dos sopros À clÍnica: compondo com clarice lispector · ... por me incentivar a ser eu mesma,...
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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIVATES
CURSO DE PSICOLOGIA
DOS SOPROS À CLÍNICA:
COMPONDO COM CLARICE LISPECTOR
Érica Franceschini
Lajeado, novembro de 2013
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Érica Franceschini
DOS SOPROS À CLÍNICA:
COMPONDO COM CLARICE LISPECTOR
Trabalho de Conclusão de Curso realizado na
disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso
II, no curso de Psicologia, como parte da
exigência para a obtenção do título de
Bacharel em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Cristiano Bedin da Costa
Lajeado, novembro de 2013
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AGRADECIMENTOS
Há uma música do Gonzaguinha que diz: “Aprendi que se depende sempre de
tanta muita diferente gente, toda pessoa é sempre as marcas das lições diárias de
outras tantas pessoas”. De um trabalho de encontros, agradeço aos encontros da
minha vida, especialmente:
À minha mãe, Ieda Maria, por me incentivar a ser eu mesma, desejando sempre
que eu fosse além; por acreditar na minha escolha e iluminar meu caminho. Agradeço
tua torcida amorosa e tuas palavras sempre doces, especialmente teus abraços, lugar
aonde sempre quero estar.
Ao meu pai, Elmir Carlos, por acompanhar todos os meus passos, pela
preocupação diária e por me mostrar que nada é impossível. Tenho muita sorte de ter
tido o teu exemplo e hoje poder seguir em frente, superando qualquer obstáculo, como
tu sempre fizeste.
Às Marias da minha vida, minhas avós com quem sempre pude contar e aonde
sempre encontrei e encontro a força e a sensibilidade necessárias para me tornar
guerreira. Obrigada pelo colo sempre confortador.
Ao meu orientador Cristiano, que fez possível essa criação. Obrigada por
colocar toda tua genialidade nessa composição e por me ajudar a encontrar minhas
próprias potencialidades. Espero um dia ser tão brilhante quanto tu és.
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À minha amiga e irmã que escolhi, Bruna Wendt, pelo olhar sempre sensível e
palavras sempre precisas que impulsionaram essa escrita e me fizeram perceber que
as diferenças que nos aproximam são as mesmas que nos fazem parceiras na vida.
Obrigada pelos sorrisos, as lágrimas e os momentos únicos que sempre guardaremos
com carinho.
Às minhas primas-irmãs Lia, Ita e Grazi, três figuras com quem eu nasci, cresci
e hoje nada mais justo do que cita-las aqui. Vocês são meus melhores presentes na
vida e encontrar com vocês é encontrar tudo aquilo que nos une, além dos laços
sanguíneos. Obrigada por me fazerem lembrar a criança que fui, a adolescente que
rebelou e a adulta que sou.
À Lili, pela saudade eterna que a morte impõe e por ter deixado lacunas
atravessadas de afeto. Dedico essa escrita a tua luta para viver e vivo intensamente
pela lembrança de que o tempo é sempre pouco para a vida.
À minha afilhada, Daniela, pelo sorriso que sempre me fazia voltar e pelas
brincadeiras que me permitem ser criança outra vez.
Aos meus amigos da faculdade, que fizeram parte dessa caminhada e aos
amigos que sempre estiveram e estão comigo.
Ao Marco Antônio, pelas linhas que nos aproximam e pelo “acidente” que nos
fez perceber que amar é uma construção errada, descabida, sem sentido, mas
inexplicavelmente intensa. Obrigada por acolher meu choro e por multiplicar meus
sorrisos.
Aos demais que eu amo, sem citar nomes, sintam-se agradecidos, porque
antes de tudo, há um pouquinho de cada um nessas palavras.
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"Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de
dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que
não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência
que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por
falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas
entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o
terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte.”
(Clarice Lispector)
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RESUMO
Uma composição em suspenso: eis o texto que está por vir. Palavras que se
desprendem, que se abrem e vão revelando outros sentidos, outras invenções que
possibilitam uma escrita sempre em vias de fazer. Nos aventuramos em
experimentações, assim como nos aventuramos no campo da Psicologia, constituindo
assim, uma experimentação psi. Porém, esse texto não se restringe a tal saber, ele
atravessa outros espaços, arrisca-se em devir, é um texto dançarino, um texto de
encontros, de entre, de produção. Um texto que flui para todos os lados, deslizando
pela literatura de Clarice Lispector que empresta seu “Um sopro de vida” (1978) para
a construção da “clínica clariciniana”. Clínica que não busca uma técnica, mas afirma
a lógica criacionista e inventiva, perpassada pelo método biografemática de Roland
Barthes, com quem dialogo no texto. O método biografemático de Barthes investe no
acaso, colocando-se contra a linearidade das biografias destinos, servindo como uma
alternativa a uma biografia menor, tal qual a “literatura menor” de Deleuze e Guattari
(1977). Por conseguinte, os biografemas, feitos em fragmentos, se constituem nos
sopros que operacionalizam a “clínica clariciniana” e que servem como pistas do
desdobramento de uma biografemática distraída na leitura de “Um sopro de vida”.
Assim, Literatura, Psicologia e Clínica aparecem enquanto potência no texto,
provocando um pensamento para além do escrito, fugindo de qualquer tentativa de
classificação e assim, percorrendo as superfícies que os traços arriscam. Nunca o
certo, nunca o ideal, mas sempre ideias, provocações, sopros.
Palavras-chave: Clarice Lispector. Clínica. Biografemas. Barthes.
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SUMÁRIO
1 DIÁLOGO COM CLARICE LISPECTOR ................................................................. 7
2 NOTAS ..................................................................................................................... 9
3 A POÉTICA DO ISSO E A SUTILEZA DOS RUMORES ...................................... 10
4 SUSPENDER O TEXTO E O CORPO EM DISPERSÃO ....................................... 14
5 PESQUISA BIOGRAFEMÁTICA DAS DISTRAÇÕES .......................................... 20
6 BIOGRAFEMA: CINTILAÇÕES EM CLARICE LISPECTOR ................................ 32
7 VINTE SOPROS PARA UMA CLÍNICA CLARICINIANA ...................................... 39
8 SOBRE O PERCURSO DA ESCRITA ................................................................... 47
9 EU POR ELA E ELA POR MIM ............................................................................. 50
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 52
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1 DIÁLOGO COM CLARICE LISPECTOR
Eu:
- Minhas respostas são cunhadas de perguntas. Sou o que escrevo.
Clarice Lispector:
- Improviso a vida. Escrever é a improvisação da existência. Subverto a lógica,
dou espaço para o que está atrás do pensamento. Pinturas que vão se compondo,
frases compostas que se decompõem. Sou em fragmentos e se tu és o que escreve,
então tu és fluxo. Escrever é usar o corpo inteiro.
Eu:
- Sou tão pequena diante de tuas palavras. Queria ser flecha, queria fazer o
leitor sentir.
Clarice Lispector:
- Experimenta um sopro, rompe o inacabado. A grandeza não está na palavra,
está no afeto que atravessa a frase laqueada em molduras invisíveis, estão ali
esperando para serem pintadas. Quadros abstratos que borram o humano. Fluem
como água, não tem dimensão, está num outro plano. Prazer, eu sou a invenção.
Eu:
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- Da flecha do Cupido não se extrai somente amor. Ou se ama, ou se odeia, ou
se morre. Aquele que ama encontra na vida sua razão, aquele que odeia passa a viver
o ressentimento e aquele que morre está pronto para a vida verdadeiramente plena.
O espírito se alimenta de enigmas. Meu apetite está ficando cada vez mais voraz. As
palavras que atravessam o peito do leitor não são as mesmas que inventam a poesia.
A magia está no semblante risonho de um verso.
Clarice Lispector:
- As palavras são feitas de carne e afeto. É pura vibração.
Figura 1 - Clarice Lispector – Explosão, 1975.
Fonte: Clarice Lispector (1975).
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2 NOTAS
Deste texto:
1. Da necessidade: a necessidade desse texto se apoia na seguinte
consideração: não deixar de experimentar “clínicas”. Assim, operamos com os sopros
a fim de não esgotar as possibilidades, mas como proposição de percorrer outras e
novas paisagens.
2. De como é feito: texto feito de sopros que servem como alternativa
biografemática, como corpo, de uma composição entre encontro dos corpos, na
criação de outros corpos.
3. De como operar a sua leitura: deslizar por todos os lados, ir e vir. Um texto
de sopros aleatórios, sopros que dançam.
4. Das referências: para compor a clínica clariciniana, uma leitura de “Um sopro
de vida” (1978) de Clarice Lispector. Desse livro extraiu-se os sopros que servirão
como leves proposições na construção da clínica. Dessa maneira, um arcabouço de
biografemas. A minha escolha não é casual: encontro em “Um sopro de vida” tal
fragmento ou instante em que entendo as cintilações que ressoam em meu texto:
“Este é um livro fresco – recém-saído do nada. Ele é tocado ao piano delicada e
firmemente ao piano e todas as notas são límpidas e perfeitas, umas separadas das
outras. Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém”
(LISPECTOR, 1991, p. 20-21).
Gaguejar uma outra língua para ficar com os olhos vermelhos.
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3 A POÉTICA DO ISSO E A SUTILEZA DOS RUMORES
De todos os momentos, não encontro um que seja crucial para explicar meu
desejo de escrever sobre isso, invadir tais vidas ou reinventar tais proposições: é
desejo, e isso basta. Coloco-me em experimentação, gosto de misturar as cores: sou
um batom vermelho riscando o cenário acinzentado. Isso que se apresenta é uma
espécie de ensaio, de cinzas que jamais chegaram a arder e que, portanto, não se
deixam explicar: com um sopro voam, soltando pedacinhos daquela vida em outros
corpos: corpo-isso.
Isso é it: pura impessoalidade. É um texto-isso, composto, produzido. Neste
isso, encontro Clarice Lispector e, com sua impessoal obra, componho outros traços,
dados pela afetividade do encontro. Aqui não há homem, nem mulher, mas animal,
coisa, it. Palavra descampada, palavra de rua, quase indigente, que parte de onde
não parto: parto de nada, parto disso. Clarice Lispector sussurra e espira; virou
poeirinha, mudou meu corpo, produziu a tosse. Placenta: Clarice fora da letra e da
literatura que nasce em outros lugares, lugares-isso, pura invenção.
Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Este passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas (CLARK apud ROLNIK, 1996).
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Esculpir o silêncio fazendo irradiar as palavras
Desvios da escrita: sem objeto ou sujeito a ser observado tudo passa a se
costurar no texto = trabalho de tecelã. Aqui Clarice se torna corpo que demarca a
relação entre o texto-isso e minha leitura, corpo emprestado para o movimento que
não pode ser outro que não seja o da travessia. Sem limites demarcados e com
fronteiras embaralhadas: “a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo
qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda a identidade,
a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 2012, p. 57). Escrita-isso.
Ser bisturi e corpo, ao mesmo tempo em que não se é nem um, nem outro
Por que fazer um trabalho de conclusão percorrer tantos espaços, quando
certas escritas poderiam se fixar em um único território? É verdade que sempre
lidamos com um estilo de autoria e um atravessamento do leitor, porém nesse
combate tudo passa a se misturar: corpos e palavras, texto e imagens. Devoramos os
amontoados de terra, como um canibal que se alimenta da sua própria espécie que
não é ele, mas que se torna parte de seu corpo. A verdade é que a clínica já não cabe
em uma única porção de terra, o que implica um nado livre em busca de ilhas desertas
que transponham novas fronteiras. A escrita assume seu aspecto bailarino, a clínica
experimenta linhas de fuga. Incessantemente reinventadas: escrita e clínica. Que
dimensão assume uma de outra e outra de uma? Só é capaz de dançar quem sabe
ser criativo: clínica-isso.
