boltanski, l. sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária..pdf
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Traduo de Philippe Dietman
Que retorno de Qual crtica?
Em Le nouvel esprit du capitalisme, escrito em colaborao com Eve Chiapello
entre 1995 e 1999, portanto h mais de dez anos, procuramos compreender
como a crtica, em particular a crtica do capitalismo, muito intensa nos anos
1965-1975, foi praticamente silenciada nos anos 1985-1995 (ver Boltanski &
Chiapello, 1999). Mas, ao final deste trabalho, levando em conta, notadamente,
os movimentos de greve de 1995, mas tambm a proliferao de associaes
que desenvolviam atividades crticas em vrios domnios, pensvamos poder
identificar sinais de uma reviravolta de tendncia se assim se pode dizer ,
aps o declnio dos anos 1985-1990, um retorno e uma renovao da crtica.
Podemos certamente dizer, dez anos depois, que este retorno aconteceu
efetivamente. No mundo artstico e intelectual, as obras orientadas crtica
proliferaram nos ltimos anos, tanto na rea da filosofia ou da sociologia, quan-
to, por exemplo, no teatro. No domnio do emprego, o movimento contra o
Contrato de Primeiro Emprego (CPE)1 em 2006, e no mundo acadmico, o movi-
mento contra a reforma da Universidade e do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) em 2008-2009, no tiveram o mesmo sucesso, mas estive-
Sociologia da crtica, inStituieS e o novo modo de dominao geStionria
Luc Boltanskii
i cole des Hautes tudes em Sciences Sociales (EHESS), Frana
boltansk@ehess.fr
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ram longe de ser insignificantes. Nas empresas, movimentos de greves e revol-
tas tenderam amplamente a serem retomados ao longo dos ltimos cinco anos,
conforme demonstrado por vrios estudos em sociologia do trabalho, mesmo
que esses movimentos, na maioria dos casos, tenham sido pouco divulgados
nos meios de comunicao. No campo estritamente poltico, vrios indicadores
apontam na mesma direo, da rejeio no referendo sobre a Europa de 2005,2
at a formao de novos partidos posicionados esquerda do Partido Socialis-
ta, partidos esses que querem ser radicalmente crticos.
No entanto, as diferenas em relao aos anos 1965-1975 so bvias. A
principal diferena me parece ser a seguinte: ela nem est associada a um nvel
diferente de intensidade, o que poderia ser chamado de desejo de crtica, nem a
uma marginalizao dos atores da crtica. Por volta do ano de 1968, a intencio-
nalidade crtica era assumida por indivduos ou minorias, como ainda o caso
hoje. Mas, nos anos 1960-1975, a crtica produzia efeito. De alguma forma ela
impactava o mundo social e o espao poltico. Mas, parece que hoje em dia o
aumento da crtica no acompanhado por um aumento, no mesmo grau, do
poder da crtica, como se ela no tivesse mais impacto sobre a realidade. Talvez
seja apenas uma impresso, mas, ainda que seja, ela compartilhada por muitos.
Parece-me que esta situao precisa ser examinada, e as questes que
ela levanta podem orientar nossa ateno em duas direes. Podemos olhar
para a crtica e indagar suas formas atuais: ela seria obsoleta, no teria progra-
ma poltico e no apresentaria alternativas claras etc. um discurso que se
ouviu muito na Europa nos ltimos anos. No entanto, parece-me mais interes-
sante olhar na outra direo, ou seja, analisar as mudanas que ocorreram nos
dispositivos de governana sejam eles pblicos ou privados, o que hoje mais
ou menos a mesma coisa isto , nos dispositivos que permitem aos respon-
sveis conter a crtica e manter inalteradas as principais assimetrias sociais
existentes, ou mesmo ampli-las. Em um trabalho como este, ateno particu-
lar deveria ser dada a meu ver conjuno entre duas orientaes cujos
contornos e usos so relativamente diferentes, ou at divergentes.
Por um lado, verifica-se a instrumentalizao da cincia econmica por
lderes polticos e econmicos. Esta instrumentalizao consiste numa expli-
cao rpida em dar-lhe visibilidade pblica e torn-la a principal ferramen-
ta capaz de escolher, entre tudo o que acontece, os eventos relevantes, e tam-
bm em dar-lhes significado, encaixando-os em um quadro unificado e asso-
ciando-os a certos mecanismos. Os economistas dizem diariamente nas arenas
pblicas, particularmente nos meios de comunicao ou nos debates de espe-
cialistas, qual o estado do Planeta, visto pelo prisma dos seus prprios siste-
mas contbeis. Esta disciplina, neste sentido, substituiu a histria como o prin-
cipal instrumento para a formulao de uma narrativa abrangente. E o tipo de
trama que ela pratica apela, fundamentalmente, no apenas como na histria
noo de causalidade, mas, sobretudo, de necessidade.
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jefersonscabioRealceMudanas que ocorreram nos dispositivos de governana: dispositivos que permitem aos responsveis conter e a crtica e manter inalteradas as principais assimetrias
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A segunda orientao pode ser caracterizada pelo fortalecimento e o
aperfeioamento das tcnicas de management e das ferramentas de gesto. Es-
tas ltimas, desenvolvidas inicialmente no quadro das grandes empresas, foram
agora importadas pelas esferas pblica e poltica. Mas devem ser ressaltados
trs pontos. O primeiro que no se pode ignorar tudo que o aperfeioamento
das tcnicas de gesto e, mais amplamente, dos modos de governabililidade
que elas possibilitam, deve s contribuies das cincias sociais. No s,
claro, a economia, mas tambm, e, talvez, sobretudo no caso da gesto, a so-
ciologia, a economia e as cincias cognitivas. O segundo ponto diz respeito
orientao destas tcnicas em direo eficincia prtica. Ao contrrio do eco-
nomismo, elas no enfatizam a necessidade, mas o agir e o poder de agir sobre
a vontade, sobre a autonomia e sobre a liberdade, uma vez que esta se ope
necessidade. Enfim, o terceiro ponto diz respeito ao uso poltico que feito
destas tcnicas. Ao contrrio da economia, as tcnicas e ferramentas de gesto
no so divulgadas publicamente, notadamente nos meios de comunicao.
Elas no esto colocadas na trama. So reservadas aos atores e especialmente
queles que esto em posies de poder, os responsveis. a sua liberdade
de ao que elas permitem otimizar. Os subordinados as conhecem principal-
mente por intermdio das medidas fragmentadas s quais eles esto submeti-
dos e das orientaes que devem aplicar.
a caixa de ferramentaS
O esboo de anlise que vou apresentar baseado em algumas das noes
produzidas em um livro recente, De la critique (Boltanski, 2009), para tentar
especificar o que eu chamaria de diferentes sistemas polticos de dominao.
Para ser breve, lembrarei a seguir apenas alguns pontos deste trabalho.
O primeiro ponto diz respeito ao nvel das reivindicaes. Uma pergunta
persistiu no pensamento crtico, da Escola de Frankfurt at a sociologia crtica
francesa da dcada de 1970: saber por que os explorados aceitam uma situao
que, especialmente nos regimes polticos que reivindicam o legado da Revoluo
Francesa, est claramente em contradio com as exigncias afirmadas de liber-
dade e igualdade. Proponho uma resposta, no em termos de internalizao das
ideologias dominantes, ou seja, de iluso, mas em termos de realismo. Os explo-
rados num registro econmico, ou os dominados num registro categorial ou
simblico, no tm necessariamente iluses sobre a natureza injusta ou assi-
mtrica da ordem social. Longe disto. Mas eles autolimitam suas reivindicaes
com base em suas avaliaes das possibilidades que as mesmas tm de serem
reconhecidas e assim, serem mais ou menos satisfeitas, dentro da realidade.
