dedico a todos os curdos e curdas um poema muito seu, “it’s … paradoxo da questÃo... ·...
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I
Dedico a todos os curdos e curdas um poema muito seu, “It’s This Way”, de Nazim
Hikmet, (1902-1963), poeta, dramaturgo e combatente político dos direitos humanos, no
século XX, pelo profundo respeito que tenho pela sua luta. Não esquecerei nem o brilho
do olhar, nem o grande sonho do Curdistão.
“Ilerleyen Aydinligin Içindeyim” (“It´s this way” / “Luz progressiva”)
I stand in the advancing light, My hands hungry, the world beautiful.
My eyes can’t get enough of the trees
They’re so hopeful, so green.
A sunny road runs through the mulberries, I’m at the window of the prison infirmary.
I can´t smell the medicines
Carnations must be blooming nearby.
It’s this way: being captured is beside the point, The point is not to surrender.
(Maio, 1948)
Nazim Hikmet Butun Siirler, Delta, Istambul, 2007
Tradução por Randy Blasing and Mutlu Konuk, 1993
II
AGRADECIMENTOS
A quem me acolheu: à Insan Haklari Gundemi Dernegi, que resista por muito tempo, e
aos intervenientes deste projecto: ao Gunal Kursun ; Salih Efe e Natasha Nazan.
Aos que tornaram possível e me confiaram a dor da sua luta: Na impossibilidade dos
vossos nomes constarem neste projecto, o meu profundo agradecimento, a todos os
curdos e curdas, que testemunharam e partilharam comigo as suas memórias. A vocês
que vencem dignamente, o medo diário da perseguição politica. Ao Roberto Frifrini,
que me orientou em terreno, um companheiro diário nas viagens e um pilar na
ambiguidade da realidade turca.
Às casas e aos que partilham comigo as trajectórias desconhecidas, um especial
agradecimento por todo o vosso apoio e incansável paciência para acreditar : Sophie
Pinto, Marta Carvalho, Vânia Cunha, Márcio Laranjeira, Ana Rita Lopes, Tiago
Rochinha, Jorge Braz, Sérgio Brás, Daniel Gomes.
A quem me guiou na chegada, com tanta generosidade e alegria.
Por fim, à minha família: ao meu pai e à minha mãe, um eterno agradecimento pela
liberdade que tanto me confiam.
III
RESUMO DO PROJECTO
Este projecto é o resultado de uma pesquisa no âmbito das lutas curdas na
Turquia, tendo como protagonista uma geração saída da guerra civil dos anos 90, dos
processos pós-exílio e das diásporas dos meios rurais para as cidades.
A realização deste projecto implicou investigação e trabalho no terreno, em
Ancara, capital turca, entre Dezembro de 2013 e Abril de 2014.
O eixo central da pesquisa analisa o exílio e a diáspora curda, na sequência da
guerra civil entre o movimento clandestino do PKK e o Estado turco, procurando
determinar e compreender o percurso de integração sociocultural, condicionado pela
assimilação turca, pela negociação territorial e sociocultural, inerentes ao permanente
conflito turco-curdo.
Esta dissertação narra, por um lado, a reconstrução da história dos conflitos
traumáticos entre as duas culturas (curda e turca) e, por outro lado, a reconstrução da
actual visão do mundo curda, em relação ao Curdistão da infância dos entrevistados –
uma visão determinada pela vivência cosmopolita e pela governação turca da última
década.
A visão do mundo curda e a governação turca são, actualmente, afectadas por
um importante factor externo – a União Europeia. A Europa como elemento externo
está presente no modelo de estado-nação turco, analisado neste projecto,
particularmente, no que às reformas legislativas concerne, num período que se estende
de 1990 até 2006.
Nos últimos anos, o modelo de europeização, de secularização da sociedade, e
de introdução dos valores ocidentais, transformou-se progressivamente num modelo
semi-democrático ou de democracia parcial, tendo sido este um processo
contemporâneo do conflito civil entre as duas culturas.
Ambos os processos, o da europeização e o da guerra civil, tiveram um impacto
determinante na definição da identidade curda, reconstituída em diferentes territórios, e
recriando-se culturalmente através de estratégias de resistência social à ameaça externa
e interna de desintegração cultural e identitária em território turco.
IV
Por um lado, o efeito da europeização e da globalização abriu portas a um novo
paradigma, o modelo cosmopolita como projecto identitário. Por outro e,
simultaneamente, a assimilação nacional turca foi instituída como valor sociocultural,
económico e nacional, impondo-se até aos dias de hoje, e perpetuando-se como
mecanismo regulador da nação através da institucionalização dos processos de
discriminação. O mecanismo institucional jurídico, punitivo e regulador da exclusão
social da população curda em território turco, estende-se também à população turca
apoiante da causa curda, comportando em si uma história que se foi construindo a
pretexto do elemento fundacional turco, reiniciando o conflito identitário nos anos 90,
vivido intensamente entre 1992 e 1994.
Nesta perspectiva, a partir do Verão de 2013, o agudizar dos conflitos no interior
do estado turco, desencadeou movimentos reivindicativos em diversos sectores da
sociedade civil. Neste estudo, os fenómenos locais são fundamentais para interpretar o
modo como o paradigma da auto-determinação curda poderá levar ao reconhecimento,
pela Turquia, da minoria curda em território turco, sob a influência da União Europeia,
ou como poderá desencadear um amplo conflito de natureza militar, vias que já
condicionam inevitavelmente a actual geração curda, e por fim, como poderá concluir-
se ou enunciar-se através dos testemunhos recolhidos no terreno – na capital Ancara.
V
ABSTRACT
This project is a result of the research within the scope of Kurdish struggle in
Turkey, with a young generation as protagonist, coming out of the 90’s civil war, the
post exile, and the diaspora from rural to urban areas.
This project fulfilment involved research and field work in Ankara, the Turkish
capital, in the period between December 2013 and April 2014.
The research central axis analyses Kurdish exile and diaspora as a consequence
of the civil war between the clandestine movement PKK and the Turkish state, seeking
to determine and comprehend the social-cultural route of integration, conditioned by
Turkish assimilation, territorial and social-cultural negotiation, inherent to the
permanent Turkish-Kurdish conflict.
This dissertation narrates on the one hand, the reconstruction of the history of
traumatic conflicts between the two cultures (Kurdish and Turkish); on the other hand,
the reconstruction of the current Kurdish world view, on the interviewees’ childhood
Kurdistan – a vision determined by the cosmopolitan experience and Turkish
governance of the last decade.
The Kurdish worldview and the Turkish governance are, currently, affected by
an important external factor – European Union. Europe as an external element is present
in the Turkish nation-state model, analysed in this project, particularly concerning the
legislative reforms through a period from the 90´s to 2006.
Over the recent years, the Europeanization model of societal secularization and
western values introduction, turned progressively into a semi-democratic model or
partial democracy, being this process a simultaneous occurrence in the civil conflict
between both cultures.
Either process, the Europeanization and the civil war, had a determinant impact
on the definition of the Kurdish identity, reconstituted in different territories, recreating
itself culturally through strategies of social resistance to the external and internal threat
of cultural and identity disintegration in the Turkish territory.
VI
On the one hand, the Europeanization and the globalization effect opened the
doors to a new paradigm, the townsman cosmopolitanism model, as identity project. On
the other hand, and simultaneously, the Turkish national assimilation has been instituted
as a social-cultural, economic and national value, being imposed until now, and
perpetuated as a regulatory mechanism of the nation through institutionalization of
discrimination processes. The legal, penal and regulatory institutional mechanisms, as
far as the social exclusion of Kurdish population in Turkish territory is concerned, has
also been extended to that part of the Turkish population who support the Kurdish
cause, leading to the restart of the identity conflict in the 90´s, which was particularly
intense between the years 1992 and 1994.
More recently, the intensification of the conflicts in the interior of Turkey, since
the summer of 2013, triggered protest movements, originating from diverse sectors of
civil society.
In this study, the local phenomenon is fundamental to understanding the way the
paradigm of Kurdish self-determination can be taken into recognition, by Turkey, of the
existence of the Kurdish minority in Turkish soil, under the influence of European
Union, or how can it unchain a broad conflict of military nature, pathways that are
necessarily conditioning the current Kurdish generation, and, finally, what can be
concluded from the analysis of the testimonies collected in the field – capital city of
Ankara.
VII
ÍNDICE
DEDICATÓRIA...............................................................................................................I
AGRADECIMENTOS...................................................................................................II
RESUMO DO PROJECTO.........................................................................................III
ABSTRACT.....................................................................................................................V
LISTA DE ABREVIATURAS.......................................................................................X
I – INTRODUÇÃO …………………………………………………..……………….. 1
1.1. Quem são os curdos? ……………………………………………………..……… 1
1.2. O projecto. ……………………………………………………………..………… 6
1.3. No terreno recriando o projecto. …………………………………………….….. 7
II – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ……………………………………… 11
2.1. A narrativa histórica das várias influências curdas – o tempo reificando os
vários espaços e padrões culturais. ………………………………………………… 11
2.1.1 A heterogeneidade dos espaços culturais curdos nas ramificações
ideológicas da história. ………………………………………………………... 13
2.2 Na história dos hibridismos: a memória social de um espaço sem estado. ……15
2.3 Comunidade, insurreições nacionalistas curdas e desnacionalização curda. …21
2.4 Estado único, reconfiguração do espaço cultural otomano, e orientalismo. ….25
III – A METODOLOGIA E OS INSTRUMENTOS DE OBSERVAÇÃO NO
TERRENO …………………………………………………………………………... 31
3.1. A Antropologia do conflito – Da construção do objecto de estudo à observação
microscópica da realidade. O diário de campo como metodologia. ……………....31
3.2. A morte de Berkin Elvan. ……………………………………………………… 39
3.3. O Terrorismo policial e a repressão governamental irrompendo como fantasia
política versus Resistência. …………………………………………………………...45
VIII
IV – DA HERANÇA DOS NACIONALIMOS AO MODELO DE DEMOCRACIA
PARCIAL NO CONTEXTO TURCO……………………………………………….48
4.1. As impossibilidades jurídicas/constitucionais curdas - as entrevistas como voz
da sua reivindicação. ………………………………………………………………... 48
4.2 Do modelo secular “nacionalizado”1 à semi-democracia do estado. ………….. 57
4.3 A Democracia autónoma como reivindicação socio-política no modelo social
imaginado. …………………………………………………………………………… 59
V – A CULTURA CURDA NAS TEIAS DO SIMBÓLICO ……………………… 64
5.1. A ideologia como Sistema Cultural – a guerra como espaço ideológico
traumático para a cultura curda. …………………………………………………... 64
5.2 A memória de uma “casa”: A dor e a sobrevivência diária aos escombros de
uma guerra. …………………………………………………………………………...67
5.3. A identidade política como estratégia socio-reivindicativa face à coerção do
estado moderno. ……………………………………………………………………... 73
5.4. A “etnicidade” curda sem “consenso social”, e em choque com a assimilação
turco-muçulmana. …………………………………………………………………....79
5.5. O futuro das reivindicações socio-culturais (o étnico aliado à minoria étnica) e
os espaços preenchidos pelo tabu social. …………………………………………… 84
VI – CONCLUSÃO …………………………………………………………………..91
6.1. Considerações teóricas acerca da realidade curda no espaço imaginado do
estado moderno turco. ………………………………………………………………. 91
6.2. O projecto social curdo que surge e se delineia a partir do contexto turco......96
BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………………….. 101
IX
Fontes orais ………………………………………………………………………….107
ANEXOS – NOTAS E ENTREVISTAS NA LÍNGUA DE ORIGEM ………… 109
A.1. Entrevistas Institucionais e Entrevistas Curdas na cidade de Ancara e
Istambul.......................................................................................................................109
A.2. Mapa das Anexações Curdas.............................................................................125
X
LISTA DE ABREVIATURAS
AKP - Partido da Justiça e do Desenvolvimento
BDP – Partido da paz e Democracia
CEE – Comunidade Económica Europeia
DYP – Partido da Via Justa
DTP – (Ex. DEHAP): Partido Democrático
DEHAP – (Ex. HADEP): Partido Democrático
HADEP (DEP – Actual HDP ) – Partido Democrático
HEP – (Partido dos trabalhadores)
OTAN – Organização do Tratado Atlântico Norte
FMI – Fundo Monetário Internacional
PKK - Partya Karkerên Kurdistan : Partido dos Trabalhadores do
Curdistão
STP – Partido Socialista da Turquia
PYD- Partido de União Democrática (Síria)
Artigos KNC- Conselho Nacional Curdo (Síria)
1
I – INTRODUÇÃO
“Are we to pretend, along with the official chronicles, that because there was no
dynasty in control, there was no history?”1
1.1. Quem são os curdos?
Os curdos, como grupo cultural, constituindo ao longo da história um grupo de
fronteira, têm, na actualidade, como particularidade a distância que os separa e os une
na constituição da identidade cultural. A sua identidade cultural será, no decurso deste
projecto de estudo, definida como uma cultura liminar (Arnold Van Gennep, 1909),
estruturada nas representações dos seus espaços culturais e reinventada nos intervalos
históricos, em que estas mesmas descontinuidades no tempo redefiniram e
transformaram socialmente as suas configurações sociais e espaciais. Ao longo do
projecto, irei analisar o paradigma curdo, debaixo do olhar da fronteira, e com o apoio
da sua cronologia histórica, definir em que parâmetros a sua cultura se foi
constituindo em várias espacializações diferentes, reforçando o carácter da sua
liminaridade.
Arnold Van Gennep, em 1909, na obra Ritos de Passagem, foi o primeiro
antropólogo a definir o conceito de liminaridade num estudo em que compilou e
categorizou os vários ritos dos povos, reflectindo sobre as suas dialécticas de
transição e rupturas na sua constituição e reconstituição enquanto organismos sociais.
As três fases (e principais distinções) que este autor considerou fulcrais no seu estudo,
dividem-se entre uma primeira etapa de “separação”, como acto de mudança de status
social ou grupal; uma segunda em que vigora o processo de transição (introduzindo a
ideia de liminaridade), e que poderemos considerar na linha interpretativa e simbólica
de Victor Turner (1967), tendo como efeito a “marginalização”, remetendo-os para as
margens das estruturas instituídas. É no efeito dessa transição e efeito liminar que os
1 Scott, James, The art of not being governed: An anarchist history of upland Southeast Asia, pág.34. 2010.
2
grupos sociais se dividem e se reconstituem simbolicamente em modelos sociais
diferentes. Uma terceira etapa ou rito de passagem, e suas consequentes formas nas
readaptações culturais, relaciona-se com a contínua transformação do indivíduo (ou
povos) nas estruturas sociais: a incorporação ou a agregação. Esta incide, como
estágio final, na criação ou reformulação identitária/ cultural dos grupos sociais2.
Neste sentido, a liminaridade é definida como o estágio entre a “separação” e a
“agregação”. O efeito liminar tem por isso um efeito de ruptura e significa uma
passagem para um outro status, processo identitário ou cultural, representando uma
linha de corte no tempo e da narrativa cultural. Contudo, as rupturas sociais integram
parte do processo cultural dos povos, revelando a necessidade de, muitas vezes, terem
de encontrar respostas às remodelações sociais para se constituírem enquanto cultura.
Também neste sentido, podemos considerar o grupo cultural curdo como grupo
liminar. Desta forma, os efeitos transicionais históricos, que têm vivido, têm
desencadeado nos seus modelos várias rupturas e transições ideológicas, mantendo-se
actual e historicamente, mas à margem da consolidação cultural autónoma. Ao longo
do projecto, e à luz da actualidade, o grande denominador comum dos efeitos
transicionais (liminares) da sua cultura, é o fenómeno social da guerra civil dos anos
90, perspectivada em conjunto com outras rupturas históricas, na tentativa de
reconstituir o passado e procurar interpretar as suas raízes culturais no presente.
Este grupo cultural partilha o Islão nas suas várias facções religiosas, sunita,
xiita, yazedi, mas também em alguns territórios o cristianismo e o judaísmo, a
espacialização (constituída pela dispersão territorial das várias fronteiras), a língua
(esta também constituída por vários dialectos nos diversos territórios em que se
enraizou). No campo da ideologia sociopolítica (mesmo que em alguns territórios
apenas se revele nos domínios simbólicos) diferencia-se também em variações e
aspectos sociais específicos, tanto na possibilidade da autodeterminação (no caso da
sua representação na Síria3), de uma autonomia cultural (o caso da sua representação
2 Gennep, Arnold Van, Ritos de Passagem, pág. 4, 1981. 3 O caso Sírio é exemplo de uma renegociação e aspiração à autonomia da cultura curda, sendo actualmente a região de Rojava, um espaço de conflito militar, encontrando-se os curdos sírios no centro de 3 conflitos distintos: o Estado Islâmico, a Guerra civil Síria e a reivindicação da sua autodeterminação através do partido político PYD, em ligação ao PKK.
3
no Iraque4), mas também em conjunturas vulneráveis e de perda de autonomia
cultural, como sucede, enquanto grupo cultural, no Irão e na Turquia.
No entanto, este projecto de estudo incidirá somente no caso da representação
curda na Turquia, nos seus domínios simbólicos enquanto cultura de resistência,
acentuada no século XX pela transformação social que a guerra civil dos anos 90
representou na sua vitalidade ou no seu âmago cultural, e também, no seu carácter de
fronteira ou propriedade liminar em que se constituiu ao longo da história.
Estes laços sociais e religiosos distintos foram-se formando ao longo da história
da espacialização fragmentada, interrompida por várias lutas históricas, mas
revelando a capacidade dos vários povos curdos de se readaptarem socialmente e de
se reconstituírem culturalmente entre as linhas ténues, que a fronteira sempre
representou nas suas estruturas e modelos socioculturais.
Foi na fronteira, nos seus espaços liminares, que a palavra “curdo” foi ganhando
o carácter de cultura de resistência ao longo dos seus oito séculos de existência. No
auge da fundação da república turca, segundo o historiador e politólogo curdo Welat
Zeydanlioglu5, a etimologia da palavra foi sendo redefinida culturalmente pelo estado
turco, a partir de 1923, remetendo-a para o espaço de cultura residual, ou seja,
redefinindo-a e tratando a sua génese histórica, agregando-a como produto da cultura
turca. Sobre o grupo cultural curdo, diz-nos o dicionário turco, instituído em 1936 por
Mustafa Kemal Attaturk, que este «é um grupo de origem turca, cuja língua na sua
transformação revela influência do persa», e que habita na Turquia, Iraque, Irão e
Síria.
A representação imaginária e política do grupo cultural curdo, à luz deste
projecto, analisa uma “comunidade imaginada”6 num território que se foi
redesenhando ao longo dos séculos. Uma “comunidade imaginada” é descrita por
Anderson como aquela em que os laços comunitários ou sociais surgem dispersos,
desterritorializados ou são mesmo invisíveis a todos os seus “compatriotas”. Apesar
da dificuldade que o autor aponta em descrever o que significa uma comunidade, uma
4 Os curdos do Iraque conseguirem parcialmente um estado autónomo entre os anos de 2006/2007, nas regiões de Kirkuk e Mosul. 5 Zeydanlioglu, Welat cita Besikçi: The white turkish man’s burden: Orientalism, Kemalism and the Kurds in Turkey, pág.9, 2009. 6 Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the origin and spread of nationalism, 1991.
4
nação é sempre uma “comunidade imaginada”. Na sua visão, é ela que vai criando e
recriando os espaços culturais, a par das suas redefinições ideológicas. E é nos
aspectos ideológicos e elementos simbólicos que encontramos na “comunidade
imaginada” o seu testemunho e percurso enquanto cultura, ainda que a interpretação
só seja possível à luz de cada era ou época específica. É por isso que, para Anderson,
as comunidades são imaginadas, sendo impossível demarcar o seu início (a origem) e
o seu fim (o produto cultural), sendo os seus aspectos culturais contínuos, fluidos e
muitas vezes imprevisíveis ou indeterminados no tempo.
Nestes parâmetros, proponho a análise de uma comunidade imaginada, assente
numa cultura material e simbólica em vários territórios, sob duas perspectivas: a
perspectiva socio-política turca, debaixo do manto de um recente trauma histórico: a
guerra (civil) entre as duas culturas, no contexto da edificação nacional da república
turca, na segunda década do século XX. Esta perspectiva é justificada teoricamente
através de uma reflexão histórica sobre as duas culturas, tendo também como base, a
ideologia política dominante nos últimos doze anos do governo turco, relacionando-as
com as políticas de exclusão social do grupo cultural curdo.
A outra perspectiva de análise contornará as linhas históricas do passado
conduzindo-nos à antropologia do presente ou à reconfiguração imprevisível do
presente para o grupo cultural curdo, propondo-se reflectir sobre o significado dos
espaços culturais, após o êxodo da guerra dos anos 90. Estes novos espaços,
redefinidos pelas diásporas e pela renegociação ainda vigente do processo de paz
entre curdos e turcos, provocaram grandes e importantes transformações sociais na
cultura curda, na última década do século XX e no início do século XXI. Nesta nova
representação do espaço cultural curdo, ou nesta nova dinâmica social de coexistência
das culturas curda e turca em espaços não separados (e por isso, sob a mesma
ideologia de um único estado), surgem novas competições identitárias e culturais, ao
sabor e na fluidez das crises políticas do estado turco. Assim, torna-se relevante para a
premissa curda, uma reflexão que desconstrua os significados emergentes e fluidos
da cultura ou culturas através da análise da sua representação simbólica numa nova
configuração social.
Se por um lado, este é um projecto que tem como objectivo reflectir sobre os
mecanismos ideológicos e simbólicos diferenciais na construção daquilo que significa
uma cultura (e para que serve) na visão histórica de ambas as partes, é importante
5
referir que este decorre presentemente num espaço territorial partilhado, circunscrito e
limitado pela cristalização da política nacionalista turca, (que diferencia duas culturas,
apesar de ainda assim se apropriar da etimologia da palavra “curdo”). Por outro lado,
será incontornável a assunção do antagonismo socio-cultural presente de que,
também, pelas visões e interpretações da história, para muitos ocorre que aquilo que
os separa, (o território), também os une nos laços culturais que partilham.
Dentro desse espaço limitado, os curdos estão circunscritos em diferentes
territórios anexados a quatro países, em que a diferença dos modelos de estado e
diferentes visões sobre a interferência e o peso da religião do Islão (na constituição de
identidades e culturas,) os define como um grupo cultural liminar mas, também,
permeável no eixo que os une, a fronteira. Nesses vários domínios fronteiriços, do
local ao global, os curdos vivem actualmente entre lutas e competições identitárias
exteriores a si (no interior do conflito árabe), no enredo de um cultura sempre
incompleta, interrompida pela história e em processo de readaptação e transformação
cultural. Esta readaptação cultural é característica de uma comunidade, no fundo à
procura de um sentido identitário e que se tem vindo a imaginar ao longo do tempo na
construção socio-cultural entre fronteiras. A aspiração à igualdade e à justiça social,
na assunção de que a autodeterminação como direito humano é uma ideologia política
no que concerne aos grupos culturais excluídos, é inevitavelmente variável e um
indicador social referente ao modo como as várias classes sociais integram as suas
histórias e percursos de vida. O enquadramento social da multiplicidade de ideologias
surgidas dos vários acontecimentos socio-históricos, decorridos nos anos 90, é uma
tarefa difícil, não sendo recomendável e possível o retrato de homogeneização social
de uma comunidade, como se ela tivesse sido cristalizada pela história ou como se as
comunidades estivessem desligadas do tempo presente e das acelerações históricas
das configurações sociais (os seus vários territórios sem estado) que os afecta. Para a
cultura curda, estes novos eixos sociais exigem uma readaptação cultural das suas
tradições, originando, muitas vezes, aquilo que Terence Ranger e Hobsbawm (1983)
invocaram como sendo a “ invenção da tradição”, que surgem em lugares ou espaços
sobre pressões socio-históricas, revelando novas perspectivas do que significa a
cultura e novos modos de operar as próprias tradições.
A história dos poderes na constituição dos territórios, espaços e poderes
diferenciais dos países é longa, como também o é a forma como a história constrói as
6
suas versões ( inevitavelmente diferenciais) através de narrativas ideológicas e
politizadas, influenciadas pelos mecanismos de construção identitária e por laços de
união sólidos e intemporais.
1.2. O projecto.
Na introdução a este projecto, e como variável de análise, proponho como
paradigma de estudo a forma como o estado-nação turco, país de pesquisa e ponto de
partida deste projecto, representa histórica e politicamente o grupo cultural curdo,
integrado nas suas relações culturais e na partilha do mesmo território. Uma outra
variável de análise adjacente surge a propósito de outra questão já referida, originária
do conflito decorrente da guerra civil dos anos 90, que pretende identificar de que
forma o estado turco, nas suas relações culturais e socio-políticas com o grupo curdo,
o tem integrado socialmente e criado parâmetros culturais antagónicos nas contínuas
relações e negociações referentes ao processo de paz no pós-guerra civil. Constituindo
ainda um processo aberto e contínuo nas últimas duas décadas, apresento a segunda
questão reflexiva sobre o modo como se poderá, no futuro, auto-representar o grupo
cultural curdo sob a ideologia nacional turca. No seguimento do paradigma histórico-
cultural turco e das duas questões levantadas, este projecto desenvolve-se em torno do
seu produto cultural e histórico, mas também sobre a sua imagética identitária e
cultural.
Ao longo da última década do governo AKP (no poder desde 2002) do
presidente Recep Erdogan, tem-se manifestado, a partir de 2006, uma viragem nas
relações da Turquia com a Europa, com incidência nas questões religiosas ressurgidas
sob a influência do Islão na sociedade. Esta renovação das questões religiosas é
paralela aos fenómenos globais, reconceptualizando as noções de tradição, mas
também de modernidade, que afectam inevitavelmente o grupo cultural curdo. Não só
a negociação contínua do processo de paz entre as culturas surge como uma
prioridade, mas também as readaptações que ambas as culturas atravessam no
contexto actual de um conflito maior, este relacionado com os domínios da religião e
a sua interferência no espaço público e privado.
7
Apesar desta variável religiosa referente ao estado moderno turco ser complexa
e ambígua, no decorrer deste estudo, perspectivarei a Turquia sob forte influência da
doutrina islâmica, mas também ambígua na relação com o modelo secular turco.
Se estamos perante um estado moderno com uma face monocultural religiosa,
porque não se inserem e integram os curdos na sociedade, se ambas as culturas
partilham as mesmas origens pluriétnicas (e, em grande escala, a mesma perspectiva
religiosa do Islão Sunita)? E porque não têm os curdos os mesmos direitos sociais de
que usufrui a cultura ou a identidade turca na partilha do mesmo espaço, religião e
estado?
Ver-se-á, a seu tempo, que a relação do estado turco com a cultura curda,
instaurou um confronto expresso numa guerra civil monstruosa e que, no contexto
pós-conflito militar dos anos 90, foi revelando ao mundo questões muito vulneráveis
no âmbito dos direitos humanos.
1.3. No terreno recriando o projecto.
No final dos anos 90 e já no início do século XXI, surgiu uma geração de
curdos, a mais nova do conflito, que viveu a guerra e o exílio forçado na infância.
Sobrevivendo ao conflito, que dizimou 37.000 pessoas7, veio em diáspora, viver para
as cidades, tendo-se especialmente concentrado em Ancara e em Istambul, mas
também a sul em cidades mais pequenas, e outras superfícies maiores como o são as
cidades de Izmir, em Adana e em Samsun. Esta é também uma geração caracterizada
por ter saído das zonas rurais do país para as zonas mais industrializadas da Turquia, e
vários países do centro e do norte da Europa, e também para a América do Norte. Nos
últimos cinco anos, dado o progresso da negociação de paz, esta geração tem tido a
possibilidade de ascensão social e de ingresso no ensino superior, possibilitando-lhe
um salto social na história recente do grupo cultural curdo na Turquia.
Foi com elementos desta geração que desenvolvi este projecto na cidade de
Ancara, no Centro de Investigação İnsan Hakları Gündemi, (Human Right’s Agenda
Association), que aceitou a minha integração num estágio. Este estágio integra-se no
projecto, que desenvolve desde 2003, de análise do modelo jurídico turco à luz da
7 Dados estatísticos por Zeydanlioglu, Welat, 2009, cita Akçam 2004; Aktar, 2000, pág. 7.
8
problemática dos direitos humanos na Turquia. O projecto sobre os curdos não fazia
parte da sua “agenda”, mas aceitaram que criasse a minha própria pesquisa sobre o
tema curdo e redigisse, após a conclusão do mestrado, um artigo científico sobre o
estudo que ali desenvolvi e as minhas conclusões teóricas. O motivo por que esse
artigo só será publicado em 2015 e escrito após a conclusão deste projecto, está
relacionado com a actual problemática da liberdade de expressão no país,
nomeadamente em relação ao “tabu” social curdo. Assim foi negociado que a escrita
para o jornal turco “ Today’s Zaman”, decorreria do acompanhamento do que poderá
ser “ escrito” no contexto de 2015, até à data imprevisível, atendendo ao conflito com
o Estado Islâmico ( ISIS) na fronteira turca com a Síria, na zona de Rojava. O risco de
perseguição, de detenção e punição política e de violência física contra os
participantes e interlocutores neste estudo (apenas os que não representam agências
institucionais, refiro-me por isso aos intervenientes académicos) exige a
confidencialidade merecida aos que perante as circunstâncias sociais opressivas , não
se demoveram em expressar-se livremente neste projecto. Acrescento, deste modo,
que à excepção dos nomes dos representantes institucionais, não divulgarei os nomes
dos interlocutores participantes, como forma de os proteger contra a ameaça que o
estado turco representa, nos dias de hoje, para as novas gerações curdas.
Recorri, por isso, às vozes curdas da geração mais nova do conflito, integradas
no meio académico de Ancara, para a análise do modo como o processo de integração
social pós-conflito interferiu ou reforça novas motivações e reconfigurações
ideológicas acerca de si mesmos, na sua auto-representação cultural actual. Sendo o
processo nacional turco, um modelo socio-político que integra a noção de assimilação
cultural, este actua como qualquer outro processo social, num modelo que incorpora
em si, dispositivos sociais, visíveis e invisíveis. A assimilação cultural como forma de
integração social manifesta-se nos mecanismos sociais e institucionais das sociedades,
e por isso, a minha abordagem foi motivada, por força da acção dos próprios agentes
sociais e institucionais, a várias reformulações de perspectiva, contornando questões
ainda muito vulneráveis como são as do movimento clandestino do PKK8 e o passado
da guerra. No seguimento do pedido institucional do centro de investigação em que
decorreu o estágio, as categorias de análise que criei para chegar aos meus
8 O PKK – Partido dos Trabalhadores do Curdistão – representa o mais importante movimento clandestino da autodeterminação curda na Turquia e será desenvolvido neste projecto no capítulo histórico e através dos testemunhos curdos.
9
interlocutores cingiram-se à actuação e intervenção dos direitos humanos no modelo
cosmopolita marcado pelo novo modelo global, passando por tentar definir e redefinir
a visão do mundo da correspondente construção identitária e cultural curda, moldada
nos conflitos do estado moderno turco e também deste com os países vizinhos do
Médio Oriente. Nesta reconstrução da sua visão do mundo, após os processos de
desterritorialização e de desnacionalização histórica questionava-os, afinal, sobre
quem são os curdos e como se posicionam face às mudanças do seu centro do mundo,
o Curdistão. Questionava-os também como se posicionam subjectivamente perante a
sua cultura, nas suas relações transversais com o estado turco, colocando em
perspectiva as dimensões simbólicas de transferência da cidadania e nacionalidade
curda para um outro lugar espacializado e político como é o espaço e imaginário
turco.
Perante o obstáculo malinowskiniano, na impossibilidade de compreender a
completude dos fenómenos sociais devido ao não domínio da língua, encontrei no
grupo cultural curdo um lugar onde a língua mediadora (o inglês) se constituiu como
língua base e mediadora nas relações com a plataforma das agências sociais e
humanitárias e inclusive nas interacções com os entrevistados e participantes curdos
no decurso da análise dos paradigmas deste estudo.
Algumas das entrevistas, ao longo do projecto, foram repetidas devido à
necessidade de acrescentar a essas categorias, outras categorias que decorriam
simultaneamente à realização deste estudo. Entre elas, surgiu o fenómeno do
terrorismo9, sob um outro fenómeno: a islamização forçada e a forte contestação
sentida nas manifestações cíclicas na Turquia, desde o ano de 2013. Estas novas
categorias (dos protestos ao terrorismo) interromperam o estudo, podendo, no entanto,
reiterar neste trabalho que a questão do conflito curdo vive a par do conflito turco
com o Estado desde o ano de 2002, em meios cosmopolitas, mas também nos meios
rurais, em que turcos e curdos estão em conflito transversal e socio-reivindicativo
com o governo turco.
No entanto, apesar de o conflito turco ser incontornável neste projecto, e de
ambas as culturas, curda e turca, estarem intrinsecamente ligadas, tanto no domínio
das heranças culturais como das circunstâncias políticas, isso não implica que no
9 Descrito com o exemplo do fenómeno de Berkin Elvan, desenvolvido no capítulo III.
10
interior do conflito maior (com o estado turco), elas estejam em plano de igualdade na
reivindicação e defesa dos seus direitos. O que este projecto tenta inquirir, após uma
breve contextualização dos conflitos históricos de ambos os lados, é se na perspectiva
da geração mais nova do conflito, estes dispõem de novos recursos sociopolíticos, na
reconstituição ou continuidade cultural, em desafio directo ao processo de assimilação
e em simultâneo, procurando evitar o ressurgimento de um conflito militar. O vector
principal de análise, como instrumento teórico, é o paradigma da assimilação turca
como ideal de um estado único e nacionalista, gerando, em sociedade, antagonismos
ou oposições entre as noções de identidade / cultura e sociedade.
Na leitura do projecto deve entender-se que a estruturação do corpo teórico foi
essencial à reorganização da compilação de informação que encontrei no terreno, mas
que, também, se encontrarão nele muitas “pontas soltas” e questões epistemológicas
sem resposta. Estas são referidas tanto nos excertos do meu diário de campo, como
pressentidas nas entrevistas seleccionadas que exprimem o carácter da ambiguidade
actual do paradigma fundamental deste estudo: Quem são, nas actuais gerações, os
curdos, e o que desejam, numa Turquia dividida entre o cosmopolitismo europeu e o
“médio oriente” (no modelo islâmico) na contínua luta de fuga à assombração da
guerra e do passado?
11
II – CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
“ Em virtude do carácter material, o problema da vida cultural apresenta-se muitas vezes como o problema da inter-relação entre vários aspectos da cultura”10.
2.1 A narrativa histórica das várias influências curdas – o tempo reificando os
vários espaços e padrões culturais.
Para compreender a história dos curdos, temos inevitavelmente de olhar para o
seu passado, na tentativa de reconstituir as circunstâncias da sua origem como cultura.
