dissertacao luane bento santos (1)
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PARA ALM DA ESTTICA: UMA ABORDAGEM ETNOMATEMTICA PARA ACULTURA DE TRANAR CABELOS NOS GRUPOS AFRO-BRASILEIROS
Luane Bento dos Santos
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programade Ps-graduao em Relaes Etnicorraciais comoparte dos requisitos necessrios obteno do ttulode Mestre em Relaes Etnicorraciais.
Orientadora: Snia Beatriz dos Santos, Dr.
Rio de JaneiroDezembro/2013
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I
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II
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IIIDedicatria
Dedico este trabalho a Camilly Victria, minha filha, meu presentede Oris. Aquela que chegou primeiro em meus sonhos comomais um dos avisos do mundo mtico-religioso do qual acredito ecom o qual comungo. Responsvel por fortificar minha crena emostrar a presena da fora das guas do mar, que inundam acada dia plenamente o meu ser, da terra da qual retiramos nossosalimentos e depois retornarmos para seu seio ancestral, da lamaque limpa, equilibra e representa sabedoria, do rio doce,encantado e ardiloso, do ferro que possibilita todas as tecnologiase caminhos, de Bar, o movimento que permite as comunicaese tambm e de Osal, rei da paz, Oris Fun Fun. Minha filha que o meu smbolo de ax, de ancestralidade, de resgate ereencontro do que verdadeiramente sou. A voc, por voc e pelanossa ancestralidade. Reproduo do mito entre Yemoj e Omolu.Meus respeitos, Atot!
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IVAgradecimentos
Primeiro quero agradecer a Olorum, Olodumar, por permitir minha vida at aqui.
A Esu pelas comunicaes e brincadeiras realizadas. Laroi!
A Ogun pelos caminhos percorridos, iniciados e finalizados para este trabalho. Ogunh!
A Osossi por tantas prosperidades, por no faltar alimento em minha mesa. Rei de
Ketu, Oke Aro!
Ao meu pai, Oris que acompanha minha famlia, patrono, meu amigo e protetor.
Senhor da morte, da cura e da terra, Omolu. Oris que sempre me ensina em meio a
minha ignorncia humana, a ser simples e saber ponderar. Atot paizinho, todos os
meus respeitos!
A minha me Yemoj Ogunt, mar de ondas bravas, que guerreia junto ao meu pai
Omolu pela minha famlia. Me silenciosa que demorou a se mostrar. Iya linda,
protetora, maternal, ciumenta, senhora das cabeas, minha primeira promessa a Oris.
Minha fora. Odoiya!
A Osun Kare pela acolhida, Iya doce, caadora, meiga, delicada e tambm ciumenta.
Mas, sobretudo, mame e fonte de centralidade para um Ori to quente. Ora iye iyeo!
A senhora da Sabedoria, da senhoridade, senhora de meus sonhos e de imenso afeto.
Saluba Nan! Sua presena indiscutvel.
A Oya pelo tero que me gestou, por representar signo de liberdade e independncia
feminina. Eparrei Ians! Sopre seus ventos sempre em minha vida, trazendo refresco
ao rosto abatido e suado pela batalha cotidiana.
A Sang por me ensinar hierarquia, por simbolizar tanta fora e me proteger trazendo
equilbrio. Kao Kabecile! Que a justia sempre esteja em minha trajetria.
A Osal por tanta harmonia, paz, delicadeza e centralidade em diversos momentos.
Ep bab! Oris que acalma tudo por dentro. Senhor do branco!
Ao meu Preto Velho e minha Preta Velha pela sabedoria em momentos difceis e
decisivos, a minha Pombagira pelas escolhas e recados, a minha cigana pelos sonhos
premunitivos, a meu Exu de trabalho, a meu Boiadeiro, a meu malandro Seu Z Pilintra
por me livrar de tantas enrascadas e a minha criana! Minhas fortes razes de
Umbanda que no posso negar. Herana maternal e paternal. Salve!
A minha av Maria das Neves que gerou minha me, lutou bravamente pelos seus
filhos. Senhora que sempre afirmou sua religiosidade de Umbanda. Obrigada por ter
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Vsido essa pessoa especial. Negra mulher de valentia, firmeza, aspectos que s ns,
neguinhas, sabemos que so qualidades para qualquer mulher negra.
A minha av Maria de Lourdes, responsvel pela gestao do meu pai e pela ateno a
minha sade fsica e espiritual. Sua beno!
A minha me Claudete Bento, senhora protetora, possessiva, lutadora, companheira,
bravssima, de natureza difcil, mas de imenso corao. A senhora que sempre me
estendeu a mo e me acompanhou nas guerras como sempre fazem as filhas de Oya.
A senhora que aprendeu muito bem a lutar pelos filhos e me ensinou a enfrentar o
racismo de frente, de cabea erguida. A uma me que muitos desejam ter, mas que
poucos tm a sorte de encontrar no Ay. Tenho certeza que foi escolha dos Oriss ser
abenoada com uma me pantera negra. Meus respeitos por tudo que significa e pela
fora que representa.
Ao meu pai, Sebastio Maurcio dos Santos (em memria). Senhor adorvel, valente e
extremamente carinhoso. Obrigada por me mostrar aspectos sentimentais exacerbados
do universo masculino.
A toda minha famlia, por sobreviver sobre a sentena do racismo, e aos meus primos,
vtimas da poltica eugenista do Estado Brasileiro: Jos Carlos (Juninho), Fbio,
Rogrio, Valnei e Lus Cludio (em memria).
Aos meus ancestrais por terem trilhado caminhos que possibilitaram minha chegada ao
Ay!
A minha famlia de Santo, a Iyaloris Marlise, to simples e dedicada religiosidade, a
Av Lucinha por tanta sabedoria distribuda em gesto de doura e simplicidade
extrema, a me ekede Vanessa, a Me Maria Helena, aos Pais Ogs Srgio e Arnaldo,
as irms de Santo Katia e Francine. Bena. A toda Famlia do L AS YALOD
OSN KAR AD OMI AR.
Aos amigos que acompanharam minha trajetria de ingresso no mestrado, Ana Luza
(Nalui), Patrcia Rodrigues, Mariana Gonalves Reis, Bruno Roza, Cludia Miranda,
Djenane Lessa, Joni Pinto, Mbuta, Ivanilma Gama, Luanda, Vanessa Andrade, Rita
Barbosa, Carmem Batista, Tais Xavier, Paula Rodrigues (em memria).
Aos amigos do Mestrado Neidjane, Jorge, Ktia, Renata Penajoia, Venina, Nadson,
Fernando.
As tranadeiras Fernanda e Priscila pela ateno e carinho. Ao tranador Hbano pela
solidariedade.
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VIAos professores do Ensino Fundamental e Mdio, principalmente aos professores de
Histria.
Aos professores da faculdade de Cincias Sociais e Biblioteconomia e Documentao.
Aos professores da Especializao em Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira
IFRJ
Ao professor de Etnomatemtica Rogrio Loureno.
Aos professores do Mestrado em Relaes Etnicorraciais - CEFET.
A minha orientadora Dra. Snia Beatriz dos Santos, por aceitar o desafio de produzir
em etnomatemtica e pelos puxes de orelha.
Ao Professor Dr. Roberto Borges, pelas iniciativas voltadas ao meu projeto, amizade,
carinho e respeito.
A FAPERJ pela bolsa concedida para esta pesquisa.
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VIIPARA ALM DA ESTTICA: UMA ABORDAGEM ETNOMATEMTICA DA CULTURA
DE TRANAR CABELOS NOS GRUPOS AFRO-BRASILEIROS.
Luane Bento dos Santos
Orientadora:Prof. Snia Beatriz dos Santos, Dr.
Resumo da dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Relaes Etnicorraciais do Centro Federal de Educao TecnolgicaCelso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Relaes Etnicorraciais.
A presente pesquisa tem como objetivo apresentar o estudo Para alm da esttica:uma abordagem etnomatemtica para a cultura de tranar cabelos nos grupos afro-brasileiros, que se constituiu numa pesquisa etnogrfica. Descrevemos ospressupostos tericos e metodolgicos do estudo. A metodologia foi fundamentadaprincipalmente na Etnomatemtica e na Antropologia Cultural. Os mtodos e tcnicasde pesquisa antropolgicos utilizados foram: o dirio de campo, a observaoparticipante, entrevistas, histria de vida, histria oral e levantamento bibliogrfico.Enquanto a Etnomatemtica, a investigao se utilizou de seus instrumentos pararefletir sobre o fazer cientfico no ocidente enquanto forma de manipulao ideolgica,de excluso social, de manuteno do poder poltico e de sistemas de representaessociais da classe dominante pautados em uma lgica de inferioridade intelectual (e desaberes) de determinados grupos sociais que so hierarquizados por classe,raa/etnia, gnero, e orientao sexual. A pesquisa buscou demonstrar que amatemtica praticada no meio acadmico uma cincia produzida dentro de vriasperspectivas enviesadas, produzida e reproduzida para a manuteno do status quode uma elite colonial e que tem sua origem em movimentos formalistas do Iluminismo.Foi argumentado que a matemtica no pode ser vista sobre aspectos universalistas, jque um produto humano relacionado aos desenvolvimentos cognitivos de cadacultura sendo uma prtica cultural. Discutimos e identificamos no estudo a experinciade mulheres negras tranadeiras em seus fazeres/saberes como formas deconhecimento matemticos invisveis para a sociedade brasileira. Abordamos a prticade tranar cabelos como uma memria mantida na cultura negra brasileira. Por fim, asprincipais variveis da pesquisa so gnero, raa, etnia, identidade, cultura negra,conhecimento, mulheres negras e matemtica.
Palavras-chaves: Etnomatemtica, Gnero; Raa; Cultura Negra; Produo de Conhecimento
Rio de JaneiroDezembro/2013
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VIIIABSTRACT
Luane Bento dos Santos
Advisor: Prof. Snia Beatriz dos Santos, Dr.
Abstract of dissertation submitted to Programa de Ps-Graduao em RelaesEtnicorraciais do Centro Federal de Educao Tecnolgica Celso Suckow da Fonseca,CEFET/RJ, as partial fulfillment of the requirements for the degree of Racial EthnicRelations Master.
