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NÁDIA RÉGIA MAFFI NECKEL
DO DISCURSO ARTÍSTICO À PERCEPÇÃO DE DIFERENTES PROCESSOS DISCURSIVOS
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientadora: Profa. Dra. Solange Leda Gallo
FLORIANÓPOLIS, 2004
9
NÁDIA REGIA MAFFI NECKEL
DO DISCURSO ARTÍSTICO À PERCEPÇÃO DE DIFERENTES
PROCESSOS DISCURSIVOS
Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do grau de Mestre em Ciências
da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Ciências da
Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Florianópolis – SC, 24 de setembro de 2004.
______________________________________________________
Profa. Dra. Solange Leda Gallo
UNISUL – Florianópolis
______________________________________________________
Profa. Dra. Suzy Lagazzi - Rodrigues
Unicamp - Campinas
______________________________________________________
Prof. Dr. Fábio de Carvalho Messa
UNISUL – Florianópolis
______________________________________________________
Profa. Dra. Rosangela Morello (Suplente)
Unicamp - Campinas
10
Aos meus orientadores de vida: Ao meu avô, Albino Maffi (in memoram) parte constitutiva do que sou... E, a minha avó Doralina de Oliveira Maffi pelo seu exemplo de vitalidade, alegria e disposição para o diálogo, para a amizade, para a vida.... E minhas orientadoras da teoria e para além dela: Á minha amiga Beatriz Hoff (Bi@), minha primeira orientadora ao caminho da AD... E, a minha orientadora e amiga, Solange Leda Gallo, por todos os textos com SOL, pelo mergulho em AD, pela amizade e confiança.Elle a été courageuse!
11
Agradecer é igualmente dizer que faríamos o mesmo em situação semelhante. Então quero agradecer àqueles que contribuíram de maneira relevante à elaboração desse trabalho: À minha orientadora, Sol, presente em cada etapa, pelas horas de cumplicidade, pelas horas de me fazer refletir, de dar um passo à frente ou recuar, sem seu olhar atento, tais passos não seriam possíveis. À minha família e à Célia, pelo apoio incondicional. Aos meus colegas de mestrado, pelas contribuições teóricas, em especial à Rê (grilo falante) pelas centenas de km rodados. Ao meu colega da UnC Gilmar Mazurkievcz um obrigado especial pela edição dos vídeos e imagens deste trabalho, sem as imagens as análises não se fariam entender. Aos colegas de trabalho e ao Núcleo de Criação Teatral da Universidade do Contestado por todas as contribuições ao longo da pesquisa. Á amiga e colega Nadja Lamas, pelas conversas e pontes com a obra de Karin. Á Karin Lambrecht por sua obra. E, a todos os apaixonados pela arte, pela AD e pela pesquisa, que fazem delas seu respiradouro e que fazem possível, trabalhos como este, que deixam saudades e a vontade incontrolável de prosseguir.
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“Ponho os meus olhos em você, se você está (...) Pus nos olhos vidros pra poder melhor te enxergar(...) E eu vou guiando (...)”(Cássia Eller) Nando Reis,2001
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RESUMO
A pesquisa de mestrado “Do Discurso Artístico à percepção de diferentes processos discursivos” se inscreve no campo teórico da análise de discurso pretendendo debruçar os esforços de análise no dizer que se inscreve no campo da arte enquanto discurso, marcado por um lugar de dizer da história, da ideologia e afetado também pelos aspectos sociais. Dentre os intentos desta pesquisa configura-se a caracterização do discurso artístico em conformidade com as tipologias apontadas por Orlandi (1998). Desta forma coube uma reflexão sobre o não verbal enquanto característica fundante do discurso artístico e enquanto processo discursivo presente também em outras tipologias discursivas.
Palavras-chave: arte, discurso, processo
14
ABSTRACT
The master research “ From the Artistic Speech to the perception of different discursive process” inscribe itself in the theoritical field of the analysis speech claiming to stoop, the analysis efforts that inscribe themselves in the art field being a speech, marked by a place in the history, ideology, and affect by the social aspects too one of this research’s purpose is to configurate the characterization of the artistic speech on conformity with the pypes pointed by Orlandi (1998). Thus a reflection was made about the non verbal being a new characteristic of the artistic speech being a current discursive process in anothers discursive types too.
.
Key words: art, speech, process
15
SUMÁRIO
LISTAS................................................................................................................................................................. 16
INTRODUÇÃO: OS DOIS LUGARES DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO ............................................... 17
1 O LUGAR DE ONDE SE DIZ.................................................................................................................. 23
1.1 O SUJEITO QUE DIZ – O SUJEITO QUE É DITO........................................................................................ 28 1.2 O PAPEL DA MEMÓRIA NO ÂMBITO DISCURSIVO: UMA LEITURA A PARTIR DE MICHEL PÊCHEUX. 34
2 FALANDO DE DISCURSO ENQUANTO ESTRUTURA E ACONTECIME NTO ........................... 36
3 A INCOMPLETUDE................................................................................................................................. 42
3.1 A HETEROGENEIDADE.......................................................................................................................... 44
4 SOBRE O DISCURSO ARTÍSTICO....................................................................................................... 49
4.1 SOBRE A LUDICIDADE ..................................................................................................................... 51 4.2 RETORNO AO DISCURSO ARTÍSTICO: AS INTERFACES DISCURSIVAS..................................................... 55 4.3 AD E O DA: A INTERPRETAÇÃO COMO GESTO PROVOCADO................................................................ 61
5 SOBRE O NÃO-VERBAL ........................................................................................................................ 65
5.1 ANÁLISES ESTÉTICAS FOUCAULTIANAS............................................................................................... 73
6 ANÁLISE DOS PROCESSOS DISCURSIVOS NO DISCURSO ARTÍSTICO.................................. 80
6.1 O VERBAL E O NÃO-VERBAL NO DA..................................................................................................... 80 6.2 CORDEIRO: A ESTÉTICA DO SACRIFÍCIO RETOMANDO AS QUESTÕES ESTÉTICAS E QUESTÕES
DISCURSIVAS..................................................................................................................................................... 87
7 GESTOS DE LEITURA E GESTOS E INTERPRETAÇÃO: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DISCURSIVA ...................................................................................................................................................... 96
7.1 ANÁLISE DISCURSIVA DA IMAGEM DE UMA OBRA DE ARTE............................................. 98 7.2 ATO I: GESTO DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO NO ESPAÇO TEATRAL A PARTIR DE UM TEXTO IMAGEM
PRÓPRIO DO ARTÍSTICO................................................................................................................................ 105 7.3 ATO II: GESTO DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO NO ESPAÇO TEATRAL A PARTIR DE UM TEXTO
IMAGEM DO JORNALÍSTICO.............................................................................................................................. 108
8 ENTÃO, O QUE TEMOS:...................................................................................................................... 116
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................................. 125
16
LISTAS
Tabela Linguagem : sistemas de relações ...........................................................................................................63
Detalhe: Mãos com vísceras .................................................................................................................................65
Magritte..................................................................................................................................................................75
Velázquez...............................................................................................................................................................75
Karin Lambrecht...................................................................................................................................................80
Os 7 vermes ...........................................................................................................................................................81
Detalhe: O sacrifício do carneiro ........................................................................................................................92
Imagem da instalação ...........................................................................................................................................93
Detalhe: Impressões com sangue .........................................................................................................................95
Karin Lambrecht 2 .............................................................................................................................................102
Esquema discursos .............................................................................................................................................106
Os 7 vermes .........................................................................................................................................................115
Esquema interpretação ......................................................................................................................................120
17
INTRODUÇÃO: OS DOIS LUGARES DE CONSTRUÇÃO DO SENTIDO
A Análise do Discurso1 tem na sua origem os textos de arquivo, e só
recentemente2 vem trabalhando com corpus experimental na área do não verbal. Portanto,
ainda é pequeno o acervo bibliográfico sobre o tema.
Nesta dissertação pretendemos debruçar o olhar sobre diferentes processos de
construção de sentido, considerando o lugar de dizer da Arte. Compreender o
funcionamento e a estrutura do Discurso Artístico3 e os processos discursivos que o
constituem (dentre eles o processo não verbal), fazem parte dos intentos deste trabalho.
Para haver discurso não se faz necessário que haja um texto verbal e sim,
sentidos postos. Então, se algo é ou está posto, há possibilidade de análise, pois existem
condições de produção desses sentidos, formação discursiva, história e ideologia;
portanto, um corpus para análise. Um discurso.
É neste contexto, de estrutura e acontecimento, que configuramos os
argumentos de base que tornam possível sustentar o intento de uma análise do discurso
artístico e do processo discursivo não-verbal. O não verbal que pretendemos tratar aqui se
1 Doravante AD. 2 E mais especificamente pesquisadores brasileiros. 3 Discurso Artístico = DA (doravante)
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refere principalmente ao campo da Arte4. E, mais especificamente ao processo de
construção de sentido em práticas de linguagem visual e cênica inscritas no DA. Tal
recorte se faz necessário porque entendemos que é impossível dar conta de uma análise
discursiva da arte de maneira geral, pois os processos de significação são inúmeros e
abrangentes. Por esse motivo, configuramos como foco principal de análise, duas formas
materiais específicas em relação à imagem e ao gesto.
Acrescentamos a necessidade de perceber e caracterizar o funcionamento do
DA tomando como base os textos da AD, mais especificamente Orlandi (1987), que
caracteriza o funcionamento do discurso pedagógico e, também, Mariani (1999) que
caracteriza o funcionamento do discurso jornalístico. Esses dois modos de funcionamento
atravessam de forma constitutiva nosso corpus.
Afirmamos que a análise discursiva (da posição do analista) constitui-se em
um gesto de interpretação. Assim, partimos de um outro gesto de interpretação5, o gesto
cênico do ator, para compreendermos o funcionamento do DA. Assim, uma obra de arte
(imagens) que se constitui em um gesto de leitura/interpretação de um ou mais discursos
que atravessam seus sentidos, e diz a partir de um lugar do outro. A criação de um gesto
cênico, a partir de uma obra plástica, se constitui em um gesto de análise que vai ao
encontro de um gesto de criação na linguagem teatral, um gesto de interpretação. Um
gesto por outro, ou por muitos, no qual colocamos o gesto do analista de discurso
equiparado ao gesto do artista, ambos de interpretação. Uma questão de autoria? Ou uma
questão de processo criativo, processo de construção de sentidos, no qual a pergunta já
4 Ressaltamos nossa opção pela produção contemporânea de arte. 5 Tomamos aqui, o conceito de interpretação dramática pertinente a linguagem teatral. E logo adiante utilizamo-nos o conceito dúbio de gesto, ora o conceito de gesto em AD, ora o conceito de gesto em DA. Por isso a insistente repetição proposital da palavra gesto.
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não é: o que se quer dizer, mas sim, como é possível ser dito e/ou como poderia ser dito
de outra forma?
Um entremeio
...lugar da contradição. Eu diria que AD é crítica primeiramente na medida em que ultrapassa os métodos próprios às disciplinas, e trabalha nos seus campos epistemológicos. E em segundo lugar, porque não cristaliza para si práticas metodológicas, já que permite ser afetada pelo corpus, que na sua diversidade, acaba por exigir permanente deslocamentos. (GALLO 1999 apud, INDURSKY, p. 189)
Segundo Orlandi, a AD se constitui no “Entremeio”6, pois discute
pressupostos constantemente. É esse caráter que permite ao analista de discurso tomar
como corpus de análise não somente textos verbais. A AD não pretende contar com o
positivismo que determina, mas com o entremeio que polemiza, pergunta, questiona e
discute.
Esses questionamentos, essa polêmica e discussão também se fazem presentes
nos gestos de interpretação presentes no interior do DA, fortemente marcados na arte
contemporânea.
A AD se interessa pela linguagem tomada como prática: mediação, trabalho simbólico, e não como instrumento de comunicação. É ação que transforma, que constitui identidades. Ao falar, ao significar, eu me significo. Aí retorna a noção de ideologia, junto à idéia de movimento. Do ponto de vista discursivo, sujeito e sentido não podem ser tratados como já existentes em si, como a priori, pois é pelo efeito ideológico elementar que funciona, como se eles já estivessem sempre lá. (ORLANDI,1998, p.28)
Ao abordarmos a questão dos gestos de leitura/interpretação, é impossível
não recairmos em um dos conceitos fundantes da AD, ou seja, o de “condições de
6 No livro Interpretação: “No caso específico da análise de discurso (AD), que tratamos como um
disciplina que se faz no ‘entremeio’ esse deslocamento resulta sobretudo do trabalho produzido sobre a noção de ideologia”. 1998, pág. 23.
20
produção”. Esse conceito, por sua vez, não pode ser visto senão relacionado à noção de
formação discursiva:
o sentido de uma palavra, expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (1975:144). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a estas posições, isto é, em referência às formações ideológica (...) nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX 1988, p. 160)
O gesto de leitura/interpretação é produzido por um sujeito que está inscrito
em uma formação discursiva, e esta, por sua vez, é determinada por uma formação
ideológica. Então, o gesto de interpretação será sempre realizado de um lugar específico,
em determinadas condições de produção, um lugar marcado pela historicidade. Isso é que
garante que a produção de sentido não seja qualquer uma, embora muitos/diferentes
sentidos sejam possíveis.
A AD se sustenta na materialidade histórica da linguagem, o que garante sua
“cientificidade”. Buscamos, por meio da observação e análise dos processos de criação
artística (tanto plástica, quanto gestual), a materialidade capaz de assegurar que os
sentidos não sejam quaisquer. Falamos de processos (no plural) porque reconhecemos
diferenças fundamentais entre o processo verbal e o processo não-verbal de construção de
sentidos. Esses constituem, em última instância, diferentes gestos de interpretação.
É na observação desses dois diferentes processos discursivos que nos
colocamos no espaço de interpretação para realizarmos uma análise discursiva de
diferentes gestos.
A literatura lê imagens e/ou as fabrica com palavras. A pintura retrata processos de leitura. O leitor, ao ler um texto ou um quadro, cria novas
21
imagens. Assim, a relação entre o quadro pintado e o quadro descrito deve ser analisada não apenas a partir da equivalência que parece conter, mas sobretudo, pelas indagações sobre os modos como as imagens (escritas e pictórias) elaboram uma sintaxe do texto escrito e do quadro. É importante ressaltar que aproximar textos de diferentes códigos não significa trabalhar apenas com as identidades visíveis, que podem ser observadas, por exemplo, entre um texto literário e a ilustração que ele faz, mesmo quando parece insistir numa paráfrase do texto a que se refere (...) expõem as infinitas possibilidades de transgressão do objeto representado. (WALTY,2001, p.63)
Assim, pretendemos buscar o entendimento de como a imagem funciona e
produz sentido, e porque define determinado gesto de leitura7. O que faz com que o gesto
de leitura seja feito desta maneira e não de outra? No caso do gesto do ator, este se faz e
produz sentido, a partir de um dizer-imagem. Segundo Gallo, esse sujeito (autor) se
constitui constituindo, ao mesmo tempo, uma posição de leitor, que finalmente produzirá
o efeito de fechamento do texto como um todo, do fechamento do sentido (1999 p. 196),
que desliza, migra para outro sentido.
Percebemos que a opacidade da linguagem não diz respeito apenas ao verbal,
por isso o DA pode ser analisado, porque estamos tratando de modos de produção de
sentidos.
Acreditamos que ao buscarmos compreender o modo de funcionamento do
DA por meio de análise de enunciados artísticos contemporâneos8, estaremos igualmente
observando os dois diferentes processos de construção do sentido já mencionados: o
verbal e não-verbal, o que poderá constituir o aprofundamento dessas noções e um
conseqüente avanço teórico da AD no que se refere às considerações sobre o não-verbal.
7 Neste caso, gesto de leitura. Entendemos que o primeiro olhar constitui-se em um gesto de leitura, essa é a
‘condenação’ da linguagem: reter o sentido. Mas, num segundo momento, o gesto passa ser um gesto de interpretação no qual se pretende compreender como o sentido é possível e apontar, e construir outros sentidos possíveis. O gesto de interpretação pode ser, a nosso ver, tanto o gesto do analista, quando o gesto do artista.
8 Especificamente os aspectos visuais e cênicos.
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No caminho da arte, pretendemos oferecer tanto à linguagem visual, quanto à
linguagem corporal, subsídios teórico-práticos sobre a reflexão da arte enquanto discurso,
considerando os pressupostos históricos, ideológicos e sociais, ou seja, a própria
constituição do sujeito artista enquanto não só leitor de sua realidade, mas também
intérprete e protagonista de sua história. Percebemos, no decorrer das leituras realizadas
durante esta pesquisa, que as formulações teórico-estéticas no campo da arte não
percebem a obra de arte enquanto estrutura e acontecimento, porque as análises, em sua
grande maioria, tomam a obra apenas enquanto estrutura e não como acontecimento
discursivo.
Segundo Orlandi, “ uma postura produtiva é a de considerar que a leitura é o
momento crítico da constituição (...) momento privilegiado da interação.” (1999)
Isto posto, acreditamos que tal pesquisa poderá inaugurar uma nova
percepção a respeito da constituição dos gestos de leitura e interpretação a partir do DA e
da observação de seu funcionamento por meio dos processos discursivos verbal e do não
verbal, percebendo assim as possibilidades de construção de sentido. Assim, pretendemos
contribuir com pesquisas que tenham o enfoque na análise discursiva do não verbal,
como também, por outro lado, nas pesquisas sobre arte, que tenham como intento
compreender o funcionamento do DA, considerando-o além da estrutura e percebendo o
artista enquanto sujeito histórico, ideológico e social em seu tempo, analisando, nesse
caso, a materialidade histórica da obra, tomando-a como ponto de partida.
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1 O LUGAR DE ONDE SE DIZ
“O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.
FOUCAULT
Ao iniciarmos este capítulo com uma máxima foucaultiana, reportamo-nos às
idéias do filósofo sobre as ordens discursivas, como uma condição prévia (ou uma
simples trilha) para chegar a um conceito de base em AD, que Pêcheux chamou de
Formação Discursiva. Ainda em Foucault e nas palavras dele mesmo
(...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2001, p. 9)
Foucault fala de diferentes ordens de discurso, ordens pedagógicas,
filosóficas, econômicas, também de formação discursiva e, até mesmo, de acontecimento.
Ao partirmos desta visão, é possível compreendermos os conceitos formulados por
Michel Pêcheux sobre condições de produção e, percorrendo sua teoria chegarmos a um
conceito primordial para a AD: o de Formação Discursiva9. No entanto, Pêcheux ao
formular o discurso enquanto estrutura e acontecimento, toma uma posição, tanto do
ponto de vista do teórico quanto do ponto de vista do político. De certa forma, assim
especializando o conceito de formação discursiva elaborado por Foucault, Pêcheux torna
indissociável a posição de teórico e de político. Segundo ele, tecer teoria é uma questão
de responsabilidade política. Ou seja, a posição teórica de Michel Pêcheux é de
9 Formação discursiva, doravante FD.
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consciência de que na medida em que se está fazendo teoria também se está interferindo
politicamente. Porque estrutura e acontecimento, para Pêcheux, são indissociáveis, o que
poderia levar à conclusão que para ele é impossível fazer somente teoria.
Devido a estas constatações, diremos que a postura assumida por Pêcheux
especializa o conceito de formação discursiva, mesmo sabendo que Foucault propôs
primeiramente o conceito e igualmente a noção de acontecimento, porém não conectando
diretamente essas duas conceituações. Um dos motivos principais dessa não conexão
talvez esteja no fato de que Foucault não pretendia fazer análise discursiva.
Percebemos que é na análise discursiva que reside a possibilidade de
começarmos a perceber tais conexões. E, é na análise de discurso pecheuxtiana que as
noções de estrutura e acontecimento se tornam indissociáveis.
Acreditamos que as diferenças fundamentais entre as posições teóricas de
Foucault e Pêcheux consistem em que o segundo, leva esses conceitos às últimas
conseqüências, produzindo interferências. Na verdade, trata-se de formulações diferentes
que de certa forma se complementam: são gestos de leitura/interpretação de diferentes
posições sujeito.
Ao pensarmos no conceito de FD, Pêcheux conta com outros conceitos de
base como, por exemplo, formação ideológica, ideologia dominante, Ideologia10 e
ideologias, etc. Sendo assim, se torna praticamente impossível falar de formação
discursiva sem percorrer tais caminhos.
10 Propositadamente com letra maiúscula para diferenciar os diferentes conceitos da palavra ideologia.
25
Por formação ideológica entenda-se: elementos constitutivos da ideologia, o
historicamente concreto, que tem seu funcionamento no interior da ideologia dominante
que por uma vez é resultado de um conjunto, forma histórica e concreta das formações
ideológicas que nela funcionam. Não há como fugir da discussão sobre ideologia de uma
forma geral, ao tratar de FD. Para Pêcheux e para a AD, Ideologia é o movimento de todo
o sujeito histórico e temporal, uma condição de existência. O autor chama a atenção para
o fato de que essa discussão suscita o surgimento de outros conceitos que não devem ser
confundidos. Embora imbricados, são diferentes entre si os conceitos de Ideologia,
Ideologia Dominante, Uma ideologia e de Ideologias.
Em nossa percepção, talvez a diferença primordial entre a fala foucaultiana e
pecheuxtiana, advenha da leitura que Pêcheux faz de Althusser em “Aparelhos
Ideológicos do Estado” (AIE), no que diz respeito às concepções de: a Ideologia e As
ideologias, segundo Althusser
Apenas do ponto de vista das classes, isto é, da luta de classes, pode-se dar conta das ideologias existentes numa formação social. Não é apenas a partir dái que se pode dar conta da realização da ideologia dominante nos AIE e das formas da luta de classes das quais os AIE são a sede e o palco. Mas sobretudo é também a partir daí que se pode compreender de onde provêm as ideologias que realizam e se confrontam no AIE. Porque se é verdade que os AIE representam a forma pela qual a ideologia da classe dominante deve necessariamente se realizar, e a forma com a qual a ideologia da classe dominada deve necessariamente medir-se e confrontar-se, as ideologias não “nascem” dos AIE mas das classes sociais em luta: de suas condições de existência, de suas práticas, de suas experiências de luta, etc. (2003, p.106-107)
Percebemos que Pêcheux parte desta leitura de Althusser para fundamentar as
diferenças conceituais entre Ideologia, Ideologia Dominante, Uma ideologia e de
Ideologias. O primeiro citado, no singular, seria o movimento de “apagamento” que,
como já foi dito, faz parte da constituição do sujeito. Ideologia Dominante é a noção de
uma entre outras práticas sociais definida em certas condições de produção calcadas na
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história. Uma Ideologia é a dominância de um conjunto, é o que excede, o mais forte de
um conjunto resultante de uma prática social. E, Ideologias teriam o caráter regional no
qual o sujeito se inscreve.
