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5/11/2018 Cildo Meireles - slidepdf.com
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Cildo Meireles
A indústria e a poesia
l'-1oacir dos Anjos
A partir da anólise do trabalho Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido
(2002), apresentado por Cildo Meireles na Documenta II (Kassel, Alemanha), otexto busco fazer um duplo percurso. Por um lado, evidencia o quanto esse trabalho
incorpora questões coras ao artista e por ele desen volvidas anteriormente em
mídias diversos, tais como o noção de circuito como espaço privilegiado de ação
artística e o poder de transformação (limitado, mas potencialmente extenso) que
ações individuais possuem frente aos mecanismos de regulação social. Por outro
lado, mostra como o citado trabalho rexibiliza as fronteiras entre os campos da
arte e da política e se insere, portanto, no esforço de con strução de uma
abordagem sinestésica e transdisciplinar do mundo contemporâneo.
É improvável encontrar, na trajetória de CildoMeireles, um suporte, um tema ou uma filiação
artística que resuma ou traduza o con juntodiverso de seus trabalhos. Iniciada ainda na
década de 1960, sua obra desdobra e adensa,
entretanto, alguns poucos postulados cognitivos
(por exemplo, a sinestesia como relação
privilegiada para o con hecimento de algo) e um
elenco coeso de crenças éticas (por exemplo, avalo ração da ação individual frente àhomogeneização das esferas da economia, da
política e da cultura), I Diante de quaisquer de
seus trabalhos, portanto, é sempre possível
traçar, apesar de suas aparentes diferenças,
relações de contigüidade com vários outros em
termos do que partilham em método eintenção, dessa forma esclarecendo-osmutuamente . Énesse sent ido que, partindo dotraba lho apre sentado pelo artista na Docum entaI I (Kassel , Ale manha, 2002) - Elemento
Desaparecendo/Elemento Desaparecido - , se julga
ser procedente esboçar, de formasintética, ascaracterísticas que o avizinham de outros
momentos de sua produção, Tal procedimento não
somente explicita sentidos que esse trabalho,
tomado isoladamente, apenas sugere (apesar de
contê -los plenamente em potência), como também
toma clara a atualização que, por me io dele , Ci ldoMeireles az da re lação entre arte e po lítica.
Ci/do lV1e ir efes , circuito, ar te e político.
Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido
consistiu da instalação temporária, coordenadapelo artista, de uma pequena fábrica de picolés
em Kassel (incluindo a criação de uma
logomarca para a empresa, a aqu is ição de
equipamentos e insumos, e o estabelecimentode relações contratuais com forne cedores efunc ionários) e da ve nda de sua produção emdive rsos carrinhos que circu laram, durante todoo tempo de func ion amento da mostra, nos
espaços públicos da cidade 2 Embora os picolés
fossem vendidos em embalagens de cores
distintas (cinza, azu lou verde), possuíssem
formatos variados e fossem sustentados porpalitos plásticos também diversos em cores eformas , todos eles eram feitos tão-somente de
água, sem sabor adicional algum . À medida queeram consum idos ou simplesmente derretiamsob o calor do ve rão, iam deixando à vista um ainscrição , fe ita em baixo relevo, em um dos
lados do palito: 'elemento desaparecendo'; uma
vez totalmen te consum idos ou derretidos,revelavam, gravado no lado oposto do palito,
uma segund a inscrição: 'elemento desaparecido',
Talvez a primeira questão que o traba lhopropunha para quem com ele interagia na ruas
de Kassel fosse a de sua natureza. Mesmo
considerando a multiplicidade de modos em quea produção contemporânea se apresenta ao
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observador/participante (objeto, instalação,
performance ou, entre outros diversos meios,
apenas uma idéia), o trabalho de Cildo Meireles
não permitia um enquadramento preciso em
categorias estanques ou mesmo em um
conjunto definido delas. Embora possuísse um
elemento performático (envolvendo uma cadeia
extensa de pessoas que produziam e
distribuíam, uniformizadas, os picolés), punha
ênfase grande também no ob jeto sólido queoferecia ao consumo; era justamente esse
objeto, contudo, que gradualmente desaparecia
para que a inscrição se tornasse visível e o
trabalho se completasse diante dos olhos de
quem o consumia. Mesmo sua inclusão numa
exposição de arte certamente pareceu estranha
a alguns, inclinados talvez a enquadrá-lo apenas
como um manifesto político que alertava sobre
a escassez crescente da água potável no mundo.