This study entitled " Beyond aesthetics: an etnomathematics approach to the culture ofbraiding hair Afro-Brazilian groups", is an ethnographic research and aims to investigatewhether the practices and techniques of the braider Black women in their act ofthinking, architect, lay out and produce braids - constitute ethnomathematics practices.The methodology was based mainly on the Ethnomatematics and CulturalAnthropology. The methods and techniques of anthropological research were: fielddiary, participant observation, interviews, life history, oral history, and literature review.The Ethnomatematics was used to reflect on the scientific work in the West as a form ofideological manipulation, social exclusion, maintenance of political systems and socialrepresentations of the ruling class guided by a logic of intellectual inferiority (andknowledge) of certain social groups that are classified by class, race/ ethnicity, gender,and sexual orientation. The research sought to demonstrate that mathematics practicedin academia is a science produced within various perspectives skewed produced andreproduced to maintain the "status quo" of a colonial elite and has its origins in theEnlightenment formalist moviments. It was argued that mathematics can not be seen onuniversalistic aspects , since it is a human product related to the cognitive developmentof each culture is a cultural practice. We discussed and identified in the study theexperience of black women in their doings Black women braiders/ knowledge as formsof mathematical knowledge invisible to Brazilian society. We address the practice of hairbraiding as a memory held in the Brazilian black culture. Finally, the main researchvariables are gender, race, ethnicity, identity, black culture, knowledge, black womenand mathematics.
Keywords: Ethnomathematics; Gender; Race; Black Culture; Knowledge Production
Rio de JaneiroDecember/2013
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IXSumrio
Introduo 1
I A Etnomatemtica e as relaes etnicorraciais brasileiras 11
I. 1 Os conhecimentos africanos e afro-brasileiros nas produes
etnomatemticas 22
II Os Cabelos crespos dos negros e os modos de uso no mundo
contemporneo: as ressignificaes do legado africano 26
II.1 Os modos de usos do cabelo crespo: um breve percurso histrico 30
II.2 As tranas e as tranadeiras: algumas consideraes 36
III O corpo como material pedaggico, a cabea como lugar de exerccios
matemticos: anlise etnomatemtica do campo 47
III.1 - Geometria dos tranados: abordagem etnomatemtica sobre as
tranas 55
III. 1.1 Gloria Gilmer 56
III. 1.2 Ron Eglash 59
III. 1.3 Paulus Gerdes 61
III. 2 Etapa de construo dos tranados 63
III. 2.1 Modelo flor 64
III. 2.2 Modelo corao 71
III. 2.3 Modelo reta 78
III. 2.4 Modelo entrecruzada ou rede 84
III. 2.5 Modelo zig zag 87
Consideraes Finais 94
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XReferncias Bibliogrficas 102
Apndice 103
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XILista de Figuras
FIG III.1 Penteado trana abacaxi 51
FIG III.2 Exemplos de padronizaes encontradas na natureza 51
FIG III. 3 Imagens de tesselations 53
FIG III. 4 Programa de computador usado por Ron Eglash (1999) 54
FIG III.5 Trana nag modelo flor de quatro ptalas 59
FIGIII. 6 Trana nag modelo flor com caule de cinco ptalas 59
FIG III.7 Trana nag modelo flor de cinco ptalas 59
FIGIII.8 Primeira diviso para a realizao do penteado 60
FIGIII. 9 Desenho simulando a repartio para o penteado 60
FIGIII.10 Diviso capilar em oito tringulos 61
FIG III.11 Desenho simulando a diviso capilar do crculo 61
FIG III.12 Trana nag modelo flor 62
FIGIII. 13 Trana nag modelo corao e dreads looks 64
FIG III.14 Trana nag modelo corao em penteado fechado 64
FIG III.15 Trana nag modelo corao e coquinhos 64
FIG III.16 Diviso em forma de quadrado 65
FIG III.17 Quadrado dividido pela diagonal 65
FIG III.18 Construo do tranado corao 66
FIG III.19 Construo de formato tringulo 67
FIG III.20 Formato tringulo dividido 67
FIG III.21 Construo do tranado 68
FIG III.22 Realizao de trana nag modelo reta 69
FIG III 23 Trana nag pronta 69
FIG III.24 Trana nag reta metade 70
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XII
FIG III.25 Trana no centro da cabea 71
FIG III.26 Diviso da cabea em quatro partes iguais 71
FIG III.27 Repartio do cabelo com palito 71
FIG III. 28 Medio da cabea com as mos 71
FIG III.29 Realizao das tranas 72
FIG III.30 Tranado nag modelo reta 72
FIG III.31 Feixe de paralelas cortado pela reta transversal r 74
FIG III.32 Feixe de tranas paralelas 74
FIG III.33 Paralelas cortadas pelas retas transversais m e n 75
FIG III.34 Paralelas cortadas por trs retas transversais 75
FIG III.35 Trana nag modelo rede (1) 77
FIG III.36 Trana nag modelo rede (2) 77
FIG III.37 Trana nag modelo rede (3) 77
FIG III.38 Desenho exemplificando o cdigo binrio (1) 78
FIG III.39 Desenho simulando cdigo binrio (2) 79
FIG III.40 Imagem de trana nag zig zag cruzada (1) 80
FIG III.41 Imagem trana zig zag cruzada (2) 80
FIG III.42 Diviso das colunas utilizadas o tranado 82
FIG III.43 Colunas divididas em trs quadrados 82
FIG III.44 Lgica de construo do tranado 83
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1Introduo
O Caminho percorrido: a busca por outras formas de matematizar
No contexto social afro-brasileiro, tranar cabelos uma das heranas presentes e
deixadas pelos nossos ancestrais africanos na memria coletiva (negra). Encontramos nas
famlias negras a prtica de tranar cabelos como um dos primeiros recursos estticos a serem
utilizados na manipulao dos fios, principalmente quando estes se apresentam crespos e em
corpos femininos. As tranas na vida de mulheres negras juntamente aos inmeros tipos de
procedimentos/produtos qumicos comercializados na sociedade (capitalista e ocidental), fazem
parte das intervenes corporais estticas utilizadas sobre os cabelos ao longo da histria de
vida. Saber tranar no uma novidade para muitas mulheres negras. Tranar cabelos uma
prtica do ntimo, normalmente aprendida no contexto familiar ou em outros espaos de
sociabilidades negras. Fazer trancinhas soltas, rasteirinhas, embutidas e coquinhos so
modos de pentear os cabelos repetidos na histria de muitas famlias negras e mestias,
principalmente para encaminhar seus filhos escola, como observa Gomes (2002) no artigo
que trata sobre corpo negro, cultura escolar e formao de professores[1].
Alm disso, as tcnicas de tranados para cabelos crespos negros foram eleitas pelos
movimentos negros como smbolos estticos legtimos e afirmativos de construo das
identidades negras (GOMES, 2006; SANTOS, 2012). Identidades ligadas a novas perspectivas
sobre corpo e cabelo dos negros e em busca de outras construes discursivas, distantes dos
argumentos de preconceitos, esteretipos, racismo e prticas de excluso e invisibilidade
construdas sobre corpo e cultura negra. Desse modo, a prtica cultural de tranar cabelos est
presente nas discusses polticas identitrias como um dos patrimnios legados pelos
africanos (as), alm de serem/estarem presentes[2] no imaginrio social brasileiro. Tomadas
como habitus[3] que so apreendidos, realizados e reelaborados por mulheres e homens
negros no seu cotidiano. Sendo colocadas pelos movimentos negros como parte da memria
africana apresentada e traduzida nos corpos negros.
Destacamos que so vistas pela grande maioria enquanto smbolo esttico e identitrio
e no como tcnicas corporais que levam a construo de conhecimentos explcitos e
implcitos como defendemos neste estudo. Pensamos que por serem conhecimentos
experienciados dentro da cultura negra (por quem faz e por quem utiliza) passam
despercebidos e deslocados enquanto modos e processos de conhecimentos.
[1]Ver Gomes, Nilma Lino na lista de referncia.
[2] Includas.[3] Tomamos emprestado o termo habitus de Pierre Bourdieu (1989), entendendo - os como o capital cultural dos grupos dominados.
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2Compreendemos que usar tranas como aprender a falar; medida que crescemos
apreendemos a associar os signos lingusticos e com o passar do tempo [4] falamos e nos
comunicamos como se fosse algo inerente a nossa condio humana, algo natural.
Queremos dizer que fazer tranas no algo natural ao/ negro e sim um processo aprendido
na cultura, especialmente na cultura negra. So processos constitudos em trajetrias de
aprendizados com pares, assim como a construo da nossa comunicao oral, ou seja,
preciso estar em espaos que possibilitem a insero e troca do fazer das tranas para se
aprender a tranar cabelos.
Argumentamos tambm que, para uma mulher: negra, tranadeira, de famlia de
pessoas que sempre utilizaram as tranas como recurso esttico para os fios quando se
encontravam destrudos pelo excesso de qumica e ferro/pente quente ou ento pelo simples
gosto em estilizar os fios usando tranados, estranhar o familiar, em outras palavras,
estranhar o tranar foi surpreendente e ao mesmo tempo dificlimo (VELHO, 1996).
Perceber a presena das tranas em outros espaos de discusso sobre os modos
de fazer, conhecer e saber dos negros diaspricos aconteceu a partir da busca pela mulher
negra (tranadeira e militante do movimento negro) por novas formas de estilizar os cabelos
crespos. Em outras palavras, procurando se especializar em novas tcnicas[5] de tranados, me
deparei com prticas etnomatemticas imersas no cotidiano de elaborao e produo dos
tranados. Durante o processo de trocas sobre o forjar de certos tipos de penteado com outras
tranadeiras, percebi a existncia de prticas etnomatemticas na elaborao e
esquematizao dos tranados[6]. As trocas de conhecimentos tcnicos com outras tranadeiras
ocorriam no ambiente acadmico, no qual cursei minha primeira graduao em Cincias
Sociais. Estudei na Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ, campus Maracan.
Tranava cabelos dentro da Universidade, utilizava o espao acadmico como local de estudo,
trabalho e de militncia poltica negra[7]. Foi neste espao que me surpreendi com a
possibilidade de prticas etnomatemticas na elaborao de tranas.
No ano de 2008, assisti ao vdeo clipe You Don't Know My Name, da cantora negra e
estadunidense Alicia Keys. Na maioria de seus videoclipes a cantora costuma usar os cabelos
em estilo afro. Especificamente, neste vdeo, a cantora usava os cabelos tranados at a
altura do centro da cabea, no modelo de tranado zig zag cruzado. O penteado chamou
minha ateno, me levou a perguntar como se fazia aquele tipo de desenho geomtrico.
[4] Referente aos perodos de desenvolvimento cognitivo ligados as fases de desenvolvimento infantil.[5] Quando falamos em tcnicas de tranado nos referimos ao aprendizado de novos modelos como os famosos desenhos que sorealizados nas cabeas atravs do tranado nag.[6] Tranas que so comumente chamadas no universo de quem trana como enraizadas, de raiz, rasteirinhas ou nag. [7] Participei da construo de dois coletivos de estudantes negros: CENEGA - Coletivo de Estudantes Negros e Negras do Rio de Janeiro e Denegrir- Coletivo de Estudantes Negros e Negras da UERJ.
