conscientes das orientações do concílio, os cristãos...
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Mariologia Professora Irmtraut Elsbeth Golin
INTRODUÇÃO
Nossa Senhora é, seguramente, uma das figuras mais reverenciadas na religiosidade brasileira. “O povo
brasileiro é muito devoto de Nossa Senhora. Entre as 189 catedrais do Brasil, 104 são dedicadas a Maria.
Das 8.069 paróquias do território brasileiro, 3.216 são dedicadas a ela, com os mais diversos e curiosos
títulos. Temos 189 cidades brasileiras com o nome da Mãe de Deus”.
Maria aparece no imaginário popular especialmente como a santa poderosa e bondosa que intercede por nós,
a Mãe Divina. A proximidade com o fiel não se define pela semelhança conosco, mas sim pela sua
capacidade, enquanto alguém da esfera do divino, de vir em auxilio de seus filhos. A grande parte das
manifestações devocionais marianas gira em torno da oração de súplica, da Fe como entrega confiante nas
mãos da Mãe de Deus, do pedido de socorro em situações de extrema necessidade e angustia.
Isto causa dificuldade para o anuncio de uma Maria mais humana!
De um lado ela esta muito próxima, pois ouve nossos clamores e vem ao encontro. Por outro lado, esta
distante como referencia humana. E vista como santa demais para ser figura inspiradora de certos valores.
Maria é considerada também a Mãe. Modelo de mãe e de mulher. O discurso tradicional talvez tenha criado
um estereotipo de mulher que favoreceu o machismo – a mulher só se realizaria enquanto mãe, seu espaço é
o privado da casa, cuidando dos filhos e do marido, além de que Maria é Mãe e Virgem, o que tornaria o
prazer sexual proibido as mulheres... Sua realização viria da maternidade ou virgindade consagrada. Então
as mulheres que hoje assumem tarefas profissionais, lideranças... destoam do modelo da Mãe e Virgem...
Nos últimos 20 anos há um esforço para na pluralidade e diversidade do catolicismo atual descobrir outras
perspectivas de Maria
- Nos movimentos Pastorais Populares valorizou-se a figura humana e profética de Maria como sinal da
opção preferencial de Deus pelos pobres
- Na teologia feminista buscou-se resgatar a figura de Maria como mulher forte e comprometida com o
projeto de Jesus e do Reino. Ela não é modelo para as mulheres apenas, mas figura inspiradora para todo ser
humanos, homens ou mulheres.
Na AL e Caribe, diante do embate constante com as tantas igrejas evangélicas, Maria se torna cada vez mais
um símbolo da identidade católica. Isto não será problema se manterem-se abertas às portas de diálogo com
as igrejas cristãs que se dispõem a fazer um caminho conjunto.
Em varias partes do mundo hoje a figura de Maria tem sido utilizada a serviço de um questionável projeto
evangelizador. Exaltam-se os privilégios de Maria, prega-se obrigação da oração do rosário, usa-se o dogma
da virgindade para justificar preceitos da moral sexual, divulgam-se aparições de Maria e suas mensagens
como se fosse o 5º. Evangelho. Exagera-se o culto a Maria...
Neste contexto nosso estudo deverá nos ajudar a conhecer “quem é essa mulher” e iluminar uma prática
pastoral humanizadora, que seja Boa-Nova para homens e mulheres de nosso tempo.
Breve Historia da Mariologia
No 1º. Milênio foi gestado uma reflexão sobre Maria no conjunto da fé cristã e da teologia. Não havia
tratado de Mariologia separado. Durante a Patrística encontramos homilias sobre Jesus com referencias a
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Maria. Surgem histórias piedosas de Maria como “Protoevangelho de Tiago” e “Vida de Maria” do monge
Epifanio. A preocupação central está em Jesus, sua humanidade e divindade. E justamente destas polemicas
brotam os dogmas da maternidade e virgindade de Maria.
A Idade Média assiste ao crescimento da piedade marial. Em 1.153, São Bernardo escreve o “Tratado da
Santíssima Virgem”. No Oriente uma rica iconografia mariana e de hinos litúrgicos floresce. O culto vai à
frente da Teologia.
Na Idade Moderna surge a Mariologia sistemática. No séc. XVI diante da reforma protestante, que promove
um corte radical na devoção aos santos e Maria, centrando a salvação em Cristo e promovendo inclusive
destruição de imagens e pinturas, provoca a reação da Contra-reforma católica que retoma com mais vigor a
figura de Maria, em contexto polemico. Fortalece o culto a Maria separada da pessoa de Jesus. O 1º. Tratado
mariano é escrito por Francisco Suarez (1.584). E o termo “Mariologia” foi cunhado por Plácido Nígido em
1.602. A partir daí, criou-se uma mariologia dos privilégios. Tratava-se de mostrar o que Deus concedeu a
Maria e que a faz ser melhor do que os outros seres humanos. Deus podia, convinha que Deus fizesse, logo
fez! Por exemplo, Deus que é todo-poderoso, podia criar uma filha que não fosse manchada pelo pecado
original. Ora, convinha que fizesse isto, em vista da obra redentora de Cristo. Então Deus concedeu a Maria
o privilegio da Imaculada Conceição.
Nos séc. XVIII e XIX, diante do Iluminismo e do Império da razão, autônoma, anti-religiosa e
antieclesiastica, cresce uma Mariologia devocional, de cunho afetivo, na qual se misturam elementos
simbólicos e racionais. São Luiz Maria Grignon de Monfort (1.716), em seu “Tratado da verdadeira devoção
a Ssma. Virgem” relembra que Maria é rainha do céu e da terra. Depois citando Anselmo, Boaventura e
S.Bernardo diz que “ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem. Ao poder da Virgem tudo é submisso,
até Deus”. Esta se mostra a tendência de uma mariologia triunfalista e maximalista, dizendo que para Maria
não há limites, nunca é demais exaltá-la. Os dogmas da Imaculada (1.854) e Assunção (1.950) aumentaram
ainda mais a euforia mariana, pensando-se em um novo dogma “Maria co-redentora”.
Por volta dos anos 60, os movimentos de renovação da Igreja, que culminaram no Concilio vão em direção
contraria a Mariologia da época. Os movimentos bíblicos e patrístico, com a volta as fontes, pedem uma
maior centralidade na pessoa de Jesus, questionando uma visão de Maria desvinculada da Cristologia. O
movimento ecumênico propõe uma relativização de alguns elementos católicos, em favor do núcleo comum
as Igrejas cristãs. A renovação dogmática inicia uma releitura dos dogmas, a partir da Bíblia, desmontando a
Mariologia armada somente sobre argumentos da tradição.
O Concilio inseriu Maria no Cap. VIII da Lúmen gentium. Situou Maria no mistério de Cristo e da Igreja e
não num tratado a parte.
Na década de 1.970 a devoção e a teologia marianas entraram numa crise sem precedentes. Chegou -se ao
extremo de um minimalismo mariano ao se afirmar “já se falou demais sobre Maria. É tempo de se calar”.
Com a entrada do pensamento moderno na teologia, vem também suspeitas sobre a figura de Maria de
natureza psicológica, religiosa e política. A retomada da mariologia acontece após essa crise.
Atualmente a Mariologia expressa à pluralidade do mundo e de suas culturas. Há trabalhos bem recentes e
bem fundamentados sobre Maria na Bíblia, que constituem um importante campo de diálogo com as outras
Igrejas cristãs. Pessoas e grupos desenvolvem pesquisas sobre Maria no diálogo inter-religioso, com, o
islamismo, o judaísmo, os cultos afro-americanos e a religiosidade esotérica pós-moderna. Há contribuições
dos movimentos populares, da teologia feminista e da ecoteologia. Busca-se um paradigma abrangente, um
modelo de compreensão capaz de organizar, com sentido os dados da Bíblia, do culto e do dogma a respeito
de Maria. Cresce também uma teologia mística marial, centrada em Jesus e na Trindade, que visa balizar a
peregrinação espiritual de homens e mulheres. Por outro lado, reaviva-se a mariologia de privilégios, o
maximalismo mariano, a devoção proselitista, moralista de caráter dogmatista.
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É neste mar bravio de conflito de interpretações que o teólogo ousa elaborar sua mariologia. Não é uma
tarefa fácil!
Conceitos, Exigências e Tarefas da Mariologia
Conscientes das orientações do Concílio, os cristãos assumem o estudo da mariologia com solicitude,
seriedade, método, perseverança e ternura, esclarecendo e aprofundando seu conhecimento, sua reflexão e
sua cultura. De maneira didática, o estudo, que se baseia nas Sagradas escrituras e considera o contexto
atual, abrange a tradição e vida da Igreja, a história da mariologia, a compreensão dos dogmas marianos,
a reflexão teológica e cultural, o diálogo ecumênico e inter-religioso, o culto e piedade do povo, a
aproximação com as ciências humanas e a missão dos cristãos na Igreja e na sociedade.
Por definição, Mariologia é a disciplina teológica que estuda o lugar de Maria no projeto salvífico da
Trindade e sua relação com a comunidade eclesial. Enquanto saber teológico, a mariologia é uma reflexão
sistemática, crítica e sapiencial que parte da fé e a fé retorna. A melhor mariologia é aquela que nos ajuda a
seguir a Jesus com mais empenho e a compreender melhor aquilo que cremos.
A reflexão teológica sobre Maria se faz como uma escada de três degraus –
a) Nível básico – dados bíblicos sobre a mãe de Jesus, imprescindíveis para não se construir uma mariologia
sobre o vazio
b) Segundo nível – dogmas marianos, que condensam grande parte da reflexão eclesial sobre ela, sem
esgotá-la
c) Terceiro nível – o culto a Maria, compreendendo devoção popular e liturgia, sendo este o mais visível,
mas não o mais importante.
Os três níveis relacionam-se mutuamente, mas há uma prioridade da SE.
Uma boa mariologia exige, portanto, uma boa base bíblica, relacionando-os com o autor bíblico e a sua
teologia. Em seguida necessita-se percorrer a história da reflexão de fé da Igreja para compreender como
surgiram os dogmas e situá-los em seu contexto. Além disto, relacioná-los com outros campos da teologia
que falam de Jesus, da Igreja, do mistério do ser humano a luz da fé e de sua salvação (cristologia,
eclesiologia, antropologia teológica e soteriologia). Ou seja, o mariólogo passeia pela teologia e vai tecendo
a mariologia. O que prejudica é um horizonte estreito, que quer ver somente a Maria. Se você vai escrever
sobre Maria em Lucas, deve conhecer profundamente a teologia deste terceiro evangelista. Se quiser refletir
sobre o dogma da Assunção, deve ir fundo na disciplina da escatologia, que trata sobre a morte e
ressurreição, A reflexão precisa ser consistente e abrangente.
Por fim, a reflexão atual sobre Maria se faz com o olhar e o coração sintonizados na peregrinação existencial
e espiritual de homens e mulheres de hoje. Isto requer uma aguçada sensibilidade histórica e dialogal. Estar
atento não somente aos livros publicados, mas aos fatos e suas interpretações. Buscar conhecer as práticas
litúrgicas e devocionais marianas, resgatando e purificando seu sentido espiritual.
A Mariologia tem pela frente no mínimo quatro desafios e tarefas urgentes –
1) Descobrir o lugar apropriado de Maria – a Mariologia deve apontar a Jesus e ao Reino de Deus. Como
Maria, a Mariologia é “serva do Senhor”.
2) Colaborar no diálogo ecumênico e inter-religioso – durante muito tempo usou-se Maria como escudo
“contra” ..... Após o Vaticano II, a Mariologia bíblica cresceu e estabeleceram-se pontos de consenso entre
católicos, ortodoxos e protestantes das Igrejas históricas. Resta continuar este caminho, tocando os delicados
pontos dos dogmas marianos e do culto. Respeitar as diferenças e favorecer um aprendizado recíproco.
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3) Reinterpretar os dogmas – alguns dogmas são de difícil compreensão e questionável aceitação. Qual o
significado humano e espiritual da Virgindade Perpetua de Maria? O que dizer Imaculada Conceição numa
visão atualizada de graça e do pecado original? Não nos basta repetir o que disseram os concílios e os papas.
É preciso proclamar estas verdades de uma forma coerente com o avanço dos estudos teológicos e que
tenham um sentido para a vida cristã.
4) Enfrentar a questão das aparições – é impressionante como a passagem do milênio, suscitou tantas
pretensas aparições marianas, com mensagens apocalípticas e de conversão. Quais são legitimas? Para que
servem? A mariologia deve ajudar os cristãos a terem critérios de discernimento em relação a mensagens de
videntes e ao próprio movimento aparicionista.
Principais documentos mariológicos da Igreja promulgados nos últimos cento e cinqüenta anos:
*Papa Leão XIII: Encíclicas Magnae Dei Matris, 1892, Adiutricem populi, 1895, Augustissimae Virginis
Mariae, 1897.
*Papa Pio IX: Bula dogmática Ineffabilis Deus, de 8 de dezembro de 1854.
*Papa Pio X: Encíclia Ad diem illum laetissimum, 1904
*Papa Pio XI: Encíclica Lux veritatis, 1931.
*Papa Pio XII: Encíclicas Bulla Munificentissimus Deus, 1950, Fulgens corona, 1953 e Ad Caeli Reginam,
1954.
Concílio Vaticano II, Constituição Lumen Gentium, cap. VIII, 1964.
*Papa Paulo VI: Exortações Apostólicas Marialis cultus, 1974 e Signum magnum, 1967.
*Papa João Paulo II: Encíclica Redentoris Mater (1987), Exortação Apostólica Redentoris custos, 1989 e
Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, (2002).
Maria no Novo Testamento – Síntese da Mariologia de todos os evangelistas
1) Marcos (~60 dC): Maria = Mãe clânica do Messias
No primeiro evangelho escrito Maria aparece como imersa no meio de seu clã. Tem apenas um
nome, não um perfil definido. É ainda uma figura “sem relevo”, insignificante. Não tem uma
personalidade, mas é mera função. Quando aparece emergir, é restituída à irrelevância: Quem é
minha mãe? (Mc 3,33). Não é ele o filho de Maria? (Mc 6,3). Mc tem apenas uma “mariologia a
estaca zero”, uma mariologia a-mariológica. Para ele, Maria é como uma mulher qualquer. Paulo (Gl
4,4) tem uma visão parecida.
2) Mateus (~70 dC): Maria = mãe virginal do Messias, segundo as profecias
Em Mt, Maria emerge como uma “personagem” importante da História da Salvação (cf. genealogia).
Maria é mais que mãe clânica. Ela tem uma relação privilegiada e mesmo exclusiva com Cristo. É
toda cristocentrada: é inteiramente de e para Cristo. Pela sua virgindade, é testemunho e sacramento
do Messias, de sua origem e de sua natureza divina. Não possui, contudo ainda um “rosto” próprio ,
uma personalidade autônoma. É mais “mãe funcional” do Messias do que “mãe pessoal”.
3) Lucas (~80 dC): Maria = mulher livre, a crente por excelência e a mar do Messias
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Em Lc Maria já é uma personalidade: mulher responsável, autônoma, determinada. Tem um rosto,
um perfil, um caráter. Tem, em suma, uma identidade própria. De entrada, coloca-se, por assim dizer,
frente a frente com Cristo. Relação polarizada, tensa, mas finalmente (e totalmente) acolhedora. Se
Maria é um “ser para o outro” – Cristo – só o é a partir de seu “ser para si”, em força de sua
liberdade. Se for toda de Cristo, não o é por natureza ou destino, mas por decisão pessoal. É,
portanto, uma figura “destacada”, bem personalizada, bem individualizada. É pessoa que caminha,
cresce e se determina.
4) João (~90 dC): Maria = mediadora da fé (Cana), mãe da comunidade (sob a Cruz) e figura da Igreja
e da nova criação (Ap 12)
No corpo joanino, Maria é mais que mera personagem (missão) e até mais que uma personalidade
(pessoa): é “personalidade corporativa”. Seu significado supera sua pessoa individual. Ela possui
uma imensa radiância ou ressonância simbólica: ela representa a comunidade eclesial, a humanidade
salva, o cosmo redimido. João tem uma “alta mariologia”, uma mariologia simbólica. A Maria de
João transcende infinitamente a Maria de Nazaré.
Como se vê, há um crescimento impressionante nos evangelhos quanto ao entendimento do mistério
da Virgem Maria. E o processo continuou depois e continua ainda hoje.
Mariologia de Marcos
1) Mc 3,20-21: Os parentes de Jesus vem para detê-lo...
Os “seus”, trata-se dos familiares, dos parentes de Jesus. É a família tradicional, a família clânica.
Naquele tempo os laços de sangue eram da maior importância (cf. o interesse pelas genealogias). Os
“seus” estão chocados, pois Jesus está criando caso, está dando o que falar. O “mistério” de Jesus é
sentido como abalo, escândalo. Maria não é citada nominalmente, mas devia estar no meio da
parentada de Jesus como se entrevê na sequência do relato (3,31), Isto não deixa de ser chocante,
tanto é que MT e Lc omitem esse relato, porque o acham comprometedor.
O pequeno grupo de parentes de Jesus parte de Nazaré para Cafarnaum, são 35km, um dia de
viagem. A mãe está no meio deles, sabe-se lá com que sentimentos. Vieram não para prender Jesus
mas para detê-lo, apoderar-se dele sem violência, como convém com “gente de família”. Para que?
Para que ele volte à razão, pois está com um comportamento estranho, anormal, beirando ao
escândalo...
2) Mc 3, 31-35: Quem é minha mãe...?
O texto certamente é continuação do anterior. Mc agora diz que vierem chamá-lo, procurá-lo.
Nomeando a mãe, parece que Mc quer distingui-la dos “seus” em geral. A impressão anti-mariana se
atenua nesta interpretação e vai abrindo caminho para sua eliminação completa em Mt e Lc. A
pergunta, porém, quebra a expectativa corrente e introduz um elemento de surpresa: a família de
sangue fica relativizada, embora não supressa. O corte afetivo e espiritual – sempre dolorido – em
relação à família é um tema transversal em Mc (cf. Mc 1,16-20; 13,12) e esta exigência vale também
para a Mãe do Mestre. Ela, enquanto Mãe, não tem para Cristo maior importância, vista na ordem
em que Ele se põe: a do reino, a da vontade soberana de Deus. Jesus aponta para a sua nova família,
a comunidade que é embrião da Igreja: são os que fazem a vontade de Deus. Esta é a
revolução/revelação de Jesus. Ele rompe os laços de sangue, tão importantes na época. Daí também o
choque, o escândalo. Mc não diz nada da reação pessoal de Maria. Saberemos por Lc que ela ficava
“meditando” (2,51) e que cria, apesar de tudo (1,38.45).
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3) Mc 6, 1-6): Jesus em Nazaré: Não é este o filho de Maria?
Será mesmo que Jesus, como profeta, é desprezado também em sua casa, por sua própria mãe? Mc se
mostra a-mariológico, não diz nem que sim, nem que não. Aqui pela primeira vez Maria é nomeada
em Mc. Que significa “filho de Maria”? (6,3). É uma referência estranha e única no NT. Por que aqui
se cita a mãe e não o pai, como era costume? Seria uma expressão de difamação, o mesmo que dizer
Jesus é o filho bastardo? É improvável... Seria então uma expressão de descrédito e desprezo, como
se os nazarenos dissessem a Jesus, “quem você pretende ser, tua mãe é apenas uma Maria
qualquer...” esta hipótese é a mais provável e com isto Mc já estaria marcando a “kênosis”, a
humilhação daquele que é o Filho de Deus.
4) Resumo da Mariologia de Marcos
Para Mc, Maria era tão-somente a mãe carnal ou clânica de Jesus. A mariologia do evangelista é
elementar, primária, primitiva. Mc ainda não sabe nada da dignidade teológica da mãe de Jesus. Dá-
nos uma Maria sem mariologia, também como Paulo. Fica-nos a lição de que o “mistério de Maria”
em seus inícios, era tão obscuro que ficou praticamente invisível. O 1º. Evangelho sequer suspeita do
mistério que envolve Maria e que os outros evangelistas porão paulatimente à luz.
Mc nos diz que Maria, como todos os outros membros de seu clã, não compreendeu logo Jesus e sua
missão. Ele dá a entender que também Maria era ignorante do mistério de Jesus. A lição que nos fica
é que Maria começou sua peregrinação de fé (Cf. LG 58) praticamente do nada, do zero. Ela foi
crescendo a partir da obscuridade. Por isso mesmo, Mc tem que ser lido sinoticamente, junto com os
outros evangelistas. O valor de sua mariologia, embora rasteira e irrelevante, está em servir-nos
como instância crítica no sentido de não colocarmos a grandeza de Maria nos dados puramente
biológicos (porque genitora) ou nos traços sócio-culturais (porque mãe clânica). Mc nos provoca a
superar seu a-mariologismo para descobrir a importância teológica da Mãe do Filho de Deus (Mc
1,1).
Mariologia de Paulo
1) Gl 4,4: Feito de mulher... a fim de recebermos a adoção filial.
A mariologia de Paulo é pouco anterior e parecida e elementar tal qual a de Marcos. Gl 4,4 é seu único
texto mariológico. Gl foi escrita cerca de 56-57. É o primeiro texto mariano do NT. Quem sabe, Maria
ainda estivesse viva. Será que Paulo a conheceu em Jerusalém? É possível. Que dizer de Gl 4,4?
1) Seu sentido mariológico é genérico. Nascido de mulher indica apenas a condição humana,
especialmente em seu aspecto fraco e mortal. Paulo não diz exatamente “nascido” mas “feito”, talvez
para dar a entender que o Filho preexistia desde sempre...
2) Feito de mulher é uma expressão da kenose (esvaziamento ou humilhação) de Cristo. Corresponde a
outras expressões paulinas, como “fez-se maldição” (Gl 3,13), “fez-se servo” (Fl 2,5-8), “fez-se
pecado” (2Cor 5,21). Ser “filho de mulher”, fosse essa mulher Maria ou outra, não era para Jesus
sinal de glória, mas antes de humilhação.
3) O interesse do texto é puramente cristolõgico. É Jesus o foco de todo o texto, sendo Maria apenas
figura de contraste em relação à filiação divina, tanto a de Jesus como a nossa. Maria é anônima
neste texto, uma mulher sem identidade pessoal.
4) Assim mesmo podemos sustentar que Gl 4,4 contém uma mariologia germinal. Paulo não
aprofundou o mistério de Maria mas deste texto desprendem-se alguns dados mariológicos básicos,
tais sejam: - no arco da História da Salvação, Maria se situa no tempo da plenitude. Seu lugar é no
“centro escatológico”, definitivo da história, quando a nossa salvação se realiza; - ela está
estreitamente relacionada com o Filho e com o seu envio. Aqui temos uma mariologia absolutamente
cristocêntrica. O filho de Deus torna-se o filho de Maria. Ela serve de caminho para a vinda de Deus
até nós em seu filho; - É Maria que possibilita a adoção filial, conceito exclusivo de Paulo (cf. Rm 8,
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15.23; 9,4; Ef 1,45). Assim o Filho que “nasce sob a Lei para redimir da lei”, faz-se igualmente filho
de uma mulher, com o fim de fazer do ser humano “filho de Deus”. Assim, essa Mulher é também o
caminho pelo qual vamos a Deus.
Mariologia de Mateus
O cerne da Mariologia de Mt é: Maria é a Mãe virginal do Messias Salvador
1) Mt 1,1-16: Genealogia de Jesus
A genealogia de Mt quer destacar os seguintes pontos:
- Como descendente de Abraão, Jesus é membro do Povo de Israel. Mt escreve para judeu-cristãos.
