as missÕes cristÃs na china crucificada¶: impactos, · do que a de missionários cristãos....
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AS MISSÕES CRISTÃS NA ‘CHINA CRUCIFICADA’: IMPACTOS,
PERCEPÇÕES E REFLEXÕES NO PERÍODO GUANGXU (1875-1908)
Bruno Pontes Motta
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
E-mail: brunomotta44@gmail.com
Resumo:
A presença estrangeira na China imperial remete a tempos turbulentos conhecidos como
Século da Humilhação, que marcou o país da Primeira Guerra do Ópio, em 1839, até a
reunificação nacional em 1949. Essa presença forçada em solo chinês é um fator muito
importante para compreender esse período e, a esse respeito, poucas incomodaram mais
do que a de missionários cristãos. Tendo isso em mente, o trabalho propõe um estudo
sobre percepções e reflexões acerca das missões cristãs na China e seus impactos na
sociedade, na política, enfim, na vida de seus habitantes. Assim, foi partindo da tradição
chinesa de periodização pelo nome dos imperadores que o intervalo entre 1875 e 1908,
que condiz ao reinado do imperador Guangxu, foi escolhido. Ele abarca muito bem
importantes momentos da atuação missionária na China e também as grandes rebeliões
anti-cristãs e anti-estrangeiras, dentre as quais o Levante dos Boxer (1899-1901) se
destacou por seu impacto tanto lá como no estrangeiro.
Palavras-chave: China Imperial; Dinastia Qing; Missões Cristãs.
Abstract:
The foreign presence in late imperial China refers to turbulent times known as the
Century of Humiliation, that marked the country from the First Opium War, in 1839, to
the national reunification in 1949. This forced presence in Chinese soil is a very
important factor for the comprehension of this period and, in this respect, few bothered
more than that of christian missionaries. Having this in mind, this essay proposes a
study about the perceptions and reflections about the christian missions in China and
their impacts in society, in politics, ultimately, in the lives of its inhabitants. Thus, from
the Chinese tradition of periodization by the name of the emperors the interval between
1875 and 1908, that matches the reign of emperor Guangxu, was chosen. It very well
embraces important moments of the missionary proceedings in China and also the great
anti-christian and anti-foreign rebellions, among which the Boxer Uprising (1899-1901)
stood out because of its impact there and abroad.
Keywords: Imperial China; Qing Dynasty; Christian Missions.
Em meados do ano de 1900, navios pertencentes às marinhas britânica,
americana, alemã, japonesa, russa, francesa e austríaca desembarcaram centenas de
soldados na cidade costeira de Tianjin 天津. A partir de sua proximidade estratégica
com a capital imperial Beijing 北京 (algumas vezes escrita Pequim), lançaram um
ataque conjunto com o objetivo de resgatar os estrangeiros ameaçados pelo Levante dos
Boxer, talvez o maior movimento anti-estrangeiro e anti-cristão da história da China.
Apesar dos rebuliços do começo dos anos 1890 no sul do país, a outra grande
revolta anti-cristã ocorreu trinta anos antes dos eventos de 1900, na cidade de Tianjin,
em 1870. Os estrangeiros poderiam refletir com tristeza como as pessoas pacatas do
interior, nas colinas e vales por onde costumavam viajar no verão, ou às quais tentavam
converter ao cristianismo, eram capazes de atos tão violentos em tempos de rebelião.
Paul A. Cohen, professor emérito na Wellesley College (Boston, EUA), estudou
esse curioso contraste entre a intenção dos missionários cristãos - a saber, a de salvar a
alma dos chineses -, algo advindo, pode-se dizer, de um princípio (para eles) positivo, se
compararmos aos interesses coloniais das potências da época, e a resposta, muitas vezes
violentamente brutal, do povo chinês a esses religiosos. Seu trabalho, intitulado
“Christian Missions and Their Impact to 1900”, foi publicado, em 1978, no décimo
volume da monumental obra The Cambridge History of China, cujo editor chefe foi o
grande sinólogo John K. Fairbank. Em sua pesquisa, P. Cohen se perguntou por que os
missionários foram os mais odiados dentre os estrangeiros que residiam na China, e sua
importância historiográfica mostra-se incontornável aqui.