Assumindo sua catalogação incerta, o titulo Já
reivindicava - no emprego conjunto do
gerúndio e do passado do verbo desaparecer
seu caráter processual: destituído de uma
temporalidade precisa, o trabalho só se
constituía durante a extensão de temponecessária para que o circuito que ele instaurava
(produção, distribuição e consumo dos picolés)
se completasse e, com a receita monetária assim
gerada, se renovasse continuamente.
O uso da noção de circuito para dar
materialidade e sentido a trabalhos de arte não é
novo na obra de Cildo Meireles. Em textos
escritos na primeira metade da década de 1970,
o artista já identificava a existência de amplos
sistemas de circulação nos quais seria possível
inserir, individualmente e sem cerceamento
algum, informações contrárias aos próprios
interesses que fundamentam esses sistemas 3
Uma das primeiras demonstrações materiais do
que sugeria foi apresentada na mostra
Information (Museum of Modem Art, Nova
York, 1970), em que expôs Inserções em
Circuitos Ideológicos I - Projeto Coca-Colo e
Inserções em Circuitos Ideológicos 2 - Projeto
Cédula 4 O Projeto Coco-Colo consistia da
impressão, em vasilhames vazios do refrigerante
(nessa época feitos de vidro e retomáveis ao
fabricante para reaproveitamento), de
mensagens contrárias ao efeito "anestesiante"
daquela (e de qualquer outra) mercadoria, e de
sua devolução, em seguida, à circulação
mercantil. Como exemplo e demonstração de
que esse trabalho de contra-informação podia
ser reproduzido por qualquer pessoa, Cildo
Meireles apresentou, na exposição, garrafas
74
sobre as quais havia impresso conhecido slogan
de repúdio à política de intervenção econômica,
política e cultural norte-americana (yankees, go
home), além de instruções sobre como o
público deveria proceder para inserir as próprias
"opiniões críticas" no espaço reificado onde vivia
e do qual a Coca-Cola seria símbolo. O Projeto
Cédula, por sua vez, consistia de ações em que
serigrafava - ou, como passou a fazer
posteriormente, carimbava -, sobre cédulas dedinheiro circulante, instruções e mensagens
semelhantes às impressas nas garrafas,
inserindo-as, como se fossem "parasitas"
simbólicos, no circuito das trocas monetárias,
muito mais extenso e veloz do que o circuito de
trocas de vasilhames de Coca-Cola. Entre as
mais conhecidas mensagens que veiculou ao
longo dos anos incluíam-se críticas ao então
regime ditatorial brasileiro (Quem matou
Herzog?, inquiria a frase impressa na cédula
emitida pelo Estado, numa referência às causas
não esclarecidas da morte do jornalista Wladimi r
Herzog enquanto se encontrava detido pelos
órgãos de repressão política) e questionamentos
sobre as próprias convenções que delimitam oespaço socialmente destinado à arte (VVhich is
the place of the work ofart?).
Para o artista, esses trabalhos seriam o avesso da
operação por meio da qual Marcel Duchamp
criara o ready-made quase seis décadas antes:
em vez de subtrair um objeto do campo
mercantil e colocá-lo no campo consagrado da
arte, Cildo Meireles propunha a inserção de
informações ruidosas no campo homogêneo em
que as mercadorias circulam e se trocam.
Questionava, ademais, a noção de autoria do
própr io trabalho, posto que estimulava outros a
fazer tais inserções em seu lugar mediante as
instnuções de procedimento que forneciaS De
fato, seria somente a partir da expressão
individual, anônima e difusa frente aos vastos
mecanismos de controle social em curso que o
trabalho ganharia pleno sentido e eficácia, o que
faz das Inserções em ürcuitos Ideológicos menos
suporte de propaganda do que proposição de
uma atitude distinta frente ao espaço político6 A
participação do público (efetiva ou potencial)
desempenharia, desde então, papel fundamental
no desenvolvimento da obra do artista.
