as relações de poder nos espaços de formação docente
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AS RELAÇÕES DE PODER NOS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO
DOCENTE
Maria Aparecida Assis BatistaProfessora do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais; Mestranda em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RESUMO
O artigo analisa os espaços de formação de professores, as lutas simbólicas e as relações de poder
desempenhadas pelos agentes, que compõem esses espaços. Discute o campo educacional
enquanto espaço de formação inicial e de formação continuada do professor. Sugere
possibilidades de ação do professor, enquanto agente do campo educacional, para dar respostas
aos conflitos que se estabelecem nesse campo e promover estratégias de transformação e
emancipação.
Palavras-chaves: Campo educacional, formação docente, lutas simbólicas, ação, transformação.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa refletir sobre aspectos das relações de poder praticadas
nos espaços destinados à formação docente e a importância do papel que seus
agentes desempenham nas lutas simbólicas inerentes a esses espaços. Pretende
ressaltar os conflitos e lutas latentes no campo educacional, a liberdade que
usufruem seus agentes e, ao mesmo tempo, as coações invisíveis que pesam sobre
eles.
O uso de conceitos provenientes da Sociologia de Bourdieu fomenta reflexões e até mesmo
indagações a respeito das contradições e das lutas concorrenciais, que se estabelecem entre os
agentes envolvidos nos processos de formação. A densidade, a potência analítica e a
dialeticidade inerentes a esses conceitos possibilitam colocações mais ricas e densas, evitando a
superficialidade e o pedagogismo.
Fazer colocações sobre os espaços e projetos formadores e buscar explicações
para a realidade dos mesmos, exige se pautar não apenas no conhecimento
racional, objetivo e técnico, mas, também, no que é subjetivo, simbólico e
implícito, no que está na realidade, no que nela está representado e no que está
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sendo construído e modificado a partir das relações e ações que se estabelecem
entre os agentes que compõem esta realidade. É nesse sentido que o presente
artigo sugere possibilidades de ação do professor, nos espaços onde acontecem a
sua formação.
Uma tentativa de entendimento do campo do poder como instrumento de
análise do campo educacional.
Para facili tar a compreensão do campo educacional e das lutas simbólicas que
são desencadeadas em seu interior, se faz necessário fazer uma leitura da
concepção de campo em Bourdieu e dos seus elementos fundamentais. Tais
elementos serão conceituados e explicados, na medida que as abordagens feitas
sobre os espaços de formação docente necessitarem dos mesmos, para serem
melhor compreendidos.
Para Bourdieu, citado por Ortiz (1983), pode-se considerar o campo como
construtos teóricos ou representações da realidade , onde forças simbólicas e
relações de poder se manifestam em condições objetivas. Poder simbólico pode
ser interpretado como uma força invisível presente em todos os recantos do
campo, sem que seus agentes percebam que estão submetidos a ele, sendo com
ele coniventes. Bourdieu desenvolve seu conceito de poder interligado ao
conceito de campo, pois o poder se manifesta nos diversos campos, onde os
agentes uti lizam os capitais que possuem para, hierarquicamente, definirem suas
posições. Assim, dentre outros, os campos científico, acadêmico, literário,
religioso, político, cada um em sua perspectiva, implica uma forma dominante de
capital . Canesin(2002), reforça tal abordagem, quando aponta as lutas e disputas
entre os diversos campos que compõem o campo do poder, determinadas pelas
posições definidas pelo capital simbólico acumulado e que garantem autoridade e
prestígio a quem os detém.
Os campos são espaços de produção de bens s imbólicos permeados por relações de poder expressas em confl i to , lutas , consensos entre os diversos agentes que, dispostos hierarquicamente , disputam o domínio destes bens como forma de autoridade, legi t imidade e prestígio. A his tória dos di ferentes campos revela confrontos entre indivíduos, grupos, inst i tuições ,
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pela maior ou menor detenção do capi tal s imbólico acumulado. (Canesin,2002:99)
O campo do poder, onde acontecem todos os embates e consensos entre seus
agentes, será sempre permeado pelo poder simbólico, pela relação
dominante/dominado, provocando disputas e a busca de possibil idades para a
emancipação do grupo dominado ou a construção de estratégias, para a
manutenção do poder do grupo dominante. Esse confli to determinado no interior
do campo pelas relações de força entre posições e agentes sofrem alterações a
todo momento, seja por fatores internos ao próprio campo, seja por interferências
externas.
