pensamento, mas no nível onde a 'fala oracular' produz não-senso, aquilo que
não pode ser pensamento"431.
E o exemplo desse real impossível, repetitivo, pode ser visto, ou melhor,
sentido – já que ausente – no fragmento “A terapia”. No encontro entre a faxineira
da casa da morte e uma psicóloga do INSS, anos após o fechamento do imóvel, o
leitor vivencia os efeitos continuados desse “Real” traumático na sociedade, dado
que as duas mulheres foram afetadas em graus diferentes de intensidade, não
obstante prejudicadas, mesmo depois de a ditadura ter sido terminada. A fórmula de
reunir desconhecidos para uma sessão purgatória serve como distensão do elo
trágico invisível que os une. Mais precisamente, que nos une. Por essas reuniões
improváveis e imprevistas, Kucinski (re)lembra que a vileza da ditadura atingiu a
todos, e não apenas a parcela que se opunha a ela – vide os reflexos continuados e
sentidos até os dias de hoje. Essa é uma maneira, também, de exibir o “mal de
Alzheimer” que, na mesma proporção, acomete a todos. E contra o mal do trauma e
do esquecimento, a “cura” pela narração, como vemos no conselho dado pela
terapeuta para Jesuína:
429 Expressão do psicólogo e psicanalista Geraldo Natanael. 430 Idem. 431 FINK, Bruce. “Prefácio” e “A causa real da repetição”. In: FELDSTEIN, Richard (org.) Para ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 241-242.
172
Jesuína, você não precisa falar tudo de uma vez, e nem falar o que não quiser, mas, para você sarar, tem que encarar o passado, tem que botar pra fora as coisas que te incomodam, que provocam as alucinações, os sangramentos; isso tem a ver com os presos daquela casa?432
Mostra-se aí, mais uma vez, apesar da espessa camada ficcional que encobre
esse fragmento, a constante tensão entre testemunho e ficção em voga no romance.
Partindo de uma leitura alegórica do excerto, podemos afirmar que as alucinações e
os sangramentos são o legado de violência e sangue deixado pela ditadura, e que,
de certa forma, foi por ela naturalizado na sociedade, a qual nunca discutiu ou
discute o ocorrido nos diversos (e repetidos) períodos violentos de nossa História.
A violência e a brutalidade dão o contorno ao conto, mas não comparecem
diretamente, são vislumbradas nos ganchos de pendurar carne igual ao dos
açougues, na mesa grande e nas facas, iguais à de açougueiro; nos serrotes, no
martelo, nos “pedaços de gente. Braços e pernas cortadas. Sangue, muito sangue”433
mencionados. Mas não vemos o ato, os braços e as pernas sendo cortados, ou como
são usados os instrumentos cortantes, ou o que acontece com os presos ao serem
levados “lá para baixo”434, ou o que tem dentro dos sacos de lona bem amarrados
que são colocados dentro da caminhonete pelos PMs mineiros – que estão sempre
bêbados435 – e levados para longe. Isto é, a violência também é simbolizada pelos
objetos, pelos restos e pelos rastros.
A ausência da cena da violência, nesse caso, para além de uma escolha ética,
é a (re)afirmação da recusa em representar o que não merece ser representado, e
da impossibilidade de se fazer jus, pela linguagem, de tamanho requinte de barbárie.
Kucinski reafirma, nesse fragmento, o fracasso da representação como a via possível
para representar, não o inenarrável, ou o inefável, mas o ignóbil, o irracional. O
fracasso é a incapacidade de representação, a negação da representação, e a
aceitação da ausência como representação. Em consequência, uma narrativa
432 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., pp. 124-125. 433 Idem, p. 129. 434 Ibidem. 435 Esse detalhe sobre o estado mental dos agentes do terror, que é descrito como contínuo, demonstra como a violência atinge a todos, inclusive a quem a perpetra.
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angustiada sobre os restos da cena ausente leva o leitor a imaginar a magnitude da
desumanidade, da barbárie, praticada por Fleury e por sua milícia – o que torna esse
fragmento, a meu ver, o mais violento e difícil do livro.
