comportamento do consumidor endividado
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO COPPEAD DE ADMINISTRAÇÃO
MARCELO SAMPAIO DA FRANCA
COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO
EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO
RIO DE JANEIRO
2013
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MARCELO SAMPAIO DA FRANCA
COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO
EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Administração, Instituto COPPEAD de
Administração, Universidade Federal do Riode Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Administração.
Orientadora: Leticia Moreira Casotti, D.Sc.
Rio de Janeiro
2013
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F814c Franca, Marcelo Sampaio da
Comportamento do consumidor endividado: um estudo exploratórioda experiência de famílias na compra do carro / Marcelo Sampaio daFranca. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
151 f.: il.; 31 cm.
Orientadora: Leticia Moreira Casotti.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,Instituto COPPEAD de Administração, 2013.
1. Comportamento do Consumidor. 2. Marketing. 3. Administração – Teses. I. Casotti, Leticia Moreira (Orient.). II. Universidade Federal doRio de Janeiro, Instituto COPPEAD de Administração. III. Título.
CDD 658.8
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MARCELO SAMPAIO DA FRANCA
COMPORTAMENTO DO CONSUMIDOR ENDIVIDADO: UM ESTUDO
EXPLORATÓRIO DA EXPERIÊNCIA DE FAMÍLIAS NA COMPRA DO CARRO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Administração, Instituto COPPEAD de
Administração, Universidade Federal do Riode Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em
Administração.
Aprovada em
_________________________________________________________
Prof.ª. Leticia Moreira Casotti, D.Sc. (Orientadora) – COPPEAD/UFRJ
_________________________________________________________
Prof.ª. Maribel Carvalho Suarez, D.Sc. – COPPEAD/UFRJ
_________________________________________________________
Prof. Vinicius Andrade Brei, D.Sc. – EA/UFRGS
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DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação a Leandro de Oliveira Leal
(in memoriam)
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por guiar meus passos, por me capacitar a superar mais um desafio e
por não me deixar "inquietar com preocupações, guardando sempre meu coração e meus
pensamentos em Sua paz".
Agradeço a Ivanovna e Márcia Sampaio, as mulheres da minha vida desde sempre, por
criarem um ambiente perfeito para meus estudos e por serem meu porto seguro, meus
exemplos, minhas parceiras. Agradeço também a Marco Polo, por toda torcida e oração.
Agradeço a Carolina Senna, por fazer a vida bonita de qualquer jeito, e a Maria do
Carmo Senna, pelo carinho e tratamento sem igual.
Agradeço a Leticia Casotti, pelo acolhimento, confiança e orientação.
Agradeço a Helio Celidonio, de quem partiu a sugestão para cursar o mestrado, por
todo apoio e incentivo, e também ao Banco Central, por estimular o aperfeiçoamento
acadêmico e profissional de seus servidores.
Agradeço a Anderson Pires, Brunna Pinho, Daniel Pimenta, Luiz Gustavo Schiavo e
Yandra Bredoff, pelas conversas que ajudaram a definir rumos importantes da pesquisa.
Agradeço à Cátedra Fiat de Estudos de Consumo, pelo apoio em toda a pesquisa decampo. Além disso, agradeço os problemas que foram compartilhados por profissionais da
Fiat do Brasil sobre experiências recentes com consumidores endividados pela compra do
automóvel.
Agradeço a Vera Estrella, pela gentileza de ceder salas para a realização de algumas
entrevistas. Agradeço também aos casais que compartilharam suas experiências de
dificuldades financeiras, muitas vezes me recebendo em suas casas.
Agradeço aos professores e demais profissionais do COPPEAD, pelos ensinamentos e
pela atenção dedicada aos alunos.
Agradeço ainda a toda turma 2011, pela companhia ao longo do curso, e
especialmente a Carlos Ambrosio, Celina Rebello, Debora Mattioda, Edgar Ferreira, Glauce
Nascimento, Leonardo Sertã, Mariana David, Michel Cohen e Natalia Miralles, cuja ajuda foi
fundamental em diversas ocasiões do mestrado.
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RESUMO
FRANCA, Marcelo Sampaio da. Comportamento do consumidor endividado: um estudoexploratório da experiência de famílias na compra do carro. Rio de Janeiro, 2013.
Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
O presente estudo exploratório procurou entender a experiência de dificuldades
financeiras vivida por famílias que se endividaram para adquirir um automóvel. De natureza
qualitativa, a pesquisa contou com vinte entrevistas em profundidade junto a casais que
financiaram a compra do carro e não conseguiram efetuar os pagamentos previstos. Dentre os
achados do estudo, destaca-se que o automóvel aparece como um luxo necessário, pois, aomesmo tempo em que sinaliza o pertencimento desses casais a um grupo social com o qual
desejam se identificar e ser identificados, também marca sua diferenciação em relação àqueles
"sem nenhuma condição financeira". Além disso, no financiamento do carro, que se soma a
uma rotina de parcelamento de compras, a preocupação de conseguir fazer o valor da
prestação "caber no bolso" parece limitada ao momento da aquisição, deixando as famílias
com um orçamento sensível a eventuais comprometimentos da renda. De uma forma geral, os
achados de pesquisa apontam para relatos que mostram famílias iludidas em diversassituações que permeiam o processo de consumo do automóvel. Montadoras, por sua vez,
precisam estar atentas ao tratamento que seus clientes têm recebido das financeiras a elas
coligadas e das agências terceirizadas de cobrança, cujas práticas são comparadas as de
agiotas. Chama-se atenção ainda para a necessidade de as empresas promoverem tanto a
concessão responsável de crédito quanto a educação para o consumo.
Palavras-chave: Endividamento. Comportamento do Consumidor. Família. Carro.
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ABSTRACT
FRANCA, Marcelo Sampaio da. Comportamento do consumidor endividado: um estudoexploratório da experiência de famílias na compra do carro. Rio de Janeiro, 2013.
Dissertação (Mestrado em Administração) – Instituto COPPEAD de Administração,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
The present exploratory study sought to understand the types of financial difficulties
experienced by families who run into debt to buy a car. Qualitative in nature, the research
involved in-depth interviews with twenty couples who financed the purchase of the car and
could not make the payments. Among the study's findings, it is worth noting that the car
appears as a necessary luxury because, while it associates these couples to a social group theywish to identify with and be identified by, it also marks the differentiation from those
"without financial condition". Moreover, when financing a car, which adds up to a routine
installment, the concern of getting the value "to fit in your pocket" seems limited to the time
of acquisition, leaving families with a budget sensitive to possible compromises in income. In
general, the research findings indicate reports of deluded families in several situations that
permeate the process of the purchase of the automobile. Automakers, in turn, need to be
mindful of the treatment their clients have received from financial affiliates and third partycollection agencies, whose practices are compared to moneylenders. Attention is also drawn
to the need for companies to promote both responsible credit granting and consumer
education.
Keywords: Indebtedness. Consumer Behavior. Family. Car.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Movimento de Significado. ................................................................................... 31
Figura 2: Framework da Interação entre Identidades nas Práticas de Consumo. .................... 47Figura 3: Práticas de Consumo com Cartão de Crédito e Movimento entre os Espaços de
Estilo de Vida Socialmente Construídos. ............................................................... 53
Figura 4: Sentimentos Associados ao Automóvel ............................................................... 126
Figura 5: Rotina de Parcelamento ....................................................................................... 127
Figura 6: Sentimentos Associados à Dívida ........................................................................ 128
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Perfil dos Entrevistados. ...................................................................................... 66
Quadro 2: Imaginário de Famílias Com e Sem Carro............................................................ 85
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABEP – Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa
ANEF – Associação Nacional das Empresas Financeiras das MontadorasBACEN – Banco Central do Brasil
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CCEB – Critério de Classificação Econômica Brasil
CCT – Consumer Culture Theory
CDC – Crédito Direto ao Consumidor
GNV – Gás Natural Veicular
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INSS – Instituto Nacional do Seguro Social
IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados
IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 25
1.1 RELEVÂNCIA DO TEMA ................................................................................... 25
1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO ........................................................................... 27
2.
REVISÃO DE LITERATURA ..................................................................................... 29
2.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS NO CONSUMO DE AUTOMÓVEIS ......... 29
2.1.1 A perspectiva simbólica do consumo .................................................................. 29
2.1.2 Automóveis e significados .................................................................................. 32
2.1.3
Automóveis e sentimentos .................................................................................. 36
2.2 FAMÍLIA COMO AGENTE DE INFLUÊNCIA ................................................... 40
2.3 O PROCESSO DE ENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR .............................. 49
3. METODOLOGIA ......................................................................................................... 58
3.1 PARADIGMA INTERPRETATIVISTA................................................................ 58
3.2
TIPO DE PESQUISA ............................................................................................ 59
3.3 A ESCOLHA DA CATEGORIA ESTUDADA ..................................................... 61
3.4 PERGUNTAS DE PESQUISA .............................................................................. 61
3.5 SELEÇÃO DOS ENTREVISTADOS .................................................................... 62
3.6
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS INFORMAÇÕES ..................................... 66
3.7 LIMITAÇÕES DO MÉTODO ............................................................................... 68
4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS ................................................................................ 70
4.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS ASSOCIADOS AO AUTOMÓVEL ............ 74
4.1.1.
O luxo necessário ............................................................................................... 75
4.1.2. Sonho de consumo parcelado.............................................................................. 77
4.1.3. Patrimônio simbólico ......................................................................................... 81
4.1.4. Imaginário de famílias com e sem carro .............................................................. 84
4.2 A FAMÍLIA NO PROCESSO DE DECISÃO E COMPRA DO CARRO ............... 87
4.2.1
Reconhecimento do desejo ................................................................................. 88
4.2.2 Negociações para um desejo comum .................................................................. 90
4.2.3 O desejo que "cabe no bolso" ............................................................................. 92
4.2.4 Papéis de gênero ................................................................................................. 94
4.3
FORMAS DE LIDAR COM OS CUSTOS RELATIVOS AO AUTOMÓVEL ...... 96
4.3.1 Falhas no planejamento das famílias ................................................................... 97
4.3.2 Gerenciamento dos custos pelas famílias ............................................................ 99
4.3.3 Influência de imprevistos no orçamento das famílias ........................................ 103
4.4
O ENDIVIDAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE BENS ...................................... 104
4.4.1 Parcelamento como rotina ................................................................................ 104
4.4.2 Planejando o presente ....................................................................................... 107
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4.4.3 A dívida que "cabe no bolso" ............................................................................ 109
4.5 DIFICULDADES DE PAGAMENTO: SIGNIFICADOS, SENTIMENTOS EENFRENTAMENTO ..................................................................................................... 114
4.5.1
O endividamento internalizado ......................................................................... 114
4.5.2 Famílias que enfrentam, que mudam ou que adiam ........................................... 116
4.5.3 Desafios e experiências comuns ....................................................................... 120
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 124
5.1.
"ME ENGANO QUE EU GOSTO" ..................................................................... 128
5.2. A EXPERIÊNCIA COM AS FAMÍLIAS............................................................. 130
5.3. OUTRAS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO ...................................................... 132
5.4. SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS ................................................... 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 135
ANEXO 1 – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS .................................................................. 146
ANEXO 2 – CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO ECONÔMICA BRASIL ........................ 151
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1. INTRODUÇÃO
O principal objetivo da pesquisa foi estudar a experiência de dificuldades financeiras
vivida por famílias que se endividaram para adquirir um automóvel, isto é, que utilizaram
financiamento ou arrendamento mercantil (leasing ) como modalidade de pagamento.
Para dar suporte à consecução desse objetivo geral, o estudo buscou, mais
especificamente: identificar significados e sentimentos envolvidos na compra do carro da
família; examinar como é a participação da família na aquisição do veículo; compreender
como a família lida com os custos inerentes ao automóvel; entender como a família vê o
recurso ao endividamento para a aquisição de bens; e conhecer significados, sentimentos e
experiências originados das dificuldades financeiras.
1.1 RELEVÂNCIA DO TEMA
Na busca por pesquisas realizadas dentro do tema endividamento do consumidor,
foram encontrados estudos principalmente nas áreas de psicologia econômica (KATONA,
1975; LIVINGSTONE e LUNT, 1992, 1993; LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993;
TOKUNAGA, 1993), de políticas públicas (HILL, 1994), de saúde (DRENTEA, 2000;
DRENTEA e LAVRAKAS, 2000; READING e REYNOLDS, 2001; JACOBY, 2002;KASSER, 2002; KASSER e KANNER, 2004) e de proteção ao consumidor (FALLS e
WORDEN, 1988; KINSEY e LANE, 1978; LANGREHR e LANGREHR, 1979, 1989;
SHEPARD, 1984; SHIERS e WILLIAMSON, 1987; SULLIVAN e DRECNIK, 1984). No
âmbito dos estudos de comportamento do consumidor, porém, foram encontradas poucas
pesquisas na literatura internacional, que estão associadas ao endividamento pelo uso do
cartão de crédito (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005; MENDOZA e PRACEJUS,
1997). No Brasil, foram identificados dois trabalhos relacionando os níveis de materialismo e
dívida (MOURA, 2005; PONCHIO, 2006) e um investigando a natureza e as estratégias de
enfrentamento dos problemas financeiros de consumidores pobres (MATTOSO e ROCHA,
2005).
Mudando o foco da produção acadêmica para a mídia de massa, percebe-se, no
entanto, que o endividamento do consumidor constitui tema em reiterada exposição, seja em
programas que trazem orientações de finanças pessoais para um consumo equilibrado, seja em
notícias que evidenciam os índices de inadimplência e os riscos econômicos associados, seja
em reportagens especiais de fim de ano que demonstram o que fazer com o 13º salário
(LUQUET, 2013; BRANCO, 2013; SANTOS, 2012). Matérias de jornal chamam atenção
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para o peso recorde das dívidas no orçamento das famílias brasileiras e que comprometem
percentuais cada vez maiores da renda anual (STEPHAN, 2012; DE CHIARA, 2011). Ainda,
uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre
orçamento familiar havia revelado que sete em cada dez famílias sentem alguma dificuldade
para chegar ao final do mês com seus rendimentos (IBGE, 2010).
O Relatório de Estabilidade Financeira, publicado pelo Banco Central em 2012,
também chama atenção para esse crescimento do endividamento das famílias observado nos
últimos anos e atribui como causas a estabilidade da economia associada à expansão do
crédito (BACEN, 2012). Níveis tão elevados de endividamento, porém, trazem consigo o
potencial de ocasionar dificuldades de pagamento e, por conseguinte, inadimplência.
Infelizmente, em meio a uma população sem o grau necessário de conhecimento sobre opções
de produtos e serviços financeiros, bem como sobre direitos e deveres como cidadãos e
consumidores, esse risco é maior. Araujo e Souza (2010) observam que esse cenário de maior
facilidade na obtenção de crédito, aliado à ausência de uma adequada educação financeira,
desfavorece tanto comportamentos de consumo mais próximos da realidade socioeconômica
dos indivíduos quanto tomadas de decisões mais conscientes sobre riscos e oportunidades.
Tendo em vista que a inadimplência acarreta um maior custo de crédito para a
sociedade como um todo – é elemento responsável por mais de 20% na composição do
elevado spread bancário no Brasil (BACEN, 2011) – , o fato de ela vir apresentando tendência
de alta desde março de 2011 e ter saltado de 5,1%, em dezembro de 2011 para 5,4%, em
junho de 2012 (BACEN, 2012), aponta para a pertinência de se buscar uma maior
compreensão sobre o processo de contração de dívida pelo consumidor e o contexto do
surgimento das dificuldades de pagamento.
Não obstante sejam múltiplas as fontes de endividamento suscitadas pelo consumo e
algumas formas de pagamento, como o cartão de crédito, despontem como vilões da saúde
financeira dos consumidores (DE CHIARA, 2012; TURCI, 2011), a pesquisa objeto desta
dissertação terá como foco a dívida contraída para a aquisição de um automóvel. Trata-se de
um bem comumente tido como sonho de consumo (STEFANO, 2010), com valor unitário
relativamente elevado e que pode trazer impactos financeiros significativos e duradouros no
orçamento doméstico, principalmente se adquirido por meio de financiamento. A esse
respeito, dados da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (ANEF)
informam que 51% dos novos carros comercializados durante 2012 utilizaram o
financiamento bancário como modalidade de pagamento (ANEF, 2013). Além disso, o
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Relatório de Estabilidade Financeira apontou o financiamento de veículos como o principal
responsável pela alta na inadimplência de pessoas físicas mencionada anteriormente
(BACEN, 2012), fato que também foi objeto de grande cobertura jornalística (CUCOLO e
NAKAGAWA, 2012; MARTELLO, 2012; WARTH, 2012), ainda mais tendo em vista as
medidas do Governo Federal de estímulo à economia via redução do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) na compra de carros (DORIA, 2012).
Retomando a perspectiva teórica, vale ressaltar que tanto o endividamento (COHEN,
2007) quanto a família (COMMURI e GENTRY, 2000; EPP e PRICE, 2008) constituem
tópicos com agendas de discussão propostas ou sugeridos como oportunidades de pesquisa.
Considerando que o automóvel é um bem durável cuja aquisição pode demandar alto
envolvimento emocional e financeiro da família, ele se torna propício a uma investigação que
congregue ambos os temas. Acredita-se, portanto, que uma pesquisa sobre o comportamento
do consumidor de automóvel endividado pode trazer um melhor entendimento sobre
motivações que levam uma família a recorrer ao expediente do financiamento para antecipar
sua capacidade de consumir bens. Uma compreensão mais clara do contexto em que surgem
as dificuldades de pagamento pode igualmente gerar conhecimento acerca de práticas, rituais
e negociações relativas ao consumo em família, bem como a respeito dos impactos dos
contratempos financeiros sobre a identidade familiar (EPP e PRICE, 2008).
1.2 ORGANIZAÇÃO DO ESTUDO
O capítulo seguinte traz uma revisão da literatura acadêmica desenvolvida em torno de
três tópicos principais: significados e sentimentos relacionados ao consumo de automóveis;
influência da família no comportamento de consumo; e endividamento do consumidor. A
seleção de tais tópicos procurou abarcar cada aspecto do tema da presente pesquisa – a
experiência de dificuldades financeiras vivida pela família que contrai dívida para a compra
do carro.
No terceiro capítulo, são descritas e situadas as opções metodológicas da pesquisa
objeto desta dissertação, incluindo as justificativas quanto ao paradigma adotado, ao método
de coleta de informação escolhido e à categoria de consumo estudada. Além disso, o capítulo
ainda traz as questões de pesquisa, os critérios para seleção de entrevistados, os
procedimentos de análise e interpretação dos dados e algumas limitações da metodologia
empregada.
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O quarto capítulo descreve resumidamente o histórico da situação de dificuldade
financeira vivida pelas famílias pesquisadas, como forma de contextualizar a discussão que se
segue acerca dos resultados das entrevistas realizadas. As interpretações propostas se
desenvolvem por meio de cinco categorias de análise definidas a partir do discurso dos
entrevistados e buscam confrontar os achados do campo e as teorias existentes sobre o assunto
de pesquisa.
No quinto e último capítulo, são tecidas as considerações finais, que contêm algumas
reflexões acerca das principais descobertas proporcionadas pelo estudo, além de sugestões
para pesquisas futuras em torno do assunto.
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2. REVISÃO DE LITERATURA
O presente capítulo tem por objetivo apresentar a revisão de literatura, que foi
estruturada de forma a apoiar os principais aspectos relativos ao tema de pesquisa, que
consiste na experiência de dificuldades financeiras vivida pela família a partir do
endividamento contraído para a compra do carro.
Inicialmente, procurou-se levantar estudos relacionados ao consumo de automóveis,
para se compreender significados associados a esse bem e sentimentos que ele pode provocar
nos consumidores. A crença subjacente é de que uma melhor compreensão sobre a
importância do carro como objeto de consumo pode trazer luz para o entendimento dos
esforços realizados para tê-lo.Em seguida, são apresentadas pesquisas com foco na família, como agente de
influência nos hábitos de consumo. Acredita-se que o entendimento das histórias,
negociações, rituais e valores vivenciados no seio familiar pode contribuir para a
compreensão de padrões no comportamento de consumo.
Por fim, foi abordado o tema do endividamento diretamente, procurando checar o que
tem sido produzido na literatura acadêmica sobre o mesmo. Este esforço foi útil para verificar
como o assunto costuma ser abordado, as proposições teóricas, as dificuldades relacionadas àsua natureza delicada e o relativo pequeno número de pesquisas na área de estudos de
consumo abordando o tópico.
2.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS NO CONSUMO DE AUTOMÓVEIS
2.1.1 A perspectiva simbólica do consumo
A tradição de pesquisa do consumidor centrada nos aspectos socioculturais,experienciais, simbólicos e ideológicos do consumo é a Consumer Culture Theory1 (CCT),
denominação proposta por Arnould e Thompson (2005) em artigo no qual fazem uma revisão
sintetizada dos cerca de vinte anos de produção acadêmica da área. Apesar do nome, os
autores ressalvam que a CCT não constitui uma grande teoria unificada em torno da cultura de
consumo, mas uma família de perspectivas teóricas que tratam das relações dinâmicas entre as
ações dos consumidores, o mercado e os significados culturais (ARNOULD e THOMPSON,
2005). Essa linha de estudos do consumidor percebe o consumo – e as escolhas e práticas
1 Teoria da Cultura de Consumo.
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comportamentais associadas – como fenômenos sociais e culturais, em oposição a fenômenos
psicológicos ou puramente econômicos (CCT, 2012). Entende-se, portanto, que os indivíduos
consomem bens e serviços tendo em vista o referencial sociocultural de significados que
aspiram para si próprios e/ou desejam expressar a terceiros. Nesse sentido, investigações
sobre como as pessoas retrabalham e transformam os significados simbólicos codificados em
anúncios, marcas, ambientes de varejo e bens materiais, de modo a manifestar suas
circunstâncias pessoais e sociais, suas identidades e seus almejados estilos de vida, têm sido
enfatizadas pela CCT (ARNOULD e THOMPSON, 2005).
No âmbito desses estudos relacionados aos aspectos simbólicos do consumo, sobressai
a figura dos bens materiais, por sua capacidade de representar e comunicar significado
cultural. Miller (2007), por exemplo, ao discorrer sobre a abordagem da cultura material ao
consumo, informa que os "estudos de cultura material trabalham através da especificidade de
objetos materiais para, em última instância, criar uma compreensão mais profunda da
especificidade de uma humanidade inseparável da sua materialidade" (MILLER, 2007, p. 47).
Não por acaso o autor considera o livro The World of Goods: Towards an
Anthropology of Consumption, de Mary Douglas e Baron Isherwood, publicado em 1979, um
dos grandes responsáveis pela revolução dos estudos de consumo em direção a essa
abordagem mais atenta aos símbolos e significados culturais. A obra teria advogado a
compreensão dos bens materiais como um sistema de comunicação – em uma analogia com a
linguagem – e do consumo como um ato que dá visibilidade e estabilidade às categorias da
cultura. Nas palavras de Douglas e Isherwood (2004, p. 108), "a função essencial do consumo
é sua capacidade de dar sentido". Dessa forma, o entendimento dos bens de consumo como
comunicadores de categorias culturais e valores sociais, isto é, como constituintes de um
sistema simbólico, abre a possibilidade de "ler" e compreender padrões da própria sociedade
através dos seus padrões de consumo (MILLER, 2007).
Anos mais tarde, McCracken (1986) ajudaria a consolidar essa abordagem
antropológica do processo de consumo (MILLER, 2007), ao vislumbrar a qualidade móvel
dos significados culturais comunicados pelos bens materiais. De acordo com o autor, as
teorizações vigentes falhavam em observar que o significado está em constante trânsito, em
ininterrupto fluido (MCCRACKEN, 1986, 2003a). Essa nova perspectiva teórica se traduziu
no esquema conceitual sintetizado na Figura 1 a seguir, que contém três instâncias para a
localização do significado (mundo culturalmente constituído, bens de consumo e consumidor
individual) e dois momentos de transferência (mundo-para-bem e bem-para-indivíduo). No
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primeiro momento, a publicidade e o sistema de moda extrairiam significados do mundo
culturalmente constituído e os transfeririam para os bens de consumo; no segundo momento,
rituais de consumo (posse, troca, arrumação e despojamento) moveriam os significados dos
bens para o consumidor (MCCRACKEN, 1986, 2003a).
Figura 1: Movimento de Significado. Fonte: Adaptado de McCracken (1986, p. 72).
Outra importante contribuição de McCracken (2003b) diz respeito ao conceito de"significado deslocado", uma categoria específica de significado cultural referente a ideais
culturais considerados inacessíveis, que são removidos da vida cotidiana e realocados em uma
dimensão distante de tempo ou espaço. Segundo o autor, o consumo seria uma forma utilizada
pela cultura para restabelecer o acesso a esses significados. Por essa perspectiva, os bens de
consumo serviriam como pontes para o significado deslocado e para uma versão idealizada da
vida. Uma questão interessante é que, de acordo com o autor, quando os indivíduos passam da
mera cobiça à efetiva posse de um bem, este normalmente é algo além do seu poder de
compra. "Não há motivo para aspirar àquilo que está prontamente ao alcance"
(MCCRACKEN, 2003b, p. 143). Trata-se de uma compra longamente contemplada e
imaginada e que comumente inclui bens de alto envolvimento, como um carro, um relógio,
uma peça de roupa, um perfume ou gêneros alimentícios especiais. Assim, a posse de um bem
desse tipo funcionaria como prova da existência de um estilo de vida idealizado e aspirado
pelo indivíduo.
Mundo culturalmente constituído
Bens de consumo
Consumidores individuais
Publicidade/
Sistema de moda
Ritual detroca
Ritual dearrumação
Ritual dedespojamento
Sistema
de moda
Ritual de posse
Explicação: Localização do significado
Instrumento de transferência de significado
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2.1.2 Automóveis e significados
O automóvel, na condição de bem material, detém essa capacidade de carregar e
transmitir significados variados. De fato, Suarez (2010) observou que a dimensão simbólica
atrelada ao seu consumo tem sido o enfoque de diversas pesquisas sobre o consumidor
(GRUBB e HUPP, 1968; BELK, BAHN e MAYER, 1982; HIRSCHMAN, 2003; BELK,
2004; DALLI e GISTRI, 2006; LUEDICKE, 2006; LUEDICKE e GIESLER, 2008), nas
quais a categoria de produto é analisada.
Já na década de 1960, o estudo de Grubb e Hupp (1968) buscou desenvolver uma
metodologia que permitisse melhor comparabilidade entre as medidas usadas para a
autoconceituação dos consumidores e para os aspectos relevantes de seu comportamento deconsumo, a partir de uma pesquisa junto a estudantes proprietários de modelos populares de
automóveis Volkswagen e Pontiac. A premissa teórica em que os autores se basearam foi a de
que o autoconceito do consumidor está relacionado ao seu comportamento de consumo. Entre
outras coisas, isso quer dizer que, quando certo indivíduo consome determinado produto, ele
está comunicando que deseja se ver associado com o tipo de pessoa que ele percebe como
consumidor daquele produto. Essa espécie de associação simbólica foi suportada pelos
resultados da pesquisa, permitindo aos autores concluírem que os consumidores das duas
marcas de automóveis se percebiam significativamente diferentes e tinham percepções
concretas de estereótipos dos proprietários de cada marca. Além disso, os respondentes se
perceberam similares aos outros que possuíam o mesmo carro e bastante diferentes dos donos
da marca concorrente.
Essa capacidade de os automóveis transmitirem diferentes mensagens sobre seus
proprietários é retomada por Belk, Bahn e Mayer (1982), ao revisarem a literatura sobre os
mecanismos que os indivíduos usam para codificar e decodificar o consumo. Na codificação,
seria buscada a proximidade entre a imagem de categorias de produtos e a autoimagem de
consumidores, isto é, as pessoas procuram expressar um pouco de si, dizer algo sobre o que
são ou como se veem através da escolha dos produtos que consomem. Já a decodificação
envolve o processo de formação de impressões acerca de terceiros a partir das dicas que eles
revelam através de seu consumo.
Embora outros produtos e serviços tenham sido considerados pelos autores ao longo
de sua revisão de literatura (bebidas, casas, atividades de lazer, roupas e acessórios, cigarrosetc.), para seu objetivo de abordar o desenvolvimento de aspectos simbólicos do consumo
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entre crianças, Belk, Bahn e Mayer (1982) optaram por utilizar somente as categorias "carros"
e "casas". Assim, de modo a atender esse propósito de investigação de como se originam
estereótipos relacionados ao consumo, os pesquisadores apresentaram a cerca de mil crianças,
adolescentes e adultos fotos coloridas de carros e casas de diferentes preços, tamanhos e
estilos. Todos os estímulos foram feitos como comparação de pares e a tarefa era atribuir
descrições pessoais, como "feliz", "esperto", "alguém com muitos amigos", "mesquinho" etc.,
ao proprietário de um dos dois objetos do par. Uma das conclusões dos autores é que a
habilidade de reconhecer as implicações simbólicas das escolhas de consumo varia com a
idade: é mínima entre as crianças em fase pré-escolar, significante no segundo ano de estudos
e quase completamente desenvolvida no sexto ano; estudantes universitários apresentam o
maior grau de estereótipos de consumo; e, entre os adultos mais velhos, os estereótipos sãomais fracos, embora a habilidade de reconhecer o simbolismo do consumo ainda seja
pronunciada.
Mesmo textos culturais supostamente menos imersos na ideologia do consumo, como
o chamado cinema de arte italiano, utilizam a categoria "automóvel" para propósitos
metafóricos (DALLI e GISTRI, 2006), isto é, valem-se da capacidade dos carros de promover
a associação de símbolos e imagens. A partir de uma análise de filmes dos principais mestres
italianos dos anos 1945 a 1975, Dalli e Gistri (2006) procuram destacar como essas obras
representam a cultura de consumo, em especial pela inserção de bens de consumo. Entre as
conclusões dos autores está a de que uma das principais categorias de produto representadas
nos filmes de arte italianos é justamente a de carros, junto com a de cigarros, tendo ambas
sido usadas como componentes realísticos do cenário e pela sua natureza simbólica. No caso
dos automóveis, foi observado que os produtores começam a escolher modelos e marcas de
acordo com o papel social dos personagens e com as situações: o Fiat 600, muito comum nos
anos 1960, por exemplo, assumiu o estereótipo de carro utilitário; conversíveis, como oLancia Aurelia B24, foram definitivamente associados a atores bonitos e encantadores; carros
muito grandes significavam riqueza e esnobismo etc. Dessa forma, Dalli e Gistri (2006)
entendem que, ao enfatizar o papel que produtos tinham na cultura de consumo, os cineastas
contribuíram para o desenvolvimento de um discurso metafórico e imaginário ao qual esses
bens de fato pertenciam.
Ainda no âmbito do simbolismo dos automóveis, Belk (2004) se propôs a entender,
por meio de entrevistas em profundidade com homens fascinados por carros e de observações
em encontros de colecionadores, concursos de carros, autoshows etc., o potencial simbólico
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que muitos homens investem em suas máquinas, que chegam a ser vistas tanto como
extensões deles próprios quanto como seres animados. No primeiro caso, há a possibilidade
de os carros receberem características pessoais dos donos, por meio de customização e tuning ,
e, inversamente, de transmitirem aos seus proprietários atributos relativos a status ou potência.
No segundo caso, os carros são muitas vezes tratados como crianças, amigos e até amantes,
no sentido de que levam para si boa parte da atenção que as esposas gostariam de receber de
seus maridos; ou são dotados de personalidade, como se carros ou marcas em particular
tivessem características próprias, alguns mais masculinos, outros mais femininos. Além disso,
o autor aborda a visão dos carros como objetos sagrados, recebedores de grande devoção, em
meio a um processo de sacralização que envolve rituais (limpeza, polimento), salvação e
sacrifício (processos de restauração), peregrinação (grandes autoshows, museus doautomóvel) e a separação do mundo profano das commodities.
Quanto aos desdobramentos positivos e negativos desse fenômeno que Belk (2004)
denomina "autoerotismo" na vida dos seus entusiastas e na dos outros membros da família, o
autor aponta que, da mesma forma que os carros servem como assunto de conversa entre
homens e os cuidados com o mesmo podem envolver os filhos homens, tendo um aspecto de
socialização, eles podem se tornar um refúgio, um lugar de escape e terapia, com
características antissociais. Outra implicação é a existência de um potencial compulsivo e de
vício nessa relação de cuidados com os carros, que envolve justificativas como a de uma
doença sem tratamento, a de se estar preservando a história do país ou da família ou a de que
se trata de brinquedo de adultos, o que ressalta o aspecto lúdico do entusiasmo por
automóveis.
A questão simbólica do intercâmbio ou transmissão mútua de atributos entre veículos
e seus proprietários mencionada anteriormente também havia sido de certa forma vislumbrada
por Hirschman (2003), em sua investigação das estruturas semióticas – visuais e verbais –
caracterizadoras e comunicadoras do etos do extremo individualismo norte-americano. Por
meio da análise de uma série histórica de anúncios publicados em revistas com temas, ícones
e retórica voltados para os adeptos desse tipo de individualismo, a autora pôde perceber como,
em relação aos polos de uma de suas categorias de tensão subjacentes – instrumentalismo vs.
antropomorfismo – chama atenção o fato de automóveis e seus equipamentos muito
comumente encontrarem a propensão do individualista de enquadrá-los no segundo grupo.
Isso significa que carros são anunciados com características humanas similares às daqueles
aos quais se destinam, como malvadeza, rapidez e resistência.
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Luedicke (2006), por sua vez, vai investigar essa dimensão simbólica da construção de
significados no contexto das comunidades de marca, compreendidas como sistemas sociais.
Sob essa compreensão, tais comunidades estariam inseridas em ambientes sociais e ambos se
construiriam, situariam e legitimariam mutuamente. Pelo framework conceitual proposto pelo
autor, as comunidades de marca devem ser observadas como comunicações contínuas em
meio ao seu ambiente social, sob três aspectos: o da diferenciação, que é gerada de forma
bivalente, com construções internas e externas de significados; o da necessidade de discursos
contínuos, sendo a quantidade e a qualidade das contribuições comunicativas determinantes
para a associação e sobrevivência da comunidade; e o da presunção de instabilidade, em
virtude da tendência humana ao esquecimento, o que faz das comunidades ainda mais
dependentes de reprodução comunicativa contínua.
A evidência empírica que Luedicke (2006) vai buscar para essa proposição conceitual
é a HUMMER Brand Community (HBC), comunidade que evoluiu em torno de um veículo
utilitário esportivo de estilo militar extremamente distinto e controverso. Para tanto, o autor
faz uma abordagem da HBC sob perspectivas múltiplas, incluindo entrevistas
fenomenológicas em profundidade, coleta de dados netnográficos e artefatos históricos, tanto
a favor quanto contra o modelo e seus adeptos. Tal procedimento é consistente com o
conceito de ambientes sociais mencionado anteriormente, mais amplo que a comunidade de
marca, que só agrega entusiastas. Os achados do estudo revelam que um grupo de distinções
ideológicas bivalentes (capacidade off-road vs. irresponsabilidade ambiental, atenção positiva
vs. vaidade egoísta, e superioridade social vs. excesso de consumo de combustível) fornecem
temas para discutir, razões para socializar e significados para identificar, tanto para adeptos
quanto antagonistas da marca, envolvendo a HBC em uma disputa contínua em meio ao seu
ambiente social sobre os significados predominantes da marca e da comunidade.
Vale destacar que a marca HUMMER e as disputas ideológicas de significados
envolvendo seus defensores e opositores serão objeto de outro trabalho de Luedicke e Giesler
(2008), no qual os autores propõem o conceito de "consumo contestado", que compreenderia
um conjunto de práticas influenciadoras interativas através das quais os consumidores
explicitamente desafiam e criticam cada uma das escolhas, comportamentos e ideologias de
consumo dos outros. A análise de Luedicke e Giesler (2008) revela práticas clássicas de
antagonismo do consumidor, que oferecem valiosos insights sobre a criação e proliferação de
ideologia, cultura e significado de marca a partir da perspectiva do consumidor.