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3Passado cerca de duas semanas que havia assistido ao vdeo, perguntei a uma amiga
(tranadeira e estudante de Servio Social da UERJ) como se fazia aquele tipo de tranado. A
explicao dela me levou a associar o processo de construo do tranado matemtica
(geometria) que havia estudado na antiga sexta srie do Ensino Fundamental, atualmente o
stimo ano escolar. Fiquei to entusiasmada com a descoberta que desenhei no papel as
etapas de construo daquele tipo de tranado. Demarquei o que eu achava que era
matemtico para a elaborao do penteado. Pela primeira vez na vida me senti prxima s
reflexes matemticas, uma questo muito nova, j que sempre obtive pssimas notas na
disciplina e nela ficava de recuperao em quase todos os anos do meu perodo escolar. Os
problemas com a matemtica me desestimularam at de realizar vestibular para o curso de
fsica na universidade e tambm, por certo tempo, a esquecer do meu apreo pela teoria fsica
que tanto me instigava na adolescncia.
Sempre odiei os processos de demonstrao e justificao dos fenmenos matemticos
contidos nos livros didticos do Ensino Fundamental e Mdio[8]. Contudo, perceber a existncia
de possveis fazeres matemticos em prticas culturais negras realizadas no meu cotidiano, me
fez pensar e questionar, enquanto estudante de Cincias Sociais a presena de matemticas
nas teias das culturas. Passei a indagar amigos que faziam o curso de matemtica sobre a
relao do tipo de tranado desenhado com a matemtica. Meus questionamentos obtiveram
respostas de um doutor em Educao Matemtica, marido de uma amiga, que me explicou ao
olhar os desenhos e ouvir as consideraes que eu fazia sobre eles que, na realidade, eu
estava realizando uma abordagem etnomatemtica das prticas de tranado. Ele argumentou
que no ocidente, a histria da disciplina matemtica mostrava que ela foi estruturada de um
modo no universo acadmico, no qual exposies como a minha eram negadas enquanto
formas de aprendizado e tcnicas matemticas. E me disse ainda que eu somente encontraria
espao para esta discusso no campo da etnomatemtica, pois era o nico programa de
estudos que se aproximava daquele modo de ver e pensar a matemtica. Principalmente,
porque se tratava de uma matemtica produzida, majoritariamente por mulheres negras e em
cabelos crespos de negros, ou seja, um tipo de fazer matemtico marginalizado e de todas as
formas no visualizado, alm de ser estereotipado relegado em muitas situaes ao lugar de
extico. No momento, em que ouvia a exposio deste doutor no gostei por considerar que
nomear a matemtica praticada por negros de etno era minimizar nossas formas e processos
de conhecimentos. Devido a est primeira impresso, me recusei por dois anos a pesquisar
sobre a rea (Programa Etnomatemtica). Naquele momento, no havia compreendido a
[8] Me perguntava de onde surgiram tudo aquilo, quais eram os processos histricos daqueles problemas expressos em linguagem to distanciadas nos quadros das salas de aula.
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4dimenso e utilizao do termo etno para o Programa Etnomatemtica[9].
Todavia aps concluir a graduao em Cincias Sociais, no ano de 2010, e continuar
incomodada com as questes que havia levantado sobre as tranas no ano de 2008; passei a
pesquisar nas redes virtuais (internet) sobre o programa etnomatemtica e me deparei com
uma realidade coletiva negra abordada nos ndices de Educao IDEB, PCNS Parmetros
Curriculares Nacionais e em alguns trabalhos em etnomatemtica, no qual declaravam que os
indivduos negros so os que mais apresentam dificuldades e baixos rendimentos na disciplina
de matemtica. Fato que me fez problematizar, considerando o trabalho de Silva (2008), qual
era o descompasso existente entre os negros e a matemtica escolar, o que estava por trs
dos ndices e pesquisas que salientavam nossas dificuldades em aprender a matematizar do
modo ocidental de ser, estar e perceber o mundo. A questo era apenas o aprender
matemtica ou ter acesso a um conjunto de informaes (livros e programas de computadores)
que facilitem o aprender a demostrar e justificar matematicamente? Seria apenas efeitos das
metodologias conteudista programadas, propositalmente, para os testes de entrada no
universo acadmico (vestibular) ou no que se refere a lei 10.639/2003 de Histria e Cultura
Afro-brasileira e Africana, falta de referncias histricas e culturais nos currculos escolares
sobre a africanos e afro-brasileiros como produtores de formas de conhecimentos tecnolgicos
e matemticos ao longo da histria do Brasil e da Humanidade (CUNHA, 2010), o que
impossibilita a identificao dos alunos e alunas com as formas de tecnologia e modos de
matematizar presentes nas culturas negras e em outras culturas. Tambm poderia est
conectada a questo do capital cultural requisitado no ambiente escolar? Perguntas que me
levaram a pensar a importncia de pesquisar sobre a presena de modos de matematizar nas
culturas negras, alm de demonstr-las nas prticas sociais e histricas negras (FORDES,
2008; CUNHA JR., 2010).
No incio do ano de 2011, tive a oportunidade de comear uma Especializao em
Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira no Instituto Federal do Rio de Janeiro IFRJ, na
cidade de So Gonalo, o curso oferecia como uma das suas disciplinas: Etnomatemtica nas
culturas negras e africanas, o Professor que ministrava a disciplina de Etnomatemtica se
chamava Rogrio Loureno, na poca era doutorando em Lingustica pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ, bacharel em Cincias Sociais tambm pela UFRJ e atuava
profissionalmente como antroplogo. Suas aulas foram muito elucidativas sobre as dvidas que
tinha sobre o Programa Etnomatemtica, e me fizeram compreender a presena da
matemtica nas culturas humanas enquanto ferramenta que auxilia no desenvolvimento das
atividades cotidianas, e tambm elevaram minha autoestima em relao construo do meu
[9] Veremos o sentido dado ao termo etno pelo Programa Etnomatemtica no captulo I.
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5projeto de mestrado, pois naquele perodo me sentia muito insegura em relao ao objeto que
desejava estudar e vulnervel a todos os tipos de crticas (de amigos, pesquisadores,
tranadeiras, pessoas que estranhavam e desqualificavam minha iniciativa).
Os poucos dilogos que tive com este professor contriburam, consideravelmente para
realizao da presente pesquisa, digo poucos porque a carga horria da disciplina em relao
s outras da ps-graduao era bem menor, cerca de 30 horas, o que reduzia o nmero de
aulas dadas. Alm disso, a importncia de ter um professor negro falando sobre prticas
matemticas nas culturas humanas, sobretudo africanas, oriundo como eu das Cincias
Sociais, causava em mim forte identificao social e racial, pois no me sentia isolada
academicamente, percebia que havia outros negros (as) e antroplogos preocupados em
estudar questes ligadas as prticas de conhecimento em culturas marginalizadas.
Consideraes que pensamos serem muito importante para qualquer pesquisador no meio
acadmico, porque o estabelecimento de dilogos entre os pares [10] fundamental para o
aperfeioamento da pesquisa e aceitao do objeto pesquisado, ou seja, o dialogo entre os
pares faz parte do ritual acadmico de comunicao cientfica recorrente para o
reconhecimento na rea produzida (MUELLER, 2000).
Embora a influncia do professor tenha sido um dos pontos culminantes em estmulos
para a criao do projeto de pesquisa para o Mestrado em Relaes Etnicorraciais do Centro
Federal de Educao Tecnolgica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ), cremos que a
influncia familiar e a militncia negra[11] tambm foram critrios importantes agregados,
consciente e inconscientemente, para a realizao deste trabalho. Percebemos, aps a
organizao do trabalho, que estes lugares de sociabilidade vivenciados pela pesquisadora
foram estruturantes para a construo do tema. A escuta dos relatos sobre a construo dos
tranados e sobre os desenhos feitos com eles nestes espaos foram alguns dos indicativos
observados e pensados ao longo da trajetria percorrida pela pesquisadora. E indicaram como
so relevantes estes modos de uso do cabelo crespo para as populaes negras, alm de
terem contribudo na formulao do pensamento aqui exposto.
O espao investigado
Nosso trabalho foi uma investigao etnogrfica, realizada em um salo de beleza
voltado para populao negra, que oferece como servios estticos intervenes/[10] Neste caso, a identificao racial uma varivel importante para indivduos negros porque indivduos negros no estorepresentados como produtores/pesquisadores no meio acadmico.[11] Tratamos aqui de uma militncia negra vivenciada atravs de referenciais tericos e em grupos negros que tm proposta deencontros, estudos, atuao poltica contra as polticas discriminatrias, genocidas, racistas, sexista do Estado brasileiro.
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6manipulaes capilares vistas pelos indivduos pesquisados (tranadeiras) como mais negras,
mais africanas e menos agressivas para com os fios crespos: penteados afro de todos os
tipos, dentre eles, tranas, dreads, coques, cortes, hidrataes e tinturas.
O salo fica na cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Lapa. Acompanhamos as
atividades realizadas no salo por cerca de dois meses (Abril e Maio de 2013). O espao do
salo era pequeno, uma sala com banheiro em um prdio residencial e comercial. A maioria
dos penteados, cortes, dentre outras manipulaes capilares eram marcadas por telefone com
a dona do salo, que aqui chamaremos pelo nome fictcio de Fernanda, a fim de resguardar
sua identidade e privacidade.
O espao investigado possui como proposta de servios estticos intervenes
capilares baseadas em procedimentos que no alterem a estrutura fsica (carbnica) dos fios
crespos, ou seja, no realizam procedimentos qumicos alm da tintura. Devido a este fato,
escolhemos este local para realizarmos nossa pesquisa, por pensarmos que nele teramos
acesso a muitas produes de tranados e outros penteados afro elaborados e realizados por
mulheres negras. No entanto, questes como mltiplas funes das duas tranadeiras
investigadas Milena[12] e Fernanda nos impossibilitaram de acompanhar os tranados e a
dinmica do espao do salo que tanto espervamos. As duas tranadeiras observadas e
entrevistadas para nosso estudo acumulavam funes, na verdade, papis sociais, elas so
mes, donas de casa, tranadeiras, artess, ou seja, alm de carregarem as identidades de
mulheres e negras suas outras identidades interferiam na forma como dividiam e executavam
suas rotinas de trabalho. Conforme observamos, os papis sociais exercidos por elas se
tornavam mais importantes do que as atividades previstas para serem exercidas no salo.