Um segundo ponto pretende esclarecer o que se deve entender por reali-
dade e introduzir uma distino, que desempenha um papel central neste con-
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texto, entre realidade e mundo. A realidade entendida no sentido da realidade
socialmente construda por uma rede de formatos de provas, regras, rotinas,
formas simblicas e objetos. Mas essa realidade, que o resultado de uma
seleo e uma representao, no inclui o mundo, isto , tudo o que acontece.
Disto decorrem duas proposies: a primeira consiste em distinguir di-
ferentes tipos de crticas, mais ou menos reformistas e mais ou menos radicais.
A crtica reformista no questiona o contexto da realidade como um todo e
particularmente os formatos das provas existentes. Mas ela se dedica, seja a
denunciar realizaes locais que no esto em conformidade com os seus tipos
(o termo sendo entendido no sentido da oposio entre token e tipo), seja a
denunciar incoerncias entre diferentes elementos que constituem a realidade,
levando a modificar alguns formatos sem afetar o todo. A crtica radical, dizen-
do rapidamente, questiona a realidade da realidade. Ela vai buscar no mundo ele-
mentos que permitem desconstruir as convenes at ento admitidas e, assim,
desestabilizar a realidade como um todo.
Uma segunda consequncia da oposio entre realidade e mundo que o
grau de robustez da realidade no de uma grandeza estvel. Ele depende da
conjuntura histrica. De fato, o nvel de realismo dos atores e, por conseguinte,
as suas aspiraes, tambm so variveis. As aspiraes que, por realismo, po-
dem ser moderadas quando a realidade parece muito robusta, tendem a au-
mentar quando a realidade passa a se desfazer. Tal processo caracteriza os
perodos de rpida mudana e, claro, os perodos chamados de revolucionrios.
Um terceiro ponto diz respeito relao entre o trabalho de manuteno
da realidade e o trabalho de questionamento da realidade. A ideia principal que
o trabalho de manuteno da realidade desempenhado pelas instituies. O
foco colocado (como explicado por Searle, 1998) sobre as funes semnticas
das instituies. Elas defendem e reforam a relao estabelecida entre formas
simblicas e estados das coisas. Elas confirmam que o que , realmente , e,
assim, garantem a confirmao da realidade da realidade. o motivo pelo qual
as instituies so descritas, neste contexto, como instncias de confirmao. Ao
contrrio, essa relao entre formas simblicas e estado das coisas desesta-
bilizada e questionada pela crtica, pelo menos quando a mesma toma formas
radicais. Em contrapartida (por razes que demorariam demais para serem
detalhadas aqui), a crtica no pode ser, estritamente falando, institucionali-
zada, mesmo que os dispositivos crticos possam ser implementados. Por cau-
sa dessa assimetria, as instncias crticas so consideradas portadoras de al-
gum tipo de limitao em relao s instncias institucionais.
Mas, em vez de remeter as instituies ao descrdito (o que uma ten-
dncia do pensamento crtico) estou tentando mostrar que elas desempenham,
intrinsecamente, funes positivas de segurana semntica e funes negativas
de violncia simblica.
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Um quarto ponto diferencia tipos de provas (um conceito introduzido no
livro que escrevi com Laurent Thvenot, De la justification). Sejam provas de
verdade que encenam os arranjos simblicos que fortalecem as instituies
(como, por exemplo, cerimnias); provas de realidade, que confrontam, de acor-
do com formatos predeterminados, as aspiraes dos atores realidade, na
forma em que ela construda em uma sociedade determinada; ou, ainda, pro-
vas existenciais, por meio das quais elementos que no so reconhecidos como
parte da realidade construda, so tirados do mundo. assim, em grande parte
a partir das provas existenciais, que surgem as formas de subjetivao que iro
alimentar a crtica radical (ver Boltanski & Thvenot, 1992).
Finalmente, um quinto ponto pretende explicitar a ambiguidade das ins-
tituies e relatar a possibilidade mesma da crtica. Centra-se na contradio
imanente vida institucional, que eu chamo de contradio hermenutica. Esta
contradio sobre a qual no cabe me alongar aqui trata da tenso entre a
natureza obrigatoriamente incorprea das instituies (que so entes sem cor-
pos) e a natureza necessariamente corporal dos porta-vozes que permitem s
instituie intervir na realidade. Esta tenso redobrada quando se trata das
regras editadas pelas instituies cujo carter semntico est ameaado pelas
condies pragmticas de sua implementao.
Em resumo, aqui esto alguns elementos da caixa de ferramentas. Uti-
lizando essas ferramentas, vou tentar agora distinguir esquematicamente o
que pode ser chamado de diferentes sistemas polticos de dominao associa-
dos no s a diferentes formas de manuteno das assimetrias sociais funda-
mentais, mas tambm a diferentes formas de enfrentar as crticas. Trata-se de
tipos ideais que podem se combinar de diversas formas.
A violncia fsica desempenha um papel central no primeiro caso, o da
dominao pelo terror. Esta a maneira mais simples de exercer uma dominao.
Um segundo caso pode ser caracterizado por uma grande distncia entre o que
se prega oficialmente e o que realizado de fato. Pode ser aplicado, para este
segundo modo de dominao, o termo de ideolgico e este certamente aquele
no qual a ideia de crtica como operao de desvelamento cabe melhor. identi-
ficarei, finalmente, um terceiro modo de dominao que eu chamo de gestion-
rio (tomando emprestado o termo de Albert Ogin [1995]). Vou sugerir a ideia
de que esse modo de dominao caracteriza, pelo menos como tendncia, as
formas de governana que se implementam nas democracias capitalistas con-
temporneas. interesso-me, particularmente, por este terceiro modo e a forma
como ele tende a limitar o poder de crtica.
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possvel identificar os efeitos da dominao mais simples em situaes-limi-
tes associadas a contextos em que o medo desempenha um papel fundamental.
As pessoas esto, aqui, total ou parcialmente privadas de liberdades elemen-
tares. Profundas assimetrias so mantidas ou criadas estabelecendo uma vio-
lncia explcita, e principal, mas no exclusivamente, fsica. No entanto, me
parece prefervel, no caso deste tipo, para o qual a escravido funciona como
paradigma, falar de opresso. Mas pode-se tambm invocar a opresso, em cer-
tos casos menos extremos, em que a manuteno de uma ortodoxia obtida por
meio de uma violncia, notadamente um terror policial, para reprimir a crtica.
Em situaes de opresso, as pessoas dificilmente podem reconhecer
algo em comum, considerando as outras relaes alm daquelas que so leva-
das em conta pelas classificaes oficiais. Como mostrado na literatura sobre
a escravido (sem mesmo mencionar o caso extremo dos campos de concen-
trao), o coletivo crtico impossvel ou muito difcil de se formar. A sua
fragmentao prevalece. No s a crtica excluda, mas tambm o a possi-
bilidade de questionar o que est acontecendo, o que se constitui, talvez, no
primeiro movimento de crtica (aqui, no se fazem perguntas). Crtica e ques-
tionamento sendo impossveis, aqueles que exercem a dominao no precisam
justificar suas aes.
