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CONSTITUINDO-SE E POSICIONANDO-SE COMO PERTENCENTE À CULTURA
GAÚCHA – UM ESTUDO SOBRE A FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE/RS A
PARTIR DO JORNAL ZERO HORA
Gisele Massola- PPGEDU/UFRGS1
Maria Lúcia Wortmann- PPGEDU/UFRGS/ULBRA2
Á medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2005, p. 13).
Partindo das considerações feitas por Hall (2005), na epígrafe que dá inicio a este
texto, transcrita de uma de suas importantes produções para o campo dos Estudos Culturais,
buscamos inspiração para fazer incursões aos entendimentos de cultura, identidade e
regionalidade, que apresentamos neste artigo.
Iniciamos destacando que, para Hall (2005), as tradições inventadas referem-se a “um
conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, a qual, automaticamente, implica
continuidade com um passado histórico adequado” (p. 54). Quando olhadas nesse sentido,
entende-se que tais práticas são forjadas para sustentar práticas e discursos que constituem
redes de significação, que permitam a construção de um sentimento de pertencimento
conjunto seja para um grupo étnico-racial, seja para o estabelecimento de uma ideia de nação,
seja, ainda, para a configuração de grupos de sujeitos que partilham particularidades em
relação a suas possibilidades de locomoção ou comunicação. Entende-se, também, que se
estabelece em tais práticas amarras ou enlaces entre a história e a identidade com o propósito
de unir, em uma origem comum, localizada no passado, todos os homens do presente. Enfim,
neste tipo de abordagem, toma-se “a história como o lugar da produção da memória, como
discurso da reminiscência e do reconhecimento” (ALBUQUERQUE, 2001, p.79). E é em
função disso que, em determinados contextos sociais, o passado costuma passar a ser
referenciado como glorioso, sendo cultuado através de formalizações e ritualizações que, pela
1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora tutora dos
cursos de licenciatura (Ciências Sociais, Geografia e História) em EAD da Universidade Luterana do Brasil
(ULBRA). 2 Professora/pesquisadora dos cursos de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) e da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
imposição da repetição, remetem a narrativas que acentuam e buscam restaurar identidades
que ficaram no passado.
Refletindo um pouco mais acerca de marcadores que nos remetem a uma dimensão de
“origem”, de “história fundacional”, de “passado comum” e de “tradição”, pensamos ser
importante explorar o modo como Hall (2005) destaca serem procedidos os processos de
construção identitária, notadamente das chamadas identidades nacionais. Isso porque muitos
de seus argumentos nos conduziram a refletir acerca de como se dá a composição de
identidades regionais, que no caso do estudo focalizado neste artigo, dizem respeito à
denominada identidade “gaúcha”.
Hall (2005) dá destaque a como as chamadas narrativas de nação, ou de Estado,
“fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos
e rituais nacionais, que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os
triunfos e os desastres que dão sentido à nação” (p. 52, grifos do autor). É nessa mesma
direção que discutimos como em um complexo evento cultural – A Feira do Livro de Porto
Alegre/RS – realizado anualmente desde 1955, sob a chancela da Câmara Rio-Grandense do
Livro (CRL), o Ministério da Cultura e a Prefeitura de Porto Alegre, contando com apoio
financeiro da Lei de Incentivo à Cultura e da Lei Rouanet, se tem construído algumas formas
de representar a identidade cultural gaúcha. Além disso, é importante registrar que em 2005,
este Evento foi integrado ao Patrimônio Histórico Cultural do Estado do Rio Grande do Sul, e
recebeu a Medalha do Mérito Cultural da Presidência da República, em 2006, e que, desde
2010, esse evento tem o status de Patrimônio Imaterial de Porto Alegre, por iniciativa da
Secretaria Municipal da Cultura.
O estudo focaliza estratégias discursivas e representações associadas à
produção/gestão/invenção deste evento cultural em seções, matérias, colunas, manchetes e
notas informativas veiculadas no Encarte Caderno da Feira, que tem circulação diária no
jornal Zero Hora3 durante o período de realização da Feira do Livro, centrando-se a análise
3 Este Jornal foi criado na década de 1950, sendo inicialmente de propriedade do jornalista Samuel Weiner. Seu
primeiro título foi Última Hora e, nessa época, este era um jornal de linha editorial mais esquerdista que
encerrou sua publicação durante a implantação do golpe militar no Brasil, em 1964. Posteriormente este
periódico foi adquirido pelo jornalista e empresário Ary Carvalho, que alterou sua denominação para Zero Hora.
