educaÇÃo para valores: uma alternativa para a convivÊncia humana
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ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
FERNANDA BROLL CARVALHO AHMAD
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
PORTO ALEGRE – RS
2006
FERNANDA BROLL CARVALHO AHMAD
1
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
Trabalho apresentado como requisito para conclusão do Curso de Pós-Graduação, Especialização em Direito da Criança e do Adolescente da Escola Superior do Ministério Público.
Orientadora: Professora Cládis Bassani Junqueira
PORTO ALEGRE – RS
2006Fernanda Broll Carvalho Ahmad
2
EDUCAÇÃO PARA VALORES: UMA ALTERNATIVA PARA A CONVIVÊNCIA
HUMANA
Trabalho apresentado como requisito para conclusão do Curso de Pós-Graduação, Especialização em Direito da Criança e do Adolescente da Escola Superior do Ministério Público.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Profo Dr Jorge Trindade
Profa Cládis Bassani Junqueira
3
DEDICO este trabalho aos meus filhos GABRIEL E
LÍVIA, que, além de terem sido a inspiração desta monografia,
são a razão de meu sentir, pensar e agir. Dedico também ao
meu esposo NEMER, que, diariamente, simplifica nossa tarefa
de viver, tornando-a menos árdua e mais feliz.
4
AGRADEÇO aos queridos FAMILIARES e AMIGOS,
que contribuíram com seu afeto, incentivo e apoio, sem os quais
esta tarefa seria mais difícil.
Agradeço de modo especial, a minha querida
ORIENTADORA, professora Cládis, pelos momentos
insuperáveis de dedicação, que me proporcionaram lições para
a vida toda.
5
RESUMO
Os objetivos básicos da investigação consistem em identificar, por meio de entrevistas pessoais (com alunos, seus responsáveis, professores e Direção da escola), visitas de observação da escola e análise do regimento escolar e de fichas disciplinares individuais de alunos, a participação da família e da escola no contexto da violência escolar, enfatizando a função da educação, especialmente quanto à construção de valores. A problemática escolhida como objeto de estudo derivou da observação das dificuldades enfrentadas pela sociedade atual diante de dois desafios: a violência escolar e as funções da educação familiar e escolar da atualidade, com ênfase à atribuição de promover uma educação que favoreça a convivência humana. Ao selecionar as percepções dos alunos, responsáveis e educadores, visando a identificar as múltiplas formas de violência escolar, bem como observar as relações entre estas violências e as questões ético-valorativas, o estudo alerta sobre os riscos da banalização da violência escolar. Na segunda parte, apresentam-se os resultados da investigação, onde constatou-se que nas sociedades atuais, especialmente nas escolas, a temática da construção de valores tem sido trabalhada de maneira inadequada, tampouco se verifica política pública de valorização do tema e formação profissional nesse sentido. Observou-se que a educação escolar atual foca sua atuação no aprimoramento intelectual, negligenciando quanto ao desenvolvimento das qualidades humanas. Quanto à família, verificou-se a tendência de tentar transferir algumas de suas atribuições para a escola. E, assim, nenhuma das instituições assume a responsabilidade de contribuir para a formação do caráter das crianças e adolescentes, impedindo, assim, a efetivação do Direito à Educação Integral, na forma proposta pela Constituição Federal, pelo ECA e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Observou-se, ainda, que as crises de identidade e de autoridade da família e da escola, bem como o relacionamento tenso e confuso entre ambas e entre estas e o Sistema de Justiça representam entraves no trato da violência escolar. Verificou-se a inexistência ou a freqüente ineficácia da intervenção de profissionais de áreas estranhas à educação no cenário da escola e o desconhecimento dos integrantes da comunidade escolar pesquisados acerca do conteúdo do ECA. A importância do trabalho consistiu em chamar a atenção para a necessidade de ser fomentada, no âmbito familiar e escolar, a educação para valores universais, como a tolerância, a solidariedade, a fraternidade e a justiça, visando favorecer a convivência qualificada a fim de combater e prevenir atos de violência e indisciplina na escola. No mesmo intento, pretendeu sugerir a maior aproximação entre a comunidade escolar e os profissionais de áreas diversas à educação, especialmente os membros do Ministério Público. E, quanto a estes, antes de pretenderem divulgar a proposta de universalização de direitos do ECA, atenta para necessidade de além de introjetarem os princípios basilares do Estatuto (a proteção integral e a prioridade absoluta) em seu pensar e em seu agir, aprimorem sua formação, ampliando-a com a inclusão de conteúdos originalmente efeitos a outras áreas do conhecimento, como a educação, a psicologia (social e educacional) e a antropologia.
Palavras-chave: Família. Escola. Violência escolar. Valores. Convivência humana.
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Transgressões e punições constatadas em escolas nacionais ............................... 71
7
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BM – Brigada Militar
CF – Constituição Federal
CT – Conselho Tutelar
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
FICAI – Ficha de Comunicação de Aluno Infreqüente
MP – Ministério Público
PM – Policial Militar
PROERD – Programa Educacional de Resistência às Drogas e Violência
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11
PARTE I – QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA
2 VALORES, ÉTICA E CONVIVÊNCIA HUMANA ...................................................... 162.1 O ser humano integral: razão, emoção e valores ........................................................ 162.2 Uma Abordagem Histórico-Filosófica da Ética ........................................................... 222.3 A convivência humana possível: uma abordagem sociológica das éticas .................. 282.4 Ética e Valores na Educação .......................................................................................... 30
3 A FAMÍLIA E A EDUCAÇÃO PARA VALORES ........................................................ 383.1 O eclipse da família e a tendência de transferir suas responsabilidades ................... 383.2 A Crise de Autoridade nas Famílias e a Distorção Interpretativa do Estatuto da Criança e do Adolescente ..................................................................................................... 413.3 A questão dos valores na família faz parte do direito à educação .............................. 433.4 Criar, cuidar, educar: com quem contar? .................................................................... 453.5 A Educação Para Valores ............................................................................................... 47
4 O VALOR DE EDUCAR: REFLEXÃO ACERCA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR ..... 494.1 O que é educação: proposta reflexiva em torno da tarefa educativa ......................... 494.2 O Pensamento Sistêmico ou a Complexidade ............................................................... 514.3 Educar não é transferir conhecimento ......................................................................... 544.4 A Tensão Entre Autoridade e Liberdade e a Crise de Educação ............................... 56
5 A VIOLÊNCIA ESCOLAR .............................................................................................. 615.1 Violência nas escolas: conceitos e variáveis ................................................................. 615.1.1 Definições do Termo Violência ..................................................................................... 635.1.2 Classificação .................................................................................................................. 655.1.3 Variáveis Endógenas e Exógenas .................................................................................. 675.2 Regras na escola: transgressões e punições ................................................................. 705.3 Relacionamento Tenso e Confuso Entre Escola e Sistema de Justiça ....................... 725.4 Políticas Públicas para a Redução da Violência Escolar ............................................ 76
PARTE II – CONTRIBUIÇÃO PESSOAL
6 METODOLOGIA .............................................................................................................. 816.1 Tipo de Pesquisa ............................................................................................................. 816.2 População e Amostra ...................................................................................................... 816.3 Procedimento e Instrumento ......................................................................................... 826.4 Definições Operacionais ................................................................................................. 836.5 Coleta de Dados .............................................................................................................. 846.6 Análise de Resultados ..................................................................................................... 85
7 RESULTADOS E DISCUSSÃO ...................................................................................... 877.1 Observação da Escola ..................................................................................................... 877.1.1 Dados Gerais Sobre a Escola ......................................................................................... 87
9
7.1.2 Ambiente Escolar ........................................................................................................... 877.2 Entrevistas ....................................................................................................................... 907.2.1 O Insucesso da Família Como Instituição Socializadora .............................................. 907.2.2 A Crise de Autoridade da Família e a Distorção Interpretativa do ECA .................... 103 7.2.3 Reflexão em torno da tarefa educativa: as crises de identidade e de autoridade da escola ............................................................................................................................................... 108 7.2.4 Alunos, família e escola: encontros e desencontros .................................................... 1217.2.5 Relacionamento da Escola Com Profissionais de Áreas Diversas à Educação ........... 1317.2.6 Violência e Indisciplina Escolar .................................................................................. 1387.2.7 A Percepção da Atuação Ineficaz do Ministério Público no Cenário da Violência Escolar ............................................................................................................................................... 156 7.2.8 A Ausência de Proposta Para Valores na Escola ......................................................... 161
8 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES GERAIS ........................................................ 1658.1 Os Quatro Pilares da Educação ................................................................................... 1708.2 A Descoberta do Outro ................................................................................................. 1728.3 Tender para objetivos comuns ..................................................................................... 173
9 IMPLICAÇÕES E SUGESTÕES ................................................................................... 177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 183
ANEXOS .............................................................................................................................. 188
10
1 INTRODUÇÃO
Os objetivos básicos da investigação consistem em identificar, por meio de entrevistas
pessoais (com alunos, seus responsáveis, professores e Direção da escola), visitas de
observação da escola e análise do regimento escolar e de fichas disciplinares individuais de
alunos, a participação da família e da escola no contexto da violência escolar, enfatizando a
função da educação familiar e escolar, especialmente no que diz respeito à construção de
valores.
A problemática escolhida como objeto de estudo dessa monografia derivou da
observação das dificuldades enfrentadas pela sociedade atual diante de dois grandes desafios:
como lidar com a violência escolar e quais seriam as funções da educação familiar e escolar
da atualidade, com ênfase à atribuição de promover a educação para valores.
Ao selecionar as percepções dos alunos, responsáveis e educadores, visando a
identificar e caracterizar as múltiplas formas de violência escolar, bem como observar as
relações entre estas violências e as questões ético-valorativas, este estudo busca entrelaçar
narrativas e olhares, descrevendo o estado do conhecimento, o percebido, o expresso e o
silenciado, alertando sobre os riscos da banalização da violência escolar.
Partindo-se da constatação de que nas sociedades de hoje, especialmente nas escolas, a
temática da construção de valores tem sido trabalhada de maneira inadequada, tampouco se
verifica política pública de valorização do tema e formação profissional nesse sentido,
propõe-se a reflexão sobre o desinteresse social e científico pelo assunto, mormente em face
de sua relevância neste momento, em que é comum a constatação de que a sociedade
contemporânea vive uma “crise de valores”.
O presente trabalho, partindo de questionamentos como o por quê de nossos jovens
estarem tão infelizes, buscando auto-realização nos extremos, no perigo, no comportamento
11
indisciplinado, violento, egoísta e indiferente, considera que a análise da violência infanto-
juvenil e familiar é indissociável da verificação da formação recebida, dos valores construídos
a partir da educação.
A importância das emoções na formação dos seres humanos, resultado de pesquisas
científicas, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade de os educadores
contribuírem para a educação das emoções e sentimentos das nossas crianças e jovens.
Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral, tendo em vista que “valor” consiste em um
dos aspectos relevados ao decidir.
Observa-se, contudo, atualmente, que a educação escolar foca sua atuação no
aprimoramento intelectual, negligenciando quanto ao desenvolvimento das qualidades
humanas. Quanto à família, verifica-se a tendência de tentar transferir para a escola
atribuições que, historicamente, integram as responsabilidades daquela, como núcleo de
socialização primária. E, assim, nenhuma das instituições assume a responsabilidade de
contribuir para a formação do caráter das crianças e jovens, mediante uma educação que
priorize questões ético-valorativas, impedindo, assim, a efetivação do Direito à Educação
Integral, na forma proposta pela Constituição Federal, pelo ECA e pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação.