Depois o Fleury chegou, já de noite. Ele me chamou e perguntou da moça e eu disse que nada, que só falou o nome e depois ficou muda... aí ele mandou me colocarem de volta. A moça parecia uma estátua, estava no mesmo lugar, muda do mesmo jeito. Jesuína de repente emudece. Jesuína, a moça, você falava dessa moça. O Fleury mandou eu descer e ficar com a moça, para ver se ela falava mais alguma coisa. De madrugada chegou o doutor Leonardo. Lá de baixo eu adivinhei que era o médico e avisei baixinho, quando vem o médico é porque vão maltratar, fazer cosia ruim. Logo depois vieram buscar ela. Foi aí que ela de repente meteu um dedo na boca e fez assim como quem mastiga forte e daí a alguns segundos começou a se contorcer. Eles nem tinham aberto a cela, ela caiu de lado gemendo, o rosto horrível de ver e logo depois estava morta. Parecia morta e estava morta mesmo.436
Detalhista e preciso, Bernardo Kucinski não deixaria de fazer referência a Ana
Rosa Kucinski Silva, no provável local437 em que ela teria sido morta. É digna de nota
a tentativa do autor de salvar sua irmã das garras do seu carrasco pela escrita. Via
sinalizada por K. quando ele pretende escrever sobre a tragédia da filha para “se
redimir”438. Redimida igualmente foi Dodora por Kucinski. No conto homônimo, do
livro Você vai voltar para mim, um grupo de cinco amigos se reúne, de tempos em
tempos, para relembrar a época de faculdade e de militância. Entre risos e profunda
nostalgia, lembram-se de cada nome, episódio e perdas. Nesses encontros, o
narrador, que não conhece todas as histórias, porque havia ficado poucas semanas
na residência estudantil, ouve falar de Dodora, sempre lembrada pela firmeza de
suas convicções e coragem das ações. “Ela é que tinha colhões”, brincavam, por ser
436 Ibidem, p. 127. 437 Supõe-se que mais de 20 pessoas passaram pela casa: Aluisio Palhano, Antônio Joaquim de Souza Machado, Ana Rosa Kucinski Silva, Carlos Soares Alberto de Freitas, Celso Gilberto de Oliveira, David Capistrano Costa, Gerson Theodoro de Oliveira, Heleny Ferreira Telles Guariba, Issami Okamo, Ivan Mota Dias, José Raimundo Costa, José Roman, Mariano Joaquim da Silva, Marilena Villas Boas, Maurício Guilherme da Silveira, Paulo de Tarso Celestino, Rubens Beirodt Paiva, Thomaz Antônio Meireles Neto, Victor Luiz Papandreu, Walter de Souza Ribeiro, Walter Ribeiro Novaes e Wilson Silva. 438 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 132.
174
ela a única mulher que participava das ações armadas. Invariavelmente, o narrador
percebe que todos ficavam calados e tristes, o que o deixa muito curioso:
Por que de repente se fechavam? O que de tão terrível acontecera para provocar esse silêncio? Será que essa Dodora havia sido torturada, talvez estuprada ou esquartejada? Será que foi desaparecida pela ditadura?439
Nas interrogações do narrador, Kucinski concilia, observa e justifica a história
de Dodora, as práticas do Estado e a posição da sociedade. Como? Usando da
artimanha de dar a conhecer o destino da estudante de filosofia através dos
questionamentos do narrador, estimulando o leitor a compartilhar das mesmas
dúvidas e a acumular outras no caminho, uma vez que, se essas são dúvidas e não
revelações, logo havia prévio conhecimento do que acontecia, ou ao menos
suspeitas. E se havia um ou outro, por que indagações em vez de ações? Às dúvidas
são somadas as frases secas e abruptas que empurram a narrativa e o leitor para o
precipício do desespero, o qual leva Dodora a se entregar e a entregar seus
companheiros voluntariamente ao avistar a polícia:
A ação em si fora de pouco risco. Dodora e alguns outros estavam pichando Abaixo a Ditadura, quando dois carros trombaram na esquina próxima e um deles incendiou-se. Obviamente veio polícia, corpo de bombeiros, ambulância. Deu a maior confusão. Dodora podia simplesmente ter se mandado, como fizeram os outros; a polícia estava ligada no desastre, não nas pichações. Mas, em vez de cair fora, ela se enfiou num dos carros da polícia e ali ficou. Os policiais acharam que ela era uma doida qualquer e mandaram que saísse. Mas ela se recusou a deixar o carro. Disse que tinha algo muito importante para revelar.440
O paradoxo da militante que “tinha colhões” sucumbindo em uma ação “de
pouco risco” não aparece como incoerência, mas como fenômeno de estranhamento
e humanização do personagem “terrorista”. Uma terrorista que, em vez de tocar o
terror, aterroriza-se ao avistar as forças da “lei”. Promove-se uma sutil troca de
papéis no imaginário do leitor. A personagem Dodora passa a ser vista como deve
439 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 83. 440 Idem, p. 84.