Tal ocorre num universo histórico em que o conflito mas, também, a cooperação entre
fronteiras marcam a sua fascinante sobrevivência enquanto cultura, ainda que
desnacionalizada, e em contínua reconstituição cultural. Actualmente está focada na
reivindicação dos direitos civis e sociais, na sua relação “romântica” com o Curdistão.
Ruth Benedict, na emblemática obra da antropologia“ Padrões de Cultura”
(1934), encontrou uma analogia linguística para definir a vida cultural dos grupos
como elemento fluido e incomensurável nas sociedades. Compara a variabilidade
linguística com a variabilidade cultural, ao dizer-nos que “o número de sons que as
nossas cordas vocais e as nossas cavidades bucais e nasais podem emitir é
completamente ilimitado”11. Por outro lado, dado o carácter ilimitado da vida cultural,
todos os povos teriam que escolher os seus “vocábulos”, de forma a serem inteligíveis
a uns e outros, sendo os vocábulos os elementos culturais na constituição de uma
ordem ou estrutura social equilibrada nas suas referências e significados. No entanto,
Benedict Ruth não categoriza a sociedade como um organismo harmonioso. Diz-nos
que ela é “dissonante nos seus vocábulos e o produto de elementos desarmónicos”,
que recorreram a influências exteriores e fusões várias entre povos, resultando disso
aquilo a que chamou de “conflitos de elementos heterogéneos”12.
Nos conflitos provocados pela heterogeneidade dos elementos culturais dos
povos, estes utilizaram, muitas vezes, a estratégia da assimilação ou da fusão de
10 Franz Boas, in Introdução à obra Padrões de Cultura de Ruth Benedict. 11 Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, 1934, pág. 35. 12 Benedict, Ruth, op. cit., pág. 247.
12
outros vocábulos culturais. Umas vezes, provocaram a desintegração dos povos
através de conflitos e batalhas, outras, novos processos de cultura, e também a
integração cultural dessas mesmas variâncias culturais:
“Pode suceder que, se conhecêssemos bem a história passada dessas culturas, chegássemos a verificar que, dado um período suficientemente extenso, elementos desarmónicos que se foram buscar a culturas estranhas tendem a constituir um todo harmónico. Sem dúvida, em muitos casos dá-se isso”13.
Antes da reflexão antropológica sobre as culturas e os seus padrões, já o
sociólogo Émile Durkheim, na obra “As formas elementares da vida religiosa”
(1912), tinha apresentado a sociedade segundo a hipótese de esta se organizar a partir
de uma mescla de influências, a partir da possibilidade de toda e qualquer sociedade
se representar a si mesma como “ sui generis” no interior de morfologias e estruturas
sociais várias. Durkheim definiu a categoria “tempo” como pertencente à “esfera
civilizacional”, ou seja, o tempo só pode ser compreendido em relação a pontos
históricos específicos. Estas referências históricas constituem-se e integram-se nos
“tempos colectivos”, explicando, assim, que qualquer referência ao tempo é
pertencente à vida social. O tempo, por isso, é pensado e dividido consoante as rotinas
(calendarizado) das sociedades e segue uma linha de regulação social, que se
evidencia não só nas suas rotinas mas, também, na reconstituição da história.
Sobre o espaço, ou lugares, este autor diz-nos que a sua representação é
constituída através de tempos diferenciais, induzindo-nos uma representação temporal
de lugares ou estados de consciência (culturais) também eles diferenciais, mosaicos só
perceptíveis se documentados, divididos pelas narrativas (do tempo) e,
consequentemente, serão apenas inteligíveis se perspectivados e localizados em datas
específicas14.
A reconstituição histórica dos “espaços e dos tempos” do grupo cultural curdo,
revelou-se, no terreno, um trabalho de investigação árduo, em busca de uma linha de
entendimento comum em relação ao passado. Este capítulo reúne alguns autores e
académicos que desafiam, no início do século XXI, a visão histórica determinista (na
concepção da ideologia nacionalista turca), e exclusivista (em relação a outros grupos
étnicos que constituem o seu passado) implementada na fundação da república turca.
Vários politólogos e historiadores da academia turca procuram actualmente conciliar 13 Benedict, Ruth, op. cit., pág. 255. 14 Durkheim, Émile, As formas elementares da vida religiosa, 1912, capítulos XII e XIII.
13
a ideologia nacional dominante com a necessidade de solidificar a identidade turco-
otomana. A questão das identidades políticas (rivalidades e disputas identitárias entre
vários grupos culturais e religiosos no campo sociopolítico), no contexto turco, tem
desencadeado, desde os anos 90, uma contra-corrente ideológica na interpretação do
passado histórico turco institucionalizado pelo poder fundacional kemalista. A
história das insurreições curdas e das proliferações nacionalistas em território
otomano não constituem uma história fechada no tempo actual. Também não pode ser
apresentada como uma história que consagre um consenso social e académico na
forma como os povos ou as culturas se limitaram ou se apoiaram mutuamente na
construção de novos quadros sociais. À luz de outra versão histórica contemporânea,
o único consenso histórico parece ser de que ambas as culturas (turca e curda)
viveram flutuações entre os vários espaços e os vários tempos. Para a cultura curda, a
alteridade das fronteiras15 foi essencial, e durante muito tempo até suficiente, para a
sua constituição. A alteridade como fluidez entre os vários espaços foi-lhe essencial
no enclave persa-otomano, e face a tribos hostis. A sua contextualização histórica,
neste projecto, não esgotará a análise necessária para a interpretação de uma história
conjunta de oito séculos, sendo que, como opção analítica, ficarão registados apenas
alguns factos históricos culminantes que ajudaram a inverter e a reverter caminhos de
dois grupos sociais históricos que, até à fundação institucional de territórios em
meados do século XX, se uniram e cooperaram junto à fronteiras, tendo como elo
social a partilha do Islão e a vulnerabilidade dos territórios, contribuindo para a
disputa e para a futura desnacionalização da cultura curda.
2.1.1 A heterogeneidade dos espaços culturais curdos nas ramificações
ideológicas da história.
Um dos autores que desafia a visão histórica e ideológica homogeneizante é
Kendal Nazan16 que perspectiva o Islão sunita como uma influência fulcral para o
grupo cultural curdo na partilha dos laços sociais com o Império Otomano.
Primeiramente, apresenta a visão do Islão xiita como uma importante influência
15 Goldman, Marcio, Alteridade e Experiência : Antropologia e Teoria Etnográfica, 2006. 16 Nazan, Kendal, Un aperçu de L’Histoire des Kurdes, Fondation Institute Kurde de Paris, www.institutekurde.org.
14
Persa/ Iraniana entre os séculos XIV e XIX. Apesar da presença do Islão xiita, na sua
visão, ter representado por vezes uma ameaça aos territórios curdos, pelas disputas
dos impérios (Otomano/ Persa), estes aceitaram e integraram também a facção
islâmica xiita como um dos elementos constitutivos do seu grupo.
Nesta versão da história, os curdos partilharam, ao longo de seis séculos, do
século XIV ao XIX, o hibridismo religioso característico do Islão nas suas origens,
produto já referido da rivalidade entre o império persa e o otomano.
Da origem curda na Mesopotâmia ao século XIV, Nazan refere-se ao século XII
como correspondendo à era de ouro curda, interrompida no século XIII pelas
invasões mongóis, que, pela sua devastação , fragilizaram grande parte da estrutura do
império otomano. A estratégia curda, entre as invasões mongóis e o conflito persa-
otomano, (este marcado pela rivalidade entre a facção sunita otomana e a facção xiita
persa) manifestou-se no posicionamento e integração social do lado otomano. Apenas
durante três séculos, até meados do século XVI, os curdos viveram e coexistiram
pacificamente com outros povos, no modelo federalista otomano, que cumpria os
interesses de ambas as partes, apoiando e reforçando o poder otomano contra o
interesse iraniano-persa.
A história da construção sociocultural curda é por isso inevitavelmente, uma
história construída a partir da influência otomana. O autor assinala o berço da cultura
curda, ao estabelecer que foi Sandejar, príncipe turco quem, no ano de 1150, criou a
província do Curdistão. Sandejar designou a cidade de Bahâr (na etimologia
portuguesa, Primavera) como capital, nas proximidades da antiga Ecbatane,
integrando o território Persa.
Segundo outros historiadores da geração curda mais recente, como Metin
Atmaca, as discórdias são muitas em relação às fontes históricas, não só quanto à
tentativa de reconstituição do passado curdo mas, também, ao querer discernir a
intersecção de todas as influências desde a Mesopotâmia, isto é, ao querer identificar
os factores e os elementos socio-culturais que mais intensamente marcaram o passado
curdo, antes da constituição do império otomano.
Apesar da destruição da sua estrutura territorial e cultural, com as invasões
mongóis no século XIII e as otomanas no século XVI, Metin Atmaca, inspirado na
visão de David Mcdowall, apresenta como hipótese a maior influência do domínio
15
dos Sáfavida, entre 1501 e 1722. Estes terão dado oportunidade às tribos curdas de
reconstituírem novamente o seu equilíbrio social e económico, mas também os seus
limites territoriais, através da cooperação e da flexibilização das fronteiras entre o
século XIV e XVIII17.
Por seu turno, M. Hakan Yavuz considera a influência otomana muito mais
determinante (perspectivando o co-federalismo anterior muito menos pacífico e
desejado pelos curdos) no período final do século XIX e no século XX. Porém, na
influência otomana anterior ao século XIX, e no conflito feroz das invasões externas e
da competição Persa, este autor pondera também a influência turca otomana como
tendo sido positiva para a recuperação do Curdistão, após as várias invasões
territoriais até ao século XVI, ao institui-lo como sua região autónoma. No entanto,
tendo sido originalmente um processo desejado e aceite por ambas as partes, o
império otomano venceu as batalhas e ameaças exteriores, constituindo-se como
império por ter o apoio reforçado dos povos curdos, permitindo a sobrevivência e
evitando a devastação e a extinção cultural de ambas as culturas18.
A divergência quanto às influências históricas curdas surge também nas
relações de autonomia e constituição cultural, em que, por exemplo, para Metin
Atmaca, esta influência otomana deixa muitas dúvidas quanto ao seu impacto na
constituição dos traços elementares da cultura curda. Também, para este autor,
existem dúvidas quanto à possibilidade de os curdos, no curso do período otomano,
terem sido fortemente favorecidos na constituição de um estado federalista autónomo
otomano, ou se esse federalismo surgiu como imposição e estratégia de sobrevivência
face às ameaças persas19.
2.2 Na história dos hibridismos: a memória social de um espaço sem estado.
No seguimento das várias abordagens históricas, James Scott defende no seu
estudo20 sobre os modelos de resistência cultural dos povos do Sudeste Asiático, que
todas as identidades são socialmente construídas e que a história dos povos só poderá
ser compreendida através da história da fusão dos povos e na procura dos significados
17 Atmaca, Metin, Babans and Ottomans- a fragile agreement: the peace treaty of Erzurum, pag.26. 18 Yavuz, M. Hakan, Islamic Polítical Identity in Turkey. 19 Atmaca, Metin, 2013, op. cit., pág. 76 a 87. 20 Scott, James, The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia, 2009, pág. 6.
16
das suas “zonas de refúgio”. A interpretação das culturas não surge de um único
espaço e tempo, mas de uma linha de conduta (ou narrativa) que se vai constituindo
na memória social dos grupos. Os acontecimentos históricos reflectem-se nos grupos
culturais como um enredo por vezes fragmentado e indefinido, não só pela sua
longevidade mas, também, pela sua distância espacial. A construção de qualquer linha
de conduta histórica é por isso influenciada pelas condutas de resistência dos próprios
grupos ou povos.
Maurice Halbwachs21 descreveu na sua obra, The collective memory, que a
memória espacial dos grupos está intimamente ligada à imagética dos seus espaços
físicos. É na permanência cultural dos espaços, que os grupos sociais se sentem
impulsionados a resistir22. No entanto, M. Halbwachs refere também que a construção
da memória social histórica vai-se tornando mais difícil com a ameaça da perda
desses mesmos espaços e territórios. Na construção da narrativa de um passado em
relação ao território, o pensamento ou a memória colectiva, segundo Halbwachs,
quanto mais regride no tempo, mais se confrontará com a problemática da
reconstituição da sua linha de conduta. A memória colectiva como um espelho
fidedigno das culturas perde a sua genuína intenção histórica se procurar a
autenticidade pura, porque a história é ela própria fragmentada: “When we reach that
period when we are unable to represent places to ourselves, even in a confused
manner, we have arrived at the regions of our past inaccessible to memory”23.
Assim, definir os laços que unem os grupos / comunidades sem espaço (ou
território), reconstituir o seu pensamento colectivo e injectar o seu passado cultural
em novos espaços socio-históricos, só é possível através do trabalho da memória
social e colectiva como indicador do tempo, que trazem consigo por vezes um jogo de
influências no que concerne à sua memoria social mas também como desconstrução
dos acontecimentos que as marcaram e definiram ao longo da história.
O investigador e politólogo Rui Cunha Martins24 introduz uma importante
reflexão sobre os vários espaços (os espaços socio-culturais, mas também, por
inevitabilidade, os espaços jurídico adjuntos) que a memória ocupa e desempenha na
construção de um território referente à “ilusão da identidade”, mas também no
21 Halbwachs, Maurice, The collective memory, 1950, capítulo IV, Space and Collective Memory. 22 Halbwachs, Maurice, op. cit., pág.4. 23 Halbwachs, Maurice, op. cit., pág.5. 24 Martins, Rui Cunha, 2008, O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de um Dispositivo Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas), Almedina, Coimbra.
17
seguimento de uma linha de conduta em que a fronteira representa a ideia de um autor
omnipresente, em sobreposição ou justaposição com a ideia de tempo. A memória
fundacional, na sua concepção representa o traço (ou o limite) demarcado pelas
fronteiras. No entanto, os seus limites vivem em dialéctica directa com a noção do
ilimitado, dando espaço à sua transgressão ( e a às justaposições entre o controlo
versus resistência) e abrindo caminho às problemáticas das questões jurídicas, que as
fronteiras nos suscitam. O politólogo apresenta a ideia da memória fundacional como
uma problemática em si, não desligada ou dissociada dos outros espaços que a
compõem, mas suscitando também a forte incorporação do estado como elemento
central no conjunto das problemáticas no que concerne aos grupos socio-culturais que
entre elas, (nas suas delimitações territoriais) se encontram divididos ou encarcerados.
É por isso que a sua visão da fronteira se expressa sempre no eixo de uma memória
fundacional que se liga à origem fundacional de um grupo cultural ou estado em
relação directa com a ideia de soberania, mas sobretudo com a ideia de uma autoria.
No que concerne à reconstrução da memória social, na historicidade do tempo social
de um grupo, a problemática surge, sem dúvida para o autor, nas influências
transversais que a ideia de autoria comporta. O problema da memória é que ela, ao
viver o seu momento (ou rito) fundacional, institucionaliza-se, e ao institucionalizar-
se, ela também impõe e perpetua a ideia de continuidade, como traço regulador do
tempo próprio da perenidade das próprias fronteiras. Porém a memória social também
vive a ambiguidade dos seus desdobramentos jurídicos (onde o ilimitado confunde,
mas também prescreve as suas leis no conjunto de transgressões possíveis) e
apresenta a problemática de como se reconceptualizar em relação à noção de tempo e
às circunstâncias históricas que a assombram: a fronteira é, sem dúvida, o lugar ou o
espaço onde o processo da diferenciação identitária ocorre: “As ilações a retirar desta dimensão do problema são para nós óbvias: não se dirá que a fronteira desenvolve, por efeitos miméticos, uma referencialidade centrada em si mesma, homogeneizadora de comportamentos, mas dir-se-á, e é lícito, que a fronteira articula uma heterogeneidade de experiências e trajectórias, isto é, que ao não trazer associado a si um campo de experiência homogéneo, gerador, por seu turno, de um horizonte de expectativas previsível, mas, ao contrario, pressupor modalidades de relacionamento plurais e incoerentes, mesmo sobrepostas, oferece-se ao actores sociais como instrumento por eles mobilizável de acordo com a situação respectiva, estruturando os seus processos de “ negociação” com a realidade.”25
25 Martins, Rui Cunha, op. cit., pág. 33.
18
No campo da história e da antropologia portuguesa, Paula Godinho, na sua tese
de doutoramento, baseada no trabalho de campo do Couço: “Memórias da Resistência
Rural do Sul” (1998) alia a memória social e colectiva ao movimento de resistência
dos grupos, focando-se no processo da construção das narrativas sobre o tempo, ou da
memória como forma hegemónica da resistência. A memória social é, também, um
acto performativo da resistência colectiva, que permite a partilha de um “complexo de
ideias e práticas” que “confere uma imunidade natural”26 aos colectivos ou grupos,
que em condições de dura opressão e repressão, conseguem alcançar um corpo e
estratégia de coerência social na reestruturação dos seus elementos culturais, ou de
existência individual / social destruturadas por forças maiores, sejam um estado ou
outros elementos exteriores repressivos. A memória, aliando-se a uma cultura de
resistência, apropria-se também de símbolos que conferem um sentido maior ou
transcendente ao seu grupo, retribuindo-lhe significados e um sentido comum: “Produto de um grupo, a memória colectiva detém um carácter estruturante, permitindo codificar e descodificar o passado e o presente, através da luta pela apropriação de um conjunto de símbolos (…) A existência de códigos comuns permite o delinear de caminhos similares”27. Do mesmo modo, o grupo cultural curdo confrontou-se muito cedo,
especificamente desde o século XIII e das invasões mongóis, com a problemática da
memória colectiva, ao ser-lhe impossível atravessar a ponte histórica que lhe
permitiria a sua solidificação social e cultural num território único.
O historiador M. Hakan Yavuz, a propósito da memória espacial curda, define
um extenso período da sua história, entre 1299-1922, como tendo partilhado de forma
intermitente um espaço alargado e ambíguo como aquele que foi o vasto espaço do
império otomano. O momento fulcral que iria interromper esses espaços culturais
alargados de forma esmagadora, terá sido o século XIX, entre 1838-1876, quando as
batalhas e reformas tanzimanas ajudaram a despoletar o início da queda do Império
otomano e dissolveram os espaços sociais e culturais até aí definidos. O Islão recriou-
se e foi-se consolidando como uma estratégia política muito mais veemente, na
constituição das identidades árabes, como forma de combate às forças exteriores
europeias que se avizinhavam. Um dos resultados foi a divisão mais intransigente do
Islão nas facções sunitas, xiitas, alevis e yazedis. Nos vários espaços que
representavam a cultura curda, antes da queda otomana, já se tinham anunciado, na 26 Godinho, Paula, Memórias da resistência rural no sul - Couço (1958-1962), 1998, pág.53. 27 Godinho, Paula, op. cit., pág. 22.
19
visão deste autor, a recriação de novos espaços, resultantes das ameaças de
desestruturação exterior, como da recriação de novos elementos culturais, que
procuravam modernizar-se face ao interesse que a Europa no século XIX (a Rússia, a
França e a Inglaterra) lhes conferiu, nas invasões territoriais, que se impuseram de
forma dramática e constituindo um novo impulso para a futura desagregação do
Império Otomano.
Retomando a perspectiva do historiador Metin Atmaca sobre as fronteiras e
partilhando a tese de David Mcdowall28, a resistência curda é marcada por vários
ataques externos e traições dos países vizinhos aos tratados assinados sobre a
cooperação de fronteiras. Os séculos XIX e XX foram importantes na viragem da
história das culturas curda e turca, porque marcam o período em que os elementos
externos mais relevantes na história actual se aproximaram das suas fronteiras: a
Europa, com a influência britânica, e a Rússia.
Na narrativa de Metin Atmaca, paralelamente ao avanço europeu no território
do Médio Oriente, em 1823, o Curdistão aparentava estar no rumo da
autodeterminação com o tratado de Erzurum, assinado entre os Babans (na zona do
Iraque) e os Otomanos, determinando a paz e pondo cobro à ameaça do Irão. Todavia,
o acordo perdeu efeito com o rasgar do tratado pelo Irão, que persistia na ocupação
dos territórios dos Babans, inclusive da cidade de Sulamaniya29, em território
Iraquiano.
Porém, na perspectiva deste historiador, por algum tempo, os Babans
conseguiram uma relativa soberania na interligação da zona curda iraquiana com a
zona curda do Irão, flexibilizando as relações nas fronteiras curdas, até à entrada em
campo da Rússia, que marcou o declínio dos Babans. Em 1827, a Rússia ocupou os
territórios do Irão e posteriormente, em 1829, ocupou também o território otomano,
não prevendo que, de seguida, seriam alvo de ataque do Império Britânico,
interessado no conflito de fronteiras devido à disputa das reservas petrolíferas na zona
do Iraque, Irão e Turquia30.
A dispersão geográfica e a espacialização multi-situada , surgem como uma das
justificações para a ausência ou impossibilidade para a constituição de uma cultura
28 Mcdowall, David, A Modern History of the Kurds, 1958. 29 Uma região federal independente curda no Iraque desde o início do século XX, com reforço da sua autonomia no século XXI. 30 Atmaca, Metin, Politics of Alliance and rivalry on the Ottoman-Iranian Frontier: The Babans (1500-1851), 2013, pág. 142.
20
territorializada no período anterior à queda otomana, marcando sempre um
posicionamento identitário fluido e flexível na sua relação com os impérios vizinhos,
originando aquilo que James Scott denominou como sendo as “zonas de refúgio”, ou
espaços sem estado. As questões que se colocam, actualmente, acerca do
posicionamento cultural nos vários espaços habitados, provêm directamente do
passado de reposicionamento territorial, em que a religião islâmica foi o laço que uniu
os impérios vizinhos, unindo-se, por vezes, em defesa estratégica, por outras,
atacando-se mutuamente31.
A estratégia federalista e a estratégia inter-relacional justificaram que ao longo
do tempo até ao início do século XX, os curdos fossem condicionados pelos
territórios vizinhos, impossibilitando-os de criarem uma identidade única em território
independente.
Maya Arakon, no seu artigo sobre os diversos nacionalismos que se expandiram
dos impérios fragmentados, defende que, na sequência das invasões britânicas e
francesas no século XIX e XX, a competição territorial passando a assentar no
conceito de nação, fez crescer posteriormente o nacionalismo curdo, (porém, na sua
visão, embrionário desde o século XVI, na assunção de que os curdos desde essa
época se constituíram como um estado semi-autónomo) com o inevitável recurso à
noção de identidade, como forma de protecção na queda otomana.32.
Na transição do modelo otomano para o estado moderno, na linha de alguns
autores turcos e curdos, irei apresentar, nos próximos capítulos, os parâmetros socio-
culturais e políticos actuais dos curdos ao criarem uma identidade referencial na
relação com o espaço memorial mas também com os espaços opressivos
circunvizinhos, ( no fundo operando como cultura desnacionalizada), sobrepostos ao
pluralismo étnico em que historicamente se constituíram.
Não obstante a dificuldade analítica dos autores em identificar na história dos
espaços culturais curdos um território único, onde uma identidade curda pudesse
nascer, a memória colectiva situa-a no território otomano. Mesmo na impossibilidade
de objectivar a cultura curda como um grupo cultural que, até à invasão europeia (e
mesmo sob o domínio dos impérios otomano e persa), tinha já uma identidade grupal
definida, importa reconhecer que, no caso específico curdo, a sua cultura foi
31 Maya, Arakon, Kurds at the transition from the Ottoman Empire to the Turkish Republic. http://www.ssu.edu.tr/uploads/vol_13-no_1-arakon_DLG1DRl5.pdf. 32 Maya, Arakon, op. cit, pag.140.
21
ganhando contornos ambíguos associados à ideia de comunidade resistente, (ou de
uma cultura da resistência), como base da sua construção sociocultural. No campo das
relações temporais entre estruturas e estados, a antropologia tem dado o seu
contributo para a análise das relações entre as transições e evoluções sociais que
ocorrem desde a constituição de um grupo social (ou estágio comunitário) até à
solidificação da ideia de sociedade e nos seus “ritos de passagem” para a definição de
uma cultura. Neste sentido, a história das fronteiras contribui directamente para a
história da cultura, e sem o apoio desta, na linha de Van Gennep, a fronteira
representa uma linha imaginária apenas visível nos mapas e não tanto nos retratos ou
espelhos das culturas33.
2.3 Comunidade, insurreições nacionalistas curdas e desnacionalização curda.
Fredrik Barth34 classificou os grupos étnicos segundo as seguintes variáveis: a
partilha dos mesmos valores culturais; a construção de um espaço específico de
interacção e comunicação para a partilha desses mesmos valores; a partilha de
sentimentos de pertença e de inter-identificação mútua; e por fim, a construção de
uma categoria sociocultural com códigos específicos que permita a diferenciação dos
outros grupos étnicos.
Para Barth, e em termos antropológicos, um grupo étnico é uma organização
social. Mas perspectiva-o de uma forma holística como produto histórico, invertendo
a ideia de que o grupo étnico se constitui como organização social de forma natural,
como instrumento de reforço contra o “outro”. Ainda que esta forma de reforçar os
poderes e as imagéticas possa acontecer como forma reivindicativa de identidade, na
perspectiva de Barth, tal acontece como consequência da inevitabilidade histórica
dificuldades geradas nas inter-relações entre grupos ou modelos sociais. No sentido
das inevitabilidades ou acidentes históricos entre culturas, percebemos como esta
definição vai de encontro à ideia de um espaço territorial, em relação directa e aliada
à noção de identidade , apresentando-se o território como base adjacente à identidade
grupal e histórica.
33 Gennep, Arnold Van, The Rites of Passage, 1909, pág.9. 34 Barth, Frederic, Ethnic groups and boundaries. The social organization of culture difference, 1969.
22
Na linha que conduz a comunidade à cultura, Valdimar Tr. Hafstein35 defende
que o processo histórico se constrói sobre noções ambíguas da comunidade como
berço de origem. As comunidades são, na sua visão, o “alvo antropológico” a ter em
conta para a definição cultural de qualquer grupo, em que as comunidades ou grupos
se vão reconceptualizando ou redefinindo ao longo do tempo conforme as suas
variações históricas (e por isso, nas implicações que as suas relações de poder vão
tendo na inter-relação e interdependência com outros povos). O autor introduz nestas
variações as ideias de comunidade e de grupos tangíveis e intangíveis. Esta
tangibilidade / intangibilidade refere-se directamente aos processos de construção ou
significação da cultura, que poderão ou não ser aplicados a um território ou à
materialização da sua identidade grupal. Neste caso, e olhando para a possibilidade do
grupo cultural curdo se poder identificar com a ideia de comunidade, (transcendendo
o território), a ideia de tangibilidade associa-se ao espaço cultural definido e, assim, a
uma ligação materializada no território. No território surgem variáveis antropológicas,
como a herança do passado histórico, que vão apoiando a construção memorável de
um determinado grupo, validando a sua existência cultural. No processo histórico
curdo, a ideia de comunidade como cultura tangível será quebrada no tempo aquando
das várias invasões territoriais e em paralelo com a vulnerabilidade das suas
fronteiras. Ainda na linha de Hafstein, a ideia de comunidade intangível, no caso
curdo, vai ganhando força a partir do momento em que se deslocalizam, sob o
fenómeno dos desdobramentos dos seus territórios culturais (resistindo nas linhas de
fronteira ou nas zonas de refúgio), recriando simbologias culturais, através dos
processos reconstitutivos da sua memória colectiva mas, também, nos eixos das suas
diásporas. A herança cultural de um grupo, que se vai revelando intangível ao longo
do tempo, provoca dramáticas transformações sociais no interior dos grupos. O
território deixa de se constituir como eixo central ou determinante, abrindo caminho
ao processo de transformação na direcção de uma cultura de resistência, mas também
a uma cultura fragmentada e fragilizada. Parafraseando o autor, a ideia de cultura
intangível provoca também uma transição para o domínio do simbólico, porque
obriga-os a objectivar as suas práticas culturais36 e, no fundo, a repensar a sua
existência social, noutros espaços: são estes os espaços da memória, da resistência e 35 Hafstein, Valdimar Tr., Claiming Culture: Intangible Heritage Inc., Folklore ©, Traditional Knowledge™". In: Prädikat: "HERITAGE”: Wertschöpfungen aus kulturellen Ressourcen ed. by Dorothee Hemme, Markus Tauschek and Regina Bendix (LIT Verlag : Münster, 2007). 36 Hafstein, Valdimar Tr., op. cit., pág. 93.
23
da alteridade, ( na relação entre os limites versus transgressão) entre as várias
fronteiras.
De acordo com os autores citados, sem descurar o pensamento da politóloga
iraquiana Maya Arakon, a comunidade ou grupo cultural curdo, ao assumir os seus
traços identitários, garantindo uma semi-autonomia desde o século XVI, busca a
autodeterminação já no século XIX, apesar de confrontada com o declínio do império
otomano e com as invasões europeias (Rússia, França e Inglaterra), aproximadamente
entre 1847 a 1881. Os curdos, a partir desta fase, são protagonistas de várias
insurreições, com o objectivo de criar um estado curdo. Porém, estas insurreições
foram sempre reprimidas e subjugadas pelas autoridades feudais otomanas. Após a
resistência à repressão otomana, as repressões que se seguiram foram várias, tendo a I
Guerra Mundial sido uma época especialmente difícil, levando os curdos à
deslocalização ou à desterritorialização como estratégia de sobrevivência.
É Maya Arakon que defende que a esperança da autodeterminação curda surge
antes do declínio otomano com o sultão Mahmoud, que lançou as reformas Tazimat,
em 1808, por um período de 30 anos, incentivando, de forma determinante, o grupo
cultural curdo a reconquistar os territórios perdidos. Por outro lado, na perspectiva
desta politóloga, em 1876, o Sultão otomano Abd-ul-Hamid II reforçou novamente a
confiança nas conquistas curdas, instaurando o regime islâmico Hamidye, ao criar
uma milícia militar de combate directo à presença arménia no território, que terá tido,
na sua perspectiva, ainda polémica ( e uma espécie de “ mito histórico”) para alguns
historiadores, o apoio dos grupos curdos na exclusão social dos arménios.
O nacionalismo curdo oficializou-se, logo de seguida, com a revolta do Sheik
Ubeydullah, em Hakkari, no sudeste da Turquia, considerada a primeira grande
revolta do despertar curdo, em 1880, integrando a revolta dos jovens turcos de 1876 a
1908. Este período de apoio e de união intelectual entre curdos e turcos coincide com
o eclodir de um movimento que pretendia fundar um estado independente e
diferenciado do modelo árabe perante a presença russa e britânica nas fronteiras.
Ambas as culturas apoiaram a construção de um novo estado, que só mais tarde se
oficializaria como estado turco, e como mais à frente iremos ver, através de vários
métodos e tratados, que iria excluir definitivamente os curdos do processo de
constituição de um estado moderno37.
37 Arakon Maya, op. cit., pág. 140-141.
24
Ainda na perspectiva de Maya Arakon foi principalmente o CUP, a Comissão
da União e do Progresso, instituída, em 1885, por um grupo de médicos curdos e
turcos, em Istambul, que deu início à construção da elite intelectual politizada que
originou o grupo de jovens turcos, abrindo o caminho para a definição de um estado.
Os jovens turcos inspiravam-se nos valores ocidentais e seculares, excluindo o Islão
como elemento constitutivo da cultura turca e procurando um modelo oposto ao
modelo árabe ou orientalista.
Em 1918, surge uma nova proposta de autonomia curda com a conferência de
Versalhes, seguindo-se, em 1920, o tratado de Sèvres, entre a Turquia, a França, a
Inglaterra e os Estados Unidos. O objectivo era definir as fronteiras com o intuito de
libertar a região da Anatólia da ocupação estrangeira europeia. Foi um capítulo
importante na história da fundação da república turca e na história do grupo cultural
curdo, ficando o seu destino traçado com o tratado de Sèvres em 1920, e
posteriormente com o tratado de Lausanne, em 1923. A estratégia do líder Mustafa
Kemal Attaturk, ao liderar o movimento da revolução dos jovens turcos, apelou ao
apoio e ao recrutamento curdo nas regiões de fronteira da Anatólia (região curda
actual no sudeste da Turquia) com a promessa da construção de um estado-nação que
constituísse um território tão abrangente como o império otomano, um espaço socio-
cultural partilhado entre turcos e curdos.
Como resultado dos tratados, entre 1923 e 1925, são feitas as anexações das
regiões curdas à Síria e ao Irão e, um pouco mais tarde, a anexação de território entre
o Iraque e a Turquia: “Ainsi fin 1925, le pays des Kurdes, connu depuis le XIIème siècle sous le nom de “Kurdistan”, se trouvait partagé entre les quatre états: Turquie, Iran, Irak et Syrie. Et pour la première fois de sa longue histoire, il allait être privé même de son autonomie culturelle”38. Após o início daquilo que seria a desterritorialização dos curdos, as anexações
dos territórios curdos foram decorrendo à medida que a guerra da independência turca
prosseguia com o apoio dos curdos. A data do primeiro capítulo da nação turca
consolida-se em 1923, com o líder do movimento nacionalista, Mustafa Kemal
Attaturk que proclama a república turca. Será nesta dialéctica entre um estado único e
uma cultura despacializada , que irei ao longo do projecto, destrinçar e reenquadrar os
38 Nazan, Kendal, www.institutekurde.org.
25
significados do passado histórico entre estas duas culturas, continuamente separadas e
unidas ao longo do tempo39.
2.4 Estado único, reconfiguração do espaço cultural otomano, e orientalismo.
“O Estado é, no mesmo tempo, o que existe e o que ainda não existe suficientemente. E a razão do estado é precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de uma prática que se vai situar entre um Estado apresentado como dado e um Estado apresentado como a construir e a edificar”40.
Michel Foucault reflecte sobre as delimitações estatais no contexto dos seus
corpos jurídicos, das interdependências estatais (no sentido em que para si, o estado
só existe em correlação com outros estados) no cenário da evolução histórica das
várias proliferações nacionalistas , a partir do século XIX.
Também Eric R. Wolf41 reflecte sobre as relações de poder entre os estados e as
sociedades, desafiando-nos a fazer uma análise das estruturas estatais, em correlação
com os processos de modernização, hierarquização e consolidação ou emergência de
elites sociais (o que explica as novas e diferentes hierarquizações das escalas sociais),
expandidos entre o século XIX e XX. Neste processo de reflexão, olha
microscopicamente para a história e estuda as culturas como propriedades complexas
e distintas entre si. O fenómeno do nacionalismo apoia a construção de um estado-
nação, mas, como tal, é também perspectivado como uma teia de fusão de vários
povos entre si. Em consequência da fusão dos povos e das suas narrativas históricas, o
século XIX constituiu o motor de arranque para a história das nações. Na sua
concepção, e apesar das novas estruturas sociais nacionalizadas, as noções de
comunidades, grupos sociais e sociedades não vivem desenredadas do fenómeno das
ideologias dos estados. São as ideologias que enraízam os interesses comuns dos
grupos sociais em torno de um objectivo maior rumo à construção de um estado,
cultura ou nação e que permitem a criação de um código linguístico que se produz e
reproduz como património de um território específico e institui uma memória social e
colectiva42.