No primeiro capítulo, reflete-se em torno de valores, ética e convivência humana,
desenvolvendo-se o tema mediante a constatação da necessidade de o ser humano ser
considerado em sua integralidade: razão, emoção e valores, baseando-se principalmente nos
estudos do neurologista português Antônio Damásio e do biólogo chileno Humberto
Maturana. Damásio, ao considerar o espírito como parte integrante de um organismo que
possui cérebro e corpo totalmente integrados, aponta para a necessidade de o ser humano
continuar a recorrer à orientação de seu espírito, em que pese a constatação da vulnerabilidade
e da humildade deste. Assim, o ponto de partida da ciência e da filosofia deve ser
12
anticartesiano: existo e sinto, logo penso. A Maturana atribui-se a importância de, ao
desenvolver pesquisas relacionando a biologia e a educação, e buscando as respostas a
questionamentos como se devemos fazer de nosso presente o futuro de nossos filhos ou se
podemos viver a nossa identidade fora de nós, trazer a proposta educacional inovadora,
centrada na formação humana e na capacitação dos educadores, entitulada “biologia do
amor”. Segue-se com abordagem histórico-filosófica e sociológica das éticas, encerrando-se
com a análise da ética e valores na educação.
No segundo capítulo, o tema foi desenvolvido mediante a análise da família e da
educação para valores. Partindo-se da reflexão sobre as dúvidas e inseguranças
experimentadas atualmente pelo núcleo de socialização primária acerca de suas funções, o que
vem a ocasionar a tendência em transferir as suas responsabilidades, prossegue-se com o
estudo sobre a crise de autoridade da família e a distorção interpretativa do ECA e acerca das
composições familiares atuais e apoios recebidos por estas na criação dos filhos. Encerra-se o
capítulo com a análise dos modelos e conteúdos da educação familiar contemporânea, a
evidenciar uma “crise de valores”, denunciando que o caráter de superficialidade,
individualismo e de “coisificação” impresso nas relações familiares é reproduzido nas demais
relações sociais, reforçando realidades como a violência, a tortura, a violação de direitos e a
guerra.
O terceiro capítulo traz uma proposta reflexiva em torno da tarefa educativa da escola,
neste momento em que o valor da educação é questionado. A partir da constatação de que o
Direito à Educação foi um dos direitos fundamentais que recebeu tratamento privilegiado
pelas normas constitucionais e legais em nosso país, propõe reflexões envolvendo as crises
educacionais da atualidade, especialmente quanto à sua identidade (quais seriam as funções da
escola?) e autoridade (como conciliar liberdade e autoridade?). Questiona, ainda, os reflexos
da educação escolar atual nos comportamentos indisciplinados e violentos dos alunos e o que
13
pode vir a ser a educação. Em busca de respostas a esses questionamentos, fundamenta-se em
pensadores como Edgar Morin, que traz a discussão em torno da fragmentação do
conhecimento ao lançar a via do pensamento sistêmico ou da complexidade como solução; e
Paulo Freire, ao defender a amplitude da tarefa educacional, reconhecendo que educar não é
transferir conhecimento, difunde a idéia de uma pedagogia da autonomia e da tolerância,
visando a formação de seres pensantes, críticos, solidários, livres e responsáveis.
No quarto capítulo, procede-se ao estudo da violência escolar propriamente dita.
Analisando-se conceitos, classificações e variáveis desta, adota-se o conceito de violência
escolar que inclui os atos de violência e de indisciplina perpetrados no ambiente da escola.
Segue-se com o estudo acerca do funcionamento e relações sociais na escola, enfatizando-se
as transgressões e punições mais freqüentes e as repercussões da violência na vida dos
envolvidos, alertando para os riscos da banalização da violência escolar. Estuda-se, ainda, o
relacionamento tenso e confuso entre a escola e o Sistema de Justiça e busca-se aclarar
competências e atribuições, observando as distribuições de responsabilidades operadas pelo
ECA, por força do acolhimento da Doutrina da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta
(artigos 1º e 4º), especialmente a Conselheiros Tutelares, Policiais, Promotores de Justiça e
Juízes da Infância e da Juventude. Finaliza-se com sugestões de políticas públicas para a
redução da violência escolar.
Na segunda parte do trabalho, apresenta-se, no capítulo 6, a metodologia aplicada, e,
no capítulo 7, os resultados obtidos com a investigação. A partir disso, discute-se os dados
coletados visando a responder os objetivos da investigação.
O universo pesquisado aponta que as crises de identidade (quanto às funções, inclusive
na construção de valores) e de autoridade (quanto à forma de educação) das instituições
família e escola, aliado às dificuldades da família como instituição socializadora e a ausência
de proposta de educação para valores (como tolerância, solidariedade, fraternidade e justiça)
14
na escola, bem como o relacionamento desqualificado entre ambas e entre estas e o Sistema
de Justiça, representam entraves significativos no trato da problemática da violência escolar.
Observou-se, ainda, no contexto da violência escolar, a inexistência ou a freqüente
ineficácia da intervenção de profissionais de áreas estranhas à educação, além de muitas vezes
esta ser considerada uma intromissão pelos professores, principalmente em se tratando de
membros do Conselho Tutelar ou do Ministério Público. Por fim, constatou-se o
desconhecimento dos integrantes da comunidade escolar pesquisados (alunos, responsáveis e
educadores) acerca do conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente e a necessidade de
ser aprimorada a formação dos profissionais do Direito, ampliando-a com a inclusão de
conteúdos originalmente afeitos a outras áreas, como a educação, a psicologia (social e
educacional) e a antropologia.
Finaliza-se, após as considerações gerais e conclusões (capítulo 7), com capítulo
destinado a implicações e sugestões.
15
2 VALORES, ÉTICA E CONVIVÊNCIA HUMANA
Vivemos um momento em que as contradições mostram-se
particularmente visíveis: ao mesmo tempo em que as fronteiras e barreiras
são transpostas no domínio da virtualidade, no contexto da vida cotidiana,
vive-se certamente um tempo de delimitação de territórios e intolerância em
relação ao ‘outro (IRENE RIZZINI).
2.1 O ser humano integral: razão, emoção e valores
Os valores estão na base das ações e norteiam sentimentos e emoções.
Na polêmica obra intitulada “O Erro de Descartes”, o neurologista português
Antônio Damásio1, ao contestar a secular afirmação do filósofo Descartes – “Penso, logo
existo” – propõe que os sentimentos e as emoções são uma percepção direta de nossos estados
corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a consciência. Utilizando-se de
recentes descobertas da neurobiologia, oferecendo uma visão integrada do ser humano,
evidencia que a razão tem como companheira inseparável a emoção. Em suma, uma pessoa
incapaz de sentir pode até ter o conhecimento racional de alguma coisa, mas será incapaz de
decidir com base nessa racionalidade.
Como Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, sua
afirmação celebra a separação da “mente pensante” do corpo (organismo biológico) “não
pensante”. É exatamente aqui que reside o erro do filósofo: a separação abissal entre o corpo e
a mente, entre a substância corporal, divisível, com volume e funcionamento mecânico, de um
lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, de outro; a sugestão de que o raciocínio,
o juízo moral e o sofrimento advindo da dor física ou agitação emocional poderiam existir
independentemente do corpo.
Assim, o ponto de partida da ciência e da filosofia deve ser anticartesiano: existo (e
1 DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes: razão, emoção e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
16
sinto), logo penso. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos,
visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.
Ao reconhecer-se a relevância das emoções no processo de raciocínio, não se está
relegando a razão para segundo plano. Pelo contrário, ao verificarmos a função alargada das
emoções, é possível realçar seus efeitos positivos e reduzir seu potencial negativo, protegendo
a razão, durante o processo de planejamento e decisão.
As investigações científicas de Damásio (1) em torno das relações entre razão e
sentimento, emoções e comportamento social, demonstram que implicações socioculturais
advirão ao se admitir que a razão não é pura, impactando, por exemplo, na ética, no direito, na
arte, na ciência e na tecnologia.
A concepção de organismo humano integral, composto de corpo e mente, esboçada na
obra referida, e a relação entre emoção e razão, sugerem que o fortalecimento da
racionalidade requer maior atenção à vulnerabilidade do mundo interior.
Afirma Damásio (1), (1996, p. 278):
Em um nível prático, a função atribuída às emoções na criação da racionalidade tem implicações em algumas das questões com que nossa sociedade se defronta atualmente, entre elas a educação e a violência. Não é este o local para uma abordagem adequada dessas questões, mas devo dizer que os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre as emoções atuais e os cenários de resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à violência na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual desvirtua o valor das emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O fato de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só reforça sua ação dessencibilizadora.
A contribuição de Damásio (1) apresenta valor inestimável ao concebermos a
Educação como o Direito de o ser humano realizar as potencialidades que traz consigo ao
nascer, e que precisam ser desenvolvidas ao longo de sua existência, rumo a formação do
homem integralmente apto a existir, sentir, raciocinar e ser feliz.
A importância comprovada, resultado de pesquisas científicas, das emoções na
17
formação dos seres humanos, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade dos
educadores (pais e professores, sobretudo) de colaborar na promoção da educação das
emoções e dos sentimentos das crianças. Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral,
tendo em vista que “valor” é um dos fatores que são relevados quando tomamos uma decisão.
Os valores humanos existem desde os primórdios da humanidade e são metas de todas
as religiões, códigos de ética e filosofias.
Consoante o dicionário Aurélio2, valor consiste na “qualidade que faz estimável
alguém ou algo, valia”; “importância de determinada coisa”; “legitimidade, validade”.
Portanto, podemos afirmar que constituem o conjunto de qualidades que nos
distinguem como seres humanos independentemente de credo, raça, condição social ou
religião, estando presentes em todas as filosofias ou crenças religiosas. São inerentes à
condição humana e dignificam e ampliam a capacidade de percepção do ser consciente, que
tem no pensamento e nos sentimentos sua manifestação palpável e aferível. São qualidades
que os homens consideram importantes, como a verdade, retidão, paz, amor e não violência,
que unificam e libertam as pessoas do individualismo, enaltecendo a condição humana e
dissolvendo preconceitos e diferenças.
O conceito referido é o comumente encontrado nas obras que tratam do assunto, como
por exemplo: Marilu Martinelli3 e Maria Fernanda Nogueira Mesquita4. Ambas propõem a
aplicação do novo método de ensino, o Programa de Educação em Valores Humanos –
EDUCARE, do educador indiano Sathya Sai Baba.
Vivencia-se hoje uma época de conflitos, de proporções mundiais. Nossa sociedade
atravessa um período de turbulência, diante da corrupção, dos jogos de poder, da violência, do
desprezo pelo ser humano e pelo meio ambiente. E, muitos desses problemas são reflexos de 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.3 MARTINELLI, Marilu. Conversando sobre Educação em Valores Humanos. São Paulo: Petrópolis, 1999, p. 17.4 MESQUITA, Maria Fernanda Nogueira. Valores Humanos na Educação: Uma nova prática na sala de aula. São Paulo: Gente, 2003, p. 21.
18
comportamentos sociais que não observaram a importância dos valores e, ao não cultivá-los,
propiciaram a formação de adultos sem referenciais de cidadania e de respeito ao próximo.
Atribuímos, então, à Polícia, ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e a outros órgãos
estatais, a função de responsabilizar- se pelo destino das pessoas em conflito com a lei, a fim
de que sejam afastadas do convívio social e (re)educadas. Ledo engano.
Considera-se que a solução dos problemas mencionados passa, necessariamente, por
uma revolução na forma de educar nossas crianças.
Atualmente, as crianças e adolescentes estudam visando à realização profissional e
preocupam-se, cada vez mais, em serem os melhores. Mas não estudam amor ao próximo,
solidariedade, respeito à diversidade, cooperação, lealdade e ética, tampouco aprendem
princípios e valores sólidos que os conduzam à felicidade.