“O ouvido é maravilhosamente ligado ao tornozelo”
(VALÉRY, 1996, p. 24).
Dançar não pelo movimento, mas pelos riscos que o movimento faz no ar. A
dança é antes um ato de sensibilidade, gesto por onde a clínica se insinua através de
uma atmosfera ligada à ordem afetiva. Dança-se para escavar uma saída de formas
de vida aprisionantes, dança-se para desinvestir dos órgãos a fim de libertar as forças
que atravessam o corpo fazendo os pés circularem para fora das sapatilhas. É uma
cena sanguinária: imagem de recusa tanto do dançarino, quanto do escritor, de uma
gorda saúde dominante (DELEUZE, 2011), que o tornaria pleno. Por isso, a fragilidade
de quem renuncia ao mundo para percorrer outras superfícies, fragilidade de um ator
que jejua com seu personagem, esvaziando seu corpo de si mesmo. Dança-isso.
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Terpsícore dança
Uma clínica assim como um corpo: essencialmente inacabada, marcada por
uma saúde frágil e, que por isso mesmo, pode se abrir para o mundo. Uma saúde que
consegue ser vital mesmo na doença (DELEUZE, 2011). Eis um outro território: o
trágico que promove processos de vida e criação. Tragicidade nietzschiana: “a partir
da ótica do doente ver conceitos e valores mais saudáveis, e pelo lado inverso, da
abundância e da autoconfiança da vida abastada” (NIETZSCHE, 2010, p. 24).
Tragédia-isso.
Sobra ao escritor extraviar seu corpo, extrapolando esse paradoxo de uma vida
que é plena de potência e de uma vida que é informe. O escritor nu, que perdeu suas
vestes ao arriscar sua saúde nadando em um lago congelado no Alasca. Um corpo
rachado por onde se faz passagem e que o transforma: corpo argiloso. Ato (afinal): e
ao se despir, o escritor percebe que o que ele experimenta é uma saúde frágil
irresistível que o esgota, “dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante
tornaria impossíveis” (DELEUZE, 2011, p. 14). Saúde-isso.
Seria a deformidade e o inacabamento condição mesma da literatura? Éric
Marty, autor de “Roland Barthes, o ofício de escrever” (2009), é quem recebe a ligação
quando Barthes é atropelado por uma caminhonete ao atravessar a rue de Écoles, em
Paris. É início de 1980 e o acidente que não parecia ter maior gravidade acaba
resultando na morte de Barthes. Éric Marty, que passou os últimos dias ao lado do
amigo e professor, testemunha sua morte, como um “deixar-se morrer”, como se
Barthes não tivesse suportado a perda da imagem, ao ver seu rosto desfigurado:
morte-isso.
“Fiquei ao lado da sua cama, quis pegar na sua mão, mas fiquei achando que
ele podia ler no meu rosto a sua própria morte, então virei o rosto e saí sem dizer
quase nada” (MARTY, 2009, p. 118). Viver e morrer: não há oposição, mas sim
coexistência; morre-se em vida e vive-se na morte. O que se saboreia é sempre o
caos, é o estado caótico de uma clínica que aparece como reescritura da vida,
reinvenção do caos-isso.
Clínica: palavra oriunda do grego kline = inclinar-se sobre
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Talvez a clínica assuma a dimensão da escrita antes mesmo do que
pensávamos. Talvez ela esteja aí, na origem da palavra, não que seja alguma origem
ou explicação que buscamos nesse trabalho. Aqui, estamos no meio e daqui remamos
para outros meios. Estamos às traças e aos traços. Prostro-me, no entanto, sobre a
vida e sobre ela me inclino, assim clinico. Nessa perspectiva: desobstrução do
pulmão, do rim, do intestino, dos corpos. Está tudo aberto e, no entanto, nada pode
ser visto. Percorrem-se outras fronteiras, outras clínicas, indissociáveis da crítica que
reativa a força, possibilitando a abertura e a invenção de outros devires. Escrever é
manter uma ligação com o mundo em que vivemos e assim revelar o que se
experimenta dele e com ele, experimentação-isso.
“O que escrevo está sem entrelinha? Se assim for, estou perdida”
(LISPECTOR, 1991).
Escrever desprovido de palavras: como apresentar esse trabalho de
conclusão? Experimentarei os descaminhos, aquilo que pulsa fora do corpo e que por
isso, precisa de nossa desatenção a fim de captar os rumores, tão sutis e
incompreensíveis que a escrita acaba se tornando promíscua ficção. Excitação que
passa do leitor ao autor fazendo emergir prazeres que dão origem a outras vibrações.
São novos rumores multiplicados pelas cenas esquizofrênicas dos burburinhos que
não cessam de sussurrar. Não há nada de rumo no rumor, ao contrário, não há direção
ou objetivo, apenas experimentações: “respeitável público”. Não apresento; ele
mesmo se apresenta: dando consistência a areias movediças. E que isso jamais seja
suficiente. Saborear o isso.
“Estética da poética da dança: Pensar-dançar. Dançar-pensar. Aparecer-
desaparecer. Os signos mostram um corpo capaz de arte. Eis a coreografia da vida!
Dançar a vida ainda mais” (MUNHOZ, 2009, p. 117). Eis o truque: dançar a morte
ainda mais, até que ela se torne vida: vida-isso.
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4 SUSPENDER O TEXTO E O CORPO EM DISPERSÃO
“A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a
literatura nos importa” (BARTHES, 1979a, p. 19).
Acaso: Clarice Lispector vem caminhando elegantemente, adentra na sala e
então temos nosso primeiro encontro. Sinto que há muito para se dizer, mas Deleuze
e Guattari interrompem com a Filosofia da Diferença para desdizer. Barthes, que eu
já havia considerado morto, atira biografemas que atravessam meu peito. Ali deitada
e ensaiando meus últimos suspiros, reencontro uma clínica arteira que escorre para
outros planos de composição. Abro meus olhos e os sinto atacados por uma miopia
generalizada, deixando embaçada a imagem, mas que ainda deixa ver meu trabalho
de conclusão tentando resgatar a visão daquilo que insiste em ficar de fora. Do texto-
isso ao corpo, cria-se um texto-fora, que tem como princípio deslocar-se por espaços
silenciosos: a escrita inventando a vida. Finalmente posso afirmar: encontrei o prazer
do texto.
Imaginação = pássaro que voa fora do bando
A fim de encontrar-se com esse prazer, um exercício é necessário aqui:
deslocar o caráter de trabalho para toma-lo como um gesto textual, ligando esse corpo
– da escrita – ao próprio prazer; tal prazer é descrito por Barthes (2006, p. 24) como
“esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo
não tem as mesmas ideias que eu”. Apelando para um gesto textual minha
composição quer ir além de pedaços ou fragmentos de leitura, reproduzidos e colados
no papel e na fala. Minha ambição compactua com a de Cristiano Bedin da Costa ao
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viver com Fante (2010) que desprende o texto de um autor, assumindo outras vozes
que por serem de todos, tornam-se de ninguém. Assumir o risco do traço, quando
outras figuras insurgem.
Faço, por conseguinte, desse “texto-isso”, uma questão afetiva. Clarice
Lispector não sujeito, mas corpo, sempre em vias de se fazer. É com ela que vivo o
texto e a partir desse encontro crio ressonâncias para um outro plano de composição,
experimentado como reservatório de traços. No limite, Clarice não é outra coisa que
não minha inquietação: ah, como o silêncio pode ser tão perturbador? É no silêncio
que testemunho Clarice, é com ar de “esfinge” que a encaro.
“Um buraco é tão partícula quanto o que por ele passa” (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 46).
Em viagem ao Egito, Clarice Lispector encarou desafiadoramente a própria
esfinge: “não a decifrei”, escreveu, “mas ela também não me decifrou” (LISPECTOR;
SABINO, 2001, p. 10). Faço-me esfinge, faço-me Clarice: não quero decifrar ou
desvendar segredos e mistérios, mas desejo testemunhar por aquela que me afeta,
num ato de levar adiante o esforço da autora. Portanto, não espere as interpretações,
Clarice sujeito me é indiferente, espere um texto em suspenso, vivificado por uma
presença que saboreio ao meu tempo.
Ecos vindos de todas as partes. Quais os elos que Clarice Lispector cria nessa
produção? Não é a vida que pretendo contar, mas viver com a Clarice tal qual imagino,
fazendo-a viver mesmo depois de sua morte física. Não em corpo, mas Corpo-texto.
Em Clarice não é a vida sofrida na Ucrânia que me toca, nem mesmo suas viagens
pelo mundo ao lado do marido diplomata, mas os pormenores, aquilo que
simplesmente se alinha nas insignificâncias cotidianas. Como quando Clarice rechaça
a eternidade: certa vez, sua irmã, Tania presenteia a jovem menina com um chiclete
e lhe avisa para tomar cuidado de não perder a “bala”, pois ela duraria a vida inteira.
Mandou Clarice “mascar para sempre”. Aterrorizada com a ideia, Clarice não ousava
dizer que não estava à altura da eternidade, então um dia quando estava indo para a
escola, conseguiu deixar o chiclete cair na areia, simulando decepção para a irmã.
Clarice sentiu-se aliviada por não sentir mais o peso da eternidade sobre si (MOSER,
2011, p. 122).
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Em contragosto, Clarice tornou-se escritora eterna. Não gostava de dar
entrevistas, mas suas obras testemunhavam por ela: eram como sopros, pequenas
lacunas de realidade misturadas com a ficção. Interesso-me por Clarice, existe algo
que não busco, mas que atravessa e que me marca como uma flecha do Cupido
atravessa o peito dos apaixonados. É aqui que encontro o meu “punctum”, designado
por Roland Barthes como “picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte
– e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me
punge (mas também me mortifica, me fere)” (BARTHES, 1984, p. 46).
Inacessível à palavra; palavra perdida no meio do nada
Como explicar meu interesse por esse punctum? Questão que não respondo
até porque ela mesma já escorreu pelo texto. Nesse sentido, não necessariamente
encontro meu punctum na vida de Clarice, mas o encontro em sua obra (não que sua
obra não seja sua vida). Então, tomemos a obra como a vida e, portanto, voltamos ao
ponto anterior: Clarice Lispector. Assim como Roland Barthes, que encontra o
punctum nas fotografias, meu punctum é cheio de imagens. Posso encontrá-lo no
título de uma obra e reencontrá-lo em um verso, uma estrofe, uma frase. Trata-se de
atingir o brilho de um ponto cego.
O que me machuca, me punge, me aflige, me dói; eis a surpresa de um achado:
punctum = Um sopro de vida (Pulsações) (1978)
O “sopro de vida”, meu punctum, tem seus encantos justamente por ser uma
“obra de morte”, ou seja, esta foi a última obra escrita por Clarice Lispector, publicada
após sua morte, em 1978. “Um sopro de vida” completa e aperfeiçoa esse texto
justamente por sua incompletude e imperfeição, paradoxo pelo qual a escritora
sempre se moveu, escrevendo “este ao que suponho será um livro feito
aparentemente por destroços de livro” (p. 24). O que me encanta não é a análise do
livro e nem é isso que quero fazer aqui, mas através dessa incompletude, compor um
texto em suspenso, carregando quase que uma “questão de honra”: levar adiante o
esforço de Clarice Lispector. Assim, outro acaso: amor.
