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Ano 2 | Nº 7 | Nov 2013
ISSN 2316-8102
DO PROJETO À EXPANSÃO: DESENHO EM PERCURSO NA
ARTE PERFORMÁTICA por Renan Marcondes
Artigo realizado com a colaboração, para o levantamento de material, de Andrea
D’Amato, Jorge Feitosa, Aline Arcuri Tima, Mariana Sanches.
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As marcas do desenho são como a fala: elas tentam e falham, mas
nessa tentativa há uma marca de um traço deixado, que testemunha a intensidade de um momento no tempo no qual algo aconteceu.
Monika Weiss
O desenho é, antes de tudo, pensamento projetado. Etimologicamente, pode-se
perceber como a relação entre o pensamento e a materialização é estreita: o termo disegno
significa tanto a projeção e a ideia quanto o contorno e a execução manual do traçado. Essa
mesma relação ocorre com a palavra francesa dessein, que possuía ambos os significados até
o século XVII. Atualmente, como aponta a pesquisadora Jacqueline Lichtenstein, há a divisão
dos conceitos entre as palavras dessein (desígnio) e dessin (desenho), assim como a língua
inglesa distingue os termos design e draw (LICHENSTEIN, 2004: 19).
Historicamente, podemos observar no Renascimento as primeiras teorizações a
respeito da relação entre a ação de desenhar e o pensamento, em consonância direta com a
intelectualização da arte decorrente do período. Federico Zuccaro, pintor maneirista italiano,
defende em 1607, com seu texto Ideia dos pintores, escultores e arquitetos, que o desenho é
correspondente direto de conceitos como intenção, exemplar e ideia, sendo sua nomeação
enquanto desenho gerada apenas pela especificidade de seu fim a um propósito artístico
(ZUCCARO, 2004: 41). No mesmo texto, há a defesa de uma origem interna do desenho,
formada no intelecto humano [1]. Desenho esse que, ao ser externalizado, é apenas operação
para a compreensão de como aquela ideia se formou dentro do intelecto. Já em Derrida, o
desenho surge novamente como experiência do sujeito, porém compreendido não mais como
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uma materialização do que se vê do mundo, mas sim como experiência de enceguecimento,
da não-visão. Para o filósofo “eu não posso desenhar o que vejo, eu nunca desenho o que
vejo” (DERRIDA, 2012: 180). Essa relação essencialmente interna do desenho também se
configura no desenho externalizado, já que para Derrida o traço, ao remeter sempre a outra
coisa e nunca a si mesmo, torna-se elemento insignificante, dando a ver, mas não sendo visto.
Essas breves colocações acerca da relação entre o ato de desenhar e o pensamento que
circunda esse ato abrem campo para a discussão que aqui levantaremos, que visa a aproximar
o desenho da performance art, linguagem artística que, desde seu surgimento, nos anos 60,
tem estabelecido relações de diversas ordens com o desenho, que reverberam até a produção
de jovens artistas brasileiros. Para tanto, desloquemo-nos um pouco da ação específica de
desenhar para pensar brevemente sobre a ação em si. De acordo com diversos teóricos que
discorrem acerca da presença da ação na arte, existe uma diferença clara entre gesto e
movimento, que se caracteriza por uma questão de consciência. Patrice Pavis, em seu
Dicionário do teatro, define o movimento como a “maneira neutra e comum de designar a
atividade” (PAVIS, 2008: 252), enquanto cita o gesto como um “movimento voluntário e
controlado” (PAVIS, 2008: 184). Ou seja, há no gesto uma intencionalidade e um objetivo
que o aproximam da ideia de desenho enquanto um desígnio, ou seja, enquanto algo que
signifique o fazer, dada a intenção impressa na ação.
Porém, ao se pensar nas possíveis relações entre desenho e performance, se nos
limitarmos na relação de que toda ação previamente determinada em uma performance possui
um vínculo direto com o desenho, por seu caráter objetivo e projetado, estaremos não
somente superficializando as relações, mas também deixando de lado a relação
fenomenológica existente em toda performance, que altera a noção de projeto acima citada ao
problematizá-lo dentro do tempo da ação e as alterações que podem ocorrer nele. Assim, na
tentativa de objetificar as relações que poderiam ser estabelecidas e eliminar esse possível
lugar de liquefação onde tudo se faz possível, três eixos foram estabelecidos e brevemente
discutidos nas seções que se seguem.