Desta forma, Michel Pêcheux chega a uma das noções teóricas fundamentais
para a AD
Chamaremos, então de Formação Discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes o que pode e deve ser dito (articulado sob forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc)
Isso equivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas: retomando os termos que introduzimos acima aplicando-os ao ponto específico da materialidade do discurso e do sentido, diremos que os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’as formações ideológicas que lhe são correspondentes. (PÊCHEUX, 1997, p.160-161).
No âmbito da linguagem, o conceito de formação ideológica trabalhado por
Pêcheux advém, portanto, da formulação althusseriana de luta de classes e nos conceitos
de reprodução e transformação11. Segundo Althusser, “não há produção possível sem que
seja assegurada a reprodução das condições materiais da produção: a reprodução dos
meios de produção.” (2003, p.54)
A ideologia, de um modo geral, é a condição de todo o sujeito, mas se
materializa de forma diferente nas práticas de cada sujeito; está dependente das condições
reais do sujeito. As ideologias, as práticas dessas ideologias se materializam no discurso.
Ou seja, a FD possui uma materialidade histórica e social, que é produto de práticas
sociais do sujeito.
11 “Esse verdadeiro ponto de partida, já se sabe, não é o homem, o sujeito, a atividade humana, etc., mas
ainda uma vez, as condições ideológicas da reprodução / transformação das relações de produção”. PÊCHEUX, 1997, p. 180
27
O que interessa em AD é de que posição o sujeito diz. É a “posição”
assumida no interior de uma formação discursiva que, de certa forma, demonstra o grau
de assujeitamento do sujeito. Neste ponto citamos novamente Althusser
Sim, os sujeitos “caminham por si”. Todo o mistério deste efeito está contido nos dois primeiros momentos do quádruplo que falamos, ou, se o preferimos, na ambigüidade do termo sujeito. Na acepção corrente do termo, sujeito significa. 1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor resposável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade superiror, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão. Esta ultima conotação nos dá o sentido desta ambigüidade, que reflete o efeito que a produz: o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto (livremente) sua submissão. Os sujeitos se constituem pela sua sujeição. Por isso é que “caminham por si mesmos” (2003, p.103-104)
Ao retomarmos as leituras de Pêcheux, percebemos que ele junta a esse
conceito de ‘assujeitamento ideológico’ althusseriano, o conceito de Sujeito ou Outro,
uma designação lacaniana. Desta forma há um imbricamento entre interpelação e
identificação, o que Pêcheux nomeia de “condições ideológicas da
reprodução/transformação das relações de produção”12. No entanto, é preciso que
consideremos o maior grau de complexidade em marcar esse processo no âmbito da
linguagem do que no âmbito social, como fez Althusser. Nesse sentido, o conceito de FD
permite ao analista de discurso uma “pista” como ponto de partida.
As FD são “máquinas” de assujeitamento, no entanto, as máquinas falham.
Com isso há um deslocamento de sentidos que faz desestabilizar, que provoca mudanças.
A falha tem a ver com a posição que o sujeito assume na FD. Mais uma vez, afirmamos,
não é o que o sujeito fala, mas o lugar de onde ele fala. E esse lugar vem marcado em sua
fala.
12 Semântica e discurso, p. 134.
28
A noção de formação discursiva que corresponde a um domínio de saber, constituído de enunciados discursivos que representam um modo de relacionar-se com a ideologia vigente, regulando o que pode e deve ser dito13. É através da relação do sujeito com a formação discursiva que se chega ao funcionamento do sujeito do discurso. (INDURSKY, 2000, p. 70).
Pensar em AD, pelos olhos de Michel Pêcheux, é como mergulhar em um rio
nada calmo, é se deixar levar pela correnteza desenfreada da inquietude dos conceitos,
talvez nadando em busca da “terceira margem”14.
Ao iniciarmos esse capítulo abordando o lugar de onde se diz, tornou-se
impossível apontá-lo sem discorrer antes sobre sua constituição. E, sabendo seu modo de
constituição, é impossível seguirmos adiante sem falarmos do sujeito de sua forma e de
sua função no interior deste lugar.
1.1 O SUJEITO QUE DIZ – O SUJEITO QUE É DITO
Em AD, a noção de sujeito (contrapõe-se ao conceito de indivíduo) tem
relação direta com a noção de processo discursivo, ou seja, o sujeito tem um lugar
histórico, um lugar social e, é claro, um lugar ideológico. O sujeito da AD não é
percebido apenas no âmbito lingüístico, pois a ideologia o interpela em sujeito (mesmo
que parte desse processo seja inconsciente).
Segundo Indursky (2000), “o sujeito da Análise do Discurso é duplamente
afetado: em seu funcionamento psíquico pelo inconsciente, e em seu funcionamento
social, pela ideologia” (p.71). Assim, as diferentes formas de representação do sujeito
constituem-se em um dos interesses centrais da AD.
13 Pêcheux, 1997, p. 161 14 A busca da “terceira margem do rio”, tal como no conto de Guimarães Rosa, uma metáfora da história do
teórico e de sua teoria.
29
O sujeito se constitui pelo “esquecimento” daquilo que o determina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto “pré-construído” e “processo de sustentação”) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no discurso do próprio sujeito. (PÊCHEUX, 1997, p.163)
Essa “reinscrição” vem marcada lingüisticamente, por isso é possível afirmar
que na mesma instância que o sujeito do discurso diz, ele igualmente se diz. Em primeira
instância, tem-se o sujeito da enunciação (aquele que ‘esquece’ o que o determina). Em
segunda instância, a forma-sujeito, sua existência histórico-social, a interpelação dos
indivíduos em sujeitos, esse movimento de interpelação que indica a formação discursiva
em que se está inscrito, as marcas que sustentam esse dizer. E, em terceira instância, o
interdiscurso “o real (exterior)”15.
Entendemos que o real exterior (o interdiscurso) seria o lugar de todos os
sentidos, inacessível para o sujeito, já que o sujeito está sempre dividido. Desta forma,
enquanto sujeitos que somos, não temos acesso a todo o sentido e, muito menos, ao
verdadeiro sentido, ao sentido real. Uma posição de sujeito não tem acesso ao real do
sentido, porque para o sujeito tudo são realidades parciais, determinadas pelo lugar e pelo
tempo que este sujeito se encontra.
Essas realidades são refletidas pelo que chamamos de um imaginário, que por
sua vez, é a formulação ideológica da realidade na qual o sujeito está inscrito. Isto produz
um efeito de que o sentido pareça óbvio ao sujeito, um efeito de que lhe pareça
verdadeiro, de que lhe pareça completo e, naquele instante, determinado. O interdiscurso,
portanto, é o que de mais abstrato podemos formular. Abstrato enquanto impossibilidade
15 Pêcheux, 1997, pág. 162
30
de acesso como um todo. Podemos abstrair a existência do real, mas não podemos provar
sua existência, a não ser pela falta, pela incompletude que é constitutiva. A idéia de real
filia-se ao conceito de incompletude; a falta constitutiva e incontornável de todo o sujeito
e de todo sentido.
Tal conceito é gerado na Psicanálise que compreende a constituição do
sujeito, em três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Sendo o imaginário a
formulação da realidade, o real, o impossível – onde estaria aplacado toda a falta, a falha,
a incompletude, e o simbólico, o elo material do sujeito ao sentido. Ou seja, o simbólico
relaciona-se à materialidade na qual o sujeito se apóia para fazer parte desta realidade que
está inserido, a materialidade que à qual o sujeito recorre para se dizer e dizer o mundo.
Ou seja, o simbólico é a forma material de toda a expressão humana, podendo essa
materialidade ser da ordem do verbal ou do não verbal, materialidade que se projeta
imaginariamente e de uma forma incontornável , falha.
Então, podemos dizer que de forma análoga ao funcionamento do sujeito e do
real, o interdiscurso, é aquilo a que somos ignorantes, e igualmente aquele que responde
ao que falta em qualquer discurso, sendo o todo (a incompletude) que sustenta cada parte
materializada dos discursos.
Propomos chamar de interdiscurso a esse “todo complexo dominante” das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, 1997, p. 162)
Assim, pelas palavras de Pêcheux só temos acesso a parte deste interdiscurso
tido como exterior, este “todo complexo dominante”.
31
O processo ideológico marcado pela interpelação do indivíduo em sujeito é
sustentado pelo “pré-construído16”, que corresponde ao “sempre já aí” dessa interpelação.
“os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos de seu discurso) por formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”. Especificamos também que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina”. Acrescentaremos agora, retomando formulações recentes de P. Henry, que essa interpelação supõe necessariamente um desdobramento, constitutivo de sujeito do discurso, de forma que um dos termos representa o “locutor”, ou aquele a que se habituou chamar “sujeito da enunciação”, na medida que lhe é “atribuído o encargo pelos conteúdos colocados” – portanto, o sujeito que “toma posição”, com total conhecimento de causa, total responsabilidade, total liberdade, etc. – e o outro termo representa “o chamado sujeito universal, sujeito da ciência ou do que se pretende como tal”. Ressaltemos que esse desdobramento corresponde, a rigor, à relação, igualmente explicitada mais acima, entre pré-construído (o “sempre-já” aí da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a formada universalidade – o “mundo das coisas”) e articulação ou efeito-transverso (que, como dissemos, constitui o sujeito em sua relação com o sentido, isto é, representa no interdiscurso aquilo que determina a dominação da forma-sujeito). (PÊCHEUX, 1997, p.214)
Em Orlandi vemos a noção de interdiscurso da seguinte maneira:
O interdiscurso é o conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer. Para que nossas palavras tenham sentido é preciso que já tenham sentido. Esse efeito é produzido pela relação com o interdiscurso, a memória discursiva: algo fala antes, em outro lugar, independentemente. Tenho definido interdiscurso como a memória que se estrutura pelo esquecimento, à diferença do arquivo, o que é discurso documental, institucionalizado, memória que acumula. Filiamo-nos a redes de sentidos em um gesto de interpretação, na relação com a língua e a história, e em que trabalham a ideologia e o inconsciente. (ORLANDI, 2001, p.59)
O sujeito do discurso é um sujeito ao mesmo tempo ideológico, histórico e
social. Um sujeito que assume diferentes posições por que se inscreve sempre de forma
16 Nas palavras de Michel Pêcheux: “Diremos então, que o “pré-construído” corresponde ao “sempre-já-aí”
da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o “mundo das coisas”), ao passo que a “articulação” constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito”. (1997, p. 164)
32
diferente em diferentes FD e o sentido discursivo está tanto no que o sujeito diz, quando
no que ele deixa de dizer, o sentido vem marcado na forma de como ele SE diz.
É possível dizer que os sentidos se articulam em um nível relacional, os
sentidos não estão postos apenas em um texto, por exemplo, muito menos no sujeito ou
em suas intenções, mas sim numa relação de exterioridade, nas reais condições de
existência, nos deslizamentos e nos deslocamentos; nos dizeres ‘disponibilizados’ pelo
interdiscurso e nas bases do que fala antes, que vem do outro, em forma de pré-
construído.
Segundo Orlandi “é também o interdiscurso, a historicidade, que determina
aquilo que, da situação, das condições de produção, é relevante para a discursividade”.17
É nesse sentido que o interdiscurso pertence à ordem do ‘saber discursivo’.
Esse saber é afetado pelos esquecimentos que fazem parte da constituição do sujeito
discursivo. Em 1975, Michel Pêcheux distingue duas formas de esquecimento inerentes e
constituintes do discurso que ele nomeia como esquecimento número um e esquecimento
número dois.
Tomamos, aqui, a liberdade de citar Orlandi, no intento de compreendermos
conceitualmente a noção de esquecimento, pois a leitura que a autora realiza dos
conceitos de Pêcheux sobre o esquecimento nº 1 e nº 2, nos parecem bem esclarecedora.
O esquecimento número dois, que é da ordem da enunciação: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre poderia ser outro. Ao falarmos “sem medo”18, por exemplo, podíamos dizer “com coragem”, ou “livremente” etc. Isto significa em nosso dizer e nem sempre temos consciência disso. Este
17 1999, p.33. 18 Referindo-se ao enunciado “Vote sem medo”.
33
“esquecimento” produz em nós a impressão da realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim. Ela estabelece uma relação “natural” entre palavra e coisa. Mas este é um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos. O outro esquecimento é o esquecimento número um, também chamado esquecimento ideológico: ele é a instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. Esse esquecimento reflete o sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos. Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isso que significam e não pela nossa vontade. (ORLANDI, 1999, p. 35)
Mesmo que esses esquecimentos sejam constitutivos ao dizer do sujeito,
como vimos, o sujeito não os domina, pois são esquecimentos e não intencionalidades. O
sujeito é afetado pelos discursos e não é a origem deles, e é pela noção de esquecimento
que de certa forma se estrutura essa relação de constituição de sujeitos e de sentidos. Esse
esquecimento involuntário, que constitui os dizeres do sujeito e que ao mesmo tempo
possibilita a circulação dos sentidos, em primeira instância, significa o acesso ao sentido.
O sujeito discursivo se constitui se constituindo, afetado pelo dizer que
acredita ser seu, graças aos esquecimentos; mas, que na verdade, são de outros e de
outros. O que conta é a produção de sentidos e não a noção (falsa) de originalidade. E, só
é possível compreender discursivamente esse processo de construção de sentidos, por
meio da noção de Formação Discursiva.
34
1.2 O PAPEL DA MEMÓRIA NO ÂMBITO DISCURSIVO: UMA LEITURA A PARTIR DE MICHEL PÊCHEUX
Um dizer é dito de outro dizer. Essa relação com o outro, com o
interdiscursivo, é que possibilita, em nossa percepção, um dizer já dito antes ser, por
assim dizer, regionalizado pela FD. O que nos traz novamente à discussão, o papel da
memória. Discussão esta, desenvolvida por Michel Pêcheux em “Role de la Mèmoire”.
A noção de memória em Pêcheux não parte, assim como a noção de sujeito,
de um conceito individual. Nesse caso, portanto, não se trata da memória individual, mas
nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas
sociais, e da memória construída pelo historiador. Uma memória que conta com o
atravessamento do ideológico, do histórico e do social. Segundo Orlandi,
A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. (1999, p. 31)
Os esquecimentos que se articulam na memória permitem ao sujeito, tecer
relações de sentido e tornando seu dizer possível em uma FD dada. Entendemos que os
sentidos se produzem a partir das relações estabelecidas no interior de uma FD. Esse
efeito de ‘determinação’ de sentidos ocorre pelo interdiscurso, pela memória. Ainda para
Orlandi,
Para que a língua faça sentido, é preciso que a história intervenha, pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante. Daí resulta que a interpretação é necessariamente regulada em suas possibilidades, em suas condições. Ela não é mero gesto de decodificação, de apreensão do sentido. A interpretação não é livre de determinações: não é qualquer uma e é desigualmente distribuída na formação social. Ela é “garantida” pela memória, sob dois aspectos: a. a memória institucionalizada (arquivo), o trabalho social da interpretação onde se opera que tem e quem não tem direito a ela; b. a memória
35
constitutiva (o interdiscurso), o trabalho histórico da constituição do sentido (o dizível, o interpretável, o saber discursivo). O gesto de interpretação se faz entre a memória institucional (o arquivo) e os efeitos de memória (interdiscurso). Ser determinada não significa ser (necessariamente) imóvel. (ORLANDI,1999, p.49)
É possível percebermos, mais uma vez, que a constituição do sujeito e de seu
discurso não ocorre de modo estanque e sim em um constante movimento, ou seja, o
sujeito Se diz em um, ou muitos diz------------cursos-------- ...
Assim, nos parece que a memória trabalhada pelos esquecimentos durante a
constituição do sujeito inscrito em uma determinada FD, permite que seu dizer seja de
uma forma e não de outra. O papel da memória, que nos aponta Pêcheux, opera neste
sentido
memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. (Pêcheux, 1999, p. 52)
Ao prosseguirmos nesta leitura ao final do texto“Role de la Mèmoire”,
Michel Pêcheux ainda chama atenção para dois aspectos que precisamos considerar ao
pensarmos em memória, principalmente pelo viés discursivo: a existência de um
“interno”, em toda a memória19 e o fato de que “nenhuma memória pode ser um frasco
sem exterior” (p. 56).
19 A marca de um real histórico (ibid.56)
36
2 FALANDO DE DISCURSO ENQUANTO ESTRUTURA E ACONTECIMENTO
Já comentamos sobre o caráter indissociável, em Pêcheux, de Estrutura e
Acontecimento. O que propomos, neste momento, é uma reflexão mais dirigida acerca da
noção de estrutura discursiva e acerca da constituição do acontecimento discursivo.
Partimos, então, do reconhecimento de que “acontecimento” é o que
desestabiliza. Constitui-se da aparição de sentidos novos, do rompimento, uma constante
desestruturação - reestruturação – desestruturação, um movimento contínuo de relações
de sentido, efeito direto das filiações, das inscrições nas FDs.
É, em nossa percepção, esse movimento de ‘dispersão’ que provoca mudança,
originada por uma nova posição assumida. Esse é o acontecimento. O que nos faz pensar
que, se os sentidos fossem totalmente estabilizados, não poderia haver acontecimento e
mais, seria a própria ‘morte’ do sujeito discursivo.
Em seu texto de 1983, “Discurso: Estrutura ou acontecimento” Pêcheux
aborda a falsa aparência do logicamente estabilizado (o universo do sujeito pragmático20)
que pressupõe um real natural-social-histórico homogêneo. O autor segue argumentando
sobre os acontecimentos históricos e científicos e seus impactos sociais, o que o leva a
afirmar que a história é uma ‘disciplina de interpretação’ e só pode haver interpretação se
houver circulação de sentidos. Esse ‘logicamente estabilizado’, na abordagem discursiva,
não é possível.
20 Ainda segundo Pêcheux, cada um de nós.
37
Interrogar-se sobre a existência de um real próprio às disciplinas de interpretação exige que o não-logicamente-estável não seja considerado a priori como um defeito, um simples furo no real. É supor que – entendendo-se o “real” em vários sentidos – possa existir um outro tipo de real diferente dos que acabam de ser evocados, e também um outro tipo de saber, que não se reduz à ordem das “coisas-a-saber” ou a um tecido de tais coisas. Logo: um real constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos. (PÊCHEUX, 1997, p. 43)
E, é nesse espaço de produção de efeitos de sentido, nas condições de
produção, em um lugar de “entremeio”, em contraponto à estas “ciências régias” que a
AD efetivamente se constrói como dispositivo analítico e teórico.
Assim, afirmamos que a AD não se configura como disciplina ‘estruturante’
no sentido apenas de apontar os aspectos funcionais do discurso, ou ainda versar sobre
sua composição. Se assim fosse, seria apenas uma teoria forjada à margem de seu objeto,
ou seja, abstrata o bastante para não provocar e, até mesmo ‘inofensiva’ o bastante para
nem se fazer discutir.
O fato de a AD contar com o Acontecimento, a insere em um terreno múltiplo
impedindo-a de uma visão ‘logicamente estável’, pois ao contar com os aspectos
históricos, ideológicos e sociais para a análise, abre-se aos acontecimentos e aos sentidos
que ali circulam. O foco principal está nas condições de produção e, neste caso, a
estabilidade total não é possível.
O olhar do analista de discurso não é exclusivamente sobre um texto e sua
estrutura lingüística, e sim sobre o discurso. Portanto, o corpus de análise, além de uma
estrutura, é constituído fundamentalmente por um acontecimento.
38
Ao falarmos em funcionamento discursivo, ao pensarmos na estrutura e no
acontecimento em AD, não estamos, de maneira alguma, abordando apenas os aspectos
lingüísticos21 do discurso. Na verdade, nosso foco de análise amplia-se para as condições
de produção de sentidos de determinado discurso e ainda, da FD em que está situado o
sujeito desse discurso.
O funcionamento discursivo (...) é a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas. Em um discurso, então, não só se representam os interlocutores, mas também a relação que ELES mantém com a formação ideológica. E isto está marcado no e pelo funcionamento discursivo. (ORLANDI, 1987, p. 125)
Segundo Michel Pêcheux, trabalhar em um terreno como este, impõe de certa
forma uma série de exigências. O autor as explica já no final do seu texto “O discurso
estrutura ou acontecimento”.
1. A primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar: essa concepção da descrição supõe ao contrário o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua. (...)
2. A conseqüência do que precede é que toda descrição (...) está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. (...)
3. Este ponto desemboca sobre a questão final da discursividade como estrutura ou como acontecimento. A partir do que precede, diremos que o gesto consiste em inscrever tal discurso dado em tal série, a incorporá-lo a um “corpus” , corre sempre o risco de absorver o acontecimento desse discurso na estrutura da série medida em que esta tende a
21 Nas palavras de Orlandi: “É inegável, por outro lado, que, em relação à significação, o laço que liga o
discursivo e o lingüístico é bastante complexo. O lingüístico e o discursivo não são distintos, mas não são estanques na sua diferença. A separação entre lingüístico e o discursivo é colocada em causa em toda a prática discursiva, pois há relação entre eles: é a relação que existe entre condições materiais de base e processo. Isto é funcionamento. A língua, assim, aparece como condição de possibilidade do discurso.” (p. 118)
39
funcionar como transcendental histórico, grade de leitura ou memória antecipadora do discurso em questão. (PECHEUX, 1997, p. 51-56)
A primeira exigência evocada pelo autor acerca das materialidades
discursivas, provoca o olhar do analista de discurso a fim de lembrá-lo de que não se trata
de pensar hermeticamente a priori o discurso, ou o texto, ou mesmo a linguagem e, sim,
ocupar-se primeiramente de uma observação na condição de existência na ordem do
simbólico. Em conseqüência disso tem-se a importância de procedimentos capazes de
explicitar o que mais tarde o próprio autor nomeará de ‘falha’.
Mais uma vez Pêcheux coloca em cheque a questão do ‘logicamente
estabilizado’, ao afirmar que há uma ‘divisão discursiva’ que atravessa dois espaços: “o
da manipulação de significações” (o que caracteriza o ‘logicamente estabilizado22’); e o
espaço de “transformações de sentido”, aquilo que escapa, que desestabiliza, que permite
o deslizamento de sentido, o que torna possível o gesto de leitura.
No entanto, Pêcheux ainda nos aponta a dificuldade que há em
determinarmos essa “zona intermediária de processos discursivos”, pois o acontecimento
discursivo não se dá de forma regular, o lugar do acontecimento não é totalmente
definido. O acontecimento discursivo acontece no interior das ‘construções discursivas’
que são constantemente afetadas e atravessadas por diferentes processos.
O sentido sempre pode ser outro porque pode ser construído sempre de um
lugar diferente, o ‘lugar da interpretação’ é instável. E é nesse lugar de entremeio que a
AD trabalha. Neste espaço, o outro sempre é possível. Neste terreno, segundo Pêcheux, é
22 No logicamente estabilizado não haveria construção de sentido, apenas reprodução de sentido. Ibid 52
40
que há ou a transferência ou a identificação pelas relações que se abrem as possibilidades
de interpretação. Mas isso, ressaltamos, ocorre no interior de uma FD.