Os fenómenos das culturas, segundo Eric Wolf, ao longo do século XX, foram-
se tornando “culturas nacionalizadas” nos processos de construção dos estados- 39 Yavuz, M. Hakan, 2003, op. cit., pág. 57 a 67. 40 Foucault, Michel, Nascimento da Biopolítica, 1978-1979, pág. 6. 41 Wolf, Eric R., Envisioning Power – Ideologies of Dominance Power and Crisis, 1999. 42 Wolf, Eric R., op. cit., pág. 21.
26
nações. Foi a criação da nação que transformou a visão sobre os significados
ideológicos dos grupos e, sobretudo, modificou as suas relações e interacções com o
poder estrutural, motor esse que anteriormente movia essas mesmas sociedades,
comunidades e grupos no sentido da construção a uma identidade nacional.43. Nesse
sentido, este subcapítulo serve para apontar de forma breve o que a história trouxe ao
contexto histórico curdo, a partir da sua despacialização durante a fundação da
república turca. Esta desintegração ou desestruturação espacial, aproximou-os de um
campo ideológico e simbólico de novas relações, em que do império passam, a partir
do século XX, a integrar-se numa ideia de estado moderno que redefiniu de forma
irrevogável os seus aspectos culturais, regenerou tradições e reformulou ideologias até
à actualidade como forma ou delimitação de um poder soberano ou legitimação
política sobre o grupo cultural curdo.
Neste sentido, e caminhando em direcção a um estado soberano, o século XX
foi acrescentando para os grupos culturais sem estado, a ideia de cultura como
elemento integrante na sociedade de uma nação, e foi adquirindo um sentido positivo
como aspiração socio-económica. Não obstante, o grupo cultural curdo ficava
enredado nas relações dos poderes nacionais. O século XX caracterizou-o, de acordo
com a tradição turco-otomana, como grupo ideológico, atribuindo-lhe um carácter
negativo. Essa negatividade é instituída num parâmetro de “consciência falsa”, ideia
oriunda da filosofia de Mannheim (1938), que descreve como as ideologias são um
árduo trabalho de contextualização dos grupos na história e, por consequência, um
esforço árduo para que se tornem impermeáveis às “deformações ideológicas” das
várias modernidades que se lhes impõem.
Na nova República turca, a partir de 1923, liderada por Mustafa Kemal
Attaturk, os curdos passaram a divergir nas questões do nacionalismo, mostrando
vontade de integrar o Islão no seu modelo cultural, em oposição às elites turcas. A
antropóloga turca Alev Çinar44 defende que a inscrição do momento fundacional da
república turca pode ser perspectivada de duas formas: a) como dando um sentido à
história, por isso ligando o passado ao presente, mas também ao futuro, numa nova
narrativa: a história nacionalizada, situando neste campo a coesão nacional; b) a
criação do “eu” em relação e em oposição ao “outro”, capacitando o estado como
43 Wolf, Eric R., op. cit., pág. 21. 44Çinar, Alev (2004). Modernity, Islam and Secularism, Turkey: Bodies, Places and Time. Minneapolis & London: University of Minnesota Press.
27
entidade que age directamente sobre a sociedade, criando e definindo uma ideologia
política, também ela nacionalizada. Na definição do que é e quem é o “outro”,
nomeadamente o grupo cultural curdo, este começou a ser perspectivado como um
“inimigo” da integridade ou união social turca. A política do nacionalismo turco
orientou a sociedade para a criação e interpretação do “outro” como “ inimigo” do
passado, reinscrevendo na sua história uma memória social diferenciada e desligada
da cooperação de outros grupos étnicos na criação da sua identidade45. Um dos
principais instrumentos foi a descentralização da vida religiosa em sociedade. A
abolição do regime de califado, em 1923, foi um dos principais exemplos da
construção de uma ideologia ocidental (secular) em oposição a um modelo regido e
centrado no Islão46. Por outro lado, surge também a questão sobre a forma como a
ideologia ou a ânsia secular foi implementada na sociedade turca.
Welat Zeydanlioglu, historiador e politólogo curdo, foca a sua atenção na
análise deste período, sobre a relação entre o Orientalismo e o movimento
nacionalista turco e no modo como a era kemalista se apropriou do conceito do
Orientalismo para criar uma identidade oposta ao modelo árabe, baseando, assim, a
sua ideologia no paradigma secular ocidental47. O nacionalismo turco, opondo-se ao
orientalismo, é descrito por si, como tendo-se perpetuado numa campanha
fundacional política, desencadeando um nacionalismo histérico anti-curdo. A
promessa de Attaturk de erguer no mesmo território uma terra de turcos e curdos não
foi cumprida e, baseando-se no Tratado de Lausanne, foram várias as estratégias para
o isolamento e dispersão territorial do grupo curdo. Este autor, inspirando-se também
na obra de David Mcdowall , descreve do seguinte modo a construção da memória
social turca acerca da representação curda no país:
“Kurds were no longer members of a “sibling nation”, but “Mountain Turks”,
who had “forgotten” their Turkishness or were in “denial” of their Turkish origins and
who need to be told the “truth”48.
A acrescentar à campanha ideológica kemalista na reconstrução histórica dos
curdos, as novas leis territoriais, em 1934, tiveram um peso consistente ao quebrar os
laços sociais e espaciais dos curdos. Estas novas leis ameaçaram a sua concentração e 45 Çinar, Alev, Modernity, Islam and Secularism in Turkey: Bodies, Places and Time” University of Minneapolis London, 2004, pág.146. 46 Çinar, Alev, op. cit., pág. 146. 47 Zeydanlioglu, Welat: The White Turkish man’s Burden: Orientalism, Kemalism and the Kurds in Turkey, 2009, pág.1. 48 Zeydanlioglu, Welat, op. cit., pág. 7.
28
espacialização nas zonas rurais, através de uma reestruturação de território que visou
desintegrar a cultura curda e impedir o crescimento do nacionalismo curdo no seu
território: “Article 11 of the law ordered Kurds to be distributed thinly so that they
constituted no more than 10 percent of the population of any district to which they
were sent49”.
Também na visão de Cengiz Çandar, de acordo com os princípios seculares
europeus e nacionalistas de Attatürk, autor de um grande número de reformas
modernistas, o estado substituiu o modelo do califado islâmico no controlo das
estruturas socioeconómicas com o intuito de implementar o paradigma do ocidente
rumo ao progresso civilizacional e à integração na União Europeia. No entanto, ao
mesmo tempo que o país se modernizava, acentuavam-se as políticas e as campanhas
de diferenciação cultural, de modo que a relação entre os curdos e os turcos passou a
basear-se num modelo operativo fomentador de discriminações étnicas, na vigilância
e na exclusão directa da sociedade em todo o sudeste da Turquia: “This situation caused for a communication problem among the local people who spoke Kurdish and the public officials who spoke Turkish although during the war years the tension between the Turanis / Turkish group and official nationalism reached it climax, the government did not apply supress these open racist activities in 1944, instead, it gave preference to keeping them under control”50. Apesar do estado moderno perpetuar um modelo social rígido em relação a
outros grupos étnicos, a república turca continuou a organizar-se em torno de um
modelo cada vez mais próximo da Europa. Em 1949, a Turquia integrou o Conselho
da Europa, mas só em 1950 é que as eleições livres foram instituídas no país,
contestadas pelos poderes religiosos islâmicos, com o apoio dos curdos que exigiam o
retorno do sistema do califado. As revoltas sucessivas dos líderes curdos vão
crescendo a par da implementação do modelo europeu. No ano de 1952, a Turquia
passou a integrar a OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte. Por fim, na
mesma década, em 1959, a Turquia candidata-se oficialmente à antiga CEE
(Comunidade Económica Europeia) e aprofunda os laços económicos com a Europa.
Esta aproximação à CEE não foi fruto de um consenso maioritário na sociedade e
talvez por isso os grupos islâmicos, incluindo os curdos, insatisfeitos com a
aproximação à Europa, fizeram ressurgir o conflito religioso secular, de que
resultaram três golpes de estado, nos anos 60, 70 e 80.
49 Zeydanlioglu, Welat: op. cit., 2009, pág.10. 50 Çandar, Cengiz, Leaving the Mountain, Tesev, 2012, op.cit.pág.51.
29
O movimento PKK foi fundado em Novembro de 1978, em Diyarbakir,
inspirado na facção do Islão alevi (uma das facções mais antigas do Islão) e nas
políticas de esquerda, opondo-se ao governo turco que impunha os valores seculares,
renegando a tradição islâmica do país dos seus grupos étnicos e, consequentemente,
também a tradição religiosa sunita da cultura curda51.
O estado de tensão nos anos 80 e 90 do século XX, após o eclodir da guerra
civil nas zonas rurais, no sudeste da Turquia entre as milícias turcas e as noventa
milícias curdas nacionalistas do PKK, na visão de Welat Zeydanlioglu, surgiu no
decorrer do processo de turquificação imposta pelas elites kemalistas, apoiadas numa
nova constituição jurídica em que a língua curda foi proibida em todo o território em
198252:
“The majority of the Turkish army was based in the region following the coup, with responsibility for the of a wide – ranging plan of Turkification during which 81.000 kurds were arrested. (Mcdowall, 1997:414). Systematic torture was used in military prisons not only to subdue and terrorise kurds but also to turkify them53”.
O conflito civil da década de 90 trouxe consigo a expansão dos movimentos de
esquerda no país, fortemente reprimidos nos anos 60, e a polarização entre o
nacionalismo de Attatürk e os movimentos seculares de esquerda. A posição do DYP,
partido da Paz pró-curdo, no período da insurreição civil e do despertar curdo em
relação ao seu desejo de autonomia, teve como objectivo o marcar do desejo da
autodeterminação, tendo a sua propaganda política, pela primeira vez, desde a
fundação da república, marcado o despertar curdo rumo à sua autonomia cultural. O
discurso oficial curdo na década de 90 foi caracterizado pela euforia social e
ideológica partidária, assim descrita pelos seus líderes: “Turkey has recognized the
reality of Kurds. From Istanbul to Hakkari, it is all of yours. This homeland is all
yours”54.
As consequências para a cultura curda do conflito entre o PKK e o estado turco
serão desenvolvidas neste projecto dando voz aos curdos através de entrevistas
aplicadas no terreno. O conflito do passado é relacionado com a política de terrorismo
e vigilância militar ainda presentes nas zonas curdas a sudeste do país, incidindo,
sobretudo, na região de Diyarbakir e nas fronteiras com o Iraque e a Síria. Também a
abordagem dos entrevistados e a visão da sua auto-representação cultural, recriada 51 Çandar, Cengiz, op. cit., pag-51-52. 52 Zeydanlioglu, Welat, op. cit., 2009, pág. 11. 53 Zeydanlioglu, Welat: op. cit., 2009, pág. 11. 54 Yilmaz Ensaroglu e Dilek Kurban, op. cit., 2012, op. cit., pág. 65.
30
após a diáspora e o conflito, mostra como o movimento clandestino do PKK viveu no
passado o antagonismo social com o nacionalismo turco e o autoritarismo islâmico
crescente no país no decurso do século XXI.
É nesta fase de pós-guerra civil e de crise com a Europa, que tem início a
história da defesa dos direitos humanos na Turquia. A análise dos modelos sociais que
se seguiram a par do modelo secular, sendo um deles o processo de assimilação
cultural, revela como o modelo cosmopolita irrompeu por entre o silêncio do tabu
social curdo e a par do modelo secular.
Ainda no decurso dos anos 90 do século passado e com as mudanças globais à
porta, uma das consequências mais marcantes surgiu na crescente importância da
participação civil dos agentes sociais na construção do futuro dos estados, mas
também como mecanismo identitário de luta. Esta problemática, como a antropóloga
Alev Çinar55 nos mostrará no decurso da análise, poderá revelar-nos um novo modelo
pluriétnico e uma estratégia social localizada de resistência e de contestação, em que
os curdos têm mais uma vez o poder resultante da flexibilidade cultural com que
geriam as fronteiras do passado. Revela-nos também que estes constituem também
um papel e têm uma influência fundamental naquele que será o futuro do modelo
social turco, nas suas relações geopolíticas com o resto do mundo, nomeadamente,
com todo o Médio Oriente.
55 Çinar, Alev (2004), op. cit.
31
III – A METODOLOGIA E OS INSTRUMENTOS DE OBSERVAÇÃO NO
TERRENO
“Violence is confusing and inconclusive. Wars are emblematic for the extremes that people’s existential disorientation may reach. Such life- threatening violence demonstrates the paralysis as well as the creativity of people coping under duress, a duress for which few are prepared”56.
3.1 A Antropologia do conflito – Da construção do objecto de estudo à
observação microscópica da realidade. O diário de campo como metodologia.
A fronteira, como matéria fundacional dos estados, foi descrita no capítulo
anterior como o lugar de origem e de partida para as culturas. Esta ocupa por isso um
lugar privilegiado nas memórias dos grupos, criando e recriando através das
imagéticas do passado fundacional, operando em sociedade consoante os dispositivos
complexos disponíveis (os mecanismos reguladores jurídicos), que capacitam os
estados a instrumentalizar os seus usos referenciais em direcção àquilo que Rui Cunha
Martins designou como a “alucinação do referente”. O processo da alucinação do
referente, ou seja da fronteira, apresenta-nos questões complexas acerca dos modelos
de legitimação política por entre os processos de contingências históricas, em que o
conflito surge como parte integrante na obrigatoriedade de flexibilização das
fronteiras.57
No contexto das contingências históricas das sociedades, ao integrarmos o
conflito como um dispositivo e modus operandis da fronteira, (fundadora do estado),
e se aceitarmos o argumento de Eric R. Wolf de que são as relações de poder que
ligam e interligam todas as dimensões das estruturas sociais no campo do estudo da
antropologia contemporânea em terrenos de conflito, compreenderemos que o poder
se manifesta sob diferentes variáveis (ou máscaras), em que a dimensão da violência
operada, como dispositivo jurídico interno na vertente de sociedade militarizada surge
como elo de ligação entre as dimensões da sociedade e da cultura.
56 Nordstrom, Carolyn e Robben, Antonius C.G.M., Fieldwork under fire, contemporary studies of violence and survival, capítulo: “The Anthropology and Ethnography of violence and sociopolítical conflict”, pág.3. 57 -‐ Cunha, Rui Martins, op. cit., A matéria autoral, cap. I.
32
Carolyn Nordstrom e Antonius C.G. M. Robben58 descrevem a violência como
uma construção cultural. O formato que o poder da violência nas sociedades
representa ou demonstra, não é, para estes autores, um mero artifício estrutural, nem
pode ser conceptualizado apenas como uma força exterior, longe da esfera ou da vida
social ou cultural dos indivíduos que a constituem. Este é o argumento principal
apresentado na obra “Fieldwork under fire, contemporary studies of violence and
survival ” que reúne as etnografias realizadas em terrenos de conflito por vários
antropólogos, que escolheram dentro do paradigma da violência, uma subcategoria
específica para reflectir as diferentes variáveis sociais que surgem quando
confrontados com o paradigma da opressão / repressão estrutural nos grupos ou
comunidades onde realizaram os seus projectos. Os autores, que colaboram nesta
obra, inspiraram-se na ideia da antropóloga Margaret Mead de que a violência e a
guerra constituem, por si mesmas, uma “invenção cultural”, de que os agentes sociais
não estão excluídos. A decisão de lhe escapar ou de permanecer na sua estrutura
dominante acarreta, mais uma vez, variáveis como a resistência e interfere de forma
predominante na construção de uma memória colectiva, em correlação com os
padrões históricos (havendo o perigo de repetição de conflitos assentes nos modelos
sociais do passado) das sociedades ou grupos étnicos em confronto.
Linda Green59 define a vida social sob o manto do conflito, ou em contextos
opressivos, como uma espécie de “rotinização do terror”, em que os agentes vivem
condicionados pelas situações de risco, respondendo muitas vezes através de métodos
criativos. Estes métodos criativos podem ser enunciados em formatos específicos de
resistência, como o é a normalização e a continuidade de rotinas no interior dos
espaços culturais oprimidos pelo poder. Podem também concretizar-se numa série de
respostas diferenciadas, como acções individuais, colectivas ou sociais na
instrumentalização ou cedência à violência ou à opressão, numa relação social
dinâmica com as ameaças externas. O estudo desta autora reflecte sobre a violência
militar na Guatemala, sugerindo que a “rotina” dos agentes sociais é, tal como nas
doenças do foro psicológico dos indivíduos em casos extremos, um primeira
estratégia colectiva que permite ser gerida pelos seus agentes, como recurso criativo
58 Green, Linda (1995). “Fear: Living in a State of Fear”. In Antonius C.G.M Robben & Carolyn Nordstrom (Eds). Fieldwork Under fire: Contemporary studies of violence and survival. Berkeley: University of California Press. 59 Green, Linda (1995), op. cit. pp.105-129.
33
e acto performativo de resistência face à ameaça de perderem o seu equilíbrio
orgânico, pessoal e social. As “rotinas”, a agregação ou participação de grupos sociais
ou colectivos no interior dos movimentos sociais de luta activa e de resistência,
representam desta maneira, um elemento criativo, como forma de lidar com o “medo”
institucionalizado nas situações de extrema violência ou de conflito social60. São estas
duas componentes criativas que permitem aos agentes sociais, nestes contextos,
superar adversidades, criar e recriar solidariedades sociais, ainda que, em muitas
situações ou contextos, a matéria humana, ou corpo social e individual, seja o
principal alvo do mecanismo da violência social a desestruturar. Podemos, no entanto,
partir do princípio de que sobrevivendo ou escapando o corpo social ao mecanismo da
violência, importa destrinçar o que sobra dos escombros das devastações sociais e
institucionais e como serão as ideologias reconstituídas na organização social e na
defesa da integridade social, constituindo o principal dispositivo disponível de
resistência dos grupos envolvidos.
No caso específico da observação do conflito no terreno, este capítulo vai ao
encontro daquilo que de mais “chamativo” haveria a observar na realidade exterior.
Na linha de Clifford Geertz, os aspectos da violência que serão descritos neste
capítulo, centram-se numa realidade microscópica, longe de abarcar toda a
problemática curda, em que os “ factos pequenos”, neste caso, os fenómenos sociais,
de súbito, irrompem na realidade social, podendo “relacionar-se a grandes temas”61.
Desde que cheguei a Ancara observei, na sua forma gradual e propícia à
ingenuidade de quem não conhece as regras de um lugar antes de situá-lo
no tempo (e diga-se, também no seu contexto espacial), a crescente tensão
social, emergente na Turquia desde o Verão do Gezi Park, em 2013.
Para mim, a observação do fenómeno das mobilizações sociais começou
em Dezembro (duas semanas após a minha chegada ao terreno), mais
precisamente no dia 25, o dia de Natal católico, não tendo este expressão
alguma no terreno, à excepção dos slogans capitalistas ocidentais, e luzes
cintilantes de natal à venda em bazares turcos.
Observo diariamente, no regresso a minha casa, localizada perto do
centro e num bairro curdo, as várias manifestações que se agrupam. Para 60 Green Linda, op. cit., pág. 108. 61 Geertz, Clifford, A interpretação das culturas, 1989, pág. 17.
34
minha estranheza, a maioria de carácter nacionalista e ultranacionalista,
o que é precisamente o oposto daquilo que esperava encontrar no terreno.
Na realidade, o fenómeno frustrou parte das minhas expectativas.
Cercada de slogans nacionalistas e ultranacionalistas, a presença da
polícia e dos “toma” (palavra turca que designa os tanques da “polícia
turca” que agride violentamente a população com jactos de água e gás
lacrimogéneo) vai também crescendo na cidade, pouco a pouco.
O primeiro choque com a realidade foi precisamente o “elemento
surpresa” e a frustração de encontrar nas ruas uma “ direita” organizada
e não a facção de “esquerda”. Fazer trabalho de campo, com as suas
emoções e desejos expectantes, segue uma ordem muito próxima com a
vida e as relações humanas; frustram-se muitas vezes as expectativas e
também muitas vezes as projecções e análises sociais subjectivas que
construímos sobre a nossa realidade exterior. No entanto, não coloquei de
parte, nem o imprevisto nem as contradições e as ambiguidades sociais
que, à partida, eu já sabia que ocorriam no terreno62.
A Antropologia moderna, situada e localizada, surge entre a conjuntura dos
efeitos de pós-segunda guerra mundial e a consolidação de um modelo capitalista em
franca expansão nos países periféricos europeus, perspectivando as contingências e as
divergências históricas e sociais como instrumento de observação, mas também de
reposicionamento teórico das noções de cultura e de sociedade. Esta reapropriação da
realidade na análise da historicização dos espaços sociais, revela-nos dificuldades
consideráveis na sua reinterpretação face aos acidentes históricos e à sua
imprevisibilidade. A previsibilidade histórica (e dos projectos ideológicos dos
estados) é também ela imaginada e pode, muitas vezes, sofrer a interferência de uma
hiper-realidade baumaniana que se sobrepõe à rotina quotidiana regular,
institucionalizada pelos agentes sociais, interferindo nas escalas sociais e estendendo-
se também aos seus “outsiders”, como o são os estrangeiros, mesmo que cientistas
sociais no terreno em conflito. Foi este o caso do meu trabalho de terreno, em que a
interferência na realidade, manifestada pelo terrorismo generalizado por parte do
estado turco interrompeu e interferiu na orientação do meu objecto de estudo,
provocando uma viragem de atenção para uma nova realidade ( ou destrinçar de uma 62 Excerto do meu diário de campo, Ancara, Dezembro 2013.
35
outra camada social), surgida, entretanto, na Turquia. Esta eclode com o fenómeno da
violência social em resposta à realidade social opressora do estado a partir do Verão
de 2013, fenómeno espalhado por mais de 30 cidades na Turquia, sendo
especialmente intenso nas cidades de Istambul, Ancara, Adana, Samsun e Izmir.
O antropólogo Miguel Vale de Almeida63 alerta para as questões que implicam
a estadia do antropólogo em territórios de conflito, onde os actores estão em
“situação de opressão” ou “ falta de poder” e, de súbito, a observação participante e a
produção de conhecimento científico é confrontada e inserida em componentes de
sistemas diversos e inter-relacionados entre si. Devido à imprevisibilidade da
realidade, a figura do antropólogo surge para o autor, também como cidadão e actor
social consciente, incentivado, por vezes, a confrontar-se e a envolver-se numa
formação política que gera, no âmbito da antropologia reflexiva, (que se debruça
sobre si mesma), um círculo hermenêutico, que dispersa, reformula e readapta o
próprio paradigma de estudo, colocando o antropólogo no terreno como testemunha
da realidade em que está presente.
Face à nova epistemologia da realidade social que se expandia, o meu projecto
de estudo tornou-se, assim, produto de uma readaptação na chegada ao terreno,
aproveitando e vivenciando um contexto diferente das expectativas da origem do
projecto que delineara em Portugal, obrigando a uma readaptação do meu paradigma
às circunstâncias que me aguardavam.
Ao partir para a Turquia, o propósito que me levava ao terreno era a atenção ao
fenómeno “Gezi Park”, marcado pelos protestos sociais no Verão de 2013,
estendendo-se este por 3 meses, e evidenciando uma posição forte de resistência por
parte dos movimentos de esquerda e de outros grupos culturais. O fenómeno do “Gezi
Park” marcou a sociedade e expressou-se como um conjunto de protestos à escala
global no país, colocando a Turquia em estado de emergência entre os meses de Maio
e fins de Julho de 2013. O fenómeno social dos protestos teve como resposta a forte
repressão policial estatal, e o crescendo de políticas autoritárias (na tentativa de
reforço nacionalista) contra os manifestantes e diversos colectivos por parte do
governo do AKP. Esperava, no terreno, poder observar o produto social destes em
primeiro lugar, num contexto de crescimento económico, em que o modelo capitalista
63 Almeida, Miguel Vale de, Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania,pp. 45-46, 2004.
36
servia como pano de fundo aos protestos. Esperava também conseguir interpretar a
forma como o modelo secular e europeu do país geria o ressurgir do modelo islâmico
na sociedade e os pontos de encontro e de partilha entre os vários grupos sociais
distintos, estando particularmente desperta para a sua relação com os grupos étnicos.
O instrumento ou o guião para poder observar essa realidade centrava-se precisamente
no campo dos movimentos sociais de esquerda, dos vários grupos organizados em
torno dos protestos, concentrações ou acções locais, das associações e ong’s para que,
dentro deste sistema referencial, conseguisse interpretar as formas como geriam os
seus interesses e valores sociais que convergissem num objectivo comum: a
revindicação de um sistema democrático numa sociedade cujo modelo religioso
ressurgia em oposição ao modelo europeu (secular) e interferindo regularmente no
domínio público e privado. Esse ponto de partida, considerando que teria um tempo
muito limitado no terreno (apenas quatro meses), era afinal um “caminho imaginado”
e como tal, bastante complexo para um trabalho de projecto. Defini como principal
instrumento de trabalho, a observação participante, a leitura e a compilação de
documentação e de obras relacionadas com o paradigma de estudo no centro de
investigação Insan Haklari Gundemi (Human Right’s Agenda), em Ancara, na recolha
de entrevistas, e por fim, o uso do diário de campo como necessidade epistemológica
de consolidar e marcar o presente vivido e experienciado, face a uma realidade
fragmentada em terreno instável, sendo que nem todos os excertos foram escritos de
imediato, após a realidade vivida.
À chegada, a realidade instável no terreno comprovou-se como tal, mas com
variantes nos acontecimentos imprevisíveis que a sociedade atravessava, o que fez
que a minha atenção se desviasse para outras dimensões da sociedade. O interesse
pela questão nutriu-se nas circunstâncias do próprio projecto, pois vários dos meus
colegas curdos, são académicos e activistas na área dos direitos humanos, permitindo-
me uma integração rápida numa rede social académica curda em Ancara. Por outro
lado, o facto de ter ido viver, acidentalmente, para um bairro curdo, posicionou-me
num lugar privilegiado, lugar esse em que poderia estar atenta e integrada no micro
universo curdo. As circunstâncias proporcionaram que não desperdiçasse a
oportunidade de desenvolver o meu interesse pela questão curda, sendo que me
apercebi, de imediato, que na realidade turca o denominado “clima de paz” com os
curdos, oficializado em 2012, com o cessar de armas por parte do movimento do
37
PKK, era também ele ínvio nas suas interpretações institucionais e na vivência
quotidiana.
Outra nova interferência no estudo foi a própria circunstância histórica, que,
num segundo plano ou numa segunda escala, passou pela observação de que o clima
de paz e a relação dos agentes sociais turcos na dialéctica com os seus restantes
grupos culturais (estando incluídos nestes, os curdos, arménios, judeus, cristãos, e
outras facções da corrente do Islão) com o estado passava também ele por um
processo de transição problemático levantado por questões políticas, jurídicas e
religiosas na sociedade.
No dia da Mulher, a euforia estava instalada um pouco por toda a parte.
Em Istambul, as ordens foram no sentido de a polícia boicotar a
manifestação das mulheres. Elas saíram em força de casa, mulheres de
todas as idades, classes sociais, religiões e origens étnicas e houve um
confronto físico entre a polícia e as mulheres. As mulheres eram às
centenas de milhar na rua e empurravam a polícia e os seus escudos pela
rua Iskitlal fora, mesmo no centro de Istambul, dispersando-os e pondo-os
em fuga. Nesse dia não usaram gás lacrimogénio, até porque havia muitas
mulheres muçulmanas na rua a reivindicarem os seus direitos e a
comemorar o dia da mulher64.
Paula Godinho65 recomenda ao antropólogo no terreno que, perante o seu
paradigma de estudo, deve estar atento às diversas escalas de observação (do
fenómeno social total) em que se encontra simultaneamente inserido. Na observação
de um fenómeno social no terreno, a autora questiona as várias dimensões sociais (as
factuais, mas também as simbólicas) que se representam ou manifestam nos locais
(como localismos), mas que também se podem deslocalizar e estender-se a outras
escalas: as regionais, nacionais ou transnacionais, produzindo e criando o efeito de
lutas fronteiriças66. Dessa forma, as questões epistemológicas (como estabelecer
significados e relações entre os fenómenos observados) da interpretação dos
64 Excerto do meu diário de campo, Ancara, Dezembro 2013. 65 Godinho, Paula, Antropologia e questões de escala: os lugares no mundo in Arquivos da Memória: Antropologia e questões de escala e memória, nº2, Nova Série, Centro de Estudo de Etnologia Portuguesa, 2007. 66 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág.72.
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fenómenos do todo pela parte versus a parte pelo todo tornam a observação no terreno
um fenómeno complexo, translocal e dimensional nas várias escalas em que ocorrem:
“O argumento metonímico, que assimila sem ambiguidades a parte ao todo, não introduz uma reflexão sobre as incidências empíricas e teóricas da variação de escala e deixa escapar sem subtileza modalidades de diferenciação por grupo económico e social, estatuto, género ou idade em contextos diferentes e em conjunturas diversas”67.
Paula Godinho relaciona desta forma os fenómenos locais que produzem lutas
transfronteiriças, (por isso desterritorializadas), com os fenómenos globais, ao mesmo
tempo que alerta para as diferenças locais (e por isso também para as diferenças entre
os localismos) porque estes na sua visão parecem estar associados à parte e não ao
todo68. A autora, na linha do sociólogo Boaventura Sousa Santos, levanta a questão
das relações entre os macro-processos (que ocorrem à escala global) e de como estes
afectam as localidades ou localismos, operando estes mesmos localismos em relação
ao global nas relações e redes que se constituem com grupos translocalizados69.
Os processos dos localismos ligam-se por isso aos processos globais, e o
antropólogo no contexto das sociedades em situação de opressão em que a força
opressora procura bloquear ou evitar ambos os modos operativos, tende também a
produzir efeitos transfronteiriços como estratégia que enfatiza o surgimento dos
grupos translocalizados referidos por Paula Godinho.
A par destas duas dimensões, ou escalas, entre o local e o global e como estes se
manifestam holisticamente na sociedade (em que a visão da parte pelo todo e vice-
versa não pode ter uma conduta linear), outras escalas e dimensões influenciam o
contexto sociopolítico turco. O conflito curdo, podendo ser perspectivado como a
“parte no todo”, em vez de se considerar como questão exclusivamente local, tem-se
fundido (ou globalizado) no conflito turco.
Uma segunda dimensão política e externa, numa escala transnacional, interfere
em ambas as realidades (ou culturas): o aceleramento da realidade perante os conflitos
nos países vizinhos, nas questões relacionadas com os seus intercâmbios de recursos
naturais e petrolíferos, nomeadamente no Iraque e na Síria.
67 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág.79. 68 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág. 73. 69 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág.79.
39
Relacionadas com estas duas escalas, uma terceira escala dimensional, a
internacional, surge também com a Europa, manifestando-se nos discursos hostis do
governo turco contra a Europa ou contra os modelos sociais seculares, relação que só
é explorada neste estudo no que respeita ao passado, até ao final do século XX, em
que é refundado com o AKP um modelo secular, assente nas propriedades religiosas,
actualmente ambíguas nos seus fundamentos e propósitos políticos, recriando a
problemática do Islão como fundamento jurídico disfarçado ou camuflado da sua
agenda política.
Assim, para Miguel Vale de Almeida, a metodologia do trabalho de campo com
observação participante é conducente a uma descrição e análise dos factos sociais
como componentes de sistemas, subsequentemente comparáveis entre si70, em que os
localismos e globalismos operam num sistema holístico, mas fragmentado em várias
escalas.
Os relatos que aqui apresento, no contexto da escrita do meu diário de campo,
poderão ser perspectivados como um processo de relegitimação de experiências
comuns, estas vividas e partilhadas em terreno, e também vinculando o sentido do
antropólogo como testemunha, da tentativa de inversão e reversão dos poderes
surgidos do governo, na forma como as vivências reactivas socialmente tendem ou
procuram quebrar a lógica de uma estrutura vertical, reconstituindo para si um modelo
horizontal de reivindicação.
3.2 A morte de Berkin Elvan.
Foi num dia de semana aparentemente normal, no dia 11 de Março de
2014, uma terça-feira, que a Turquia despertou em alvoroço e entrou em
confronto com as autoridades.
Berkin Elvan, um adolescente de 15 anos, que tendo saído da sua casa em
Istambul, por entre os protestos, para ir comprar pão para a mãe
incapacitada em casa, foi “acidentalmente” alvejado com uma lata de gás
lacrimogéneo na cabeça. Após o incidente, no âmbito dos protestos do Gezi
70 Almeida, Miguel Vale de, op. cit., 2004, pág.15.
40
Park, a criança foi internada, ficando em coma durante 8 meses. Morreu
no dia 11 de Março de 2014, contra as expectativas de todos os que
acreditavam que Berkin, de forma heróica, iria sobreviver, ao contrário
dos outros oito mortos do verão anterior. Tal não aconteceu.
Nesse dia e no final da tarde, em Ancara, não sendo meu hábito, apanhei o
autocarro, porque estava com pressa. Pela janela, apesar de nada ainda
estar a acontecer, observei um desfile de tanques militares, que no meu
imaginário cinematográfico, só achava possível acontecer num cenário de
golpe militar ou de guerra. Chegando ao centro da cidade, já
acompanhada do meu amigo desço do autocarro, e mal ponho o pé em
terra, uma multidão corre na minha direcção. Mães com crianças, idosos,
jovens encharcados correm pelas ruas, os gritos são ensurdecedores.
No meio desse caos, não posso correr, porque sei que é uma atitude
suspeita para a polícia turca, que pode resultar em detenção, por isso
começamos a caminhar rapidamente para o Eskici, um bar/ associação que
frequentava no centro, que fica localizado num terceiro andar, onde nos
poderíamos esconder.
Lá dentro, o dono do bar chama as pessoas para o abrigo e desliga todas
as luzes do bar, para a polícia não entrar, apesar de ser um terceiro andar.
O cenário que vejo no interior é lastimável. Pessoas que tinham levado
com a inevitabilidade do gás lacrimogéneo nas ruas, estão aflitas e de
olhos vermelhos, tentando acalmar as dores das inflamações causadas pelo
efeito do gás. Entrego as toalhitas que tenho na mala ao meu amigo e às
pessoas em meu redor.
