discurso de protesto e historicidade
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Universidade do Vale do Sapucaí
Programa de Mestrado em Ciências da Linguagem
DISCURSO DE PROTESTO E HISTORICIDADE
Trabalho apresentado como parte das exigências para
a conclusão do Seminário Avançado em Análise de
Discurso do Programa de Pós-graduação em Ciências
da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Onice Payer
Allan Strottmann Kern
Pouso Alegre – MG
2014
SUMÁRIO
Introdução.......................................................................................................................... 2
O trabalho da memória....................................................................................................... 3
De maio de 1968 a junho de 2013.................................................................................... 11
“Vem pra rua”: um acontecimento discursivo..................................................................... 23
Conclusões preliminares.................................................................................................... 35
Bibliografia....................................................................................................................... 36
Anexos............................................................................................................................. 39
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INTRODUÇÃO
Este texto propõe introduzir uma reflexão sobre os discursos de protesto a partir da
compreensão do funcionamento discursivo da memória. Nosso trabalho se situa na
perspectiva teórico-metodológica da análise de discurso fundada por M. Pêcheux, que define
o discurso como efeito de sentidos entre diferentes posições de sujeitos (1969, p. 82). Ou
seja, os sentidos mudam conforme a posição do sujeito que interpreta.
Tendo em vista que a linguagem “serve para comunicar e não comunicar”
(ORLANDI, 1999a, p. 21) e “precisa se inscrever na história para que faça sentido” (op cit.,
p. 25), consideramos que, para se pensar sobre os discursos de protesto, é necessário
especificá-los em relação ao que em análise de discurso pode se considerar como discursos
de resistência. Além disso, é preciso levar em consideração um ponto crucial sobre o que
chamamos o trabalho da memória: historicamente, sempre existiram forças que funcionaram
no sentido de preservar certas memórias, tornando seus sentidos evidentes e, no mesmo
processo, fadar outras ao esquecimento.
Assim, concebemos os discursos de resistência como efeitos de sentido em conflito
com as evidências produzidas pelo trabalho da memória. Diferentemente, pensamos os
discursos de protesto como efeitos de sentido em confronto com essas mesmas evidências.
Ao especificarmos a resistência como conflito e o protesto como confronto, procuramos
diferenciar a constituição da primeira como posição e a do segundo como posicionamento.
Ou seja, enquanto o discurso de resistência se constitui a partir de uma posição que dá
visibilidade a outros sentidos possíveis além das evidências produzidas pelo trabalho da
memória, o discurso de protesto consiste na tomada de uma posição de resistência que
mobiliza esse mesmo trabalho para colocar em evidência outros sentidos possíveis.
Com base nessas observações, consideramos relevante interrogar: se o protesto
implica um posicionamento de resistência frente a sentidos tornados evidentes pelo trabalho
da memória, de que maneira essa mesma memória trabalha os outros sentidos possíveis
tornados visíveis pelo protesto, de modo a sustentar as evidências preestabelecidas ou
produzir novas evidências?
Essa é uma das questões centrais que pretendemos explorar neste trabalho.
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Para tanto, dividimos nossa abordagem em três diferentes partes. Primeiramente,
apresentamos a fundamentação teórica do que compreendemos como o trabalho da memória,
que, em seus diferentes modos de funcionamento, joga com relação entre a lembrança e o
esquecimento nos processos de produção de sentidos. Em seguida, procuramos esboçar uma
compreensão geral das atuais condições de produção dos discursos de protesto a partir de
uma reflexão sobre a historicidade dos acontecimentos de maio de 1968, tendo em vista o
que resta de significativo desses eventos nas atuais condições de produção. Por fim,
procedemos a uma análise do acontecimento discursivo em torno do enunciado “vem pra
rua”, a fim de explicitar sua relação com a eclosão dos protestos de junho de 2013 no Brasil.
É importante ressaltar que esses gestos são parte de um estudo que ainda está em
andamento, portanto não representam ainda uma compreensão que consideramos satisfatória
para o seguimento de nossa pesquisa. Pensamos ser importante desenvolver melhor a
articulação teórica entre os discursos de resistência e protesto, e há ainda uma análise sobre o
Movimento Passe Livre que será incluída no conjunto destes primeiros trabalhos. No entanto,
temos já um núcleo teórico-analítico daquilo que gostaríamos de apresentar para introduzir
nossa pesquisa sobre os discursos de protesto.
O TRABALHO DA MEMÓRIA
Ao refletir sobre as condições em que um acontecimento histórico se inscreve no
espaço de uma memória, Pêcheux (1983a) adverte que esta, na perspectiva teórica da análise
de discurso, não pode ser reduzida à acepção psicologista da memória individual, mas deve
englobar os “sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em
práticas, e da memória construída pelo historiador” (op. cit., p. 50). Na visão do autor, o
acontecimento é concebido como um elemento histórico descontínuo e exterior, enquanto a
memória possui uma continuidade interna. Isso faz com que o processo de inscrição do
acontecimento na memória seja marcado por uma dupla fragilidade: há acontecimentos que
não chegam a se inscrever (o elemento histórico permanece exterior à memória); e há
acontecimentos que são absorvidos, como se não tivessem ocorrido (o elemento exterior é
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neutralizado na continuidade interna da memória). Acontecimentos que, de formas diferentes,
podem existir na história, mas não encontram lugar na memória. Não historicizam.
Pêcheux, então, problematiza a questão da memória como estruturação de
materialidade discursiva complexa, isto é, como um processo de regularização de sentidos
marcado na linguagem. Para o autor, “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto
que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (...) de que sua leitura
necessita” (PÊCHEUX, 1983a, p. 52). Dito de outra forma, a memória produz uma base
significativa que regulariza as possibilidades de leitura do texto. No entanto, ainda segundo
Pêcheux, esse mecanismo de regularização discursiva que estabelece os implícitos
é sempre suscetível de ruir sob o peso do acontecimento discursivo
novo, que vem perturbar a memória: a memória tende a absorver o
acontecimento, (...) mas o acontecimento discursivo, provocando
interrupção, pode desmanchar essa “regularização” e produzir
retrospectivamente uma outra série sobre a primeira, desmascarar o
aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto
tal e que é assim o produto do acontecimento (PÊCHEUX, 1983a, p.
52).
A relação entre memória e acontecimento, portanto, é dupla. Por um lado, o trabalho
da memória pode impedir ou anular a inscrição do acontecimento, que assim não historiciza.
Por outro, o acontecimento novo pode provocar uma reconfiguração do próprio trabalho da
memória, gerando uma nova regularização dos implícitos que condicionam a leitura de todo
texto que surja como acontecimento a ler. Pêcheux identifica um jogo de forças no choque
entre memória e acontecimento: de um lado, a força da memória que procura enquadrar o
acontecimento em uma base regularizada de implícitos – sentidos prévios – que direcionam a
produção de sentidos em torno desse acontecimento enquanto texto a ler; de outro, a força
do acontecimento que rompe com as forças de regularização da memória, deslocando o
modo de seu funcionamento.
Esse trabalho de regularização discursiva no nível da linguagem está fortemente
implicado na repetição: “a repetição é antes de tudo um efeito material que funda comutações
e variações, e assegura (...) o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida
por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material” (PÊCHEUX,
1983a, p. 53). No entanto, o autor alerta que “a recorrência do item ou do enunciado pode
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também caracterizar uma divisão da identidade material do item: sob o ‘mesmo’ da
materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de
articulação discursiva” (idem).
Neste ponto, a reflexão sobre o trabalho da memória toca um encontro entre
Saussure e Lacan: a repetição de um significante pode tanto implicar a aparição do mesmo
(quando o significante remete a um significado) quanto a possibilidade de irrupção do outro
(quando o significante remete a outro significante). Ou, para dizer de outro modo: no trabalho
da memória, a repetição pode produzir tanto a unidade quanto a divisão do sentido.
Levando adiante a reflexão sobre a memória discursiva, Courtine (1985) faz algumas
observações sobre a noção de repetição e o conceito de enunciado na abordagem de
Foucault, que não pode ser confundido com aquele trabalhado pela linguística. Parte dessa
diferença está em que é possível pensar o enunciado separadamente da enunciação. Assim, “o
que se destaca é uma forma que é indefinidamente repetível e pode dar lugar a enunciações
muito dispersas”, afirma Courtine, retomando as palavras de Foucault (op. cit., p. 18).
Considerando que a linearidade da enunciação, enquanto processo de formulação,
corresponde a um eixo horizontal que traz em si a marca da temporalidade, Courtine retoma
de Foucault a ideia de que a existência do enunciado está ligada a uma noção de repetição
que se dá em um nível vertical em relação “às condições de existência dos diferentes
conjuntos significantes” (op. cit., p. 18) que possibilitam a enunciação. Assim, afirma que
pensar o assujeitamento do sujeito falante na ordem do discurso é
necessariamente dissociar e articular dois níveis de descrição: 1) o
nível da enunciação por um sujeito enunciador em uma situação de
enunciação dada (o “eu”, o “aqui” e o “agora” dos discursos); 2) o
nível do enunciado, no qual se verá, num espaço vertical,
estratificado e desnivelado dos discursos, que eu chamaria
interdiscurso, séries de formulações marcando, cada uma,
enunciações distintas e dispersas. (COURTINE, 1985, p. 18).
O autor ainda afirma que isso que ele chama de interdiscurso poderia também ser
denominado de domínio de memória, o que lhe obriga a fazer uma importante ressalva: nesse
lugar assim chamado, o sujeito não encontra nenhum lugar que lhe seja assinalável. O que
ressoa no interdiscurso ou domínio de memória, segundo Courtine, é apenas “uma voz sem
nome” (op. cit., p. 19).
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Pela distinção entre esses dois níveis de descrição, o autor delineia a compreensão de
duas formas diferentes de repetição: a repetição no nível da enunciação, ou seja, da
formulação da linguagem enquanto processo linearizado; e a repetição no nível do enunciado
foucaultiano, isto é, da constituição do discurso enquanto processo não linear de inscrição do
simbólico na história. Há, portanto, repetição no domínio da linguagem, onde o sujeito pode
se colocar como origem, e também no domínio do (inter)discurso, que escapa ao sujeito.
Partindo da concepção de interdiscurso como um domínio de memória onde fala
uma voz sem nome, Courtine (op. cit.) busca compreender o que possibilita esse tipo de
repetição vertical, que transcende a ordem da linguagem. Para tanto, ele interroga as
condições em que “um espaço de repetição inscreve-se num conjunto desnivelado de
discurso” (p. 19). Assim, o autor investiga um modo específico do discurso relatado em
relação a um discurso anterior. Em seu estudo sobre o discurso comunista dirigido aos
cristãos, Courtine observa as condições em que um discurso pode ser retomado por outro em
um mecanismo que apaga os vestígios produzidos por essa retomada.