Foi como uma radicalização do caráter
transgressor presente nas Inserções em Circuitos
Ideológicos que Cildo Meireles realizou, a partir
de 1971, as Inserções em Circuitos
Antropológicos. Nesse trabalho, não eram maismensagens que desejava inserir em sistemas de
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circulação e troca já existentes, mas objetos
fabricados por ele e por quem mais o desejasse
(o trabalho consistia, basicamente, de instruções
de produção), destinados a relacionar-se comtais sistemas de forma crítica. Um exemplodessas inserções fo i a confecção, pelo artista, de
fichas telefônicas e de transpo rte públicorecortadas em linóleo ou, posteriormente, aconstrução de moldes para a fabricação das
mesmas fichas com argila, as quais eram aceitaspelas máquinas dest inadas a receber as fichas
originais, feitas em metalJ Uma vez que essas
falsas fichas fossem distribuídas em larga escala eefetivamente usadas para descumprir a lei,
estariam afetando, também, o comportamento
regulado dos usuários dos sistemas de
comunicações e transporte.
O trabalho Elemento Desaparecendo/Elemento
Desaparecido possui
evidentes pontos de
contato com os demais
acima descritos. Em
termos gerais, o processo
de fabricação, circulação econsumo dos picolés
estabelece laços com osistema integrado de
trocas mercantis do qual
tanto garrafas de Coca
Cola e cédulas de dinheirocomo fichas de telefone etransporte também faziam
parte. Além disso, todoseles despertam, nopúblico , a idé ia de que épossível relacionar-se
ativamente com os
circurtos que compõem tal sistema. Em relação
aos mecanismos de inserção nessa estruturaampla, contudo, Elemento
Desaparecendo/Elemento Desaparecido soma
aspectos que são específicos a cada um dos doisoutros trabalhos. Por um lado , os palrtos depicolé carregam mensagens escritas com .explícito conteúdo crítico, assim como ocorriacom as garrafas e as cédulas utilizadas para arealização das Inserções em Circu itos Ideológicos.
Por outro lado, o picolé é objeto fabricado que
é inserido em um sistema de circulação de
valores preexistente, tal como o era m as fichas
de Inserçõ es em Circuitos Antropológicos. 8
Outro aspecto que aproxima esses trêstrabalhos é a discussão que implicitamente
promovem ace rca daqu ilo que distingue oobjeto artístico dos dema is. De maneiras
diferentes, eles evocam a operação tantas vezes
feita por artistas pop de fundir mercadoria e arte.
Ao contrário daqueles, porém, fazem essa
identificação apenas para denunciar ou subve rteros va lores simbolicamente ve iculados no circu itomercantil; para opor, por demasiada
proximidade, arte a mercadoria9
Adicionalmente, todos eles recusam aconsagração usualmente concedida à produção
artística mater ia l, evocando as estratégiasconc eitua listas surgidas na década de 1960 quevisavam à progressiva "desmaterialização" daobra de arte e a sua potencial transformação emidéia ou "prática". 10 Garrafas de Coca-Cola ecédulas de dinhe iro com mensagens impressas,
fichas feitas de linóleo ou barro, ou ainda palitos
de picolé com inscrições ecológicas nõo são ,efetivamente, os traba lhos de Cildo Meirelesdiscutidos aqui, mas apenas os rastros de
inserçõe s silenciosas que
promoveu (direta ouindiretamente) em
sistemas mercantis einstitucionais. Se as
garrafas, cédulas e fichassó se tomam o trabalhodo artista quando"desaparecem" da esfera
de pertencimento doemi ssor e voltam/passam
a circular nas rede s de
troca de mercadorias, otrabalho apresentado emKassel só se realiza
ple namente quando sua
,face mais visível e pública
- o próprio picolé - éefetivamente consum ida,
e a mensagem escr fta que a água congelada
escondia - a afirmação de seu desaparecimentosimultâneo como elemento natural e como objeto- pode ser lida. Todos essestrabalhostrazem,
portanto, uma ambivalência que lhes é constitutiva :solicitam a participação do público na construção de
objetos simbólicos ou lhe oferecem, por uma
quantia módica, outro objeto feito pelo próprioartsta (o picolé de água custava um euro), pedindo,
ao mesmo tempo, que deles se desfaça ou que os
consuma para que as criações ganhem pleno
sentido. Negando permanência física a tais objetos- veículos de uma obra baseada em idéias de fiuxo
-, Cildo Meireles põe ênfase na possibilidade de
usar os circuitos e redes que fundam e regulam as
relações econômicas e políticas do mundo
contemporâneo como plataformas de construçãode um enunciado artístico.