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ser: uma moça de 25 anos, idealista, que luta contra um governo de exceção. E o
Estado como aquele que reprime, de forma violenta e brutal, quem ousa se rebelar
contra ele.
Há, ainda, uma crítica à luta armada nesse gesto de rendição: a certeza da
nulidade das ações (nesse caso representadas pela pichação de um muro) e da
fatalidade da captura e da prisão.
O Alberto acha que foi um caso extremo de síndrome da tortura, comum na época. Disse que os relatos que chegavam à residência estudantil, e talvez outros da época de seu pai [vinha de uma família de velhos comunistas], devem ter criado nela tamanho pavor, que Dodora precisou se antecipar e entregar tudo voluntariamente, eliminando, com isso, a necessidade de ser torturada.441
Outra fatalidade é apontada: a da revelação. Senão voluntária, pela força.
Essa é melhor descrita por Luiz Roberto Salinas Fortes em Retrato calado:
(...) e me mostra a fotografia daquela outra amiga que acharam entre minhas coisas e que, durante a sessão relâmpago dos raios doloridos, dos arrepios descarregados dos fios grudados nos pés, durante a agonia vomitara eu seu nome e a informação. Sinistra colaboração, covardia, por que não resisti como o vietcong?442
É possível perceber como o autor, por meio do narrador, absolve Dodora443 e,
por extensão, todos que não suportaram o suplício e, após sucumbirem, acabaram
“colaborando” com o regime. E, por meio do conto, a salva de toda a sevícia e dor
pela qual passou, em sua versão de excessos, na “realidade”, no local impossível do
441 Idem, p. 85. 442 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. loc.cit., pp. 49-50. 443 Maria Auxiliadora Lara Barcelos foi integrante da organização Var-Palmares. Presa, torturada, condenada foi banida do país para o Chile, em janeiro de 1971. Do Chile, foi para o exílio na Alemanha, onde se suicidou em 1976. Por causa das sequelas deixadas pela tortura, Dodora havia sido internada algumas vezes por problemas psíquicos. Ela cursava psicologia e medicina na Universidade livre de Berlim.
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“Real”. Assim como salva sua irmã, dando a ela uma cápsula da misericórdia, uma
cápsula com veneno.
No dia que prenderam os dominicanos ele festejou. (...) Aquela noite ele chegou tarde e me pegou que nem um touro. Foi a única vez esse tempo todo que voltou aquele medo do primeiro dia. Foi uma noite difícil. Tive palpitação, sabe? Uma hora eu pensei que eu é que estava sendo torturada, esganada, não o padre.444
O jouissance da perversão não escapa à observação do escritor. Na descrição
da amante, vemos a relação entre prazer e perversão do torturador. Segundo
Jacques Lacan, é a Psicanálise que nos põe “na perspectiva do Juízo Final, quero
dizer, de escolher como padrão de revisão ética, à qual a Psicanálise nos leva, a
relação da ação com o desejo que a habita”445. “Isso significa que, ao lado de
eventuais ganhos materiais e de prestígio, o torturador também obtinha ganhos de
natureza libidinal — ele gozava com seu ato. Mesmo sem ser necessariamente um sujeito de estrutura psíquica perversa, o perpetrador auferia gozo na tortura.”446
Essa relação é reforçada pela declaração de Jesuína à terapeuta: “toda vez que ele
vinha também me levava pra cama...” Essa relação “íntima” entre o delegado
torturador e o torturado foi condensada no título do conto, “Você vai voltar para
mim”: “(...) não esqueça que depois você volta pra cá; você volta pra mim – ele
repetiu” 447 . A ameaça velada poderia ter sido proferida por um(a) amante