As formulações-origem derivam assim em um trajeto na espessura
estratificada dos discursos, trajeto em cujo curso elas se transformam
(assim: “as lutas de classe são o motor da história”, torna-se, na fala
dirigida aos cristãos: “as lutas de classe são o motor do progresso”);
truncam-se, escondem-se para reaparecer mais a frente, atenuam-se
ou desaparecem, misturando inextricavelmente memória e
esquecimento (assim, a religião como “ópio do povo” cede lugar à
religião como “suspiro da criatura oprimida”). (COURTINE, 1985, p.
19).
Os diferentes mecanismos de retomada – citação, recitação, formação de pré-
construído – possibilitam essa trajetória dos sentidos que partem de uma voz sem nome para
serem colocados “sob a responsabilidade do sujeito enunciador” (op. cit., p. 20). Assim, a
proposição de que o sujeito não encontra um lugar assinalável no interdiscurso encontra uma
contrapartida: “o que se vê funcionar, em revanche, são posições de sujeito que regulam o
próprio ato da enunciação” (idem). Toca-se, desta forma, a questão do assujeitamento, que,
como diz Pêcheux (1975), é marcada por esquecimentos ligados ao já dito e ao não dito.
Courtine aponta, assim, que a repetição no nível interdiscursivo se dá sob o modo do
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desconhecimento, o que implica pensar em termos de uma “memória lacunar ou com falhas”
(1985, p. 21), pois memória e esquecimento são indissociáveis (op. cit., p. 22).
Uma vez que o trabalho da memória pode ser verificado tanto na ordem da
constituição quanto na da formulação dos sentidos, ele não se reduz ao que é próprio do
funcionamento da linguagem, mas implica que também se leve em conta aquilo que escapa a
esse domínio. Assim, o trabalho sobre a noção de memória discursiva implica que a linguagem
seja considerada em sua incompletude.
Nesse aspecto, o estudo de Orlandi (1992) sobre as formas do silêncio traz
contribuições relevantes para a compreensão do trabalho da memória. Segundo a autora (p.
70-72), o silêncio se constitui como um espaço material contínuo, marcado por sentidos em
dispersão, os quais a linguagem recorta e categoriza em unidades discretas, relativamente
estáveis. Distinguem-se, assim, dois aspectos da significação. Por um lado, há significação no
domínio do segmentável, que resulta da relação com a linguagem e produz o efeito de
estabilidade dos sentidos. Por outro, há significação no domínio de uma continuidade não
segmentável, que resulta da relação com o silêncio e produz o efeito de instabilidade e
dispersão de sentidos.
Diante do que precede, podemos afirmar que o silêncio se apresenta como elemento
fundamental na constituição da memória discursiva, pois a distinção entre essas duas
modalidades de significação – via linguagem e via silêncio – ajuda a explicar a existência de
dois tipos de memória: aquela formada em uma continuidade segmentável (formulação da
enunciação, intradiscurso), e a constituída em uma descontinuidade não segmentável
(constituição do enunciado, interdiscurso). Assim, aquilo que não pode ser significado via
linguagem ainda produz sentidos no domínio do silêncio. Trata-se do que Orlandi (1992)
define como sendo o seu caráter fundador.
Além disso, a autora aponta ainda a existência do silenciamento ou política do
silêncio. Esta outra forma de silêncio, diz a autora, “se define pelo fato de que ao dizer algo
apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis” (op. cit., p. 72-73), o
que pode se apresentar sob duas formas. O silêncio constitutivo é um efeito discursivo que
“instala o antiimplícito”, ou seja, representa o “não dito necessariamente excluído” (idem, p.
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73). A outra forma de silenciamento é o silêncio local, que representa uma “interdição do
dizer” e se manifesta sob a forma da censura.
Como explica Orlandi (op. cit.), na medida em que a censura impede a expressão de
determinados sentidos, ela proíbe também que o sujeito ocupe certos lugares, ou, como
define a autora, “proíbem-se certas ‘posições’ do sujeito” (op. cit., p. 76). Ou seja, o sujeito
só pode se inscrever em posições a partir das quais ele pode “produzir os sentidos que não
lhe são proibidos” (op. cit., p. 79). Mas se há, por um lado, injunção a dizeres que silenciem
os sentidos proibidos, por outro, esses sentidos podem sempre, como diz Orlandi, migrar
para outros objetos simbólicos: “se obriga a dizer ‘x’ para não deixar dizer ‘y’. No entanto,
(...) veremos que esse ‘y’ significará por outros processos” (op. cit., p. 81).
Na censura, portanto, a interdição de determinadas posições sujeito não impede, de
modo algum, que os sentidos indesejáveis continuem a aparecer por meio de algo que se
apresenta como uma voz sem nome. São, enfim, diferentes formas de memória que atuam na
constituição do discurso e em sua formulação via linguagem.
Payer (2006), em seu estudo sobre a memória da língua falada por imigrantes, retoma
a noção de memória discursiva para pensá-la no nível da formulação, “enquanto um modo de
objetificação de aspectos da memória que é constitutiva” (op. cit., p. 49-50). Para a autora,
não basta simplesmente enfatizar a distinção entre ambos os eixos: é necessário levar em
conta a “relação entre o que constitui o sujeito do discurso e o modo como ele representa
(ou não) discursivamente aquilo ou parte daquilo que o constitui” (op. cit., p. 50). Ou seja, é
preciso não apenas compreender a distinção entre esses dois eixos de memória, mas,
sobretudo, a sua articulação.
A passagem da memória do nível constitutivo ao formulável, portanto, pode se dar
sob a forma da representação. E, como lembra Payer, “não é tudo de uma memória histórica
que pode ser representado” (op. cit., p. 51). Assim, tendo em vista o que há de histórico na
relação entre a memória constitutiva e a representada, segundo a autora, é possível explorar
uma noção de memória social.
Conforme Mariani (1998, apud PAYER, 2006), a memória social resulta de um
processo histórico marcado pela “disputa de interpretações para os acontecimentos presentes
ou já ocorridos, sendo que, como resultado do processo, ocorre a predominância de uma de
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tais interpretações e um (às vezes aparente) esquecimento das demais” (op. cit., p. 51). Dito
de outro modo, a construção da memória social é um processo histórico em que
determinados sentidos se estabelecem como hegemônicos, apagando outros sentidos
possíveis de modo a dar um sentido “comum” à sociedade (idem) e criar uma memória
oficial a ser narrada (op. cit., p. 52).
Por outro lado, os sentidos excluídos da memória oficial não são apagados da
memória discursiva, isto é, eles subsistem no nível constitutivo do discurso, como algo que
pode vir a ser formulado. Assim,
quando se pensa na importância da formulação das memórias
discursivas apagadas, diferente da ideia de resgate da memória, que a
suporia já-lá, já significada, está se falando da possibilidade de sua
formulação discursiva. (...) Formular, nessa perspectiva, significa dar
estatuto de discurso (de real) aos sentidos que, apagados, não foram
ou não são contemplados como possíveis no conjunto do dizível.
Significa acolher esses sentidos que, embora sem lugar, não deixam de
funcionar de modo constitutivo (PAYER, 2006, p. 53).
A autora ainda lembra que esse acolhimento de sentidos que não tiveram lugar no
passado ganha relevância quando se pensa a memória discursiva em processos históricos
marcados pelo silenciamento, pois o trabalho de formulação discursiva da memória
possibilita, como descreve Payer, “tomar a palavra de um outro lado daquele em que a
história, por seus processos discursivos, permitiu dizer” (op. cit.,p. 54).
Em suma, pensar sobre o trabalho da memória discursiva implica considerar o modo
como os sentidos se inscrevem ou não na história. No compasso do jogo de forças entre a
memória e o acontecimento novo, lembrança e esquecimento funcionam simultaneamente na
formação do hábito e na construção de uma memória oficial.
Orlandi (in BARRETO, 2006) se refere a essa memória “oficial” em termos de
memória institucional ou arquivo, distinguindo-a, assim, da memória discursiva (ou
interdiscurso). Segundo a autora, enquanto a memória discursiva se constitui pelo
esquecimento, a memória institucional “é aquela que não esquece” (idem), uma vez que se
(re)produz nas e pelas práticas das instituições.
A mesma autora (idem) indica ainda a existência de uma terceira forma de memória,
denominada memória metálica. Esta se distingue das anteriores na medida em que não se
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produz pela historicidade, mas por construtos técnicos (máquinas) como a televisão e o
computador. Trata-se, como descreve Orlandi, da memória produzida pela mídia e pelas
novas tecnologias de linguagem.
Para compreender o funcionamento da memória nessas suas diferentes formas
(discursiva, institucional e metálica), é possível pensá-las a partir de duas últimas retomadas
teóricas: a concepção de Orlandi (2001) acerca dos três momentos da produção dos sentidos
(constituição, formulação e circulação); e a compreensão lançada por Courtine (1985)
sobre o funcionamento do discurso pela representação gráfica de dois eixos, um vertical (o
interdiscurso) e outro horizontal (o intradiscurso). Assim, podemos esboçar nossa
compreensão das três formas de memória anteriormente citadas a partir de algumas
delimitações.
A memória discursiva trabalha os sentidos nos limites da história, mobilizando a
relação entre o sujeito e a ideologia. Em seu funcionamento, forma-se uma rede de filiações
de sentidos que se estratificam no nível vertical, ou seja, que se formam em regiões do
interdiscurso que a linguagem não alcança (instância do silêncio fundador), mas que podem
irromper na instância do formulável sob a forma do outro. Na memória discursiva, a repetição
atua no momento da constituição, produzindo a dispersão do sentido no nível do
interdiscurso.
Por sua vez, a memória institucional trabalha os sentidos nos limites da linguagem,
mobilizando a relação entre o sujeito e as instituições. Em seu funcionamento, forma-se uma
rede de filiações de sentido que se articulam no encontro do nível vertical com o
horizontal, isto é, que se formam no movimento do interdiscurso ao intradiscurso através de
práticas que regularizam a unidade da linguagem (funcionamento da política do silêncio) e que
fazem o sentido retornar à instância do formulável sob a forma do mesmo. Na memória
institucional, a repetição atua no momento da formulação, produzindo a divisão do sentido na
passagem do interdiscurso ao intradiscurso.