O primeiro eixo compreende o desenho enquanto uma projeção mental ou utilizado
enquanto registro e partitura para a transmissão de um movimento ou ação. Já o segundo
pensará no gesto do desenho trabalhado como inscrição e registro da ação do corpo. Por fim,
o terceiro eixo apresenta o desenho em uma ideia expandida, na qual a marca gerada pelo
embate entre matérias e a expansão da linha se apresentam como possibilidades de se pensar o
desenho. Por meio de artistas e trabalhos pontuais da linguagem performática, busca-se um
levantamento que revisite essa relação entre linguagens tão pouco aprofundada.
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O vetor da ação
Na performance Shoot (1971), de Cris Burden, o artista pede ao seu assistente para
que atire em seu braço e logo após o pedido a ação é realizada. A potência de projeção nesse
caso é dupla: a instrução (entendida como uma partitura vocal: “atire!”) e a realização da ação
pelo assistente. Desde a instrução, já existe um resultado compartilhado e projetado por todos
os presentes na ação, pois se sabe os efeitos de um tiro sobre o corpo de uma pessoa. O
desenho ocupa aqui o limiar entre o que se imagina e o que se realizará, enquanto potência
virtual de uma ação futura. Comecemos então pensando primeiro no desenho como potência
para projetar uma ação performática. Para tanto, vale usar a noção de desenho como projeto e
sua origem latina designare (desígnio dos deuses, algo que é descrito, prescrito e previsto
para realização) para pensar em um lugar no qual o desenho se situa no limiar entre o que se
imagina e o que se realizará, em um local de transito entre ideia e ação.
Ocupando um local de indeterminação entre projeto e obra finalizada, as partituras
realizadas como proposições artísticas são textos produzidos para serem lidos e performados,
podendo ser a obra interpretada e realizada por outras pessoas que não necessariamente as que
escreveram. Nesse caso, a ação pode já ter ocorrido ou nem mesmo ocorrer, como
exemplificado em uma série de trabalhos que possuem um caráter propositivo ou utópico,
estendendo a possibilidade de ação para o espectador: os livros de artista Grapefruit (1964),
de Yoko Ono, e Performance Diária (2011), de Felipe Bittencourt, os desenhos-partitura de
Joseph Beuys, Body Pressure (1974), de Bruce Nauman, dentre outros.
Alguns desenhos do artista Joseph Beuys se referem especificamente às suas ações.
Em Partituras de Ação com Transmissor (feltro) Receptor nas Montanhas (1973), aparecem
notações textuais, topos de montanhas, linhas de código Morse e menções ao feltro. Essas
anotações realizadas durante suas falas e palestras, indecifráveis a um olhar racionalizante que
visa apenas à compreensão, precisam ser olhadas não somente como um projeto para a ação,
mas sim entendendo seu desenho como um tipo específico de pensamento, sendo capaz de
incorporar em si sentidos que ultrapassam a visão, como a audição e o tato. Sobre esse caráter
sinestésico de sua produção, Cristina Freire o aponta como um local de transcendência, de
expressão de coisas que nem o discurso ou o pensamento abstrato em sua racionalidade
conseguem expressar. O desenho se torna impulso necessário para moldar os “pensamentos e
afetos a serem compartilhados em ações” (FREIRE, 2007: 144).
Ainda pensando na relação entre corpo e partitura, trazemos o alemão Oskar
Schlemmer, pintor que começou a dar aulas na Bauhaus, em 1920, como diretor da oficina de
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escultura, para o qual desenho e ação dialogam através de uma relação entre teoria e prática,
na qual o desenho é material teórico para o desenrolar da ação. Roselle Goldberg nos coloca
que Schlemeer
(...) considerava a pintura e o desenho como o aspecto mais rigorosamente intelectual de sua obra, como ele escreveu, constantemente suspeito por essa razão. Em suas pinturas como em suas experiências teatrais, a investigação essencial dizia respeito ao espaço; as pinturas delineavam o elemento bidimensional do espaço, enquanto o teatro oferecia um lugar em que se podia experimentar com o espaço. (GOLDBERG, 2006: 93)
O professor e pesquisador da dança atribuía à percepção do volume que surge de uma
forma planar a origem de sua produção em dança, explicando que a partir da geometria plana,
da busca da linha reta, da diagonal, do círculo e da curva desenvolve-se uma estereometria do
espaço através da linha vertical móvel do dançarino. Em aula, seus procedimentos eram
testados dividindo em eixos e diagonais bisseccionais a superfície quadrada do assoalho, e
“seguindo essas diretrizes, os bailarinos dançaram dentro da ‘teia espacial linear’ com seus
movimentos ditados pelo palco já dividido geometricamente”. (GOLDBERG, 2006: 94) Com
essa demonstração desenhada didaticamente, Schlemmer divide a preparação da performance
em etapas: notações e pintura em um âmbito bidimensional, a criação de relevos e esculturas
no âmbito plástico e a partir daí passa para arte plástica do corpo, em uma relação direta entre
o pensamento do desenho transposto para o espaço do corpo em movimento. O artista cria
assim um esquema visual para ilustrar seu pensamento de dança. Primeiro, ele prepara um
sistema de notação que descreve graficamente as trajetórias lineares do movimento e o
deslocamento dos bailarinos, como podemos ver também nos Labannotations e nos desenhos
de Trisha Brown.