Amor um mal, que mata e não se vê Que dias que há n’alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê
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(CAMÕES apud RODRIGUES, 1998).
Amar é arte invisível, não palpável, sem grandes entendimentos. Minha escrita,
assim, é feita de amores, passa pelo invisível das palavras, não acessa o
representável, mas percorre espaços vazios, espaço onde encontramos um plural
irredutível de sentidos, fazendo dançar o desejo. Desejo que é “isso”, e que, portanto
não se explica, é indefinido. Por esses artigos é que a clínica escapa e assim, a
diferença se anuncia. Clínica do fora, o fora em Clarice, assim, o que mapeamos de
“Um sopro de vida”.
Rastros do impessoal em Deleuze (2006a): sujeito em dispersão, saindo do
espaço indivíduo para o espaço molecular, onde, por conseguinte, encontramo-nos
com as singularidades em seu plano pré-individual e pré-subjetivo, então: vive-se,
morre-se (quarta pessoa do singular).
Tudo que é matéria do invisível é uma não-matéria? Não se quer em hipótese
alguma poluir o invisível, mas a partir da coexistência desses traços (impessoais e
indefinidos) fazer passagem do corpo ao texto, sendo que pela escrita esses silêncios
e infinidade de espaços vazios não deixam de ter essa condição. Assim, a não-
matéria, o nada, ou seja, os sopros tornam-se matéria de escrita, transpondo-se entre
o autor, leitor e texto; três instâncias e nenhuma propriedade. Irrompe a visibilidade,
onde outros invisíveis se multiplicam. Assim: reassumir a potência criadora do nada,
atravessada por outras forças que as tornam matérias informes.
Uma carta não se exprime apenas pelas palavras escritas. Como um livro, uma carta também pode ser lida cheirando-a, tocando-a, afagando-a. É por isso que as pessoas inteligentes dirão: “Vejamos o que diz essa carta”, enquanto os imbecis se contentam em dizer: “Vejamos o que está escrito”. Toda arte está em saber ler não somente a escrita, mas o que vai junto com ela (PAMUK, 2004).
Reinventar outro informe para a matéria: ler as entrelinhas, sem decifrá-las,
sem ser devorado pela “Esfinge” com a qual Clarice se depara, mas poder mapear os
afetos que perpassam esse encontro, fazendo da escrita possibilidade de ligação com
o mundo. Como uma fotografia testemunha o encontro do casal no parque,
testemunho o silêncio em Clarice: a ficção que percorre as veias de “Um sopro de
vida”, fazendo do sopro um arcabouço clínico.
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Os afetos se proliferam, assim como se prolifera uma nova escritura, que não
se fecha em imagens ou palavras, mas vai buscar aquilo que não acessamos via
linguagem, mas acionamos via corpo, ou seja, o campo das sensações. Um texto
eternamente escrito, visto que nunca cessa de experimentar o movimento, sendo esse
o seu único fim: movimentar-se. Sopro: afeto em suspenso.
À margem, ou reportando-me a Guimarães Rosa ao falar da “terceira margem
do rio” (1988), está tudo aquilo que Barthes (1990) poderia denominar obtuso, ou seja,
aquilo que é infinito, que não se estratifica e que por assim dizer, está fora da
linguagem. Territórios em movimento: é aqui que algo “sopra”, que nos inquieta e
perturba e que também é lugar do provisório. Nada nesse ínterim é óbvio, fechado em
si ou ângulo reto; geometricamente está além e seu grau é indefinido.
Nesse sentido, não se encontra sentido: o obtuso como outra força, como
necessidade de operar através de outra perspectiva que não demarca, mas que se
insinua, que se arrisca em outras possibilidades clínicas da existência. Não um sujeito,
mas algo, alguma coisa, um isso, “toques”, diria Barthes (2012, p. 66). Operação de
corpo: “desalinhar as linhas das formas e fazer ver e transformar as forças que
constituem o território da cidade subjetiva” (COSTA; KIRST, 2010, p. 195).
Barthes (in)define o sentido obtuso dizendo que sente insegurança para
descrevê-lo, pois ele é um significante sem significado: “minha leitura fica suspensa
entre a imagem e sua descrição, entre a definição e a aproximação. Se não se pode
descrever o sentido obtuso, é que, ao contrário do sentido óbvio, não copia nada:
como descrever o que não representa nada?” (BARTHES, 1990, p. 54). Sinto-me tão
perplexa quanto Barthes para escrever sobre sopro, um nada que se esvai e que não
tem início, nem final, muito menos um único sentido.
Não encontro descrição, apenas corpos em explosão, em outros domínios.
Escrever sobre nada, tal qual Costa e Rosa (2006) escrevem sobre Manoel de Barros,
uma escrita a qual falta representação e que por isso é atravessada pelos devires,
uma escrita que nos incita a apaixonarmos pelos vazios e não pelos cheios. “Tornar-
se nômade em sua própria escrita. Assim, quem sabe se possa correr o risco de dar
em nada” (p. 8). Escrever sobre o nada é ganhar os imprevistos, arriscar-se em devir.
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Devir: “não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas
encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já
não é possível distinguir-se” (DELEUZE, 2011, p. 11). Promover o entre: palavras e
sopros, linhas e entrelinhas. Destituir as palavras de um único risco, encontrar Clarice
Lispector e percorrer a escrita, inventando novos sopros: incorpóreos, mas que se
tornam Corpo-Texto, um corpo que se abre entre a escrita e a leitura: corpo que
transita entre a dança e a clínica.
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5 PESQUISA BIOGRAFEMÁTICA DAS DISTRAÇÕES
“Bem leve leve, releve/ Quem pouse a pele em cima de madeira/ Beira beira
quem dera, mera mera, cadeira/ Mas breve breve, revele/ Vele, vele quem pese dos
pés à caveira” (MONTE; ANTUNES; LINDSAY, 1994).
Na música de Marisa Monte, composta pela cantora juntamente com Arnaldo
Antunes e Arto Lindsay, a morte torna-se poesia e a música traz a leveza do que se
poderia considerar o grande pesadume da vida. A composição evoca nossos corpos
a experimentar um texto além do sentido único da morte, tornando-a parte da vida. Da
mesma maneira, encontro no método biografemático proposto por Roland Barthes,
uma maneira de dar leveza a essa composição, a esse trabalho de conclusão que traz
vida e morte numa nova tessitura.
Vincular literatura e vida, por sua vez, é acreditar na pluralidade de sentidos
que a escrita ainda reserva. Como pode um texto comportar dois paradoxos – vida e
morte – numa mesma escritura? É esse o propósito do biografema, que Roland
Barthes introduz em 1979, quando anuncia em “Sade, Fourier, Loyola” seu desejo de
que sua vida seja contada pelos buracos das lembranças, pelas lacunas ainda não
experimentadas e não pelos objetos do destino. A vida, portanto, poderia ser
entendida como um painel todo perfurado, cheio de buracos e lacunas, que vão
ganhando outras intensidades quando nosso olhar encontra esses vazios.
Encontrar os vazios não significa revelar um segredo, mas aprender a percorrer
outros invisíveis, sendo nessa obscuridade que a vida se atualiza. Deleuze, por sua
vez, nos diz que “atualizar-se é diferenciar-se” (2006b); assim estamos diante daquilo
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que reinventa, ou melhor, inventa uma nova vida que não se esgota, não se limita e
nem paralisa; é vida furada, sem pele, carne viva que se multiplica em informes. Em
suma, “a atualização é sempre indiferençada (pois lhe faltam as qualidades da
representação), determinada (pois virtuais se atualizam) e diferenciada (pois singular)”
(FEIL, 2010, p. 79).
Nessa proposição não é mais o biógrafo que entra em cena, mas aquele que
utiliza o método biografemático como possibilidade de experimentar outras linhas de
vida, extrapolar os sentidos e aventurar-se pelos interstícios da criação. Assim, nesse
texto, entra em cena Clarice Lispector, aventureira da escrita que nunca se satisfez
unicamente com a realidade; ela queria mais, queria inventar; e afirmava “não quero
ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu
não: quero uma verdade inventada” (1998, p. 20). Quando falamos de invenção nos
aproximamos do campo do imaginário e é na ficção que adentramos: inventar uma
vida é fazê-la transbordar, escrever sobre um real ainda não vivido fazendo surgir uma
realidade impensada, perspectivas improváveis de testemunhos em suspensão.
Cabe a nós, a ousadia de flutuar
Uma escrita entre a realidade e a ficção, no “entre” onde um outro corpo é
produzido: corpo-alguma-coisa. Com tal intenção, Roland Barthes recupera e
reinventa a escritura como potência e, para tanto, o biografema surge através do
testemunho dos detalhes, dos traços insignificantes de uma vida, tomando-a sempre
pelos espaçamentos e partículas minúsculas. Nesse sentido, em 1971 o autor
escreve:
Se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a alguma inflexões, digamos: biografemas, cuja distinção e modalidade pudessem viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma vida furada (BARTHES, 1979b, p. 12).
Estamos diante de uma foto póstuma, tirada de outro ângulo, um escoamento
de intensidades por onde passam as forças de um outro corpo, que não o do biógrafo
e nem do biografado, um corpo-outro e que se diferencia justamente naquilo que a
escrita biográfica supõe. Ao invés da linearidade e da cronologia, fragmentos e
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paradoxos; ao invés de memória e contexto, superfícies e acontecimentos. Assim o
repúdio da finalidade em detrimento das fugas.
Morrer: cair no precipício do destino ou alçar outros voos?
Uma vida que foge, que escorre e se desprende do texto. Aquilo que não se
encontra a priori, mas que ganha consistência justamente naquilo que torna a vida
errante. Haveria assim, uma outra forma, um outro modo de experimentar essa
narrativa que não quer mais apreender ou entender o que cerca uma vida, mas sim
cavoucar o não-vivido. Por conseguinte, ao colocar vida e obra num plano de contágio
(CORAZZA, 2010, p. 86) a proposição é percorrer outros possíveis, utilizando um
modo de pesquisa biografemática que perpassa a poética de Clarice Lispector. A
escritora que provoca estados de estranhamento em suas obras, não nos deixa
esquecer que a distração é o que nos lança no mundo das indefinições, no
inapreensível pela linguagem, mas acionado via sensações, descristalizando as
concepções que temos do mundo.
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos (LISPECTOR, 1999, p. 13-14).
Quando distraídos ficamos às voltas com os rumores que povoam um texto que
por sua potência e multiplicidade está em suspenso, ou seja, um texto aberto, sempre
em vias de se fazer. Falamos, assim, de um sujeito em dispersão que torna-se um
sujeito impessoal: aquele que sai do espaço indivíduo e vai habitar o espaço
molecular, aonde encontramo-nos com as singularidades em seu plano pré-individual
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e pré-subjetivo. É aqui que operamos na quarta pessoa do singular (vive-se, morre-
se...). (DELEUZE, 2006a). Dizendo de outra maneira: multiplicamos as entradas do
texto e ampliamos a potência da distração para constituir o arcabouço de biografemas
que daí nos colocam diante de uma composição múltipla e polifônica.