Com a captação de novos sócios, o jornal Zero Hora passou a ser editado diariamente, desde 1964. Nos anos
1970, a família Sirotsky adquiriu o controle majoritário da Empresa, constituindo-se, então, o Grupo da Rede
Brasil Sul de Comunicação (RBS), que se tornou responsável pela edição desse Jornal. Em 1982, Zero Hora
ultrapassou o Correio do Povo, seu maior concorrente, em número de tiragens diárias, vendas e
representatividade em termos de comunicação. Atualmente este grupo é apontado como um dos maiores
complexos multimídia da região Sul do país, possuindo, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, oito jornais,
em algumas matérias publicadas entre os anos de 2010 a 2013, nas quais a figura do patrono
da Feira é associada a peculiares símbolos usualmente utilizados para representar a cultura
gaúcha.
Neste artigo, que é um recorte de pesquisa de doutorado em fase de conclusão,
examinamos seis exemplares deste Encarte, a partir de um acervo de trinta exemplares. O
estudo inspira-se nos Estudos Culturais em sua articulação com a Educação e se vale de
teorizações de autores como Albuquerque Jr. (2011), Hall (1997; 2005), Silva (2007), Silveira
(2000), Woodward, (2007) entre outros.
Argumentamos que muitas são as representações colocadas em circulação nesta Feira,
sendo que essas definem condições e posicionam sujeitos e instituições como integradas à
cultura regional gaúcha. Ao lado dessa configuração mais regionalista, argumentamos,
também, que se desenrolam práticas de internacionalização direcionadas a conectar este
evento a outros promovidos na América Latina e em outros continentes.
Apresentando a Feira do Livro: um evento cultural importante e peculiar à cidade de
Porto Alegre
A Feira do Livro de Porto Alegre/RS é um evento regional que, a partir de sua
primeira edição, não sofreu interrupções completando-se neste ano de 2015, sua sexagésima
primeira edição. É importante registrar que a Feira do Livro é considerada um dos eventos
culturais mais expressivos e representativos de Porto Alegre/RS em termos de extensão,
circulação de pessoas, número de expositores, bem como de programações endereçadas a
públicos de diferentes faixas etárias4. Além disso, a Feira é um evento em expansão, que
reúne, atualmente, ações culturais de distintas ordens e na qual se mobilizam muitas práticas,
algumas das quais delineiam identidades culturais para a cidade e para a própria Feira.
Destacamos no estudo o grande número de patrocinadores que investem nesta Feira e o
vinte e quatro estações de rádio AM e FM, dois portais na internet, dezessete emissoras de televisão afiliadas à
Rede Globo, duas emissoras locais denominadas comunitárias e um canal veiculado nacionalmente voltado para
o segmento rural. De acordo com informações divulgadas pelo Grupo RBS, através do site institucional, a
tiragem do jornal já atingiu o número de 190 mil exemplares por dia. 4 A última edição do evento contou com 140 expositores, mais de 700 sessões de autógrafos, 156 eventos em
salas (mesas redondas, palestras seminários), 31 oficinas e encontros relacionados ao livro e à criação literária,
31 eventos artísticos e culturais, 20 sessões de cinema comentadas, presença de autores internacionais e uma área
específica dedicada a crianças e jovens (Área Infanto-Juvenil) com 416 atividades. Cabe ainda indicar que, no
evento de 2014, realizado em dezessete dias, totalizou-se a comercialização de 411.056, registrando-se a
circulação de aproximadamente 1 milhão e quatrocentas mil pessoas. Dados e números apresentados aqui foram
fornecidos através de informações divulgadas no site da Câmara Rio-Grandense do Livro. Disponível em:
http://www.feiradolivro-poa.com.br/. Acesso em: dezembro de 2014.
quanto esses, bem como seus organizadores, participantes em geral e até mesmo as mídias,
além de divulgá-la, vinculam-se à Feira para ressaltarem seus compromissos com o
desenvolvimento da cultura sulriograndense.