Além disto, como descendente de Davi, a casa real, Jesus é herdeiro das promessas messiânicas.
Essas repousavam justamente sobre a dinastia davídica (2Sm 7,16), à qual pertence José, que Mt
chama “filho de Davi”. Quer dizer, adotando na lei e na fé a Jesus Cristo como filho, José o introduz
diretamente na linha das promessas messiânicas (Mt, 1,16)
- Em sua genealogia Mt cita cinco mulheres, não grande matriarcas, mas mulheres vivendo em
situação irregular ou excepcional: Tamar (Gn 38), a falsa prostituta; Betsabé, com quem Davi
adulterara; Rahab, a prostituta estrangeira (Js2); Rute, a estrangeira que casou com o velho Booz (Rt
4) e Maria, a suprema irregularidade: a virgem que se torna mãe. Por que essa referência a mulheres
estranhas? Certamente Mt quer sublinhar que a História da Salvação é conduzida pela soberania de
Deus e de mais ninguém. Os caminhos e descaminhos pelos quais passou o Messias para chegar até
nós e carregar assim os pecados da história humana, foram esses.
- A grande ruptura ou virada da linha genealógica: é o que há de mais notável, em seu final, quando o
curso natural das gerações, chegando a José, se interrompe bruscamente, dá uma guinada para o lado
da mulher e desemboca no Messias esperado. Maria é esse “ponto de inflexão” a partir do qual tem
início uma outra genealogia, a da nova humanidade, aquela gerada segundo o Espírito, fato esse que
é sinalizado justamente pela virgindade da jovem galiléia.
Não se pode deixar de notar a extrema relevância, “revolucionária”, que tem, do ponto de vista
feminista, esse modo de colocar a genealogia de Jesus. A nova genealogia inaugura a nova história
da graça e passa pela mulher, não pelo varão que continua a dominar a cena da “velha história” do
pecado.
2) Mt 1, 18-25: O anúncio a José
Todo o relato se concentra, não como parece, na questão da concepção virginal do Messias no seio
de Maria, mas na ascendência davídica de Cristo através de José. Este é aqui o protagonista, não
Maria como em Lucas. Por que José? Porque Mt escreve para os judeus, que esperavam, como
Messias, um davídide. Mas, como se trata de uma ascendência “segundo o Espírito” e não “segundo
a carne”, entra também a Virgem, mas como por tabela. Ambos, é claro, José e Maria estão a serviço
do Redentor.
a) Maria... fora prometida em casamento a José (v. 18ª)
Maria era “noiva” de José. Entre os hebreus, a noiva tem todos os deveres e direitos da esposa
legal: fidelidade, auxílio mútuo, assunção de uma eventual gestação, etc. O noivado hebraico
corresponde ao nosso casamento.
b) Grávida por obra do ES (v.18b)
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Trata-se de uma concepção pneumática ou espiritual, isto é, realizada por obra do ES, expressão
que volta duas vezes (v. 18 e 20). O foco central não é mariológico, mas cristológico. Embora
não excluída, mas antes implicada, a Virgem está aí num papel subalterno, subordinado a Cristo.
Sua virgindade é uma seta que aponta para o Filho de Deus. A concepção virginal diz respeito,
primeiro a Jesus, e só depois a Maria.
c) E lhe porás o nome de Jesus (v.21)
Impor o nome a um bebê é assumi-lo como filho. Isso faz de José o verdadeiro pai de Jesus,
como afirma Françoise Dolto: “é preciso dizer que, freqüentemente, se faz confusão entre pai e
genitor. O homem precisa de três segundos para tornar-se genitor. Ser pai é uma aventura de
outra natureza. Ser pai é dar o próprio nome a seu filho, é pagar com seu trabalho a subsistência
dessa criança, é educá-la, instruí-la, chamá-la para mais vida... É muito diferente! Melhor, talvez,
se o pai é genitor, mas você sabe, só existem pais adotivos. Um pai deve sempre adotar seu filho.
Alguns adotam sua criança ao nascer, outros alguns dias depois, mesmo algumas semanas mais
tarde; outros irão adotá-la quando falar, etc. Só existem pais adotivos!”
d) Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho... (v.23)
A virgindade de Maria é um dado mateano seguríssimo, em base ao qual a teologia ulterior
desenvolveu seu significado teológico mais amplo. Trata-se de uma virgindade real e integral: do
corpo, dos sentidos e da mente, e não apenas simbólica. É referida em Mt 1 nada menos que
quatro vezes (vv. 18, 20, 23 e 25).
e) E despertando do sono, José... recebeu em sua casa sua esposa (v.24)
Doravante, José convive com Maria como sua verdadeira e legítima esposa (Mt, 1,25). Como
José é pai verdadeiro (embora, ou melhor, porque adotivo) de Jesus, assim ele é também o
verdadeiro esposo da Virgem. E esta é chamada por Mt de esposa de José (Mt 1, 20.24). De fato,
o que faz a essência do casamento é o consensus, ou seja, o amor, e não o concubitus, isto é a
relação sexual. O que faz o casamento é a união dos corações e não apenas a união dos corpos
(cf. João Paulo II, Redemptoris custos 7,5). Ora, no casamento de José e Maria, havia união
conjugal, embora não união sexual, o que é bem outra coisa. Agora, que José tenha sido um
verdadeiro companheiro responsável e amoroso da Virgem mostra-no claramente os episódios da
infância de Jesus, onde aparece unidíssimo à esposa.
f) E não a conheceu até que ela deu à luz...
A expressão “não a conheceu até” é um semitismo que vale somente para o passado, no sentido
de “sem que ele a conhecesse...” como faz a TEB. Isso fica claro, por ex. em 2Sm 6,23: Micol...
não teve (mais) filhos até o dia de sua morte... ou 1Sm 15,35: Samuel não voltou a ver Saul até o
dia de sua morte.
3) Mt 2, 10-20: Visita dos magos e fuga para o Egito
O episódio dos magos não é propriamente história, mas midrash, isto é, uma história construída
para fins de edificação. Isso, contudo, não impede que o midrash tenha sido arrancado de um
núcleo histórico, proveniente de reminiscências familiares. Podemos destacar três linhas de
sentido mariológico na estória/história dos magos:
a) Eis que magos, vindos do Oriente, chegaram a Jerusalém
Maria aqui aparece como a nova Jerusalém e o novo Templo. O relato dos magos evoca Is
60, que descreve Jerusalém toda iluminada, feita centro do mundo e para a qual se dirigem os
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povos da terra com seus reis, trazendo suas riquezas (é justamente a 1ª. leitura da missa
romana da Epifania). A essa luz, a Virgem-mãe emerge como a nova Capital sagrada. É para
ela que se dirigem os Povos para encontrar o Rei salvador (o que, alíás, se verificará com os
futuros santuários marianos). Onde encontrar Jesus? Em Maria. É ela agora a sede ou o trono
do novo Rei. Ela é o novo templo, onde habita Deus e onde é adorado. A Igreja do Oriente
sublinhou muito esse sentido. Por ex. numa igreja de Istambul se vê Maria fazendo dos
braços o trono de Jesus e levando esta escrita: O lugar do Sem-lugar!
b) Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua mãe.
Maria aqui emerge como a rainha-mãe. Essa é uma cena de corte, como viram os grandes
artistas que a retrataram com pompa e circunstância. Aí Jesus-menino aparece como o rei dos
judeus e também rei das nações. E é a esse título que recebe também as homenagens reais: a
prostação e a entrega de dons, caracterizados pela excelência. A Virgem, sustentando o filho
real em seus braços, faz o papel de Rainha-mãe, de Regente. O povo o sabe e o demonstra
saber ao coroar Maria ao termo do mês de Maria. A figura da rainha-mãe no mundo bíblico é
muito importante, mais do que a rainha-esposa. Por ex. tomemos o caso da rainha Betsabéia:
como rainha-esposa, é ela que se inclina e se prostra diante do rei (1Rs 1,16), Davi seu
esposo. Já como rainha-mãe, é o rei Salomão, seu filho, que se prostra diante dela (1Rs 1,19).
c) O menino e sua mãe
Maria, enfim, se mostra companheira inseparável do Filho. É notável o fato de que Mt use
nada menos que quatro vezes esta expressão (Mt 2,11.13.14.20). Isso denota a comunhão de
destino de Maria com o de seu filho. Ela aparece como companheira do Redentor (motivação
da LG 57-58). Quer dizer Maria participa da carreira humana e salvífica do Messias numa
extraordinária proximidade.
d) Maria na vida pública de Jesus
- A família de Jesus e os seguidores (Mt 12,46-50): O relato está num contexto diferente de
Mc. Ao final do cap. 12, que narra os sinais libertadores operados por Jesus e o conseqüente
confronto com fariseus e escribas. Antecede as parábolas do reino. Mt retira o versículo que
fala da incompreensão dos seus familiares. Jesus convoca todos, inclusive seus familiares, a
fazerem a vontade do Pai, a fazerem parte da comunidade dos seguidores.
- O profeta rejeitado na sua terra (Mt 13, 53-58): Mt também relata a incredulidade do povo
de Nazaré. No lugar da expressão filho de Maria, usa filho do carpinteiro. Ao citar os que
rejeitam o profeta, retira a “parentela”, embora o termo “sua casa” mantenha alusão ao núcleo
mais próximo.
4) Resumindo a Mariologia em Mateus
. No Evangelho de Mc, nada se diz explicitamente sobre as qualidades humanas e espirituais de
Maria. Ela é colocada no meio dos familiares de Jesus. E, conforme o primeiro evangelista, Jesus
rompe os laços familiares e locais para poder anunciar, com maior liberdade, o reino de Deus. Isto
provoca conflito com seus familiares e conterrâneos. Mais ainda, Jesus constitui, com o grupo dos
seus seguidores, uma nova família, não mais centrada nos laços biológicos. No Evangelho de Mc já
se coloca a questão dos irmãos de Jesus. E, para Mc, ao menos Tiago e Joset, chamados irmãos de
Jesus, são filhos de uma outra Maria.
. Mateus dá um passo a mais, em relação a Mc, ao apresentar Maria como a mãe virginal do Messias.
Nos relatos de infância, ele mostra Maria como a mãe associada ao destino do filho. Provavelmente
em virtude dessa visão positiva sobre Maria e da participação importante de Tiago (o “irmão do
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Senhor”) nas comunidades cristãs de origem judaica, Mt reduz o conflito de Jesus com sua família.
Mas Maria não aparece, ainda, como protagonista de uma história. Não pronuncia nenhuma palavra,
não demonstra nenhum gesto que revele sua pessoa.
Mariologia de Lucas
Peregrina na fé e perfeita discípula
Lucas é um habilidoso artesão da Palavra de Deus e com esta habilidade pinta os traços da figura de
Maria. Lucas enfatiza a figura de Maria como a mulher de fé por excelência. Ele coloca nisso um antes e
um depois: antes a Virgem aparece como mulher livre, que aceita consciente e responsavelmente a
Palavra de Deus; depois, Ela surge como a Mãe do Senhor, precisamente a partir de sua aceitação de fé.
Os textos mais importantes concernentes s Maria são três: Anunciação, Visitação e Magnificat. Há
dezenas de textos menores, aos quais faremos breve referência no final.
1) Lc 1, 26-38: Anunciação
Este é o texto relativo a Maria mais importante de todos. É o texto mais prenhe de sentido
mariológico, representando uma cena evangélica em que a Virgem está no centro, como a grande
protagonista. É o texto que traça de forma mais nítida o retrato humano e espiritual de Maria. É o
texto mariano mais usado na Liturgia. É o texto mais citado pelos Padres da Igreja. É o texto que
retrata a cena mariana mais pintada pelos artistas.
Comparamos logo de início, o Anúncio a Maria com o Anúncio a Zacarias, onde aparecem os
contrastes: mulher/varão, jovem/ancião, virgem-noiva/casado, leiga/sacerdote, Nazaré/Jerusalém,
casa/Templo, quotidiano/liturgia, crente/incrédulo, filho-messias/precursor, filho-iniciativa-do-
Alto/resposta-à-oração, canto-antes-do- nascimento/canto-depois-do-nascimento.
a) No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus
Aqui, na Anunciação a Maria, Gabriel aparece como o grande embaixador de Deus para o tempo
novo que está por vir (Dn 8 e 9). Ele vem tratar com Maria, uma pobre moça da Galiléia, da causa
máxima: a obra dos séculos, a salvação do mundo. Impressiona que a interlocutora do Anjo do
senhor não seja um homem, mas uma mulher, e uma mulher pobre.
Enquanto o Arcanjo Gabriel é, nessa altíssima negociação, o representante da parte de Deus, Maria o
é da parte da humanidade.
b) ... a uma cidade da Galiléia chamada Nazaré
Maria é uma mulher da Galiléia dos gentios (Mt 4,15), região mestiça e pouco ortodoxa, desprezada
pelos judeus da capital. É uma vila do interior, lá onde o diabo perdeu as botas, “mal-afamada” (Jo
1,46)
c) ... a uma virgem...
Será virgem ou simplesmente jovem como traduz a TEB? O texto original traz “parthénos” que
indicava uma moça biologicamente virgem ou pelo menos descomprometida, sem marido.
d) E o nome da virgem era Maria
Entre os hebreus o nome carrega um sentido, indicativo da missão de seu portador. Maria é um nome
misto, cuja raiz egípcia mri quer dizer amada, querida, preferida e cuja desinência hebraica ya é
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naturalmente a abreviação de Yahweh. Então, Amada de Javé. Na verdade, ela era chamada no dia-a-
dia Mariam, forma aramaica de Miryam.
e) Alegra-te
Chaire: é a saudação jubilosa, inspirada nos oráculos messiânicos dos profetas pós-exílicos,
sobretudo Sofonias que ressoa em todo o relato lucano, mas também Zc (2,14-15; 9-9-10) e Jl
(2,21,27).
Sofonias 3, 14-17 Lucas 1, 28-33 Alegra-te..., filha de Jerusalém (v.14) Alegra-te, ó cheia de graça (v.28)
O Senhor... está no meio de ti (v.15c) O Senhor está contigo (v.28)
Não temas, Sião (v.16) Não temas, Maria (v.30)
O Senhor, teu Deus, está em teu seio (v.17) O Senhor está contigo (v.28) - Conceberá em teu seio (v.31)
Salvador poderoso (v.17) E lhe darás o nome de Jesus (=Deus salva) V.31)
Rei de Israel (v.15c) Ele reinará sobre a casa de Jacó (v.33)
Esse paralelismo mostra que Maria personifica todo o Israel, chamado aqui de Sião. Ela é o Povo de
Deus concentrado, representa o Povo da Aliança e através dele, toda a humanidade, toda a Cr iação
que espera e responde em Maria.
f) Cheia de graça
É uma palavra única que aparece somente aqui no NT. Indica uma ação que permanece, agraciada,
plenificada ou transbordante de graça. Em Lc o termo está em lugar do nome próprio. O anjo não
diz, como costumamos, “Ave, Maria”, mas “Exulta, kecharitoomènee”! É como se este apelativo
definisse Maria diante de Deus. É uma expressão tão nova e estranha que deixa Maria perturbada e
pensativa. Aí está a semente do dogma da Imaculada Conceição.
g) Ela ficou intrigada... e põs-se a pensar qual seria o sentido...
Humanamente falando, Maria aparece dotada de uma subjetividade rica, interrogativa, reflexiva. É
uma mulher consciente, responsável, diríamos hoje “madura”. Ela encarna a figura do sábio, que
medita a Lei do Senhor dia e noite (Sl 1,2). Ela tem a psicologia própria da pessoa crente por
excelência, que pensa nas coisas misteriosas de Deus, como insiste Lc (2,19.51). Nesse sentido,
Maria é também a figura do teólogo, em sua busca da inteligência da fé.
h) Tu lhe porás o nome de Jesus
Impor o nome é um ato de auto-responsabilização. Assim foi com Adão em relação aos animais no
Paraíso (Gn 2,19-20). Portanto, dando o nome ao filho, Maria assume, contra os costumes da época,
a responsabilidade do mesmo. Em Mt foi diferente, José é quem imporá o nome a Jesus (Mt. 1,21).
Que significa Jesus? O nome com que Maria chamava o filho (Ieshuah) , significa “Javé (é ou dá) a
salvação”, tal qual Mt explica em 1,21. É um nome bastante comum naquele tempo.
i) ... o trono de Davi seu pai; ele reinará para sempre
Referência clara para Maria de que seu filho será o Messias-rei, segundo as profecias de 2Sm 7
(dinastia perene de Davi), de Dn 7 (Filho do Homem, que recebe o reino eterno) e do Sl 110 (Disse o
Senhor a meu senhor). Maria compreende que, quanto a ela, vai se tornar a Rainha-mãe.
j) Como se fará isso, se não conheço homem?
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O “como” interrogativo da Virgem é um novo sinal, indicativo de uma personalidade interrogativa,
atenta, de olhos abertos. Maria é do interior, mas não se mostra por isso moça ingênua. Sabe das
coisas, também as que lhe dizem respeito como mulher. Daí a pergunta franca: como... se não
conheço, ou se não tenho relações... tal é o sentido do conhecer bíblico (Gn 4, 1.17.25; 19,9; 24,16,
etc.) Com a pergunta, Maria deixa pressuposto que é virgem. Mas será que é apenas “virgem por
enquanto” (é só noiva) ou que será “virgem para sempre”, como interpretou uma longa tradição,
pensando no “voto de virgindade” que a jovem nazarena teria feito?
k) O Espírito Santo virá sobre ti e o Poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra
Esse é o vértice do relato, assinalado pela intervenção do Espírito na geração do Messias. O verbo
cobrir com a sombra, ou ensombrear, evoca a Nuvem misteriosa do Êxodo que ensombreava a Tenda
da reunião, transformando-a na Morada de Deus (Ex 40,34), Nm 10,34). Lc parece aqui sugerir o
seguinte e maravilhoso sentido: cobrindo a Virgem com sua sombra e tornando-a fecunda do Filho
de Deus, o ES transforma Maria na nova Casa de Deus, Shekinah, Tabernáculo do encontro, onde a
humanidade pode entrar em comunhão com seu Deus. O uso da metáfora “sombra” por Lc indica
também que aqui não há a mais leve possibilidade de erotismo, mas tão somente Amor puro e
fecundo.
l) Ele será santo e será chamado Filho de Deus
Que sabia a Virgem de Nazaré da identidade profunda do Filho? Ela devia conhecer ou, melhor,
intuir a identidade divina de Jesus de modo geral e atemático, como num relance, mas não
certamente de forma clara, explícita e verbalizada. Isso viria com o tempo: ela avançou em
peregrinação de fé (LG 58). Como toda a comunidade de fiéis, ela também caminhou da penumbra
para a luz, em direção à verdade plena (Jo 16,13)
m) A Deus nada é impossível
A encarnação e a virgindade de Maria são fatos que se põem na esfera das possibilidades divinas.
Fora disso são incompreensíveis. Portanto, não se podem medir esses mistérios com o metro das
possibilidades humanas, desvendadas pela razão natural. A virgindade de Maria é apenas um espaço
oferecido à fecundidade do Spiritus creator.
n) Eis aqui a serva do Senhor
Temos aqui mais um traço, o mais característico, do perfil psicológico e teológico de Maria de
Nazaré: mulher que decide, que assume e diz sim de modo livre e determinado. A sua foi uma fé
ativa e obediente. Envolveu-se de corpo e alma. “Serva” é o único título que Maria se dá – e por duas
vezes (a outra em Lc 1,48) não como marca da condição social (escrava), mas espiritual, como auto-
disposição para Deus. “Como os olhos da Serva... para a mão de seu Senhor...” Sl 123,2.
o) Faça-se em mim segundo a tua palavra
Com seu Fiat total à Palavra, Maria se mostra a primeira e mais perfeita discípula de Cristo (cf. Paulo
VI, Marialis Cultus 35 e João Paulo II, Redemptoris mater, 20). Há diferença nos imperativos “faça -
se a tua vontade” do Pai-Nosso (Mt 6,10) e da oração do horto (Mt 26,42) e o optativo “oxalá se
faça” de Maria, este indicando uma disposição alegre, um desejo ardente, um anseio íntimo para que
se cumpra a palavra do Anjo, o plano do Senhor
Conclusão da Mariologia da Anunciação
Maria aparece aí como figura da liberdade humana, de uma liberdade que é poder de entrega, mas
também de recusa. Ela vive a aventura dramática da liberdade, com seus cumes de luz, mas também
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com seus vértices tenebrosos. A Virgem emerge também como imagem de uma liberdade concreta,
que diz Sim à Palavra. Por isso ela é igualmente figura da fé, como ato de uma liberdade que se abre
toda à oferta da graça e do amor.
2) Lc 1, 39-45: Visitação de Maria a Isabel
a) Levantando-se, Maria partiu com pressa
O levantando-se mostra a iniciativa autônoma de Maria de partir para as montanhas. Não se diz que
tenha avisado o noivo ou quem quer que seja. Empreende por conta própria uma longa viagem com
mais de 120 km. “O amor sempre tem pressa”. A Virgem é levada pelo amor, seja ao filho que traz
no ventre, seja à prima em necessidade, seja simplesmente à vontade de Deus. Essa pressa é sinal de
solicitude e disponibilidade. Na Visitação a Virgem mostra o que significa ser uma serva em ação.
b) Saudou Isabel
Maria “entra na casa de Zacarias e saúda Isabel” (v.40). Aqui o varão é deixado de lado e a atenção
toda vai de mulher para mulher. Duas mulheres e mulheres grávidas, isto é, agraciadas pelo dom da
vida – e que vida! Maria aparece aqui como primeira evangelizadora, aquela que leva, por primeiro,
ao mundo a mensagem da Boa-nova. O Messias salvador chegou! Isso, porém, depois de ter sido a
primeira evangelizada, justamente através do Anjo anunciador.
c) Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu em seu ventre
A saudação de Maria é como a que Ela recebeu do Anjo: Alegra-te! Essa saudação, na boca da
Virgem, anuncia e produz o que anuncia, isto é, alegria. O mexer-se do feto no seio da mãe é a
experiência natural de toda mulher em estado de gravidez avançada. Isso, porém, aqui é interpretado
como um sobressalto de alegria, tal como dirá logo Isabel (v.44) e, ao mesmo tempo, como um
primeiro anúncio do Precursor em relação ao Messias. E ambos se encontram ainda no ventre de suas
mães. Acresce que, pelo filho, Isabel também reconhece a presença do Messias e, por conseqüência,
reconhece Maria como a Mãe do Senhor e proclama tal mistério (v.44).
d) Isabel ficou cheia do Espírito Santo
A presença do Messias, no seio de Maria, não desperta somente alegria, mas provoca também a
descida do espírito sobre Isabel. Vemos, portanto, que são três os dons que Maria leva a Isabel: a
alegria da salvação, o Cristo-Messias e o Espírito Santo. Três dons maravilhosos e salutares.
e) Bendita és tu entre as mulheres
É um elogio mas também uma bênção que foi aplicada no AT a duas mulheres corajosas e
astuciosas, mulheres libertadoras do povo em momentos de grande opressão: Jael (Jz 5,24) e Judite
(Jt 13,18). Jael que fingiu proteger Sisara, o general inimigo em fuga, enfiando-lhe nas têmporas um
piquete de tenda e Judite, que apelando para seu poder de sedução feminina, embebeda Holofernes, o
chefe do exército assírio, para, em seguida, cortar-lhe a cabeça. Maria é a herdeira superior dessa
tradição feminino-libertadora do AT. Ela está na linha das libertadoras do AT , ultrapassando-as,
porém, imensamente. Bendita entre – é a forma hebraica do superlativo – Tu és a mais bendita...