No atual estágio de desenvolvimento do sistema capitalista, acompanhado pela
globalização, pelas polít icas neoliberais, pelo crescimento tecnológico, pela
quebra de paradígmas e pela crescente relação de dominação dos países centrais
sobre os países periféricos, a sociedade não pode ser pensada apenas numa ótica
racional e objetiva. Ela precisa ser pensada enquanto espaço de lutas simbólicas,
de disputas entre seus agentes, pertencentes a campos específicos e interligados,
definidos hierarquicamente pela distribuição do capital . Nessa perspectiva, a
sociedade pode ser entendida como um espaço onde as posições dos diferentes
campos estabelecem relações de força, que delimitam as intenções dos agentes e
as interações entre eles. Assim, a posição de um agente se define pela posição
que ele ocupa nos diferentes campos e na distribuição dos poderes, que prevalece
em cada um deles em termos de capital.
No campo educacional entendido aqui, especificamente, como um espaço de
lutas e confrontos entre os diversos agentes que o compõem, o poder que o
legitima está centrado no capital cultural, embora o capital econômico esteja
presente como “pano de fundo”, nas lutas e disputas pelo domínio do poder
simbólico.
O campo educacional e os espaços de formação docente
O campo educacional recebe influência direta da sociedade a que pertence. As
concepções de conhecimento sofrem transformações oriundas dos elementos que
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compõem o campo social, ao mesmo tempo que tais conhecimentos definem
mudanças substanciais nesse campo. Para ilustrar a interdependência entre os
campos social e educacional, pode-se citar a concretização da polít ica de
universalização do Ensino Fundamental e Médio e, gradativamente, do Ensino
Superior. Devido a essa universalização, um público cada vez mais diverso, se
faz presente no interior do campo educacional, mudando o sentido atribuído à
educação e exigindo uma instituição escolar capaz de atender essa diversidade
social e cultural. A mudança de paradígma do campo educacional, onde o que era
imutável passa a ser enfocado como relativo, relacional e dialógico, trás
mudanças no campo social. Os agentes atingidos pela política de universalização
do ensino, mesmo não estando providos do capital cultural e econômico,
legitimadores do poder, estão no campo social exigindo mudanças e construindo
estratégias de emancipação.
Assim como o campo econômico, político, l iterário, religioso, o campo
educacional possui suas próprias normas, seus próprios valores, seus interesses,
sua hierarquia e divisão social . É um espaço que se estrutura a partir de relações
objetivas, mediante a disputa do capital cultural em jogo pelos seus agentes. Os
agentes do campo educacional, detentores ou não do poder simbólico,
proveniente do capital cultural, sofrem sanções, lutam , concorrem, coagem e são
coagidos, integram-se, fazem e desfazem pactos, são simultaneamente parceiros
e adversários.
Nesse ínterim, percebe-se quanto é complexo analisar todos os espaços de
formação docente, devido à diversidade desses espaços e as lutas concorrenciais
estabelecidas entre os campos e entre os agentes. A formação do professor é
portanto um processo que extrapola as relações internas entre os agentes do
campo educacional e se faz presente no campo social . Devido a essa
complexidade, optou-se, nesse artigo, por estabelecer critérios para análise da
formação docente, priorizando os seus espaços mais formais e comuns: a
universidade, onde acontece a formação inicial e a escola onde o professor atua,
locus da formação em serviço. No espaço da formação em serviço a análise se
detém nos seguintes aspectos: a relação do professor com os determinantes legais
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e as políticas de investimento na formação docente; a relação do professor com
os alunos e com própria prática cotidiana.
As lutas simbólicas nos espaços de formação docente
O campo educacional tem, na última década, defrontado com diversas polít icas
de formação docente, principalmente após a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, Lei Nº 9394/96. Os programas de formação contemplam as
mais diferentes demandas, dentre eles, pode-se citar os programas de formação
em nível superior, os programas de aperfeiçoamento em serviço e os programas
de educação à distância. Além desses programas de formação docente, os
professores, para atendimento às exigências legais, buscam formação, através de
recursos próprios, nas instituições privadas de ensino superior.