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Ao in st ituir uma fábrica (de picolés), porém, o
trabalho apresentado em Kassel difere dos
demais citados, pois, além de promover a
inserção de mensagens e objetos em circuitos já
existentes, replica, numa escala reduzida, a
estrutura básica do sistema que produz e faz
circularem mercadorias. Estabelece, ássim, de
modo ainda mais orgânico do que os outros
trabalhos, uma relação com o espaço onde o
va lor monetário é ge rado e comumenteapropriado po r segmentos sociais distintos. A
esse respeito, há um aspecto de Elemento
Desaparecendo/Elemento Desaparecido que,
embora não divulgado no corpo do próprio
trabalho - mas revelado no catálogo da mostra
_, l i deve ser aqui notado. Na constituição da
empresa que produzia e distribuía os picolés,
ficou desde o início acordado que os
rendimentos líquidos da venda do produto
(descontados os custos varióveis de produção e
comercialização) seriam integralmente
dist ribuídos entre os funcionários envolvidos,
subvertendo, assim, a lógica de apropriação e
acumulação de valor em que se ancora a
produção capitalista. Considerando o desgaStenatural e progressivo das máquinas utilizadas, a
conseqüente necessidade de repos ição gradual
de equipamentos, e a decisão de nõo constituir
ou prover fundos para investimentos, é possível
afirmar que o trabalho já embutia um
mecanismo entrópico de dissipaçõo do va lor
gerado que causaria, no longo prazo (muito
além, contudo, do tempo que durou a mostra),
a cessação de rendimentos e a inevitável
paralisação de sua operação comercial. A
discussão da desmaterialização da obra de arte,
então, estaria sendo aqui conduzida não apenas
em relação ao objeto que o sistema criado pelo
artista produz - nesse caso, o picolé de água
mas, de modo radica l e reflexivo, em relação aopróprio aparato produtivo po r ele constituído
para gerar o obje to comercializado. Por sua
materialidade transiente, também a fábrica,
portanto (e não apenas os picolés que
produzia), pode ser entendida como uma
metáfora da crescente indispon ibilidade de água
potável no mundo, elemento ameaçado de
extinção (desaparecendo) e sob risco de tomar
se, salvo se forem tomadas medidas de
provisionamento e de uso racional das reservas
naturais ainda existentes, o ceme de um grave
problema político (quando houver, finalmente,
desaparecido).
Essa questão aproxima Elemento
Desaparecendo/Elemento Desaparecido de outro
trabalho de Cildo Meireles, intitulado Eppur si
Ivluove e criado por ocasião da mostra Pour la
Suite du Monde (Musée d'Art Contemporain,
Montreal, 1992). Esse trabalho se resumia àpromoção de sucessivas trocas entre uma
quantia inicial de mil dólares canadenses e outras
moedas nacionais (libras esterlinas e francos
franceses), a cada vez reconvertendo, no padrão
monetário canadense, o dinheiro previamente
cambiado. As perdas implícitas em taisoperações - decorrentes das diferenças entre as
cotações de venda e compra das moedas
util izadas - seriam acumuladas até o ponto de
virtual desaparecimento do montante com que
se haviam iniciado as trocas. No interior do
espaço físico da exposição eram mostradas
apenas a quantia de dinheiro que sobrou ao fim
de mais de uma centena de transações
realizadas no espaço virtual do mercado
financeiro (pouco mais de quatro dó lares
canadenses, valor inferior ao mínimo necessário
para dar seguimento ao câmbio com as outras
moedas utilizadas) e a documentação bancária
que registrava todas as permutas feitas, cada
conjunto desses vestígios sendo apresentado empequenos cofres de vidro transparente (um
terceiro cofre continha quantia igual à que havia
restado após o processo de trocas, simulacro
que rompia a lógica seqüencial do trabalhol2
Demonstrando os mecanismos de perda de
va lo r associados tão-somente a trocasmonetárias entre equivalen tes, Eppur si Ivluoveantecipava, num grau de abstração maior, o que
o trabalho feito para a Doc ume nta I I iria tratar
como algo inerente a sua própria constituição
física e empresarial, e, também, como
comentário sobre um fato específico: o gradual
desaparecimento de um elemento necessá rio à
vida causado po r seu uso desregulado.