A partir desse momento, as horas desfilam por nós, e o lume do “cenário
de guerra” mantém-se aceso e intenso nas 6 horas seguintes. Dentro do
bar mantém-se o clima de gritos, telefonemas, choque, e sinto-me como
todos os outros, uma espécie de voyeur, impotente e barricada num bar
enquanto todos os outros na rua são agredidos violentamente…
A violência que ocorre na rua é cíclica. Quando a polícia entra na rua a
gasear e a lançar água, todos desaparecem automaticamente das ruas,
41
escondendo-se em bares e cafés. A polícia, tentando que eles saiam para os
prender, gaseia os bares através das janelas. Mas ninguém sai.
Logo que a polícia desmobiliza, as ruas enchem-se de multidões que saem
dos bares e constroem barricadas com pedras da calçada, mesas e
cadeiras de cafés, tábuas e caixotes de lixo já destruídos, que põem a arder
nas ruas, protegendo-se e tentando impedir que a polícia volte. Mas a
polícia regressa, destruindo tudo, dispara balas de borracha e continua a
gasear as ruas e os cafés em nosso redor. As pessoas escondem-se
novamente e quando a polícia se afasta, regressam às ruas para
reconstruir barricadas. Tudo ocorre a uma velocidade incrível; são
segundos que definem a violência da “ polícia turca” e a resistência da
população de Ancara. São também maioritariamente jovens que quando
abandonam os bares reenviam as latas de gás, devolvendo-as à polícia.
Nas horas seguintes, persistem na construção de barricadas.
Decido que não ficarei ali presa mais tempo, e cansada, começo a pensar
em estratégias, a observar as fugas e as estratégias dos outros, que
começam a ficar igualmente fartos, aumentando o desejo de todos nós no
regresso a casa. Faço duas tentativas para sair, sempre que a nuvem de
gás se distancia, frustrando-se ambas, no constante regresso da polícia e,
consequentemente, no nosso regresso ao bar.
Por fim, passado mais uma hora, as ruas deixam de estar encobertas pelo
gás, mantendo-se os cordões de polícia a fechar todas as ruas. Decidimos
arriscar e sair. Andamos na rua em direcção à polícia, calmamente e
aconselhados a não falar nem inglês nem português, livres de suspeitas ou
pretexto de detenção por organização reivindicativa estrangeira/
europeia.
Logo que passamos a polícia, entramos numa rua que está repleta de gás e
receando levar com uma lata ou ser atingida por uma explosão, corremos
para dentro de um táxi que circula aleatoriamente no meio do caos. Dou
ao taxista a direcção de casa e, por fim, respiramos de alívio.
O taxista não fala, está visivelmente perturbado e em choque, mas conduz
com prudência e hipnotizado por aquela atmosfera.
42
Ao descermos a rua, apercebo-me que há fogueiras espalhadas no meio da
estrada, que o táxi as vai circundando calmamente, enquanto os “Toma”
(palavra turca que designa os tanques que lançam água e gás
lacrimogéneo) turcos circulam a gasear tudo o que passa à frente, em
contra mão, na nossa direcção. Começo a aperceber-me que posso ter
tomado a decisão errada, devia ter ficado no bar, mas o taxista não tem
qualquer hesitação em continuar o percurso e levar-nos a casa.
Manifestantes surgem ao mesmo tempo e boicotam as ruas, colocando-se à
frente do nosso táxi, impedindo, assim, o nosso regresso. O cansaço pede-
me novamente que descambe por fim, mas o taxista para o táxi, tranca as
portas, não insulta os manifestantes nem confronta a polícia. Aguarda.
Mantém-se calmo. Estamos num ponto morto do tempo.
Algum tempo depois, os manifestantes apercebem-se que o taxista está
solidário e deixam-nos passar. Nos cinco minutos seguintes, ainda no
regresso a casa, três forças opostas estão em tensão na rua, os
manifestantes, (que incluem todos o que são apanhados desprevenidos,
passando de imediato à categoria de “manifestantes terroristas”), a polícia
e a carga dos “toma”, e os camiões de lixo que os seguem, limpando de
seguida e de forma automática a destruição resultante dos motins,
recolocando as pedras da calçada nos passeios.
Chegamos por fim a casa, pago 7 liras71 ao taxista e no nosso silêncio,
observo no seu rosto toda a frustração da realidade política: a evolução de
um conflito, o sofrimento e a indignação perante a violência que nos
colocava a todos na posição de “terroristas” e impotentes numa realidade
cada vez mais instável. Afinal de contas, a contenção dos turcos tinha
chegado ao fim, e o ciclo de protestos explodiu da forma mais violenta, na
vontade de resistir e de vingar a morte de Berkin, que se iria transformar
num símbolo de resistência do fenómeno Gezi Park72.
A partir do exemplo do ressurgimento dos protestos, e após um intermitente e
aparente intervalo no fim do “Gezi Park” em Julho de 2013, este operando a grande
escala e tendo como ponto de partida a praça Taksim (localizada frente ao jardim 71 3 Euros. 72 Excertos do meu diário de campo, Ancara, Março de 2014.
43
Gezi em Istambul) , estes ressurgem a pretexto da morte de um adolescente. A sua
morte rompeu com o impossível no imaginário dos agentes sociais e espalhou a
indignação e o desejo de resistência num fenómeno local. A morte local tornou-se
repentinamente global, expandindo-se por períodos de protestos que duraram semanas
em várias regiões e cidades da Turquia. O fenómeno da morte de Berkin trouxe
também consigo várias campanhas internacionais europeias contra a repressão policial
turca e convocou o apoio de vários académicos, (contando com Noam Chomsky como
um dos principais interlocutores da campanha), artistas europeus e americanos,
atravessando as fronteiras e transgredindo os limites simbólicos (da repressão policial
operante ao nível regional) impostos pelo estado.
Na visão de Boaventura Sousa Santos, os multiculturalismos tendem a ser
perspectivados numa linha cosmopolita. Tendem a modificar e a alterar os padrões
dos laços sociais em contextos repressivos, porque resultam do efeito que o global
tem no local. Os globalismos localizados são por isso uma resposta ao conjunto de
problemáticas sociais, surgidas com a globalização: “Os conflitos, as resistências, as
lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do património comum da
humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é na verdade um
conjunto de arenas de lutas transfronteiriças73”.
Na verdade, em 2013, o “Gezi Park” (nome da campanha internacional) foi um
pequeno protesto (que se expandiu depois na forma de localismo globalizado) e que
surgia como defesa do parque central de Istambul contra o excessivo peso das
medidas neoliberais no país e das políticas de gentrificação da cidade. O processo de
gentrificação tinha a finalidade de destruir o último jardim da cidade para ali construir
um centro comercial. O protesto localizado no jardim Gezi (não tendo sido ainda
destruído, mas ocupado até à actualidade pela polícia, evitando futuras acampadas por
parte dos colectivos), não teve inicialmente mais de uma centena de apoiantes, sendo
um micro protesto incentivado por associações ecológicas. Ao protesto localizado
surgiram nos dias seguintes vários núcleos de apoio, justificados pela brutalidade
policial sentida no primeiro dia contra os manifestantes. O “efeito borboleta”
manifestou-se no segundo dia no jardim Gezi quando a repressão policial eclodiu. De
um primeiro protesto ecológico, o efeito foi explodindo a grande escala.
73 Santos, Boaventura Sousa, Por uma conceção multicultural dos direitos humanos, 1997 pág.131.
44
Berkin Elvan, por fim, despertou a memória social dos vários colectivos e
sociedades políticas para o fenómeno social ocorrido no Gezi Park, mas também
serviu como memória política reivindicativa contra as políticas capitalistas neoliberais
nos espaços cosmopolitas. No ressurgimento dos protestos desencadeados pela morte
do jovem turco os espaços públicos transformaram-se em arenas de lutas
transfronteiriças74: um globalismo localizado que, por inserir num modelo ideológico
transnacional as questões do capitalismo e ambientalismo, fomentou várias
manifestações de solidariedade em vários países europeus. Estes protestos locais e
globais manifestaram-se em territórios simbólicos (as cidades alteradas pelo
fenómeno dos protestos e redefinidas pelas reivindicações políticas) e possibilitaram
aquilo que Paula Godinho denomina como identificações colectivas sobre os
espaços75. O sítio antropológico é o lugar da observação da realidade ou do fenómeno
social, onde as várias escalas operam e ocorrem, integrando e interligando entre si
outros fenómenos:
“Um sítio antropológico permite aceder às particularidades locais ou de âmbito restrito, constituindo uma forma de evidenciar as pressões externas num nível localizado. A segunda perspectiva implica uma visão exterior das tendências gerais de âmbito translocal, recolocando o local de forma comparativa”76.
O denominador comum entre os diversos grupos culturais na luta por uma
descentralização de poder (ocorrida com o crescente efeito do modelo capitalista e
fruto do modelo neoliberal) encontra-se nas ideologias contra-hegemónicas,
inspiradas muitas vezes nos globalismos localizados trazidos pelo modelo
cosmopolita. No entanto, e na linha de Boaventura Sousa Santos, os globalismos
localizados não implicam nem diluem as suas diferenças nos contextos específicos
onde estes fenómenos globais operam. Por fim, as respostas externas aos fenómenos
sociais globalizados estão sempre dependentes e têm sempre uma condicionante
exterior que nelas opera e age: as respostas governamentais às suas reivindicações
sociopolíticas.
74 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág. 76. 75 Godinho, Paula, op. cit.,2007, pág. 76. 76 Godinho, Paula, op. cit., 2007, pág. 68
45
3.3 O Terrorismo policial e a repressão irrompendo como fantasia política versus
resistência.
O método experimental em terreno nem sempre nos traz a possibilidade de
análise comparativa (imediata) na maioria das situações. Porque a
experiência é efémera e também ilusória. Mas aquilo a que assistia
diariamente era claro aos meus olhos. Uma violência desmesurada sobre
a população, usando a impetuoso rigor bélico como castigo, tentando
evitar uma futura fragmentação social, no despertar reivindicativo do
espírito do Gezi Park. Não será cientificamente correcto da minha parte
utilizar o termo “ guerra”, quando ele se revela apenas num conflito
ambíguo e sem possibilidade de identificar colectivos. Mas questiono, no
entanto: Qual é a fronteira entre o conflito e a guerra? Se no conflito se
recorre ao terrorismo armado contra uma população que é gaseada nas
suas rotinas, ao sair do metro ou do autocarro, ou à saída do trabalho
projectada com jactos de água, mesmo já tendo provocado acidentes
mortais. Como classificar este tipo de acção se a “vítima “ou o alvejado
não tem oportunidade de preparar a sua resposta, antes de ser castigado?
O que é, senão um conflito, quando a polícia atira gás lacrimogéneo para
dentro das casas e grita às mães que gritam pelos filhos: “Espero que os
vossos filhos morram!”. E o que é senão uma “guerra” quando, de facto,
a polícia assassina adolescentes, como o caso de Berkin Elvan, quando
estas saem à rua para comprar pão? O que é, se nessa “guerra
unilateral”, a polícia armada de tanques e armas químicas dispara contra
jovens e adultos, claramente não muçulmanos, que correm por entre a
multidão e os agarram, espancando-os violentamente? E que sentimento
macabro existe numa polícia que corre atrás de raparigas estudantes com
roupas ocidentais, em que a ordem é espancá-las, porque os turcos
“devem ser” muçulmanos. Na verdade, para o meu método experimental,
durante os protestos, os termos “conflito” ou “guerra” de nada me
serviam. Nunca poderei comprová-lo numa situação concreta, mas o
termo “terrorismo” legitimado por uma ideologia nacional radical
parece-me o mais apropriado. Se para haver conflito é necessário a
46
existência de uma provocação e se para haver uma guerra têm que existir
agentes sociais, colectivos e grupos organizados, como e quando se tornou
o Terrorismo um intermediário entre a fase do conflito e a da guerra77?
Linda Green, no seu estudo sobre os actos de resistência na Guatemala, aborda
o paradigma do terrorismo como uma “condição crónica”, que facilmente se pode
naturalizar ou instituir nas sociedades. O medo expande-se através do terrorismo e é,
do seu ponto de vista, uma resposta individual e social orgânica ao perigo que
representam as estruturas e os mecanismos de violência, que visam moldar os grupos
e os seus agentes a respostas sociais que, muitas vezes, podem desencadear
fenómenos opostos aos da resistência. Na interrupção forçada das relações sociais e
comunitárias, o medo revela-se eficaz ao transformar-se num “arbitrário do poder”,
manifestando-se de forma imprevisível e condicionando de modo quase absoluto a
vida social, podendo mesmo levar a actos de passividade e de conformismo social78.
O impacto da questão curda (e o paradoxo da sua integração social), no
contexto do terrorismo alargado à sociedade, apelando a uma resistência bilateral (ou
seja, apelando a uma solidariedade social, mesmo que ambígua) não deixou de estar
sob o meu olhar. A participação dos grupos étnicos, activa na mobilização social, não
revelava situações de separatismo nas reivindicações. A questão reformulada, no
novo contexto, passou por questionar e observar também, como as reivindicações da
identidade “ turco-muçulmana”, serviam de pretexto à luta reivindicativa de outros
grupos sociais, e como é que essa mesma instrumentalização do conflito turco
poderia servir de contexto favorável aos curdos. Estranhamente, tornava-se
transversal o reencontro ao paradigma imaginado que já tinha abandonado no
terreno: os movimentos seculares e islâmicos de esquerda em desafio contra a força
opressora do governo. Desta forma, os paradigmas, o curdo e o turco, uniram-se
numa forte contestação nas ruas de Ancara e de Istambul, as duas cidades em que
circulei por várias vezes no terreno.
Concretizada a fantasia de estado no controlo e manipulação de massas,
ganhou expressão o conflito civil diário com a polícia, os crimes beneficiando de
impunidade absoluta, e por fim, uma atmosfera de tensão nos espaços públicos. O
terrorismo como expressão microscópica de um fenómeno social maior em
77 Excertos do meu diário de campo, Ancara, Março de 2014. 78 Green, Linda, op. cit., pág. 108.
47
sociedade, expresso através da violência cíclica, cruzou-se no meu caminho, e não
deve, por isso, ser deixado à margem daquilo que é uma pesquisa situada e
dependente das várias dimensões da sociedade: a questão curda na sua relação com o
estado turco, após o conflito militar; e por outro lado, a questão turca e dos grupos
étnicos, que juntos vivem a mudança de paradigma estatal e governamental que
procura guiar a sociedade centralizada no interior de um modelo estatal secularizado,
em oposição às fortes islâmicas do seu governo.
A configuração nacionalista do estado turco e as modalidades opressoras
descritas no diário de campo, consolidaram-se no terreno através do crescendo dos
conflitos diários com o sistema paramilitar, revelando e indicando-nos que os
postulados ideológicos do estado moderno turco não correspondem nem saciam os
desejos e expectativas dos agentes sociais em relação ao estado como projecto social
secular. Futuramente, importa apurar como as solidariedades sociais poderão recriar
padrões históricos do passado, a que, nomeadamente, no caso dos curdos, serviram
durante tanto tempo, como escudo às ameaças externas e, por fim, na construção do
enredo cultural e ideológico da actual sociedade turca.
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IV – DA HERANÇA DOS NACIONALIMOS AO MODELO DE
DEMOCRACIA PARCIAL NO CONTEXTO TURCO
“Se olhares para a história dos direitos humanos na Turquia, verás que é a história do movimento social das vítimas. Cada vítima encontrou o seu próprio espaço associativo, a sua ONG. Por exemplo, o movimento de Direitos Humanos curdos na Turquia foi oprimido até 1986, após o golpe militar, e toda a plataforma das ong’s foi destruída depois dos anos 90. As primeiras eleições, na sequência do golpe de estado, ocorreram em 1983, e em 1986 surgiu novamente a primeira ONG, após os anos 80. Ao longo do tempo, a prioridade tornou-se a questão curda, que está agora em processo de paz, o que nos deixa muito esperançosos”79.
4.1. As impossibilidades jurídicas/constitucionais curdas - as entrevistas como
voz da sua reivindicação.
Sobre a possibilidade das culturas se afirmarem livremente no espaço
nacionalizado, Homi K. Bhabha aponta que, em termos antropológicos, a corrente
pós-colonialista procura as fórmulas e os efeitos de alteridade nos grupos culturais,
destrinçando os seus hibridismos e modelos sociais, pois esta constitui a dimensão
simbólica da identidade social e cultural na qual o antropólogo se deverá centrar80.
Em “Nações e Nacionalismos” 81, Eric Hobsbawm define o espaço nacional
como um sistema fechado. Este sistema fechado, ou espaço nacionalizado (delimitado
pelas fronteiras geográficas), dificulta por vezes, a consolidação das identidades
diferenciais no mesmo território e fecha a possibilidade de neles irromperem
corporações autónomas e sistemas intermediários, com tendência a fechar as
fronteiras na tentativa de as tornar impenetráveis.
O caso cultural dos curdos, enquanto grupo repartido por vários estados, grupo
cultural intangível na linha de Valdimar Tr. Hafstein (2007), integra-se no fenómeno
do apogeu dos nacionalismos, após as duas guerras mundiais, entre 1918-1950, que
foram transformando e constituindo as nações como economias nacionais rivalizando
e competindo entre si, com o fim de excluir, isolar e deslocar os grupos culturais
79Günal Kursun, entrevista realizada na sede do centro de Investigação Human Right’s Agenda, Março de 2014 (ver origem da entrevista em Anexos (nota 1). 80 Bhabha, Homi K (1994), The Location of Culture. London & New York: Routledge, pág. 173. 81 Hobsbawm, Eric, Nações e Nacionalismos desde 1780, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.
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nesses mesmos espaços nacionalizados: “O que restou do antigo liberalismo
libertador e unificador? Para a maioria das nacionalidades, restaram as minorias sem
redenção fora das fronteiras do estado nacional”82.
A actualidade das reivindicações sociopolíticas do grupo cultural curdo, já
perspectivada no capítulo histórico sobre as suas rebeliões ao longo dos séculos,
revelou-se contínua desde a queda do império otomano. O grupo cultural curdo tem
por isso sido marcado por um conjunto de fenómenos complexos e extensos. A guerra
civil, no passado mais recente, traz aos curdos, no campo da análise social, uma nova
liminaridade nos termos dos êxodos ocorridos por todo o país, mas também sob a
ameaça da sua extinção ou descontinuidade cultural83. A negociação do processo de
paz, em 2002, trouxe ao estado turco uma maior exigência84 no que concerne à
problemática dos direitos humanos no país, mas também no que concerne à integração
sociocultural do grupo cultural curdo, tanto nas zonas fronteiriças, como nas grandes
cidades e nas áreas periféricas.
Este capítulo contempla uma compilação de entrevistas de carácter
institucional, realizadas a professores / assistentes universitários, nas áreas das
ciências sociais e políticas, a dois advogados fundadores da Human Right’s Agenda,
co-fundadores da Amnistia Internacional em Ancara, e também docentes
universitários na área do Direito. A sua posição face às questões colocadas (sobre a
impossibilidade constitucional curda no país) apresenta o corpo jurídico como um
instrumento ideológico nacionalista que contribui para a repressão institucional do
grupo cultural curdo. Como enclave histórico, o grupo cultural curdo vive entre o
paradigma do uso dos modelos seculares e do modelo islâmico na sociedade turca. As
questões colocadas foram no sentido de interpelar os entrevistados (que permitiram a
divulgação das suas identidades) sobre a narrativa do estado turco quanto à relação
territorial e jurídica com seus grupos étnicos, numa primeira escala. Numa escala
macro-social, e mais abrangente, nas relações inter-étnicas do estado surgem outras
82 Hobsbawm, Eric, 1990, op. cit., pág. 167. 83 Bhabha, Homi K, op. cit., pág.173 84 Em Junho de 1993, o Conselho Europeu, reunido em Copenhaga, entre outros critérios, estabeleceu que a adesão à União Europeia só é possível quando o país que a solicita, no caso, a Turquia, assegura “instituições estáveis que garantam a democracia, o Estado de direito, o respeito pelos direitos humanos e a protecção das minorias.” in http://ec.europa.eu/agenda2000/overview/pt/agenda.htm
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variáveis ambíguas, como o secularismo multifacetado do estado e a dinâmica
transnacional europeia (ou seja, a Europa surgindo em campo como um intermediário
constitucional), como guião de uma reconfiguração ou institucionalização de um novo
quadro social, que procurou também influenciar num novo olhar sobre os grupos
étnicos, nomeadamente na questão da exclusão do grupo cultural curdo na sociedade
turca):
“Após a declaração da Republica turca, ocorreu uma revolução legislativa e a Turquia passou a adoptar outras leis, de outros países continentais europeus, tal como a lei cívica suíça, que foi adoptada em 1926, tal como o modelo do tribunal criminal foi adoptado de Itália, tal como as leis comerciais da Alemanha; e todo o sistema jurídico do tribunal constitucional foi adoptado de França e tudo isto ocorreu logo nos anos 20, em 1928 e 29, porque em 1929 foi adoptada a lei civil. Este foi o ponto de viragem para nos tornarmos um país de modelo continental, um país de lei europeia”85.
Foram propostos à Turquia vários os tratados internacionais europeus, que
defendem os direitos dos grupos ou minorias étnicas. No entanto, o modelo social
turco, apesar da implementação na constituição jurídica de uma “ lei europeia”, não se
oficializou como sociedade plural, assente numa estrutura social e religiosa
multiétnica.
“De acordo com o tratado de Lausanne de 1923, existem apenas as seguintes minorias étnicas: cristãos, arménios e judeus. Além destas três minorias religiosas, não existem mais minorias oficializadas na Turquia. Somos todos considerados turcos. Os curdos são considerados turcos, porque são muçulmanos. Todos os turcos são muçulmanos, segundo a lei. Por exemplo, há um número muito significativo de alevis, existem 20 milhões de alevis cá, até há estatísticas que dizem que são 25 milhões, mas segundo o governo turco o número é muito mais baixo, como é que isto é possível? Só os curdos são 30 milhões, oficialmente são só 5 ou 6 milhões, e ainda assim, os curdos são considerados turcos”86.
O tratado de Lausanne87 oficializou os vários grupos culturais que passariam a
integrar o estado turco, excluindo um dos maiores grupos culturais – o grupo curdo,
transferido para a dimensão de uma alteridade cultural. O incumprimento do critério
de Copenhaga88, isto é, constituindo um dos entraves, o não reconhecimento da
minoria curda pela Turquia, resulta da dificuldade histórica do estado turco em
contemplar na sua constituição jurídica, as principais e elementares reivindicações
85 Entrevista a Günal Kursun, Presidente da Human Right’s Agenda, ocorrida na própria sede em Março de 2014 na cidade de Ancara. Ver tradução em Anexos (nota 2,). 86 Salih Efe, Co-fundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista realizada em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Ver entrevista na língua original em anexos (nota 3). 87 A Turquia assinou este tratado no dia 24 de Julho de 1923, substituindo este o tratado de Sèvres. 88 Em 2006, a União europeia rejeitou a integração da Turquia devido ao incumprimento do critério de Copenhaga, baseando a sua decisão também a pretexto do conflicto curdo. (Maya Arakon).
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curdas. A resposta às questões legislativas influenciadas pelo modelo europeu é,
contudo, ambígua nos postulados práticos:
“É outra vez a mesma coisa. No papel, quero dizer, eles adoptaram toda a legislação de que precisávamos, mas ainda assim, não basta o impulso da União Europeia para mudar as leis; de facto, é a maneira como as perspectivas (as leis europeias) é que pode contribuir para a mudança. Acho que, também, estamos a divergir do modelo europeu. Há um modelo idealizado da união europeia, mas a forma como é implementado, isso é outra questão. Mas quando comparamos com o modelo totalitário e autoritário, é como escolher entre o melhor dos diabos, ou coisa assim”89.
Segundo Yael Navaro-Yashin, a repressão e a legislação contra a expressão
cultural linguística dos curdos foi um processo crucial para a descontinuidade cultural
curda. Significou uma perda identitária curda ao nível simbólico, intensificada
juridicamente entre 1928 e 1932, reforçada na década de 50 e, novamente, após o
golpe militar dos anos 80. O ano de 1982 foi decisivo no reforço constitucional dessa
perda, ao instituir o turco como língua oficial dos curdos, sendo proibidos a partir
desta fase, por exemplo, os nomes pessoais curdos. Todos os nomes curdos das vilas
da zona sudeste da Turquia foram substituídos por nomes turcos.
As proibições culturais e artísticas foram evoluindo ou retrocedendo de acordo
com o poder legítimo em exercício, mas foram claramente cristalizadas e definidas
sob a ideologia nacionalista e secular de Kemal Attaturk. A lei turca reforçou o
primado do nacionalismo (fundacional) sobre o primado do pluralismo étnico, após
três golpes militares (anos 60, 70 e 80) e, já na primeira década de 2000. Passo a
passo, foi aumentando a distância em relação à União Europeia, ficando por
regulamentar os direitos das minorias étnicas do país90:
“Na Turquia, oficialmente, se não és cristão, ou arménio ou judeu, então tens que ser muçulmano, senão fazes parte de outro sector. Se fazes parte doutro sector e és jafari, xiita ou alevi, não podes pedir absolutamente nada a este governo. Não podes querer ter o teu templo religioso, uma educação diferente, ou mesmo ter uma outra fé. Também não podes pedir o apoio para a tua educação que o sector sunita, por exemplo, recebe como apoio dos seus templos e mesquitas”91.
89 Natasha Nazan, Professora assistente em Ciências Políticas na Universidade de Humanidades, Çankaya na cidade de Ancara, Esta entrevista ocorreu na própria universidade em Março de 2014. Ver entrevista na língua original em Anexos (nota 4). 90 Navaro-Yashin, Yael (2002). Faces of The State: Secularism and Public Life in Turkey. Princeton University Press, pág. 10-12. 91 Salih Efe, Co-fundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista realizada em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Entrevista na língua original, em Anexos (nota 5).
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Para o politólogo Kerim Yildiz, não é só a exclusão dos curdos e de outras
minorias étnicas, mas são também outros casos ou situações de excepção que são
perpetuados, sendo o ataque aos partidos políticos curdos uma estratégia sociopolítica
antiga. O partido DEHAP, partido democrático dos trabalhadores, foi um dos visados,
tendo obtido, em 2003, 45% dos votos em 5 províncias curdas da região de
Diyarbakir, acabando, no entanto, por não poder colocar nenhum deputado no
parlamento, embora tenha recebido 6% dos votos nacionais. O artigo 81º do corpo
legislativo não permite que os partidos políticos defendam a oficialização das
minorias étnicas, e consequentemente, a regulamentação e aceitação dos seus
direitos92.
“Na minha opinião, como advogado criminal, a constituição está puramente em acordo com todos os países europeus. Digo-o como advogado e como defensor dos direitos humanos. Mas se és um indivíduo, em frente ao juiz, no tribunal, tudo muda. Significa, que às vezes, não vês a aplicação destes bons procedimentos. Às vezes, a interpretação dos juízes está sempre contra os grupos das minorias étnicas. O primeiro desafio passa pelo problema da interpretação. O outro desafio é a impunidade. Há alguns crimes contra as minorias étnicas. Os direitos das minorias estão estabelecidos de acordo com as constituições os tratados internacionais que a Turquia assinou, mas na prática, na maioria das vezes, não os aplicam. Na prática, é necessária uma reforma”93.
Kerim Yildiz escreve sobre a problemática social turca na interpretação jurídica
europeia, enquadrando a história recente (no quadro social do pós-guerra) dos curdos
na acção contínua do estado em confronto com os partidos políticos e os grupos
culturais pró-curdos. O HEP (Partido dos trabalhadores) foi particularmente visado na
tentativa de bloqueio do estado turco contra este partido. Numa primeira fase, foi
encerrado em 1991, ressurgindo em 1994 com o nome de DEP, (HADEP, ou o actual
HDP) partido democrático liderado na época por Leyla Zana, Hatip Dicle, Orhan
Dogan e Silim Sadak. Estes deputados foram condenados a 15 anos de prisão,
acusados de tentarem fazer ressurgir o partido e por suspeita de propaganda política
separatista. Esta condenação foi anulada pelo Tribunal dos Direitos Humanos, mas,
em 2003, o Tribunal Constitucional turco emitiu nova ordem de dissolução do partido
com uma acusação mais específica: suspeita de propaganda política de apoio ao PKK.
O partido foi novamente suspenso, tendo o Tribunal Constitucional decidido excluir
46 líderes do partido de qualquer tipo de acção política ou de participação civil
92 Yildiz, Kerim, Human Rights and Turkish accession: Human Right’s and the kurds, 2005, pág.17. 93 Salih Efe, Co-fundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista realizada em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Ver entrevista na lingual original em Anexos (nota 6).
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durante 5 anos. Simultaneamente, durante o processo de dissolução do HADEP,
surgiu outro partido pró-curdo, o DEHAP, que, também, foi dissolvido. Ainda no
mesmo ano, 2003, o Tribunal Constitucional Europeu dos Direitos Humanos advertiu
novamente o estado turco de que violara o direito à liberdade de expressão (artigo
11º), considerando a atitude do estado opressora e persecutória dos partidos pró-
curdos94.
As respostas dos advogados fundadores do centro de investigação Insan Haklari
Gundemi Dernegi e do departamento político da Universidade de Ciências Sociais e
Humanas de Ancara Çankaya University constituem um conjunto de considerações
sobre a linearidade do fenómeno do nacionalismo no postulado da segregação dos
grupos étnicos e das dificuldades, desde a década de 80, na participação civil, social e
política dos grupos e partidos políticos na defesa das suas reivindicações socio-
identitárias:
“Desde o início, desde o estabelecimento do governo turco, até aos dias de hoje, o sistema jurídico nunca foi independente e imparcial. Seja quem for que venha para o governo, eles vão entrar directamente no sistema legal, no sistema judicial, e em todo o sistema jurídico. Actualmente passa-se o mesmo. Nos últimos dez anos, em termos da criação de um sistema imparcial, nada mudou na Turquia. Nada. Sem uma mudança profunda na sociedade, sem mudanças no sistema legal acerca dos direitos das minorias, não podemos evoluir. É passo a passo, com instrumentos pacíficos e diplomáticos que podemos conseguir atingir os nossos objectivos. E a Turquia devia seguir as leis internacionais da convenção europeia para os direitos humanos neste assunto. Vivemos num mundo integrado, globalizado, temos interacções uns com os outros, não podemos agir individualmente, separados dos outros países ou de outras instituições internacionais”95.
No contexto político-social turco, como observa Kerim Yildiz, dos anos 80 aos
anos 90, com a dissolução do STP (Partido socialista), aplicou-se o mesmo critério e o
mesmo postulado nacionalista de exclusão curda em todos os sectores sociais. Ao
definirem o paradigma social curdo como um pretexto político-separatista, surge a
acusação oportuna de ameaça à integridade nacional justificando assim a exclusão dos
partidos políticos e da propaganda pró-curda em prol de seu reconhecimento e de
autonomização cultural. Os anos de 2003 e 2004, porém já distantes do conflito civil,
foram significativos no ressurgir da violência e da brutalidade do estado contra os 94 Yildiz, Kerim, 2005, 0p.cit, 17-20. 95 Natasha Nazan, Professora assistente em Ciências Políticas na Universidade de Humanidades, Çankaya, na cidade de Ancara. Esta entrevista decorreu na própria universidade em Março de 2014. Ver entrevista na língua original em Anexos (nota 7).
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curdos, pois 600 membros e apoiantes do DEHAP foram detidos e condenados em
Janeiro de 2004.
Em 2006, ocorreu uma viragem política importante com a mudança do sistema
eleitoral, ao proibir a existência de candidatos independentes, sob a suspeita de que o
STP (Partido Democrático, designado como DTP) ressurgisse e tentasse aceder ao
poder através de candidaturas independentes. Entretanto, a mudança do sistema
eleitoral falhou e, pela primeira vez, em Janeiro de 2007, 22 candidatos independentes
socialistas ganharam 22 lugares no parlamento.
A condenação europeia da política seguida pelo estado turco acentuou-se em
2007 e 2008, devido à crescente conflitualidade entre os partidos políticos turcos, com
as constantes mudanças legislativas e a reaplicação da “ lei anti-terrorismo” turca96,
visando proibir as campanhas dos movimentos sociais de esquerda no país,
impedindo-os de distribuir panfletos políticos, e inviabilizando, por exemplo, a
afixação de cartazes ou proibindo as manifestações, a pretexto da defesa da
integridade territorial turca97.
Entretanto, a oficialização do partido democrático turco, em 2007, surgiu no
rescaldo da desilusão do país face ao “não” europeu ao pedido de integração da
Turquia como membro da União Europeia. A sua fase anterior, ( entre os anos de
2004/ 2006) marcou um período de mudanças políticas e de optimismo colectivo não
só em relação aos grupos étnicos, mas também no que se refere ao respeito pelos
direitos humanos e às consequências positivas no domínio da liberdade de expressão:
“O gráfico dos direitos humanos esteve sempre a subir até 2004 e 2005. No início de 2006, sendo a Turquia um país candidato à entrada na União Europeia, esta abriu os portões. Depois do critério de Copenhaga disse: «Ok, podem tornar-se membros plenos da União Europeia se fizerem todo o vosso trabalho de casa.” Isto mudou todo o ambiente político na Turquia. A atmosfera política era fantástica. Nem conseguíamos acreditar que há três ou quatro anos tentavam fechar a nossa associação só por sermos uma ong de direitos humanos, e, em 2005, o ministro visitou a nossa sede. Mas após 2006, o gráfico de índice dos direitos humanos começou a descer. A Europa escolheu fechar os portões à Turquia. O ângulo europeu é o actor chave aqui. Por enquanto, no ano de 2014, podemos dizer que eu não vi nada de novo na área dos direitos humanos nestes últimos 5 anos. E neste ano, porque este é o ano de eleições, vi muitos passos atrás a serem dados. Neste momento, não estou
96 A lei anti-terrorista turca, em 1996, sofreu alterações no sentido de completar os requisitos dos direitos humanos e eliminar o sistema de tortura do seu sistema. Ver Yildiz, Kerim, 2005, op. cit., pág.22. 97 Yildiz, Kerim, 2005, op. cit., pág.20 a 24.
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optimista. Mas em geral, tenho a certeza que após eleições a atmosfera política vai mudar. Mas por enquanto digo que estamos pior do que em 2003”98.
Numa breve síntese da actual situação curda, Derya Bayir99 enuncia as várias
tentativas de transformação por parte dos partidos políticos e das entidades
académicas, nos últimos anos, visando o reconhecimento social da cultura curda. Um
dos mais significativos avanços políticos foi através do BDP (Baris Ve Demokrasi
Partisi), o partido da paz e democracia que, em 2012 e 2013, apresentou quatro
propostas para a auto-determinação regional curda na zona sudeste da Turquia na
região de Diyarbakir100. Estas propostas de reconhecimento social implicavam: a) o
reconhecimento social da identidade curda; b) a legitimação social e institucional das
organizações, associações e partidos políticos curdos, assim como a despenalização
da palavra “curdo” ou “Curdistão”, (e consequentemente, o uso de nomes curdos,
proibidos de forma intermitente, desde 1934 na sociedade turca; c) O direito e a
protecção cultural da língua curda no ensino público, visando a liberdade de
expressão curda em todos os domínios da sociedade; d) O reconhecimento do status
político e geográfico dos curdos na Turquia101.