O Brasil se depara atualmente com um crescimento quantitativo do ensino
superior, seja pela abertura da legislação que dá possibil idades às insti tuições
de ensino superior privadas criarem os Institutos Superiores de Educação, seja
pela reorganização da estrutura do ensino superior brasileiro 1 , através do decreto
nº 3860 (BRASIL,2001), ou ainda pelo grande contingente de professores que,
por exigência da LDB deverão, nos próximos anos estar habili tados em nível
superior. Esse crescimento quantitativo faz emergir diferentes modelos e
projetos de formação, para atender a crescente demanda de pessoas que buscam,
atualmente, esse nível de ensino. As lutas simbólicas travadas no interior do
campo educacional provenientes de diferentes contextos, e envolvendo os
capitais cultural e econômico, fazem emergir interesses antagônicos entre seus
agentes. De um lado está a grande demanda de professores para serem formados,
do outro estão as instituições de ensino superior, que querem propor cursos e
polít icas de formação, muitas vezes, com o mínimo de custo possível e tendo o
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O decreto nº 3860 (BRASIL,2001) define as seguintes categorias para organização das Inst ituições de Ensino Superior: universidades, centros universi tários, faculdades integradas e inst itutos ou escolas superiores , definindo a abrangência de cada um desses modelos inst itucionais.
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máximo de lucro, principalmente do setor privado, onde se percebe maior
expansão desse nível de ensino.
Aliado a esse crescimento quantitativo, as políticas educacionais no âmbito da
formação docente, definidas pelo Ministério da Educação (MEC), não apresentam
força suficiente para atender aos desafios do mundo contemporâneo, pois estão
permeadas por questões ideológicas, políticas e pragmáticas. Os problemas
iniciais detectados nessa política de formação resultam, entre outros, da
combinação de três fatores: a dualização histórica da reforma, a dicotomia entre
o locus da pesquisa e do ensino e os perversos interesses polít icos, ideológicos
e econômicos nela impregnados.
Com relação ao primeiro fator percebe-se que ao apontar os problemas oriundos
do campo educacional, a atual reforma obscurece as conquistas do passado e
principalmente encobre o modo pelos quais essas conquistas se efetivaram. O
poder ideológico imerso na concepção do “novo” é uma das formas uti lizadas
para a manipulação dos agentes e a conquista dos mesmos como aliados no jogo
do poder. O segundo fator corresponde ao lugar destinado à pesquisa no campo
educacional, pois com a criação dos Institutos Superiores de Educação, corre-se
o risco de separar ainda mais o ensino e a pesquisa. Além disso, a pesquisa
proposta nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
da Educação Básica em Nível Superior: Curso de Licenciatura de Graduação
Plena” (Resolução CNE/CP 1/2002 e Parecer CNE/CP 9/2001) está mais l igada
às práticas intra-escolares de cunho mais imediatista, desligada do teor de
reflexão sobre os condicionantes históricos, políticos e culturais que envolvem
todos os agentes do campo educacional. O terceiro fator, voltado para os
interesses econômicos e políticos já fazem parte das políticas educacionais de
épocas anteriores. Cada vez mais a educação serve ao sistema capitalista e ao
jogo do poder estabelecido pelos organismos internacionais e pelas polít icas
internas mercantil istas. Numa análise mais profunda da política atual de
formação docente, é perceptível a estreita relação entre formação em nível
superior e desenvolvimento econômico para a competitividade nacional. A
própria nomenclatura e conceitos presentes nos documentos legais acompanham
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os termos uti lizados no mercado. As universidades se pautam cada vez mais na
relação custo/benefício e adotam formas de gestão homogeneizantes,
desconsiderando a diversidade de variáveis humanas, polít icas, sociais e
culturais presentes no interior de cada uma delas. E por fim, a mudança de foco
para a definição dos elementos que definirão o capital simbólico inerente ao
campo educacional é outro forte condicionante para fortalecimento do poder
instituído, ou seja, um novo enfoque é remetido ao capital simbólico do campo
educacional, incentivando lógicas de empreendedorismo e mercado em
contradição com a lógica até então inerente ao trabalho acadêmico tradicional.
Ao explicitar as questões acima, não é pretensão estabelecer conclusões, pois as
mesmas seriam precipitadas, devido ao caráter recente e de implantação das
polít icas de formação docente. No entanto, essas abordagens buscam suscitar a
necessidade da pesquisa, da análise, da reflexão e do acompanhamento da
comunidade acadêmica no campo onde se insere essas políticas de formação.