Já a memória metálica trabalha os sentidos dentro dos limites de construtos técnicos,
ou seja, não chega a mobilizar o sujeito. Em seu funcionamento, a ausência de historicidade no
trabalho da máquina impede a formação de uma rede de sentidos, permitindo apenas a
distribuição de formulações que se serializam no nível horizontal, ou seja, que se acumulam
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no intradiscurso e não chegam ao nível da constituição dos sentidos, garantindo apenas a
circulação dos sentidos formulados sob a forma do mesmo. No entanto, como ressalta
Orlandi (in BARRETO, 2006), esse conjunto de formulações “vai-se juntando como se
formasse rede de filiação e não apenas uma soma”, forjando assim relações sustentadas no
efeito unidade do sentido, ignorando o fato de que a própria formulação implica sua divisão.
Assim, na memória metálica, a repetição atua no momento da circulação, produzindo a
compressão do sentido no nível do intradiscurso.
O que chamamos aqui de o trabalho da memória pode, enfim, ser entendido como
esse conjunto contraditório de funcionamentos que produz um “ponto sensível”, isto é, certa
fragilidade no processo de inscrição das práticas de linguagem na história, através do qual se
articulam diferentes modos de reprodução de sentidos que podem ou não se historicizar por
meio da repetição. Chegamos, assim, a uma questão que permite avançar nossa reflexão: de
que modo esses diferentes funcionamentos da memória tomam parte nos efeitos de sentido e
silêncio produzidos pelos (e sobre os) discursos de resistência?
DE MAIO DE 1968 A JUNHO DE 2013
A noção de historicidade é fundamental para se compreender os efeitos de sentido e
silêncio em torno de movimentos de protesto como os que aconteceram em maio de 1968 na
França e em junho de 2013 no Brasil. Trata-se de um termo que marca a distinção entre a
posição teórica do analista de discurso e a do historiador, uma vez que “desloca a noção de
história como conteúdo e como fonte unívoca de interpretação” (NUNES, 2007). Na
perspectiva da análise de discurso não se busca, portanto, apreender o sentido da história,
mas compreender a historicidade dos efeitos de sentidos. O que fica marcado na insistência
de Pêcheux (1983b, p. 42) de que a história é uma disciplina de interpretação, isto é,
lugar de disputas, conflitos e confrontos.
Os eventos de maio de 1968 são um observatório interessante de como grandes
movimentos sociais trabalham os sentidos em sua historicidade. Badiou (2008), comentando o
aniversário de quarenta anos das revoltas que eclodiram na França e produziram reflexos em
12
diversas partes do mundo, destaca a profusão de “hipóteses contraditórias” na atualidade
acerca da importância histórica desses acontecimentos. Para o autor, a complexidade dos
eventos torna “impossível oferecer uma imagem unificada e cômoda” (op. cit., p. 30).
Se hoje é assim, na época em que os movimentos eclodiram não foi diferente. Orlandi
(1999b) afirma que, no modo como o político se simbolizava naquelas condições de
produção, havia “todo um dizer possível da sociedade” (op. cit., p. 62) que se reunia em
torno da palavra liberdade. Participaram do movimento estudantes, operários, artistas e
intelectuais, e não se pode dizer que todos compartilhavam as mesmas posições políticas,
sociais ou culturais. Como escreveu M. de Certeau no calor dos acontecimentos, “em maio
de 1968 tomou-se a palavra como tomou-se a Bastilha em 1789” (apud BURKE, 2008). A
comparação é mais que fortuita: em ambos os casos, a “tomada de posse” veio a servir aos
interesses do outro. Na Revolução Francesa, a queda da Bastilha representou a tomada do
poder político pela classe burguesa (PÊCHEUX, 1982); nas revoltas de 1968, a tomada da
palavra culminou na (re)tomada do controle político pelo governo de Charles de Gaulle, por
meio de eleições. Retornaremos a este ponto.
Ao levarmos em conta um dos pressupostos teóricos da análise de discurso, segundo
o qual “a ideologia interpela o indivíduo em sujeito de seu discurso” (ORLANDI, 2006, p.
18), nesse fenômeno massivo de “tomada da palavra” que se apresentava na expressão de
palavras de ordem contra as estruturas de poder, pode-se supor a existência de uma
discursividade de resistência política que esbarrava nos limites do formulável. Afinal, conforme
outro pressuposto da análise de discurso, “as palavras mudam de sentido segundo a posição
sustentada por aqueles que as empregam” (PÊCHEUX, 1975, p. 146-147).
Um episódio interessante sobre a relação entre o funcionamento da ideologia e essa
tomada da palavra aparece em um dos seminários de J. Lacan (1992). No registro, feito em
dezembro de 1969, o psicanalista francês se envolve em um debate acalorado com um grupo
de jovens revolucionários sobre o papel da Universidade na sociedade. Num dado momento,
um dos rebeldes afirma que “é fora da ideologia da Universidade” (op. cit., p.216) que se
deve buscar os meios para criticá-la e combatê-la enquanto aparelho do Estado. Ao que
Lacan responde: “mas fora do quê? (...) quando saem, continuam a falar, e por conseguinte
continuam estando dentro” (idem). Ou seja, estando-se na linguagem se está na ideologia. As
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palavras do psicanalista ressoariam nas de Althusser (1970), publicadas alguns meses depois:
“o que aparentemente ocorre fora da ideologia (mais exatamente na rua) ocorre na realidade
na ideologia” (op. cit., p. 97). Lacan, diante da impaciência dos jovens rebeldes, ainda eleva
sua crítica a um tom mais grave: “é ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre.
Vocês o terão.” (1992, p. 218).
A discussão de Lacan com os jovens revolucionários também coloca em questão o
alcance do saber intelectual na elaboração de estratégias de ação política e social. Neste
ponto, é relevante notar que, embora os movimentos de 1968 tenham sido impulsionados, em
grande parte, pelo trabalho de renovação da teoria marxista empreendido por Althusser, este
procurou manter certa distância dos movimentos, que observava com ceticismo. Para o
filósofo, “maio de 1968 foi vivido sem perspectiva histórica nem política, no sentido forte”
(1976, p. 241).
Do ponto de vista da análise de discurso, Orlandi (1999b) defende o interesse de se
observar maio de 1968 como acontecimento discursivo, ou, mais especificamente, “como fato
desencadeador de um processo de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar na
absoluta dominância do discurso (neo)liberal” (op. cit., p. 59). Então, interrogamos: como foi
possível que esses movimentos tenham servido ao poder que procuravam combater, que seus
sentidos tenham sido diacronicamente virados ao avesso?
Segundo J. Rancière (2008), os acontecimentos de 1968 deram início a um período
de efervescência política e social na França, que atravessou a década de 1970 e se esfacelou
com “a chegada dos socialistas ao poder”. Teve aí início, conforme o autor, a um “trabalho de
desfiguração” que consistia em eliminar as dimensões internacional, social e operária do
movimento, apagando retroativamente as pretensões revolucionárias sob as quais este se
havia fomentado. Assim, reduziu-se a memória de 1968 a um conflito de gerações traduzido
como uma “revolta da juventude”, que se explicava como uma mera “aspiração dos jovens a
abolir o jugo paterno e os tabus sexuais”, e tudo isso seria motivado pelos ideais de consumo
provenientes do pós-guerra. Nas palavras de Rancière (op. cit.), “maio de 68 tornou-se
retrospectivamente o movimento de uma juventude impaciente para gozar todas as promessas
do livre consumo do sexo e das mercadorias”.
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Essa partição da memória de 1968, apontada nos trabalhos de Orlandi (1999b) e
Rancière (2008), é observada mais detidamente por Badiou (2008). O autor delineia quatro
movimentos distintos que se encontraram nos acontecimentos de maio de 1968: um
movimento estudantil, formado por universitários e secundaristas que adotaram a violência
como resposta à repressão; um movimento operário, que já se insinuava desde o ano
anterior e realizou a maior greve geral da história francesa; um movimento libertário, que
tinha raízes na contracultura e defendia a renovação dos costumes e as liberdades individuais;
e um movimento histórico, que representava o esgotamento de um modelo no qual “a figura
clássica da política de emancipação era inoperante” (op. cit., p. 39).
Badiou argumenta que, embora os movimentos estudantil, operário e libertário
tivessem suas divergências particulares, suas marcas eram visíveis naquele momento da
história1. Por outro lado, o movimento histórico apontado pelo autor não deixava marcas
visíveis e não se encerrou em maio de 1968:
Dificilmente perceptível, se nos ativermos estritamente às
circunstâncias iniciais, ele domina a sequência que vai de 1968 a 1978,
depois é reprimido e absorvido pela vitória da união da esquerda e
pelos tristes “anos Mitterrand”. Fala-se dele como “década de 1968”,
e não como “Maio de 1968”. O processo do quarto Maio de 1968 tem
dois aspectos. Em primeiro lugar, a convicção de que, a partir dos anos
1960, assistimos ao fim de uma velha concepção de política. Em
segundo lugar, a busca um tanto cega, durante toda a década de 1970-
1980, de outra concepção de política. (BADIOU, 2008, p. 33).
Portanto, hoje é possível observar os acontecimentos de maio de 1968 de duas
maneiras: no contexto imediato dos distúrbios na França, e no contexto amplo em que se
marca o início de uma transformação no modelo sociopolítico mundial.
Courtine (2006) descreve o contexto imediato de maio de 1968 como um momento
em que “o discurso flutuava perdido no espaço” (op. cit., p. 9). Quanto ao contexto amplo, o
autor nota uma “passagem tumultuosa do tempo das ‘grandes narrativas ideológicas’ àquele
das expressões individuais” (op. cit., p. 104), onde os sentidos de pertencimento e filiação são
1 Como lembra o autor, os três componentes “visíveis” de maio de 1968 foram repres entados pela
ocupação de grandes lugares simbólicos: entre os estudantes, a Sorbonne; para os operários, as grandes
fábricas de automóveis; e, no caso dos libertários, o teatro Odéon (BADIOU, 2008, p. 33).
15
substituídos pelos de liberdade pessoal e realização de si. Em suma, Courtine compreende os
acontecimentos de maio de 1968 como uma revolução discursiva,
uma exasperação da produção de discursos, uma multiplicação de sua
circulação, uma inundação verbal que enchia as ruas e as mídias –
deixou numerosas marcas textuais, que cobriam os muros das cidades.
É o paradoxo de maio: o processo de modernização das estruturas e
das mentalidades que se completava por meio da revolta estudantil foi
narrado com as formas discursivas amplamente arcaicas de uma
fraseologia revolucionária, que, desde cedo, estava destinada a
desaparecer. (COURTINE, 2006, p. 52).