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Além dessa capacidade de carregar e transmitir significados culturais, demonstrada
nas pesquisas atentas à dimensão simbólica associada ao seu consumo, o automóvel é
reconhecido por ser um bem material capaz de despertar sentimentos variados nos
consumidores, como os de fascínio e devoção encontrados por Belk (2004). Essa habilidade
dos carros também recebeu a atenção de diversos trabalhos na área de estudos de consumo
(BELK, GER e ASKEGAARD, 2003; CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008;
DESMET, HEKKERT e JACOBS, 2000; LUCE, 1998) e será abordada a seguir.
2.1.3 Automóveis e sentimentos
Com o intuito de avançar o conhecimento sobre o modo com que os consumidores
consomem, Holt (1995) empreendeu um estudo observacional de dois anos junto a
espectadores presenciais de partidas de beisebol e propôs um framework com quatro
metáforas descritoras das práticas que constituem o consumo: consumo como experiência;
consumo como integração; consumo como classificação; e consumo como jogo. A primeira
metáfora, do consumo como experiência, é a que fundamenta as pesquisas interessadas nas
reações subjetivas e emocionais dos consumidores aos objetos de consumo.
De acordo com o autor, Holbrook e Hirschman (1982) foram pioneiros nesse tipo de
pesquisa (HOLT, 1995), percebendo a experiência de consumo como um fenômeno voltado
para a busca de fantasias, sentimentos e diversão. Para tanto, os pesquisadores construíram
um quadro geral de representação das variáveis tipicamente presentes em um comportamento
de consumo e compararam as diferentes abordagens feitas pelo modelo prevalente do
processamento da informação e pela perspectiva experiencial a cada uma delas. O
procedimento evidenciou que a pesquisa convencional negligenciava importantes aspectos da
experiência de consumo, em especial sua natureza simbólica, hedônica e estética. A agregação
da visão experiencial aos estudos do comportamento do consumidor, portanto, fazia-se
necessária para a compreensão dos estados emocionais que surgem durante o consumo
(HOLBROOK e HIRSCHMAN, 1982).
Desde então, diversas pesquisas procuraram aprofundar o entendimento sobre esse
aspecto experiencial do consumo, investigando como diferentes tipos de emoções e
sentimentos se relacionam ao processo de consumo, sua influência sobre a decisão de compra,
seu desencadeamento durante a ou como consequência da aquisição, seus impactos sobre a
avaliação dos consumidores etc. Por exemplo, a experiência de consumo tem sido ligada à
esperança (MACINNIS e DE MELLO, 2005), ao hedonismo (HIRSCHMAN e HOLBROOK,
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1982; O'SHAUGHNESSY e O'SHAUGHNESSY, 2002), à nostalgia (HOLBROOK, 1993),
ao amor (AHUVIA, 2005), ao sagrado (BELK, WALLENDORF e SHERRY, 1989), ao
fascínio (BELK, 2004), ao afeto (EREVELLES, 1998), à inveja (BELK, 1997) e ao desejo
(ELLIOTT, 1997; BELK, GER e ASKEGAARD, 2003). No que se refere à categoria de
consumo investigada nesta dissertação, é possível destacar não só a pesquisa de Belk, Ger e
Askegaard (2003), mas também as de Chitturi, Raghunathan e Mahajan (2008), Desmet,
Hekkert e Jacobs (2000) e Luce (1998), que abordaram sentimentos e emoções envolvidos no
consumo de automóveis.
O artigo de Belk, Ger e Askegaard (2003) se baseia nas experiências de ansiar por e
fantasiar sobre determinados bens vivenciadas cotidianamente por consumidores, recaindo o
foco dos autores sobre os pensamentos, sentimentos, emoções e atividades evocadas quando
consumidores de diferentes culturas são instados a refletir sobre o desejo. Os resultados da
pesquisa indicaram que o desejo é sentido como uma emoção muito forte, essencialmente
positiva, mas cuja perseguição pode levar a transgressões das limitações internalizadas sobre
o que é um apropriado comportamento social. Além disso, mesmo tendo cultivação interna,
desejos são altamente influenciados por fatores externos, como propagandas, filmes, televisão
e, principalmente, interações com parentes, amigos, colegas de trabalho etc. Essa natureza
social do desejo implica a não independência das preferências do consumidor. Nesse sentido,
a atração que um objeto exerce sobre alguém não seria explicada por suas características
intrínsecas (funcionalidade, desempenho, beleza etc.), mas sim pelas esperanças do
consumidor no potencial desse objeto como viabilizador de relações e aceitação em
sociedade.
No estudo ainda sobressaíram alguns bens e experiências como objetos de desejo por
excelência: carros, barcos, férias, casas bonitas, comer bem e marcas de luxo mundiais. Isso
apontaria para a existência de uma cultura de consumo globalizada, com um imaginário
comum quanto à base material do que seria uma boa vida de consumo. O carro,
especificamente, pode despertar emoções tão fortes que chegam a ser expressas como
sensações corporais tal qual a descrita por um entrevistado: "Eu queria tanto aquele carro que
eu podia sentir seu gosto!" (BELK, GER e ASKEGAARD, 2003, p. 333, tradução nossa).
Luce (1998) também atenta para as emoções despertadas por automóveis em seu
estudo sobre processo decisório. A autora se utiliza da categoria para fazer experimentos
baseados no framework teórico por ela proposto para a melhor compreensão do modo com
que os consumidores lidam com decisões carregadas de emoção, em especial as opções de
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enfrentamento da situação por meio do evitamento de emoções negativas. Os resultados
obtidos indicam que: a dificuldade de fazer trade-off , em meio à necessidade de tomar uma
decisão, aumenta a emoção negativa na ausência de uma opção de evitamento; e que a escolha
de manter o status quo, que é uma opção de evitamento, aumenta com a dificuldade de fazer o
trade-off . De acordo com a autora, categorias de produto como carro e seguro de vida
consistentemente envolvem trade-offs entre atributos ligados a objetivos altamente
valorizados (segurança física, estabilidade financeira), de tal forma que as decisões de
consumo relacionadas a elas podem seguramente ser associadas com emoções negativas. O
principal problema é a possibilidade de fazer uma escolha não ótima ( suboptimal choice), que
leve a resultados negativos, arrependimento e culpa.
Desmet, Hekkert e Jacobs (2000) também investigam essa capacidade dos carros de
despertar emoções. Porém, diferentemente de Luce (1998), mais preocupada com o papel das
emoções negativas no processo decisório, estes autores se propõem a apresentar um
instrumento de medição de emoções, positivas e negativas, geradas pela aparência dos
produtos, a Product Emotion Measure. Essa ferramenta se baseia no autorrelato dos
respondentes a partir de dezoito animações de um personagem de desenho animado e é
utilizada em um estudo empírico para medir as emoções provocadas por diferentes modelos
de carros. Embora seja uma pesquisa exploratória, os resultados mostraram que os diferentes
veículos desencadearam emoções mistas de duas formas: no mesmo indivíduo e entre
indivíduos distintos. No primeiro caso, quando se deparam com um carro, as pessoas se
deparam com variadas combinações de emoções (escolheram mais de uma emoção pra
explicar o que sentiam), o que é explicado pela natureza complexa dos produtos, sendo que
diferentes aspectos do seu design podem provocar reações distintas. No segundo caso, como
reações emocionais são pessoais, diferentes pessoas podem exprimir reações diversas a um
mesmo estímulo, o que está vinculado ao tipo de preocupação prévia que ela tem com aobtenção de determinado produto, como exibição de status ou sentimento de segurança.
Pode-se dizer que essas preocupações prévias dos indivíduos com status ou segurança
guardam relação, respectivamente, com os objetivos de promoção e prevenção oriundos da
chamada Teoria do Foco Regulatório2 (HIGGINS, 1997; 2000). Tais conceitos, em conjunto
com outros desenvolvidos sobre benefícios hedônicos e utilitaristas do consumo, bem como
2 Objetivos de prevenção são aqueles que devem ser cumpridos, como "se comportar de uma maneira segura e protegida" e "ser responsável", e eliminam ou reduzem significativamente a probabilidade de uma experiênciadolorosa. Objetivos de promoção são aqueles que as pessoas aspiram atender, como "parecer bacana" e "sersofisticado", e aumentam a probabilidade de uma experiência prazerosa (Higgins, 1997; 2000).
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2.2 FAMÍLIA COMO AGENTE DE INFLUÊNCIA
Os seres humanos possuem uma natureza social: vivem e interagem cotidianamente
em diversas esferas de relacionamento interpessoal, fazem parte de grupos, tentam agradar
aos outros e seguem padrões de conduta a partir da observação de ações alheias (SASTRE,
SERRALVO e MORAS, 2010; SOLOMON, 2011). Nesse contexto, o consumo de produtos,
serviços e marcas emerge como importante forma de interação social, segundo Sastre,
Serralvo e Moras (2010). Como consequência, o comportamento dos consumidores
dificilmente será indiferente à influência de pessoas com quem eles se relacionam direta ou
indiretamente. Tal compreensão é compartilhada por Solomon (2011), para quem o desejo de
conformidade ou identificação com indivíduos ou grupos chega a ser a primeira motivação de
algumas pessoas para muitas de suas compras e atividades.
Esses terceiros capazes de exercer influência sobre o comportamento das pessoas são
justamente quem caracterizam o chamado grupo de referência. Park e Lessig (1977, p. 102,
tradução nossa) definem um grupo de referência como "um indivíduo ou grupo, real ou
imaginário, concebido como tendo relevância significativa para as avaliações, aspirações ou
comportamento de um indivíduo". Inserem-se nesse conceito: artistas, atletas, bandas de
música, colegas de escola ou trabalho, comunidades de marca (MCALEXANDER,
SCHOUTEN e KOENIG, 2002), familiares, institutos de pesquisa, jornalistas, médicos,
políticos, revistas especializadas, tribos de consumidores3 (COVA e COVA, 2002) etc.
Segundo Park e Lessig (1977) e Bearden e Etzel (1982), são três os tipos de influência
que os grupos de referência exercem sobre os consumidores: informacional, utilitária e
expressiva de valor. A influência informacional é baseada no desejo de tomar decisões
fundamentadas. Para tanto, a pessoa buscará ou aceitará as recomendações feitas por terceiros
com experiência reconhecida ou conhecimento especializado sobre o produto ou serviço. Já a
influência utilitária reflete uma conformidade das decisões de compra do indivíduo às
preferências de outrem, como meio de atender suas expectativas e assim conseguir possíveis
recompensas ou evitar imagináveis punições. A influência expressiva de valor, por sua vez, é
caracterizada pela aceitação de sugestões alheias em virtude de um desejo do consumidor de
ver a própria imagem associada com as características expressas pelo grupo de referência ou
3 Apesar de afirmarem que as tribos não sejam diretamente comparáveis aos grupos de referência, Cova e Cova(2002) defendem que esses grupos têm relevante poder de afetar e influenciar os comportamentos das pessoasque os compõem, o que não confronta a definição de Park e Lessig (1997). Além disso, Solomon (2011) tambéminclui as tribos de consumidores entre os tipos de grupos de referência.
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um modelo de coorientação. Esse modelo visava examinar os níveis de concordância e de
precisão das respostas dos pares a algumas proposições, indicando, respectivamente, a
extensão da transferência intergeracional e a efetividade da comunicação subjacente. Ao todo,
49 estudantes universitárias e respectivas mães preencheram questionários nos quais relataram
as próprias preferências por marcas, regras de escolha e crenças quanto ao funcionamento do
mercado (relação preço-qualidade, nível de conhecimento dos vendedores etc.), bem como
estimaram as de seu par. Os resultados da pesquisa indicaram que mães e filhas
provavelmente compartilham mais preferências por marcas e estratégias de compras do que
crenças abstratas sobre o mercado e também que o sentido da influência entre gerações é
primariamente dos pais para os filhos.
Childers e Rao (1992) replicaram e estenderam o modelo de Bearden e Etzel (1982)
sobre a influência de grupos de referência nas decisões de compra dos indivíduos sobre
produtos e marcas, com o propósito de avaliar sua validade ao longo do tempo e em diferentes
contextos culturais. Para tanto, questionários abordando a influência de pares não familiares
(amigos, colegas de trabalho, vizinhos) sobre as decisões de consumo, bem como sua variação
em função de o produto ser consumido pública ou privadamente ou de ser considerado um
luxo ou uma necessidade, foram respondidos por 196 norte-americanos e 149 tailandeses
participantes de associações Alumni de programas de MBA e integrantes de famílias
nucleares e estendidas4, respectivamente. Além disso, a influência de membros da família foi
abordada por meio de um exame das influências intergeracionais, mais especificamente da
transferência de lealdade à marca.
Os resultados do estudo não somente deram suporte ao framework teórico original
como também proporcionaram insights sobre como a influência do grupo de referência pode
variar conforme seja exercida por pares ou pela família. Em essência, a influência de pares é
relativamente maior para produtos de consumo público e de luxo, e as decisões de consumo
referentes a produtos menos conspícuos (de consumo privado ou necessidades) estão mais
sujeitas à influência dos membros da família. A pesquisa ainda indicou diferenças na
influência exercida por pares de acordo com o tipo de família: em famílias nucleares, o grau
com que um indivíduo é influenciado por pares parece ser significativamente maior para
produtos e marcas consumidos publicamente, o que não ocorre em famílias estendidas. Isso
provavelmente ocorre porque, em famílias nucleares, o número de membros familiares
4 Uma típica família nuclear compreende dois cônjuges e um pequeno número de crianças. Já famílias estendidasnormalmente abrigam uma figura patriarcal ou matriarcal e numerosos filhos adultos, que podem ter seus próprios cônjuges e descendentes (CHILDERS e RAO, 1992).
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imediatos é limitado, enquanto em família estendidas são numerosos os familiares capazes de
exercer influência na tomada de decisão do indivíduo (CHILDERS e RAO, 1992).
Voltando-se para a influência dos membros da família no consumo coletivo, Belch e
Willis (2002) realizaram uma pesquisa com 458 homens e mulheres (229 casais), para
examinar se os achados de estudos das décadas de 1970 e 1980, a respeito das influências
relativas de maridos e esposas sobre a tomada de decisão familiar, permaneciam
generalizáveis. Os questionários aplicados buscavam obter informações sobre a influência de
cada membro em três etapas do processo de decisão (iniciação, pesquisa e avaliação e decisão
final) e também em áreas específicas de decisão (quando e onde comprar, quanto gastar,
marca etc.) relativas a sete produtos e serviços. De acordo com os autores, os resultados
sugerem que houve mudanças significativas nos papéis assumidos no processo decisório
familiar, com destaque para a compra do automóvel, um produto anteriormente dominado
pelo marido: as mulheres ganharam mais influência na maioria das áreas de tomada de
decisão, sendo que o ganho foi significativamente maior na fase de iniciação do processo
decisório, embora elas também tenham aumentado sua influência na etapa de pesquisa e
avaliação e na decisão final.
Não são somente Commuri e Gentry (2000), porém, que percebem como o tópico da
influência familiar tem sido objeto de diversos estudos do consumidor. Para Epp e Price
(2008), a pesquisa do consumidor da família tem sido dominada por uma preocupação com a
forma pela qual os indivíduos influenciam e orquestram o consumo das famílias, geralmente
enfatizando como negociam a alocação de recursos dentro de uma família e como influenciam
outros membros da família (COMMURI e GENTRY, 2005; MOORE, WILKIE e LUTZ,
2002). Nesse domínio, as autoras ainda incluem alguns trabalhos investigando o modo com
que indivíduos representam a família na condição de self 5 estendido e os diferentes níveis de
persuasão que consumidores sofrem conforme tenham uma autoimagem independente ou
definida em função de relações interpessoais (TIAN e BELK, 2005; AAKER e LEE, 2001).
A pesquisa de Commuri e Gentry (2005) procurou demonstrar a inadequação das
perspectivas teóricas dominantes sobre a tomada de decisão familiar aos domicílios nos quais
a renda da mulher é superior à do marido. De acordo com os autores, a falha dessas teorias
poderia estar em sua presunção de que todos os recursos são postos em um fundo comum.
5 Optou-se por não traduzir o termo self , tendo em vista que a busca de uma tradução adequada per se jáconfigura uma investigação à parte. Conforme levantamento de Souza e Gomes (2005), nas traduções para alíngua portuguesa no Brasil, self não tem sido traduzido, não obstante seja possível encontrar as traduções"consciência", "eu" e "si" em publicações de Portugal.
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Sendo assim, dois estudos foram empreendidos para investigar a alocação de recursos dentro
das famílias. O primeiro revelou que, embora dispusessem de fundos conjuntos para cobrir
despesas de rotina, lares chefiados6 por mulheres também adotavam fundos segregados
capazes de ofuscar as diferenças salariais e de permitir a representação de papéis semelhantes
aos de domicílios chefiados por homens. Um mecanismo encontrado para o marido figurar o
bom provedor, a despeito da primazia econômica da mulher, consistia em ligar uma despesa
carregada de significado simbólico (parcela da hipoteca, por exemplo) ao seu fundo
individual. O segundo estudo comparou lares chefiados por mulheres e por maridos e deu
suporte adicional aos achados do primeiro quanto ao uso de múltiplos fundos como
ferramenta que possibilita aos casais lidar com as implicações idiossincráticas de a esposa ser
melhor remunerada que o marido.
Moore, Wilkie e Lutz (2002) também conduziram uma investigação composta por dois
estudos, porém com o objetivo de examinar a relação entre as influências intergeracionais e o
brand equity7. O primeiro estudo, que foi construído a partir de uma survey junto a 102 pares
de mães e filhas, para isolar e quantificar os impactos intergeracionais sobre o brand equity,
revelou que estes são persistentes e poderosos para uma variedade de bens de consumo. No
entanto, seus efeitos são seletivos: parecem beneficiar fortemente algumas marcas, mas outras
não. No segundo estudo, os autores procuraram entender mais profundamente a natureza
desses efeitos, por meio de entrevistas em profundidade com 25 estudantes universitárias,
tanto no ambiente do lar como em ocasiões de compras, utilizando a abordagem da história de
vida. Entre os achados de pesquisa, sobressaem algumas formas de manifestação das
interferências geracionais na vida dos consumidores (reação condicionada pela repetição,
mecanismo de evitamento de riscos, meio de vínculo emocional etc.), alguns fatores de seu
desenvolvimento (grande número de episódios de consumo, longos períodos de tempo,
negociações e adequações para refletir preferências pessoais etc.) e algumas forçassustentadoras e enfraquecedoras de tais influências na idade adulta (desejo de manutenção da
autoidentidade, fornecimento de produtos pelos pais, novas influências de cônjuges e colegas
de quarto, restrição de renda etc.).
Já Tian e Belk (2005), constatando uma presença mais evidente de objetos
relacionados à vida pessoal, ao lar e à família no local de trabalho, desenvolveram um estudo
sobre os significados desses bens exibidos como extensões do self . Foram entrevistados
6 O termo chefiado aqui se refere exclusivamente ao cônjuge com maior rendimento no lar.7 Representa o valor adicional atribuído a um produto ou serviço como resultado de esforços e investimentos demarketing (MOORE, WILKIE e LUTZ, 2002).
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dezessete funcionários de uma empresa de tecnologia, previamente instruídos a fotografar
doze objetos que tivessem importância para eles em seus ambientes de trabalho. A formulação
das perguntas se preocupou em conduzir ao compartilhamento das experiências e associações
relativas às posses exibidas, que incluíram tanto extensões funcionais de um self próprio do
trabalho, voltadas para a melhoria de desempenho (laptops) ou a inibição de interações
distrativas (fones de ouvido), quanto extensões primariamente relacionadas a um self da casa,
voltadas a sensações do passado (souvenires de férias) e do futuro (sonhos de consumo), à
brincadeira (pequenas coleções, bolas) e à família (retratos familiares, desenhos de criança,
fotos de animais de estimação, presentes dados por parentes).
De acordo com os autores, os achados do estudo sugerem extensões para o conceito de
self estendido, como a compreensão de que, ao invés de formarem um todo integrado, os
selves da casa e do trabalho costumam competir, procurando se impor um no domínio físico
do outro. O grau com que extensões do self não relacionado ao trabalho (relativos à vida
pessoal, ao lar ou à família, por exemplo) são reveladas ou escondidas no local de trabalho
reflete uma negociação da fronteira casa-trabalho e a visão de que aspectos da identidade e da
vida pertencem a cada domínio. Além disso, pressão dos pares e preocupações da corporação
com a própria imagem também ajudam a estabelecer limites para o grau de representações
pessoais no local de trabalho (TIAN e BELK, 2005).
Outro conceito relacionado ao self é o de autoimagem8, que expressa a percepção que
uma pessoa tem de si, podendo ser independente ou interdependente (GOUVEIA et al, 2005).
Um indivíduo com autoimagem independente se vê e define com base em atributos internos e
características únicas que o distinguem dos outros (inteligente, agressivo etc.), enquanto
alguém com autoimagem interdependente se percebe e define em função de relações
interpessoais (pai de família, bom amigo etc.). Tais noções, oriundas da psicologia social,
serão relacionadas por Aaker e Lee (2001) aos conceitos de objetivos de promoção e
prevenção9 da Teoria do Foco Regulatório (HIGGINS, 1997; 2000), para estudar o impacto
persuasivo de diferentes mensagens sobre os consumidores e o processamento de informação
subjacente.
O estudo foi realizado a partir de quatro experimentos, que envolveram um total de
551 estudantes de universidades nos Estados Unidos e na China (refletindo diferenças
8 De acordo com Gouveia et al (2005), o termo autoimagem é utilizado no Brasil como tradução para o termoinglês self-construal .9 Ver nota 2, à pág. 38.
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culturais de individualismo e coletivismo), bem como simulações de situações que
estimulavam o pensamento individual ou em termos de equipe. Os resultados demonstraram
que as distintas visões do self encorajam diferentes perspectivas sobre a busca dos objetivos
do foco regulatório: para os indivíduos com autoimagem independente, a informação focada
na promoção (fornece mais energia) levou a atitudes mais positivas em relação a um website e
a níveis mais elevados de afinidade com a marca do que informações focadas em prevenção
(evita doenças), ocorrendo o inverso para indivíduos com autoimagem interdependente. Além
disso, a compatibilidade entre o apelo persuasivo da mensagem e o foco regulatório da pessoa
faz com que esta demonstre maior recordação do seu conteúdo e seja mais exigente quanto à
força de argumento, o que pode ser explicado pelos processamentos mais elaborados que
ocorrem quando a informação é compatível com autoimagem do indivíduo (AAKER e LEE,2001).
A despeito da importância desses e de outros estudos sobre a influência da família nos
hábitos e decisões de consumo dos indivíduos, Epp e Price (2008) entendem que as teorias,
questões de pesquisa e métodos correntes no domínio do consumo da família têm falhado em
abordá-lo como um empreendimento verdadeiramente coletivo. Mais que isso, estaria sendo
completamente ignorado o fato de que as famílias abrigam uma série de identidades que
coexistem e interagem nas experiências cotidianas, que se envolvem em práticas de consumo
complementares e concorrentes e que afetam as decisões coletivas: a identidade coletiva da
família como um todo; as identidades relacionais de grupos menores no seu interior (casal,
irmãos, pai-filho); e as identidades individuais de seus membros. Cabe destacar que, para as
autoras, a identidade familiar é resultado das interações compartilhadas entre esses
subconjuntos ou faixas de identidade, isto é, não se trata de um conceito pronto nas mentes
das pessoas, mas de algo co-construído em ação. Como consequência, a unidade de análise do
consumidor deveria se afastar de medidas internas do indivíduo para focar as práticascomunicativas (atividades de consumo simbólico, por exemplo) que constituem e delimitam a
identidade coletiva, tanto para os membros da família quanto para terceiros (EPP e PRICE,
2008). A Figura 2 a seguir traz o framework concebido pelas autoras:
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Figura 2: Framework da Interação entre Identidades nas Práticas de Consumo. Fonte: Adaptado de Epp e Price
(2008, p.52).
Por esse framework , as formas de comunicação a que as famílias recorrem para
gerenciar as interações entre as representações de identidades individuais, relacionais ecoletivas incluem rituais, narrativas, dramas sociais, interações cotidianas e transferências
intergeracionais. Essas práticas comunicativas, por sua vez, podem lançar mão de recursos
simbólicos de mercado, como marcas, objetos, atividades e serviços. Segundo as autoras,
objetos e atividades de consumo podem servir como acessórios fundamentais ou verdadeiras
muletas para haver uma interação familiar (EPP e PRICE, 2008). Esse entendimento, de certa
forma, está em sintonia com a interpretação de Belk (2004) a respeito do aspecto de
socialização presente nas atividades de cuidado com o carro, tendo em vista o envolvimentoconjunto de pais e filhos.
Ainda, o framework prevê alguns moderadores do processo de gerenciamento de
identidades por meio de atividades de consumo: o grau de adaptabilidade das famílias quanto
a formas de comunicação e símbolos; os níveis de concordância dos membros da família
quanto à identidade coletiva e de seu comprometimento em manter determinadas
representações; a medida da sinergia entre a identidade familiar e as identidades individuais e
relacionais; rupturas e transições que desafiam práticas de identidade, bem como a forma comque a família utilizará recursos do mercado para responder a essas perturbações; barreiras
Faixas de Identidade
Familiar
Família
RelacionalIndividual
Recursos Simbólicos de
Mercado
Marcas
Objetos
Atividades
Serviços
Moderadores
Adaptabilidade das Formas de Comunicação
Concordância dos Membros
Comprometimento dos Membros
Sinergia (Dissonância) entre as Faixas de Identidade
Rupturas e Transições
Barreiras à Representação
Necessidades de Identidade Contextuais
Formas de Comunicação
Narrativas
Rituais
Dramas Sociais
Interações Cotidianas
Transferências
Intergeracionais
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iniciais e correntes à representação identitária; e respostas contextuais para o fluido de
necessidades das identidades individuais, relacionais e familiar.
Algumas colocações de Epp e Price (2008) acerca dos moderadores acima merecem
atenção especial, em virtude de potenciais desdobramentos sobre o processo de
endividamento, que será objeto da seção seguinte. Quando abordando a sinergia entre os
diferentes tipos de identidade, por exemplo, as autoras questionam se objetos de consumo que
tenham uma relação simbólica e/ou uma associação especial com diversas identidades
relacionais (em oposição àqueles que são valorizados por uma ou poucas identidades) são
mais propensos a serem vistos como insubstituíveis ou inalienáveis. Caso um carro financiado
se enquadre nessa situação, pode ser difícil para a família desfazer-se do bem, ainda que o
endividamento atrelado pese em sua renda.
Com efeito, a própria aquisição de um automóvel por meio de financiamento pode ser
entendida como um evento de ruptura na identidade da família, ainda que desejado ou
planejado, assim como um casamento, o nascimento de uma criança e a compra de uma casa
nova (EPP e PRICE, 2008). Outras rupturas, no entanto, são menos previsíveis ou desejáveis,
como divórcio, doença grave e desemprego, e podem afetar as "programadas",
comprometendo a capacidade de pagamento. A esse respeito, Bolea (2000 apud EPP e
PRICE, 2008, p. 58) afirma que os testes a que a família resiste, bem como as maneiras com
que ela responde às mudanças para garantir sua sobrevivência tornam-se parte fundamental de
sua identidade coletiva. Epp e Price (2008) também percebem em eventos críticos e não
planejados desse gênero possíveis pontos de transição capazes de estimular mudanças
imediatas na identidade familiar. Apesar disso, as autoras afirmam que são poucos os estudos
do consumidor que conectam os desafios enfrentados pela identidade da família durante esses
momentos de transição e o comportamento de consumo associado em que ela irá se envolver
para restaurar, manter ou reconstruir seu sentido de família.
Já com relação às barreiras do mercado que restringem as práticas de construção de
identidade, Epp e Price (2008) identifica que a falta de recursos financeiros pode impedir que
a família represente suas identidades nas formas que deseja, levando a uma redefinição
forçada da identidade familiar. Um exemplo dado pelas autoras de atividade de consumo
central para representações da identidade familiar e que pode ser inviabilizada por restrições
financeiras é a viagem de férias. E então as pesquisadoras questionam que estratégias
orientadas ao consumo as famílias poderiam usar para superar essas barreiras. Nesse sentido,
talvez o fenômeno do endividamento possa ser compreendido como um mecanismo utilizado
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para antecipar o consumo de um bem tido como fundamental para a construção da identidade
da família, porém fora dos limites orçamentários correntes. Não é difícil vislumbrar como o
acesso que uma família tem a bens materiais, comparado ao de outras famílias, pode moldar
sua identidade coletiva (EPP e PRICE, 2008), com impacto nas práticas de consumo.
2.3 O PROCESSO DE ENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR
A aquisição de marcadores de consumo que sinalizam uma boa vida pode ser
considerada condição sine qua non para a participação na cultura de consumo, sendo difícil
que se faça qualquer exagero sobre a importância do endividamento dos consumidores para a
busca desse estilo de vida (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005). Com efeito, o crédito
se tornou um expediente comum ao qual consumidores recorrem para adquirir bens; gerenciar
esse recurso, porém, pode ser problemático para alguns deles (MENDOZA e PRACEJUS,
1997). Para Hill (1994), uma consequência adversa do uso ampliado do crédito são os
problemas do consumidor com a gestão do débito. Quando o crédito obtido supera a
capacidade de pagamento do indivíduo, ele acaba acumulando dívida e fica sujeito não
somente a sérias consequências financeiras, mas também a um estigma social de
irresponsável, autocondescendente e impaciente (LIVINGSTONE e LUNT, 1992).
Em face desses desdobramentos negativos e possivelmente duradouros, Mendoza e
Pracejus (1997) ressaltam a importância de investigar os antecedentes do uso excessivo do
crédito, o que teria sido contemplado na literatura por meio de alguns trabalhos nas áreas de
política do consumidor (DESSART e KUYLEN, 1986) e de psicologia econômica
(LIVINGSTONE e LUNT, 1992, 1993; TOKUNAGA, 1993), preocupados com a
identificação de características dos consumidores com potencial para acumular dívidas em
geral. No âmbito da psicologia econômica, especificamente, a investigação sobre
endividamento teve início em 1975, com a publicação de Psychological Economics, por
George Katona (DAVIES e LEA, 1995), que listou três razões para um indivíduo gastar mais
do que ganha: baixa renda, insuficiente para cobrir até despesas essenciais; alta renda
combinada com um forte desejo de gastar; e falta de vontade de economizar,
independentemente da renda. Com essa lista, Katona (1975) inseriu motivações psicológicas e
comportamentais na abordagem da origem dos problemas com crédito, não restringindo suas
explicações a circunstâncias econômicas adversas.
O estudo de Dessart e Kuylen (1986) concluiu que o perfil das famílias mais propensas
a ter excesso de dívidas era o de locatários (sem casa própria), com filhos entre sete e dezoito
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anos e com saldos em aberto junto a diferentes empresas. Uma variável individual
identificada pelos autores que desfavorece a predisposição ao endividamento é o locus de
controle10 interno: "quanto mais os devedores sentem que podem controlar suas vidas e as
coisas ao seu redor, menos provável é que eles entrem em dificuldades financeiras"
(DESSART e KUYLEN, 1986, p. 320, tradução nossa). Os pesquisadores ainda sugeriram
alguns fatores que contribuem para o problema da dívida, como a falta de compreensão das
consequências de transações financeiras, o crédito facilmente acessível e a falta de
competências de gestão do dinheiro (DESSART e KUYLEN, 1986).
Já o estudo de Livingstone e Lunt (1992) utilizou medidas individuais de atitude para
identificar devedores problemáticos. De acordo com os autores, devedores tendem a manter
atitudes um tanto favoráveis ao crédito e ao débito, especialmente pela possibilidade de
acesso imediato a bens cuja compra, de outra forma, teria de ser adiada. Além disso, os
pesquisadores também identificaram fatores demográficos e econômicos que diferenciavam
devedores e não devedores: a classe social tinha uma relação negativa com a dívida, enquanto
a renda disponível era positivamente relacionada com o débito. Ainda, o número absoluto de
dívidas de uma pessoa era positivamente relacionado com o nível global de endividamento.
Em outra pesquisa, Livingstone e Lunt (1993) relataram que as estratégias financeiras
de poupadores e tomadores de empréstimos não eram necessariamente excludentes entre si, a
despeito de as concepções estereotipadas de um grupo e outro sugerirem que seus
comportamentos tinham diferentes motivações e consequências. Na verdade, esses
pesquisadores encontraram um número considerável de respondentes que possuíam,
simultaneamente, dívida e poupança.
O perfil psicológico das pessoas em problema com dívidas ainda foi estudado a partir
da perspectiva da teoria da dependência: Tokunaga (1993) supôs que consumidores com
problemas relacionados ao crédito tinham um perfil psicologicamente semelhante ao de
viciados. O autor descobriu, por exemplo, que locus de controle externo e sentimento de
autoeficácia inferior estão entre as características de pessoas que usam o crédito
excessivamente. De acordo com Tokunaga (1993), esses consumidores veem o dinheiro como
fonte de poder e prestígio e são menos propensos a tomar medidas apropriadas para reter o
seu dinheiro. No entanto, ao contrário das expectativas do pesquisador, os consumidores com
10 Refere-se ao grau com que o indivíduo percebe os acontecimentos como dependentes do seu própriocomportamento. Aqueles com locus de controle interno acreditam que seu comportamento influencia os eventos,enquanto aqueles com locus de controlo externo tendem a ver os acontecimentos como sendo resultado do acaso,do destino ou das ações dos outros (ROTTER, 1966 apud TOKUNAGA, 1993, p. 298).
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problemas de crédito não apresentam níveis mais altos de tomada de risco ou de busca de
sensação, como seria previsto por um modelo de dependência.
Mendonza e Pracejus (1997), já no âmbito da pesquisa do consumidor, procuraram
explorar a relação entre a orientação temporal do indivíduo11 e o uso descomedido do cartão
de crédito, como forma de abordar especificamente o perfil do consumidor com dívida
acumulada nesse meio de pagamento, até então negligenciado pela literatura (MENDOZA e
PRACEJUS, 1997). O nível de utilização do cartão foi medido pelo número de cartões
possuídos, em face da dificuldade para obter outras variáveis, como quantia total da dívida,
valor médio dos pagamentos mensais e a razão entre dívida e renda. Embora os resultados
tenham confirmado que a orientação temporal tem impacto significante sobre a quantidade de
cartões possuída, esse impacto se deu na direção oposta à predita pelos autores: ter uma
orientação temporal futura – e não presente – é que estava associada à posse de mais cartões.
Segundo os pesquisadores, o fato de os respondentes serem estudantes universitários pode
ajudar a explicar o resultado: esses jovens podem ter maiores expectativas que o resto da
população em sua habilidade pagar o débito, vinculadas à crença na obtenção futura de um
bom trabalho após a graduação, por exemplo.
Com relação à dificuldade relatada para obter informações sobre a dívida, Mendoza e
Pracejus (1997) informaram que Lea, Webley e Levine (1993) já haviam observado que a
natureza sensível deste tópico tem algumas vezes impedido uma descrição completa e acurada
das causas e consequências do endividamento excessivo. A despeito da "taxa de resposta
decepcionante" (LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993, p. 112, tradução nossa), os autores
afirmaram que resultados da pesquisa sugerem que a dívida é fortemente influenciada por
circunstâncias econômicas adversas, mas que os fatores sociais e psicológicos também são
importantes. Nesse sentido, existiriam condições para o desenvolvimento de uma "cultura da
dívida" autossustentável, já que, em uma sociedade dirigida pelo consumo, estar em débito se
tornou um modo de vida.