De modos distintos, ambos os trabalhos
apresentam um discurso crítico sobre o sistema
de geração, permuta e despe rdício de va lor
(ge ral e de uso) que move o mundo da
produção mercantil.· Não cabe nessas
proposições artísticas, contudo, a ilusão de que,
apenas po r quase não deixarem rastros
materiais, não estariam elas mesmas sujeitas a
serem capturadas pelo circuito de valoração
monetária. Essa percepção da subordinação do
objeto de arte aos mecanismos de geração de
riquezas está presente já no trabalho Árvore doDinheiro ( 1969), em que o artista expôs, sobre
uma base museológica, 100 cédulas de um
cruzeiro, ret iradas da CIrculação fiduciária do
Brasil e inseridas - dessa ve z conforme o
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clássico gesto de Mareei Duchamp - no campoartístico, Junto a elas, acresceu um breve texto
em que se lia: " I00 notas de I cruzeiro, Preço:2 mil cruzeiros", Se, até então, o valor de uso
daquelas cédulas estava em ser poder geral decompra equivalente, em termos monetários, a100 cruzeiros, com essa ação Cildo Meirelescancelou tal paridade e multiplicou seu valor de
troca no mundo mercantil, A posterior"emissão" das cédulas de Zero Cruzeiro (1974
1978) reafirmou, com ironia próxima do
absurdo, o processo de mercantilização da arte:embora estampando seu valor de face nulo, as
notas de Zero Cruzeiro - um objeto artístico possuem valor de troca positivo, A despeito,portanto, do destaque dado seja à gradualdesaparição, à nexpre ssividade física ou, ainda, à
ausência aparente de serventia de alguns de seustrabalhos, o artista enfatiza a permanência da
dimensão simbólica do objeto de arte e, como
conseqüência, a autonomização de sua
va loração monetária pelo campo da arte , 3
Elem ento Desaparecendo/Elemento Desaparecido
afirma, além disso, outro paradoxo recorrentena obra de Cildo Meire les, Por um lado,promove a extensão, para a esfera dosnegócios, da idéia - fundamenta l aos trabalhosdas Inserções - de que o gesto individual eautônomo pode ressoar nos complexos ci rcu itos
que estruturam e moldam a v ida pública, Ao
instalar a modesta fábrica de picolés em Kassel efazer dos produtores e vendedores seus únicos"acionistas", o artista exemplifica o potencial desobrevivênc ia dos pequenos negócios em meioa grandes empreendedores, Écomo se
trouxess e, para a escala humana e da cidade,vá rios dos seus camelôs, trabalho múltiplo queconsiste de uma edição de 1.000 pequenos
bonecos motorizados que têm, diante de si,duas banca s em miniatura semelhan tes às dosverdadeiros vendedores ambulantesencont ráveis em centros urbanos: umacontendo I .000 alfinetes e a outra contendo1. 000 barbatanas plásticas para colarinhos decamisa, índices da efetiva participação do que éínfimo em extensos circuitos mercantis. 14 Se aeles fosse dada a vida em Kassel , contudo, os
bonecos-camelôs empurrariam ca rrinhos em
vez de postar-se em frente às bancas evenderiam, em vez de alfinetes e barbatanasplásticas, apenas picolés de água. Além das
Inserções e do Camelô ( 1998) - classificadoironicamente por Cildo Mei re les como modelo
exemplar do "humiliminimalismo" (neo logismoque une as palavras humilde e minimalismo)-,
também o trabalho Cruzeiro do Sul (1969-1970)
funda-se na idéia de que uma relação escalardesfavorável não implica, necessariamente, umasubjugação (econômica, política ou cultural) do
menor ao maior. Formado por um cu bo de Icmde lado feito de carvalho e pinho - madeirassag rad as para os índios Tupi devido ao fato de,quando postas em atrito, gerarem fogo e, deacordo com sua cosmogonia, evocarem ass im o
divino -, o artista sugere que o mesmo seja
instalado numa área mínima de 200 metrosquadrados. Menos do que subsumir o diminutocubo, o relativamente imenso espaço vazio queo circunda indica o tamanho da força simbÓlicaque um objeto tão miúdo pode potencialmenteembutir.