Portanto, Maria é a mulher mais excelsa dentre todas as mulheres. Estamos no campo da mari-
eulogia, isto é, da louvação à Maria, húmus nutridor de toda Mario-logia. Como para a teologia,
também para a mariologia, a oração precedeu à reflexão.
f) E bendito é o fruto do teu ventre!
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A exclamação de Isabel atesta e ensina que Maria, quando exaltada, há de ser sempre associada a
Jesus, como a árvore ao fruto, ou a fonte à água. A bênção tem por função reforçar a energia vital.
Está, portanto, ligada à fertilidade e a vida em geral. É o que diz o longo discurso das promessas de
bênção do Dt 28,4: bendito o fruto do teu ventre, do teu solo e dos teus animais, tanto de tuas vacas
prenhes como te tuas ovelhas grávidas... A bênção passa pelo ventre materno...
g) Como me é dado que venha a mim a Mãe do meu Senhor?
É uma reminiscência da exclamação de Davi: Como poderia vir à minha casa a Arca do Senhor?
(2Sm 6,9) São tantas as evocações entre a transladação da Arca e a visita de Maria a Isabel que
parece ser impossível que Lc não tenha pensado em Maria como a nova Arca da Aliança. Vejamos o
paralelismo entre os dois eventos:
Transporte da antiga Arca: 2Sm 6, 2-16 Visita de Maria, nova Arca: Lc 1,39-45
Contexto geográfico Davi e o povo “partiram de Baale-Judá”
lugar da Arca (v.2)
“Maria partiu... para uma cidade de Judá
(v.39)
Expressões de Alegria Davi, com seu povo, dançou (v.5), com
alegria (v.12), saltando e ropopiando
(v.14.16)
O menino (Batista) estremeceu de alegria
no seio da mãe (v.41.44)
Aclamações (litúrgicas) A Arca subia entre aclamações e ao som da
trombeta (v.15; cf. 1Cr 15,28)
Isabel exclamou com um grande grito
(v.41-42)
Efeito de benção Pela Arca “o Senhor abençoou a Obed-
Edom e sua casa” (v.1-12)
Isabel ficou cheia do Espírito Santo (v.41)
Temor reverencial Davi: Como poderia vir à minha casa a Arca
do Senhor? (v.9)
Isabel: como me é dado que venha a mim
a Mãe do meu Senhor? (v.43)
Tempo de permanência A Arca ficou na casa de Obed-Edom por
três meses (v.11)
Maria ficou com Isabel cerca de três meses
(v.56)
Agora, não é mais uma arca de madeira que carrega a presença e a aliança de Deus, mas o corpo vivo
e santo da Virgem nazarena.
h) ... a Mãe do meu Senhor...
É o título dogmático maior de Maria no NT. Senhor é Adonai em hebraico, um nome divino,
reservado em princípio a Deus, mas participado ao Rei, seu lugar-tenente (Sl 110,1; 45,7). E é
também atribuído ao Messias, como dirão os anjos no Natal: Cristo Senhor (Lc 2,11). Portanto a
evolução semântico-teológica de “Senhor” é: Rei – Messias – Deus. Maria aparece em Lc como a
Mãe do Rei, que é o Messias, que é o próprio Deus.
i) Feliz aquela que acreditou, porque o que lhe foi dito da parte do Senhor se cumprirá
Esta expressão revela a identidade espiritual de Maria: ela é a crente por excelência. Temos aqui a
primeira bem-aventurança do NT. Fala da alegria da fé, como iria repetir o Ressuscitado: Feliz de
quem crê sem ter visto (Jo 20,29). A fé, de certa forma, torna possível a realização das promessas: o
que te foi dito da parte do Senhor se cumprirá (v.45). Ou seja, sem a fé (de Maria) não teria havido a
salvação (da humanidade).
3) Lc 1, 46 – 55: Magnificat, o canto da libertação messiânica
O Magnificat é o texto bíblico mais longo colocado na boca de Maria. Aqui não se fala de Maria,
mas é ela mesma quem fala de Deus e das maravilhas que realizou nela, no mundo e em seu povo.
Em Puebla o Magnificat foi declarado “o espelho da alma de Maria” e o “cume da espiritualidade
dos pobres de Javé e do profetismo da antiga Aliança”, “o prelúdio do Sermão da Montanha”. Além
disto, este hino oferece uma síntese da espiritualidade cristã em ótica mariológica, é a “ Mariologia
da Libertação”.
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Todo o cântico ressoa de citações ou evocações vetero-testamentárias, especialmente em relação ao
Cântico de Ana, pronunciado por ocasião de seu filho Samuel (1 Sm 2, 1-10). “O Magnificat é um
mosaico de textos escritos com as lágrimas dos pobres de Israel: todas as humilhações, os desprezos
e as opressões que suportaram os pobres da parte dos ricos, Maria os endereça, em forma de hino e
louvor, ao Deus que faz maravilhas..., ao vingador dos oprimidos... e o guerreiro de Israel dá a cada
um o seu” (R. Ortega).
O Magnificat se organiza em três partes: a ação divina em Maria: mensagem pessoal; b) ação divina
na humanidade: ação social; e c) ação divina no Povo de Israel: mensagem étnica.
3.1) Ação de Deus em Maria: mensagem religioso-pessoal (Lc 1, 46-49)
a) A minha alma engrandece o Senhor
O clima aqui é de sagrado entusiasmo. É uma ode a Deus. Vibra um fervor transbordante. Algo que
nasce da profunda experiência de Deus, de seu poder e de seu amor. A escola do Espírito, como
declara Lutero: como a água fervente transborda e espuma porque não pode mais se conter na panela
por causa do grande calor, assim são as palavras da beata Virgem neste canto, poucas, mas profundas
e grandes. A pessoas assim S. Paulo chamava “fervorosos no Espírito” (Rm 12,11), i.é
espiritualmente ferventes e espumantes, e nos ensina a sermos assim.
b) E exulta meu espírito em Deus meu Salvador
Maria mostra-se jovem e alegre nesta parte do cântico. Não seria de admirar se ensaiou um passo de
dança. Ela se alegrou inteira, com seu sentimento e com sua inteligência.
c) Porque olhou para a pequenez de sua serva
Aqui, para Maria, “pequenez”, “tapeinoosis”, significa em primeiro lugar, a humilhação social, a sua
insignificância social, ou talvez mesmo, seu estado de virgindade, pouco valorizada entre os judeus,
tanto mais se fosse permanente. Mas significa também a humildade moral. Trata-se então de uma
virtude pessoal da Virgem, que assume com coragem sua pouca importância social e se entrega a
Deus cheia de temor e de confiança, exatamente como uma verdadeira “pobre do Senhor”.
Igualmente “sua serva” é título de honra e de humildade: honra porque a serviço do Onipotente,
humildade porque na dependência de um outro sempre maior. Servo é o instrumento da vontade de
Deus na história. Assim os grandes homens do AT foram chamados servos, especialmente Moisés no
livro de Josué, eles atuaram como mediadores do plano divino da salvação. Maria se proclama serva
porque totalmente a serviço de Deus. É seu título de grandeza e também de pequenez, é assim que
ela entende sua identidade e sua missão. Esta é sua auto-mariologia.
d) Todas as gerações hão de chamar-me de bendita
A maternidade na Bíblia é sempre uma bênção de Deus e uma felicidade para a mulher. Tanto mais
aquela que será a Mãe do Messias, como proclamara Isabel (Lc 1,42). Na verdade o elogio a Maria já
começa com o Anjo que a saúda cheia de graça (Lc 1,28), seguido por Isabel que a proclama bendita
entre as mulheres, bem-aventurada porque acreditou, posteriormente a mulher popular que a
proclama feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram (Lc 11,27) e o próprio Jesus que
a chama “Mulher”, entendendo-a como nova Eva, a Mãe da nova humanidade (Jo 2,4; 19,26).
Esta é a mari-eulogia, feita de admiração e do amor que continua história afora, inclusive fora do
cristianismo. Não teve mulher “mais cantada em prosa e em verso” do que ela; nem outra mais
representada pelo pincel dos artistas, nem uma princesa que tivesse palácios mais esplêndidos do que
ela, com suas catedrais e com seus santuários.
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e) O Senhor fez em mim grandes coisas
Grandes coisas são: a) as grandes libertações realizadas por Deus na história de seu povo: a egípcia, a
babilônica e a messiânica no fim dos tempos; b) são também as maravilhas realizadas no deserto: o
maná, a água da rocha, a serpente de bronze, etc. c) são ainda as libertações da esterilidade: Sara,
Rebeca, Raquel, Ana, etc. e d) são as libertações contadas por grandes mulheres como Miryam (irmã
de Moisés), Ana (mãe de Samuel); Débora (a juíza), Jael (matadora de Sísera), Judite (que decapitou
Holofermes), Ester (intercessora do povo), MAIOR do que todas porém é a libertação da qual Maria
é portadora: a libertação soteriológica e escatológica.
3.2) Ação de Deus na história humana: mensagem religioso-social (Lc 1, 50-53)
A segunda parte do Magnificat é o “núcleo duro” do cântico. Se a parte anterior lembra a Pastoral de
Beethoven, esta evoca a Heroica. O hino assume um tom enérgico, vigoroso. D. Bonhoffer diz: “Não
fala aqui a doce, terna e sonhadora Maria das imagens, mas uma Maria apaixonada, impetuosa,
altiva, entusiasta. Nada dos acentos adocicados e melancólicos de tantos cantos de Natal, mas o canto
forte e duto, impiedoso dos tronos que desmoronam, dos senhores humilhados, da potência de Deus e
da impotência dos homens”.
a) Seu amor para sempre se estende ... sobre aqueles que O temem
O NT grego trás eleos, que traduz duas palavras hebraicas: a) hedsed, amor de solidariedade, de
libertação, que é de tipo mais masculino e b) rahamin, amor de compaixão, amor entranhado,
visceral, de tipo mais feminino. Maria vê o amor de Deus cobrindo a história inteira e movê-la...
contudo é preciso acolher o amor de Deus. Os que “temem a Deus” (o acolhem) são os anawim.
Estes são o objeto da graça de Deus e de sua ação libertadora. Na história eles são os pequenos e
fracos, os humildes, os famintos.
b) Manifesta o poder de seu braço
Esta expressão nos reporta ao Deus libertador e vitorioso na obra da Criação (Sl 89,11), no êxodo
egípcio (Sl 136, 11-12). O Libertador agiu ontem na história, age hoje em Maria e agirá amanhã na
caminhada dos humildes e dos pobres. É também o sentido dos cinco verbos seguintes... dispersa,
derruba, eleva, sacia, despede.
c) Dispersa... os orgulhosos ... nos pensamentos de seu coração
Maria não proclama e destruição física dos soberbos. O termo dispersa, embora seja um termo
militar que significa a derrota do inimigo (Sl 89,11; At 5,37) evoca também a idéia de desarticular,
tirar a força do adversário, anular seus projetos. Ninguém melhor do que a Virgem sabe que Yhwh
não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ez 33,11). Apesar do vigor revolucionário
da linguagem de Maria, não há nela a dinâmica da vingança, da lei do talião. Ela até mesmo corrige o
cântico de Ana a qual fala por duas vezes em inimigos e que serão esmagados. A revolução de Maria
é a da Misericórdia, da mansidão, da paz, da graça, do amor, da alegria.
São os arrogantes (espirituais) que encarnam historicamente os poderosos e ricos. Poderosos,
opressores do povo citados em Tobias, Macabeus, Judite, Ester e Daniel. Maria deve ter pensado, de
imediato, em Herodes, Augusto, quem sabe Anás e Caifás e mais longinquamente no Faraó,
Nabucodonosor, Antíoco IV...
É sobretudo no coração, no íntimo do ser humano que se enraízam as opressões. “Pensamentos” aqui
tem um sentido negativo: quer dizer planos, tramas, maquinações. É destes pensamentos perversos
que emergem as estruturas de pecado, de violência, de opressão. Maria é mulher de consciência
crítica....
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d) Derruba de seu trono ... os poderosos
Derruba, depõe, põe abaixo, apeia, abate. É a subversão de Deus para com todas as hierarquias
injustas e a todas as ordens violentas, é a revolução de Deus que está em ação na história. A
derrubada dos poderosos é uma idéia que pertence ao conceito bíblico de Deus, em sua atuação
histórica (cf. Jó 12,18-19; Is 2, 11-17; Dn 4,34). Deus humilha os orgulhosos e exalta os humilhados
(cf. Pr 3,34; Jó 22,29; Sl 18,28; Sir 10,14; Is 2,12; Ez 21,31; 2Sm 2,7; Lc 14,11; 18,14; Mt 23,12). O
Deus do magnificat é o Deus bíblico, um Deus verdadeiramente revolucionário, da revira-volta, da
inversão de posições, com alcance não só escatológico (no Juízo), mas também histórico (na vida).
Maria devia pensar nos opressores do Povo santo, que acabaram humilhados por Deus, como o Faraó
(Ex 14 – passagem do Mar Vermelho), o rei Antíoco IV (1Mc 6, 12-13), os generais Holofernes (Jt
13,5) e Nicanor (2 Mac 8,35), Aman (Est 1,1) e Nabucodonosor (Dn 4).
Trata-se daqueles que abusam do poder, dos déspotas. Só Deus é o Todo-poderoso (v.49). Os
grandes deste mundo parecem apenas mandar, como dá a entender Jesus (Mc 10,42). Na verdade
não mandam nada ou muito pouco, como lembrou Cristo a Pilatos, que presumia deter o poder para
soltá-lo ou crucificá-lo: “Não terias poder algum sobre mim, se não te tivesse sido dado do alto” (Jo
19, 10-11).
e) e eleva os humildes
Essa idéia é expressa na Bíblia também de modo absoluto, sem o contraponto da humilhação dos
soberbos (Jó 5,11; Sl 113,7-8). O Deus bíblico é o exaltador ou o reabilitador dos humilhados. Em
quem Maria pensou aqui? Certamente em Abraão, Moisés (Nm 12,3), em Jó (Jó 42, 10-17) e, sem
dúvida, nela mesma. Maria é o protótipo da pessoa humilde que Deus exaltou.; Ela o declara nos
versos 48-49. E Jesus, por sua vez, é o arquétipo da lógica divina que subverte a história humana, a
saber, a lógica do humilhado-exaltado (Fl 2, 5-11).
f) Sacia de bens os famintos ... despede os ricos sem nada
O Deus bíblico não quer famintos, ao contrário, ele manda saciá-los (Dt 19, 15-18). Ele mesmo
provê alimento às suas criaturas (Sl 34,11; 107,8-9; 104, 27-28; 136,25). Além disto o matar a fome
dos pobres é na Bíblia uma das funções do Messias no tempo de Jesus, como mostra a reação do
povo depois da multiplicação dos pães (cf Jo 6,14-15.26) embora fosse a idéia rasteira e redutiva de
um Messias “rei provedor”, que Jesus busca elevar (cf. Jo 6, 26-27; 18,36). Pois, o pão material pode
funcionar, sim, como um sinal do Reino. Jesus proclama que Deus, no reino iminente, há de saciar os
pobres (Lc 6,21). Ele mesmo multiplica pão e manda distribui-lo aos famintos (Mt 14,16; Lc
16,19ss). Com estes, inclusive, Ele se identifica (Mt, 25,35). Daí o acerto da CNBB em lançar o
“mutirão nacional para a superação da fome”, em 2.002.
Os ricos são a figura histórica dos orgulhosos. A menos que se convertam a Deus e aos pobres,
vivem sob a ameaça de Deus (Tg 5,1). Ai de vós, ó ricos... (Lc 6, 24-25). A denúncia de Maria aqui é
porém surpreedentemente mais leve: não lhes deseja a fome, i. é, o estômago vazio, mas apenas as
mãos... Considerando o quadro mundial contrastante da riqueza e fome no mundo atual (2/3
sobrevivem na linha ou abaixo da linha da pobreza), perguntamos: será ainda credível a profecia de
Maria de Nazaré quando proclama a justiça de Deus para os lázaros deste mundo? Sim, ela está
certa. As promessas divinas vão para seu cumprimento, se não na história (e isso depende de nós
todos), será na escatologia, como mostra a história de Lázaro (Lc 16,22).
3.3) Ação de Deus em Israel: mensagem religioso-étnica (Lc 1, 54-55)
a) Acolhe Israel, seu servidor, fiel ao seu amor
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Maria está plenamente inserida no seu povo. Sente-se “filha de Israel”. Como Paulo ela se compraz
em elencar os privilégios do povo santo (Rm 9, 4-5). Jesus igualmente não despreza seu povo, ao
contrário, o tem em alta estima (Jo 4,22). Contudo não se trata de um patriotismo fechado, mas
aberto: Israel é um povo para todos os povos, tem uma vocação particular em vista de uma missão
universal. Maria é filha do Antigo Povo, e também Mãe e Filha do Novo, feito de todos os povos.
Sua posição na História da Salvação é no centro, entre Israel e a Igreja (cf. Gl 4,4). Ela é a mãe
universal, sem excluir a gente da sua raça.
b) Como havia prometido a nossos pais
Deus não está amarrado a nada, a não ser às suas promessas que se concentram no dom de Messias.
Paulo concretiza ainda mais estas promessas referindo-se à Ressurreição, como declara em sua
defesa no Sinédrio: irmãos, é por causa de nossa esperança, a ressurreição dos mortos, que estou
sendo julgado (At 23,6; 26,6). Essa promessa/esperança foi maximamente atuada “na ressurreição de
Jesus” (At 13,33).
c) ... em favor de Abraão e de seus filhos para sempre
As promessas feitas a Abraão especificamente são: terra, descendência e bênção universal. Foram
reelaboradas no NT em termos espirituais e são respectivamente: o Reino (Mt 5,5; Hb 4,8-9; 11, 13-
16), Cristo (Gl 3,16) e os cristãos (Rm 5, 16-17) e finalmente a salvação de todos em Jesus (Gl 3, 8-
9). Tais promessas se prolongam ao longo da história, sobre a descendência de Abraão: ... estenderei
minha aliança entre mim e ti e, depois de ti, às gerações que descenderão de ti (Gn 17,7; Mq 7,20).
Assim, o ritmo do cântico da Virgem vai declinando admiravelmente, enquanto sua luz nos alcança a
nós, que vivemos nos dias de hoje.
4) Textos Mariológicos Menores em Lucas (10)
4.1) Lc 2, 1-7 - … e ela deu a Luz ao Filho primogênito e, envolvendo-o em faixas, reclinou-o numa
manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria...
4.2) Lc 2, 8-20 – os pastores foram depressa e acharam Maria e José e o Menino... Maria...
conservava todas estas coisas, meditando-as em seu coração...
4.3) Lc 2, 22-35 – levaram-no a Jerusalem... seu pai e sua mãe estavam admirados das coisas que
dEle diziam... uma espada transpassará tua alma...
4.4) Lc 2, 41-50 – seus pais iam todos os anos a Jerusalém... eis que teu pai e eu, aflitos te
procurávamos... mas eles não compreenderam o que lhes dizia...
4.5) Lc 2, 51-52 – vida oculta: e lhes era submisso... sua mãe guardava estas coisas no seu coração. E
Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça.
4.6) Lc 3, 23-38 – Jesus… era tido por filho de José.
4.7) Lc 4, 16-30 – em Nazaré: não é ele o filho de José? ... nenhum profeta é bem recebido em sua
pátria.
4.8) Lc 8, 19-21 – Sua mãe e os seus irmãos chegaram... minha mãe é quem ouve e pratica a palavra
de Deus
4.9) Lc 11, 27-28 – Felizes as entranhas… e os seios... antes, felizes os que ouvem a Palavra de Deus
e a observam.
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4.10) At 1,14 – estavam lá… com Maria, sua Mãe... assíduos à oração.
Mariologia de João
Em síntese, a mariologia de João apresenta a Mãe de Jesus como a) a mediadora da fé (em Caná) e b) a
mãe da comunidade de fé (aos pés da cruz) e c) o símbolo da Igreja, da nova Humanidade e mesmo do
Cosmo glorificado (Ap 12). O evangelho somente trás dois textos diretamente referentes a Maria. No
corpo joaneu, entretanto, há um terceiro grande texto que evoca Maria, Ap 12 onde ela aparece como “ a
Mulher vestida de Sol”. Os textos de João são realmente centrais e colocados em momentos decisivos da
vida de Jesus – Cana representa o momento da inauguração da vida pública e o Calvário é o momento
culminante da hora – a exaltação de Jesus na Cruz. Os dois episódios estão ligados por três idéias
comuns: a idéia axial da hora, a referencia a Mãe de Jesus e ao apelativo Mulher. Comparando as
mariologias evangélicas podemos dizer:
- Mc nos dá uma mariologia étnica
- Mt nos dá uma mariologia histórico-salvífica
- Lc nos dá uma mariologia teológico-antropológica e
- Jo nos dá uma mariologia simbólica, uma “alta mariologia”
Em Jo tudo é simbólico. Os dados históricos estão bem presentes, mas como base para um sentido mais
profundo, que é o sentido espiritual, místico, sobrenatural.
I) Jo 2, 1-12 – Maria em Caná
a) No terceiro dia
É a expressão simbólica para o dia decisivo. É o dia da glória, da revelação, do poder salvador de
Deus. “Ao terceiro dia eu o reedificarei” (Jo 2,19), e “no terceiro dia chego ao termo” (Lc 1,32). Foi
também no terceiro dia que se deram os eventos bíblicos que iriam prefigurar o dia da Páscoa, como:
o dia do sacrifício de Abraão, ou do Salvamento de Isaac (Gn 22,4); dia da revelação sinaítica (Ex
19, 11.19); o dia da soltura da prisão dos irmãos de José no Egito (Ex 42,18); o dia da libertação de
Jonas do ventre do cetáceo (Jn 2,2; cf. Mt 12,39-40); o dia futuro do reerguimento de Israel por Deus
(Os 6,2; cf. 1Cor 15,4 e Lc 24,7).
1) Houve um casamento em Caná da Galiléia
Grande importância tinha a festa de casamento no mundo antigo, especialmente no hebraico. Durava
uma semana, como no casamento de Jacó com Lia (Gn 29,27) ou no de Sansão com Timnita (Jz
14,12.17-18) ou ainda do jovem Tobias com Sara (Tb 8,20). Como tudo em Jo este casamento é um
simbolo. O casamento já era, na Bíblia, um símbolo da Aliança, como se vê especialmente em Os 1-
3 e nos Cânticos, mas também nos profetas Is (54, 5-10; 61,10), Jr 2-3; Ez 16 e 23. Quais seriam os
noivos verdadeiros, pois que os reais quase nem aparecem? Seriam Jesus e Maria: Jesus como Jo
alude em outros textos (Jo 3,29; cf Mt 9,15; 25,1-10) e Maria, a título de representante da nova
humanidade, com que Deus faz aliança.
2) E a Mãe de Jesus estava lá; Jesus também fora convidado
Maria aqui é, com surpresa referida antes de Jesus. Ela se adianta ao Filho, para abrir-lhe, porém, o
caminho. Jo nunca nomeia Maria com seu nome próprio. Diz sempre a Mãe de Jesus. Por quê? Para
o evangelista, Maria não vale tanto como pessoa singular (com faz Lc), mas como uma figura
simbólico-teológica, dotada de uma função especificamente cristológica e eclesiológica. “Estava lá”:
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a Virgem está presente na vida do povo, aqui em suas festas. Trata-se, no caso, de uma festa
particular: um casamento. Era uma festa popular importante, com intenso movimento de socialização
e regada a vinho, tomado até em excesso (Jo 2,10).