O gesto de desenhar: entre inscrição e projeção
Nessa seção, o que será observado são os artistas que se utilizam do gesto de
desenhar. Importante citar que o desenho de que aqui se fala é aquele que compreendemos de
maneira mais direta e fechada, vinculado à noção de linha e resultante, no Brasil, da missão
francesa do século XVIII. Aqui se situarão trabalhos específicos de artistas da dança,
performance e artes visuais que se utilizam de elementos do desenho como lápis, canetas,
papéis, etc. e que problematizam a ação do desenho ao evidenciar diversos aspectos do seu
fazer que geralmente não são acessados por um observador.
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Para iniciar a discussão, pontuemos uma artista que pesquisa diretamente essa relação
entre o gesto do desenho e o tempo-espaço da ação: Monika Weiss. Em seu trabalho
Annamnesis (2002), a artista realiza a ação de se movimentar sobre uma folha de papel com
materiais de desenho, gerando registros gráficos que evidenciam o percurso daquela dança,
assim como as intensidades, pausas e mudanças da ação. Monika Weiss se aprofundará
inclusive na possibilidade de uma nomeação do lugar existente entre performance e desenho.
Utilizando-se da terminologia performativo [2] para qualificar um estado de seu desenho, a
artista se utilizará do desenho como uma tentativa de realizar o “(tradução nossa) ato
impossível de se delinear o mundo” (WEISS, 2003), trazendo o desenho de forma a
evidenciar o interstício existente entre o corpo do produtor e o corpo do produzido. Nesses
dois casos, o procedimento da inscrição é visivelmente notado. De acordo com Noland, a
inscrição pode ser vista como uma variável da performance, na qual uma memória somática
do corpo é evidenciada, através de uma ação cinética de depósito do traço (NOLAND apud
MENDONÇA, 2003: 40).
Tom Marioni, cujo trabalho possui um caráter mais lúdico e quase irônico ao tratar do
desenho, significará seu gesto com um alto grau de repetição e tentativa, realizando ações
como o ato de desenhar um círculo repetidamente na parede ou tentar gerar registros gráficos
em um papel no teto (o que o faz pular constantemente). Já Tony Orrico é artista visual,
performer e coreógrafo, explorando principalmente o movimento e a repetição em suas
performances, utilizando-se basicamente de grafite, carvão e papel. Em Penwald Drawings
Orrico explora o uso de seu corpo em uma série de desenhos bilaterais como uma ferramenta
de medição para inscrever geometrias através do movimento em curso. Ele explora a
limitação da (ou a espontânea navegação dentro da) esfera de seus braços estendidos,
considerando a repetição, refração e exaustão como motores do movimento, chegando a
permanecer em suas performances até 8 horas. Ele utiliza seu corpo e às vezes somente os
pulsos para criar obras densas, que são altamente precisas e ao mesmo tempo orgânicas.
À primeira vista os trabalhos de Tom Marioni e Tony Orrico possuem certa
semelhança quando tratam da questão do desenho, pois em ambos o gesto repetitivo gera um
registro gráfico semelhante. Mas Orrico, sem o descompromisso de Marioni, leva seu corpo
ao limite da exaustão, dando a impressão de que o papel não dá mais conta de segurar o
depósito do gesto, criando desenhos de padrões circulares que remetem a mandalas ou até
mesmo ao Homem Vitruviano, colocando em evidência os limites exatos do corpo humano.