A literatura sobre endividamento, porém, não se limita à identificação das
características dos consumidores com dívidas. Segundo Hill (1994), os pesquisadores têm
respondido à necessidade de investigação dos problemas de crédito do consumidor de três
formas principais: além dessas abordagens voltadas ao desenvolvimento de um perfil
11 Diz respeito à tendência de o indivíduo focar a atenção em uma determinada região temporal. Segundo Jones(1994), uma orientação ao futuro pode ser percebida no hábito de definir objetivos e traçar planos, enquanto umaorientação ao presente pode ser caracterizada por certa impulsividade e espontaneidade no comportamento.
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psicológico dos consumidores endividados, entre as quais o autor inclui os estudos de
indivíduos caracterizados como impulsivos (ROOK, 1987) ou compulsivos (FABER e
O'GUINN, 1988; O'GUINN e FABER, 1989), tem havido pesquisas focadas nos efeitos do
endividamento sobre o bem-estar dos consumidores (KINSEY e LANE, 1978; LANGREHR e
LANGREHR, 1989; SHEPARD, 1984; SHIERS e WILLIAMSON, 1987; SULLIVAN e
DRECNIK, 1984) e investigações preocupadas com a proteção dos consumidores contra as
soluções oferecidas por credores (LANGREHR e LANGREHR, 1979; FALLS e WORDEN,
1988).
Entretanto, a partir da constatação de que tais pesquisas não teriam examinado
adequadamente a conturbada relação entre agências de cobrança de dívidas e consumidores
endividados, Hill (1994) se propôs a investigar as crenças, sentimentos e comportamentos dos
cobradores e devedores um em relação ao outro. As entrevistas em profundidade revelaram
que cobradores identificam pelo menos dois tipos diferentes de consumidores endividados:
aqueles que são cooperativos ou por recearem as desconhecidas consequências de suas
dívidas estarem sob o cuidado de agências especializadas ou por precisarem liquidar seus
débitos para obter novos créditos para compras maiores, como do carro ou da casa; e os não
cooperativos, que são abertamente confrontadores ou, inversamente, muito solícitos, mas
igualmente sem pretensão de pagar. Pelo lado dos consumidores, o autor conseguiu encontrar
três explicações principais para os problemas financeiros enfrentados: a ocorrência de alguma
tragédia recente que exauriu os recursos da família (doenças graves com tratamentos caros,
por exemplo), a desaceleração da economia com o advento de desemprego, subemprego ou
redução salarial, e a inaptidão para gerenciar o uso do crédito.
Já para Bernthal, Crockett e Rose (2005), a literatura teria falhado em identificar as
práticas que os consumidores empregam para lidar com o endividamento. Sendo assim, os
autores realizaram uma investigação na área da pesquisa do consumidor com foco nas práticas
relacionadas ao cartão de crédito e descobriram que elas podem tanto favorecer o alcance de
objetivos de estilo de vida definidos pelo consumo quanto restringir a capacidade de realizá-
los, esta última situação caracterizando a metáfora da "prisão do devedor", ou seja, uma vida
de enfrentamento das propriedades confinantes da acumulação de dívidas. A Figura 3 a seguir
sintetiza o modelo sugerido pelos pesquisadores:
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Figura 3: Práticas de Consumo com Cartão de Crédito e Movimento entre os Espaços de Estilo de Vida
Socialmente Construídos. Fonte: Adaptado de Bernthal, Crockett e Rose (2005, p.133).
Entre as práticas que caracterizam o espaço do alcance de objetivos estão o uso do
cartão de crédito para a construção ou a sinalização do estilo de vida, como na aquisição de
experiências valorizadas ou de bens que demonstrem ausência de restrições materiais. Já oespaço da "prisão do devedor" é marcado pela necessidade de lidar com os custos
psicológicos e financeiros do endividamento. Referenciar gastos como necessários e
apropriados, focar o aspecto altruísta do ato de presentear e pagar pouco mais que o valor
mínimo da fatura estão entre as práticas concebidas para proteger psicologicamente o usuário
dos efeitos negativos do acúmulo de dívida sobre seu autoconceito e para justificar o uso
continuado de cartões de crédito, apesar de endividamento elevado. As práticas de
enfrentamento das consequências financeiras visam postergar/evitar o pagamento das
obrigações e a alteração dos padrões correntes de consumo e consistem em uma espécie de
"baralhamento" das dívidas: recursos de um cartão são usados para pagar a conta mais
onerosa de outro, pagamentos são priorizados em função das taxas de juros e empréstimos que
consolidem as dívidas muitas vezes são contratados. Isto é, os endividados encontram formas
de criar um espaço vivível dentro das "muralhas de sua prisão", usando as regras do mercado
em vantagem própria (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005).
O modelo teórico proposto por Bernthal, Crockett e Rose (2005) também informa quea capacidade de os consumidores se moverem entre esses dois espaços de estilo de vida
Trajetória de
Restrição
Trajetória deLibertação
"Prisão do Devedor"
O Mercado
Espaços de Estilo de Vida
do Consumidor
Alcance ControleEnfrenta
mento
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(alcance de objetivos vs. "prisão do devedor") é influenciada por características de
autocontrole pessoais. Negar ou postergar a gratificação que acompanha a aquisição e o
consumo pode manter o indivíduo longe do confinamento, ao passo que uma inabilidade de
apresentar autocontrole pode conduzi-lo diretamente para lá. Esses movimentos, denominados
trajetórias de libertação e de restrição, respectivamente, ainda trazem ideologias subjacentes:
uma ideologia de frugalidade é mais evidente entre as pessoas na trajetória de libertação, que
têm maior controle sobre o cartão de crédito e menores níveis de dívida; aqueles na trajetória
da restrição, por sua vez, apresentam sentimentos mais proeminentes de compensação, no
sentido de que se acreditam merecedores de "prêmios" por enfrentarem as dificuldades do dia-
a-dia, utilizando o cartão de crédito como meio legítimo para adquiri-los.
Cohen (2007) também não deixa de notar alguns paradoxos interessantes entre as
práticas daqueles consumidores que fazem rolagem da dívida – que habitariam a metáfora da
"prisão do devedor" sugerida por Bernthal, Crockett e Rose (2005) – , ao abordar o
predomínio do cartão de crédito como sistema de pagamento e suas implicações para a
sustentabilidade no consumo. A autora observa, por exemplo, que esses "roladores" de dívida
devem destinar uma parcela significativa de sua renda mensal ao pagamento de juros e taxas
do cartão de crédito, que é o meio preferencial para ampliar a capacidade de consumo. Ocorre
que, por terem que desviar constantemente uma porcentagem substancial das finanças
familiares para cobrir tais despesas, esses consumidores são forçados a reduzir, em termos
absolutos, o seu consumo no longo prazo (COHEN, 2007).
Independentemente da observação dessas contradições nos níveis de consumo que o
cartão de crédito pode provocar, o principal objetivo de Cohen (2007) é propor uma agenda
para a discussão de mudanças estruturais nas práticas de empréstimo que respondem pela
popularidade desse sistema de pagamento, destacando as ligações entre o crédito ao
consumidor e o consumo sustentável. De acordo com a autora, a prevalência de cartões de
crédito e a acumulação de dívida do consumidor nos países avançados têm sido fatores
importantes para o crescimento econômico. À medida que o hábito comum entre os
consumidores deixa de ser poupar dinheiro para compras futuras e passa a ser antecipar novas
aquisições por meio de endividamento, fica evidenciada para Cohen (2007) a preponderância
do papel do gerenciamento financeiro familiar na capacitação para um consumismo mais
responsável ambiental e socialmente. Segundo a autora, as discussões acerca da
sustentabilidade no consumo têm se restringido a iniciativas com foco em eficiências
materiais e energéticas, que, embora favoreçam notáveis ganhos de curto prazo, tendem no
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longo prazo a ocasionar melhorias aquém das expectativas e efeitos-rebote imprevistos.
Assim, programas de políticas eficazes precisariam reconhecer as dimensões sociais e
financeiras da tomada de decisão do consumidor e se tornar mais atentos ao papel das famílias
como catalisadores da produção (COHEN, 2007).
Cohen (2007) ainda faz um levantamento de pesquisas na área da saúde sugerindo que
a acumulação de níveis insustentáveis de endividamento pode contribuir para a diminuição do
bem-estar no longo prazo (DRENTEA, 2000; DRENTEA e LAVRAKAS, 2000; READING e
REYNOLDS, 2001; JACOBY, 2002; KASSER, 2002; KASSER e KANNER, 2004). Os
achados de tais estudos estabeleceriam um contraponto à percepção de que o uso do crédito
seria psicologicamente fortalecedor, uma vez que o endividamento para o consumo
responderia à necessidade imediata de manutenção da saúde mental, em meio a um ambiente
estimulador de ansiedade pela promoção onipresente de produtos.
Alguns estudos no Brasil também abordaram a questão do endividamento para o
consumo, tanto direta (MOURA, 2005; PONCHIO, 2006) quanto indiretamente (BRUSKY e
FORTUNA, 2002; MATTOSO e ROCHA, 2005). Com relação às razões que motivaram
essas pesquisas, parece ser útil considerar a distinção feita por Lea, Webley e Levine (1993).
De acordo com os autores, são dois os principais tópicos que despertam o interesse nas
pesquisas sobre endividamento: os fatores que levam algumas pessoas a usarem o crédito
mais intensamente que outras; e os fatores que fazem alguns indivíduos entrarem em situações
de dificuldade de pagamento, com a possibilidade de ocasionar acúmulo de dívidas até níveis
impagáveis (LEA, WEBLEY E LEVINE, 1993). Sob essa perspectiva, os estudos de Moura
(2005), Ponchio (2006) e Brusky e Fortuna (2002) aparentam estar mais relacionados ao
primeiro tópico, enquanto a pesquisa de Mattoso e Rocha (2005) parece se aproximar mais do
segundo. Nesse sentido, é possível perceber ainda que a presente dissertação volta seu
interesse para a compreensão do segundo grupo de fatores.
Moura (2005) se propôs a estudar o impacto do materialismo, valor dado aos bens
materiais e às propriedades, na atitude em relação ao endividamento e no nível de dívida para
financiamento do consumo junto a famílias de baixa renda da cidade de São Paulo. As
principais conclusões da autora foram que o materialismo tem efeito direto sobre a atitude ao
endividamento, mas indireto sobre a dívida, e que o efeito mais relevante sobre a dívida vem
da vulnerabilidade das famílias, mas no sentido inverso do esperado, ou seja, quanto menor a
vulnerabilidade, maior o volume de dívida. Uma possível explicação é que, entre os
indivíduos que vivem com baixos rendimentos (a renda compõe a dimensão socioeconômica
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da vulnerabilidade), aqueles com renda relativamente mais alta têm mais acesso ao crédito e,
portanto, mais oportunidades de entrar em acordos de parcelamento do que aqueles com
menor renda (MOURA, 2005).
O estudo de Ponchio (2006) também utilizou o contexto de consumidores de baixa
renda do município de São Paulo para explorar e caracterizar as manifestações do
materialismo e medir seu impacto na contratação de carnês de crediário. Os achados da
pesquisa confirmam a tese de que não apenas fatores econômicos adversos levam as pessoas a
se endividarem (KATONA, 1975; LEA, WEBLEY e LEVINE, 1993) e que o estudo da
demanda por crédito para consumo necessariamente deve testar a influência de variáveis
sociodemográficas e psicológicas. Constatou-se, por exemplo, que o materialismo está
associado à idade (indivíduos mais novos tendem a ser mais materialistas que os mais velhos)
e à educação (adultos analfabetos tendem a ser menos materialistas que adultos tardiamente
alfabetizados, sendo a busca por escolaridade na fase adulta possivelmente motivada por
desejos de melhor empregabilidade, renda e maior participação na sociedade de consumo),
mas não ao gênero ou à renda.
A pesquisa de Brusky e Fortuna (2002), como citado acima, não abordou diretamente,
ou pelo menos não exclusivamente, a questão do endividamento para consumo. Trata-se de
um projeto desenvolvido para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), com o objetivo de proporcionar um maior entendimento sobre a demanda por
microfinanças no País. Com metodologia qualitativa, o estudo foi conduzido nas cidades de
São Paulo e Recife junto a grupos de microempresários, autônomos, assalariados e
desempregados, com renda entre zero e seis salários mínimos. Entre os achados relativos ao
endividamento para consumo, os autores perceberam que, mesmo relatando uma incapacidade
de fazer sobrar dinheiro ao fim do mês, os entrevistados separavam as quantias necessárias
para pagar as prestações de suas compras financiadas ou para cobrir multas e juros dos cartões
de crédito. Esses pagamentos de dívidas, segundo os pesquisadores, podem ser vistos como
"poupança invertida" e mostram a capacidade de fazer sobrar dinheiro, quando é preciso (ou
quando se quer).
A pesquisa de Mattoso e Rocha (2005), por sua vez, procurou investigar a natureza
dos problemas financeiros enfrentados por consumidores pobres, moradores da favela da
Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, e as estratégias adotadas para o seu enfrentamento. Os
resultados indicaram que as dificuldades vividas originavam-se tipicamente de eventos
inesperados como desemprego, redução ou suspensão de renda, gravidez, divórcio, doença,
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morte e emergências em geral, e que as soluções mais utilizadas para contornar a situação
eram não pagar ou contrair empréstimos. O estudo revelou ainda que, nesse contexto, "ter
nome", que significa, essencialmente, ter acesso a crédito, torna-se um demarcador social a
evidenciar quem está bem financeiramente (e apto a "emprestar o nome", isto é, a abrir um
crediário em seu nome ou a usar o próprio cartão de crédito para fazer as compras de outra
pessoa) e quem está mal e inadimplente (com o "nome sujo", ou seja, listado em cadastros de
devedores, e que precisa "pedir um nome emprestado" para consumir).
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3. METODOLOGIA
Este capítulo tem por objetivo descrever e situar as opções metodológicas da pesquisa
objeto desta dissertação. Inicialmente é exposta a adoção do paradigma interpretativista. Em
seguida, são oferecidas as razões que motivaram a escolha da abordagem exploratória, bem
como da entrevista em profundidade como método qualitativo de coleta de dados e da
aplicação de exercícios projetivos. Além disso, são apresentadas justificativas para a escolha
da categoria de automóveis, como instrumento para estudar o endividamento. As perguntas de
pesquisa, os critérios para seleção dos entrevistados e a proposta de análise das informações
coletadas também integram o presente capítulo, que se encerra com o levantamento de
algumas limitações da metodologia adotada.
3.1 PARADIGMA INTERPRETATIVISTA
Todo pesquisador é guiado por princípios que combinam crenças sobre ontologia,
epistemologia e metodologia (DENZIN e LINCOLN, 2006). Os princípios ontológicos se
referem à compreensão do investigador sobre a natureza do ser humano e da realidade; os
epistemológicos, à relação existente entre o investigador e o conhecido; e os metodológicos, à
forma de o investigador adquirir conhecimento. Esse conjunto de crenças e sentimentos em
relação ao mundo e ao modo como este deveria ser compreendido e estudado, que orienta a
ação do pesquisador, é o que Lincoln e Guba (1985) vão denominar paradigma. Para Patton
(2008, p. 423, tradução nossa) o paradigma "informa aos seus adeptos o que é importante,
legítimo e razoável (...), dizendo o que fazer sem a necessidade de longas considerações
existenciais e epistemológicas". Essa característica dos paradigmas, porém, constituiria tanto
sua força quanto sua fraqueza: eles tornam a ação possível, mas mantêm suas razões
subjacentes ocultas em suposições não questionadas (LINCOLN e GUBA, 1985; PATTON,
2008).
O paradigma adotado neste estudo é o interpretativista, que, segundo Denzin e Lincoln
(2006), supõe uma ontologia relativista (existem múltiplas realidades), uma epistemologia
subjetivista (pesquisador e pesquisado trabalham juntos na criação das compreensões) e um
conjunto naturalista (no mundo natural) de procedimentos metodológicos. De acordo com
Patton (2008), o paradigma interpretativista volta sua atenção para o significado do
comportamento humano, o contexto da interação social e as conexões entre estados subjetivos
e comportamento. Enfatiza-se, assim, a capacidade humana de conhecer e compreender osoutros a partir de introspecção e reflexão baseadas em descrições detalhadas obtidas por meio
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de métodos como observação direta, entrevista aberta e em profundidade e estudo de caso.
Pelo paradigma interpretativista, portanto, a construção do conhecimento decorre da
combinação de diferentes visões sobre um tema; previsibilidade ou leis gerais não são
buscadas, mas sim a diversidade de descrições e interpretações acerca de um mesmo
fenômeno (LINCOLN e GUBA, 1985).
3.2 TIPO DE PESQUISA
De acordo com Malhotra (2006), o objetivo da pesquisa exploratória, como o próprio
nome indica, é explorar determinado problema ou situação, para descobrir ideias e percepções
que possibilitem sua maior compreensão. A abordagem exploratória é especialmente
pertinente quando há pouco ou nenhum conhecimento científico sobre o grupo, processo,
atividade ou situação que se deseja examinar (STEBBINS, 2008) ou quando o conhecimento
sobre o tema na área de estudo é pouco sedimentado (VERGARA, 2005).
Esse parece ser justamente o caso do tema da presente pesquisa na área de estudos de
consumo. Conforme exposto no capítulo de introdução, o tema do endividamento tem
recebido bastante atenção da mídia de massa, além de ter sido investigado por outras áreas do
conhecimento; no âmbito dos estudos de consumo, contudo, o endividamento não tem
conquistado muito espaço.A opção por um método qualitativo decorre igualmente de sua indicação para explorar
áreas sobre as quais pouco se sabe (STERN, 1980 apud STRAUSS e CORBIN, 2008), sendo
a pesquisa qualitativa uma importante metodologia usada na pesquisa exploratória
(MALHOTRA, 2006). Não por acaso há predominância de dados qualitativos na maioria dos
estudos exploratórios (STEBBINS, 2008).
Além disso, segundo Strauss e Corbin (2008), o uso da pesquisa qualitativa é
motivado sobretudo quando o problema de pesquisa está relacionado ao entendimento dossignificados ou da natureza de experiências vividas pelas pessoas. Isso porque os métodos
qualitativos são úteis para obter detalhes intricados sobre fenômenos como sentimentos,
processos de pensamento e emoções difíceis de extrair ou de descobrir por meio de métodos
de pesquisa mais convencionais (STRAUSS e CORBIN, 2008). A abordagem qualitativa,
portanto, aparenta ser a ideal para a temática do endividamento, cuja natureza sensível
inclusive já acarretou, em pesquisas quantitativas, taxas de resposta desapontadoras (LEA,
WEBLEY e LEVINE, 1993) e dificuldades para obtenção de informações sobre valor total da
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dívida, valor médio dos pagamentos mensais e a proporção entre dívida e renda (MENDOZA
e PRACEJUS, 1997).
Dentre os métodos qualitativos de coleta de dados, a escolha recaiu sobre a entrevista
em profundidade com roteiro semiestruturado12. A entrevista em profundidade é considerada
um dos métodos mais poderosos dentro do arsenal qualitativo (MCCRACKEN, 1988) e, na
definição de Malhotra (2006), constitui uma abordagem direta, pessoal e aberta, cuja principal
utilidade é proporcionar à pesquisa exploratória maior entendimento a respeito do problema
estudado. Para Gaskell (2000), a entrevista qualitativa é o meio de que o pesquisador dispõe
para formar uma compreensão mais detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações
relacionados ao comportamento das pessoas. McCracken (1988, p. 9, tradução nossa) chega a
dizer que a entrevista "oferece a oportunidade de entrar na mente de outra pessoa, para ver eexperimentar o mundo como ela própria faz". Ademais, Malhotra (2006) destaca que o
método pode ser usado com eficácia em casos que envolvam a sondagem detalhada do
entrevistado a respeito da compra de um carro novo ou a discussão de tópicos confidenciais,
delicados e embaraçosos, como finanças pessoais, o que reitera a pertinência do uso da
entrevista em profundidade na pesquisa proposta.
No que se refere à inclusão de exercícios projetivos no roteiro de entrevista, cabe dizer
que atende à necessidade de favorecer a superação de alguma inibição ou reserva própria danatureza do tema endividamento. Segundo Malhotra (2006, p. 167) a técnica projetiva é "uma
forma não-estruturada e indireta de fazer perguntas que incentiva os entrevistados a
projetarem suas motivações, crenças, atitudes ou sentimentos subjacentes sobre os problemas
em estudo". A vantagem dessa técnica está em aumentar a validade das respostas,
particularmente quando os problemas abordados são pessoais, delicados ou estão sujeitos a
severas normas sociais (MALHOTRA, 2006). O entendimento de Rook (2006) quanto às
vantagens das técnicas projetivas é similar. Para o autor, como o consumo muitas vezesocorre em ambientes imersos em normatizações sobre certo e errado, a natureza indireta das
questões projetivas encoraja os consumidores a se desviarem do "desejado socialmente" ou
supostamente "esperado pelo pesquisador", expressando mais honestamente seus sentimentos
primários sobre gastar dinheiro, comer e beber, usar preservativos etc. (ROOK, 2006).
12 O roteiro utilizado nas entrevistas está disponível no Anexo 1 desta dissertação.
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3.3 A ESCOLHA DA CATEGORIA ESTUDADA
A escolha da categoria de automóveis como instrumento para explorar o tema do
endividamento no âmbito dos estudos de consumo se baseou, principalmente, em três fatores:
a utilização profícua do produto em outras pesquisas da área (SUAREZ, 2010); a crescente
participação alcançada pelo financiamento como opção de pagamento na compra de carros no
Brasil (ANEF, 2013); e a recente tendência de alta na inadimplência em financiamentos de
veículos (BACEN, 2012).
Em primeiro lugar, o automóvel é um produto cujo consumo apresenta forte dimensão
simbólica, podendo envolver elevado engajamento emocional e financeiro da família, além de
um extenso processo de decisão. Por essas características, a categoria tem sido utilizada comofonte de dados empíricos em diversas pesquisas sobre o consumidor, conforme levantamento
realizado por Suarez (2010).
No que se refere à consolidação do financiamento como meio preferencial de compra
de automóveis pelos brasileiros, dados da ANEF informam que cerca de 51% dos novos
automóveis comercializados durante 2012 utilizaram o financiamento bancário como
modalidade de pagamento (ANEF, 2013).
O financiamento de veículos, por sua vez, conforme Relatório de EstabilidadeFinanceira, publicado pelo Banco Central, tem sido a modalidade de crédito com maior
contribuição para a recente elevação na inadimplência de pessoas físicas, que manteve a
tendência de alta iniciada em março de 2011, atingindo 5,4% em junho de 2012 contra 5,1%
em dezembro de 2011 (BACEN, 2012).
Se, do total de famílias brasileiras que compram um carro novo, metade o faz
contraindo dívida, isto é, antecipando sua capacidade de consumir, aparentemente fica
evidenciada a pertinência do uso da categoria de automóveis em um estudo sobre
endividamento. Se, adicionalmente, muitas dessas famílias enfrentam dificuldades de
pagamento posteriores, parece estar reiterada a adequação desse produto à natureza da
investigação proposta.
3.4 PERGUNTAS DE PESQUISA
As perguntas de pesquisa foram elaboradas a partir da revisão de literatura e das
entrevistas realizadas como pré-teste.
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A principal pergunta que a pesquisa objeto da presente dissertação pretende responder
é esta: "Como é a experiência de dificuldades financeiras vivida pelas famílias a partir do
endividamento contraído para a aquisição de um automóvel?"
O desenvolvimento da resposta a essa pergunta principal, por sua vez, será apoiado
pela compreensão do contexto em que ocorreu a compra do carro e das circunstâncias em que
surgiram os problemas financeiros. Sendo assim, são propostas as seguintes questões
complementares:
a) Quais são os principais significados e sentimentos envolvidos na compra do carro?
b) Como é a participação da família na aquisição do veículo?
c) Como as famílias lidam com os custos inerentes ao automóvel?
d) Como as famílias veem o recurso ao endividamento para a aquisição de bens?
e) Quais são os principais significados, sentimentos e experiências originados das
dificuldades financeiras?
3.5 SELEÇÃO DOS ENTREVISTADOS
O processo de seleção de entrevistados para a pesquisa, assim como o delineamento
dos critérios de escolha, começou durante o pré-teste do roteiro de entrevistas. No início, a preocupação básica era que os selecionados fossem consumidores pertencentes a famílias que
tivessem passado ou estivessem passando por uma experiência de dificuldades financeiras em
virtude da dívida contraída para a aquisição de um automóvel. Ainda não havia, por exemplo,
uma definição quanto à forma de abordagem da família (quantos e quais membros seriam
entrevistados) nem quanto a filtros relacionados a aspectos demográficos. Dessa forma, a
etapa de teste do roteiro deveria servir não somente para verificar a clareza e a adequação das
perguntas propostas, mas também para avaliar o indivíduo ou o grupo que seria estudado,
além de possíveis parâmetros demográficos dos pesquisados.
Tendo em vista a recorrência de notícias sobre a elevação da inadimplência e a
responsabilização do financiamento de veículos como seu maior contribuidor (BACEN,
2012), havia certa expectativa de facilidade na localização de pessoas com problemas para
pagar as prestações do carro financiado. Por esse motivo, para o pré-teste do roteiro, foi
adotada a mesma estratégia de recrutamento por conveniência que havia sido proposta para o
momento das entrevistas efetivas, isto é, por meio de indicações e contatos da rede de
conhecimento do pesquisador.
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Essa fase inicial de testes, porém, apontou para a dificuldade e para o risco de
impertinência dessa opção de recrutamento. Embora muitos contatos informassem
"certamente conhecer" indivíduos na situação procurada, tais manifestações se traduziram em
uma única indicação concreta. Entretanto, a pessoa indicada, que havia sido lembrada por
"viver reclamando" da dificuldade de pagar o financiamento do carro, mostrou-se relutante
para admitir seus problemas financeiros durante a entrevista realizada. Essa resistência da
entrevistada, assim como o receio do pesquisador de forçar sua superação, indicou que a
ligação estabelecida pela rede de contatos não era adequada, no caso desse tema
aparentemente delicado e que sugeria constrangimento e desconforto nas conversas iniciais.
Sendo assim, em função das inesperadas dificuldades para encontrar pessoas na
situação desejada e para extrair informações sensíveis no único caso conseguido, foram
tomadas duas decisões: seria mantido o recrutamento por conveniência para as entrevistas
dessa etapa de pré-teste, quando não havia a exigência de problemas com o pagamento do
financiamento do veículo; e seria contratado um serviço profissional de recrutamento para as
entrevistas efetivas da pesquisa. Entendeu-se, portanto, que, para os objetivos do pré-teste de
averiguar a qualidade do roteiro e de indicar a melhor forma de abordagem da família,
bastaria que a mesma houvesse inserido recentemente um automóvel financiado no orçamento
doméstico.
Além da entrevista anteriormente citada, o pré-teste contou com mais quatro
entrevistas. Esse total de cinco entrevistados representaram quatro famílias pesquisadas, da
seguinte forma: na primeira família, somente a esposa foi entrevistada; na segunda, somente o
marido; na terceira, o casal, separadamente; e na quarta, somente o filho adulto. Vale ressaltar
que, nesta pesquisa, os termos "casal", "marido", "esposa" e afins se referem livremente ao
par formado por homem e mulher e que vive junto, com o intuito de ser reconhecido como
família.
Todas as entrevistas dessa fase de testes geraram informações interessantes, mas a
abordagem de ambos os membros do casal como porta-vozes da experiência familiar foi a que
proporcionou maior riqueza de detalhes, em virtude das informações que se complementaram
na fala de cada um a respeito da compra do automóvel e dos seus efeitos sobre as finanças da
família. Dessa forma, ficou definida a abordagem de casais para as entrevistas e que cada um
seria entrevistado separadamente, para evitar distração ou inibição dos informantes
(BERENT, 1966).
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Uma vez alcançada essa definição quanto à forma de abordagem das famílias e
realizados pequenos ajustes no roteiro testado, deu-se prosseguimento à contratação de um
serviço profissional de recrutamento. Esse serviço consiste na localização de indivíduos com
o perfil definido pelo pesquisador: famílias que tivessem passado ou estivessem passando por
uma experiência de dificuldades financeiras por causa da dívida contraída para a aquisição de
um automóvel.
Inicialmente, havia uma intenção de não considerar filtros relacionados a aspectos
demográficos nesse perfil, de modo a não adicionar mais obstáculos à seleção, que já havia
apresentado sinais de dificuldade. No entanto, as entrevistas iniciais sugeriram também que a
existência de filhos na casa poderia contribuir para a configuração de uma realidade de
consumo com maior comprometimento do orçamento doméstico e, consequentemente, com
mais dificuldades financeiras. Com efeito, ao estudar casais sem filhos, Azevedo (2010)
observou um comportamento de consumo diferenciado, pautado na liberdade, na
imprevisibilidade, no individualismo e na orientação ao lazer. Tais especificidades, por sua
vez, pareciam relacionadas ao fato de esses casais desfrutarem de maior renda discricionária
(LEE e SCHANINGER, 2003).
Outro critério demográfico adicionado ao perfil repassado à empresa de recrutamento
dizia respeito à localização geográfica dos respondentes: eles deveriam pertencer a famílias
residentes no estado do Rio de Janeiro. Tal decisão foi tomada por uma questão não só de
acessibilidade, mas também como forma de definir um contexto para a pesquisa, cuja
importância é defendida por Arnould, Price e Moisio (2006).
No que se refere ao número de entrevistados, a presente pesquisa contou com dez
casais, totalizando vinte entrevistas, todas aproveitadas para análise. Essa quantidade de
respondentes adere ao entendimento de Gaskell (2000) de que um grande número de
entrevistas pode não implicar necessariamente uma compreensão mais aprofundada do
fenômeno estudado. As vinte entrevistas realizadas contabilizaram mais de quinze horas de
conversação registradas em áudio, que foram convertidas em 394 páginas de transcrições. O
tempo médio de duração das entrevistas foi de 46 minutos, tendo a mais longa se prolongado
por 65 minutos e a mais curta, por 34 minutos. Dessa forma, o tempo de duração das
entrevistas parece estar de acordo com Malhotra (2006), para quem uma entrevista pode durar
de trinta minutos a mais de uma hora. Considerou-se que essas informações eram suficientes
para o estudo exploratório proposto.
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As entrevistas foram realizadas no período de setembro a novembro de 2012, em
locais escolhidos pelos entrevistados conforme sua conveniência, ou seja, em suas casas, em
seus ambientes de trabalho ou em salas cedidas pelo instituto de pesquisa contratado para
realizar o recrutamento.
No Quadro 1 a seguir, é apresentado um breve perfil dos entrevistados, com as
seguintes informações: idade, ocupação, tempo de relacionamento, número de filhos e suas
idade, bairro e município de residência, classe social de acordo com o "Critério Brasil"13, da
Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), modelo, ano de fabricação e
montadora do carro da família, forma de pagamento acordada e número de parcelas pagas e
atrasadas. Para manter o anonimato dos respondentes, na análise das informações foi adotada
a marca do automóvel da família como o nome do casal.
13 O Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), conhecido como Critério Brasil, encontra-se disponívelno Anexo 2 desta dissertação.
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Quadro 1: Perfil dos Entrevistados. Fonte: Elaborado pelo autor.
3.6 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS INFORMAÇÕES
Uma vez com a posse do material transcrito, o passo seguinte consistia em organizar,
interpretar e analisar as informações. Tais procedimentos costumam ser conduzidos em meio
Casal Cônjuge Idade Ocupação
Tempo
de
relacion
amento
Nº de
filhos
(idades)
Bairro
(município)
Classe
social*
Carro/Ano**
(montadora)
Forma de
pagamento
Nº de
parcelas
pagas
(atrasadas)
Sr. 45 Operador deMáquinas
Sra. 43 Atendente
Sr. 31 Vigilante
Sra. 29 Recepcionista
Sr. 47Motorista de
Entregas
Sra. 31 Dona de Casa
Sr. 33Atendente de
Produção
Sra. 33 Atendente
Sr. 46Aposentado da
Marinha
Sra. 44Técnica em
Enfermagem
Sr. 32Coordenador de
Relacionamento
Sra. 31 Dona de Casa
Sr. 35Analista de
Suporte
Sra. 32Vendedora de
Roupas
Sr. 40Coordenador de
Hidráulica
Sra. 41Supervisora de
Atendimento
Sr. 34Técnico em
Eletrotécnica
Sra. 29Suporte
Comercial
Sr. 49 Policial Militar
Sra. 44 Técnica emEnfermagem
* De acordo com o Crité rio de Classificação Econômica Brasil, disponível no Anexo 2.
** Ano de fabricação.
*** O casal Celta não sabe precisar quantas parcelas foram pagas ao todo. Do último refinanciamento, havia uma parcela atrasada.
Symbol/2011
(Renault)
Veículo
anterior +
48x R$ 440
6
(5)Symbol 3
Campo Grande
(Rio de
Janeiro)
B11
(1)
Palio/2008
(Fiat)
20% +
48x R$ 460
38
(10)Palio II 7
Jardim Sulacap
(Rio deJaneiro)
B1
1
(3)
Palio/2010
(Fiat)
R$ 3.000 +
60x R$ 830
2
(20)Palio I 7
Pilar
(Duque de
Caxias)
B11
(2)
Classe A/2001
(Mercedes-
Benz)
R$ 6.000 +
48x R$ 800
41
(7)Classe A 8
Ilha do
Governador
(Rio de
Janeiro)
B21
(5)
Mégane/2001
(Renault)
0 +
60x R$ 560
24
(10)Mégane 25
Campo Grande
(Rio de
Janeiro)
B22
(24,16)
Siena/2009
(Fiat)
Veículo
anterior +
60x R$ 650
24
(2)Siena 8
Chatuba
(Mesquita)B1
1
(6)
J3 Turin/2012
(JAC)
0 +
60x R$
1.100
8
(4)
Turin 20
Bento Ribeiro
(Rio de
Janeiro)
B23
(18,16,13)
Celta/2003
(Chevrolet)
R$ 3.000 +
60x R$ 470Celta 23
Vila Meriti
(Duque de
Caxias)
C11
(21)
refinanciado
2x***
Fox/2008(Volkswagen)
0 +72x R$ 670
36(6)
Fox 5 Porto Novo(São Gonçalo)
B21(3)
Cerato/2011
(KIA)
0 +
60x R$
1.730
4
(10)Cerato 3
Cachambi
(Rio de
Janeiro)
B21
(10)
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a um processo de codificação, que consiste na elaboração de categorias, na redução dos dados
e na verificação de existência de relações entre as categorias.
Para tanto, foi cogitada inicialmente a utilização do software ATLAS.ti, desenvolvido
especificamente para a análise de dados qualitativos, como instrumento de auxílio na
organização do extenso material coletado, inclusive pela possibilidade de cruzamento de
temas e de criação de diagramas. Todavia, ao mesmo tempo em que o programa se mostrava
de grande valia no tratamento das informações isoladas, ele parecia limitar ou dificultar uma
percepção mais completa e integrada dos dados, importante para o reconhecimento de
relações, conexões, conflitos e contradições inerentes ao tema do endividamento. A esse
respeito, Schwandt (2006, p.197), ao discorrer sobre a tradição interpretativista, informa que
"para entender uma parte (uma frase, um enunciado ou um ato específico), o investigador
deve entender o todo (o complexo de intenções, crenças e desejos ou o texto, o contexto
institucional, a prática, a forma de vida, o jogo de linguagem etc.) e vice-versa".
Além disso, para a presente pesquisa, optou-se por adotar preceitos do enfoque
elaborado por Gill (2000) para a análise do discurso, cujo caráter artesanal a autora afirma não
haver como negar, constituindo-se a mesma um processo sempre "intensivo em mão de obra"
(p. 180, tradução nossa). De acordo com a pesquisadora, análise do discurso é o nome dado a
diferentes perspectivas sobre o estudo de textos, que compartilham do pressuposto que o
discurso tem importância central na construção da vida social. Nesse sentido, o termo discurso
se refere a todas as formas de interação oral ou escrita, como conversas cotidianas, entrevistas
e textos de qualquer tipo (GILL, 2000).