abandonado(a) remoído(a) pela dor da perda, entretanto, é feita pelo delegado para 444 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 106. 445 Apud FILHO, Celso Ramos. A tortura aos presos políticos durante a ditadura militar brasileira: uma abordagem psicanalítica. Tese de doutorado. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp093928.pdf. Acesso em 15 de novembro de 2014. 446 Idem. Sobre perversão e gozo em Freud e Lacan, ver: MELLO, Carlos Antonio Andrade; COIMBRA, Maria Lúcia de Salvo; LISBOA, Maria Lúcia Arrojado; VILELA, Maria Luiza Duarte; ANCHIETA, Stela Maris. “Perversão, pulsão, objeto e gozo”. Belo Horizonte: Reverso, no. 51, agosto, 2004. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0102-73952004000100006&script=sci_arttext. Acesso em 15 de novembro de 2014. KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. Disponível em: https://www.scribd.com/doc/224571525/Tortura-e-Sintoma-Social-Maira-Rita-Kehl. Acesso em 15 de novembro de 2014. MARTINHO, Maria Helena Coelho. Perversão: um fazer gozar. Tese de doutoramento em Psicologia, pp. 133-159. Disponível em: http://www.pgpsa.uerj.br/Teses/2011/Tese%20M_Helena.pdf. Acesso em 15 de novembro de 2014. 447 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 69.
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a prisioneira a caminho de uma audiência na justiça militar, a fim de que ela negue
as acusações de tortura. Negue as sete vezes que foi pendurada. Sete vezes, o
bastante para que o juiz auditor suspendesse a sessão e convocasse todos à sua
sala:
No recesso do gabinete, ela disse tudo. Não conseguiu parar de falar. Mostrou os hematomas nos braços e nos tornozelos, falou das palmadas, dos choques nos seios e na vagina, da ameaça de estupro, da simulação de fuzilamento, dos afogamentos, dos onze dias na solitária.448
Depois de alguma negociação, a moça, que ameaçava se matar caso fosse
enviada de volta ao DOPS, é encaminhada para o presídio feminino. Todavia, apesar
do alvará concedido pelo juiz auditor, ela vê o mesmo portão através do qual haviam
saído para o tribunal:
O camburão para, a porta se abre. O torturador diz, sorrindo: - Eu disse que você ia voltar pra mim, não disse? Vem, benzinho, vamos brincar um pouco. Ele a agarra pelas canelas e a arrasta para fora. Os outros em volta riem449.
Nesse conto, que complementa os de K. sobre o torturador, fica mais clara a
relação de posse, de domínio, o prazer e a perversão do torturador para com as suas
vítimas. A emblemática frase, que nomeia também o livro onde o conto está
publicado, sintetiza a sujeição do corpo ao gozo do outro. Assim como revela a
certeza de poder, de ser “um pode-tudo”450, como o definiu a amante. Até mesmo
de desafiar uma “ordem” da justiça militar, seguindo o ritmo da dinâmica da
desordem dentro da ordem. Um “pode-tudo” que faz morrer ou deixa viver: “Ela
mesma pediu me matem, me matem. E o filha da puta dizia eu vou matar, sim, mas
quando eu quiser”451. Algo possível e provável antes de as duas instâncias, que
tornavam as prisões “reais” e garantiam (mesmo que fragilmente) a vida do preso,
terem sido cumpridas: a da notícia da prisão veiculada pela imprensa e a instauração
448 Idem, p. 70. 449 Ibidem, p. 71. 450 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit, p. 102. 451 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 70.
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do processo452. O narrador, em contraste com os representantes do Estado (policiais
e juiz), se indigna com a coisificação da moça, com sua condição de objeto de
domínio a que está reduzida, e, revoltado, insulta e desmoraliza o torturador. Com
isso, reduzindo a figura do delegado à de um miserável, e se colocando ao lado da
moça, dando a mão a ela, a traz de volta e a restitui à condição de humana.