Outro artista que, assim como Marioni, utiliza-se de certa leveza no tratamento dado
ao trabalho é Robin Rhode, que, apesar de possuir trabalhos que se enquadram mais na
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relação do desenho enquanto uma projeção mental, evidenciando-a através da relação da
narrativa estatizada com o corpo, tem um trabalho no qual o registro gráfico opera como outra
camada de realidade. O caráter transitório do desenho é altamente visado nas proposições de
Rhode, cuja sutileza do registro gráfico é ampliada ao ser colocada em contraponto com a
tentativa do artista de se relacionar com ela, como no trabalho Bicycle (1998) em que o artista
tenta de diversos modos andar em uma bicicleta desenhada na parede. Não é somente o artista
que age criando o desenho, mas o desenho passa também a agir e interferir na relação que o
corpo do artista tem com o real.
Lia Chaia, Desenho-corpo, 2001. Vídeo, 51' (até a caneta acabar) / Frames
Ainda nessa relação direta do gesto do desenho com o corpo do artista, temos na
videoperformance brasileira mais dois exemplos de grande relevância, nos quais o foco é o
gesto do desenho: os trabalhos Desenho-corpo (2001), de Lia Chaia, e Marca registrada
(1975), de Letícia Parente. Em ambos, intensifica-se a relação de trânsito que há no trabalho
de Rhode, acima citado, porém ao invés de o corpo tentar se relacionar com o desenho no
espaço, é o desenho que incide diretamente sobre a fisicalidade do corpo. No primeiro
trabalho citado, a artista desenha constantemente sobre seu corpo até a tinta vermelha da
caneta acabar; no segundo, vê-se uma mão costurando com linha na sola de um pé a frase:
made in Brazil. Independentemente das questões políticas ou sociais que circundam as obras,
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o que é válido ressaltar da relação entre performance e desenho aqui é a mescla entre um sinal
incorporado (em ambos a ação de desenhar, que geralmente é externa ao corpo) e um sinal
desincorporado (o desenho em si, uma marca que se registra em uma superfície) (NOLAND
apud MENDONÇA, 2003: 43).
Letícia Parente, Marca registrada, 1975. Vídeo, 9' / Frame. Porta-pack ½ polegadas. Câmera: Jom Tob Azulay
O desenho ainda pode ser ferramenta de reflexão para outras questões, como na
videoperformance Pencil Mask (1973), de Rebecca Horn. Aqui, a ação de desenhar é gerada
por uma máscara facial de caráter protetor e fetichista e torna-se sujeita a uma questão central
do trabalho da artista, que é a relação entre corpo e espaço, sendo que “ao alterar uma relação
apenas do contato com o objeto, a artista muda toda a percepção de seu entorno: a realização
de esforço é menor, o controle da posse do objeto também.” (MARCONDES, 2010: 5). O
gesto do desenho assim aparece apenas como uma demonstração daquela estrutura criada, não
sendo problematizado da mesma forma que nos exemplos anteriores.
Em outro polo, desenvolvendo um trabalho que tem como eixo de discussão direta a
relação entre a linguagem da performance e o ato de desenhar, temos o artista Júnior Suci.
Reproduzindo em pequenos desenhos performances feitas solitariamente, o artista acaba
problematizando alguns lugares-comuns do gênero e relativizando a ponte entre ação e
registro. Com Suci, a relação entre o gesto do desenho e a projeção que realiza por parte do
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observador é potencializada. Como cita Edith Derdyk, ao falar sobre a obra do artista:
“sempre vale lembrar que, também por trás da palavra desenho, existem os sinais do desejo
que se lançam e se projetam no espaço do mundo, mesmo que na intimidade de um gesto”
(DERDYK, 2009). A função inicial do gesto de seu desenho, que possui caráter meramente
inscritivo, passa então a ser também projeção e imaginação, em um inteligente uso de um
aspecto do desenho/anotação para trabalhar o desenho/desígnio.
Júnior Suci, Adormeci a minha mão, Grafite e Datilografia sobre Papel, 21,0 cm x 21,0 cm, 2011
Em entrevista realizada com o artista, ele cita a importância da qualidade da sua linha
para materializar a relação temporal de suas ações realizadas. De acordo com o artista
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A tensão da linha, a dúvida das direções que elas possuem nos contornos, os fragmentos que escapam mas se mantém confinados, e a vibração como um frame de uma fita pausada são algumas sensações captadas nesses desenhos que relacionam coerentemente seu conceito e sua estética. (SUCI, 2012)
Por fim, em um trabalho que já abre campo para a discussão da próxima parte do
artigo – que possui como vertente a relação entre desenho expandido e espaço –, há a
performance ao vivo sem título de Marie Cool e Fábio Balducci, realizada inicialmente no
ano de 1996. Nela, a formação do desenho se dá no espaço, porém com um foco direto na
ação de sua construção. Em diversas mesas e utilizando-se de diferentes materiais próprios da
ideia de desenho enquanto linha, a artista cria espacialmente espaços efêmeros de projeção,
divididos entre ela e os observadores.