Pelas mesmas razes, estas situaes podem tambm, em larga medida,
fazer economia de amplas implementaes ideolgicas. A ideologia neste caso
visa, sobretudo, sustentar a moral dos agentes que exercem diretamente a vio-
lncia fsica. De fato, o exerccio da violncia uma tarefa relativamente difcil
de se executar friamente, e a longo prazo, sem apoio ideolgico, se que pode-
mos dizer, sem apoio moral. Mas neste tipo de contexto, pode-se fazer eco-
nomia de uma ao ideolgica intensa visando os dominados o que sempre
custoso , j que a coordenao das aes no exige o consentimento, mas
obtida diretamente pela violncia ou por sua ameaa e pelos dispositivos uti-
lizados. Da mesma forma, e por razes semelhantes, as instncias de confir-
mao so reduzidas ao mnimo. Considerando a impossibilidade de questionar
sobre o que , a presena de instncias para confirmar se o que , realmente,
intil.
Em tais situaes, a crtica muitas vezes silenciosa e tcita. Qualquer
gesto imprevisto, seja um gesto de desobedincia ou, sobretudo, um gesto de
solidariedade, mesmo realizado em segredo, pode ser considerado uma mani-
festao crtica.
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dominao pela ideologia e diStncia
entre o oficial e o extraoficial
Em um modo de dominao pela ideologia (que pode, alis, se as circunstncias
o exigirem, recorrer ao terror), a crtica parece, at certo ponto, possvel. Mas
os atores nunca sabem o quanto ou quo longe eles podem ir sem que os cus-
tos da crtica se tornem exorbitantes. Aqueles que exercem o poder expem
publicamente as razes de suas decises e aes e, portanto, afirmam subme-
terem-se s exigncias de justificao. Nestes contextos, a principal diferena
se d entre o oficial e o extraoficial. De fato, as justificativas oficiais no so
confrontadas com a realidade. Existe algo parecido com provas de realidade
encaixadas em formatos. Mas difcil (e s vezes perigoso) controlar a confor-
midade do andamento e do resultado das provas implementadas localmente,
aqui e agora, com o formato ao qual elas deveriam corresponder.
Da mesma forma, as demandas da justia (meritocrtica ou social) podem
ser reconhecidas oficialmente como, por exemplo, os requisitos de reversibilida-
de dos estados de grandeza3 (igualdade de oportunidades) ou, ainda, de separa-
o das formas de avaliao das capacidades visando dificultar a acumulao
das desvantagens, mas elas tendem a permanecer confinadas s declaraes,
sem serem acompanhadas dos dispositivos que permitiriam coloc-las em pr-
tica. As justificativas se degradam em meros pretextos, e tomam a forma de pala-
vras verbais como dizem, ironicamente, aqueles a quem se destinam.
Estes ltimos, longe de serem enganados, frequentemente desenvolvem
interpretaes realistas, isto , sem iluses, da condio que lhes imposta.
Nestes contextos, um saber extraoficial constituido a partir de experincias
cotidianas, saber este que proibido de se tornar pblico. As provas existenciais
conseguem difcilmente ser compartilhadas e transformadas em reivindicaes.
Os esforos para criar ou manter as margens de autonomia se expressam na
forma de um arranjo individual ou em pequenos grupos. Os atores, para redu-
zir as restries que pesam sobre eles, desenvolvem uma competncia inter-
pretativa especfica para identificar espaos de liberdade, aproveitando as fa-
lhas nos dispositivos de controle.
isto significa tambm que as pessoas comuns, que sofrem os efeitos
da dominao, no perdem nem seu senso de justia, nem seu desejo de liber-
dade, nem a justeza das suas interpretaes no que diz respeito ao que acon-
tece na realidade ou, por assim dizer, a sua lucidez. Mas essa lucidez pessoal
que assume a forma de ceticismo raramente leva a uma ao coletiva.
Confrontado com este ceticismo e para alcanarem credibilidade, as
instncias encarregadas de apoiar certo estado do que e do que vale, buscam
reduzir as disposies crtica de duas maneiras. Por um lado, confirmam
repetidamente a ordem estabelecida atravs da demonstrao espetacular de
conjuntos simblicos, tais como rituais, cerimnias, desfiles, concesso de con-
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decoraes, discursos, comemoraes etc. (ou seja, por provas da verdade). Por
outro lado, quando isto no suficiente, aquelas instncias apelam s autoridades
detentoras dos meios de violncia (geralmente dependentes do Estado) de forma
a manter a sua dominao por meio da represso.
Em geral, a dominao pela ideologia (acompanhada ou no por uma do-
se de terror) orientada de forma quase obsessiva para a manuteno de uma
realidade que j existe, que deve ser protegida contra interferncias que pode-
riam levar em conta experincias conectadas com o mundo. Em decorrncia dis-
to, uma crtica reformista pode ser julgada aceitvel (mesmo que no seja real-
mente posta em prtica), mas no uma crtica radical. O objetivo procurado po-
de ento ser caracterizado pela recusa da mudana e as medidas tomadas tm al-
go a ver com o estado de guerra contra o inimigo interno perptuo.
Em situaes como esta, a crtica, quando consegue se organizar e ser ou-
vida, pode facilmente revelar a distncia entre o oficial e o extraoficial; entre os
valores oficialmente proclamados e os atos. Ela tambm pode denunciar a hipocri-
sia dos dominantes. Ou, ainda, denunciar a sua relutncia em mudar e seu con-
servadorismo ou passadismo. Foram temas que alimentaram a crtica no sculo
XiX e na primeira metade do sculo XX.
modoS de dominao geStionria
Nas ltimas dcadas do sculo XX foram se desenvolvendo outras formas de do-
minao compatveis com as sociedades hipercapitalistas e baseadas politicamen-
te na democracia eleitoral. Uma das caractersticas desses sistemas no apenas
ter rompido com um modelo de dominao utilizando o terror, mas tambm ter
quase enterrado as ideologias (o tema do fim das ideologias). Neste caso, a apro-
ximao entre o exerccio do poder e a conduo de uma guerra, ou a ideia mesmo
de dominao, podem parecer sem fundamento.
Nestes contextos polticos, os fatos e as aes realizadas em um espao
pblico esto sujeitos a explicaes e at a discusses, e as pretenses antagonis-
tas das pessoas esto sujeitas s provas de realidade, pelo menos quando as dispu-
tas ocorrem no espao pblico. H procedimentos para organizar as relaes entre
as instituies e a crtica que deve ser ouvida (se no necessariamente satisfeita),
pelo menos quando ela se manifesta de maneira considerada compatvel com as
convenes legtimas. Portanto, precisamente a introduo de um novo tipo de
relacionamento entre as instituies e a crtica e, de alguma forma, a incorporao
disso nas rotinas da vida social, que caracterizam esses dispositivos.
No entanto, neste tipo de contexto histrico, podem-se identificar os efeitos
de dominao de outra natureza, compatveis com as exigncias de uma socieda-
de capitalista democrtica. Uma das suas caractersticas garantir uma forma
de dominao que insista na mudana.