A Praça da Alfândega, localizada no Centro Histórico de Porto Alegre, e um dos
pontos de maior circulação de pedestres da cidade, sedia este evento desde a sua primeira
edição. Inicialmente, a Feira ocupava, apenas, o espaço restrito da Praça, tendo
posteriormente se estendido a prédios vizinhos, tais como: o Memorial do Rio Grande do Sul,
o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS), o Banco Santander
Cultural, o Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, a Casa de Cultura Mário Quintana e a
Biblioteca Pública do Estado. Assim, a Feira do Livro ocupa, atualmente, em torno de 224 mil
metros quadrados.
Cabe referir que a programação deste evento está subdividida em três áreas: Geral,
Internacional e Infanto-Juvenil, voltadas a atender e a valorizar aspectos simbólicos
associados a imagens, artefatos e formas de identificação da cultura local, mesmo que, mais
recentemente, uma preocupação com uma dimensão mais internacional também tenha passado
a orientar a sua programação. Nessa última direção, registramos ser procedida, a cada ano,
homenagem a um país – o Canadá foi o homenageado na edição de 2014, com o slogan “Uma
História de Muitas Histórias”. Mas a dimensão de internacionalização do evento se estende,
também, à promoção de palestras, das quais participam autores e escritores dos países que
estão representados na Feira e cujos livros são também nela lançados, sendo ainda realizados
debates sobre tradução e digitalização de acervos, mostras de filmes, seminários sobre
literatura, além da divulgação das traduções feitas a partir de obras de autores gaúchos para
outros idiomas. Nas últimas edições, visando estender a programação a convidados externos,
foram criados os “dias temáticos”, nos quais são privilegiadas atividades sobre o foco
escolhido em cada ano.
Salientamos, assim, que nos últimos 60 anos, a Feira passou por diversas
transformações, as quais nem sempre são associadas a questões internas deste evento, mas
articuladas ao contexto mais amplo da sociedade que vem estabelecendo novas formas de
organização, bem como de negociação relativamente aos processos de comunicação, entre os
quais está o crescente domínio da tecnocultura, com suas redes de divulgação de informações,
tais como a internet, os sites, o correio eletrônico, o facebook e o twitter, entre outros, além
dos canais multimídias, dos telefones celulares etc...
Aliás, a partir da utilização das novas tecnologias de informação, diferentes estratégias
para o consumo de imagens, mercadorias, bem como de eventos culturais têm sido assumidas
e tal adesão está expressa nas atividades e propostas que integram essa Feira do Livro, que
possui, atualmente, tal como já referimos, uma estrutura bastante complexa: lá estão os livros
em exposição, mas ocorrem palestras, mesas-redondas, oficinas, bate-papos, sessões de
autógrafos, bem como diálogos com escritores, apresentações musicais e teatrais, exposições,
contações de histórias etc. E por tudo isso, além de ter ganhado espaços cada vez mais
extensos na mídia – nas páginas dos jornais bem como em alguns outros veículos midiáticos e
nos últimos anos também na web –, este evento se tornou um dos importantes marcadores
culturais da cidade de Porto Alegre, merecendo ser visitado e desfrutado na sua multiplicidade
pela população.
Neste texto, estaremos nos detendo, no entanto, em alguns peculiares modos de falar
desta Feira e de valorizá-la, utilizados no já referido Suplemento Caderno da Feira do jornal
Zero Hora. As identidades, nas análises de Hall (2012), Woodward (2012), e Silva (2012),
devem ser vistas como decorrentes de um processo social/cultural, constituído em condições
históricas específicas. Tais autores destacam que essas não se vinculam, portanto, a nenhuma
essência, não são imutáveis e nem fixas, mas resultam, como ressaltou Hall (2012) “de uma
bem-sucedida articulação ou fixação do sujeito ao fluxo discursivo” (p. 109).
Como o autor (ibidem) destaca, ele se utiliza do termo identidade:
para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, de um lado, os
discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar
para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos
particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que
nos constroem como sujeitos as posições de sujeito que as práticas
discursivas constroem para nós (HALL, 2012, p. 111-112).