Segundo Gill (2000), a análise do discurso contém quatro temas principais: uma
preocupação com o discurso em si, que se traduz pelo interesse no seu próprio conteúdo e na
sua própria organização; uma visão da linguagem como construtiva e construída, isto é, textos
constroem a vida social e o mundo, mas sua composição envolve escolha e combinação dos
recursos linguísticos disponíveis; uma ênfase do discurso como forma de ação, tendo em vista
que as pessoas, como atores sociais, procuram adequar o discurso ao contexto interpretativo
em que se encontram; e uma convicção na organização retórica do discurso, no sentido de que
sua elaboração sempre procura torná-lo persuasivo.
O emprego da análise do discurso nesta dissertação assimilou alguns passos sugeridos
por Gill (2000). De acordo com a autora, uma vez transcritas as entrevistas realizadas, o pesquisador deve mergulhar no material a ser estudado, lendo e relendo as transcrições até
que se tornem familiares. Essa leitura cuidadosa e atenta ainda deve comportar um
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movimento entre texto e contexto, de forma a favorecer o exame do conteúdo, da organização
e das funções do discurso, com base naqueles quatro temas principais acima expostos.
Após essa imersão preliminar nos textos transcritos, foi dado seguimento ao processo
de codificação, por meio da elaboração de categorias de análise. Essas categorias usadas para
a codificação, de acordo com Gill (2000), são determinadas pelas questões de interesse do
pesquisador. É possível dizer, porém, que aspectos do referencial teórico e temas revelados
pelas entrevistas também influenciaram na definição das categorias propostas no capítulo de
discussão dos resultados.
Definidas as categorias, a análise ocupou-se de explorar as informações para conferir
substância a cada uma delas. Nesse trabalho de construção das categorias, procurou-se não
somente perceber padrões, diferenças e contradições presentes dos dados, mas também
integrar a teoria revisada. Quanto ao fato de os dados serem constituídos essencialmente pelo
falado, a análise deve ir além (GASKELL, 2000) e examinar o que não é dito, os silêncios
(GILL, 2000). Para tanto, torna-se fundamental a atenção do pesquisador aos contextos que
permeiam todo o discurso (GILL, 2000), de forma a alcançar seu objetivo mais amplo de
procurar significados e compreensão (GASKELL, 2000).
3.7 LIMITAÇÕES DO MÉTODO
Os resultados deste estudo, por sua natureza exploratória e pela utilização de
metodologia qualitativa, não podem ser considerados conclusivos ou utilizados para fazer
quaisquer generalizações (MALHOTRA, 2006) em relação à experiência de dificuldades
financeiras vivida pelas famílias pesquisadas. É preciso salientar, porém, que a principal
preocupação deste trabalho consistiu justamente em buscar detalhes e particularidades, sem
abrir mão de apontar eventuais semelhanças e diferenças entre as respostas dos entrevistados.
No que se refere ao emprego de entrevistas em profundidade, é possível destacar
algumas dificuldades inerentes ao método, como a limitação ao que é lembrado pelo
entrevistado no momento da interação. Além disso, segundo Gaskell (2000), o entrevistado
pode: ter um linguajar próprio que dificulta a correta compreensão de sua fala; omitir detalhes
importantes, seja por considerá-los muito óbvios, seja por achá-los difíceis de traduzir em
palavras ou grosseiros e indelicados; e fornecer respostas que não reflitam exatamente seu
pensamento, em virtude de uma percepção distorcida da situação apresentada.
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Vale mencionar ainda a opção por uma categoria de consumo específica. A escolha do
automóvel como objeto de investigação atendeu ao interesse de proporcionar maior foco e
aprofundamento das questões relacionadas ao consumo via endividamento. Se o recurso a
somente uma categoria pode ter limitado os achados da pesquisa, acredita-se ter evitado o
risco de dispersão e superficialidade que a agregação de outras categorias poderia trazer.
Tendo em vista que as informações coletadas e aqui analisadas foram objeto de um
esforço interpretativo, deve-se reconhecer a subjetividade presente nas mesmas, que não
podem ser consideradas simplesmente objetivas. Com efeito, as análises realizadas trazem não
somente a visão do pesquisador, mas também os conceitos e teorias levantados durante a
revisão de literatura, que se misturam aos achados do campo e se inserem no processo de sua
interpretação.
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4. DISCUSSÃO DE RESULTADOS
Neste capítulo procura-se realizar uma discussão a partir das informações levantadas
nas entrevistas qualitativas, sendo utilizadas como fios condutores da análise as perguntas de
pesquisa que motivaram o estudo. Esse processo inclui ainda a associação e o confronto dos
dados coletados no campo com proposições teóricas presentes no capítulo de revisão da
literatura.
Com base no roteiro e nas informações captadas no decorrer das entrevistas, foram
elaboradas categorizações temáticas com o intuito de facilitar a compreensão, favorecer a
comparação e auxiliar na interpretação do conjunto de dados. Há categorias que aparecem
mais em algumas famílias do que em outras, o que se deve ao caráter subjetivo de um estudoexploratório. São elas:
(1) Significados e sentimentos associados ao automóvel. Esta categoria de análise
procura explorar a dimensão simbólica do consumo de automóveis e entender
sua influência na motivação para a compra, além de trazer uma compilação do
imaginário dos entrevistados sobre famílias com e sem carro, captado a partir de
exercício projetivo;
(2) A família no processo de decisão e compra do carro. Nesta categoria, procura-se abordar o aspecto coletivo da aquisição do automóvel, como prática
de consumo simbólico propícia à interação das identidades familiares;
(3) Formas de lidar com os custos relativos ao automóvel. O objetivo desta
categoria de análise é compreender as consequências dos custos decorrentes da
posse do automóvel no controle do orçamento doméstico;
(4) O endividamento para aquisição de bens. Nesta categoria, busca-se entender a
influência de percepções sobre o endividamento para consumo e de
circunstâncias do financiamento do automóvel na incapacidade de pagamento;
(5) Dificuldades de pagamento: significados, sentimentos e enfrentamento. O
objetivo desta categoria de análise é captar possíveis desdobramentos do estado
de inadimplência sobre a identidade familiar.
No entanto, de modo a proporcionar uma melhor contextualização para a discussão
proposta, previamente será feita uma descrição resumida das famílias estudadas e dos
principais aspectos relacionados à compra de seus carros e à sua incapacidade de pagamento.
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Casal Celta
Casados há 23 anos, o Sr. e a Sra. Celta (operador de máquinas e atendente) moram
em uma casa no bairro de Vila Miriti, em Duque de Caxias, com um filho de 21 anos. A
compra do Celta, zero quilômetro, foi concebida e levada a cabo pelo marido, que queria:
poder responder às constantes necessidades médicas de sua sogra sem depender de parentes
ou conhecidos; e aliviar o "sufoco" pelo qual a esposa passava diariamente por "pegar ônibus
lotado para trabalhar". Para o pagamento do financiamento, que seria sua responsabilidade, o
Sr. Celta contava com o efeito duplicador de horas extras de trabalho sobre seu salário básico.
Entretanto, cerca de três anos após a compra, a empresa em que trabalhava "cortou as horas
extras" e ele ficou alguns meses sem conseguir pagar as parcelas de R$ 470,00. Foi feito então
um refinanciamento com pagamento em 48 vezes de R$ 390,00. Dois anos depois, o Sr. Celta
foi demitido e, desempregado por quase um ano, ficou sem pagar as prestações nesse período.
No novo emprego, o salário inferior e a dívida acumulada implicaram uma nova
renegociação, que previu um pagamento de R$ 1.000,00 mais 48 parcelas de R$ 250,00.
Mesmo considerado um valor "incrível" pelo Sr. Celta, a parcela devida pela ocasião da
entrevista estava atrasada há quinze dias "porque usaram o dinheiro para outra coisa".
Casal Cerato
O Sr. e a Sra. Cerato (vigilante e recepcionista) vivem juntos há três anos e criam um
menino de dez anos, que é filho apenas do marido. Quando compraram seu Cerato, zero
quilômetro, ele trabalhava como taxista, "pagando a famosa diária" (não tinha veículo
próprio), e ela, como supervisora em um salão de beleza. Cerca de quatro meses após a
aquisição, o dono do táxi utilizado pelo Sr. Cerato se mudou de cidade e vendeu o carro para
alguém que preferiu não dividi-lo. Pouco tempo depois, o salão em que a Sra. Cerato
trabalhava foi vendido, e o posto de supervisão, ocupado por pessoa da confiança do novo proprietário. Com o desemprego de ambos, as prestações de R$ 1.730,00 não puderam ser
pagas, situação inalterada após a recolocação com salários que "não chegam nem perto" dos
anteriores. Além disso, o casal passou a viver "de favor" na casa da mãe da Sra. Cerato, no
bairro do Cachambi, no subúrbio do Rio de Janeiro, porque também não conseguiu pagar o
aluguel da moradia anterior.
Casal Classe A
O Sr. e a Sra. Classe A (motorista de transportadora e dona de casa) moram em uma
casa no bairro da Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro, estão juntos há oito anos e
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têm um filho de cinco anos. Como o carro de trabalho fica à disposição do marido para uso
pessoal e familiar, o casal "não estava procurando alguma coisa do tipo" até o Classe A ser
oferecido a eles pelo então proprietário, conhecido da família. A partir daí, a Sra. Classe A,
que trabalhava em um restaurante na época, ficou muito interessada pela oportunidade e o
marido concordou com a compra. Os problemas de pagamento começaram quando o
restaurante em que a esposa trabalhava faliu, restando pagar sete das 48 prestações do
financiamento. Sem a contribuição da mulher, a parcela de R$ 800,00 ficou além das
possibilidades de pagamento do Sr. Classe A.
Casal Fox
O Sr. e a Sra. Fox (atendente de produção e atendente em corretora de seguro saúde)têm um relacionamento de cinco anos e moram em uma casa construída por eles no bairro de
Porto Novo, no município de São Gonçalo, com sua filha de três anos. A compra do Fox, zero
quilômetro, foi imaginada para o momento da gravidez da esposa, que tinha uma pequena
padaria em sociedade com o irmão. Em sua gestação, porém, houve graves complicações e ela
precisou deixar de trabalhar. Pouco tempo depois, o irmão se mudou de cidade e o negócio
precisou ser vendido. Sem a renda da Sra. Fox, que era a maior da casa, o casal não conseguiu
mais pagar as parcelas de R$ 670,00.
Casal Mégane
O Sr. e a Sra. Mégane (sargento da Marinha aposentado e técnica em enfermagem) são
casados há 25 anos e moram no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, com um casal de
filhos; a moça tem 24 anos e o rapaz, dezesseis. A vontade de voltar a ter um carro cresceu à
medida que se avolumaram as situações em que o casal era "obrigado a pedir favor a
parentes". Quando compraram o Mégane, usado, o marido já tinha empréstimo consignado,
descontado diretamente em sua folha de pagamento, e seu salário não era suficiente para a
obtenção do crédito necessário. Por isso, a compra só foi possível mediante a assinatura do
contrato pela irmã da Sra. Mégane. Sem reajustes salariais "há anos" e contraindo novos
empréstimos para manter o padrão de vida, o casal foi perdendo o poder de compra até se
tornar impraticável o pagamento da prestação de R$ 560,00. Além disso, houve doenças que
exigiram a compra de medicamentos caros e agravaram ainda mais a situação.
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Casal Palio I
Casados há sete anos, o Sr. e a Sra. Palio I (coordenador de relacionamento em
empresa de informática e dona de casa) têm um filho de dois anos e moram em uma casa no
bairro de Pilar, em Duque de Caxias. A ideia de comprar um carro veio com o nascimento da
criança e foi implementada após a Sra. Palio I ser demitida da empresa em que trabalhava
anteriormente, quando recebeu uma indenização. Parte dessa verba foi utilizada para dar a
entrada no pagamento do Palio, zero quilômetro, e o restante, para montar um negócio próprio
junto com o marido, que não estava trabalhando na época. O empreendimento, porém, foi
malsucedido e ambos tiveram que voltar a procurar emprego. O Sr. Palio I conseguiu se
recolocar, mas a esposa teve que ficar cuidando do filho, uma vez que problemas de saúde
impediram sua mãe de continuar tomando conta da criança. Com somente uma fonte de renda,
o pagamento das parcelas de R$ 830,00 do financiamento não pôde ser mantido.
Casal Palio II
Juntos há sete anos e com uma filha de três anos, o Sr. e a Sra. Palio II (analista de
suporte em informática e vendedora de roupas) moram em uma casa no bairro de Jardim
Sulacap, no Rio de Janeiro. No mesmo terreno, fica a casa da mãe do Sr. Palio II, que mora
com o irmão e o pai. Quando compraram seu Palio, seminovo, a esposa, que era "bemempregada" em um banco e "tinha um salário muito bom", ficou integralmente responsável
pelo pagamento do carro, que também havia sido ideia sua. Contudo, faltando pagar dez das
48 prestações de R$ 460,00, a Sra. Palio foi demitida e não teve como manter os pagamentos.
Casal Siena
O Sr. e a Sra. Siena (coordenador de hidráulica e supervisora de atendimento), moram
no bairro da Chatuba, no município de Mesquita, são casados há oito anos e têm um filho deseis anos. A compra do Siena, zero quilômetro, foi planejada pelo marido, que estava
"detestando levar pra oficina" o carro antigo. No entanto, como seu nome constava em
cadastro de devedores, o contrato precisou ser assinado no nome da mãe da esposa. A
primeira dificuldade de pagamento aconteceu quando o Sr. Siena ficou desempregado. Os
pagamentos só foram regularizados meses depois, quando ele aceitou um cargo em Fortaleza,
no estado do Ceará, no qual conseguiu um salário melhor. Ocorre que mais à frente um
incidente de trabalho fez com que o Sr. Siena ficasse em licença médica por cerca de
cinquenta dias. Após a primeira quinzena de afastamento, seus rendimentos passaram a ser o
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benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), cujo valor foi insuficiente
para cobrir as prestações de R$ 650,00.
Casal Symbol
Quando casaram, há cerca de três anos, o Sr. e a Sra. Symbol (técnico em eletrotécnica
e agente de suporte comercial) fizeram um financiamento habitacional para a compra do
apartamento em que moram no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. Em
virtude desse investimento, o casal concordou em ter um carro básico e usado, "só para não
ficar a pé" até surgir uma oportunidade de trocar por um melhor. Com a gravidez da Sra.
Symbol, dois anos depois, o marido entendeu que tal ocasião havia chegado e, apesar dos
receios iniciais da esposa quanto ao acúmulo de dívidas, eles acabaram concordando emtrocar de carro. Seis meses após a compra do Symbol, "praticamente zero quilômetro" (era
carro de test drive), o marido precisou emprestar dinheiro para a cirurgia de emergência a que
seu sobrinho teve que se submeter, porque os pais da criança não tinham como custear. Pouco
tempo depois, sua sogra também teve uma urgência médica e a família onerou muito seu
orçamento com os custos da internação e dos medicamentos. Como não dispunham de
reservas financeiras, o casal viu os R$ 440,00 previstos para as prestações do veículo serem
consumidos por essas situações e acabou ficando cinco meses sem pagar o financiamento.
Casal Turin
O Sr. e a Sra. Turin (policial militar e técnica em enfermagem), casados há vinte anos,
vivem em Bento Ribeiro, subúrbio do Rio de Janeiro, com duas filhas, de dezoito e dezesseis
anos, e um filho de treze. A compra do J3 Turin, zero quilômetro, da família foi conduzida
somente pelo marido, que estava cansado dos problemas que o carro velho passou a dar após
um acidente. O Sr. Turin, que tinha um pequeno comércio na garagem de sua casa,
considerava a renda dele proveniente como não pertencente ao orçamento da família e seria
essa a fonte dos recursos para o pagamento do carro. Outro acidente, porém, deixou o Sr.
Turin sem ter como manter a "birosquinha" em funcionamento, o que impactou diretamente
no pagamento das prestações de R$ 1.100,00.
4.1 SIGNIFICADOS E SENTIMENTOS ASSOCIADOS AO AUTOMÓVEL
A compreensão das categorias culturais e valores sociais comunicados por um bem
material é fundamental para o entendimento da sua importância como objeto de consumo,
pois é tendo em vista o referencial sociocultural de significados que aspiram para si próprios
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e/ou desejam expressar a terceiros que os indivíduos efetuam o ato de consumo (ARNOULD
e THOMPSON, 2005; DOUGLAS e ISHERWOOD, 2004; MCCRACKEN, 1986, 2003a;
MILLER, 2007). Assim, esta seção procura explorar a perspectiva simbólica presente no
consumo de automóveis, a partir da análise do discurso das famílias entrevistadas, para
identificar significados e sentimentos associados à posse do carro e entender sua influência na
motivação para a compra.
4.1.1. O luxo necessário
As entrevistas indicaram percepções variadas a respeito do significado do automóvel.
Se luxo e necessidade fossem considerados construtos opostos em um continuum (MARTINS
e IKEDA, 2012), o carro poderia ser considerado um luxo-necessário, pois supostamente teria
se deslocado de um extremo (luxo) ao outro (necessidade) com o passar do tempo, de acordo
com alguns relatos identificados:
O carro hoje em dia é necessidade, não é mais luxo. (Sr. Cerato, 31).
Dificilmente uma família hoje não tem necessidade de ter um carro. Carro é maisnecessidade do que conforto. (Sr. Fox, 33).
Veículo não é mais um luxo, né. Ele é uma necessidade pra transporte familiar. (Sr.Turin, 49).
Visto por esse grupo como artigo necessário, a situação colocada no exercício
projetivo de uma família sem seu próprio automóvel foi justificada basicamente pela ausência
de condições financeiras. Outras possibilidades (não saber dirigir, por exemplo) só aparecem
esporadicamente, e não como primeira razão para a família não ter carro. Dessa forma, a
compreensão parece ser a de que, havendo ou se configurando um padrão econômico que
permita a compra de um carro, este estará ou será automaticamente incluído como realidade
da família, independentemente de ano ou modelo:Se tivessem condições, com certeza teriam um carro. (Sra. Fox, 33).
Hoje em dia não se tem carro por questão financeira. (Porque a pessoa, tendorecursos...) ela vai querer um carro. (Sra. Turin, 44).
O carro passou a ser necessidade, eu penso assim... indiferente de modelo ou ano, ocarro em si. (Sra. Cerato, 29).
Eu não estou falando de carro zero, mas de um carro. Dificilmente a família que puder comprar um carro não vai comprar, acho pouco provável. (Sr. Fox, 33).
As falas que caracterizam os carros como necessidade das famílias aparecem maisatreladas aos benefícios funcionais do bem, que em essência é um meio de transporte. Como é
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na dimensão utilitária de um produto que os consumidores esperam alcançar seus objetivos de
prevenção14 (CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008; HIGGINS, 1997; 2000),
seria razoável esperar a presença de objetivos desse tipo incentivando a aquisição do
automóvel. Com efeito, as entrevistas evidenciaram uma preocupação em evitar dificuldades
próprias do transporte coletivo, como restrição de horários, escassez e superlotação; o carro,
como alternativa, ofereceria tranquilidade e conforto na locomoção da família. Outra
aspiração comum era a de independência, sendo o carro próprio sinônimo de "não ter que
depender de transporte público" ou "não ter que pedir favor a vizinho". Tal autonomia se
torna particularmente crítica em situações emergenciais, sobretudo, se envolvem filhos. Seja
porque crianças naturalmente frequentam mais médicos e hospitais, seja porque a saúde dos
filhos gera uma preocupação diferenciada nos pais, era recorrente a alusão à necessidade doautomóvel para dar segurança, para garantir uma pronta resposta ou uma reação imediata
nessas circunstâncias.
(Carro) é necessidade, ainda mais com lance de hospital, com filho... às vezes precisa levar pra hospital ou coisa parecida e acaba sendo prioridade mesmo. (Sr.Cerato, 31).
Não tem como ter uma criança de três anos em casa e de madrugada precisar dealguma coisa e não ter o que fazer... bater na porta de vizinho, alguma coisa assim...(Sr. Fox, 33).
Pra gente, (o carro) é necessidade. Com uma criança pequena, com tudo, e énecessidade. (...) Até mesmo para o lazer das crianças, pra gente ir no mercado, se passar mal, levar ao médico, alguma coisa. (Sra. Palio II, 32).
Porque uma família com um filho dificilmente seria possível (não ter carro). (Sr.Turin, 49).
Embora tenham predominado nos testemunhos argumentos que configuram o carro
como uma necessidade, é preciso lembrar que esse entendimento parece responder apenas por
uma parcela da motivação para a compra, haja vista estudos que já apontaram a diversidade
de sentimentos e a devoção que os carros são capazes de despertar (BELK, 2004). Não por
acaso é extensa a pesquisa acadêmica sobre a perspectiva simbólica presente no consumo de
automóveis (SUAREZ, 2010). Sem entrar na discussão sobre o que é e o que não é luxo nem
no mérito da colocação "carro não é mais luxo", é possível encontrar na própria fala dos
entrevistados indicações de que o automóvel é ou se mantém como forte marcador da
condição socioeconômica do proprietário, o que inclusive vai afetar a forma como o bem é
desejado.
14 Ver nota 2, à pág. 38.
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Se a principal razão apresentada no exercício projetivo, pelo conjunto de
entrevistados, para uma família não possuir um automóvel é a falta de recursos financeiros,
pode-se pensar em uma associação primária do tipo "ter carro é ter dinheiro" e "não ter carro é
não ter dinheiro"15. Não parece se tratar apenas de uma oposição entre ricos e pobres, mas ter
carro significa fazer parte de um grupo social distinto, o "grupo com alguma condição
financeira", em oposição ao "grupo sem nenhuma condição financeira". Sob essa perspectiva,
o automóvel passa a ser um símbolo muito importante do pertencimento ao primeiro grupo.
A esse respeito, o discurso dos entrevistados indica haver dois possíveis caminhos
para a compra do carro: ou a família está (ou acredita que está) melhorando sua situação
econômico-financeira e quer registrar essa transição por meio da aquisição do automóvel; ou a
família adquire o veículo movida pelo desejo de se sentir incluída e de sinalizar que faz parte
daquele grupo social, independentemente de ter uma condição financeira condizente. Nos dois
caminhos o movimento para a compra do carro envolve "o outro", que pode ser "todo mundo"
ou "os vizinhos", em uma referência a grupos sociais de referência e de convivência.
E tivemos a vantagem de comprar um carro pra gente. A gente estava estabilizado,tanto eu quanto ela num serviço legal, entendeu? Tinha condições para isso e eu deia ideia. (Sr. Cerato, 31).
Em 2009 eu entrei em uma empresa bem legal, e você se empolga, está com umsalário legal. Aí eu falei "Tá na hora de trocar de carro". (Sr. Siena, 40).
Os vizinhos pensaram a mesma coisa que eu pensaria: "O negocio está indo bem porlá". (Sra. Classe A, 31).
Acho que o vizinho se preocupa muito com a vida do outro vizinho, issoinfelizmente existe. Eles pensaram o quê? "Fulano está ganhando bem, fulano está bem de vida", por ter comprado um carro. (Sra. Mégane, 44).
Às vezes, em festas que a gente ia, ou ele ia viajar, todo mundo tinha carro e ele nãotinha. (Sra. Fox, 33).
Enquanto não tiver uma mudança de vida, eu não acredito, não (que a família esteja planejando comprar um carro)... porque não é o perfil da pessoa, né. (Sr. Turin, 49).
4.1.2. Sonho de consumo parcelado
Apesar de a aquisição do automóvel sinalizar o ingresso em um novo grupo social,
parece haver um reconhecimento de que o tipo de compra, financiada ou à vista, diferencia
esse grupo do "grupo dos ricos", que mora nos endereços mais caros do Rio de Janeiro:
15 O final desta seção traz um quadro que sintetiza o imaginário dos entrevistados acerca de duas famílias, umacom e outra sem carro, captado por meio de exercício projetivo. É interessante observar o grau de desigualdadeque pode marcar a caracterização de famílias cuja diferenciação inicialmente proposta se resumia à presença ou àausência do automóvel.
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Eu nunca ouvi falar que (alguém) foi na loja e comprou um carro à vista. (Sra. Turin,44).
À vista eu acho quase impossível, pra te ser sincero. (...) Se você falar pra mim "Pô,o cara mora lá na Vieira Souto", eu vou falar "Pô, meu irmão, o cara, pra morar na
Vieira Souto, ele tem dinheiro para chegar na agência e comprar um carro de R$ 30mil à vista". (Sr. Cerato, 31).
Curiosamente, os relatos sugerem que não ter recursos suficientes para a aquisição do
automóvel à vista não desestimula, mas contribui para a sua transformação em um sonho de
consumo, em um objeto de desejo. Segundo McCracken (2003b, p. 143), "não há motivo para
aspirar àquilo que está prontamente ao alcance". Nesse sentido, a posse de um bem que está
além do poder de compra atual do indivíduo pode funcionar como prova da existência de um
estilo de vida idealizado e aspirado por ele (MCCRACKEN, 2003b).
A compra do carro, portanto, não poderia ter o mesmo significado no "grupo com
alguma condição financeira" e no "grupo dos ricos", capaz inclusive de comprar o automóvel
sem parcelar o valor. As colocações abaixo reforçam a percepção de que os automóveis
podem ser diferenciadores de grupos sociais e possuem significados que são deslocados (Ver
McCracken (2003b)):
(Comprar um carro é um sonho para qualquer pessoa?) Não, não. Dependendo doestilo (...) se fosse uma pessoa da Zona Sul, seria mais fácil. (Sra. Fox, 33).
O carro, ele nunca vai deixar de ser um sonho de consumo. Mas aí se vai a níveis...nós podemos dizer que chega às Ferraris, aos Audis da vida, né. (...) Ou seja, osonho de consumo de quem não tem comida é um prato de feijão com arroz. E osonho de consumo de quem tem um prato de comida já é comer picanha. (Sr. Turin,49).
Essa espécie de deslocamento dos sonhos de consumo que aparece na colocação do Sr.
Turin sugere que não há razão para sonhar com o que é facilmente acessível (MCCRACKEN,
2003b). Dessa forma, o carro mais adequado à realidade de recursos da família pode não ter
apelo suficiente para se tornar o objeto de desejo. A esse respeito, chama atenção em algumasentrevistas o fato de modelos básicos e populares, mais simples e baratos, não aparecerem
entre o rol de possibilidades lembradas pela ocasião da compra, o que pode estar relacionado
ao fato de não serem considerados os sinalizadores que buscam para a concretização do sonho
ou por não carregarem os significados que gostariam de transmitir aos grupos de referência.
Ao longo das entrevistas é possível perceber que perde força a descrição do carro
como necessidade, indiferente a ano ou modelo, pautada principalmente por objetivos de
prevenção e mais focada em benefícios utilitaristas. Ao mesmo tempo, ganha espaço nosrelatos a associação do carro com o sonho, com benefícios hedônicos que atendam a objetivos
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de promoção16 e com significados que o veículo transmitirá a respeito do seu proprietário
(CHITTURI, RAGHUNATHAN e MAHAJAN, 2008; HIGGINS, 1997; 2000).
Você se sente bem. Você entrar num... dirigir um Cerato e entrar e dirigir um Corsa
não é a mesma coisa. (Sr. Cerato, 31).
Eu falei "Gol e Palio todo mundo tem. Vamos escolher uma coisa diferente". E naépoca o Fox estava em alta, né? Não tinha quase ninguém, não via ninguém na rua..."Pô, vamos escolher um que quase ninguém tem, chamar a maior atenção, vai ficarlegal". (Sra. Fox, 33).
Eu acho que significou a satisfação de falar que eu tenho alguma coisa que é minha,foi o status, agora eu estou andando de Mercedes (...). Eu sentia que eu estavatirando onda. (Sra. Classe A, 31).
É a primeira vez que a gente compra carro com airbag, essas coisas que fazemdiferença. Não seria a mesma coisa se eu tivesse comprado uma Fiat Uno. Não seria.
Tem a satisfação sim. (Sr. Turin, 49).
Os testemunhos acima demonstram que a grandeza dos sonhos não é balizada somente
pela condição financeira da família. Belk, Ger e Askegaard (2003) já haviam ressaltado que a
atração exercida por um objeto tem explicação na esperança do seu potencial como
viabilizador de relações e aceitação em sociedade. Isso implica dizer que a dimensão
simbólica presente no consumo do automóvel dificilmente deixará de levar em consideração a
condição daqueles com os quais a família se relaciona, em termos comparativos, ou seja, a
família desejará ter um carro "diferente", que "ninguém tem", que "está em alta", que "chama
a atenção", que confere "status" ou que "tira onda".
Essa preocupação com as diferentes associações que podem ocorrer em virtude do
carro adquirido, presente nos exemplos acima, está em sintonia com os achados de Grubb e
Hupp (1968) sobre a relação entre o autoconceito do consumidor e seu comportamento de
consumo, com a habilidade dos adultos em reconhecer o simbolismo do consumo observada
por Belk, Bahn e Mayer (1982) e com o critério do papel social dos personagens, identificado
por Dalli e Gistri (2006) no cinema de arte italiano, para a escolha de modelos e marcas.
Nesse sentido, o tipo de associação pretendida pela família ao adquirir um automóvel
como registro simbólico da melhoria em sua condição econômico-financeira pode influenciar
sua tentativa de entrada no grupo superior da hierarquia social. Quando os pares se encontram
naquele nível de "qualquer ano ou modelo" e este não é suficiente para despertar o desejo da
família, existe uma preocupação de diferenciação e a compra deverá ter o significado de "ser
melhor" do que os outros, pela posse do veículo. Já quando os pares se encontram em um
patamar de consumo mais próximo ao do sonho da família, parece predominar uma vontade
16 Ver nota 2, à pág. 38.
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de equiparação, com valor de integração. Interessante observar que essas diferentes
percepções podem coexistir em uma mesma família, como nos relatos abaixo:
(Quando eu dirijo o carro) eu me sinto diferente das pessoas. Me passa uma
sensação de eu ser melhor que alguém. (Sra. Fox, 33).
Não, (os vizinhos não comentaram) porque na maioria quase todo mundo já tinhacarro... tanto melhores que o meu, quanto do mesmo tipo. Então, não foi nada assimde extraordinário. (Sr. Fox, 33).
Havendo uma preponderância do significado de deslocamento, como evidenciado na
fala da Sra. Fox, essa mudança de grupo social pode desencadear no comprador do carro
sentimentos como "vaidade", "exibicionismo", "ostentação", "deslumbramento" e "sensação
de superioridade" em relação aos outros, que, por sua vez, são descritos com sentimentos e
reações como "inveja", "olho grande" e "incredulidade".
Isso aí é mais para o lado da vaidade, né. (...) Você sente, as pessoas olham pra vocêna rua, falam "Caraca, olha o carro do cara". (Sr. Cerato, 31).
Eu sei de pessoas no bairro que "Nossa, fulano...", ia cumprimentar "...parabéns!",mas com aquelas pontas de inveja, olho grande. (Sr. Mégane, 46).
Nossa, é um olho que só Jesus! (risos). (...) Os vizinhos falam "São metidos. Pra quecomprar um carro zero morando aqui?" (Sra. Siena, 41).
Sempre causa uma certa inveja aos outros porque é o sonho de todos ter o seu carro
novo. (...) E, pelo menos na minha pessoa, causa até constrangimento porque quemfoi criado no subúrbio como eu fui criado teve uma educação diferenciada. (...) Agente não deixa de ter um vínculo direto com o vizinho. (...) A gente às vezesgostaria de compartilhar... os mais chegados amigos compartilham essa felicidade. Écomo se eles também tivessem realizado o próprio sonho. Mas, no geral, não. Nogeral causa inveja. (Sr. Turin, 49).
Se fosse pela profissão (policial), eles iam dizer que estava roubando, né (risos).Caso contrário, se fosse uma (profissão) comum, "É seu?", com certeza nunca uma pergunta te engrandecendo por você ter algo. É para ter certeza de que é seu ou sevocê pegou emprestado. Aos primeiros olhos ninguém diz que é seu. (Sra. Turin,44).
O constrangimento, que é um sentimento manifestado no relato do casal Turin, parece
ter alguma associação com a profissão do marido, que é policial. Tendo em vista que se trata
de uma ocupação ocasionalmente vinculada a práticas ilegais, como abuso de poder ou
corrupção, tanto no noticiário cotidiano quanto em obras cinematográficas, torna-se uma
preocupação para a família não favorecer uma aproximação com esse tipo de imagem. Isso
pode inclusive trazer restrições ao padrão do automóvel desejado, que não deverá se deslocar
muito do nível de renda percebido como compatível para o policial, de modo a evitar
desconfiança.
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Não obstante a ocorrência dos sentimentos mencionados acima, as entrevistas parecem
indicar que o processo de transição entre grupos sociais marcado pela compra do carro – tenha
valor de deslocamento ou de equiparação – é quase sempre percebido como a "realização de
um sonho", uma "conquista" ou uma "vitória". Nesse caso, tal movimento é geralmente
acompanhado de sentimentos positivos como "satisfação", "bem-estar", "felicidade",
"orgulho" e "prazer"; em um relato mais entusiasmado, a emoção que acompanha esse
"upgrade na vida" chega a ser descrita como "melhor do que qualquer droga" poderia
proporcionar.
Quando eu consegui comprar meu carro, foi a maior felicidade, uma conquista,realização de um sonho. Os sentimentos são os melhores possíveis, de quando vocêcorre atrás de alguma coisa, batalha, se esforça, consegue conquistar, cara. (Sr.
Cerato, 31).
Uma satisfação enorme você comprar um carro zero, você ver um bem daquele,entendeu? Pô, é muito bom! Muito boa a sensação de poder comprar um carronaquela circunstância. (Sr. Fox, 33).
É uma vitória, né... a compra do seu veículo. (Sr. Turin, 49).
É muito feliz... borbulhante, vamos dizer assim. Realização de sonho é bom (...) Se pudesse engarrafar e vender assim a emoção da hora, né? Acho que é melhor do quequalquer droga que tem por aí, como dizem, né (risos). (Sra. Celta, 43).
4.1.3. Patrimônio simbólico
Outro significado do automóvel, que está subjacente a essas ideias de conquista e
realização, é o de patrimônio. Se a posse de um carro sinaliza o alcance de certo padrão de
vida, é porque há um entendimento anterior de que a posse de bens em geral serve como
medida das condições de vida de uma pessoa ou de uma família. Por essa perspectiva, uma
vida feliz, vitoriosa e de sucesso, digna de ser perseguida, seria marcada pelo acúmulo de
riquezas e bens materiais. Como os entrevistados, uma vez perguntados sobre o hábito de
juntar dinheiro, informaram que tal prática é muito difícil e "coisa para poucos"17, parecerestar a eles a possibilidade de aplicação dos recursos financeiros em objetos de consumo.
Então, a justificativa para a eleição do carro como um dos destinos preferenciais dos recursos
que poderiam estar em algum tipo de poupança é a sua capacidade como reserva de valor. Por
maior que seja a depreciação a atuar sobre seu valor de compra e por maiores que possam ser
os recursos despendidos com juros do financiamento, isso parece não ter relevância: o que
importa para o grupo de entrevistados é que aquele bem é a materialização de uma soma, de
um valor monetário que, de outra forma, não conseguiria ser acumulado.17 As dificuldades no gerenciamento do dinheiro serão tratadas na seção referente ao endividamento comomecanismo de aquisição de bens.
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(A justificativa para comprar um carro era) Pra gente ter um bem também. Era maisisso assim, pra gente ter um bem. (Sra. Cerato, 29).
O cara corre atrás para ter aquele dinheiro (da parcela do financiamento). Acho queé uma maneira de economizar numa coisa mais durável. (Sr. Classe A, 47).
Essa compreensão do automóvel como patrimônio da família terá impacto inclusive na
disposição para mantê-lo, independentemente de ser essa ou não a melhor decisão sob o
aspecto financeiro.
Eu achava assim: eu já paguei, vamos dizer, dois anos... R$ 6 mil? R$ 12 mil! Seeles me dessem R$ 3 mil e eu devolvesse o carro, eu achava que valeria à pena. Maseles não devolvem nada, eles não te dão nada e você tem que dar o carro, aí eu acheitambém ruim. (...) Então eu prefiro dar um jeito pra pagar. (Sra. Fox, 33).