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Estas formas de dominao, que podem ser chamadas de gestionrias
para recordar a importncia que tm as disciplinas de gesto so adaptadas
s modalidades de explorao que fazem economia da fora fsica, mas tambm
de algum grau de persuaso. A explorao se aproveita da instrumentalizao
de diferenciais para gerar lucro, e estes podem ser de natureza diversa. Trata-se,
em primeiro lugar, do diferencial de propriedade. Mas tambm pode ser, por
exemplo, o diferencial de mobilidade, do qual Eve Chiapello e eu tentamos
mostrar a importncia crescente no Le nouvel esprit du capitalisme. Num quadro
gestionrio, os processos de dominao esto associados com a manuteno
duradoura de uma ou vrias assimetrias profundas, no sentido em que os mes-
mos se beneficiam de todas as provas (ou quase), enquanto para outros sem-
pre tambm os mesmos as provas sempre tm resultados adversos (ou quase).
Mas a manuteno dessas assimetrias no assumida por indivduos
facilmente identificveis. Uma das propriedades mais relevantes da dominao
gestionria , de fato, ser sem sujeitos. Ela baseada em dispositivos dos quais
indivduos ou grupos podem tirar maior ou menor proveito, dependendo das
estratgias que eles adotam. Portanto, diferentes pessoas podem, em diferentes
momentos, controlar esses dispositivos, o que torna difcil a identificao pela
crtica dos detentores do poder de agir. Porm, mesmo que materializados em
indivduos, estes dispositivos continuam a ser mais ou menos impessoais. A
questo de saber quem so os dominantes muitas vezes tem um carter pro-
blemtico.
Por outro lado, as medidas implementadas no aparecem nem como se
elas fossem o resultado de aes realmente intencionais, nem mesmo como
sendo necessariamente desejveis em si. Elas no se definem, com prioridade,
por referncia a um universo de valores antagonistas ou concorrentes, entre
os quais as escolhas deveriam ser feitas e com relao aos quais as aes de-
veriam ser justificadas. Este modo de governana remete a uma lgica comple-
tamente diferente, que a da causalidade. sempre a necessidade, no sentido
da necessidade causal, que determina as medidas tomadas, e fornece uma expli-
cao em vez de uma justificao.
Quando a manuteno ou o aumento das assimetrias questionado pe-
la crtica, o que acaba acontecendo, a defesa da ordem das coisas existente d
lugar a explicaes que se apoiam principalmente em dois tipos de motivos.
Em nvel macro, so invocadas as evolues atribudas a um espao indepen-
dente e neutro, no qual as vontades individuais no tm nenhum controle.
Trata-se, geralmente, da cincia, da tecnologia e, claro, da economia como ci-
ncia e como tcnica. Em nvel micro, as explicaes invocam, sobretudo, a
ao das pessoas que, na maioria das provas, no so mostradas verdadeira-
mente em vantagem porque, por exemplo, supe-se que bebem, se drogam ou
no querem realmente trabalhar. Esta forma de culpar a vtima4 equivale a
deslocar para a responsabilidade individual o peso das restries que so
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apresentadas, no nvel macro, como as foras objetais sobre quais as vontades
individuais no tm influncia. Duas figuras esto assim combinadas. Por um
lado, a figura da necessidade, no que ela tem de inexorvel; por outro, a figura
da liberdade, declinante no registro da autonomia e da meritocracia.
a robuStez da realidade
Uma das caractersticas dos efeitos da dominao gestionria fornecer menos
abertura crtica do que a dominao pelo terror, ou at mesmo pela ideologia.
No caso de sistemas que funcionam pela ideologia, a sociologia crtica pode
recorrer temtica da iluso para explicar a aceitao aparentemente mais ou
menos passiva das assimetrias por aqueles que esto pagando o preo. Espera-
-se deles a adeso a uma ordem ideolgica, porque eles a teriam internalizado
ou at mesmo incorporado, o que, em outras palavras, significa que eles desejam
o que os oprime um argumento que remete temtica da neurose e pode fa-
cilmente se apoiar em esquemas psicanalticos. Ou, ainda, eles no acreditam,
mas acreditam que os outros acreditam. Ou eles no acreditam, e eles sabem
que os outros tambm no acreditam, e que os outros tambm sabem que eles
mesmos no acreditam, embora todos cooperem para manter a iluso de uma
crena, por medo de ver a realidade entrar em colapso se esta descrena tacita-
mente compartilhada se tornasse um saber comum (como nas anlises inspira-
das do famoso artigo de Octave Mannoni, Eu sei, mas mesmo assim..., 2006 [1964]).
Mas para entender um sistema de dominao gestionria, estas anlises
sutis so de pouca utilidade. Em um sistema desse tipo, no solicitado aos
atores e, especialmente aos mais dominados entre eles, se renderem iluso,
porque no se pede a eles para aderirem ordem estabelecida de forma entu-
siasmada. Pede-se a eles que sejam realistas. Ser realista, quer dizer, aceitar as
restries, notadamente econmicas, tais como elas so, no porque sejam
boas ou justas em si, mas porque no podem ser diferentes do que so.
Para um tipo de mudana, no mais, ento, a temtica da autonomia
que privilegiada, mas aquela da dependncia causal. Autonomia e dependn-
cia formam uma dupla que se substituem mutuamente, dependendo do con-
texto. A serialidade como ligao de impotncia para retomar as palavras
de Sartre em Crtica da razo dialtica (Sartre, 1906: 352), prevalece sobre a te-
mtica da ao voluntria. Cada indivduo particular, independentemente de
sua importncia ou grandeza, no mais tratado como o elo de uma srie
causal que predeterminaria as suas aes. No se pede a ele nada alm de se
conscientizar da sua prpria impotncia. E precisamente esta forma bem
particular de conscientizao, que deve lhe servir de realismo.
Uma das contribuies do trabalho de sociologia pragmtica da crtica
desenvolvida ao longo dos ltimos vinte anos tem sido de mostrar que os ato-
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res no eram abusados (pelo menos certamente no tanto quanto sugere a
sociologia crtica dos anos 1960-1970) e que, por tudo o que se referia ao curso
normal das suas atividades, e as injustias que podiam sofrer em sua vida
cotidiana, eles no tinham realmente iluso. Mas ela tambm mostrou que
esta lucidez no lhes dava o sentimento de ter condio de mudar a realidade.
Como entender este conjunto paradoxal de lucidez desencantada, at
mesmo de desgosto e de sentimento de impotncia, muitas vezes resultando
em um afastamento da esfera de ao poltica e, principalmente a falta de
interesse, no s pelo exerccio militante, mas at mesmo por essa forma m-
nima de atividade poltica que consiste em votar? Pode ser que seja necessrio,
para dar-lhe significado, colocar temporariamente entre parnteses interpre-
taes com as quais estamos familiarizados. Por exemplo, aquelas que invocam
o medo ou a covardia, as crenas e as esperanas ilusrias, a desinformao e
o desvio das insatisfaes para bodes expiatrios, alimentados pelas mdias,
ou a ascenso do individualismo, um tema que constituiu a ltima grande
narrativa scio-histrica ainda disponvel aps a grande faxina operada pelo
ps-modernismo. Tais interpretaes, que, em ltima anlise, se baseiam final-
mente na psicologia social, contornam o que deveria nos interessar em primei-
ro lugar, ou seja, a realidade.