O espaço da formação inicial
A formação inicial, devido à modernização e a expansão do ensino superior
brasileiro para o setor privado, delinea-se num cenário de diversidade e de
pluralidade na organização desse nível de ensino. As várias medidas oficiais
criadas pelo MEC, para reformulação dos cursos de formação inicial de
professores se apresentam num contexto bastante conflituoso. A criação dos
“Institutos Superiores de Educação” como locus para a formação de professores é
explicitada no documento oficial, ressaltando que o propósito do MEC, ao criar
os Insti tutos, é “retirar as licenciaturas da condição de apêndice dos
bacharelados e colocá-las na condição de cursos específicos, articulados entre
si , com projetos pedagógicos próprios” (BRASIL,2001). As “Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em
Nível Superior” aponta os l imites enfrentados por esse nível de formação e
define as diretrizes para a organização curricular e insti tucional dos cursos de
formação docente, bem como os mecanismos para a avaliação dos cursos a ser
realizada pelas instituições formadoras e pelo próprio sistema.
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Essas medidas oficiais têm sido alvo de contundentes críticas à sua forma de
implantação. Na verdade, as crít icas apontam o caráter prescritivo e
homogenizador das diretrizes para a formação inicial de professores, a negação
às experiências historicamente desenvolvidas na área de formação docente, a
culpabilidade implícita, que o documento remete à escola e aos professores pelo
quadro de má qualidade da educação. Apontam, ainda, a centralidade do
documento na dimensão técnica dos âmbitos pedagógicos e organizacional,
destituído da natureza polít ica que deve estar intrínseco nas polít icas de
formação de professores.
Além das críticas sobre as diretrizes curriculares, diversos autores fazem uma
análise com relação aos investimentos na formação inicial, lançando um olhar
mais analítico sobre as políticas públicas de formação docente e sobre os
organismos de financiamento da educação. Torres (1998) destaca que a formação
inicial vem sendo cada vez mais desqualificada e substituída pela formação
continuada. . . . hoje, ao se falar de formação ou capaci tação docente, fala-se de capacitação em serv iço. A questão da formação inic ial es tá se di luindo, desaparecendo. O f inanciamento nacional e internacional dest inado à formação de professores é quase totalmente dest inado a programas de capaci tação em serviço. (Torres ,1998:176)
Os escassos investimentos no âmbito da formação inicial pode estar relacionado
à política de privatização do ensino superior e a busca de resultados mais
imediatistas para os problemas da prática educativa. Tais pressupostos podem até
justificar um investimento maior na formação continuada, mas são paliativos,
com efeitos colaterais, pois a medida que novos professores são absorvidos pelas
instituições educacionais, os problemas oriundos da má formação inicial se
manifestam na pratica docente.
O espaço da formação continuada
Assim como na formação inicial, o espaço onde acontece a formação continuada
ou em serviço, envolve uma série de agentes e de relações no seu interior.
Inicialmente, o foco está centrado nos cursos de curta duração, ofertados pelas
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universidades e por outras agências, financiados por órgãos nacionais ou
internacionais, como meio para alteração da prática pedagógica. O outro foco
centra-se nas relações cotidianas do professor e no seu aprendizado através da
própria prática e da interlocução com os alunos.
Apesar de um maior investimento dos órgãos públicos na formação em serviço, a
maioria dos cursos de capacitação docente mantém com o professor uma relação
superficial. Fornece informações desarticuladas, altera o discurso do professor ,
mas pouco contribui para uma mudança efetiva. As universidades, por serem
consideradas locais de avanço científico e profissional, têm se constituído como
espaço privilegiado para a formação continuada, assumindo programas pré-
estabelecidos por órgãos de fomento, para a formação docente. Porém, pesquisas
na área vêm contrapor a essa visão, enfatizando a dicotomia entre a teoria e a
prática e entre os professores e os órgãos responsáveis pela formação. Candau
(1996) vem reforçar tal abordagem, afirmando que deve ser a escola de Educação
Básica o espaço privilegiado da formação continuada, onde as possibilidades de
produção, socialização e atualização do conhecimento são mais efetivas. A
crít ica também é feita aos processos de formação, que não levam em
consideração o saber docente e os diferentes estágios de desenvolvimento
profissional dos professores.
O locus de formação a ser privi legiado é a própria escola: is to é , é preciso deslocar o locus da formação cont inuada de professores da universidade para a própria escola de 1º e 2º graus.Todo processo de formação tem que ter como referência fundamental o saber docente, o reconhecimento e a valorização do saber docente. Para um adequado desenvolvimento da formação continuada, é necessário ter presentes as di ferentes etapas do desenvolvimento prof iss ional do magistér io; não se pode tratar do mesmo modo o professor em fase inic ial do exercíc io prof iss ional , aquele que já conquis tou uma ampla experiência pedagógica e aquele que já encaminha para a aposentadoria; os problemas, necessidades e desaf ios são di ferentes e os processos de formação cont inuada não podem ignorar essa real idade, promovendo s i tuações homogêneas e padronizadas, sem levar em consideração as di ferentes etapas do desenvolvimento prof iss ional . (Candau,1996:143)
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Devido a esses entraves, a relação dos professores com as polít icas de formação
é de desconfiança, pois a história mostra que o critério dominante nas definições
do desejável e do possível em matéria de polít icas educativas é quase sempre o
financeiro. São os custos que definem as estratégias de formação , é o capital
econômico o legitimador desse campo. E mais, tais polít icas não respondem à
complexidade e a urgência da situação. Os professores se limitam cada vez mais
a serem operadores do ensino e a ocuparem posições cada vez mais
desprestigiadas no campo educacional.