É necessário abrirmos aqui um parêntese para discutirmos um outro conceito
que é pertinente a esses procedimentos discursivos que estamos discutindo até então. O
conceito de “modalidades das tomadas de posição”. Essas modalidades se dão no
interior desse lugar de interpretação afetados tanto pelo interdiscurso como pelo
intradiscurso23. O que marca, um desdobramento do sujeito.
A primeira modalidade a que Pêcheux se refere remete ao que designou de superposição entre o sujeito do discurso e o sujeito universal, ou seja, tal superposição revela uma identificação plena do sujeito do discurso com a forma-sujeito da FD que afeta o sujeito, a qual marca a reduplicação da identificação e, por conseguinte, o retorno ao mesmo, “de modo que a ‘tomada de posição’ do sujeito realiza seu assujeitamento sob a forma do ‘livre consentimento’: essa superposição caracteriza o discurso do ‘bom sujeito’. A segunda modalidade caracteriza o mau sujeito, discurso em que o sujeito do discurso, através de uma tomada de posição se contrapõe ao sujeito universal, vale dizer, à forma-sujeito. Essa segunda modalidade, ao contrário da primeira, consiste em“uma separação (distanciamento, dúvida, questionamento, contestação, revolta...)” INDURSKY, 2000, p. 72)
Enfatizamos que essas ‘modalidades de tomadas de posição’ são possíveis
porque o lugar e o momento de interpretação são constituídos a partir de relações entre o
espaço social, a memória histórica e ideologia. Por isso, um discurso é uma constante
desestruturação e reestruturação.
Como dissemos anteriormente, a noção de FD está ligada a um conceito tal
como o de “máquina de assujeitamento” e, por sua vez, dotada de uma estrutura que parte
23 Interdiscurso enquanto pré-construído e Intradicurso enquanto fio condutor, um efeito do interdiscurso
sobre si mesmo. IN: Pêcheux, 1997, p.167
41
de um sistema de relações. E, ainda, que esse sistema advém de processos semióticos24, é
possível esta concepção de que o discurso dispõe de uma estrutura.
Por outro lado, os momentos de ‘tomada de posição’, o gesto de interpretação
o surgimento do ‘mau’ ou do ‘bom’ sujeito estabelece o Acontecimento.
Tais reflexões permitem-nos dizer que a AD percebe o discurso enquanto
estrutura e acontecimento. Como diria Michel Pêcheux “uma questão de ética e política:
uma questão de responsabilidade.”25
24 “a idéia de uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna”
(Pêcheux, 1997, p. 56) 25 1997, p. 57
42
3 A INCOMPLETUDE
No esforço de verificarmos a existência de um espaço de interpretação,
principalmente no que diz respeito ao não verbal, partiremos de uma afirmação de
Orlandi, “Se observamos na perspectiva discursiva, o texto é um bólido de sentidos. Ele
“parte”em inúmeras direções, em múltiplos planos significantes. Diferentes versões de
um texto, diferentes formulações constituem novos produtos significativos” (in:
Interpretação, 1998: p. 14).
A expressão utilizada pela autora “bólido”, ao referir-se aos sentidos do texto,
remete-nos ao conceito de espaço, onde a incompletude é a principal referência. Pois
bem, se um texto verbal, que tem seus sentidos ancorados em palavras, constitui-se, nas
palavras de Orlandi, um meteorito com um volume acima do comum. Tanto maior é o
volume de um texto gestual que tem sua ancoragem em imagens. Tratamos aqui de
pensar em processos de produção de sentidos diferentes. E, considerando que essa
produção é uma questão que não se fecha, e que ela conta com a incompletude para fazer
significar. Propomo-nos a refletir sobre esse espaço.
É, portanto, estreita a relação de incompletude e de interpretação. Uma
relação quase de dependência. A incompletude se constitui na abertura necessária para a
interpretação que circula no espaço de eterno movimento de sentidos. Um universo
habitado por um número sem fim de ‘bólidos’ sempre em movimento.
Percebemos, no decorrer de nossas leituras, que a linguagem conta com esse
espaço de incompletude para se fazer significar. Mas por ser sua natureza, a estrutura e o
43
acontecimento vem habitar esse espaço aberto num esforço incessante de moldá-lo,
fechá-lo, domesticá-lo. Para que, na amplidão de todos os sentidos possíveis, o sentido de
determinado dizer não seja qualquer um. “O lugar mesmo do movimento é o lugar do
trabalho da estabilização e vice-versa” (Orlandi, 1998, p. 13).
Ao habitarmos esse “sítio de sentidos”, é preciso que consideremos
não há um sistema de signos só, mas muitos. Porque há muitos modos de significar e a matéria significante tem plasticidade, é plural. Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação diversos: pintura, imagem, música, escultura, escrita, etc. A matéria significante e/ou sua percepção –afeta o gesto de interpretação, dá forma a ele. (Orlandi, 1998, pág.12)
Esse espaço multidimensional do simbólico habitado por discursos faz com
que estes sejam forjados em múltiplos planos significantes, que sejam formulados de
diferentes maneiras, mas o que define o que o faz significar de um modo e não de outro é
sua materialidade, ou melhor, como já dissemos, é a materialidade de determinada prática
discursiva26.
Então, se dissermos que diferentes materialidades produzem diferentes gestos
de interpretação, implicando assim, em diferentes tomadas de posição de sujeito (a
inscrição do ‘bom’ ou do ‘mau’ sujeito). Estamos, novamente abordando as noções de
formações discursivas, memória e, é claro, a relação entre materialidade e exterioridade.
O espaço de interpretação no qual o autor se insere com seu gesto – e que o constitui enquanto autor – deriva da sua relação com a memória (saber discursivo), interdiscurso. O texto é essa peça significativa que,. Por um gesto de autoria, resulta da relação do “sítio significante” com a exterioridade. Nesse sentido o autor é carregado pela força da materialidade do texto, materialidade essa que é a função do gesto de interpretação (do trabalho de autoria) na sua relação determinada (historicamente) com a exterioridade pelo interdiscurso. O sujeito, podemos dizer, é interpretado pela história. O autor é aqui uma posição
26 Remetemos a noção de condições de produção.
44
de filiação de sentidos, nas relações de sentido que vão se constituindo historicamente e que vão formando rede que constituem possibilidade de interpretação. Sem esquecer que filiar-se é também produzir deslocamentos. (ORLANDI, 1998, p. 15).
Então, assumirmos a posição do ‘bom’ ou do ‘mau’ sujeito, e estaríamos de
qualquer forma filiando-nos, produzindo um gesto de interpretação, que jamais será
isento de uma posição histórica, social ou ideológica.
3.1 A HETEROGENEIDADE
As considerações feitas e até aqui apresentadas nos levam à concepção de
deslocamentos no interior de uma mesma formação discursiva e, ao mesmo tempo, à
percepção de um sujeito não homogêneo no discurso. Percebemos a heterogeneidade do
sujeito. E, ao recorrermos ao conceito de heterogeneidade no sentido mais amplo do
termo, perceberemos de início que estamos tratando do heterogêneo, do diferente, do que
possui múltiplas manifestações.
Contamos, para tratar dessa condição do discurso, com a noção de
heterogeneidade, elaborado por Jaqueline Authier em Héterogeneités Énounciatives.
Segundo a autora, essas heterogeneidades enunciativas podem ser de dois tipos: a
constitutiva e a mostrada.
A heterogeneidade constitutiva está intrinsecamente ligada ao esquecimento
número 127 de Pêcheux, que fala de um sujeito que se coloca na origem do dizer, e que
está no nível do inconsciente, pois o sujeito “esquece/apaga” aquilo que determina o seu
dizer, ou melhor, o sentido de base do seu dizer, no entanto, essa é uma condição
27 Noção de esquecimento já trabalhadas anteriormente no capítulo 1 p. 32
45
necessária para a constituição de qualquer sujeito. O sujeito “esquece” o Outro que diz
antes, sempre, e cujo dizer ele retorna. Por isso seu dizer é constitutivamente
heterogêneo.
O segundo tipo de heterogeneidade, a do tipo mostrada, podemos dizer que é
uma espécie de negociação do sujeito com esse “Outro”, ou seja, uma negociação do
sujeito com a heterogeneidade do tipo constitutiva28. O sujeito deixa visível um “outro”
circunscrito em determinado enunciado e com isso produz o efeito que o ‘resto’ é seu.
A heterogeneidade do tipo mostrada pode, ainda, dividir-se em dois subtipos:
a mostrada e marcada e a mostrada e não marcada. A primeira se faz presente, por assim
dizer, em forma dos implícitos, ou melhor, ela mostra outra voz do dizer, entretanto,
garante sua autoria. Já a heterogeneidade do tipo mostrada e marcada, traz no seu dizer as
marcas da outra voz que a atravessa; se entrega à evidente existência dessa outra voz.
Segundo Gallo (2000), o que Authier propõe em suas análises são dois tipos
de enunciados: “aqueles que mostram a heterogeneidade com marcas explícitas, e aqueles
cujas marcas não são mostradas” (p.64).
No entanto, percebemos que ao analisar o nível enunciativo estamos, por
assim dizer, tendo acesso apenas à ponta do iceberg. É preciso considerar que todo o
enunciado é denegação do interdiscurso. Logo, ao pensarmos em uma análise discursiva,
buscamos nas marcas enunciativas a abertura necessária para acessar as questões
discursivas, ou seja, mergulhar em busca do restante do iceberg. A AD sempre vai em
busca do que o enunciado denega. Eis uma marca de diferença entre as regras do
28 in Gallo, Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 1, n2, p. 61-70, jan./jun. 2000.
46
enunciado e as regras do discurso. O primeiro ‘oculta o diferente’; no segundo, lida-se
com a opacidade.
Mesmo do ponto de vista enunciativo, outros autores também trazem a
discussão as vozes presentes em um determinado dizer. Como por exemplo Bakhtin, que
aponta a enunciação como “produto da interação de dois indivíduos socialmente
organizados”, ou seja, um dizer, seja ele qual for, sempre conta com outras vozes para
constituir-se. O autor ainda aborda o atravessamento das vozes, a questão polifônica,
primeiro na literatura depois no contexto genérico em termos estéticos e ideológicos.
A partir de bases como essas, Jaqueline Authier propõe a noção de
heterogeneidade constitutiva e mostrada, que citamos anteriormente e, como vimos, nem
sempre, ou na maioria das vezes, não é um processo consciente. Não é uma coincidência,
e sim, uma forma de filiar-se à “falta” que faz parte constitutiva do sujeito, é parte
fundante de todo o dizer, como nos mostra a autora
Relativamente a estas não-coincidências fundamentais às quais se produz o dizer – a) não-coincidência interlocutiva entre dois sujeitos não-simetrizáveis; b) não-coincidência do discurso consigo mesmo, constitutivamente afetado pelo jogo em si mesmo e de outros discursos; c) não-coincidência das palavras consigo mesmas, constantemente afetadas de outros sentidos, de outras palavras pela polissemia, pela homonímia etc...; e, enfim, a que nos ocupa aqui, d) a não-coincidência entre as palavras e as coisas – os “acidentes” que constituem, no desenvolvimento contínuo do fio do discurso, as formas de desdobramento opacificante da enunciação de um elemento (...) (1994, p.255)
O que a autora nos traz é que não é coincidência a presença dessas outras
vozes no dizer, mas sim, processo de construção de sentidos, que conta com sentidos
outros para enunciar, que, como dizia Bakhtin, conta com a polissemia, no mínimo, com
outro sujeito para enunciar. Não o mesmo, mas, o diferente que o constitui.
47
Essa interação de vozes é apontada por Bakhtin em seu livro “Marxismo e
filosofia da linguagem” (1992) como fundamental na noção de língua. Neste texto, o
autor crítica profundamente as teorias da lingüística contemporânea (o objetivismo
abstrato e o subjetivismo individualista), abrindo novamente a discussão a respeito da
polifonia.
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas face a face, mas toda a comunicação verbal, de qualquer tipo que seja. ( 1992, pág.123)
Nesse ponto, retomamos a discussão do início deste capítulo, quando
falávamos de incompletude. Em Authier, apreendemos que o “dizer diz a falta” é nesse
espaço de incompletude que buscamos a palavra e, muitas vezes, essa nomeação está em
outro dizer, ou seja, estamos em negociação com o esquecimento
os lugares de afloramento no discurso da não coincidência entre as palavras e as coisas, quando o sentimento desta impõe ao fio contínuo do discurso o acidente do implante metaenunciativo, que desenha no discurso uma “geografia de seus pontos sensíveis”, pontos de “nomeação difícil” próprios a um discurso, onde se encontram ressaltados tabus, seus impasses, seus pontos cegos ou seus pontos de exigência, frustrados, da verdade da nomeação – em termos de modo de representação da falta do dizer, isto é, de tipos de formas pelas quais, na variedade que evocamos acima, o discurso reflete a falta que ele encontra em si mesmo -, aparecem diferentes, particulares, características dos discursos que elas acompanham com seu reflexo, as imagens que estes produzem de sua falta do dizer. (1994, p. 269)
Nos constituímos, enquanto sujeitos, na e pela linguagem, então nesse
processo, podemos dizer que nos constituímos pela incessante busca de preencher a falta.
Mas, uma vez sujeitos, não podemos dizer ou preencher a falta apenas por uma única voz
ou pela própria voz, porque ela não é única nem tão pouco original, uma vez que nasce da
48
falta, uma vez que nasce de um processo de negociação com o outro. Uma vez que o que
nos constitui é a heterogeneidade e a contradição.
Arriscaríamos dizer que o sentido só faz sentido pela sua pluralidade como
apontou Authier em “As palavras incertas”, o que marca o posicionamento do sujeito
sempre no interdiscurso
trata-se de um outro jogo, também constitutivo do sentido das palavras aqui e agora no discurso: o jogo descrito por Bakhtin como dialogismo fundamental de todo discurso, conseqüência do fato de ele elaborar-se no já-dito dos outros discursos e, especificamente, do já-dito que, “sedimentado” em cada palavra, faz dela um lugar “compartilhado” onde se confrontam discursos diferentes, portadores de sentidos diferentes para essa palavra. O apelo explícito de um certo exterior discursivo, de apoio, para ancorar-se nele o sentido de X, apresenta-se como um movimento de defesa contra um exterior discursivo, vivido como capaz de, a partir do campo interdiscursivo de forças, impor-se, isto é, de forçar em X as portas do discurso para impor ali seu sentido (...) (1998, p.41)
Então, podemos afirmar que um sentido se constrói sobre outro a partir e
contando com outros sentidos possíveis, contando com a incompletude. E, que um
discurso se faz sobre outros e constituído por outro. Em decorrência disso, nos é muito
importante a noção de heterogeneidade (constitutiva, mostrada e marcada). Será possível
perceber nosso constante retorno a essas noções mais adiante nas análises e, inclua-se
nesse retorno, também as noções de interdiscurso.
Entendemos que a heterogeneidade pode ocorrer tanto na discursividade
verbal quanto na não-verbal, como mostraremos mais adiante nas análises dos textos
imagéticos e gestuais.
49
4 SOBRE O DISCURSO ARTÍSTICO
Para nortearmos essa discussão a respeito do conceito de Discurso Artístico e
suas características, bem como, da formação discursiva na qual se inscreve, precisamos
primeiro retomar os conceitos de discurso desenvolvidos por Orlandi e, igualmente,
recorrer às concepções teóricas que permitiram a possibilidade de caracterização do
discurso pedagógico, jornalístico ou jurídico. No entanto, não pretendemos percorrer esse
caminho teórico de forma segmentada ou linear, e sim, dialogar com tais conceitos sendo
possível, passo a passo, trazer as características em comum que o discurso artístico possui
com estes outros discursos. Nossa hipótese é que o discurso artístico possui
características que lhe são próprias, materialidades que lhe são próprias e outras, que
podem ser comuns a outros discursos (pedagógico, jornalístico, jurídico, etc).
Durante esta pesquisa, encontramos caracterizações discursivas que
sustentam nossa hipótese, tanto nas análises pertinentes ao não verbal quanto nas análises
dos enunciados artísticos. No entanto, não encontramos uma caracterização do âmbito
discursivo, específicas do discurso artístico, ou melhor, o conceito de Discurso Artístico.
E, é esse conceito que pretendemos propor ao percorrermos teoricamente os conceitos
dos demais discursos citados anteriormente.
Orlandi (1987), em seu livro “Linguagem e seu funcionamento: as formas do
discurso” propõe três tipos distintos de discursos: o lúdico, o polêmico e o autoritário.
Orlandi assim conceitua os três tipos de discursos:
50
O discurso lúdico é aquele em que seu objeto se mantém presente enquanto tal (enquanto objeto, enquanto coisa) e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o non sense). O discurso polêmico mantém a presença do seu objeto, sendo que os participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar seu referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes pelas quais se o olha e se o diz, o que resulta na polissemia controlada (o exagero é a injuria). O discurso autoritário o referente está ausente, oculta pelo dizer, não há realmente interlocutores, mas um agente exclusivo, o que resulta na polissemia contida (o exagero é a ordem no sentido em que se diz “isso é uma ordem”, em que o sujeito passa a instrumento de comando). (ORLANDI 1987 p.15)
Uma das características que precisamos considerar a respeito do DA, é
justamente a de polissemia. Em nossa percepção, quanto maior o ‘grau’29 de polissemia,
maior a legitimação enquanto DA. Arriscamos em dizer que é pelo processo discursivo
da polissemia que ocorre a inscrição de um determinado enunciado na formação
discursiva da Arte. Essa característica de polissemia é que aponta para a predominância
das formas polêmicas e lúdicas no DA. No entanto, ao nosso ver, é arriscado dizer que o
DA é lúdico, polêmico, ou polissêmico, pois há, no interior do DA, diferentes processos
de construção de sentidos e estes, por sua vez, podem constituir-se lúdicos, polêmicos ou
autoritários. Apesar de observamos uma predominância do discurso lúdico no DA, não é
apenas dele que o DA se constitui.
Já que o conceito de ludicidade permeia fundamentalmente essa discussão,
pensamos ser prudente perscrutar teoricamente, mesmo que breve, as noções acerca do
lúdico. Então coloquemos como uma abertura de parênteses, porém necessária a nossa
discussão.
29 Utilizamos a palavra ‘Grau’ como uma forma de quantificarmos a presença da polissemia no dizer.
Embora não haja possibilidade de medidas, há sim modos de perceber quantitativamente as possibilidades de abertura polissêmica de um determinado enunciado.
51
4.1 SOBRE A LUDICIDADE
Entendemos a ludicidade como sendo um dos fatores constitutivos da
subjetividade humana. Ela está presente na existência do homem desde a origem de sua
cultura e cotidianamente manifesta-se, independentemente de faixa-etária.
A manifestação lúdica não se dá apenas visando ao divertimento, mas sim,
como um fator de sobrevivência, e por que não dizermos, pelo instinto de sobrevivência.
É o prazer evocado pelo lúdico que impulsiona a imaginação e, conseqüentemente facilita
a construção de conhecimento e a resolução de problemas do cotidiano.
É inerente ao lúdico o caráter polifônico. E a polifonia por sua vez é própria
da linguagem artística. Sendo assim, institui-se no Discurso Artístico o jogo e seus
elementos (no jogo teatral: onde, o quê, quem), a multiplicidade e a multidirecionalidade
dos sentidos.
Ao percorrermos historicamente a noção de ludicidade na linguagem e a
evolução cultural do homem, podemos observar a proximidade dos elementos do jogo
com os elementos constitutivos da arte e dos rituais. Desde os tempos mais remotos, o ser
humano recorre aos mitos para explicar sua origem, seu comportamento, sua história,
enfim, sua vida e suas crenças.
São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito (...) Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que mito é um sistema de comunicação, é uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito, ou idéia: ele é um modo de significação, uma forma. (...) O mito não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, mas não substanciais. (BARTHES, 1987, p.131)
52
Desta forma emerge sua linguagem, define-se sua cultura. Por outro lado, não
é difícil perceber ou identificar o papel do jogo (da subjetividade, do lúdico) tanto no
ritual quanto na linguagem mítica.
Ora o ritual e o jogo são tão estreitamente aparentados que seria muito estranho não encontrarmos as qualidades lúdicas do ritual de alguma maneira refletidas na produção e na apreciação das obras de arte. (HUIZINGA 2000 p.187)
E por que não analisarmos as propriedades destas diferentes práticas
discursivas que se constituem, ao mesmo tempo, lúdica e artisticamente?
O jogo, enquanto fator lúdico, é mais primitivo e abrangente do que a própria
cultura, pois não depende de uma sociedade humana para instituir-se, afinal até os
animais o praticam. Pelo menos a idéia geral de jogo em nada difere se praticado por
homens ou animais, pois o jogo enquanto ação é uma necessidade, exerce uma função
significante30, ou seja, os movimentos e o conteúdo dos jogos possuem um determinado
sentido.
No entanto, quando o caráter de ludicidade é abordado discursivamente diz
respeito única e exclusivamente ao ser humano. E não apenas enquanto indivíduo, mas
sim enquanto sujeito histórico – social – ideológico. Aliás, na análise discursiva
contamos com a noção de sujeito e não de indivíduo.
A maioria das teorias e pesquisas que se encarregam de refletir a respeito da
ludicidade, muitas vezes, ocupam-se apenas dos aspectos de conceituação e importância,
ou tomam como base os aspectos quantitativos das ‘ciências experimentais’31. No que diz
respeito ao caráter estético da ludicidade e/ou jogo, esboça-se um esforço de pesquisa em
30 Huizinga – 2000 p.03 31 Huizinga – 2000 p.05
53
áreas ligadas à arte. Em nosso caso, especificamente, a pesquisa que apresentamos está
ligada à arte e à discursividade. Por este motivo, estaremos considerando o caráter
estético e polifônico da ludicidade no discurso artístico.
Orlandi (1987) enfatiza que esse caráter polifônico/polissêmico ocorre na
própria caracterização do discurso lúdico. A autora parte do pressuposto de que “o lúdico
é o que vaza, é ruptura”32. Retomando a noção de discurso lúdico de Orlandi:
O discurso lúdico é aquele em que seu objeto se mantém presente enquanto tal (enquanto objeto, enquanto coisa) e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso o que chamaríamos de polissemia aberta (o exagero é o non sense). (pág.15) (...) O discurso lúdico que, como caracterizei, é o contraponto para o autoritário e o Polêmico. (p. 94)
A polissemia33 aberta do discurso lúdico permite emergir diferentes vozes. A
construção de sentidos não se dá de forma vertical ou linear, mas abrangente. Tanto o
referente quanto os participantes do discurso não estão em posição estagnada, mas
cambiante. Ou seja, o objeto de discurso e os interlocutores desfrutam de uma posição
polissêmica e não parafrástica. A posição parafrástica reconhece apenas a reprodução, o
sentido não pode ser outro que não aquele já dado. A polissemia, por sua vez, permite
atribuição de múltiplos sentidos.