Chama a atenção o fato de que, tanto para Courtine quanto para Badiou, as formas
discursivas que narraram o contexto imediato daqueles eventos estavam já esgotadas,
obsoletas. Para dizer de outro modo, a linguagem utilizada pelos revolucionários de maio de
1968 estava ultrapassada do ponto de vista político, e quanto a isso, de nada adiantava todo
aquele movimento voraz de tomada da palavra. Daí o cetisimo de Althusser (1976), que
acusou o movimento de não ter perspectiva política nem histórica, e de Lacan, que taxou os
revolucionários de “afásicos” (1992, p. 216).
As colocações dos autores supracitados nos conduzem a pensar maio de 1968 como
um momento em que sentidos historicamente reprimidos vieram à tona, isto é, tornaram-se
não apenas possíveis, mas necessários. Porém, de modo simultâneo e paralelo, maio de 1968
é também o início de uma transformação nas possibilidades de formulação desses sentidos.
Aqui vale relembrar as palavras de Courtine: o discurso flutuava perdido no espaço. A
memória discursiva que foi mobilizada em maio de 1968 não chegava a se materializar no nível
do formulável. Não historicizava.
Como lembra Badiou (2008), havia pelo menos três movimentos de resistência,
concretos e distintos, em andamento durante maio de 1968: um estudantil, um operário e um
libertário. Por sua vez, Rancière (2008) afirma que, quarenta anos depois, toda essa
multiplicidade se reduz, frequentemente, ao sentido de uma rebelião juvenil em busca das
liberdades individuais prometidas pela sociedade de consumo. Assim, sentidos que eram
possíveis, constitutivos de 1968, com todo o peso da memória histórica que traziam, foram
sumariamente excluídos pelo trabalho da memória, que se articulou de modo a normatizar os
sentidos na passagem da memória discursiva à memória institucional, ou mais especificamente,
16
do interdiscurso ao intradiscurso. Sentidos interditados, domesticados. Ou, como diz Orlandi
(1999b), silenciados.
A ênfase de Orlandi no silenciamento está ligada ao modo como maio de 1968
repercutiu no Brasil durante os anos da ditadura militar. Entre março e dezembro daquele ano,
uma série de protestos em repúdio ao assassinato do estudante secundarista Edson Luís de
Lima Souto por um soldado da polícia militar do Rio de Janeiro levou a uma escalada de
manifestações contrárias à ditadura, repreendidas com uma violência que se intensificou até o
dia 13 de dezembro de 1968, quando o decreto que implementou o AI-5 deu início aos
chamados “anos de chumbo” (VENTURA, 1988).
É possível apontar que algumas diferenças entre o “maio de 1968” francês e o
brasileiro estão ligadas à situação política da esquerda em ambos os países. Enquanto no
movimento francês “a bandeira vermelha cobriu o país” (BADIOU, 2008, p. 35), no Brasil a
esquerda era perseguida pelas forças de um Estado autoritário de direita. Além disso, a
situação na França foi contida com a convocação de eleições. Como lembra Badiou (2008):
“depois de um mês de uma mobilização estudantil, operária e popular sem precedentes, o
governo conseguiu organizar eleições e o resultado foi a Câmara mais reacionária que já se
viu!” (op. cit., p. 36). Isso conduziu a esquerda revolucionária francesa a uma crítica radical
da democracia representativa, materializada em um dos slogans que marcaram o final de maio
de 1968 na França: “eleições, armadilha para imbecil!” (idem).
Já no Brasil, a situação foi bastante diferente. Mesmo antes da execução do AI-5, a
luta armada já era proposta como estratégia de resistência ao governo militar em alguns
setores da esquerda que, perseguida pelos militares no poder, se fragmentava em diferentes
posturas de oposição à ditadura. Uma dessas cisões aconteceu no Partido Comunista do
Brasil quando, no final de 1967, a publicação de um texto que escancarava divergências
internas do partido resultou no desprendimento da oposição interna, que foi expulsa e se
(re)constituiu com o nome de Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil. Segundo o texto
elaborado pela ala vermelha, “para que as forças revolucionárias obtenham êxito, torna-se
necessário o emprego da luta armada como sua principal forma de ação” (1985, p. 126).
Esse posicionamento foi compartilhado por diferentes segmentos da resistência, que
tinham divergências políticas, mas que, em seu conjunto, compartilhavam o objetivo geral de
17
derrubar a ditadura militar. O mesmo aconteceu em outros países sul-americanos que
passaram por governos ditatoriais entre as décadas de 1960 e 1980, como Chile2 e
Argentina3. Em todos esses casos, o sentido de resistência, de uma forma ou de outra,
associou-se à luta armada contra o autoritarismo do Estado e suas instituições.
Portanto, um dos efeitos de 1968 é que a relação entre protesto e violência deixou
diferentes marcas na memória – discursiva e institucional – de países governados por Estados
democráticos e autoritários. Dois acontecimentos recentes ilustram essa diferença. Em 2007,
na França, uma das promessas de Nicolas Sarkozy em sua campanha presidencial era
liquidar a herança de maio de 1968, isto é, acabar com a memória de um momento em que
foram questionadas as estruturas hierárquicas e de poder em praticamente todos os setores da
sociedade francesa (RANCIÈRE, 2008). A violência de 1968 é vista aí como algo produzido
pelo povo em direção ao Estado. Diferentemente do que ocorreu no Brasil a partir de 2011,
quando foi inaugurada a Comissão Nacional da Verdade (2012) para “apurar graves
violações de direitos humanos”, ocorridas entre 1946 e 1988. Aqui, a violência é vista como
algo que parte do Estado em direção ao povo. No primeiro caso, procura-se apagar os
sentidos da violência simbólica produzida pela ocupação das ruas; no segundo, de dar
visibilidade aos sentidos da violência real produzida (e dissimulada) pelo Estado para esvaziar
as ruas.
Assim, diferentes formas de silenciamento funcionaram no “maio de 1968” ocorrido
na Europa e na América Latina. Na França, sentidos possíveis foram excluídos pela
institucionalização de um sentido unívoco para o movimento (funcionamento do silêncio
2 Os movimentos de resistência no Chile tiveram, ao longo de boa parte do século XX, um caráter de luta
armada popular que se ramificava em organizações com diferentes orientações político -revolucionárias,
mas, ainda assim, constituíam uma tendência em torno da qual os (e)feitos das violências se organizavam
política e historicamente em relação a um “projeto histórico popular” de consciência de classe. Cf. Salazar
(2006, p. 105-112).
3 Na Argentina, a partir da década de 1950, os movimentos de resistência tiveram grande influência de Juan
Perón, que defendia o uso de táticas de guerrilha em detrimento das revoluções militares. Essa postura
resulta, entre outras coisas, do fato de que as forças armadas viam com desconfiança apoio popular a
Perón, que utilizava o populismo como estratégia política para resist ir ao poder militar. Cf. Carranza (2007,
p. 127-142). Ainda sobre a questão do populismo, Ernesto Laclau propõe o termo razão populista para
definir a lógica da construção do “povo” como ator político na história, mediante a tensão entre “a
universalidade do populus e a particularidade da plebs”. Cf. Laclau (2005, p. 9-34).
18
constitutivo). No Brasil e em outros países do cone sul-americano, sentidos possíveis foram
excluídos porque foram proibidos, censurados (funcionamento do silêncio local).
A memória de maio de 1968 se constituiu a partir de efeitos de sentidos contraditórios
tanto do ponto de vista sincrônico quanto do diacrônico. Embora muitos desses sentidos
tenham sido apagados com o passar dos anos, eles não deixaram de existir na memória
discursiva, onde ainda podem significar no espaço do silêncio – isto é, onde a linguagem não
alcança. Com efeito, algo se conservou no âmbito da memória discursiva, de modo que os
eventos de 1968 passaram a ser relembrados com gradativa frequência no século XXI.
Esse reflorescimento chegou ao seu ápice em 2011, quando uma onda de
mobilizações sociais “tomou a dimensão de um movimento global” (CARNEIRO, 2012, p.
7). O estopim dos protestos foi uma série de atos desesperados cometidos por indivíduos no
norte da África4, que deram início a uma revolta social generalizada e culminaram na
derrubada de longas ditaduras na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen (idem). Essas
mobilizações, que em seu conjunto ficaram conhecidos como Primavera Árabe, logo
influenciaram movimentos na Europa5 que, por sua vez, inspiraram outros também na
América6.
Alves (2012) salienta algumas características dos movimentos que eclodiram após a
Primavera Árabe. Trata-se de “movimentos pacíficos” constituídos em “densa e complexa
diversidade social” (op. cit., p. 32), que ampliaram sua área de intervenção pelo uso da
internet e das redes sociais, expondo as contradições do sistema “com notável capacidade de
comunicação e visibilidade”, de modo a reivindicar “a democratização radical contra a farsa
democrática dos países capitalistas centrais” (op. cit., p. 33). Mas, sobretudo, segundo o
autor, “o detalhe crucial (...) é que esses são movimentos democráticos de massa e ocorrem
4 Um dos casos mais conhecidos e que simbolizaram o início da Primavera Árabe é o suicídio, por
autoimolação, do comerciante Mohamed Bouazizi na Tunísia, em 17 de dezembro de 2010, em protesto
contra a apreensão de suas mercadorias (CARNEIRO, 2012, p. 7).
5 Dentre os movimentos sociais europeus influenciados pela Primavera Árabe, destacam-se o Movimento
dos Indignados na Espanha e o Movimento da Geração à Rasca , em Portugal, além das mobilizações que
ocuparam a praça Syntagma, na Grécia (CARNEIRO, 2012, 8).
6 As mobilizações europeias inspiraram, nos Estados Unidos, a criação do movimento Occupy Wall Street,
que se espalhou por diversas cidades norte-americanas (ALVES, 2012, p. 31).
19
em países capitalistas sob o Estado de direito democrático – o que não era o caso, por
exemplo, da Tunísia e do Egito” (op. cit., p. 34).
Gostaríamos de fazer duas considerações sobre esses aspectos.