Houve inmeros desencontros, atrasos, desmarcao de horrios e dias para entrarmos e
permanecermos observando as atividades do campo. Desse modo, a coleta de dados tambm
sofreu influncias, tivemos poucas visualizaes dos tipos de penteados, fato que interferiu no
andamento da pesquisa e nas possibilidades de anlises sobre os tranados.
Contudo, precisamos salientar que ao apresentarmos a proposta de pesquisa para elas
fomos surpreendidas com comportamentos que expressavam alegria, felicidade e exaltao,
em outras palavras, no dia que conversamos sobre a pesquisa com Fernanda, dona do salo
investigado, fomos bem recebidas. Apesar dos desencontros, sempre houve uma excelente
comunicao entre a pesquisadora e a dona do estabelecimento. Para ela, autorizar a
investigao etnogrfica no salo era compreendido como uma forma de militncia poltica em
relao s prticas de tranados e a cultura negra de modo geral. Para Fernanda e Priscila, as
tranadeiras, a pesquisa era vista como um assunto srio que buscava trazer visibilidade sobre
[12] Milena tambm um nome fictcio.
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7suas prticas profissionais e histria dos povos africanos diaspricos.
Durante os dois meses que acompanhamos as atividades do salo percebemos que
havia mais casos de procura para a manuteno de certos tipos de penteados (tranas soltas
com fios sintticos e dreadlooks) ou ento a desmarcao da clientela com as tranadeiras.
Por esses motivos, ficamos ansiosas e com receio de no conseguirmos concluir a
investigao com o mnimo de dados coletados: fotografias dos tipos de tranados e
entrevistas com as tranadeiras. Com o propsito de termos material para realizao da
pesquisa, buscamos, ao mesmo tempo em que fazamos a pesquisa no salo citado,
informaes sobre outras tranadeiras profissionais ou sobre outros sales que ofereciam o
servio de tranas. A partir da indicao de pessoas que frequentavam sales tnicos, que
conheciam tranadeiras, faziam e usavam tranas tivemos a informao e acesso ao contato
de um tranador, uma figura masculina que era bem conhecida no universo das cabeleireiras
tnicas, o tranador Hbano.
No primeiro momento, relutamos em entrar em contato com o tranador porque o
gnero masculino no estava de acordo com os critrios de recorte de nossa pesquisa. No
entanto, vimos que seria importante e necessrio termos acesso a olhares os mais diversos
possveis sobre as prticas de tranar cabelos, e alm disso, era preciso garantir o mnimo de
dados para a escrita do trabalho. Assim contatamos o tranador que foi muito solcito (como as
tranadeiras citadas acima) para com nossa pesquisa, logo se disps a conversar sobre sua
rotina profissional e a demonstrar os tipos de tranados que sabia fazer nos cabelos.
Diferentemente do processo de observao e entrevista que realizamos no salo com
as tranadeiras, com Hbano pudemos apenas estabelecer o contato para a marcao da
entrevista e o encontro em que a realizamos. Devido a desencontros ocasionados por motivos
de doena e tempo dedicado ao trabalho do tranador no pudemos acompanhar os modos
como ele manipulava os cabelos para tran-los. A entrevista com Hbano ocorreu num
Shopping Center do bairro de Madureira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, no ms de
abril de 2013.
Entendemos que nosso trabalho teve esta pequena ressalva em relao ao recorte
pretendido, entretanto, a insero da entrevista com o gnero masculino no alterou as
hipteses sobre a invisibilidade de conhecimento e tcnicas em torno das prticas de tranados
realizadas dentro das culturas negras. Pelo contrrio, a entrevista com Hbano reafirmou para
ns o quanto as prticas de tranar cabelos so estigmatizadas, independente do gnero
(homens ou mulheres) da pessoa que as exercem. Encontramos relatos de indignao
similares sobre a forma como tranadeiras e tranadores so tratados no universo de oferta
dos servios estticos, assim como outras questes de trabalho que sero apontadas ao longo
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8da dissertao.
Metodologia
Em relao metodologia utilizada, foi realizada uma pesquisa qualitativa (etnografia)
tendo como referencial terico as discusses da Etnomatemtica e Antropologia Cultural. No
campo da Etnomatemtica, os autores com os quais dialogamos para a definio do conceito
etnomatemtica foram: Ubiratan D'Ambrosio (1989; 2007), Paulu Gerdes (1996), Roger Miarka
(2011), Gelsa Knijnik (1996). Atravs destes autores descrevemos o surgimento da rea e suas
concepes polticas, bem como as criticas em torno dela. Em relao aos estudos
etnomatemticos voltados para a cultura negra trabalhamos com Henrique Cunha Junior (2005,
2010), Eliane Costa dos Santos (2008), Vanisio Lus Silva (2008), Gustavo Henrique Fordes
(2008), Evanilson Frana (2011), Gloria Gilmer (1999) e Ron Eglash (1999) autores que
produziram trabalhos voltados para a difuso dos conhecimentos matemticos presentes nas
culturas africanas e afro-diaspricas.
Em relao s tcnicas de etnografia e do trabalho de campo, estamos trabalhando
com Clifford Geertz (1994) e Gilberto Velho (1996). Sobre as simbologias atribudas ao corpo e
cabelo dentro da cultura trabalhamos com Jos Rodrigues (2006), Edmud Leach (1983),
Marcelo Mauss (1974) e Csar Sabino (2007) Patricia Bouzn (2010).
No que se refere a um histrico das tranas e usos dos cabelos crespos para os grupos
negros brasileiros, trabalhamos com as etnografias de Nilma Lino Gomes (2006), Marli Paixo
(2208), Tanimara Elias dos Santos (2009) e Jocilene Oliveira (2009) e o estudo de Raul Lody
(2004), Cassia Ladi Reis (2010), Mnica Lima Souza (2009) e de Bell Hooks (2005). E para a
discusso de identidade negra, os autores que utilizamos foram Sodr (1984, 1999), Hall
(2009) e Woodward (2000).
Nossos instrumentos de pesquisa consistiram na utilizao do dirio de campo,
tcnicas de observao participante, entrevistas semiestruturadas, levantamentos
bibliogrficos, e tcnicas de histria de vida e histria oral.
O uso do dirio de campo e da observao participante nos permitiram identificar e
mapear as maneiras como as tranadeiras exerciam prticas etnomatemticas ao lidarem
(GOMES, 2006) com os cabelos das clientelas. Os mtodos tambm nos levaram a perceber
as dimenses do campo em relao a seus conflitos, fronteiras, linguagens nativas, valores,
cultura corporal, condies de trabalho, gnero, raa dentre outras variveis que foram
relevantes para nossa investigao.
As entrevistas auxiliaram no entendimento do que foi observado durante o campo,
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9trouxeram mais informaes para a composio da descrio etnogrfica, alm de terem
destacado cenas, situaes, questes que passaram despercebidas durante a investigao; e
foram realizadas atravs de um roteiro que continha perguntas semiestruturais: fechadas e
abertas. As perguntas fechadas eram referentes aos dados pessoais: nome, idade, sexo,
cor/raa, local de moradia, religio, dentre outros. As perguntas abertas se remetiam a como as
tranadeiras percebiam sua profisso, os servios que ofereciam, sua clientela, identidade
negra, esttica dentre outros elementos importantes em torno de suas prticas. Na descrio
dos relatos, os nomes das tranadeiras e do tranador foram fictcios, com o objetivo de
preservar suas imagens. Fornecemos um termo de consentimento informado, onde
solicitvamos do entrevistado (a) autorizao por escrito com sua concordncia sobre a
transcrio de seus dados e das imagens dos cabelos e das pessoas fotografadas. Foram
entrevistados duas tranadeiras e um tranador para esta pesquisa.
Sobre as tcnicas de histria de vida e histria oral, estas nos possibilitaram
estabelecer um dialogo entre as informantes e a pesquisadora (analista). O trabalho com a
histria de vida consistiu, basicamente, na coleta intensiva de dados de carter biogrfico,
sobre as tranadeiras envolvidas no estudo, considerando elas mesmas como a fonte principal
de informao. O trabalho com a histria oral consistiu na realizao de entrevistas gravadas
com o objetivo de coletar relatos e fatos sobre tcnicas e prticas de tranar das tranadeiras,
bem como outros aspectos relevantes temtica tratada. As duas metodologias revelaram a
memria preservada sobre o fenmeno, ou seja, a memria que ficou como importante e
constituinte da identidade.
No que se refere entrada no campo, utilizamos como modo de aproximao a
apresentao parcial do que seria pesquisado para as tranadeiras e o comprometimento no
que tange a no violao de suas privacidades e direitos, bem como foi estabelecido prticas
cautelosas no ambiente de trabalho das mesmas, evitando qualquer tipo de constrangimento
que levasse a interrupo das atividades do salo no perodo que fizemos a observao.
Objeto, Objetivos, e Hipteses do Estudo
Nosso objeto de estudo se constituiu nas tcnicas e prticas das tranadeiras
profissionais negras de sales tnicos. Pretendemos em termos de objetivo geral investigar se
as prticas e tcnicas das tranadeiras negras no ato de pensar, arquitetar, esquematizar e
produzir tranas se constituam em prticas etnomatemticas. E ainda, enquanto objetivos
especficos, buscamos: (a) investigar as prticas e tcnicas de tranar cabelos dentro dos
sales de beleza tnicos, e (b) identificar, mapear e documentar o processo de criao das
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10tranas. Quanto s hipteses levantadas para o estudo, nosso ponto de partida foi o de
considerar que as tranadeiras exerciam tcnicas e prticas etnomatemticas na criao das
tranas nags a partir do momento em que pensavam como fariam as tranas at o momento
de sua construo fsica. Partindo de uma perspectiva comparativa, consideramos que h
tcnicas e prticas das tranadeiras que podem ser entendidas como similares s formulaes
e tcnicas da Matemtica (ocidental) por ns conhecidas.
Organizao
Finalmente, decidimos dividir o presente trabalho em trs captulos. O primeiro teve
por objetivo argumentar sobre a definio do conceito etnomatemtica, as crticas em relao
ao programa de pesquisa etnomatemtica, o surgimento do programa, as produes e
correntes importantes da rea e crticas ao projeto poltico estabelecido pela matemtica
ocidental. No captulo dois abordamos a construo social do corpo dentro da cultura, a
importncia do cabelo como smbolo esttico e identitrio, os movimentos polticos dos sculos
XX e XXI em torno do cabelo crespo negro, a atuao poltica e social das mulheres negras
que tranam cabelos com o propsito de preservao das heranas estticas africanas e das
culturas negras, e visando a construo da autoestima sobre corpo e cabelo crespo.