Teoricamente, e em termos bastante gerais, podemos dizer que a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes processos: o parafrástico e o polissêmico. Isto é, de um lado, há um retorno constante a um mesmo dizer sedimentado – a paráfrase – e, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento. Esta é uma manifestação da relação homem e mundo (natureza, a sociedade, o outro), manifestação da prática e do referente da linguagem. Há um conflito entre o que é garantido e o que tem que garantir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o garantindo, o sedimentado. Essa tensão básica do discurso, tensão entre o texto e o contexto histórico-social: o conflito entre o “mesmo” e o “diferente” (ORLANDI, 1978), entre a paráfrase e a polissemia. (ORLANDI, 1987 p.27)
32 Linguagem e seu funcionamento – p. 93 33 “Podemos tomar a polissemia enquanto processo que representa a tensão constante estabelecida pela
relação homem/mundo, pela intromissão da prática e do referente, enquanto tal na linguagem.” Orlandi: 1987, p. 15
54
Ao nosso ver as noções de paráfrase e polissemia, delineadas por Orlandi,
tornam-se fundamentais em nosso trabalho, pois percebemos que, assim como os
processos de paráfrase, a polissemia não é um discurso em si, mas um processo que pode
estar em qualquer discurso. Nossa hipótese é que o verbal e o não-verbal, também não
são discursos em si, mas podem igualmente ser processos da mesma dimensão, e assim,
podem estar em qualquer discurso. Exatamente como a paráfrase e a polissemia são
processos que podem permear qualquer discurso.
Estamos tentando mostrar primeiramente os modos de funcionamento desses
diferentes processos discursivos para em seguida mostrar, nas análises, como funcionam
diferentemente o processo discursivo verbal e o processo discursivo não verbal.
Se o discurso lúdico funciona predominantemente pelo processo de
polissemia, parece-nos ser essa uma característica comum ao discurso artístico. O
processo discursivo polissêmico opera no deslocamento, na ruptura, no constante
acontecimento. Essa constatação nos permite reafirmar a predominância do discurso
lúdico no DA, porque se constitui na ruptura duplamente, pois dele faz parte, tanto o
processo de polissemia quanto o processo discursivo não verbal.
A relação entre o mesmo e o diferente é uma constante na FD do DA, por isso
os conceitos de paráfrase e polissemia, e também os conceitos de reversibilidade e
intercambiabilidade34 de Orlandi, tornam-se, para nossa discussão, fundantes. O DA,
conta com esses processos de produção de sentidos para se constituir.
34 Reversibilidade= movimento entre posições/ Intercambiabilidade = substituição na mesma posição.
(Orlandi, 1998, pág.9)
55
A marca especificadora de filiação na Análise de discurso é minha proposta de considerar a relação contraditória entre paráfrase e a polissemia como eixo que estrutura o funcionamento da linguagem (E. Orlandi, 1996). Aí está a posta a relação entre o mesmo e o diferente, a produtividade e a criatividade na linguagem. Esta é uma relação contraditória porque não há um sem o outro, isto é, essa é uma diferença necessária e constitutiva. (...) Em termos de discursivos teríamos na paráfrase a reiteração do mesmo. Na polissemia, a produção da diferença. (1998, pág. 14-15)
É possível perceber na constituição do DA, tais processos. Poderíamos dizer
que há uma certa predominância do processo polissêmico, mas não podemos dizer que no
DA não exista também o processo de paráfrase.
4.2 RETORNO AO DISCURSO ARTÍSTICO: AS INTERFACES
DISCURSIVAS
É possível tecermos uma possibilidade de análise buscando as relações e
interfaces do DA e constatar que apesar da predominância do discurso lúdico em sua
constituição, o discurso artístico, contraditoriamente, também pode ser atravessado pelo
discurso autoritário, pelo discurso polêmico ou polissêmico em diferentes proporções.
Parece-nos que por ser constituído de processos discursivos ‘livres’ e abertos como o
polissêmico e o não-verbal, não há como ‘rotulá-lo’de polêmico, autoritário ou lúdico.
Ao nosso ver, o discurso artístico, por intermédio da materialidade e das práticas
discursivas que o constituem poderá apenas apontar uma predominância do lúdico, sendo
que a análise interessa-se antes pelo processo do que pelo produto.
O processo criativo, tratado enquanto processo discursivo, é carregado de
interfaces históricas, sociais e ideológicas e o artista se insere em uma determinada
formação discursiva para produzir seu dizer que tanto pode ser da ordem do verbal ou do
não verbal.
56
Essa percepção consta em inúmeras teses a respeito da arte, tanto no campo
histórico quanto estético. W. Benjamim (1934) em sua abordagem marxista da Arte,
percebendo o artista como um “trabalhador” de seu tempo, pesquisadores brasileiros que
partem de leituras como essa, especializando a hipótese para discutir a produção artística
contemporânea, como Santaella
passamos a enxergar que a historicidade da realidade objetiva impõe, ao mesmo tempo, uma historicidade dos meios de produção artística, sem o que não se torna possível inteligir o próprio movimento de transformação da arte. Com isso, Benjamim dá um passo avante nas considerações acerca das relações entre intra-estrutura econômica e produção artística, visto que a transformação dos meios artísticos está inextricavelmente ligada ao desenvolvimento das forças produtivas. Por outro lado, os modos de produção artística de que uma sociedade dispõe são determinantes das relações sociais entre produtores e consumidores, assim como interferem substancialmente na própria natureza da obra. (1995 p. 103)
Deparamos com uma percepção teórica no campo da arte e não da teoria
discursiva. No entanto percebemos algo bastante semelhante que vem da base da AD: as
relações de produção e transformação e a concepção de sujeito histórico-social-
ideológico. O que nos permite retomar nossa afirmação de que o fator determinante para
análise do DA são os processos discursivos e não o produto. São os processos que,
parafraseando Santaella, interferirão substancialmente na própria natureza do dizer
artístico.
O DA, como qualquer outro, precisa da presença do interlocutor para se
fechar (para fechar um sentido, para que não seja qualquer sentido). Mesmo sendo a
polissemia sua base constitutiva, a abertura total seria o non sense.
Qual seria então a caracterização do DA?
Por natureza, polissêmico, pela sua predominância de características inerentes
a ludicidade (como nos demais discursos, o que há é que certas características autoritárias
57
tendem a estancar a polissemia). O processo determina o produto, e este processo por sua
vez é afetado pelas condições de produção que estão imbricadas nos aspectos histórico,
sociais e ideológicos. Assim como o artista produtor de um dizer: sujeito dessas
condições de produção e Sujeito, por meio dos desdobramentos, rupturas e também pela
falha (noção de autoria).
podemos entender que a definição de sujeito aponta para duas direções: a de ser sujeito e a de assujeitar-se. No sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre – um centro de iniciativa, autor e responsável por seus atos – e um ser submetido –sujeito a uma autoridade superior, portanto desprovido de toda a liberdade, salvo a aceitar livremente a sua submissão. (ORLANDI, 1987, p. 242)
No DA, esses sujeitos intercambiam seus papéis tanto no processo de
produção do dizer quanto na leitura/interpretação da produção artística. Não há, como no
discurso religioso, por exemplo, um desnivelamento entre locutor e interlocutor: “o
locutor no plano espiritual (Deus) e o interlocutor no plano temporal (os homens)”35. Ou
como no discurso pedagógico: a voz de quem ensina (imagem do professor) para alguém
que aprende (o aluno), vias de ‘mão única’.
O dizer no DA é sempre afetado multidirecionalmente, mesmo nas obras
contemplativas, o dizer é sempre provocado e nem sempre o interlocutor está no final do
processo. Ele também pode ser o início.
A reflexão discursiva sobre o DA nos permite perceber o dizer da arte com
um olhar mais demorado, que nos leva a ultrapassar camadas, o aparente, o óbvio e
buscar, nesse dizer, a opacidade que o constitui: outros sentidos possíveis, que não estão
explícitos. Uma percepção discursiva que considera estrutura e acontecimento em uma
obra, ou seja, considera além da materialidade física que a compõe, também a
materialidade histórica que a constitui.
35 in Orlandi, 1987, pág 243.
58
Outra característica perceptível pela AD do DA é a de contar com a inscrição
do interlocutor para a produção dos seus sentidos, de forma muito peculiar. O sentido
para que possa se efetivar enquanto objeto de arte, para que possa assim significar, conta
como ponto de partida com outros dizeres, de outros discursos. Esse compartilhamento
do sentido produzido é evidenciado por um processo discursivo que é próprio do artístico
e, o que vai definir seu lugar e seu tempo, é a materialidade dessa prática discursiva que o
constitui.
Sendo assim, é possível tecermos a consideração de que o não dito no DA
constitui fortemente seu sentido, ou seja, ele conta com a presença de outros discursos
que ‘não estão ditos’, para que se efetivem como tal. O silêncio, a incompletude, o não
dito é mais aceito em um discurso artístico, justamente por este ter em sua base os dois
processos discursivos que observamos: o não-verbal e a polissemia.
Tais processos, no que diz respeito ao DA, poderão ser mais compreendidos
durante as análises discursivas que pretendemos tecer nos próximos capítulos. Pelo fato
de termos escolhido, enquanto parte do corpus, um enunciado do discurso artístico
inerente à arte contemporânea, pensamos ser necessário descrever, mesmo que
brevemente, parte de suas características.
A arte contemporânea, de uma forma geral, tem um caráter apocalíptico e
catastrófico. Possui também o desejo de levar seu fruidor a uma reflexão, o que inaugura
uma outra posição de sujeito no interior de uma mesma formação discursiva.
No DA o jogo entre polissemia e paráfrase se dá de uma forma particular, o
mesmo ocorre com os processos verbais e não verbais. As condições de produção, no DA
59
“são de liberdade”, sua materialidade é desta natureza. O processo discursivo da arte
passa fundamentalmente pelo não verbal.
Ao contar com estas características, não se deixa de considerar o fato de que
cada artista é um sujeito marcado histórica, ideológica e socialmente, que assume uma
posição no interior de uma FD.
Ao concentrarmos esforços na análise do DA, a partir de um recorte do
artístico contemporâneo e das formações discursivas que o constitui estamos, na verdade,
operando exatamente na tensão - apontada por Orlandi – entre o mesmo e o diferente.
Segundo a autora, a condição de existência da linguagem é a incompletude36.
Outro aspecto a se considerar em relação à incompletude é que, uma vez que se constitui na interação, o sentido do texto não se aloja em cada um dos interlocutores separadamente, mas está no espaço discursivo criado pelo (nos) dois interlocutores. Como a linguagem tem uma relação necessária com a exterioridade, a idéia de unidade (de todo) não implica a de completude: a linguagem não é uma coisa só e nem é completa. (ORLANDI, 2001, p. 22)
Então, essa multiplicidade de sentidos possíveis que povoa o discurso
artístico, como no caso da instalação de Lambrecht37, por exemplo, é que garante a
identidade da sua obra. O DA, do qual faz parte a obra de arte contemporânea, sobrepõe-
se ao caráter predominantemente informativo dos demais discursos, e assume um caráter
estético-reflexivo porque provoca e insita um gesto particular de leitura. Esse gesto de
leitura, nada tem de passivo ou contemplativo. Ele provoca deslocamentos, levando o seu
36 Em seu outro livro “Discurso e Leitura” de 2001, p 22. 37 Enunciado do DA que escolhemos enquanto parte do corpus de análise neste trabalho.
60
leitor a ser protagonista do próprio gesto, não um mero espectador, mas um ‘sujeito-
leitor’38 autor.
Por isso, quando dissemos anteriormente que o DA, como qualquer outro,
conta com a inscrição do interlocutor na formação discursiva dominante, para fazer
sentido estamos, na verdade, salientando a aceitabilidade da incompletude como
qualidade sine qua non do processo discursivo que o constitui. Suas próprias condições
de produção estão calcadas neste princípio. Parafraseando Orlandi, é a ideologia que
torna possível a relação palavra/coisa. No caso de nossas análises, imagem/gesto/coisa.
Muitas abordagens sobre a teoria da arte chegaram bem próximas da
percepção discursiva, ou melhor, de tratar a arte enquanto discurso. Walter Benjamim, a
partir de suas leituras marxistas, tratou de condições de produção, relações de reprodução
e transformação. Mesmo teóricos da semiótica chegam a admitir essa relação discursiva
da arte. Santaella (1999) em seu texto ‘Arte e Cultura: os equívocos do elitismo’ nos traz
essa visão “bejamimarxista”. Percebemos nesta leitura a possibilidade de identificação
da materialidade que constitui o DA. “ a arte como uma forma de produção social, isto é,
como uma atividade social que determina de perto a natureza da própria arte...”39
As contribuições que nos trazem essas caracterizações do DA afetam tanto a
teoria e crítica da Arte, quanto sua análise discursiva. Ao nos filiarmos na AD pensando
os processos de produção de sentido na Arte (nessa posição de entremeio), nos aguçou os
questionamentos tanto de artistas quanto de analistas de discurso. Pensamos que as
demais características do DA fiquem melhor explicitadas nas análises que seguem.
38 Orlandi 2001,p.52. 39 Santaella, 1995, p. 95.
61
4.3 AD E O DA: A INTERPRETAÇÃO COMO GESTO
PROVOCADO
Orlandi em sua obra “Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho
simbólico”, aponta para a questão da incompletude da linguagem. Na perspectiva
discursiva, nada é fixo enquanto sentido. A questão do sentido está imbricada nas
condições de produção, e estas por sua vez ligadas aos fatores histórico, sociais e
ideológicos do sujeito. O dizer também não tem um começo verificável: o sentido está
sempre em curso, em dis-curso (ORLANDI, 1998, p.11).
Percebemos, durante a observação do corpus de análise, que nos processos de
criação, assim como no discurso, o sentido é permeado pelo inconsciente e pelo contexto
histórico-social –ideológico. Tem em seu bojo a presença fundamental do sujeito que,
segundo a concepção psicanalítica de sujeito, é constituído pelo real, pelo imaginário e
pelo simbólico40.
O objeto de arte, uma vez criado (dito) produzirá sentidos quase imprevisíveis
quando exposto à interpretação (neste momento a obra já não pertence ao artista, como
diz a própria Karin Lambrecht). O sentido é uma questão aberta. O que importa é o
processo de produção e não o produto.
Retomemos agora, o exemplo da produção artística de Karin Lambrecht
... diferente de outras obras, não se pode, aqui, desvincular o resultado do trabalho acontecimento que o gerou. O processo é conseqüência de uma ação compartilhada entre a artista, o carneador, o carneiro e as pessoas que se envolveram em sua realização. (...) O resultado da ação revela, antes de tudo, um momento compartilhado de ansiedade e expectativa frente à produção de um trabalho de arte que, de um modo geral, trata do momento de aproximação
40 Conforme já apontamos na p. 31.
62
da morte e do tempo de duração da vida. Os objetos resultantes do trabalho não representam formas inertes, mas sim resíduos de um acontecimento específico, pedaços de realidade, retirados de um momento determinado (...) o importante não é apenas justificar o movimento, refletir ou analisar a ação, como método criativo ou produto artístico, mas viver seu trabalho como um processo de comunicação estética com o mundo. (SEVERO, 2001 p.16-17)
A arte é uma prática de linguagem, um discurso (estrutura e acontecimento).
Há uma relação de mediação – homem-mundo.
Tentaremos, no esquema a seguir elucidar nosso argumento:
LINGUAGEM = Sistema de Relações há sentidos em si
Todos os sentidos são possíveis
A materialidade impede que seja qualquer um
A incompletude
Se faz necessário
Intervém decisivamente nos sistemas de relações do sujeito
Citamos, agora, Orlandi a respeito do gesto de interpretação:
O gesto de interpretação, fora da história, não é formulação (é formula), não é re-significação (é arranjo). Isto não quer dizer que não haja produção de autoria. Há. Mas de outra qualidade, de outra natureza. Porque a natureza da materialidade da memória é outra. E, como sabemos, em discurso, distintas materialidades sempre determinam diferenças nos processos de significação. (1998 p.17)
Ou seja, em discursos diferentes temos materialidades diferentes e, portanto,
diferentes processos de significação. Para Pêcheux a interpretação é um ato simbólico. O
ato de interpretar sempre se dá de algum lugar da história ou de algum lugar da sociedade
ou da ideologia. Por isso, consideramos a linguagem um sistema de relações.
GESTO
63
Foucault já dizia que “as verdades são relacionais” e a AD conta com esse
argumento e vai adiante, especializando-o a partir do pensamento de Pêcheux.
Não se trata de pretender aqui que todo o discurso seria como um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe, mas sublinhar que, só por sua existência, todo o discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações em um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento de seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio-histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade”no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um “erro de pessoa”, isto é, sobre o outro, objeto da identificação. (...) se possa detectar os momentos de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados. (1997, p. 56-57)
A linguagem não é somente comunicação, se assim fosse bastaria que
falássemos a mesma língua para nos comunicarmos. O que ocorre é que, como diz a
sabedoria popular, “todo o gesto ou palavra tem no mínimo duas maneiras de ser
interpretado...”. Não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia.
Esse processo nos parece pertinente quando nos inscrevemos na formação
discursiva da arte, mais especificamente na prática discursiva teatral, no que tange ao
processo de pesquisa do ator:
Quando se fala do nível pré-expressivo do ator freqüentemente surge uma objeção: é impossível que um ator atue em frente de um espectador sem que sejam produzidos significados. É verdade. É materialmente impossível impedir que o espectador atribua significados e imagine histórias vendo as ações de um ator, ainda quando essas ações não querem representar coisa nenhuma. Tudo isso é válido do ponto de vista do espectador, ou seja, quando se observam os resultados. Mas, atenção, a ação não possui um significado próprio por si mesma. O significado é sempre fruto de uma convenção, de uma relação. O próprio fato de que exista uma relação ator-espectador implica que significados sejam produzidos ali. A questão é se quer ou não programar quais significados precisos devem germinar na cabeça do espectador. Tomemos agora o ponto de vista do processo criativo do
64
ator. É evidente que o ator pode trabalhar as suas ações (dicção, tonalidade, porte, volume, distância, intensidade) sem pensar no que gostaria de transmitir ao espectador, uma vez que esteja terminado o processo. Digamos agora que trabalha em nível pré-expressivo. Tanto é verdade que existem até momentos ou situações teatrais baseados em um acordo tácito entre ator e espectador no qual se aceita uma ausência de consenso nos significados que devem ser atribuídos às ações. Basta pensar assim na chamada dança pura (por exemplo nritta) ou abstrata.
Já que a condição para o germinar dos significados é a existência de uma relação ator-espectador, antes de representar isto ou aquilo, o ator deve ser enquanto ator. (Próchno 1999 p.207)
Então, o gesto de leitura, como um lugar de entremeio, é o que aproxima o
processo fruidor e criador da arte com esses elementos discursivos. O objeto de arte se
oferece ao leitor. Um gesto de leitura provocado!
DETALHE - Mãos com Vísceras, MARGS, 2001 Pág. 15
65
5 SOBRE O NÃO-VERBAL
A possibilidade de analisar processos discursivos não-verbais vem aos poucos
se delineando no panorama das pesquisas brasileiras, propondo questões inerentes à
imagem, como por exemplo, a percepção visual das cidades, de enunciados
iconográficos, de materiais publicitários, que já contam com publicações da Análise de
Discurso no Brasil.
O discurso era inicialmente tratado quase que exclusivamente através de
textos verbais. Atualmente linhas de pesquisas em AD, principalmente na América
Latina, dão abertura para estudos da linguagem não-verbal, pois reconhecem essa
necessidade, nos permitindo entendermos o texto também como imagem ou gesto.
Ao filiarmo-nos na AD, com a intenção de pensar sobre a questão do não-
verbal, uma constatação primeira se faz presente: há, pelo menos, duas instâncias para se
pensar o não-verbal do ponto de vista discursivo. A primeira é pensar o não-verbal
enquanto produto, o que não pressupõe necessariamente, uma passagem pelo verbal.
A segunda instância, ao se pensar o não-verbal, é enquanto processo
discursivo. Processo este que se fundamenta no não verbal. Não que este processo não
reconheça o verbal, no entanto, opera na ordem do não-verbal e se utiliza dos modos de
produção de produtos, também não-verbais. Porém não despreza a passagem pelo verbal,
ou seja, o resultado de um processo discursivo não-verbal poderá ser tanto verbal quanto
não-verbal. Suas condições de produção é que estão na ordem do não-verbal.
66
Quando falamos de verbal e não-verbal, não estamos falando de categoria de
discursos. Dizer que é verbal ou não-verbal não significa dizer composto ou não de
palavras ou de outros elementos (imagem/gesto/som). A diferença que percebemos entre
o verbal e o não-verbal está na natureza do processo, nas condições de produção.
A relação aqui é de similaridade ao processo de paráfrase e polissemia
estudado por Orlandi. Estamos tratando de relações contraditórias, no entanto, essa
contradição, entre os processos, é constitutiva. O verbal pressupõe o não-verbal e vice e
versa. Mas essa relação se estabelece enquanto processo discursivo.
Um dos textos de fundamental importância para esta questão (talvez um dos
primeiros a pensar exclusivamente sobre esse processo não verbal) é “As formas do
silêncio” de Orlandi (1997). Parece-nos que as preocupações teóricas, até aqui, voltam-se
para o seguinte ponto: o que é discurso verbal e o que é discurso não-verbal, ou o que no
discurso é da ordem do verbal e o que é da ordem do não-verbal.
Ao tratar sobre a questão do Silêncio, Orlandi amplia o foco teórico, a
questão do não-verbal sofre um deslocamento, se especializa. Ao pontuar teoricamente a
questão do silêncio, a autora, faz um recorte da questão verbal/não-verbal, o que nos
permite pensar, mais focadamente, sobre o processo por um viés dele mesmo, na medida
em que a autora considera que o silêncio pode ter muitas formas, inclusive, em nossa
percepção, a verbal e a não-verbal.
Mesmo reconhecendo que, ao falarmos de silêncio e não-verbal, estamos
tratando de objetos diferentes, o processo de discussão teórica tanto de um quanto de
outro têm pontos de convergência. Orlandi nos mostra a relação linguagem/silêncio.
67
Fazer valer a diferença entre linguagem e silêncio é fazer valer como constitutiva a própria significação a materialidade significante. A fala divide o silêncio, organiza-o. O silêncio é disperso e a fala é voltada para a unicidade e as entidades discretas. O modo de significar a linguagem já é a domesticação do sentido selvagem do silêncio com seus segmentos visíveis e funcionais, que tornam a significação calculável. O silêncio, ao contrário, se apresenta como absoluto, contínuo, disperso. A linguagem supõe pois a transformação da matéria significante por excelência (o silêncio) em significados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria e formas. A significação é um movimento, assim como a identidade é um movimento. Errância do sujeito, errância dos sentidos. Indo mais longe, a hipótese de que partimos é a de que o silêncio é a própria condição de produção de sentidos. Evidentemente falamos do silêncio como matéria significante, como história (e não em sua qualidade física). (ORLANDI, 1995, p. 38)
Ao colocar o silêncio enquanto matéria significante, ‘contrária’ à linguagem,
estamos, na verdade, estabelecendo diferenciais entre essas matérias significantes.