Primeiramente, a constatação de que os movimentos realizados nas sociedades
democráticas se caracterizam como “pacíficos” parece inscrevê-los em uma lógica do
consenso7 que entra em contradição com a “densa e complexa diversidade social” em meio à
qual esses movimentos se constituem, silenciando-a. Isso porque nesses protestos “pacíficos”
a violência é administrada pelas estruturas de poder que detém seu monopólio: a polícia entra
em cena para fechar os espaços, criar isolamentos, deslocar o trânsito e assim improvisar um
“bolsão”, isto é, um espaço delimitado para o protesto onde este não consiga bloquear os
fluxos urbanos e possa ser integrado à “normalidade”; assim, na medida em que o espaço
ocupado torna-se parte do imaginário urbano, ele é impedido de tocar o real contraditório da
cidade. Não é que não tenha havido violência nos protestos do Movimento dos Indignados8,
na Espanha, ou nos movimentos Occupy9, nos Estados Unidos. É que ali a violência foi
“remetida a seu lugar” dentro da ordem democrática, ou seja, foi monopolizada pelo poder
dominante na organização político-administrativa que se produz sobre a ordem histórico-
social da cidade (ORLANDI, 2004).
Em segundo lugar, notamos que a internet e as redes sociais desempenharam um
papel fundamental tanto nas insurreições que derrubaram ditaduras na África quanto nos
movimentos chamados “democráticos” que se seguiram. Castells (2013), no entanto, afirma
que essas tecnologias não estão na base dos recentes movimentos sociais de protesto, uma
vez que estes não resultam delas, mas “da contradição e dos conflitos de sociedades
específicas” (op. cit., p. 166). Para o autor, o essencial é “enfatizar o papel basilar da
comunicação na formação e na prática dos movimentos sociais” (idem). Ou seja, a
7 Segundo Orlandi (2010), “há a formação de um consenso em uma sociedade como a nossa em que a
noção de delinquência está definida pelo modo da segregação ”. Essa segregação se materializa
frequentemente na (in)distinção dos “ditos vândalos” entre os chamados “manifestantes”.
8 Em 27 de maio de 2011, a remoção de um acampamento dos “indignados” na Plaça de Catalunya, em
Barcelona, resultou em mais de 120 feridos. Cf. < http://mun.do/1eOnH5B >
9 Em 15 de novembro de 2011, mais de 200 manifestantes foram detidos durante a remoção dos ativistas do
movimento Occupy Wall Street do Zuccotti Park, em Nova York. Cf. < http://huff.to/19TwIet >
20
importância da internet está ligada, de acordo com Castells, ao papel da comunicação na
disseminação dos movimentos:
Os movimentos sociais em rede de nossa época são amplamente
fundamentados na internet, que é um componente necessário, embora
não suficiente, da ação coletiva. (...) Ela protege o movimento da
repressão de seus espaços físicos liberados, mantendo a comunicação
entre as pessoas do movimento e com a sociedade em geral na longa
marcha da mudança social exigida para superar a dominação
institucionalizada (CASTELLS, 2013, p. 167).
O autor, na medida em que pensa a internet como tecnologia de comunicação,
exclui-a da raiz dos movimentos sociais – uma vez que a considera um “componente
necessário, mas não suficiente” – porque a própria noção de comunicação produz uma
separação entre o meio (canal) e a mensagem. No entanto, devemos lembrar que a
perspectiva da análise de discurso produz uma recusa desse esquema comunicacional: não há
transmissão de mensagem entre dois pontos, mas efeito de sentidos entre um e outro
(PÊCHEUX, 1969); além disso, o funcionamento da linguagem é pensado não como sistema,
mas como materialidade, englobando o meio como constitutivo dos processos de
significação. Assim, tendo em vista essas balizas teóricas, entendemos que a própria
materialidade do virtual é constitutiva dos efeitos de sentido que são ali produzidos. Portanto,
pode-se contestar a afirmação de Castells a partir do argumento de que a materialidade da
rede virtual faz parte das condições de produção dos discursos constituídos nesses
movimentos sociais, cumprindo tanto o papel de comunicar quanto o de não comunicar.
Independentemente do modo como se considere o papel da internet e das redes
sociais na organização dos atuais movimentos de protesto, é essencial compreender a
passagem das mobilizações virtuais aos movimentos de rua. Segundo Castells (2013, p. 160),
“embora esses movimentos geralmente se iniciem nas redes sociais da internet, eles se tornam
um movimento ao ocupar o espaço urbano, seja por ocupação permanente de praças
públicas seja pela persistência das manifestações de rua”. Já para Harvey (2012, p. 60-61),
“são os corpos nas ruas e praças, não o balbucio de sentimentos no Twitter ou Facebook,
que realmente importam” como instrumento efetivo de oposição.
21
Um estudo de Nunes (2013) sobre uma série de “marchas urbanas” promovidas no
Brasil em 2011 mostra alguns aspectos interessantes sobre a (não) organização da escrita
nessa passagem do virtual das redes sociais ao real das ruas. Segundo o autor, nos sites que
fomentam os movimentos no espaço virtual há, ao mesmo tempo, “um discurso de
organização das atividades e uma negação da responsabilidade dos organizadores e dos
líderes” (op. cit., p. 73). Embora esses mesmos sites contenham cartazes que podem ser
baixados e imprimidos para serem utilizados na marcha, Nunes observa que prevalecem nas
ruas os cartazes formulados pelos próprios sujeitos, o que indica o exercício da função-autor
na passagem do virtual ao real:
A ida às ruas faz com que haja uma passagem da escrita digital,
predominante nas redes sociais, à escrita manual com outros suportes
adaptados ao caminhante. Do virtual ao real, o traço da mão é um
índice do movimento que se especializa nas ruas. A diversidade
fraseológica e enunciativa, ao modo do geral, do generalizado, do
coletivo, do fragmentado e do individualizado aponta para as
contradições do acontecimento, que se constitui nas fronteiras entre
um coletivo (não) organizado e as manifestações individualizadas
(NUNES, 2013, p. 80).
O autor observa, na convocação virtual dos sujeitos para o acontecimento, que a
posição de colaborador significa esses sujeitos tanto do ponto de vista coletivo quanto do
individual, constituindo-se “no espaço contraditório entre a organização digital e a negação da
posição de organização” (idem). Há, assim, um apagamento da figura do porta-voz: na
medida em que as práticas de protesto são atribuídas a sujeitos individualizados – e não à
"rede" de mobilização virtual – a articulação do virtual com o real se produz no imaginário de
"uma organização horizontal, sem hierarquias", conduzindo, segundo o autor, a uma negação
do político (op. cit., p. 81-82).
Embora as mobilizações realizadas no Brasil não tenham atingido a magnitude de
movimentos de protesto ocorridos em outros países em 2011 (CARNEIRO, 2008, p. 12), o
estudo de Nunes sobre as marchas urbanas permite identificar nesses protestos as
regularidades de um processo discursivo amplo, que não se encerrou nas circunstâncias
imediatas das marchas urbanas realizadas no Brasil em 2011, mas está ligado a novas
condições históricas de constituição dos movimentos sociais. Parte dessas novas condições
22
encontra-se representada na seguinte afirmação de Castells (2013): “trata-se de movimentos
sem liderança, não pela falta de líderes em potencial, mas pela profunda e espontânea
desconfiança (...) em relação a qualquer forma de delegação de poder” (op. cit., p. 162).
Essa e outras características se conservaram até 2013, quando as mobilizações de protesto
no Brasil atingiram, enfim, magnitude semelhante à dos movimentos que ocorreram em outras
regiões do mundo em 2011.
No mês de junho de 2013, uma série de manifestações de protesto contra o aumento
das tarifas do transporte público, organizadas inicialmente no âmbito do Movimento Passe
Livre (MPL) em São Paulo, foi recebida com indiferença pelas autoridades políticas e violenta
repressão pela polícia militar, gerando uma onda de revoltas que se estenderam por todo o
país em questão de poucos dias, mobilizando milhões de pessoas em centenas de cidades
brasileiras.
O fenômeno de junho de 2013 no Brasil foi observado em diferentes perspectivas
dentro e fora do país. Castells (2013), no posfácio acrescido à edição brasileira de “Redes de
indignação e esperança”, livro que resulta de suas pesquisas sobre os movimentos de protesto
em 2011, escreveu: “Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem Líderes.
Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia. Espontaneamente.”
(op. cit., p. 178). Vainer (2013) segue a mesma direção ao afirmar que “governantes,
políticos de todos os partidos, imprensa, cronistas políticos e até mesmo cientistas sociais
foram pegos de surpresa pelas manifestações de massa que mudaram a face e o cotidiano de
nossas cidades em junho” (op. cit., p. 35). Em suma, esses autores tomaram os protestos
como algo espontâneo.
Por outro lado, como afirma Maricato (2013), “quem acompanha de perto a
realidade das cidades brasileiras não estranhou as manifestações” (op. cit., p. 18). Segundo o
próprio Movimento Passe Livre (2013), “as revoltas de junho de 2013, desencadeadas pela
luta organizada pelo MPL-SP contra o aumento das tarifas, não são algo inteiramente novo”
(op. cit., p. 14).
23
De nossa parte, consideramos a necessidade de observar junho de 2013 como um
acontecimento discursivo 10, que encontra nessa profusão de diferentes versões um modo
particular de se inscrever (ou não) na história. Partindo dessa proposta, alguns enunciados
despertam nosso interesse. Rolnik (2013, p. 9) afirma que houve, no decorrer dos protestos,
“uma guerra de interpretações das vozes rebeldes”. Por sua vez, Secco (2013, p. 72) observa
uma distinção entre “a linguagem que vem de cima”, apelativa como a publicidade, e “a que
vem de baixo”, que toma a forma de um jogral.
Tendo em vista o conflito de linguagens distintas e o confronto de diferentes
interpretações sobre os protestos, buscaremos nesta análise compreender o acontecimento
discursivo em torno de um dos enunciados que se tornaram palavras de ordem no Brasil em
junho de 2013, produzindo uma tensão entre a memória discursiva e a memória institucional:
vem pra rua!
“VEM PRA RUA”: UM ACONTECIMENTO DISCURSIVO
No dia 18 de junho de 2013, diversos grandes sites da internet no Brasil publicaram
reportagens sobre a origem da música “Vem pra rua11”, cujo refrão havia se tornado palavra
de ordem de um dos maiores movimentos de protesto da história brasileira. Tratava-se de um
jingle promocional12 de uma grande marca de automóveis (a Fiat) como parte de uma
campanha publicitária que tematizava a Copa das Confederações de 2013, torneio de futebol
realizado pela FIFA no Brasil.
A competição, ocorrida entre os dias 15 e 30 daquele mesmo mês em diversas
capitais brasileiras, tem regras rígidas para anunciantes que não fazem parte da lista de
10 Em nosso entendimento, o acontecimento discursivo consiste em um fato histórico que demanda da
linguagem a unidade dos sentidos, quando esta só pode produzi-los em sua dispersão.
11 Estadão, Exame, G1, e UOL, sendo que este último atribuiu (equivocadamente) a autoria da canção a
Wilson Simoninha. Os links estão listados nas referências de internet.