Assistimos diariamente nos meios de comunicação histórias de pais que espancam
filhos, filhos que matam pais, jovens que matam mendigos. O homem vai à Lua e à Marte,
mas não consegue controlar seu mundo interior. Do ponto de vista intelectual, redige e realiza
operações matemáticas com brilhantismo, mas está engatinhando do ponto de vista das
emoções. Daniell Golleman, citado por Pires5, lembra que o Quociente Emocional Deficiente
impede o desenvolvimento pleno do ser, mesmo que o intelectual seja altíssimo.
A partir do momento em que a humanidade centrou-se excessivamente no
desenvolvimento científico e tecnológico, fator que inegavelmente refletiu em melhoras nas
condições materiais de vida, esqueceu-se do homem. Visando o conforto exterior, relegou ao
segundo plano o interior, esquecendo-se de que é formado por corpo, mente e espírito.
A educação fragmentada a que nos submetemos propiciou uma desestruturação do ser
humano que, muitas vezes, reflete-se na violência, presente em todas as camadas sociais,
evidenciando a nossa crise de valores.
A violência espreita-nos nas escolas, nas ruas, no trânsito, nos locais de lazer e no lar.
5 PIRES, Heloisa. Educar para ser feliz. São Paulo: Camille Flamarion, 2002.
19
Em todos os segmentos sociais, raciais ou religiosos constatamos casos de
intolerância, indiferença e absoluta transgressão de princípios éticos e morais, evidenciando
que nossos jovens estão desnorteados, sem parâmetros claros de certo e errado, sem limites e
responsabilidades, sem projeto de vida.
Pelo descaso com a educação estamos pagando um preço. É mais simples culparmos o
estresse da vida quotidiana, a influência negativa dos meios de comunicação de massa, o
excesso de informação, as más companhias, as drogas, a desigualdade social. Realmente,
esses aspectos contribuem para o quadro atual. Contudo, consoante Mesquita (4), a essência
da questão é mais profunda: por que nossos jovens estão infelizes e buscam auto-realização
nos extremos, no perigo, no comportamento desregrado, egoísta e indiferente? É difícil para
eles evitar isso e, como adultos, não estamos contribuindo adequadamente na formação de seu
caráter.
A análise da violência infantil, juvenil e familiar é indissociável da verificação da
formação recebida, dos valores recebidos na educação.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e dos diplomas legais
complementares, o Direito à Educação foi o direito social que recebeu a regulamentação mais
explícita, contundente, completa e clara, por parte do legislador constituinte e ordinário.
Consoante Konzen6, (2000, p. 660):
Afirmado como o primeiro e o mais importante de todos os direitos sociais, fez-se compreender a Educação como valor de cidadania e de dignidade da pessoa humana, itens essenciais ao Estado Democrático de Direito e condição para a realização dos ideais da República de construir uma sociedade livre, justa e solidária, nacionalmente desenvolvida, com a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais e livres de quaisquer forma de discriminação (artigo 3 º da Constituição Federal), imaginário de Nação inscrito na Carta Magna Brasileira.
6 KONZEN, Afonso Armando. O Direito à Educação Escolar. Pela Justiça na Educação. Coordenação geral Afonso Armando Konzen. Brasília: MEC, FUNDESCOLA, 2000.
20
O artigo 1º da Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação), preceitua que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa,
nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
O presente trabalho pretende limitar-se à abordagem dos temas da educação familiar e
escolar, utilizando como ferramenta indispensável os avanços legais introduzidos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente nessa questão, especialmente ao reconhecer o público
infanto-juvenil como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento e, por essa
razão, contemplado pelos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta. Focando
como destinatários da lei a família, a comunidade, a sociedade e o poder público.
João Batista da Costa Saraiva7, (2002, p. 13), ao comentar a mudança paradigmática
que inspirou o Estatuto da Criança e do Adolescente, aduz:
O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, de 13-07-90) representa um marco divisório extraordinário no trato da gestão da infância e da juventude no Brasil. Na esteira do texto constitucional artigo 227 da CF/88), que se antecipou à Convenção das Nações Unidas, introduzindo no Brasil a Doutrina da Proteção Integral, em detrimento dos vestutos primados da arcaica Doutrina da Situação Irregular, que presidia o antigo sistema. Operou-se uma mudança de referências e paradigmas na ação da Política Nacional, com reflexos diretos em todas as áreas, especialmente no trato da questão infracional.Houve, a partir de então, com a introdução no sistema dos conceitos jurídicos de criança e adolescente, em prejuízo da antiga terminologia “menor”. Esta servia para conceituar aqueles em “situação irregular”. Pelo novo ideário norteador do sistema, todos aqueles com menos de 18 anos, independentemente de sua condição social, econômica ou familiar, são crianças (até os 12 anos incompletos) ou adolescentes (até os 18 anos incompletos) segundo o art. 2 º da Lei n.º 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, qualificando-se como sujeito de direitos.
Hoje, ao refletir-se sobre a educação, observa-se que a educação escolar foca sua
atuação no aprimoramento intelectual sem preocupar-se com o desenvolvimento das
qualidades humanas. Assim, é chegado o momento de a família ocupar seu espaço na
7 SARAIVA, João Batista. Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional – Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002.
21
educação integral de suas crianças, aliando-se aos professores na proposta educativa de
contribuir para a formação do caráter. Pois somente dessa forma, estar-se-á assegurando à
infância e à juventude brasileira o direito à educação na amplitude proposta pela legislação.
Nesse intento, imperiosa a responsabilização dos pais e professores, unidos na tarefa
de educar, na transmissão de valores às crianças, pelo exemplo, e com afetividade, amando-
as, respeitando-as e disciplinando-as. Segundo Pires (5), (2002, p. 25) “é preciso educarmos
nossas crianças na compreensão da importância de unirmos nossos esforços na construção de
um mundo melhor, no qual as diferenças sejam resultados da capacidade e nunca da falta de
oportunidades”.
O indivíduo não amado, ou mal amado, ou educado sem amor, ou através de um amor
egoísta, deseducador, que estimula o egoísmo, contribui para a formação da sociedade que
criamos, na qual a violência, a indiferença, a intolerância e o individualismo impedem o
homem de ser feliz.
Para enfrentarmos a atual crise de valores devemos nos empenhar na construção de um
novo paradigma no qual a nossa felicidade é proporcional à felicidade que asseguramos aos
outros, sendo que a solidariedade gera laços de confiança entre as pessoas, contribuindo para
uma cultura ética e de não violência.
2.2 Uma Abordagem Histórico-Filosófica da Ética
Segundo Walls8, (1994, p. 177)) “a ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que
são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta”.
Tradicionalmente, é entendida como estudo ou reflexão, científica ou filosófica, e
inclusive teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. Também chamamos de
8 WALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 9.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Coleção Primeiros Passos.
22
ética a própria vida, quando conforme aos costumes que consideramos corretos. A ética pode
ser o estudo das ações ou dos costumes, e a própria realização de um tipo de comportamento.
Apenas didaticamente, pois na vida real essa separação não ocorre, costuma-se separar
os problemas teóricos da ética em dois campos: os problemas gerais e fundamentais (como
liberdade, consciência, bem, valor e lei); e os problemas específicos, de aplicação concreta,
como os de ética profissional, política, sexual, matrimonial, bioética, etc.
Uma questão absolutamente fundamental consiste em observarmos se a ética consiste
em listagem de convenções sociais provisórias, uma vez que os costumes são mutáveis, e o
que era considerado errado, hoje pode ser aceito.
Se assim fosse, um comportamento correto eticamente não seria nada mais do que um
comportamento adequado aos costumes vigentes. Assim, determinada ação seria errada
apenas enquanto ela não fosse o tipo de um novo comportamento vigente.
Cumpre ressaltar que a ética não retrata apenas os costumes, apresenta também
algumas grandes teorias, representando uma reflexão teórica, com validade mais ampla,
universal. Em alguns casos, para descobrir a ética vigente em uma sociedade mister analisar
documentos não escritos ou mesmo não filosóficos: pinturas, esculturas, tragédias e comédias,
formulações jurídicas (como as do Direito Romano), e políticas (como as leis de Atenas ou
Esparta), livros de medicina, relatórios históricos de expedições guerreiras e até os livros
penitenciais dos bispos medievais.
Ressalta-se, ainda, que não só os costumes variam, mas também os valores que os
acompanham, as normas concretas, os ideais, a própria sabedoria de um povo a outro e de um
tempo a outro.
Partindo-se da afirmação de que os valores éticos podem transformar-se, assim como a
sociedade se transforma, questiona-se: não haveria, então, uma forma ética absoluta?
Consoante Walls (8), uma boa teoria ética deveria atender à pretensão de
23
universalidade, ainda que simultaneamente capaz de explicar as variações de comportamento,
características das diferentes formações culturais e históricas.
Nessa seara, dois pensadores obrigatoriamente devem ser citados: o grego antigo
Sócrates (470 – 399 a.C.) e o alemão Kant (1724 – 1804).
Questionamos por que Sócrates, o filósofo que aparece nos “Diálogos” de Platão,
usando o método da maiêutica (interrogar o interlocutor até que este chegue por si mesmo à
verdade, sendo o filósofo uma espécie de “porteiro das idéias”), foi condenado a beber
veneno? A acusação que pesava sobre o filósofo era a de que este seduzia a juventude, não
honrava os deuses da cidade e desprezava as leis da “polis” (cidade-estado). Salienta-se que
Sócrates obedecia às leis, mas as questionava, procurando fundamentar racionalmente a sua
validade, ousando perguntar se essas leis eram justas.
Embora concluísse positivamente, o conservadorismo grego não podia suportar este
tipo de questionamento, pois as leis existiam para serem obedecidas, não para serem
justificadas.
Sócrates, em que pese não tivesse a aprovação dos gregos em seus questionamentos,
foi chamado, muitos séculos depois de “o fundador da moral” (e moral é sinônimo de ética,
acentuando apenas o aspecto de interiorização de normas), pois sua ética não se limitava aos
costumes do povo e dos ancestrais, assim como nas leis exteriores, mas sim na convicção
pessoal, adquirida por intermédio de reflexão interior, na busca de compreender a justiça das
leis.
Esse movimento de interiorização da reflexão e de valorização da subjetividade ou
da personalidade, que começa com Sócrates, culmina com Kant, no final do século XVIII.
Ensina Walls (8), que Kant buscava uma ética de validade universal, que se
fundamentasse na igualdade fundamental entre os homens. Sua filosofia, conhecida como
transcendental, volta-se primeiramente, ao homem, buscando encontrar no homem as
24
condições de possibilidade de conhecimento verdadeiro e do agir livre.
Como questão central da ética aparece o dever ou obrigação moral. E o dever obriga
moralmente a consciência moral livre, e a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre
conforme o dever e por respeito ao dever.
Partindo do pressuposto, típico do movimento iluminista, da igualdade entre os
homens, Kant pretende chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional, a única
possível para todo e qualquer ser racional. A forma do dever expressa-se no chamado
imperativo categórico (não baseado em hipóteses ou condições), a seguir: “devo proceder
sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei
universal”.
No grande rio do pensamento ético, movimentam-se pensadores do porte de Platão e
Aristóteles, Santo Agostinho e Santo Tomas de Aquino, Maquiavel e Spinoza, Hegel e
Kiergoard, Marx e Sartre e, no meio deles, todos nós, que diariamente enfrentamos problemas
teóricos e práticos, éticos ou morais e que precisamos resolvê-los.