Uma pesquisa biografemática distraída investe no acaso, no que
desajeitadamente o olhar captou, como Vinícius de Moraes toma a paixão: “para
apaixonar-se, basta estar distraído”. Esse acaso que captura e que toca é
correspondente à postura que assumimos na escuta do sujeito: uma escuta flutuante
que é apresentada primordialmente por Sigmund Freud em “Recomendações aos
médicos que exercem a Psicanálise” (1912/1969), sendo essa uma atenção que não
se dirige a algo específico, mas que fica “uniformemente suspensa”, pois se cairmos
na armadilha da seleção do material trazido pelo paciente, arriscamo-nos a não
descobrir nada além do que já se sabe. Além disso, essa atenção aberta, portanto
distraída, desliza pelos pressupostos biografemáticos onde os fluxos se espalham
traçando outros percursos.
É aqui que traçamos a história de vida como uma biografemática distraída que
“investe naquilo que, por uma circunstância qualquer, acaba se deixando atrair”
(COSTA, 2010, p. 136). No encontro da distração e o biografema o que emerge é a
potência dos afetos que transbordam o próprio sujeito; movimento que
experimentamos ao captar, por exemplo, no quadro de Van Gogh, a beleza e o
espanto do “Grito” e não o que ele representa. “A obra de arte é um ser de sensação,
e nada mais: ela existe em si” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213).
A vida, tal qual uma obra de arte, é contada efetivamente pela ordem dos
afetos, tanto do narrador, quanto daquele que a escuta. O narrador, por sua vez,
experimenta a si mesmo num espaço em que pode reinventar sua história, quando
toda narração é uma ficção e o que ele narra são os fragmentos de sua vida, assim
como o apaixonado de Roland Barthes em “Fragmentos de um discurso amoroso”
(1977), imerso no descontínuo em que jamais alcança o objeto de sua paixão: “cada
figura ressoa, vibra, só como um som cortado de qualquer melodia” (BARTHES, 1981,
p. 10).
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Os fragmentos da história são invadidos pela distração daquele que escuta e
servindo como “anamneses factícias” (BARTHES, 1975) que pertencem ao campo do
imaginário afetivo, compõem um outro texto, outra vida, que por ser de ambos, torna-
se de ninguém. Nesse entremeio, aquele que escuta distraidamente, ocupa-se dos
pormenores e dos detalhes insignificantes, não com o objetivo de definir ou interpretar,
mas de poder deslizar para outro campo: o dos devires.
O encontro nasce de uma distração: quando olhamos estamos diante de outro
corpo
Se Stock e Fonseca (2010), ao percorrerem o “modo indígena” de estar e
inventar seu tempo, compreendem que “devir é agenciar uma força” (p. 269), então,
enquanto narrativa de vida, ele – o devir – se dá em uma relação que é, antes de tudo,
molecular e intensiva, abrindo-se constantemente para os imprevistos. Na janela
aberta para o acaso que a distração supõe (sem supor nada), os “distraídos”
desdobrando-se em passagens sempre inacabadas e descentralizadas: “O Autor, que
salta de seus textos e entra na Vida do Leitor, não tem unidade. – É um simples plural
de encantos, lugar de pormenores sutis, fonte de vivos clarões romanescos, canto
descontínuo de amabilidades” (CORAZZA, 2010, p. 88). Plataforma de produção que
mistura e que arrasta o sujeito para outras escrituras, como se estivéssemos jogando
o corpo sem vida ao mar, deixando os fluxos traçarem um novo percurso.
Estar distraído, enquanto ouvinte, funcionaria como as entrelinhas de um texto
que dão mobilidade, projetando figuras inacabadas e “plurais” que se abrem para os
devires de outros modos de leitura e produção. São nesses espaços silenciosos por
onde passaria tudo aquilo que a linguagem não comporta, ou melhor, aquilo que o
“ouvido atento” não comporta: as intensidades, os afetos, as percepções. O exercício
da distração relaciona-se, assim, com o gesto de levantar a cabeça enquanto se lê:
“Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça? É essa leitura, ao
mesmo tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volta
e dele se nutre, que tentei escrever” (BARTHES, 2012, p. 26).
É essa distração que defende-se: ir além da história contada, tentando
percorrer a narrativa em outro plano, correspondente ao trejeito dos biografemas que
costuram em uma única vida, outros vividos, ou seja, escrituras que aludem a um outro
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registro que está fora tanto da letra quanto da literatura. Seria nessa composição
distraída que “a morte do autor” torna-se uma prerrogativa necessária. Tal sentença
que Roland Barthes propõe em texto homônimo – “A morte do autor” (2012, p. 57),
ganha visibilidade quando o autor afirma que escrever é um ato impessoal, onde a
escritura somente inicia quando atingimos “esse ponto em que só a linguagem age,
“performa”, e não o “eu” (p. 59), portanto: mata-se o autor em proveito da escritura,
quando ao se destituir o mesmo da função principal do texto, atenta-se para a potência
da linguagem distraída, que não encontra a obra, mas um texto feito no diálogo de
múltiplos outros textos.
Múltiplos são também os signos desse tipo de escritura: o que passa
despercebido pelas interpretações, se atualiza no texto. Aproximo-me de Feil (2010)
a fim de traçar um significado para o signo na prática biografemática: “aquilo que
instiga e dispara um texto; como aquilo que nos encanta” (p. 81). Designo, assim, a
prática de uma biografemática distraída a partir de Fernando Pessoa, quando escreve
com o pseudônimo de Alberto Caeiro que “Sentir é estar distraído” (2012, p. 101).
Assim: uma prática dos sentidos, que perpassa o significado e vai tocar lá onde os
afetos se proliferam; ser afetado para sentir o que no texto há de potência e o que se
ama de um sujeito que é sempre disperso, sujeito que não penetra o território, mas
conquista as superfícies.
Se é as superfícies que percorremos, se é outra vida que se descola, então
decifrar um texto torna-se inútil e os sentidos se proliferariam na mesma velocidade
em que se evaporam. Lembramos dessa forma, da escuta distraída, proposta como
um desdobramento da escrita múltipla, dos biografemas que se multiplicam na
composição de outros informes. É nesse outro corpo que se cria onde estariam
inscritos os movimentos, as fugas na mesma intensidade com que Lewis Carroll narra
em “Alice no País das Maravilhas”. Alice mesmo caindo nas profundezas, aos poucos
vai conquistando as superfícies, criando-as concomitantemente. Deleuze (2011, p. 34)
acerca do texto de Carroll fala que “os movimentos de afundamento e entranhamento
dão lugar a leves movimentos laterais de deslizamento; os animais das profundezas
tornam-se figuras de cartas sem espessura”.
Quando embaralho a vida; é aí que ela ressoa caótica
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O biografema deslizaria como Alice para todos os lados, onde portas se
abririam o tempo todo e por onde poderíamos espiar diferentes narrativas além do
“país das maravilhas”. O que quero dizer é que não estamos à mercê de uma única
vida, mas de puros acontecimentos, sendo o acontecimento, entendido na lógica da
diferença, como aquilo que é tanto o sentido das frases, como o devir do mundo, aquilo
do mundo que se deixa envolver na linguagem, permitindo seu funcionamento
(ZOURABICHVILI, 2004). A distração do biografema, sempre em suspenso, abortaria
a biografia destino dando visão ao que insiste em ficar de fora, aos acontecimentos
que escapam das letras e vão se fazendo nas entrelinhas.
A respeito dessa nova composição – constituída pelos biografemas que nosso
olhar capturou e que poderiam ser considerados os acontecimentos da biografia – um
outro ponto se refaz e nos coloca diante de uma indistinção entre realidade e ficção,
ou seja, já não conseguimos dizer o que pertence ao escritor ou ao biografado, tudo
se mescla e se mistura. Assim como na insignificância das cabeças inclinadas nos
romances de Kafka, identificadas por Deleuze e Guattari em “Kafka: por uma literatura
menor” (1977), em que tais detalhes são ressignificados pela escrita especificamente
desse texto, operado na zona indiscernível que agora se produz: é por isso que a
morte do autor alude ao afastamento da obra, fazendo a escrita tornar-se texto, o que
remete à perda de uma origem e consequentemente à composição desse “entre”,
espaço onde vão nascer ao mesmo tempo o texto e o autor.
Corro com uma “terceira perna”: estou sendo
No vazio dos sentidos que não cessam de serem produzidos, a distração
comporta os abalos e a efemeridade de uma vida singular, justamente por seu caráter
flutuante. Será, portanto, nesse “entre” onde habita a confusão de “eus”, o espaço
(indefinido) por onde vai se romper a permanência do olhar concentrado para acionar
os estados de ruptura que a distração pressupõe: biografemas seriam, pois, tudo o
que está entre parênteses; um texto da vida do fora. Vida que só ganha contornos
pelo invisível, espaço do oculto e onde Peter Pál Pelbart traça os regimes de
invisibilidade da loucura. O autor citado refere que na convivência com as
comunidades de loucos sente-se o invisível entrelaçado nos objetos, nas pessoas,
nas palavras, nos silêncios, e essa sensação não vem do que está na cabeça dos
pacientes, mas sim, do que se encontra nesse entre: “entre eles, entre um e outro,
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entre um olhar e um objeto, entre as palavras e as coisas, entre um som e um retalho”
(PELBART, 1993, p. 53).
O que há entre uma vida? É por essa perspectiva que Barthes vai se apropriar
do Marquês de Sade, Fourier e Inácio de Loyola, em “Sade, Fourier, Loyola” (1979),
quando ao invés de se deter aos detalhes já significados que nos fazem reconhecer
cada um desses autores, identifica os vazios, o invisível dessas vidas e compõe um
texto inédito: o regalo branco que Sade usava no inverno, os bolinhos de Fourier, os
olhos marejados de lágrimas de Loyola. No texto, Barthes libera a potência da
escritura, acarretando um novo tratamento biográfico da história, impelindo sempre ao
movimento de criação e recriação de mundos, o que envolve a iminente mudança de
postura da leitura: ler com a cabeça levantada, como foi dito anteriormente, mas
também captar as intensidades advindas dos rumores da escrita.
[...] o rumor denota um barulho limite, um barulho impossível, o barulho daquilo que, funcionando com perfeição, não tem barulho; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do barulho: o tênue, o camuflado, o fremente são recebidos como sinais de uma anulação sonora (BARTHES, 2012, p. 94).
Ao rumorejar nenhuma voz se eleva, nenhuma voz se constitui e o que se têm
são os sentidos postos ao longe como uma “miragem”; miragem que penetra nossos
olhos e some com um simples esfregar com as mãos. Em uma tempestade de areia
no deserto, autor e leitor são projetados para outro espaço que não o texto
propriamente dito, fazendo-os experimentar outra dimensão, outro plano aonde os
sentidos teletransportados reinventam um depósito de significações, criando
envergaduras, pequenas varizes por onde o sangue vaza e por onde os corpos
escoam.
Um biografema distraído poderia advir de um rumor, como quando
aproximamos nosso ouvido de uma concha: escutamos o barulho do mar, porém não
é o mar. São desses rumores que o biografema é feito, para ser desfeito e refeito
novamente. Nesse rumor que nossos tímpanos não conseguem captar piamente, é
que em algum momento alguma intensidade advinda de uma alegria sem explicação,
reabre uma ambivalência de sentimentos. É nesse encontro, entre o ruído e a altivez
da criação que algo emana, colocando as orelhas em uma espécie de vertigem, que
não passa nem pelo ouvido, nem pela audição.