12 A campanha da Fiat foi produzida por uma parceria entre as agências de publicidade Leo Burnett Tailor
Made e Click Isobar. Já o jingle foi criado pela produtora S de Samba, que tem entre seus proprietários
Wilson Simoninha e Jair Rodrigues.
24
patrocinadores oficiais do evento, entre eles a Fiat. Assim, o jingle, que ocupou importantes
espaços comerciais em canais de TV abertos e pagos, não traz nenhuma citação sobre a
Copa do Mundo de futebol, e também não menciona o nome da marca promotora da
campanha. Partiu-se da premissa de que “no País do futebol, teremos muito mais gente
torcendo pela Seleção fora do que dentro dos estádios13” para produzir a trilha sonora de
uma campanha de marketing que, segundo o autor da canção, esforçou-se para criar um
jingle que não parecesse um jingle:
A agência tinha um briefing: “queremos um jingle hit” e algumas das
palavras-chave que eram “vem pra rua” e “a rua é a maior
arquibancada do Brasil”. (...) começamos com algo mais tradicional no
mundo dos jingles... sem sucesso. “Não é isso” disse a agência... (...)
Isso se repetiu por pelo menos mais 4 jingles e suas variações que se
não me engano chegou ao numero 9 de tentativas. (...) Até que um
dia, já ”puto” da vida e desgastado com todo o processo, pensei
comigo mesmo: “eles não querem um jingle... eles querem uma
musica de verdade!” (NICOLAU, 2013).
Em outras palavras, era necessário que a música não parecesse ter sido
encomendada, muito embora o tema e algumas palavras-chave já tivessem sido impostos ao
autor, de antemão. O resultado, após intensa exposição televisiva, foi a transformação do
jingle da fábrica de automóveis em música-tema de protestos contra o sistema de transporte
público em centenas de cidades brasileiras.
Para analisar esse fenômeno como um acontecimento discursivo, realizaremos uma
série de gestos analíticos que terão como objetivo dar visibilidade à complexa materialidade
discursiva que se produz em torno do enunciado “vem pra rua” por meio de diferentes modos
de textualidade: a letra da música, a voz utilizada na gravação, o clipe audiovisual veiculado na
TV, a hashtag usada ao lado do enunciado nas redes sociais, bem como as sátiras feitas ao
vídeo promocional da Fiat durante as manifestações de junho.
O enunciado “vem pra rua”, cuja inserção no jingle foi uma das exigências feitas ao
compositor da trilha, apresenta uma marca característica do discurso publicitário: o uso do
imperativo em linguagem coloquial. “Vem pra rua” é uma forma escrita que, diferentemente de
13 Cf. http://bit.ly/MX6RIK.
25
paráfrases ortográficas como “venha à rua” ou “venha para a rua”, apresenta marcas de
oralidade que produzem no modo imperativo não o efeito de uma ordem, mas o de um
convite, dissimulando o caráter apelativo da linguagem publicitária.
Embora a campanha produza certo efeito de “marca registrada” sobre o enunciado,
isto não significa, de modo algum, que este tenha no comercial da Fiat um “ponto de origem”.
Por esta razão, consideramos pertinente interrogar os sentidos que aí aparecem sob a forma
de um pré-construído14. Com efeito, antes que o enunciado “vem pra rua” tivesse aparecido
com o sentido de convocar a torcida pela seleção brasileira de futebol, ele já havia circulado
anteriormente, em outras condições de produção, com o sentido de convocação para
protestos de rua15. Assim, sentidos referentes a movimentos de protesto funcionam no
enunciado “vem pra rua” como uma rede de implícitos por meio da qual se produz o efeito de
pré-construído, onde “algo fala antes, em outro lugar, independentemente” (PÊCHEUX,
1975, p. 88-89).
Para compreendermos a irrupção desses sentidos pré-construídos, é relevante pensar
o modo como o dizer “vem pra rua” se textualiza na letra do jingle, onde a observação de
sua relação com outros enunciados possibilita aprofundar nosso gesto analítico.
No refrão da música, o enunciado vem acompanhado de uma explicativa: “Vem pra
rua / Porque a rua é a maior arquibancada do Brasil”. O período se forma mediante o
funcionamento da palavra “porque” como conjunção coordenativa, isto é, como elemento de
ligação entre orações sintaticamente independentes. Do ponto de vista semântico, no entanto,
a relação do enunciado “vem pra rua” com o tema da torcida que não entra nos estádios se
produz em uma discursividade que materializa contradições sociais relacionadas a um
espetáculo esportivo que demandou enormes investimentos públicos. “Pode vir que a festa é
sua”, diz a letra. No entanto, aqueles que ajudaram a financiar o evento e foram dele excluídos
são convidados a celebrá-lo do lado de fora.
14 O conceito de pré-construído foi formulado por P. Henry “para designar o que remete a uma construção
anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado”
(PÊCHEUX, 1975, p. 89).
15 Cf. Anexo 1.
26
“Porque a rua é a maior arquibancada do Brasil”. Este enunciado estreita as
possibilidades de sentido da chamada às ruas, produzindo o que percebemos como um duplo
efeito de silenciamento. Por um lado, a "rua" é reduzida a um espaço onde o sujeito pode
transitar livremente para celebrar uma festa cujo acesso lhe é negado, estando aí apagado o
fato de que esse sujeito precisa disputar tal espaço com os próprios carros produzidos em
massa pela mesma empresa que o convida a ir às ruas. Por outro lado, a "arquibancada" é
reduzida a um lugar de festa e harmonia, estando aí silenciado o fato de que as arquibancadas
brasileiras são palco de recorrentes atos de violência brutal e gratuita. A metáfora
“rua/arquibancada”, assim, produz um apagamento de sentidos ligados à mobilidade, à
acessibilidade e à violência.
Em outro trecho, a letra da música diz: “Que o Brasil vai tá gigante / Grande como
nunca se viu”. O efeito de sentido de grandeza está ligado ao destaque internacional que os
dois eventos da FIFA – Copa das Confederações em 2013 e Copa do Mundo em 2014 –
propiciam ao Brasil, que procura afirmar sua grandeza como potência econômica mundial. No
entanto, essa exposição “global” pode suscitar sentidos contraditórios, uma vez que a
contraparte do grande potencial econômico externo é uma grande inequidade social interna. A
Copa do Mundo foi alardeada em diversos setores da sociedade brasileira como uma
oportunidade de se fomentar investimentos em infraestrutura que ficariam como “legados da
Copa” para o povo brasileiro. No entanto, o superfaturamento de estádios e o atraso nas
licitações para reformas em aeroportos e obras de mobilidade urbana colocam em causa essa
autoafirmação de gigantismo no âmbito internacional, dando visibilidade outros sentidos
possíveis – e pouco desejáveis – para a grandeza do Brasil em suas contradições internas,
que ficam silenciadas no jingle.
Observamos esse deslizamento de sentidos no comentário de uma internauta16, que
chama a atenção para um interessante efeito de homonímia produzido pela letra: “que o Brasil
vai tá gigante, grande como nunca, civil” (grifo nosso). Nessa formulação, o choque do
simbólico com o político faz o sentido de gigantismo deslizar do econômico ao social.
16 Este comentário se encontra na postagem do site “Update or Die!” sobre o processo de criação do
jingle. Cf. NICOLAU, 2013.
27
Em suma, ao observarmos a relação do enunciado “vem pra rua” com outros dizeres
que aparecem na letra da música, pudemos notar que o sentido de tomar as ruas para torcer
pela seleção brasileira na Copa é produzido a partir do silenciamento de diversos outros
sentidos possíveis sobre a expectativa dos brasileiros em relação ao evento realizado no país.
Apaga-se contradições relacionadas a temas como exclusão, mobilidade, acessibilidade e
violência, além da situação político-econômica do Brasil. Contradições que reaparecem no
jingle pela citação de uma antiga canção do folclore brasileiro: “se essa rua fosse minha...”.
Para dar sequência à análise da complexa materialidade discursiva construída em
torno do enunciado “vem pra rua” na construção da campanha publicitária, consideramos
necessário também levar em conta a discursividade produzida pela voz que canta a música.
Segundo o relato do autor e produtor do jingle (NICOLAU, 2013), a produção da trilha
teve sua duração estendida por demandas que a agência publicitária impôs ao longo do
processo. Em um desses casos, quando a canção já estava gravada, solicitaram que os vocais
fossem feitos por um cantor famoso. Segundo Wilson Simoninha, um dos proprietários da
produtora responsável pelo jingle:
Ficamos entre Seu Jorge e Falcão. Só que o Falcão, por ser um cara
que não faz publicidade, poderia ser um cara diferente. Quando o
Falcão botou a voz, no primeiro play que a gente deu, todo mundo
ficou falando 'caralho!' e a partir daí a coisa andou (in LORENTZ,
2013).
Nota-se, assim, também no processo de escolha do vocalista, a necessidade de fazer
com que o jingle não parecesse um jingle: era preciso levar em conta que os timbres das
vozes de Seu Jorge e Falcão produzem diferentes efeitos de sentidos em sua sonoridade. Seu
Jorge é um artista que transita com naturalidade entre a música, o cinema e a televisão, tendo
já alguns trabalhos publicitários em seu currículo. Já Falcão, vocalista da banda O Rappa, tem
sua voz ligada a uma música que, diferentemente da de Seu Jorge, é conhecida pela crítica
social investida em suas letras.
Podemos, assim, notar o funcionamento da memória na materialidade da voz, que traz
em sua sonoridade efeitos de sentidos ligados a diferentes processos de identificação. Tendo
em vista a repercussão do jingle nas manifestações de junho, é possível apontar que, quando
28
recoberta pela materialidade da voz de Falcão, a canção mobilizou justamente o aspecto
social que a textualidade de sua letra silencia. No entanto, quando o jingle se transformou em
canção-tema dos protestos, o dono da voz que convocou a população às ruas se recolheu em
silêncio: “Falcão, por meio de sua assessoria, disse que não vai comentar a canção. Ele
apenas foi contratado para ‘colocar a voz’ na música, sem ter participado da criação”
(LORENTZ, 2013).
É relevante destacar que o silêncio do músico não implica especificamente uma recusa
das mobilizações sociais de protesto, mas das contradições produzidas pelo uso do jingle
como tema das manifestações. Durante uma apresentação de sua banda, realizada no dia 15
de junho de 2013 em Londrina, Falcão fez uma série de críticas ao governo federal brasileiro,
aos problemas do transporte público no Brasil e à organização dos eventos da FIFA no
país17. Considerando-se as diferentes posições-sujeito ocupadas pelo músico na campanha
publicitária e no palco com O Rappa, é significativo o fato de que uma voz fortemente
associada à “canção de protesto” tenha contribuído para desencadear tamanha mobilização
social a partir de um jingle promocional, o que tomamos como parte do funcionamento
contraditório da ideologia no discurso publicitário.