Na acepção que estamos assumindo, as identidades são produzidas através de práticas
discursivas e, por conta disso, não devem ser pensadas como uma questão de “ser”, mas como
um processo constante de “tornar-se”, conforme salientou Woodward (2012). E que a
construção de narrativas sobre nós mesmos, e sobre os acontecimentos, como também
destacou essa autora (ibid), é central para dar coerência e coesão ao que nos acontece, para
nos situar e nos permitir entender as “coisas”, os sujeitos, os fatos, os processos etc, de
determinadas maneiras, servindo, igualmente, para nos posicionar como integrantes de certos
grupos e identidades. Portanto, as identidades são vistas como construções decorrentes de um
processo social constituído em condições históricas específicas.
O Patrono da Feira representando a cultura regional
É importante esclarecer que a Feira do Livro tem designado anteriormente à sua
edição, a figura de um patrono, inicialmente escolhido pela Câmara Rio-Grandense do Livro
(CRL), processo esse que veio sofrendo alterações no decorrer dos últimos anos e que passou
a se estruturar em uma proposta de seleção tida como mais “democrática”, que passou a
considerar indicações de livreiros, distribuidores, creditistas, associados, ex-patronos. A partir
dessas indicações são listados dez nomes, posteriormente votados pelo público em geral.
Uma recorrida à lista de homenageados indica que, até o ano de 1983, quando ocorreu
a 29ª edição da Feira do Livro, as homenagens eram dirigidas a uma figura ilustre já falecida
– procurava-se reverenciar personalidades de destaque, preferencialmente àquelas nascidas no
Rio Grande do Sul, estando entre esses autores com publicações em distintas modalidades
literárias (poetisas, contistas, romancistas, ensaístas, cronistas, tradutores, cronistas,...), que
tivessem expressiva representatividade para o cenário artístico-cultural rio-grandense, sendo
indicativo dessa representatividade já terem sido agraciados com premiações ou titulações.
Assim, o patrono era escolhido a partir do “mérito” ou contribuição para a sociedade,
especialmente, local, que se considerasse ter a sua obra, no entanto, desde 1984 o patrono
passou a ser um autor/escritor local homenageado em vida. Ou seja, o patrono deixou de ter
um papel “figurativo”, passando a assumir um papel ativo na divulgação e mobilização de
participantes para o evento. Manteve-se, no entanto, a exigência de fazerem-se as indicações
de personalidades nascidas no Estado.
Na versão atual, cabe ao patrono: participar da cerimônia oficial de abertura da Feira
do Livro, proferindo o discurso que marca o início das atividades; circular, diariamente, pelos
espaços da Feira durante, os turnos de atividades, conversando com o público, autoridades e
representantes do setor livreiro; participar das sessões de lançamento de livros, tanto de suas
próprias obras, quanto das dos demais autores/escritores; fazer a mediação em encontros,
palestras, debates, entrevistas e bate-papos dos quais participem convidados locais ou
internacionais; apresentar-se em distintos espaços da mídia (rádio, TV, jornal) para divulgar o
evento; participar da cerimônia de entrega do Prêmio Fato Literário5 aos vencedores, bem
como da solenidade de encerramento.
5 Trata-se de uma iniciativa do Grupo RBS que, em parceria com o Banco do Estado do Rio Grande do Sul
(BANRISUL) e a Caixa Econômica Federal (CEF), voltada a consagrar projetos direcionados à promoção da
leitura e, por extensão, à promoção de escritores. Participam desta premiação, que se desenrola logo nos
No contexto cultural de Porto Alegre, a indicação para disputar o patronato da Feira
do Livro implica ser elevado à categoria (e estar no “rol”) de autor destacado, no meio
literário gaúcho, uma vez que essa escolha envolve passar pelo crivo de distintas instâncias e
autoridades, estando entre essas os representantes da Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL),
figuras de destaque da comunidade cultural – reitores de Universidades públicas e privadas da
região, bem como diretores de faculdades – além de patrocinadores e titulares de entidades
culturais e sociais envolvidas com o livro, sediadas no Estado. Ser escolhido patrono envolve,
portanto, prestígio e distinção.