Abordamos tambm sobre as prticas de tranar como formas de sobrevivncia e
independncia financeiras exercidas pelas mulheres negras. Apresentamos parte dos relatos
das tranadeiras e do tranador sobre como veem suas prticas profissionais dentre outros
pontos. No captulo trs, apresentamos os resultados obtidos durante a pesquisa de campo
atravs de imagens e desenhos dos tranados com suas etapas de composio e finalizao,
parte dos relatos dos entrevistados, a comparao a teoremas matemticos, alm de abordar
autores do campo da etnomatemtica que realizam trabalhos sobre tranados relacionados a
esta.
a partir do cenrio e circunstncias expostos neste texto introdutrio que iniciamos e
conduzimos o leitor nos processos que envolvem a prtica de tranar cabelos e sua relao
com a etnomatemtica.
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11Captulo 1
A Etnomatemtica e as relaes etnicorraciais brasileiras
O objetivo deste captulo definir e apresentar o conceito de Etnomatemtica a partir de
seus principais interlocutores, mostrando as principais correntes que a rea possu, suas
propostas de interveno e as crticas de outras reas de pesquisa ao programa. Tratamos de
sua relevncia no mbito acadmico para as produes tericas de ativistas e intelectuais de
movimentos sociais que produzem conhecimentos vinculados as suas causas polticas. Alm
disso, demonstramos como ela tem sido um programa de pesquisa implantado em diversos
pases (desenvolvidos e em desenvolvimento), principalmente nos pases africanos, onde h
expoentes da rea.
Fazemos um breve histrico de conceitos que antecederam o termo etnomatemtica
com a descrio de suas propostas e significados. Abordamos a importncia dos estudos
etnomatemticos para pesquisas que tenham como enfoque os conhecimentos matemticos
presentes nas culturas negras. Discutimos tambm como a Etnomatemtica contribui para a
implementao da lei 10.639/2003 de incluso de Histria e Cultura Africana e Afro-brasileira,
tendo em vista que rea de estudo visibiliza o desenvolvimento de prticas pedaggicas em
consonncia com a Educao das Relaes Etnicorraciais.
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12A Etnomatemtica tem sido um campo de ensino e investigao, relativamente novo no
meio acadmico. uma rea de conhecimento cientfico que tem como finalidade contestar as
prticas matemticas acadmicas e escolares como no sendo as nicas formas de sistemas
de contagem, classificao, organizao, medio e inferncia. Para o criador do termo, o
matemtico Ubiratan D'Ambrosio, a etnomatemtica seria um programa de pesquisa que visa
explicar os processos de gerao, organizao e transmisso de conhecimento em diversos
sistemas culturais e as foras interativas que agem ns e entre os processos (1989, p.5).
A palavra Etnomatemtica como concepo poltica e terica foi utilizada
institucionalmente, pela primeira vez, pelo D' Ambrosio na sesso plenria de abertura do 4
Congresso Internacional de Educao Matemtica, em 1984 (Adelaide, Austrlia), onde o autor
abordou suas reflexes sobre As bases scio-culturais da educao matemtica. Para ele a
Etnomatemtica pode ser explicada da seguinte forma:Etno, hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, eportanto, inclui consideraes como linguagem, jargo, cdigo decomportamentos, mitos e smbolos; matema uma raiz difcil, que vai nadireo de explicar, de conhecer, de entender, e tica vem sem de dvida detechne, que a mesma raiz de arte e tcnica de explicar e, de conhecer, deentender nos diversos contextos culturais (1989, p.5).
Knijnik (1996) aborda que a definio (conceituao) do termo realizada por D'
Ambrosio foi um importante passo para a consolidao da rea de pesquisa. Observa que
outros pesquisadores realizavam pesquisas e prticas de ensino com perspectivas
etnomatemtica, mas se utilizando de outras terminologias para nome-las: Sociomatemtica
de Zaslaksy (1973), Matemtica no estandartizada de Gerdes (1985) e Harris (1987),
Matemtica congelada de Gerdes (1985, 1991a) e Matemtica popular/ do povo de Mellin-Olsen
(1987).
Em outro momento argumenta que exatamente por se constituir em uma nova vertente
de pensamento no campo da Educao Matemtica, a expresso Etnomatemtica tem sido
usada de uma forma bastante ampla pelas/os pesquisadoras/es diretamente envolvidas/os
com a temtica (p.72).
de interesse de a etnomatemtica estudar as prticas de elaborao matemtica dos
grupos humanos, entendendo as como prticas heterogneas de fazer matemtico,
conectadas as caractersticas culturais e as necessidades tecnolgicas de cada grupo humano.
Podemos associar a argumentao com o exemplo dado por Machado (2011) sobre o
surgimento das funes logartmicas;
Os logaritmos apareceram na Europa no incio do sculo XVII. Desde asegunda metade do sculo XVI, as grandes navegaes martimas, com suasnecessidades de orientao nos oceanos, bem como o florescente comrcio a
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13elas associado, onde era usual a utilizao de juros compostos, geraram anecessidade de tcnicas simplificadoras para os volumosos clculosenvolvidos nessas atividades. Como se sabe, o logaritmo de um nmero apenas o nome dado ao expoente de sua representao como potncias deuma mesma base previamente escolhida. Assim, se para multiplicar potnciasde uma mesma base basta somar os respectivos expoentes, ento paramultiplicar dois nmeros bastar somar os logaritmos correspondentes, o quesignifica que multiplicaes so transformadas em subtraes, potenciaesem multiplicaes, radiciaes em divises e etc. (p.78)
Percebemos que o surgimento das formas e prticas matemticas esto imbricados
com as necessidades culturais e histricas dos grupos humanos. As funes logartmicas
tiveram importante papel no processo de expansionismo europeu que tinha como algumas de
suas caractersticas o acmulo do capital e o clculo de lucro e juros. Hoje as funes
logartmicas so utilizadas em vrias reas de conhecimento[13].
Cabe ressaltar que a Etnomatemtica desvela a disciplina Matemtica em sua pureza
e dureza[14] ocidental, mostra que o conhecimento matemtico ocidental extremamente
hbrido. D' Ambrosio (2007) expe que;A disciplina denominada matemtica uma etnomatemtica que se originou ese desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuies dascivilizaes indianas e islmica, e que chegou forma atual nos sculos XVI eXVII, sendo, a partir de ento, levada e imposta a todo mundo. Hoje, essamatemtica adquire um carter de universalidade, sobretudo devido aopredomnio da cincia e da tecnologia modernas que foram desenvolvidas apartir do sculo XVII na Europa, e servem de respaldo para as teoriaseconmicas vigentes. A universalizao da matemtica foi um primeiro passoem direo globalizao que estamos testemunhando em todas as atividadese reas de conhecimento (p.73)
Nesse sentido, vemos que a etnomatemtica critica a matemtica ocidental em sua
perspectiva histrica e epistmica. Ela reflete uma posio poltica dentro das pesquisas
cientficas. Posio que objetiva expor o saber do outro (que est a margem do discurso
matemtico oficial) como conhecimento. Tal conhecimento no exatamente cientfico[15], mas
um conhecimento que precede de elaboraes, reflexes, observaes sobre a realidade.
Para os etnomatemticos, a matemtica no neutra e nem independente da realidade
conforme postula a histria da cincia tradicional.O foco de nosso estudo o homem, como indivduo integrado, imerso, numa
[13] A julgar pelas aplicaes, atualmente os logaritmos so muito mais justificveis do que no sculo XVII. De fato, parafundamentar tal afirmao bastaria unicamente lembrar seu emprego no tratamento matemtico de fenmenos to variados comoos que envolvem o crescimento de populaes, a propagao de doenas, a cintica qumica, a desintegrao radioativa etc. Emcada um destes domnios, os modelos matemticos mais simples envolvem uma grandeza que cresce ou decresce em umarapidez que proporcional ao prprio valor da grandeza em cada instante. Trata-se, em outras palavras, de um crescimento oudecrescimento exponencial, onde sempre comparece a funo exponencial e sua necessria contrapartida, os logaritmos(MACHADO, 2011, p.79).[14] Dureza aqui se refere a discusso de oposio entre cincias duras e mole. O termo cincias dura, dureza direcionada ascincias exatas e o termo cincias mole direcionado para as cincias humanas (HERCULANO, 2007).[15] O conhecimento cientfico segue regras metodolgicas aprendidas em instituies e precede de avaliaes e provas para que se estabelea como conhecimento cientfico.
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14realidade natural e social, o que significa em permanente interao com seuambiente, natural e sociocultural e nessa interao fazendo matemticas eoutras formas de cincia ou conhecimento (D'AMBROSIO, 2007, p.53).
Segundo os etnomatemticos, a realidade do indivduo ou grupo um fator crucial para
o desenvolvimento matemtico. Pois a partir da realidade vivenciada que nascem as
matemticas. A matemtica nada mais , ento, que um produto da cultura humana; e por esta
razo, um produto cultural que no pode ser visto portando uma nica forma de elaborao e
manifestao de objeto, pois ele diverso (D'AMBROSIO, 1989; 2007). Neste sentido,
consideramos a Etnomatemtica como uma teoria do conhecimento, que visa demonstrar
atravs de investigao emprica a matemtica dos grupos subalternizados. Ela questiona a
essncia do racionalismo cientfico, base de tudo aquilo que constitui o pensamento moderno
(KNIJNIK, 1996, p.8).
A Etnomatemtica tem sido exaustivamente discutida no campo da Educao
Matemtica e percebida por muitos tericos como uma nova abordagem de ensino de
matemtica. Por um lado, vista como uma forte crtica ao formalismo matemtico e suas
concepes universalistas, e por outro lado, como uma forma mais ampla de olhar o fazer
matemtico. Segundo Miarka (2011) a Etnomatemtica uma rea que tem crescido em
termos de comunidade de pesquisa, no possuindo um nico discurso acerca das concepes
que a sustentam (p. 22). Sendo perceptveis os aumentos de trabalhos acadmicos e
programas[16] que tm como paradigma ou teoria a Etnomatemtica.