Um dos ardis dos militares foi o da despersonalização do opositor,
conseguindo, com mais esse estratagema, a “radical desidentificação” 453 da
sociedade com os presos/torturados/desaparecidos, encarando-os como
“dessemelhantes absolutos”454. Na ideologia da ditadura, o “terrorista” encarnava
todos os males possíveis e imagináveis. Quando esse representante do “ódio
institucional” foi liquidado, esse ódio foi transferido para seus familiares. Vemos um
exemplo dessa transferência de alvo no diálogo travado entre Fleury e Mineirinho:
Temos que mudar tudo, Mineirinho. O inimigo agora são as famílias desses terroristas. Mas temos que usar mais a cabeça, a psicologia, Mineirinho. Temos que desmontar esses familiares pela psicologia. Você faça o seguinte: Mineirinho, telefone para um desses filhos da puta da comissão dos familiares, pode pegar qualquer um da lista que o Lima preparou. Telefona e diz que tem umas desaparecidas que foram internadas no Juqueri, internadas como loucas. Diga que a tal professora de química é uma delas (...).455
As trapaças arquitetadas pelo Estado para impossibilitar que K. descubra o
que aconteceu com sua filha são descritas pelo próprio Fleury e (co)respondem a
todas as tentativas de busca fracassadas de K. Depois de 14 meses procurando pela
filha, K., tomado por uma profunda melancolia, muito cansado, alquebrado, chega
ao presídio de Barro Branco, para visitar os presos políticos que haviam sido
transferidos para lá, a fim de conseguir alguma informação sobre o paradeiro da filha
e do genro. Quando K. caminhava em direção à ala dos presos, semi-isolada,
separada para os recém-chegados, no quartel que conhecia há mais de cinquenta
anos, da época em que mascateava por São Paulo, fora transportado para as ruas de
452 Discorremos sobre esse assunto com mais cuidado no capítulo 3 (tópico 3.1.2.) 453 KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. Disponível em: https://www.scribd.com/doc/224571525/Tortura-e-Sintoma-Social-Maira-Rita-Kehl. Acesso em 15 de novembro de 2014. 454 Idem. 455 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 74.
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Wloclaweck, da Polônia de sua juventude. Lembrou-se de quando o arrastaram
acorrentado pelas ruas para humilhá-lo perante os comerciantes. Embora sem
correntes, agora também estava sendo humilhado pela impossibilidade de
reencontrar a filha. A cada passo, retrocedia aos tempos de sua própria prisão.
Sobre esse dia, um dos presos visitados por K., o poeta Pedro Tierra, afirma
ter participado do diálogo mais dramático que mantivera até aquele momento de sua
vida. A expressão “diálogo”, aponta Tierra, “é pálida e insuficiente para dar conta
daquele contato entre dois desconhecidos” 456 . A tensão entre testemunho e
literatura, que o texto estampa, é evidenciada por meio do fluxo narrativo, do
discurso ficcional misturando-se ao discurso “real”:
Nunca tive diante de mim, como naquela tarde, o corpo devastado de um ancião sustentado por dois olhos – duas chamas – que eram a encarnação do desespero. Alguma razão, não atino qual, nos levou ao pátio onde nos sentamos.457
A declaração foi feita “décadas mais tarde”458 pelo poeta que, na época,
cumpria o terceiro ano de prisão e, no momento do encontro, segundo ele, não teve
nenhuma resposta que pudesse confortar o pai desesperado à sua frente. É notável
a escolha de uma declaração que remete o leitor a outro discurso ficcional, o do
assassinato d’Ela, do livro Em câmera lenta, de Renato Tapajós. Vejamos:
Furiosos, os policiais tiraram-na do pau-de-arara, jogaram-na ao chão. Um deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que o faziam diminuir de diâmetro. Eles esperaram que ela voltasse a si e disseram-lhe que se não começasse a falar, iria morrer lentamente. Ela nada disse e seus olhos já estavam baços. O policial começou a apertar os parafusos e a dor atravessou, uma dor que dominou tudo, apagou tudo e latejou sozinha em todo o universo
456 No comovente relato que Pedro Tierra faz sobre o dia em que foi visitado pelo pai de Ana Rosa Kucinski Silva, ele afirma que Meir, de tão desesperado, estava disposto a pagar o que não tinha, e que era exigido pelos agentes do DOI-CODI, por um sinal de vida, uma notícia: “Desejava, para seguir vivendo, ver o rosto de Ana Rosa. Sem atinar com a monstruosidade da tragédia que já despedaçara sua vida, varava meus olhos com o cravo dos seus e me pedia, patético – a mim, que àquela altura cumpria já o terceiro ano de prisão – uma palavra ainda que fosse a notícia de sua morte. Sem resultado.” Cf. TIERRA, Pedro. Há quarenta anos: a treva dentro da treva. Disponível em: http://csbh.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/artigos/ha-quarenta-anos-treva-dentro-da-treva.. Acesso em 1o. de março de 2014. 457 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 168. 458 Idem.