Olhando para as edições do Encarte da Feira analisadas, lá encontramos, por exemplo,
a apresentação do patrono eleito, como “símbolo-vivo da literatura”, “vencedor do grande
prêmio”, “estrela na praça”, tal como foi definido em recortes do Jornal Zero Hora de edições
anteriores, para referir-se ao patrono do evento. Nessa direção, para os autores locais, ser
patrono da Feira tornou-se um título importante a ser conquistado, por algumas razões
específicas, estando entre elas: a relevância do cargo no âmbito local, a visibilidade e
repercussão de sua obra, bem como a divulgação de seu nome e o incremento de sua
representatividade no meio intelectual.
Nas edições de 2010 e 2012, outra associação foi feita à figura do patrono,
direcionando-se essa a destacar traços de uma identidade sustentada no
tradicionalismo/gauchismo. Tais edições tiveram como patronos, respectivamente, um dos
“ícones” do movimento tradicionalista no Rio Grande do Sul, Paixão Côrtes, e o poeta,
publicitário e compositor também afeto às questões da tradição, Luiz Coronel. Ambos
carregam, com distintas proporções, fortes marcas de adesão ao movimento tradicionalista
gaúcho, sendo suas produções no campo literário, representadas como “verdadeiras”
coletâneas de materiais (poemas, canções, sonetos, manuais,...) dedicadas às raízes, a hábitos
e costumes associados ao nativismo e aos valores ligados à tradição regionalista. Além disso,
os dois patronos dão destaque a terem nascido em cidades situadas na região do “pampa
gaúcho”.
Na edição de 30/10/2010 do Encarte Caderno da Feira, por exemplo, Paixão Côrtes
foi apresentado como sendo um agrônomo, folclorista, compositor, radialista e pesquisador da
primeiros dias da Feira, personalidades representativas do cenário literário gaúcho. Os concorrentes –
selecionados previamente por um grupo seleto de jurados composto membros representantes da comunidade
cultural gaúcha (editores, livreiros, autores, escritores) – são apresentados ao público, passando, então, a circular,
em diferentes momentos, pelas dependências da Feira.
cultura brasileira, que se tornou um “ícone da cultura gaúcha”, tendo servido, inclusive, de
modelo para a modelagem da figura que representa o “Laçador”, no monumento que leva o
mesmo nome. Este monumento, erguido em 1958, se localiza na “entrada” da cidade de Porto
Alegre, figurando, também, como um dos cartões-postais da cidade.
Na mesma matéria informa-se aos leitores do jornal ter este patrono escrito vários
livros sobre a cultura gaúcha – tais como: Gaúchos de faca na bota, Folclore Gaúcho: Festas,
Bailes, Música e Religiosidade Rural, Aspectos da música e fonografia gaúcha, O Laçador, a
história de um símbolo, entre outros. Além disso, Côrtes desenvolve atividades de divulgação
da sua obra em palestras em escolas, bem como participa em piquetes e em atividades nos
Centro de Tradições Gaúchas (CTGs)6.
Na mesma reportagem, Paixão Cortes é apresentado como:
[o] responsável pelo renascimento do tradicionalismo, o idealizador da
Chama Crioula, da Ronda Crioula, do Candieiro Crioulo e idealizador das
comemorações da Semana Farroupilha, em 1947. Publicou uma série de
livros, que hoje são considerados clássicos da cultura gaúcha, como Manual
de danças gaúchas (1956), com Barbosa Lessa e Danças e andanças da
tradição gaúcha (1975). Em 2006, teve sua obra Folclore Gaúcho - Festas,
Bailes, Música e Regionalidade Rural reeditado pela editora Corag (ZH,
30/10/2010).