Atreladas à visão do carro como "patrimônio", "bem" ou "valor", apareceram ainda
duas concepções complementares: a de solidez na vida e a de investimento. A primeira
implica que a posse de bens materiais de alto valor não somente indica uma vida de
realizações, mas também traz uma sensação de segurança contra adversidades, no sentido de
que há de onde extrair recursos em uma situação extrema. Já a segunda concepção quer dizer
que o carro é utilizado como "forma de capitalização" na construção contínua de patrimônio,
isto é, o veículo atual nada mais é do que um passo em direção a outro passo futuro, que será
um carro de maior valor ou que exigirá menos esforço financeiro, em ambos casos
significando um movimento de evolução ou conquista.
Um bem material, né. (...) Eu acho que o carro representa um patrimônio pra família porque de uma hora para outra você teve algum problema e esse patrimônio pode serusado pra você de repente vender, resolver os seus problemas ou então, sei lá, se foro meu caso, ajudar uma família, se precisar, coisas desse tipo. Se precisar, eu vendo.(Sr. Celta, 45).
Aí já utiliza esse valor do bem como entrada, entendeu? Acredito que vai ficar umacoisa até mais fácil de pegar o carro, dar entrada e financiar só a diferença, aí ficauma parcela mais barata. (Sr. Fox, 33).
Esse carro daqui a seis anos ele tem um valor. Eu dou ele de entrada e tiro outro comuma prestação muito mais módica e reduzo de sessenta (vezes) pra cinquenta, praquarenta. (...) Tem que se capitalizar pra poder ter alguma coisa. (Sr. Turin, 49).
Afora esses significados mais relacionados a aspectos socioeconômicos e financeiros,
as entrevistas também revelaram a questão simbólica do intercâmbio ou transmissão mútua de
atributos entre veículos e seus proprietários (BELK, 2004; HIRSCHMAN, 2003) e da
percepção do automóvel como um ser animado (BELK, 2004). Em alguns relatos, pode-se
observar que a descrição do carro vai além e inclui características de instituições e relações
pertencentes à esfera humana: ele é "família", ele é "casamento", ele é "paixão", ele é "filho",
ele é "companheiro".
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Vou falar, eu, (Sra. Cerato), como mulher, naquele carro que era lindo, eu me sentiamaravilhosa ali dentro. (Sra. Cerato, 29).
(O que não podia faltar no carro era) Essa mala família. Porque eu sou família, nãotem jeito. (Sr. Turin, 49).
Não (cogitei vender ou devolver o carro). Estou casado com ele. (Sr. Mégane, 46).
Era exatamente o carro que eu estava procurando, estava lá me esperando. Aí euolhei, foi paixão à primeira vista. (Sra. Palio II, 32).
É meu segundo filho. Os cuidados que eu tenho com o meu filho sãoincomparavelmente maiores, mas depois do meu filho é com o carro. (Sr. Symbol,34).
Eu sinto como se ele fosse meu companheiro mesmo, né? (...) Eu sinto como que elefaz parte da família mesmo. Porque passou por várias etapas de turbulência e eleconseguiu sobreviver. A verdade é essa. (Sr. Celta, 45).
Vale reiterar ainda que os sentimentos positivos dos entrevistados com relação ao
automóvel são, no geral, inabaláveis, no sentido de que não sofrem influência da situação de
dificuldade financeira e de incapacidade de pagamento18. O carro ou "não tem culpa" ou "não
tem nada a ver com a história". Portanto, da mesma forma que, para os homens aficionados
por automóveis, existe uma profunda separação entre seus carros e o mundo profano das
coisas ordinárias (BELK, 2004), para os entrevistados, parece que o carro e a dívida contraída
para sua compra não pertencem à mesma realidade.
Embora este seja o entendimento usual, há duas manifestações de sentimento
dissonantes. Na primeira, o carro em si também não é afetado pela situação desfavorável,
porém, por esta ter fugido completamente do controle da família, reconhece-se a perda
iminente do veículo, o que traz sentimentos de tristeza, frustração e saudade.
Eu acho muito triste. É porque, assim, a gente já não pode mais passear, não podeficar dando sopa com o carro, vamos dizer assim. Então fica, né? Você ficafrustrado, fica meio triste assim. (Sra. Cerato, 29).
Saudade. Como eu te falei, adoro dirigir, eu gostava do meu carro, foi o primeiro...(Sr. Cerato, 31).
Já a segunda manifestação é efetivamente contrária ao veículo. Trata-se da única
responsabilização direta do carro pela situação negativa encontrada entre os vinte
entrevistados e o sentimento é de raiva. Nesse caso específico, na realidade, nem é exatamente
18 Os significados e sentimentos associados à dívida serão abordados em seção específica.
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um sentimento da família como um todo, mas da esposa, que, mesmo sem ter participado da
decisão de compra, sofre suas consequências igualmente19.
É igual se fosse o bem e o mal. (...) Por mais que ele me dê o conforto, me dê a
tranquilidade, mas também tá tirando o sono. Então, assim... dá raiva. (Sra. Turin,44).
4.1.4. Imaginário de famílias com e sem carro
O Quadro 2 a seguir traz uma síntese das principais respostas dos entrevistados quanto
à caracterização de duas famílias solicitada no exercício projetivo proposto no início de cada
entrevista. O intuito foi descontrair os entrevistados em relação ao tema central da pesquisa. A
situação apresentada falava de uma família sem carro e pedia que descrevessem essa família.
Algumas perguntas de apoio foram preparadas, indagando onde moravam, se faziam compras
financiadas e de que tipo e quais eram as ocupações do casal. Em seguida, a mesma situação
era proposta para uma família com carro.
A análise desse quadro permite compreender que o carro, assim como a casa e outros
bens de consumo mencionados, são capazes de construir um imaginário sobre as pessoas e, ao
mesmo tempo, atribuir a elas características, indicando que em uma sociedade de consumo os
indivíduos parecem ser mesmo inseparáveis da cultura material (MCCRACKEN, 2003a;
MILLER, 2007). Foi possível ver também como a categoria automóvel sinaliza movimentos
de ascensão social: apenas com a informação "sem carro" ou "com carro", os entrevistados
descreveram outros movimentos que simbolizavam conquistas, seja de outros bens materiais,
seja de formas de aquisição de bens, seja de trabalho ou ocupações desempenhados.
No imaginário dos entrevistados, não ter carro está associado a famílias que não
possuem casa própria (alugada, herdada) ou que até têm a propriedade, mas de casas descritas
com complementos negativos que desvalorizam essa posse, como "pequena", "ainda em
construção", "em prédio antigo", "com infiltrações", "de difícil acesso", "precisando de
reforma". Já na segunda parte do exercício projetivo, quando as famílias têm carro, as
moradias não são apenas descritas como próprias; elas trazem descrições com complementos
positivos que, em geral, invertem a situação desfavorável atribuída à família quando não tinha
carro. As casas passam a ser maiores, mais confortáveis, em "área nobre", "planejada", "com
vista", "vagas de garagem" e "sem infiltrações".
19 As circunstâncias dessa compra serão tratadas em maiores detalhes na seção referente à participação da famíliano processo de decisão e compra do carro.
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Quadro 2: Imaginário de Famílias Com e Sem Carro. Fonte: Elaborado pelo autor.
F a m í l i a s e m c a r r o
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p r o d u t o s d e b e l e z a
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l a n ç a d o s d a s
m e l h o r e s m a r c a s
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c a r g o a d m
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Quando perguntados sobre as compras financiadas das famílias com e sem carro, o
movimento para bens melhores, ainda que financiados, também acontece quando a família
hipoteticamente passa a ter carro. Não foi um movimento tão claro quanto o que havia sido
descrito para as moradias, pois alguns entrevistados mantiveram as mesmas categorias de
produtos para as compras financiadas de famílias com e sem carro. Mesmo assim, em alguns
casos, os celulares, micro-ondas, televisões, geladeiras, fogões, computadores, roupas e
compras descritos como "básicos" e "necessários" nas famílias sem carro, são substituídos ou
complementados por "mais caros", "mais sofisticados", "top de linha", "recém-lançados" e
"melhores marcas", quando a família tem carro. Para a família com carro, o imaginário dos
entrevistados trouxe ainda alguns produtos diferenciados, como imóveis, passeios e viagens,
além de observações registrando que essas famílias podem não precisar parcelar suascompras, isto é, podem "comprar à vista", "em menos parcelas" ou "parcelam apenas em
casos extremos".
Sabe-se que, da mesma foram que a posse de bens materiais como automóvel e
moradia, dentre outros, constrói a identidade em nossa sociedade de consumo, o trabalho ou a
ocupação também são responsáveis pela construção da identidade. Alguns autores (JENKINS,
2004; RANSOME, 2005) discutem como a identidade é formada na contemporaneidade pelo
trabalho e pelo consumo. Nas famílias descritas como sem carro, o homem aparece limitado a
ocupações pouco qualificadas, como as de lixeiro, porteiro, corretor, instalador, pedreiro,
vendedor. A posse do carro, de forma similar ao que foi observado na questão da moradia,
abre espaço para ocupações bem mais qualificadas, no exercício projetivo tanto dos homens
quanto das mulheres entrevistadas: lixeiro passa a contador, corretor e eletricista passam a
empresários de pequeno negócio, pedreiro passa a metalúrgico, e porteiro passa a policial ou
técnico em enfermagem.
Mesmo sendo observado esse movimento de ascensão profissional das famílias sem
para as com carro, as ocupações mais qualificadas dos homens não ficaram distantes das
ocupações dos entrevistados, conforme descrito no capítulo de metodologia (ver Quadro 1).
Quando foi pedido que descrevessem o carro da família para a qual haviam construído um
breve perfil de posses e ocupações, os modelos apresentados foram, em geral, simples,
sugerindo também que não se descolaram de suas realidades.
Quando perguntados sobre a ocupação da mulher, no entanto, o exercício projetivo
parece trazer algumas diferenças, ou melhor, não é tão clara a natureza dos movimentos
profissionais das mulheres a partir da posse do carro. Quando a manicure passa a advogada, a
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vendedora a médica ou a dona de casa a empresária, tem-se uma lógica semelhante àquela
descrita sobre a ocupação dos homens. Quando, porém, a posse do carro sinaliza que
profissionais menos qualificadas passam a ser donas de casa no imaginário tanto de homens
quanto de mulheres, quando donas de casa passam a funções mais simples como vendedora
ou técnica de enfermagem, ou quando donas de casa continuam donas de casa, fica mais
difícil fazer algum tipo de inferência ou interpretação. Essas informações podem sugerir a
existência de contradições e conflitos no papel profissional de mulheres na sociedade
contemporânea.
4.2 A FAMÍLIA NO PROCESSO DE DECISÃO E COMPRA DO CARRO
O entendimento das atividades de consumo como mecanismos utilizados pelas
famílias para constituir e delimitar sua identidade coletiva (EPP e PRICE, 2008) pode
contribuir para a compreensão da compra do automóvel como um empreendimento coletivo.
No caso das famílias estudadas, a aquisição do veículo pode ser percebida como uma prática
de consumo que marca uma transição da identidade familiar, sendo o carro o recurso
simbólico utilizado na construção de uma narrativa de ascensão social. Dessa forma, esta
seção procura explorar as motivações, preferências e influências manifestadas pelo casal ao
longo do processo familiar de decisão e compra do automóvel, além de apontar eventuaisdiferenças de gênero.
As entrevistas indicam que a aquisição do automóvel da família pode apresentar
processos de decisão distintos, com variedade de agentes e níveis de participação em suas
diferentes etapas. Embora o modelo adotado por Solomon (2011) para a tomada de decisão do
consumidor contenha quatro estágios principais, que vão do reconhecimento da necessidade,
passando pela busca de informações e pela avaliação de alternativas, até a escolha do produto,
o próprio autor entende que ele é um tanto simplista para decisões de natureza coletiva. Nos
casos pesquisados, parecem ser dois os principais fatores a adicionar complexidade ao
referido modelo: a situação de ter que convencer (ou ignorar) o cônjuge após o
reconhecimento da necessidade, como condição para dar prosseguimento ao processo; e a
preponderância da definição das possibilidades financeiras sobre as decisões relativas ao
produto.
O primeiro estágio, portanto, compreende não só o reconhecimento da necessidade do
automóvel por um cônjuge, mas também o compartilhamento dessa informação com o outro.
Com relação a esse momento inicial, os relatos aparentam sugerir uma variação restrita à
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pessoa que assume o papel de iniciador – marido ou esposa – e aos motivos informados como
despertadores do desejo pelo veículo. A partir dessa manifestação, porém, abre-se espaço para
diferentes tipos de posicionamento do companheiro com relação à ideia proposta. A esse
respeito, as entrevistas parecem indicar que a postura adotada pelo parceiro pode resultar na
mencionada necessidade de seu convencimento (ou desconsideração), além de influenciar o
nível de engajamento do casal na busca de informações, na avaliação de alternativas e na
escolha do produto. Já no que se refere às possibilidades financeiras da família, os
depoimentos dos entrevistados apontam para sua aparente onipresença na tomada de decisão,
delimitando as opções em todos os estágios, do começo ao fim do processo.
4.2.1 Reconhecimento do desejo
Dos dez casais entrevistados, sete informaram que a primeira manifestação de desejo
pelo carro partiu do marido e três, da esposa. Embora a natureza qualitativa da presente
pesquisa não permita qualquer inferência de ordem estatística, é possível dizer que a simples
ocorrência de mulheres exercendo o papel de iniciador no processo de compra do veículo
corrobora o estudo de Belch e Willis (2002). A partir da análise dos efeitos de mudanças na
estrutura da família sobre o processo decisório de compra familiar, os autores chegaram à
conclusão de que, mesmo o marido permanecendo o mais influente na iniciação da decisão decomprar um automóvel, havia aumentado significativamente o grau relativo de influência das
esposas nessa etapa (BELCH e WILLIS, 2002).
Apesar dessa constatação, vale ressaltar que os três casos de aquisição do automóvel
da família iniciados com uma manifestação feminina apresentam algumas especificidades. Em
dois deles (casais Palio I e Palio II), o marido não possuía habilitação para dirigir. No terceiro
(casal Classe A), o esposo já contava com veículo da empresa em que trabalhava para uso
pessoal e familiar. Até que ponto tais circunstâncias podem ter comprometido o interesse
desses homens por um carro é uma incógnita. O que os relatos permitem afirmar é que suas
esposas tiveram motivos próprios suficientes para querer comprar um carro.
Com efeito, entre as razões que essas mulheres alegam ter despertado e/ou alimentado
seu desejo pelo veículo, aparecem duas com caráter mais individualista, no sentido de que se
referem ou a um histórico individual de posse de carros ou a sensações particulares de
"desespero" pelo tempo sem automóvel ou de "agitação" pela "oportunidade muito boa" de
compra. É interessante notar, nos discursos a seguir, como a migração do "eu" para o "nós"
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ocorre justamente quando se passa da exposição de motivos para a declaração da vontade de
comprar:
Eu sempre tive carro. Quando eu fiz dezoito anos, meu pai me deu um carro. Então
eu fiquei uma época sem carro. Então já começou a me dar desespero. Falei "Não,vamos comprar, vamos comprar" e a gente comprou. (Sra. Palio II, 32).
Sabe quando você fica assim, é uma oportunidade muito boa, é um carro muito bom,está em um preço legal? E aí a minha pulguinha ficou muito agitada e eu falei"Vamos ter que comprar". (Sra. Classe A, 31).
De forma semelhante, os testemunhos de iniciadores masculinos também informam
algumas motivações privativas para a compra ou troca do carro, como "ser alucinado por
carro", "sempre ter dirigido o carro de amigos", "detestar levar o carro para a oficina" ou "não
aguentar mais o carro velho". Eventualmente, a evidência dessa motivação personalista parecedemandar alguma dissimulação por meio da adaptação do discurso, como bem percebe a Sra.
Cerato:
Ele sempre trabalhou dirigindo, era taxista, sempre quis ter um carro. Aí eu acho quefoi mais essa coisa, porque, na verdade, ele não gosta, ele é alucinado por carro.Então ele sempre falava... primeiro era "meu", né, quando namorava: "Vou compraro meu carro" (risos). E depois "Vamos comprar o nosso carro". (Sra. Cerato, 31).
Eu tinha um grupo de amigos que quase todos tinham carro, só que do grupo eu erao único que não bebia. Então eu sempre dirigi o carro deles. (...) Pô, você toma gosto
naquela coisa. (...) Aquilo vai cultivando o desejo de ter um carro. (Sr. Fox, 33).
Eu falei que estava na hora de mudar porque estava começando a ir muito praoficina e eu detesto ficar levando carro pra oficina. (Sr. Siena, 40).
Trouxe pra ela (Sra. Turin): "Vou comprar um carro novo porque eu não aguentomais o velho". (Sr. Turin, 49).
Nem todas as razões apresentadas, porém, são individualistas. Alguns depoimentos
sugerem que o reconhecimento da necessidade do automóvel decorreu de motivações mais
coletivas ou altruístas. Nesse caso, os iniciadores do processo de compra afirmam querer
"facilitar o transporte da esposa para o trabalho", "não depender de parentes para ajudar a
sogra", "viabilizar certas atividades da família sem ser obrigado a pedir favores", "oferecer
mais conforto para a esposa grávida" ou "ajudar nos cuidados com o filho recém-nascido":
Onde nós moramos, nós temos dificuldade com transporte. (...) A gente achoumelhor comprar um carro para se locomover e para a (Sra. Fox) trabalhar, porque naépoca ela trabalhava. (Sr. Fox, 33).
Na época a gente tinha a minha sogra muito doente e a gente ficava dependendo de parente aqui, parente ali e eu botei na minha cabeça de comprar um carro para ajudara mãe da minha esposa. (Sr. Celta, 45).
Ficamos um tempo sem carro. O que acontece? Para fazer algumas coisas, você éobrigado a pedir a cunhado, cunhada, então fica ruim, fica chato. (Sr. Mégane, 46).
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Tínhamos um carro mais simples, básico, sem luxo, sem conforto, sem ar-condicionado, direção e nada disso e, com ela ficando grávida, eu vi a necessidadede ter um carro mais confortável. (Sr. Symbol, 34).
Quando nasceu (nosso filho), eu falei: "(Sr. Palio I), a gente precisa comprar um
carro", porque o carro ajuda muito. (Sra. Palio I, 31).
4.2.2 Negociações para um desejo comum
Manifestada a vontade de adquirir um automóvel pelo iniciador, abrem-se algumas
possibilidades de negociação com o cônjuge para a concretização da ideia. Nas famílias
pesquisadas, o companheiro normalmente se posicionou a favor da compra. Em dois casos,
porém, o iniciador teve que enfrentar a resistência do companheiro (casais Symbol e Turin),
impondo-se a necessidade de convencer ou ignorar o parceiro para se chegar à tomada de
decisão. De uma forma geral, as entrevistas parecem indicar que o nível de consenso do casal
com relação à importância dessa compra para a família pode influenciar o engajamento de
cada um na busca de informações, na avaliação de alternativas e na escolha do produto.
Uma forma válida de compreender o posicionamento do parceiro em relação à compra
do carro consiste em recorrer a construtos do modelo teórico de Epp e Price (2008) sobre a
interação de identidades familiares nas práticas de consumo. Dos sete fatores que as autoras
entendem moderar como as famílias constituem e gerenciam suas identidades, pelo menos trêsaparentam estar presentes nessa passagem da intenção para a decisão de comprar o automóvel
das famílias pesquisadas. São eles: eventos de transição da identidade familiar; nível de
concordância dos membros da família quanto à identidade coletiva; e grau de sinergia entre as
identidades da família (EPP e PRICE, 2008).
Embora Epp e Price (2008) não mencionem expressamente a compra do carro como
um evento de transição da identidade, parece ser razoável entender sua qualificação como tal,
tendo em vista os exemplos elencados pelas autoras: casamento, nascimento de filho e comprade uma casa (EPP e PRICE, 2008). Em se tratando das famílias estudadas, esse caráter de
transição fica reforçado, uma vez que conferem à aquisição do automóvel o significado de
ascensão social. Assim, para os casais entrevistados, a compra do carro aparentemente pode
ser um acontecimento tão buscado quanto os citados pelas autoras e cercado de expectativa
similar.
Entretanto, a priori, nada impede que um casal apresente níveis diferentes de
concordância quanto à identidade familiar e aos objetos de consumo que contribuem para asua constituição. Nos casos investigados, um entendimento compartilhado quanto à
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importância do carro para a família, independentemente de quem fez a proposição inicial,
parece ter suscitado no cônjuge uma atitude de "comprar a ideia" ou "concordar com a
loucura"; uma compreensão "muito diferente", porém, aparenta ter implicado na discordância
do companheiro, tornando inúteis as "tentativas de convencimento", conforme relatos abaixo:
Foi a nossa conquista, porque depois que eu comprei essa ideia do carro, entãofiquei naquela ansiedade. Quando chegou é igual doce para criança, fiquei superfeliz, entendeu? (Sra. Cerato, 31).
Eu concordei. Nessa parte, a gente se entende... nessas loucuras assim, a gente seentende. De falar "Vamos trocar?", "Vambora!" (Sra. Siena, 41).
Assim... o nosso jeito de pensar é muito diferente. (...) Por mais que ele tente meconvencer do contrário, minha resposta melhor até hoje ainda é que dava-se um jeitode consertar o outro carro... (Sra. Turin, 44).
Já a medida da sinergia entre a identidade coletiva da família (em vias de transição
pela compra do carro) e as identidades individuais de cada cônjuge parece ter relação com o
grau de engajamento que marido e esposa apresentaram no processo de compra. Quanto a
isso, as entrevistas revelam envolvimentos que variam de um mero aval ou apoio até uma
participação entusiasmada, capaz de alterar aspectos inicialmente concebidos para o carro. No
primeiro caso, se o cônjuge não percebe sua identidade atrelada à pretendida transição da
identidade coletiva, ele pode preferir "não se meter" ou "dar pitaco" na compra ou só se
preocupar em "não ter aporrinhação", como exemplificado nos seguintes depoimentos:
Ela deixou tudo por minha conta, ela não se meteu, não deu pitaco... não falou o queela queria. Ela queria o carro. Na verdade, ela queria era isso. (Sr. Celta, 45).
Eu só falei "Se o carro não me der muita aporrinhação, vai valer o investimento".(...) Foi mais ela (que participou). Ela que praticamente falou "É esse que vamos pegar" (Sr. Classe A, 47).
Se o parceiro, porém, acredita que a aquisição do automóvel pode afetar a identidade
coletiva e a sua identidade individual similarmente, parece haver motivos para ele "realmente
se animar", "gostar de ver tudo", "falar o que não pode faltar" e até determinar qual será o
modelo escolhido:
Depois que eu realmente me animei, eu dei uma olhada no carro, também acheimaravilhoso e tal. (...) Eu queria preto, ar condicionado, vidro elétrico e um som bonito. Completamente diferente do que ele pensava (risos). Quando eu falava isso,ele respondia "Não, mas tem, tá". (Sra. Cerato, 31).
Carro quem quis foi meu marido. Ele queria um carro seminovo, né? Um Fiat Uno,que eu acho horrível esse carro. E eu que consegui convencer ele a comprar umcarro zero. (...) Eu, como gosto de ver tudo, eu fiquei verificando os lugares, fiquei
assim buscando informações. (Sra. Fox, 33).
Ele escolhe o carro. Aí eu falo o que não pode faltar. Tem que ter quatro portas, temque ter ar condicionado. (Sra. Siena, 41).
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Minha esposa, assim que olhou o carro, bateu o olho, "Esse aqui". Eu falei "Mas issoaqui é carro importado". Ela "Não, esse aqui". Aí eu olhei, fui ver se o carro era bom, completo. "O carro é completo. Então tá". (Sr. Mégane, 46).
4.2.3
O desejo que "cabe no bolso"
Como se pode observar, as discussões conduzidas acima sobre o processo de compra
do automóvel das famílias pesquisadas não incluíram o componente financeiro. Todavia, o
teor das entrevistas parece sugerir que a questão financeira pode ser preponderante em relação
às negociações realizadas em todos os estágios da tomada de decisão. De fato, uma das
principais preocupações dos casais estudados com relação à compra aparenta ser definir o
valor do orçamento doméstico que pode ser direcionado para o financiamento do veículo, uma
vez que comprar à vista é para os "ricos" e juntar dinheiro previamente não é uma possibilidade considerada20. Essa espécie de "dotação orçamentária" para a aquisição do
carro, por sua vez, parece influenciar fortemente definições de duas naturezas: as relativas ao
envolvimento financeiro de cada membro do casal; e as relacionadas a aspectos do veículo
(ano, modelo, tamanho, potência etc.).
Nas compras efetuadas pelas famílias pesquisadas, o engajamento financeiro
aparentemente foi determinado mais por necessidade que por voluntariedade. Quando o
proponente era capaz de cobrir aquela "dotação" somente com recursos próprios21,comumente ele se tornava responsável pelo pagamento do financiamento, sem a colaboração
do cônjuge. Nesse caso, do ponto de vista financeiro, o iniciador parecia gozar de autonomia
para dar prosseguimento ao processo de compra, sendo a concordância do parceiro apreciada,
mas não necessária. Quando, porém, a viabilização da compra dependia da complementação
com recursos do cônjuge, tornava-se imprescindível que este fosse favorável à compra ou que,
pelo menos, pudesse ser convencido da sua importância. Nessa situação, a responsabilidade
pelo pagamento do carro costumava ser compartilhada, com marido e mulher procurandocontribuir de forma equitativa.
Como mencionado anteriormente, as entrevistas revelaram dois casos de parceiros
contrários à ideia do automóvel: casais Symbol e Turin. Seus processos de compra ilustram
20 As dificuldades no gerenciamento do dinheiro serão tratadas na seção referente ao endividamento comomecanismo de aquisição de bens.21 O caso de famílias que afirmam adotar um fundo comum está compreendido na discussão. A questão passa aser sobre o grau de autonomia ou influência do cônjuge que deu a ideia do carro quanto à destinação de recursosdo fundo para a cobertura da referida "dotação", se ele pode tomar essa decisão sozinho ou se precisa daconcordância do parceiro.
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como a autonomia financeira do iniciador pode levar a soluções distintas para a resistência
enfrentada, com diferentes desdobramentos.
No caso da família Symbol, o marido, que se dizia cansado do carro velho sem ar-
condicionado e queria proporcionar mais conforto ao filho recém-nascido no verão que se
aproximava, levantou o interesse pela troca do carro. Contudo, em face da necessidade de
colaboração financeira da esposa, que era "meio contra" à compra, foi preciso o Sr. Symbol
apresentar "argumentos" para o seu convencimento. Tendo em vista que a Sra. Symbol
"acabou concordando", não há razões para não considerar essa aquisição como fruto de uma
decisão consensual.
No começo eu meio que fui contra, eu achei que a gente estava se endividando, mas
ele argumentou, falou que precisava para a gente ir no mercado, por essas coisas...Aí eu vendo também pelo meu filho acabei concordando. (Sra. Symbol, 29).
Já no caso da família Turin, o marido queria um carro novo porque "não aguentava
mais o velho", que passou a apresentar muitos problemas após um acidente. Como o Sr. Turin
considerava a renda proveniente de seu pequeno comércio "um dinheiro só dele",
desvinculado do orçamento familiar, e essa era suficiente para cobrir o financiamento do
veículo, ele não se preocupou em convencer a esposa, que preferia "dar um jeito de consertar"
o carro antigo. Ele "simplesmente foi" comprar o carro, em uma decisão autônoma. Noentanto, a Sra. Turin não parece admitir a pretensa autonomia financeira do marido como
condição para um planejamento que não seja conjunto, tanto que diz ter ficado "chocada" e
com "cara de babaca" frente à atitude do esposo, que é percebida como uma "sacanagem":
Meu esposo simplesmente deslumbrou a historia de ter um carro e foi... (...) Euembirro um pouco pelo fato de não ter sido uma coisa planejada em conjunto. (...)Quando eu fui encontrar com ele, ele já estava lá na agência, já olhando e dizendo"Eu comprei esse". Eu olhei para a cara dele, fiz aquela cara de babaca, né"Comprou esse? Tá de sacanagem...". "Não, comprei". Pensei "Não deve estarfalando a verdade...". E de fato ele estava falando a verdade. Aquilo foi um choque
pra mim. (Sra. Turin, 44).
No que diz respeito à influência exercida pela sugerida "dotação orçamentária" sobre
as definições relativas a aspectos do automóvel, um quarto moderador do modelo teórico de
Epp e Price (2008) acerca da interação de identidades familiares parece poder ser encontrado:
barreiras de mercado que restringem as práticas de construção de identidade. Segundo as
autoras, a falta de recursos financeiros pode impedir que a família represente suas identidades
nas formas que deseja, levando a uma redefinição forçada da identidade familiar (EPP e
PRICE, 2008). Nesse sentido, as entrevistas revelam que as possibilidades financeiras da
família, isto é, o "orçamento", o "bolso", a "prestação" ou a "renda" delimitam em muitos
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casos as decisões relacionadas ao ano, modelo, tamanho e potência do carro. Essa limitação
financeira impede que os entrevistados adquiram o carro que "queriam muito" ou que "ainda
desejam" e faz com que eles "tenham que se adaptar", conforme testemunhos abaixo:
Um amigo meu disse que 1.0 é uma coisa horrível, eu não acho, entendeu? Porque,além de ser o que cabe no meu bolso, eu não posso ficar aborrecido com algo que émeu, eu tenho que me adaptar. (Sr. Siena, 40).
Eu a princípio queria muito o Golf porque, pô, eu acho lindo. Só que a vendedora foiinformando "Olha só, a manutenção do Golf é cara, o seguro do Golf é caro". (...) Aíficou entre o Gol e o Fox. (...) (O Golf) ia fugir do nosso orçamento. (Sr. Fox, 33).
Eu queria um sedã. Mas porque eu não podia comprar um carro perua, né, umastation. Não tinha como, ficava muito acima da minha prestação. (Sr. Turin, 49).
O (Sr. Palio I) queria um carro maior, só que na hora da compra, acabou da gente
não tendo como comprar por questão de renda, enfim, a gente acabou comprando oPalio. (Sra. Palio I, 31).
Não chegamos a comprar um carro zero... mas porque estava bem mais caro, a prestação ia ficar um pouquinho alta para o nosso bolso. (Sra. Palio II, 32).
É o que eu falei para você, eu comprei o Celta na época, mas o carro que eu desejocomprar ainda é um Gol. É, com certeza... (Sr. Celta, 45).
O Symbol é um carro muito confortável, dá muita satisfação... embora, se eu pudesse adquirir, eu adquiria um Civic... mas é um carro confortável, eu acho muito bom. (Sra. Symbol, 29).
4.2.4 Papéis de gênero
Os processos de compra do automóvel conduzidos pelas famílias pesquisadas
aparentam comportar, ainda, certa influência de gênero em algumas definições quanto ao
envolvimento de cada cônjuge. Parece haver, entre os entrevistados, uma percepção geral da
existência de papéis predominantemente masculinos na aquisição do carro, a despeito da
crescente influência da mulher (BELCH e WILLIS, 2002). Destacam-se, nesse contexto, as
transações realizadas pelo casal quanto à atribuição das seguintes responsabilidades: pelanegociação no momento da compra; e pelo pagamento do financiamento do veículo, no qual
há a presença de um componente simbólico.
Embora o estudo de Belch e Willis (2002) sugira que a influência da esposa tenha
aumentado em todos os estágios do processo de compra do automóvel, para os casais
estudados, determinada função parece competir ao homem: negociar as condições de compra
(preço, prazo, forma de pagamento, brindes etc.) diretamente com o vendedor. De fato, em
quase todos os casos investigados, o marido ficou à frente dessas negociações,independentemente de ter sido ele a pessoa que deu a ideia do carro, que assinou o contrato de
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financiamento ou que ficou responsável pelo pagamento. Na compra do casal Palio I, por
exemplo, mesmo a esposa tendo iniciado o processo de compra, escolhido o modelo que
considerava "carro de mulher" e assinado o contrato, coube ao marido assumir a negociação
junto à concessionária:
(A palavra final foi) minha porque acabou sendo o Palio e eu era louca pelo Palio, porque eu acho que é um carro de mulher. O (Sr. Palio I) não ficou muito satisfeitonão, mas eu quis. (...) Está no meu nome, mas ele que negociou tudo. (...) O (Sr.Palio I) tem muita lábia. Então ele foi conversando para reduzir um pouco o valor deentrada, para reduzir parcelamento, e aí a gente conseguiu. (Sra. Palio I, 31).
O único caso em que a esposa desempenhou o papel de negociador, entre as dez
famílias pesquisadas, foi o do casal Palio II. Para tanto, "ter um poder da palavra incrível"
talvez pudesse ser entendido como uma competência determinante para ela se incumbir dessaresponsabilidade, ainda mais considerando que "ter muita lábia" foi um dos motivos sugeridos
no relato anterior para o marido ter ficado à frente das negociações.
Eu tenho um poder da palavra incrível. Negociei, negociei, cheguei mais ou menosno patamar que eu queria. Ficou no meio, entre eles e eu, não ficou nem do jeitodeles nem do meu. (Sra. Palio II, 32).
O teor das entrevistas com a família Palio II, porém, parece sugerir que a compra do
carro não é a única coisa "resolvida" pela esposa. Na realidade, ela aparenta dominar as
decisões do lar como um todo, no sentido de que "ali a palavra final é dela". Comoconsequência dessa ocupação prévia de um posto tradicionalmente masculino, a atuação da
Sra. Palio II frente às negociações com a concessionária talvez possa ser compreendida não
como exceção, mas sim como confirmação de que essa função compete predominantemente
ao homem.
Ela demonstrou interesse em querer comprar por gostar muito da marca Fiat, umcarro que ela gosta, o Palio, então ela resolveu comprar e fomos até um loja. (Sr.Palio II, 35).
A palavra final aqui (em casa) é minha. (Sra. Palio II, 32).
Já com relação à responsabilidade pelo pagamento do financiamento do veículo,
alguns casos estudados parecem assinalar uma importância simbólica da sua atribuição à
figura masculina. Como dito, nas compras cuja viabilização passava pelo engajamento
financeiro de ambos os cônjuges, tal responsabilidade costumava ser compartilhada, com
marido e mulher procurando contribuir de forma equitativa. Algumas dessas famílias, porém,
aparentavam ofuscar a participação da mulher no pagamento do carro, por meio do rearranjo
do acordo firmado sobre o orçamento doméstico: ao invés de aplicar diretamente seus
recursos no automóvel, a mulher passava a assumir uma parcela maior das "despesas da casa";
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uma vez diminuída sua colaboração nesses gastos, o homem tornava-se apto a pagar o
financiamento do veículo "sozinho" ou "integralmente", conforme depoimentos abaixo:
(Você ficou responsável integralmente pelo pagamento?) Exato. Caso desse algum
problema, aí ela chegaria. Mas ela ficaria responsável por outras situações, despesasda casa, mas a prioridade do pagamento do carro seria comigo. (Sr. Siena, 40).
O que ela ganhava era o suficiente para manter as despesas da casa e eu pagar ocarro. Eu pagaria o carro sozinho, as despesas do carro, e ela continuaria com adespesa da casa. (Sr. Fox, 33).
Eu fiquei com o carro e ela ficou com mais alguma coisa da casa, porque a gente paga também o apartamento. (Sr. Symbol, 34).
Fui eu (quem ficou responsável pelo pagamento), mas ela me ajudava. Se ela não meajudasse pagando as prestações, ela me ajudava nas despesas de casa. (Sr. Mégane,46).
A situação acima, de certa forma, assemelha-se à vislumbrada por Commuri e Gentry
(2005) em estudo sobre a tomada de decisão familiar em domicílios chefiados22 pela mulher.