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Quando leio em Carlos Drummond de Andrade: “Clara passeava no jardim com
as crianças/ O céu era verde sobre o gramado/ a água era dourada sob as pontes,/
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,/ o guarda-civil sorria, passavam
bicicletas, [...]” (ANDRADE, 1973, p. 115); são os rumores da guerra que consigo
sentir através da minha leitura distraída, leitura que corta e vai além das palavras
grifadas no papel. Na prática biografemática, é dessa forma que os detalhes, os
pormenores e os vazios de sentido vão compondo uma narrativa impessoal, sendo
que a própria escrita é quem conduz a vida e não ao contrário, como acontecia na
biografia.
Ao invés do biógrafo que conta a história de vida, o biografema tem, na figura
do biografólogo, um escritor de vidas (BARTHES, 2005, p. 170). O biografólogo, ao
inventar essas vidas, compõe um arcabouço de biografemas, onde cada traço
aparece como uma possibilidade de escritura, sendo impossível prever como ocorrerá
essa produção que, justamente por ser incerta, nos coloca a produzir. Importante
ressaltar que o biografema não se contenta com uma vida interpretada ou entendida
e seu surgimento vai ao encontro do que Sandra Corazza pressupõe em “Introdução
ao Método Biografemático” (2010) como uma estratégia de saída frente à clausura
que certos procedimentos biográficos impõem ao regime de signos de uma vida;
questão que Barthes levanta também em “Roland Barthes por Roland Barthes” (1975)
quando depois de alinhar os dados principais de sua vida, acrescenta:
Uma vida: estudos, doenças, nomeações. E o resto? Os encontros, as amizades, os amores, as viagens, as leituras, os prazeres, os medos, as crenças, os gozos, as felicidades, as indignações, as tristezas: em uma só palavra: as ressonâncias? – No texto – mas não na obra (BARTHES, 1975).
É essa distinção entre texto e obra que nos permite tomar os biografemas:
Perrone-Moisés (1985) acerca da “obra”, afirma que essa seria o conjunto de livros,
através dos quais podemos conhecer as ideias teóricas de determinado autor,
enquanto o “texto” é aquilo que está nas entrelinhas desse discurso falsamente
acadêmico, nas vibrações, nas tonalidades e que, finalmente, ao conhecermos certo
autor, esse texto se entrelaça a um outro, que são as anamneses; fragmentos da
escritura de vida.
Nesse sentido, afirmamos que o biografema, como dispositivo para a pesquisa,
não se determina a priori, no entanto aponta para algumas direções, algumas pistas
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com as quais vamos dando consistência a diferentes elementos que se misturam e
com os quais criamos um outro corpo, que não unicamente de uma maneira. O que
se quer é abrir o texto para outros modos de usar o método biografemático, propondo
uma pista para a escritura: a distração vem a ser esse modo com o qual experimento
o ato da escrita, compondo experiências na literatura menor para o que é minúsculo
numa vida.
Ao encontrar Blanchot, ao percorrer suas entrelinhas, sentimos que estamos
diante de uma prática biografemática distraída, que se insinua quando estamos “fora
de nós”. Estar fora significa não ser nem sujeito nem objeto, alcançando o esplendor
do impessoal, em que o “eu” já não se reconhece mais, sendo tomado por uma
estranha potência neutra e impessoal: “o real entra num reino equívoco onde já não
existe limite, nem intervalo, nem momentos, e onde cada coisa, absorvida no vazio de
seu reflexo, aproxima-se da consciência que se deixou encher por uma plenitude
anônima” (BLANCHOT, 1987, p. 264). Distrair-se de si é condição para um modo
biografemático, modo que aciona uma escuta para além do já dito, dando vez ao
encontro das forças, dos devires, dos blocos de sensações.
Daí que outras linhas começam a entrar em relação: se antes, na biografia, as
linhas seguiam uma segmentariedade, pois lineares, agora, nos biografemas, essas
linhas se desmancham, desmanchando esses limites e operando em fuga. Já diziam
Deleuze e Parnet (1998, p. 49) que “a linha de fuga é uma desterritorialização”, pois
criar uma linha de fuga é também criar pela linha de fuga, e a partir desse conceito
podemos pensar num processo de escrita que se inscreve na lógica dos encontros,
produzindo outros corpos, um corpo “fora de si”, corpo distraído que torna-se
revolucionário por seu processo criativo.
Escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é forçado a seguir, porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos embarca nelas. Escrever é tornar-se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se outra coisa” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 56).
Ao se tornar outra coisa, o biografólogo experimenta outras escrituras que
fogem por outras vidas. Este texto, por exemplo, poderia se constituir como um
encontro que não é dado pelo tempo cronológico, mas pela invasão atemporal. Dizer
isso é acreditar que por mais que a morte seja uma prerrogativa, nunca tomamos uma
vida por encerrada, pois ela sempre abre frestas para novas e outras composições.
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Veja Kafka, Nietzsche, Deleuze, Virgínia Woolf: suas biografias e biografemas nunca
param de proliferar e a partir delas extraímos o néctar necessário para outras
experimentações.
Experimentações que ao seguirem as premissas da pesquisa biografemática
tornam-se parte de uma literatura menor, sendo esta uma articulação entre a filosofia
e a literatura e que Deleuze e Guattari apostam em “Kafka: por uma literatura menor”
(1977). No texto citado, os autores reapresentam Kafka através de uma nova leitura o
que torna tal texto singular: “uma literatura menor não é de uma língua menor, mas
antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.
25). O que nos deparamos, então, é com todo o potencial de desterritorialização de
cada autor; e o que é oferecido ao leitor é um testemunho; testemunho ao texto, ao
autor e nunca uma análise ou interpretação.
Testemunhar, por sua vez, é relacionar o ato da escritura com aquilo que
queremos imortalizar e que de alguma forma, nos afetou. Barthes é quem refere, em
“A preparação do romance I” (2008), que “amar + escrever = fazer justiça àqueles que
conhecemos e amamos, isto é, testemunhar por eles” (p. 28). Escrever àqueles que
depositamos amor, no sentido de ter em algum momento se debruçado sobre. O
biografema parte, então, da concepção de “uma nova escrita da vida” (COSTA, 2010,
p. 24) em que nunca se cessa de produzir novos sentidos, de cavoucar e inventar
outros mistérios.
Sentidos que se proliferam compondo outras vidas, outras possibilidades de
experimentar aquela existência: dessa forma, a distração nunca enverga o rosto em
uma única imagem, mas pelo olhar “desatento” constitui outros retratos de vida para
aquele sujeito, retrato que nunca se encerra, nunca é acabado e pressupõe sempre
outro tratamento daquela história; outra composição de vida: biografemas distraídos
que nos colocam em suspenso, onde sempre estamos propondo movimentos de
criação.
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Tal como escreve Montaigne (2002), o declínio de uma vida talvez seja mesmo
a passagem a mil e outras vidas. Feito sopro, ou seja: distraidamente.
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6 BIOGRAFEMA: CINTILAÇÕES EM CLARICE LISPECTOR
“Vida”, qual Clarice conhecemos? Lispector, ou singela flor-de-lis, Animalesca, sutileza da mudança, De peito aberto, recoberto. Quem ela é ao certo? Ela não é, experimenta ser. Joguei lírios na sua existência.
Autora ou atriz? Clarice Lispector não se contentou com a morte calada, mas
inventou seus mistérios e enigmas, deixando lacunas na sua história que ao serem
vasculhadas explodem num enxame infinito de possibilidades. Não quero conta-la,
quero vivê-la: essa é a minha fatalidade. E de que me valerá isso? Talvez para nada,
talvez para tudo; na verdade minha ambiguidade é tão desajeitada que esse texto
pretende experimentar o próprio texto, atingindo aquilo que ressoa, dando voz às
intensidades. Sou produção, produtora, produto, que mal fiz a mim mesma para estar
nessa encruzilhada? Existi e emprestei meus sentidos àquilo que parecia imóvel.
Respiração boca a boca. Sou uma “resgatadora de vidas”, inventora de mergulhos.
Mais que um trabalho de conclusão, uma escritura da vida; mais que uma autora, um
traço; mais que um texto, entrelinhas; mais que uma profissão, um desafio. Esperarei
o inesperado e nesse paciente exercício flutuo entre o exercício clínico, entre a saúde,
entre a criação, entre, somente, entre que está no meio. Entre no texto. E quando, por
fim, adormecer, espere pelo orvalho e beba a placenta de um sol recém parido.
Clarice é plural, é múltipla: os biografemas de sua vida se rearranjam em outros
modos que cada olhar reinventa, esteticamente. Clarice é assim; é assado. É feita das
imagens que sua escrita inventa para mim: é Joana, Ângela, Laura, Macabéa;
personagens que a autora inventou para existir. Eu também invento Clarice e seu
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“sopro de vida”, e amparada pelo biografema de Roland Barthes, posso percorrer suas
entrelinhas, aquilo que diz de uma possibilidade clínica, de um marca-passo para
minha experimentação. O biografema, assim, por operar com espaços rizomáticos
que se multiplicam, ao mesmo tempo em que novas saídas ou entradas perpassam a
ordem já estabelecida do texto, atropela Clarice deixando-a em suspensão. Nesse
âmbito, a escrita é fator propulsor para percorrer a matéria inacabada, o informe
existir, e dessa forma, utilizo-a para fazer essa passagem entre o biografema e a
clínica, testemunhando o encontro entre mim e Clarice; entre seu texto e minha leitura.
Inclusive, eu inventei com uma amiga minha, meio passiva, uma história que não acabava [...] eu começava, tudo estava muito difícil; os dois mortos... Então entrava ela e dizia que não restavam tão mortos assim. E aí recomeçava tudo outra vez... (LISPECTOR, 2006).
Recomeçar, reinventar: essa é Clarice, nunca satisfeita com as explicações, os
finais, e nesse querer, são os traços que ela arrisca. Clarice lança-se em devires, em
novos territórios que fogem o tempo todo, enquanto ela experimenta novas escrituras,
encontra novos corpos. Sua força animal é que a arrasta para o caos do mundo e para
um mundo além do humano:
Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei mais quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigado a assumir (LISPECTOR, 1993, p. 54).
Ser animal é ser it; são os artigos indefinidos efetuando sua potência: aqui não
temos Clarice, mas uma Clarice, aquela pela qual devo arriscar o traço, não a única,
mas apenas uma das possíveis. Clarice mulher, que saiu da Ucrânia em plena Guerra
Mundial, num contexto de miséria e humilhação, para reconstruir sua existência no
Brasil. Era Chaya, tornou-se Clarice. Mas levou consigo Lispector que era pra não
perder sua territorialidade, mesmo não considerando sua nacionalidade real; era de
alma, brasileira. Clarice nunca fez referência a seu nome secreto, colocando-o para
habitar o silêncio. Será em “Um sopro de vida” que encontramos os resquícios de sua
origem quando coloca as seguintes palavras na boca de sua personagem Ângela
Pralini:
Fiz uma breve avaliação de posses e cheguei à conclusão espantada de que a única coisa que temos que ainda não nos foi tirada: o próprio nome. Ângela Pralini, nome tão gratuito quanto o teu e que se tornou título de minha trêmula identidade. Essa identidade me leva a algum caminho? Que faço de mim? Pois nenhum ato me simboliza (LISPECTOR, 1991, p. 38-39).