Mas, em um sistema de poltica gestionria, o realismo ocupa o centro
do dispositivo de dominao. Ele constitui, ao mesmo tempo, o princpio de
justificao no qual os dominantes se apoiam e a virtude que eles exigem dos
dominados. Mas no se trata apenas de um discurso, ou por assim dizer, uma
ideologia. O que caracteriza um sistema deste tipo , de fato, a sua capacidade
de ligar no apenas idealmente, mas tambm nos fatos, os elementos diversos
que compem a realidade para torn-los intimamente interdependentes. Ou,
ainda, sua capacidade de constituir uma realidade em que tudo se encaixa, ou
seja, uma realidade cuja fora teria uma dimenso absoluta. A realidade con-
siderada como algo externo, que seria independente das relaes sociais (ou,
por assim dizer, em termos marxistas, fetichizada) pode ento ser, no apenas
evocada, mas mostrada em suas manifestaes mais tangveis. Pode-se atribuir
a ela uma vontade prpria e mostrar como a mesma se manifesta, especial-
mente quando capaz de punir aqueles que pensarem que dela podem escapar.
A este respeito, governantes e governados, dominantes e dominados
enfrentam o mesmo problema. Eles so, todos, supostos servidores da realida-
de. A todos eles se pede para serem realistas. Mas esta igualdade de princpio
encobre uma profunda assimetria. A fetichizao da realidade esconde o que
a constitui como tal. Ou seja, a rede de regras, leis, formatos de provas, normas,
modos de clculo e controle, que tm, na maioria das vezes, mas em graus
variados, uma origem institucional. Mas um dos principais diferenciais entre
dominantes e dominados justamente a posio assimtrica que ocupam em
relao s instituies e, consequentemente, s regras que as instituies fixam.
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Espera-se dos dominados que eles considerem as instituies como se
fossem entes quase sagrados e ajam seguindo as regras ao p da letra isto ,
obedeam s instrues fragmentadas , qualquer interpretao da regra sen-
do, no caso deles, considerada uma transgresso. Ao contrrio, os dominantes
podem adotar uma relao prtica, e de alguma forma dessacralizada, com as
instituies simplesmente porque eles as fazem. Por outro lado, os objetivos que
lhes foram atribudos, ou melhor, que eles se atribuem, sendo amplos e vagos,
podem, e at devem, interpretar as regras, isto , na sua linguagem, se isentar
de seguir a regra ao p da letra, mas com a condio de permanecer no esprito
da regra. isso justamente para ficar mais perto da realidade.
a neceSSidade como vontade e repreSentao
Uma das caractersticas dos dispositivos gestionrios garantir, se for possvel
por meios formalmente pacficos, uma forma de dominao que como j foi
dito no s no impede a mudana, mas que se exerce mesmo por meio da
mudana. Eles no agem tentando impedir a mudana a fim de manter a qual-
quer custo uma ortodoxia, como nas sociedades em que a ordem mantida
pelo terror ou pelo martelamento ideolgico. Em vez disso, eles intervm va-
lorizando, acompanhando e orientando a mudana (ver Bourdieu & Boltanski,
2008 [1976]; Boltanski, 2008). Neste sentido, eles esto ligados com o capitalis-
mo como uma forma histrica subsistindo tacitamente por um conjunto de
repeties e diferenas, mas defendendo a mudana por ela mesma, enquan-
to fonte de energia.
Portanto, estes dispositivos no so prioritariamente orientados para
a manuteno das qualificaes e dos formatos das provas estabelecidas, mas
eles intervm para mudar alternadamente, por vezes os formatos das provas,
s vezes a realidade, construda e validada pelo desfecho das provas, e, por
vezes, o mundo. Essas diversas intervenes s conseguem escapar da acusa-
o de serem conduzidas por um desejo de dominao e de realizarem-se de
forma relativamente impecvel se elas so incorporadas em um processo de
acompanhamento de uma mudana permanente, apresentado ao mesmo tem-
po como inevitvel e desejvel.
Mas particularmente atravs dessa pluralidade de intervenes que a
crtica se encontra desarmada. De fato, torna-se difcil para ela, no s fazer
valer que as provas da realidade no concordam com os formatos oficiais,
mas, sobretudo, tirar do mundo as experincias que escapam realidade,
como ela construda, de modo a questionar a validade das definies e das
qualificaes estabelecidas.
o motivo pelo qual os responsveis ficam repetindo que preciso
querer a mudana, mas porque ela imposta a eles como uma fora externa
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sua vontade. Essa abordagem, por mais estranha que se pense, da vontade ou
seja, da liberdade e da necessidade, que frequentemente associada aos regi-
mes totalitrios que reivindicam uma filosofia determinista da histria, no
entanto, constitui um lugar-comum dos modos de governana do capitalismo
avanado. A mudana em questo no tanto uma mudana atual, mas anun-
ciada. Esta ainda no conhecida, ou o de forma incompleta. Portanto,
necessrio apelar para os experts em cincias sociais e aos centros de clculos
e previso para conceber agora esta mudana que ser imposta a todos, mais
tarde, inevitavelmente.
Esta nfase sobre a necessidade necessria para legitimar a ao po-
ltica num quadro formalmente orientado para o bem comum, quando dada
ao mesmo uma denotao democrtica. De fato, em tal contexto, uma ao
ilegtima quando se pode qualific-la de arbitrria, mostrando que ela est
submetida vontade de um indivduo ou grupo que assumiria as decises
sozinho. invocar foras impessoais e inexorveis permite subordinar a vontade
dos atores, em posio dominante, s leis inscritas na natureza das coisas.
Deve-se notar uma caracterstica particularmente especial deste modo
de governana. Trata-se do carter instrumental, estritamente gestionrio das
intervenes, e suas justificativas. As medidas adotadas encontram seu prin-
cpio de necessidade por estarem de acordo com um quadro, muitas vezes
contbil ou juridiscional, sem exigir uma ampla utilizao de discursos ideo-
lgicos, nem a realizao de rituais ou cerimnias valorizando a coerncia de
uma ordem no nvel simblico. As provas de verdade (como definidas acima),
cujo papel to importante no caso das formas de dominao orientadas para
a manuteno de uma ortodoxia, tornam-se mais ou menos obsoletas. No caso
da dominao pela mudana, tudo est realizado sem aparato, nem afetao de
grandeza. O carter tcnico das medidas torna difcil, ou at intil, a sua trans-
misso para um pblico amplo. Nada, ou quase nada, vem para garantir a co-
erncia do conjunto a no ser precisamente o quadro contbil e/ou juridiscio-
nal geral ao qual as medidas especficas devem se ajustar. o que Laurent
Thvenot (1997) chama de governo pelas normas.
oS momentoS de criSe
No entanto, estes longos perodos durante os quais a governana pela mudana
efetuada por meio de uma srie de medidas bastante setorizadas, bastante
tcnicas, bastante discretas ou at opacas, so pontuados por momentos de crises
que desempenham um papel crucial no sistema de dominao gestionria. A
crise , de fato, o momento por excelncia em que o mundo est incorporado
realidade, que se manifesta, ento, como se fosse dotada de uma existncia
autnoma, que nenhuma vontade humana, nem a da classe dirigente, a tivesse
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laboriosamente moldado por meio de uma srie pouco coerente na aparncia,
de pequenas intervenes que no pareciam realmente destinadas a terem
consequncias gerais. Portanto, a crise o momento em que a existncia de uma
realidade autnoma de alguma forma propriamente dita se mostra de modo
indiscutvel. Ela ocorre principalmente na forma econmica (por exemplo, em
momentos de recesso ou como foi recentemente no caso da Amrica Latina
a hiperinflao), como financeira (estouro das bolhas do mesmo nome), ou
como social (por exemplo, em tempos marcados por um aumento significativo
nos nmeros que os especialistas em insegurana, produzem, interpretam e
disseminam). Essas crises podem ser identificadas, sendo qualificadas de econ-
micas, financeiras, sociolgicas, ou seja, sendo associadas s disciplinas do mesmo
nome, relacionadas s chamadas cincias ditas sociais. Esta a maneira
como, de acordo com uma concepo positivista, a natureza, e seus distrbios,
se apresentam para as chamadas cincias, ditas exatas.