Uma conclusão é imperiosa: não podemos ignorar as questões éticas, em que pese
tratar-se de assunto espinhos e tormentoso, sob pena de abdicarmos de nosso anseio de
liberdade.
Se concluirmos que agir moralmente significa agir de acordo com a própria
consciência, ainda assim permanecemos com dúvidas acerca de qual seria o ideal da vida
ética.
Historicamente, as respostas variam. Para os gregos, o ideal ético estava ou na busca
teórica e prática da idéia do Bem, da qual as realidades mundanas participariam de alguma
maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma vida bem ordenada, virtuosa,
onde as capacidades superiores do homem tivessem a preferência, e as demais capacidades
não fossem desprezadas, na medida em que o homem necessitava de muitas coisas
25
(Aristóteles).
Com o Cristianismo, os ideais éticos identificaram-se com os religiosos. O homem
viveria para conhecer, amar e servir a Deus, diretamente e em seus irmãos. O ideal socrático
do “conhece-te a ti mesmo” emerge com Santo Agostinho, que ensina que “Deus nos é mais
íntimo que o nosso próprio íntimo”. O ideal ético é o de uma vida espiritual, de acordo com o
espírito, vida de amor e fraternidade. Contudo nem sempre os cristãos estiveram à altura da
afirmação de seu mestre: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos
outros”.
Com o Renascimento e o Iluminismo (séc. XV e XVIII), a burguesia acentuou outros
aspectos éticos: o ideal seria viver conforme a própria liberdade pessoal, e em termos sociais,
o lema: liberdade, igualdade e fraternidade. O pensador da burguesia e do Iluminismo, Kant,
identificou o ideal ético com o da autonomia individual (o padrão de moralidade). O homem
racional, autônomo, autodeterminado, é o que age segundo a razão e a liberdade.
No século XX, os pensadores da existência insistiram sobre a liberdade como um ideal
ético, privilegiando o aspecto pessoal ou personalista da ética: autenticidade, opção,
resoluteza, cuidado.
Quanto ao pensamento social e dialético, buscou-se como ideal ético o ideal de uma
vida social mais justa, com a superação das injustiças econômicas, em busca da construção de
um mundo mais humano.
A reflexão ético-social do século XX trouxe ainda a observação sobre a massificação,
sendo que grande parte, hoje, talvez não mais se comporte eticamente, pois vive amoralmente.
Os meios de comunicação de massa, as ideologias, os aparatos econômicos e do Estado, e a
própria educação não permitem a existência de sujeitos livres, de cidadãos conscientes e
participantes, de consciências capazes de discernir e julgar.
Não há como falar em ética sem falar em liberdade e responsabilidade. A priori, a
26
ética remete às normas e à responsabilidade. E só há sentido falar destas últimas
considerando-se que o homem é livre ou pode sê-lo.
A norma nos diz como devemos agir. E, assim, temos opção de obedecer ou não. A
ética transita entre dois extremos, que consistem em formas de negação da liberdade: o
determinismo absoluto e o liberalismo absoluto.
Atualmente, a ética preocupa-se com as indagações do ser humano para resolver as
contradições entre necessidade e possibilidade, tempo e eternidade, individual e social, o
econômico e o moral, o corporal e o psíquico, o natural e o cultural.
Atualmente, os grandes problemas éticos encontram-se em três instituições históricas e
sociais: a família, a sociedade civil e o Estado, onde a liberdade realiza-se eticamente.
Em relação à família, colocam-se de maneira muito aguda as questões das exigências
éticas do amor. As questões como o amor livre, a fidelidade, relacionamentos homossexuais,
educação dos filhos. As transformações histórico-sociais exigem reformulações nas doutrinas
tradicionais éticas sobre o relacionamento entre pais e filhos. Novos problemas advieram com
a presença maior da escola e dos meios de comunicação na vida diária dos filhos. Os novos
papéis materno e paterno exigem hoje nova reflexão sobre os direitos e os deveres dos pais e
dos filhos.
Em relação à sociedade civil os problemas atuais continuam urgentes, referindo-se
especialmente ao trabalho: desemprego, trabalho escravo, baixos salários, falta de auto-
realização, falta de qualificação profissional, analfabetismo.
No que se refere ao Estado, os problemas éticos são muito ricos e complexos. As leis,
a Constituição, as declarações de direitos, a definição dos poderes, a divisão destes poderes
para evitar abusos, e a própria prática das eleições periódicas aparecem hoje como questões
éticas fundamentais. A liberdade do indivíduo só completa-se como liberdade do cidadão
de um Estado livre e de direito e que respeita a liberdade do outro, reconhecendo-a
27
como legítima e atribuindo-lhe valor idêntico ao da sua.
2.3 A convivência humana possível: uma abordagem sociológica das éticas
Demo9, na obra “Éticas multiculturais: sobre convivência humana possível”, faz uma
abordagem sociológica das éticas. Ao afirmar que vida, natureza, evolução e história são
mistérios, uma vez que a ciência limita-se a explicar fragmentos da realidade, considera que o
ser humano precisa de transcendência, já que visivelmente não se basta: é incompleto,
imperfeito, morre, desespera-se (2005, p. 15)
Não se refere à transcendência eterna, absoluta e completa, pois esta se situa no
terreno das religiões, mas vislumbra, no campo sociológico, uma transcendência imanente,
citando pensadores como Kant (em face da proposta ética ou de justiça de não fazer ao
próximo o que não gostaríamos que ele fizesse conosco, procura estabelecer um princípio de
validade universal que transcende a cada indivíduo), e Hobbes, que menciona ser comum no
contexto social a indicação de dimensões que transcendem o indivíduo, seja para evitar que os
indivíduos entregues ao egoísmo, matem-se, seja para privilegiar a ordem comum sobre
comportamentos desviados, seja para consagrar princípios de solidariedade que ultrapassam
os limites individuais.
Diferentemente das religiões, a sociologia não prega alguma ética específica, mas pode
estudá-las e ainda evidenciar as vantagens de sociedades que sabem assumir padrões
éticos de convivência. Mas, ao sugerir que sociedades éticas são preferíveis a sociedades não
ou pouco éticas, não pode filiar-se a uma delas, pois não seria ético.
Contudo, no mínimo, a sociologia pode afirmar que a sociedade humana mais
tolerável seria aquela em que a pluralidade dos conviventes pudesse conviver em relativa
9 DEMO, Pedro. Éticas multiculturais: sobre convivência humana possível. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
28
harmonia e conflito, de maneira que o bem comum pudesse sempre prevalecer, ao final. Esse
seria o ideal de democracia.
É inegável que a ética comparece como referência crucial no cenário da convivência
humana, pois a vida de um ser humano tem impacto inevitável na vida do outro, de forma
que nunca podemos alegar que o outro não nos diz respeito. Sociologicamente, o outro nos
constitui.
Um dos esteios da ética é a responsabilidade. Ao falarmos em autonomia,
costumamos perder de vista que o excesso de autonomia de um compromete a autonomia do
outro, daí a impossibilidade de autonomias absolutas. Ainda, mister termos em mente que o
exercício da liberdade penetra o exercício da liberdade do outro e, vice-versa, de maneira que
será sempre necessário negociar um tipo aceitável de convivência para ambas as partes.
Autonomia supõe, assim, as habilidades de impor-se, bem como de ceder. Como meu
comportamento impacta o comportamento do outro, sou responsável por isso. Não posso
alegar que nada tenho a ver.
E essa concepção, que traz ínsita em sua proposta os ideais de respeito, solidariedade e
tolerância, para ser implementada em uma sociedade, depende da forma como os integrantes
desta são educados. A educação tem um efeito reprodutivo (Demo, 2004), na medida em que
a mesma expectativa comportamental de uma geração é imposta à nova geração. Mas não se
trata de transmissão rígida, na medida em que sempre há alguma renovação geracional.
Hoje, a distância geracional é cada vez maior. A nova geração apresenta grandes
diferenças sobre, por exemplo, como ganhar a vida ou preparar-se para ela. Assim, as normas,
valores e sanções valem relativamente, que não se confunde com relativismo.
O relativismo é impraticável, pois não seria coerente afirmar que tudo é relativo e
também porque, em sociedade, não há verdades absolutas tampouco se aceita o vale-tudo.
Neste último caso, esse tipo de liberdade ignora a liberdade do outro e impede o exercício do
29
senso de responsabilidade.
Nesse sentido, indispensável que se tenha em mente que a dimensão da liberdade é
diretamente proporcional à responsabilidade.
Oportuno mencionar um outro princípio importante: a solidariedade, que será
desenvolvido neste trabalho, partindo-se da afirmação segundo a qual o importante nas éticas
é a organização da convivência em favor do bem comum do grupo, reforçando
comportamentos construtivos para o grupo.
Seres humanos precisam de orientação. E consiste em dever legal da família e da
escola a educação que trabalhe com as crianças a noção de fraternidade universal, capaz de
congregar a diversidade social e histórica infinita. O gesto de percebermos o outro como
concorrente deve ser substituído, sob a orientação de éticas multiculturais, pelas noções de
bem comum e de sociedades igualitárias, formadas por homens que sabem sentir e pensar, na
busca da convivência possível.
2.4 Ética e Valores na Educação
Conforme Maturana10, a ética e a espiritualidade relacionam-se com a emoção. A ética
tem a ver com a preocupação pelas conseqüências das próprias ações sobre o outro. Assim,
para ter preocupações éticas, devo ter a capacidade de ver o outro como um legítimo outro em
convivência comigo e o amor seria a emoção que embasa a preocupação ética.
Em nossa cultura usamos a razão para negar ou obscurecer nossas emoções e avaliar
nossas condutas. Segundo Maturana (10), o mesmo ocorre com a ética e a experiência
espiritual onde criamos cegueiras frente ao outro e ao nosso âmbito de pertença social e
cósmica com argumentos racionais.
10MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis. Formação Humana e Capacitação. Traduzido por: Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
30
É chegado o momento de questionar: em que mundo queremos viver? É preciso
termos a consciência de que a resposta a essa indagação é fundamental, pois nossos desejos
guiarão nosso agir subordinando nossa razão a eles, e determinarão que âmbito de vida
criaremos para nossas crianças, oportunizando a elas as possibilidades de conservar um viver
humano num ato responsável e livre a partir delas.
O que se observa nas sociedades atuais, especialmente nas escolas, é que a temática da
construção de valores não têm sido muito explorada, sendo trabalhada pelas escolas do país,
indiretamente e de forma desorganizada. Tampouco se constata política pública de
valorização do tema e formação profissional adequada.
Partindo-se dessa observação, questiona-se sobre as razões para o desinteresse social e
científico pelo tema, especialmente em face de sua relevância atual, em que é comum a
constatação de que a sociedade contemporânea vive uma “crise de valores”. As respostas a
essas questões não são simples, mas é chegado o momento de a sociedade brasileira despertar
para essa problemática, promovendo investimentos em políticas públicas, pesquisas,
publicações e na formação e capacitação de profissionais da área da educação para
desenvolver esse trabalho.
A expectativa é que esse quadro seja alterado mediante uma proposta de conteúdos
que referenciem e orientem a estrutura curricular das escolas brasileiras, apresentando a
inserção transversal, aos conteúdos curriculares tradicionais, de conteúdos como Ética, Meio
Ambiente, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo. Esses
conteúdos podem não ser concebidos como novas disciplinas, mas devem ser trabalhados nas
escolas de todo o país de maneira integrada, interdisciplinar e transversal.
De acordo com essa proposta, os conteúdos relacionados à ética e alguns valores
universais (como os presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem) passam a ser
reconhecidos pelo Estado como essenciais para a formação dos futuros cidadãos, devendo ser
31
trabalhados nas escolas.