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Reflete-se no anonimato de Clarice, tal escritura: sem nomes. O que se produz
é uma escrita sem “nós”, uma janela aberta para o acaso por onde tento espiar;
trazendo à tona aquilo que insurge na superfície e que pela atenção distraída vem a
se atualizar. Passa-se a habitar outros espaços, outros silêncios, outros corpos, como
se nos tornássemos o alimento de um tubarão faminto, dando outra conotação ao
corpo morto. Vive o tubarão; traçam-se outros sentidos.
Linhas amarelas Soltar o peito Agulhas costuram Pontas perfuram Torna encanto Palavra vírgula liberdade.
A atualidade da escrita que aqui se faz nasceria, assim, de um pensamento que
se produz em cada poro, em cada célula da pele: pensamento arrepiado, ligado aos
afetos e que está longe de ter uma forma definida, pois se comunica, paradoxalmente,
por seu caráter incomunicável. Shopenhauer, sobre o processo da escrita, defende
que um livro é feito pela impressão dos pensamentos do autor dizendo: “quem escreve
de modo afetado é como alguém que se enfeita para não ser confundido e misturado
com o povo; um perigo que o gentleman não corre, mesmo usando o pior traje” (2012,
p. 91). Clarice me arrepia e nenhum entendimento a mais é necessário.
São esses arrepios que sinto e são eles que me distraem lançando minha
escuta ao que se perde dos pensamentos. São as sobras dessa vida de que me ocupo
e de onde tento arrancar toda a potência que ainda ressoa diante do traço que me
acomete, movimento análogo ao de uma lança que ao atravessar o peito reinventa
aquele corpo. Eis uma nova escrita, repleta de rupturas e de fugas que os biografemas
vão costurando e que poderiam servir na mesma proporção que Clarice Lispector
toma sua existência: “eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém.
Provavelmente a minha própria vida” (LISPECTOR, 1991, p. 17).
É nessa dimensão outra que encontro Chaya/Clarice/Ângela/Érica e na
verdade não encontro nenhuma dessas mulheres; encontro antes um vazio enrugado,
engatilhado no impensado, uma escrita além, estrangeirismo que Chico Buarque
sente ao chegar em “Budapeste” (2003), graças a um pouso imprevisto. De lá, sem
entender bulhufas do idioma húngaro, dá-se conta que tem “esse ouvido infantil que
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pega e larga as línguas com facilidade” (p. 7). Esse corpo estrangeiro e disperso com
quem encontro torna-se o efeito dessa travessia, de uma escrita pelos afetos.
Nessa travessia é que se dá o encontro com as palavras. Escrever passa a ser
uma doce agonia, possível ruptura com a realidade, pois em meio ao trágico “a
literatura é uma saúde” (DELEUZE, 2011, p. 9). Procurar aquilo que pulsa, que punge,
que transforma: a escritura tem essa incumbência. Ela revela o detalhe de uma
singularidade, de uma vida que será invadida. No biografema, quebra-se o silêncio,
criando um outro território, que pode se demorar um pouco mais, mas atira novas
marcas em um tempo que já passou. Assim como atiro em Clarice, nos sopros, na
música, na poesia, em uma clínica que se configura e desconfigura, funcionando como
marcações de um tempo tecido na mais fina seda: se quebra pela simples brisa que
toca.
É por esses devaneios que as forças do fora operam e por onde se desdobram
as experiências que não se fixam em territórios, mas se desterritorializam. É nesse
fora que reinvento Clarice Lispector, buscando em “Um sopro de vida” (1978) o que
se constitui, nesse texto, como uma outra possibilidade clínica. Importante ressaltar
que se defendo tal estratégia – uma clínica com Clarice – isso tem a ver com a minha
relação com a autora e não serve de jeito nenhum como um manual ou um guia para
o exercício clínico. Tal método é construído justamente pela pesquisa biografemática
distraída, que discorro nesse trabalho, a fim de incutir um pensamento movente,
ampliando a potência de um gesto, de uma dança, de uma partitura e de tudo aquilo
que podemos considerar vida.
Nada começa, nada se torna, nada tem a sua primeira vez: esse é o vazio
Minha relação com Clarice é tomada pelos vazios, pelos interstícios, pelos
espaços em branco que a escritura comporta, sendo sempre entre a vida do autor e
do escritor que muitas outras vidas escoam. Vidas que podíamos nomear, por
exemplo, quando Clarice se apaixona por Lúcio Cardoso, um homossexual com quem
ela troca frequentemente cartas e de quem nunca teve seu amor correspondido. Mas
não. Aqui eu quero falar desse encontro entre mim e Clarice, entre mim e “Um sopro
de vida” que poderia ser assim descrito: “dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban. Joju leba,
leba jan? tutiban leba, lebajan. Atotoquina, zefiram. Jetobabe?” Era assim que Ângela
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Pralini conversava com seu cachorro, uma linguagem “que nem o imperador da China
entenderia” (LISPECTOR, 1999, p. 60-61), encontro, inexplicável, pois da ordem dos
afetos.
A esses encontros, remeto-me à lógica de Espinoza que reconhece a fluidez
dos corpos e que diz muito desse “não entender” dos encontros. Nesse sentido,
importa a intersecção das linhas dos movimentos e dos afetos para entender do que
um corpo é capaz. Na primeira dessas linhas, ficaremos atentos às “relações de
movimento e de repouso, de lentidão e de velocidade” (DELEUZE, 2002, p. 128) entre
os diferentes corpos. Já no que se refere aos afetos, queremos saber que efeitos tem
um corpo sobre o outro nesse encontro e se esse corpo teve sua potência de agir
aumentada ou diminuída: é assim que determinamos se um encontro é bom ou não.
Dessa maneira, Clarice Lispector, para mim, constitui-se como um bom
encontro, como algo que emana dos rumores, das intersecções que se formam das
linhas de fuga. Clarice poderia ser inspiração, mas não é; ela é, a meu ver, um clone
da Capitu de quem Dom Casmurro descrevia os olhos: “de cigana oblíqua e
dissimulada” (ASSIS, 1899). É o mistério que está envolto não para ser descoberto,
mas para se produzir outros, que nunca cessariam o movimento do leitor.
Clarice como uma ideia da imaginação
Baudelaire, citado por Blanchot (1997, p. 137) diz que “a imaginação é, sob
todas as suas formas, equilíbrio em perpétuo desequilíbrio”. É com tal imagem que
construo nesse trabalho o que denominarei “clínica clariciniana”: uma clínica que se
faz pela experimentação em um tempo sem passado nem futuro, pois segue os ruídos
do “instante-já” (LISPECTOR, 1993), aquilo que desconstruímos o tempo todo, mas
que só existe porque já foi experimentado.
Mas o instante-já é um pirilampo que acende e apaga. O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente no chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago (LISPECTOR, 1993, p. 20).
De um tempo inapreensível, constrói-se uma clínica em linha de fuga, que nos
leva sempre para o desconhecido, para aquilo que tange ao campo da pluralidade da
vida, mesmo daquela que já está morta, por isso há um investimento na ausência. O
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que de tudo isso nos resta, pois, é “Um sopro de vida” (1978), livro que Clarice
Lispector escreveu em fragmentos para captar o desejo que pulsa, “pulsações”, como
diz o subtítulo. Tal livro me toca justamente pelo que assopra em mim, toca-me seu
texto fluido, liquidez que cria um autor capaz de se multiplicar, capaz de devir-outro:
Clarice e Ângela e eu e......e deparamo-nos, enfim, com uma conjunção que não se
esgota, comportando a vida dentro e fora dos paradoxos, fazendo sempre conexões,
assim como faz o princípio do rizoma:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e...” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 36).
Será, assim, de forma rizomática que a clínica clariciniana vai se compondo,
propondo outros movimentos, outros exercícios clínicos; é aí que cresce o paradoxo
de tal clínica: fazer do nada, outra coisa. Esse nada, imbuído no sopro, na lógica do
sentir em detrimento da razão, que faz com que a vida e a escritura sigam um só
movimento, aproximando-nos quase de uma musicalidade dos fragmentos e da forma
heterogênea com que estes se relacionam.
Um sopro existiria sem razão alguma, somente pela sua imprecisão, pela sua
não-imagem. Poderíamos supor que ele é fecundado pelas peripécias de um pulmão
que deseja ser: assopra-se existência, disseminam-se os sentidos, e assim, entramos
em contato com as sensações e afetos que irrompem através de nossos corpos, por
aquilo que atravessa o caminho do ar, do sopro que, de imediato, cala a voz. Trabalha-
se com um nada, com um invisível que rapidamente se esvai e que nos deixa
enlutados de matéria. No entanto, até mesmo esse nada é possível lapidar, fazendo
falar o que não se mostra, equilibrando-se em outras linhas amarradas pelo fio do
silêncio, criando cada vez mais rumores, debruçando os cotovelos no ar.
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa, era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás da casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem (BARROS, 2010, p. 303).
Artefatos da imaginação em detrimento da clareza. O poeta não quer uma
palavra, quer um sopro, quer vidas sem vidas, campo de fluxos, paradoxos, detalhes;
campo dos traços que suspendem o texto e desinventam os objetos. Por todo o texto,
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Clarice Lispector, e ao mesmo tempo, sem ela. Sem autor, leitor ou destino: um texto
feito de instantes, de pluralidades, devolvendo à escrita o seu devir. Um texto de
sopros e das ressonâncias que eles dão à clínica em movimento. Com as letras, vou
construindo o fluxo dos invisíveis que não cessam de querer viver. Produzo novidades,
devires que se atualizam a cada encontro com a escrita e com Clarice. É pelas
palavras dela que canso minha mansidão e começo a perfurar cada pedacinho, cada
ladrilho e azulejo dessa cozinha que já quebrei toda. Vivo em estilhaços, no fervoroso
tédio de minha existência.
Um sopro torna-se aqui um biografema e o que parecia até então irrelevante,
salta aos olhos distraídos que inventam uma nova figura ao corpo informe, causando
outras distrações e assim a criação de outros corpos. Nesse processo, a poética está
em tomar tais criações como pistas que serviriam assim para a experimentação da
clínica clariciniana.
Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, a imagem transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas deformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades (BARROS, 1996, p. 75).
A arte experimenta a si mesma, assim como eu a experimento no âmbito da
clínica. No entanto, ela não é simples depositório de ideias, mas ao se fazer no “fora”,
constrói-se em um plano de imanência, plano que “não apresenta senão
acontecimentos, isto é, mundos possíveis enquanto conceitos, e outrem, como
expressões de mundos possíveis” (DELEUZE, 1996, p. 66). Será nesse plano que as
pistas vem à superfície, constituindo partículas que se movimentam em permanente
devir, atravessando tudo que está no plano.
“Devir-artista” – Sandra Corazza (2006)
“Artistar” as pistas da clínica clariciniana por onde perfuram as vidas, os sopros,
os biografemas, sempre no plural. Pistas que jamais serão vistas como regras, nem
meros manuais de instrução, mas que formam um conjunto de linhas em conexão,
linhas de fuga que se encontram. Dessa maneira, não existe um saber pronto a ser
transmitido, mas experimenta-se uma clínica inconclusa, portanto aberta a novas
experimentações. De algumas inclinações e viveres: dos sopros à clínica.
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7 VINTE SOPROS PARA UMA CLÍNICA CLARICINIANA
Tédio
“Então – para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas
novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio”.