Estas crises tm um efeito aparentemente paradoxal. Questionam as
relaes simblicas sobre as quais est baseada a ordem social e introduzem
uma incerteza radical sobre a qualificao dos objetos e as relaes entre eles,
ou seja, sobre o seu valor. Por exemplo, nas crises de hiperinflao a possibilida-
de de uma predio tende a desaparecer porque a relao entre os indivdu-
os e os bens est profundamente perturbada em razo da incoerncia dos
sistemas de equivalncia (ver Kessler & Sigal, 1997). Mas esses momentos de
desorganizao que seriam enfrentados, em um regime de dominao autori-
tria, pela reafirmao da ortodoxia, por rituais reparadores e pela designao,
ou a excluso ou a morte de bodes expiatrios so tambm aqueles que do a
oportunidade a um regime de dominao gestionria de reafirmar seu controle.
Tais momentos de crise desempenham pelo menos quatro papis dife-
rentes que podem ser organizados em sequncia. Primeiro, eles inocentam a
classe dominante, especialmente em sistemas polticos baseados na autorida-
de de especialistas, o que lhes permite escapar de uma crtica desconstrucio-
nista. De fato, o que se expressa em uma crise no uma realidade tal como ela
, isto , ao contrrio de uma realidade construda; uma realidade nua, habitada
por suas prprias foras, indiferente s vontades daqueles que esto l para
orientar os outros por meio de seu saber, da sua experincia e de seu sen-
so da responsabilidade?
Em segundo lugar, eles deixam, assim, bvia e visvel na cena pblica,
de qualquer maneira inatacvel, a existncia dessa necessidade invocada pelos
responsveis para servir de apoio slido s suas aes. Ao mesmo tempo, esses
momentos de crise so tambm, em terceiro lugar, a oportunidade de dar no-
vamente a esses responsveis o cheque em branco que eles pedem para agir.
Quem melhor do que eles poderia ser capaz de proteger, tanto quanto possvel,
os seres humanos da realidade, aquela mesma que, aps sua reificao, parece
lhes escapar e lhes atacar?
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Finalmente, em quarto lugar, eles do razo aos responsveis, quando os
mesmos, ao intervirem retomando o controle das coisas reafirmam a sua
capacidade de enfrentar a desordem, ou seja, de transformar a incerteza em
risco,5 mas apenas se mostrando realistas, isto , modelando a sua vontade sobre
a vontade objetiva das foras que enfrentam. de fato, reconhecendo modesta-
mente o poder dessas foras (isto , sua prpria impotncia relativa), que eles
podem afirmar utiliz-la a servio do bem comum, a fim de controlar e esgotar
a crise ao acompanh-la. certo que, na maioria das vezes, esses tipos de phar-
makon podem parecer piores do que a doena. Mas, mesmo assim so como
remdios e s isso importa, especialmente pelos efeitos pedaggicos que eles
exercem, mostrando, para os atores comuns, o carter imperioso das leis da
economia ou da sociedade, e a competncia dos especialistas.
isto significa, por conseguinte, que em um regime de dominao gestio-
nria, baseado na valorizao e na explorao da mudana, os momentos de
pnico, de desorganizao, de desamparo moral, de salve-se quem puder, ou seja,
tambm de individualismo frentico, desempenham um papel importante. Eles
se juntam com os perodos aparentemente calmos, propcios multiplicao de
intervenes pontuais sobre a realidade ou tcnicas sobre o formato das provas,
que, em se acumulando de uma maneira nunca completamente controlada ,
moldam a realidade de uma forma como ela poderia ser vista novamente, com
o carter de uma necessidade implacvel, ao longo de uma prxima crise.
o ponto da indiStino entre a realidade e o mundo
Um sistema de dominao gestionria, como todo arranjo poltico-social ba-
seado em instituies. Mas essas instituies apoiam-se em uma forma de
autoridade aquela dos especialistas que pretende se situar no ponto de
indistino entre a realidade e o mundo. A vontade que os porta-vozes das ins-
tituies expressam se apresenta, ento, como sendo nada alm da vontade do
prprio mundo na representao necessariamente modelizada, dada pelos es-
pecialistas. Mas estes modelos sendo, ao mesmo tempo, os instrumentos da
ao, so suscetveis de produzir modificaes profundas na textura do mundo.
Estas modificaes mantm relaes de retroao com as representaes do
que , sobretudo porque essas representaes tm, na maioria das vezes, um
carter previsionrio.
De fato, aqueles que moldam ou se apossam dessas representaes tm
tambm o poder de torn-las reais, porque eles dispem de meios, notadamen-
te jurdicos ou regulamentares, sem falar dos meios estritamente policiais, de
modificar os contornos da realidade. No entanto, a modificao permanente
dos formatos que enquadram e formam a realidade no precisa mais ser atri-
buda a uma vontade distinta da vontade de foras impessoais. Os responsveis
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para utilizar o nome dado hoje aos dominantes , porque esto encarregados
de um todo cujos objetivos no so de ningum em particular, no so mais
responsveis por nada, embora eles estejam encarregados de tudo. Assim, o
lugar do poltico no mais apenas um lugar vazio, na acepo de Claude
Lefort (1986), ou seja, um lugar sem fundamento, como ainda era o caso quan-
do os lderes eram intimados a embasar sua autoridade em uma instncia ab-
soluta, sempre empurrada para cima. Este um lugar inatingvel, porque se
confunde com uma totalidade da qual ningum pode afirmar operar a totali-
zao, nem parar a transformao. bem neste tipo de totalidade que as cin-
cias vo buscar seus objetos. Mas tambm por isso que no faz parte de sua
vocao inspirar polticas, e ainda menos construir o poltico.
a entrada em jogo da crtica
Tal situao no deixa muito espao crtica, pelo menos crtica poltica, j
que a crtica se encontra desprovida pelos poderes dominantes dessa exterio-
ridade que constitui o mundo, sobre a qual ela podia se apoiar para tentar
questionar a realidade. De fato, a crtica facilmente absorvida nos dispositivos
de dominao em que ela reinterpretada nas formas que lhe foram dadas nas
instncias cientficas e tcnicas que servem de interlocutores s instituies.