3) Disse-lhe a Mãe de Jesus...
Eis alguns traços que emergem da figura de Maria nesta cena: 1) Atenção – a festa não a distrai, ela
cuida de tudo para que nada falte, como se fosse a anfitriã; 2) Previdência – antes que a festa
fracasse, ela se antecipa; 3) Misericórdia – que a move a intervir junto ao Filho, para beneficio de
todos: noivos e convivas (vinho), Cristo (glória) e discípulos (fé).
4) Eles não tem mais vinho...
Maria não diz, não há mais vinho, mas Eles, os noivos, não tem mais vinho. Ela vê a coisa a partir da
ótica desses últimos: será uma vergonha para eles se o vinho acabar. Ela assume, como dEla o
problema dos outros. A Virgem não faz um pedido explícito, mas apenas uma constatação. Isso
porém corresponde a uma solicitação tácita, como se nota em outros lugares do evangelho de Jo (o
paralitico: não há ninguém que me jogue na piscina..Jo 5,7) ou Marta e Maria: ... aquele que amas
está doente... Jo 11,3.20.22).
5) Que há entre mim e ti? (v.4ª)
Essa frase se encontra uma dezena de vezes na Bíblia (Jz 11,12; 2Sm 16,10; 19,23;...). Marca
distância, desacordo e mesmo hostilidade entre duas pessoas. Diz Sto. Agostinho “Ele, Jesus, parece
desconhecer as entranhas humanas”. Jesus parece resistir. Contudo, esse é apenas um “expediente
pedagógico” que Jesus usa para provocar uma “passagem de nível”: do natural para o sobrenatural.
Assim o ouvinte é provocado a mudar de perspectiva: da realidade (humana) para a verdade (divina).
Há em Jo vários casos semelhantes (com Nicodemos Jo 3, 1-6; com a Samaritana (Jo 4, 31-34).
6) Mulher...
O modo de Jesus se dirigir a mãe revela um tratamento estranho na relação filho-mãe, principalmente
para o sentimentos dos modernos. Jesus não a chama de mamãe (imma), como seria normalmente,
mas “mulher”, um tratamento mais solene. Por quê? É para situar a relação acima do simples plano
familiar, num nível superior ao das relações de sangue. Aqui não é um filho qualquer que se dirige a
uma mãe qualquer, mas o Messias à Mulher, a título de Mãe da nova Humanidade. De fato,
“Mulher” é um símbolo portador de vários sentidos, entre os quais sobressai o de Nova Eva. O Gn
3,20 chama Eva ao mesmo tempo de “mulher” e de “Mãe” por excelência. É a mulher protológica,
sendo a Mulher de Ap 12,1-8 a “mulher escatológica”. Maria personifica as duas, como a primeira e
a última Mulher da história. Portanto, usando o tratamento “Mulher”, Jesus não está depreciando sua
mãe, mas justamente o contrário, Ele está lhe demonstrando a máxima reverência, reconhecendo-lhe
uma dignidade histórico-salvífica. Filho nenhum colocou a mãe em posição tão elevada.
7) Minha hora...
Em Jo, a “hora” de Jesus é a hora da manifestação de sua glória. Trata-se no concreto, da sua
exaltação, mediante o Mistério Pascal, mistério de Cruz e de Ressurreição simultaneamente (cf. Jo
12,23.27; 13,1; 17,1). Para Jo, a paixão de Jesus irradia um resplendor glorioso. A cruz joanéia é uma
cruz vitoriosa, pascal. Contudo, a hora de Jesus se antecipa na vida pública, especialmente através
dos sinais que são uma primeira manifestação de sua glória. A glória de Caná é prolepse da Glória da
Cruz.
8) Sua Mãe diz aos servos...
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Após o primeiro embate com o Filho, a Mãe entra na perspectiva superior em que o Filho quer vê-la
situada. Em que consiste concretamente tal perspectiva? Ela não sabe ainda bem, mas nem por isso
deixa de confiar totalmente no Filho. A prova disso é: 1) a segurança com que se dirige aos
Servos,mandando que obedeçam ao Filho, e isso, passando, ademais, por cima do mestre-sala. Ela
não manda em Jesus, pela veneração que o Filho lhe inspira, mas apenas nos Servos; 2) a confiança
que mostra no Filho e em sua ação misteriosa, e isso sem ter tido antes qualquer experiência de seu
poder sobre a qual pudesse se apoiar. Tudo isso mostra a Virgem como a crente por excelência.
Abandona-se incondicionalmente a vontade do Filho, pensando: tenho certeza, ele fará algo...
embora não imagine como. De fato, a fé é sempre assim: um saber do quê, sem o saber do como.
Portanto, depois da negativa aparente, ou pelo menos inicial por parte de Jesus, sua mãe retoma a
iniciativa.
9) Fazei o que quer que Ele vos diga...
Mandando nos servos, a Virgem não só mostra que crê, mas também induz outros a crerem e a
obedecerem. Ela não é apenas “mulher de fé”, mas também “mãe da fé”. Ela aparece, pois, como
mediadora da fé, a iniciadora ou mistagoga dos discípulos nos mistérios de Cristo.
“O que quer que Ele vos diga” verte melhor a expressão original do que a tradução “tudo o que Ele
vos disser”. Exprime de modo mais claro a fé total em Jesus. Este é o conteúdo do “mandamento de
Maria”: fazer a vontade de Jesus, que é a vontade do Pai. São as últimas palavras que o NT reporta
da Virgem. A Mãe de Jesus é aqui a “imagem do pai”, o qual também manda: “escutai-o” (Mt 17,5).
Assim, na voz de Maria ressoa a voz do Pai, como lembra a Marialis cultus (no. 57). É notável o fato
de que em Jo não se ouve a voz do Pai, mandando ouvir o Filho, como nos relatos do Batismo e da
Transfiguração dos Sinóticos, mas somente a voz da Mãe. Também por isso Maria aparece como
“mediadora do Mediador”, inter-cessora ou inter-ventora diante do Filho, o único “Mediador”
verdadeiro (1Tm 2,5). É uma “mediação participada”.
10) Ora, havia ali seis talhas de pedra
“Seis” no simbolismo numerológico judaico e também patrístico, seria o número das grandes idades
do mundo, desde a Criação até a Vinda do Senhor. Esta constituiria a Sétima idade, o coroamento da
história. As seis talhas significariam, pois, o longo tempo de espera do Messias, que logo-logo vai
plenificar essa espera. Tomado, porém, em geral, seis é o símbolo do número imperfeito (7 – 1 = 6).
Assim, são os seis dias da criação, sendo o sétimo dia o dia da plenitude. Portanto, as seis talhas
significariam a economia da imperfeição, que Cristo vem levar à termo.
Pedra é um material que lembra a Lei judaica, gravada em letras sobre pedra (2Co 3,7). Essa matéria
é, portanto, símbolo da lei antiga, lei exterior, lei não viva e nem vivificadora. Além disso, a pedra
evoca também o coração de pedra, incapaz de praticar a Lei de Deus (Ez 36,26).
11) ... destinadas às purificações dos judeus
Era um costume rigoroso, entre os judeus, de lavar-se as mãos antes e depois das refeições (cf Mc 7,
3-4). Aqui a água é símbolo da velha Lei, a Torah. Representa a economia da água, economia
imperfeita, que não purifica realmente, mas só ritual e figurativamente. Afirma a Carta aos Hebreus
que as abluções e outras cerimônias do culto antigo são incapazes de levar à perfeição, não passando
de ritos humanos (Hb 9,9-10).
12) ... contendo cada uma duas ou três medidas
Contendo uma medida cerca de 40 L, em cada talha deveriam caber mais ou menos 100 L, e 6 talhas,
600 L. É uma quantidade considerável, prenúncio da abundância da economia da graça.
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13) Enchei... e eles as encheram até às bordas. Tirai... e levai... Eles levaram
Enchei – encheram. Tirai – levai – levaram. É a obediência redobrada à Palavra de Cristo, uma
obediência a toda a prova, que faz milagres. Ela enche o vazio das talhas, símbolo da espera vétero-
testamentária, se preenche. Águas até as bordas: é sinal de que todas as observâncias humanas não
plenificam realmente, mas é, ao mesmo tempo, profecia da plenitude da graça trans-bord-ante que o
Messias está para trazer.
14) Quando o mestre-sala provou a água transformada em vinho...
Água transformada em vinho: a transformação maravilhosa é o efeito do poder de Cristo, mas
também da fé dos Serventes e, antes ainda, da confiança da Virgem. Temos, pois, aqui a expressão
do que é realmente a obediência transformadora da fé. Notar que Jo não se detém no “como”
milagroso da transformação. Ele não dá alimento à curiosidade mágica e miraculista. A
transformação da água em vinho se dá “como por encanto”, sem que ninguém o perceba. O milagre
se dá no seio escuro e bojudo das jarras. Ocorre em segredo, por obra da obediência: encheram... e
levaram...
15) Ele (o mestre-sala) não sabia aquilo, enquanto os servos sabiam
O mestre-sala simboliza a classe dirigente judaica, que nada entende dos sinais de Jesus. Ao
contrário, entendem-nos aqueles que, como os serventes-diáconos, crêem obedecendo. A estes é
revelada a glória do Messias: se crer, entenderei. De fato, na ordem da fé, só o fazer obediente
confere o saber verdadeiro. Jesus mesmo dirá: Manifestei teu nome aos homens... e eles observaram
a tua Palavra. Agora sabem (Jo 17, 6-7). Vós sois meus amigos, se fizerdes... o servo não sabe...,
enquanto o amigo sabe... (Jo 14, 14-15).
16) O vinho pior
O vinho pior são os prazeres dos velhos tempos, os gostos impermanentes da primeira aliança.
Promessas ilusórias. Prazeres sem alegria. Sentidos sem significação.
17) Tu, porém, guardaste o vinho bom até agora
A teologia do vinho, presente na Bíblia, é riquíssima, não só em seu sentido natural (como gênero de
primeira necessidade, como diz Sir 39,26, pela força que tem de “alegrar o coração”), mas também e
mais ainda em seu sentido simbólico, pelo qual o vinho, além de suas muitas valências (a sabedoria,
a palavra, o amor, etc.) representa, especialmente na tradição profética, a felicidade dos tempos
messiânicos: ‘Dias virão em que... o que vindima seguirá de perto ao que semeia; em que as
montanhas destilarão mosto e todas as colinas o deixarão fluir... Eles plantarão vinhas para beber s
eu vinho” (AM 9, 13-14. Cfe Jl 2, 19.24; Zc 9,17; 10,7)
Jo 2,10 fala no vinho bom. É expressão da excelência dos tempos do Messias. Portanto, o vinho bom
e, além disso abundante (centenas de litros) e mesmo transbordante (até as bordas), aponta para um
vinho de outra ordem, é metáfora de um vinho diferente: o do Reino messiânico, de que a Ceia é o
sacramento (cf. Lc 22, 17-18). O “agora” é a hora do vinho bom, trazido pelo Messias. Com Cristo
se inaugura o tempo das alegrias verdadeiras e definitivas: as da Graça, da Vida eterna e do Espírito.
18) Este foi o princípio dos sinais
Princípio não é apenas o início, mas o fundamento que sustenta de modo permanente todos os outros
sinais. Este é o sinal inaugural, com o qual eclodem os tempos novos. Sinal, termo que aparece 17
vezes em Jo, significa algo de maravilhoso e portentoso, que aponta para uma Realidade de outra
ordem: o poder divino de Jesus e ao mesmo tempo a economia do “vinho novo” do Espírito. Do
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ponto de vista mariológico, podemos dizer que foi a Mãe de Jesus que provocou, deslanchou e
mesmo precipitou a série de sinais que iriam revelar a glória divina de Jesus e a fé dos discípulos. Ela
faz Jesus inaugurar a economia da graça e da alegria messiânicas. Ela aparece, pois, como a
educadora dos servos/discípulos no Mistério de Jesus e do Reino messiânico. Nesse sentido, Ela é o
“tipo da Igreja”, enquanto também gera a fé através do testemunho de vida, da pregação e dos
sacramentos (cf. LG 63-64).
19) Manifestou assim sua glória e seus Discípulos crerem n"Ele.
Notar a sequência: Sinal > Glória > Fé. Esse percurso é recorrente em Jo, como se vê na
multiplicação do pão (Jo 6), na cura do cego de nascença (Jo 9) e na ressurreição de Lázaro (Jo 11).
Esta glória (parcial) antecipa a glória (plena) da Exaltação Pascal. Pois a luz da Glória cresce
sempre: uma é a glória dos sinais milagrosos, outra é a glória da Cruz pascal e outra, enfim, a glória
do “eschaton” definitivo. Assim, como diz São Paulo, passa-se de glória em glória (2Cor 3,18).
20) Depois disso, Ele desceu para Cafarnaum, assim como sua Mãe...
Jesus volta para casa, para sua nova residência, em Cafarnaum. Esta cidade tornara-se o centro de
referência de sua atividade profético-itinerante (Mt 4,13). Maria também desce para Cafarnaum
acompanhando o filho. Estranhamente, não volta para Nazaré, a sudoeste, há uns 10 km daí, de onde
parece ter vindo, mas pega, com o Filho, o caminho inverso, rumo a Cafarnaum, a nordeste, distante
uns 30 Km. Parece agora acompanhá-lo em sua itinerância profética: ... a ali permaneceram não
muitos dias (V.12b). Segue-O, pois, fisicamente ou, pelo menos, espiritualmente.
21) ... seus irmãos e seus discípulos
Eis a comunidade que se forma em torno e no seguimento de Jesus. É a pré-Igreja, o germe da futura
Igreja de Jesus. Quanto à Virgem, está no seio desta comunidade germinal, a titulo de discípula. Mas
é uma discípula “muito especial”, como vimos, pois Ela aparece como colaboradora da fé em Jesus.
É a Mãe de Jesus e, ao mesmo tempo, Mãe dos discípulos de Jesus.
Com toda a evidência pode-se ver aqui que Jesus toma a dianteira. É Ele que, com todo o direito,
ocupa o proscênio, como verdadeiro protagonista. Quanto à sua Mãe, Ela recua e se põe atrás do
Filho. Ela foi apenas sua “apresentadora”: realizada sua tarefa, ela se recolhe aos bastidores. De fato,
Puebla diz bem a propósito: todo o serviço que Maria presta aos homens é abri-los ao Evangelho
(n.300)
II) Jo 19, 25-28 – A Mãe de Jesus ao pé da Cruz
A natureza do discurso de João é que ele sempre fala em nível duplo: o nível histórico ou factual e o
nível simbólico, que se ergue sobre o primeiro e ao qual se deve prestar mais atenção. Assim, a
presença de Maria junto ao Filho crucificado é histórica e teológica ao mesmo tempo. Este episódio
tem em Jo uma importância central e mesmo culminante. Tanto mais que se trata da hora suprema,
tão falada e suspirada por Jesus: a hora da exaltação na cruz (Jo 12,27). Maria aparece em Jo,
portanto, como uma figura altíssima, pois que é posta no pico mais alto de seu Evangelho.
1) Junto à cruz de Jesus, estavam, por seu lado, de pé a Mãe dEle...
“Por seu lado” exprime ações opostas, ... de um lado... do outro..., Antes Jo tinha escrito “é isso que
fizeram, de seu lado, os soldados (v.24); agora, prossegue: ... do outro lado, estavam de pé as
mulheres (v.25). de fato, no relato anterior, os quatro soldados disputam, indiferentes, a túnica do
24
divino condenado; em contrapartida, aqui, quatro mulheres se fazem presentes, compassivas, junto
ao patíbulo do Moribundo, tendo, à frente delas, a Mãe dEle.
Estavam de pé: vieram, compareceram, estavam presentes. Também Lc usa mesmo verbo para o
grupo das mulheres, acrescentando, porém, “de longe” (Lc 23,49), em vez do joaneu “junto à cruz”.
Jo que em tudo vê um sentido mais profundo, talvez queira apontar para um estar de pé espiritual,
indicando a firmeza e a constância de Maria e de suas companheiras no seio daquela provação
terrível. É assim que a tradição da Igreja pensou o texto, desde os Santos Padres, como Sta.
Ambrósio, com sua declaração lapidar: “Leio que estava de pé, não que chorava”.
Como interpretar teologicamente “Maria aos pés da cruz”? Jo, como em Caná, não diz simplesmente
Maria, mas a Mãe de Jesus, assim como dirá o Discípulo Amado e não João. Essas duas figuras são
referidas de modo anônimo, pois representam mais tipos simbólico-místicos do que como pessoas
individuais. Que sentido, pois, tem a Mãe de Jesus junto à Cruz? Há três níveis de sentido,
sucessivamente mais profundos:
a) É a Mater dolorosa, como tantas mães das dores, sofrendo pelos filhos mortos: Rispá (2Sm
21,10), a Mãe macabéia (2Mac 7), as mães de Belém (Mt 2,18) ... É a concepção mais comum,
que embora não esteja excluída, não parece ser a perspectiva central de Jo.
b) É a Mater gloriosa, a Mãe participando, na e pela dor, da hora da Exaltação Gloriosa do Filho na
Cruz. Esta perspectiva paradoxal é própria de Jo, que nada sabe de uma kénosis pura. Portanto,
Maria está de pé junto à Cruz, em atitude soberana, como Rainha junto ao Trono do rei,
aureolado de esplendor pascal. É justamente como a “Mulher” do Ap 12, que, embora sofra as
dores lancinantes do parto, está vestida, com todo o aparato de Rainha cósmica.
c) É enfim, a Mater viventium. Porque dolorosa e, mais ainda, gloriosa, Ela será logo chamada de
Mulher pelo Filho moribundo. É a nova Eva, ao lado do novo Adão. É a Mãe da nova
humanidade, a quem gera para vida de Cristo através de um parto espiritual ou místico, mais
doloroso do que qualquer outro.
2) Vendo sua Mãe... e o Discípulo Amado...
Repitamos: Maria e João são vistos não como pessoas privadas, mas como personalidades
corporativas, simbólicas. Aqui estamos não no nível puramente histórico, mas no tipológico-
teológico:
1) A Mãe de Jesus, a Mulher, é a Nova Eva, a Mãe da nova Humanidade (Is 66, 7-8) e 26, 17-21).
Mais restritamente, é a figura-tipo da Igreja-mãe, a Comunidade apostólico-missionária, que gera
filhos para Deus através da Palavra e dos Sacramentos.
2) O Discípulo amado representa o seguidor ideal e por isso a testemunha por excelência (Jo 19,35;
21,24). É a Igreja-filha. O Discípulo Amado é, em concreto, a figura de todo e qualquer discípulo:
quem me ama, guardará meus mandamentos.... será amado por meu Pai e eu o amarei... (Jo 14,21).
3) Jesus, vendo sua Mãe...
Muitos pregadores, na esteira de vários Padres e Doutores, interpretam esta cena como expressão
da solicitude filial de Jesus moribundo por sua Mãe, deixada só. Isso não está excluído. Mas se
fosse apenas ou sobretudo isso, Jesus deveria ter-se dirigido primeiro a João. Mas aqui Ele se
dirige primeiro à Mãe, mostrando que a questão “humana” passa em segundo plano. Com o “eis
aí teu Filho”, Jesus, da cátedra da Cruz, revela e constitui ao mesmo tempo sua Mãe como Mãe
dos Discípulos. No ponto mais alto do dramma salutis, na hora suprema da glória, Cristo faz a
apresentação solene da verdadeira identidade de Maria. A luz da Cruz ilumina o mistério de
Maria e a revela como Mãe espiritual dos Discípulos.
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4) ... e perto dEla o Discípulo Amado...
Jo diz que o Discípulo se mantém “bem perto” da Mãe de Jesus, como para acudi-la. Assim, o
pintaram muitos artistas, mostrado Jo amparando à Mãe aflita. Mas, para além desse sentido
imediato, está a idéia mística de que o Discípulo amado é o Discípulo da intimidade com Maria.
Como, na Ceia, ele esteve perto de Jesus e reclinou a cabeça em seu seio, para ouvir-lhe as
confidências (Jo 13, 23-26), aqui também, está perto da Mãe, recebendo de Cristo moribundo seu
derradeiro e íntimo testamento.
5) Disse: Mulher...
Como todo símbolo, Mulher é um termo aberto para todos os lados: é a Mãe carnal de Jesus; é a
Mãe espiritual dos Discípulos (e também de Jesus pela fé); é a Mãe da Igreja, a Comunidade de
fé; é o antigo Israel, que gerou o Salvador e sua Comunidade; é a Mãe-Igreja, etc. Todos esses
sentidos estão aí compreendidos e são de fato vivenciados, de modo intuitivo e totalizante, pelo
pensamento simbólico.
“Mulher supera infinitamente Maria”, isto é o ícone simbólico-teológico de Maria supera
infinitamente a realidade da Maria histórica, a Virgem de Nazaré. Por outras, o significado
mistérico-simbólico de Maria desborda amplamente sua figura puramente individual.
6) E a partir daquela hora...
A hora, o momento da glória pascal, inaugura a Economia da graça. A esta, portanto, pertence a
maternidade espiritual de Maria, maternidade que flui da Cruz e de sua força vivificadora.
7) ... O Discípulo A recebeu junto de si
A expressão grega de Jo eis tà idia é passível de várias traduções: em sua casa, em sua
familiaridade, entre as coisas próprias, entre seus bens, recursos riquezas, valores. Segundo a
linguagem de duplo sentido, tipicamente joaneia, deve-se entender aqui que o Discípulo acolheu
Maria em sua casa material e também (e principalmente) em sua casa espiritual, isto é, em seu
coração, em sua fé.
Jo executa o testamento de Jesus: leva a Mãe para casa. Assim como José, segundo Mt, acolheu
Maria em sua casa como esposa (Mt 1,24), assim também Jo recebe a Mãe de Jesus na sua casa,
mas agora como Mãe. Diz a tradição que Jo teria levado Maria em missão para a Ásia Menor.
Ainda hoje se pode visitar a casa de Maria no alto da colina Panhágia Kapulu, perto de Éfeso. Tal
é o sentido primeiro sobre o qual se ergue, sem contradição, o segundo, o espiritual, que é o mais
importante: acolhe Maria em sua fé. De fato, acolher é uma forma de fé (Jo 1,12). Agora, a
verdadeira casa da Mãe de Jesus é o coração de cada discípulo amado.
O certo é que Maria foi entregue, na pessoa do Discípulo, a cada um/a, como um tesouro precioso
a ser cuidado, como um legado a ser valorizado. Entre os tantos valores espirituais que Cristo deu
aos seus discípulos (o Pai, o Paráclito, a Palavra, a Eucaristia, o Novo Mandamento...) deve-se
contar também sua Mãe. Ela pertence aos bens constitutivos do Cristianismo. Maria, portanto, faz
parte da identidade cristã.
7) Depois disto, sabendo Jesus que tudo estava consumado...
O depois disto se refere à entrega da Mãe ao Discípulo, figura da Comunidade dos discípulos/as.
Jesus executa até o fim o Plano do Pai (Jo 4,34; 6,38; 17,4; 13,1; 19-28b). Ora, a entrega da mãe
PE o ato terminal de Jesus, pelo qual Ele leva plenamente a cabo a obra da Redenção.