Por outro lado, porém, o fato de implicitamentedesvelar que o pequeno negócio que instaloupara fabricar e vender picolés é, no longo prazo,economicamente inviável, parece ser umreconhecimento (seja ele voluntário ou não) do
reduzido poder de intervenção eficaz do
indivíduo (ou artista) frente aos grandes sistemas
de Circulação de va lores físicos e simbólicos(incluindo o circuito da arte) e,
conseqüentemente, frente aos governos ecorporações (e também, no caso do artista,frente aos museus de arte, outras instituições egalerias privadas) que os control am, i5 N ão é àtoa que os picolés de Cildo Meireles derretemao ca lor do sol e seus camelôs medem apenasum palmo e são feitos de matéria frágil e mole.Classificados por ele mesmo com o "poemasindustriais", 16 esses dois trabalhos parecematesta r, pela precariedade evidente dos objetosque lhe dão corpo, a batalha desigual da poes ia
contra a indústria, Também relacionado, como oCruzeiro do Sul, à questão indígena, Sol sem
Come ( 1975) - disco vinil que reúne econfronta, em canais de áudio distintos, registrossonoros de remanescentes de um massacre deíndios Kra6 e outros associados à culturaocidental - deixa pou cas dúvidas sobre oreduzido poder das minorias indígenas frente aocolonizador branco que, historicamente, as
elimina ou as segrega, induz indo-as às forçasentróp icas da doença e da desesperança. I?
A contradição apa rente dos sinais emitidos por
esses trabalhos resolve-se, na (po)ética do
artista, por meio do que denomina dinâmica do
"gueto", espaço de exclusão que gera, da
própria pressão a que os que estão dentro delesão submetidos, a energ ia necessária à
superação de situações de assimetria de poder ede conseqüente marginalização de quem é
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diferente ou despossuído. 18 Sem se deixarenganar quanto à capacidade efetiva demudança contida nas idéias e nos pequenosgestos individuais, Cildo Meireles parecetampouco disposto, portanto, a abdicar dadimensão utópica neles contida, inserindo, nas
fissuras simbólicas que encontra ou cria nossistemas de regulação social, ruídos quedesconcertam expectativas acordadas ou forçamsua reformulação. Dotado dessa ambigüidade desentidos, Elemento Desaparecendo/Elemento
Desaparecido atualiza, no âmbito de sua obra, adiscussão sobre os limites entre os campos da
arte e da política na contemporaneidade,ratificando algumas das radicais mudançasocorridas, desde a década de 1960, nessas duas
esferas de ação e de conhecimento.
Em relação às transformações do campo da
arte, esse trabalho é exemplar da relativizaçãodo interesse antes nutrido pelas característicaspuramente formais do objeto de arte ou,alternativamente, da vontade de subsumir tudo
o mais ao tema, escapando do reducionismo
binário que opunha a forma ao assunto. Sem serender à idéia de pertencimento a um s6 âmbitoexpressivo, ele se situa no território frágil eefêmero onde ocorrem as trocas entre lugaressimbólicos distintos; território em que a arte eos espaços da vida cotidiana (o corpo, aeconomia, a política) se tocam e se misturam.Impõe-se, ademais, como representantelegítimo da tradição criada por artistas latinoamericanos a partir daquele decênio, a qual alia
o interesse por estratégias conceitualistas aocompromisso ético de situar-se criticamenteem relação às estruturas sociopolíticas vigentes;tradição que faz, do invento artístico que beiraa dissolução física, ato indissociável da vontadede (re)inventar o mundo. 19
O campo da política também passou por
transformações significativas no mesmoperíodo, causando uma dissolução progressivados limites em que se situava e se entendia seu
funcionamento. O surgimento e a consolidaçãodos movimentos de direitos civis (das
mulheres, dos negros, dos homossexuais), ofortalecimento da consciência ecológica e as
questões antigas que o processo deglobalização econômica e cultural atualiza(quebra de fronteiras, nacionalismo,reconstrução identitária) forçaram oalargamento conceitual do que se entendecomo a esfera da política e das formas de
atuação a partir de seu centro. Relações deantagonismo como poder civil x poder de
Estado, indivíduo x coletividade ou privado xpúblico passam a ser problematizadas oudesfeitas, aproximando, de modo similar ao queacontece no campo da arte, política e vidacomum.