Ao declarar que não participou do processo de criação da música, mas “apenas foi
contratado para colocar a voz”, Falcão parece desconhecer a própria voz no impacto
causado pela peça publicitária. Ou melhor, ele parece reconhecer ali uma voz que não é a sua,
mas de uma empresa que vê a canção como ferramenta para ajudar a vender uma ideia
bastante distinta daquilo que expressa a música de cunho social feita pelo Rappa. É válido
questionar: se Falcão bradasse “vem pra rua!” para endossar os protestos, quem poderia
dizer que ele não estaria ainda fazendo a propaganda da Fiat?
Se, em junho de 2013, o cantor optou por não comentar o sucesso do jingle ao qual
ele havia “emprestado” sua voz, seis meses depois ele decidiu romper o silêncio para se
defender das críticas de fãs decepcionados com a suposta alienação de um músico “sério”
que havia “se vendido”. Nas palavras do vocalista:
17 Cf. < http://www.youtube.com/watch?v=F6sfzdrf8vQ >
29
Uma das coisas que O Rappa mais desenvolveu foi o lado social.
Estamos do lado das pessoas. Não temos partido, mas queremos
ajudá-las, queremos fazer o melhor. Acontece que um dia o Simoninha
me ligou e disse que precisava de mim para uma música. Fui lá, fiz
umas três versões e veio a propaganda da televisão. Eu disse que não
queria aparecer, mas que podiam usar minha voz. Até que foi parar na
internet, gravaram um vídeo com ela de fundo e as pessoas na rua.
Queriam até me bater. Mas foi tudo espontâneo, convite, letra,
gravação. Não tenho culpa, só coloquei minha voz a serviço de uma
parada. Não sabia que ia ter essa repercussão. (in JOVEM PAN,
2013).
Na mesma ocasião, em dezembro de 2013, Falcão dá outra indicação do efeito que
sua voz produziu sobre a letra de “Vem pra rua”: pela primeira vez em 15 anos de carreira, O
Rappa passava por um período de inatividade que gerou especulações sobre o fim da banda.
Assim, segundo o vocalista, havia grande expectativa entre os fãs pelo lançamento de um
novo trabalho: “Acho que as pessoas queriam logo um disco novo. Se eu for pensar agora,
acho que me convidaram para a campanha no momento certo. Não tinha pensado nisso.
Qualquer coisa que eu cantasse ganharia uma repercussão grande” (idem). De fato, O Rappa
estava gravando um novo disco quando a campanha da Fiat foi veiculada, e uma parte
considerável do público acreditou, em princípio, que o jingle era uma nova música da
banda18.
Além da textualidade da letra da música e da voz de Falcão, o acontecimento
discursivo do enunciado “vem pra rua” tem ainda, na complexidade de sua constituição, toda
uma materialidade audiovisual construída em torno do jingle entre o comercial lançado em
maio e os protestos de junho.
No lançamento da campanha publicitária, a página da Fiat no YouTube publicou dois
vídeos19. No dia 8 de maio foi postado um videoclipe da canção completa, trazendo imagens
de sua gravação da canção em estúdio – apresentado como “Estúdio Fiat” – por um grupo de
músicos centrado em torno do vocalista Falcão. Depois, em 16 de maio, o mesmo perfil
18 Essa confusão pode ser vista nos comentários do vídeo feito em Londrina, em 15/06/2013. Cf. <
http://www.youtube.com/watch?v=F6sfzdrf8vQ >
19 Os links de ambos os vídeos se encontram nas referências de internet.
30
postou o comercial que foi veiculado em TVs abertas e pagas até o dia 22 de junho, segundo
o diretor de marketing da Fiat, João Ciaco (in SCHELLER, 2013).
A observação do primeiro vídeo divulgado pela Fiat mostra que Falcão, de fato, fez
mais do que apenas “colocar a voz” no jingle : ele também colocou seu corpo em um
videoclipe feito para a música. Apesar de o vocalista ter solicitado que sua imagem não fosse
usada no comercial de TV, a divulgação prévia da canção pelo videoclipe criou uma relação
de identificação entre a sua imagem e a da empresa promotora da campanha. Há marcas
dessa relação na própria página do YouTube onde o vídeo foi postado, que apresenta a
seguinte legenda: “O Falcão chamando todo mundo! Vem pra rua, porque a rua é a maior
arquibancada do Brasil!”20.
Tendo em vista que o filme publicitário passou a ser veiculado mais de uma semana
após a divulgação do videoclipe, a imagem de Falcão já havia sido associada ao enunciado
“vem pra rua” antes mesmo que este aparecesse no comercial de TV. Esse movimento, mais
uma vez, produziu o efeito de que o jingle não parecesse um jingle: dos dois vídeos
publicados pela Fiat no YouTube, o videoclipe da música completa teve, até 31 de janeiro de
2014, mais do que o triplo de visualizações em relação ao comercial de TV com o jingle
editado.
Contudo, enquanto o videoclipe mobilizou milhares de fãs de Falcão e sua banda na
internet, o filme publicitário teve intensa exposição televisiva entre os meses de maio e junho
de 2013, período em que foi veiculado diariamente em canais da TV aberta e fechada. Por
conseguinte, sua materialidade audiovisual também produziu efeitos específicos sobre o
acontecimento discursivo construído em torno do enunciado “vem pra rua”.
Na textualização do filme publicitário, os elementos verbais e não verbais assumem
diferentes formas. Enquanto o plano verbal se divide entre a letra do jingle (que toma a forma
da oralidade) e as palavras que aparecem por escrito nas imagens do vídeo, o plano não
verbal se divide entre aspectos musicais (o timbre da voz e a seção instrumental) e visuais
(movimento de corpos e objetos) do videoclipe. Para compreender os efeitos produzidos por
20 Cf. Anexo 2.
31
essa materialidade audiovisual, procuramos descrever21 o modo como a edição do vídeo
sincronizou uma sequência de imagens com o que é cantado na música.
Assim, observamos que, ao ser musicalizada, a linearidade da letra ganha uma
cadência específica pela sincronicidade entre os versos cantados e as imagens editadas. Se,
por um lado, o recobrimento da letra pela voz faz com que o gesto do cantor se sobreponha
ao do compositor, por outro, o gesto do editor se sobrepõe ao do cantor, num movimento
que produz efeitos de unidade e dispersão de sentidos na passagem da escrita à oralidade, e
desta ao audiovisual. Nesse movimento, interessa-nos observar modo como a edição de
imagens dá visibilidade a uma série de contradições relacionadas aos sentidos que a letra
silencia (a exclusão social, os problemas de mobilidade urbana e a violência).
No que se refere à exclusão, identificamos que o verso “Vem, vamo pra rua” (A1) e
uma paráfrase – “Vem, vamo com a gente” (A5) – são acompanhados de duas imagens em
movimento: na primeira (V1), três meninos aparecem jogando bola no que parece ser o
corredor de uma favela de morro; na segunda (V5), outro grupo de crianças aparece
correndo no meio de ruas e avenidas. Na imbricação do áudio com o visual, a rua aparece
como um espaço habitado por crianças pobres, individuadas na falha das instituições
(ORLANDI, 2012), muitas das quais encontram no futebol profissional a única possibilidade
de se inserirem na sociedade. Esta imagem expõe uma contradição própria à indústria do
futebol: embora esta movimente enormes somas de dinheiro, são poucos os talentos
premiados com a consagração profissional, que se sustenta em um padrão exageradamente
elevado e mantém a maioria excluída do processo. Assim, a sincronia das imagens às
paráfrases supracitadas torna visível o fato de que a convocação para torcer nas ruas por um
time de poucos heróis consagrados implica se deparar também com muitos daqueles que não
tiveram a mesma sorte.
A sincronicidade entre o áudio e o vídeo também torna visíveis algumas contradições
relacionadas à questão da mobilidade. Os versos “Vem pra rua” (A8) e “Pra maior
21 A descrição das relações de sincronicidade entre o áudio e o visual está formulada na tabela do Anexo 3.
Como há alguns versos que se repetem ao longo da música, enumeramos os versos cantados no áudio em
uma coluna com a letra A, e fizemos breves descrições das imagens que acompanham os versos no vídeo,
que enumeramos em uma segunda coluna com a letra V.
32
arquibancada do Brasil” (A9), que aparecem em sequência, são acompanhados de duas
tomadas de câmera: a primeira (V8) mostra pessoas festejando na rua, em meio ao trânsito
parado; já na segunda (V9), é possível ver um homem dentro de um carro, buzinando
repetidas vezes, em um aparente gesto de celebração. A sequência de imagens reproduz (e
transforma) a cena de tomada das ruas que normalmente se segue à conquista de um
campeonato: o gesto de aparente celebração do motorista silencia outros sentidos possíveis
para o uso da buzina nessas mesmas condições de produção, uma vez que a buzina dos
festeiros e a daqueles que estão apenas tentando se deslocar de um ponto a outro da cidade
se tornam indistintas em meio à massa sonora. Cria-se assim a ilusão de unidade na massa de
corpos e carros pelo apagamento da diferença e das contradições que a ocupação das ruas,
seja ela de caráter festivo ou não, produz: o espaço falta.
Já no que diz respeito à violência, no momento do verso “Sai de casa” (A7) surge a
imagem de uma pessoa mascarada envolta em uma fumaça avermelhada (V7), enquanto o
verso “Vem pra rua” (A18) aparece sincronizado com a tomada de uma câmera no alto de
um edifício, mostrando o cruzamento de duas avenidas repleto de corpos em verde e amarelo,
do meio de onde sai também uma fumaça avermelhada que se assemelha àquela produzida
pelos sinalizadores utilizados por torcidas organizadas no Brasil. Assim, dois versos que
trazem o imperativo de convocar a torcida às são acompanhados de imagens que remetem à
violência recorrente tanto nas arquibancadas dos estádios de futebol quanto nas ruas
brasileiras.
A última cena do filme publicitário tem como imagem de fundo um fogo produzindo a
mesma fumaça avermelhada, sobre o qual aparece escrito um dizer que também é falado pela
voz de um locutor: “Vem com quem mais entende de rua. Vem com a Fiat”. Assim, a
repetição desse mesmo dizer nas formas falada e escrita produz o efeito de associar a canção
– que foi produzida de modo a não parecer um jingle – à marca da empresa, que não é
citada na letra.