Esse será um dos maiores desafios dos educadores, que terão de atender aos anseios de
uma sociedade plural e democrática. Mas como realizar toda essa articulação sem incorrer nos
erros do passado de disciplinas como Educação Moral e Cívica e Estudos de Problemas
Brasileiros, buscando promover uma educação em valores que não se baseie em mera
transmissão dos valores da classe dominante?
É indispensável voltar-se para a formação docente nas áreas da psicologia e da
educação, objetivando a instrumentalização dos profissionais da educação que já foram
tocados pela necessidade e premência de criação de programas para uma educação em
valores, ou ainda, para os educadores que buscam a formação integrada de seus alunos, em
que os valores vinculados à construção da democracia, cidadania e de relações interpessoais
mais justas e solidária coexistiam de maneira articulada com as disciplinas curriculares
tradicionais.
Uma das características mais importantes do trabalho do professor Puig11, (professor
da Universidade de Barcelona, e um dos autores espanhóis mais conhecidos na área de
investigações sobre a moralidade humana) é sua intenção de construir um programa de
educação moral que procura integrar diversas concepções teóricas e experiências em um
quadro amplo, rico e próximo à realidade.
Posiciona-se contra tanto às concepções de moralidade fundamentadas em valores
absolutos, quanto contra o relativismo dos valores. Rompe com o discurso sobre a existência
de uma moral universal indiscutível válida para todas as culturas e tempos, da qual devem
derivar os valores a serem transmitidos, e com a moralidade relativa a cada contexto cultural e
momento histórico, que dependem da preferência de cada sujeito.
11 PUIG, Josep Maria. Ética e valores: métodos para um ensino transversal. Tradução Ana Venite Fuzatto; revisão técnica Ulisses Ferreira de Araújo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
32
Enquanto a primeira concepção supõe uma relação autoritária em que os valores da
sociedade já se encontram predeterminados, a segunda torna-se muito subjetiva e
individualista.
A concepção do autor tenta integrar as duas anteriores, reconhecendo que uma
educação moral deve respeitar a autonomia dos sujeitos, partindo do diálogo que considera os
interesses pessoais e coletivos, os valores de cada cultura e os universais. Por isso pensa que
“a educação deve converter-se em um âmbito de reflexão pessoal e coletiva que permita
elaborar racional e autonomamente princípios gerais de valor, princípios que ajudem a
defrontar-se criticamente com a realidade” (PUIG, 1998, p. 15).
Visando a atingir o objetivo de formação de pessoas autônomas e dialogadoras, que
utilizam sua razão criticamente nas relações interpessoais e no respeito aos direitos alheios,
elenca as finalidades desse modelo de educação moral e apresenta sugestões de atividades e
recursos metodológicos aos educadores.
Os objetivos gerais propostos são a formação de consciências morais autônomas; a
percepção e o controle dos sentimentos e emoções e a competência.
A formação de pessoas autônomas e dialogadoras dispostas a comprometer-se na
relação pessoal e na participação social com o uso crítico da razão, supõe formar um perfil
moral caracterizado pelas seguintes finalidades:
a) desenvolver a consciência moral autônoma enquanto capacidade para regular e dirigir
por si mesmo a própria vida;
b) propiciar a produção de razões e argumentos morais justos e solidários e usa-los
correta e habitualmente nas controvérsias que implicam conflito de valores;
c) desenvolver as capacidades de compreensão crítica da realidade pessoal e social;
d) adquirir a sensibilidade necessária para perceber os próprios sentimentos e emoções,
para aceita-los e usa-los;
33
e) fomentar as competências dialógicas que predispõem ao acordo, ao entendimento e à
autodireção, assim como à tolerância e à participação democrática;
f) reconhecer e assimilar aqueles valores morais que podemos entender como
universalmente desejáveis, como, por exemplo, justiça, liberdade, igualdade,
solidariedade, benevolência, tolerância, respeito, participação, compromisso e
cooperação, em se tratando de perspectiva macroética ou pública. A partir de uma
perspectiva privada: renúncia, reconhecimento, verdade, abertura para com os
demais, empatia, consideração, amor, coerência, responsabilidade. E como valores
comuns, a ambos os espaços éticos, destaca-se a autonomia e a crítica;
g) conhecer toda a informação relevante moralmente que possa tornar-se formativa;
h) participar de diálogos democráticos que permitam mediar as próprias posições
valorativas com as dos demais indivíduos e grupos, a fim de construir espaços
emancipatórios e definir espaços de participação social, assumindo compromissos de
ação concretos;
i) valorizar o pertencer às comunidades habituais de convivência, integrar-se
participativamente nelas e refletir criticamente sobre suas formas de vida e tradições
valorativas.
Como elementos para um currículo de educação moral são elencadas: atividades
específicas, transversais (inseridas nas disciplinas curriculares existentes) e sistemáticas
(observar seqüência e freqüência) de educação moral; participação democrática na vida da
escola (coerência entre juízo e ação moral dentro e fora da escola) e educação moral e
participação social (facilitar aos alunos a possibilidade de implicar-se pessoalmente em algum
tipo de participação social que suponha comprometimento e responsabilização por auxiliar
alguém ou instituição que busque fins sociais ou humanitários).
34
Salienta-se a importância de a educação moral contribuir para desenvolver a
capacidade para criar empatia ou conectar-se com o ponto de vista alheio, implicando
progressiva descentração do sujeito. Descentração que somente é possível na medida em que
vivenciam abundantes experiências de interação social. Estas experiências produzem uma
progressiva diminuição do egocentrismo, o qual permite avançar na aquisição de consciência
mais aguda das perspectivas alheias.
Em que pese a interessante proposta do professor Puig (11), entende-se que só será
implementada com êxito se os educadores conscientizarem-se de que não se transmitem
valores sem vivenciá-los e exemplifica-los na convivência diária e sem considerar os
enfoques sócio-afetivos.
As experiências e exercícios sócio-afetivos têm como primeiro objetivo o
desenvolvimento da sensibilidade para reconhecer situações moralmente relevantes e para
sentir-se pessoalmente afetado por elas. Sua pretensão, portanto, é trabalhar sobre os
sentimentos e emoções dos alunos, complementando com atitude de reflexão e com a adoção
de atitudes e de compromissos pessoais coincidentes com os sentimentos experimentados e as
opiniões formuladas.
Ver a realidade de perto é o melhor modo de entendê-la e de sentir-se tocado por ela.
Contudo, apesar da importância desse modo de proceder, muitas vezes, em face à
impossibilidade de experimentar diretamente certas situações, mister usar procedimentos de
sensibilização moral baseado na simulação. Os enfoques sócio-afetivos são uma modalidade
de trabalho dessa natureza, tentando oferecer, mesmo que artificialmente, oportunidade de
vivenciar experiências moralmente significativas.
Segundo Puig (11), (1998, p. 118), os enfoques sócio-afetivos partem da crítica às
metodologias de transmissão de conhecimentos. Seus principais cultivadores constatam que,
freqüentemente, alunos que passaram por cursos meramente informativos sobre situações de
35
injustiça ou miséria, acabaram limitando-se a olhar com alívio para a sua própria situação.
Constantemente alegravam-se em ser diferentes e sentiam-se, não raras vezes, superiores,
culpando as vítimas pelos contratempos que sofriam. Foi evidenciado que a informação nem
sempre supõe uma mudança de atitude nem um desenvolvimento da sensibilidade empática.
Era necessário provocar um tipo de experiência pessoal mais completa do que a
proporcionada pela recepção de informação descritiva sobre situações moralmente relevantes.
Assim, quando o cognitivo e o afetivo ficam vinculados pela atividade do sujeito,
duplica-se sua eficácia e persistem na memória suas conquistas. A mera sensação emocional
tende a diluir-se quando não está acompanhada de processo de reflexão e de valoração moral.
Ainda, a mera informação tende a induzir a idéias cristalizadas, que caem no esquecimento
quando os sentimentos não oferecem motivação pelas idéias.
Em razão disso, as experiências emotivas, que dispensam as vivências, assim como as
idéias e os valores que a reflexão constrói, devem ser entendidas como dois momentos
inseparáveis de um mesmo processo de formação moral.
A importância comprovada das emoções na formação dos seres humanos, resultado de
pesquisas científicas, alerta para um aspecto essencial: a responsabilidade dos educadores
colaborarem na promoção da educação das emoções e dos sentimentos das crianças.
Integrando, ainda, à educação, o aspecto moral, tendo em vista que “valor” é um dos fatores
que são relevados ao decidir.
A contribuição de Damásio (1) apresenta valor inestimável ao concebermos a
Educação como o Direito de o ser humano realizar as potencialidades que traz consigo ao
nascer, e que precisam ser desenvolvidas ao longo de sua existência, rumo a formação do
homem integralmente apto a existir, sentir, raciocinar e ser feliz.
36
3 A FAMÍLIA E A EDUCAÇÃO PARA VALORES
Muitas pessoas passam pela nossa vida. Poucas, no entanto, são
capazes de se fazer realmente presentes em nossa existência. Menos ainda
são aquelas cuja presença, pela influência construtiva que exerceram sobre
nós, assumiram uma significação que o tempo não foi capaz de apagar. Essas
37
são as pessoas significativas de nossas vidas (ANTÔNIO CARLOS GOMES
DA COSTA).
3.1 O eclipse da família e a tendência de transferir suas responsabilidades
Parte-se da constatação de que as crianças, antes de entrarem em contato com seus
professores, já experimentaram a influência educacional de seu meio social, que continuará
sendo determinante durante a infância.
Na família, a criança aprende, ou deveria aprender, atitudes fundamentais, que
compõem a “socialização primária”. Após, a escola, os grupos de amigos, o lugar de trabalho
e outros irão realizar a socialização secundária, que será mais frutífera se a primária tiver se
realizado de modo satisfatório, pois terá uma base sólida.
Assim, o principal agente da efetividade do Direito à Educação é a família. Se a escola
deve atuar como associada, essa associação não deve ensejar o afastamento da noção de que
os pais ou responsáveis são os agentes principais pela educação dos filhos.
O dever de educar está previsto na legislação brasileira desde 1916, no antigo Código
Civil. Na legislação civil atual, está previsto no artigo 1.634, inciso I, como obrigação dos
pais quanto à pessoa dos filhos, inerente ao exercício do poder familiar, “dirigir-lhes a
educação e a criação”. E, ainda, como dever recíproco dos cônjuges, no artigo 1.566, inciso
IV, a educação dos filhos. A Constituição Federal elevou a obrigação de educar os filhos à
condição de preceito constitucional (artigo 229). E o Estatuto da Criança e do Adolescente
arrolou o descumprimento injustificado desse dever como causa explícita para a perda do
poder familiar (artigos 22 e 24).
Contudo, não obstante o pesado aparato legal prevendo a obrigação da família em
relação à educação das crianças, os educadores tem percebido que estas chegam a escola com
um núcleo básico de socialização insuficiente para enfrentar com êxito a tarefa de
38
aprendizado. Queixam-se que, em razão dessa falha na família, a escola, além de não
conseguir realizar sua tarefa específica como no passado, também começa a ser objeto de
novas demandas, para as quais não está preparada.
Um dos outros motivos, apontado pelos estudiosos, do eclipse da família como fator
de socialização primária, decorre da transformação do “status” das próprias crianças; com o
“desaparecimento da infância”.
Renomados autores sobre a infância evocam a tendência atual de os adultos
apressarem o crescimento das crianças, atribuindo-lhes responsabilidades que muitas vezes
não estão preparadas para assumir, sem perceberem que este amadurecimento forçado não é
acompanhado pelo desenvolvimento emocional.