A vida é toda perfurada pelo tédio e pelo tédio posso me encontrar comigo
mesma. Entediada vejo meu rosto no espelho e sem ter o que fazer penso como seria
se não fosse eu. Tento me reinventar naquele tédio inumano, naqueles promíscuos
pensamentos e me faço toda de novo, para não me achar pronta nem atarefada
demais, ou com tanta operação que não possibilite a inoperância do tempo. O tédio é
aliado, aquele que me faz lembrar que estou nesse mundo e que de tão preenchido,
esqueço de investir energia no meu corpo. O tédio me preenche de mim.
Tempo
“O que chamamos de tempo é o movimento de evolução das coisas, mas o
tempo em si não existe”.
Me deram um tempo e eu o esmaguei ferozmente, como faria com uma barata
que adentrasse em minha casa. Não posso suportar essa hipocrisia: administrar o
tempo. Como se toda minha vida estivesse contida nos movimentos repetitivos do
relógio. Minha vida não comporta horas, nem repetições; eu só tenho o meu presente
e de todos os que me deram foi o melhor que ganhei. O tempo presente nem deveria
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ser tempo, deveria ser vida, vivível, móvel. Deveria ser o acorde que se perdeu numa
música que nunca existiu.
Esquecimento
“Esquecer-se de si mesmo e no entanto viver tão intensamente”.
Sou uma tempestade de areia, um grão de areia que se perdeu no deserto. De
tanto ver os outros grãos me torno grão, mas quando esqueço que sou grão de areia,
posso ser qualquer coisa. Sou um pingo de chuva que molha o deserto, sou algodão
doce no parque de diversões, sou uma folha que se perde no vento e uma unha
quebrada que rola pelo chão. Quando eu sou eu, posso ser quem eu quiser. Quando
esqueço de mim, finalmente consigo me fazer em outros espaços. Sou pedaços de
existência, e sou, quando esqueço de ser.
Salvação
“Eu escrevo como se fosse pra salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha
própria vida”.
A quem devo salvar? Uns querem, outros não. Devo salvar um irmão? Um
jovem cristão? Ou um triste ancião? Quem merece a salvação? Para lá e para cá
dançam as nobres pernas que de tão cansadas se entortam e sufocam todas as dores.
Estão apertadas, bem apertadinhas, por elas meu olho nem consegue espiar. Porém
sem a cola da amargura e da desistência, consegui escapar pela fresta, por onde
ninguém jamais imaginaria passar: entre uma perna e outra e voltei a respirar. Salvei
meu corpo, mas antes salvei minha esperança. Agora posso cantar bem alto:
“Aleluia!”. Mesmo que a salvação dure apenas aquele momento íngreme e
atrapalhado do salvamento, agora já posso cantar e correr e pular. Chamem os
bombeiros, chamem o salva-vidas: ele está pedindo mais um chance. Acabo de salvar
minha crença na vida.
Não sentido
“O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência”.
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Você está ligeiramente enganado: meu sorriso não estão sorrindo. Sou má e
estou de má fé. Não acredite em mim, não acredite no que te falo. Mantenha as duas
orelhas antenadas no meu corpo, mantenha os sentidos vibrando, arrancando do meio
da pele a realidade que só pode existir no meio da fantasia. Está tudo tão difícil e é
tão amargo aceitar. Prefiro o irreal, prefiro Napoleão na minha sala de estar; não
consigo lidar com o sentido. Não quero sentido, quero sentir, mesmo que seja um não
sentido. Gosto da negativa, gosto da sensação. O sentido é sério demais, o sentido
abre o sorriso da hipocrisia; o não sentido me faz sorrir complacente. Sentir com o
corpo é entender o não sentido, é compreender a brisa que arrepia, o olho que brilha,
é compreender que a compreensão não é necessária, quando eu invento um sentido
só para mim.
Ausência vital
“Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido
e total”.
Ausente está aquele que não está, mas e se estivesse como se mediria sua
permanência? Talvez por meses, anos, séculos ou quem sabe pelos milésimos de
segundo que durou aquele olhar. No entanto, quando sempre se está, não se sente a
ausência; e o tempo não dura, a rotina perdura, pois quando a ausência não há, não
consigo distinguir a permanência. Só se pode estar porque em algum momento não
se esteve.
Silêncio
“O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim”.
A mãe encontra Rita debaixo da cama e pergunta:
- O que está fazendo aí minha filha?
- Estou tentando desenhar o silêncio.
- Como se desenha o silêncio?
- Não sei mamãe, ainda não encontrei o lugar em que o silêncio está.
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- E como tu achas que pode encontrar ele?
- Uma vez a professora disse que se a gente ficasse bem quietinho poderia
escutar o silêncio, mas o meu silêncio não se cala. Ele mora aqui dentro e fica se
misturando com as batidas do meu coração.
- Está certo minha filha. Para desenhar o silêncio, precisamos ouvir o coração.
- Então é mesmo no coração que ele está?
- Não minha filha. O silêncio está atrás do coração, aonde ninguém nunca
conseguiu ver, pois o silêncio, mesmo aquele mais silencioso, sempre está prestes a
dizer alguma coisa e aí ele já se perde de novo.
Desconfiança
“Espanto-me ao mesmo tempo desconfiado por tanto me ser dado”.
Observo atentamente todas as pessoas que estão na cozinha somente por um
buraco na toalha de mesa da minha avó. Uso meu binóculo pra ver e é justamente ele
que me tapa de desconfiança. Porém, a desconfiança não tinha nascido ali, mas na
insegurança de ser o filho mais velho de três. Minha mãe parece triste, coitada!, e a
única coisa que eu podia fazer era desconfiar de sua legalidade materna. Mas ela
dizia o tempo todo ser minha mãe e me amar mais que tudo. Assim, para não viver
angustiado pela paranoia de não saber quem é quem, aceitei provisoriamente o voto
de confiança. O problema agora é minha avó: ando desconfiado que ela seja uma
fada.
Abandono
“A arte de abandonar não é ensinada a ninguém”.
Certa vez li em algum lugar, em alguma página de algum livro da minha mãe
que folhei sem ela saber, que todo mundo deveria abandonar os vícios da carne.
Pensei que seria difícil tornar-me vegetariana, já que hambúrguer era minha comida
preferida. Comecei a traçar uma plano, pra ver se eu conseguia viver sem carne. No
primeiro dia descobri a soja, no segundo me entupi de carboidratos, no terceiro
abandonei a dieta e no quarto fui dormir sozinha, pela primeira vez com a luz apagada.
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Liberdades
“Estou tendo uma liberdade íntima que só se compara a um cavalgar sem
destino pelos campos afora”.
Como eu sinto que estou sentindo liberdade? Como é estar livre? Questão que
passou pelos mais antigos filósofos e que agora passa pelo meu pensamento. Pensar
a liberdade é um desafio. Podemos pensar livremente, mas pensar é liberdade?
Livrar-se é uma liberdade e a mudança é a livre escolha da vida. Livre mesmo é estar
sozinho, mas a solidão também pode aprisionar. Então como é isso? Meu Deus! Estou
numa encruzilhada que minha liberdade tramou e que agora só me resta gritar por
socorro! Porém liberdade não socorre, aquele que é livre sim. Socorre a si mesmo e
resgata o cidadão que está preso na certeza. A liberdade se jogou na divagação e no
jardim vejo despencar do casulo a borboleta que voa como se o mundo inteiro fosse
seu. O voo não liberta, mas sim, o desejo de voar!
Fluidez
“Eu, o autor deste livro, estou sendo tomado por mil demônios, que escrevem
dentro de mim. Essa necessidade de fluir, ah, jamais, jamais parar de fluir”.
A palavra flui mais rápido que a vontade de escrever. Palavra é água que nunca
se separa da história e nunca nos separa dos fluxos. Fui lançada ao mar e agora já é
tarde para voltar atrás. Mas para quê voltar? Voltar a água não faz, água vai, água
escorre. Quando entro no mar sinto-me renovada e as gotas amontoadas que tocam
o meu corpo tornam-se parte de mim, fazendo fluir um corpo diferente do meu.
Encontro-me em um território aquático: por vezes flutuo, outras mergulho. As
superfícies nunca me pareceram tão interessantes: quando chego nelas tudo já se
modificou. Flui movimento puro. Os fluxos que movimentam as nossas vidas, são os
mesmos que nos levam para lugares inimagináveis – é um deixar-se, sem jamais
deixar de ser. Fluem as gotículas da existência.
Caos
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“Eu busco a desordem, eu busco o primitivo estado de caos. É nele que me
sinto viver”.
Aonde estou? Para onde vou? Não sei. Caíram as pontes de todo o mundo e
os prédios foram implodidos de tão ultrapassados. Agora ninguém sabe aonde mora,
o que faz, o que espera. O futuro tornou-se pergunta e o passado esquecimento. As
sinfonias não têm mais tempo e as esculturas perderam a forma. Uma caótica
existência se instalou dentro de mim, e como eu vivo agora? Ou: continuarei vivendo?
Minha vida agora está onde os pássaros não encontram pouso.
Invenções
“Eu inventei Ângela porque preciso me inventar”.
Pegue dois gravetos, um tubo de cola, dois metros de tecido, uma folha de
papel seda, uma tesoura e uma caneta azul. Coloque os gravetos na base, corte duas
tiras de tecido e cole no lado direito de uma folha de papel seda, escreva seu nome e
em seguida leve ao forno. Dê fogo a sua criação e invente tudo de novo. Invente um
gastilo, uma fermota, um estetilomo. Eu tenho aversão a cópias, sinto asco quando
escrevo o que já escrevi, não suporto ser o que já sou. Gosto de ser outras, de me
inventar outras, de experimentar outras. Gosto das invenções que tenho feito de mim
e “gosto não se discute”.
Ser
“Eu finjo que sou uma determinada pessoa mas na realidade não sou nada”.
“Ser ou não ser”: esqueça Shakespeare. Esqueça o ser. Seja, mesmo que você
seja nada. Ou melhor, não me escute, não me imite, não me dirija a palavra. O ser
não existe, existe o sou. Sou é tão leve que poderia ser uma pena, ou melhor, sou
uma pena. Sou é destemido, alegra-se com as pequenas coisas e muda a cada pulo
que dá sobre as ondas. Sou tem a inocência de uma criança e a força de um
rinoceronte. Sou é rinoceronte porque gosta desse nome: ri-no-ce-ron-te; é animal,
então. Sou é de acordo com o verbo eu, mas sou quer mesmo é sair da regra: quer
ser tu sou, ele sou, nós sou, vós sou, eles sou.
Autonomia
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“E só então fico tão autônoma que só pararei de escrever depois de morrer”.
Estou irritada com o que me aconteceu:
Risquei fogo em uma vela que não acendeu.
Que destino pútrido dessa vela que de nada adiantou.
Agora estou no escuro e uma novidade chegou:
preciso caminhar sozinha até eu crescer.
E quando eu crescer, irritada não estarei,
porque a vida é sozinha e a vela também.
Perguntas
“Nenhuma resposta ouço à minha pergunta”.
Respostas: de que me valem? Perdi a crença na resposta no momento em que
me frustrei com a paralisia, com a inutilidade de simplesmente responder. Agora tenho
uma caixa das perguntas que vêm de cima, de baixo e de todos os lados. As perguntas
são o meu descaminho, por onde encontro os desencontros, os desvios, os
devaneios. Encontro a própria caixa e me vejo lá. Minha vida toda nas perguntas,
numa caixa sempre aberta para o movimento.
Sonho
“No ato de escrever eu atinjo aqui e agora o sonho mais secreto, aquele que
eu não lembro dele ao acordar”.