Um outro estudioso do assunto utilizado foi Daniel H. Bays, então professor em
Calvin College (Michigan, EUA), que publicou uma obra mais recente intitulada A New
History of Christianity in China (2012). Ele traz e acrescenta a pesquisa de P. Cohen, de
forma que seu livro serve para melhor abordar as informações, filtrando o que de 1978
para cá foi afirmado ou contestado pela sinologia.
O presente artigo busca trazer um pouco desse debate, que é muito extenso. Por
isso, foi delimitado, partindo da tradição chinesa de periodização pelo reinado de seus
imperadores, o intervalo de tempo entre 1875 e 1908, que condiz ao reinado de
Guangxu 光绪. O artigo constrói-se em cima das obras dos dois autores citados acima e
de um missionário galês, Griffith John (1831-1912), que atuou na China na segunda
metade do século XIX, como forma de ilustração. A obra de John foi escrita no começo
dos anos 1890, mas as conclusões podem ser expandidas para antes e depois dessa data -
certamente, ao período Guangxu, na medida em que em 1912 o império caiu e a
situação se tornou mais complexa, o que requeriria outro estudo.
O Século da Humilhação
É importante ressaltar, ainda, que a China dessa época estava inserida em um
contexto chamado por eles como Século da Humilhação, um período da sua história que
foi marcado pelos imperialismos ocidental e japonês, tendo começado tão cedo quanto a
Guerra do Ópio de 1839. O império não se chamava “China”, como conhecemos hoje o
país, mas Grande Qing 大清, pois era o nome da dinastia reinante. O nome que por
vezes traduzimos como “China” escreve-se Zhōngguó 中国, ou “Império do Meio”.
Essa certeza de sua posição central na disposição (inclusive hierárquica) no mundo fez
ser difícil aceitar a superioridade bélica das potências ocidentais, principalmente quando
levamos em consideração a arrogância do estrangeiro, cuja presença não pode ser
desassociada do contexto colonial do mundo da época.
Quando Guangxu foi coroado imperador em 1875, com três anos de idade, o
império já vivenciara mais de três decênios de contato com os invasores estrangeiros e
estava em um processo de modernização das forças armadas com o intuito de garantir a
sua sobrevivência. Foi parte de um longo e vagaroso processo onde os chineses se
perceberam como parte integrante do mundo, não mais seu centro. Isso implica também
que o Estado chinês continuou a funcionar - um grande contraste com o que ocorrera na
Índia e em outras regiões do globo naquele período.
A classe dominante chinesa - os letrados confucianos - tanto das grandes
famílias que ajudavam na administração e na legislação locais como os oficiais do
governo, que assumiram tais postos após uma série de concursos públicos, passava por
um momento de reafirmação de seus valores. As grandes rebeliões internas que
marcaram a metade do século XIX chinês tinham sido derrotadas pelo governo imperial,
garantindo a sua sobrevivência, ao passo de que grandes reformadores confucianos
mudaram suas atenções para o perigo externo.
O modelo imperialista adotado pelas potências estrangeiras no leste asiático se
baseou em “tratados desiguais”, a começar pelo que foi assinado com a Grã-Bretanha
em 1842 quanto ao fim da Guerra do Ópio. Um, dentre os muitos que foram assinados
ao longo do Século da Humilhação, aparece como o mais destacado para a questão
missionária: o Tratado de Tianjin, assinado com a França em 1858 e ratificado em 1860,
ao fim da Segunda Guerra do Ópio.
Os tratados e as missões
Para compreender a importância desse tratado, é necessário voltarmos alguns
anos. A dizer: um século. Em 1724, no reinado do imperador Yongzheng 雍正, um
édito foi assinado proibindo o cristianismo na China - devemos lembrar que a missão
jesuíta estava em vigor lá havia mais de um século. Isso implicou que os chineses
convertidos deveriam abandonar a fé, que as propriedades cristãs seriam confiscadas
pelo governo imperial e que os missionários estavam, a partir daquele momento,
terminantemente proibidos na China (à exceção da capital, onde trabalhavam como
funcionários menores do setor de astronomia, e em Macau).