O Tribunal Constitucional turco negou e chumbou as propostas do antigo
DTP102. O estado turco, desta forma, aceita actualmente o princípio da auto-
determinação como “princípio ético”, mas não permite a sua consolidação jurídica. O
pretexto para determinar a sua impossibilidade jurídica confina-se à ideia de que a
autonomia e a auto-determinação cultural apenas fazem sentido nos estados modernos
em que a existência de um passado/ modelo colonial assim o exigiu. O pretexto do
colonialismo é referido e aplicado também às questões dos grupos/ minorias étnicas.
Desta forma, o sentido jurídico não é considerado na sociedade turca por esta, na sua
narrativa histórica, não estar relacionada de forma directa com a questão colonial,
assente nos pressupostos do modelo colonial europeu103.
Derya Bayir reafirma o apoio dos partidos políticos socialistas à adopção da
Convenção europeia dos direitos humanos e à adopção de um plano democrático para
a autonomia curda, procurando, assim, contrariar a identidade única regulada na
98 Günal Kursun, Entrevista realizada na sede do centro de Investigação Human Right’s Agenda, Março de 2014. Entrevista em Anexos (nota 8). 99 Bayir, Derya, Turkey, The Kurds and the legal contours of the right to self-determination, 2013. 100 Bayir, Derya, 2013, op. cit., pág. 10. 101 Bayir, Derya, 2013, op. cit., pág. 10 a 12. 102 Renomeado como BDP, Partido da Paz e Democracia. 103 Bayir, Derya,2013,op.cit., pág. 11 a 14.
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fundação da república e rectificada com o tratado de Lausanne. Na conclusão do seu
artigo, elucida-nos sobre as questões do secularismo europeu do passado, que foi
enfraquecido recentemente na sociedade turca, pela infiltração religiosa no Tribunal
Constitucional, ou seguindo um modelo islâmico pouco moderado. Por esta razão, a
autora refere a lista de tratados europeus rejeitados pela Turquia, em que o
denominador comum são os direitos das minorias étnicas e os direitos à auto-
determinação curda104.
Por outro lado, para a interpretação do modelo jurídico turco na actualidade é
importante salientar como as reivindicações curdas estão de súbito imbuídas e co-
relacionadas com as reivindicações turcas e os restantes grupos étnicos. A recusa da
aplicação da lei internacional, ao não adoptar e cumprir os tratados europeus, é uma
questão e um facto social que, em termos de direitos sociais e humanos, ao ser
ignorado, é determinante para o retrocesso das reivindicações curdas, mas também de
todos os outros grupos culturais que os acompanham no território turco: “Os direitos das minorias fazem parte de um sistema internacional. Eu sei que há visões contemporâneas que não aceitam o conceito das minorias e seus direitos, mas eu sou um pouco mais clássico. Neste momento partilho a visão clássica, porque em países como a Turquia, o modelo internacional das minorias étnicas pode ser muito benéfico para os grupos étnicos. Imagina que és um arménio a viver em Istambul ou um judeu a viver em Izmir, ou um assírio a viver em Mardin, onde as minorias são sempre uma percentagem limitada, como os 50.000 ortodoxos gregos a viver actualmente na Turquia. Se és um deles precisas de provisões específicas que protegem os teus direitos diante da maioria”105.
O domínio político e a politização geracional na Turquia actual parece reviver
uma fantasia secular, nas suas relações com a Europa, onde o positivismo académico
turco em relação ao paradigma cultural étnico, nomeadamente a identidade curda, não
revela ter experienciado uma viragem pós-estruturalista no sentido do negociar o pós-
conflito militar. Veremos nos capítulos seguintes, como a ambiguidade jurídica dos
vários modelos plurais (refiro-me à existência concreta de uma mescla de identidades
justapostas ao contexto da expansão ou proliferação das várias modernidades que
irromperam no estado turco nas décadas de 80 e 90), se vai revelando cada vez mais
complexa pelas noções diferenciais das questões do secularismo e fundamentos
democráticos, levantadas de forma irrevogável no século XXI.
104 Bayir, Derya,2013, op. cit., pág.17 a 22. 105 Salih Efe, Co-fundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista realizada em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Entrevista na língua original, em Anexos (nota 9).
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4.2 Do modelo secular “nacionalizado”106 à semi-democracia do estado.
“Sim, já menti sobre as minhas origens. É tão simples como apanhar um táxi e o taxista perguntar-me: “ De onde és?”. E eu respondo: “ Sou de Istambul”, mas é mentira. Não quero ter que falar sobre a questão turca e a questão curda, não quero ter que explicar nada”107.
Nos parâmetros de análise da antropóloga Alev Çinar108, a afirmação do
nacionalismo decorreu em simultâneo com as várias modernizações do estado. A
autora define um caminho ambíguo, ao assumir que a modernização secular, desde a
moderna fase fundacional turca, vem decorrendo a par de uma modernização
islâmica. Na sua visão, o primeiro momento que marca a fundação nacionalista
remonta ao ano de 1950 com o estabelecimento do Partido Democrático. O caminho
para a ‘ocidentalização’ (ou seja, a criação da uma identidade distinta e oposta aos
países vizinhos árabes) assentou numa primeira fase, na identificação inicial com o
modelo dos Estados Unidos: – “ Indeed, one of the Democrat Party’s catchy slogan’s
in the 1950’s was that they were going to make Turkey into a “ little América109”. O
segundo momento que marca uma nova perspectiva do nacionalismo turco, sob o
fenómeno da “ ocidentalização” ocorre nos anos 80 com o presidente Turgut Ozal, ao
permitir a fusão dos elementos locais com os paradigmas globais na implementação
oficial do liberalismo económico na sociedade. Este foi um momento que permitiu
refundar o “slogan nacionalista” através do modelo capitalista, contribuindo para a
expansão do neoliberalismo. Este último momento, ainda na visão da autora, é
marcado pela ascensão do partido do AKP, em 2002, com Recep Erdogan. Este
momento simbolizou a reinvenção de uma outra modernidade e dum paradigma
nacionalista, oposto à ideologia inicial de Mustafá Kemal Attaturk (e também
proclamado por outros governos), em que o postulado de um estado, uma nação e
uma história voltou a confinar-se ao modelo religioso, (não obstante o seu discurso de
campanha eleitoral, e dos seus primeiros 4 anos, ter sido marcado por um discurso
106 Zeydanlioglu, Welat (2008) “The white turkish man’s burden: Orientalism, Kemalism and the kurds in Turkey”, pág.7. In Guido Rings and Anne Ife (Eds.) Neo-colonial Mentalities in Contemporary Europe? Language and Discourse in the Construction of Identities, Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, pp. 155-174. 107 Entrevistado D. Nota 10 (Anexos). 108 Çinar, Alev (2004), op. cit.pág.10. 109 Çinar, Alev, 2004, op. cit., pág.6.
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europeísta) interrompendo parcialmente o primado secular das duas décadas
anteriores110.
Welat Zeydanlioglu, actual presidente e coordenador da rede curda de estudos
académicos, sediada nos Estados Unidos, apresenta ideias diferentes sobre a origem
do modelo nacionalista na história turca. Welat Zeydanlioglu desconstrói a ideia do
pluralismo étnico expandida pelo regime fundacional de Attaturk como “fantasia” e
pretexto para a introdução do modelo secular e pluralista. O modelo secular foi
difundido através do modelo nacionalista, utilizando ou instrumentalizando o
pluralismo étnico e o modelo secular como campanha ideológica. O hino pluralista de
Attaturk: “Para as pessoas, apesar das pessoas”111 é descrito na sua perspectiva
como uma fórmula de “nacionalismo secularizado”. A ideologia de um sistema plural
teve no passado como premissa a construção de um estado para turcos e curdos
integrando a fantasia ocidental, a pretexto da evolução civilizacional. Na sua visão
crítica da história nacionalizada, sob o pretexto da oposição orientalista (utilizada
segundo o autor pelas elites kemalistas) e o desejo de uma maior aproximação à
Europa, invocou-se a exclusão do grupo cultural curdo, o extermínio dos Arménios
entre 1915 e 1919, provocando um conjunto de diásporas e perturbações na Grécia,
com a saída de 1.2 milhões de gregos ortodoxos cristãos da Turquia para a Grécia e a
entrada de 500.000 gregos islâmicos na Turquia. Welat Zeydanlioglu refere, assim,
que por entre as diásporas religiosas, o processo assimilacionista surgiu, como forma
e modelo de integração social no espaço cultural turco, introduzido rapidamente pelo
movimento de Kemal Attaturk, para si, numa base social anti-pluralista e anti-
democrática.
“It was hoped that forced assimilation would guarantee the loyalty of the citizens to the nation-state and prevent ethnic separatism. It would also weaken european colonial influence and interference, which had resulted in the traumatic downfall and participation of the Ottoman Empire, leaving a deep scar on the minds and collective memory of the Turkish elite”112.
No entanto, a fórmula social encontrada pelo modelo assimilacionista,
aparentemente oposta ao do primado religioso do Islão (agora fundido com o
paradigma do nacionalismo) beneficiou no passado o grupo cultural curdo no império
otomano, como laço de união social. Actualmente é paradoxal que o elemento
110 Çinar, Alev, 2004 op. cit., pág.6. 111 Zeydanlioglu, Welat cita David Mcdowall, 2000: 196, pág.7. 112 Zeydanlioglu, Welat cita Akçam, 2004; Aktar, 2000, op. cit., pág.6.
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religioso sirva, no contexto das relações do grupo cultural curdo com o estado turco,
para justificar uma política assimilacionista a pretexto da não oficialização das
diferentes etnicidades. O paradigma do nacionalismo cai no enredo do passado
federalista otomano-curdo e no debate democrático, este imaginariamente mais ligado
às noções da Europa do que à realidade actual do nacionalismo turco.
4.3 A Democracia autónoma como reivindicação socio-política no modelo social
imaginado.
Jürgen Habermas defende que existem actualmente vários modelos
democráticos que expressam o conjunto de problemáticas sociais de cada contexto
socio-político. Estes vão surgindo a pretexto dos respectivos paradigmas sociais,
fazendo parte dos processos políticos a redefinição e a adaptação às influências
externas e a procura de um consenso social nas sociedades, procurando cumprir a
perspectiva dos direitos humanos e sociais para todos os grupos que as integram113. A
multiplicação das respostas sociais que vão surgindo ocupam vários espaços culturais
e sociopolíticos e produzem aquilo que designa de “opinião pública informal”,
gerando por si novas influências políticas e sociais, recriando modelos socio-
históricos e ideológicos, dando à sociedade um maior potencial de comunicação na
transmissão de mensagens ideológicas contestatárias. Como efeito final ou transitório,
estas novas vozes sociais poderão ou não concretizar-se em “poder administrativo”,
ou potenciar o surgimento de novas agências, no intuito de criar ou potenciar
oportunidades de mudança ou de transformação social. Um dos elementos-chave na
fórmula democrática que este autor descreve é a solidariedade inter-étnica entre os
agentes sociais e os vários sectores da sociedade política, que constituem, na sua
visão, a democracia liberal. A sua perspectiva revela-nos que as solidariedades devem
alinhar-se em direcção divergente (como contrapoder) do poder administrativo que
tende a centralizar os poderes locais, dominando e oprimindo outros grupos sociais
coexistentes no mesmo espaço ou território. A visão da democracia liberal de
Habermas privilegia o efeito da legitimação do exercício do poder político, extensível
aos vários sectores e grupos sociais e culturais, devendo conceptualizar-se como um
113 Habermas, Jürgen, in Democracy and Difference; Contesting the boundaries of the political, Seyla Benhabib, 1996, pág.26.
60
exercício de cidadania pluralista e multicultural114. Esta visão é, por certo, uma
perspectiva optimista em relação ao poder colectivo sobre a legitimidade democrática,
e à forma como esta poderá participar e expandir-se na reflexão de novos modelos de
cidadania e de pluralismo étnico.
É, também, uma visão de democracia liberal e de legitimação do exercício
político, que se aplica-se parcialmente ao contexto do estado turco, na medida em que
essa legitimação democrática ocorre de forma intermitente no domínio público
através da interacção dos agentes sociais com as políticas governamentais actuais.
Expressa-se na arena das reivindicações socio-políticas, mas também de forma
teórica, num contexto de democracia parcial, que usa a seu favor uma constituição
jurídica com influências europeias. Assente num modelo jurídico-europeu, este
justifica em teoria a ideia de uma continuidade histórica que narra a “fantasia política”
definida por Yael Navarro como projecto político multi-situado entre o Médio Oriente
e a Europa. O paradigma ocidental não se finaliza ou resolve, no entanto, nesta
bipolarização ou dicotomia antagónica entre o modelo secular de Attaturk e a
ambivalência de um modelo europeizado turco em transição para o centro do Islão.
Vários relatos no terreno mostram que, apesar das reformas legislativas, o traço
transformativo da autoridade estatal e policial (militarizada) é continuamente
formatado e readaptado, a pretexto do fenómeno do terrorismo, de modo a travar os
agentes sociais, políticos e humanitários, constituindo uma força de bloqueio à
participação democrática no debate do futuro do estado moderno. Os relatos dos
entrevistados intervenientes neste projecto, em termos jurídicos e socio-políticos,
reflectem as dificuldades quanto ao acesso à liberdade de expressão nos vários
domínios (do público ao privado), em que o espaço público se tem tornado refém da
ideologia nacional, fruto do nacionalismo histórico e, consequentemente, alvo de
várias intervenções institucionais militarizadas, e com isso, vários golpes de estado.
Este subcapítulo, na continuidade das questões que se levantam na justaposição
ou sobreposição do modelo secular, nacional e religioso, reúne um conjunto de
entrevistas realizadas a advogados e académicos turcos defensores dos direitos
humanos que reflectem sobre a evolução do pensamento epistemológico e jurídico
quanto ao conceito de democracia parcial versus democracia autónoma.
114 - Habermas, Jürgen, 1996, op. cit., pág.28.
61
As respostas às questões sobre o tipo de democracia, inseridas no contexto
institucional dos entrevistados, integram-se no pensamento de Jürgen Habermas
quanto à delimitação jurídica do conceito democrático. As constituições jurídicas
como reguladores sociais surgem, no caso turco, na sequência de várias rupturas
históricas dos governos que ora aplicaram o modelo islâmico ora o modelo secular,
revelando a indefinição do edifício jurídico a partir de 1980. Os processos históricos
das últimas quatro décadas (com os vários golpes de estado) foram não só esvaziando
o conceito de democracia, como permitiram ao estado uma constante reinvenção
social do significado da ideologia democrática. Em resposta à questão da
representação simbólica da democracia na actualidade do estado moderno turco, os
agentes sociais representam-na como uma semi-democracia ou democracia parcial,
sendo esta associada directamente a um dos seus elementos mais importantes: um
modelo e sistema multipartidário político:
“Não podemos explicitamente dizê-lo...depende do aspecto em que nos focamos. Um modelo democrático não implica que seja um modelo de absoluta democracia. Nem no início da república da Turquia em 1920, ou agora. Porque digo isto? Segundo a lei, até à revolução kemalista, em 1950, só podia existir um único partido. Apenas nos anos 50, foi introduzido um novo ambiente político, com um sistema multipartidário. Não podemos denominar de democracia um sistema de um só partido político. Após 1950, passou a haver um sistema multipartidário com eleições livres. O problema é que de 10 em 10 ou de 15 em 15 anos surge um golpe de estado. Após os golpes de estados, a maioria dos partidos políticos são fechados e os movimentos políticos são destituídos pelos militares. Então, de 15 em 15 anos, a democracia está sempre em posição de reconstituição. O último golpe de estado, oficial, ocorreu em Fevereiro de 2008. Não foi um golpe de estado puro, mas os jornais e a televisão assim o anunciaram, especialmente por parte do movimento islâmico turco. De 10 em 10 anos, ou de 15 em 15, há uma intervenção contra a democracia. Actualmente não é possível descrever a Turquia como uma democracia, como uma democracia absoluta, mas como uma semi-democracia. Como semi-democracia sim, é um país democrático. Um bom ponto e ano de referência para uma viragem é o ano do relatório da Freedom House (A Casa da Liberdade, instituída em 1941, EUA). A Turquia tem sido elogiada pelas suas mudanças sociais nos últimos 20 anos. Embora não possamos dizer que a Turquia é uma democracia absoluta, podemos dizer que é uma democracia parcial”115.
O campo da liberdade de expressão é também referido como instrumento
ideológico interno dos governos para a redefinição do modelo nacionalista,
consagrado pelo postulado de uma identidade única que oprime e sujeita os vários
agentes sociais, ongs, agências e outras estruturas, a sanções sob a acusação de
separatismo e desintegração nacional, motivada pela hostilidade ao PKK. Neste 115 Günal Kursun, Entrevista realizada na sede do centro de Investigação Human Right’s Agenda, Março de 2014 (ver origem da entrevista em anexos, nota 11.
62
campo, ao longo das últimas duas décadas, a liberdade de expressão tem sido
intermitente, no sentido em que ela representa simbolicamente os recuos e avanços do
modelo secular na sua narrativa histórica:
“ Na prática, só tens liberdade para fundar uma ong que não tenha qualquer fim ou poder de pressão sobre qualquer assunto político. Se tens vontade de abrir uma ong para os direitos dos animais estás seguro da tua liberdade. Mas se o assunto são os direitos humanos não, não tens assim tanta liberdade”116.
“No papel vivemos em democracia, mas a forma como foi implementada, é onde começa o problema. E é onde se começa a divergir do modelo democrático. Especialmente agora, quando temos uma autoridade política nas decisões do tribunal. Esteve sempre sobre o legado dos grupos privilegiados. Não podemos dizer que é uma democracia ou coisa do género”117.
“Em vários campos, estamos a regredir, principalmente devido ao problema da liberdade de expressão. Estamos habituados aos direitos democráticos e agora, se escreves um artigo a queixar-te do governo, és preso”118.
“Isto é um país islâmico, mas ninguém fala livre e abertamente sobre isto. Qualquer pessoa percebe isso, isto é um país islâmico. Não é um país secular, na sua plenitude”119.
O retrocesso do sistema jurídico, nos seus aspectos democráticos mais
elementares, assim como a adopção mascarada de um modelo islâmico no Tribunal
Constitucional, pondo em causa a sua imparcialidade, é um dos problemas apontados
ao modelo turco desde a fundação da república. O direito à liberdade de expressão foi
também ele institucionalizado, no campo do terrorismo, por um poder, que está
disperso e fraccionado numa sociedade em competição por uma definição ou
redefinição do que significa o poder secular e em expansão conflituosa com as forças
laicas opostas ao modelo religioso. As contínuas reformas e mudanças legislativas,
inspiradas no modelo ideológico europeu, decorrem paralelamente às
imprevisibilidades e às transformações constitucionais. Estas operam e agem
directamente nos actores sociais no âmbito do fenómeno da “opinião informal” de
Habermas, no sentido de despertar a politização de consciências divididas entre a
democracia parcial e a democracia autónoma.
“Nestes tempos, vivemos coisas extraordinárias, para ser honesto. Este ano, em 2014, descobrimos que um grupo, uma fracção religiosa, está organizada e
116 Günal Kursun, Nota 12 (Anexos). 117 Natasha Nazan, Professora assistente em Ciências Políticas na Universidade de Humanidades, Çankaya, na cidade de Ancara. Esta entrevista decorreu na própria universidade em Março de 2014. Ver entrevista na língua original, em Anexos (nota 13). 118 Salih Efe, cofundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista realizada em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Ver entrevista original em anexos (nota 14). 119 Entrevistado C. Nota 15 (Anexos).
63
infiltrada no interior do sistema jurídico, a controlar aspectos importantes da organização do Tribunal Constitucional. Foi perigoso quando o governo se começou a aperceber desta situação, em 17 de Dezembro de 2013. Começaram a mudar as posições dos juízes. E foi o caos absoluto. Neste momento está um caos completo”120.
O domínio político e a politização geracional, na Turquia actual, parecem
reviver a fantasia secular do passado de Attaturk nas questões e relações com a União
Europeia. Também os processos globais no âmbito das influências seculares /
ocidentais, no que concerne ao grupo cultural curdo, trouxeram divisões ideológicas
sobre o futuro da sua identidade no estado moderno turco. As duas fórmulas
simbólicas no debate da questão curda para a sua integração social convergem na
opção do modelo de assimilação cultural (no sentido de a escolha cultural curda optar
pela identidade nacional turco-muçulmana), e uma segunda fórmula, divergindo desta
mas não menos complexa, quanto à condição de resistência do grupo cultural curdo
(relacionada com o campo político das questões actuais da influência do PKK e a
prisão do seu líder Öcalan que prevalece no imaginário político curdo) no processo de
resistência e reivindicação socio-cultural, na tentativa de manter, recriar e materializar
a sua continuidade cultural.
120 Entrevista a Günal Kursun. Nota 16 (Anexos).
64
V – A CULTURA CURDA NAS TEIAS DO SIMBÓLICO
“Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de actos sem sentido e explosões emocionais, e a sua experiência não teria praticamente qualquer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base da sua especificidade.”121
5.1. A ideologia como Sistema Cultural – a guerra como espaço ideológico
traumático para a cultura curda.
Como poderemos, face a uma cultura desnacionalizada (nos termos em que a
sua nacionalidade é excluída de um modelo de cidadania igualitária) e
desterritorializada, para ser reconfigurada num território repartido, ligá-la e integrá-la
como grupo cultural? Ou seja, de que forma se ligam as questões da cultura ao poder,
ao simbólico e a uma ideia de nação?
Deste modo, que contributo poderá dar a antropologia pós-colonialista,
estabelecida num campo de estudo onde a problemática das diásporas globais
remodela e readapta as questões da cultura? E na tentativa de unir o paradigma de
sociedade a uma ideologia, como se processa o caminho ideológico de um grupo
cultural dividido ou repartido em vários espaços culturais?
As culturas alternativas, na terminologia de Raymond Williams, face à
multiplicação dos espaços culturais, constituem-se como herdeiras da cultura do
passado. No entanto, por vezes, surgem conjecturas sociais impeditivas da
transformação e do reenquadramento social dos grupos. É neste campo que a
antropologia da cultura necessita de recorrer ao olhar microscópico, no sentido em
que, por vezes, da expansão dos espaços culturais, resultam, muitas vezes,
fragmentações identitárias, sociais como produto de descontinuidades culturais face a
fenómenos de maior escala.
121 Geertz, Clifford, 1973, A Interpretação das Culturas, pág. 33.
65
Clifford Geertz inspira-se no filósofo Gilbert Ryle122, quando refere a
importância dos códigos estabelecidos instituídos nos actores sociais na análise das
estruturas sociais. O conceito de cultura / culturas de Geertz sugere que é na selecção
metódica dos significados específicos ligados aos fenómenos (ou seja, na leitura dos
seus códigos como padrões), que poderemos destrinçar um caminho, e parafraseando
o autor, descrevê-las com densidade123. A cultura para Geertz representa um conceito
discutível, na mesma linha em que Ruth Benedict, ao escrever sobre os padrões de
cultura nas sociedades, os apresentava como ilimitados nos seus vocábulos, referindo-
se também às dialécticas sociais entre indivíduo e cultura. No entanto, tais códigos
sociais, em termos de leitura simbólica, não nos possibilitam, ainda assim, um
encontro com a essencialização dos significados, como se os espaços representassem
um todo124. Na linha de pensamento geertziano, procurar comportamentos culturais
estereotipados na conduta humana torna-se uma fonte de problemas, pois a cultura
apresenta-se sempre como incomensurável e, por isso, incompleta.
Neste sentido, para uma representação identitária curda, no sentido dos ganhos e
perdas culturais que têm vivido desde a década de 90, a sua imagem (ou auto-
representação) só se poderá definir aqui, nas linhas do simbólico, (justificada pela sua
flexibilidade cultural, moldando e moldada, na linha de Geertz, pelas suas ideologias).
O simbólico e os seus efeitos na cultura poderão ser, e servem, de acordo com o
pensamento dos simbolistas Victor Turner e Geertz, o guia da existência humana
curda125. O simbólico inscreve-se na sociedade e nos respectivos grupos sociais, como
um texto a decifrar, no sentido em que são eles, os códigos (e os seus símbolos), que
nos ajudam a interpretar os comportamentos humanos, revelando-nos parte da sua
narrativa enquanto cultura em expansão, em termos socio-reivindicativos. Também os
seus termos na expansão social reivindicativa se manifestam no domínio dos códigos
sociais em elementos como a hereditariedade ou a herança cultural, campo aberto ao
domínio das ideologias, representando numa análise social importantes fontes
extrínsecas de informação126.
122 Conceito de Gibert Ryle, The Concept of Mind, 1949, in Clifford Geertz, 1973, op. cit., pág. 7. 123 Geertz, Clifford, 1973, op. cit., pág. 7. 124 Benedict, Ruth, op. cit., pág. 8. 125 Geertz, Clifford, 1973, op. cit., pág. 33. 126 Geertz, Clifford, 1973, op. cit., pág. 68.
66
Para Geertz, a cultura modela, para se modelar. Na constituição de um sistema
simbólico esquemático, são os padrões culturais que definem o indivíduo, mas estes
(os agentes sociais ou os indivíduos) também modelam a cultura e é nesta simbiose e
dialéctica, que podemos confrontar-nos ou entrar no domínio das culturas,
percepcionando-as como organismos vivos, longe de estarem congeladas no tempo.
Karl Mannheim127 conceptualiza a ideologia como uma matriz histórica,
inserida num sistema simbólico implícito na reconstrução da narrativa histórica, mas
também do sujeito, o que contudo não é suficiente para reconstruir a visão histórica de
um grupo social de forma íntegra e completa. Na sua visão, as ideologias representam
um estágio de passagem, ou um fenómeno intermédio, entre aquilo que foi vivido
como matriz histórica, uma espécie de auto-crítica do passado, (deformada pelo
tempo e pelo espaço), e aquilo que é representado socialmente no presente. Das
ideologias à utopia histórica, o passado (das ideias) liga-se ao presente, mas também
ao futuro. São as matrizes ideológicas que revelam motivações políticas e as ideias
construídas na tentativa de consenso social de um grupo, de definir um desejado e
determinado futuro cultural, nomeadamente quando se reportam a sujeitos ou grupos
sociais e culturais situados nas margens de uma sociedade. As ideologias dos grupos
culturais podem também, por isso, definir-se como um estágio ou rito de passagem,
em que o passado é reconhecido, celebrado e rememorado, imbuído de reforços
ideológicos, mas também de distorções temporais.
Nesta linha, e em confronto com o sentido de herança cultural de um grupo mas,
também, memorial dos espaços do passado de Maurice Halbwachs128, neste capítulo,
reúnem-se as narrativas dos testemunhos da guerra civil curda. Estas narrativas
reflectem a guerra como um fenómeno social seleccionado, no intuito de, na análise
social, delinear um ponto de partida para o reenquadramento cultural curdo, na
reflexão do modo como um trauma pode ser definitivo e impiedoso, na reconstituição
social e cultural dos indivíduos que vivem à margem de um estado ou em contexto de
transição social e cultural.
127 Mannheim, Karl, 1929, Ideologia e Utopia, pág. 52. 128 Halbwachs, Maurice (1992). “Space and the Collective Memory: The group in it’s spacial Framework: the influence of the physical surroundings”. In The Collective Memory. Chicago: University of Chicago Press.
67
5.2 A memória de uma “casa”: A dor e a sobrevivência diária aos escombros de
uma guerra.
“Quando chegámos cá (a Ancara), recordo-me como tudo era tão diferente, eu fiquei chocado com todas as luzes da cidade. Chegámos à noite, num mini-bus, a família inteira. Encontrámos um apartamento minúsculo, pequeno de mais para nós, na parte mais pobre da cidade. O estado turco não nos ajudou com absolutamente nada. A única coisa que nos disseram é que tínhamos que evacuar a vila. Antes de chegarmos cá, a polícia parou o nosso mini-bus várias vezes, fizeram buscas e pediram-nos os nossos documentos, foi tudo muito perigoso. Éramos 12 no autocarro, 9 primos, eu e os meus pais. Foi mesmo tudo muito difícil. Lembro-me de não querer sair à rua, porque se me perguntassem alguma coisa em turco, não poderia entender. Preferia ficar em casa, a brincar com os meus primos. Não sabíamos como ir às compras, como ir a algum sítio e apanhar o autocarro, tudo era difícil e desconhecido.”129
Carol J. Greenhouse, a propósito dos contextos etnográficos em conflito
ou estados de emergência130, questiona o que o estudo de modelos sociais em
conflito, tensão, desestruturação ou desfragmentação social nos permite
acrescentar às realidades sociais. Uma das reflexões que surge como base
deste campo de estudos é a possibilidade dos testemunhos, na realidade
etnográfica, exprimirem as emoções do passado, mas também as
possibilidades do futuro imaginado, este reflectindo as suas ansiedades sociais
e reivindicações políticas.131.
Em correlação com a análise de testemunhos reunidos no terreno, o
fenómeno da resistência curda é a primeira variável a surgir interligada à ideia
de “rotinização do terror”132 como estratégia de sobrevivência e resistência
colectiva, face à dor infligida pela imprevisibilidade dos acontecimentos
históricos e a incerteza de um futuro:
“Sou de Siirt, da parte sudeste da Turquia. Vivi lá até aos 5 anos e após isso, tivemos que mudar de cidade. Mudámo-nos para Ancara em 1993. É um assunto complexo, houve muitos problemas e ainda há, por isso não quero falar sobre isso. Ainda não estamos confortáveis em casa, por isso é que nos tivemos de mudar.”133
“Eu sou de Mardin. Vivi lá até aos 5 anos e nos anos 90 mudámo-nos para Istambul: eu, a minha mãe e o meu pai com mais cinco familiares, por causa da
129 Entrevistado C. Nota 17. (Anexos). 130 Greenhouse, Carol J., 2002, Ethnography in Unstable Places: Everyday Lives in Contexts of Dramatic Political Changes. 131 Greenhouse, Carol J., 2002, op. cit., pág. 29. 132 Green, Linda, op. cit., pp.105-129. 133 Entrevistado E. Nota 18 (Anexos).
68
guerra no Curdistão, especialmente por causa do PKK estar muito activo. O meu pai estava sempre a desaparecer, os militares turcos estavam sempre a levá-lo. Às vezes, desaparecia um mês inteiro. Eu tinha cinco anos e mudei-me para Istambul em 1993. Foi um ano especialmente violento. Eu lembro-me de uma rapariga, era mais pequena que eu, e eu via-a… foi assassinada à minha frente. Porque era curda, só por isso. Para eles era o quanto bastava. Ninguém pôde fazer nada, eles ter-nos-iam assassinado a todos.”134
“Nasci em Siirt, uma vila curda pequena e pouco populosa, a sul. Foi em 1992, na altura em que havia um confronto entre o PKK e o governo turco. Diariamente vias na televisão que morriam soldados de ambas as guerrilhas, foram tempos muito difíceis. O governo oprimiu-nos e evacuou as nossas vilas. A maioria das pessoas foi forçada a emigrar para as cidades, como Istambul, Ancara, Izmir... para toda a parte ocidental. Nesse tempo, a minha família tomou a decisão de vir para Ancara mas não sabíamos como viríamos, nem com que dinheiro, não conhecíamos nem a língua nem a cultura. Nem a minha família, sendo a maioria agricultores, podia exercer a sua profissão nas cidades.”135
O Curdistão, como zona de refúgio do passado, na linha de James Scott136,
representa para o conjunto dos entrevistados curdos uma memória frágil, em que o
passado assombroso da guerra os posicionou como testemunhas de eventos
traumáticos, mas também como sobreviventes e protagonistas do exílio e da diáspora,
como estratégia de vida e de fuga à perseguição militar turca. Os efeitos das
diásporas, em contexto pós-guerra, colocaram mais uma vez a cultura curda na
posição de cultura liminar, obrigada a reconstituir códigos sociais como textualidades
simbólicas137 redefinidas e reforçadas através dos mecanismos de resistência cultural.
É, através delas, que os grupos se adaptam e reconstituem entre os pólos do local e do
global, ganhando, assim, nas suas narrativas históricas, o carácter de culturas
transnacionais, deslocadas das suas fronteiras e espaços culturais, no fenómeno das
proliferações diaspóricas. As diásporas curdas, mediadas pela fuga à guerra,
despoletaram também proliferações subalternas da diferença no sentido em que
reforçaram, através da desintegração cultural, o étnico como elemento
diferenciável138.
A violência do passado curdo, como evento sincrónico, marca simbolicamente a
sua identidade, cuja representação cultural se vai confinando à categoria do étnico, e
onde a guerra foi desestruturando, a violência foi reificando a necessidade de um
reposicionamento cultural no macrocosmo social turco. A realidade do passado,
134 Entrevistado A. Nota 19 (Anexos). 135 Entrevistado D. Nota 20( Anexos). 136 Scott, James, op. cit. 137 Bhabha, Homi K., 1994, The Location of Culture, op. cit., pág. 172. 138 Hall, Stuart (2003) Da Diáspora, Identidades e Mediações Culturais, pág. 27.
69
transmitida nos testemunhos informais curdos, revela-nos que a violência social se foi
constituindo também como tema e paradigma performativo, onde os actores sociais
são colocados, a título do discurso institucional turco, na posição de performers do
fenómeno da guerra, e como consequência, performers também dos vários
reposicionamentos culturais e ideológicos que esta provocou139.