Essa ação, dentro de nossa análise, será o primeiro passo para pensarmos como o
desenho pode estar presente enquanto discussão poética do trabalho, porém apresentando
elementos menos diretos do que comumente pensado enquanto vinculado à ideia de desenho.
Desenho, expansão e corpo: a marca como elemento poético
O que nos interessa agora é pensar num terceiro eixo, composto pela relação entre
desenho, espaço e corpo, lançando luz sobre ações que utilizem o corpo como material que
desenha uma forma em algo, imprimindo uma marca onde é possível se observar o desenho.
Segundo o artista Carlos Fajardo, o desenho é o que se gera a partir da pressão de uma
superfície mais dura sobre uma superfície mais mole (p. ex., grafite sobre o papel). Vito
Acconci realiza esse procedimento valendo-se da dureza de seus dentes em relação à maciez
de sua pele. Em Trademarks (1970), o artista se morde diversas vezes, gerando uma marca
gráfica que desenha a si próprio. Novamente, o corpo é produtor e receptor da ação, assim
como em Glass on body (1972), de Ana Mendieta, trabalho no qual a artista pressiona partes
de seu corpo sobre um vidro, usando sua superfície dura como anteparo para o corpo,
imprimindo uma imagem que sempre será única.
Já ao pensarmos na linha em expansão, encontramos obras em que o desenho surge
como registro da ação performática, isto é, como rastro dessa ação. O desenho aqui assume a
forma de linhas espaciais que integram a obra como uma espécie de cordão umbilical que as
liga à ação performática. Surgido por essa ação e construído durante o processo, o desenho
finalmente se (trans)forma de fato após o término da ação. Richard Long, artista da Land Art,
utiliza-se do corpo para gerar essa marca, em caminhadas simples, mas obsessivas, na qual o
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registro gráfico evidencia um percurso previamente projetado, já com o intuito de gerar
determinado tipo de desenho espacial, como podemos ver em Spiral Jetty (1970).
Em 1964, fortemente influenciada pela experiência neoconcreta e pelo pensamento
fenomenológico que a estruturou, a artista plástica Lygia Clark concebe a proposição
Caminhando, na qual o sujeito que realiza a ação corta continuamente no sentido do
comprimento uma fita de Moebius. De acordo com a artista:
Inicialmente, o Caminhando é apenas uma possibilidade. Vocês e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação entre sujeito-objeto. É um corpo a corpo, uma fusão. As diversas respostas surgirão da sua escolha. (...) Existe apenas um tipo de duração: o ato. [3]
Nessa obra, o papel recortado vai se transformando em linhas que vão se
multiplicando sem separação entre elas, até o momento em que se tornam tão finas a ponto de
não ser possível mais recortá-las. A linha em si carrega uma dualidade de papéis, quando
compreendemos que ela é dependente da ação para existir, porém é ela que a eterniza e a
afirma, como uma evidência, do ato performático que ali ocorreu, como nesse caso de Clark,
no qual a artista propõe a participação do público na realização da obra, a fim de integrar
diversos corpos, diversas experiências para a realização da obra que nunca se finda.
Já com John Wood & Paul Harrinson, dupla de artistas que trabalha constantemente
com videoperformances, o desenho é possibilitado através dos enquadramentos e proposições
do vídeo. Na videoperformance ROLLER (2007) na qual o artista circunda uma sala pintando
uma linha na parede pela qual anda, o desenho é evidente na relação de registro de um trajeto
a partir de uma ação, o que é possibilitado pelo enquadramento da câmera, que se situa no teto
da sala, permitindo a visualização da sala inteira como um plano. Essa relação da linha com o
espaço, gerada a partir de um enquadramento específico, também pode ser vista no vídeo
Touch (2002), de Janine Antoni, no qual a artista anda sobre uma corda que se situa no
mesmo campo de visão da linha do horizonte, dado o enquadramento do vídeo. Nessa corda
bamba em que tenta se equilibrar, a artista transita entre a linha que liga o imaginário ao real,
apresentando-nos a tentativa de possibilitar uma união entre real e fictício e agir sobre ele
materialmente.