Ou seja, este folclorista é apresentado, nesta matéria do Encarte, como um legítimo
representante da cultura gaúcha tradicionalista – um sujeito ligado à vida campeira, que
pesquisa e divulga manifestações artísticas (dança, baile, bailanta, invernadas, saraus,
declamações), que usa indumentárias (bombacha, lenço, chapéu, botas) características ao
gaúcho e que assume hábitos alimentares peculiares (comer churrasco, tomar chimarrão) à
cultura gaúcha. Assim, o Encarte configura este patrono da Feira como um legítimo
representante da cultura gaúcha – um símbolo desta cultura –, que assume tradições que dão
continuidade histórica a certas práticas que têm sido invocadas para definir “quem são” os
6 De acordo com Freitas (2007) o primeiro Centro de Tradições Gaúchas foi criado em 1948, e recebeu a
denominação de CTG 35 em alusão ao ano de deflagração da Revolução Farroupilha, ocorrida no Rio Grande do
Sul, em 1835. Inicialmente seus fundadores “pretendiam que o centro fosse uma agremiação de, no máximo,
trinta e cinco participantes, mas depois foi decidido que ela estaria aberta para todos que dela quisessem
participar” (p. 54-55). Entre os principais objetivos estavam: reunir-se para tomar chimarrão e cultuar os hábitos
do interior, tal como, por exemplo, as charlas dos peões nos galpões das estâncias, a fim de recriar os costumes
da região da Campanha e das estâncias, as quais os fundadores do movimento julgavam ser as “autênticas”
tradições gaúchas. Desde então, muitos outros centros, semelhantes a estes, foram constituídos incorporando-se
ainda outras práticas, como: danças gauchescas, apresentações musicais nativistas, bailes, invernadas, culinária
campeira, entre outras ações. Além disso, esses CTGs disseminaram-se em quantidades espalhando-se tanto no
Estado do RS quanto em outros vários Estados do Brasil e também em outros países.
legítimos gaúchos/as – os que cultuam as tradições, privilegiando o passado e inventando uma
memória que seria comum a todos.
Refletindo acerca dessas práticas e elementos simbólicos que dão força e reafirmam o
discurso da gauchidade/gauchismo, observa-se no Encarte, particularmente nessa edição do
evento, o uso de chamadas, títulos, legendas, anúncios carregados de sentidos que remetem ou
aludem, forte e constantemente, a uma identidade cultural gaúcha Tradição na Praça
(30/10/2010); Os guris de Livramento (30/10/2010); Meu RS: Paixão além do consagrado
(05/11/2010), Razões as pampas para ler (09/11/2010), entre outras. Mas todas elas referem
ser este patrono um ícone do tradicionalismo. Apresentamos na Figura 1, uma das matérias de
capa do Encarte, na qual outros elementos bem próprios às tradições gaúchas estão
igualmente representados.
Figura 1 – Reportagem Tradição na Praça: matraca, payada e Paixão, que destaca a inserção do patrono da
Feira do Livro de 2010, Paixão Côrtes, na cultura tradicionalista gaúcha (ZH, 30/10/2010, p. 34).
A imagem que ilustra essa reportagem apresenta, também, grupos folclóricos
caracterizados com “pilchas”, na cerimônia oficial que deu início às atividades da Feira do
Livro de 2010. A matéria registra as apresentações de grupos de invernadas das cidades de
Tavares e Mostardas, e a substituição das tradicionais badaladas de sineta, que
habitualmente marcam o início da Feira, pelo toque da matraca. A matéria relata, também, as
práticas que marcam o início dos trabalhos da Feira: o hino sulriograndense, a caminhada
pelas alamedas até chegar á Praça de Autógrafos e outras apresentações de danças gauchescas
realizadas pelos Centros de Tradições Gauchas (CTGs) Chico Borges e Patrulha do Rio
Grande. Mas a reportagem continua a marcar o autêntico gauchismo do patrono ao relatar o
comentário feito por uma visitante da Feira: “Olha, filho, aquele ali é o Laçador”. Mais ao
final da reportagem, uma breve síntese novamente retoma os propósitos que moveriam o
patrono: “levar as tradições campeiras que pesquisou ao longo de seis décadas para a festa
urbana da Feira” (ZH, 30/10/2010, p. 34).
No entanto esta não é a única reportagem do Encarte que destaca o gauchismo do
patrono: a matéria apresentada na Figura 2, e que faz referência ao encerramento da Feira de
2010, igualmente está repleta de expressões e símbolos associados à cultura gaúcha. Assim,
como se pode ver na reportagem reproduzida na Figura 2 são utilizadas expressões tais como
Paixão Côrtes utilizou uma “guaiaca cheia de histórias” para ministrar uma aula de cultura do
mate e da simbologia do chimarrão. Aliás, nessa atividade, o patrono explicou, com auxílio
de integrantes do CTG Brazão do Rio Grande, que “Mate é a erva e que a palavra chimarrão
vem do espanhol cimarrón, que significa selvagem, daí o significado etimológico da palavra
ser ‘bebida selvagem”. O patrono revelou, ainda, alguns códigos dessa tradição: “Mate com
mel significa quero casar contigo. Mate com água quente servida pela bomba quer dizer
‘desapareça da minha frente”. Encerrando a atividade, ele mostrou o ritual do mate de
comadre – segundo Paixão “as mulheres bebiam mate doce em cuia de porcelana fabricadas
na França”- prática que as mulheres presentes foram convidadas a realizar. A reportagem se
encerra com uma expressão bem usual entre os gaúchos: “o patrono está faceiro: trouxe o
tradicionalismo para a praça. Perdeu as contas de quantas vezes fez pose para fotos – mais de
mil, estima ele” (13/11/2010).