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Á luz deste versículo, fica claro que o mistério de Maria, mãe dos Discípulos, é o fecho que coroa
a obra de Cristo e, por conseguinte, o caminho de fé de todo cristão. Sem Maria, não há
cristianismo consumado, i.é, pleno, perfeito. Maria pertence ao depósito da fé, ao patrimônio dos
bens espirituais que Cristo confiou aos Discípulos amados. Portanto, é impossível seu discípulo
amado, ou seja, um cristão perfeito, sem acolher Maria na casa da própria fé. Como disse Paulo
Vi, “se queremos ser cristãos, devemos ser marianos”.
Como informação a mais: a invocação “Maria, Mãe da Igreja”, conexo com o de “Maria, mãe dos
cristãos”, apareceu no séc. XI com Berengário de Tours. Mas foi somente na conclusão da III
Sessão do Vaticano II (21-11-64) que Paulo VI declarou solenemente este novo título mariano,
não sem certa perplexidade da parte de alguns setores da Igreja. Mas, como se pode ver, ele tem
base em várias passagens do NT.
III) Ap 12: A Mulher Vestida de Sol
1) Um grande sinal apareceu no céu: uma Mulher...
Como “sinal”, é algo que pede interpretação. O que seria? Trata-se de uma realidade “no céu”,
portanto, mistérica. O mistério da “mulher” é chamado de grande, porque da maior significação.
Que sentido, pois, tem “Mulher”? É direta e primariamente a Igreja. Só indireta e secundariamente é
Maria. As razões para entender o texto também em ótica mariológica são as seguintes:
a) A Mulher-Igreja, representando em particular o Povo da antiga Aliança, só pôde efetivamente dar
à luz através de uma mulher definida, Miryam de Nazaré;
b) Se o autor do Apocalipse é o mesmo do IV evangelho e de sua escola, então é impossível que ele
tenha falado na “Mulher” sofredora do Ap 12 sem pensar na “Mulher” concreta que esteve sob a
cruz;
c) Finalmente, Maria e a Igreja são uma só realidade mistérico-sacramental em duas perspectivas,
como pensavam os Padres da Igreja: Maria é a “Igreja em pessoa”, e a Igreja é “Maria em
grande”.
2) Vestida de Sol
É o símbolo do esplendor da glória divina (Sl 104,2). Para o trito-Isaías, também a novíssima Sião
está vestida de magnificência (Is 52,1) e de vestes de salvação (Is 61,10). Ora, a nova Sião é a Igreja
em sua condição escatológica. E é, em obliquo, Maria, enquanto Assunta na glória. Ela é a
personalização ou a imagem e começo da Igreja consumada, como diz o Vaticano II (LG 68). É o
fragmento que reflete o todo.
3) ... tendo a Lua debaixo dos pés
A Lua é o símbolo da variabilidade dos tempos, das vicissitudes históricas, como as que se exprimem
nas estações (Gn 1,14-19) e nas mudanças sócio-políticas (revoluções, etc.). Aplicando este símbolo,
digamos que o Mistério único da Igreja/Maria é vitorioso sobre todas as mudanças temporais, quer
sejam as perseguições quer os triunfos terrenos.
4) Tendo na cabeça uma coroa de Doze estrelas
O número Doze indica totalidade e como se trata de coroa, então é triunfo total. Mas já que o
símbolo está sempre aberto a uma pluralidade de sentidos, as doze estrelas poderiam evocar também
as doze tribos, como aparece no sonho de José (Gn 37,8); ou os doze Apóstolos do Cordeiro (Ap
21,10.12.14); e, finalmente, também o Cosmos universo em sua condição glorificada. Aliás,
impressiona ver a magnificência desta Mulher: está adornada com o que há de mais esplêndido em
todo o Cosmos.
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5) Dores de parto
O contraste entre o esplendor da Mulher e seu sofrimento, típico do pensamento apocalíptico, se
refere a dupla condição da Igreja, que é também a de Maria, i.é., a condição kenótica, humilhada,
vencida no tempo, mas, ao mesmo tempo, gloriosa e finalmente vencedora. O sentido deste símbolo,
aplicado eclesiologicamente, é que a Igreja sofre trabalhos e perseguições para gerar Cristo nos
corações, como diz Paulo: Sofro as dores do parto (Gl 4,19). Do ponto de vista mariológico, significa
que Maria na glória continua hoje sofrendo misticamente as dores de seus filhos e filhas, a caminho
na história (Ap 12,17).
6) Filho varão
É naturalmente Jesus, o Messias. Mas designa também o novo Povo de Deus, o Povo messiânico,
como afirma Isaías: Pode uma nação ser gerada toda de uma só vez? (Is 66,8b-9). A justaposição do
individual e do coletivo é típica de Jo e também do Ap. Mariologicamente, significa que Maria é a
mãe de Jesus e também do Povo de Jesus, a Igreja.
7) Dragão vermelho
O dragão frente à Mulher lembra naturalmente a cena de Gn 3,15 em que se fala de “luta” renhida
entre a serpente e a Mulher/Humanidade, a qual acabará esmagando a cabeça da primeira. Esta
vitória final é, ao mesmo tempo, da Humanidade toda, de Jesus, da Igreja. Mas é também a vitória da
Virgem através de sua glorificação no Reino em corpo e alma e de sua poderosa intercessão junto ao
Filho. É o que testemunha a iconografia cristã mostrando a Imaculada esmagando a cabeça da
Serpente.
8) Deserto
É o lugar do encontro com Deus como esposo (Os 2, 16-18) e também como Benfeitor do Povo
peregrino através de seus prodígios (Ex 16 e 19). Do ponto de vista eclesiológico, trata -se do tempo
da história, em que a Igreja, embora perseguida, será sempre sustentada pela graça de Deus. O
mesmo se pode dizer da pessoa de Maria, como mostra sua história evangélica.
9) ... o Dragão foi combater o resto da descendência dEla (v.17)
Como o Diabo nada pode contra a Mulher, a Igreja em sua realidade mistérica e invencível, vai então
atacar ao “seus filhos”, que são a Igreja em sua realidade empírica e frágil. Trata-se, naturalmente
aqui, dos fiéis, vistos como filhos da Mãe-Igreja, mas também como filhos da Mãe de Jesus,
assumidos por Ela sob a cruz.
Conclusão: Maria encarna o destino da Comunidade messiânica: destino de parto/dor, mas também
destino de vida/vitória. Daí porque Maria aparece, nas palavras da LG 68, como: sinal de esperança
segura e conforto para o Povo de Deus peregrino.
III) Textos Mariológicos menores de João
a) Jo 1, 12-13: “Nascido não dos sangues” (no plural): falaria de Jesus e do parto virginal de Maria?
b) Jo 6, 42: “Filho de José”: só na boca dos “outros”. Alusão à concepção virginal?
c) Jo 7,5: “Nem seus irmãos acreditavam nele”. Maria, porém, não é posta em sua causa.
d) 4)Jo 8, 41b: “Nós não somos filhos de prostituição”, supondo o “como tu”: lenda negra judaica
contra a origem anormal e suspeita de Jesus?
Maria, da Bíblia à Tradição
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O estudo pormenorizado de Maria na Bíblia nos levam a admiração e também perplexidade. Por um
lado, descobrem-se os traços principais da imagem neotestamentária da mãe de Jesus: a perfeita
discípula, seguidora de Jesus, irmã e mãe da comunidade, profeta da libertação, peregrina na fé,
contemplativa no cotidiano. Por outro lado, tem-se um sentimento de desconforto quando se comparam
os dados bíblicos com o que se diz de Maria na piedade popular e nos dogmas. Não bastam as
afirmações bíblicas? Qual a legitimidade do crescente aumento de espaço da pessoa de Maria na fé
católica, produzindo dogmas e devoções? Essas questões só poderão ser respondidas se recorrermos a
alguns princípios da teologia fundamental, tais como o lugar da Escritura no processo de interpretação da
fé e a relação Bíblia-Comunidade-Tradição.
Os dados sobre Maria no NT divergem muito da interpretação corrente no meio dos fiéis. Em sermões,
cantos, ladainhas, terços, comentários, celebrações ou encontros de louvor, acentua-se a maternidade de
Maria, mãe de Jesus e nossa Mãe. Em Lc, ao contrário, o valor recai no discipulado, no modelo de fé. A
bem-aventurança central sobre Maria não diz respeito à maternidade biológica. Ao contrário, ela teve de
fazer uma ruptura drástica, abandonando privilégios da maternidade biológica para entrar humildemente
no grupo dos seguidores de Jesus, Aí sim, sua maternidade recobra pleno valor: ela reúne a comunidade
em torno de Jesus, impelindo-a a fazer a sua vontade, como nos mostra Jo. O culto a Maria assumiu
gigantescas dimensões no catolicismo. Para a comunidade das origens, Jesus Cristo, o Filho de Deus Pai
e nosso irmão ocupa todo pó espaço de reverência e culto. Não há culto a Maria na Bíblia.
O nosso desafio é diminuir a distância entre a mensagem dos textos bíblicos sobre Maria e seu uso na
evangelização. Por exemplo:
a) o relato das Bodas de Caná não se centra na solicitude de Maria e na sua capacidade de intercessão,
mas na intervenção decidida para realizar o sinal que leva à fé
b) A referência de Simeão à espada que traspassará a alma de Maria se liga à obediência da fé e a
deixar-se julgar pela PdD e não na mensagem central de uma Nossa Sra. Das Dores;
c) A cena de Maria aos pés da Cruz não tematiza primariamente o sofrimento redentor, mas a hora da
glorificação e da passagem para o Pai.
d) E o que dizer de Ap 12 usado na missa da Assunção, sabendo que o texto alude prioritariamente ao
povo de Deus, Israel e Igreja?
A problemática somente se resolve com bom senso e sensibilidade pastoral, a partir da compreensão
do lugar da Escritura no processo de interpretação da fé, vivida pela comunidade eclesial. Para
chegar aí, precisamos entender como se faz a passagem dos fatos para a interpretação, e como esta,
fixada por escrito, permite novas interpretações.
1) Fato e Interpretação: na Vida e na Bíblia
Qualquer acontecimento, transformado em fato, só existe de forma humana quando é captado e
expressado por meio da linguagem, numa comunidade interpretativa, situada em contexto sócio-
historico e cultural determinado.
Quantos fatos brutos passam por nós e se perdem, sem que nos demos conta, porque falta linguagem
apropriada para captá-los e um adequado horizonte de percepção e interpretação? Um evento em si
apresenta um amplo leque de possibilidades de sentido, que denominamos polissemia (muitos
sentidos). O fato bruto necessita de algo que o condense, organize e marque suas fronteiras de
significado. As palavras, escritos, gestos, desenhos dão inteligibilidade ao fato, ao mesmo tempo em
que fecham parte de sua polissemia originária, é o que chamamos de clausura (fechamento).
Polissemia e clausura, i.é, abertura de significados e definição de sentido, combinam-se e
confrontam-se. A palavra que fixa o acontecimento por escrito já faz uma seleção de sentidos
prováveis, realiza de certa forma, uma primeira clausura. Porém, a palavra interpreta o
acontecimento em questão e quando este é retomado como fato significativo, ela manifesta um
“sentido a mais” que não era facilmente identificável no momento em que se realizou. Apresentam
29
também outros sentidos complementares (polissêmicos). Ou seja, a palavra que interpreta os fatos e
busca dar-lhes significado não somente fecha o sentido dos acontecimentos, mas também acrescenta
sentido. Exemplo...
Como clausura e polissemia, abertura de significados e definição de sentido, tem a ver com a Bíblia e
sua interpretação, como se estende à Tradição?
a) Fato e interpretação na revelação bíblica
O povo judeu e a comunidade cristã das origens tiveram uma experiência impar de Deus, que se
fundamenta em fatos interpretados à luz da fé. Alguns eventos marcam a constituição e identidade do
Povo de Israel, como a libertação do Egito, a aliança no Sinai, o reinado de Davi, o surgimento do
profetismo, a crise, a destruição dos reinos de Israel e Judá, o exílio, a reconstrução de sua
identidade, a resistência contra as invasões grega e romana etc. Para a comunidade cristã, o evento
básico é a vida, a morte e a ressurreição de Jesus. A fé judaico-cristã parte desse acontecimento
fundador: Deus irrompe na história... dá-se a conhecer... suscita uma resposta de vida.
O povo de Israel e a Igreja primitiva fizeram esta autêntica experiência de Deus, difundida até hoje,
porque conjugaram corretamente presença e linguagem, fato e interpretação, polissemia e clausura.
Cada texto bíblico, enquanto experiência de comunicação, apresenta um emissor original (aquele que
escreveu o texto), o interlocutor o quem destina originalmente o livro (destinatário) e o horizonte
sociocultural que permite compreende3r a mensagem no seu contexto. A medida que o tempo passa
acontece um tríplice distanciamento. O emissor e seu interlocutor não existem mais. A cultura se
modifica, o contexto e o horizonte de compreensão se modificam. A palavra transformada em texto
recobra seu valor polissêmico, torna-se aberta a interpretações mais enriquecedoras. Essa reflexão
vale para qualquer texto narrativo ou descritivo, seja um texto da Bíblia, um romance, etc. Ali se
descobrem significados ainda não desenvolvidos.
Portanto, a busca dos significados dos textos se encontra no passado e no presente. Por mais objetivo
que seja o estudo histórico sobre um texto do passado, as perguntas do pesquisador sempre
condicionarão a qualidade da resposta. E quanto mais vamos a um texto do passado com um amplo
horizonte de perguntas, mais aspectos qualitativos descobrimos.
A Bíblia testemunha contínuos processos de reinterpretação dos eventos, já submetidos à
interpretação, de acordo com as mudanças de contexto da história do Povo de Deus. Basta olharmos
para as tradições javista, eloísta, deuteronômica e sacerdotal, sobrepostas nos relatos do Pentateuco.
As diferenças são impressionantes. Também o mesmo Jesus é narrado com matizes tão diferentes em
Mc ou Jo.
Este processo de reinterpretação dos eventos e relatos cria novos elementos de discurso, que se
incorporam ou se reagrupam nos textos. A leitura produz sentido, em códigos novos que, por sua vez,
geram outras leituras. O movimento em cadeia, como espiral ascendente, explora, sem nunca esgotar,
a reserva de sentido do fato. A Bíblia testemunha várias releituras de fatos e textos. Cada uma produz
sentido e pode trazer consigo a pretensão de possuir todo o sentido. Apresenta um gérmen de
totalitarismo, de exclusivismo, tendendo a apresentar-se como única leitura correta. Acontecem aí
um conflito de interpretações. Somente depois que o conflito se resolve, ao menos
momentaneamente, toma-se consciência de que as releituras, embora em luta, apresentam elementos
convergentes, pois partem dos mesmos eventos e textos, acumulam significações, produzindo assim,
uma fecunda exploração da reserva de sentido dos fatos e dos textos.
b) Cânon das Escrituras e novas interpretações
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Num determinado momento da história do Povo de Deus, tanto Israel quanto a comunidade cristã
sentiram a necessidade de delimitar e definir quais textos seriam os parâmetros para a sua fé.
Definiu-se assim o cânon das SE. Isto provoca vários efeitos. Em primeiro lugar, o cânon delineia o
campo interpretativo legítimo para a fé. Configura assim a própria identidade religiosa e social da
comunidade. Mostrando-se como é e como acredita, o cânon exclui interpretações e grupos que lhe
parecem ser infiéis. Neste momento predomina a clausura de sentido, com sua correspondente força
de seleção e exclusão. Assim no cânon do AT e igualmente do NT deixaram fora escritos diversos
com linhas de pensamento heréticos e diferentes.
Agora, o cânon, embora privilegie a clausura, dá margem também para a abertura e articulação de
novos significados (polissemia). Como isto acontece? Ao colocar textos de diferentes visões e épocas
dentro de um macro texto, o cânon ocasiona a passagem da intertextualidade para a intratextualidade.
Ou seja, os relatos não são mais vistos como elaborações independentes, mas passam a ser
considerados componentes de um grande texto. Exemplo... Ao se acoplar tantos textos num mesmo
Texto, amplia-se enormemente o campo de sentido, deixando em aberto a tarefa de articular
interpretações até então dispares.
Ler os diversos textos bíblicos, um à luz do outro, complementando-se e criticando-se, em virtude da
intratextualidade, tem valor enorme para a MARIOLOGIA. Permite-nos articular a visão de Mc e Lc
sobre a pessoa de Maria que tomados isoladamente, seriam contraditórios. Quando vemos em
conjunto, conjugamos a mulher que é chamada a deixar os privilégios da família biológica (Mc), a
mãe virginal do Messias (Mt) a discípula ideal que ouve, acolhe, medita e realiza a PdD (Lc), a mãe-
irmã da comunidade, que leva a continuar a realização da missão de Jesus (Jo), e o símbolo da
comunidade de fé, testemunha da morte e ressurreição de Jesus (Ap). Assim pode-se falar da
“imagem bíblica” de Maria, e não somente da visão de um autor bíblico.
2) Bíblia e Tradição na Vida da Comunidade
Tradição: por que a para quê? Em sentido lato a Tradição antecede a Escritura. Chamamos de
Tradição ao movimento ininterrupto de viver e interpretar a fé em diferentes contextos sócio-
históricos, trazendo e levando os dados acumulados no correr da história do Povo de Deus. A
comunidade de fé (tanto Israel como a Igreja) vive a experiência religiosa, fixa os relatos, faz
releituras e define seu cânon das Escrituras. A comunidade delineia o sentido dos fatos e textos
(clausura), por se referir ao passado que a constitui, cristalizando experiências e interpretações como
fundantes, determinantes para sua identidade e sua crença. Mas também lhes abre novos significados
(polissemia), por ser viva a situação em contextos culturais e históricos com desafios próprios.
A escritura, reconhecidamente inspirada, orienta a comunidade de fé no correr da história. Passa a ser
parâmetro imprescindível para novas e mais profundas interpretações. A comunidade vai fazendo
história a partir da revelação consignada nas Escrituras e interpretada pela Tradição. Portanto,
Tradição não é uma entidade estranha que vem manchar, estragar ou deturpar a Escritura – embora
isto possa acontecer em determinados momentos – mas sim, usando uma imagem familiar, é mãe e
filha da Escritura.
A Tradição pode ser definida como a memória seletiva e coletiva da comunidade eclesial. Por ser
memória, traz o passado até nós, poupando cada nova geração cristã do trabalho de descobrir tudo a
partir do zero. Relembra, tonifica, nutre. Enquanto memória seletiva, tende a destacar alguns
aspectos da fé, por ser mais atual ou conveniente para a comunidade, deixando na sombra outros. A
Tradição vive e sobrevive, realizando simultaneamente um movimento de continuidade e ruptura
com o passado. Continuidade, porque é a mesma comunidade de fé que faz a sua história, apoiando-
se em balizas do passado. Ruptura, pois o presente impulsiona a redescobrir elementos da Tradição
ofuscados no passado recente, bem como estimula a produção de novos significados para a
atualidade. Vários fatores intervém na tarefa de purificação e crescimento dos dados da fé, como a
teologia bíblica e dogmática, as novas práticas sociais e eclesiais, a mística e a espiritualidade.
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Por fim, a Tradição como memória coletiva, significa a soma do esforço conjunto e diferenciado de
diversos atores eclesiais. Cada um no seu papel: os fiéis, vivendo a fé no cotidiano, descobrindo
interpretações mais ricas e provocativas; os teólogos, sistematizando, refletindo e elaborando; e a
hierarquia, discernindo com eles e oficializando as interpretações legítimas. Lamenta-se que nos
últimos séculos muitos e diferentes sujeitos eclesiais perderam seu protagonismo na Tradição e, ao
invés de serem sujeitos ativos, passam a receber passivamente o que lhes veio do passado. Os
teólogos reduziram sua atuação, em virtude da submissão infantil ao magistério, não ousando novas
reflexões. O magistério, por sua vez, arvorou-se como a única instância produtora de Tradição.
Precisamos recuperar a dimensão positiva da Tradição, como movimento vivo da comunidade
eclesial, diferenciando-a claramente do tradicionalismo, que congela o sentido da fé em expressões
do passado.
A relação viva entre Escritura e Tradição acontece em comunidades cristãs vivas e inculturadas, que
realizam a tarefa do círculo hermenêutico, ou processo vivo de interpretação da fé. Três forças, como
vértices de um triângulo, intervêm na realização desta tarefa:
a) A PdD, lida no horizonte da Tradição;
b) Os apelos do Senhor por meio dos sinais dos t empós; e
c) As experiências no interior da própria comunidade.
O círculo torna-se virtuoso quando existe sensibilidade à interpelação divina, a começar de qualquer
vértice do triângulo, conduzindo a interpretações mais enriquecedoras dos dados da fé. Os elementos
se condicionam mutuamente. Nova leitura da PdD possibilita mais aguda sensibilidade aos sinais dos
tempos, influenciando assim novas práticas pessoais, sociais e eclesiais. O movimento pode se iniciar
também, por ex., em experiências humanas significativas e a consciência delas decorrente fertilizam
enormemente a leitura da PdD e provocam novas práticas eclesiais. Por ex. podemos comparar com
os círculos da espiral de um relógio antigo que vão se abrindo cada vez a um nível superior,
acumulando e produzindo sentido sem, no entanto, deixar de se referir ao ponto de origem da espiral,
que é a revelação de Deus. Esta interpelação de Deus, presente na vida nos seus aspectos existenciais
e sociais, intelectuais e práticos, faz a interpretação ser dinâmica e processual, o que chamamos de
“espiral hermenêutica”.
A vida de fé traz condicionamentos positivos para a leitura da PdD. Uma pessoas solidária com os
outros encontrará nas SE muitos elementos que a ajudarão na prática do amor. Quem já passou por
terríveis sofrimentos compreenderá com luz nova as reflexões de Jó e se deixará iluminar pelo
mistério da cruz. A crescente consciência do papel das mulheres na sociedade ajudará a fazer uma
leitura da Bíblia na ótica da reciprocidade, na qual homens e mulheres tem lugar e valor, etc.
A interação criativa entre Vida – Bíblia e Tradição acontece em virtude do ES, que age, de maneiras
diversas, tanto no texto escrito quanto na existência humana. Por meio de cada instância e
particularmente na relação circular entre elas, Deus mesmo nos oferece seu amor, interpela à
conversão e nos chama a realizar um projeto comum, que tem a extensão da humanidade.
3) Maria na Espiral Hermenêutica da Fé Cristã Católica
Na Tradição católica, Maria ocupa lugar especial. A Igreja reconhece sua atuação e presença, na
comunhão dos santos, como “a mais perto de Deus e mais vizinha a nós”. Nos trinta ou mais anos
pós Vaticano presenciamos grandes críticas às manifestações maximalistas e aos devocionismos
muitas vezes estéreis à Maria. Estas críticas, por vezes, deixaram um enorme vazio. Ora, a
importância de Maria no imaginário coletivo católico não deve ser vista a priori como algo negativo,
mas um dado a ser aceito, acolhido e trabalhado. Se esse lugar ímpar de Maria na consciência
eclesial é uma conquista da Tradição, a primeira postura do teólogo e do agente de pastoral consiste
em buscar compreender seu valor, buscando nela expressões mais autênticas da fé cristã.
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Os textos bíblicos norteiam a descoberta dos traços básicos de Maria. Auxiliam a manter a
centralidade cristológica da experiência de Deus, pois Jesus é o autor e realizador de nossa fé, que
abriu um caminho novo e vivo através de sua humanidade (Hb 10,20). Os relatos da SE são a
constante fonte revitalizadora e corretiva de nossa relação filial-fraternal com Maria, o núcleo
perceptível da espiral hermenêutica da fé, o manancial de exploração e produção de sentido.