Considerações finais
O que é o desenho senão a mente em uma tentativa de diálogo com o outro e com o
mundo? E o que é a performance senão o corpo em uma busca pela mesma possibilidade de
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diálogo e encontro? Pensando sobre essa relação entre corpo/performance e mente/desenho,
nota-se como a potência dos trabalhos que articulam ambas as instâncias se dá pela totalidade
do pensamento. Nesses trabalhos, o corpo que se presentifica no espaço da ação não transfere
apenas sua relação corpórea para o outro, mas também a projeção mental do que se objetiva
ou se busca. Assim, há projeção, desígnio, desejo e risco. Há um corpo em totalidade de
transmissão para o outro, o que para diversos teóricos da performance se traduz na
reversibilidade fenomenológica inerente aos trabalho na linguagem aqui elencados.
Mesmo que parciais, os eixos estabelecidos na pesquisa permitem evidenciar como é
vasto o campo de análise dentro da relação entre desenho e performance, e o quanto a ação
permite a expansão das ideias reificadas de desenho e de uma melhor compreensão de suas
acepções originais. Mesmo tratando do desenho em sua relação material mais direta (com o
uso de papéis, materiais de registro como carvão, grafite, etc.), o fato de colocá-lo em relação
com o tempo de sua produção altera a visão que se tem sobre o desenho enquanto produto
final. Nas outras instâncias, mais ampliadas, a expansão do desenho na contemporaneidade
também encontra lugar para pesquisa e aprofundamento, possuindo um terreno fértil, como
pode ser comprovado em exposições como On line, ocorrida no MoMA em 2010, que possuía
uma série de performances de artistas aqui citados, que dialogavam diretamente com o
desenho.
Justamente por possuir uma relação tão complexa, o campo de discussão é tão vasto.
Em artistas como Júnior Suci, podemos perceber como existem diferentes engrenagens do
pensamento performático e de seu registro que, quando levemente alteradas, colocam em jogo
paradigmas da própria linguagem, levando a novos problemas e, portanto, a novas reflexões
sobre o próprio estatuto da linguagem e sua efetiva necessidade em um trabalho performático.
Notas [1] Vale notar que para Zuccaro há uma aproximação forte da ideia de desenho em relação ao divino. O
desenho interno, para o autor, divide-se em: desenho divino, desenho angélico e desenho humano, com clara
hierarquia entre eles. Não nos cabe aqui problematizar esse caráter divino, porém, vale ressaltar que a concepção
de um desenho divino e perfeito torna o desenho humano um acidente: “[...] o homem forma em si vários
desenhos segundo diferentes coisas que ele compreende, porque seu desenho é um acidente”. (ZUCCARO,
2004: 46)
[2] Originalmente criado pelo linguista J. T. Austin, o termo ‘performativo’ designava a circunstância
de o sujeito não usar da linguagem para representar a realidade, mas sim para agir sobre ela. O verbo correr
pressupõe a ação da corrida, mas proferir o verbo ‘confessar’ é, por si só, realizar a ação, o que o torna
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performativo. Com a utilização do termo nas artes, ‘performativo’ passa a designar uma qualidade no objeto que
o vincula à ação que o construiu.
[3] Disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17>.
Bibliografia DERDYK, Edith. Entre as medidas do enunciado e as potências do desejo. Disponível
em: <http://goo.gl/lUVJFx>. Acesso em 25 de setembro de 2012, às 21h24.
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2012.
FREIRE, Cristina. Desenho como partitura na arte contemporânea. In: DERDYK, Edith (Org.).
Disegno, desenho, desígnio. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.
GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura – Vol. 9: O desenho e a cor. São Paulo: Ed. 34, 2006.
MARCONDES, Renan. As paredes de Rebecca Horn: limite e extensão nas relações corpo-
espaciais. Disponível em: <http://goo.gl/h1WJNN>. Acesso em 23 de agosto de 2012.
MENDONÇA, Yara de Pina. Desenho em ação: a poética gestual de inscrever performativos.
Trabalho de conclusão de curso. Universidade Federal de Goiás. Área de concentração: poéticas visuais.
Orientação: Prof. Dr. Bianca Knaak.
MOTTA, Flávio. Desenho e emancipação. São Paulo: Centro de Estudos Brasileiros do Grêmio da
FAU-USP, 1975. Publicado inicialmente no Correio Brasiliense, Brasília, 16-12-67.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
WEISS, Monika. Drawing (artist statement). Disponível em: <http://www.monika-
weiss.com/writings.php?pageNumber=3>. Acesso 25 set. 2012 – 21h24
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