Poderamos dizer que alm da pesquisa sobre o conhecimento matemtico e seus
modos de fazer/saber em outras culturas, uma das outras preocupaes da etnomatemtica
seria o enfoque histrico, metodolgico e epistmico sobre a histria das cincias e da
matemtica no ocidente[17]. Eglash (1997) destaca que a Etnomatemtica levanta questes
fundamentais para os estudos sociais e filosficos sobre aquilo que compreendemos como
cincia matemtica. De modo mais diretivo, D'Ambrosio (1989) argumenta que no ocidente, a
matemtica foi transplantada para o meio acadmico e submetida ao controle daqueles
diplomados em matemtica. Segundo o autor, no ocidente, quem sabe e prtica matemtica
so os profissionais que possuem certificados de bacharel da disciplina ou que tm em sua
grade curricular os famosos clculos cientficos. Para D'Ambrosio (1989, 2007), isto uma
distoro sobre o que realmente significa a prtica de matematizar. Ao deslocar o exerccio da
[16] No levantamento bibliogrfico foi realizado pesquisa em bibliotecas virtuais das Universidades: USP, UFF, UFRJ, UERJ,UFSCAR, UFBA, UFRO, UFG, UNICAMP e no site google acadmico, onde verificou-se atravs do relacionamento das variveisetnomatemtica e cultura negra, etnomatemtica e gnero, etnomatemtica e mulheres uma grande incidncia de artigos,monografia, dissertaes e teses sobre a temtica em relao ao que era esperado pela pesquisadora. Na tese de Miarka (2011)h tambm o rastreamento dos grupos das universidades que tem grupos de pesquisa em Etnomatemtica: PUC-SP, UNESP- RioClaro, USP, UFRG, UFF, UNEMAT, UNICAMP, UFC, UFRN, UFRRJ. Importante salientar que a FAPERJ tem financiado pesquisassobre o ensino de matemtica e dentre elas pesquisas com olhares etnomatemticos.[17] A Etnomatemtica um programa de pesquisa em histria e filosofia da matemtica. (D'AMBROSIO, 2007, p.27).
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15matemtica para a academia, esta passa a ser vista a partir de olhares enviesados.
A ideia de existncia de prticas matemticas no cotidiano dos indivduos passa a ser
comprovada em expresses abstratas, forjadas em smbolos lingusticos que as levam paralocais distantes da realidade vivenciada por eles. O que ocorre de maneira distinta a linguagemmaterna em que todos conseguem se comunicar e se expressar de algum modo (escrito ou
falado). A matemtica no uma linguagem na qual todos consigam se comunicar, devido a
sua forma de representao social, seu discurso cnones e suas formas de ser escrita [18]. Isto
evidencia um problema. Questo interessante, se pesarmos que falar e se comunicar algo
inerente dentro da cultura, aprendemos desde cedo que tais atividades humanas so
essenciais para nossa sobrevivncia. Mas quando se trata de linguagem matemtica, temos a
sensao (dentro do senso comum) que a comunicao s existe se estiver descrita por
smbolos consagrados como matemticos. Entendemos como Machado (2011), que no
ocidente existe um discurso rgido sobre a matemtica, que se expressa numa linguagem
oficial e padronizada. Na verdade, apenas sentenas que podem ser classificadas precisamente emverdadeiras ou falsas so admitidas pela porta da lgica formal no discursomatemtico. Esse procedimento seletivo garante a monossemia de taldiscurso, eliminado as ambiguidades, mas tambm exclui de seu raio de aosentenas exclamativas, imperativas ou interrogativas, bem como certa riquezana diversidade de planos de interpretao, frequentemente presentes nalinguagem usual. Grosso modo, pode-se dizer que a suposta exatido dalinguagem matemtica resultante primacialmente dessa opo inicial e nopode em consequncia, ser contraposta pretensa impreciso da LnguaMaterna. Em qualquer assunto, se nos restringirmos a admitir apenas frasesque podem ser classificadas de modo transparente como verdadeiras ou falsase a operar sobre elas segundo as leis da lgica formal clssica, teremos umaexatido idntica que atribuda por essa via Matemtica. Eliminando-se dodiscurso tudo aquilo sobre o que no se tem certeza, partindo somente deafirmaes categricas sobre idias claras e distintas, como pretendeuDescartes, somos apenas afirmaes exatas no sentido de serem ouverdadeiras ou falsas. Isto , a um tempo bvio e irrelevante (p.34).
A lngua uma questo central, pois nela est inscrito os sentidos das aes humanas
dentro da cultura. na linguagem expressada nos modos de se comunicar pela fala e nos usos[19] dado ao corpo que os grupos humanos apresentam suas culturas. A linguagem uma
questo importante para os estudos etnomatemticos. Sobre a linguagem repousam os modos
de se pensar e comunicar sobre determinadas situaes, temos como exemplo os atos de[18] Dizemos isso, no sentido de comunicao simblica de escrita matemtica aceita pela academia. Entendemos que amatemtica est incutida em vrios momentos do cotidiano dos indivduos e que aproximaes com a matemtica formal ocorreem diversos contextos sociais, principalmente no uso de numeraes, contagem, inferncias e medies. Mas a discusso aqui setrata do modelo matemtico irrefutvel acadmico que no permite outras interpretaes para um mesmo fenmeno matemtico,somente aquelas que podem ser provadas por modelos e expresses matemticas. Destituindo outros panos de fundo em que possvel se enxergar funes, expresses matemticas como no estudo de Santos (2008) sobre os tecidos kentes de Gana e nosestudos etnomatemtico que falam sobre o jogo de bicho.[19] preciso esclarecer que os usos dado ao corpo so formas de linguagem cultural. O corpo um objeto de comunicao dentroda cultura. Trataremos melhor desse assunto no captulo II.
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16quantificar objetos, pessoas, alimentos etc. Ferreira (apud Miarka 2011) cita trabalhos de
etnomatemtica que descrevem os sistemas de numeraes de alguns povos indgenas
brasileiros, onde no se opera com o nmero um (1)[20] na quantificao, sempre se pensa a
partir do dual (dois), eu s existo a parti do outro, no existe eu e mais dois, sempre o par e asoma dos pares. Isso est presente na lngua materna do grupo e nas divises que sero feita
sobre alimentos, pertences, posies espirituais, dentre outros.
Ferreira (apud Miarka, 2011) faz uma importante crtica a ao de traduo sobre as
prticas matemticas[21]. Para o estudioso quase impossvel traduzir para a nossa lgica,
outra (lgica) contrria de se pensar. Diz que um difcil exerccio metodolgico e
antropolgico descrever s perspectivas lgicas de outros grupos. Principalmente, se levarmos
em considerao que em nossa lgica impera o acmulo de capital para obteno de bens e
satisfao pessoal[22] atravs de atos de consumo[23]. Nesse contexto, entendemos que noocidente a representao numrica um (1), o nmero um, abstrata e indefinida, porque nos
permite quantificar qualquer ser, objeto, fenmeno, coisa, independente de suas distines
fsicas, pessoais, espirituais e dentre outros elementos. A inteno que o nmero expresse
uma representao de pseudo-exatido sobre quaisquer objetos, mesmo que isso seja um
tanto inexato e discutvel para os matemticos[24].
Vemos nos estudos etnomatemticos sobre as populaes indgenas brasileiras como a
nossa pratica de matematizar se torna arbitrria para estas culturas, pois um papagaio no
quantificvel dependendo da cultura o papagaio /ser o papagaio. Portando o nmero um, ou
palavra que expresse a noo de nmero um, se que exista, no usvel para um contexto
em que se fale do/sobre papagaio. O papagaio ele mesmo, concreto/no concreto,
absoluto/no absoluto; oque h de representao, em alguns casos, a palavra que nomear
[20] Entendemos nmero um (1) como representao simblica arbitrria da matemtica ocidental. Veja Machado (2011). [21] Segundo Miarka (2012), Ferreira assume a possibilidade existente de diferentes matemticas, indicando que cada uma tem suaprpria lgica culturalmente enraizada.[22] Intima e cidad.[23] A questo do consumo pode ser olhada por vrios vises, no entanto nesse trecho pretendemos enfatizar a importncia socialque nossa sociedade dar a ideia de consumo. Consumi bens como forma de expressar identidade, isto colocado como algoimprescindvel para o bem-estar do individuo. Alm disso consumir ganha pesos de cidadania. A Antropologia do Consumo umarea de estudo que pesquisa os sentidos identitrios dado ao prazer em consumir, que para a nossa sociedade faz muito sentido.[24] Na verdade, em cada ocorrncia, o nmero no assume o lugar de grandeza, numa relao de identidade, mas apenas arepresenta, numa relao de equivalncia. Isto significa que certas propriedades interessantes da grandeza em questo resultamcaracterizadas pelo nmero que lhe associado, mas no todas as propriedades seguramente. (Machado, 2011, p.43). Isso nosfaz lembrar sobre quando ensinamos/disciplinamos nossas crianas com menos de cinco anos a contar utilizando asrepresentaes numricas em questo.
Percebemos que em muitos casos, as crianas olham para o objetivo e no veem o acmulo dele e sim suasparticularidades, por exemplo pedimos para contar trs coelhos de pelcia ou um sapinho de pelcia, um urso de pelcia e umavaca de pelcia. Dependendo da idade a criana ver a diferena existente em cada um dos trs objetos, independente que todosos trs sejam coelhos ou bichos distintos, a lgica de equivalncia esbarra em muitos casos na percepo que a criana tem deconsiderar cada brinquedo diferente do outro. No entanto, no processo de coero social, que a educao, fazemos as crianasnumerarem, arbitrariamente qualquer objeto pelas representaes numricas. Sendo assim, fica claro que aqueles que levammuito tempo para aprender nomear atravs dessas representaes culturais so vistos como menos apto e com dificuldadescognitivas. Porm sabemos que a atividade de aprender a contar so absolvida no cotidiano de forma bem natural. Contudo,temos que destacar como ela um processo cultural distinto para vrias sociedades, sendo marcada pelas lgicas de cada uma.
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17aquela ave. Entretanto, depender do contexto de cada cultura, podendo haver distines caso
ele possua a pena amarela, azul, verde, esteja em determinada rvore, seja sagrado dentre
outras situaes e peculiaridades. Neste sentido, depender da sua relao com outros
objetos. Sendo uma riqueza de interpretaes a partir das lgicas operantes ou como analisaGeertz (1989), de perceber/descrever e atribuir sentido ao contexto da piscadela do nativo.
Prosseguindo sobre a crtica de Ferreira, que nos faz pensar em torno dos processos de
comparaes[25] presentes na Etnomatemtica em relao a matemtica do grupo estudado e a
matemtica acadmica e escolar (convencional), situamos os argumentos de Knijnik (1996,
p.77) que cita a pesquisa de Millroy (1992) como uma importante reflexo do problema:A pesquisadora dos Estados Unidos Wendy Millroy fala de um paradoxo daEtnomatemtica. Apoiada em uma pesquisa emprica realizada na frica doSul, com carpinteiros, Millroy identifica dois objetivos que direcionam osestudos etnomatemticos: o primeiro consiste em explorar a matemtica criadapor diferentes culturas e comunidades; o segundo, em descrever estaMatemtica. A educadora, aps argumentar que a Etnomatemtica trata doestudo dos diferentes tipos de Matemtica que emergem de distintos gruposculturais e que impossvel para algum reconhecer e descrever qualquerobjeto sem que se use seus prprios referenciais, aponta para oque consideraum paradoxo, perguntando: Como pode algum que foi escolarizado dentro damatemtica ocidental convencional 'ver' qualquer outra forma de Matemticaque no se parea Matemtica convencional, que lhe familiar? (Millroy,1992, p.11). Millroy efetivamente aponta para a uma questo importante e atcerto ponto central para a Etnomatemtica. As prticas matemticas dosdiferentes grupos culturais so decodificadas e, o que mais grave, muitasvezes, explicadas unicamente atravs da Matemtica acadmica. atravsdesta narrativa que as outras Matemticas tm sido ditas pelo menos nosredutos acadmicos e escolares. Portanto, o papel que est desempenha noprojeto de modernidade enquanto grande narrativa racional, unificadora,universalizante segue, sob certo aspecto, sendo reforado na perspectiva daEtnomatemtica.