Se nenhum reino europeu tinha capacidade de contrariar essa decisão do
governo chinês no século XVIII, o mesmo não pode ser dito de meados do século XIX.
O contexto do mundo era outro. Nos locais chamados de “cidades dos tratados”, onde os
estrangeiros conseguiram concessões comerciais, permissão de construir bases militares
e habitações, o trabalho missionário poderia ocorrer. Era o caso de Hong Kong, por
exemplo, Guangzhou 广州 (conhecida no ocidente como Cantão) e Shanghai 上海. Do
ponto de vista missionário, a possibilidade de atuar nesses lugares, em contraste à época
anterior, era por si só uma vitória. Entretanto, ainda assim não havia muito espaço de
atuação.
O “Tratado de Amizade, de Comércio e de Navegação entre Sua Majestade O
Imperador dos Franceses e Sua Majestade O Imperador da China” (título oficial), de
1858, mudou esse cenário. Vejamos, a título de exemplo, o Artigo XIII, talvez o mais
importante para a questão missionária, onde dizia:
“[...] os membros das comunhões cristãs gozarão de uma completa segurança
de seu pessoal, suas propriedades e o livre exercício de suas práticas
religiosas, e uma proteção eficaz será dada aos missionários que forem
pacificamente ao interior do país, munidos de passaportes regulares [...].
Tudo o que foi previamente escrito, proclamado ou publicado na China por
ordem do governo contra o culto Cristão está completamente revogado e
permanece sem valor em todas as províncias do Império.” (THE MARITIME
CUSTOMS, 1917, p. 821)
O tratado não apenas garantiu o fim da perseguição ao cristianismo, mas
permitiu também a expansão da atuação missionária. Ademais, as propriedades que
outrora pertenceram à Igreja Católica deveriam ser entregues ao governo francês, para
então serem repassadas às ordens religiosas escolhidas (COHEN, 1978, p. 553). Isso fez
da França a principal intermediária entre os católicos e a China. Não obstante, os
protestantes também se privilegiaram desse Artigo XIII, na medida em que havia uma
cláusula em todos os tratados que garantia a extensão dos benefícios adquiridos a todas
as demais potências coloniais, inclusive os Estados Unidos. Dessa forma, os
missionários protestantes foram também permitidos no interior da China.
O trabalho missionário
Às ordens católicas atuantes, havia o intermédio da França e da Igreja Católica,
especialmente a Congregação para a Propagação da Fé; quanto aos protestantes, eles
realizavam conferências para decidir os principais objetivos e métodos de suas missões -
as três maiores conferências ocorreram nos anos de 1877, 1890 e 1907, em Shanghai
(BAYS, 2012, p.70). Todavia, se pensarmos fora dessas diretrizes, as missões
funcionavam de forma descentralizada, com diferenças linguísticas, separações entre
igrejas ou ordens religiosas e competição entre credos. Ademais, é de se esperar que
havia mais distinções, além das questões política e religiosa: os protestantes, por
exemplo, poderiam estar com suas famílias, diferentemente dos padres católicos, como
é de se esperar.
Giffith John, galês nascido em 1831 e engajado desde jovem na propagação da
fé, foi à China em 1855 com sua esposa Margaret. Seu objetivo inicial era o de ir a
Madagascar, ao que foi levado a ir à China pela Sociedade Missionária de Londres, uma
das primeiras instituições protestantes a atuar no Império do Meio. Sua chegada ilustra
muito bem a dificuldade inicial dos missionários; antes do Tratado de Tianjin, G. John
passou cinco anos apenas na cidade de Shanghai, onde era permitido que atuasse por
conta dos tratados e onde aprendeu mandarim.