Os modelos de comportamento e de interpretação do mundo que se ofereciam à
criança não podiam ser escolhidos voluntariamente nem rejeitados, porque careciam de
alternativa. Com a maturidade, quando a informação revelava as alternativas possíveis aos
dogmas familiares, dando lugar às angustias da escolha, a pessoa estava suficientemente
formada.
Segundo Savater12 (1998) a televisão acabou com esse desvendamento progressivo das
realidades ferozes e intensas da vida humana. As “verdades” sobre doenças, morte,
procriação, sexo, violência, guerra, ambição, que antes eram escondidas dos olhares infantis,
hoje, são expostas pela televisão, que ocupa espaço cada vez maior na educação, sem
observância de trâmites pedagógicos.
Assim, a tarefa atual da educação familiar e escolar é complicada. Espera-se do
educador (familiar e professor) que auxilie as crianças e jovens a organizar as informações
que recebem dos meios de comunicação, fornecendo-lhes ferramentas cognitivas para torná-
las proveitosas e não nocivas.
12 SAVATER, Fernando. O valor de educar. Tradução: Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
39
Entretanto, essa nova situação da educação também alarga as possibilidades para a
formação moral e social dos futuros cidadãos, favorecendo a superação de preconceitos e de
modelos impostos pelo núcleo familiar.
Juan Carlos Tedesco, citado por Savater (12), (1998, p. 90), afirma acreditar ser
preciso,
... mostrar as potencialidades libertadoras oferecidas por uma socialização mais flexível e aberta. Se a responsabilidade pela formação ética, pelos valores e comportamentos básicos passa a depender agora, muito mais do que no passado, de instituições e agentes secundários, também se abrem maiores possibilidades de promover concepções tolerantes e diferentes.
Outra causa para essa renúncia da família a suas funções educacionais, apontada por
Savater (12) é o fanatismo pelo juvenil nos modelos contemporâneos de comportamento. O
jovem, a moda jovem, a despreocupação juvenil, o corpo ágil e bonito, eternamente jovem à
custa de qualquer sacrifício, dietas e correções, a “espontaneidade artificial”, a capacidade
incansável para o festivo... são os ideais de nossa época, a ponto de ser considerado ofensivo
“ser velho”.
Mas, para que o núcleo de socialização primária atue de forma eficaz na educação, é
imprescindível que alguém nela assuma o papel de adulto e assuma responsabilidades,
evitando transferi-las para as instituições públicas da comunidade.
Observa-se com freqüência situações em que os pais, reconhecendo sua impotência
quanto ao estabelecimento de regras e limites, exigem que o Estado adote medidas de
vigilância para limitar seus filhos. E o surpreendente é a naturalidade e a facilidade com que
os progenitores assumem uma posição de incapacidade de cuidar e de educar seus rebentos,
transferindo a obrigação para os órgãos estatais.
Trata-se de uma crise de autoridade nas famílias. E o que supõe essa crise?
40
3.2 A Crise de Autoridade nas Famílias e a Distorção Interpretativa do Estatuto da
Criança e do Adolescente
Observa-se uma antipatia e uma desconfiança não tanto contra o próprio conceito de
autoridade (cada vez mais as instituições são criticadas por faltar-lhes autoridade e reclama-se
“linha dura”), mas contra a possibilidade de se ocupar pessoalmente dela no âmbito familiar
pelo qual se é responsável.
Se os pais não auxiliam os filhos a crescer, com sua autoridade amorosa, as
instituições públicas ver-se-ão obrigadas a impor o princípio da realidade quase sempre, não
com afeto, mas à força. Assim não se conseguem crianças que serão cidadãos adultos livres.
Existe um consenso no pensamento pedagógico de que é negativa a educação baseada
no medo autoritariamente inculcado. Hoje, estamos convencidos do avanço que constitui
aliviar de intimidações abusivas os primeiros anos do ensino. No entanto, também é preciso
compreender que o desaparecimento de toda a forma de autoridade na família não predispõe à
liberdade responsável, mas a uma forma de frágil insegurança.
A atenuação ou abolição da figura paterna tradicional traz algumas dificuldades de
identificação positiva para os jovens, que vários estudiosos relacionam diretamente à
delinqüência juvenil e a perda destrutiva de modelos de auto-estima.
Consoante a pedagoga e terapeuta de Casal e Família, Tânia M. Vanoni Polanczyk13:
A desqualificação como homem e como pai é uma experiência humilhante, que afeta as relações interpessoais e desestabiliza as relações familiares. Os jovens passam a perceberem-se em falta, esvaziados. Eles não possuem um pai suficiente, ema família organizada, uma escola que os aceite, um futuro promissor. Sentem-se como pessoas de segunda categoria e agem de acordo com a sua condição.
13 POLANCZYK, Tânia M. Vanoni. Não à Violência. Infância em Família: um compromisso de todos: anais. Organizadoras: Maria Regina Fay de Azambuja e outros. Porto Alegre: Instituto Brasileiro de Direito de Família, 2004, págs. 222/223.
41
Outro fator atual que reforça a desresponsabilização familiar consiste na interpretação
distorcida e equivocada da legislação brasileira, protetiva da infância e da juventude.
Integra o senso comum, traduzido no discurso da sociedade brasileira, que o referido
estatuto é sinônimo de desautorização familiar, de “quebra das relações de autoridade com a
família e a escola”, de “porta aberta à impunidade”, afinal “os ‘menores’ não podem ser
responsabilizados por seus atos”!
Insta difundirmos que a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente é a de
universalização dos direitos fundamentais, alcançando a todas as crianças e adolescentes
brasileiros. Como precisamente traduzido por uma senhora de origem muito simples, catadora
de papel da cidade de Curitiba, durante a participação do Procurador de Justiça do Estado do
Paraná, Olympio de Sá Sotto Maior Neto14, em um Seminário organizado pelo Movimento de
Defesa dos Favelados do Estado do Paraná para conhecimento e discussão do ECA: “Doutor,
agora eu acho que entendi este tal de Estatuto da Criança e do Adolescente, ele diz que é para
a gente querer para os filhos dos outros o mesmo bem que a gente quer para os nossos filhos”
Ou seja, nessa perspectiva de justiça e solidariedade, pela qual é impossível criticar-se
o ECA, a lei propõe que todas as crianças e adolescentes possam exercitar os direitos que
parte dessa população já exercita.
Aliado a isso, ressalta-se que, além de serem contempladas com direitos, as crianças e
adolescentes são alcançadas por obrigações previstas no ordenamento jurídico, estando
sujeitos a responder e serem responsabilizados, em variadas instâncias, especialmente A
Justiça da Infância e da Juventude e o Conselho Tutelar, pelos atos anti-sociais que praticam,
notadamente quando atingem a categoria de atos infracionais (condutas descritas na lei penal
como crime ou contravenção).
É indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos em torno do
14 NETO, Olympio de Sá Maior. Ato Infracional, Medidas Sócio-Educativas e o papel do Sistema de Justiça na Disciplina Escolar. RevistaPela Justiça na Educação. Coordenação geral Afonso Armando Konzen. Brasília: MEC. FUNDESCOLA, 2000. p. 513.
42
amanhã, mas conscientes de que futuro é de seus filhos e não seu. Pois é decidindo com
liberdade que se aprende a decidir. E assumindo as conseqüências de suas decisões, os filhos
estarão tornando-se pessoas responsáveis.
Quanto ao filho, é preciso que assuma, de forma ética e responsável, sua decisão,
fundante de sua autonomia. Pois ninguém é autônomo primeiro, para decidir depois.
3.3 A questão dos valores na família faz parte do direito à educação
Indissociável ao abordarmos a discussão sobre valores na família a análise de aspectos
inerentes à dinâmica familiar como as suas composições e as bases de apoio familiares.
Para Ângela Mendes de Almeida15, o estudo da família oferece o desafio de fazer um
recorte que possibilite a apreensão adequada do objeto de estudo no campo das pesquisas
sobre a família e a criação e educação dos filhos. A complexidade do conceito de família, as
diferentes pesquisas que abordam esse grupo social, desde a estrutura organizacional
patriarcal, nuclear, até os arranjos mais recentes, decorrentes, sobretudo da necessidade de
sobrevivência das famílias das camadas populares e os padrões de comportamento
determinados pelas mudanças culturais das últimas décadas, recomendam pensar a família na
perspectiva das relações de poder e da história dos valores éticos, dos padrões morais
dominantes e de suas formas desviantes, uma vez que a história da criação e educação dos
filhos vincula-se diretamente a esses aspectos da cultura familiar.
O contexto familiar complexo, para ser compreendido na sua singularidade, necessita
ser estudado quanto as suas formas ou composições estruturais, a fim de compreendermos as
relações entre seus membros.
15 ALMEIDA, Ângela Mendes de. Pesando a família no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
43
Vannúzia Leal Andrade Peres16 (2000, p. 11), no artigo “Desenhos de Família” afirma
que o movimento histórico de transformação da família vem alterando não somente em sua
estrutura, mas também o padrão de seu ciclo de vida, levando a apresentar uma independência
de modelos e, em razão disso, uma singularidade. Isso significa, segundo ARIÈS17, que não
podemos mais falar de família como um padrão único a ser seguido ou como um sistema
universalizado, mas sim de famílias, entendendo que cada qual te sua estrutura e estilo de
funcionamento.
Assim, não se pode ignorar as novas composições de famílias: as monoparentais; as
reconstituídas; as decorrentes de uniões estáveis, onde, não raras vezes coabitam filhos de
uniões anteriores; as homossexuais e ainda as famílias em que os responsáveis são os avós.
Consoante Luiza Pereira Monteiro e Norma A. Cardoso18, a família é uma instituição
de mediação entre indivíduo e sociedade. Produtora e reprodutora de ideologias influencia a
sociedade e é por ela influenciada, nos diferentes momentos históricos. Assim, os modelos de
relações sociais estabelecidos fora do espaço doméstico apresentam, como pressupostos, os
padrões morais, éticos e comportamentais familiares.
Daí a importância de estruturas e modelos familiares que reforcem positivamente seus
integrantes, promovendo efetivamente a formação do homem integral.
3.4 Criar, cuidar, educar: com quem contar?
As definições dos termos criar, cuidar e educar são importantes para o estudo, pois
evidenciam o esforço para chegar a uma caracterização de família baseada nos vínculos e
relações entre as pessoas.
16 PERES, Vannúzia Leal Andrade. Desenhos de Família. Desenhos de família: criando os filhos: a família goianense e os elos parentais. Sônia M. Gomes e Irene Rizzini. (Coord.). Goiânia: Cânone Editorial, 2000. 17 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.18 MONTEIRO, Luiza Pereira; CARDOSO, Norma A. Família e Criação de Filhos. Desenhos de família: criando os filhos: a família goianense e os elos parentais. Sônia M. Gomes e Irene Rizzini. (Coord.). Goiânia: Cânone Editorial, 2000.
44
Áries (17) registra, na composição da família moderna, que a infância é um dos
elementos de organização desta e que esse novo modelo trouxe um novo conjunto de atitudes
em relação à criança. Nessa nova forma de organização, a família retira a criança do convívio
social para o espaço familiar, tomando para si a tarefa de cuidá-la e educá-la.
Nesse clima de privacidade, a família isola-se no papel de educar os filhos. A
sociedade em geral também atribui-lhe essa responsabilidade desde que ela crie e eduque seus
filhos conforme os princípios vigentes nessa mesma sociedade
Para as famílias que se afastam desse modelo organizacional e falham na tarefa
educacional de seus filhos, resta a intervenção estatal. E, historicamente, a escola constitui-se
como a outra instituição que divide com a família a responsabilidade de educar as crianças.