180
como uma imensa bola de fogo. Ele continuou a apertar os parafusos e um dos olhos dela saltou para fora da órbita devido à pressão no crânio. Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte com o cérebro esmagado lentamente.459 (grifo nosso)
De acordo com a análise feita por Jaime Ginzburg do texto de Tapajós, é pelos
olhos que o narrador percebe algum sinal de expressão, dado que a moça se
mantém em silêncio como forma de resistência à tortura. Através das expressões
oculares, o narrador vai relatando “os estados da personagem”460 e suas reações: o
desafio, a resistência até a sucumbência, quando é posta a coroa-de-cristo em sua
cabeça e o processo de degradação culmina. Pela descrição do narrador, “os olhos
ficam baços”, depois “um dos olhos salta para fora da órbita devido à pressão no
crânio”. Os olhos têm o papel de metonímia do corpo, aponta Ginzburg. Na narrativa
de K., os olhos também funcionam como metonímia do corpo 461 , e também
traduzem o desespero e a dor do personagem. Assim como expressam o momento
da sua morte:
K. manteve os olhos fechados por quase dez minutos, sempre respirando fundo, o peito arfando. Depois suas pálpebras se abriram e ele percebeu ao seu redor os presos políticos; avistou atrás deles, no alto da parede dos fundos, a familiar janelinha gradeada da cela trazendo de fora promessas de sol e liberdade. Sentiu-se em paz. Muito cansado, mas em paz. Estendeu aos presos os pacotes de cigarros. Depois, suas mãos abriram e seus olhos se cerraram.462
Ambos os personagens recusam-se a ceder – Ela a responder aos policiais e K.
a parar com a busca – e deslizam para a morte consumidos pelas “chamas” da
“imensa bola de fogo”, que é a dor que os aniquila.
Há um outro ponto de aproximação entre os dois personagens, o altruísmo.
459 TAPAJÓS, Renato. Em câmera lenta. loc.cit., p. 172. 460 GINZBURG, Jaime. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Tese de Livre docência. Disponível em: http://www.academia.edu/7920412/Tese_de_livre-doc%C3%AAncia_-_Cr%C3%ADtica_em_tempos_de_viol%C3%AAncia_ 461 Esta analogia me foi alertada pelo professor Jaime Guinzburg durante o exame de qualificação desta pesquisa. 462 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit, p. 169.
181
Ela coloca-se em perigo para ajudar na fuga do companheiro e K., mesmo no
desespero e na hora da morte, conforta os prisioneiros com presentes:
Naquela prisão polonesa descobriu a importância dos cigarros e barras de chocolate. Era o que ele trazia agora, para os presos do Barro Branco. Levava na sacola a sua identificação, a sua memória, a sua prestação de contas, um ciclo de vida se completava, o fim tocando o início e no meio nada, cinquenta anos de nada. K. sentia-se muito cansado. As pernas fraquejando, uma sensação de tontura. Chegou ao pavilhão amparado pelo sargento463. (grifo nosso)
Vemos aí a repetição do trauma, ou o continuum trágico se manifestando.
Sim, porque, para K., o sobrevivente é um homem fadado à tragédia, cujas
engrenagens nunca pararam e transformaram sua vida numa eterna consequência
de um passado trágico. Na versão atual, a filha, a quem o destino o incentivou a ser
mais ligado, “só para depois a sacrificar”464, sela a sorte marcada pelo desastre. A
repetição não é apenas a do trauma do terror e a da humilhação da prisão, é
também a do emigrante, daquele que deixa sua vida, seus mortos, seus afetos para
trás. Dois momentos simbolizados pela bela metáfora da vida, que cabe e é
carregada dentro de uma sacola. É uma sacola, a valer, que tanto o emigrante
quanto o prisioneiro carregam para onde entram e de onde saem, para onde vão e
de onde voltam. E dentro dela, da sacola, “a sua identificação, a sua memória, a sua
prestação de contas” – o que ele é, o que o constitui e o que ele apresenta ser. A
sacola como metáfora da vida. A sacola que K. volta a carregar quando está
fechando mais um ciclo de sua vida. O ciclo marcado pelo vazio deixado pela
ausência da filha, pelo nada. A ausência que antes representava o infinito negativo
(inclusive do texto) agora representa o nada, o beco sem saída, o fim (também da
narrativa).