Em função dessas mudanças, a interação entreos espaços da arte e da política contemporâneasé complexa e porosa, existindo diversas
possibilidades de enunciar um discurso críticoque transite entre esses espasos sem afirmarapenas um de seus pólos 2o E nesse contextoque Elemento Desaparecendo/Elemento
Desaparecido busca ampliar a percepção públicade uma das mais importantes questões da
agenda política atual sem se tornar, por isso,
instrumento de propaganda rasa ou mero meiopara divulgar conhecimentos gerados na esferada produção científica. Ao circularem pelas vias epraças de Kassel que ligavam os diversosespaços institucionais onde se realizava aDocumenta I I , os carrinhos que vendiam ospicolés de água também percorriam, a um s6
tempo e sem distinção alguma, 0 circuito da
arte, o da circulação de mercadorias e o demanifestações políticas. À medida que o picoléde água derretia ou era consumido,desmanchava-se, também, a possibilidade deinseri-lo, como objeto íntegro, no mercado dearte; paradoxalmente, era só assim,
materialmente destruído, que ele adquiria podersimbólico e lograva apontar, de modo
inequívoco, a crescente exigüidade de umelemento vital que poderá ser, em tempos
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menos ou mais distante s, a razão de conflitos.Colocando em contato simultâneo estímulossenso riais diversos (visuais, gustativos, táteis) e aracionalidade política, o artista logra criar, nessetrabalho (e nos muitos outros que lhe sãoco ntíguos em estratégia), os fundame ntos parauma percepção crítica e transdis ciplinar domundo em que vive.
Moacir dos .Asljos ê pesquisado; da Fur:dação Joaquim Nabuco e diretor
geral do Museu de Arte Mc:1ema Alois io Magalhacs- Mamam.
Notas
I Sobre a centralidade das re lações sinestés icas na obra deCildo Meireles , ver Cabanas, Ka ira M., "C ildo Meireles:'La Consclence dans l'Ane sth és le"'. Parachute, 11 0,
2003.
'A Documenta I I fOI realizada entre 8 de junho e 15 desetembro de 2002 em cinco diferentes espaçosexpos itivos na cidade de Kassel (Alemanha), Os carrinhosque vendiam os pIColés eram encontráve iSpróximo a
esses espaços ou em tràns ito en tre eles.
3 Ver os textos reun idos sob o t ~ o genérico "Inserções emCi rCUitos Ideológicos 1970-75" , in Cildo Meire/es, SãoPaulo, Cosac & Naify, 2000: I 10-1 16.
4 Os trabalhos Inserções em Circui tos Ideológicos I - Projeto
Coco-Colo e Inserções em Circuitos Ideológicos 2 - Projeto
Cédula foram expostos , simu ltaneamente, na mos traAgnus Dei: Thereza Smões, Gui lherme Maga lhães vaz eCildo Merreles (Petlte Galerie, Rio de janeiro, 1970).
S A esses traba lhos que podem ser rea lizados po r qua lquerpessoa a partir das Instruções escritas que fornece, Ci ldoMeireles atribui a des ignação genérica "fonômenos,numa alusão conjun ta às palavras (onemo e (enômeno.
"Meire les, Cildo", in Obnst. Hans vi rich, Interviews,\úlume I, Milão Charta , 200 3: 581.