Ela, ento, entra nas disputas entre expertise e contra-expertise, nas quais a
contra-expertise est necessariamente dominada, e na maioria das vezes der-
rotada, uma vez que s pode procurar alcanar a expertise, isto , se tornar
admissvel ou simplesmente audvel, se submetendo aos formatos de provas
estabelecidas por esta ltima. Ou seja, adotando os formalismos e, de uma
forma geral, os modos de codificao da realidade.
o mesmo no que diz respeito s restries exercidas pelas jurisdies
em vigor (especialmente no caso das lutas sociais, o direito trabalhista). O re-
conhecimento oficial de instncias crticas que , como vale lembrar, uma
conquista das lutas sociais , tende ento a obstruir a expresso de novas in-
justias, e o surgimento de formas inovadoras de protesto.
Esta forma de controlar a crtica ao incorpor-la reforada pelo fato
de que a dominao pela mudana reivindica, ela mesma, a crtica da qual
priva aqueles que querem se opor a ela. Mas uma crtica interna, construda
imagem das discusses cientficas que se instauram apenas entre aqueles
que detm a autoridade necessria, justificada por suas competncias, ou me-
lhor, por seus ttulos, para fornecer uma opinio pertinente. No entanto, o que
caracteriza essas brigas de especialistas precisamente que aqueles que es-
to competindo concordam sobre o essencial e s entram em conflito em pon-
tos marginais. isto , provavelmente, o que se quer dizer quando, com admira-
o, se qualificam esses debates como aguados.
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Diante de um sistema de dominao deste tipo, a crtica, quando no
apenas desarmada, encontra-se profundamente alterada. A forma como ela se
aproveita da contradio hermenutica tomar um novo caminho. Por exemplo,
em um sistema poltico-semntico no qual as instituies que dizem qual a
situao do que esto includas em arquiteturas baseadas em formas de repre-
sentao do corpo poltico (ou do povo), a contradio muitas vezes se mani-
festar na forma de uma suspeita com relao aos representantes (o que po-
demos chamar de forma rousseauniana da contradio hermenutica). Ao con-
trrio, em um sistema poltico-semntico baseado na expertise, a contradio
se manifestar na forma de um conflito entre o realismo versus o construcionis-
mo. A dificuldade ento se concentrar na questo de saber se o especialista
mostra bem as coisas tais como elas so, com uma transparncia que exclui-
ria qualquer mediao e conferiria aos fatos uma necessidade implacvel, ou
se ele os faz passar pelo filtro de uma construo de sua prpria criao de
forma arbitrria, de tal modo que se poderia muito bem apresent-los de
outra forma. Mas torna-se muito tentador e bastante fcil desqualificar a sus-
peita crtica tachando-a de niilista ou at de negacionista, desvios que so,
de fato, o gnero de ameaa em um sistema deste tipo, que assedia a crtica.
Esta preocupao da crtica, no entanto, no sem fundamento. Ela
reforada pela intuio do novo papel propriamente poltico dado s empresas
de descrio da realidade em um modo de dominao deste tipo. Tomemos
buscando apoio no trabalho de Alain Desrosires (2003) o exemplo do bench-
marking, uma tcnica vinda da gesto, cujo papel vem crescendo, e agora chegou
s operaes de descrio estatsticas relevantes dos Estados (ver Bruno & Di-
dier, 2013). Em suas formas clssicas, que prevaleceram at a dcada de 1980,
o estatstico, dentro de seu instituto, devia, pelo menos idealmente, ficar o mais
longe possvel da realidade que ele estava encarregado de descrever, de acordo
com uma concepo positivista da cincia baseada sobre a separao radical
entre sujeito e objeto do conhecimento. precisamente em uma reverso des-
sa posio que est baseada a utilizao que a estatstica faz do benchmarking.
Os rankings, construdos sobre a base dos indicadores estatsticos codificados,
visam a expressar todas as diferenas qualitativas em diferenas quantitativas
favorecendo a comparao e a concorrncia. So formas de descrio cujo ob-
jetivo explcito e reivindicado consiste em incentivar os atores a mudar seu
comportamento a fim de melhorar sua posio hierrquica nos rankings, de
acordo com uma lgica que a da maximizao do indicador. A descrio, in-
separvel da avaliao do que est descrito, assume explicitamente a existn-
cia de relaes de retroao entre o sujeito e o objeto do conhecimento, e as
implementa de forma estratgica para aumentar a eficcia das medidas que
visam modificar os contornos da realidade. Torna-se ento tentador suspeitar,
por trs de qualquer apresentao de resultados numricos, de um tipo de
manipulao.
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a crtica reformiSta versus a crtica radical
Lembrei, no incio deste artigo que, quando Eve Chiapello e eu publicamos Le
nouvel esprit du capitalisme, julgvamos provvel o retorno da crtica. Mas tam-
bm prevamos a possibilidade de que, a partir das mudanas do capitalismo
ocorridas durante os anos de 1980-1990, surgisse o que, retomando a conceitu-
ao desenvolvida com Laurent Thvenot em De la justification (Boltanski &
Thvenot, 1992), chamamos de uma Cit. Quer dizer, neste caso, uma nova es-
fera de justificao do capitalismo capaz de introduzir dispositivos de justia
no mundo conexionista que se implementava durante este perodo. Ns a cha-
mamos de cit por projeto. Pensvamos captar evidncias indo nesse sentido,
indicando claramente que o seu estabelecimento no tinha nada de fatal, mas
dependeria, em grande parte, da intensidade das presses que uma crtica em
fase de reconstituio faria pesar sobre o capitalismo.
O livro se abria neste sentido, em uma perspectiva reformista. No que,
como se imagina, a chamada cit por projeto tenha correspondido ao nosso
prprio ideal poltico e social. Mas, pelo menos no sentido em que creditamos ao
capitalismo do nosso tempo uma capacidade reformista que poderia ter se ma-
nifestado sem passar pelos dramas que, dos anos 1930 aos anos 1950, tinham
acompanhado a instaurao de um sistema poltico e econmico conhecido co-
mo Estado-providncia. Mas, deve-se notar que nada disso aconteceu. A cit
por projeto permaneceu no limbo, e o capitalismo, longe de se reformar, viu a
sua violncia se intensificar e as suas contradies crescerem ao longo dos dez
anos que se seguiram, at chegar crise que marcou o ano de 2008 e os seguintes.
As formas de crtica que tm uma orientao reformista e as que tm
uma orientao radical no diferem de maneira absoluta pelos princpios que
as fundamentam. Elas tm razes, uma e outra para dizer rapidamente , no
esprito do iluminismo e nos mesmos requisitos de liberdade e igualdade, de
modo que se pode ver em uma crtica radical uma forma de passagem ao limi-
te do liberalismo. Mas elas diferem uma da outra por duas concepes da rea-
lidade, e ao mesmo tempo, por duas formas diferentes de imaginar o possvel.
A posio reformista baseia-se na crena segundo a qual os componentes da
realidade so suficientemente independentes uns dos outros para que alguns
deles possam ser melhorados progressivamente sem que os contornos da rea-
lidade sejam radicalmente transformados, pelo menos de uma s vez e em
bloco. isto implica, notadamente, uma relativa independncia do que se pode
chamar a forma Estado com relao s formas possveis do capitalismo.
Ao contrrio, as posies oriundas da crtica radical que podem ser cha-
madas revolucionrias negam essa possibilidade. Elas se concentram na inter-
dependncia dos componentes da realidade e, portanto, sobre a quase impos-
sibilidade de modificar certos elementos pelo menos, elementos importantes
sem alterar tudo, de uma s vez. So maneiras de pensar sobre a totalidade.