Novamente, então, vem à tona novamente, a noção de incompletude que se caracteriza
como o próprio espaço de circulação do silêncio. Um espaço ainda não invadido pela
palavra.
Em nossa percepção são matérias significantes diferentes, no entanto podem
ser complementares, pois uma precisa da outra para se fazer significar. Mesmo contanto
com sua falta (ou do silêncio, ou da linguagem) uma forma constitui a outra, apenas
passam por processos diferentes.
Orlandi nos mostra as diferentes qualidades do silêncio, ou melhor, ressalta a
importância de distinguirmos o silêncio em diferentes instâncias:
a) o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar e b) a política do silêncio que se subdivide em b1) silêncio constitutivo, o que nos indica que para dizer é preciso não-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras” palavras) e b2) o silêncio local, que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em um certa conjuntura). (ORLANDI, 1997, p.24)
68
Em conseqüência disso, estamos tratando o verbal e o não verbal enquanto
processos discursivos diferentes, mas que são, ambos, constitutivos da nossa condição de
sujeitos da linguagem, processos que fazem parte da nossa “condenação” em significar
eternamente.
Trata-se de estabelecermos dispositivos de análise para os processos não
verbais, que busquem a articulação entre estrutura e acontecimento. Para tanto, buscar a
equivalência da valoração icônica (semiótica) e da valoração histórica, ideológica e
social, o que nos leva ao acontecimento, articulação do real, do simbólico e do imaginário
no processo discursivo não verbal. Pretendemos romper com as formas de análise
(principalmente no que diz respeito à arte), que colocam uma referência prévia de que o
significado tem origem e referência em si mesmo.
Em AD falamos de real da história, real exterior e real da língua. Este último,
toma a língua tanto oral quanto da escrita, será que ao analisarmos discursivamente uma
imagem, não podemos chegar a observação de que talvez exista um real da imagem?
Ao interpretar a imagem pelo olhar – e não através da palavra – apreende-se a sua matéria significante em diferentes contextos. O resultado dessa interpretação é a produção de outras imagens (outros textos), produzidas pelo espectador a partir do caráter de incompletude inerente, eu diria, à linguagem verbal e não verbal. O caráter de incompletude da imagem aponta, dentre outras coisas, a sua recursividade. Quando se recorta pelo olhar um dos elementos constitutivos de uma imagem produz-se outra imagem, outro texto, sucessivamente e de forma plenamente infinita. (SOUZA, 2001, p. 73)
Assim, estamos tratando de um dispositivo de análise permeável ao processo
discursivo não verbal. Não apenas considerando sua qualidade icônica (de forma
segmentaria) mas, igualmente suas qualidades e inscrições históricas, sociais e
ideológicas. E, não apenas da imagem (texto de leitura), mas do sujeito produtor desta
69
imagem, sujeito-autor. Um dispositivo de análise que vai ao encontro do que é próprio do
discurso artístico, intervir histórica – social e ideologicamente em seu tempo. O Artista,
um sujeito- autor, que não apenas reproduz as “verdades” da sociedade na qual está
inserido, mas as polemiza, discute e reinventa.
Basta realizarmos um breve passeio pela história da arte e, mesmo num olhar
sem grandes intentos de análise, é possível perceber o dito e o não dito da pintura; o
atravessamento de dizeres outros em um gesto cênico (que também não vem sozinho); a
impressão do caráter de heterogeneidades em imagens, gestos e sons. Até mesmo o
silenciamento, o apagamento da imagem, do gesto ou do som em um determinado
enunciado, que ocorrem de forma diferente em cada prática discursiva, já que se tratam
de diferentes materialidades.
Para exemplificarmos esse processo retomamos o conceito de policromia de
Souza
O textos de imagem também tem na sua constituição marcas de heterogeneidades, como implícito, o silêncio, a ironia. Marcas porém, que não podem ser pensadas como vozes, porque analisar o não verbal pelas categorias de análise verbal implicaria na redução de um ao outro. Nesse caso, por associação ao conceito de polifonia, formulamos o conceito de policromia, buscando analisar a imagem com mais pertinência. O conceito de policromia recobre o jogo de imagens e cores, no caso, elementos constitutivos da linguagem não verbal, permitindo assim, caminhar na análise do discurso do não verbal. O jogo de formas, cores, imagens, luz, sombra, etc nos remete, à semelhança das vozes no texto, a diferentes perspectivas instauradas pelo eu na e pela imagem, o que favorece não só a percepção dos movimentos no plano sinestésico, bem como a apreensão de diferentes sentidos no plano discursivo-ideológico, quanto se tem a possibilidade de se interpretar uma imagem através da outra. (2001, p. 80)
Ao partir do conceito de policromia, enquanto rede de elementos visuais, a
autora dá conta do processo de análise do não verbal no âmbito da imagem, ‘a leitura da
70
imagem pela imagem’. Mas o que dizer quando os processos discursivos ocorrem de
forma paralela (o verbal e o não-verbal)? E quando em um gesto de leitura o sujeito
recorre a mais de um processo discursivo?
Quando nos propomos a pensar o não verbal, enquanto processo discursivo,
nos parece pertinente reforçar que pretendemos observar esse processo no discurso
artístico. Falamos em processo do não verbal porque pretendemos, enquanto formulação
principal desta pesquisa, marcar o não verbal enquanto processo. Ou seja, percebemos,
durante a observação e análise dos enunciados imagéticos e gestuais, que a constituição
do não verbal é muito mais o processo do que o produto.
Como já nos apontava Pêcheux : “A questão da imagem encontra assim a
análise de discurso por outro viés: não mais a imagem legível na transparência, por que
um discurso a atravessa e a constitui, mas a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da
qual a memória “perdeu” o trajeto de leitura”. (1999, pág. 55)
Continuemos pensando esse processo no campo da arte. As condições de
produção “são de liberdade”.
Essas condições, em nossa percepção, podem conferir à arte o status de um
discurso específico, caracterizado principalmente por ser constituído pelo processo
discursivo não-verbal.
Outro fator importante ao considerar a abordagem discursiva da arte é o fato
de que cada artista é um sujeito marcado histórica, ideológica e socialmente, e assume
uma posição no interior de uma FD, no caso a arte. As diferenças individuais de cada
artista são contempladas, na maioria das teorias da arte. No entanto elas constituem, do
71
ponto de vista discursivo, diferenças na posição de sujeito no interior de uma mesma
formação discursiva. Uma FD não é homogênea, ela é constituída de tensões
multidirecionais (tem desde uma tensão para a direita até uma tensão para a esquerda,
desde uma tensão do norte, até uma tensão para o sul e assim sucessivamente). Nesse
espaço, o sujeito pode se constituir em qualquer lugar, por isso existem as diferenças
individuais que são compreendidas ainda dentro da mesma formação discursiva.
Por exemplo, na forma sujeito do pedagógico, identificada na figura do
professor, há várias posições possíveis, desde o mais autoritário até o mais liberal (de
norte a sul da direita para a esquerda...). No entanto, esse sujeito será sempre reconhecido
professor, independente da posição tomada; desde que essa posição reproduza o que
garante o reconhecimento de professor. Nessa reprodução, cada posição tomada estará
manifestando uma diferença (sempre) que é contemplada teoricamente com o conceito de
Função Autor41. Essa noção que nos ajuda a entender que nenhum sujeito toma posição
igual a um outro sujeito, mas muitos sujeitos tomam posições nas mesmas formações
discursivas. Percebemos que se não houvesse diferença, todos tomariam posições com a
mesma grafia, com o mesmo gesto, com o mesmo olhar, mas cada um faz isso de uma
forma diferente.
Esta diferença é tratada amplamente nas teorias da arte, porém considerando-
se apenas a estrutura da obra. Aqui estamos nos propondo a operar na dimensão
discursiva, partindo da noção de sujeito e não de indivíduo. A diferença de traços, de
grafias, de pinceladas (que são do nível individual e semântico) são por nós percebidas
enquanto um ponto minúsculo no interior de uma mesma FD.
41 Conceito este trabalhado no Brasil por Eni Orlandi e Eduardo Guimarães.
72
O que pretendemos pensar enquanto processo discursivo do não verbal é o
atravessamento de FDs outras, no interior de uma FD. Além da observação da posição do
artista enquanto sujeito e não indivíduo.
Em seu livro “Modos de Ver” John Berger inclui um ponto de vista de
Cézanne que nos parece compatível com a discussão que estamos delineando:
“Um minuto na vida do mundo passa! Pintá-lo em sua realidade, e esquecer tudo o mais para isso! Tornar-se esse minuto, ser a chapa impressora ... dar a imagem do que vemos, esquecendo tudo o que apareceu antes de nosso tempo...” (Cézanne)
O que fazemos daquele momento pintado quando ele está diante de nossos olhos vai depender daquilo que esperamos da arte, e que, por sua vez, hoje dependente de como já vivenciamos o significado de pintura através de reproduções. (BERGER, 1999, pág. 33)
Berger, sob nosso olhar, considera que de alguma forma a imagem não é
apenas estrutura, mas está localizada em um tempo histórico e de certa forma é afetada
por esse tempo.
Defendemos, entretanto, que a diferença do verbal e do não verbal, marcadas
discursivamente, não estão elaboradas teoricamente nas discussões estéticas a respeito da
arte, em sua grande maioria. As teorias da arte, até então, tratam a obra de arte apenas no
seu nível enunciativo, se podemos assim dizer.
A análise é tecida do ponto de vista estrutural. (o que é o desenho, o que é a
letra, o que é a pincelada). São poucos os teóricos que incluem o histórico ou o social. Na
grande maioria das abordagens teóricas, esses aspectos são considerados, mas ora do
ponto de vista social, ora do ponto de vista histórico, sem nunca deixar de dar maior
ênfase às questões estruturais da obra.
73
Trazemos como exemplo as análises estéticas de Michel Foucault. O autor
elaborou algumas análises de obras de arte, marcando-as com um enfoque filosófico. Tal
enfoque parece-nos avançar em direção à uma análise discursiva da arte.
5.1 ANÁLISES ESTÉTICAS FOUCAULTIANAS
Dentre os inúmeros escritos de Michel Foucault, é possível encontrar suas
reflexões em torno da Estética42. Buscaremos argumentos em duas análises estéticas da
linguagem visual realizadas por Foucault: “Isto não é um cachimbo” (1968) e “Las
Meninas” (1965)43, pertencentes a dois estilos distintos: o surrealismo de Magritte e o
retratismo barroco do espanhol Velázquez44. A maioria dos textos referentes à estética,
Foucault escreve-os na década de sessenta.
Magritte
Velázquez
42 Recentemente publicado no Brasil, a Coleção Ditos e Escritos que reúne no volume três, textos de
Michel Foucault sobre ESTÈTICA (2001). 43 Sob o título: “As damas de companhia”, Lê Mercure de France, nº1.221-1.222, julho-agosto de
1965,os.368-384. 44 As Meninas –1656, quadro no qual o pintor retrata Margarida Teresa, filha de cinco anos do rei Felipe
IV.
74
A partir dos conceitos de similitude, representação e simulacro, Foucault
realiza mais do que uma leitura de imagem destas obras. Digno de sua autotitulação de
“arqueólogo do saber”, na verdade, o que o filósofo realiza é um perscrutamento estético
na linguagem visual, na medida em que elabora vários constructos conceituais, os quais
vão sendo convocados para a compreensão dos enunciados imagéticos.
vã imagem (em oposição à realidade); representação de alguma coisa (em que esta coisa se delega, se manifesta, mas se retira e, em certo sentido, se esconde); mentira que faz tomar um signo por outro; signo da presença de uma divindade (e possibilidade recíproca de tomar este signo pelo seu contrário); vinda simultânea do Mesmo e do outro. Assim, simulacro remete a uma constelação: similitude e simultaneidade, simulação e dissimulação. (Foucault, 2001 p.10)
Para Foucault, a linguagem se constitui em um jogo de signos, os quais
esperariam silenciosamente por alguém que os signifiquem. O significado estaria em seu
interpretante.
Em “As palavras e as coisas”, ao analisar o quadro de Velázquez, o filósofo
não se detém apenas no texto imagético, mas realiza reflexões a respeito das diferentes
visões do pensamento ocidental, questionando posições assumidas pelas personagens do
quadro e colocando também o espectador como personagem. Quem estaria olhando
quem?
O pintor está ligeiramente afastado do quadro. Lança um olhar em direção ao modelo; talvez se trate de acrescentar um último toque, mas é possível também que o primeiro traço não tenha ainda sido aplicado. O braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre a tela e as cores. Essa mão hábil está pendente do olhar; e o olhar, em troca, repousa sobre o gesto suspenso. Entra a fina ponta do pincel e o gume do olhar, o espetáculo vai liberar seu volume. (Foucault, 1992 p.19)
O início de sua leitura atenta coloca-nos a par do visível e questiona-nos
sobre o aparentemente invisível do quadro. O pintor é visível em seu próprio quadro, não
apenas por sua produção, mas igualmente por sua auto-imagem retratada em sua própria
75
pintura. Não que este ato não fosse costumeiro entre os retratistas barrocos, muitos
artistas desde o Renascimento Italiano, pintavam auto-retratos. No entanto, Velázquez
aqui se coloca como espectador do olhar do próprio espectador. É sobre este aspecto que
Foucault inicia sua leitura (escavação) desta obra do pintor espanhol.
Segundo Foucault, a cena retratada por Velázquez, constitui-se em “uma
representação da representação clássica” e, ao mesmo tempo, abre um novo espaço onde
personagens e espectadores se confundem. Qual é o real espaço da tela? Afinal, onde está
o pintor? Quem é, na verdade, o espectador? Claro que todas essas perguntas não são
respondidas diretamente pelo texto. Na verdade, elas são tecidas nas entrelinhas da
análise foucaultiana.
representar em todos os seus elementos, com suas imagens, os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que ela torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas, nessa dispersão que ela guarda e exibe ao mesmo tempo, um vazio essencial é imperiosamente indicado em todas as partes: o desaparecimento necessário do que a funda – daquele a quem ela se assemelha e daquele aos olhos de quem ela não passa de semelhança. Este próprio sujeito – que é Mesmo- foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que acorrentava, a representação pode se dar como pura representação. (Foucault, 2001 p.209)
Discussões filosóficas acerca da representação datam anterior a Platão.
Embora tenha sido ele quem primeiro separou a “idéia original” da forma representada, o
sensível do inteligível, o mundo da razão e o mundo da emoção. Parece, a primeira vista,
que a filosofia foucaultiana retoma parte da visão platônica de representação.
“Representação da coisa não é a coisa em si”.
Em “As Palavras e as Coisas”, Foucault dedica uma boa parte da discussão à
representação dos signos, indo além do delírio platônico e polemizando o conceito de
76
semelhança e de similitude, que, mais tarde, retoma na análise da obra de Magritte “Isto
não é um cachimbo” 45.
A questão principal, nesta análise de Foucault, é a REPRESENTAÇÃO.
Imagens de objetos que representam, mas não são de fato o objeto em si. O gesto de
leitura em arte assume, por assim dizer, um viés na questão da ‘representação’. Ao
abordar, mais tarde, o gesto de leitura cênico de uma linguagem visual, os conceitos de
representação e interpretação se farão presentes à luz da teoria da AD.
Outro aspecto sobre a obra de Magritte a considerar, porque mais tarde
voltaremos a discutir esse ponto, é o fato de que a imagem é seguida por uma frase. Duas
linguagens num mesmo objeto, o verbal e o não verbal povoando o mesmo objeto. A
linguagem verbal, representada por uma frase cuidadosamente desenhada, como
querendo “alfabetizar” seu leitor, ensinando que aquilo que é avistado, realmente, não é
um cachimbo. Um dizer cuja função maior é de informar, elucidar e até desmentir a
imagem ou o engodo que ela diz, a imagem do objeto não é o objeto em si. O que temos,
na verdade, é uma leitura de uma metalinguagem imagética; considerando o leitor da obra
sob a perspectiva de Foucault, o que se tem é uma imagem e um texto que a nomeia.
Essa discussão fatalmente permeia a teorio dos signos. É necessário aqui um
espaço para discutirmos essa questão. Porque ao realizarmos uma análise de um discurso
artístico, é imprescindível recorrer também a uma sustentação semiótica, já que os signos
fazem parte do processo de construção de sentidos. Outro aspecto a considerar é que os
gestos de leitura da linguagem artística ocorrem por meio de relações e, estas fazem parte
45 A obra que Foucault analisa é a segunda versão de um conjunto de cinco obras em que o artista aborda a
temática dos objetos. (Foucault, 2001)
77
do processo de semiose. Esse processo é igualmente entendido como construção de
sentidos.
Um signo é um ícone ou um símbolo. Um ícone é um signo que possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um molde com um buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria buraco; porém nele existe um buraco, quer tenha alguém, ou na a capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso que o significa aquilo que significa apenas por força de compreender-se que possui essa significação. (Peirce, 2000. p.74)
Segundo Peirce, tudo é signo, signo é a representação de um objeto, mas não
o próprio objeto. Foucault, ao analisar a obra de Magritte, procura elucidar a questão do
signo, porém o faz por meio de uma relação diádica46. No entanto a teoria semiológica
não dá conta de problematizar a questão sígnica. Em um texto escrito anteriormente (em
meados de 1966), Foucault analisa historicamente as visões diádicas e triádicas do signo
Desde o estoicismo, o sistema dos signos no mundo ocidental fora ternário, já que nele se reconhecia o significante, o significado e a ‘conjuntura’ (o τ υ γ× α νον). A partir do século XVII, em contrapartida, a disposição dos signos tornar-se-á binária, pois que será definida, com Port-Royal, pela ligação de um significante com um significado. No Renascimento, a organização é diferente e muito mais complexa; ela é ternária, já que apela para o domínio formal das marcas, para o contudo que se acha por elas assinalado e para as similitudes que ligam as marcas às coisas designadas; porém , como a semelhança é tanto a forma dos signo quanto seu contudo, os três elementos distintos dessa distribuição resolvem numa figura única. (Foucault 1992, p.58)
Como o próprio Foucault constata, as visões de representação sígnica
cambiam historicamente. É importante ressaltar que no momento que Peirce (re) introduz
o terceiro elemento ele privilegia o interpretante, de certa forma, inclui o sujeito na
interpretação.
46 Semiologia de Saussure (Curso de lingüística geral, 1977) .
78
Ao analisar esteticamente uma obra de arte, apenas partindo de uma visão
diádica do signo, estaríamos isolando o interpretante desse processo, portanto a relação
triádica está presente na análise estética. Diferente do que acontece em uma análise
verbal. Se considerarmos como objeto apenas o texto (enunciado verbal), poderíamos
embasar a discussão a partir de uma visão diádica do signo. No entanto, o que se
pretende é uma análise estética, considerando o elemento imagem, semelhança e
similitudes e, ainda, o pressuposto que o artista conta com a leitura do espectador no
momento que produz a obra. Tem-se então uma relação triádica formada não por uma,
mas por inúmeras tríades, se fosse o caso de uma análise semiótica da obra de Magritte,
esta argumentação não terminaria por aqui. Mas estamos falando de uma análise estética,
e é preciso direcionar as atenções para este campo do conhecimento.
Por esse motivo é que buscamos no conceito peirceano uma das ancoragens
necessárias para a discussão estética aqui delineada.
Mas, ainda em Foucault
Parece-me que Magritte dissociou a semelhança da similitude, e joga esta contra aquela. A semelhança tem um “padrão”: elemento original que ordena e hierarquiza a partir de si todas as cópias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e classifica. O similar se desenvolve em séries que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de pequenas diferenças e, pequenas diferenças. A semelhança serve à representação, que reina sobre Ela; a similitude serve a repetição, que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível do similar ao similar. (Foucault, 2002 p. 60/61)
Ao passo que as obras de arte, bem como a análise de Foucault, abrem espaço
para o espectador como fruidor ativo da obra e não somente como um leitor passivo,
conta-se com o deslizamento de sentidos. Considerando também, o fato das obras
analisadas por Foucault se configurarem (embora em estilos diferentes) em um espaço de
79
inter-relação. A imagem “salta” da tela possibilitando ao espectador uma busca de
significados e significantes a partir de vários signos, uma busca embasada e
fundamentada em experiências pessoais e em uma história contextual. Ou seja, a uma
constante re-significação de sentidos.
As questões aqui levantadas, sob a perspectiva de análise estética
foucaultiana, serão retomadas mais tarde no subcapítulo “Cordeiro: Estética do
Sacrifício”, após apresentarmos os elementos para análise discursiva da obra de arte.
Nosso intento, como já dissemos, é ancorar nossos argumentos de análise na teoria do
discurso, sem desprezar os elementos estéticos levantados por Foucault.
80
6 ANÁLISE DOS PROCESSOS DISCURSIVOS NO DISCURSO ARTÍSTICO
6.1 O VERBAL E O NÃO-VERBAL NO DA
Nosso corpus de análise começa a se delinear a partir de duas fotografias: a
primeira é de uma instalação artística “Sem Título: Instalação com vestidos brancos com
sangue de carneiro, impressões de vísceras de carneiro sobre papel e fotografia Mão
com Vísceras. 2001 – sala especial na 25ª Bienal de São Paulo” da artista porto-
alegrense Karin Lambrecht.
FONTE:
Guia Bienal 2002
Figura 4
KARIN LAMBRECHT- 2001
81
A segunda imagem é uma fotografia aérea, que foi capa do Jornal A Folha de
São Paulo de 3 de maio de 2002, chamada de uma matéria sobre uma rebelião ocorrida
na penitenciária de Guarulhos – SP. Embora ambas sejam resultantes de um mesmo tipo
de processo discursivo, ou seja, o processo não-verbal, e estejam ambas relacionadas a
uma mesma temática (o sacrifício), elas se constituem a partir de dois discursos distintos:
o Jornalístico e o Artístico.
Essas duas imagens geraram, nesta pesquisa, uma outra parte do corpus de
análise que consiste de partituras gestuais cênicas, a partir da leitura realizada pelos
atores: o gesto de leitura da imagem, que se converte no gesto teatral. Pretendemos
pensar teoricamente esse processo em um capítulo específico dessa dissertação, cujo
enfoque será o das condições de produção de um enunciado gestual e os possíveis gestos
de leitura a partir de um enunciado imagético.
Imagem: Varella
Folha deSão Paulo
3 de maio de 2002
Figura 5
82
Para desenvolver uma análise discursiva do não verbal, neste caso no âmbito
do Artístico, incluiremos considerações vindas do campo da semiótica. No entanto
pretendemos tomar o cuidado para não tratar a imagem estritamente sob o aspecto da
significação. Ou seja, considerar a imagem apenas como estrutura e não como
acontecimento. Se optássemos por este caminho, não estaríamos operando no nível
discursivo e sim no campo semântico – enunciativo. Estaríamos percebendo o não verbal
apenas enquanto produto e não enquanto processo, segmentando os elementos visuais
apenas no que diz respeito a suas características semióticas, considerando o signo apenas
enquanto ícone, percebendo-o a partir de suas características estruturais.