Verificamos que a prtica de comparao, traduo ou decodificao da matemtica do
grupo estudado uma das correntes presente na rea. No entanto, existem etnomatemticos
que tentam descrever as prticas matemticas dos grupos estudados sem compar-las a
matemtica tradicional, apenas descrevendo-as sem lev-las para o nosso modo ou lgica de
pensar, Ferreira um exemplo. Vale ressaltar o que Knijnik (1996) observa:Parece-me discutvel, no entanto, se a Etnomatemtica tem no horizonte desuas (pre)ocupaes ser uma contestao e uma alternativa dentro daEducao Matemtica modernidade, como seus crticos pretendemapontar. Talvez, seus propsitos sejam mais modestos. Ou se orientem emoutras direes. (p.78)
Outro ponto importante a ser destacado sobre essa disciplina que se relaciona com as
investigaes etnogrficas na medida em que depende delas como ferramenta para a
[25] Principalmente no que se refere ao pensamento lgico.
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18realizao da pesquisa. A Etnomatemtica se aproxima muito da etnografia quando tambm
apresenta a propriedade de estranhar o familiar (VELHO, 1996), no caso em questo, o saber
ocidental matemtico, se valendo, deste modo, em muitos casos da observao particular a
matemtica dos engenheiros, das costureiras ou de outros grupos sociais.
A etnografia uma das chaves para o desenvolvimento de qualquer trabalho
etnomatemtico. atravs de suas ferramentas que o pesquisador relata outros
modos/vises de conhecer e perceber o mundo natural. Principalmente, fazendo desse tipode descrio uma apresentao que busque distanciamento das abordagens etnocntricas,evolucionistas ou simplistas sobre as culturas estudadas.
O foco da pesquisa etnomatemtica o conhecimento chamado por ns de
matemtica, em qualquer grupo humano, seja um grupo de costureira de uma fbrica ou um
grupo de quilombolas do estado do Esprito Santo. preciso distinguir, que os pesquisadores
de etnomatemticas, geralmente, em seus trabalhos descrevem vrias situaes pertinentes
do grupo estudado. Assim, no se desloca o modo de viver e somente observa-se como eles
fazem e praticam matemtica. A matemtica para o programa etnomatemtica vinculada ao
cotidiano, est impregnada na cultura, de tal forma que preciso entender a dinmica da
cultura para saber identificar a partir de nossas lentes o que seja a matemtica. Neste
sentido, imprescindvel que o pesquisador tenha uma boa leitura sobre etnografia e pesquisa
antropolgica.
Gerdes (1996, p.1) pensa a Etnomatemtica como uma antropologia cultural da
matemtica e da educao matemtica. Porm, a nosso ver a Etnomatemtica no deve ser
enxergada como uma Antropologia. Porque diferente da Antropologia, ela tem um compromisso
poltico com o grupo subalterno estudado, questo que ns antroplogos sabemos que no
uma regra ou cdigo de tica da disciplina antropolgica. Os interesses das Antropologias so
bem diversos e seus intuitos polticos no seguem uma cartilha de recomendaes como as do
primeiro livro lanado por D'Ambrosio Etnomatemtica (1989).
A Etnomatemtica surge como uma resposta, como outro lugar para pensar e criar
discursos anticoloniais sobre o saber e fazer do outro, a Antropologia no nasce para
defender uma ideia de oposio ao sistema dominante como o programa etnomatemtica,
no tem como ponto central oque D'Ambrosio(1989) chama de resgate da dignidade cultural do
grupo estudado com intuito de fortalecimento da identidade e histria do grupo. A Antropologia
no uma disciplina presa a um nico projeto poltico, h antroplogos com escritas,
excessivamente etnocntrica, incapazes de olhar para dentro de suas prprias culturas quando
falam/descrevem o outro, h antroplogos preocupados com questes polticas de natureza
identitrias tnicas, coloniais, h antroplogos preocupados com mobilizaes urbanas,
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19prticas de consumo, em suma a atual Antropologia se caracteriza como uma disciplina de
interesses extensos e mltiplos. Na verdade, termos Antropologias e uma Antropologia da
Matemtica ou Matemtica no uma cadeira estabelecida nas universidades brasileiras.
Temos sim, trabalhos dentro de Instituies de Antropologia que abordam preocupaes
etnomatemticas. Mesmo que se crie uma rea de interesse, linha de pesquisa em
matemticas acadmicas e no acadmicas, isso no vai nos dizer que teremos uma disciplina
comprometida com a construo de outra imagem sobre o saber do outro. Acreditamos que
teremos produes diversas, com vrios olhares sobre o objeto.
Destacamos tambm que a Etnomatemtica ao tentar resgatar/criar dignidade cultural,basicamente para grupos oprimidos peca em vrias questes antropolgicas. Percebemos
isso, nas pesquisas de Gerdes ao tentar captar as prticas matemticas africanas que para
ele sempre estiveram l, segundo sua argumentao so formas congeladas de matematizar,
ora sabemos que a cultura fluda, nada fica congelado no tempo, tudo passa portransformaes. inegvel a existncia de prticas matemticas em qualquer cultura, mas
uma matemtica que sempre esteve l e est congelada no tempo aistrica. No possvel
dizer que uma prtica social seja imutvel e que no passou por processos de hibridizaes.
Podemos sempre contar com a criatividade humana e a capacidade de adaptaes sobre
tcnicas e teorias, alm disso pensarmos nas transformaes que a prpria natureza impe
nos comportamentos sociais na elaborao/ realizao de tecnologias para o estabelecimento
das sociedades. Neste sentido, as invenes humanas como arco e flecha, sistemas de
esgoto, barcos so exemplos de tecnologias que favorecem a vida das pessoas, mas que
podem sofrer ou no alteraes ao longo da histria.
Pensamos que as discusses antropolgicas podem ser mais aprofundadas pelos
pesquisadores de etnomatemtica, como coloca Miarka (2011) e que preciso um
aprofundamento maior sobre o conceito de cultura.A dimenso tica da Etnomatemtica tambm se mostra importante empesquisa nesta rea. Perguntas como com que direito expomos outra cultura?surgem. Uma primeira resposta a estas questes poderia ser que aEtnomatemtica desenvolve uma habilidade de resistncia dominao deculturas. Mas essas culturas so atualmente disjuntas? Esse isolamento no utpico? Qual a diferena entre trabalhos que partem de regies de conflitoentre culturas e aqueles que tomam a segunda cultura como isolada? Esseisolamento no mataria a cultura no sentido certeauniano, fechando-a em umaredoma? H como uma cultura se manter fechada a influncias de outrasculturas? (Miarka, 2010, p.3)
Alm das caractersticas apontadas, anteriormente, nos cabe falar sobre a relao da
Etnomatemtica com a prtica escolar. importante reconhecer na etnomatemtica um
programa de pesquisa que caminha juntamente com uma prtica escolar (D'Ambrosio 1989,
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20p.5). Dentro do projeto poltico etnomatemtico a educao escolar precisa ser inovada, pois os
modelos da disciplina matemtica esto desatualizados. Essa inovao para o terico
possibilitar a integrao dos mais pobres na sociedade atravs da manipulao de um
conhecimento que segundo D'Ambrosio define posies sociais. Para ele uma questo de
poder e ideologias.Na sociedade moderna, inteligncia e racionalidade privilegiam a matemtica.Chega-se mesmo a dizer que esse construto do pensamento mediterrneo,levado sua forma mais pura, a essncia do ser racional. E assim se justificaque aqueles que conhecem matemtica tenham tratado, e continuam tratando,indivduos menos racionais e a prpria natureza como celeiro inesgotvelpara a satisfao de seus desejos. A matemtica tem sido um instrumentoselecionados de elites. Naturalmente h um importante componente polticonessas reflexes. Muitos dizem que falar em classes dominantes esubordinadas jargo ultrapassado de esquerda, mas ningum pode negarque essa distino de classes continua a existir, tanto nos pases centraisquanto perifricos.Cabe, portanto, nos referimos a uma matemtica dominante, que uminstrumento desenvolvido nos pases centrais e muitas vezes utilizado comoinstrumento de dominao. Essa matemtica e os que dominam seapresentam com postura de superioridade, com o poder de deslocar e mesmoeliminar matemtica do dia-a-dia. O mesmo se d com outras formasculturais. (D'AMBROSIO, 2007, p.25)
Neste sentido, as pesquisas etnomatemticas so voltadas, em grande parte, para o
ambiente escolar. Assim a matemtica indgena, quilombola, proletria ser utilizada para o
reconhecimento identitrio dos indivduos na disciplina matemtica. As descobertas sobre as
tcnicas e manipulaes sobre conhecimento desses grupos retornam para o ambiente escolar
como outra forma de abordagem do contedo matemtico.A proposta pedaggica da etnomatemtica fazer da matemtica algo vivo,lidando com situaes reais no tempo [agora] e no espao [aqui]. E, atravs dacrtica, questionar o [aqui]. Ao fazer isso, mergulhamos nas razes culturais epraticamos dinmica cultural. Estamos, efetivamente, reconhecendo naeducao a importncia das vrias culturas e tradies na formao de umanova civilizao, transcultural e transdisciplinar (D'AMBROSIO, 2007, p.46).
Assim, fica explcito que o interesse da Etnomatemtica trazer/ apresentar/ demostrar/
utilizar o conhecimento matemtico do grupo excludo em favor de seu desenvolvimento
educacional. Para que disciplinas como matemtica no sejam empecilhos para o
prosseguimento no ambiente escolar e no meio acadmico. Principalmente no seja o fator
determinante das escolhas profissionais, se constituindo como disciplina inibidora de
engenheiros, fsicos, arquitetos, contadores, qumicos, estatsticos pertencentes a grupos
minoritrios.