Oferecem importantes balizas para delimitar o campo hermenêutico onde se situa a pessoa de Maria.
A reflexão sobre ela, contudo, vai além dos dados bíblicos, ao incorporar a memória coletiva e
seletiva da Tradição, especialmente servindo-se da evolução do culto (liturgia e piedade) e do
dogma. Por outro lado, a imagem bíblica de Maria permanece como fulcro e centro irradiador,
simultaneamente legitimador e crítico-deconstrutivo, de todo o discurso posterior.
- É legítima a interpretação mariana que se diferencia do sentido originário da SE, da intenção dos
autores sagrados?
Há conflito de interpretações no meio dos próprios exegetas e teólogos a respeito da mensagem
central e do interesse teológico original de muitos textos. Também neste campo não existe total
neutralidade. Um minimalista lerá a saudação do anjo “Alegra-te, cheia de graça!” como mero
cumprimento ou parte do gênero literário. O maximalista, encontrará aí louvores imensos à Mãe de
Jesus, a imagem realizada da arca da aliança, a plenificação da Filha de Sião.
O mariólogo equilibrado e com bom-senso navega entre as duas correntes, atento para não ser
tragado por nenhuma delas. Normalmente, toma a opinião consensual ou majoritária entre os
pesquisadores de renome. Levam-se em conta alguns critérios para aceitar interpretações que
extrapolam o sentido originário dos dados bíblicos:
a) Aceitar que o sentido originário do texto não esgota o seu processo de interpretação. Porém
analisar com senso crítico as novas interpretações.
b) Compaginar, sempre que possível, uma interpretação com outra, ampliando o leque de sentidos.
c) Ter consciência do recurso utilizado, do “canal” veiculado e da perspectiva adotada. Por
exemplo, ao dizer que Maria é a Nova Eva, estamos juntamente com a comunidade no decorrer
da história ampliando o sentido de um texto bíblico.
d) Acolher os “sinais dos tempos” das mudanças culturais e da situação existencial das pessoas e
das comunidades como um critério operacional para interpretações legítimas, não bastando que
os dados bíblicos e da Tradição estejam corretos, mas que sejam significativos, Boa-Nova para as
pessoas, estimulantes para o seguimento de Jesus. Por ex. , no meio do frenético ritmo das
sociedades urbanas, vermos Maria como aquela que nos ensina a contemplar a Deus no
cotidiano, meditando e guardando os fatos no coração.
Na mariologia, Escritura, Tradição, dogmas e sinais dos tempos devem passar por uma relação de
circularidade, considerando sempre que a Bíblia é a fonte de toda a teologia. Não podemos
desperdiçar nenhum dado do NT a seu respeito e também lembrar que ela é a única referência
feminina em nosso Credo.
DOGMAS MARIANOS
Por que Dogmas?
Os grandes dogmas da Igreja surgiram nos primeiros séculos para resolver questões de fé, que não
podiam ser resolvidas somente pela SE. As interpretações eram bastante diferentes, principalmente
por causa dos diferentes contextos culturais nos quais o cristianismo se encarnou. Mas as questões
que surgiram eram vitais na fé católica. Estava em jogo o núcleo da identidade católica. Seria Deus-
Pai um só em três pessoas? Seria Jesus Cristo a ele subordinado? E o Espírito Santo? Quem era ele?
O conflito de interpretações era tanto que se tornou necessário estabelecer limites para certas
posições e discernir qual leitura bíblica era mais fiel à Revelação. Os grandes concílios de Nicéia,
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Éfeso, Constantinopla e Calcedônia resolveram grandes conflitos especialmente na área da
cristologia. Eles encerravam a discussão com um credo que sintetizava os pontos consensuais da
comunidade cristã. Refutavam ainda afirmações que, depois de discutidas eram reconhecidas como
deficientes, incoerentes ou contrárias à experiência cristã. (Daí os anátemas e as heresias).
Na Idade Média, outros dogmas também foram definidos por concílios e sínodos. E a partir do séc.
XIX, foram definidos dogmas somente pelos papas, após consulta aos bispos. Assim aconteceu com
os dois últimos dogmas marianos. Nos últimos quatrocentos anos, no embate com os protestantes, os
católicos reforçaram os dogmas e a Tradição em detrimento da SE. Valorizou-se o conhecimento da
doutrina cristã baseada nos dogmas. Muitas vezes não se entendia o que se dizia (as crianças
decoravam) e foi crescendo a distância entre aquilo que as pessoas experimentavam pela fé e o que
expressavam na doutrina.
O Concílio Vaticano II recolocou a Bíblia como fonte para a teologia e para a liturgia. Ajudou-nos a
compreender melhor o lugar e a função dos dogmas. Mostrou como a Tradição legítima da Igreja
interpreta a SE e fornece elementos necessários para a vivência da fé. Reconheceu que nem todos os
dogmas tem o mesmo valor. Alguns estão mais próximos do núcleo da nossa experiência de fé. E
isso é importante para o diálogo com outras religiões.
A Revelação de Deus chegou ao seu ponto máximo em Jesus Cristo e a Bíblia se encerrou com o Ap.
O Espírito recorda o que Jesus nos disse e nos ajuda a compreender muito mais. A Igreja, nestes dois
mil anos de existência se parece com um grande rio, no qual as águas da única fonte que é a Bíblia
vão se enriquecendo com a Tradição. Cabe ao Magistério regular este processo de interpretação e
evolução, que as comunidades produzem no correr de sua história em diferentes épocas e culturas.
Os dogmas centrais do cristianismo são, ao mesmo tempo, infalíveis e reformáveis. A infabilidade
significa uma conquista irrevogável do dogma, que traz elementos vinculantes para a identidade da
nossa fé. Contudo, o dogma é caducável e necessita ser reinterpretado. A reforma do dogma visa
“suprir o descompasso da língua, aperfeiçoar as fórmulas usadas, purificar o esquema de
pensamento, manter viva a verdade da revelação em sua relação com a existência humana e dar mais
clareza e plenitude a esta verdade”(Mysterium Ecclesiae). Há, portanto, uma evolução da Tradição e
do dogma, que diz respeito não somente à linguagem, mas a um aprofundamento do que Deus nos
revelou (Ver DV n. 8).
Como Deus é uma realidade inesgotável e sempre nova, o dogma capta algo real do mistério divino,
mas de forma limitada. Necessita de novas abordagens no correr dos tempos, que se aproximam do
mistério de Deus, sem dizer a palavra final sobre Ele. Embora se servindo da razão, o dogma não se
reduz a um conjunto de fórmulas frias e exatas, como uma equação matemática. Manifesta um
sentimento de louvor. Só se compreende Deus deixando-se fascinar por ele, abrindo o coração, a
mente, o entendimento para a luz e o calor de sua presença irradiante.
O DOGMA DE MARIA, MÂE DE DEUS
“Segundo a inteligência desta inconfundível união (da natureza humana e divina em Jesus Cristo),
confessamos que a Santa Virgem é mãe de Deus, devido ao Verbo de Deus ter se encarnado e feito
ser humano e por haver unido consigo, a partir da mesma concepção, o templo que dela tomou”.
(Dz 142b)
Como pode um ser humano ser mãe de Deus, que é o criador de tudo?
História do dogma de Maria, mãe de Deus: ninguém duvida de que Maria é mãe de Jesus, uma vez
que os evangelhos afirmam isto com clareza. Depois da ressurreição, os seguidores de Jesus voltam
a perguntar, de forma cada vez mais profunda, “quem é esse homem?” e descobrem que dentro da
figura espetacular do homem de Nazaré havia algo mais. Jesus era o próprio Filho de Deus
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encarnado. O cristianismo entrou em várias culturas da Ásia e do Oriente Médio, que estavam sob o
domínio dos romanos. Assim, ao se aculturar, tomou muitos elementos do modo de pensar e de sentir
destes povos, como por ex. dos gnósticos e sua maneira dualista, dicotômica de ver o ser humano.
Para eles era difícil compreender um Jesus encarnado no seio de Maria, imaginaram que ele teria
nascido de repente, como pura luz. Os pais e mães da Igreja dos primeiros séculos, reagiram
duramente contra essa tendência espiritualista, afirmando que a maternidade de Maria é real,
verdadeira, concreta. Deus realmente se encarnou, se fez totalmente ser humano. Basta lermos as
homilias de Santo Atanásio (373 dC), Santo Éfrem (sec IV) e outros. Assim, Orígenes, Basílio,
Epifânio e outros passaram a usar a palavra grega “Theotókos”, que depois foi traduzida por Mãe de
Deus, a que pare Deus, dá à Luz a Deus.
O dogma da maternidade de Maria surge no meio da discussão sobre a pessoa de Jesus. Pairavam no
ar muitas dúvidas, como Jesus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, pode conciliar dentro de si
duas coisas tão diferentes? O bispo Nestório de Antioquia e o seu grupo defendiam que a
humanidade e a divindade de Jesus, embora estivessem na mesma pessoa, eram bem delimitadas.
Seriam com o dois andares de uma casa que se tocam somente pela laje, usando uma analogia
moderna. Como conseqüência, para Nestório, Maria era a mãe de Jesus, não Mãe do Filho de Deus.
A maternidade dizia somente respeito à dimensão humana de Jesus, o andar térreo.
Grandes discussões e polêmicas surgiram nesta época, conflitos entre duas visões teológicas
diferentes, uma da Igreja de Antioquia e outra de Alexandria. Em Éfeso, no ano 431, a questão foi
resolvida segundo o parecer de São Cirilo de Alexandria que reafirma a unidade da pessoa de Jesus.
Nele há uma comunicação tão grande entre o ser humano e o divino, inseparáveis. Assim Maria é a
mãe de Jesus Cristo, não somente de sua humanidade.
Vejamos um trecho da carta de Cirilo a Nestório... as naturezas (humana e divina) se juntam em
verdadeira unidade, e de ambas resulta um só Cristo e Filho... pois não nasceu primeiramente um
homem comum da Santa Virgem e depois desceu sobre ele o Verbo de Deus...
O Concílio afirma assim que “Deus é, segundo a verdade, o Emanuel, e por isso a Santa Virgem é
mãe de Deus, pois deu á luz carnalmente ao Verbo de Deus feito carne” (Dz 113).
Em 451, o Concílio de Calcedônia resgatará a contribuição de Nestório. Para evitar o erro de
entender que Maria fosse a mãe da Trindade, o Concílio diz que ela é a “mãe de Deus segundo a
humanidade”, ou seja, ela é mãe do Filho de Deus encarnado.
O dogma da maternidade divina de Maria tem uma forte incidência na vida cristã. Teologicamente,
perguntamos como é a relação de Maria com a trindade. Existencialmente, buscamos compreender
como essa dimensão materna diz respeito á comunidade eclesial e a cada ser humano. Por fim,
perguntamo-nos o que Maria tem a dizer ás mães de hoje.
A dimensão teológica da maternidade de Maria
Maria, mãe de Deus = Mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou
na Trindade. Todavia, como Deus-comunidade se oferece a nós, se comunica conosco por meio de
Jesus e do seu espírito, a maternidade de Maria toca cada pessoa divina.
Em relação a Deus-Pai ela é a filha predileta;
Em relação a Deus-Filho, Maria é mãe, educadora, discípula e companheira;
Maria é uma pessoa plena do Espírito do Senhor;
Enquanto membro da comunidade, Maria participa de Pentecostes.
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A dimensão antropológica da maternidade de Maria
Santo Ambrósio (séc. IV) dizia que cada cristão é mãe como Maria, pois gera Cristo na sua alma, no
seu coração. Somos povo de Deus e cada um de nós participa da maternidade de Maria. Quando
nascemos somos acolhidos na comunidade dos cristãos. A Igreja-mãe gera novos filhos pela fé, pelo
batismo e pelo testemunho de lutar pelo bem. Como mãe, a comunidade nos nutre por meio da
oração, da eucaristia e da vida fraterna. Somos ajudados, ouvidos, valorizados e educados. A opção
preferencial pelos pobres é uma das formas mais claras de a Igreja mostrar que é mãe. A Terra é
nossa mãe. Somos filhos da Terra e da água e quanto mais cultivarmos a ternura, a intuição, o
cuidado, a acolhida, o zelo pela vida ameaçada, mais estaremos realizando nossa dimensão materna.
Isso vale para homens e mulheres!
A dimensão existencial de Maria hoje
Maria, a Mãe amorosa;
Maria, a educadora de Jesus;
Maria, a seguidora de Jesus e mãe da comunidade;
Maria, a mãe que ama sem reter;
Mediação materna e dialogo ecumênico
O artigo que afirma que Maria é Mãe de Deus é vigente na Igreja desde os inícios e o Concílio de
Éfeso não o definiu como novo, porque é já uma verdade sustentada no Evangelho e na SE... Estas
palavras (Lc 1,32; Gl 4,4), com muita firmeza sustentam que Maria é verdadeiramente a Mãe de
Deus” (Lutero).
O dogma da maternidade encontra grande consenso entre as igrejas cristãs, em virtude da base
bíblica e da formulação num concílio ecumênico dos primeiros séculos. Para a Igreja ortodoxa,
“Theotókos não é um título opcional de devoção, mas a pedra de toque da verdadeira fé na
encarnação”. A pessoa e a vocação de Maria só podem ser compreendidas no contexto cristológico.
E porque se reverencia a Cristo como o Senhor, no mistério da criação, redenção e recapitulação,
considera-se Maria, a mãe Dele, como também a mãe universal, de toda a humanidade, doadora de
vida para toda a criação.
A “fórmula da concórdia” da Igreja Luterana, após a morte de Lutero, em 1.557 diz: Nós cremos,
ensinamos e confessamos que Maria é justamente chamada Mãe de Deus e que o é verdadeiramente.
O reformador Zwinglio também afirma: Maria é justamente chamada, a meu ver, genitora de Deus,
Theotókos. Já Calvino prefere falar em Mãe de Nosso Senhor, Cristotókos. Barth preocupa-se em
manter o título em seu contexto cristológico, insistindo que a maternidade divina de Maria não é
privilégio humano, mas fruto da graça de Deus.
Observamos que muitos aceitam o título Theotókos (parturiente de Deus) desde que permaneça em
relação com Jesus e que não se a eleve excessivamente à condição sobre-humana. O problema para o
diálogo ecumênico se coloca quando os católicos proclamam com vigor a “maternidade espiritual”
de Maria. Na encíclica A mãe do Redentor, o papa João Paulo II usa em profusão o termo “mediação
materna” de Maria:
A mediação de Maria está intimamente ligada à sua maternidade e possui um caráter
especificamente maternal, que a distingue das outras criaturas... Tal função é especial e
extraordinária. Ela promana da sua maternidade divina e pode ser compreendida e vivida na fé
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somente se nos basearmos na plena verdade desta maternidade. Sendo Maria mãe do Filho e
cooperadora generosa na obra da redenção, ela se tornou para nós mãe na ordem da graça (n.38).
A rejeição dos evangélicos à mediação materna de Maria se radica em dois elementos da experiência
de fé das igrejas reformadas:
- em primeiro lugar, eles afirmam que Jesus Cristo é o único mediador que nos conduz ao Pai (1Tm
2,5). Daí relativizam a comunhão dos santos e não aceitam a prática de dirigir preces aos santos e
Maria;
- o segundo diz respeito à teologia da graça. Lutero questionava a atitude espiritual de pretender
acumular méritos diante de Deus. A partir de S. Paulo, afirmava que o ser humano é justificado
somente pela fé, e não pelas obras da lei (Rm 3,27), enquanto se entrega confiantemente nas mãos de
Deus. Como vive sempre na possibilidade de voltar à situação de pecado, só a graça de Deus
possibilita-lhe entrar no caminho da salvação. Não consente que seres humanos, contingentes e
pecadores como nós, se coloquem á frente da comunidade cristão como “modelos operativos” a
serem seguidos, e muito menos como motivo de invocação e oração. Seria, no mínimo, segundo ele,
idolatria e mentira.
A teologia católica reconhece hoje o valor da crítica de Lutero, enquanto denuncia as tentativas
humanas de manipular a Deus, de comercializar a graça divina, que permanece sempre como
autodoação gratuita, imerecida de nossa parte. Por outro lado, na visão católica, não há competição
entre graça divina e ação humana. Tudo o que somos e realizamos depende da graça de Deus. E ele
conta com a nossa resposta ativa. Somos colaboradores do único mediador que é Jesus.
O catolicismo entende a mediação materna de Maria como um serviço permanente à comunidade
cristã. Ela não substitui a de Cristo, não eleva orgulhosamente o ser humano, nem subestima a
soberania da Palavra de Deus. A maternidade espiritual de Maria é puro serviço, oferta, trilha que
aponta e conduz para o único caminho: Jesus (Jo 14,6). Porém, estejamos atentos, na vida dos fiéis e
alguns movimentos eclesiais a maternidade espiritual de Maria pode correr o risco de perder a sua
centralidade em Cristo. “Mediação materna” quando bem compreendida por nós católicos pode sim
soar como uma bomba incendiária no diálogo ecumênico. Talvez fosse melhor utilizarmos outra
palavra como “serviço materno”, “acompanhamento materno” de Maria. Mas a questão central não
está no termo utilizado e o que importa sobretudo é a fidelidade ao Evangelho e ao dogma, ter claro
que a maternidade de Maria não é um mero privilégio, em virtude de sua experiência biológica de ser
a Mãe de Jesus. A condição de mãe do Filho de Deus encarnado não a eleva ao status de deusa, tem
sua raiz na graça de Deus, que contempla Maria e a cumula de amor divino. Maria responde com o
máximo de suas forças ao convite divino, na fé e por meio da fé, tornando-se mãe e discípula de
Jesus. Enquanto membro da comunidade-igreja, ela exercitou e continua exercitando uma missão
materna, puro serviço, e nada retém para si. Como Abraão representou no AT a figura do Pai na fé, e
nem por isso perdeu suas características humanas, assim Maria pode ser considerada a nossa mãe e
companheira na fé, no horizonte cristão. Sua maternidade a coloca, antes de tudo, na comunidade de
seus irmãos e irmãs que, ontem como hoje, enveredam pelo caminho do seguimento de Jesus.
O DOGMA DA VIRGINDADE DE MARIA
O dogma da virgindade de Maria foi formulado no II Concilio de Constantinopla, no ano de 553, que
afirma:
... O Filho ... desceu do céu e encarnou-se da (na) Santa, altamente celebrada, Mãe de Deus
(Theotókos) e sempre Virgem Maria.
O dogma da virgindade de Maria suscita hoje muita polêmica. Para uns, que consideram a
sexualidade como uma dimensão importante na sua existência, soa como se a Igreja tivesse criado o
37
dogma para manter a repressão sexual. Vários pesquisadores da história e da antropologia mostraram
que a imagem da Virgem Maria foi usada como modelo ideal da mulher na sociedade patriarcal e
sexista: a mãe, confinada ao espaço da casa e voltada unicamente para satisfazer os filhos; e a
virgem, sem desejo sexual. Outros questionam: Maria mãe e virgem tornou-se um modelo inatingível
para as mulheres concretas, já que nenhuma outra mulher consegue reunir ao mesmo tempo as duas
características. Alguns tem uma postura de indiferença diante desse dogma, afirmam que sua fé não
mudaria em nada se Maria tivesse permanecido virgem ou fosse uma esposa como as demais.
Importa sobretudo sua coragem, sua fé, sua entrega a Deus.
O dogma é inexplicável para a biologia e a medicina. Como uma mulher pode gerar um filho sem a
presença de espermatozóides? Como pode permanecer virgem após o parto?
A teologia moderna descobre que a “verdade” está sobretudo na mensagem, no sentido, e bem menos
nos fatos, na descrição literal de um acontecimento. Para transmitir uma experiência de fé, o escritor
bíblico, inspirado pelo ES, serve-se de vários gêneros literários. Ora nos relatos de Mt e Lc, nos
quais se encontram as informações sobre a virgindade de Maria, a intenção teológica predominaria
sobre os fatos reais. Assim, muitos se perguntam se a concepção virginal de Jesus realmente
aconteceu ou se é uma imagem para dizer que seu nascimento é um presente de Deus para a
humanidade. A virgindade perpétua de Maria apresenta problemas no diálogo com as outras igrejas
cristãs. Muitas igrejas evangélicas aceitam a concepção virginal como está nos evangelhos, mas
sustentam que Maria teve outros filhos com José.
E agora? O dogma católico tem três componentes:
- Maria Virgem concebeu Jesus por ação do ES , sem ter relações sexuais com José (concepção
virginal);
- Ela fez uma opção pelo celibato por toda a vida (virgindade perpétua)
- Que aconteceu algo extraordinário no momento do parto (virgindade no parto).
a) Concepção virginal – este não é um assunto tranqüilo entre os biblistas. Há hoje pelo menos três
correntes de pensamento, quando relacionam o fato e a sua interpretação. A primeira considera que a
concepção virginal é inegável, testemunhado por dois evangelistas. A segunda, na linha da
desmitologização de Bultmann, considera que a virgindade de Maria não é fato histórico, mas
somente uma metáfora. Carece de fiabilidade histórica, na melhor das hipóteses, dela devemos reter
somente a mensagem, pois não sabemos o que aconteceu. Nesta linha de pensamento seria muito
mais coerente a encarnação do filho de Deus vir a partir de uma relação sexual normal do casal. A
terceira corrente, com a qual nos identificamos, considera a concepção virginal um símbolo real. Ou
seja, é fato, mas transcende a sim mesmo, trazendo uma significação mais profunda. A mensagem
central da concepção virginal não é de natureza sexual, mas sim cristológica.
Devemos limpar o dogma da concepção virginal de Maria de um ranço muito antigo. É falsa a prévia
associação da virgindade de Maria com a sua santidade, como se uma possível vida sexual dela com
José significasse a perda da graça divina ou de sua pureza. Em princípio, não há um nexo necessário
entre ser mãe do Filho de Deus e a virgindade. Decisivo para a santidade e a maternidade de Maria é
a sua fé como opção radical de entrega a Jesus e ao Reino.
A concepção virginal quer nos dizer que a encarnação de Jesus é uma nova criação de Deus, um
presente divino à humanidade. Não desvaloriza o curso normal das famílias que se constroem a partir
do amor, mas anuncia uma radical novidade do amor de Deus quando traz seu Filho ao mundo.
Poderia ter sido diferente e não diminuiria em nada a divindade de Jesus e a santidade de sua Mãe.
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Mt e Lc coincidem ao falar que Jesus é concebido pelo Espírito Santo, mas não se trata de uma
relação sexual de uma virgem com uma divindade masculina que substitui o homem, como acontece
nos mitos de várias culturas ou religiões. Maria é a única origem humana de Jesus, como virgem que
se torna mãe. (Mt 1, 16-25; Lc 1, 27.35; Mt 1,20; Lc 1,35; Mt 1, 16.18-25.; Lc 1, 31.34s; 3,23).
Embora tenham muitos elementos simbólicos, os evangelhos da infância de Jesus não são lendas ou
mitos, mas uma reflexão que parte de acontecimentos verdadeiros. A concepção virginal não é uma
invenção piedosa, mas algo real em que a comunidade cristã crê. O Filho de Deus encarnado passa
da condição divina para a condição humana (Fl 2, 6-9) depois que é concebido pelo ES. A concepção
virginal é a porta de entrada da sua humanidade, como a ressurreição é a porta de saída, de
reencontro pleno com o Pai.
c) A opção celibatária de Maria – Mt diz que José não teve relações sexuais com Maria até que o
menino Jesus nascesse (Mt 1,25). Depois a Bíblia não fala mais nada sobre a possível vida sexual
dos dois. Os católicos dizem que ela continuou virgem e os evangélicos, que Maria teve outros
filhos. Quem tem a razão? De onde tiramos a crença na opção celibatária, após o nascimento de
Jesus?