Após a abertura de novas “cidades dos tratados” e a permissão dos missionários
no interior da China, em 1860, G. John mudou-se para Hankou 汉口, nas margens do
grande rio Yangzi 长江, que corta a China na horizontal e marca a divisa do sul. Lá, ele
fez um trabalho pioneiro e bastante engajado: construiu uma igreja, uma escola e um
hospital, trabalhou na tradução de textos bíblicos e no batizado de chineses.
Não foram feitos singulares esses seus: as demais missões investiram nas
mesmas coisas. Os protestantes foram os que mais se dedicaram às atividades seculares,
principalmente através da imprensa e das instituições de ensino que fundaram ao longo
da segunda metade do século XIX. Entretanto, hospitais e orfanatos foram atividades
secundárias também. O objetivo final e principal de todos, católicos e protestantes, era o
mesmo: a salvação da alma dos chineses com a conversão do máximo possível.
Tais instituições tiveram sua serventia aos chineses, especialmente às mulheres
que não encontravam espaço para uma educação formal na tradição clássica, mas
conseguiam estudar e até seguir carreira como médicas, por exemplo, nas instituições de
ensino protestantes. Aos letrados reformadores, as traduções de obras seculares sobre
direito internacional, engenharia, medicina e ciência militar ajudou-os em sua missão de
modernizar as forças armadas e outras atividades pragmáticas, como o sistema de
transportes e de comunicação.
Ao longo desse primeiro decênio pós-tratado, a atividade missionária cresceu
muito, estourando no Massacre de Tianjin, de 1870. Protestos menores, manifestações,
depredações e rebeliões ocorreram contra estrangeiros e cristãos constantemente ao
longo do Século da Humilhação. Em alguns casos, como nos Boxer, os chineses
convertidos foram também alvo de ataque. Em meio a protestos nos anos 1890, o
missionário G. John, inquestionavelmente um dos grandes atuantes na China e com uma
vasta experiência, escreve sobre a experiência de 1870 e suas similaridades com aquele
momento. Utilizemos suas reflexões sobre o assunto como ilustração do impacto das
missões cristãs na China.
Rebeliões anti-cristãs
Estudando os protestos anteriores, traduzindo pôsteres anti-cristãos e refletindo
sobre o assunto, G. John publicou o livro A Causa dos Protestos no Vale do Yangtse,
em 1891. Ele ainda habitava em Hankou, na província de Hubei 湖北, que foi uma das
afetadas, junto com Hunan 湖南, que fica logo abaixo, no centro-sul do país. A rebelião
foi associada, por ele, a um alto oficial do governo local, por onde o autor passa a
defender a sua tese de que as rebeliões anti-cristãs - não apenas a de 1890 - eram
provocadas pelas classe (dominante) letrada chinesa, extremamente anti-estrangeira. Os
objetivos de sua publicação foram esclarecidos logo no começo:
“Pode ser que uma vez que essa questão seja trazida à tona, em toda a sua
nudez hedionda, sob os olhos daqueles em [posição de] autoridade, e aos
líderes da opinião pública nas terras natais, alguns Estados cristãos fiquem
incomodados ao ponto de demandar, com uma ênfase suficientemente
pronunciada, que a China não ousará desprezar, a total supressão dessa classe
da literatura. Se isso não for feito, então os anos por vir serão anos de
sangue.” (JOHN, 1891, p.6)
Ademais, se foi dada à classe dominante a posição de “cabeça” dos movimentos
anti-estrangeiros, ao restante da população foi dado um caráter quase de apatia - senão,
de obediência extrema, de “executores” dos movimentos.
As mentes de um povo inofensivo, que se deixados por eles mesmos iriam
sem delonga entrar em relações de amizade com desconhecidos, estão sendo
envenenadas. Eles estão sendo convertidos em demônios que irão perpetrar,
ao desafortunado europeu sob seu alcance, atrocidades mais horríveis do que
até mesmo o Motim Indiano viu. (JOHN, 1891, p.6)
A forma com que os letrados incitavam o povo era através da literatura e da
panfletagem. A Causa dos Protestos no Vale do Yangtse pode ser dividida em duas
partes: uma onde G. John reflete sobre os protestos, suas origens e motivações, e outra
que é uma tradução seguida de análise de 32 pôsteres anti-estrangeiros e anti-cristãos
que foram publicados em Hunan em 1890 e no ano seguinte. O Pôster 13, por exemplo,
representa um suíno crucificado e encravado por “dez mil flechas”. Abaixo, seres com
cabeça de bode e corpo humano degolados; em seus peitos, o caractere xī 西, que
significa “oeste”, ou “ocidente” - uma representação dos estrangeiros ocidentais. Tudo
isso feito a mando de um mandarim de colarinho vermelho, que está ao centro
apontando com o dedo.