O encontro com o passado e o conflito civil curdo, no debate e no processo de
entrevistas, não se enquadravam no guião inicial por ser um tema vulnerável, e por
este se constituir também como um tabu social, trazendo consigo a memória do medo
do passado, mas também da ainda vigente perseguição política e civil curda. Nesse
sentido, os relatos transmitidos devem ser enquadrados num processo de entrevista
em “off”, em que alguns dos intervenientes discorreram sobre memórias voluntárias
no processo do exílio à “casa”, da diáspora ou êxodo. O regresso a casa, após o
confronto da guerra, ocorreu como reencontro com a memória da infância mas,
também, com o significado do eixo central que a constitui: o Curdistão. Nesta
narrativa de conflito, surgiu novamente a questão das fronteiras curdas em confronto
com os seus muros no processo da desestabilização dos territórios, e é nesta simbiose
histórica que surgem novamente as diásporas como produto e interacção sociocultural
com os estados que delimitam os seus espaços culturais, mas também afectivos:
“A primeira vez que voltei a casa no Curdistão, foi há cinco anos. Foi uma emoção diferente para mim, após catorze ou quinze anos foi a primeira vez que pude finalmente, voltar a casa. No passado quando queríamos regressar a casa, não podíamos, porque não era seguro. Quando visitei a minha antiga casa, não a reconheci, já não me lembrava de nada sobre a minha casa. Só tinha cinco anos quando nos mudámos para a Ancara. Às vezes, tentamos ir mais vezes a casa, mas é mesmo muito longe. E agora as coisas são diferentes. A maioria da minha família já não quer voltar. Têm melhores condições agora, já estão habituados. A maioria deles vive cá.”140
Do futuro incerto da casa e dos laços familiares, sociais e culturais
desfragmentados pelo efeito da guerra, o movimento do PKK surgiu como elo entre o
passado e o futuro, consolidado como eixo central (ideológico) daquilo que ainda
representa o Curdistão. Dois dos entrevistados mencionam o PKK como símbolo e elo
social ao grupo cultural curdo, revelando as ambiguidades e a conflitualidade no
interior do estado turco como antagonismo social, não integrado na renegociação do
processo de paz. O PKK como movimento social de reivindicação da autonomia
139 Zygmunt Bauman, 1992, in Greenhouse, Carol J., op. cit., pág.17. 140 Entrevistado E. Nota 21 ( Anexos).
70
curda faz parte de uma dimensão social em que o seu registo escondido141 traz o
perigo da “amnésia social” (reforçada pelo elemento macrossocial do terrorismo,
como “ideologia distorcida”, na visão do estado turco) como nova componente
estrutural da ideologia nacionalista turca, na tentativa de separar o carácter de
resistência da cultura curda do espaço nacionalizado.
“A minha opinião sobre o PKK é que somos todos irmãos. Deviam abandonar as montanhas e juntarem-se a nós nas cidades. Dever-se-ia perguntar-lhes se querem regressar à Turquia, e a decisão, depois, tem que partir da vontade deles. Se eles quiserem voltar para a Turquia, o governo deveria permiti-lo. Deveriam arranjar uma maneira de os integrar na sociedade. Mas se eles nunca quiserem regressar à Turquia e preferirem viver noutros países europeus, o governo também deveria apoiá-los. Nesta atmosfera, nós não confiamos no governo. Mas se começarem a melhorar as condições isto poderia acontecer. É possível! Todo este movimento e processo de negociação estão para além de Öcalan142. Não é totalmente dependente de Öcalan. A geração mais nova estudantil vê Öcalan como um “ pai”. Ele é o líder e uma figura carismática. Acreditam e confiam nele. Depois de desaparecer, é muito difícil perceber o que aí vem... Não sei o que dizer sobre isto. A maioria da população turca é nacionalista, aqueles que votam pelo AKP são nacionalistas que dizem que o PKK e os combatentes pela liberdade são terroristas. Se categorizas alguém como terrorista, não vais querer negociar com eles. Não vais querer viver com eles, junto a ti. Eles não querem negociar.”143
Novamente, o paradigma da auto-determinação curda, desempenhado e
refundado através do movimento do PKK, surgiu como elemento fundamental da
memória colectiva curda, mas também como espaço ideológico e elo socio-político na
defesa da sua continuidade cultural. No entanto, a visão consolidada sobre o PKK
pertence a uma memória social percepcionada fora da visão cristalizada pela
comunidade, e ainda que não analisada neste projecto, ela apresenta variações muito
ambíguas e complexas para os agentes (nomeadamente por constituir um trauma e um
tabu na sociedade turca) dos seus significados políticos e simbólicos. Estas visões
vão-se apresentando mais disformes ou convergentes para os grupos consoante o
percurso, experiência e encaixe social (ou seja, as classes sociais onde os indivíduos e
os agentes sociais se inserem):
141 Scott, James, op. cit., pág.6. 142 Abdullah Öcalan é um dos fundadores e dirigente do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, organização considerada terrorista pela Turquia, pelos Estados Unidos e pela União Europeia entre outros. Encontra-se preso desde 15 de Abril de 1999. 143 Entrevistado C. Nota 22 (Anexos).
71
“Um dia, espero que a parte do Curdistão turco seja independente. Não vai acontecer a curto prazo, talvez num período mais longo, seja possível. Espero.”144
“O futuro do Curdistão tem boas possibilidades. Nos últimos 30 anos, tem havido um debate contínuo entre manter a cultura curda ou seguir em frente. O PKK conseguiu algo e conquistou esta nova situação. As negociações entre o PKK e o governo turco continuam no seu processo, com encontros com Öcalan, este vai ser um bom processo para nós. Mas não acredito que libertem Öcalan, da prisão.”145
A ambiguidade do trauma, enquanto memória social, resiste no confronto com o
futuro político instável na Turquia. Os termos da renegociação do conflito ocupam um
espaço simbólico manifesto na contínua negociação do processo de paz nas zonas
rurais (especialmente, na região de Diyarbakir a sudeste do país) da região curda, e
nos termos da sua reconstituição socio-cultural nas zonas cosmopolitas e rurais do
país; a herança da guerra é perspectivada por muitos como um obstáculo socio-
reivindicativo:
“Ser curda é muito mais do que pertencer a uma cultura, às vezes está relacionado com a língua, outras vezes com uma música, ou com uma cor. Está relacionado com a casa. Eu sei que nós não temos uma casa (Curdistão), é por isso que a maior parte das vezes tenho a sensação de “sem abrigo”, que não tenho uma casa.”146
“Ser curdo não faz parte só do plano das ideias. Se és curdo, tens muita responsabilidade. Tens responsabilidade perante o teu grupo étnico. Tens que ter cuidado. Temos que mudar a imagem dos curdos na sociedade em geral, portanto temos que ser cuidadosos na forma como nos comportamos. Tentamos ser bons cidadãos.”147
A maioria das pessoas do Médio Oriente, em geral, não têm muitas oportunidades na vida, o infortúnio é inevitável. Isto também acontece na etnia curda, não ser muito afortunado. Mas eu penso que a cultura curda é muito rica e que nos temos que expandir ainda mais. Todas as nações têm que ter os seus próprios direitos, e os curdos têm que reivindicar os seus. Isto, sim, abalava a realidade turca.”148
Na perspectiva da antropóloga Paula Godinho, a memória social ganha um
sentido reconstitutivo do futuro, na medida em que é ela que redetermina ou
reencaminha os colectivos ou grupos para um projecto comum e contínuo,
reconfigurando tradições (ou padrões culturais antigos), ligando-as a um património
ideológico, segundo as exigências ou a aceleração histórica, em relação e em direcção
144 Entrevistado E. Entrevista realizada na minha casa em Ancara, em Março de 2014. Ver entrevista original em anexos, (nota 23). 145 Entrevistado A. Nota 24 (Anexos). 146 Entrevistado B. Nota 26. (Anexos). 147 Entrevistado F. Entrevista decorrida na Human Right’s Association em Fevereiro de 2014, Ancara. Ver entrevista original em anexos (nota 27). 148 Entrevistado D. Entrevista decorrida na minha casa em Ancara, em Março de 2014. Ver entrevista original em anexos, (nota 28).
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às expectativas de mudança que se proporcionam com as rupturas sintomáticas de
descontinuidade cultural dos contextos sociais149.
Se a história, umas vezes interrompe o percurso das culturas e outras vezes as
une, é no carácter de reconstituição de um acontecimento crucial ou traumático que os
símbolos e as ideologias se recriam, tornando-se fundamentais na reformulação de
vivências de rotina sociais, culturais que, por fim, marcam as suas visões de utopia.
Abdullah Öcalan, líder do PKK, condenado a prisão perpétua, surge de forma
incontornável para os curdos, como um espelho do passado e produto da memória
utópica, mas também como “sombra ideológica”150, no sentido em que, no passado,
significou um projecto político ideológico para o grupo curdo que se repercute no
presente. Como efeito do trauma sentido e da devastação territorial, o PKK representa
ainda um projecto ideológico do passado antagónico, porque coloca o grupo cultural
curdo em tensão com a sua auto-representação cultural, no domínio comunitário
interno, mas também no domínio externo (nas relações reivindicativas face ao estado
turco). A ideologia do grupo cultural curdo, como elemento de defesa da ideia de
autonomia no passado, de acordo com Clifford Geertz, pode constituir-se de forma
ambígua e contraditória devido à pressão das forças antagónicas que operam
simultaneamente na sociedade.
As ideologias ligam-se aos padrões sociais e à memória colectiva dos grupos,
mas também são, na visão crítica de Geertz, irónicas e podem conduzir a erros
intelectuais, na dificuldade que a sua abordagem constitui para os grupos, porque os
quadros ideológicos são, na maioria das vezes151, formados em contextos políticos
particulares. Assim a ideologia como sistema cultural liga-se às narrativas das
memórias sociais, e na visão geertziana, ela molda-se aos indivíduos, colectivos e
grupos socio-políticos, para ser remodelada por estes ao sabor das circunstâncias
socio-históricas. As linhas de interrupção temporal podem reforçá-las (embora em
novos modelos reconfigurativos), recuperar novos sentidos culturais, e até
repadronizar novos modelos de resistência.
A representação imagética do que significa pertencer à cultura curda, estando
ligado ao passado de uma guerra, confere e reforça a ideia do Curdistão na linha da
149 Godinho, Paula, op. cit., pág.29. 150 Geertz, Clifford, op. cit., pág. 111. 151 Geertz, Clifford, op. cit., pág. 109.
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intangibilidade de Hafstein152, em que expulsa de um território e fragmentada pela
violência de um estado em confronto com uma comunidade, grupo social ou cultural,
se encaminha e nos guia também para a problemática e para o paradigma da
construção da ideia de etnicidade. A ideia de etnicidade, como forma de ligação ou
reconexão ao espaço cultural curdo, surge no contexto fundacional turco para se
refundar nas diásporas do pós-guerra, e será abordada nos capítulos seguintes,
somente com a intenção de encontrar na perspectiva curda (dos testemunhos
recolhidos em terreno), uma ligação espontânea à influência europeia que vá ao
encontro da sua própria auto-representação cultural.
5.3. A identidade política como estratégia socio-reivindicativa face à coerção do
estado moderno.
“A maior parte do tempo, sinto que estou entre ambas as culturas. Mesmo que não queira aceitar a ideia de pertencer à cultura turca, a verdade é que estou no meio, entre a cultura curda e a cultura turca.”153
A identidade curda apresenta-se neste estudo no enquadramento do seu
posicionamento cultural instaurado pelo projecto moderno turco. A identidade curda,
inserindo-se no quadro social moderno, sofreu alterações e transformações sociais no
pós-guerra mas, também, sob a influência dos processos globalizantes e europeus. A
reconfiguração social perante o elemento religioso no início do século XXI, e os
hibridismos emergentes das diásporas, também lhe conferiram um sentido
transnacional, abrangendo, assim, os espaços culturais europeus, como comprovam as
diásporas europeias e os espaços culturais religiosos nos territórios do Médio Oriente.
Assim, as várias identidades foram assimilando novos reportórios de
significados. Na terminologia de Stuart Hall, o grupo cultural curdo situa-se entre o
estágio de cultura tradicional para, no âmbito das alteridades entre os processos
locais e globais, se tornar uma identidade recruta de uma modernidade. A relação dos
grupos tradicionais com o passado assenta na ideia de autenticidade de Eric
152 Hafstein, Valdimar Tr., op. Cit, pág.36. 153 Entrevistada B. Entrevista realizada na sua casa em Ancara, Fevereiro de 2014, ver origem de entrevista em anexos (nota 29).
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Hobsbawm, de Terence Ranger 154 e de Stuart Hall155 que se pode revelar, nos casos
dos grupos colectivos, num instrumento socio-reivindicativo. É a manipulação e o uso
das tradições das narrativas do passado que reforçam o sentido de resistência aliada à
cultura. A identidade, no caso curdo, é uma identidade múltipla, assim como os seus
espaços culturais são múltiplos, e situa-se actualmente no campo, que Charles Taylor
definiu como o espaço entre o diálogo com o conflito social e os parâmetros da
homogeneidade.156
No grupo dos entrevistados, a identidade curda, a par do fenómeno da
identidade turco-muçulmana (como projecto moderno e fundacional revisto no
capítulo histórico), revela-se como identidade resistente, no sentido em que o seu
reforço como identidade política determina a sua resistência às narrativas do passado,
mas também às circunstâncias socio-históricas do presente. Também são definidas
como ambivalentes em relação ao problema da busca de autenticidade, em que os
vários projectos de modernização (no âmbito do campo dos modelos seculares-
islâmicos) as encurralaram no caminho de uma identidade politizada em termos de
subsistência cultural157.
James Clifford inspira-se em Paul Gilroy158para definir a identidade política
como um processo de construção ambígua, desordenada e aberta à fluidez das
circunstâncias históricas e políticas. Nestes termos, a identidade curda imiscui-se no
acto político de forma a reivindicar a sua cultura, em conflito com forças opostas,
reinventando-se a par das proliferações nacionalistas no contexto turco, e
parafraseando Clifford, conectando-se e desconectando-se da realidade social,
consoante o jogo das identidades na arena política de um estado.159
São por isso, muitas as ambivalências da crítica curda na sua dialéctica com o
estado turco, incidindo estas na tentativa ou possibilidade de iniciar um percurso de
“confiança social”, renegociação identitária e na definição dos limites
transfronteiriços (no sentido das lutas partidárias nas arenas políticas de um estado
154 Hobsbawm, Eric e Ranger, Terence (1983), The invention of tradition in Colonial Africa, London: Cambridge University Press. 155 Hall, Stuart, 1997, Representation: Cultural Representations and Signifying Practices. London: SAGE Publications Ltd. 156 Taylor, Charles, 1994, ‘The Politics of Recognition’. Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition,. Ed. Amy Guttmann. Princeton: Princeton University Press, pág.32. 157 Clifford, James, 2000, Taking identity politics seriously: The Contradictory, Stony Ground, in S. Hall, P. Gilroy, L. Grossberg and A. McRobbie (eds). 158 Gilroy, P., 1996, British cultural studies and the pitfalls of Identity. 159 Clifford, James, op. cit., pág. 100.
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com poderes cada vez mais dispersos) para a consolidação dos seus espaços culturais
na sociedade turca:
“Na prática, o governo reconhece os curdos, porque especialmente este último governo, começa a dar muitos mais direitos aos curdos. Os curdos começam a ter os seus próprios canais de televisão e emissões de rádio, e também já têm acesso à educação na sua língua, em escolas privadas. Esta foi uma grande reforma na história dos direitos humanos na Turquia. Então, na prática, já há um reconhecimento da realidade curda. Mas ainda está muito longe do que deveria ser. Os curdos continuam a reivindicar mais direitos, como ter acesso à educação nas escolas e universidades em língua curda e como o direito a serem governados autonomamente, nas suas regiões.”160
“Tem havido muito activismo político sobre estes tópicos. Diferentes minorias estão em luta reivindicativa, e os curdos sendo o maior tópico, são lutas identitárias no seio do estado. Há também um conflito armado, que dura há 30 anos. Há vários tópicos de lutas contra todas estas discriminações. Não é só pelos curdos, é por todas estas minorias não-muçulmanas. Mas o ressurgimento dos conflitos depende sempre de todo o ambiente económico, político e internacional em nosso redor. Estou esperançosa nalguns aspectos e às vezes sinto que nada está a evoluir.”161
“Sim, incomoda-me muito não ter a minha identidade curda no meu bilhete de identidade. Com tantos curdos neste país, como é que isso é possível? Sempre que as pessoas me perguntam a minha identidade, dizem-me: “ Não, tu não és curdo, tu és turco”. Se pergunto, “porquê?”, respondem-me que sou turco porque tenho identidade turca, então sou turco.” É estúpido e irrita-me muito.”162
Como base para a reflexão dos significados da cultura curda, a
politização de uma identidade deve ser analisada nos termos simbólicos da
reivindicação e do espectro das ideologias dos colectivos e grupos.
Considerando os interesses dos grupos em reivindicação, na perspectiva de
Richard Fox e de Habermas, os consensos sociais (ou a opinião pública
informal segundo Habermas) ganham nas solidariedades interétnicas, onde
vários colectivos e grupos diferenciados lutam e reivindicam por fins ou
objectivos universalizantes, relacionando-se de forma directa com o estado
turco.
Nesta linha da solidariedade interétnica curda, surgiu no espaço público,
e no seguimento do Verão de 2013, um modelo globalizado (cosmopolita) no
160 Salih Efe, Co-fundador da Human Right’s Agenda; Advogado em direitos humanos, Entrevista ocorrida em Fevereiro de 2014 na própria sede, em Ancara. Ver entrevista na língua original em anexos (nota 30). 161 Natasha Nazan, Professora assistente em Ciências Políticas na Universidade de Humanidades, Çankaya, na cidade de Ancara. Esta entrevista decorreu na própria universidade em Março de 2014. Ver entrevista na língua original em Anexos (nota 31). 162 Entrevistado F. Entrevista decorrida num café em Ancara em Março de 2014. Ver a entrevista original em anexos, nota (32).
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que respeita à perspectiva universal dos direitos humanos, centrado nas
questões de acesso à liberdade de expressão e de exigência de um modelo
democrático absoluto163:
“Eu costumo participar nos protestos, geralmente os organizados pela esquerda. Não os protestos da direita como são os dos nacionalistas radicais. Precisamos dos protestos para obtermos justiça. Participo em todas as manifestações relacionadas com a questão curda. Participo nas manifestações pelos direitos dos xiitas, pelos direitos das mulheres, das crianças, não separo os assuntos. Participo pelo direito à justiça.”164
“O que precisamos é de um estado democrático, que tenha possibilidade de ser uma democracia autónoma. Com base no que a maior parte da comunidade curda me diz, eles não estão interessados em ter no seu bilhete de identidade a identidade curda. Isso é inútil. Desde que não nos forcem constantemente a dizer: “ sou um cidadão turco” ou “ gosto de ser turco”, não nos interessa mais esse assunto.”165
“Eu sou um cidadão turco, mas não me interessa. Poderia ser um cidadão de qualquer outro país, não faria qualquer diferença para mim, se puder viver em liberdade. A liberdade é um direito humano básico. Na realidade, para mim, não me faz diferença a etnicidade, não me interessa qual é a religião ou a língua nativa. O importante é a humanidade e termos uma consciência plena. Eu tenho mais amigos turcos do que curdos, mas isso na verdade pouco me interessa.”166
Os vários pronunciamentos ideológicos curdos sobre a identidade
cultural ou política, são de forma concreta ou categórica impossíveis de
homogeneizar como sistema esquemático simbólico. As suas variações
ideológicas e culturais, na perspectiva identitária, são integradas numa arena
macrossocial (nas tensões políticas com o estado turco) e surgem como
esforço crónico para corrigir o desequilíbrio socio-psicológico, na redefinição
do seu percurso pessoal individual e colectivo e no desejo de que a própria
identidade não seja uma condição de deslocamento societário.167 As suas
respostas às questões identitárias e culturais divergem em dois modelos de
integração social diferentes, seja através da adopção do modelo religioso
islâmico como forma de consenso supra-local ou nacional, seja pela opção de
um modelo democrático pluralista (no entanto, nenhum dos modelos se revela
163 Geertz, Clifford, op. cit., pág. 112. 164 Entrevistado D. Nota (33) (Anexos). 165 Entrevistado C. Entrevista decorrida em Janeiro de 2014, na Human Right’s Agenda, Ancara. Ver entrevista original em anexos, (nota 34). 166 Entrevistado F. Entrevista decorrida na Human Right’s Association em Fevereiro de 2014, Ancara. Ver entrevista original em anexos (nota 35). 167 Geertz, Clifford, op. cit., pág. 112-113.
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na agenda política do governo do AKP, nem rompe o modelo da
discriminação curda vigente na sociedade).
“Actualmente, a comunidade curda não reivindica a cidadania curda. Não é um problema para nós ter a cidadania turca, mas precisamos de viver com todos os nossos direitos, se de facto, somos cidadãos turcos. O resto não interessa, se somos turcos, curdos, se tivermos adquirido os nossos direitos em pleno. Os nossos direitos básicos. Nós queremos viver juntos, com os nossos direitos. Especialmente o direito à nossa língua e à não-discriminação.”168
“Os meus pais não são pessoas políticas, eles não lêem jornais, e a única coisa que sabem é o que o governo diz na televisão. E a televisão pode ser muito perigosa, vai assimilar-te. Os meus pais depois do conflito foram assimilados pelo poder. Até o meu avô me diz: ”somos turcos”, porque gosta do facto do primeiro-ministro ser uma pessoa religiosa. Na minha família dizem-me: “ Acima da nacionalidade, somos muçulmanos.” Para eles o Islão está acima da nacionalidade. E dizem-me: “ Primeiro somos muçulmanos e depois curdos.” Ou: “ Os turcos são muçulmanos, nós também somos muçulmanos, somos irmãos.” A minha família é conservadora, pensa demasiado em religião e muito pouco nos assuntos políticos.”169
“A identidade não é a melhor solução. Ter uma identidade no passaporte não é nada que represente uma solução. Se no futuro, houver um estado curdo independente, sim, mas se estás a tentar reunir estas pessoas todas unidas no mesmo território, então teres a tua identidade no passaporte vai tornar a tua situação ainda pior. Irá trazer ainda mais discriminação. A base para os direitos humanos está na expansão das libertações civis, direitos políticos, económicos, sociais e outros. É necessário que a situação melhore para toda a gente, indivíduo a indivíduo, as pessoas necessitam de ter estes direitos.”170
“Acho que já é tempo de a sociedade turca se questionar porque está tão livre de responsabilidade, porque é que a sociedade turca não faz nada para cooperar neste assunto. Na opinião deles, não têm que fazer nada sobre este assunto. Por isso é que os curdos devem ter cuidado. Recentemente, tivemos muitos exemplos disso, e um deles foi o Gezi Park no verão passado. Era só um protesto, um protesto básico, mas infelizmente tiveram que morrer 9 pessoas. Tivemos que as perder. Eram todos novos. É tão triste que nem sabemos o que dizer sobre isto. Um deles foi o Berkin Elvan, que após oito meses na unidade de cuidados intensivos, morreu hoje. Só tinha quinze anos. E o estranho nisto é que ele não estava a participar nos protestos. Foi à rua comprar pão, uma coisa básica. O Berkin Elvan agora é a “criança da esperança”, é assim que agora em homenagem lhe chamamos. Nem sequer podemos protestar a sua morte. A atmosfera na Turquia está a piorar, está a tornar-se muito autoritária, como nos velhos tempos. E veremos. Mas ainda temos esperança.”171
168 Entrevistado C. Entrevista decorrida em Janeiro de 2014, na Human Right’s Agenda, Ancara. Ver entrevista original em anexos, (nota 36). 169 Entrevistado F. Entrevista decorrida num café em Ancara em Março de 2014. Ver a entrevista original em anexos, nota 37. 170 Natasha Nazan, Professora assistente em Ciências Políticas na Universidade de Humanidades, Çankaya, na cidade de Ancara. Esta entrevista decorreu na própria universidade em Março de 2014. Ver entrevista na língua original em Anexos (nota 38). 171 Entrevistado E. Nota 39 (Anexos).
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A complexidade social, resultante das lutas identitárias interétnicas na sociedade
turca, é uma “ponta solta” no enredo socio-reivindicativo curdo, sendo difícil prever
um modelo coerente no que respeita ao futuro, à capacidade e aos interesses comuns
que os actores sociais turcos poderão partilhar com o grupo social curdo.
No entanto, na terminologia de Richard Fox, as afinidades sociais são ou
constituem consensos organizados por grupos descentralizados que se orientam para
obter o máximo de acções efectivas, com o mínimo de processos burocráticos
envolvidos.172 As afinidades sociais manifestam-se nas solidariedades interétnicas,
mas o seu grau de efectividade ou de concretização não pode ser observado como
fenómeno social efectivo sem olharmos primeiro para o contexto histórico, político e
social.173 Richard Fox quer com isto dizer que as afinidades sociais ou interétnicas
num determinado contexto dificilmente se tornam ou têm capacidade de se tornar
afinidades universais, e o seu poder coercivo contra as hierarquias poderá desvanecer-
se consoante as respostas dos governos e dos estados. Poderão sim, em fenómenos ou
contextos locais específicos, constituírem-se como um compromisso ou consenso
interétnico, cuja efectividade e modelo operativo se manifestem no fenómeno de luta
contestatária sob o denominador do fenómeno das resistências territoriais, importando
perceber se estes operam em escalas locais ou extra-territoriais.
Nos termos e efeitos transruptivos174 que a identidade armadilhada de Agier
produz em contextos multi-situados, o grupo cultural curdo pode ainda ser definido
como identidade cultural (ou como cultura interrompida), na sua relação com o estado
turco. O tabu social e político da identidade curda, expresso nas relações hostis turcas
com o PKK, é a primeira manifestação dos vários sentidos epistemológicos (ou do
paradigma político) que configura este grupo cultural sem o seu próprio estado. O seu
segundo sentido epistemológico assenta nas suas relações com o estado turco, em que
o processo da integração social curda foi postulado por um estado opressor, impondo
o nacionalismo na fundamentação do uso do método assimilacionista.
Ao invés e em oposição à ideia de assimilação, a ligação à cultura curda surge
neste projecto com uma continuidade a defender, já que esta se apresenta intimamente
alicerçada nos processos de resistência e de reivindicação social dos direitos
172 Fox, Richard, 2005, op. cit pág. 35. 173 Fox, Richard, 2005 op. cit., pág.5. 174 Hall, Stuart, 2003 op. cit., pág. 75.
79
humanos, em moldes atípicos, no conjunto de toda as problemáticas socio-
reivindicativas de outros grupos étnicos, e também, das reivindicações turcas. Se a
cultura, para Stuart Hall, e na linha da corrente pós-colonialista da antropologia, não
permanece no interior de fronteiras únicas nem transcende fronteiras175 como
poderemos então responder à sua pergunta e interpretar a cultura curda nos seus
efeitos disjuntivos, nas relações construídas através das diferenças que se reinscrevem
num identidade fragmentada e assente no conceito de comunidade local, nacional,
mas também transnacional?
5.4. A “etnicidade” curda sem “consenso social”, e em choque com a assimilação
turco-muçulmana.
“Muita gente diz, ouve-se: “ Se matas um curdo, então não é nada”. Dizem-nos
que não somos totalmente humanos.”176
No decurso da abordagem das questões surgidas acerca da identidade ou das
identidades, ou sobre o modo como o grupo cultural se representa actualmente,
surgiram vários obstáculos à definição do próprio conceito, sobretudo por este estar
histórica e narrativamente relacionado com a cultura turca e com o passado otomano /
persa. Este último subsiste e surge como denominador comum no paradigma
identitário entre ambas as culturas. Contudo, no modelo social actual, o grupo cultural
curdo, enfrenta ideias e projectos políticos divergentes dentro dos seus vários espaços
(partidários, associativos, agências e estruturas institucionais), constituindo um dos
principais obstáculos à resolução de um projecto oficial de paz para ambas as culturas
num território comum. O antagonismo social ( entre a assimilação identitária/ auto-
determinação curda) que surge está preso a um modelo social instituído, de difícil
solução. Em primeiro lugar, à pressão do lado institucional turco na identificação
absoluta com a identidade turco-otomana. Este modelo social, excluindo o grupo
cultural como grupo plural em sociedade, coloca-os ou posiciona-os num espaço, em
que são involuntariamente obrigados a abandonar as suas reivindicações socio-
políticas, sendo a elementar, o direito de acesso à educação pública na língua curda.
Em segundo lugar, na opção dos movimentos e colectivos partidários curdos
175 Hall, Stuart, 2003, op. cit., pg. 75. 176 Entrevistado C ( Anexos).
80
recomendarem o elemento do “étnico” europeu como projecto identitário, (na
oficialização curda como minoria étnica) levanta a questão do surgir de uma “amnésia
social” em relação ao passado fundacional turco, ao passado da guerra (na sua
memória colectiva) e também ao perigo de perda na reivindicação socio-política de
uma maior autonomia cultural e regional curda. Revela também que existe uma
perspectiva (a par de uma outra que defende o método assimilacionista) que
conceptualiza o elemento étnico na modalidade jurídica de uma futura
institucionalização como minoria étnica no âmbito jurídico europeu, com suspeição
de que esse elemento étnico na sociedade turca, rapidamente se tornaria invisível aos
olhos do governo vigente do AKP.
Na primeira opção ou modelo, (perante a adopção da identidade turco-
muçulmana) os curdos poderão reconstituir-se enquanto grupo cultural na Turquia,
perdendo a opção das diferenças sociais e culturais. A assimilação cultural, como
modelo político, poderá reconstituir o grupo cultural curdo e turco, nos termos do seu
passado otomano, em que o Islão os uniu e representava o seu elo de ligação cultural.
No entanto, na visão dos entrevistados, o modelo de assimilação nacional representa a
perpetuação da historicização da violência social e a sua manifesta perda de herança
cultural, não desvanecendo a sombra otomana, do perigo do desaparecimento da
língua curda e dos traços elementares ( mas também os complexos) da cultura curda:
“Mesmo tendo crescido num bairro turco, os meus pais tentaram criar-me no ambiente da cultura curda. Finalmente, acabei por me aperceber que tinha algumas influências turcas que chegaram até mim. Percebi que tinha a ver com o processo de assimilação e eu não quis ser totalmente assimilada. Foi por isso que decidi aprender a língua curda, depois de todo este tempo.”177
“Ser ou não assimilado está, como o resto, com a língua, porque a nação está ligada à língua. A língua é a primeira fase. Se estás apto a ser educado na tua própria língua, o processo de assimilação vai regredindo. O direito à língua é um direito básico, nosso.”178
“Eu penso muitas vezes nisto. Se tiver filhos um dia, vão ser curdos. Vou-lhes ensinar a língua curda. Se não o fizer, este ambiente vai assimilá-los. Sempre que ligarem a televisão vão ouvir apenas a língua turca. E vão sentir-se turcos. Tenho vários exemplos na minha família, a minha irmã mais nova, por exemplo. Ela é curda mas está sempre a dizer que é turca. Eu pergunto-lhe porquê é que ela diz sempre isto, e ela responde-me: “ Esquece os curdos, já
177 Entrevistada B, Entrevista decorrida na sua casa em Ancara, Fevereiro de 2014, ver origem de entrevista em anexos, nota 40. 178 Entrevistado C. Entrevista decorrida em Janeiro de 2014, na Human Right’s Agenda, Ancara. Ver entrevista original em anexos, nota 41.
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não interessa, nós vivemos na Turquia.” E diz-me que eu deveria pensar assim também.”179
“A Universidade foi muito importante na minha vida, até porque sou a primeira pessoa da minha família a graduar-se, foi algo revolucionário. Na minha vila, nós nem sequer tínhamos professores. O processo de assimilação turca também não nos ajudou a melhorar as nossas condições de vida. Posso dividir os meus amigos curdos em duas categorias. Metade deles está satisfeito com a assimilação e com o governo turco, porque pensam que desta forma irão ter uma vida melhor. A outra metade dos meus amigos curdos está consciente que são curdos a viver em território turco, mas sabe que o governo turco e a atmosfera política não irão beneficiar-nos, irão apenas criar essa ilusão. E sabe que o propósito final é eliminar a cultura curda, para que um dia desapareça completamente. Muita gente está feliz em ser escrava, só não entende que está a ser submissa (escrava) ao estado turco.”180
No estado turco, a língua é o principal, mas apenas um dos obstáculos
institucionais à liberdade de expressão curda. A discriminação curda no espaço
público correlaciona-se com aspectos de punição institucional da conduta e com o
processo de assimilação, como modelo a seguir, após o cessar do conflito da guerra
civil. No domínio público, ela é ainda visível como estratégia de rotina e padrão
actual de interacção social. Face ao processo de discriminação, os agentes sociais
recorrem à manipulação e ao uso da identidade “turco-muçulmana”:
“Não acontece muito em Ancara, porque o meu dialecto não parece curdo, disfarço muito bem, e o meu aspecto exterior também não é muito curdo. A minha mãe, quando me liga, e quando falo com ela em curdo, diz-me sempre: “Tem cuidado!” Mas vivo aqui há oito anos, sei intuir quando é ou não é perigoso falar em curdo. Uma vez trabalhei num escritório e o meu chefe perguntou-me: “És terrorista?” E eu respondi: “Sou? Obrigado”.181
“Vivo em Ancara há 15 anos. Ancara é bem melhor para os curdos/as do que Istambul. Mas aqui também há discriminação. Na Turquia, as pessoas curdas são como os negros. Eu nunca menti. E por nunca ter mentido já fui levada presa duas vezes. A primeira vez foi em 2008, por causa do “salto ideológico”, por estar a dançar a música “Ez berfim” (uma música curda, que caracteriza elementos tradicionais curdos), estive presa três ou quatro dias. A segunda vez foi numa altura em que as negociações entre o governo e o PKK estavam muito tensas; então o governo mandou ir “buscar” uns estudantes curdos à faculdade, em 2010. Tive um processo-crime contra mim, mas fui absolvida por falta de provas. Foram mais quatro dias. Nesses anos havia ainda muita violência entre o governo turco e os curdos. Não tão violento como em 1993, mas ainda assim, foi muito difícil.”182
179 Entrevistado F. Entrevista decorrida num café em Ancara em Março de 2014. Ver a entrevista original em anexos, nota 42. 180 Entrevistado F. Nota 43. (Anexos). 181 Entrevistado D. Entrevista realizada na minha casa em Ancara, em Março de 2014. Ver entrevista original em anexos, nota 44. 182 Entrevistado A. Entrevista realizada num café em Istambul, Fevereiro de 2014. Ver entrevista original em anexos, nota 45
82
“Infelizmente, não tenho muitos amigos curdos em Ancara. Porque ainda há cinco anos era tudo tão perigoso para nós. E nalgumas partes da cidade, esta ainda é perigosa para nós. Não podemos falar livremente aqui. Quando falamos em curdo, especialmente nas áreas públicas ou na escola, há pessoas que se aproximam de nós e dizem-nos: “Cuidado, isto aqui é a Turquia”. Ficamos com medo, eles intimidam-nos. Evitamos, por isso, falar em curdo. Não é assim em toda a parte, mas ainda há um discurso de ódio. Há pessoas em Ancara que são perigosas para nós. Se queres concorrer à função pública, tens que esconder a tua nacionalidade. Tens mesmo! No final, eles podem descobrir-te, mas nunca deves ser tu a dizer que és curdo. Podes dizer o nome da região de onde vens, Diyarbakir, Hakkari, Siirt, mas não podes dizer, especificamente, que és curdo. Se o dizes, pode ser perigoso para o teu futuro.”183
“Sim, às vezes preciso de não dizer que sou curdo. Ou quando me candidato a um trabalho, tenho que dizer que sou turco, não curdo. Neste tipo de situações, se eu dissesse que era curdo, iriam chamar-me de racista ou de separatista. Perguntavam-me logo: “Qual é o propósito disto?”184
No conflito civil entre as culturas (turca e curda), a manutenção de um modelo
social que institui a proibição da língua curda representa uma dimensão tão traumática
quanto o próprio processo da guerra e o recurso à diáspora, como recurso de
sobrevivência individual e colectiva. Surge também, do lado turco, um modelo
nacional separatista institucionalizado em relação ao grupo étnico curdo, que expõe
ambas as culturas (turca e curda) a um processo de extrema tensão e pressão social, ao
consolidar este projecto fundacional turco, impedindo a sua resolução ao negar um
dos elementos sociais chave na disputa do passado recente entre as duas culturas, a
diferenciação cultural e linguística oprimidas:
“A minha professora lutava comigo, não só comigo mas com todas as crianças curdas, porque não sabíamos falar a língua turca. Nessa altura todos nos odiavam, a política instalada era a de ódio contra os curdos.”185
“ É difícil explicar como foi estudar numa escola turca. Na primária sempre que chegavas à escola, todas as manhãs, tinhas que cantar: “ Feliz é aquele que diz: Eu sou turco”. Tinhas que o fazer, mesmo sabendo que “não és” turco. Até ir para a Universidade, escondi sempre a verdade, que sou curda, porque tinha medo de perder os meus amigos e de ser atacada pelas pessoas.186
“Na minha sala, os meus colegas não falavam comigo porque eu era diferente deles... Lembro-me que sempre que o meu professor me perguntava alguma coisa, e eu não podia responder, zangava-se comigo e às vezes batia-me. Achava que lhe faltava ao respeito. Ou então não gostava de pessoas curdas. Se calhar era um professor ultra-nacionalista, eles não gostam dos curdos. Na escola, a nossa professora dizia-nos sempre: “ Tens que falar turco, tens que escrever em turco, porque esta é a área da Turquia. Os primeiros tempos foram
183 Entrevistado E. Entrevista realizada na Human Right’s Association em Fevereiro de 2014, Ancara. Ver entrevista original em anexos, nota 46. 184 Entrevistado F. Entrevista realizada num café em Ancara em Março de 2014. Ver a entrevista original em anexos, nota 47. 185 Entrevistado A. Nota 48. (Anexos). 186 Entrevistado B. Nota 49. (Anexos).