O termo “criar” é amplo, incluindo os conceitos “educar” e “cuidar”. Exige, portanto,
empreendimento visando atender ao seu desenvolvimento integral. Assim, a família é um dos
espaços privilegiados do processo de socialização dos sujeitos, uma vez que tende a ser o
primeiro espaço responsável pela tarefa socializadora.
Já o termo “cuidar” expressa mais uma atenção voltada para a criança: o zelo dedicado
a ela, a assistência ao seu desenvolvimento, o atendimento às suas necessidades básicas, bem
como a relação afetiva, o acesso à educação.
“Educar” significa desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais do ser
humano. Significa ainda disciplina, instrução, ensino.
Cabe à família, tenha ela a estrutura e organização que tiver, a função criadora,
cuidadora e educativa, e, na sua intimidade, via de regra, está tentando exercer essa tarefa.
Para isso, buscam como bases de apoio cônjuges ou companheiros, avós, igrejas, escola,
meios de comunicação, profissionais da área da saúde, vizinhos, Conselho Tutelar e
Ministério Público.
Observa-se, contudo que o Estado pouco privilegiou as famílias nas suas políticas
45
sociais, privilegiando apenas o indivíduo como portador de direitos. Em seu modelo de
atendimento, o Estado fragmentou a família num somatório de necessidades, identificando-a
como carente de bens e serviços.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a família “ressurge como unidade
econômica e direito da criança” 19 (CARVALHO, 1995, p. 12) e, assim, entra na agenda das
políticas públicas para ser atendida em suas carências, a fim de garantir os direitos dos
indivíduos”.
O artigo 4 º do Estatuto da Criança e do Adolescente afirma a responsabilidade
primeira da família na função de educar a criança e garantir seus direitos, considerando-a um
ser em desenvolvimento e sujeito de direitos. O artigo 19 reforça esse pensamento.
Contudo, atribui também à sociedade e ao poder público a garantia desses direitos, por
intermédio de políticas sociais e atividades voltadas para o apoio da família na tarefa de
criação/educação dos filhos. Objetivo, na prática, ainda não atingido, em face a quase
inexistência de serviços multiprofissionais de atenção à família e em razão da ineficiência,
descontinuidade, setorização e fragmentação dos serviços oferecidos.
Assim, o mesmo Estado que contribuiu para a construção do discurso de família
desestruturada, incompetente, carente, pouco ofereceu em suas ações, serviços, auxílio e
orientação a este núcleo de socialização primária. E, ainda, tentou retirar-se do cenário das
políticas sociais, repassando essa iniciativa para as organizações não-governamentais, que não
dispõe de recursos humanos e financeiros para assegurar a continuidade e a qualidade das
atividades, e/ou para a iniciativa privada, que não tem compromisso com o grupo que atende
(18), (2001, p.16).
3.5 A Educação Para Valores
19 CARVALHO, Maria do Carmo Brandt de (Org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 1995.
46
Consoante mencionado, o efeito direto do esvaziamento da família como autoridade na
criação/educação dos filhos é a estigmatização da instituição familiar, que assumiu a posição
de “incompetente” nessa tarefa. E essa desqualificação da família, que a instala
simultaneamente na condição de vítima e de responsável por sua condição, fragiliza seus
laços afetivos e sua coerência interna, contribuindo para que influências externas, nem sempre
positivas, obtenham “êxito” na socialização da criança.
Dos estudos da família brasileira, observa-se que se encontra num momento histórico
de mudanças significativas no que diz respeito aos valores éticos e morais, aos padrões de
comportamento e a educação dos filhos.
Sendo a família o sujeito principal das estratégias de reprodução dos comportamentos
sociais, verificamos que ela encontra-se em vias de constituir uma nova configuração,
determinada pelo modelo de relações sociais no mercado consumidor. Nesse campo das
relações sociais, destaca-se o aspecto “descartável” ou de superficialidade das relações sociais
e o caráter de “redução do sujeito à condição de coisa”. Essas características das relações,
lamentavelmente, transparecem no campo afetivo e familiar.
Contrariamente as formas educativas tradicionais que entendem a educação moral
como uma imposição de valores e normas, entende-se que aquela deve proporcionar a
reflexão individual e coletiva permitindo a elaboração racional e autônoma de princípios de
valor, que auxiliem a defrontação crítica com realidades como a violência, a violação de
direitos, a tortura ou a guerra.
A educação moral deve promover a análise crítica da realidade e das normas sócio-
morais vigentes, contribuindo para a idealização de formas mais justas e adequadas de
convivência. Deve pretender, ainda, aproximar os educandos de condutas e hábitos mais
coerentes com os princípios e normas que vão construindo. E finalmente formar hábitos de
47
convivência que reforcem valores como a justiça, a solidariedade, a cooperação ou o cuidado
com os demais.
Busca-se, com a educação moral, conseguir que os jovens desenvolvam os tipos de
comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram e
adquiriram também as normas que a sociedade, de modo democrático e justo, oferece-lhe.
Essa educação busca o equilíbrio pessoal e coletivo.
Com base nessas reflexões, espera-se que as famílias recebam a base de apoio
necessária para que possam evoluir a um modelo de educação marcado pela autonomia e
independência de filhos responsáveis por si e pelo outro. Tendo sempre clara a lição de
Maturana (10), segundo a qual não se ensina valores, cooperação e respeito se não vivenciá-
los.
48
4 O VALOR DE EDUCAR: REFLEXÃO ACERCA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Reformar o pensamento para reformar o ensino e reformar o ensino
para reformar o pensamento (EDGAR MORIN).
4.1 O que é educação: proposta reflexiva em torno da tarefa educativa
Em 1990, no Brasil, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em
contraposição a concepção do direito do menor (que mascarava profundas violações aos
Direitos Humanos mais elementares), nasceu historicamente o paradigma da Proteção
Integral, cuja idéia central está em considerar crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos em suas relações com a família, a sociedade e o Estado.
Complementa-se com a noção de que são seres humanos em fase de desenvolvimento
físico, psíquico e emocional, e essa peculiar condição merece respeito. E, nesse sentido,
mister a compreensão de que os seus direitos fundamentais são especiais em relação aos
direitos dos adultos. São prioritários e prevalentes, consoante Marta de Toledo Machado20.
Da aceitação dessas premissas, emerge que os direitos elencados nos artigos 227 e 228
da Constituição Federal são direitos fundamentais do ser humano e direitos fundamentais de
um ser humano especial.
Dentre os direitos fundamentais está a educação, intimamente ligada ao
desenvolvimento da personalidade infanto–juvenil. O direito à educação, além de receber
respaldo constitucional (artigos 7 º, inciso XXV; 22, inciso XXIV; 24, inciso IX; 205 e 208),
é previsto pela legislação infraconstitucional, sobretudo pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (artigos 53 a 59), que busca orientar o direito à educação ao pleno
desenvolvimento do destinatário e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a qual, segundo
2020 MACHADO, Marta de Toledo. A Proteção Constitucional de Crianças e Adolescentes e os Direitos Humanos. São Paulo: Manole, 2003, p. 32.
49
Munir Cury21, não pretendeu tornar-se diploma único da educação no Brasil, esgotando a
disciplina jurídica do assunto, mas estruturou-se apenas na definição do que se entende por
diretrizes e bases da educação.
Marcos Cezar de Freitas22 atenta-nos para as análises acerca da infância
proporcionadas pelos organismos governamentais e supragovernamentais, como a UNICEF,
cujos dados oferecidos têm sido alarmantes sobre a situação geral da criança no planeta e
atestado a grande dificuldade operacional que acompanha as instituições diretamente
relacionadas ao bem-estar infantil, como a escola e a saúde.
Assim, observa-se que em vários países fala-se em crise da educação, e, em meio as
inúmeras questões que envolvem a temática em nosso país, parece oportuno analisarmos
alguns pontos essenciais: o que é educação? O que ela pode vir a ser? O que esperamos: que
continue sendo mera transmissão de conhecimento ou que promova a educação integral do
homem? Quais os reflexos da educação escolar atual nos comportamentos indisciplinados e
violentos dos alunos? Como prevenir a violência escolar?
Nesse intento, é pertinente a análise dos seguintes aspectos: a compartimentalização
dos saberes, a tensão entre disciplina e liberdade, o papel da família, os limites da
neutralidade na escola, a formação moral e sua relação com a violência.
O biólogo Maturana (10), ao lançar sua proposta reflexiva e de ação em torno da tarefa
educativa, centra suas indagações na formação humana e na capacitação. Defende que o
futuro deve surgir dos homens e mulheres que viverão no futuro, que deveriam ser íntegros,
autônomos e responsáveis pelo seu viver e pelo que fazem, porque o fazem a partir de si.
Homens e mulheres sensíveis, amorosos, conscientes de seu ser social e de que o mundo em
que vivem surge com seu viver. Mas só serão assim se não crescerem alienados, mas no
respeito por si e pelo outro, capazes de aprender qualquer atividade, porque sua identidade
21 CURY, Munir. Pela Justiça na Educação. Coordenação Geral: Afonso Armando Konzen. Brasília: MEC/FUNDESCOLA, 2000, p. 680.22 FREITAS, Marcos Cezar de (org). História Social da Infância no Brasil. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
50
não está na atividade, mas em seu ser humano.
Maturana (10) parece estar propondo uma atividade educativa utópica. E, para os
nossos padrões educacionais da escola atual, de fato o é. Mas sonhamos em um dia tornar-se
realidade. Afinal, a proposta – denominada biologia do amor – é simples, e a maioria dos
seres humanos sabe como implementá-la.
Na educação escolar, a biologia do amor consiste em que o professor aceite a
legitimidade de seus alunos como seres válidos no presente, corrigindo apenas o seu fazer e
não o seu ser. O respeito pelo outro ou a conduta amorosa para com ele só ocorre se for visto
e aceito. E, para que isso seja possível, o professor deve ter capacitação suficientemente
ampla para tratar a temática que ensina, comensurável ao momento presente de seus alunos, e
faze-lo com o prazer que essa liberdade criativa traz consigo.
4.2 O Pensamento Sistêmico ou a Complexidade
Alfredo Pena, Cleide R. S. Almeida e Izabel Petroglia23 selecionaram textos de Morin,
no arquivo do Centro de Estudos Transdisciplinares, Sociologia, Antropologia e História,
entre dezembro de 2000 e julho de 2001, por ocasião de uma pesquisa com a participação os
três organizadores na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, elaborando o
livro citado.
Ao proceder à breve análise de dois textos selecionados, necessário levantar as questão
da fragmentação do conhecimento e suas conseqüências à formação humana.
No texto “Religar a Ciência e os Cidadãos”, Morin constata que “temos um
pensamento que separa muito bem, mas que reúne muito mal”. Significa que a desunião, a
dispersão e a desagregação atuam com mais presença do que qualquer relação que estabelece
23 MORIN, Edgar. Ética, cultura e educação. Alfredo Pena. Veja, Cleide R. S. Almeida, Izabel Petroglia (orgs). 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
51
vínculos. Relação necessária para a vida em sociedade, que precisa de ações de junção, união,
agregação e religação, possíveis se praticarmos a ética da solidariedade.
Em “Notas a um Emílio Contemporâneo”, ao refletir sobre educação e cidadania,
Morin (23) sintetiza algumas preocupações com relação a hiperespecialização na educação.
Atribui a este fenômeno a fragmentação do conhecimento, que nos levou a apreender os
problemas isoladamente, sem perceber as relações existentes com um contexto maior,
excluindo-nos da relação global-local. Aponta a necessidade de uma reforma do pensamento
que propicie nova atitude: a alteridade epistemológica, que implica em abertura e diálogo com
vários campos do conhecimento.