A respeito disso aponta Tania C. Clemente de Souza em seu artigo “ Discurso
e Imagem: perspectivas de análise do não verbal”47.
Sobre o processo de significação da imagem, as discussões estão, em geral, restritas a duas vertentes principais: ou se toma a imagem da mesma forma como se toma o signo lingüístico, discutindo-lhe as questões relativas à arbitrariedade, à imitação, à referencialidade, ou se toma a imagem nos traços específicos que a caracterizam, tais como extensão e distância, profundidade, verticalidade, estabilidade, ilimitabilidade, cor, sombra, textura, etc, buscando-se a definição de que modo se dá a apreensão (ou leitura?) da imagem naquilo que lhe seria específico (cf.: KLEE, 1973 e DAVIDSON, 1984). (1998)
Justamente pela tomada de posição discursiva (a partir de Pêcheux) nos
propomos a tecer uma análise discursiva da imagem e do gesto teatral, não tomando-os
apenas como estrutura, mas ao contrário, reconhecendo que estrutura e acontecimento são
indissociáveis. Por esse motivo, tomamos tanto as imagens quanto gesto teatral enquanto
estrutura e acontecimento.
“O acontecimento inaugura uma nova forma de dizer, estabelecendo um
marco inicial de onde uma nova rede de dizeres possíveis irá emergir”. (FERREIRA,
47 Ciberlegenda Número 1, 1998. http://www.uff.br/mestcii/index.htm ou taniaccs@esquadro.com.br
83
2001 – pág.11). E, segundo os pressupostos da Análise do Discurso pecheuxtiana, para
que tenhamos uma análise discursiva é preciso que tenhamos um acontecimento.
Para nossa análise surge, ainda, a necessidade em elucidar a concepção de
determinados termos utilizados com diferentes sentidos por analistas do discurso e por
artistas, como por exemplo, o conceito de cena, de relevante importância nesta pesquisa.
Ao discorrer sobre Cena Enunciativa, Maingueneau postula o que segue
Em geral, e isto desde seu início, a AD prefere formular as instâncias de enunciação em termo de “lugares”, visando a enfatizar a preeminência e a preexistência da topografia social sobre os falantes que aí vêm se inscrever. Um conceito de lugar ‘cuja especificidade, repousa sobre esse traço essencial segundo o qual um alcança sua identidade a partir e no interiro de um sistema de lugares que o ultrapassa”. Este primado do sistema de lugares é crucial a partir do momento em que raciocinamos em termos de formações discursivas; trata-se, então, segundo o preceito de M. Foucault , de “determinar qual é a posição que pode e deve ocupar cada indivíduo para dela ser o sujeito”. Isto equivale a dizer que “a teoria do discurso não é uma teoria do sujeito antes que este enuncie, mas uma teoria da instância de enunciação que é, ao mesmo tempo e intrinsecamente, um efeito de enunciado”. (...)
Admitiu-se, com freqüência e de forma tácita, que os quadros da enunciação apenas duplicavam uma realidade anterior e exterior, que eram “máscaras”, o lugar da dissimulação de planos, de interesses inconfessáveis. Em outras palavras, concebia-se o discurso como um “porta-voz”. Atualmente, a tendência, cada vez maior, é questionar esta topografia que coloca o discurso e a “realidade” como exteriores do outro, considerando a primeira como uma espécie de teatro de sombras. (1997p. 32-33)
Ao consideramos também o conceito de Cena Teatral, compreendemos
melhor essa comparação interdiscursiva na utilização do conceito de cena. No teatro
temos a seguinte definição:
O termo, em teatro, possui pelo menos duas acepções distintas. Na arquitetura teatral designa a parte principal do Palco, ou seja, o espaço utilizado para a representação. No Palco Italiano, por exemplo, a cena é delimitada, na parte inferior, pela boca de cena; em cada lateral, pelo bastidor ou perna; e ao fundo, pela rotunda. Em palcos menos convencionais sua extensão pode ser indicada por qualquer elemento visual, por iluminação ou, simplesmente, pelo deslocamento do Ator. A segunda acepção pertence aos domínios da dramaturgia e se refere às etapas em que se subdivide a ação de uma peça. Nesse sentido, o conceito de cena tem variado ao longo do tempo, seja quanto à duração, delimitação, motivação e, mesmo, a nomes, sendo chamada Episódio, jornada, etc. De qualquer forma, permanece um significado
84
subjacente a todas essas diversificações, que é o da divisão narrativa dramática das partes. (VASCONCELLOS,1987 p.39)
O que vem a nos interessar em AD, portanto, é essa acepção comum entre os
conceitos de cena teatral e cena discursiva: a definição de lugar. Na verdade, essa noção
de lugar está igualmente implícita na própria estrutura de jogo teatral: o onde, o que e o
quem. Sendo impossível qualquer espaço de interpretação se não houver essa estrutura
como uma condição prévia à existência da cena.
Ao discutirmos a materialidade desta prática discursiva inscrita no artístico,
contamos com a necessidade de trilharmos também outros campos do conhecimento que
pensam a Arte enquanto objeto de análise, como por exemplo, o campo de Semiótica, o
campo da Estética, brevemente abordados48 e, é claro, o campo específico da cada
linguagem artística aqui abordada (linguagem visual e cênica).
No campo da semiótica busca-se uma sustentação sígnica para a análise do
discurso artístico, ou melhor, para a prática discursiva inscrita no artístico, enquanto
estrutura. No campo da estética busca-se a possibilidade de situar o corpus de análise no
tempo e no espaço em uma tentativa de marcar contextualmente as temáticas das
propostas imagéticas e gestuais que propomos analisar.
Adotamos como base teórica em AD, os conceitos de Pêcheux,
Maingueneau49 e Orlandi, na abordagem da interpretação, heterogeneidade e intermédio.
Pretendemos, também, nos centrar nas relações entre enunciados, condições de produção
48 Brevemente por que embora reconheçamos suas contribuições para a nossa análise nesta prática
discursiva que é a arte. Tais campos realizam uma abordagem apenas no nível enunciativo e não discursivo.
49 No que diz respeito a conceituação de cena.
85
de sentidos e suas interfaces, o lugar de onde é dito tal discurso e quais são os espaços
(históricos e ideológicos) constituintes deste sujeito-artista.
O foco central de nossa pesquisa é o gesto de leitura (ou interpretação). Mas
é preciso considerarmos que estes gestos de leitura encontram-se inscritos em uma
formação discursiva determinada que, por sua vez, conta com as especificidades de cada
prática discursiva adotada.
... lemos levantando a cabeça em função das emoções e associações causadas pela leitura e por uma infinidade de situações contextuais. Tais situações só aparentemente se localizam fora da leitura. Ler levantando a cabeça aponta o trabalho de tessitura dos significados que não estariam, então circunscritos, limitados ao texto, assim como não estão no autor ou no leitor exclusivamente, mas no cruzamento de olhares entre eles. O leitor é um produtor de sentidos e traz, para o interior do “mundo de papel”, toda uma gama de elementos extratextuais. (WALTY, 2001, p. 39).
Consideramos o objeto de arte (seja ele visual ou cênico), um dizer e
buscamos nas palavras de Orlandi, a sustentação necessária para nossa consideração:
“dizer não é apenas informar, nem comunicar, é também reconhecer pelo afrontamento
ideológico. Tomar a palavra é um ato dentro das relações de um grupo social” (1987
p.34).
Durante o processo de leitura de um objeto artístico, há esse afrontamento, a
relação do sujeito leitor com a obra, o que se constitui num ato. O que pretendemos
indagar mais profundamente é: como esse gesto de leitura pode se constituir
cenicamente? Quais as possibilidades de análise discursiva desse novo dizer? Quais
processos discursivos que o constituem? Citamos aqui, ainda, Orlandi “o que importa é
destacar o funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento não é
integralmente lingüístico, uma vez que dele fazem parte as condições de produção, que
86
representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso.” (1987,
p.117).
Num dizer, existem diversas lacunas a serem preenchidas, construção de
novos sentidos, processo de semiose, espaços que o interlocutor deve preencher. Segundo
Waltty, a Estética de Recepção50, “todo o texto tem seus vazios, aberturas a serem
preenchidas pelo leitor com varias significações”. Todo o dizer conta com a
incompletude do sentido. Algo só pode ser dito porque falta, portanto, o dizer é filho da
falta.
Nessa perspectiva apontamos um limiar tênue entre o verbal e o não verbal na
abordagem da leitura
No nosso processo de leitura, vislumbram-se imagens construídas pelas palavras. Sem necessidade de gravura ou quais quer ilustrações, imagens se formam na mente do leitor por força dos recursos utilizados, de ordem fônica, gráfica, morfo-sintática, atravessados sempre pela rede de significações. Tudo são imagens. Linguagem que se faz na figura e a desafiar o investimento do leitor no texto. (WALTY, 2001, p. 48)
Embora conte com práticas discursivas específicas para se constituir enquanto
discurso, o discurso artístico (imagem, instalação, música, peça teatral, performance, e
tantas outras linguagens da arte) é constituído por diferentes processos incluindo os
verbais e não verbais.
Muitas das práticas discursivas são marcadas pela materialidade escrita: há
uma escrita para a música, assim como há um roteiro para a cena. O que não exclui a
possibilidade de haver práticas discursivas que se constituem de processos não verbais e
que por essa razão produzem efeitos de sentidos mais abertos51.
50 Walty, “Palavra e imagem” 2001, página 43). 51 Como pretendemos mostrar no capítulo da análise.
87
Um outro exemplo que podemos citar da utilização do não verbal pelo verbal,
está na abordagem dos críticos de arte52 que se reportam às palavras para mensurar o
objeto de arte. Mas está na base deste dizer um processo discursivo não verbal. Assim a
imagem (que parte de um processo não-verbal) pode ser descrita verbalmente.
A própria literatura está repleta de exemplos deste ‘trânsito’incessante entre
esses dois processos. Nesses casos, temos primeiro o contato com o verbal e através dele
acionamos nossa memória imagética. Ao passo que o processo do autor da obra literária
pode ter sido feito por um percurso contrário. Logo, é possível dizer que o verbal pode
constituir o não-verbal e vice-versa.
6.2 CORDEIRO: A ESTÉTICA DO SACRIFÍCIO RETOMANDO AS
QUESTÕES ESTÉTICAS E QUESTÕES DISCURSIVAS
Walter Benjamim53 atribuiu à obra de arte o conceito de aura, o “hic et nunc”,
uma característica de unicidade, sua autenticidade, sua “alma”, a qual fica comprometida
com a reprodutibilidade em larga escala.
Benjamim aponta, ainda, três momentos da arte: “Valor de Culto, Exposição
– Critérios Estéticos – e Reprodução em larga escala”.
Segundo Morss (1992), em um artigo sobre o ensaio de Benjamim, a arte, de
uma forma geral, teria ainda três tarefas principais: “ 1º Desfazer a alienação do sensorial
52 Em AD, foi realizada uma pesquisa de doutoramento abordando textos de críticos de artes “ As cores do
Discurso” de Lucia Teixeira em 1996. 53 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 1936. Publicado na revista Zeitschrif für
sozialforschung. Berlim 1936.
88
corporal, 2º restaurar o poder instintual do corpo humano54 e 3º não evitar as novas
tecnologias, mas atravessá-las”.
É com bases nesses conceitos sobre a obra de arte que pretendemos avançar
na análise de O CORDEIRO: A ESTÉTICA DO SACRIFÍCIO.
O que torna a obra de Karin objeto de uma análise estética?
Detalhe: O sacrifício do carneiro MARGS, 2001 Pág.16.
Primeiramente, por se constituir em uma obra de arte e por ser a estética uma
forma de se pensar sobre arte filosoficamente, pois a filosofia da arte não dispensa os
pressupostos estéticos em sua discussão, a qual começou a se desenvolver em meados do
século XIX. Em segundo lugar, porque é possível verificar, na própria obra, os momentos
apontados por Benjamim e as “tarefas” apontadas por Morss.
Comecemos pelo valor de culto (apoiados no conceito elaborado por
Benjamim), valor cultual no sentido mais primitivo da palavra, e não apenas como
54 Segundo a Artista Plástica – Karin Lambrecht algumas questões se fazem presentes na obra: a do instinto
e da sobrevivência, da manutenção do corpo e do sangue (como o que de mais humano habita em nós), estavam presentes desde a concepção do trabalho.
89
contemplação55. Esta obra traz em um de seus elementos visuais o sangue e a figura
onipresente do cordeiro56, fatores que nos remetem a origem ritual da arte, como por
exemplo, o cordeiro imolado para o deus Dionísios, ou anterior a isso, as pinturas
rupestres descrevendo animais mortos, ritual que assegurava uma boa caçada, ou ainda as
leituras bíblicas sobre o cordeiro imolado e até mesmo a concepção cristã de sacrifício,
signos principalmente da cultura ocidental, signos de conveniência, uma semelhança de
“aproximação gradativa”.57
A obra que estamos analisando reúne ao mesmo tempo: a memória de rituais
religiosos, com ações de homens simples do campo, a sensibilidade artística de
transformar tais ações em obra de arte e a crítica aos sacrifícios cotidianos, além de que
fora exposta em uma Bienal cujo tema era “Iconografias Metropolitanas”.
Sem Título: Instalação com vestidos brancos com sangue de carneiro, impressões de víscera de carneiro sobre papel e fotografia Mão com Vísceras. 2001 MARGS pág.12.
55 Aliás, a obra de Karim nada tem a ver com uma postura de simples contemplação. 56 “Sacrificar não é matar, mas abandonar e doar.” Bataille, 1993. 57 Convenientia Foucault – “As palavras e as coisas”p.34 (1992).
Figura 8
Figura 7
90
Numa visão analítica, é possível supor que a artista busque no valor de culto,
no ritual da obra de arte, manifestar o sentimento do sagrado, do sensível, pressupondo a
presença do interlocutor, assim como acontecia nas obras de Magritte ou de Velázquez na
leitura apontada por Foucault.
A obra de Karin causa, num primeiro momento, uma reação de pânico ou de
incompreensão pelo ato de sacrificar o animal58. É nessa reação que a obra trilha a
segunda função apontada por Benjamim: exposição – critério estético. Ao se deparar com
a leitura da obra de Karin, com a exposição à temática, ocorre uma interrogação sobre
critérios estéticos. Mesmo se, de imediato, o leitor não o perceba, está vivenciando uma
experiência estética. Na verdade, mais do que isso, a instalação tem a função de
questionar e fazer questionar-se sobre os conhecimentos de estética que o leitor possui,
ou pensa possuir.
Os vestidos brancos suspensos parecem descrever todo o processo do
sacrifício desde o imaculado, totalmente branco, àqueles que sucessivamente recebem o
jorro de sangue até surgir o totalmente encharcado de sangue que ao fundo desvela uma
fotografia de mãos que seguram vísceras como um ventre aberto.
58 Em conversa com a artista ela expôs: “Todo o processo durou no máximo 30 minutos. Há um cuidado com o animal, por isso a rapidez sem teatralidade e sem constrangimentos. O ritmo adotado por todas as pessoas como se todas fossem trabalhadores e isso era sinal de respeito. A função da separação das carnes, impulso humano de se alimentar”. É importante frisar que o animal não foi sacrificado para a elaboração da obra e sim, para servir de alimento, prática comum nesta região do país. O que a artista fez foi participar deste momento, que aconteceria de qualquer forma, e transformar em objeto de arte os ‘resíduos’ deixados pelo abate. Sua preocupação, salientada na mesma conversa, era de interferir o menos possível no processo realizado pelo homem do campo e sua exigência foi de que o número de pessoas a participar da experiência fosse o menor possível.
91
Os signos dizem, mas ao mesmo tempo permitem ao leitor a criação de novos
significados e novas leituras sobre a obra, cumprindo as tarefas da arte apontada por
Morss59, de “desfazer a alienação sensorial do corpo e de restaurar seus poder instintual”.
Assim, como o quadro de Velázquez que coloca seu espectador no limiar
entre o visível e o invisível, a obra de Karin também se inscreve num instável jogo de
metamorfoses e simbologias. As visibilidades incompatíveis estão postas: vê-se o sangue,
vê-se o sacrifício e o carneiro, vê-se?
“ por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. (...) se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e do outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez por meio dessa linguagem nebulosa, anônima, sempre meticulosa e repetitiva, porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá suas luzes.” (Foucault 1992 p. 25)
Apesar de não ser uma pintura, a obra de Karin suscita uma análise
semelhante à leitura realizada por Foucault a respeito da obra de Velázquez. Já ao
considerar a análise a respeito da obra de Magritte, temos uma inversão de objetos, ou
percepções. Não posso dizer: Isto não é um vestido! Isto não é sangue! Mas será que
posso dizer: Isto não é um carneiro, um carneiro imolado!?
Embora a obra inscreva-se na temática do sacrifício, não temos ali o próprio
sacrifício, nem no momento de construção da obra temos o ritual. Temos sim, ações que
remetem nossa memória à questão do ritual. Mas não temos o ritual de fato, nem mesmo
o carneiro presente, enquanto elemento físico, na exposição da obra.
59 Estética e anestética: o ensaio sobre a obra de artes - UFSC 1996
92
Ao continuar a descrição da Instalação, temos à frente dos vestidos, no chão,
três cruzes de tecidos igualmente tingidos pelo sangue do carneiro. Do lado esquerdo, na
parede, era possível perceber uma sucessão de cartazes em papel e, em cada um destes, a
impressão deixada por uma víscera e identificada pelo autor da ação. Era possível
perceber as palavras, rim, coração, pulmão, etc. com setas indicativas, mas a imagem
gravada deixa claro que aquilo não era um pulmão; não era um coração! E sim, a marca
do que foi um órgão do animal, embora grafada por seu próprio sangue, é imagem
representada. Assim como toda a obra é a representação do sacrifício e não o sacrifício
em si. A instalação suscita a temática do sacrifício, no entanto, o processo de criação da
obra se ocupa de uma ação de abate e não de um ritual de sacrifício.
DETALHE: Impressões de Sangue 2.Morte eu sou teu 3 Morte: eu sou teu MARGS, 2001 pág. 30.
93
Temos assim, como na obra “ Isto não é um cachimbo”, o texto imagético e
o texto verbal, “o essencial é que o signo verbal e a representação visual jamais são dados
de imediato”60 Temos, novamente, o que Foucault apontou como a “equivalência entre o
fato da similitude e a afirmação do laço representativo” , a imagem se assemelha a
alguma coisa, há uma relação de analogia e conseqüentemente uma nomeação. Não se
pode dissociar similitude e afirmação, são conceitos constitutivos um do outro, pois
diferente da semelhança que remete à, a similitude afirma que, ou melhor, se constitui na,
e pela afirmação do objeto.
Embora a estética não esteja apenas vinculada somente à arte, possibilita à
última uma discussão filosófica que transcende os conceitos de belo ou feio e encontra na
mesma a dilatação necessária e a manifestação mais adequada, principalmente quando se
procura discutir esteticamente as obras contemporâneas e pensar filosófica e
esteticamente experiências como a de Karin. Trata-se aqui de uma produção artística para
além das paredes dos ateliês, em contato permanente com aspectos da realidade e do
natural; a experiência artística imbricada na experiência cultural, calcada no que
efetivamente pode se chamar experiência ESTÉTICA.
Após essa reflexão sobre a percepção estética da arte, sustentamos nossa
afirmação acerca do dizer artístico. Esse dizer, portanto, se constitui a partir de várias
relações, não apenas a partir de estruturas, a noção de dizer transcende a noção de fazer,
constitui-se em um gesto de interpretação no qual o não verbal efetiva-se enquanto
processo discursivo primordial inerente ao dizer artístico.
60 Foucault 2001 p.256
94
Como vimos durante a fundamentação teórica, quando o sujeito diz, o faz
tomando uma posição. As formulações teóricas a respeito do não verbal, ao considerarem
o aspecto estrutural em detrimento dos aspectos sociais, históricos e ideológicos, de certa
forma, fragmentam o sentido, o que acarreta um apagamento de sua historicidade.
O texto visual, em seu todo, é tido como um conjunto de estruturas produtivas, cujo modelo pressupõe: expressão visual; elementos de expressão (figuras geométricas e ângulos de câmera); níveis sintagmáticos (figuras iconográficas, tipologia da montagem, relação, relação campo/contracampo, etc.); blocos sintagmáticos com função textual (montagem, tipos de enquadre; narrativa/cronologia temporal; diferentes pontos de vista); níveis intertextuais; tópico; gênero e tipologia de gêneros.(SOUZA, 2001, p. 68)
Os elementos de estrutura são, ao nosso ver, fragmentos teóricos de uma
percepção da imagem pela via da semiologia, semiótica, gestáltica, entre outras tantas
formulações, que possuem, enquanto modelo, apenas o signo. Pensamos que ao tratar a
imagem pela via estrutural é inevitável sua fragmentalidade. A estrutura, composta em
um processo verbal, não toca a materialidade própria da imagem ou do gesto. Sendo
assim, percebemos a necessidade de uma abordagem do não verbal por suas próprias vias
de acesso. Uma via de acesso que venha ao encontro de gestos de leitura/interpretação da
imagem ou de outras práticas de linguagem da ordem não verbal, que busquem
compreender como essas práticas discursivas se constituem, se sustentam e produzem
sentidos.
Souza aponta para a necessidade de tratarmos o não verbal instalando-se no
intervalo entre o representado e a representação do signo não verbal. É, neste contexto,
que a autora elabora o conceito de policromia61: “lugar que permite ao interpretar a
61 Estado de um corpo em que há muitas cores. Conjunto de diferentes cores. Estampa com mais de três
cores. (dicionário, Melhoramentos, 1988)
95
imagem projetar outras imagens, cuja materialidade não é da ordem da visibilidade, mas
da ordem do simbólico e do ideológico.” (2001, p. 74).
O sentido que a autora confere a este conceito vai ao encontro do conceito
semântico das palavras polissemia/policromia, que reflete o atravessamento de dizeres
outros, da mesma ordem: a imagem, mais especificamente da composição da imagem, a
cor. Parte de um conceito estrutural para mostrar os atravessamentos.
Essa noção de “poli”, de vários, múltiplos é produtiva para a compreensão do
não verbal. No entanto, este conceito ainda não dá conta de mostrar nessa discursividade
o acontecimento, mas apenas um dos aspectos desse discurso, os discursos outros.
Estamos tratando da possibilidade de tecer a relação da estrutura e do
acontecimento do dizer artístico com os diferentes processos discursivos: o verbal e o não
verbal (principalmente o não verbal). Como funciona esse processo, pretendemos pontuar
nas experiências dos gestos de leitura das imagens e do gestual cênico de atores e não
atores. Acreditamos que é na análise que as relações aparecem.