Um sonho é um sonho, que mesmo sonhado faz sonhar. O que é sonho? Sonho
e acordo, mas acordado sonha. Assim que é: a vida é sonho, o sonho desprende a
vida e tudo passa pelo desejo de sonhar pela metade. Sonhar um pouco, sonhar
pouco. Um sonho podia ser, mas não é; um sonho seria se não fosse. E ficamos ali
no meio: entre o sonho. Um sonho não é o sonho, porque se sonha mais que um. E
pela metade se pensa o sonho porque ele nunca é inteiro. Um sonho, se sonha, mas
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não se assanha. Um sonho, faz sonhar a vida; um sonho perde a hipocondria da
realidade e se sonha. Um sonho é um sonho; e que mais?
Estranhamentos
“Estranho-me como se uma câmera de cinema estivesse filmando meus passos
e parasse de súbito, deixando-me imóvel no meio de um gesto”.
O que estranho perdeu o nome, perdeu a forma, perdeu a fome. O que estranho
não tem cor, não tem sabor, não tem amor. O que estranho não passa, não gruda,
não fica. O que estranho não é, pode ser e talvez fosse. O que estranho desnuda meu
olho, arranca minha pele, irrompe as palavras. O que estranho muda, modifica,
transforma. O que estranho nunca mais será, nunca foi e talvez é. O que estranho não
impede, não cristaliza, não imita. O que estranho é diferente, é diferença, é
diferenciado. O que estranho encontra na estranheza um outro e por isso o
estranhamento.
A surpresa
“Eu tenho que ter paciência pois os frutos serão surpreendentes”.
E o que surpreende não se espera.
A distração
“Quando estou distraído, caio na sombra e no oco e no doce e no macio nada-
de-mim. Me refresco. E creio. Creio na magia, então”.
(Continuar a soprar)
E assim corre o vento sem tempo, nem ideal. O vento se perde e se sente no
toque, na pele de leve dá um sinal. Venta e se inventa e rima. Mas o sopro, eu o sinto
apertar meu pescoço, sinto arrepiar todo o entorno. Sopro: não tem direção, mas
posso percorrer; não tem cor, mas posso pintar; não tem cheiro, mas posso perfumar;
não tem cor, mas posso imaginar. O sopro se esvai por entre meus dedos, mas ele
existe. Só sente o sopro quem é sensível, aquele que por não querer perder a vibração
que cintila, arranca a própria pele e deixa seu corpo experimentar o instante em que
o sopro traça outra vida para a carne exposta. E sopra...
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8 SOBRE O PERCURSO DA ESCRITA
“Escrever. Não posso.
Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode.
E se escreve. É o desconhecido que trazemos conosco; escrever,
é isto o que se alcança. Isto ou nada” (MARGUERITE DURAS, 1994, p. 47).
Uma palavra; uma frase; um livro. Em tudo isso estão contidos os gestos, os
olhares, a paisagem. Em tudo, está contido a escrita a escritura, o escritor e o
escrevente. E o que está contido em um TCC? Antes de tudo, um orientador; e logo
no meio aquela que escreve: “no meio do caminho tinha uma pedra”, um pé, uma
paixão. Apaixonar-se pela escrita quando ela nem mesmo se fez é uma paixão
desregrada, descabida, desinventada. Decidi me apaixonar antes e experimentar
depois. Fiz todos os caminhos inversos, peguei as rotas erradas e no final descobri
que até mesmo os erros, os enganos e as paixões que descabelam são válidas. TCC
é de arrancar os cabelos, mas o que fazer quando eles não estão mais em nossas
cabeças? Coloquei toda minha imaginação capilar numa possibilidade e montei uma
nova peruca, em uma nova cabeça, com novos cortes. Pintei, descolori, alisei,
encaracolei e com tantas transformações entendi que mudar o cabelo traz um prazer
imenso e uma vontade gigante de ser diferente. Mudei antes, durante e depois e
mesmo assim meus fios nunca estiveram tão bem hidratados.
Minha vida ganhou uma hidratação a mais quando alcançou o surpreendente:
uma escrita que ao mesmo tempo misturou aquilo que amo, aquilo que era novo e
aquilo que eu sempre quis. Pude percorrer a vida e a obra de Clarice Lispector,
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arriscar com os biografemas e experimentar outra composição para uma clínica que
diz da minha formação em Psicologia. Em menos de um ano, quantas “Éricas” e
“Cristianos” e “Clarices” e “Barthes” se desdobraram nessa escrita? Acredito que
milhares de nós fez um isso, um aquilo, um aquele outro, um nada a ver. Fez-se tudo
em nada, simplesmente pelo desejo de escrever.
Talvez tudo inicie ali mesmo: no desejo de escrever. Um desejo que não é
“apenas a força que anima o psiquismo, mas uma força essencialmente produtiva e
criativa buscadora de encontros que, além de tudo, é imanente a outras forças
animadoras do social, do histórico, do natural” (BAREMBLITT, 2002, p. 58). Desejar
escrever é desejar inventar, criar, e com tal proposição percebe-se que estamos às
voltas com um TCC atravessado pela Filosofia da Diferença, corrente que Deleuze e
Guattari criaram, a fim de aproximar a produção do desejo e o desejo da produção.
Não é necessária nenhuma sutileza para falar qual era meu desejo de
produção: Clarice Lispector; e Clarice era desafio ao mesmo tempo em que era leveza.
Desafio porque me inquieta, me desacomoda; leveza porque é poética, encanta, me
afeta. Afetos que perpassaram todo o texto, fazendo-se música. Nessa sonoridade, o
peso de um trabalho de conclusão de curso havia sido extinto e aos poucos ele e eu
fomos sendo tomados pelo texto e pelo prazer que ele nos dá. Ao afirmar esse prazer,
foi na leitura de “O prazer do texto” (2006), de Roland Barthes, que optei em
experimentar uma escrita que não se apega à seriedade acadêmica e portanto, foge
à rigidez e a uma única forma de fazer. Esse texto coloca em evidência o desejo de
escrever que o alimenta.
Assim, ao invés de tema, objetivos, justificativa; notas que foram dando um
outro tom à escrita: substitui-se a necessidade científica pela simplicidade da
escritura, devolvendo ao texto a experimentação que fomenta movimentos, nunca a
paralisia. É assim que dança o texto: uma dança sem compassos ou coreógrafos, uma
dança livre, solta, despencando por todo o texto. Dança de Valéry, Kafka, Blanchot,
Barthes, Manoel de Barros, Lygia Clark: movimento de nós.
Cada autor em cada palavra parida entrou em cena gloriosamente, pois os
passos improvisados foram surpreendendo pela consistência com que os diferentes
foram se relacionando. Italo Calvino partiria para os Estados Unidos onde escreveria
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sobre a consistência (um sexto valor literário que deveria ser preservado no próximo
milênio), no entanto, faleceu antes, deixando no seu livro “Seis propostas para o
próximo milênio” (1990) inacabado. O que pode-se supor é que a consistência para
Calvino abarcaria outros cinco valores descritos pelo autor: leveza, rapidez, exatidão,
visibilidade e multiplicidade.
Esses valores caminharam ao meu lado para sustentar a escrita, não como
obrigatoriedade, mas soltura, desacomodação, intensidade. Foi com eles que um
texto-isso se fez num plano de consistência, mesmo com todas as indefinições que
nele permeiam. Indefinido o autor, os pensamentos se dissolvem no impessoal: “O
livro é o que desperta sua curiosidade; pensando bem, você até prefere que seja
assim, deparar com algo que ainda não sabe bem o que é” (CALVINO, 1999). E com
isso (impessoal) vem toda aquela sensação de estranhamento, alojando a pulga que
faz a criança ficar inquieta na cadeira. O que diz a criança é o que diz um devir: são
os imprevistos que compõem uma vida e não seu destino.
Alice avistou o Gato de Cheshire sentado sobre os ramos de uma árvore e
perguntou a ele:
O senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar para sair daqui? Isso depende muito de para onde você quer ir, respondeu o Gato. Não me importo muito para onde..., retrucou Alice. Então não importa o caminho que você escolha, disse o Gato. ...contanto que dê em algum lugar, Alice completou. Oh, você pode ter certeza que vai chegar, disse o Gato, se você caminhar bastante” (CARROLL, 1999, p. 84).
Portanto, toda a potência do texto está em provocar o pensamento além do
escrito, fugindo de qualquer tentativa de classificação, e assim, percorrendo as
superfícies que os traços arriscam. Nunca o certo, nunca o ideal, mas sempre ideias,
provocações, sopros.
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9 EU POR ELA E ELA POR MIM
Eu por ela:
Como poderia apresentar Érica em sua metamorfose? Talvez como um
pássaro, uma borboleta, uma colcha. Retalhos de imagens que vão compondo
estradas, escritas, estados. Diz sim e ele inunda sua existência. Nega-se e sente o
calafrio de não arriscar. Os riscos, as riscas, diga-se riscado, porém marcas. Dispensa
tradutores, cinegrafistas, roteiros: encena seu estrangeirismo no palco da
improvisação. Nasce lagarta, torna-se barata. Metamorfoses (im)possíveis?
Improvável destino. Uma a uma as palavras vão caindo sobre o papel, e como numa
encenação vão se ajeitando, brincando de ser. Inventam nuvens em forma de animais
e se colorem na chuva. Dança, explosão, alimentos, grito, feto. Composições do
presente. Presentes que ganhamos, pessoas presentes, o tempo presente. O trágico
da transformação é a espera sempre inacabada de uma vida que angustia, mas que
se afirma nas entrelinhas dos encontros. Sua escrita se faz nas entre-linhas, no meio
do texto. Finalmente insere uma vírgula. Respira. Seu diafragma dilata-se, respira e
deseja.
Ela por mim:
“Há alguma coisa que me escapa o tempo todo”. Ponto. Só podia ser Clarice,
da família Lispector, só podia ser literatura, arte, criação. Nada tinha para dizer e muito
disse, nada tinha pra ensinar e compôs atrás do pensamento. O que podia ser belo
tornou-se e em seguida escapuliu fugindo pelas minhas mãos; e o que podia ser
simplesmente perdeu o sentido. Multiplicou-se, desarticulou o canto da vida e agora
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a música inflama meus ouvidos como se isso pudesse me salvar. Clarice salvou-se
pela escrita e a escrita tornou-se vida. Se eu perguntasse a ela: “Qual o seu tempo?”
Certamente responderia: “no “instante-já”. Clarice não tem tempo, Clarice não tem
ordem: Clarice só tem palavra e isso já é muito. Mas por que ela? Clarice é que me
toca e me arrasta para o caos fazendo-me experimentar a mim mesma em fluxo,
“Água viva”. Quando convidada para compor essa “impostura” fiquei pensando de que
forma poderia apresentá-la de maneira que eu fosse fiel e/ou justa com uma escritora
que tanto me afeta. Decidi buscar uma forma em Clarice e lá só encontrei disformes.
Então percebi que não havia um caminho, nem uma linearidade: Clarice é vai-e-vem,
movimento que brinca, que improvisa e se reveste nesse momento pelo meu olhar.
Ah, Clarice! Tuas molduras já não cabem na minha sala de estar e teus retratos, bom,
estes são feitos de enigma. Clarice é mistério, é esfinge no deserto, é nômade até o
último fio de cabelo. Clarice “mil e uma”: Clarices. Essa é a minha; qual é a sua?
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