A Igreja afirma que Maria não teve outros filhos além de Jesus. No evangelho de Mc, a expressão
“irmãos de Jesus” não pode ser tomada em sentido unívoco, literal. Ao menos dois dos “irmãos de
Jesus”, Tiago e Joset, não são filhos de sua mãe, mas de outra Maria (cf. Mc 6,3, comparado com Mc
15,40 e 16,1). Quanto aos outros irmãos e irmãs de Jesus a dúvida continua.
Embora consideremos somente a Bíblia como PdD, nós católicos, também levamos em conta a
Tradição cristã, i.é, tudo aquilo que a Igreja, inspirada pelo Espírito, foi selecionando e acumulando
na sua experiência, e afirmando como decisivo na sua identidade. Guardamos os documentos destes
que viveram e testemunharam a fé desde o início, os chamados pais e mães da Igreja. Estes cristãos
dos primeiros séculos reconheciam que Maria era especialmente abençoada por Deus e que ela viveu
a Boa-Nova até a sua raiz. Foi crescendo a convicção de que Maria, por opção de vida, dedicou-se
de corpo e alma à causa de Jesus e do Evangelho, renunciando a ter outros filhos. A sua maternidade
já não podia se limitar à família. Como membro e mãe da comunidade cristã, Maria consagrou-se de
forma radical a Deus, abraçando livremente a castidade. Eles acreditavam que Maria não teve outros
filhos por opção própria, por desejo de se consagrar mais intensamente a Deus. E buscaram, então,
explicar as palavras bíblicas sobre os “irmãos de Jesus”.
A primeira explicação diz que os “irmãos de Jesus” significa parentes próximos, pois no Oriente os
laços familiares são muito estreitos. Isto acontece com freqüência na Bíblia. Abraão, tio de Lot (Gn
11,31) chama-o de irmãos (Gn 13,8). Moisés considera como irmãos os seus compatriotas hebreus
(Ex 2,11). A segunda explicação é muito antiga e não tem fontes dignas de confiança. Ela diz que os
irmãos de Jesus eram filhos de José, de um primeiro casamento. Por isto, seriam meio-irmãos de
Jesus. A terceira explicação diz que os irmãos de Jesus eram seus primos. Essa versão e espalhou
com Epifânio e Agostinho nos séculos IV e V. Eles aproximam o texto de Mc 15,40, que fala da mãe
de Tiago e Joset longe da cruz, com Jo 19,25, que lembra a presença junto à cruz de uma irmã de
Maria. Agostinho considera que a mãe de Tiago e Joset, conforme Mc, é a irmã de Maria citada por
João. Ou seja, Tiago e Joset, chamados irmãos de Jesus, são filhos da irmã de Maria, logo primos
carnais de Jesus. Assim, por ampliação, todos os irmãos de Jesus seriam filhos de sua tia e de seus
tios.
Gregório de Nissa (394 dC) foi o primeiro Padre que, interpretando a leitura da Anunciação, propôs
explicitamente que Maria haveria feito o voto de castidade anteriormente à revelação do anjo. Tal
idéia foi assumida posteriormente por Agostinho, que divulgou esta versão, a qual porém não tem
apoio na SE.
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À medida que a vida consagrada cresceu e se afirmou na Igreja, aumenta a associação entre
“virgindade perpétua” e “santidade” em Maria. Até do ponto de vista semântico a mesma palavra
grega (thorá) servia para exprimir tanto a “desvirginização” como a corrupção do pecado.
Interpretou-se que a virgindade de Maria era uma confirmação de sua eleição divina e de sua
santidade total. Ela foi tomada como modelo de consagração virginal para homens e mulheres. Há
muito ainda para se descobrir neste assunto sobre o qual estudiosos e historiadores se debruçam. Nós
católicos acreditamos que os irmãos de Jesus não são filhos de Maria e que ela, por livre opção, quis
se consagrar a Deus pela castidade.
d) A virgindade no parto – Essa é a parte do dogma que mais necessita ser interpretada de forma
metafórica, pois ficar preso a questões biológicas pouco contribui para a nossa fé. É impossível,
explicar, com detalhes, o que aconteceu com o corpo de Maria no momento do parto. Não sabemos
em que consistiu a ação gratuita de Deus no nascimento de Jesus. Os pais e mães da Igreja não
caíram na armadilha de buscar explicações “ginecológicas”, mas usaram sempre imagens para deixar
lugar ao mistério de Deus. A virgindade no parto apoiou-se no apócrifo “proto-evangelho de Tiago”,
escrito por volta do ano 150 dC. Trata-se de um texto gnóstico, que desvaloriza a corporeidade e
nega o nascimento real de Jesus. Conforme este texto, Maria aos 3 anos foi levada ao Templo, onde
viveu e cresceu com outras virgens. Quando alcançou os 12 anos, para não manchar o templo com
sangue, em virtude de sua primeira menstruação, Maria é entregue a um viúvo. José é indicado por
um milagre: da vara por ele sustentada sai uma pomba, que pousa sobre a cabeça dele. Mais tarde,
Maria concebe por ação do ES. A gravidez se torna pública. José e Maria são levados ao tribunal.
São provados e livram-se por ação de um milagre. No momento do parto, José busca uma parteira.
Quando volta com ela, vê somente uma luz e o filho recém-nascido. A parteira conta a Salomé que
viu um parto virginal. Esta não acredita e quer ver para crer. Ao fazer o teste, tocando a genitália de
Maria, seu dedo se resseca. Ela dá um grito e pede perdão. O dedo volta, então, a condição normal.
Vê-se que é um relato cheio de elementos mitológicos, de mentalidade mágica. Outros apócrifos do
séc. II também falam assim da virgindade e do parto sem dor. Querem comunicar, por meio de
imagens, que Maria superou a maldição do pecado de Eva, não sofrendo dores de parto (Gn 3,16).
Santo Agostinho sustenta que a virgindade não se limita às marcas no corpo, mas diz respeito à
opção das pessoas. Certa vez, algumas virgens consagradas foram violentadas sexualmente por um
grupo de bárbaros. E, então, perguntaram a Agostinho como ficaria a situação delas. O santo
respondeu que cada uma delas continuava virgem, desde que fosse o seu desejo consagrar-se dessa
forma a Deus.
A “virgindade no parto” tem uma grande força simbólica. Em Gn 3,16, diz-se que uma das marcas
do pecado no mundo é a dor de parto e a dominação do homem sobre a mulher. A interpretação
metafórico-simbólica do dogma nos diz que, no nascimento de Jesus, foi quebrada essa maldição.
Ele é o novo ser humano, que abre para nós um caminho original, repleto de bênçãos, no qual serão
superadas a dominação e a dor, a começar do nascimento.
Sentido atual do dogma da virgindade de Maria
a) Sentido cristológico – a concepção virginal sinaliza que Jesus é um ser verdadeiramente novo,
dom gratuito de Deus, nova criação no Espírito. Não se trata de uma demonstração ou prova, mas
de um sinal eloqüente da graça do Senhor.
b) Sentido salvífico – Deus escolhe meios pobres para realizar a salvação (1 Cor 1, 17-25). A
virgindade de Maria, considerada maldição pelos judeus, foi abraçada por ela como forma de
desapego (Lc 1,48). A encarnação e a redenção chegam até nós por meio da disponibilidade ao
dom de Deus. A impotência do corpo virgem de Maria é a figura da pobreza da humanidade para
realizar a sua própria salvação sem a graça divina. Alerta as pessoas orgulhosas, auto-suficientes,
demasiadamente racionais e convencidas de si mesmas que Deus não se dobra aos seus
esquemas. Para Deus nada é impossível! (Lc 1,37). E o Senhor não age assim para competir
conosco, mas para ajudar-nos a descobrir a gratuidade e beleza da vida.
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c) Sentido existencial – A Virgindade de Maria é expressão de sua consagração total a Deus, de
“corpo e alma”. Ela inspira todos aqueles que, por livre-arbítrio, colocam-se diante do Senhor e
dos irmãos e irmãs com compromisso de castidade. Os consagrados não são seres perfeitos, nem
melhores que os outros. Recebem de Deus um chamado diferente e se colocam a caminho,
reconhecendo-se humanos e frágeis, mas também seduzidos e alimentados pela beleza de Deus.
d) Sentido antropológico – A virgindade de Maria ilumina a questão sobre quem é o ser humano
diante de Deus: um terreno virgem, pleno de possibilidades, onde tudo pode acontecer. E a
humanidade, em Maria, chegou ao ponto máximo de plasmar em suas entranhas o próprio Filho
de Deus. Quando reinterpretado, esse dogma ajuda a superar preconceitos machistas e moralistas,
que consideram o corpo como pecaminoso, e a mulher, lugar de tentação e desvio. Em Maria, o
corpo humano, especialmente o da mulher, se tornou para sempre o espaço onde o Espírito do
Altíssimo pousa e faz morada. Cada ser humano, independente de sua condição e identidade
sexual, tem algo de virgem. Pode tornar-se templo de Deus e fazer-se espaço aberto de
multiplicação das sementes do Reino.
O DOGMA DA IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA
No dia 8 de dezembro de 1.854 é proclamado o dogma na bula Inefabilis Deus:
... a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda a
mancha da culpa original no primeiro instante de sua concepção, por singular graça e privilégio
de Deus onipotente, em atenção aos méritos de Cristo Jesus Salvador do gênero humano, está
revelada por Deus e deve ser, portanto, firme e constantemente crida por todos os fiéis ...
Os dois últimos dogmas marianos apresentam algumas dificuldades comuns: são questionados
quanto à sua legitimidade, pois não têm base bíblica direta, não vêm responder a questões centrais da
identidade da fé cristã, como acontece com a maioria dos dogmas e não foram decididos em concílio
ecumênico. Muitos perguntam pela sua conveniência. Para que esses dogmas, se o cristianismo viveu
tão bem sem eles durante dezoito séculos? Por que sobrecarregar a Igreja com mais dogmas,
dificultando assim o diálogo ecumênico? Além disso, os dogmas da Imaculada e da Assunção foram
formulados numa mentalidade mariana triunfalista. Usaram os chamados argumentos de
conveniência, cuja lógica hoje é questionável. Basicamente, isto quer dizer: Deus podia fazer algo
especial em Maria. Convinha a Deus que o fizesse. Logo fez!
De fato, as circunstâncias da definição desses dogmas não foram as mais benfazejas: Bíblia
esquecida, ausência de diálogo com o mundo moderno, centralização do poder da Igreja em Roma,
dogmatismo vigente. Mas, apesar disso tudo, eles confirmaram o que já era aceito por boa parte do
povo católico e tinha sido expressado no correr dos séculos, especialmente pela devoção popular.
Hoje, é impossível voltar atrás. A bem da verdade, o cristianismo católico hoje é chamado a
reinterpretar os dois dogmas olhando para a experiência cristã e para o mundo contemporâneo.
O dogma da Imaculada Conceição parece fácil de ser aceito, porque nós sentimos que Maria é pessoa
completamente iluminada por Deus, o templo humano onde o pecado não entra e habita a graça. Bem
antes de se tornar dogma, o povo já cultuava Nossa Senhora da Conceição. Na AL, encontramos
estátuas barrocas da Senhora da Conceição várias delas vindas de Portugal e Espanha no tempo da
colonização. Interessante observar que, no Brasil, em vários lugares, as estátuas de Maria são
chamadas simplesmente de imagem da santa. O povo intui, que Maria é toda santa, toda de Deus,
sem nunca ter estudado Mariologia.
Há entretanto algumas dificuldades: muitos acham que Maria Imaculada nasceu e viveu tão santa,
que não tinha as dúvidas, as crises e as dificuldades das pessoas comuns. Seria uma santa que nasceu
completa e não precisava crescer. E daí surgem algumas perguntas: Se Maria nasceu sem pecado, sua
vida tem algum mérito? Não foi mais fácil para ela servir a Deus do que para nós, que somos
pecadores e temos que lutar duramente contra nossas forças negativas? Por que ela recebeu este
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privilégio? Não seria melhor se ela fosse um ser humano comum? Desta forma poderia ser uma
modelo mais próximo da gente, pois um modelo inatingível não é eficaz.
Para as Igrejas tradicionais da reforma protestante, o dogma da Imaculada Conceição fere os
princípios cristãos de que todos somos pecadores e necessitamos da graça salvadora de Deus em
Jesus Cristo. Além disso, não é um dogma definido por um concílio ecumênico, mas pelo papa,
questionado por eles quanto a autoridade. Outros evangélicos, baseando-se no texto de Rm 3,23
“todos pecaram” afirmam que o dogma vai contra a Bíblia. A questão não é fácil. Qual a mensagem
positiva da Imaculada Conceição?
a) Horizonte bíblico – Em Lc 1,28, na saudação do anjo, se diz que Maria é especialmente
agraciada por Deus (Kecharitoméne), cheia de graça. Em Gn 3,15 se promete que a descendência
da mulher esmagará a cabeça da serpente. Como já vimos, não é um texto mariano, mas uma
esperança dirigida a toda a humanidade. Podemos encontrar na Bíblia uma horizonte de
compreensão, que também nos ajudará a situar o dogma:
. ... Deus, nos escolheu, antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele, no amor (Ef 1,4)
. ... Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já te conhecia..., eu te consagrei... (Jr 1,5)
... Desde o seio materno, o Senhor me chamou (Is 49,1)
... o triunfo da graça, em Jesus Cristo, em comparação a Adão (Rm 5)
b) O caminho até o dogma –
Na Patrística: nos primeiros séculos da história cristã se desenvolve o paralelismo simbólico
entre Eva e Maria, respectivamente compreendidas como a virgem desobediente que leva
humanidade ao mal e a virgem obediente que abre o caminho para o bem. Nasce também a
devoção mariana. Os Padres da Igreja, como Irineu e Orígenes, falam da perfeita santidade de
Maria, ao mesmo tempo sinalizando que ela peregrinou na fé. Mas o pano de fundo no qual se
jogará posteriormente o dogma é a discussão de Pelágio com Agostinho no séc. VI. Para Pelágio,
o ser humano pode chegar a se salvar pelo próprio esforço. Assim, Jesus é simplesmente um
modelo ético e não redentor. Agostinho, ao contrário, baseado em São Paulo e na sua dura
experiência de vida na luta contra o mal, sustenta que a humanidade está marcada pelo “pecado
original” de Adão. Necessita ser salva por Cristo, em virtude da graça. O pecado original seria
transmitido de geração em geração por meio da relação sexual. Jesus foi poupado dele, porque
nasceu da concepção virginal. Agostinho afirma a total ausência de pecados atuais em Maria,
mas não de pecado original.
Idade Média: é consenso na maioria dos escritores medievais que Maria teria sido purificada do
pecado original em vista da concepção de Jesus. Quando? À medida que cresce a devoção
mariana, mais avança o movimento retroativo que identifica em qual momento Maria teria
recebido esta graça especial: na anunciação, imediatamente antes da anunciação, depois do
nascimento, durante a gestação. A questão suscita muitas discussões teológicas, que se polarizam
em duas escolas de pensamento, maculistas e imaculistas, protagonizados, respectivamente, por
dominicanos e franciscanos. Segundo os maculistas, Maria teria sido purificada da mancha do
pecado original durante a gestação. Para os imaculistas, no momento da concepção. Para nós,
hoje, isto parece uma discussão inútil... Neste caloroso debate, resgata-se a contribuição de Santo
Anselmo de Cantuária (1109 dC). Ele afirma que a ação redentora de Cristo se estende a todos,
em diferentes tempos e lugares. Daí, começa-se a falar de uma pré-redenção em Maria antes do
nascimento de Jesus. Enquanto isso, cresce lentamente a devoção à Imaculada Conceição,
especialmente promovida por ordens religiosas. Vai-se espalhando pelas dioceses, embora sem
aprovação do Vaticano, que só dará um sinal positivo de acatar o ofício e a missa da Imaculada
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no século XV. Desta época, há dois documentos oficiais pró-Imaculada Conceição: o do Concílio
de Basiléia (1431-1449) e a Constituição Apostólica de Sixto IV em 1477.
Idade Moderna: Lutero questiona profundamente a visão medieval da remissão dos pecados,
baseada em méritos e ritos religiosos. Enfatiza a justificação que vem somente pela fé em Cristo.
Leva ao extremo a visão de Agostinho e de Paulo, afirmando que o ser humano está
definitivamente marcado pela força do mal, que chega a perverter a sua consciência. Somente a
entrega nas mãos de Deus pode libertá-lo. O justo vive da fé, e não de suas obras. O Concílio de
Trento, em contrapartida, nas sessões do ano de 1547, rebate duramente as teses de Lutero.
Afirma que o ser humano, em virtude do pecado original, carrega consigo uma divisão interna,
chamada concupiscência, que o fragiliza e o leva a ter atitudes más e cometer pecados. Trento
não se detém na questão da Imaculada Conceição. Os séculos seguintes, na esteira da contra-
reforma e da reação à modernidade crescente, serão marcados por uma grande euforia mariana na
Igreja católica. Enaltecem-se cada vez mais os privilégios de Maria.
A definição dogmática – no século XIX, aumenta visivelmente a devoção a Maria como um
distintivo dos católicos. No oral da aparição (bem como na medalha milagrosa) a Catarina
Labouré, em 1830, está escrito: “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a
vós”. Em 1848, o papa Pio IX encarrega uma comissão de teólogos para examinar a questão.
Consultam-se os bispos, cuja maioria aceita a proposta da proclamação dogmática. Insatisfeito
com o resultado do trabalho em andamento, ele constitui uma outra comissão em 1852. Esta
define os critérios para uma definição dogmática e assim o dogma é proclamado em 08-12-1854.
O que significa Imaculada Conceição?
Todos nós fomos criados em Cristo. Estamos marcados pelo sopro de vida do criador e por uma
graça original. Como nos diz S. Paulo: ... Deus os escolheu, antes da fundação do mundo, para
sermos santos e íntegros diante dele, no amor (Ef 1,4). Cada bebê que vem a este mundo nasce
com uma bênção de Deus. O Senhor nos cria para sermos felizes e colaborarmos na felicidade
dos outros.
Ninguém nasce pronto. Cada um se desenvolve com o tempo, constituindo-se como pessoa no
correr da existência. Aprende a amar e a ser amado, recebe a fé de outros e a assume como sua.
Até a morte somos aprendizes na arte de viver. Somos limitados no tempo e no espaço,
condicionados pela cultura onde nascemos e vivemos. Até os erros são importantes neste
processo de aprender com a vida. Já no útero materno a criança recebe doses de amor e desamor,
acolhida e rejeição, afeto e violência. Somos todos solidários no bem e no mal. Ninguém começa
sua vida a partir do nada. Pela fé reconhecemos que somos parte de um grande projeto amoroso
de Deus, que estamos marcados pela sua graça e pela corrente positiva de amor, bondade,
acolhida, de tantos seres humanos que vieram antes de nós. Mas o mundo também tem violência,
mentira e maldade que nos contagia quando nascemos. Já no início estamos sob a ação de todas
as forças positivas e negativas, de vida e destruição, e interagimos com elas.
Há algo na nossa história pessoal, comunitária e planetária, que danifica os belos projetos do
Senhor. Não vem Dele, é difícil localizar sua origem e chamamos de “mistério do mal e da
iniqüidade”. Ele está espalhado na humanidade e repercute dentro de cada um de nós. Cada ser
humano tem dentro de si muitos desejos, tendências e impulsos. O ter, poder e prazer são
impulsos que precisam ser bem integrados num projeto de vida maior. Estes impulsos podem nos
afastar de Deus. A teologia chamou esta divisão interna de concupiscência. Ela tem dimensões
individuais, coletivas e culturais. Sabemos que nossa liberdade está comprometida pelo pecado e
precisa ser libertada. S. Paulo diz que muitas vezes nosso coração quer fazer o bem, mas
acabamos fazendo o mal que não desejamos (Rm 7, 14-24). Somos fragmentados. Mas nós
cremos na vitória da graça de Jesus Cristo, que nos liberta de todas as cadeias (Rm 5,8 e 8,1 -4).
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A graça original de Deus, que nos cria e nos salva, é mais importante e mais forte do que o
pecado original, e nos ajuda a superar nossos pecados e falhas.
O pecado original não é um pecado em sentido estrito, mas em sentido analógico. Reconhecemos
que existe uma ausência de mediação da graça em cada um de nós e nas nossas relações. O
pecado original não faz parte da essência do ser humano, mas de nossa atual condição humana,
que sofre a ação do mistério do mal e da iniqüidade. Que o ser humano seja limitado e aprendiz,
isso faz parte de sua essência de criatura. Que ele se deixe arrastar pelo mal e se negue a crescer
no bem constitui um paradoxo de sua condição atual.
O dogma da Imaculada Conceição afirma que o segredo de Maria, a perfeita discípula de Jesus,
que respondeu a Deus de maneira total, tem sua raiz na graça. Ele recebe do Senhor um dom
especial. Nasce mais integrada que nós, com maior capacidade de ser livre e acolher a proposta
divina. O fato de Maria ser imaculada não lhe tira a necessidade de crescer na fé, pois isso faz
parte da sua situação de ser humano, que necessita aprender e evoluir. Maria não nasce pronta.
Também ela é aprendiz. Há momentos em que ela não entende o sentido dos fatos (Lc 2,49-50).
E no decorrer da vida, Jesus a surpreende muitas vezes (Mc 3,31-35). Porém, diferente de nós,
Maria trilha um caminho sempre positivo, sem falsos desvios. Maria realiza sua vocação pelo
caminho humano da fé, em meio a crises e dificuldades. Experimentou processos de mudança, de
conversão, não do mal para o bem, mas de um bem para um bem maior.
Maria é pré-redimida pelo Verbo de Deus. Ela recebe sua graça salvadora numa intensidade
maior do que nós, o que lhe dá forças para integrar tendências e pulsões. Conquista assim uma
inteireza admirável. Exerce melhor sua missão de perfeita discípula, educadora e mãe do
Messias. Com maior liberdade interior, Maria desenvolve profundamente suas qualidades
humanas e espirituais, tornando-se criatura santa, não fragmentada, dona de si, aberta a Deus.
Portanto o fato de ser Imaculada não a torna menos humana, ao contrário, ela realiza a utopia da
nova humanidade, do ser humano evoluído espiritualmente. Mas a imagem de Maria imaculada
necessita ser completada com a da peregrina na fé.
Para alguns cristãos, que provam a fragmentação, a força do mal que domina, a reincidência no
pecado, a inconstância na fé, pode ser que Maria Imaculada não seja um modelo operativo
próximo. Neste caso, podem recorrer ao exemplo de outros santos, que, trilhando caminhos
tenebrosos, fizeram esforços enormes de conversão e experimentaram uma mudança radical de
vida. Para eles, Maria Imaculada não é ponto de partida, mas de chegada, pois o Deus que cria do
nada também recria a partir do caos e das trevas.
Maria Imaculada subverte nosso conceito de “privilégio”. Uma pessoa especialmente dotada,
com beleza estonteante, inteligência invejável, saber conquistado, poder ou fama, tende a se
distanciar dos outros, a subestimá-los e a olhar orgulhosamente para si. O privilegiado se torna
narcisista. Maria, ao contrário, nos ensina que tudo o que recebemos é dom e se destina a ampliar
a rede do bem, a estender o Reino de Deus sobre a terra. O singular privilégio da Imaculada
Conceição é um dom especial, ao qual Maria respondeu com maior intensidade ainda, colocando-
o a serviço de Jesus e da humanidade. Tudo o que somos, temos e conquistamos de especial visa
a contribuir na construção da teia da vida, nas qual todos os seres estão intimamente relacionados
e são interdependentes.