6 Ctldo Meire/es. Va lencia: IVAM Centre dei Ca rme, 1995:106.
7 Entrev ista concedida ao au tor em 4 de junho de 2003.
eA extensão espáClo -temporal dos o rcuitos usados ou cr iadospor esses trabalem é indeterminada, dependendo domOVimen to de adesão aos mesmos pe lo púb lico.jaukkuri, Maaretta, "Vanações sobre o tempo", In CildoMeireles. Srasbourg: Musée d'Ar! Con temporain deStrasbou rg, 2003: I 16.
9 Cildo ivle ll'elC'S. Op. Clt., 2000: I I2,
10 Em re lação a esse tÓpiCO, ver Lippard, Lucy, 5ix Yo rs: thedemoterio/izotion o( the (irt obJ€Ct (rom 1966 (O 1972 . LosAngeles: University of Ca lfornia Pre" , 1973,
II Documento I I - Poc(orm 5: Aussteflung / Exhibition.Kurz(éihrer / Short Guide. Ostfrldern- Ruit: Hatje Can tz,200 2: 156,
" Meireles, CrIdo, "No tas·, in Odo Mereles. Cp. cit" 2003:
133.
13 O processo de instltuc lonalização das práticas e estratégiasconceitual istas, ,nclu indo sua transfo rmação emmercadorias pe lo campo das artes, é discutido emRamírez , Mari Carmen, "Rema terial ização ·, in Universofis:
23" Bienal Internacional de São Paulo, São Paulo:Fundação Bienal de São Paulo, 1996: 178-189 .
" O Cam elô (1998) remete às lembranças de infânCia do
artista, que en tão "achava Incomp ree nsível. e ao mesmotempo atraente e estranho, que alguém pudesse vive rvendendo esses objetos tão insignifican tes. Cildo
Meireles, Geografia do Brosll. Rio de janeiro: ArtvivaProd ução Cu ltural, 200 I: 52-54,
1$ Em 1970, logo após a primeira exib ição púb lica de Inserçõesem Circuiws Ideológicos I - POjeto Coca-Colo (ve r nota4), o crít iCO Frederico Morais rea lizou, pe lo período deuma no ite apenas e na mesma sa la da ex ibição ongina ldos obj etos, a expos ição Nova Crítica, em que colocavaalgum as poucas garrafas serigrafadas com as mensagenspropostas pelo artista junto a 15.000 ou tros vasilhamesvazios de Coca -C ola, numa demonstração inequívoca dodesequ ilíbno de fo rças envo lvido naque le trabalho.
16 Entrevista concedida ao autor em 4 de junho de 2003,
17 Out ros dois trabalhos do art ista que remetem à diz imação
física e cu ltu ra l dos ame ríndios pe los colonizadoreseuropeus são Missão J'VIissões/Como Construir Catedrais
( 1987) e OblíVIO 1987/1989). Deve ser ainda lembradoque Clldo Me rreles faz parte de uma fam í ia deindigen istas, o que certamente o informou e influenc iouno trato do assunto.
18Cildo ivleireles. Op. cit., 2000.
" Para uma análise das pnn cipais caraderísticas dessa tradlçào,ve r Ramírez , Mari Ca rme n, "Tadics for Th riving onAdvers ity: ConceptuallSm In Latin Amenca, 1960- 1980",
in cu s Camnitzer, jane Farver e Rachei Weiss (orgs.),Gloual Concepwolism: Poin ts o(Ongin, 19505-19805.
Nova York: Queens Museum of Art, 1999: 53 -7 1.
20 A percepção do progressivo desmanche de fron te iras entreos campos da arte e da política pode ser exempli ficadape la Inclusão do gnupo eco lóg ico Greenpeace entre os
se lecionados para a terce rra edição da biena lintemac iona l Si te Santa Fé, EUA, rea lizada em 1999.
Segundo a curadora do evento, Rosa Mart inez, osintegrantes do Greenpeace se apropnam de "estra tég ias
extrema men te efetivas de comunicação e deperformanc e" para "intervrr na rea lidade e trans formá -Ia" ;a ún ica diferença en tre esses atiV istas e os demaiSconvidados da exposição sena, ainda em sua op inião , Ofato de eles não se autoproclamarem artistas. "Launch lngSte", in Arc(orum , summer 1999: 39-42.
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