Imagem XIII: Atirar no Porco e Degolar os Bodes (Em chinês simplificado: tú yángzhǎn zhūshè 图羊斩
猪射.)
A escrita e os trocadilhos literários - como a substituição de “mestre” zhǔ 主, por
“porco” zhū 猪, de pronúncia parecida, para se referir a Jesus (como G. John explica em
sua tradução) - implicam que, de fato, os panfletos foram obra de um letrado. Havia
diversos tipos de literatura anti-estrangeira, como o xíwén 檄文, ou “denúncia oficial de
um inimigo”, sob a forma de manifestos; o nìmíng jiētiē 匿名揭帖, ou “mensagem
anônima”, breves, como cartazes, geralmente incitando ataques a grupos ou pessoas
específicos; até mesmo livros, como o [Morte] à Religião Maldita (guǐjiāo gāisǐ 鬼教
该死), que acredita-se ter tido entre 100 e 800 mil impressões (COHEN, 1978, pp. 569-
570; JOHN, 1891, p.7).
G. John relaciona ainda os protestos de 1890 ao Massacre de Tianjin de 1870,
onde ocorreram rumores depreciativos e incitação literária, afirmando que era de fato
uma repetição exata das experiências de então. Para ele, era claro o motivo: “A razão
pela qual ocorreram confusões anti-estrangeiras ao redor do Império foi porque o
governo as quis [...].” (JOHN, 1891, p.15). A situação, no entanto, era mais complexa.
O impacto das missões
A própria presença indesejada de missionários e estrangeiros era, para os
chineses, uma forma de violência. G. John elencou oito artigos defendidos pela classe
letrada e oficial como problemáticas quanto às missões. Neles, pediam o fim dos
orfanatos, tidos como ofensivos, a proibição de mulheres nas igrejas, a conformidade
dos missionários às leis e jurisdições do império, o exame de antecedentes (criminais)
dos convertidos chineses e a proibição de passaportes para regiões rebeldes (JOHN,
1891, pp. 16-18).
Todas as questões abordadas fazem sentido à luz da tradição chinesa. Um
exemplo é a importância da família tradicional, expressa como uma das mais
importantes virtudes confucianas (a piedade filial, xiào 孝), que exige a submissão do
filho ao pai e da mulher ao marido - e da família ao Estado. O orfanato e a presença de
mulheres na igreja e em instituições ligadas aos missionários implica uma quebra nessa
estrutura. A sociedade chinesa sempre foi muito preocupada com a ordem, e o
funcionamento harmônico da sociedade só poderia ser adquirido com todos cumprindo
com suas funções, inclusive o respeito à ordem familiar. Portanto, especialmente à
classe dominante chinesa isso representou um problema.
Ademais, a ideia de um grupo estrangeiro - ou seja, que responde a uma
jurisdição externa à do governo chinês - ensinando valores muitas vezes antagônicos aos
locais e com sua própria rede de comunicação era também uma ameaça à ordem do
Estado imperial e às estruturas que o legitimavam.