Figura 2 – Matéria Na Praça com o Patrono que destaca a última atividade da Feira do Livro de 2010 (ZH,
13/11/2010, p. 28).
Mas outras situações também destacam a presença do tradicionalismo na Feira.
Dando continuidade às estratégias acionadas pelo Jornal para dar visibilidade a patronos
relacionados com o tradicionalismo e regionalismos locais, em 2012, o homenageado foi Luiz
Coronel que, embora não use a indumentária tida como típica do gauchismo – a pilcha –,
assume outros estereótipos que remetem à figura do gaúcho e a elementos associados ao
tradicionalismo/gauchismo. Na matéria apresentada em 30/10/2012, reproduzida na Figura 3,
na qual se destaca a Sessão de Autógrafos de sua mais recente obra de poesias, nomeada A
Esperança e o Desalento: Poesia Social, Coronel foi apresentado como “natural de Bagé”,
formado em Direito e Ciências Sociais pela UFRGS e Membro da Academia Rio-Grandense
de Letras. Foram também apresentados os números que contabilizam as suas publicações: 52
livros, com destaque para a poesia universal e regional de causos gaúchos. Destaca-se assim,
não só a produtividade literária do patrono, mas reafirma-se ser ele “nativo” de uma das
regiões campeiras: portanto, ele representa um gaúcho sem sombra de dúvidas.
Figura 3 – Matéria incluída na Seção Dia do Patrono, do Encarte Caderno da Feira, com indicações de leituras
pelo patrono, Luiz Coronel (ZH, 30/10/2012, p. 3).
Ainda fazendo destaques às marcas do tradicionalismo na Feira, o Encarte colocou em
evidência títulos de crônicas, colunas, reportagens associando acontecimentos ou
personalidades que estiveram na Feira do Livro, a títulos de obras que buscam valorizar o
tradicionalismo no cenário local. Entre estas podem ser mencionadas: Um escritor quase
gaúcho (30/10/2012) O escritor da Fronteira e o Poeta da cidade (31/10/2012, p. 3),
Literatura do Cone Sul (2/11/2012, p. 2), Açorianos na Feira (2/11/2012, p. 4), Dia do Rio
Grande do Sul e de Simões Lopes Neto (5/11/2012, p. 2), Gauchada (06/11/2012), Até onde
vai esse Guri? (9/11/2012, p. 2). De certa forma, todas as manchetes, crônicas e reportagens
destacadas nesta edição do Encarte continham questões alusivas a personalidades ou
produções literárias representativas do Rio Grande do Sul: algumas focalizavam destaques
conferidos a autores gaúchos consagrados através de indicações ou premiações já recebidas,
enquanto outras versavam sobre “grandes obras” recentemente reeditadas por editoras locais.
E, como foi destacado no Encarte publicado em 09/11, na edição de 2014, da
Feira, novamente o patrono da edição de 2012, Luiz Coronel, foi mencionado por ter adaptado
a obra O Negrinho do Pastoreio, cuja versão original é um conto do escritor e jornalista João
Simões Lopes Neto (1865-1916), para o público infantil7. Cabe indicar, que é a partir de
reportagens tais como as comentadas, que o Encarte nos dá pistas sobre como a regionalidade
está representada na Feira do Livro, expressando-se, muitas vezes, sob a forma de gauchismo,
ou tal como foi referido por Silveira (2000) de gauchidade, neologismo cunhado para
expressar o que seriam as características e “qualidades” do gaúcho.
7 Sob o patrocínio da Caixa Econômica Federal e do Grupo Zaffari, com apoio de distribuição da empresa de
transportes públicos Carris.