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muito difíceis. O nosso professor falava apenas em turco connosco, ficávamos o tempo todo a olhar para ele, sem perceber nada. À medida que o tempo passava, percebemos que tínhamos de aprender a língua turca, porque todo o sistema de educação na Turquia é baseado na língua turca.” 187
O sociólogo Norbert Elias, no âmbito do estudo de uma pequena comunidade
em Inglaterra (no bairro Wiston Parva) analisou as relações de poder e os significados
simbólicos, no contexto dos “estabelecidos” (indivíduos e grupos integrados
nacionalmente em sociedade) e os “outsiders” (excluídos socialmente) em Inglaterra.
O autor define os “ ideais hipertrofiados” como um elemento perigoso no jogo das
interdinâmicas sociais, porque refundem, propagam e nutrem as fantasias colectivas,
apoiando o bloqueio da naturalização / regulação das dinâmicas e relações sociais,
que têm como efeito a marginalização de grupos culturais específicos, em função de
outros. O autor classifica as fantasias políticas em função de fantasmas proto-
históricos, que arbitrariamente vão surgindo na sociedade como repostas às
ansiedades sociais e ao ressurgimento ou activação de antigos padrões históricos.188
Os fantasmas proto-históricos, em função da escolha de um modelo étnico em
sociedade, não são consensuais no grupo cultural curdo, porque os padrões recentes
da guerra (e o elemento curdo do movimento de resistência PKK, activando-se e
desactivando-se de forma intermitente no século XXI) despertam o medo e a
ansiedade face à hipótese de um novo conflito militar. O processo e a negociação de
paz entre ambos os lados levantam questões vulneráveis de desconfiança e temor
perante as pressões governamentais e institucionais na adopção de um modelo de
identidade única. Os termos de um presente socialmente repressivo no que concerne
aos direitos curdos na sociedade turca, a par da punição e da prisão do seu líder
Abdullhah Öcalan, não desbloqueiam nem facilitam as motivações de ambos os lados
(curdos e turcos) no processo de cura colectiva devido às guerras do passado. No
entanto, a visão da cultura curda como minoria étnica, se oficializada no interior da
sociedade civil, é perspectivada com base na “ideologia europeia” do lado das ongs’s
e associações reivindicativas dos direitos humanos na sociedade turca, (como o
revelaram as entrevistas institucionais deste projecto) e representa um factor de
esperança com expectativas altas na esperada reconfiguração democrática da
sociedade turca.
187 Entrevistado C. Nota 50. (Anexos). 188 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L., Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, pág. 32. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
84
5.5 O futuro das reivindicações socio-culturais (o étnico aliado à minoria étnica)
e os espaços preenchidos pelo tabu social.
“...não há estatísticas. E é bom não sabermos, é um assunto muito sensível e nunca é bom perguntarmos-lhes (aos curdos) qual a sua identidade étnica, porque eles não querem declará-la. É uma declaração que eles querem fazer por si mesmos, se lhes perguntas não, é um assunto proibido e privado. Mas se na prática fossem declarados como minorias étnicas, claro que poderiam desfrutar dos mesmos direitos das outras minorias na Turquia, se o quisessem.”189
Karl Mannheim, na obra Ideologia e Utopia, apresenta duas concepções que
podem ser recriadas através das matrizes ideológicas dos grupos sociais e culturais. A
primeira assenta numa concepção particular da ideologia, na qual o pensamento
teórico se constrói através da observação dos percursos de vida e da recolha
individual dos testemunhos dos agentes sociais. Na reconstrução ou recriação das
narrativas dos fenómenos sociais vividos, ou seja, na visão particular dos agentes ou
actores sociais em relação ao passado, encontramos também a descrição da sua
narrativa ideológica e a sua auto-representação enquanto elemento de um grupo
específico ou comunidade.190
Na visão de Mannheim, os conceitos (ou concepções) individuais ideológicos
representam um fenómeno intermédio entre uma “versão distorcida da verdade”,
justificada pelos lapsos e amnésias temporais, reconciliada com os interesses do
próprio grupo/ grupo sociais na sociedade.191
Desta forma, o universo específico de cada indivíduo existe em referência ao
conjunto dos seus interesses pessoais, mas também aos do seu grupo social. A cultura
serve assim para que os laços afectivos se assumam e redefinam perante a matriz
ideológica do grupo ou perante uma circunstância social e particular vivida.
A identidade curda é actualmente um paradigma socio-político para o estado
turco, como é testemunhado neste projecto, simbólico, intangível e fluido, inserindo-
se ou institucionalizando-se na capacidade que a cultura turca (enquanto sistema
social) tem de o abranger face aos condicionamentos institucionais, estando
condicionada pelos obstáculos jurídicos, e institucionalizada nos processos de
discriminação no sistema holístico turco:
189 Günal Kursun, Entrevista na sede do centro de Investigação Human Right’s Agenda, Março de 2014 (ver origem da entrevista em Anexos, nota 51. 190 Manheim, Karl, 1929, Ideologia e Utopia, pág.52. 191 Manheim, Karl, 1929, Ideologia e Utopia, pág. 53.
85
“Ser curda para mim significa, por exemplo, ao longo da minha vida continuar a vestir a roupa tradicional curda no Nevrus, o festival da primavera, no dia 8 de Março, dia da mulher, no primeiro de Maio, etc. Mas na minha vida diária, não posso usá-la, seria atacada ou sentiria uma pressão social insuportável.”192
“E sabes, não me tinha consciencializado assim tanto, que era curdo, até entrar na universidade. Por causa do nosso sistema de educação. Porque é que não mudamos o nosso sistema educativo? Porquê? É só um sistema. Espero que um dia, em todas as escolas turcas se ensine a nossa língua nativa. Nessa altura, ficarei feliz.”193
“Eu sinto, às vezes, que as pessoas que discriminam, sentem vergonha de o fazer. Mas outros, nem por isso. Muitos deles pensam mesmo que nós não devíamos estar aqui. Como o é, com o caso da Arménia. No passado, a Turquia já o fez com os arménios, foram obrigados a mudarem-se para outro país. Foram expulsos desta região.”194
A segunda concepção de Karl Mannheim aborda o plano do macrocosmo dos
grupos. Ou seja, o que permite perceber o que é definido para um grupo em geral,
como ideologia total, projecto comum e identitário para esse grupo (seja uma
ideologia tradicional, ou uma ideologia refundada noutros parâmetros identitários). O
ideal como representante do todo, permitindo que o grupo se represente a si mesmo,
expressa-se nos movimentos e colectivos de resistência, e nas suas reivindicações
socio-políticas, sendo o partido democrático ( refundado após os anos de dissolução
partidária, como o HDP) actualmente um dos partidos mais activos na defesa curda.
Porém, a sua ideia do “ideal total”, como projecto comum, não surge como um
conceito puro e livre de conflitos sociais e forças opostas na sociedade, como
constatamos nas divergências da auto-representação curda. O conceito do ideal-total
surge também como necessidade no fenómeno de continuidade cultural, construindo
uma ponte a partir de um fenómeno mais pequeno: o de um “ideal particular”, que
nasce nos agentes sociais, como projecto político, e na tentativa de encontrar o seu
“fenómeno”, ou concepção de cultura. A construção, ou a constituição de um sistema
cultural é muitas vezes consequência de recuos e de avanços históricos, manifestando-
se no enredo de uma pluralidade de acontecimentos heterogéneos. A ideologia poderá
transformar-se, mas também poderá constituir-se, por muito tempo, como um
fenómeno supra-temporal. Assim, a ideologia de um projecto cultural poderá
192 Entrevistada A, Entrevista realizada num café em Istambul, Fevereiro de 2014. Ver entrevista original em anexos (nota 52). 193 Entrevistado E. Nota 53. (Anexos). 194 Entrevistado F. Nota 54 (Anexos)
86
manifestar-se como único elemento social estável e denominador comum em tempo
de desordem ou de desintegração cultural195.
Neste sentido, no enredo ideológico curdo, também a identidade curda
corresponde a uma visão particular de cada indivíduo. Nos termos da análise
identitária, o paradigma que parece importar em contexto turco (no micro-universo
estudado em terreno) está mais perto de uma reflexão sobre os termos da cultura
(sobre a questão da sua auto-representação cultural), da sua oficialização e
desbloqueio em relação aos tabus sociais instituídos no passado da guerra e da longa
história de conflitos. A dimensão do étnico (como pretexto à adesão de um modelo
europeu) fica, por isso, em campo ambivalente e como ideia embrionária da futura
reconstituição do grupo enquanto reconfiguração cultural.
Funcionando como armadilha identitária para as culturas em recriação ou em
expansão, Michel Agier196 apresenta o ‘étnico’ como elemento diferencial, prevendo
um confronto da “parte” (dos grupos sociais diferenciados) com o “ todo” (a
identidade ou monocultura da maioria social no contexto específico) e é por isso
problemática a sua análise social, no contexto de uma cultura fragmentada:
“Tornar-nos minorias, é um status. Claro que é melhor pertencer a uma minoria. Eles forçaram-nos a sermos turcos, forçaram os ciganos a serem turcos, forçaram os arménios, os alevis...se nos reconhecerem como minoria, já não nos podem oprimir.”197
“Se me perguntares se o problema curdo é um problema democrático, digo-te que não é. Pode estar englobado nos problemas democráticos, mas é acima de tudo, é um problema de minorias. E eu considero os curdos uma minoria na Turquia. Somos 30 milhões, os outros 30 milhões pertencem a outras minorias. O governo não fala sobre isto, porque se o fizer, é obrigado a atribuir-nos direitos. O movimento curdo diz-nos que somos um caso à parte e que ajudámos a construir o país. Mas para mim, ser curdo, é pertencer-se a uma minoria.”198 .
“Penso que a Turquia é um óptimo país para se viver, se nunca disseres que és curdo. Se o disseres, as pessoas vão lutar contra ti. Só vou ao Curdistão visitar a família 3 ou 4 vezes por ano. Mas quando vou, sinto-me muito feliz. Eu vivo aqui, mas sinto que pertenço ao Curdistão. Gostava de poder lá viver, mas sinto que é impossível, só temos uma universidade e nem uma biblioteca decente.199
195 Mannheim, Karl, 1929, op. cit., pág. 58-59. 196 Agier, Michel, op. cit. 197 Entrevistado C. Entrevista realizada em Janeiro de 2014, na Human Right’s Agenda, Ancara. Ver entrevista original em anexos, nota 56. 198 Entrevistado D Entrevista realizada na minha casa em Ancara, em Março de 2014. Ver entrevista original em anexos, nota 57. 199 Entrevistado F. Entrevista realizada num café em Ancara. Ver entrevista original em anexos, nota 58.
87
O elemento ‘étnico’, como sistema categórico diferencial na sociedade turca,
testemunhado nas entrevistas ao longo do projecto, liga-se à falta de consenso social,
e também à inexistência de uma proposta institucional que dê significado a um novo
“rumo identitário” ou cultural. A par do plano ideológico do grupo cultural curdo, o
‘étnico’ está presentemente associado à oficialização de um problema do passado. Em
primeiro lugar ao problema do tabu social, (à guerra civil), depois ao processo de cura
para ambas as culturas. O passado histórico foi instituído como barreira jurídica e
constitucional, intransponível, nos termos de paz social efectiva expressa na
interacção e nas relações sociais entre ambas as culturas. O tabu social, definido por
Van Gennep como um rito negativo, representa uma estrutura ou esquema social, em
que se confronta com o rito positivo. Na sua definição, ambos os ritos são
interdependentes, nenhum surgindo isoladamente no quadro social. Para este autor, o
tabu social tem tendência a ser isolado, marginalizado e separado da esfera social,
vivendo, assim, o efeito liminar que as sociedades e culturas podem produzir,
nomeadamente em contextos plurais. O tabu social curdo, percepcionado aqui como
obstáculo e resultante de um conflito étnico, na linha geertziana, deveria e pode
obrigar um determinado sistema social a aliar ou unir a dimensão política à dimensão
social, quebrando o limite, mudando a direcção ou fazendo entrar em ruptura um
determinado modelo social exclusivo ou opressivo aos seus “outsiders” (como no
caso da constituição nacionalista turca).200 Afirmar ou correlacionar a possível
redefinição ideológica do modelo social turco com o fenómeno da continuidade ou
com a futura integração social curda através do elemento do “étnico”, é controverso e
um processo de análise não linear, dada a complexidade que o mesmo fenómeno (o
tabu social manifesto nas variâncias dos efeitos discriminatórios) implica nos
conflitos produzidos em sociedade. Também, neste sentido, os significados dos
conceitos ‘cultura’, ‘comunidades’ ou ‘grupos étnicos’, mediadores das ideologias do
espaço cultural em que habitam, influenciam em muito a possibilidade de
reconstituição cultural de um grupo. Nestes termos, a identidade política surge como
revindicação plausível face aos processos discriminatórios e à anomia social201
instituída.
A identidade política como reconstituição de um grupo, segundo James
Clifford, utiliza a herança cultural no âmbito das suas tradições (e como tal, os 200 Geertz, Clifford, op. cit. 201 Durkheim, Émile,, op.cit.
88
símbolos que as constituíram) que, ao redefinir a identidade cultural, transforma a
própria noção de cultura do indivíduo, dos grupos e das comunidades. James Clifford
define a noção de identidade política, no âmbito de um projecto de construção de
modernidade (para os grupos, um sentido próprio e um modelo próprio de
modernidade diferenciando-se de outros projectos modernos) contra um sistema
hegemónico202. Surgem desta forma as disputas dos vários projectos de modernidade.
No entanto, o uso da identidade política curda, ligada ao conceito de cultura e ao
espaço cultural, relaciona-se com a dimensão do tabu social instituído e com a sua
resistência interna. Manifesta-se mais claramente, à luz deste projecto, uma defesa
interna cultural do que um projecto de negociação dos termos de paz, ou seja um
projecto de reconciliação cultural. A cultura curda vai perdendo a sua flexibilidade ao
constituir-se como um cultura sui generis, nos termos durkeimianos, devido às
pressões sociais, institucionais e simbólicas do passado recente. A interligação dos
espaços culturais (diferenciados nas zonas habitacionais, mas também ideológicas,)
no contexto do estado turco, e na relação com o projecto de modernidade turca, não
apresenta ainda um projecto ideológico comum. Esta ideia surge, no sentido em que a
reconciliação cultural curda tem sido definida por uma constituição jurídica separada
e desconectada de uma representação partidária curda igualitária, por ainda estar
ligada à ideologia da autonomia cultural curda e à figura de Abdullhah Öcalan, como
líder da “antiga tradição” na constituição do movimento do PKK, activo, embora de
forma imprevisível face aos jogos de poder do governo turco.
Sobre as políticas de reconciliação, Kymlicka e Bashir203 instituem três modelos
de políticas de reconciliação étnica como consenso social possível em sociedades em
transição ou em reconfiguração de / para um modelo democrático.
O primeiro alude à memória, sendo uma política de conciliação / afectiva em
relação ao passado, aludindo também ao lado social afectivo. Este revela-se na
construção de memoriais históricos através de correcções históricas entre culturas,
manifestando um desejo de abertura e criatividade cultural nas relações interétnicas.
O segundo consenso social - modelo de reconciliação étnica - procede à
institucionalização da lei jurídica, abrangendo os direitos constitucionais e jurídicos,
cumprindo os critérios básicos dos direitos humanos. Para o paradoxo curdo, o direito
202 Clifford, James, op. cit., pág. 98. 203 Kymlicka & Bashir, 2008, op. cit., pág 7 a 12.
89
à língua, ainda um pilar por construir, caso fosse reconhecido seria a prova da
demonstração de uma política deste género.
A terceira estratégia de reconciliação é - visa dar continuidade e regular o
cumprimento das primeiras duas políticas - definida como uma “reconciliação
cosmopolita”, pertencendo ao domínio público da sociedade, representado por grupos,
colectivos políticos, ongs e associações humanitárias activas na defesa dos direitos
humanos.
A importância das políticas de reconciliação cultural é, na perspectiva destes
autores, um campo aberto na antropologia contemporânea, no âmbito dos estudos das
políticas multiculturais emergentes no século XX, para uma interpretação da génese
das identidades políticas actuais na redefinição e reconstituição dos grupos ou
comunidades nas margens sociais de um estado.
Os espaços preenchidos pelo tabu social curdo (a guerra civil) são espaços
vazios, que estão ainda por determinar entre uma política de renegociação e de
reconciliação cultural. A impossibilidade de reconfiguração da sociedade turca, para
que possa integrar o seu maior grupo étnico, reproduz e opera os espaços da
discriminação. Coloca à margem a reconfiguração cultural curda, fragilizando os seus
laços sociais na inacessibilidade à língua, e alimentando o medo e a ansiedade cultural
perante a possibilidade de um embate ideológico. Clifford Geertz, no estudo sobre a
interpretação das culturas, refere-se ao pensamento ideológico, nas sociedades
desestruturadas ou em desequilíbrio social, como sendo muitas vezes, uma resposta
política ao desespero que os desequilíbrios originaram no foro psicológico e social.
Os agentes sociais curdos, face ao conflito e ao embate ideológico provocados,
passam a desempenhar um papel social padronizado (o discriminatório / o
discriminado ou o opressor/ resistente), perpetuado pelas agências (sociais) e
estruturas (institucionais) turcas.
Nesta linha, os contextos / espaços vulneráveis gerados pelas diferenças
ideológicas, criam e recriam padrões históricos do passado (como o medo de padrões
cíclicos como o é a violência estrutural) que funcionam como “ tampão” social e
ideológico204 dando uma continuidade cíclica aos desequilíbrios estruturais: “o
embate das ideologias pode chamar a atenção pública para um problema social, mas
204 Taylor, Charles, op. cit.
90
também pode sobrecarregá-lo com tal paixão a ponto de tornar impossível lidar com
ele de forma racional.”205
Na visão microssocial dos entrevistados deste projecto, a reconciliação cultural,
como projecto político, se representada pela diferenciação cultural (na oficialização
étnica) poderá resolver determinados problemas sociais, no que concerne aos direitos
humanos curdos. Nesta visão social institucional, não só a memória colectiva em
relação ao passado terá que se reconfigurar como elemento de cura, mas também terá
que unir (os dois grupos) na definição de um projecto socio-político comum.
Contudo, nesses espaços de negociação surgem, porém, outras problemáticas
sociais provenientes dos novos espaços modernos, e também de novos conflitos nas
relações com o modelo religioso islâmico, noutros países do Médio Oriente, que
poderão, também eles, ser esclarecedores no futuro das evoluções e/ou retrocessos
sociais que a cultura curda ainda terá que enfrentar.
205 Geertz, Clifford, op. cit., pág. 116.
91
VI – CONCLUSÃO
“ The classic nationalist belief, of course, was that every nation, should have it’s own sovereign state, but I can see no reason for making it part of the definition of a nation that it’s members should be nationalists in this strong sense. One of the other hand, a social group that had no political aspirations at all would surely be counted, as an ethnic group rather than as a nation.”206
6.1. Considerações teóricas acerca da realidade curda no espaço imaginado do
estado moderno turco.
Na sua dimensão macro- social e global, o paradigma curdo manifestou-se neste
projecto numa primeira questão: face à ideia de um sujeito multi-situado, (dividido
entre os vários espaços culturais), como se foi constituindo e auto-representando o
grupo cultural curdo (enquanto comunidade imaginada) ao longo da história na
reificação dos seus laços imaginários entre quatro países? Nas suas dimensões micro-
sociais, locais e regionais, as questões do paradoxo curdo subdividem-se noutras
questões ligadas ao seu contexto específico e território. Como podemos interpretar
que estes, na linha de Agier, ainda vivam a armadilha da fronteira, materializada nas
lutas dos conflitos identitários de natureza cultural, política e religiosa? Em que
medida nessa alteridade, entre o local (nos territórios das diásporas) e o global
(inseridos no novo modelo social neoliberal e cosmopolita) se situam os curdos da
Turquia? De que forma, as suas lutas identitárias têm vindo a desfragmentar as suas
noções de cultura?
Como é que as noções de cultura dos curdos, enquanto comunidade
transnacional, lhes têm permitido uma reinvenção identitária e socio-política contínua
nos novos espaços diaspóricos? E será esta reinvenção cultural mais próxima ou
homogénea na contemporaneidade das conjunturas globais que agora enfrentam,
permitindo a ruptura das fronteiras entre o local e global?
À luz da actualidade, o paradoxo da cultura curda situa-se no campo de uma
dialéctica entre o domínio simbólico, que o seu grupo representa em sociedade (com
recurso aos partidos políticos, movimentos sociais e ongs), e um modelo de estado
206 “The ethical Significance of nationality”; in Ethics, vol.98, nº4, pg. 648.
92
único. O nacionalismo, como modelo ideológico, está instituído, num modelo secular
(europeizado) que trava questões complexas no que concerne ao diálogo com a
comunidade curda: as negociações do processo de paz, após o conflito civil. A visão
nacionalista turca tem como problemática central, o recobro ou o processo de cura
típico da política de reconciliação cultural, ainda e em contínua renegociação. O
projecto identitário único produziu dentro da sua ideologia um mecanismo social, que
tem vindo a perpetuar-se desde o fim da guerra civil, que cria e recria tensões,
ansiedades sociais, reforça e aproxima o modelo social curdo de um modelo de
exclusão social.
David Miller, baseando-se no pensamento de Anthony Giddens a propósito da
constituição das nações207, desenvolve a ideia de nação como uma criação de um
espaço cultural, constituído por laços imaginados entre os indivíduos que, no mesmo
território, partilham a língua, a “raça” e a religião. Utiliza o sentido de “comunidades
imaginadas” de Benedict Anderson como analogia da ideia de manufacturação das
nacionalidades (Giddens, 1986) como produto social das relações de poder de um
estado.
As comunidades, para Anderson, são imaginadas porque se constituem através
de “laços invisíveis”, híbridos e fluidos nas sucessivas readaptações culturais que
vivem ao longo das suas narrativas. Deste modo, não são as comunidades que vivem
num plano exterior a si mesmas, ou seja: as comunidades são reais, mas os seus laços
sociais e sentimentos de pertença é que se constituem numa imagética da
representação idealizada do grupo sobre si próprio. As nações, na concepção de David
Miller208, são uma forma inventada de criar laços imaginados, através de um
mecanismo ideológico exterior aos agentes sociais, na imposição da lealdade como
postulado prático aos colectivos que a constituem. Na antropologia pós-colonialista,
vários estudos defendem a ideia da nação como uma criação (uma invenção a par dos
fenómenos das novas tradições, despontadas no contexto dos globalismos) de laços
imaginários entre os grupos sociais e culturais. Sinisa Malesevic209 é também uma das
precursoras da ideia de nacionalismo como criação exterior à esfera individual e
207 A.D. Smith “The Ethnic Origins of Nations (Oxford: Blackwell, 1986.), citado por Anthony Giddens, pag.654). 208 Miller, David (1998). "The ethical significance of Nationality". In Ethics, vol. 98, nº 4. Chicago: Chicago Press University, pp. 647 - 662. 209 Malesevic, Sinisa (2011), “The Chimera of national identity”. In Nations and Nationalism, vol.17 pp. 272-290.
93
social dos agentes sociais, embora com algumas divergências em relação a David
Miller quanto aos significados de ‘nação’ e de ‘nacionalismo’. A nacionalidade, na
sua visão, como quimera, é edificada ideologicamente pelos agentes sociais,
constituindo a ideologia um importante sistema operativo nas recriações dos laços
sociais e das quimeras nacionais das sociedades modernas. No entanto, no estudo
antropológico dos elementos e mecanismos estruturais que definem e constituem as
nações, surgem divergências teóricas, em primeiro lugar, quanto à forma como os
elementos étnicos e os modelos pluralistas se inter-relacionam nos modelos
nacionalistas e, em segundo lugar, quanto à forma como os diferentes grupos culturais
gerem as suas interdependências sociais - (o estado) e forças opostas (os movimentos
sociais) - no mesmo contexto ou território. Na visão do fenómeno local e global dos
protestos e movimentos sociais operantes no estado turco, a solidariedade interétnica
apresenta-se como uma aproximação cultural, (ainda que espontânea e não
internalizada socialmente no seu todo), enquadrada também no contexto civil da
plataforma das instituições e associações reivindicativas socio-políticas, entre o grupo
cultural curdo e os restantes grupos étnicos. O modus operandis reivindicativo, nos
moldes cosmopolitas ou de um projecto moderno interétnico, tem sido uma estratégia
definida pela sua eficácia face à pressão social governamental, mas também tem tido
uma resposta eficaz de punição colectiva.
No entanto, tanto as solidariedades inter-étnicas (os grupos sociais alinhados no
mesmo sentido reivindicativo) como os laços sociais unificadores de uma nação, (a
identidade única) são constituídos por forças opostas que a confrontam. Eles, na visão
de David Miller, não são espontâneos e são concebidos pelos grupos ou por políticas
governamentais que produzem, no seu interior, jogos identitários. À semelhança da
ideia de grupo interdependente de um estado antagónico socialmente, o grupo cultural
curdo como comunidade transnacional e intangível (na assunção de que o seu
território foi repartido nas teias das relações históricas do poder do estado turco), é
também uma comunidade que interage na esfera nacionalista. Nesse espaço unificado
por uma ideologia, a questão curda vai-se fragmentando, nutrida pelo sentimento de
desconexão ou de descontinuidade cultural210 num modelo social, que não lhe
permite identificação plena com a ideologia dominante.
210 Clifford Geertz, 1989; James Clifford, 2000; David Miller, 1998.
94
Sobre os modos de actuação das nações, no estudo das práticas sociais
instituídas numa realidade social, a questão mais relevante que David Miller nos traz
relaciona-se com o problema fundamental para a definição do próprio conceito de
‘nacionalismo’: serão os laços sociais, que interligam os agentes sociais à sua
realidade (estrutura social / território), reais ou laços ficcionados, inspirados numa
identificação cultural afectiva?211
Esta questão revela-se fundamental por dois motivos interligados: a incerteza
analítica, para a antropologia, quanto ao significado e ao sentido da ideia de
‘comunidade’ por um lado, e por outro, a dificuldade em destrinçar, no campo das
ideologias, os efeitos culturais e as transformações que os laços (ou as ideologias)
significam para os agentes e para os grupos sociais. Assim sendo, de que modo é que
os laços de um grupo cultural (ou comunidade) mais ou menos genuínos, mais ou
menos reais ou autênticos se podem afirmar? A questão torna-se relevante para uma
abordagem que pretenda descodificar as vantagens da autenticidade (a constituição de
um grupo que preserve a memória social da sua narrativa histórica) tal como as
desvantagens face à pressão social externa (criando hiatos na continuidade cultural de
um grupo) que o quadro social ideológico, num contexto micro-social (comunitário)
ou macro-social (a sociedade) oferece como descodificador dos seus mecanismos
internos.
O grupo cultural curdo procura, no século XXI, a autenticidade das suas
tradições no projecto moderno turco, ao mesmo tempo que redefine o seu projecto
cultural num contexto em que os choques de várias modernidades surgem na
simultaneidade de várias circunstâncias históricas. David Miller, na perspectiva das
comunidades à margem de uma sociedade, compreende e assinala o quadro ou
postulado ético do estado, no sentido dos valores éticos e paradigmas morais dos
agentes sociais de uma maioria cultural e comunidades, ao preocupar-se com a
readaptação e a redefinição do consenso social. Sendo esta uma questão complexa,
que dividiu as duas culturas desde a fundação do estado turco, os conflitos modernos,
entre as escalas sociais locais (como o são os grupos sociais em reivindicação), e as
escalas globais, (os mecanismos socio-políticos transnacionais) têm vindo a ser
redefinidos no campo dos estudos antropológicos, no âmbito da investigação das
políticas multiculturais. Na visão de David Miller, o campo da crítica às éticas 211 Miller, David, op. cit., pág. 648.
95
(valores) universais (no que concerne aos direitos humanos) é o campo de estudos
alvo para a antropologia dos direitos humanos, com destaque para a interpretação das
dinâmicas inter-relacionais entre os grupos sociais e culturais nos espaços de políticas
nacionais.
Os espaços proto-nacionalizados212 definidos pela língua, “raça” e religião, vão
desestruturando o grupo comunitário curdo, no interior de conflitos maiores vindos do
interior da visão de um estado, (inserindo-se, aqui, o fenómeno do terrorismo
generalizado), mas também provenientes do exterior (os conflitos particulares do
Médio Oriente e a preocupante expansão do terrorismo da ISIS). Nesta óptica, o
estado é definido como o principal mediador dos conflitos emergentes, mas também
responsável pelo estabelecimento de práticas sociais que ligam os indivíduos a um
contrato social e a uma visão específica do universo em que se inserem.213
Para uma antropologia que se desdobra no estudo das relações entre os grupos
étnicos e os estados de modelo único, no desenvolvimento da ideia de vínculo social e
cultural através do contrato social, como elo de união entre os indivíduos que
partilham um espaço único, é importante questionar para que servem as origens, as
autenticidades culturais, no contexto de pesquisa, dos laços sociais constituídos no
interior dos vários universos sociais disponíveis. O grupo cultural curdo, na dialéctica
com o estado turco, tem-se constituído por isso como cultura liminar, num projecto de
estado-nação único. Esse estado de identidade única, na visão apresentada neste
projecto, é um tipo de modelo social que recorre ao processo de assimilação
identitária como mecanismo de integração social. A memória colectiva curda tem
vindo a alinhar-se e a readaptar-se, nas últimas duas décadas e meia, num contexto de
saturação de experiências, apesar dos efeitos traumáticos da guerra civil, ao destruir
parte do seu património cultural e simbólico, continuarem bem vivos na memória
curda. O processo de assimilação social como estratégia colectiva na reintegração
social no estado turco é aplicado como modelo, ao mesmo tempo que surgia a
dialéctica do projecto moderno europeu (a esperança de integração na União Europeia
até ao ano de 2006) como enquadramento da reconciliação cultural entre o grupo
curdo e a sociedade turca. A complexidade do enredo dos fenómenos sociais vividos
pela comunidade curda entre os processos das diásporas e os processos de
212 Hobsbawm, Eric, 1990, op. cit. 213 Miller, David, 1998, op. cit.
96
readaptação e cura social da guerra civil, no âmbito de um projecto secular europeu,
que se opõe ao ressurgimento de um modelo centralizado na religião Islâmica, leva-
nos à pergunta: o que lhes reserva o futuro?
6.2. O projecto social curdo que surge e se delineia a partir do contexto turco.
“Ethnics groups having no aspirations to political autonomy, can hold out no such promise. They are at the mercy of nations, and whether a particular ethnic identity remains-viable-whether one can maintain it without sacrificing other commitments to an intolerable degree- depends on the contingencies of national politics. That is not an argument for abandoning ethnicity in favor of nationality, but for harmonizing the two: it is an argument for having national allegiances that promise to protect your ethnicities.”214
O significado cultural dos projectos políticos, no interior de um estado único,
visando definir o modelo social no sentido de distribuição social para a
responsabilidade étnica215, representa uma reconfiguração social das sociedades
modernas, fluida e em processo evolutivo nos quadros históricos das sociedades pluri-
étnicas actuais. Justifica-se assim, à luz do século XXI, na sequência de diásporas,
conflitos militares e migrações, fruto das acelerações históricas, que tenham ocorrido
grandes transformações sociais. As relações do estado turco com o grupo cultural
curdo têm-se confrontado, ao longo dos anos, com uma ferida histórica: a quebra da
promessa de Attaturk em expandir os laços sociais e culturais de ambos os grupos
sociais (turco-otomanos e curdos) num espaço cultural comum. Esta quebra bloqueou
a construção de laços afectivos entre ambos os grupos e encurralou-os num conflito
identitário, marcado pela configuração do estado turco. Numa primeira fase,
encurralou-os em relação aos seus interesses estratégicos e políticos (o território) e,
numa segunda fase, nas relações que o grupo cultural curdo estabelece com o Médio
Oriente e com a Europa. Na visão de David Miller, este assume que a perspectiva dos
laços nacionais de um grupo social pode ser, a nível ideológico, instituída em prol de
uma defesa cultural mútua (da identidade nacional e dos seus grupos étnicos). Mas,
por vezes, a ideia de uma identidade nacional, que consiga abranger outros grupos
étnicos e proteger o quadro básico dos direitos humanos, não é uma configuração
social fácil de concretizar nos termos de regulação jurídica e do controlo dos
214 Miller, David, op. cit., pág.659. 215 Miller, David, op. cit., pág.659-660.
97
interesses de determinado estado face aos interesses das minorias étnicas. Em alguns
contextos específicos, as feridas históricas produzem demasiadas pressões sociais e
institucionais num sentido oposto: em projectos políticos e identitários diferentes, isto
é, reconstituições da memória colectiva com diferentes e ambíguas narrativas
históricas, bloqueando o consenso social na gestão dos diferentes modelos sociais
num espaço cultural comum. As feridas históricas também podem produzir tabus
sociais e culturais específicos, como o é, por exemplo, no contexto turco, a instituição
da língua curda no sector privado da sociedade, como forma de evitar a rememoração
do seu passado conflituoso. O projecto, que se delineia para os curdos, no contexto
político turco, terá que ser definido na reconstituição da memória colectiva do
passado e na redefinição de uma política de reconciliação cultural. De realçar que, na
análise de David Miller, nos casos, em que as feridas históricas entre grupos étnicos e
identidades dominantes são impossíveis de reconciliar, uma das opções de modelo
político a que se pode recorrer é à institucionalização de uma segunda
nacionalidade.216 Dá, como exemplo de ferida histórica de difícil reconciliação, o caso
alemão, em que o modelo nazi de violência social e de extermínio cultural do grupo
religioso judaico marcou e rompeu com a ideia de equilíbrio social e afectivo.