Talvez um dos melhores exemplos disso foi a rebelião do Reino Celeste Taiping,
que desafiou a dinastia reinante chegando a tomar porções consideráveis do sul da
China. A guerra se estendeu de 1851 a 1864 e milhões de pessoas morreram. O mais
curioso disso tudo é que a liderança do reino se considerava cristã. (É importante ter em
mente que a forma como esse cristianismo foi usado e interpretado foi marcadamente
chinesa e faz mais sentido quando visto do ângulo da tradição confuciana do que do
próprio cristianismo). Não apenas a dinastia lutou contra os Taiping, mas
simultaneamente, ao longo conflito, ocorreram a Segunda Guerra do Ópio, o Tratado de
Tianjin e outras coisas mais envolvendo europeus e americanos. Estrangeiros lutaram
também ao lado - e contra - os rebeldes. Portanto, a preocupação da classe letrada e
oficial quanto ao contato entre missionários (ou estrangeiros de forma geral) e rebeldes
era bastante relevante. O próprio Griffith John chegou a fazer duas visitas à capital
Taiping em 1860, até desencantar-se com a interpretação feita pelos rebeldes do
cristianismo (STOCKMENT, s.d., §.7).
Foi difícil, portanto, para o povo chinês de todas as classes desassociar
cristianismo de heterodoxia, principalmente nas áreas onde outrora reinaram os Taiping.
De fato, o cristianismo tornou-se menos tolerável depois de 1860, pois “[...] era a
combinação de heterodoxia e poder que os chineses mais temiam, e na Era pós-1860 o
poder político e social do cristianismo na China cresceu a proporções sem precedentes.”
(COHEN, 1978, p.563). Foi um impacto sentido, devido ao tempo levado na expansão
das missões, cada vez mais forte dos anos 1870 em diante.
A interferência dos missionários na vida local e o descaso pelas tradições
chinesas foram motivos de muitas revoltas populares. A arrogância do missionário
incomodava a todos os chineses. Devemos entendê-los como homens e mulheres de seu
tempo, uma época onde a percepção que a mera presença deles era capaz de impor não
pode ser comparada à de um turista hoje em dia, visto que estavam em uma posição que
não pode ser desassociada da colonização. Eram indivíduos que viajavam o mundo (o
próprio G. John desejava ir a Madagascar!) com a intenção de transmitir a fé e a
civilização cristãs.
Essa arrogância advinha também do poder que os tratados conferiam aos
missionários. O grosso número dos chineses convertidos eram de pessoas pobres ou
miseráveis, ou que buscavam alguma vantagem - afinal, o convertido estava sob a
proteção dos tratados. Por essa e outra eram chamados de “cristãos do arroz”, pela
associação de sua fé com a fome. Era requisitado que deixassem de praticar diversas
atividades importantíssimas da cultura chinesa, como a reverência aos antepassados.
Mas mesmo apesar disso não ter sido capaz de impedi-los de realizá-las, era para os
chineses um desrespeito muito grande - seja ao que se convertera por ajuda ou ao que
sempre olhara com desdém os cristãos.
Outra questão muito importante para a antipatia da classe letrada e oficial era o
próprio papel dos missionários na China. Primeiramente, os missionários eram letrados,
prerrogativa da classe dominante chinesa. Eles atuavam na educação, com suas escolas,
onde transmitiam valores éticos e morais ocidentais; na assistência à população, com
ações de caridade; interferiam na administração e em questões judiciais, com o poder
dos tratados; tinham acesso a uma rede econômica e ligações militares, com o auxílio de
suas nações. Todas essas eram funções da classe letrada e oficial chinesa. “A elite
detinha, na sociedade local, a hegemonia econômica, social, ideológica e política, e a
própria presença missionária era uma afronta à sua dignidade e uma ameaça ao seu
status.” (BAYS, 2012, p.75).
Considerações finais: os missionários e o imperialismo
Os missionários eram um dos grupos estrangeiros mais beneficiados pelos
tratados, cujas assinaturas ocorreram após algum confronto ou ameaça de guerra.
Griffith John reflete sobre o assunto, no começo de seu The Cause of the Riots in the
Yangtse Valley. Ele resume todos os conflitos entre chineses e estrangeiros da seguinte
forma: primeiro, os estrangeiros negociam e esperam com muita paciência o oficial do
governo discumprir suas promessas. Depois, “os mandarins mal intencionados maturam
seus planos, e procedem a fazê-la [a situação] desconfortável aos bárbaros confiáveis
[estrangeiros].” (JOHN, 1891, p.9). Ao que os estrangeiros respondem com uma
explosão de raiva (guerra), que é seguida de um período de compreensão e amizade
(tratado), ao que tudo se repetiria novamente.