O DOGMA DA ASSUNÇÃO
Foi proclamado em 15 de agosto de 1.950, pelo papa Pio XII, na bula Munificentissimus Deus e
diz:
.. definimos ser dogma divinamente revelado: que a Imaculada Mãe de Deus, sempre Virgem
Maria, cumprido o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à glória celestial .
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O dogma da Assunção de Maria, festejado em 15 de agosto, tem nomes diferentes, como Nossa
Senhora da Boa Viagem, Nossa senhora da Glória ou da Abadia. Para muitos católicos esse
dogma não traz problemas nem soluções. Mas alimenta e aumenta e devoção do povo a Maria do
Céu.
Um pouco de história – a Bíblia não fala nada a respeito do final da vida de Maria. São João
mostra que ela na cruz, foi adotada pela comunidade como mãe (Jo 19,27). Lucas nos diz que ela
estava com o grupo que se preparava para a vinda do Espírito Santo em Pentecostes (At 1,13 e
2,1). Maria está a serviço da comunidade cristã como mãe.
Nos primeiros séculos, os cristãos tinham muito cuidado em guardar os restos mortais dos santos,
especialmente dos apóstolos e dos mártires. Não há, no entanto, nenhuma notícia sobre o corpo
de Maria. No século IV já se encontram notícias da festa devocional da “Dormição de Nossa
Senhora” e do túmulo vazio, em uma capelinha de Jerusalém.
Os pais e mães da Igreja chegam a falar de “glorificação de Maria” ou “exaltação de Maria”.
Segundo Éfrem (séc. IV-V), o corpo virginal de Maria não sofreu a corrupção depois da morte.
Para Epifânio (séc. V-VI), Maria já deve possuir em sua carne o Reino dos Céus. Ele reconhece
que a Escritura não se refere a esse assunto, e que haveria muitas possibilidades: o martírio
(associado com a imagem da espada em Lc 2,35), a simples morte ou que “ela tenha permanecido
em vida, já que para Deus nada é impossível”. Contudo,” ninguém sabe qual teria sido o fim
terreno da mãe de Deus”.
No séc. VI começa a difundir-se no Oriente a festa litúrgica do trânsito ou dormição de Maria,
fixada para 15 de agosto pelo imperador Maurício. Passa para Roma no séc. VII, com o papa
Sérgio I. Na Igreja copta, a celebração da morte e ressurreição de Maria acontece em 16 de
janeiro e 09 de agosto. Pouco a pouco o tema da dormição (koimesis) vai sendo substituído pelo
da Assunção (análempsis). Assim no séc. VIII, surge a festa da Assunção de Maria, na França e
na Inglaterra, a partir do crescimento da devoção mariana.
Nesse contexto devocional escrevem-se os apócrifos sobre o “trânsito de Maria” para o céu. É
difícil precisar a data de cada um, que varia entre os séc. VI a VIII. Entre eles se destaca o
“Trânsito de Maria”, do Pseudo-Militão de Sardes. Segundo esse escrito, dois anos após a morte
e ressurreição de Jesus, Maria começa a chorar no seu quarto, na cada de seus pais, situada no
Monte das Oliveiras. Um anjo traz-lhe do Paraíso um ramo de palmeira como sinal da morte
vindoura. Maria teme que a alma, ao sair do corpo, encontre o príncipe das trevas. Então a palma
se torna resplandecente de grande luz. A seguir, cada apóstolo que estava pelo mundo
anunciando o Evangelho é transportado numa nuvem e deixado diante da porta da casa de Maria,
onde se reúne com seus companheiros, passando três dias em oração com ela.
A seguir, Jesus vem com grande multidão de anjos, que entoam hinos de louvor. Enquanto Jesus
conversa com Maria, ela, dando graças a Deus, entrega o Espírito. Os apóstolos vêem que sua
alma irradia tal claridade “que supera a brancura da neve, da prata e de todos os metais”. Jesus
entrega a alma de Maria aos anjos Miguel e Gabriel. Três virgens tomam o corpo de Maria para
levá-lo ao funeral. Enquanto tiram sua veste, o corpo resplandece de luz e beleza. Espalha-se um
agradável odor, de perfume incomparável. Após uma procissão de 15 mil pessoas, os apóstolos
sepultam Maria no vale de Josafá, num sepulcro novo. Aparece de novo Jesus, cheio de
esplendor e coroado de anjos. Pedro pede-lhe: Ressuscita o corpo de Maria e conduze-o contigo
ao céu, do mesmo modo que tu, vencida a morte, reinas na glória. Jesus manda Gabriel trazer a
alma de Maria. Miguel gira a pedra da porta do sepulcro. Diz Jesus: Sai, minha amiga! Tu, que
não aceitaste a corrupção do relacionamento carnal, não sofrerás a dissolução do corpo no
sepulcro. E ressuscita Maria do sepulcro. Depois, beija-a e retira-se, entregando sua alma aos
anjos, que a levam ao Paraíso.
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Durante muitos séculos o povo cristão celebrava, na devoção popular, que Maria estava junto de
Cristo, toda glorificada, mas não havia consenso sobre o que teria acontecido com ela ao final da
vida. Depois da definição do dogma da Imaculada Conceição, houve um outro forte movimento
mariano para que a Assunção de Maria também fosse elevada à condição de dogma. E assim foi
proclamado o dogma que no entanto não entra em detalhes se Maria morreu ou não. Embora
fazendo alusões a textos bíblicos, a bula papal está calcada nos argumentos de conveniência. A
grande razão teológica é que Maria, a mãe de Deus, está estreitamente unida a seu Filho e
participa de seu destino . União física e moral, a ponto de ser co-participante da obra redentora de
Cristo. Como a ressurreição foi o epílogo da salvação realizada por Cristo, assim também era
conveniente a participação de Maria por meio da glorificação de seu corpo virginal.
Compreendendo o dogma à luz da escatologia – Nós cremos que a vida que Deus nos deu, e nós
cultivamos, não termina com a morte. A Ressurreição de Cristo, nos garante uma vida
glorificada, em comunhão com a Trindade e com nossos irmãos(ãs). Como somos na vida eterna
não sabemos, Nele seremos transfigurados. Os cristãos no correr dos séculos, elaboraram como
seriam essas últimas realidades (novíssimos). Aos dados bíblicos foram acrescentadas
concepções da alma, lidas por Platão, Aristóteles e depois por Santo Tomás e os escolásticos que
até hoje influenciam nossa maneira de pensar sobre o fim último do homem (mulher). Vejamos
em resumo:
O ser humano é constituído de corpo e alma, como matéria e forma. A alma é imortal;
Ao final da vida, o corpo morre e se separa da alma, temporariamente. A alma, na qual reside
sua identidade vai encontrar-se com Deus no juízo particular. Ali tudo se esclarece. Aos bons
estão reservadas as alegrias eternas do céu. Aos que morreram em estado de pecado grave o
fogo do inferno. Aos que necessitam de purificação de seus pecados leves, o purgatório.
Na glória celeste estão a Ssma. Trindade, os anjos (que não tem corpo) e todas as almas dos
santos, que intercedem por nós. Somente Jesus que ressuscitou, está no céu em corpo e alma.
No fim dos tempos Jesus voltará pela segunda vez, em glória e poder. Será a parusia e haverá
a ressurreição dos mortos. A alma voltará a se reunir ao corpo. Mas cada um receberá um
corpo transformado, de acordo com o veredicto do juízo particular. Os justos, que estão no
céu, receberão de volta o seu corpo, transparente, leve e iluminado. Os pecadores do inferno
também receberão um corpo, pesado, sem luz, apropriado ao seu estado.
Então acontecerá o juízo final no qual Deus pronunciará sua palavra final sobre tudo e todos.
Esta forma de pensar é dual e totalmente dicotômica. O céu como lugar geográfico, o tempo
cronológico. Assim, nesta visão, os anjos tomam a alma de Maria na hora de sua morte e depois
Jesus ressuscita seu corpo.
Neste horizonte de compreensão foi proclamado o dogma da Assunção. Ele afirma que Maria,
deferente de nós, não precisou esperar o fim dos tempos. Depois de sua vida terrena ela já está
junto de Deus com o corpo transformado, cheio de graça e de luz. Deus antecipou nela o que vai
dar a todas as pessoas do Bem, no final dos tempos.
A escatologia plural e unitária tem outra maneira de compreender a ressurreição dos mortos:
O ser humano é uma unidade plural de muitas dimensões, como matéria e energia, indivíduo
e comunidade, pulsão e consciência, corpo e espírito.
Quando uma pessoa morre, seu corpo finito e degradável se decompõe, mas por graça de
Deus, a pessoa inteira é ressuscitada em seu corpo glorificado.
Na hora da morte, a pessoa passa para uma outra etapa (dimensão) de existência,
transfigurada, que supera nossos limitados esquemas de espaço e tempo. Neste encontro
misericordioso com Deus ela vê toda a sua vida. É também o juízo salvador, oferta de graça,
que tem relação com o seu crescimento espiritual na existência humana.
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A ressurreição dos mortos é simultânea ao juízo particular, pois na morte, a pessoa se
encontra com Deus.
Da mesma forma, o juízo universal e a parusia já começam a acontecer para aqueles que
passaram desta vida para a vida eterna. Mas haverá uma consumação final, quando Cristo
será tudo em todos.
Nesta concepção o dogma da Assunção simplesmente anuncia que Maria tem um lugar especial
na comunhão dos santos, como uma confirmação de Deus de sua opção de vida. Compreende-se
também que a corporeidade de Maria recebeu um especial sinal de benção do Senhor. Ela, a
primeira discípula, se transforma na primeira ressuscitada (não na ordem temporal) depois de
Jesus.
Não podemos entender a Assunção de forma literal, como se Maria subisse ao céu com o corpo
que ela possuía aqui na terra, com ossos, pele, carne e sangue. Nem como o corpo de Lázaro, ou
o filho da viúva de Naim, que voltaram à vida e depois voltaram a morrer e seus corpos se
degradaram. O corpo de Maria foi transformado e assumido por Deus, embora não saibamos os
detalhes. Importante é crer que Maria já está glorificada junto com Deus, toda inteira. Ela já está
vivendo o que está prometido para cada um de nós: participar do banquete da vida, levando
consigo o amor e seus frutos, cultivados nesta existência.
A Assunção deve ser compreendida sempre em relação à ressurreição de Jesus. S. Paulo nos diz
que Jesus é o primeiro ressuscitado (Cl 1,18, Rm 15, 20-22) e que nós o seguiremos. Os relatos
dos evangelhos nos mostram que o Cristo ressuscitado é o mesmo Jesus, pois os discípulos
podem tocar nele e até comer com ele (Jo 20,27). Mas o corpo do ressuscitado é completamente
diferente do nosso. As pessoas só podem reconhecer Jesus pela fé Nele, até mesmo seus
discípulos não o identificam à primeira vista. Será um fantasma? O jardineiro? Aí está a grande
novidade da ressurreição. Jesus continua o mesmo, mesmo sendo agora tão diferente. É uma
forma de vida completamente nova, muito além do que podemos imaginar.
Cremos que Maria está junto de Jesus, glorificada por inteiro. Deus assumiu toda a sua história,
suas ações e seu corpo. Como está na glória de Deus e dos santos, continua perto de nós,
auxiliando-nos como mãe amorosa e companheira na fé.
Lições do dogma para nós – o dogma da Assunção estimula nossa fé, especialmente nos
momentos de crise. Olhando para Maria ressuscitada e glorificada, que seguiu os passos de seu
Filho Jesus, a gente se anima a lutar pelo bem, pela verdade e pela justiça. Mesmo que a
incompreensão e o fracasso aparentemente sejam mais fortes, cremos na força de Deus, no poder
de Cristo ressuscitado. Ele inaugura para nós o “novo céu e a nova terra”, onde Maria já está,
com os santos. Lá, Jesus ficará bem pertinho de nós. Vai enxugar as lágrimas dos nossos olhos.
Não haverá nem morte nem sofrimento. O Senhor fará novas todas as coisas e nos concederá,
gratuitamente, a fonte da água da vida (Ap 21, 1-7).
Jesus nos antecipa a glória reservada na eternidade. Quando nos sentimos leves, levados pela
mão de Deus, experimentamos um pouco da Assunção. A Assunção de Maria foi resultado de
seu peregrinar nesse mundo. Cada vez que ela dava novos passos para seguir Jesus, para buscar a
vontade de Deus, o Senhor ia assumindo e transformando sua pessoa. Até que chegou o momento
final. Acontece algo parecido conosco. Na vida de fé, cada novo passo que damos, corresponde a
um dom da parte de Deus. Ele nos acolhe, toma-nos pela mão, assume-nos e nos transforma.
Cada um dos dogmas nos diz que Maria é uma pessoa humana como nós, mas muito especial.
Mostra algo de seu mistério, que não podemos ver numa leitura superficial. Maria é como a terra
virgem, cheia de viço, aberta para ser fecundada por Deus. Ao acolher o imenso dom do Senhor, ela
se torna a mãe do Filho de Deus encarnado, nos ensina a desenvolver os traços do amor materno.
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Quando olhamos para Maria Imaculada, tão cheia de Deus, descobrimos que a vida dela foi como
empinar uma pipa. Deus lhe deu o vento do ES, que soprava sobre ela sem resistências. E ela
correspondeu cada vez mais, realizando vôos leves, ousados e bonitos. E no final de sua peregrinação
tudo só poderia ser bom: ela se torna a perfeita discípula de Jesus, que ouve a Palavra, medita e a põe
em prática. Age como mãe da comunidade. Deus assume de tal maneira sua pessoa e sua missão que
Maria hoje está glorificada junto de seu Filho e dos santos, pela Assunção.
Toda de Deus e muito humana: eis o segredo dos dogmas sobre Maria. Um segredo que nos ajuda a
sermos mais autênticos seguidores de Jesus, como ela.
MARIA NA DEVOÇÃO POPULAR E NA LITURGIA
Podemos recorrer a Maria e aos outros santos, mas não temos a obrigação de fazê-lo. O cristão
católico adora somente a Deus, ao Pai criador, pelo Filho redentor, no espírito santificador. Os santos
são como riachos, afluentes que nos levam ao grande rio que é Jesus. Houve um tempo em que os
católicos veneravam demais os santos. Esse exagero aconteceu sobretudo na Idade Média e voltou à
tona nos últimos séculos, em virtude do distanciamento da figura de Jesus. Pior ainda, até Jesus foi
confundido com um objeto devocional, Há igrejas nas quais se encontram estátuas do Menino Jesus,
do Senhor dos Passos e do Sagrado Coração de Jesus uma ao lado da outra, como se aludissem a
diferentes pessoas. No séc. XVI, Lutero, lutou ardorosamente para que Jesus voltasse ao centro da
nossa fé. Devido ao clima de polêmica da época, destruíram-se em muitos lugares, em massa as
imagens dos santos. E do lado católico, na Contra-Reforma, reforçou-se a devoção aos santos. Hoje,
no diálogo ecumênico, os católicos valorizam a centralidade de Jesus. E as igrejas evangélicas
aceitam os santos como referência de vida, mas rejeitam a intercessão deles.
O Vaticano II, em 1964, superando o triunfalismo mariano dos últimos séculos, propôs uma reflexão
mais equilibrada sobre Maria. Inseriu-a no mistério de Cristo e da comunidade eclesial, no capítulo
VIII da Lumen gentium. Nos primeiros anos após o concílio, presenciou-se uma grande crise da
devoção mariana. Então em 1975, o papa Paulo VI, escreveu o documento “O culto da Virgem
Maria” ainda atual. Ele mostra o lugar de Maria na liturgia renovada pelo Concílio. Apresenta-a
como referência de vida, convida-nos a evitar os exageros que dificultam o diálogo ecumênico e a
purificar nossas devoções marianas.
Maria tem um posto especial na comunhão dos santos. Ocupa um lugar único, mais alto depois de
Cristo e mais perto de nós. Por isso, podemos rezar a ela, contar com sua intercessão, pedir sua
proteção e auxílio e entregarmo-nos nas suas mãos. A graça, comunicada por Maria, não surge dela e
ela nada retém para si. Tudo vem de Deus e para Deus retorna. A oração a Maria deve nos colocar
em sintonia com Deus Trindade. Quando chamamos Maria de Nossa Senhora, o fazemos com
delicadeza e afeto, mas não podemos colocá-la no mesmo nível de Jesus, pois só ele é o Senhor.
Maria, na comunhão dos santos, vive em relação a Deus e a nós. Ela aprendeu de Jesus ser a serva,
ela transmite a graça de Deus. Nos primeiros séculos moldou-se uma bela analogia: Jesus é o Sol,
Maria a Lua, que recebe dele toda a luz e a irradia para nós.
A veneração a Maria aparece mais claramente na devoção popular. Essa religiosidade não tem dono
nem regras definidas. Quem a cria, solta-a no mundo. Compete aos povos divulgá-las e modificá-las.
Naturalmente a sociedade moderna tenha recursos midiáticos e movimentos aparicionistas (de
aparições marianas) que favorecem a divulgação de certas devoções, deixando outras no
esquecimento. Mas as devoções populares a Maria, como o terço, as novenas, as promessas, as
fórmulas de consagração, as romarias, são antes de tudo manifestações do coração. Não se movem
por normas canônicas, mas pelo desejo dos católicos de entrar em sintonia com Maria.
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Como têm grande força simbólica e ritual, as devoções tendem a se solidificar e a resistir a
mudanças, conferindo aos seus “usuários” uma certa segurança que vem da repetição. É como se o
ritual tivesse uma potência mágica, cujo segredo reside na disposição das palavras e dos gestos. Isso
acontece com todos os fenômenos religiosos desde muito tempo atrás e sempre se corre o risco de se
degenerar em magia. O ser humano, tenta de certa forma, manipular o sagrado em seu benefício e
cria a ilusão de que o rito, por si só, atrai os favores da divindade.
As devoções marianas populares tem uma marca da característica comunitária e cultural. E então
sempre se corre o risco de alguém querer tirar proveito político ou econômico, por exemplo.
Também dentro do evoluir da cultura, muita coisa vai mudando e é sempre necessário purificar
aquelas coisas que já perderam seu significado ou desviaram seu sentido originário. As comunidades
devem ser ajudadas a viverem a fé, a esperança e o amor solidário, olhando para Maria.
A Igreja constitui uma comunidade organizada, com ritos e normas. A oração litúrgica é mais
definida do que a devoção popular. Mas a liturgia também não pode engessar a devoção da
comunidade. Na inculturação conservamos fórmulas e elementos comuns que nos caracterizam como
católicos mas também criamos novas formas de expressão da fé, a começar pelos cantos e gestos.
Na liturgia reformada depois do Vaticano II, Maria foi recolocada em íntima relação com o mistério
de Cristo e da Igreja. No decorrer do ano litúrgico há três tipos de celebrações marianas: as
solenidades, as festas e as memórias. As solenidades são quatro:
Maria, mãe de Deus (1º. De janeiro)
Anunciação (25 de março)
Assunção (15 de agosto)
Imaculada Conceição (08 de dezembro).
Em cada país há pelo menos mais uma solenidade: a da padroeira.
As principais festas de Maria são:
Visitação (31 de maio)
Nascimento de Maria (08 de setembro)
Por fim, temos uma série de memórias, celebrações de menor importância, algumas delas opcionais.
Nossa Senhora das Dores (15-09), Nossa Senhora de Lurdes (11-02), Nossa Senhora do Carmo (16-
07), Nossa Senhora do Rosário (07-10). Na AL a memória de Nossa Senhora de Guadalupe se tornou
festa (12-12), pois ela foi proclamada padroeira do nosso continente.
Todas estas ocasiões devem ser bem aproveitadas para ajudar a comunidade eclesial a conhecer mais
e melhor a mãe de Jesus e purificar os exageros da devoção mariana relacionando-a com Jesus e a
Igreja.
Desde o início do cristianismo, os seguidores de Jesus desenvolveram muitas formas de oração. Não
se sabe quando os cristãos começaram a rezar a ave-maria como oração vocal. Na Idade Média uns
monges analfabetos, não podendo ler os salmos, recitavam de memória algumas frases. Como os 150
salmos, eles rezavam, o mesmo número de ave-marias, mas somente a primeira parte, composta pela
saudação do anjo (Lc 1,28) e as palavras de Isabel (Lc 1,42). Embora se conte que São Domingos
tenha recebido diretamente de Maria o rosário, um monge dominicano, por volta do ano 1300, fez a
divisão das ave-marias em quinze dezenas, com o pai-nosso iniciando cada uma. Mais tarde, outro
monge propôs a meditação dos mistérios. E algum tempo depois, outro frade dominicano criou o
rosário, dividido em mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. Com eles, se completavam a
encarnação, paixão e morte, ressurreição e glorificação de Jesus e Maria. A segunda parte da oração
da ave-maria foi incorporada ao rosário provavelmente a partir do ano de 1480. Muitas confrarias e
institutos religiosos promoveram a devoção ao rosário. O povo aprendeu logo esta oração tão fácil.
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Há poucos anos, o papa João Paulo II, no documento “O rosário da Virgem”, propôs mais uma
sequência de mistérios, os da Luz, que contemplam a missão de Jesus, Assim, o rosário passou a ter
200 ave-marias.
O terço é uma devoção saudável, que ajuda aos fiéis a adorar a Deus, venerando a mãe de Jesus e
contemplando os mistérios da vida do Senhor. Mas deve ser rezado com o coração aberto e boa
preparação. Não é aconselhável recitá-lo de maneira mecânica e às pressas. Sugere-se que a recitação
seja enriquecida com trechos da PdD, hinos e canções. Não é a única forma de oração católica. Como
acontece com as outras devoções, não convém misturar o terço com a liturgia. Na hora da missa não
se reza o terço. Embora seja muito bom, não é obrigatória a reza do terço, apesar de ser um
instrumento reconhecido e abençoado pela Igreja.
Algumas sugestões para incrementar a oração com Maria:
Acolher com carinho e respeito as práticas de devoção popular;
Organizar as festas de Maria em grupos, para fazer delas um momento de oração da
comunidade;
Suprimir, com bom-senso, aquilo que é exagerado e não ajuda a comunidade a seguir Jesus;
Por meio da música, da pintura, da escultura, do teatro, redescobrir, de forma inculturada,
novos rostos de Maria;
A partir dos textos do Evangelho, mostrar que Maria passou pela Terra, como nós. Lembrar
as qualidades humanas de Maria de Nazaré e o seu peregrinar na fé.
BIBLIOGRAFIA:
Murad, Afonso, “Maria, Toda de Deus e tão humana”, Edições Paulinas, S. Paulo, 2.004
Forte, Bruno, “Maria, a mulher ícone do mistério”, Edições Paulinas, S. Paulo, 1.991
Coyle, Kathleen, “Maria na Tradição Cristã”, Paulus, S. Paulo, 2.000
González, Carlos Ignacio, “Maria evangelizada e evangelizadora”, Edições Loyola, S. Paulo, 1.990
Boff, Clodovis M. Boff, “Mariologia Social”, Paulus, S. Paulo, 2.006
Boff, Clodovis, “Curso de Mariologia” – apostila
Munsterman, “Maria corredentora?”, Paulus, S. Paulo, 2.009
Temporelli Clara, “Maria mulher de Deus e dos pobres”, Paulus, S. Paulo, 2.010
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