E para fechar o ciclo, o autor homenageia o personagem (ou o filho
homenageia o pai) com um poema de um iidichista e um dos pioneiros da poesia em
hebraico:
De que valem mil mortos por dia? 463 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit, pp. 167-168. 464 Idem.
182
Morre de vez, em paz encerra tua agonia.465
Ao escolher um poema de um iidichista como inscrição para o último capítulo
de seu relato, o filho, de certa forma, pela escrita, redime o pai da culpa em relação
à família por sua dedicação à escrita, se redime por ter sobrevivido a toda a
desgraça que se abateu sobre a família, e a irmã pelo futuro que nunca teve.
465 Ibidem, p. 165.
183
6. Considerações Finais
A primeira vez que li o romance K., em 2012, um ano após a sua primeira
edição pela Editora Expressão Popular, não percebi que a cena central do romance, a
do desaparecimento, não fazia parte do relato. Na verdade, nessa minha primeira
leitura, a cena era parte da história. Ou melhor: da leitura que eu fazia do romance.
Certamente influenciada pelo prévio conhecimento da história de Ana Rosa Kucinski
Silva e do seu marido, Wilson Silva, e das muitas versões para o desaparecimento
dos dois, não percebi que o autor, ele mesmo, não apresentara a sua versão. A
rigor, a cena dos últimos momentos de liberdade do casal está lá, na página 26,
resumida em duas linhas: “Um rapaz encontrou-se com a esposa no Conjunto
Nacional para almoçarem juntos e os dois nunca mais foram vistos”466. No entanto, e
sendo mais exata ainda, ela não descreve o que ocorreu com o casal Silva, mas os
últimos momentos de um casal, porque a história de um é a de todos, e, de mais a
mais, o autor avisa na carta endereçada a nós, leitores, que tudo é invenção. Com
um porém, quase tudo aconteceu. Toda a obra de Bernardo Kucinski, aliás, equilibra-
se nessa corda bamba que oscila entre fatos e invenções, arte e vida.
Numa determinada passagem dessa pesquisa, recorro à ideia sugerida por
Umberto Eco de que um título é uma chave interpretativa, que sugestiona os leitores
e conduz o olhar. Na terceira edição do romance, publicada pela Cosac Naify, o título
do livro é alterado para K. – Relato de uma busca. A meu ver, a escolha da condução
da atenção do leitor para a busca afasta o foco do ato do desaparecimento e, dessa
forma, amplia a notação ficcional. Ao mesmo tempo que o deslocamento do olhar
para a ausência da cena permite a reverberação não somente das versões do
desaparecimento, como também do eco do vazio deixado pela falta. E se pensarmos
nessa falta como o locus onde se encontra o “Real", a representação dessa ausência,
que no romance se dá pelos seus efeitos – ausência da ausência –, podemos
entender que a impossibilidade da representação dessa cena, esse fracasso, é
466 KUCINSKI, Bernardo. K. loc.cit., p. 26. Na terceira edição publicada pela Cosac Naify, a cena está na página 22.
184
também a figuração da impossibilidade de representação do “Real” – um fracasso a
que todos estamos fadados e o qual o autor assume, adota e transfigura em
narrativa.
O testemunho de Kucinski reside nessa interseção entre ficção e testemunho,
entre a verdade (inconfirmável, porém persistente, no caso do desaparecimento), a
ficção e a memória, que elabora esse vazio: vazio da verdade (cadê?, onde está?),
que não se prova e se reinventa. Um vazio preenchido de alternativas afetivas e
criativas, cheio de fatos reconstruídos. Daí o fracasso da narrativa como
representação, porque ela é incapaz de representar uma consistência que não existe,
representando apenas a ruminação do sujeito que se debate nesse vazio povoado.