De acordo com os autores, um mecanismo adotado nesses lares para o marido figurar como
bom provedor, a despeito da primazia econômica da esposa, consistia em ligar uma despesa
carregada de significado simbólico (parcela da hipoteca, por exemplo) ao seu fundo
individual. Nos casos em apreço, o financiamento do carro parece ser a despesa a portar tal
importância simbólica. Contudo, no lugar da maior renda da mulher, o que se procura
disfarçar é dependência do homem em relação à renda da parceira, para comprar um bem
associado simbolicamente a uma narrativa de ascensão social. Nessas famílias, portanto, o
papel de bom provedor parece ser atribuído àquele que "ficou com o carro" ou com "a
prioridade do seu pagamento", independentemente das negociações engendradas para tornar
isso possível.
4.3 FORMAS DE LIDAR COM OS CUSTOS RELATIVOS AO AUTOMÓVEL
Uma vez concretizado o sonho de adquirir o carro da família, os entrevistados parecem
ser chamados mais cedo ou mais tarde à realidade de custos que o veículo encerra. Os casais
estudados falam, por exemplo, do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores
(IPVA), do seguro, do combustível, da manutenção, da garagem, do licenciamento, das
multas, dos consertos. Sendo assim, a presente seção procura explorar alguns aspectos
abordados pelas famílias pesquisadas acerca dessas despesas que se somam à prestação do
veículo, para entender possíveis efeitos da sua aquisição sobre o orçamento doméstico e o
22 O termo chefiado aqui se refere exclusivamente ao cônjuge com maior rendimento no lar.
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cotidiano familiar. Além disso, busca compreender formas encontradas para lidar com esses
gastos, muitas vezes não considerados no processo de compra do automóvel.
4.3.1 Falhas no planejamento das famílias
Alguns casais estudados reconhecem certo descuido no "planejamento" realizado para
a aquisição do carro. Para eles, o valor da prestação, "parcela mensal" ou "mensalidade"
aparenta ter sido o grande foco de atenção, fazendo com que "nem pensassem nos outros
gastos". Como tais custos são inerentes ao consumo do automóvel, "ter que vê-los depois"
parece ser a consequência natural de não ter pensado neles "na hora de comprar" ou "no
começo". Entretanto, tendo em vista que o orçamento dessas famílias não foi planejado
adequadamente, são relatadas dificuldades para assimilar todas as despesas:
Na hora de comprar a gente só pensa na parcela mensal, se consegue dar algumdinheiro a mais para abater na mensalidade. Mas não pensa nos outros gastos. (Sra.Siena, 41).
A gente acaba não incluindo no planejamento. Você não tem que colocar só o parcelamento, você tem que colocar IPVA, tem que colocar gasolina, manutenção,seguro. No começo, a gente compra o carro e nem pensa. (Sra. Palio I, 31).
Depois é que a gente tem que torcer, a gente tem que ver o custo do sonho. E o primeiro mês foi legal, o segundo mês já foi tira daqui, bota ali. (Sra. Turin, 44).
Outras famílias, porém, afirmam ter considerado em seu "orçamento" ou
"programação" os principais custos relativos ao automóvel, conforme exemplificado nos
testemunhos abaixo:
Eu tinha noção de que tem que ter uma garagem, que você paga IPVA, que todo anotem licenciamento, que você pode ter multas, que você pode ter problemas com ocarro. (Sr. Cerato, 31).
A gente já tinha visto isso também, estava dentro do orçamento: seguro, IPVA, tudo.(Sra. Fox, 33).
A princípio pensei que essa parcela poderia ser do Golf, só que, com o acréscimo detodas as outras condições que vêm agregadas ao carro, não só o pagamento da parcela (...) seguro, manutenção, aquela coisa toda (...), eu excluí (o Golf comoalternativa de compra) porque fugiu do meu orçamento. (Sr. Fox, 33).
É, a gente já tinha programado. Até tanto a gente pode pagar naturalmente. Dá pragente pagar o carro, dá pra dar o dinheiro pra manutenção, pro combustível. (Sra.Palio II, 32).
Como se pode observar, esses relatos também transparecem uma preocupação com a
"parcela mensal", mas sugerem uma concepção diferente: para esse segundo grupo de
famílias, "parcela" parece ser o "até tanto", no limite permitido do orçamento, que pode ser
despendido com o carro. Sendo assim, a parcela do orçamento a ser comprometida com o
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automóvel não se resume à parcela do financiamento ou prestação; ela inclui tanto a prestação
quanto as "condições que vêm agregadas". Ao conceber "parcela" dessa forma, tais famílias
supostamente afastariam o risco a que o grupo anterior ficou exposto por considerar, para a
parcela do financiamento, o valor da parcela disponível do orçamento, isto é, por deixar o
orçamento "no limite" antes mesmo da incidência de custos em princípio inevitáveis.
Ocorre que tanto as famílias que "só pensaram na parcela" quanto as que "já tinham
visto tudo" antes de comprar o carro acabaram chegando a uma situação semelhante de
dificuldade financeira e se tornando igualmente incapazes de pagar o financiamento do
automóvel. Esse destino comum, a despeito da suposta diferença de risco que declararam
incorrer, sugere certa inconsistência no discurso de bom planejamento apresentado pelo
segundo grupo de famílias. Pode-se questionar se o relato da compra melhor planejada
exprime uma crença genuína na mesma ou uma resistência em admitir os próprios erros de
planejamento, mas é possível encontrar na própria fala desses entrevistados indícios de falhas
que podem ter contribuído para chegarem à circunstância de adversidade financeira:
Quando chega é que você toma aquele susto. O primeiro IPVA ainda não tinha ogás, falei até para ele "Nossa! Salgado, né?" Aí ele até falou "Mas eu tinhacomentado com você". Mas ele não tinha falado o valor exato porque nem ele sabia(...) A esperança é a ultima que morre, eu imaginei que fosse um pouco menos. (Sra.Cerato, 29).
O IPVA (surpreendeu), não achei que ia ser tão caro como foi. Pra mim, por o carroser 1.0 (...) pra mim, "Meu carro é 1.0, vai ser barato". (Sr. Celta, 45).
O pior mesmo é a porcaria do IPVA. O carro tem onze anos e tu paga R$ 1 mil deIPVA, é meio desproporcional, né. (...) É muito dinheiro por nada. (...) O carro está parado há um tempão, não estou nem usufruindo da rua. (Sr. Classe A, 47).
Preço absurdo, R$ 800. Eu acho um roubo (o IPVA). (Sra. Mégane, 44).
IPVA é bem salgado, né. Pelo menos, o do nosso carro. Acho que tinha que dar um jeito disso aí diminuir. (Sra. Fox, 33).
Com efeito, os testemunhos acima parecem demonstrar a "surpresa" ou o "susto" dos
entrevistados com o IPVA, talvez o custo mais fortemente vinculado ao automóvel, por sua
obrigatoriedade legal. Em alguns casos, a surpresa é francamente exposta. Em outros, ela
aparenta estar contida na veemência das reclamações dirigidas ao imposto, o que pode indicar
alguma frustração por esse custo não ter sido da forma que essas famílias esperavam ou até
precisavam para "poder pagar naturalmente". Aberta ou velada, tal surpresa é incompatível
com o discurso do bom planejamento e sugere que alguns custos podem ter sido mais
"comentados" do que efetivamente calculados ou então uma qualidade muito precária no
levantamento de informações para a compra. Nesse caso, "ter esperança" e "imaginar" que
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determinado custo seria "barato" ou "um pouco menos" parecem ser posturas próximas às
confessadas pelo primeiro grupo quando admitiu "nem pensar" nele.
Portanto, independentemente do discurso adotado quanto à qualidade do planejamento
feito para a aquisição do automóvel, as famílias entrevistadas aparentam ter cometido falhas
que as expuseram de forma semelhante ao risco de dificuldades financeiras. Essas falhas de
planejamento sugerem o desequilíbrio do orçamento doméstico para o recebimento de todas
as despesas do veículo, mesmo com algumas alternativas buscadas para diminuir seu impacto
sobre o cotidiano familiar.
4.3.2 Gerenciamento dos custos pelas famílias
A decisão de comprar o carro, para o grupo de entrevistados, parece envolver
negociações, escolhas e renúncias no âmbito familiar, uma vez que o pagamento do
financiamento do veículo passa a demandar recursos que poderiam ser gastos de outra forma.
O orçamento doméstico "no limite" após a aquisição do automóvel pode fazer com que outros
itens de consumo valorizados pela família passem a ter que se considerados entre as opções de
cortes. Nesse sentido, os relatos parecem indicar a existência de duas formas principais de as
famílias estudadas tentarem manter seu nível de gastos "dentro do orçamento": o
gerenciamento dos custos relativos ao carro; e a negociação de outras despesas do cotidiano
familiar.
Um dos custos associados ao carro que aparenta oferecer maiores dificuldades de
pagamento para as famílias estudadas é o IPVA. Embora as entrevistas indiquem uma ciência
geral de que o imposto segue um calendário de cobrança relativamente fixo, costumando
incidir nos primeiros meses do ano, o conjunto de entrevistados parece percebê-lo como uma
despesa excepcional ao cotidiano familiar de gastos. Essa percepção, inclusive, reforça a ideia
de que o planejamento de compra do automóvel pode não ter incluído tal custo na "parcela
mensal" do orçamento destinada ao carro. Como resultado dessa falta de provisão para o
IPVA a partir de recursos habituais, alguns casais entrevistados costumam vincular seu
pagamento ao recebimento de rendimentos também considerados excepcionais,
principalmente, 13º salário, premiação em remuneração variável e adicional de férias.
(O IPVA) entra sempre em cima do final do ano, onde você tem sempre um serviçoextra, você ganha mais dinheiro. Você tem o 13º salário, eu junto as férias em cimadessa época, eu planejo pra receber todo o bruto do meu dinheiro. (Sr. Turin, 49).
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O IPVA era logo no começo do ano e combinava junto com a empresa quando pagava a premiação do ano anterior. Então, eu já pegava de uma parte e pagavalogo, já entrava o ano sem essa preocupação, entendeu? (Sr. Fox, 33).
O bom é que eu sempre paguei ele (o IPVA) nas férias. (Sr. Celta, 45).
A lógica descrita acima se baseia no aumento, ainda que temporário, dos rendimentos
da família, como forma de comportar uma despesa para a qual o orçamento doméstico não foi
adequadamente preparado. Outra maneira de gerenciar esse orçamento "estourado", quando
"não sobra nada", passa pela tentativa de redução dos custos mal calculados do carro, tendo
sido diversos os mecanismos lembrados pelas famílias pesquisadas.
O "kit gás", que é a conversão do carro para Gás Natural Veicular (GNV), habilita o
proprietário a obter o desconto de 75% sobre o valor do IPVA, oferecido pelo Governo doEstado do Rio de Janeiro como incentivo à redução de poluentes emitidos pela frota
fluminense. Além disso, serve para reduzir os gastos com combustível, uma vez que o GNV é
uma opção mais econômica que a gasolina ou o etanol (BARROS, 2012). Contudo, nem todas
as famílias que consideraram essa possibilidade conseguiram implementar efetivamente a
estratégia. Dentre as dificuldades de instalação do "kit gás", a falta de homologação do
procedimento pela montadora do carro, o receio de que problemas mecânicos causados pela
conversão compensem seus benefícios e a crença de que há impacto sobre a potência do
automóvel são mencionadas nos depoimentos abaixo:
Na época não sobrou (dinheiro). (...) Esse era um dos motivos para a gente colocar okit gás, para reduzir o IPVA. (...) porque é muito caro, IPVA é muito alto e a genteacabou parcelando esse ano e tudo para poder pagar. (Sra. Palio I, 31).
O IPVA aqui no Rio de Janeiro ele é muito caro. Um IPVA de R$ 1.600 num carrodesse é muita coisa. E eu não posso usar o gás porque a empresa não libera, nãohomologou o gás do carro, pra redução. (Sr. Turin, 49).
Eu cheguei a pensar em botar gás para poder quebrar esse (IPVA)... Me falaram queera uma aporrinhação danada porque o carro era meio melindroso para botar gás eeu desisti. É trocar seis por meia dúzia, vou ficar morrendo em mecânica toda hora.(Sr. Classe A, 47).
Nós pensamos em comprar o carro e comprar kit gás para reduzir o IPVA, entendeu?Mas nós não fizemos isso. (...) O povo fica falando que o carro era 1.0, aí não iasubir isso, não ia subir aquilo. (Sra. Celta, 43).
Outra forma de lidar com o custo de combustível eventualmente percebida nas
entrevistas foi a redução da própria utilização do veículo, conforme relatos abaixo:
Por ele ser flex, a gente até ficou com uma alternativa maior de custo de
combustível, mas chegou um período que tanto álcool quanto gasolina ficarammuito caros. Então, teve um período que realmente, assim, fugiu um pouco doorçamento. A gente diminuía o uso do carro para não gastar tanto combustível. (Sr.Fox, 33).
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(Usar menos o carro em um mês em que se esteja apertado, isso pode acontecer?)Acontece, acontece sim. (Sra. Turin, 44).
Não realizar os serviços relativos à manutenção em concessionárias das montadoras de
automóveis também aparece como uma prática recorrente das famílias entrevistadas para ocontrole dos gastos do carro. As concessionárias, que são representantes das marcas das
montadoras, além de cobrarem "muito caro", são vistas com desconfiança em relação aos
serviços que prestam. Os entrevistados parecem contar com as sugestões de amigos e um dos
relatos abaixo chega a insinuar que a despesa de manutenção deve ser evitada por completo,
na esperança de que o carro "não dê nenhum problema".
(Manutenção) Na concessionária é muito caro, cara. Muito caro. (...) Como eu tinhamuito conhecimento então eu levava em alguns colegas de confiança. (Sr. Cerato,
31).
Eu vou te confessar... Eu só levei o carro na concessionária para fazer uma revisão,foi a primeira. (...) Foi a única revisão que eu levei. Porque até um amigo quetrabalhava na concessionária falou "Pô, seu carro tá novo, não tem nada pra fazer,não precisa trocar nada, não tem nada condenado. Então eu não te aconselho a ficartrazendo o carro aqui não, cara." (...) Não fiz revisão e o carro não deu problema.Problema nenhum. (Sr. Fox, 33).
Essa opção de eliminar determinado custo do carro para o qual a família não se
programou, que aparece no combustível e na manutenção preventiva, também se faz presente
com relação ao seguro. Algumas famílias, por "não ter como custear" o seguro, parecem ter"preferido arriscar", conforme relatos abaixo:
Não, não teve como custear (o seguro). Ia encarecer muito mais do que já está sendocaro. (Sra. Turin, 44).
(O carro) nunca teve seguro. (...) porque a gente já estava pagando a prestação e oseguro ia ficar pesado e era esse negocio da gente saber que o carro era um carro quequase não era roubado. Então a gente preferiu arriscar. (Sra. Classe A, 31).
Já outras famílias informam ter encontrado uma alternativa ao seguro convencional, na
forma de uma proteção veicular (OLIVEIRA, 2011) oferecida por "cooperativas","associações" ou "consórcios". No lugar do prêmio anual que as seguradoras cobram pela
cobertura do veículo, esse serviço contratado por algumas famílias entrevistadas estabelece
um valor mensal variável, calculado a partir do rateio, entre todos os usuários, dos custos dos
sinistros cobertos pela entidade naquele mês.
Eu consegui achar um segurozinho tipo cooperativa, entendeu? Então ficou bemmais em conta. Eu pagava acho que R$ 170 e pouco por mês, cara. (Sr. Cerato, 31).
Acabei fazendo (o seguro) por uma cooperativa, né? Esses que tem aí muito decooperativa hoje em dia. (...) É todo mês, o ano inteiro. A parcela, ela variava... àsvezes a gente pagava, vamos botar assim, R$ 120, no outro mês a gente pagava R$130. (Sr. Celta, 45).
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Eu achei um (seguro) agora que tem uma outra forma de organização que eu achointeressante, porque é uma cooperativa e você paga mensal contínuo. (...) Porexemplo, ele tem lá mil carros e os mil, eles fazem um rateio por mês. (...) Então temmês que eu pago 160, tem mês que eu pago... por exemplo, o mês que houve menossinistro eu pago R$ 120. (Sr. Siena, 40).
Ainda que os discursos acima considerem essa proteção veicular um "achado",
principalmente em função do custo mais baixo que o seguro convencional, tal percepção está
longe de ser uma unanimidade. Outros relatos qualificam tais serviços como não estando entre
os "melhores", como não sendo "seguro mesmo" ou até como incapazes de "dar a mesma
segurança". Essa falta de confiança pode tanto gerar receio de "não saber como seria", no caso
de necessidade de acionar efetivamente o serviço, quanto ocasionar a migração para o seguro
padrão, mesmo sendo mais caro.
O seguro a gente fazia seguros sempre melhores. A gente já teve Porto Seguro, játeve Unibanco. Agora a gente faz um seguro que é de uma associação. Graças aDeus, a gente não precisou usar. E eu não sei como seria, porque eu acho que nãocobre muita coisa, não. Porque ele é muito barato, ele é R$ 180, R$ 170, por mês.(Sra. Siena, 41).
O seguro ano passado... Eu comecei com uma cooperativa, mas aí eu não vi tantasegurança e eu fiz um seguro mesmo. (...) Todos os orçamentos acabaram elevandomuito o valor, mas é uma coisa que a gente tem que pagar porque a gente tem que sesentir seguro. (Sra. Palio I, 31).
A gente pensou até em não fazer na hora de renovar, a gente pensou fazer aqueleoutro, ele que me explica, que é de consórcio, que é mais barato, mas ele ficou commedo de não dar a mesma segurança. (Sra. Symbol, 29).
Quando é estabelecida uma situação de "ter que pagar" determinado custo do carro
para o qual o orçamento doméstico não foi adequadamente preparado, como é o caso do
seguro para a Sra. Palio I, as famílias pesquisadas parecem se ver obrigadas a fazer trade-offs
ou "abrir mão" de algo. Como seus orçamentos aparentam estar "no limite", acaba sendo
necessário negociar outros itens de consumo eventualmente com níveis de importância
similares ao do automóvel.Tal circunstância, como consequência da falta de planejamento, pode fazer com que
algumas famílias se sintam "machucadas" ou "passando aperto", por verem custos próprios do
carro disputando espaço no orçamento doméstico com despesas relativas a outros itens
importantes, como a casa, a escola dos filhos e o lazer:
No início do ano tem a escola, tem material, que também não é barato (...) IPTU...Mesmo sendo dividido (o IPVA), acaba pesando. Então quando junta isso tudo emum, dois meses, que são no inicio do ano, machuca. (Sra. Cerato, 29).
Porque você só pode parcelar o IPVA em três parcelas. (...) São três meses que você passa apertado, ainda mais que é um mês que cai matrícula, que tem que pagar ummonte de coisas, material escolar e fica o "Ó". (Sra. Classe A, 31).
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Tudo (mudou). Muitas coisas ficaram pendentes, né. (...) Minha pintura de casa,minha reforma de um banheiro. (...) Então nessas coisas o carro atrapalhou muito,até hoje eu não consegui. (Sra. Turin, 44).
Tem a luz, você tem que economizar na luz. (...) "Ah, tem uma viagem". Geralmente
o pessoal viaja, não vou com a família porque esse dinheiro... Então você acabatendo que abrir mão de outras coisas para poder arcar com a responsabilidade. (Sra.Palio I, 31).
Quando fazia um passeio... hotel fazenda, a gente ia lá com o pacote completo, comestadia, com a grana que a gente tinha que separar lá pra tomar uma cerveja. (...) Agente fazia um passeio, dois, por ano. Hoje já tem um tempo que a gente não faz um passeio assim. (Sr. Siena, 40).
A gente todo final de semana ia para shopping, para teatro, não tem como. Impactousim, lazer impactou. (Sra. Palio II, 32).
De forma diversa, outras famílias parecem ter percebido nessa necessidade de fazer
ajustes no orçamento uma oportunidade para rever sua "maneira de ser". O carro, nesse acaso,
aparenta ter "ajudado bastante" para a busca de um comportamento de consumo mais
consciente, para o corte de "supérfluos" e "besteiras":
A gente também mudou nossa maneira de ser. (...) A gente ia no mercado, a gentecomprava mil e uma besteiras. (...) Então o carro em si ele ajudou a gente a enxugarmais essa parte do mercado, a comprar mais o necessário. O supérfluo era só mesmo pro filho, né, porque era adolescente na época, essas coisas todas, mas o restanteenxugamos bastante isso daí, ajudou bastante. (Sr. Celta, 45).
Ir para um supermercado... eu chegava na prateleira e saía pegando diversas coisasque não eram tão necessárias. (Agora falo) "Isso não vou levar porque tenho que pagar a prestação". (Sra. Mégane, 44).
4.3.3 Influência de imprevistos no orçamento das famílias
A despeito de todas essas demonstrações de como os custos relativos ao carro
afetaram seu orçamento e cotidiano, as famílias estudadas não admitem em seus relatos que as
lacunas observadas no planejamento de seus gastos estão relacionadas aos problemas de
pagamento enfrentados após a aquisição do automóvel. Tanto para as famílias que admitem"só ter pensado na parcela" quanto para as que afirmam "já ter visto tudo" antes da compra do
carro, as estratégias que precisaram ser adotadas para tentar controlar o orçamento após essa
aquisição eram e permaneceriam válidas e suficientes para realizar o pagamento dos custos
relativos ao veículo continuamente.
O conjunto dos entrevistados fala, de uma forma geral, que seus problemas financeiros
fugiram ao controle por causa da ocorrência de fatos imprevistos graves, que ou reduziram a
renda (p. ex., perda do emprego) ou trouxeram um gasto excepcional e prioritário (p. ex.,urgência médica de parente). Em outras palavras, as famílias entrevistadas não percebem ou
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não assumem as suas falhas de planejamento, o seu orçamento "estourado" nem o risco a que
estavam expostas em virtude do endividamento contraído a partir da compra do automóvel. A
tendência de atribuir a eventos alheios e inesperados a incapacidade de pagamento posterior
será abordada a seguir.
4.4 O ENDIVIDAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE BENS
O reconhecimento da aquisição de bens que sinalizam uma boa vida como condição
indispensável à participação na cultura de consumo contemporânea é importante para a
compreensão da preponderância do endividamento como mecanismo de compra, uma vez que
o crédito torna imediato o acesso a marcadores de consumo cuja obtenção, de outra forma,
seria mais difícil para muitos consumidores (BERNTHAL, CROCKETT e ROSE, 2005;
COHEN, 2007; HILL, 1994; LIVINGSTONE e LUNT, 1992; MENDOZA e PRACEJUS,
1997). Dessa forma, a presente seção procura trazer percepções dos entrevistados sobre o
expediente de contrair dívida para o consumo. Além disso, busca identificar circunstâncias e
condições referentes ao financiamento do automóvel da família, para entender sua influência
no surgimento das dificuldades de pagamento.
4.4.1 Parcelamento como rotina
Assim como, para Lea, Webley e Levine (1993), estar em débito se tornou um modo
de vida, para os entrevistados, de uma forma geral, o endividamento para o consumo é tido
por uma "prática normal", uma "cultura brasileira", um "vício" ou uma "mentalidade"
aparentemente reforçada pela constante exposição midiática. Isto é, parece estar internalizada
a ideia de que, se o valor de um bem extrapola o orçamento mensal, a solução para a sua
aquisição deve ser o parcelamento, e não poupar dinheiro para comprar à vista, porque isto
"ninguém consegue" e "não é o costume".
(Compra-se eletrodoméstico financiado) por não ter condições de comprar à vista,que é o normal, né. (...) Se a pessoa estiver dentro de um orçamento, (...) vale a penafinanciar, nada de extraordinário, não. (Sr. Fox, 33).
É uma prática, né? Já é uma cultura nossa do Brasil, ninguém junta dinheiro pracomprar. Se endivida e compra. (Sr. Turin, 49).
Pagar à vista é muito difícil, não tem como pagar à vista hoje, você já tem que pagaro aluguel, pagar comida. Então, para não ultrapassar (o que você possa pagar nomês), as outras coisas têm que ser parceladas. (...) Eu acho que é cultural mesmo,
poucas pessoas têm o costume de guardar dinheiro. (Sra. Classe A, 31).
Eu acho que a pessoa acaba parcelando por vício. (Sra. Symbol, 29).
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Eu acho que a maioria das pessoas hoje tem bem isso (comprar eletrodomésticos parcelados) em mente, né, de acordo com o que eles veem na televisão. (Sra. Fox,33).
Não tem como comprar à vista. Não dá, não dá pra comprar à vista. (...) Chegar no
seu pagamento e no ato, a pessoa de hoje, assalariada, não consegue. (Sra. Turin,44).
O cara tem que ganhar muito e ter uma sobra grande para no final ter alguma coisaguardada (que permita comprar à vista). (Sr. Classe A, 47).
Como se pode observar nos relatos acima, o pagamento à vista parece estar muito
relacionado com uma disponibilidade imediata e suficiente de dinheiro. Então, para o grupo
de entrevistados, duas condições precisariam ser atendidas para a ocorrência dessa forma de
pagamento: uma renda que comportasse o valor integral do bem e o não comprometimento
prévio da mesma com outros gastos. Ter essas condições em mente contribui para o
entendimento da normalidade com que as famílias pesquisadas encaram o endividamento
como meio de consumo. Primeiro, porque não são poucos os objetos de desejo cujo valor
pode superar o poder de compra mensal desses consumidores, como eletrodomésticos,
eletrônicos, mobiliário de casa e o próprio carro. Segundo, porque os casais estudados
reportam que a renda da família é rapidamente consumida com as despesas do dia-a-dia.
Talvez seja essa a razão de comprar um bem à vista após juntar o dinheiro necessário
por algum período de tempo ser uma possibilidade raramente cogitada e, quando tanto,
atribuída a famílias "organizadas", "pacientes" ou "com pulso firme", não pertencentes ao
grupo de convivência dos entrevistados.
Acho que à vista só realmente aquela família que é muito organizada e consegueguardar aquele dinheiro, o que também é difícil. Tem (família assim), mas é difícil.(Sra. Cerato, 29).
Hoje em dia, pra você comprar à vista, você tem que ficar esperando aí de dois a trêsmeses, aqueles que têm cabeça e paciência de guardar um pedaço de dois, de três a
seis meses, pra poder chegar lá e comprar algo à vista. (Sra. Turin, 44).Só quem tem muito pulso firme que compra à vista (...) Compra à vista é (pra) quemtem aquela mentalidade "eu vou juntar até eu ter o dinheiro pra comprar à vista, atéter o desconto" e dificilmente... eu não convivo com ninguém que tenha esse pensamento, eu não conheço ninguém que consiga fazer isso. (Sra. Classe A, 31).
Nos testemunhos acima, é possível identificar dois fatores internos ou
comportamentais que aparentam reforçar o aspecto de naturalidade do consumo via
endividamento: a dificuldade de juntar dinheiro e o imediatismo do consumo. A julgar pelos
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relatos a seguir, não seria exagero dizer que o primeiro fator é bem ilustrado pelo famoso
verso "dinheiro na mão é vendaval"23:
É difícil (guardar dinheiro) porque não se dá, não tem como. Você está com dinheiro
na mão e você só tem aquele dinheiro quando está na sua mão. Se você abriu a mão,você não tem mais dinheiro. (...) E olha que eu sou meia (mão fechada)... mas, hojeem dia, se meu pagamento durar cinco dias, é muitíssimo, é muita coisa. Deve serum feriado com tudo fechado, caso contrário, não dura. (Sra. Turin, 44).
O dinheiro na mão não fica. (...) Se você não gastar numa coisa que você quer, vocênão vai ver onde foi parar o dinheiro. (Sr. Classe A, 47).
Um dia você tem R$ 1.800, no outro você não tem R$ 180. (Sr. Turin, 49).
Assim, eu sempre tive um problema seríssimo com juntar dinheiro. (...) Você fala"Pô, vamos almoçar ali no shopping hoje? Vamos lá no cinema? Eu vou gastar sóR$ 50, R$ 60 e guardo os outros R$ 100". Aí, meu amigo, vai... aí chega lá, você
gosta de alguma coisa, tem os R$ 100, você acaba comprando (risos). (Sr. Cerato,31).
É importante observar que essa incapacidade de reter dinheiro ajuda muito a explicar
porque o endividamento desponta como único recurso para a aquisição de bens cujo valor
extrapole o orçamento doméstico. Trata-se de uma "obrigação" autoimposta pelas famílias
estudadas para "não gastar futilmente" seus recursos e garantir que parte deles seja
direcionada para objetos de consumo valorizados por elas, conforme colocações abaixo:
Eu sou do seguinte pensamento: se você não fizer dívida, você não tem nada. (Sra.Classe A, 31).
Coisas que custam mais de R$ 1.000, por exemplo, para mim é só financiado. (...)(A parcela é como se fosse) uma obrigação, exatamente. Às vezes, você segura umgasto aqui e outro ali para focar naquilo. Muitas vezes, você gasta futilmente, nemnota que gastou o dinheiro e não teve proveito quase nenhum. (Sr. Classe A, 47).
Você sabe que, tipo assim, vai fazer um financiamento, você vai pagar R$ 200 pormês daquele financiamento. Só que, se você não fizer a compra, você não consegueguardar aqueles R$ 200, entendeu? (risos) Então a pessoa acaba tipo "Não, voucomprar o carnê, que eu sei que tenho condições de pagar. E o carnê, tipo assim, é aminha obrigação, não tem como fugir". Agora tu pegar do teu pagamento e guardar
R$ 200 é bem mais difícil. (...) Por isso que eu acho mais fácil assim, entre aspas,quando você tem ali a conta. Porque, pega o pagamento, a primeira coisa que vocêfaz é o quê? Separar os R$ 200, botar lá junto com a conta pra esperar o dia pra pagar. (Sr. Cerato, 31).
Eu prefiro comprar parcelado e ter aquela conta todo mês do que juntar o dinheiro ecomprar. Juntar seis meses um dinheiro e comprar um bem, eu nunca consigo fazerisso. (...) Porque eu gasto com outras coisas. (Sra. Siena, 41).
Como se pode observar, "poupar vs. gastar" não é o conflito presente na fala dos
entrevistados. Em seu lugar, aparece um conflito relativo ao "como gastar" ou "em que
gastar", o que aponta para algum grau de incoerência no discurso da incapacidade de guardar
23 Verso da música "Pecado Capital", lançada em 1974 pelo cantor e compositor Paulinho da Viola.
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dinheiro, já que o parcelamento implica "segurar outros gastos" ou "separar parte do
dinheiro". Tal situação remete ao conceito de "poupança invertida", que aparece no estudo de
Brusky e Fortuna (2002) e se refere justamente à capacidade de fazer sobrar dinheiro quando
preciso (ou quando se quer), para o pagamento de prestações e juros. Assim, considerar o
pagamento parcelado como uma espécie de poupança, isto é, "fazer dívida para ter alguma
coisa" parece servir como mecanismo para diminuir nos entrevistados a dissonância cognitiva
em relação à sua escolha de não guardar dinheiro.
4.4.2 Planejando o presente
O segundo fator de natureza interna a contribuir para a normalidade do consumo por
meio do endividamento – o imediatismo – já havia sido identificado por Livingstone e Lunt
(1992) como um dos motivos para devedores manterem certa atitude favorável ao crédito e ao
débito, especialmente pela possibilidade de acesso imediato a bens cuja compra, de outra
forma, teria de ser adiada. Bernthal, Crockett e Rose (2005), ao estudar práticas relacionadas
ao cartão de crédito, também haviam chegado à conclusão de que uma inabilidade de
apresentar autocontrole (isto é, de negar ou postergar a gratificação que acompanha a
aquisição e o consumo) pode conduzir o indivíduo para a "prisão do devedor", denominação
dada pelos autores para uma vida caracterizada pelo enfrentamento das propriedadesconfinantes da acumulação de dívidas. De fato, essa vontade de antecipar o consumo aparece
nas entrevistas:
(Recorre-se ao financiamento) Por causa do imediatismo, ninguém quer comprarnada pra esperar pra receber. Faria um consórcio... "Olha, mas daqui a sessentameses eu te dou o carro". "Não, daqui a sessenta meses eu posso ter morrido". (Sr.Turin, 49).
Eu acho isso (tentar juntar uma grana e depois comprar à vista) um pouco difícil, as pessoas gostam das coisas muito ligeiras, entendeu? (Sr. Siena, 40).
(Poupar para depois comprar o bem) Acho bem difícil, cara. No meu caso, acho bemdifícil. Porque é uma renda... é muito tempo, cara. Muito tempo. (Sr. Cerato, 31).
Hoje acho que a facilidade e o imediatismo que você tem de ter alguns bens, achoque faz com que você, ao invés de comprar só a geladeira nesse momento, vocêtroque geladeira, fogão e mais alguma outra coisa e parcele isso à frente. (Sr.Symbol, 34).
Um terceiro fator, de ordem externa, a atuar em favor da naturalidade com que o
endividamento para o consumo é percebido é o crédito facilmente acessível, que já havia sido
apontado por Dessart e Kuylen (1986) como contribuinte para o problema da dívida:
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Hoje em dia o normal é você ter (produtos financiados). Até pela facilidade que vocêvai nas lojas aí de eletrodomésticos e tudo mais. (Sr. Cerato, 31).
(Compram eletrodomésticos financiados) Porque hoje a facilidade da compra, ela égrande. (Sr. Fox, 33).
Pela facilidade hoje de crédito, entendeu? Hoje tem essa facilidade de crédito. Então, pela facilidade de crédito, o cara com o nome limpo, só com a identidade, elecompra praticamente qualquer coisa pra dentro de casa. (Sr. Siena, 40).
Porque hoje em dia não é difícil você abrir uma linha de crédito para tirar umveículo. (Sr. Turin, 49).
Se "muita organização", "paciência" e "pulso firme", que poderiam funcionar como
soluções para os dois primeiros fatores – dificuldade de juntar dinheiro e imediatismo do
consumo – , já aparentam ser esforços de difícil empreendimento ou pertencentes à realidade
de outras famílias, pode-se imaginar quão complicado seria para o conjunto de entrevistados
oferecer resistência ao crédito fácil, cuja oferta está sob o controle de um elemento estranho.
Com efeito, a facilidade de crédito parece alimentar a compreensão de que é perfeitamente
possível o acesso imediato a bens sem a necessidade de acúmulo prévio de recursos. Dessa
forma, o caráter de naturalidade do crédito se torna sólido ao ponto de alguma restrição ou
recusa na sua concessão ocasionar a busca de métodos alternativos para garanti-lo. Destacam-
se nesse ponto negociações envolvendo o "nome", significando acesso ao crédito
(MATTOSO e ROCHA, 2005): caso a renda não seja suficiente para conseguir o crédito
pretendido, pode-se "pegar emprestado o nome"24 de alguém com renda compatível; caso um
cônjuge esteja com o "nome sujo", o esperado é que aquele com "nome livre" assuma a
responsabilidade contratual pela dívida.
Quem assinou o contrato foi a minha cunhada. (...) Porque na época o meu ganhonão dava para comprar o carro, o banco não liberava. A minha cunhada tem umasituação bem melhor e ela o banco já passou direto. (Sr. Mégane, 46).
(No dia da compra) Fui eu, minha esposa, meu filho e minha sogra, até porque eucomprei no nome dela, porque meu nome estava inadimplente. (Sr. Siena, 40).
Como ele era taxista, toda a burocracia que eles pediam, para ele iria ser muito maisdifícil. Então no meu nome foi muito mais fácil. (Sra. Cerato, 29).
(O negócio foi fechado no nome) Do meu marido. (...) Na verdade eu não podia ternada no meu nome porque eu estava com o nome sujo e eu não tinha rendasuficiente. (Sra. Classe A, 31).
Tudo no meu nome. É questão de renda, né... a minha renda era compatível com oque a financeira precisava pra provar. E foi o quê? Nome livre, né... ele com o nomesujo, eu com o nome limpo. (Sra. Palio II, 32).