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Esta diferena est relacionada com oposies de natureza antropolgi-
ca. O reformismo aposta nas propriedades integradas aos equipamentos cog-
nitivos e morais dos seres humanos, como o fato, por exemplo, de serem dota-
dos de razo ou terem sentimentos altrustas. inversamente, as posies radi-
cais so bastante sistmicas, e provavelmente por isso que elas se apoiaram
to frequentemente nas cincias, entendidas em um sentido positivista, e,
particularmente, nas cincias histricas e sociais em que o foco estava posto
nos processos, escapando das vontades individuais, tais como as leis da hist-
ria, estruturas, sistemas, dispositivos etc.
Mas as ltimas dcadas do sculo XX foram marcadas por uma espcie
de inverso de posies. A partir de meados da dcada de 1970, so as foras
sociais ligadas defesa do capitalismo, ou seja, usadas para tir-lo da crise que
vinha enfrentando ao longo dos anos 1960-1970, que adotam uma posio cien-
tfica e sistmica. A referncia necessidade mudou de campo. Ningum, ou
quase ningum no campo da crtica, invoca mais as restries implacveis dos
modos de produo ou o materialismo histrico. Em contrapartida, se
apoiando nas concepes no menos implacveis da Cincia, com C mais-
culo, que governam os dirigentes dos pases democrticos capitalistas.
Deve ser enfatizado novamente o fato de que no se trata de um
discurso ou de uma ideologia, mas de uma transformao que afeta a realida-
de. As mudanas do capitalismo durante o perodo considerado tiveram am-
plamente como efeito a instaurao de uma realidade na qual os elementos se
encontraram efetivamente colocados em uma interdependncia cada vez mais
estreita. A crise que o capitalismo conheceu nos anos 1960-1970 foi marcada
principalmente por uma eroso dos lucros e uma estagnao da produtividade.
Esses fenmenos foram, na poca, atribudos, pelo menos em parte, a um ex-
cesso de polticas reformistas postas em prtica durante o perodo anterior.
Mas os novos quadros do capitalismo que, gradualmente, se construram nos
anos de 1970-2000, resultaram, ao liberar o capitalismo dos controles do Estado
e ao aumentar a interdependncia dos elementos que compem a realidade,
em tornar o reformismo realmente muito difcil de ser alcanado. Testemunhas
disso so as dificuldades e as renncias do que chamado, a partir dos anos
1980, de a segunda esquerda, que abandona a referncia ao movimento tra-
balhador com a pretenso de conciliar a social democracia com a dependncia
com relao aos mercados.
A situao atual na Frana, e, talvez, em diferentes pases da Europa,
apresenta analogias com aquela que analisava Karl Polanyi, em meados dos
anos 1940, quando mostrava em La grande transformation (1983), como os exces-
sos do liberalismo econmico tinham contribudo para favorecer o crescimen-
to, frente ao desenvolvimento das desigualdades, de uma oposio antiliberal,
mas nacionalista, xenofbica e autoritria. Pode ser observado, atualmente, na
Frana e, talvez, de modo mais geral, na Europa, no discurso de muitos atores
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Luc Boltanski Directeur dtudes da cole des
Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS), em Paris. Fun-
dador, com Michael Pollak e Laurent Thvenot, em meados da
dcada de 1980, do Groupe de Sociologie Politique et Morale
(GSPM). autor de inmeros livros, entre os quais Le nouvel
esprit du capitalisme (com Eve Chiapello, 1999), De la critique.
Prcis de sociologie de lmancipation (2009) e Enigmes et complots.
Une enqute propos denqutes (2012).
intelectuais e/ou polticos, muitas vezes vindos da esquerda, uma passagem
gradual da crtica do neoliberalismo para posies nacionalistas e xenofbicas.
Estas ltimas so inspiradas, principalmente, pela hostilidade pelo externo,
com relao aos pases chamados emergentes, cujo crescimento assusta, e
dentro do pas contra os trabalhadores de origem estrangeira, especialmente
do Magreb, acusados de ameaar os valores nacionais. Diante de uma situao
como essa, a reconstruo da crtica social confrontada com uma dupla exi-
gncia. Ela deve, por um lado, continuar a crtica das formas atuais do capita-
lismo e se interrogar sobre os meios de torn-la eficaz. Mas ela deve, tambm,
por outro lado, reforar a crtica s posies nacionalistas, xenofbicas e mo-
ralistas, mesmo quando estas pretendem, como agora frequentemente o ca-
so, justificar o seu excesso em direo ao autoritarismo em nome da defesa do
povo. O termo utilizado, neste contexto, estritamente para se referir aos
cidados considerados autctones, e para distingui-los das multides que so-
frem, da mesma maneira, a dominao das formas atuais do capitalismo.
Recebido em 04/08/2013 | Aprovado em 20/09/2013
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artigo | luc boltanski
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notaS
Este artigo resultou de uma conferncia proferida no ins-
tituto de Filosofia e Cincias Sociais (iFCS) da UFRJ em
agosto de 2013, a qual contou com o apoio do Programa de
Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia (PPGSA), do
iFCS e do Colgio de Altos Estudos da UFRJ. [N.E.]
1 O CPE (Contrat de Premier Emploi) era um projeto visando
atender os jovens de menos de 26 anos, muito contestado
e que foi retirado em 2006 [N.T.].
2 Proposta de um Tratado Constitucional Europeu rejeitada
por parte significativa dos membros da Unio Europeia.
3 A frmula utilizada em De la justification para analisar o
que suponha a exigncia de igualdade de oportunidades
(ver Boltanski & Thvenot, 1992).
4 Conforme a expresso de William Ryan (1988).
5 Com relao diferena entre a incerteza probabilista e o
risco radical, ver Knight (1985 [1921]).
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artigo | luc boltanski
Palavras-chave
Sociologia da crtica;
Dominao gestionria;
instituies; Sistemas
polticos de dominao;
Realidade e mundo.
Keywords
Sociology of critique;
Managerial domination;
institutions; Political
systems of domination;
Reality and world.
Sociologia da crtica, inStituieS e o novo
modo de dominao geStionria
Resumo
O artigo retoma questes j tratadas pelo autor, principal-
mente em Le nouvel esprit du capitalisme (1999), escrito em
colaborao com Eve Chiapello, para destacar a importn-
cia de refletir sobre o papel e os limites da crtica. Reco-
nhecendo, embora, que a postura crtica no desapareceu,
o autor questiona o poder da crtica, diante da chamada
dominao gestionria de nossos dias. Nesta, diferente-
mente do que ocorre na dominao pelo terror ou pela
ideologia, a legitimidade dada pela cincia, as estratgias
de management e as novas ferramentas de gesto, garantem
s formas de governana pblica ou privada dispositi-
vos que permitem conter a crtica e manter inalteradas as
principais assimetrias sociais existentes.
SociologY of critiQue, inStitutionS and tHe
neW model of managerial domination
Abstract
The article deals with issues already addressed by the au-
thor and Eve Chiapello in Le nouvel esprit du capitalisme
(1999), to highlight the importance of reflecting on the role
and limits of criticism. While recognizing that the critical
attitude has not disappeared, the author questions the
power of criticism, before the so-called managerial dom-
ination of our days. in this case, unlike what happens
with the domination by terror or by ideology, the legiti-
macy given by science and new management strategies
and tools, support forms of governance public or private
that prevent criticism and maintain unchanged the major
existing social asymmetries.
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