Ainda na última cena do comercial, a inscrição “#vemprarua” aparece no vídeo. Esse
tipo de inscrição, sem espaços e antecedida pelo sinal de cerquilha (#), funciona em redes
sociais como Twitter, Facebook e Instagram como um mecanismo de indexação conhecido
como hashtag. Trata-se de uma das principais ferramentas para a promoção de campanhas
33
virais nas redes sociais: ao clicar em uma hashtag, tem-se acesso a um hipertexto que agrega
todas as postagens que foram marcadas com aquela inscrição. Isso torna possível medir, tanto
nas redes sociais quanto através de mecanismos de busca, o alcance de diferentes tópicos,
sendo que os mais comentados aparecem em uma lista do Twitter chamada trending topics.
Assim, compreendemos o funcionamento da hashtag como um registro de memória metálica,
que reflete a circulação de sentidos no espaço virtual da internet.
Pêcheux (1983b), escrevendo sobre as diversas formulações que o discurso midiático
produziu sobre o acontecimento das eleições presidenciais na França em 1981, afirma que
esses diferentes enunciados formulados pela mídia “não se encontram em relação
interparafrástica” uma vez que “remetem a um mesmo fato, mas não constroem as mesmas
significações” (op. cit., p. 20). Pensando então o uso da hashtag, entendemos que os
enunciados aí reunidos também não se encontram em relação interparafrástica e não
constroem as mesmas significações, mas com uma diferença fundamental em relação ao que é
observado por Pêcheux no discurso midiático: os enunciados indexados por uma hashtag
nem sempre remetem ao mesmo fato.
Muito embora a aparição dessa marca “#vemprarua” no final do comercial de TV
sugerisse o engajamento do público com a campanha da Fiat nas redes sociais da internet, o
efeito produzido foi outro: com o início dos protestos de junho de 2013, a repetição da
hashtag passou a indexar postagens convocavam as pessoas às ruas não para torcer em um
torneio de futebol, mas para exigir transformação social. Há, portanto, uma dispersão de
sentidos que se liga ao enunciado “vem pra rua” a partir da marca que o sinaliza como uma
hashtag (#).
Enquanto o enunciado “vem pra rua” se transformava em slogan dos protestos no
começo de junho, o comercial da Fiat continuava sendo amplamente veiculado na TV. A
repetição tornou evidentes as contradições referentes à mobilidade: tanto o enunciado quanto
a hashtag estavam sendo mobilizados, ao mesmo tempo, para protestar contra o aumento da
tarifa do transporte coletivo e para estimular a venda do objeto de consumo que representa a
primazia do transporte individual.
Além disso, na medida em que as manifestações mobilizadas pelo MPL ganhavam o
apoio popular, os protestos se tornaram alvo de repressão brutal por parte da PM, o que, por
34
sua vez, tornou evidentes as contradições relacionadas à violência. Em 14 de junho, dois
vídeos22 postados no YouTube reproduziam o jingle da Fiat acompanhado de imagens que
expunham a repressão policial não apenas contra os manifestantes, mas também contra
jornalistas que cobriam os acontecimentos. A rápida disseminação dessas versões nas redes
sociais deu visibilidade ao fato de que a violência da PM contra as manifestações
impulsionadas pelo MPL gerou novas mobilizações que reclamavam o direito de protestar
sem ser reprimido por balas de borracha e bombas de efeito moral.
Logo, o enunciado “vem pra rua” foi complementado por outros tipos de palavras de
ordem que reconfiguravam os protestos na medida em que estes passam da negação de si
(“não são apenas os 20 centavos”) à autoafirmação (“o gigante acordou”). De certo modo, o
discurso de protesto passou a funcionar como a causa de si mesmo: era um dever protestar
pelo direito de protestar pelo que quer que fosse. Assim, o acontecimento discursivo deixa
suas marcas nesse deslizamento que faz o enunciado produzir diferentes efeitos de sentidos.
Primeiramente, no jingle da Fiat, “vem pra rua” produz o sentido de torcer pela
seleção brasileira de futebol e celebrar os grandes eventos esportivos sediados no país.
Depois, o mesmo enunciado se torna um slogan que produz o sentido de protestar contra as
deficiências de um sistema de transportes que privilegia os meios individuais em detrimento
dos coletivos. Por fim, esse mesmo slogan passa a produzir o sentido de protestar contra o
uso da violência policial para silenciar os protestos referentes ao transporte.
Se, no jingle, os brasileiros eram convocados às ruas “porque a rua é a maior
arquibancada do Brasil”, a transformação do enunciado em slogan dos protestos desloca
essa justificativa na medida em que a rua passa a significar como um lugar onde o cidadão
atua não como espectador, mas como protagonista. A rua, assim, deixa de ser vista como
“arquibancada” para se tornar palco de luta social e política.
No entanto, é preciso também se atentar para a opacidade do próprio slogan dos
protestos, que se mostra no movimento entre a reivindicação de uma solução específica (a
revogação do aumento das tarifas do transporte público) e a queixa de um problema geral (a
violência dos aparelhos repressivos do Estado).
22 Cf. http://www.youtube.com/watch?v=vvJt-Mpz8us e http://www.youtube.com/watch?v=i3lCMiUAJ90.
35
Nessa passagem da reivindicação à queixa, os acontecimentos de junho de 2013 no
Brasil materializaram um aspecto interessante dessa discursividade que se constrói a partir da
revolta e do confronto: a distinção entre protestar por e protestar contra. O que, ao final
desta análise, nos remete ao que escreveu S. Žižek após os movimentos de protesto de 2011:
“Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar as questões
verdadeiramente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo
que queremos” (2012, p. 82). Segundo o autor, se essas são as questões “verdadeiramente
difíceis”, é porque a dificuldade não está apenas em encontrar as respostas, mas em formular
as perguntas: eis o funcionamento do equívoco no próprio interior dos discursos de protesto.
CONCLUSÕES PRELIMINARES
Com este primeiro estudo, procuramos mostrar o acontecimento discursivo do
enunciado “vem pra rua” como resultante do funcionamento do equívoco no interior do
discurso publicitário, que dá visibilidade à contradição: o jingle de uma fábrica de carros se
tornou slogan de protestos contra um modelo de produção que privilegia o automóvel
individual em detrimento dos sistemas de transporte coletivo. Além disso, observamos um
deslocamento no próprio interior das manifestações, que passaram de protestos por
melhorias no transporte público a protestos contra a violência da repressão policial.
Ao observarmos esses diferentes movimentos, notamos que o discurso midiático
desempenha, na atualidade, um papel fundamental no trabalho da memória. Em nossa primeira
análise, nos detivemos especificamente nos efeitos de sentido que o discurso publicitário
produz em relação às contradições que ele próprio silencia.
Deixaremos então para uma segunda análise uma observação mais atenta do modo
como os movimentos de protesto ganharam (ou não) espaço no discurso jornalístico à medida
que este construía sua própria narrativa dos movimentos de protesto ao longo do mês de
junho de 2013. Com esse segundo gesto, esperamos aprofundar nossa compreensão sobre o
funcionamento contraditório do discurso midiático em relação ao trabalho da memória que é
mobilizado nos e pelos discursos de protesto.
36
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SCHELLER, F. [2013] O Estado de São Paulo – Economia. ‘Vem pra rua’ agora é dos
brasileiros, diz Fiat. Matéria publicada em 18/06/2013. Disponível em: <
http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,vem-pra-rua-agora-e-dos-
brasileiros-diz-fiat,156875,0.htm >.
UOL [2013] Entretenimento – Música. Autor de “Vem Pra Rua”, Simoninha vê música
virar tema de protestos e diz que é “um prazer”. Matéria publicada em 18/06/2013.
Disponível em: < http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2013/06/18/gravada-por-falcao-
hit-dos-protestos-vem-pra-rua-foi-composta-por-simoninha.htm >
VEJA [2013] Economia – Marketing. Campanha da Fiat ‘Vem Pra Rua’ deveria acabar
– mas continua. Matéria publicada em 24/06/2013. Disponível em: <
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/campanha-da-fiat-vem-pra-rua-deveria-acabar-mas-
continua >.
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ANEXOS
Anexo 1:
Figura 1: #vemprarua na divulgação de protestos anteriores a 2013
40
Anexo 2
Figura 2 - Referência a Falcão na divulgação do videoclipe de “Vem pra rua” na página da Fiat no Youtube
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Anexo 3
Tabela 1
Áudio (A letra na música) Visual (A imagem no vídeo)
(A1) Vem, vamo pra rua (V1) Meninos jogam bola nos corredores de um morro.
(A2) Pode vir que a festa é sua (V2) Pessoas correm diante da imagem do jogador Ronaldo.
(A3) Que o Brasil vai tá gigante (V3) Bandeira do Brasil pendurada na janela de um prédio.
(A4) Grande como nunca se viu (V4) Pessoas correm às ruas.
(A5) Vem, vamo com a gente (V5) Meninos correm nas ruas.
(A6) Vem torcer, bola pra frente (V6) Um grupo de street bikers (BMX)
(A7) Sai de casa (V7) Um mascarado aparece envolto em fumaça vermelha.
(A8) Vem pra rua (V8) Pessoas festejam na rua em meio ao trânsito parado;
uma legenda diz: “respeite os limites de velocidade”.
(A9) Pra maior arquibancada do Brasil (V9) Dentro de um carro, um homem buzina repetidas vezes.
(A10) Vem pra rua (V10) Um senhor sentado se agita em comemoração.
(A11) Porque a rua (V11) Uma banda de fanfarra toca ao ar livre.
(A12) É a maior arquibancada (V12) Pessoas pulam sob uma enorme bandeira do Brasil.
(A13) Do Brasil (V13) Uma mulher de costas se vira e sorri para a câmera.
(A14) Se essa rua fosse minha eu mandava
ladrilhar tudo em verde e amarelo só pra ver
(V14) A rua aparece ainda mais repleta de pessoas
festejando dentro e fora dos carros.
(A17) O Brasil inteiro passar (V17) A câmera lenta enfoca o decote de uma mulher negra.
(A18) Vem pra rua (V18) De cima de um prédio se vê as ruas tomadas e uma
fumaça vermelha
(A19) Porque a rua é a maior arquibancada
do Brasil
(V19) Em meio ao trânsito parado, as pessoas que tomaram
as ruas aparecem dançando.
(A20) Locução: “Vem com quem mais
entende de rua. Vem com a Fiat”.
(V20) No fundo, um fogo produz fumaça vermelha. O dizer
da locução aparece escrito sobre o símbolo “#vemprarua”.
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