24 De acordo com Mattoso e Rocha (2005), "emprestar o nome" consiste em abrir um crediário ou usar o cartãode crédito para fazer as compras de outra pessoa, ficando esta responsável pelos pagamentos na ocasião ouocasiões previstas.
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Embora a percepção de facilidade a respeito do acesso ao crédito seja a habitual entre
os entrevistados e a ocorrência de uma eventual restrição aparente poder ser contornada sem
maiores dificuldades, é possível identificar uma visão destoante e talvez mais realista. O
discurso da Sra. Turin parece indicar que a obtenção do crédito, pelo menos o de alto valor, é
percebida como o feito de um "campeão", que não fica "à espera" de uma oferta, mas antes
demonstra coragem para "meter a bifa" e passar pelos "processos" necessários, superando
toda "burocracia" ativamente. Dessa forma, ela foi a única a falar da dificuldade de obter
crédito, ao mesmo tempo em que coloca aquele que o obtém como heroico lutador.
Porque, assim, eu digo que o brasileiro, ele nunca tem vez, ele fica sempre na esperade algo. Então quando um chega e mete a bifa mesmo e fala "Eu vou comprar, é issoque eu quero" e quando eles conseguem isso, é muito bom. Até mesmo por causa da
burocracia que se tem hoje de comprar algo de tanto valor. É tanto processo quevocê passa, é tanto isso, é tanto aquilo que, quando você passa por isso tudo, "Pô, jásou campeão". (Sra. Turin, 44).
Ressalvado esse relato diferenciado, o teor geral das entrevistas parece indicar uma
complementaridade na forma com que os três fatores citados – dificuldade de juntar dinheiro,
imediatismo do consumo e facilidade de crédito – atuam em prol do endividamento das
famílias pesquisadas. Contudo, estar endividado per se não implica encontrar-se em apuros
para honrar os compromissos no futuro. Daí a importância de se entender que aspectos da
utilização desse expediente para a aquisição de bens podem favorecer o surgimento dedificuldades de pagamento.
Grosso modo, a compra financiada de um objeto de consumo envolve quatro
elementos – preço do bem, taxa de juros, prazo de pagamento e valor da prestação. Não
obstante, os testemunhos referentes à aquisição do carro aparentam sinalizar um foco maior
no último, em detrimento dos demais.
4.4.3 A dívida que "cabe no bolso"
Nos relatos das circunstâncias do financiamento, menções ao valor do automóvel, aos
juros cobrados e aos anos de pagamento praticamente não aparecem, sugerindo que são
informações pouco relevantes nas decisões dos entrevistados, em relação ao que de fato
interessa: de quanto será a parcela mensal e se ela parece ser razoável no orçamento
individual ou da família.
Já tinha dado uma estudada para ver quanto fica a parcela e tal. (...) Mas foi o valor
da parcela (que foi decisivo para a compra). (Sr. Cerato, 31).
Eu acho que foi mais isso que eu te falei da parcela. (...) foi isso que foi decisivo porque o carro a gente queria de qualquer forma. (Sra. Cerato, 29).
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Foi em 72 vezes e o valor (da parcela) a gente já tinha conversado sobre o valor jáantes. Tinha que ser até aquele valor. Se fosse a mais, não poderia aceitar. (...) Foi(ser até aquele valor que determinou o número de vezes) porque só dava para pagaraquele valor. (Sra. Fox, 33).
Eu não podia passar de R$ 1.100, não. (...) (Foram) sessenta vezes, pra chegar nessevalor de prestação. (Se tivesse que ser em mais vezes pra chegar nesse valor), euteria feito. (O foco era) no valor da parcela. Porque os juros sempre vão estarabusivos, não tem jeito. (Sr. Turin, 49).
Esse desequilíbrio na atenção dada aos elementos do financiamento tem alguns
desdobramentos que podem ajudar no entendimento de como as famílias estudadas atingiram
o estado de inadimplência. Os depoimentos sugerem, por exemplo, que subjacente a essa
preponderância do valor da parcela no financiamento do automóvel está a preocupação de que
a mesma "caiba no orçamento". É possível dizer, portanto, que aquelas condições desuficiência de renda e de seu não comprometimento prévio, mencionadas como necessárias
para o pagamento à vista, também estão presentes de certa forma no pagamento parcelado: o
valor da prestação do carro passa a ser um custo fixo mensal que precisa ser integralmente
comportado pela renda e pago antes de esta ser consumida de outra maneira.
Nesse contexto, qualquer inconsistência que as famílias pesquisadas apresentassem
com relação a uma ou outra condição poderia deflagrar dificuldades para pagamento do
financiamento do veículo, risco esse ampliado pela reduzida atenção dada ao prazo de pagamento. Com efeito, todos os casos estudados apresentavam financiamentos com duração
igual ou superior a 48 meses e, como observado na fala de alguns entrevistados, esses prazos
poderiam ser ainda maiores, se necessário para se chegar ao valor de prestação concebido para
caber no orçamento. Logo, a ausência de garantias de que a suficiência de renda seria mantida
até o final do contrato e de que a família estaria imune a ocorrências que comprometessem os
recursos programados para o carro configuraria uma situação de exposição a problemas de
pagamento, exposição essa que cresceria com o horizonte de tempo dos financiamentos
contratados.
Ainda a respeito desse destaque da parcela como chamariz do consumo via
endividamento, merece atenção um aspecto interessante e que apareceu em alguns
testemunhos sobre a incapacidade de pagamento, que é o "desejo de parcelar a parcela". Esse
desejo parece ser mais um indicador do quão profundamente está estabelecida a "cultura do
parcelamento" ou do endividamento para o consumo. Como dito, para as famílias estudadas, o
pagamento da prestação do carro parece se revestir das características de um pagamento àvista, que demanda uma renda compatível e disponível para sua liquidação integral. Se essas
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condições deixam de ser atendidas em algum momento e o valor da parcela passa a extrapolar
o orçamento mensal, é razoável esperar a mesma solução que os entrevistados entendem
como natural para situações desse tipo, isto é, o parcelamento:
Eu acho que a prestação é mais difícil de pagar porque a prestação você não pode parcelar uma prestação, entendeu? Você tem que ter ou o dinheiro todo e paga ouvocê vai pagando juros, juros até embolar a conta.(...) IPVA parece, acredito eu, que pode ser parcelado, o seguro também eu acredito que pode ser parcelado. (...) Mas a prestação em si não tem como. (Sra. Turin, 44).
Ah, só a prestação do carro mesmo (que é mais complicado de pagar), que é pesada.A prestação, R$ 1.700. O resto dá para você levar tranquilo. IPVA você pode parcelar, multa também. (Sr. Cerato, 31).
Uma vez abordados esses desdobramentos da primazia que os entrevistados dão ao
valor da prestação, cabe averiguar o nível de atendimento das condições de suficiência edisponibilidade de renda, necessárias para o pagamento normal do financiamento do veículo.
Como visto na seção que tratou dos significados e sentimentos associados ao automóvel, para
o grupo de entrevistados, a compra financiada desse bem costuma registrar uma evolução da
circunstância econômico-financeira da família. Logo, seria normal esperar que o atendimento
da primeira condição de compatibilidade entre renda e valor da parcela fosse, de fato, um
cuidado das famílias. Entretanto, as entrevistas parecem indicar que tal preocupação restringe-
se à observação desse requisito pela ocasião da compra, no sentido de que conseguir pagar a prestação naquele momento sinaliza que essa capacidade estará mantida no futuro. Em outras
palavras, os entrevistados parecem não considerar a possibilidade de ocorrência de
contratempos que afetem a renda, tais como desemprego ou problemas de saúde, no horizonte
de tempo do financiamento:
A gente estava estabilizado, tanto eu quanto ela num serviço legal, entendeu? Tinhacondições para isso e eu dei a ideia (de comprar o carro). (...) O problema nosso,assim, não foi a falta de planejamento não, foi que a vida deu uma reviravolta, elasaiu do trabalho dela e eu praticamente saí do meu, aí foi quando desandou tudo. (Sr.
Cerato, 31).
A gente vive meio que pelo momento, entendeu? A gente não previu isso deacontecer, senão a gente tinha feito uma reserva, tinha enxugado alguma coisa. (...)Então a gente não se programou muito assim pra essas emergências. (Sr. Siena, 40).
Faz sete meses que a gente parou de pagar, foi porque eu fiquei desempregada. (...)eu acho que o que aconteceu foi um imprevisto. (Sra. Classe A, 31).
O que aconteceu com a família foi que (...) tivemos o problema de doença, que nãotinha o tal da reserva que eu até falei na (família) Ferreira (...). Aí, quer dizer, correutudo pra lá e foi que começou a dar o problema dos atrasos. (Sra. Celta, 43).
Eu era bem empregada, eu tinha um salário muito bom e eu fui mandada embora,não estava esperando. Então eu tive que parar de pagar o carro, não tinha comomanter. (Sra. Palio II, 32).
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Primeiro foi um sobrinho meu, que meu irmão estava desempregado, e ele precisoufazer uma cirurgia e ele não tinha condições e eu abri mão do que tinha no momento pra poder auxiliá-lo. (...) E logo duas semanas depois a minha sogra também precisou passar por uma cirurgia emergencial que também a gente (ajudou)... oneroumedicação, onerou internação e tudo mais. (Sr. Symbol, 34).
Já a segunda condição, de não comprometimento da renda com outros gastos, torna-se
particularmente problemática em função da já citada incapacidade de guardar dinheiro das
famílias estudadas. Como visto, essa característica pode favorecer a aquisição de bens via
endividamento e, caso ocorram novas compras financiadas antes da conclusão do pagamento
de anteriores, haverá uma sobreposição de compromissos. Essa situação sozinha não
configurará um problema, se o somatório dos valores a pagar for abrigado pela renda familiar.
Todavia, é perceptível nas entrevistas o reconhecimento de um potencial de risco no acúmulo
de prestações, que apareceu de forma mais pronunciada nos exercícios projetivos, ou seja,
situações de descontrole com parcelas foram atribuídas a "outros":
Eles podem agora estar apertados pra conseguir pagar (o financiamento do carro).(...) De repente, fizeram outras compras, né? Compraram outras coisas e ficou muitacoisa para pagar. E agora está enrolado. (Sra. Fox, 33).
(Considerando que estão) pagando muitas parcelas, ainda não. Ainda não estão planejando, não (comprar um carro). (...) Fica muita parcela. (Sra. Cerato, 29).
(A família) pode até estar planejando comprar o carro, mas primeiro está vendo esse
lado da casa, né. Porque, se você for juntar as duas coisas, aí fica difícil, você nãoconsegue nem fazer uma coisa e nem outra. (Sr. Celta, 45).
Beleza, comprou (o carro). Mas o risco de acumular parcelas... e, quando acumula,os juros é grande. E pra você tentar reverter essa situação é complicado, ele corre umrisco aí de devolver esse carro. (Sr. Siena, 40).
Quando perguntados diretamente sobre a existência de outras compras parceladas pela
ocasião da compra do carro ou do surgimento das dificuldades de pagamento, o grupo de
entrevistados raramente respondeu afirmativamente. Mais que isso, quando indagados se o
pagamento de outros compromissos dificultou a liquidação da prestação do automóvel ouvice-versa, a resposta habitual foi de a interferência ser nula. De uma forma geral, as famílias
pesquisadas atribuem a dificuldade de pagamento ao advento de uma situação imprevista
grave, como as relatadas anteriormente, que ou reduziram a renda (p. ex., perda do emprego)
ou trouxeram um gasto excepcional e prioritário (p. ex., urgência médica de parente). Até
mesmo o Sr. Celta, que é um dos poucos entrevistados a reconhecer abertamente falhas no
planejamento para a aquisição do carro, acredita que não teria enfrentado problemas se
mantidas as condições salariais da época da compra:
Uma família regradazinha, direitinha, ela compra (financiado) mais o essencial, né.Ela não vai fazer que nem eu fiz, a gente fez na época né, comprar o carro e sair
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comprando um montão de coisa, depois que fomos ver o orçamento, entendeu? (...)A gente, na verdade, quando fez as contas, a gente esqueceu da Leader.Esquecemos, mas esquecimento mesmo. A empolgação do carro fez esqueceralgumas coisas. (...) Tinha também na época também a escola do garoto. A gentenão planejou tudo assim e depois de um tempo que nós fomos ver. Foi o que
aconteceu. As horas extras terminaram, cortaram as horas extras. É isso aí queacabou... (Se tivesse continuado com as horas extras) teria dado tranquilo.Tranquilo. (Sr. Celta, 45).
Vale dizer que essa tendência apresentada pelas famílias estudadas de responsabilizar
grandes eventos alheios à sua vontade pela circunstância adversa em que se encontram indica
um locus de controle25 externo. Tal característica, aliada à normalidade com que os
entrevistados percebem o hábito de endividar-se, parece complementar os achados do estudo
de Dessart e Kuylen (1986). De acordo com os autores, uma variável individual que
desfavorece a predisposição ao endividamento é o locus de controle interno, ou seja, umentendimento de que os acontecimentos são influenciados pelo próprio comportamento.
Como se pode observar, as duas condições necessárias para que o pagamento do
financiamento do automóvel ocorresse sem percalços – suficiência e disponibilidade de renda
– não aparentam estar muito consolidadas nas aquisições efetuadas pelo grupo de
entrevistados. A preocupação com o atendimento da primeira condição parece restringir-se ao
momento da compra, mesmo a suficiência de renda sendo imprescindível por toda a vigência
do contrato. Se a família entende que em determinada circunstância a prestação do carro cabe
no seu orçamento, parece haver justificativa suficiente para se "tentar" a compra ou "achar
que dá para pagar" o financiamento do começo ao fim.
No que diz respeito à observação da segunda condição, se as entrevistas não permitem
concluir que a disponibilidade de recursos para o pagamento do carro foi afetada pela
sobreposição de outras compras financiadas, elas revelam, pelo menos, quão sensível essa
disponibilidade pode ser ao surgimento de gastos excepcionais. Tal situação pode sugerir que
o orçamento da família, com a prestação do automóvel, esteja no limite, sem muita margem
de manobra, conforme testemunho a seguir. Nesse caso, ficaria reforçada a compreensão de
que o atendimento da condição de suficiência de renda não existe para alguns dos
entrevistados.
Porque meio que a gente está no limite. A gente faz meio que "Sobrou uma grana?Então vamos passear, vamos viver o momento". (Sr. Siena, 40).
Por outro lado, é possível imaginar que a já mencionada incapacidade de os casais
estudados juntarem dinheiro amplifica essa sensibilidade dos recursos destinados ao veículo,
25 Ver nota 10, à pág. 50.
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expondo a família a um duplo problema: como não conseguem poupar, não possuem reserva
para emergências; como não existe poupança, precisam utilizar os recursos disponíveis para
cobrir as despesas extraordinárias, o que não raro implica cessar o pagamento do carro. Nesse
contexto, apesar de a tendência geral dos entrevistados ser não perceber os eventos como
dependentes do seu próprio comportamento, é possível identificar manifestações
reconhecendo que algum grau de previdência poderia mitigar os impactos do "inevitável",
como a seguinte:
O que eu faria diferente seria não em relação ao carro, mas em relação a outrascoisas. Não abriria mão de ter um mínimo de reserva possível porque tem coisa queé inevitável. A gente não está livre do que possa acontecer. (Sr. Symbol, 34).
4.5 DIFICULDADES DE PAGAMENTO: SIGNIFICADOS, SENTIMENTOS EENFRENTAMENTO
A falta de recursos financeiros pode restringir práticas de consumo constituidoras da
identidade familiar, inclusive levando a uma redefinição forçada da mesma (EPP e PRICE,
2008). Dessa forma, torna-se importante compreender rupturas e mudanças na identidade da
família ocasionadas não somente pela deterioração de sua situação financeira, mas também
pelas maneiras encontradas para enfrentar os desafios desse momento (BOLEA, 2000 apud
EPP e PRICE, 2008). A partir desses entendimentos, esta seção procura identificarsignificados e sentimentos desencadeados pela incapacidade de pagamento do financiamento
do carro, de forma a compreender como o estado de inadimplência pode conduzir a família a
uma nova realidade ou mesmo uma nova identidade. Além disso, serão abordadas as
estratégias utilizadas pelas famílias entrevistadas para o enfrentamento da circunstância
adversa.
4.5.1 O endividamento internalizado
A aquisição do automóvel procura sinalizar uma ascensão da família na hierarquia
social e costuma ser percebida como uma conquista, geralmente acompanhada por
sentimentos positivos de satisfação, felicidade e orgulho. As entrevistas sugerem, porém, que
a incapacidade de pagar a dívida contraída para obter o veículo suscita significados e
sentimentos quase opostos, indicando a suspensão daquele movimento evolutivo ou um
retrocesso. Se adquirir o carro tem o valor de vitória ou de realização de um sonho, não
conseguir pagá-lo significa "fracasso", "desengano" e "decepção", usualmente acompanhadosde reações como "tristeza", "frustração", "depressão" e "preocupação":
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Tristeza total. É... sinto... (tempo refletindo) acho que até é um pouco de exagero,mas é o que às vezes eu sinto, parece que eu fracassei, entendeu? (Sra. Cerato, 29).
Tristeza... tristeza. Frustrado. Uma coisa que você achou que tinha realizado, que naverdade não aconteceu, durou pouquíssimo. (Sr. Cerato, 31).
Eu sinto uma tristeza profunda, uma depressão que eu falo "Caramba, cara... seismeses atrás eu estava com meu carro na boa" e agora não poder mais andar com ocarro é bem decepcionante assim. (...) Eu fico chateada de às vezes você não dormire pensar "Caramba, o que eu vou fazer para resolver?" É um incômodo, né, todo diavocê tem de falar "Eu tenho que dar um jeito e não foi hoje que eu arrumei asolução". (Sra. Classe A, 31).
Rapaz, eu vou te confessar... Eu nem durmo direito. Não durmo. (...) Quando eu vejoaquilo que eu não tenho condições de pagar, aquilo me assusta, aquilo me preocupa.(Sr. Fox, 33).
Embora pareça haver certa lógica nessa oposição entre os significados e sentimentos
associados à aquisição do carro e aqueles vinculados à incapacidade de saldá-lo, é preciso
registrar a presença de algum nível de incoerência no discurso dos entrevistados. As famílias
estudadas aparentam apresentar um locus de controle26 externo, que se traduz pelo não
reconhecimento da própria responsabilidade no infortúnio financeiro vivido. Portanto, se a
tendência entre elas é apontar grandes eventos alheios à sua vontade como causa da situação
desfavorável, não parece fazer muito sentido entenderem que fracassaram ou que falharam.
Afinal, tais percepções pressupõem um forte componente de controle interno sobre os
acontecimentos, como o "empenho" ou o "intento correto" observados nos relatos a seguir:
Numa coisa que eu me empenhei, parece que eu fracassei, apesar da culpa não tersido minha, eu não ia imaginar nunca que ia acontecer essas coisas. (Sra. Cerato,29).
Penso que eu tô errada, né. Realmente eu tô porque eu comprei para pagar e nãoestou pagando. Só que não tem como eu explicar isso a eles (credores)... do queaconteceu, não foi culpa minha também. (Sra. Fox, 33).
Essa aparente contradição relativa ao locus de controle talvez possa ser superada a
partir da interpretação de que se trata, na realidade, da expressão de uma mudança em cursona identidade de algumas famílias. De acordo com Epp e Price (2008), eventos críticos e não
planejados, como aqueles aos quais os entrevistados atribuem sua circunstância financeira
adversa (desemprego, problemas graves de saúde etc.), são capazes de estimular mudanças
imediatas na identidade familiar. Nesse caso, mesmo que as famílias pesquisadas não
admitam ou não queiram admitir qualquer culpa por terem adentrado aquela situação, é
possível que algumas delas estejam começando a manifestar uma vontade de assumir o
controle sobre o processo de saída, com diferentes graus de internalização dessa
26 Ver nota 10, à pág. 50.
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responsabilidade. Outras famílias, no entanto, aparentam ter mantido uma postura mais
passiva e esperam uma melhoria futura não necessariamente vinculada a iniciativas próprias.
Vale ressaltar que esses movimentos de "entrada" e "saída", assim como a situação de
descontrole financeiro a que se referem, parecem guardar semelhança com os seguintes
construtos do modelo teórico que Bernthal, Crockett e Rose (2005) construíram a partir de um
estudo com foco nas práticas relacionadas ao cartão de crédito: "trajetória de restrição",
"trajetória de libertação" e "prisão do devedor", respectivamente. As trajetórias remetem à
capacidade de os consumidores se aproximarem ou se distanciarem de uma vida caracterizada
pelo enfrentamento das propriedades confinantes da acumulação de dívidas, vida essa
apreendida pela metáfora da "prisão do devedor".
Assimilando a terminologia proposta por Bernthal, Crockett e Rose (2005) e
considerando a possibilidade de mudança no locus de controle, pode-se dizer que as famílias
pesquisadas apresentam três níveis distintos de internalização da responsabilidade pela
trajetória de libertação: integral, parcial e nulo. As famílias com internalização integral
parecem ter a própria imagem gravemente afetada pelo estado de inadimplência e conferir ao
processo de libertação o simbolismo de "resgate do orgulho perdido". As famílias com
internalização parcial aparentam ter sua autoimagem menos impactada pelo não cumprimento
das obrigações financeiras e atribuir ao percurso de saída o significado de "adequação a uma
realidade indesejada". Já as famílias com internalização nula, ou simplesmente sem
internalização, não parecem ver sentido em prejudicar a imagem que têm de si em virtude de
uma situação pela qual julgam não ter culpa, o que implica para a trajetória de libertação um
sentido de "esperança de um futuro melhor".
Como se pode observar, o grau de responsabilidade que as famílias entrevistadas
imputam a si próprias pela construção da trajetória de libertação aparenta depender de dois
fatores interligados: do impacto percebido da inadimplência sobre sua imagem; e dos
significados atribuídos à superação do problema. Além disso, o nível dessa internalização
parece influenciar a estratégia de enfrentamento adotada: enquanto o primeiro grupo (integral)
restringe os expedientes admissíveis para sua recuperação, o segundo grupo (parcial) não
oferece óbices aos mesmos, e o terceiro grupo (nulo) simplesmente não adota qualquer um.
4.5.2 Famílias que enfrentam, que mudam ou que adiam
O primeiro grupo de famílias, que internaliza integralmente a responsabilidade pela
trajetória de libertação, parece entender que seu estado de insolvência, mesmo provocado por
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eventos imprevistos e indesejados, em nada modifica as obrigações previamente assumidas.
Na realidade, para essas famílias, ter obrigações aparenta ser o meio normal de alcançar seus
objetivos de consumo e "pagá-las sempre em dia", motivo de orgulho, por atestar sua
capacidade de concretizar o estilo de vida almejado. Tal circunstância reporta ao "espaço de
alcance de objetivos", construto que se opõe à "prisão do devedor" no modelo de Bernthal,
Crockett e Rose (2005) e se refere justamente ao uso do crédito como viabilizador de estilos
de vida desejados. Era razoável esperar, portanto, que a perda dessa condição imprimisse nos
entrevistados desse grupo a vontade de reavê-la brevemente. De fato, é perceptível nos seus
testemunhos tanto a preocupação de enquadrar a situação desfavorável como "passageira"
quanto o desejo de "dar a volta por cima":
Eu tenho dívidas, tudo, mas tudo dentro do orçamento. O que eu tenho pra pagar,conta, tudo é dentro do orçamento. Quando vira o mês, eu vou lá, pego e pago. Tudo previsto. (...) Se for puxar o histórico, o começo, as parcelas iniciais, todas elas eram pagas rigorosamente em dia... ou até antes. Então, era tudo realmente dentro do previsto, não tinha nada assim que fosse... Era pra estar acabando agora... 72 vezes,seis anos, estaria pagando agora o último ano sem problema nenhum. Tinha que serdaquela forma. (Sr. Fox, 33).
Antes eu tinha a minha dívida com cama, mesa e banho, vamos botar assim, eusempre pagava em dia. (Sra. Turin, 44).
É passageiro. Não, é passageiro, é passageiro. Acostumado a dar (a volta por cima).
(Sr. Turin, 49).
Nesse contexto de "resgate do orgulho perdido", questões relativas ao "nome" parecem
indicar que nem todo expediente é apropriado para o empreendimento. Conforme Mattoso e
Rocha (2005), "ter nome limpo" identifica a pessoa honrada, que tem acesso a crédito e uma
situação financeira equilibrada, ao passo que o "nome sujo" indica o estado de inadimplência
e a inclusão em cadastros de maus pagadores. Dessa forma, embora reconheçam a
possibilidade de "limpar o nome" pelo decurso do tempo27 ou por meio de ações judiciais que
afrouxem as condições de pagamento acordadas, as famílias desse primeiro grupo não parecem julgar tais soluções como válidas para sanar o orgulho ferido, o que aparenta só
ocorrer quando se "entra e sai pela porta da frente", ou seja, realizando os pagamentos
"idoneamente" na forma contratada:
Não foi uma coisa inconsequente. Eu não acordei achando que "Não, vou comprarum carro porque dá para eu pagar". Não foi. (...) Eu quero pagar, sempre tive meunome limpo, entendeu? (...) O objetivo é realmente voltar ao normal. Porque eusempre tive linha de crédito, tudo. (...) Eu sempre tive o nome tranquilo, nunca tivenada... Eu nunca fui aquela pessoa que esteve sempre com nome sujo. Aconteceramesses fatos e isso fez com que eu ficasse na situação que estou hoje, mas não
27 A prescrição da dívida, assim como o prazo máximo de cadastro em órgãos de restrição de crédito, é de cincoanos, a contar a partir da data em que a dívida venceu.
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significa que eu esteja acomodado nessa situação "Ah, daqui a cinco anos limpa". Eunão tenho essa perspectiva, eu quero limpar pagando. Chegar lá no final (e dizer)"Está aqui, o valor devido é esse, vamos pagar, vamos sentar e negociar", seja lá oque for. Vou pagar e resolver o problema, mas fazer uma coisa de forma que sejaaquilo que a gente planejou, entrar e sair pela porta da frente. Eu comprei com o
intuito de pagar e vou pagar. (Sr. Fox, 33).
Eu poderia colocar na justiça por juros abusivos. (...) Mas, vem cá: quando eucomprei o carro, eu já sabia que aqueles juros não eram reais. Eu acho que asempresas de financeiras deveriam ser mais sinceras só (...), pra evitar justamente queas pessoas se sintam ludibriadas e entrem com ações e recursos contra essasempresas. (Sr. Turin, 49).
Eu me comprometi com aquilo perante a financeira, eu sabia de quanto seria, dequanto teria e sabia também do não cumprimento da minha parte o que poderiaarcar, com o que eu poderia arcar. E hoje eu acredito que seja interessante para elesque eu pague e é interessante para mim que eu fique de forma idônea com elestambém. (Sr. Symbol, 34).
Esse fazer questão de "limpar pagando" ou "voltar ao normal" observado nos relatos
acima parece indicar ainda uma forte preocupação desses entrevistados em não ver a própria
imagem associada à das "pessoas" inconsequentes ou que passam por ludibriadas, descrições
próximas ao estigma social de irresponsável e autocondescendente que Livingstone e Lunt
(1992) informam acompanhar o indivíduo cuja dívida supera a capacidade de pagamento. De
certa forma, essa repulsa à imagem de "demandante de intervenção judicial" ou "acomodado"
acaba conferindo a ambas posturas o rótulo comum de inadmissível, por não configurarem a
internalização plena da responsabilidade pela solução do problema. Todavia, as famílias cujas
atitudes se assemelham a tais posturas aparentemente têm um entendimento bem distinto
sobre sua própria situação.
O segundo grupo de famílias, por exemplo, que internaliza parcialmente a
responsabilidade pela trajetória de libertação, parece entender que a degradação da situação
financeira existente à época da aquisição do carro, como consequência de eventos alheios à
sua vontade, tem o condão de suprimir a validade das condições do financiamento contratado.
Trata-se de um entendimento de que, se o contexto de vida foi mudado por razões indesejadas
e que escapam ao seu controle, nada mais justo que adequar o compromisso assumido à nova
realidade. Desse modo, para esse segundo grupo, "pagar na forma contratada" parece ser o
correto somente na manutenção da sua capacidade de pagamento. Porém, essa pretendida
adequação, que seria a forma encontrada por essas famílias para controlar seu processo de
libertação, não é recebida como razoável pela parte credora; fica então justificado o recurso a
terceiros com poder para dirimir o conflito, no caso, os órgãos judiciários. Quanto à justiça
dessa solução, é possível encontrar testemunhos indicando tanto uma crença genuína na
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mesma quanto sua conveniência para reduzir a dissonância cognitiva em relação à falta de
disposição para arcar com as consequências previstas no contrato:
Eu botei na justiça. Eu estou depositando em juízo. Botei para baixar um pouco a
parcela. E consegui. (...) Eu vi uma advogada e nós corremos atrás com a advogadae o que acontece? Ela estudou a causa, ela viu que o carro estava com muita taxa emcima, então nós botamos na justiça e o juiz bateu o martelo: de R$ 560, ele foi paraR$ 250. (...) No final eu posso requerer todos os documentos da justiça que eudepositei fazendo uma lei do juiz, uma decisão do juiz. (...) Eu achei essa a solução justa. (Sr. Mégane, 46).
A gente também entrou (com ação) para não perder o carro. (...) Eles me ligam àsvezes, mas a intenção deles ainda é que a gente pague a parcela em atraso, só que agente não quer. Agora a gente pensa o quê? Quitar o carro. Aí a gente está juntandodinheiro, o advogado já está estipulando mais ou menos um valor para negociaçãoda gente quitar o carro. (...) Só que hoje o valor não chega a R$ 25 mil, é menor. (...)Eu não fiz uma entrega amigável porque teria salto remanescente. Então inviável
você entregar, perder o veículo e ainda ficar com uma dívida, e com meu nome sujo.(...) O certo seria eu ter pagado o financiamento. Mas como não tive condições, etambém se eu entregasse eu ia acabar perdendo o que eu já tinha dado de entrada...(Sra. Palio I, 31).
De repente na justiça ele consegue um acordo de "Oh, vamos ficar no zero a zero?Como é que tá o carro? Tá legal? Tá inteiro? Tá, eu te entrego o carro e elimino adívida". (...) Assim, não sei se seria justo para a financeira, né? (Sr. Cerato, 31).
O terceiro grupo de famílias, por sua vez, engloba aqueles casais para os quais a
ocorrência de eventos imprevistos não parece ter provocado uma mudança imediata na
identidade, pelo menos não em relação ao locus de controle. Em seus relatos, essas famíliasdão a entender que, se o seu comportamento não teve influência sobre os acontecimentos que
deflagraram a inadimplência e tampouco pôde evitá-los, não há motivo para supor que o
mesmo tenha o condão de providenciar uma solução. Isso não quer dizer que as famílias desse
terceiro grupo estejam confortáveis com a situação, mas tão somente que acreditam que o
processo de libertação depende de (e pode esperar) "tudo voltar a dar certo". Essa espécie de
"relaxamento" perante o momento vivido aparenta ainda ser alimentada por uma crença de
que não haverá um agravamento do quadro, o que pode ter relação com o fato de essasfamílias terem se aproximado bastante do final do financiamento28. Talvez haja uma sensação
de que muito esforço não será necessário, seja por entenderem que qualquer melhora na
situação financeira já baste para regularizar o pagamento, seja por se considerarem em uma
boa posição para eventuais negociações.
Até agora a gente não se mexeu muito não. (...) Eu procurei me orientar. Era final definanciamento, são dez parcelas. Então foi o que o advogado me orientou. Ele falou:"(Sra. Palio II), fica tranquila porque o banco não vai te botar na justiça, não é
28 As famílias que compõem esse grupo pagaram entre 79% e 85% do total de parcelas do financiamento. Asdemais famílias entrevistadas saldaram entre 3% e 50% da dívida.
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interessante para eles mover uma ação contra você, por causa de R$ 5 mil, pode ficartranquila". Por isso que, a partir daí, eu comecei a relaxar. (Sra. Palio II, 32).
Não adianta, não vou pagar ainda. Talvez a (Sra. Classe A) possa ter consultado. Eunão liguei ainda. Eu mesmo não procurei ainda. (Sr. Classe A, 47).
Eu pretendo pagar esse (carro) primeiro, futuramente, se tudo der certo, se agora nofinal do ano eu conseguir arrumar um emprego. (Sra. Classe A, 31).
4.5.3 Desafios e experiências comuns
Independentemente do grau de responsabilização que assumam pela trajetória de
libertação, as famílias entrevistadas parecem compartilhar experiências assemelhadas na
"prisão do devedor". Ao contrário do que se poderia imaginar, por exemplo, o forte intuito de
limpar o nome e recuperar o orgulho, observado nas famílias do primeiro grupo, não parececolocá-las em melhor situação para escapar da situação de descontrole financeiro. A esse
respeito, Mattoso e Rocha (2005) já haviam destacado que as formas para buscar a
adimplência eram percebidas quase sempre como inatingíveis pela classe mais popular.
Talvez essa percepção decorra do fato de "limpar pagando" depender de renegociações da
dívida junto ao banco, à financeira ou à agência de cobrança. Nesse sentido, algumas
entrevistas são mais críticas e sugerem que tais instituições credoras tendem a impor
condições eventualmente consideradas injustas, que acabam por desencadear sentimentos de
impotência, resignação e acuamento:
(Seria mais justa) Uma renegociação com menos juros, né. Os juros de lá é muitoagressivo. E outra coisa, aquilo ali que você já pagou, aquilo ali morre, isso que euacho errado. Aquilo ali é como se fosse nada, você renegocia de novo uma nova parcela e aquilo ali que você pagou não entra, eu não entendo. (...) Você podeaumentar (o prazo). Assim, eles fazem assim: vamos supor, eu pagava R$ 672. Mas,se eu quiser pagar R$ 500,00, (ficam) R$ 500 em 82 (parcelas). Então, pô... irrealisso aí, acho ridículo isso. Não acho certo. (Sra. Fox, 33).
Sinceramente? Eu... (tempo refletindo) não acho injustiça (a renegociação), né?Porque juros é juros e, infelizmente, a gente não tem como combater uma coisacomo essa. (Sra. Celta, 43).
Na realidade, não são apenas as circunstâncias de renegociação que fazem surgir
sentimentos desse gênero. Os testemunhos dão a entender que os contatos dos credores para
cobrar o pagamento da dívida costumam ser bastante incômodos e constrangedores, o que
também havia sido observado no estudo de Hill (1994). Além disso, tais interações são
capazes de fazer os entrevistados sentirem como se estivessem sendo coagidos por agiotas ou
como se fossem bandidos.
Eles ligam noite e dia, é uma situação constrangedora, você se sente um bandido, umladrão. (Sra. Palio II, 32).
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Eu fiquei até meio aborrecido "Caramba, quinze dias atrasado, já estão ligando".Você se sente até meio impotente, né? Nós que quisemos essa aquisição e tal e agoraestá acontecendo isso. (Sr. Siena, 40).
A gente já fez essa renegociação duas vezes, mas aí começa pagar de novo e, tipo
assim, parece agiota isso. (Sra. Fox, 33).
Aparentemente, toda essa opressão característica da "prisão do devedor" e as
dificuldades inerentes à trajetória da libertação testam duramente a resiliência das famílias e
podem deflagrar um eventual desejo de alívio imediato, que se traduz pela vontade de se
livrar da responsabilidade pela dívida, passando-a adiante juntamente com o veículo. O
curioso é que essa solução instantânea parece ser cogitada por famílias dos três diferentes
grupos, isto é, mesmo aqueles que afirmam fazer questão de pagar na forma contratada têm
seu momento de "desespero", ainda que não o admitam abertamente:
Cara, eu penso que isso tinha que ser mais planejado, pra que a gente não passasseisso agora, né, não estivesse na situação que está agora. É uma situaçãodesesperadora? Não, não é. Porque você tem a opção de passar para terceiros, dedevolver, e é aquilo... (Sra. Turin, 44).