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21I. 1 -Os conhecimentos africanos e afro-brasileiros nas produes etnomatemticas
No Brasil, no que se refere produo de trabalhos em etnomatemtica com nfase na
cultura negra e nas relaes etnicorraciais a rea apresenta poucos trabalhos como aponta a
pesquisa de Santos (2008):Desde o Congresso Nacional de Etnomatemtica, ocorrido, na UFRN em2004, que o Prof. Dr. Artur. B. Powell, da Universidade de Rutgers, NewJersey/EUA, aponta a lacuna em pesquisas sobre a Etnomatemtica com basenas culturas dos negros no Brasil [] O professor observou nesse congressoque, em um pas de maioria negra, alm do trabalho apresentado na mesa deabertura sobre um projeto que desenvolvia com latinos negros americanos(realizado com minorias na Universidade de Rutgers), s havia mais umtrabalho que formentava uma discusso com base na cultura dos negros:Construes histricas e africanas e construtivismo etnomatemtico em sala deaula de escola pblica de maioria Afrodescendente, do professor HenriqueCunha Jr.(p. 74, grifos nossos).
Os trabalhos voltados para a discusso das questes matemticas nas culturas negras
so poucos quando comparados aos trabalhos para discutir os saberes dos denominados
nativos brasileiros (indgenas) e os saberes matemticos utilizados no cotidiano pela
populao. A rea apresenta um dficit em relao pesquisa sobre as culturas afro-brasileira
e africana. Fato interessante, considerando que o nascimento da Etnomatemtica, enquanto
programa de pesquisa nasce para contestar as limitaes da academia em privilegiar, apenas a
matemtica realizada dentro das universidades e outras instituies de pesquisa. Encontramos
muitos trabalhos em publicaes estrangeiras[26], a produo brasileira ainda bem incipiente
quando se trata das culturas negras e a relao com a produo matemtica e tecnolgica.
A implementao da lei 10.639/2003 de Ensino de Histria e Cultura Africana e Afro-
brasileira na Leis de Diretrizes e Bases da Educao 9.394 no alterou muito o cenrio. At
porque a lei sugere insero da temtica nas disciplinas de Arte, Literatura e Histria, ficando
ao interesse/disposio da instituio (professores, diretores e pedagogos) a abordagem sobre
a temtica. Mesmo assim, temos educadores interessados[27] em aplicar contedos que tratem
sobre as produes cognitivas afro-brasileiras e africanas no currculo escolar, todavia nos
deparamos com uma escassez de materiais didticos que retratem as contribuies
tecnolgicas e cientficas dos grupos africanos, no que se refere aos contedos matemticos,
qumicos, biolgicos, fsicos, arquitetnicos e tecnolgicos. Considerando que a abordagem
[26] A Etnomatemtica enquanto um programa de pesquisa e ensino tem se transformado em um movimento mundial desde pasesconsiderados subdesenvolvidos aos desenvolvidos podemos encontrar grupos de pesquisa, educadores que trabalham com aperspectiva etnomatemtica. A rea vem se apresentando como um movimento de crescimento continuo, abarcando vriospesquisadores de outras reas de saber.[27] Essa perspectiva foi retirada dos trabalhos de Forde (2008) em suas oficinas com professores de matemtica da
Serra, Espirito Santo e Santos (2008) tambm em oficinas com professores de matemtica da cidade de Salvador, Bahia.
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22desses contedos tambm se constituem como parte da histria e cultura africana e afro-
brasileira.
Ainda muito caro adentrar nestas reas de conhecimento e incuti a temtica das
relaes etnicorraciais. O professor Henrique Cunha Jr. tem sido um dos expoentes
(intelectuais orgnicos do movimento negro) a realizar esta empreitada, tendo uma grande
produo que trata sobre o uso tecnolgico e matemtico por afro-brasileiros e africanos no
Brasil. Seus trabalhos contribuem muito para as reflexes em torno dos fenmenos
tecnolgicos presentes nas culturas negras.
Reconhecemos tambm, os esforos e empenho de outros intelectuais negros e no
negros que produzem artigos, monografias, dissertaes, teses e projetos educacionais
voltados para a discusso. Para esse trabalho foram lidas trs dissertaes que discutem as
culturas africanas e afro-brasileiras e as prticas matemticas, as quais coincidentemente tem
o mesmo ano de defesa: 2008, e so de pesquisadores (as) negros e militantes do movimento
negro, so elas: A cultura negra na escola pblica: uma perspectiva etnomatemtica de
Vanisio Luiz da Silva, Os tecidos Kentes de Gana como atividade escolar: uma interveno
etnomatemtica para a sala de aula de Eliane Costa dos Santos e A presena africana no
ensino de matemtica: anlise dialogadas entre histria, etnocentrismo e educao de
Gustavo Henrique Arajo Forde. Chamou nossa ateno a coincidncia dos anos de
apresentao e a contnua produo dos pesquisadores sobre a temtica.
Entendemos que os trabalhos citados acima, as dissertaes e a produo de Henrique
Cunha Jnior, so fontes de informaes para os educadores que desejam trabalhar com
matemtica e prticas de conhecimento do negro em sala de aula. Para aqueles que no
tiveram oportunidade de acesso s informaes sobre a temtica das relaes etnicorraciais
nas suas formaes acadmicas. Enfatizamos tambm que so trabalhos em lngua
portuguesa, que de certo modo ajudam o leitor[28]
Alm disso, temos as pesquisas em andamento sobre a temtica apresentada de
maneira suscita em artigos como os de Frana (2010) Forde (2011) e Silva (2010) e trabalhos
sobre jogos macalas que tratam sobre a descrio desses em contexto escolar com suas
aplicaes, metodologias e resultados atingidos. Para alguns, pode parecer pouco e realmente
ainda , mas consideramos um avano originado das muitas lutas dos movimentos negros para
mudanas no ambiente escolar.
Deixamos claro, que no nos foi possvel identificar todas as produes em andamento
[28] claro que sabemos que o idioma oficial do Brasil a lngua portuguesa, mas o pas fala vrias lnguas. No entanto, pensamosque em espaos escolares no indgenas, quilombolas, ciganos etc, temos trabalhos em lngua portuguesa e no em lnguainglesa, francesa dentre outras, se consolida como um ganho para pesquisadores e professores. Fora a discusso de que nsbrasileiros estamos produzindo pesquisa que visem falar das nossas formas de matematizar. Entendendo por dentro e no por foranossas heranas.
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23ou concludas sobre etnomatemtica que tenham como objeto de estudo: cultura negra,
africanos, afro-brasileiros e produo de conhecimento matemtico. Estudos que tenham os
negros (as) como produtores de conhecimento matemtico e no apenas como indivduos ou
grupo social que apresentam baixos ndices na disciplina matemtica. De modo geral, os
trabalhos em etnomatemtica retratam a populao negra como sendo uma das populaes
desprivilegiadas no processo educacional em relao a disciplina matemtica. So os
indivduos que em geral no alcanam as melhores notas. Os pesquisadores tendem a
apresentar como soluo para o problema: o resgate das razes culturais dos negros (as).
Mas esse resgate nem sempre est direcionado para a relao do grupo com a produo de
tecnologia e matemtica. Muitas vezes se fala em trazer a dana, a culinria, capoeira, a
religiosidade e outras caractersticas culturais, que infelizmente so bem folclorizadas, e nas
quais a autoestima dos negros (as) trabalhada at certo ponto e comparaes com as lgicas
matemtica quase no so realizadas. Segundo Cunha Jr. (2010) preciso um resgate
histrico sobre a relao dos africanos e afro-brasileiro com a produo de conhecimento
tecnolgicos e matemtico.A histria do Brasil como apresentada, seja pelo pensamento conservadorde direita ou pelo pensamento progressista de esquerda, induz muitas idiaserrneas ou incompletas sobre a populao negra. Na histria do Brasil, oacerto tecnolgico transmitido pelas populaes ao pas no aparece. Nemmesmo as profisses exercidas pelos africanos e afrodescendentes emcondies de escravizados ou de livres tambm no aparecem.A flora e a fauna brasileira apresentam um nmero enorme de espcime vindodo continente africano, estes vieram pela sua utilidade e por fazerem parte doacervo civilizatrio africano no qual se estruturou a sociedade brasileira. OBrasil, Colnia e Imprio, em seus aspectos tecnolgicos comea nocontinente africano e nos conhecimentos trazidos pela mo de obra africana.Assim muito importante temos conhecimento mnimo das tecnologiasafricanas desenvolvidas na histria do Brasil. (p. 10).
Nosso interesse para a pesquisa desde o incio foi levantar trabalhos voltados para a
discusso do saber africano e afro-brasileiro na rea matemtica e tecnolgica. E claro, que
ao longo da pesquisa seriam encontrados dados sobre o rendimento na disciplina. Como
estamos na contramo do processo, queremos outras visibilidades sobre os negros, e noaquelas associaes comuns relacionadas aos fracassos escolares efetivados por disciplinasdominadas no passado por nossos ancestrais (negros) e hoje utilizadas para nos excluir.
Consideramos que enquanto rea de estudo que visa o saber do grupo marginalizado, a
Etnomatemtica a ferramenta terica que valida nossa discusso. A etnomatemtica se encaixa nessa reflexo sobre a descolonizao e naprocura de reais possibilidades de acesso para o subordinado, para omarginalizado e para o excludo. A estratgia mais promissora para aeducao, nas sociedades que esto em transio da subordinao para aautonomia, restaurar a dignidade de seus indivduos, reconhecendo e
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24respeitando suas razes do outro, mas, num processo de sntese, reforar suasrazes. Essa , no meu pensar, a vertente mais importante da etnomatemtica.(D' AMBROSIO, 2007, p.42).
Conclumos que, por ser uma rea de conhecimento que passa por muitos problemas
de reconhecimento em termos de valor acadmico, e em alguns casos colocada como subrea
da Matemtica, produzir em/com perspectivas etnomatemticas tomar uma posio poltica
no satisfatria em muitas ocasies. saber que o que se discute vai de encontro ao poder de
fala, de lugar, de reconhecimento e de conhecer. Logo, discutir conhecimento de negros em
etnomatemtica um lugar instigante e confortvel devido aos pressupostos tericos e
metodolgicos; mas em termos de reconhecimento e aceitao acadmica, torna-se uma
questo complexa, e por vezes cara ao pesquisador. Talvez seja por esses motivos que
tenhamos to poucas produes na rea, talvez a resposta no seja apenas as questes
coloniais que giram nas mentes, e sim o lugar ocupado nas reas de pesquisas e o
reconhecimento entorno do pesquisador que faz etnomatemtica. Entendemos que passam por
vrias situaes e que nosso trabalho soma como mais um trabalho e tem como origem
discusses das relaes etnicorraciais e da etnomatemtica.
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