Ainda assim, muitas sociedades organizadas em torno da ideia de estado
moderno, produzem em si discrepâncias, ou contradições ideológicas, nos períodos de
coexistência com diferenciados grupos étnicos. No século XXI, estas sociedades têm-
se confrontado com modelos sociais diferenciados, procurando reconfigurar as suas
políticas na direcção de um modelo pluri-étnico justo e equilibrado. Cada cultura (ou
sociedade) produz, no entanto, em si mesma, casos e contextos socio-étnicos
particulares. Uma análise social que reflicta sobre os novos modelos de cidadania ou
de políticas multiculturais, não pode deixar de ter em conta esses particularismos
sociais, nem cair na tentação de generalizar a sua crítica à interpretação destes novos
modelos na tentativa de estabelecer ou relacionar postulados universalistas no campo
dos direitos humanos desses grupos étnicos. Para a antropologia, o paradigma da
etnicidade como projecto social é um paradigma complexo, divisível e múltiplo
quanto ao tipo de fenómenos diferentes que desencadeiam no contexto dos diferentes
modelos sociais, multiculturais e pluri-étnicos das sociedades contemporâneas.
216 Miller, David, op. cit., pág. 659 a 662.
98
O estudo do pensamento político e social no âmbito das sociedades que
procuram ou necessitam de instituir políticas de reconciliação cultural, tem sido
perspectivado também no enquadramento do estudo dos quadros éticos das
sociedades, e de como estes códigos éticos se correlacionam nos modelos de políticas
multiculturais ou pluri-étnicas, emergentes no século XX. O século XXI, por seu
turno, tem produzido um rol de fenómenos sociais fragmentados, (como é, por
exemplo, o fenómeno do terrorismo da ISIS) que vai ganhando um carácter de
urgência social nos moldes das reconstituições políticas, reforçando e activando as
suas fronteiras, através da institucionalização de modelos sociais fechados e no intuito
de reforçar as lealdades e os sentimentos de pertença dos actores sociais.
David Miller sugeriu, no campo dos embates ou enclaves étnicos, dois modelos
de reconciliação social . No seu ponto de origem, questiona os quadros éticos das
sociedades, reformulando a questão transversal a ambos: os domínios (a identidade
única, no domínio público), e a identidade plural (instituída no domínio do privado): -
que direitos e deveres se podem definir consensualmente em modelos sociais
pluralistas?217 A sua resposta vai ao encontro das ideias de Kymlicka e Bashir218 na
consideração e hipótese de que não basta a institucionalização de modelos jurídicos
para uma integração social plena das minorias étnicas. Um dos motivos que revelam,
por vezes, a opacidade e a ineficácia dos direitos jurídicos na integração social dos
grupos étnicos, relaciona-se com os processos de discriminação institucionalizados.
Estes processos discriminatórios revelam-se cíclicos no interior dos espaços culturais
e, por fim, manifestam-se como que cristalizados no tempo, na perpetuação socio-
política da ideia de normatividade social, expressa na identidade única, como
postulado superior e regulador na constituição de uma nação.
No campo das políticas de reconciliação, a ideia de projecto comum como
desbloqueador da reconciliação multicultural cosmopolita219 assenta na ideia de um
modelo que transfira parte da responsabilidade das solidariedades étnicas para o
contexto civil. As políticas de reconciliação nos espaços cosmopolitas surgem como
forma de intervenção no domínio público das sociedades, na tentativa de produzir e
gerir a transformação social dos processos e mecanismos discriminatórios operantes
217 Miller, David, op. cit., pág. 649. 218 Kymlicka, Will & Bashir, Bashir (2008). The Politics of Reconciliation in Multicultural Societies. New York: Oxford University Press. 219 Kymlicka e Bashir, 2008; Miller, David, 1998.
99
nas sociedades em disputas identitárias ou socio-políticas. O campo da reconciliação
cosmopolita é definido pela intervenção dos próprios agentes sociais na acção directa
de agências como associações, plataformas de ongs, políticas educacionais e culturais.
Nesta visão, as acções locais (operantes nos localismos) são pensadas no âmbito das
redefinições culturais desejadas, revelando disponibilidade para uma política de
reconhecimento cultural dos sistemas dos grupos sociais e culturais.
Desta forma, o futuro do projecto curdo na Turquia depende do processo
inventivo e readaptativo de novas políticas de reconciliação ( na possibilidade de
surgirem novos modelos de cidadania), mas depende também do papel social e
político que a identidade curda possa ter no desfecho dos vários conflitos externos
ligados à região da Síria, do Iraque e do Irão. Quando perspectivamos a cultura curda,
como comunidade transnacional, distribuída por vários territórios, a conjuntura não é
apenas complexa, mas também instável e divisível politicamente nos diversos
contextos. O papel curdo, após o cessar-fogo civil, surge activo na mediação dos
embates históricos, do lado turco, mas também do lado sírio, e surge mais uma vez no
enredo e na liminaridade das fronteiras. Assim, a questão do Médio Oriente como
pano de fundo do embate étnico com o estado turco leva-nos às questões fulcrais que
assombram o grupo cultural curdo (à semelhança da disputa otomana-persa no
passado), desde a sua origem como comunidade ou grupo cultural: - como é
representada a cultura curda, em termos ideológicos e enquanto grupo cultural, no
enredo das guerras do Médio Oriente? - E que territórios simbólicos ocupam os vários
grupos culturais curdos no enredo dos conflitos do Médio Oriente?
Uma outra questão se coloca sobre as relações que o grupo cultural tem vivido
sob a influência europeia (no enquadramento do projecto secular turco e das relações
neoliberais dominantes): - Que lugar ocupa a Europa no imaginário curdo? E o que
representa a população curda enquanto grupo cultural de resistência e de comunidade
imaginada para o resto do mundo?
James Clifford, no contexto específico das lutas identitárias que vão emergindo
no século XXI, atribui à antropologia o papel “ingrato” de ordenar e de reinterpretar
os sistemas sociais nos enredos do “mercado” das novas proliferações sociais e
culturais. São as reinvenções das tradições nas culturas, incentivadas por estímulos
globais que definem, para si, a era “pós-moderna”, marcada por uma desintegração
dos sistemas económicos e sociais capitalistas, onde o mercado financeiro e global
100
redefine e fragmenta cada unidade cultural face às suas vulnerabilidades, também elas
dependentes das suas circunstâncias históricas e sociais.
Karl Mannheim alertou há muito para o risco há dos sistemas ideológicos totais
conduzirem a uma futura desintegração sistemática das ideologias, devido ao perigo
de um sistema ideológico total agregar a si conflitos de outros modelos ideológicos (e
muitas vezes opostos) numa imposição de carácter fechado e supra-temporal. Os
sentidos ideológicos nas sociedades misturam-se e confundem-se muitas vezes,
devido às distorções ideológicas que vão ocorrendo nos indivíduos e nas
sociedades.220 Por isso, a história das sociedades, ou do pensamento social, só pode
ser interpretada revisitando as suas ideologias. Deste modo, a cultura curda, no
contexto turco, define-se como uma cultura que, independentemente, do futuro ou da
reformulação do desejo de autonomia política e cultural, estará sempre ligada ao
elemento utópico como símbolo de resistência. A utopia (ou mentalidade utópica), no
sentido de Mannheim, constrói-se de acordo com o significado da palavra grega
“topia” - a ordem social vigente numa determinada realidade. Desta forma, a “utopia”,
surge em contraste com a voragem da realidade pessoal ou social dos indivíduos e das
sociedades. O papel das novas gerações, face aos modelos utópicos do passado, é
atribuir novos significados e dar continuidade a esse mesmo modelo utópico.
Construir “utopias” sobre as ordens sociais existentes, por cima ou contra as “ topias”
(as hegemonias culturais), é uma forma dos grupos culturais e das sociedades, muitas
vezes, reconstituírem a sua dignidade individual, social e cultural. No campo das
várias dignidades, elas que, tantas vezes, foram ameaçadas por fenómenos de
violência social que transcenderam e testaram o seu carácter de tolerância, as suas
capacidades diplomáticas na gestão dos fenómenos de conflito / violência social,
podem acabar por ser colocadas de parte.221 O futuro do projecto cultural curdo
continua a ser posto à prova no presente, assim como continua à prova o carácter de
resistência das suas utopias, porque na evolução dos padrões históricos, o grupo
curdo, no enredo das várias guerras e conflitos, parafraseando Mannheim, parecer ter
reconhecido, de forma unívoca para si, que sempre que desaparece a utopia, a
história deixa de ser um processo que nos conduz a uma meta final.222
220 Mannheim, Karl, op. cit., pág. 53 a 58. 221 Mannheim, Karl, op. cit., pág. 168 a 170. 222 -‐ Mannheim, Karl, op. cit., pág. 221.
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109
ANEXOS – NOTAS E ENTREVISTAS NA LÍNGUA DE ORIGEM
A.1. Entrevistas Institucionais na cidade de Ancara.
Günal Kursun: Entrevista ao Presidente da Human Right’s Agenda (Insan
Haklari Gündemi Dernegi) e advogado na área dos Direitos Humanos –
realizada na própria sede em Ancara, Março 2014.
Nota (1), pág.48:
“ If you look at human rights movement history in Turkey, you will see that, it’s a
victim human rights movements. So every victim group has founded his own
movement right ngo. For example, the Kurdish human right moment in Turkey was
oppressed, in 1986, just after the coup d’état, because coup d’état demolished every
ngo, after 1980. So the first elections after the coup d’état was made in 1983 and in
1986 they have founded the first human rights ngo as human rights association. By
the passing time, the priority became the kurdish question, which it is now in a peace
process and we are quite hopeful with it.”
Nota (2), pág.50:
“But after the declaration of Republic of Turkey, the legal revolution was made, as
well, so Turkey has adopted many laws from different continental European countries
like the civil law that has been adopted from Switzerland in 1926 and the criminal
court has been adopted from Italy and the commercial court has been adopted from
Germany. And the court system, the all court system has been adopted from France
and all this legal adoption has been made in the twenties – 1920’s and until 1928 or
1929, let’s say, because in 1929 the civil procedural law was adopted in 1929 from
Germany so it was the last point for turkey become a continental – European law
country”
Nota (8), pág.55:
“But after 2006, the graphic started to go down. Because the UE has closed all the
doors to Turkey. So the UE angle is the key actor here. So for now, in the year 2014
we can say that, I haven’t seen anything new in the field of human rights in the last
110
five years. And for this year, because this year was the elections year, I have seen
many steps taken backwards. So, I’m not optimist, at the moment. But in general, I
am sure that this political atmosphere will resolve some time after the elections. But
for now, I can say that we are behind the year of 2003.”
Nota (11), pág.61:
“We cannot say that...it depends in which aspect you are asking it. A democratic
model is not a full democracy, neither at the very beginning of republic of Turkey in
1920’s, or right now. Why am I saying this? Just after the kemalist revolution until
1950’s, according to law, they allowed only one political party, so multy political
party atmosphere has been established in 1950. Before that there were only one
political party and we cannot describe it as a fully democracy. After 1950 there was
multi parties, so.. free elections, but the problem is every ten or fifteen years there was
coup d’états. So just after the coup d’états, the generals were closing all the political
parties and all the political movements was swiping by the militaries. So in every ten,
15 years, Turkish democracy was in position to establish again and again. And the last
official coup d’état was made in February 1998, it was not a pure coup d’état but the
generals declarations was in the time in tvs and newspapers, especially according to
islamists movement in Turkey, so in every 10 years there is an intervention to
democracy. For the moment we cannot describe Turkey, as a democratic, as a full-
democratic but as half-democracy, yes, it’s a democratic country. A good point
reference year is the freedom house report. So freedom house gives greats to countries
according with their democratization and civil rights and liberties states. So Turkey is
receiving greats is raising in the last 20 years, after coup d’état. Although we can not
describe Turkey as a full democracy, we can describe it as a partial democracy.”
Nota (12), pág.62:
“In practice, you only have the freedom to wish to establish it a ngo which doesn’t
pressure any political matters. If you wish to establish a birth washing association, an
animal rights association you are very free. But if the matter is human rights
no....you’re not much that free.”
111
Nota (16), pág.63
“For the time being we are facing with some extraordinary time to be honest. Because
we have discovered in 2014 that a group, a religious sect was organized itself inside
the jurisprudence and they are controlling nearly all important sides points inside
juridical court. So this was quite dangerous when the government sees this situation
and the starting point was 17 of December 2013. They have started do change the
places of judges. And it is now a complete chaos.”
Nota (51), pág.84:
“There is no statics. And… it is a good thing not to know, it’s a quite sensitive issue
and it is not a good think to ask their ethnic identity, as they not want to declare it. So
it is a declaration that they want to declare by themselves, if you ask them, no, it’s
forbidden in private life. But in practice, if you declare Kurds as a minority, yes, of
course they can enjoy the rights of all minorities in Turkey, if they wish.”
Salih Efe: Entrevista ao cofundador da Amnistia Internacional e Human Right’s
Agenda/ Advogado na área dos Direitos Humanos – realizada na própria sede,
Fevereiro 2014.
Nota (3), pág.50:
“I would say, according Lausanne treaty established in 1923, there are just christians,
armenians and jews, these are the minorities. Apart from the 3 religious groups, there
are not actually minorities in Turkey. Everybody is considered as turkish. The kurds
are consider it as turkish. Because they are muslims. All the turks are consider
muslims, regard from sectarians differences, for example there’s a huge number of
alevis, there are 20 million alevis living in Turkey, maybe 25 millions according to
some statistics but according with turkish government statistics there are lower, you
know? So The kurds are 30 million in Turkey but officially they are 5, 6 millions of
kurdish people living in Turkey, but still the kurds are considered as turks.”
Nota (5), pág.51:
“Officially in Turkey if you are not christian, or armenian or jew, you are considered
as muslim, so if you are from a different sect, if you are jafari, or shia or alevi you
112
cannot ask anything from government. You cannot ask having a different temple,
having different education or your own faith. You cannot get any education support
and incentives that sunni sect and sunni and sunni muslims schools receives from
temples and their mosques.”
Nota (6), pág.52:
“In my opinion, the constitution is purely in accordance with all european countries,
as a criminal lawyer I’m saying this and as human right defender. But if you are an
individual, in the front of the judge, inside the court house, everything is changing. It
means that, sometimes, you cannot see the application of this good provisions to
yourself. Or sometimes the interpretations of judges are always against the minority
groups. This interpretation problem is the first challenge. The other challenge is the
impunity. There are some crimes committed against the minorities groups. Minorities
rights are declared according to constitutions and international treaties that Turkey is
a state part, but in practice and most of the time they are not applying this situation.
So, it needs a reform, in practice.”
Nota (9), pág.56:
“Minorities rights are on of the part of international system, I know that some
contemporary views doesn’t accept minorities rights but I’m a little bit classical, I
share the classical view at this stage because in the countries like turkey, minorities
rights or the international law which is established in accordance with minorities
rights, can it be quite beneficial to minority rights groups. Just visualize that you are
an armenian living in Istanbul or a jewish person living in Izmir, or you are an
assyriac living in Mardin, where minorities are a very limit number, like 500.000
greek ortodox believers living in Turkey at the moment...so if you are one of them,
you need some specific provisions which protects your rights against the majority..”
Nota (14), pág.62:
“ In some areas, Turkey is getting backwards, because of free expression problem.
Because we are using democratic rights, on writing articles to complain against
government, we are going to jail.”
113
Nota (30), pág. 75:
“In practice the government recognizes them, because this government, specially
starts to give kurds lots of rights. Now kurds starts to have lot of private tv channels,
radio, or also now kurds can study in their own language in private schools. These is
another big reform in human rights in Turkey. In practice, there is a recognition of
kurdish reality and kurdish ethnicity. But still it is far from what should be. Still the
kurds demand more rights, like being educated in kurdish schools and universities,
not just in private schools, and more legal local rights, like being governed by
themselves in their own regions.”
• Natasha Nazan: Entrevista à Assistente e Professora Universitária no
Departamento de Ciências Políticas na Universidade de Çankaya –
realizada em Ancara, Março 2014.
Nota (4), pág.51:
“It’s again the same thing. It’s on paper, I mean, they did pass most of legislation that
need to be pass but still, the all idea of european union it’s not changing the law, it is
just the way you are perceiving is changing, I think we are diverging for that model
too. That’s an ideal european model, the way is implemented is another question. But
when you compare it with a totalitarian model, it is to choose the best of evils or
something.”
Nota (7), pág.53:
“Without having a change in society mind, without having legal changes about
minorities’ rights in Turkey, we cannot do anything on this issue. It’s a step by step
change, we cannot do it right away. We have to use peaceful means, diplomatic
means to achieve the goals and for sure turkish government should follow
international laws standards and conventions on european human rights on this issue.
We are living in a globalized integrated world, we have interactions with each other,
no one can act independently from the other countries or from other international
organizations.”
Nota (13), pág.62:
114
“On paper, we live in democracy, but the way it is implemented, that’s where’s starts
the problem. And there’s where we start to diverge from the democratic model,
because we cannot really call the court decisions independent. Especially now, where
we have the political authority present in the court decisions. It’s highly politicized,
but it always had been politicized. It was always like this under privileged groups. We
cannot tell is democratic or anything.”
Nota (31), pág.75 :
“There is a lot of political activism about this issues, all kinds of minorities are
struggling for their life, and kurdish being the biggest case, it’s all struggle about
identity definition struggling with the state, also there is an army conflict, it’s been
going on more than 30 years, all kind of struggles to overcome this kind of
discrimination. It’s not just for the kurdish people, it’s for the all non-muslims
minorities. But the outcome depends on the all economy, political, international
environment that’s going on… I’m hopeful at some levels and sometimes I feel that
it’s not getting so much better.”
Nota (38), pág.77:
“Identity it’s not the best solution. If you have in your passport your identity, that’s
not something that represents a solution. If there will be a kurdish state in the future,
it’s ok, I’m not saying that, but if you are trying to hold these people together on this
territory, then having your identity in your id, can get the situation so much worst. It
can bring more discrimination. The basis of better human rights it depends of the
expanding of civil liberties, political rights, economic rights, social rights and other
things. You need to make the situation better for everyone, individual by individual,
people need to have these rights.”
A.2. Lista dos entrevistados (curdos/as) académicos e activistas na área dos
Direitos Humanos.
• Entrevistado A: Entrevista decorrida em Istambul Fevereiro 2014.
115
Nota (19), pág.68:
“I’m from Mardin. I was living there until the 5 and then in the 90’s we moved, me
my mother and father and more 5 familiars to Istanbul because of War of Kurdistan,
especially the PKK.
...because my father was a disappearing all the time, turkish military was persecuting
him. Sometimes he would disappear for a long month.
I was 5, I moved to Istanbul in 1993, and especially in that year, it was a very violent
year. I remember a girl, she was smaller than me, she was killed, and I saw it just
because she was kurdish and that was enough for them. No one could do anything,
because police would kill everybody”.
Nota (24), pág.71:
“I think it will be good. For 30’s year, there is a continuing war about maintaining
kurdish culture alive and to move in future. PKK did something and achieved this
situation. Negotiations continue between government and PKK, with meetings with
Öcalan, so this process it will be good for us. But I don’t think Öcalan will be free
from jail.”
Nota (45), pág.81:
“I live in Ankara since 15 years. Ankara is better for kurdish people than Istanbul.
Some people lye because of social pressure. Because in turkey, kurdish people are
like black people. But I never lied. And because I never lied I was taken 2 times into
custody. The first one, it was in 2008, when i was student in university because of
“ideological jump” (traditional kurdish music), for dancing ez berfim and I was in jail
for 3 or 4 days. The second one, it was a time where the situation of negotiation
between turkish government and PKK it was very tense, so the government just took
some kurdish student from university, it was in 2010. I had a criminal process law but
then I was released for lack of evidence. Another 4 days. In those years there was a lot
of violence between turkish government and kurdish people. Not like 1993 but
anyway, it was still very hard. “
Nota (48), pág.82:
“My teacher fighted regularly, not just with me, but with all kurdish child because we
couldn’t speak turkish language. And because in that time every turkish person would
116
hate kurdish people, it was the political government wanting them to hate us.”
Nota (52), pág.85:
“It means for me, for example, during my life dressing for several days traditional
kurdish clothes, in Nevrus, the spring festival, or in 8th of march, the international
woman day, in the one of may, international day of workers and so on... But i cannot
wear this clothes in every daily life, if I would use this customs people would attack
me, I would feel social pressure.”
• Entrevistado B: Entrevista decorrida em sua casa na cidade de Ancara,
Fevereiro, 2014.
Nota (26), pág.71:
“Being a Kurdish is more about belonging to this culture, sometimes with language,
sometimes with a song, sometimes with a color. It is so related to having a home. You
know that you don’t actually have a home (Kurdistan), that’s why mostly makes me
feel like “homeless at home”.
Nota (29), pág.73:
“In fact, most of the time, I feel myself in the middle of these two cultures. Even I
don’t want to accept the idea of belonging to Turkish culture, it is true that I am
somewhere between the Kurdish and Turkish culture.”
Nota (40), pág.80:
“Even I have grown up in a Turkish neighborhood, my parents tried to raise me in
Kurdish culture. In the end, I realized that I had some influences by Turkish culture
and started to obliterate it on me. Because it was something about getting assimilate
and I did not want to be totally assimilated. That’s why I started to learn my language
after a long time.”
Nota (49), pág.82:
“To study in a Turkish school is so hard to tell about it. First of all, in primary school,
every morning you had to say “how happy is the one who says I am a Turk” as a
117
national anthem, even you knew that you are not Turk...”
• Entrevistado C: Entrevista decorrida na Human Right’s Agenda, Janeiro
2014.
Nota (15), pág.62.
“This is an islamists country, but no one speak about this openly and clearly. Anyone
can see it easily, this is an islamic country. It’s not total a secular country.”
Nota (17), pág.67:
“When we came here,( Ankara) I remember, it was completely different, I was
choked with city lights. We came here at night in a mini-bus, all my family. We found
a flat but the flat it was too small for us, it was a poor area of the city. The Turkish
state did not helped us, on nothing. The only thing they told us was that we had to
evacuate the village. Before we came, police stopped the mini bus a lot of times, they
checked all the ids, asked some questions, for sure it was really dangerous. We were
twelve, 9 cousins and my parents and I. “
Nota (22), pág .70)
“My opinion about PKK is they are all our brothers, so they should come to the cities
and leave the mountains. We should ask them, where they want to live in Turkey, it
must explicitly depend on their will. If they want to come back to turkey, the
government should allow them. Should open a way for them to come here to live
together in the social life. But if they don’t want to come back to Turkey and if they
want to go to european countries, the european countries should help them.
In this atmosphere we don’t trust government but if they improve the condition, this
can happen. It can be.
This process and this movement is over Öcalan. It’s not totally depend it on Öcalan.
Lot’s of young people and students, consider Öcalan as their “ father”, he is a very
charismatic person and leader. They believe him and they trust him. After he
disappeared, actually, is really hard to see...it’s hard. I cannot say anything.”
Nota (34), pág.76:
118
“So right now, today kurdish community they don’t ask for kurdish citizenship. It’s
not a problem for us to have turkish citizenship, but we need to live with our full
rights, as also a turkish citizenship. It doesn’t matter for us, if our citizenship is from
the turkish government or the kurdish government, if we have our rights fulfilled. Our
basic rights. We want to live together with our rights. Especially to use our language
and not be discriminated anywhere.”
Nota de rodapé ( 168) , pág.79:
“Lot’s of people says, “ If you kill a kurdish, it’s nothing”. They say we are not totally
human.”
Nota( 41), pág. 80:
“To assimilate or to not be assimilated is all related with language, because the nation
is related with the language. Language is the first part. If you are able to take
education in your own language, then this process of assimilation is going to slow
down. This is one of our basic right.”
Nota( 50), pág.83:
“In my class most of my colleagues didn’t speak to me because I was different from
them. In my first and second year I had the same teacher and I remember when he use
to ask me something I couldn’t answer he would get angry with me and sometimes
beated me. He couldn’t understand why I couldn’t answer, he deliberately though all
the time that I didn’t respect him. Or maybe he didn’t like kurdish people. Maybe he
was a ultra-nationalist teacher, people didn’t like kurdish people.
In school our teacher would say us: You should speak Turkish, you should write in
Turkish because this area is Turkey.
In the first times it was so difficult. Our teacher just would speak Turkish language
with us, we were all the time just looking them, not understanding a thing. Day by
day, we realized we had to learn Turkish language because in Turkey the educational
system is all in Turkey language.”
Nota (56), pág. 86:
“Becoming a minority it is a status. Of course it’s better to be a minority. They forced
us to be turkish, they forced us Roma to be turkish, armenia persons, alevis
119
persons...if they recognize us as a minority they can’t oppress us.”
• Entrevistado D: Entrevista realizada em minha casa- Ancara, Fevereiro 2014.
Nota (10), pág.57:
Yes, I’ve lied before about my ethnicity. Maybe when I catch a taxi and the driver ask
me, “ Where are you from?”, I answer, “ I from Istanbul”, but this is a lye. Because I
don’t want to speak about this kurdish and turkish problem. I don’t want to have to
explain nothing to the taxi driver.”
Nota (20), pág.68:
“I was born in the village in the south, Sirt, very small and poor and less populated
but most people that lives there are kurdish. So it was 1992, so in that time there was
the confront between PKK and turkish government, you could see everyday on tv that
they would kill guerrillas and guerrillas would kill some soldiers, it was really hard
times. The government will oppress us to evacuate our village. Most of people had to
emigrate to the west cities like Istanbul, Ankara, Izmir, the west part.
In that time they made the decision to come to Ankara and we didn’t know how to
come here, with each Money, we didn’t know the language and the culture was
different and they were not able to practice their own Job in the city. In the village
they all were farmers.”
Nota (28), pág.71:
“For People that live in middle east, general, they don’t have big opportunities in life,
it’s inevitable to be a not fortunate man. And this is also represented in the kurd
ethnicity, not being fortunate. But at the same time I think that kurdish culture is very
rich and we have to improve in our culture, it has to be developed.
Every nations should have their rights. Kurdish people have to attain their own rights.
And this will be a shake in Turkey.”
Nota (33), pag.76:
“I attend demonstrations, specially the leftist demonstrations, not the rigt
demonstrations, like the radical nationalists. We need it to go to demonstrations for
120
justice. I attend every demonstrations about turkish situation. I attend demonstrations
also for shia rights, woman rights, child rights, I don’t separate issues, I attend for
justice.”
Nota (44), pág.81:
“It does not happen a lot in Ancara, because my dialect it’s not kurdish, I learnt to
hide it and my outside look it’s not the ordinary kurdish type, it’s not easy to know
that I am kurdish. My mother, when she calls me, I speak with her in kurdish
language but she is always saying to me “ Be careful”, but I live here from 8 years, I
know how to see where is dangerous to speak kurdish or not.
Once I worked in an Office, and my manager asked me:” Are you a terrorist?” and I
answered, “ Am I? Thank you”.”
Nota ( 57) , pág.86)
“If you ask me if kurdish problem it’s an democratic problem? No. It can be a
democratic problem but at the same time it’s a minority problem. I consider that
Kurdish is a minority in Turkey. We are 30 millions people here, other 30 millions
people belong to other minorities. The government does not say this outloud because
if they do, they have to give us our rights. The Kurdish movement says that we are
apart from Turkey and that we helped to build this country. But for me being a
Kurdish here is to belong a minority.”
. Entrevistado E – Entrevista realizada na sede Human Right’s Agenda,
Fevereiro, 2014.
Nota (18), pág.67:
“I’m from Sirth, the south east of Turkey, one of the kurdistan part. I lived in Siirt,
until 5 and after that we had to move to another city. And we moved to Ankara, in
1993. I came with Veli. It’s a complex issue, there is a lot of problems and stills
continues it, so I don’t want to speak about that. We are still not confortable in our
home, so we had to move.”
Nota (21), pág.69:
121
“The first time I went back to my home in Kurdistan, around 5 years ago, it was a so
different emotion for me, after 14 or 15 years, it was the first I could finally go home.
In the past we wanted to return our home, but we couldn’t because it was not safe.
When I visited my old house, i didn’t recognize it, because I didn’t remember
anymore nothing about my home. I was just 5 years when we moved to another city,
Ancara.
Nota (23), pág.71
“ I hope Turkey part of Kurdistan will be independent one day. But will not happen in
a short-period, maybe in a long term period it will be possible. I hope.”
Nota (39), pág.77
“I think it is time to turkish society questions itself if their society is so free of
responsibility, because some of turkish people they don’t do anything to help, in their
opinion they don’t have to do anything about this issue. So that’s why kurdish people
should be careful.”
“We had a lot of examples recently, and one of them it was Gezi park last summer. It
was just a protest, just a basic protest but unfortunately we had lost 8 persons, we
have lost them. All of them were young. It is so sad, we don’t know what to say about
that topic. One of them is Berkin, he has died today, he had been in an intensive care
unit since 8 months ago, and he had only 15 years old. The thing is… he was not even
part of protest, he just went outside to buy breath, a basic thing. And unfortunately we
are loosing a lot of persons in this way. Now we call to Berkin...” the child of hope”.
We can not even protest his death, these deaths. It is getting worst in Turkey, it is
becoming very authorative like old times in Turkey. And we will see. We still have
hope.”
Nota (46), pág.82:
“Unfortunately I don’t have a lot of Kurdish friends, especially in Ankara. Because
five years ago it was so dangerous for us. And still it is dangerous for us in some parts
of this city. We still cannot talk here.
When we speak Kurdish, especially in public areas or in school, some of people
approach you and say: “ Be careful, here it’s Turkey.” We feel scared, they intimate
us. We avoid speaking Kurdish. But not in all places, but still there is hate speech.
122
Some people of Ankara it’s dangerous for us.”
Nota (53), pág.85:
“When I went to university I realize that it is not a problem not being a Turkish. Why
is everybody obsessed with being a Turkish in this country? And I started to ask
myself if am not Turkish, who am I? And then I realized I am Kurdish.
• Entrevistado F: Entrevista decorrida num café em Ancara, Março, 2014.
Nota (27), pág.71:
“Being a kurdish it is not just an idea. If you are kurdish you have so much
responsibility. You have the responsibility about your ethnic group. You should be
careful. We have to change the image of kurdish culture around here so we have to
watch out how we behave. We try to be good citizens.”
Nota (32), pág. 75:
“Yes, bothers me a lot not having my Kurdish identity in my Id. With so many
Kurdish people in the country, why could this be possible?
If people ask me what’s my identity and I say that I am Kurdish, they say, “ No,
you’re not Kurdish, you are Turkish.” If I ask why, they say me that I am Turkish
because I have Turkish identity so I am Turkish”, it’s stupid and bothers me a lot.”
Nota (35), pág.76 :
I have the citizen of turkish nation, just on paper. I don’t care about that. I prefer to
think that i am a citizen of the world. If you have a clear conscious, you are a good
citizen. You don’t have to be a nationalist to be a good citizen, you don’t to respect
your flag, you have to respect all of people. This is the most important for me.”
Nota ( 37), pág.77:
“ My parents are not political, they don’t read the newspapers, they only know what
123
this governments says in television. You know the television it can be dangerous, it
will assimilate you. My parents, after the conflict, they were assimilated by fear.
Even my grandfather says, “ we are Turkish because they like the fact that our prime
minister being a very religious person. They say, before nationality that we are
muslims. They think Islam is so much more important than nationality. They say, “
first we are muslims, and second it, that we are Kurds; or Turkish are muslims so we
are muslims too. So we are brothers. My family thinks like that and they are very
conservative. They think too much about religion and nothing about political issues.”
Nota (42), pág. 81:
“I think over this issue too much. If I have children in the future, they will be Kurdish.
I will teach them Kurdish language. If I don’t do that, the environment will assimilate
them. When they will open television, they will always hear the Turkish language. So
they will feel that they are Turks.
I have to many examples in my family, my youngest sister for example, she is
Kurdish but she says all the time that she is Turkish. I ask her “why to you say this?”
and she answers me : “ Forget the Kurdish, there’s nothing about it, we live in
turkey”. She says me that I should think like that also.”
Nota (43), pág. 81:
“University was important in my life because I’m the first person in my family
attending university, ant that’s something revolutionary. In my village we don’t even
have teachers. The Turkish assimilation process did not help to improve our
conditions.
My Kurdish friends, I can divide it in two categories. Half of them, are happy with the
government and they are happy with assimilation because they think they will have a
better life. The other half of my Kurdish friends, are aware that they are Kurds living
in Turkey but knows the Turkish government and Turkish political environment will
not benefit us, it will give us just this kind of illusion. And that in the end the purpose
is to diminish the Kurdish culture, to one day be totally disappeared.
A lot of persons are happy to be slaves, they just don’t know it that they are slaves of
Turkish state.”
124
Nota (47), pág.82):
“Yes, sometimes I have need not to say that I am Kurdish. Or when I need to apply
for a job, I have to say that I am Turkish, not Kurdish. If I say I am Kurdish in Turkey
in this kind of situation, they are going to say that you are racist or separatist. They
ask you immediately: “what is the purpose of this?”.
Nota (54), pág. 85:
“I feel that some people that discriminate sometimes feels ashamed, but really, some
of them I are not. Some of them really think that some people shouldn’t live in this
country. Like the Armenian issue. Like in the past, Turkish did it with Armenian
people, they were obliged to move to another country. They were expelled for their
own region.”
Nota (58), pág.86:
“ I think Turkey it’s a good country to live if you don’t say you are Kurdish. If you
say it, they may struggle against you.
I just go to Kurdistan’s part of Turkey o visit family three or four times in a year. But
when I go there I feel very happy. I live here but I think I belong there. I wish I could
live there but it is impossible because there’s only one university and we even have a
proper library there.”
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