Entretanto, apesar de muito aventada, essa transferência da dívida para terceiros não
foi efetivada por nenhum dos casais estudados. Como reportam não haver forma de passar
completa e legalmente a dívida para outra pessoa, os entrevistados temem a configuração de
um cenário no qual permanecessem com a dívida em seu nome, porém sem a posse do carro,o que é um risco correlato ao de "emprestar o nome"29, conforme observado por Mattoso e
Rocha (2005). Se empreendida a contento, porém, tal prática poderia ser compreendida como
um "empréstimo tardio e reverso de nome falso": "tardio" porque o automóvel é recebido pelo
destinatário final em momento posterior ao da compra; "reverso" porque a ajuda vem daquele
que aceita pagar o financiamento, e não de quem assinou o contrato, cujo nome poderá ser
limpo; e "falso" por que o inadimplente não tem mais um nome para emprestar.
A gente já até pensou em (...) passar o financiamento pra terceiros, que eu não achoviável, não confio... Só se tivesse um outro método que tirasse totalmente o nomedele da jogada. (...) Porque (se o terceiro não quitar) ele estaria sem o carro e com onome sujo. Então isso eu não acho muito viável. (Sra. Turin, 44).
O carro tá alienado no meu nome, eu não posso passar ele para outra pessoa, só seele estivesse quitado. (...) Quer dizer, eu acho até que tem gente que faz. Eu nãofaria. Se eu não me engano, tem gente que pega, vamos supor, você é meu amigo evocê está com o carro. "Então tá, deixa o carro comigo, eu vou pagando... vou pagando pra você", mas sei lá (...) Você não tem como fazer um contrato, sei lácomo se chama, um documento passando a responsabilidade total praquela pessoa.(Sra. Cerato, 29).
29 Ver nota 24, à pág. 108.
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de que as práticas de enfrentamento das consequências financeiras visam postergar/evitar a
alteração dos padrões correntes de consumo:
E não vou tirar de uma prioridade que é casa, que é a escola por causa disso. (Sra.
Cerato, 29).
Eu não mexi no orçamento da família. Não vou fechar as portas, "Não, olha, vamos parar tudo, vamos fechar tudo que a gente vai pagar isso aí". Não. Eu até perco ocarro, mas eu não abro mão do que minha família tem e não pode perder. (Sr. Turin,49).
Como a situação ficou muito ruim, eu falei "Eu não vou deixar de pagar colégio promeu filho, curso de inglês pro meu filho, pra pagar o carro". Eu tenho que pagar, porque a prioridade é o meu filho. Então eu dei prioridade às coisas do meu filho edeixei o carro para depois. (Sra. Palio II, 32).
No final do ano passado falei "Pô, a gente vai ter que começar... vai ter que
escolher". E logicamente foi o carro. (...) As despesas de casa, o colégio do garoto etal acabam consumindo quase tudo. (Sr. Classe A, 47).
A Sky é uma coisa que não pode cortar de jeito nenhum, o Cauã (filho) é viciado emtelevisão. Ele (o marido) também é viciado, mas, se não tiver, não tem. O Cauã nãoentende que não tem. (Sra. Siena, 41).
Ainda no âmbito dessa relutância em modificar os padrões de consumo, aparece a
recorrência ao crédito alheio como forma de viabilizar a aquisição de bens e serviços cujo
valor extrapole o orçamento mensal, inviabilizando o pagamento à vista. Nesse caso, pedir um
"empréstimo de nome" não somente implica depender de amigos ou familiares, situação jádestacada por Mattoso e Rocha (2005), como também aparenta determinar uma prioridade de
pagamento. Com efeito, os discursos parecem indicar uma maior preocupação em não sujar o
nome do amigo ou parente do que em buscar a limpeza do próprio nome.
Então o que eu faço? Quando eu compro, eu compro no cartão da minha irmã, nocartão de um amigo e essa compra é prioridade. Por quê? Porque não é meu. Entãoàs vezes eu pago até antes. (Sr. Siena, 40).
Na verdade eu priorizei pagar as contas que não estavam no meu nome, por
exemplo, a geladeira foi comprada no cartão de crédito da minha mãe, por isso dei prioridade a pagar. (Sra. Classe A, 31).
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo exploratório teve como principal objetivo investigar a experiência
de dificuldades financeiras vivida por famílias que contraíram dívida para a aquisição de um
automóvel. No entanto, é interessante dar mais um passo atrás e lembrar as razões que
motivaram esta pesquisa em seu estágio mais embrionário. Na literatura, dois tópicos de
interesse podem ser destacados nas pesquisas sobre endividamento: identificar fatores que
levam algumas pessoas a usarem o crédito mais intensamente que outras; e identificar fatores
que fazem alguns indivíduos entrarem em situações de dificuldade de pagamento, com a
possibilidade de acúmulo de dívidas até níveis impagáveis. Em princípio, a presente pesquisa
se insere no segundo tópico, mas cabe destacar que teve como inspiração inicial a
possibilidade mais ampla de vislumbrar oportunidades para iniciativas de educação financeira
e que podem se traduzir em contribuições para consumidores, empresas e também políticas
públicas.
O endividamento, per se, não é visto aqui como algo ruim; contrair dívidas não
implica necessariamente problemas para saldá-las. Pelo contrário, o crédito pode ser
importante ferramenta para o alcance de estilos de vida diversos e apoiados pelo consumo.
Portanto, quando se menciona educação financeira, a ideia subjacente não é combater o
endividamento, mas capacitar o consumidor para a gestão da dívida, favorecer o uso
consciente do crédito pelas famílias, em um ambiente no qual é possível observar
consumidores deixando de poupar dinheiro para compras futuras e passando a antecipar novas
aquisições por meio de endividamento. Tal capacitação se torna especialmente importante no
contexto brasileiro, cujo modelo de desenvolvimento econômico aparenta ser ancorado no
estímulo ao consumo e que observa uma crescente participação de famílias de classe média
baixa no universo de consumo, com todas as oportunidades e riscos a ele associados.
Acredita-se que a discussão de resultados realizada no capítulo anterior trouxe
respostas para as perguntas de pesquisa e propiciou o conhecimento de diversos aspectos
relativos às formas de utilização do crédito e de tratamento da dívida pelas famílias
entrevistadas. Dessa forma, o presente estudo exploratório contribui para a área de
comportamento do consumidor, tendo em vista que analisou um grupo de famílias que
vivencia esse momento de ampliação da experiência consumista e, ao mesmo tempo em que
tenta concretizar seus sonhos de consumo, também enfrenta os aspectos difíceis do
endividamento. Além disso, os achados desta pesquisa trazem várias implicações para
políticas públicas e podem servir como fonte de informação útil não somente para ações de
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educação financeira das famílias, mas também para a atuação de todos os agentes envolvidos
direta ou indiretamente nas experiências de dificuldades financeiras estudadas, entre os quais
se destacam as empresas montadoras de automóveis, os estabelecimentos concessores de
crédito, as instituições de proteção ao crédito, os órgãos de proteção ao consumidor e as
entidades reguladoras. As perguntas de pesquisa e os principais achados que elas
proporcionaram são retomados a seguir, como forma de fomentar a reflexão sobre a
contribuição deste estudo para os agentes acima relacionados.
Quais são os principais significados e sentimentos envolvidos na compra do carro?
Para as famílias pesquisadas, a compra do automóvel parece registrar uma evolução da
condição socioeconômica ou um "upgrade na vida". O carro aparece assim como um luxo
necessário, pois, ao mesmo tempo em que sinaliza o pertencimento dessas famílias a um
grupo social com o qual desejam se identificar e ser identificadas, também marca a
diferenciação em relação àqueles "sem nenhuma condição financeira". Os carros funcionam
como marcadores de um estilo de vida idealizado e aspirado pelas famílias entrevistadas. Daí
suas referências à aquisição do carro como a realização de um sonho, mas um "sonho de
consumo parcelado", uma vez que o pagamento à vista não é reconhecido por esse grupo
como alternativa. Esse significado idealizado e deslocado dos automóveis faz com que
modelos mais básicos e baratos, que talvez coubessem com mais folga no orçamento, sequer
sejam lembrados entre as opções de compra, por não serem considerados sinalizadores do
estilo de vida sonhado.
Em meio a esse cenário de realização de sonho, o carro ainda simboliza um patrimônio
em formação ou uma opção de investimento, já que a sua posse é percebida como a
materialização de uma soma, de um valor monetário que, de outra forma, não conseguiria ser
acumulado pelos casais entrevistados. Sendo assim, os sentimentos positivos de satisfação,
felicidade e orgulho que o automóvel suscita nas famílias contribui para que não antecipem
dificuldades financeiras e incapacidade de pagamento. Fica a impressão de que, para os
entrevistados, o carro e a dívida contraída para sua compra não pertencem à mesma realidade,
conforme ilustra a Figura 4 a seguir:
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Figura 4: Sentimentos Associados ao Automóvel.
Como é a participação da família na aquisição do veículo?
Nos processos de compra estudados, o espaço para a interação familiar parece se abrirquando um dos cônjuges manifesta ao outro o desejo por um automóvel. A reação do
companheiro pode ser favorável ou contrária à ideia proposta, o que pode tornar necessário
que o proponente convença ou ignore o parceiro. Nessas situações, o componente financeiro
aparece como determinante, já que o valor de prestação deve "caber no bolso" da família. Foi
possível observar, entre os casais pesquisados, que o engajamento financeiro de cada um
aparenta ser determinado mais por necessidade que por voluntariedade. Chamou atenção
também o fato de algumas famílias aparentarem ocultar a dependência da contribuição
financeira da mulher para a compra do carro, por meio do rearranjo do acordo firmado sobre o
orçamento doméstico: ao invés de aplicar diretamente seus recursos no automóvel, a mulher
passa a assumir uma parcela maior de outras despesas da casa e concede ao homem o papel de
provedor do carro, que é um símbolo da ascensão social da família.
Como as famílias lidam com os custos inerentes ao automóvel?
As famílias admitem "só ter pensado na parcela" antes da compra e as falhas de
planejamento sugerem que o financiamento do carro deixou o orçamento doméstico "nolimite", logo, sem espaço para o recebimento de todas as despesas do veículo. Surpresa? Eles
falam de várias estratégias que vão da busca por driblar custos relativos ao carro até abrir mão
de outras despesas do cotidiano familiar, de diferentes naturezas tais como a moradia, a escola
dos filhos ou mesmo gastos supérfluos.
A despeito de todas as indicações de que as parcelas do carro e os outros custos não
esperados afetaram seu orçamento e cotidiano, as famílias estudadas atribuem a outros
grandes eventos alheios à sua vontade, como perda do emprego ou problemas de saúde, a
Automóvel Dívida
Satisfação Bem-estar
Felicidade
Orgulho
Prazer
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situação financeira desfavorável que estão vivendo. Dessa forma, elas preservam o "objeto de
desejo" automóvel dos infortúnios também narrados a partir de sua posse.
Como as famílias veem o recurso ao endividamento para a aquisição de bens?
Pagamento parcelado é rotina e a "cultura do parcelamento" parece estar tão arraigada
que alguns testemunhos revelaram um "desejo de parcelar a parcela", em meio às dificuldades
de pagar o carro. Os relatos fornecem pistas sobre possíveis causas para o consumo via
endividamento e descrevem uma espécie de círculo vicioso, conforme Figura 5 a seguir: o
desejo de consumir mais e agora leva a uma dificuldade de poupar, que é apoiada pela ampla
oferta de crédito fácil no mercado, que, por sua vez, leva ao desejo de consumir mais e agora.
Figura 5: Rotina de Parcelamento.
O planejamento dos entrevistados parece se limitar ao presente, isto é, sua
preocupação se restringe a conseguir pagar a prestação no momento da compra. Em outras
palavras, as famílias pesquisadas querem saber que valor de prestação "cabe no bolso", o que
quase sempre significa "o máximo que poderiam pagar". O orçamento desse grupo de famílias
estava "no limite" e esse limite foi ultrapassado com gastos excepcionais, inclusive relativos
ao carro, mas que haviam sido ignorados no planejamento da compra.Quais são os principais significados, sentimentos e experiências originados das
dificuldades financeiras?
A incapacidade de pagar a dívida contraída para obter o desejado carro é descrita
como um "fracasso", uma "decepção", acompanhada de "tristeza", "frustração", "depressão" e
"preocupação". Os sentimentos negativos estão associados à dívida e parecem separados do
carro nos relatos dos entrevistados, conforme ilustra a Figura 6 a seguir:
Rotina de
Parcelamento
Dificuldade de
Juntar Dinheiro
Imediatismo
do Consumo
Facilidade
de Crédito
"Desejo deParcelar a
Parcela"
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Figura 6: Sentimentos Associados à Dívida.
Para algumas famílias, pagar a dívida pode significar "resgatar o orgulho perdido".
Para outras famílias, buscar reduzir o valor devido, até por uma ação judicial, pode ser uma
saída apropriada para "uma realidade indesejada". Mas também foi possível observar famílias
mais conformadas e que consideram ser possível esperar um momento melhor para saldar a
dívida.
Independentemente de como se comportam em relação à situação de endividamento,
as famílias entrevistadas parecem vivenciar experiências comuns na "prisão do devedor",
quando estão sujeitas a credores incômodos e constrangedores ou quando vivenciam o receio
de um mandado de busca e apreensão do veículo.
5.1. "ME ENGANO QUE EU GOSTO"
De uma forma geral, os achados desta pesquisa sugerem que, desde a compra do carro
até o descontrole financeiro, as famílias pesquisadas vivem diversas experiências que podem
ser vistas como autoengano, um processo pelo qual "a mente da pessoa consegue de alguma
forma manipular-se e iludir-se a si própria" (GIANNETTI, 1997, p. 17). O autoenganoaparece quando falam da necessidade de ter o carro e o modelo não parece ser adequado à
situação econômico-financeira, como no caso do Sr. Turin, que, mesmo estando inadimplente,
explica que uma família de classe média não compra um Corsa, e sim um carro melhor. O
autoengano aparece também quando falam do valor da prestação que imaginam poder pagar,
considerando que tudo ao redor irá permanecer constante: "A gente estava estabilizado, tanto
eu quanto ela... tinha condições para isso".
O autoengano das famílias pesquisadas não permite que elas pensem nas "surpresas davida", embora os prazos dos financiamentos estudados sejam iguais ou superiores a 48 meses.
Dívida Carro
Fracasso Desengano
Tristeza
Frustração
Decepção
Preocupação
Depressão
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Como enxergar além e reconhecer os riscos associados ao financiamento do automóvel diante
da sedução exercida por sua posse no presente? Na condição de objeto de desejo na
sociedade, o carro parece ocupar uma posição privilegiada em relação a outras categorias de
consumo, que talvez não suscitem o mesmo fascínio, a mesma devoção, a mesma "animação",
a mesma vontade de "embarcar na loucura" ou a mesma "empolgação que faz esquecer as
coisas".
Considerando que a atração exercida por um objeto está associada ao seu potencial em
contribuir para a construção de relações e aceitação no grupo social, o significado de inclusão
social do automóvel descrito pelas famílias parece torná-lo irresistível.
Embora essa dimensão simbólica do carro, tão abordada pela literatura em
comportamento do consumidor, tenha sido encontrada no discurso dos entrevistados, vale
lembrar que muitas justificativas oferecidas por eles para a compra do veículo contraindo
dívidas se encontram no plano racional, mais cognitivo, aparentemente retratando um esforço
para continuar qualificando suas decisões como acertadas, o que reitera a ideia de autoengano.
Nesse sentido, destaca-se a caracterização do automóvel como necessidade para superar as
dificuldades decorrentes do transporte público ou a dependência da ajuda de terceiros em
possíveis situações de emergência. O curioso dessa situação é que, para reforçar a percepção
da necessidade do carro, os entrevistados conseguem antecipar eventuais ocasiões de risco, o
que não ocorre com relação aos perigos da dívida.
O autoengano se mantém quando os entrevistados afirmam que repetiriam a compra,
se pudessem voltar no tempo, quando não admitem ter superestimado sua capacidade de
pagamento, quando não reconhecem falhas de planejamento e quando não aceitam que a
possibilidade de eventos excepcionais deveria ter sido considerada antes da compra parcelada.
Quando, porém, a justificativa para a compra do carro é racionalizada mediante seuenquadramento como uma opção de investimento, as reflexões ultrapassam o autoengano e
apontam para a carência de políticas públicas de educação financeira. De fato, alguns relatos
indicam uma fé sincera na adequação do carro a essa finalidade de investimento, tornando
difícil saber até que ponto tal percepção decorre de um autoengano muito eficiente ou de
noções muito equivocadas sobre o que vem a ser um investimento. Afinal, os custos do
financiamento naturalmente fazem com que os entrevistados despendam um volume de
recursos superior ao valor do carro comprado, que, por sua vez, ainda sofre consideráveldepreciação ao longo do tempo. Via de regra, portanto, um automóvel não contribui para
aumentar a riqueza do proprietário (sendo utilizado basicamente para passeio) e não deveria
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ser percebido como uma forma de investimento tal qual um imóvel, bem com que o carro
parece ser comparado em alguns discursos. Dessa forma, acredita-se que lacunas de
conhecimentos financeiros tão elementares como esses possam colaborar para o problema do
endividamento e deveriam ser objeto de programas educacionais.
Outro tipo de consideração relacionada a políticas públicas e que foi suscitado pela
presente pesquisa diz respeito ao modelo de desenvolvimento adotado pelo governo
brasileiro, que parece fazer do estímulo ao consumo a base para o crescimento da economia.
Tendo em vista a citada deficiência de educação financeira da população e a crescente
participação de classes menos favorecidas no universo de consumo, quão sustentável ou
temerária pode ser para a sociedade essa política que parece fomentar um modelo consumista,
baseado no uso ampliado do crédito e do parcelamento para antecipar a capacidade de
consumo dos cidadãos? Do mesmo modo que os consumidores podem acreditar que estão
melhorando de vida, sem perceber ou evitando refletir sobre a ampliação da sua exposição aos
riscos do endividamento, talvez a ânsia do crescimento econômico também possa estar
levando o País a algum tipo de autoengano quanto à sustentabilidade do seu modelo de
desenvolvimento.
Sendo assim, a sedução que o carro exerce sobre as famílias entrevistadas parece
atingir também o governo brasileiro, tendo em vista a importância estratégica que este confere
à indústria automobilística para o crescimento econômico ancorado no consumo, como se
percebe nas reiteradas reduções de IPI incidente sobre o setor. Ocorre que tal sedução pode
abrigar armadilha semelhante à contida no folclórico canto da sereia, quando o marujo,
seduzido pela irresistível melodia, acaba chocando seu barco contra os rochedos. Os
entrevistados, tendo a visão de futuro embaçada pela expectativa presente de "realizar o
sonho", ignoram os riscos do endividamento. O País, avesso ao modelo trabalhoso de
poupança e investimento, prefere o caminho dos subsídios fiscais e creditícios e do incentivo
ao consumo, sem maior preocupação com os efeitos dessas medidas sobre a produtividade, a
inflação e sua própria sustentabilidade. Em ambos casos, não aparentam ser irrelevantes os
riscos de se ver o barco colidindo contra os rochedos.
5.2. A EXPERIÊNCIA COM AS FAMÍLIAS
A experiência de estudar as famílias, e não o consumidor individual, também gerou
aprendizados importantes. A abordagem de entrevistas com casais, sendo cada cônjuge
entrevistado de cada vez, parece contribuir para um conhecimento mais completo acerca da
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situação estudada. Essa percepção decorre não somente da riqueza de detalhes que a
complementação de dados proporciona, uma vez que são duas pessoas informando e
lembrando os acontecimentos, mas também da possibilidade de captar diferentes visões,
algumas vezes contraditórias, sobre um mesmo fato.
Nos casos estudados, a abordagem da família propiciou algumas reflexões
interessantes, principalmente, para instituições concessoras de crédito e de proteção ao
crédito. Os achados deste estudo indicam que a família, pelo menos do ponto de vista
financeiro, deveria realmente ser analisada como uma unidade. Independentemente de
informarem fundos conjuntos, individuais ou uma combinação de ambos no gerenciamento do
orçamento doméstico, as famílias pesquisadas parecem depender de todos os rendimentos
gerados por seus membros – nesse caso, os filhos que trabalham também podem ser
convocados a contribuir – e vivenciar conjuntamente as dificuldades financeiras.
Portanto, quando a assinatura de um contrato de financiamento é atribuída a
determinado cônjuge pelo fato de o outro estar com o "nome sujo", por exemplo, já é sabido
que naquela família há uma ou mais dívidas em atraso. Dessa forma, a renda do cônjuge com
"nome limpo" parece ser comprometida pela inadimplência do seu companheiro: se os
recursos não forem usados diretamente para ajudar na dívida em aberto, provavelmente serão
gastos em outras despesas, para compensar uma menor contribuição do cônjuge com débito a
liquidar. Então se pergunta: esse tipo de circunstância não deveria ser levada em consideração
pelos órgãos de proteção ao crédito, que identificam os mal pagadores, e pelas instituições
concessoras de crédito, que analisam a capacidade de pagamento do consumidor?
Situação correlata ocorre quando há um "empréstimo de nome" na contratação do
financiamento do veículo porque a família compradora não tem renda suficiente para obter o
crédito necessário. Nesse caso, parece razoável se questionar: o fato de a família não auferir
rendimentos que demonstrem a capacidade de pagar a dívida que pretende contrair não
conteria indícios claros de que ela terá problemas com o pagamento? Tal circunstância sugere
uma espécie de autoengano coletivo: a família compradora acredita que vai conseguir pagar
um valor que analistas financeiros informaram ser incompatível com sua capacidade de
pagamento; o parente ou amigo que "empresta o nome" acha que está apenas ajudando o casal
a superar uma burocracia irrelevante; e, por último, o concessor do crédito, junto com a
empresa que produz o carro, parecem acreditar que a história termina com o empréstimo e
com a compra, mesmo tendo informações de que o cliente poderá ter problemas no futuro.
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Outra circunstância observada no presente estudo, por si só, suscita reflexões acerca da
atuação e da responsabilidade de praticamente todos os agentes envolvidos nas experiências
de dificuldades financeiras estudadas. Foi possível observar famílias que, não conseguindo
pagar o financiamento do carro, acionaram judicialmente a instituição credora pela cobrança
de juros abusivos e obtiveram do juiz uma "batida de martelo" para baixar a prestação devida
(de R$ 560,00 para R$ 250,00, por exemplo). À primeira vista, uma decisão desse gênero
parece responsabilizar a instituição financeira pelos altos juros cobrados e isentar a família da
responsabilidade por ter concordado com o pagamento previsto No entanto, um olhar mais
crítico pode desencadear diversos questionamentos a respeito de experiências como essa.
Tendo em vista um cenário com crescente demanda da sociedade pela
responsabilidade social e ambiental das empresas, é preciso trazer essa preocupação com a
responsabilidade também para o crédito dirigido ao consumo, tanto da parte do concessor
quanto da parte do tomador. Nesse sentido, aproximar-se do cliente, seja para conhecer sua
realidade e então oferecer um crédito compatível, seja para não propor soluções "absurdas"
quando ele apresenta dificuldades de pagamento, pode ser um caminho a ser seguido pelas
empresas. No que se refere ao consumidor, as entrevistas realizadas indicam que há um grupo
de cidadãos carentes de uma educação para o consumo que os habilite a gerenciar melhor sua
vida financeira e a tomar decisões mais conscientes sobre oportunidades e riscos.
5.3. OUTRAS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO
As situações descritas apontam para a importância de as empresas, principalmente as
financeiras, "irem até o contexto" onde seu cliente está para entender mais da sua vida e de
seu comportamento de consumo. Os relatos falam do distanciamento, mas também sugerem
uma aproximação:
Eu nunca tive acesso a nenhuma empresa, financeira. Nunca fizeram nenhumtrabalho de pergunta nem nada. (...) Porque ninguém virá aqui pra me perguntar"Como é que está sua vida aí pra pagar esse carro? A gente pode te ajudar?" (Sr.Turin, 49).
Essa aparente inacessibilidade, impessoalidade ou desinteresse que alguns
entrevistados percebem nas empresas das quais são clientes parece ter contribuído para
estimular a conversa com o pesquisador e proporcionar situações inesperadas, como o
agradecimento em forma de desabafo do Sr. Fox ao final da entrevista:
Obrigado. E é bom falar sobre isso porque quando você conversa com um atendente,a pessoa que liga para cobrar, dificilmente a gente consegue expor esse tipo desituação, entendeu? Explicar qual é a circunstância, o que se pode fazer, o que não
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pode. Assim, eu não deixei de pagar o carro por "Ah, não paga, deixa aí, deixatomar, deixa vir pegar", não deixei por isso. Eu quero pagar, sempre tive meu nomelimpo, entendeu? (Sr. Fox, 33).
No que concerne às montadoras de automóveis, as famílias pesquisadas não fizeram
ligação entre elas e as dificuldades financeiras enfrentadas, o que pode estar relacionado à
separação que os entrevistados parecem estabelecer entre seus carros e a dívida contraída para
adquiri-lo. Tal constatação, contudo, não deveria indicar ausência de motivos de preocupação
para essas empresas. Pelo contrário, as fabricantes de carros deveriam pensar que essa
associação ainda não é feita, mas que as novas, gratuitas e rápidas mídias sociais disponíveis
já representam um aumento do poder dos consumidores em expor suas insatisfações,
decepções e angústias. Assim, recomenda-se que as montadoras se mantenham atentas às
experiências de endividamento de seus clientes após comprar o produto que elas oferecem.
Afinal, as instituições que concedem o crédito ao consumidor, muitas vezes um banco ou uma
financeira coligada à fabricante, com a mesma marca no nome, não foram poupadas de
críticas:
Eu acho que as empresas de financeiras deveriam ser mais sinceras só com o seucliente porque ela vende dinheiro e ela recebe dinheiro em troca, então ela não precisa colocar o dinheiro que ela ganha como resultado escondido, pra evitar justamente que as pessoas se sintam ludibriadas e entrem com ações e recursoscontra essas empresas. (Sr. Turin, 49).
O maior sinal de alerta para as montadoras, todavia, vem do tratamento que seus
clientes têm recebido a partir do momento em que a cobrança da dívida é transferida para
agências especializadas. Os relatos dos consumidores acerca dos contatos com as agências de
cobrança trazem expressões muito fortes e alarmantes. Alguns entrevistados chegam a dizer
que parecem estar lidando com agiotas ou sendo tratados como bandidos ou ladrões.
5.4. SUGESTÕES PARA PESQUISAS FUTURAS
Diversos aspectos observados ao longo deste estudo exploratório poderiam ser objeto
de investigação em pesquisas futuras e são aqui apresentados em forma de perguntas de
pesquisa:
a) Que significados estão relacionados à responsabilidade pelo pagamento do carro?
b) Quais são as associações entre a marca do carro e a contração de dívida?
c) Como a família lida com decisões autônomas de seus membros a respeito de
recursos ou bens coletivos?
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ANEXO 1 – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1. APRESENTAÇÃO E INÍCIO DA PESQUISA
Bom dia / boa tarde / boa noite, [Nome do(a) entrevistado(a)]. Meu nome é Marcelo
Franca, sou pesquisador do COPPEAD/UFRJ e estamos desenvolvendo um estudo com
famílias cariocas sobre compras financiadas.
Esta entrevista não deve chegar a 1 hora de duração. A ideia é que seja um bate-papo
informal: não existe resposta certa ou errada. O importante é que você seja sincero e conte
tudo o que lembrar sobre suas experiências de compra: o antes, o durante e o depois. Quanto
mais espontâneo você conseguir ser, mais reais serão os resultados e melhor ficará a pesquisa.
Gostaria de lembrar que o áudio da entrevista está sendo gravado. Tudo bem? Assim,
não precisamos ficar parando nossa conversa para eu tomar notas nem corremos o risco de
deixar passar detalhes importantes. Para garantir a sua privacidade, em nenhum momento seu
nome será divulgado. Você tem alguma dúvida que gostaria de tirar antes de começarmos?
(6) Pra começar, queria que você lembrasse que compras financiadas você está
pagando agora. Que mais?
2. EXERCÍCIO PROJETIVO: "FAMÍLIAS ALMEIDA E FERREIRA"
Vamos fazer um exercício de imaginação! Eu gostaria que você considerasse duas
famílias, que nós vamos chamar aqui de Almeida e Ferreira. A Família Almeida é formada
por um casal com [X] filho(s), mora aqui em(no)(na) [bairro próximo ao do(a)
entrevistado(a)] e eles não têm carro. Já a Família Ferreira acabou de comprar seu primeiro
carro zero. Com base nessas informações, eu gostaria que você me ajudasse a imaginar essas
famílias com maiores detalhes. Primeiro, a família sem carro: a Família Almeida.(7) Por que você acha que eles não têm carro?
(8) Como você imagina que é a casa deles?
(9) Você acha que eles costumam comprar produtos financiados? Quais? Por quê?
"Me" explica melhor...
(10) O Sr. Almeida trabalha onde? E a esposa?
(11) Você acha que eles estão planejando comprar um carro? Por quê?
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Agora a família Ferreira. Então, essa segunda família que estamos imaginando tem um
carro zero, também mora no bairro de(o)(a) [mesmo dos Almeida] e tem [X] filhos.
(12) Você acha que o Sr. Ferreira trabalha onde? E a mulher dele?
(13) Como você imagina a casa deles? O que tem lá? De que tamanho é? É própria?
(14) Você acha que eles costumam comprar produtos financiados? Quais? Por quê?
(15) Que carro você acha que eles compraram? [Caso a pessoa não consiga
especificar um modelo, perguntar sobre preço, tamanho, opcionais etc.] Por quê?
(16) Como compraram? Por que eles recorreram a um financiamento para comprar
esse carro? / Por que eles compraram à vista?
(17) O que significou para eles a compra desse carro?
(18) O que você acha que eles sentiram ao comprar esse carro zero?
(19) O que você acha que os vizinhos pensaram ao ver o novo carro da Família
Ferreira?
Agora imagine que se passaram dois anos da compra do carro zero da Família
Ferreira.
(20) Como você vê essa família? O que aconteceu?
3. O PROCESSO DE DECISÃO DE COMPRA DO AUTOMÓVEL
Agora vamos deixar de lado as famílias Almeida e Ferreira e falar da sua família.
(21) Quantas pessoas moram na sua casa? O que vocês gostam de fazer juntos? Como
é a rotina de vocês?
(22) Vocês dois trabalham? O que você faz? E sua esposa / seu marido?
(23) Onde seu(s) filho(s) estuda(m)?
(24) Que produtos você diria que mais fazem parte da sua vida em família? Por quê?
(25) [Se não falar espontaneamente] E o carro?
Bem, agora vamos falar da compra do carro zero da sua família.
(26) Quem aqui na sua casa foi o primeiro a levantar o interesse em comprar um
carro zero? O que ela / você falava?
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(27) Quais eram as suas principais razões para querer comprar um carro zero? E para
não comprar um carro zero?
(28) Agora eu faço as mesmas perguntas que tinha feito sobre a Família Ferreira:
- O que significou pra vocês comprar esse primeiro carro zero?
- O que vocês sentiram?
- O que você acha que os vizinhos falaram?
(29) Você gosta de falar sobre carro? Por quê? "Me" explica melhor...
(30) "Me" fala o que você sente quando dirige esse carro.
(31) E mais alguém contribuiu nesse pontapé inicial? O que falava? Que motivosdava para a compra do carro?
(32) [Caso não tenha surgido espontaneamente] Qual foi a sua participação nesta
etapa da compra?
(33) Houve algum episódio específico que determinasse a decisão pela compra?
Quanto tempo levou?
(34)
O que vocês levaram em consideração na hora da escolha do tipo de carro a sercomprado? O que não podia faltar nesse novo carro? Para quem isso era mais
importante? Por quê?
(35) Como essas coisas afetaram o preço do carro? [Explorar: Encareceu a entrada,
a parcela, o IPVA, o seguro etc.?]
(36) De quem foi a palavra final sobre o carro a ser comprado? Por que foi essa
pessoa que teve a palavra final?
4. O MOMENTO DA COMPRA
Agora vamos falar sobre o dia da compra do carro.
(37) Você consegue se lembrar do dia da compra do carro? Descreva esse dia, por
favor.
(38) Quem de vocês ficou à frente das negociações com a concessionária? Como foi?
(39) Quem fechou, efetivamente, o negócio? Por quê?
(40) E o que foi decisivo para que a compra se concretizasse?
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(41) Como ficou acordado o pagamento do carro? Houve entrada? Quantas parcelas?
[Explorar se o valor da parcela caber no orçamento foi preponderante.]
(42) Vocês haviam se informado antes sobre as opções de financiamento disponíveis
(leasing, CDC etc.) ou foram informados na hora? Pensaram em poupar para
comprar à vista?
(43) Quem pagou, quem ficou responsável pelo pagamento? Apenas uma pessoa da
família ou mais? Se mais de uma, como se deu a divisão?
5. CUSTOS ASSOCIADOS
(44) Como você vê hoje os gastos associados ao seu carro? Quais são eles? [O quenão falar espontaneamente, induzir e explorar, em especial com relação ao peso
no orçamento doméstico e ao condicionamento do uso do carro.]
- Você tem garagem?
- Você tem seguro?
- E o combustível?
- E a manutenção?
- E os impostos (IPVA, licenciamento, etc.)?
- E multas?
Falamos dos principais gastos com o carro.
(45) Vocês pensaram neles antes de comprar o carro?
(46) Qual deles surpreendeu vocês?
(47) Quais são mais complicados de pagar?
6. ORÇAMENTO FAMILIAR E ENDIVIDAMENTO
Agora vamos falar um pouco sobre o orçamento familiar e como o pagamento do
financiamento pode modificar ou não outros gastos da família.
(48) Quando o carro entrou no orçamento da família, o que mudou? [Explorar: Qual
o efeito desses gastos em relação aos outros gastos da família?]
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(49) E aquelas outras parcelas que a família paga além do financiamento do carro.
[Citar as compras financiadas respondidas na pergunta 1] Tem mais alguma?
Eletrodomésticos? Financiamento imobiliário? Cartão de crédito? Crediário de
lojas? Crédito consignado?
(50) A compra do carro afetou o pagamento dessa outras parcelas? Ou elas afetam o
pagamento do carro e seus gastos? [Explorar: Há uma escala de prioridades?]
(51) O que vocês estão fazendo para resolver esse problema (da dívida)?
(52) Se você pudesse voltar no tempo, você ainda compraria o carro? Por quê?
(53) O que não foi possível prever ou planejar?
(54) Qual você acha que seria uma solução mais justa para essa situação?
(55) Você pensou em vender o carro? Por quê?
(56) O que você sente quando pensa na sua dívida por causa do carro, quando olha
para os boletos do financiamento?
(57) O que você sente quando pensa hoje no seu carro zero?
(58) Quando você pretende trocar de carro?
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gostaríamos de agradecer a sua participação nesta pesquisa. Muito obrigado por sua
disponibilidade e pelas suas opiniões. Tenha um bom dia / uma boa tarde / uma boa noite.
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ANEXO 2 – CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO ECONÔMICA BRASIL
SISTEMA DE PONTOS
Posse de itensQuantidade de Itens
0 1 2 3 4 ou +
Televisão em cores 0 1 2 3 4
Rádio 0 1 2 3 4
Banheiro 0 4 5 6 7
Automóvel 0 4 7 9 9
Empregada mensalista 0 3 4 4 4
Máquina de lavar 0 2 2 2 2
Videocassete e/ou DVD 0 2 2 2 2
Geladeira 0 4 4 4 4Freezer (aparelho independente ou parte da geladeira duplex) 0 2 2 2 2
Grau de instrução do chefe de família
Nomenclatura Antiga Nomenclatura Atual
Analfabeto/ Primário incompleto Analfabeto/ Fundamental 1 Incompleto 0
Primário completo/ Ginasial incompleto Fundamental 1 Completo / Fundamental 2 Incompleto 1
Ginasial completo/ Colegial incompleto Fundamental 2 Completo/ Médio Incompleto 2
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