Verifica-se que em determinados momentos os cursos de formação continuada
aparecem, com nova roupagem. Pensado, hierarquicamente, pelos órgãos de
financiamento, através de estratégias bem articuladas, legitimam posições e
interesses de grupos específicos em detrimento às reais necessidades da
educação. Atualmente, o próprio projeto neoliberal, onde o poder é instituído
através da concentração de capital e de monopólios financeiros, penetra no
campo educacional transvestido de “qualidade total no ensino”. Esses programas
de qualidade na educação envolvem os docentes num redemoinho de novidades,
prescrições e disputas, imbuindo-lhes incumbências e depositando-lhes
responsabilidades, que não são deles. Bourdieu alerta que ”a política neoliberal,
disfarçada sob o nome de globalização, é uma ameaça à civilização”. (O
Globo,25/01/2002:20). Esses ditames da globalização e das tendências de
modernização empresarial precisam ser melhor analisados pelas políticas
educacionais e seus agentes. É preciso verificar nos processos de formação
docente, quais os reais interesses dos grupos detentores do poder.
Além do enfoque dado às políticas educacionais de formação e capacitação
docente, existe outro enfoque, igualmente importante, que contribui para a
formação do professor e que é proveniente da sua relação com a própria prática ,
tendo como parceiros os alunos e os colegas de trabalho. A ação pedagógica,
desenvolvida pelo professor, constitui-se como componente importante, para o
enriquecimento de sua prática docente.
A “Ação pedagógica” é entendida como a imposição da cultura arbitrária de um grupo/poder reconhecido legi t imamente. Ela é
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objet ivamente uma violência, num primeiro sent ido, em que as relações de forças entre os grupos ou as c lasses const i tut ivas de uma formação social es tão na base do poder arbi trário. (Canesin, 2002:.89)
O Poder instituído na ação pedagógica realizada no espaço escolar, está
legitimado nos currículos e na própria autoridade do professor, seja ela oriunda
do saber ou da própria posição, que ele ocupa no campo do poder. O professor é
então o legitimador dos modos de pensar e agir do aluno, através da cultura que
lhe é enculcada. Essa cultura visa a formação do Habitus, que Nogueira (2002)
considera como o conjunto de aprendizados adquiridos ao longo da vida e que
dão ao sujeito possibil idades de dialogar com a realidade e nela deixar suas
marcas. É através do Habitus, que a cultura enculcada continua se manifestando,
mesmo após o término da ação pedagógica. Também Ortiz (1983:15) considera
que “O habitus, tende portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida
em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução
dessas mesmas relações objetivas que o engendraram.”
Ao analisar a teoria de Bourdieu, Ortiz (1983), define que a ação pedagógica
escolar transforma o habitus produzido pela ação pedagógica familiar, e constitui
requisito importante, para a estruturação das experiências futuras dos agentes
envolvidos.
O professor, na relação dialética com os demais agentes da ação pedágogica,
modifica o seu próprio habitus numa construção/reconstrução que determina e
influencia a sua formação profissional. Sua relação com os alunos, com a sua
própria prática cotidiana, com o sistema, enfim, com toda a multiplicidade de
relações que o mesmo estabelece no campo educacional, irá determinar,
sobremaneira, a sua evolução profissional, seja no plano de agente dominante ou
dominado. Embora a ação pedagógica seja considerada arbitrária, porque impõe
determinadas significações, que devem constar no conteúdo a ser desenvolvido,
excluindo as que não interessam às relações de poder, o professor tem nela
oportunidade de reflexão e de ressignificação da sua prática .
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A posição do professor frente aos espaços formadoresÉ num acirrado, competitivo e um tanto indefinido campo educacional, onde se
manifestam as lutas simbólicas, que os professores são formados. Agentes de um
cmpo onde o poder oscila entre o capital cultural e o capital econômico.