96
7 GESTOS DE LEITURA E GESTOS E INTERPRETAÇÃO: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE DISCURSIVA
A partir deste ponto, passaremos a analisar os diferentes gestos, tanto de
leitura quanto de interpretação, a partir de imagens de um acontecimento. Tais gestos
estão inscritos tanto em processos verbais quanto em processos não verbais. Cabe aqui
um recuo teórico para elucidarmos uma diferenciação fundamental na discussão que
segue, ou seja, estamos distinguindo gesto de leitura de gesto de interpretação.
Orlandi62 propõe que há duas instâncias do gesto de interpretação: o gesto de
interpretação do analista que “é determinado pelo dispositivo teórico” e o gesto de
interpretação do sujeito comum que é “determinado pelo dispositivo ideológico”. O
primeiro nos permite trabalhar sobre as FDs, questionando não o que quer dizer, mas
como o sentido é produzido ou pode ser outro. Pois, em AD conta-se que o sentido
sempre pode ser outro, ou seja, um gesto de interpretação que conta com a opacidade da
linguagem, com a produção do sentido e não com o sentido já dado.
O segundo trata-se desse efeito do sentido ‘já lá’ é próprio do gesto de
interpretação que se dá pelo dispositivo ideológico, assim que se determinado enunciado
processa responder é o que quer dizer? Ou seja, o sentido já está posto, só resta saber qual
é. Segundo Orlandi, um efeito de evidência. “Esse efeito é o que nega a interpretação no
momento mesmo que ela se dá”63.
62 Orlandi in Interpretação: autoria e efeitos do trabalho simbólico, 1998. Pág. 84 63 1998, pág. 84
97
Podemos dizer, então, que o gesto de interpretação possibilita pela análise
contemplar a produção de outros sentidos, pois conta com a opacidade da linguagem.
Para fins de diferenciação destes conceitos de interpretação (a do analista e a do sujeito
comum), apontados por Orlandi, chamaremos então de gesto de leitura aquele gesto que
se preocupa em dar conta do sentido já lá, que pergunta-se: o que isso quer dizer?
Por outro lado, chamaremos de gesto de interpretação o gesto que preocupa-
se com a produção do sentido, que tem um ‘distanciamento’ crítico necessário para
buscar compreender o funcionamento de um dizer, que aponta para a possibilidade de
outro sentido e que pergunta “como tal sentido se produz?” Consideramos gesto de
interpretação tanto o gesto do analista de discurso, quanto o gesto do artista que não
apenas lê uma imagem, mas que busca nela outros sentidos possíveis e “joga” com eles.
Outras questões, ainda, se fazem pertinentes nesta análise. Questões que
investigam até que ponto se mantém (paráfrase) ou se separa (polissemia) a interpretação
do acontecimento nas seguintes condições: 1- quando já não é o acontecimento a obra
que se disponibiliza para a análise, mas uma imagem da obra que, enquanto imagem está
deslocada do lugar do acontecimento; 2-quando o gesto que interpreta a imagem não é
verbal, mas não verbal.
Por outro lado, gostaríamos de saber até que ponto o gesto de interpretação
produzido está determinado pelo discurso artístico no qual a imagem se inscreve.
Trouxemos, então, uma outra imagem para analisar o gesto de interpretação, nesse caso,
uma imagem jornalística, não vinculada ao DA para fins comparativos.
98
7.1 ANÁLISE DISCURSIVA DA IMAGEM DE UMA OBRA DE
ARTE
Para a análise da imagem da instalação Sem título - “Carneiro s/ vestidos
brancos” 2001, adotamos como base teórica a AD, notadamente as noções de
interpretação, heterogeneidade e intermédio. Pretendemos buscar nesta análise as
relações entre o enunciado, as condições de produção de seus sentidos e suas interfaces,
bem como o lugar (espaço – físico/ideológico) deste dizer: “Iconografias
metropolitanas”.
Por 10 semanas, o pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, abrigará a 25ª edição da Bienal de São Paulo. O tema da presente edição é Iconografias Metropolitanas, cuja seleção de artistas, assim como os trabalhos apresentados pelos mesmos, têm uma relação direta com o meio urbano. Trata-se de interrogar a produção artística sobre os grandes conglomerados urbanos – fenômeno típico da
99
contemporaneidade – e em que sentido a cultura metropolitana serve de referência ou atua como força transformadora no trabalho artístico.
A cultura das grandes metrópoles está contaminada por diversos meios de expressão/linguagem imagética, como a publicidade, o design, os meios de comunicação de um modo geral, a moda, além daquilo que os teóricos já cunharam de “cultura de massa”. Neste meio, a imagem da metrópole tornou-se tão freqüente, que passa a ser banal. A idéia de que uma produção artística de alto nível, autêntica, surge neste mesmo meio permite reconstruir uma crítica à cultural metropolitana, pois nem sempre a cidade é o espaço da alta tecnologia, do conforto e da organização, mas também concentração de tensões e conflitos. Neste sentido, o receptáculo da percepção destas tensões e exprimi-las de tal forma, que elas se tornem mais aparentes.
Assim, a 25ª Bienal está organizada em cinco sessões, que levam a reflexões sobre a questão urbana: a sessão dos 68 países (representações nacionais), as 11 metrópoles e a 12ª cidade, a representação brasileira, as salas especiais e a Net Art (internacional e brasileira). Estas sessões estão espalhadas ao longo de três pisos do pavilhão. A representação brasileira concentra-se no 3º piso bem como as salas especiais (espaço museológico).
(...).
Os três artistas brasileiros homenageados com salas especiais são Nelson Leiner, Carlos Fajardo e Karin Lambrecht, todos eles com uma longa carreira no cenário artístico brasileiro e que desenvolveram linguagens muito próprias e referenciais para produção estética nacional. (Prefácio do Guia da 25ª Bienal de São Paulo – Fundação Bienal de São Paulo – 2002)
O prefácio do guia da Bienal situa a inscrição deste texto-imagem no discurso
artístico do lugar de onde é dito. Não se trata apenas do espaço físico que a obra ocupa,
mas, igualmente, das condições de sua produção, ou seja, do lugar social e ideológico,
que funda esses e outros enunciados, ao descrever a proposta do evento Bienal.
Neste caso, portanto, podemos dizer que a formação discursiva na qual o
texto-imagem em questão se inscreve, ou seja, aquela que caracteriza um discurso
artístico é aqui atravessada por outras formações discursivas, outros sentidos. Esses
sentidos estão vinculados e têm seu ponto de interseção no sentido de “metrópole”, aqui
constituído na sua iconografia, que explora a pluralidade de sentidos que constituem as
grandes metrópoles.
100
Ao considerarmos que o movimento do que é dito nunca cessa,
transcrevemos, agora, a sinopse da obra de Karin:
Para esta Bienal Karin Lambrecht apresenta-nos um trabalho realizado a várias mãos. Uma experiência compartilhada para a qual as palavras não chegam. O ponto de partida foi o contato da artista com um homem que se ocupa do abate de ovelhas, numa região próxima a cidade de Bagé, interior do Rio Grande do Sul. Nem sacerdote nem açougueiro, para esse homem seu trabalho não tem nenhuma conotação religiosa muito embora ele se cerque de uma série de cuidados que na prática aproxima o processo de um ritual. Como prova disso a artista teve que provar a seriedade de suas intenções para que fosse permitido assistir ao sacrifício. Posteriormente, junto com um grupo de amigos convidados a participar, assistiu ao animal ser suspenso e sangrado até o fim, à maneira do rito judaico.
Os quatro longos vestidos brancos suspensos na trave variam do imaculado àquele que recebeu o primeiro jorro do sangue do animal, até aquele mais encharcado. Ao fundo uma fotografia apresenta-nos duas mãos postas, em concha, como se ofertassem aos nossos olhos. Diante dos vestidos, no chão, três cruzes feitas em tecido igualmente tingidos pelo sangue do animal. Por último, na parede da esquerda, uma sucessão de papéis. Em cada um deles a impressão deixada por uma víscera devidamente identificada e assinada pelo autor da ação. (Guia da 25ª Bienal – Sessão Verde – Salas especiais – 2002).
O lugar de onde é dito este enunciado artístico – Iconografias Metropolitanas
– desvela-nos as interfaces discursivas que o constituem, sua relação direta com o
religioso, com o artístico, com o jornalístico. Com o religioso, na medida em que usa o
cordeiro e o elemento sangue, enquanto estrutura formal64, o que produz um efeito de
sentido ligado diretamente ao discurso religioso. Esse sentido é inclusive sugerido na
própria sinopse da obra ao se dizer que na ação do abate eram tomados tantos “cuidados”
que o ato aproximava-se de um ritual (rito-mito-religião).
Podemos falar aqui, de um processo metafórico, na medida em que a obra é
reflexo de um processo simbólico de produção de sentido (“não é a coisa em si”, mas a
representação desta coisa). O que importa não é a reprodução do sacrifício do cordeiro
64 Entendemos, na arte, por estrutura formal todos os elementos plásticos que formam determinada obra
(tinta, estrutura bi e tridimensional, cores quentes ou frias, barro, vidro, etc.), são os elementos formais, os procedimentos técnicos.
101
(para a composição da obra), mas as representações deste sacrifício na leitura dos
espectadores. Nesse aspecto, vemos a relação mais forte com o discurso religioso.
Quanto à relação com o discurso jornalístico, podemos perceber
principalmente na medida em que a obra questiona, polemiza e debate o cotidiano dos
homens e, até mesmo, o denuncia. No momento em que a obra é lida de um espaço
nomeado de “Iconografias Metropolitanas”, mostra as faces da metrópole, as imagens
que a constituem. Temos aí um espaço de questionamento e denúncia instalado.
Sangue que remete à violência, vestidos que remetem à mulheres, às pessoas
do cotidiano desse lugar, à metrópole, ao alimento que depende do sacrifício. Fatos que
precisam ser contados. Mas a relação com o jornalístico vem, principalmente, porque o
próprio espaço de dizer, o evento artístico ganha visibilidade na medida que se converte
em fato jornalístico.
Finalmente, vemos a relação com o artístico pelas próprias condições de
produção deste enunciado e seu lugar de dizer. Uma obra construída por uma artista,
exposta num lugar de arte e lida em sua grande maioria por artistas. Este espaço é
reforçado ainda pelo reconhecimento de ser uma concepção artística merecedora de
destaque. Além de estar presente na Bienal, o lugar destinado para a obra é uma sala
especial, um espaço exclusivo destinado a artistas brasileiros homenageados. Ou seja, não
só o reconhecimento de artista, mas o reconhecimento de artista de destaque.
Diremos, então, que os sentidos do artístico não apenas constituem esse
enunciado, mas constituem-se na FD dominante que o atravessa sem ser exclusiva. Como
vimos, há ainda o atravessamento dos sentidos do religioso e do jornalístico, entre outros.
102
Entre outros, porque preferimos marcar o jornalístico e o artístico, não desconsiderando
outras interfaces possíveis.
Não estamos afirmando com isso que Karin Lambrecht65 tenha se embasado
literalmente em imagens ou fatos religiosos e jornalísticos para criar sua obra, o processo
descrito pela artista foi outro. O que estamos considerando é que o ato de criação em arte,
como qualquer outro, não é isento de atravessamentos ideológicos. O processo criativo é
carregado de interfaces históricas, sociais e ideológicas, e o artista, como qualquer
sujeito, insere-se de forma inconsciente ou pré-consciente (esquecimentos 1 e 2) em
formações discursivas para produzir seu discurso. Tais processos podem, como vimos,
ser tanto da ordem verbal quanto não verbal. Então, nesta análise, partimos do
pressuposto de que as imagens (discursos) vinculam-se assim:
ARTÍSTICO
IDEOLÓGICO
RELIGIOSO SOCIAL JORNALÍSTICO
HISTÓRICO
Ou seja, o discurso, sejam quais forem suas características, tem sua
ancoragem no Ideológico, no Social e no Histórico.
Conforme afirmamos anteriormente ao apresentarmos a noção de
heterogeneidade, um dizer se constitui de muitos outros. Partindo desta premissa para
65 Karin Lambrecht (1957) – Artista Plástica de Porto Alegre – RS Expôs sua obra Sem Título Sangue de
Carneiro s/ vestidos brancos 2001 200x500cm no 3º Piso A3 22 na 25ª Bienal de Artes SP
103
esta análise, diremos então que este texto imagético possui uma heterogeneidade do tipo
mostrada e não marcada em relação ao jornalístico; e uma heterogeneidade do tipo
mostrada e marcada em relação ao religioso66. Mostrada, em ambas as relações, pelos
fatores ideológicos e históricos que norteiam a questão do sacrifício. Não marcada na
primeira relação, porque os sentidos do jornalístico não têm suas marcas explícitas. Já na
segunda relação, a heterogeneidade é marcada pelas imagens que remetem a elementos
enunciativos do discurso religioso, por exemplo: o cordeiro, o sangue, a cruz, etc.
O texto de Karin, como qualquer outro texto, precisa da presença do
interlocutor para se fechar (para fechar um sentido, para que não seja qualquer sentido).
A característica principal da instalação artística é a inscrição do outro (interlocutor). Essa
relação (autor-leitor) depende do compartilhamento dos mesmos sentidos, ou seja,
necessita do compartilhamento de sentidos pré-construídos, que em AD são considerados
elementos do interdiscurso.
De um modo geral, o discurso da arte contemporânea tem um caráter
apocalíptico e catastrófico. Possui também o desejo de levar seu fruidor a uma reflexão, o
que inaugura uma posição de sujeito para o outro; e reforça a idéia de semelhança com o
discurso lúdico apontado por Orlandi. Vem ao encontro das próprias condições de
produção de linguagem assim definidas pela autora na mesma obra em que fala dos tipos
de discurso
(...) a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes processos: o parafrástico e o polissêmico. Isto é, de um lado, há um retorno constante a um mesmo dizer sedimentado – a paráfrase – e, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento. (...) A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o
66 Estamos nos apoiando na noção de heterogeneidade de Jaqueline Authier e na classificação proposta pela
autora.
104
garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do discurso, tensão entre o texto e o contexto social: o conflito entre o “mesmo” e o “diferente” (Orlandi,1978), entre a paráfrase e a polissemia. (Orlandi, 1987 p.27)
Parece-nos a exata descrição do espectador diante da instalação de Karin
durante sua visita a Bienal. A obra contemporânea em geral, como também esta que
estamos analisando particularmente, se caracteriza por produzir uma “tensão que aponta
para o rompimento”. O cidadão inscrito nas “Iconografias metropolitanas” é levado a
deslocar o sedimentado, o garantido dos enunciados.
A polissemia do texto de Karin, como dissemos anteriormente, aponta para
uma heterogeneidade mostrada, mas nem sempre marcada. Entendemos que a
heterogeneidade mostrada e não marcada está diretamente relacionada ao que chamamos
pré-construído compartilhado, ou seja, algo está sustentando o dizer, ou não.
Esse sentido pré-construído das “Iconografias Metropolitanas” pode ser
relacionado a todos os objetos expostos ali, já que todos eles se inserem no discurso
metropolitano de alguma forma. Esse sentido funciona como um saber “prévio”, mas que
aparece no momento mesmo do enunciado (exposição da instalação). Prévio, não em
relação temporal, convocado como tal no enunciado posto. No caso do enunciado aqui
tratado, o “prévio” é o sacrifício na metrópole.
A questão que persiste agora é: até que ponto o DA constrói uma
possibilidade de representação da obra fora do seu acontecimento que a funda, ou seja,
por uma imagem de si. Em outras palavras, até que ponto uma interpretação da obra
materializada em uma imagem dela mesma, mantém os sentidos que lhe são próprios?
Desta forma, seguimos agora para uma análise de gestos de leitura desta
mesma obra, em outros espaços que não o da Bienal, em processos discursivos do tipo
verbal e não verbal. Neste ponto, partimos para uma experiência com gestos de leitura e
105
interpretação inscritos no interior do DA, no entanto, partindo da imagem da obra de
Karin, e não da própria obra de arte.
7.2 ATO I: GESTO DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO NO
ESPAÇO TEATRAL A PARTIR DE UM TEXTO IMAGEM
PRÓPRIO DO ARTÍSTICO
A experiência de análise do gestual cênico que realizamos foi com o grupo do
NCT - OfiCenas 567. Adotamos a seguinte metodologia: Dividimos o grupo de atores em
dois subgrupos. Disponibilizamos uma imagem da Instalação de Karin Lambrecht da 25a
Bienal das Artes Plásticas “Iconografias Metropolitanas” (D:\figura01.jpg)68. Uma
imagem que se inscreve no discurso da arte contemporânea, e faz referência à instalação
já referida na seção anterior.
Solicitamos aos atores a observação da imagem. Como a proposta era um
gesto de interpretação não verbal, os atores até poderiam tecer breves comentários sobre
o que viam, mas deveriam imediatamente partir para uma pesquisa gestual para
expressarem sua leitura da obra, no entanto, poderiam voltar a observação da imagem
quando sentissem necessidade, porém sem comunicação verbal sobre o que liam.
Deu-se início à interpretação por meio da pesquisa de gestos. Em ‘silêncio’
começaram, então, a compor a cena optando por uma composição de gestuais corpóreos a
67 Núcleo de Criação Teatral da Universidade do Contestado - Canoinhas 68 Ao clicar no links o leitor tem acesso à imagens que estão sendo discutidas.
106
partir das energias do ar, fogo e água. A partir daí não houve mais elaboração verbal
(D:\video3.mpg).
Pensamos ser importante ressaltar que, na mesma época, o grupo trabalhava
na encenação de um fragmento da tragédia grega de Eurípedes, Medéia, cujo roteiro leva
a protagonista a um ritual de sacrifício. Nesse caso, a metodologia dos ensaios era voltada
à pesquisa de movimentos a partir das energias dos elementos naturais (fogo, terra, água,
ar). Devido a estes pressupostos, falar em gestualização com base em partitura de
movimentos era um procedimento conhecido pelo grupo.
Cada atriz escolheu um elemento e pesquisou uma partitura de três
movimentos os relacionando com uma parte da imagem observada. A atriz que escolheu
o elemento ar, relacionou seus movimentos com a leveza e a pureza do vestido branco,
aquele que não tinha nenhuma mancha de sangue. Seus movimentos foram leves,
deixando transparecer um certo ar de inocência.
A segunda atriz optou pelo elemento fogo, movimentos ritmados e rápidos
sempre para cima, trabalhando vários planos visuais. Buscando externar sentimentos de
violência, dor, sacrifício, simulando uma situação de parto. Relacionou seus movimentos
com o vestido mais sujo de sangue, seus movimentos obedeciam uma certa pulsação.
A terceira atriz escolheu o elemento água, relacionando sua escolha à
materialidade do pigmento utilizado na imagem, o sangue. Água e sangue por terem
similaridades de forma, ambos líquidos, podem espalhar-se e serem absorvido pelo
tecido, silencioso, assim como a morte, ação esta, escolhida pela atriz.
107
Percebemos, tanto na descrição da cena quanto na observação visual das
imagens em vídeo, que as atrizes produziram os inúmeros sentidos que atravessam seus
dizeres gestuais (do abate, do sacrifício, da morte, do ritual, etc.). Tais percepções se
confirmaram depois em debate sobre a pesquisa e a produção da cena, no depoimento das
atrizes.
Para produzir um dizer cênico, as atrizes recorreram ao entrecruzamento da
memória individual, da memória mítica, da memória social e também da construída pelo
fazer teatral. Individual, primeiro porque discutiram a imagem, expressando verbalmente
seu ponto de vista. Mítica, ao trazerem para a discussão a questão dos elementos naturais
e a percepção do elemento pictórico – sangue, o que leva a recorrer à memória social, o
contato com o religioso, a questão do sacrifício, e em consenso69 buscaram, na figura da
mulher, a personagem principal. Mas, ao iniciar a montagem da esquete, as atrizes
buscaram na memória construída pelo historiador70, o ponto de conexão dos sentidos, e
aqui estamos tratando de um processo discursivo fundamentalmente não-verbal.
Neste momento surge o gesto fundador deste dizer cênico materializado na
“escolha” do lugar de onde dizer. Temos aqui uma complexa conexão de sentidos
sobrepostos, de memórias, expressas em uma prática fundada em um processo não
verbal. (D:\video5.mpg)
Embora o grupo tenha utilizado expressões verbais ao final do trabalho, toda
a pesquisa estava ancorada em um processo não verbal, o que permitiu mais elasticidade
ao gesto de leitura e interpretação. O que nos propomos apontar não é um processo em
69 Esse consenso nasce de um processo predominantemente não verbal. 70 A memória que operaria contextualmente, considerando o entrecruzamento de outras memórias.
108
detrimento do outro, mas como esses dois diferentes processos, o verbal e o não-verbal,
se entrecruzam e se sobrepõem segundo as determinações das formações discursivas nas
quais eles se dão.
Já comentamos anteriormente, durante a fundamentação teórica, sobre o
discurso artístico, que apesar desse discurso não desprezar os processos verbais, nele há
uma dominância de processos não-verbais.
No caso deste grupo, o gesto de leitura se fundamenta no não verbal, não pela
ausência de palavras, mas por ser o texto-origem visual, por serem os elementos de
pesquisa, símbolos gestuais, resignigificados pelos sujeitos e por estarem inscritos em
uma discursividade artística. Isso faz com que as palavras percam seu caráter de
linearidade e ganhem em valor significante. Não mais a busca pelo sentido ‘literal’, mas,
a abertura para a pluralidade de sentidos, retomando o caráter de ludicidade que é próprio
do DA.
7.3 ATO II: GESTO DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO NO
ESPAÇO TEATRAL A PARTIR DE UM TEXTO IMAGEM DO
JORNALÍSTICO
Ao realizarmos uma experiência de gestos de leitura a partir de um texto-
imagem do discurso jornalístico, buscamos inicialmente os argumentos teóricos em
Mariani sobre o discurso jornalístico71.
71 Nossa intenção de pesquisa não é a de analisar o discurso jornalístico ou o discurso pedagógico, mas
apontando as características do discurso artístico e percorrendo analiticamente processos discursivos verbais e não verbais, buscar as marcas que diferenciam essas diferentes tipologias discursivas. Pela
109
O discurso jornalístico funciona regido por essas “relações sociais jurídico-ideológicoas”: ele é responsável por manter certas informações em circulação e, com isso, contribuir na manutenção dessas relações sociais-jurídico-políticas. Dito de outra maneira, a imprensa é constituída por uma “norma identificadora”, resultado da aplicação da Lei, mas, ao mesmo tempo, esse discurso jurídico-político se apaga na história da impressa, como se fosse evidente que os jornais só são veículos de comunicação. Os rituais jornalísticos, designados como devem ser, de acordo com a Lei, acabam sendo representados sob a evidência de que são unicamente e sempre assim. (Rua, Campinas, 5 p.55, 1999)
Por termos selecionado para a pesquisa um texto-imagem inscrito no discurso
jornalístico, tivemos a necessidade de conhecer o funcionamento deste discurso, a fim de
buscar as condições de produção desta imagem, de como ela se constitui.