Neste sentido, cabe lembrar que a Feira do Livro opera como uma das muitas
instâncias em que se inventa uma identidade para o gaúcho, na medida em que nela e em
torno dela se cunham e se colocam em circulação discursos que têm efeitos constitutivos/
revitalizadores sobre práticas, tradições e estéticas ancoradas em representações e estereótipos
bem peculiares. Freitas (2007), ao estudar outros elementos regionais, refere-se à noção de
“figura emblemática do gaúcho”, constituída por um conjunto de representações dessa figura
mítica, que foi tornada símbolo dos habitantes do RS, assinalando recorrências que, de certa
forma, cristalizam determinadas características para a mesma. Estar ligado às lides campeiras,
ter o cavalo como importante companheiro nessas “lides”, fazer uso de “pilchas” – para
homens (botas, bombachas, lenço e chapéu) e vestir-se de prendas, para mulheres gostar de
declamar, de “trovar”, bem como da “viola”, são marcadores invocados para caracterizar e
representar um “gaúcho” autêntico, que ama e preserva as tradições mais “puras” ligadas a um
passado tido como glorioso.
Nas reportagens comentadas a partir do Encarte ressoam algumas pistas de um
regionalismo que faz apelos ao gauchismo para identificar o evento Feira do Livro como
peculiar e representativo do Rio grande do Sul. Mas, não é apenas essa a forma como a
regionalidade se apresenta nos espaços da Feira, que ressoam no Encarte e em outras
produções midiáticas que dela se ocupam. Em algumas edições da Feira, o que está destacado
é a dimensão mais urbana da cidade de Porto Alegre, RS, bem como algumas características
que dão destaque ao apego que os sulriograndenses teriam aos bens culturais e às artes.
Algumas palavras finais
Ao finalizar este texto, parece-nos ser possível afirmar que a Feira mais do que um
espaço de comercialização de livros se configura como um peculiar evento cultural que aciona
variadas estratégias para levar várias facetas da cultura regional à população. E isso se faz em
um espaço público e a céu aberto, oportunizando experiências que passam bem além da
apresentação dos livros. O Encarte de Zero Hora, por sua vez, surgiu em decorrência da
ampliação que o Evento teve ao longo desses 61 anos. Em relação a ele, consideramos que o
Encarte opera divulgando, mas igualmente constituindo/ (re)inventando a Feira. E que ele
opera, também, ensinando aos seus leitore(a)s o que vale a pena ser visto, comprado,
apreciado e até mesmo saboreado, nos múltiplos espaços que a Feira oferece, nos
aproximadamente 15 dias em que se desenrola. Enfim, a Feira do Livro se configura como um
Evento cultural marcante para os sulriograndenses. A ela correm o público, mas também as
grandes empresas, as instituições bancárias, e os muitos órgãos de comunicação que lá se
instalam e de lá transmitem sua programação durante a Feira. A Feira não é apenas um
espetáculo no qual o protagonista é o livro, mas sim, e cada vez mais intensamente, ela se
transformou em um espetáculo da cultura riograndense, seja ela a chamada cultura gauchesca,
como abordamos mais detidamente neste artigo, sejam as outras dimensões que a cultura
sulriograndense assume na literatura, por certo, mas também, nas artes e até mesmo na
propaganda, que se (re)cria para dar-lhe destaque e promover os autores, os patrocinadores, os
financiadores deste Evento que é, como destacamos nas páginas iniciais deste texto,
oficialmente integrado ao Patrimônio Histórico Cultural do Estado do Rio Grande do Sul.
Referências
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Paulo: Cortez, 2011.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo.
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HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, TomazTadeu (Org.); HALL, Stuart;
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 11ª
Ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2012.
FREITAS, Letícia Richthofen. A sala de aula como um espaço que constitui a identidade
gaúcha. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 32, nº 2, jul./dez. 2007. p. 49 – 61.
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz
Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 7ª ed. Rio
de Janeiro: Vozes, 2007.
SILVEIRA, Rosa Hessel. “Ser gaúcho/a”, escola e Vinte de Setembro. In: AZEVEDO, José
Clóvis; GENTILI, Pablo; KRUG, Andréa; SIMON, Cátia (Org.). Utopia e Democracia na
Escola Cidadã. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000. p. 277 – 287.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. 7ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
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