Para uma melhor compreensão da posição do professor na hierarquia que se
estabelece no campo do poder é importante salientar que Bourdieu, ao discutir a
posição do professor no campo do poder, legit imado pelo capital cultural, ele se
refere ao professor universitário, pois o professor da Educação Básica é
considerado não detentor do poder desse campo específico. O professor
universitário ocupa, portanto, posição privilegiada em detrimento dos demais
professores da Educação Básica. Este, de posse do capital cultural , pode adotar
estratégias de conservação da posição dominante e da legitimação do poder, ou
estratégias de transformação, tendo em vista o grau de comprometimento
polít ico mantido com os agentes educativos. Entretanto, quando o capital que
legitima o campo do poder é o econômico ou o administrativo, o professor ocupa
dentro desse campo posição desprestigiada e dominada. Nesse sentido ele pode
optar pelo estado de acomodação e omissão ou adotar posições de contestação em
relação à estrutura das relações de poder e desenvolver estratégias de
emancipação. Assim, o locus da formação docente pode ser considerado um
espaço ocupado por diferentes agentes, que ora ocupam posições privilegiadas,
ora ocupam posições de subordinação.
Apesar de Bourdieu demonstrar num plano mais amplo de análise social, que a
escola reproduz e legitima os interesses da cultura dominante, considerando isso,
basicamente inevitável, algumas críticas a esse posicionamento merecem
destaque. Principalmente, se a análise for feita num plano microssocial e levar
em consideração a diversidade interna do sistema de ensino, ou seja, é possível
ocorrer dentro da escola, iniciativas que busquem promover o respeito às
diferenças e propostas de determinados grupos, para suprir a defasagem da
cultura escolar dos alunos oriunda da ação pedagógica familiar. É para transpor
esses dilemas que o professor deve estar preparado, não como mero reprodutor
da cultura escolar dominante, mas como mediador das diversas culturas e
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linguagens que cada agente, integrante do espaço escolar, trás consigo. Não se
trata de otimismo pedagógico acreditar na força transformadora que advém de
cada professor, acreditar numa formação para a diversidade e para o diálogo
entre os agentes, que compõem as instituições de ensino, mesmo entendendo-as
como espaço de poder, onde cada agente busca manter posições, conquistar
espaços e impor idéias. É preciso acreditar ser possível desestruturar o campo
do poder dominante, colocar em dúvida convicções e desestabilizar conceitos,
para construir diferentes formas de pensamento e ação e uma nova relação entre
os agentes do campo educacional.
No campo educacional, não só os professores se rebelam contra o capital escolar
dominante, também os alunos o fazem das mais diferentes formas. Até mesmo
quando se recusam, inconscientemente, a apreendê-lo, estão dando respostas,
exigindo mudanças nas ações pedagógicas, e reivindicando respeito às culturas
dominadas presentes no interior da escola.
Além dos professores e dos alunos que demonstram suas posições, aderindo ou
rejeitando as reformas implantadas, o envolvimento da sociedade científica e das
organizações da área da educação constitui-se elemento fundamental para
fomentar discussões sobre as políticas de formação e fortalecer ou refutar
concepções defendidas por elas. Pode servir também para estabelecer o diálogo
entre os dois extremos nas relações de dominação, tendo em vista o poder que
lhes é conferido pelo capital cultural que detêm.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode observar, o campo onde despontam as lutas e as disputas no
cotidiano das instituições escolares, perpassam por situações incertas, complexas
e portadoras de conflitos. Além disso, as relações de poder presentes nos espaços
de formação docente se manifestam de diferentes formas e através de uma
multiplicidade de fatores que estão interligados e são interdependentes. Portanto,
a formação do professor, seja inicial ou continuada, precisa fornecer subsídios,
para que ele compreenda a sua posição no campo do poder, percebendo que cada
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agente ocupa no campo, espaços que possibilitam ações dialéticas em seu
interior.
Finalmente, estar alerto às formas simbólicas de poder e de opressão no campo
educacional é responsabilidade de cada um dos seus agentes. Principalmente
daqueles que ocupam posição hierarquicamente desprestigiada pelo capital
cultural e econômico insti tuídos. A transformação advém das lutas que são
travadas entre os diversos campos e seus agentes. No campo educacional,
especificamente, o professor pode se tornar um agente de transformação e de
emancipação, pois, por mais restrita que seja a sua posição na hierarquia do
poder, seu estado não é de mobilidade, ele é livre para agir e para dar diferentes
respostas às disputas empreendidas no seu espaço social.
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