É nesse sentido que os missionários devem ser vistos também como homens
coloniais e a atividade missionária não deve ser dissociada do imperialismo. O fato dos
tratados serem assinados após guerras e ameaças para impor novas cláusulas -
geralmente de comércio, inclusive de ópio -, não parecia soar a esses indivíduos como
uma inteira contradição: “Eles conheceram a imoralidade dos tratados, mas estavam
certos que a guerra [do ópio] foi a mão da providência abrindo a China às palavras de
Deus.” (BAYS, 2012, p.47).
G. John deixou isso muito evidente quando afirmou que “ao fechamento da
supostamente chamada guerra do ópio, uma grande mudança foi feita para melhor.”
(JOHN, 1891, p.10). Com todas as cláusulas de liberdade e proteção aos missionários,
“[...] o tratado de Tientsin [Tianjin] foi inteiramente satisfatório ao corpo missionário.”
(JOHN, 2012, p.11). Se alguém deveria ser responsabilizado, “Foi a agressão mandarim
que trouxe as guerras.” (JOHN, 1891, p.10).
Portanto, mesmo que suas intenções fossem a de salvar a alma dos chineses,
havia uma clara relação entre o missionário e a agressão estrangeira. Sua arrogância e
convicção de que os chineses não precisavam apenas da fé cristã, mas da cultura
ocidental, dificultou o processo de aceitação. É nesse sentido que se tratava de uma
“China crucificada”, como trouxe Jacques Gernet em sua obra O Mundo Chinês.
Crucificada no duplo sentido da cruz como símbolo cristão, para os religiosos - algo
positivo -, e como método de tortura, representando alegoricamente a situação da China
na época, e da qual os missionários se beneficiaram e corroboraram.
O impacto foi grande e pequeno ao mesmo tempo. Grande porque gerou uma
atuação estrangeira vasta, com investimentos institucionais e publicações, com a
ascensão de alguns grupos sociais que não conseguiriam, de outra forma, adquirir
espaço na ordem chinesa de então. Esta última questão se acentuou após o fim do
império. Grande também pelas rebeliões, seus estragos e as guerras das quais se
beneficiou, direta ou indiretamente. Pequeno porque não obteve muito sucesso. De todo
o período Guangxu, um dos auges do trabalho das missões, a quantidade de convertidos
em proporção à população chinesa, mesmo que suponhamos ter sido dos mais fiéis
seguidores da fé e levando em consideração o auxílio dos tratados e a crise interna da
China, foi irrisória.
BIBLIOGRAFIA
BAYS, Daniel H. A New History of Christianity in China. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012.
COHEN, Paul A. “Christian Missions and Their Impact to 1900.” In: FAIRBANK, John K. &
TWITCHETT, Denis (Orgs.) The Cambridge History of China. Volume 10: Late Ch'ing,
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FAIRBANK, John K. & GOLDMAN, Merle. China: uma nova história. Porto Alegre: L&PM,
2006.
GERNET, Jacques. O Mundo Chinês. Volume 2. Lisboa: Cosmos, 1975.
JOHN, Griffith. The Cause of the Riots in the Yangtse Valley: A “Complete Picture Gallery”.
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<http://vcarchive.com/mitvc/cause_of_the_riots/>
SPENCE, Jonathan D. Em Busca da China Moderna. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das
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STOCKMENT, Martha. Griffith John. Biographical Dictionary of Chinese Christianity. Pode
ser encontrado em: <http://bdcconline.net/en/stories/john-griffith/> Acesso em agosto de 2018.
THE MARITIME CUSTOMS. China. III - Miscellaneous Series: N° 30. Treaties,
Conventions, Etc., Between China and Foreign States. Volume 1. Russia, International
Protocol, Great Britain, United States of America, France, Import Tariff Agreement. 2ª Ed.
Shanghai: Statistical Department of the Inspectorate General of Customs, 1917.
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