O discurso jornalístico está intrinsecamente ligado ao discurso jurídico. De
acordo com as observações de Mariani (1999), ao longo de sua história o discurso
jornalístico foi “formando uma jurisprudência própria, na qual o poder de poder dizer
algo – entendido como comunicar, informar, mas não opinar – ficou inevitavelmente
ligado à censura”. O que é possível perceber, neste caso, é como opera o silêncio censura,
apontado por Orlandi (2002) como o silenciamento, pertinente à categoria da ‘política do
silêncio’ que só pode ser determinada pela posição que o sujeito assume no interior de
uma FD que diz o que pode ou não, ser dito. O silêncio aqui, como o que não pode ser
dito.
Na imagem, vemos corpos no chão (dito – morreram por algum motivo), há
pessoas em volta, mascaradas, não dizem quem são. A foto informa, mas não opina. O
leitor é informado sobre aquilo que ele já conhece (informação prévia): a violência e a
formação de gangues nos presídios, o controle das quadrilhas, etc. Os leitores são
análise discursiva, verificar as marcas do jornalístico, do pedagógico e do artístico em processos não verbais.
110
informados sobre aquilo que quem tem o poder de dizer, diz: são “Os 7 vermes do CDL”,
‘mais uma guerra entre facções rivais’.
Tais características afetam os gestos de leitura da imagem. A imagem
jornalística possui uma linearidade descritiva própria. Em outras palavras, o dito é tão
forte e carregado pela ‘política do silêncio’ que de certa forma somos ‘obrigados’,
levados ao sentido possível, um dizer recortado pelo silêncio e que requer uma
interpretação legitimada.
Figura 11
111
O texto-imagem72 em questão foi igualmente interpretado por atrizes do
Núcleo de Criação teatral da UnC - Canoinhas (D:\figura02.jpg). As atrizes fizeram uma
observação, um breve debate e em seguida passaram à pesquisa de gestos. Durante a
interpretação do grupo, dois fatores chamaram nossa atenção: o fato de,
coincidentemente, a imagem que apresentava uma problemática social ficara, justamente,
nas mãos de atrizes com formação acadêmica no curso de Serviço Social e, de ambas
trabalharem com crianças em ‘situação de risco’. Fator esse, que de alguma forma,
determina a posição sujeito assumida por essas leitoras. A pesquisa se deu igualmente por
meio de partituras de movimento, a comunicação das atrizes era por meio de gestos, sem
interferência verbal. Houve a opção por movimentos de força e
resistência.(D:\video2.mpg).
O texto-imagem, como já falamos, é proveniente do jornalístico, em que a
ordem de dominância é do verbal e, portanto, tende à linearidade. A imagem mantém em
sua visualidade a mesma estrutura do texto jornalístico escrito que ele ilustra. O que, ao
nosso ver, provoca não só efeitos de linearidade, como de paráfrase. A linearidade
acentua-se na composição da cena, quase uma narrativa, início e meio já indicam o
desfecho da cena. Paráfrase porque o que ocorre é uma “colagem” da imagem para o
gesto. Mesmo que os sujeitos estejam inscritos no DA, onde a ruptura e a contestação são
características principais, o fato de partir de um sentido fechado, dificulta o processo de
ruptura.
Em última instância, o gesto de leitura que pertence a um discurso
predominantemente lúdico (DA), nesse caso, tem como “fonte” um dizer pertencente a 72 Capa A Folha de São Paulo 04 de maio, 2002. A imagem que ilustra a matéria de capa do jornal,
versando sobre a rebelião que citamos acima ocorrida no presídio de Guarulhos.
112
um discurso predominantemente autoritário. O que observamos é a constante tentativa de
ruptura73.
Portanto, temos aqui, o entrecruzamento do discurso jornalístico e do discurso
artístico. Segundo Mariani (1999), o discurso jornalístico diz, de um lugar
institucionalizado, se constitui num discurso institucional, que como qualquer outro é
constituído de sua historicidade. Essa historicidade constitutiva é que permite esse dizer
de uma forma e não de outra, mesmo sendo um gesto de leitura a partir de uma imagem.
As relações de heterogeneidades são da ordem marcada e mostrada em
relação ao jornalístico. Com isso marca-se uma relação direta com a temática da
reportagem em que se insere a imagem. Mesmo sem ter o conhecimento do texto da
reportagem, o efeito parafrástico se instala na interpretação da imagem, como se a
história da imagem e do texto que a compõe fosse recontada pelo gesto. (D:\video2.mpg).
Na segunda instância, no que diz respeito à opção de apresentação da cena,
que novamente retoma essa relação de heterogeneidade na opção técnica de encenação,
temos a utilização de sombras. A cena não ocorre diretamente sob os olhos do público,
mas, mesmo assim, é possível vê-la. Uma relação direta como o fato jornalístico, é
possível lê-lo, no entanto, ele não acontece sob nossos olhos diretamente.
(D:\video4.mpg)
A forma técnica escolhida é que de alguma forma é, ao nosso ver, afetada
pela posição sujeito do DA. A relação das sombras com os sentidos velados da situação
73 Em uma experiência realizada num espaço pedagógico, nem mesmo chega ocorrer a tentativa de ruptura,
o que temos é um texto imagem do jornalístico (predominantemente autoritário) interpretada por sujeitos inscritos no pedagógico (predominantemente autoritário) cujo resultado é um gesto de leitura parafrástico e uma interpretação linear sobre o fato ocorrido.
113
descrita; vela e revela que houve assassinato, mas o motivo está ‘escondido’. A chacina
ocorre atrás dos muros de um presídio, o assassinato da cena ocorre atrás de uma tela. A
chacina do presídio é ‘mostrada’ pela impressa. O assassinato da cena é ‘mostrado’ pelas
atrizes. A relação aqui é mais polissêmica. (D:\video4.mpg).
Por outro lado, ao optar pela técnica de sombras, o gesto de interpretação das
atrizes explicita um terceiro elemento, a opacidade da cena. Essa opacidade é o que vaza,
o que ultrapassa esse pseudo-efeito de reprodução; é a marca que mostra a transposição
da pura repetição, é a explicitação da opacidade da cena materializada na tela – na técnica
do teatro de sombras. Essa tela que encobre (e ao mesmo tempo mostra), corresponde aos
fatos nunca revelados que levaram à chacina ou, então, à dose de anestesia com que o
leitor do jornal lê a cena, ou outros sentidos que aí se sobrepõem.
Provavelmente, os sentidos dos movimentos teriam outra interpretação se
ocorressem em frente a tela e não por traz dela. É justamente essa opção de cena que abre
novamente o movimento polissêmico que confere aos gestuais a opacidade necessária
para múltiplas leituras e não apenas aquela oferecida pelo efeito de linearidade. O efeito
de linearidade ocorre neste caso, mas em menor grau.
De certa forma, são as características do discurso artístico, como a polissemia
aberta, que permitem aos dizeres gestuais das atrizes, dilatarem-se e oferecem através de
sua interpretação, a opção de outros gestos de interpretação possíveis.
Pudemos perceber o papel da memória neste processo de produção de
sentidos. Retomamos as idéias de Pêcheux em relação à noção de memória, tratada neste
estudo não apenas como a da memória individual, mas nos sentidos entrecruzados da
memória mítica, da memória social inscrita em práticas e da memória construída pelo
114
historiador. A memória, aqui, se estabelece pelos sentidos entrecruzados das formações
discursivas do discurso jornalístico, da mídia e da sociedade; sentidos postos no dizer e
sentidos opacos, tal como a cena nas sombras.
Ao realizar um gesto de interpretação de um enunciado do discurso
jornalístico, mas, estando os sujeitos inscritos num discurso artístico, o “grau” de
polissemia dessa interpretação se amplia. A temática do dizer permanece a mesma,
afetada pelo discurso institucionalizado da mídia, mas o processo de produção desses
dizeres está inscrito no artístico conferindo, assim, uma opacidade ao enunciado da cena.
Das experiências realizadas, tecemos as seguintes observações: A temática
abordada no capítulo sobre a estética, se faz presente desde os textos-imagem até os
gestos de interpretação, em ambos os casos. Ou seja, a temática ‘Sacrifício’ é identificada
tanto na imagem da obra de arte, quanto na foto jornalística. Ambas imagens são de
divulgação (uma do discurso artístico e outra do discurso jornalístico) temos a imagem de
uma obra e a imagem de um fato e, a partir delas, gestos de leitura e interpretação.
Os gestos de interpretação em questão são realizados no espaço do artístico
(grupo de teatro). Tais gestos, portanto, estão afetados pelas condições de produção
inerentes ao DA.
No caso da imagem da obra de arte, os gestos de leitura estão isentos de
linearidade ou narrativa, provocando uma aumento no “grau” de opacidade. O que temos
é um processo de interpretação predominantemente polissêmico.
No caso do gesto de leitura realizado a partir da imagem do jornalístico,
apesar dos sujeitos estarem inscritos na DA, o processo de leitura é fortemente afetado
115
pelo verbal, desde a constituição da imagem até a efetivação da cena nos gestuais
cênicos, o que confere aos gestos uma caracterização de narrativa, linearidade,
diminuindo o grau de opacidade. O que temos é um processo de interpretação
predominantemente parafrástico.
No primeiro caso, temos um processo discursivo que se fundamenta no não
verbal do início ao fim, o que aumenta consideravelmente o grau de polissemia. Temos
um espaço de interpretação (Cênico) inscrito no interior de uma FD, do artístico. Parte-se
de uma imagem também inscrita no mesmo discurso. Por conseguinte, o processo parte
de uma polissemia aberta e não verbal e chega a uma polissemia aberta e não verbal e,
ainda, se mantém polissêmico durante o desenvolvimento.
Na segunda imagem, temos um produto de um processo parafrástico. A
imagem traz em sua constituição o processo discursivo predominantemente verbal,
vincula-se a uma FD do jornalístico.Assim, mesmo sendo interpretada num espaço do
DA o efeito de sentido tende ao fechamento, pois sua constituição dificulta o processo
polissêmico que é próprio do artístico.
Temos textos-imagem vinculados a dois discursos diferentes, um artístico e
outro jornalístico. Um polissêmico e outro parafrástico. As características de cada
discurso a qual as imagens estão vinculadas, permanecem marcadas nos gestos de
interpretação das imagens.
Tentaremos, por meio de um esquema, elucidar essa relação entre processos
verbais e não verbais e as relações entre paráfrase e polissemia. Porém temos a
consciência de que corremos o risco de sermos reducionistas por um instante, mas a
validade do esquema está em seu intento de elucidar nosso percurso.
116
8 ENTÃO, O QUE TEMOS:
Temática Sacrifício
Imagem de uma Obra de Arte
Imagem de uma Foto Jornalística
DIVULGAÇÃO
Processo de Produção Não Verbal
Processo de Produção Verbal
Gesto de Leitura no Artístico Não Verbal
Não Narrativa
Ausência de Linearidade
Maior grau de Opacidade
POLISSÊMICO
Narrativa
Linearidade
Menor grau de Opacidade (busca de transparência)
PARAFRÁSTICO
Gesto de interpretação (como pode ser dito de outra forma)
Gesto de Leitura (o que quer dizer)
117
Ao final das experiências, tornou-se pertinente retomar algumas percepções e
questionamentos a fim de tecermos as pontes necessárias com a teoria a qual nos
filiamos.
A questão motivadora desta pesquisa, conforme formulação introdutória do
trabalho, está relacionada à forma de funcionamento do artístico e sua relação com o não
verbal. A escolha da AD como teoria de base determinou o método de análise.
Então, até aqui pudemos constatar, primeiramente, que ao tomar o não verbal
em uma perspectiva discursiva, não se pode considerar, exclusivamente, o produto
(imagem ou texto), mas fundamentalmente o processo de produção de sentido.
Assim, para compreendê-lo e para compreender suas condições de produção,
fomos levados à observação da FD dominante na qual se produz esse sentido, e que
caracteriza aquilo que estamos chamando de Discurso Artístico (DA); o DA, portanto,
tomado aqui enquanto funcionamento discursivo predominantemente polissêmico e
lúdico, com múltiplas possibilidades de leitura e interpretação; e fundamentalmente não
verbal, não linear, não orientado em um único sentido.
Para termos certeza de que a determinação daquilo que estamos chamando de
“não verbal” é discursiva, e não estrutural, tomamos para análise comparativa, uma
imagem cujos sentidos foram cunhados em outro discurso, o Discurso Jornalístico. Nesse
caso, ao contrário do que tínhamos observado na imagem anterior, a interpretação não
gerou múltiplas leituras, mas uma que predomina e fecha o sentido.
118
Como nos dois casos tratava-se de produtos não verbais, pudemos comprovar
que em uma perspectiva discursiva a forma (verbal ou não verbal) do produto não é
produtiva, não constitui categoria.
A diferença produtiva é relativa ao processo (verbal ou não verbal) e,
conseqüentemente, é relativa às determinações históricas e ideológicas.
Mantivemos nos dois casos a mesma estratégia de interpretação, ou seja, a
interpretação cênica, determinada pelo DA, a fim de que pudéssemos responder aos
intentos desta pesquisa: a observação do funcionamento do discurso artístico e os
processos discursivos que o constituem.
119
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao tentarmos compreender o artístico, percorremos análises e leituras
semióticas (PEIRCE), semiológicas (BARTHES), filosóficas e estéticas (FOUCAULT) a
respeito da obra de arte.
Nossa experiência, mesmo enquanto pesquisadores na área de arte, tanto no
campo teórico quanto no campo da poética, não nos afastava de uma abordagem que
estivesse mais voltada a uma percepção da obra enquanto estrutura.
Nossa principal inquietação era a de perceber uma obra do ponto de vista
discursivo, tratá-la enquanto estrutura e acontecimento (PÊCHEUX), considerando o
artista um sujeito histórico ideológico e social.
Percebemos, então, a obra de arte não apenas como estrutura ou fruto de um
acontecimento, mas como acontecimento específico na forma de um gesto de
interpretação. Percebemos o artista assumindo a autoria de um dizer que nasce justamente
do acontecimento, e, já que estamos tratando de imagens tanto do jornalístico, quanto do
artístico, pensamos em um ‘trocadilho’ para explicar o papel do artista: o artista é um
repórter de seu tempo. Mas um repórter que transgride as leis da imparcialidade
jornalística e que imprime sim a sua percepção a respeito dos acontecimentos que o
circundam, mas ao mesmo tempo assume tudo que afeta esse olhar, e que não é de uma
dimensão propriamente individual.
120
Ao percorrermos análises ou críticas de obras de arte, percebemos que são
poucos os teóricos que incluem o histórico ou o social ao abordarem o dizer artístico. Na
grande maioria das abordagens teóricas esses aspectos até são considerados, mas ora do
ponto de vista social, ora do ponto de vista histórico, sem nunca deixar de dar ênfase as
questões estruturais da obra.
Ao caracterizarmos o DA como predominantemente lúdico e polissêmico,
inferimos a ele esses caracteres de polifonia/polissemia/ policromia e percebemos que
suas condições de produção são de ‘liberdade’, seu espaço de constituição é de uma
materialidade histórica que se fundamenta na ruptura, na subversão74, na não linearidade,
tanto no processo verbal quanto no processo não verbal. O objeto de arte, dotado de
discursividade, não está apenas num lugar único de significação, pois opera sempre num
espaço de re-significação, o que já remete a outros dizeres possíveis. Não é um dizer
determinista, justamente por ser aberto (poli), ou seja, não há determinismo histórico,
assim como na língua ou como na lei, embora haja consistência. A consistência histórica
e ideológica do DA vem justamente do espaço de interpretação, de um espaço
democrático de interpretação que funda um gesto próprio.
Achamos produtiva a comparação do DA com a lei e com a língua: tanto
numa quanto na outra, a tendência é para um sentido absoluto. Aquele que tem o poder de
interpretação (no caso da lei) tem o status do sentido dominante. No caso da língua, há
uma exigência de uma formulação prévia para acessar o sentido. Já no caso da arte, o
espaço da interpretação é multidirecional, a consistência do sentido não é dada apenas por
uma interpretação legitimada somente. Ou seja, o leitor de uma obra pode ser desde o 74 E, talvez, essa seja uma das maiores dificuldades em tomar como corpus enunciados artísticos, pela sua
cambialidade constitutiva.
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crítico de arte até uma criança na mais tenra idade, nem mesmo requerendo para isso
alfabetização verbal. Mesmo tratando-se de leituras diferentes, o espaço de interpretação
é o mesmo, não há interpretação proibida ou ilegítima e mesmo assim o sentido não é
qualquer um, pois possui uma materialidade tanto histórica quanto física em seus modos
de produção. O DA é aberto e oferece a todo e a qualquer sujeito a possibilidade da
articulação de sentido. Essa forma de articulação polissêmica garante um lugar no interior
da FD dominante desse discurso. Esse lugar é de um tipo de materialidade histórica
sempre polêmica, e a produção de sentido se dá justamente na ruptura. Arriscamos dizer
que a Arte é condenada a interferir, a transformar, e o faz pela ruptura, pela contestação,
instituindo assim seu lugar, que por sua vez também não é sedimentado, mas cambiante.
Nas experiências com os gestos de leitura; as marcas do DA se fizeram
presentes tanto nas imagens, quando na interpretação destas. As ‘condições de liberdade’,
(polissemia/policromia/ polifonia) inerentes ao DA, já estavam presentes na constituição
da imagem e permaneceram nos gestos de interpretação, promovendo deslocamentos de
sentidos e produção de novos sentidos. Restava-nos observar se essa forma de
interpretação polissêmica se mantinha pela constituição do DA ou pela forma de
interpretação que era o processo não verbal. Ao analisarmos uma imagem filiada ao
discurso jornalístico percebemos que as marcas do jornalístico também se mantinham
(fechamento/linearidade/ narrativa/ paráfrase), mas as opções técnicas da interpretação
cênica imprimiam pequenos graus de polissemia. O discurso (FD dominante) se
mantinha, porém havia efeitos de opacidade. A imagem produzida pelos gestos teatrais
era de contestação e polêmica sufocadas pela paráfrase, mas no entanto presentes75. O
75 A marca disso era o uso da tela branca, que mostrava sem mostrar.
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que nos leva à diferenciação entre gesto de interpretação e gesto de leitura. O gesto de
interpretação é mais forte do que os gestos de leitura que os sucedem. Tentamos
compreender o funcionamento do discurso artístico enquanto gesto de interpretação
(fundador) e enquanto gesto de leitura. Tanto em um caso como no outro, sua
característica permanece sendo a de polemizar e mostrar que o sentido pode ser outro.
Por sua característica de base ser a abertura - polissemia - as condições de produção do
sentido são de “liberdade”, de não linearidade. O que nos leva a propor que não é apenas
o processo não verbal, ou o fato de ser uma imagem ou um gesto, que garante essa
abertura. Mas o fato de que esta é a característica mais própria do artístico, e que a
abertura provocada por uma obra (imagem ou gesto) só ocorre por estar filiada ao DA e
não a outro discurso. Portanto, não é a forma verbal ou não verbal que determina a
polissemia ou a paráfrase, e sim a inscrição desta forma no discurso, é ele que determina
o grau de fechamento ou abertura do gesto de interpretação76.
Os sentidos produzidos no interior do DA, sejam eles pela via de imagens, de
sons, de movimentos ou até mesmo de palavras, são gestos de interpretação de
acontecimentos outros que podem estar filiados a diferentes formações discursivas. São
as características do DA em confronto com as características desses outros discursos que
determinarão os graus de polissemia do sentido (da leitura). Esse processo é o que
chamamos do acontecimento próprio do DA.
Não nos cabe, neste estudo, propor definições para a Arte (nem acreditamos
no conceito de definição). O que apontamos são características do DA. Dentre as
discussões até hoje delineadas, tanto na teoria da arte quanto na crítica da arte, 76 Poderíamos pensar, por exemplo, em uma placa de trânsito que é um enunciado “não verbal” inscrito em
um discurso jurídico cujo sentido é fechado (tem que ser fechado) para funcionar.
123
encontramos a apropriação da denominação discurso em várias instâncias: discurso de
arte, discurso sobre arte, discurso da arte. Mas o que nos propusemos a pensar neste
estudo, filiados à linha de Análise de Discurso francesa, são os modos de funcionamento
próprios do DA, entendendo-o enquanto estrutura e acontecimento. Ou seja, não tratamos
aqui do discurso sobre obra de arte ou do discurso da arte, mas ao escolhermos uma obra
de arte nos preocupamos em estudá-la e analisá-la, tanto do ponto de vista discursivo
quanto do ponto de vista estético, buscando bases teóricas que sustentassem nossas
percepções.
Essa posição de entremeio nos possibilitou a observação do processo
discursivo. Do ponto de vista artístico (uma vez que optamos pela imagem da obra e pela
interpretação cênica desta imagem), estávamos tratando o fazer artístico teatral – pesquisa
e produção de gestos. Do ponto de vista discursivo (porque realizávamos uma análise do
processo discursivo durante o seu acontecimento), foi possível não só chegar às
características que constituem o DA como também pensar nos processos e formas
ocorridas no interior deste.
Neste ponto enfatizamos que muitos questionamentos persistem e temos
consciência de que, ao apontarmos para o funcionamento do DA, não estamos em
nenhum momento tencionando para uma definição de Arte, somos cientes dessa
impossibilidade. O que tentamos foi tratar com a opacidade constitutiva, que é própria do
simbólico e que, portanto, é própria do artístico. Principalmente, pela observação do
funcionamento do DA perceber a obra não apenas enquanto estrutura, mas enquanto
acontecimento. Do ponto de vista discursivo, o acontecimento surge do confronto de
124
FDs. Uma vez que o confronto é também inerente à Arte, então como considerá-la apenas
expressões e planos, forma, sons ou movimentos?
O discurso artístico, ao se constituir como tal, assume uma posição de
deslocamento que permite, assim, como a AD, trabalhar a produção de sentido nas
fronteiras de FDs diferentes, ou seja, um distanciamento crítico, um gesto de
interpretação, a partir de gestos de leituras outros, inscritos no interior de um conjunto
complexo de FD. Nos permitimos uma analogia possível a ser feita entre o trabalho do
analista e o trabalho do artista, já que, nos dois casos, trata-se de compreender o sentido
que se produz, outras formas possíveis de dizer o que se diz. Tanto o analista de discurso
quanto o artista são possuidores de um olhar crítico sobre o acontecimento, ou seja, tecem
gestos de interpretação. Um por meio de um dispositivo verbal e teórico e outro por meio
de um dispositivo predominantemente não verbal e artístico.
Na Arte como na AD, não atribui-se um sentido, mas pergunta-se: como esse
sentido é possível e quais são suas condições de produção/construção.
Se um dizer se constrói sobre outro, olhares se constróem também a partir de
outros olhares, percepções a partir de percepções. O acontecimento do DA é efeito dessas
percepções dos acontecimentos do mundo que nos circunda. O artista um
‘repórter/delator’, um analista de seu tempo. Um sujeito histórico, ideológico e social.
Um sujeito do e no DISCURSO.
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