Mas também pode ser “o fracasso da representação como narrativa”, como eu
mesma sublinhei no texto, se entendermos que a representação de algo
inconsistente esbarra na ética. Portanto, representar sim, narrar não, pois que só
restam fragmentos retomados descontinuamente, ciclicamente, às vezes
aleatoriamente. Ou, de outro modo, narrar sim, representar não, pois que, por mais
que se conte uma história, ela sempre encerrará a tentativa e o fracasso de tocar
algo muito além dela mesma, apenas entrevisto, sobrevisto, revisto, ou revisitado,
pela memória claudicante.
A literatura de Kucinski nasce da ausência que precisa ser compensada pela
linguagem. A linguagem nasce da falta, da incompletude, da angústia diante do fato
de que não somos autossuficientes, e demandamos o outro, completamo-nos no
outro. Para além da impossibilidade de representação do que está ausente, o
discurso de Kucinski representa – e isso já é suficientemente denso no texto – a
própria ausência, que não tem forma definida porque in-existe. E esse “in” também
tem valor de “para dentro”, não só de negação. Nesse sentido, essa dialética que
parte da ausência e que tenta torná-la presença (e consegue) foi capaz de
aprofundar ainda mais o mergulho no abismo que caracteriza a autorreflexão do texto. Isso porque o abismo é a fenda, o vão, o vazio que suga, ou por onde todas
as coisas caem, o buraco negro que se alimenta de tudo, inclusive das ausências.
Ele, o buraco, o texto, é a própria ausência, a marca presente de uma ausência, o
corpo reconstituído do que não está mais ali.
185
K., essencialmente, representa e apresenta o paradoxo que define a literatura
de testemunho: insistir e precisar falar sobre o que se cala de tão doloroso, de tão
constrangedor, de tão inaceitável; falar, enfim, sobre o que jamais deveria ter
acontecido, sobre o absurdo, sobre o que, no entanto, precisamos falar como
solução, como digestão, e prova de sobrevivência, mas que muitos não querem
(mais) ouvir, ou querem ouvir o que lhes convém, quase sempre mais do mesmo. É
esse o paradoxo do testemunho, a força de dizer contra a força de não ouvir, ou de
já ter ouvido muito, ou de querer selecionar o que se ouve.
K. relata a busca, as buscas dos familiares, o constante retorno à falta, a
experiência da falta, e não a causa ou as circunstâncias esfumaçadas da falta em si,
que só aparecem como painel. As testemunhas, em vista disso, são as protagonistas
da narrativa, porque ver e ouvir, contar, mentir e buscar são atos principais, mais
centrais do que ser desaparecido ou morrer. Daí a crise de representação, uma
narrativa que se instala na impossibilidade de narrar o que não se sabe ao certo ter
acontecido, que gira em torno da perda e da ausência. Mas é uma impossibilidade
aparente, que não repercute no romance, porque Kucinski, consciente da armadilha
imposta pela falta, não a desafia, pelo contrário, se municia nela. Ele absorve a
ficção criada pelos militares (a ausência da prisão e da culpa pelo desaparecimento)
e (re)cria (em cima dessa ausência e das outras consequentes a ela) a sua própria
ficção para dar testemunho daquilo que sabe que ocorreu, mas, como bem disse
Salinas Fortes, reside no território da ficção467. Ponto em que a forma confirma a
teoria: a ficção como via que possibilita o testemunho.
Porém, a minha perspectiva, ao completar a pesquisa, é que K. é um
romance, sobretudo, de afetos. A celebração do amor e do carinho fraternal pela
irmã roubada do seu convívio através da recuperação da sua memória e da inscrição
do seu nome no rol dos vivos. A recuperação dos laços afetivos entre pai e filho
desgastados pelas diversas catástrofes que consumiram a família por meio da
continuação do projeto começado pelo pai. “Sim, pensando bem acho que essa é
sobretudo uma história de amor, um desses amores intensos que nem o tempo nem
467 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Retrato calado. São Paulo: Ed. Marco Zero, 1988, p. 81.
186
a ditadura conseguiram extinguir”468. E esse foi o erro dos algozes da ditadura:
desprezaram a força dos afetos e o potencial inerente a eles de munição para ataque
e para guerra, ou seja, a possibilidade de se transformarem em armas.
468 KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 60.
187
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