O problema passa a ser o de uma educação capaz de fornecer a concepção do global e
do essencial, bem como o de uma formação ética voltada para a responsabilidade.
Morin (23) aponta o pensamento sistêmico como um dos elementos da reforma
necessária do pensamento. Este não se confunde com a análise sistêmica que privilegia o todo
em detrimento das partes, contrariamente à tradição cartesiana (que impregna nosso ensino)
segunda a qual somente se chega ao conhecimento do todo pelo das partes. O axioma
proposto por Morin é simultaneamente sistêmico e analítico, que se expressa na seguinte
fórmula de Pascal: “Considero impossível conhecer o todo sem conhecer especialmente as
partes”. Isso implica num caminho do pensamento em “vai e vêm”.
Assim, o todo é mais do que a soma das partes. Isso é pensamento do sistêmico ou
complexidade.
Esses princípios conduzem o pensamento para além de um conhecimento fragmentado
que, por tornar invisíveis as interações entre um todo e suas partes, anula o complexo e oculta
os problemas essenciais; conduz, igualmente, para além de um conhecimento que, por ver
apenas globalidades, perde o contato com o particular, o singular e o concreto.
Eles permitiriam remediar a funesta desunião entre o pensamento científico – que
52
desassocia os conhecimentos e não reflete sobre o destino humano – e o pensamento
humanista – que ignora as conquistas das ciências, enquanto alimenta suas interrogações
sobre o mundo e sobre a vida.
Preleciona Morin 24,
Daí a necessidade de uma reforma de pensamento referente a nossa aptidão para organizar o conhecimento, que permita a ligação entre as duas culturas divorciadas. A partir daí, ressurgiriam as grandes finalidades do ensino, que deveriam ser inseparáveis: promover uma cabeça bem feita, em lugar de bem cheia; ensinar a condição humana, começar a viver; ensinar a enfrentar a incerteza, a prender a se tornar cidadão.
Morin propõe a inscrição desses princípios básicos já na escola primária, pois a
criança está apta a compreender essa complexidade do real, ao passo que o adulto,
freqüentemente, formado pelo ensino acadêmico, não consegue mais. Nós, adultos, é que
produzimos modos de separação e ensinamos a construir entidades separadas.
Tomando-se por base o roteiro da hominização, será colocado o problema do “homo
sapiens”, da cultura, da linguagem, do pensamento, o que permitirá a manifestação da
psicologia e da sociologia. As lições de conexões são necessárias para a compreensão de que
o homem é simultaneamente 100% biológico e 100% cultural, que o cérebro estudado em
biologia e a mente estudada em psicologia são as duas faces de uma mesma realidade.
É preciso aprender a aprender. Ao mesmo tempo, separando e juntando, analisando e
sintetizando, considerando as coisas e causas.
Morin (23) atribui ao pensamento sistêmico a responsabilidade de criar a mudança do
estado de espírito. Por enquanto, as instituições ainda resistem a essa reforma do pensamento,
extensa e difícil.
Veja-se, por exemplo, a universidade dos séculos XVI e XVII, que condenou as
24 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21.
53
grandes descobertas científicas. Nos séculos XIX e XX, aquela se mostrou receptiva à ciência;
mais tarde, aderiu exclusivamente ao modelo científico especializado. Ela corre o risco, ainda
hoje, de condenar o novo, mas a esperança ainda reside no fato de que ela continue a evoluir
influenciada por mentes formadas, desde a infância, no sistemismo e com a condição de que
eles próprios não façam disso um novo dogmatismo.
Questionado Morin (23) sobre onde encontrar esperança, respondeu (2003, p. 56):
No novo começo que se opera, na vitalidade que borbulha nas entranhas da nossa sociedade, nas forças de regeneração política e social que estão em estado latente (...). Atualmente, a batalha é conduzida no território da mente, nada mais é do que uma superestrutura do cérebro, que nada mais é do que uma estrutura do genoma: a prova disso é que a mente humana pode tomar o controle do genoma, e amanhã poderá manipulá-lo. O espírito humano tem poderes que podem ser aterrados, se lhe faltar consciência e responsabilidade. Mas se ele tiver essa consciência, poderá transpor determinismos que parecem intransponíveis, tornou-se vital que nossas mentes se elevem à nova consciência política e planetária e possam tomar o controle de um futuro cego. O destino da humanidade será jogado, portanto, no terreno da consciência e da inteligência humana.
Pensa-se que, aliando a proposta de pensamento sistêmico de Morin à biologia do
amor de Maturana, esta com seu propósito de desenvolver seres humanos responsáveis e
livres, que respeitam a si e reconhecem o outro como legítimo na convivência, estaremos
trilhando o caminho da educação que desejamos.
4.3 Educar não é transferir conhecimento
No último século, a aceleração das mudanças sociais, que esteve na base da
universalização da escola e da “época dourada” do magistério, converte-se no detonador
daquela e na desorganização deste.
Consoante Mariano Fernández Enguita25 (2004, p.19):
25 ENGUITA, Mariano Fernández. Educar em Tempos Incertos. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2004.
54
Isso ocorre quando, ao tornar-se mais rápida, generalizada e intensa, a mudança não apenas impõe que cada geração se incorpore a um mundo distinto daquele da anterior, mas que ela própria passe por vários mundos distintos. As transformações na organização do mercado de trabalho e da organização empresarial, nas formas de comunicação e de acesso à informação, na estrutura e na vida urbanas, nas configurações e nas relações familiares, nas expectativas e nos modos de exercício da cidadania supõem alterações profundas, que obrigam a maioria da população a se adaptar as novas condições de vida, de trabalho e de sociedade.
Da perspectiva discente, isso significa reestruturação do ciclo de vida no que diz
respeito à aprendizagem. As mudanças constantes nas tecnologias e nas normas de
organização requerem novas etapas de aprendizagem, alternadas ou simultâneas com o
trabalho, ao longo de toda a vida útil ou entremeando-a em qualquer momento. E a formação
inicial acaba perdendo peso em contraste com a formação e o desenvolvimento das
capacidades gerais para poder aproveitar, posteriormente, as possibilidades desta. É sua
responsabilidade, portanto, assegurar a cada aluno a oportunidade de aprender a aprender.
Paulo Freire26 afirma que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua produção ou a sua construção. O educador referido procede a um
chamamento para que os educadores eduquem seus alunos com ética crítica, competência
científica e amorosidade, para que estes sejam seres mais.
Assegura, ainda, que é avaliando, rompendo, optando e decidindo, com liberdade, que
se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética torna-se inevitável e
sua transgressão possível constitui-se em um desvalor.
Partindo-se da concepção de que educar não é transferir conhecimento, espera-se dos
educadores da atualidade que reúnam capacidades até pouco tempo desconsideradas na
formação destes profissionais.
26 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Coleção Leitura.
55
Freire (26) elenca várias capacidades necessárias à prática educativa de qualidade.
Dentre elas, refere que o educador democrático deve reforçar a capacidade crítica do
educando, sua curiosidade e insubmissão; deve investir em sua formação permanente,
assumindo-se como pesquisador; deve respeitar os saberes dos educandos; agir com ética e
corporificar as palavras pelo exemplo; aceitar o novo; arriscar e rejeitar qualquer forma de
discriminação.
Acresce-se a essas capacidades, atitudes outras: educar exige respeito à autonomia do
educando e saber escutar; exige bom senso, humildade, tolerância e luta pela defesa dos
direitos dos educadores. Exige alegria, esperança, segurança, competência profissional,
generosidade, comprometimento. Exige a compreensão de que a educação é forma de
intervenção no mundo e por isso o educador não é neutro; é liberdade e autoridade; é tomada
consciente de decisões, e, sobretudo exige a convicção de que a mudança é possível.
E um dos saberes indispensáveis à prática educativo-crítica é a forma de lidar com a
relação autoridade-liberdade, sempre tensa, e que reflete na disciplina ou indisciplina.
4.4 A Tensão Entre Autoridade e Liberdade e a Crise da Educação
A liberdade não significa ausência de condicionamentos, mas a conquista gradativa e
constante de autonomia e responsabilidade. Nesses termos, nem mesmo Rousseau pensava de
modo diverso.
Não há muito tempo, a criança, o adolescente e o adulto eram tratados exatamente da
mesma maneira, sem considerar as diferenças decorrentes dos estágios de desenvolvimento
individuais. Criança sempre existiu, mas o conceito de “infância” pode-se dizer recente. A
categoria criança era compreendida como um adulto em miniatura, que vestia-se e
comportava-se como adulto.
56
Segundo Jorge Trindade27 (2002, p. 33), foi a partir do século XVIII, com o novo
modelo pedagógico proposto por Pestalozzi e devido às reflexões filosóficas de Rousseau, que
se iniciou a pensar a infância e a adolescência como etapas do desenvolvimento normais e
previsíveis dos seres humanos, “as quais engendram uma subjetividade e uma especificidade
que não se confundem com a condição de maturidade característica da vida adulta’.
O suíço João Pestalozzi exerceu grande influência no pensamento educacional,
entendendo a educação como o meio supremo para o aperfeiçoamento individual e social, e
foi um grande adepto da escola pública. Democratizou a educação, proclamando-a como
direito absoluto de toda criança.
Alguns dos principais princípios educacionais de Pestalozzi28: entendia que o
desenvolvimento é orgânico, sendo que a criança desenvolve-se por leis definidas, devendo a
gradação ser respeitada; o método deve seguir a natureza; a impressão sensorial é fundamental
e os sentidos devem estar e contato direto com os objetos; a mente é ativa; a conceituação de
disciplina baseada na boa vontade recíproca e na cooperação entre aluno e professor; o
professor é comparado ao jardineiro que providencia as condições propícias para o
crescimento das plantas.
O educador suíço e sua equipe elaboraram materiais pedagógicos, voltados para a
linguagem, matemática, ciências, geografia, história e música. E assim Pestalozzi afirma:
A Educação se constrói numa tensão permanente entre os desejos do homem natural individual e o desenvolvimento da natureza humana universal. A educação produzirá a universalidade a partir das particularidades e da mesma forma a particularidade a partir da universalidade.
Rousseau consignou que a criança tem formas próprias de ver, de pensar e de sentir.
Em que pese a reprovável e contraditória atitude de Rousseau29 ao abandonar seus
27 TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil:compêndio transdisciplinar, 3. ed. ver. e ampl., Porto Alegre, 2002. 28 PESTALOZZI, João. <http:/www.rio.rj.gov.Br/multirio>. 29 ROSSEAU, Jean- Jacques. Emílio. Tradução Roberto Leal Ferreira. 3. ed..São Paulo: Martins Fontes, 2004.
57
únicos cinco filhos, quando crianças, a obra do filósofo “Emílio ou Da Educação” continua
influenciando a cada geração de educadores que descobriu o amor real às crianças e a
liberdade.
Uma vez realizada a leitura da extensa obra, podemos esquecer os detalhes que a
compõem, mas os encontraremos por nós mesmos desde que tenhamos compreendido essas
mensagens: respeito à natureza e à liberdade da criança.
Merece destaque o 4º livro da obra, talvez o melhor composto. Sua estrutura não está
baseada, como os precedentes na clássica distinção das “faculdades” (sensibilidade,
consciência moral, inteligência, corpo, órgão dos sentidos), mas sim na mutação da
puberdade, a qual corresponde a mutação das motivações da educação. O 4º livro baseia-se no
despertar da consciência moral e religiosa para guiar Emílio e Sofia.
Pode-se observar na obra “Emílio” (29) a proposta de concisão, da arte suprema de
sugerir, por palavras, a energia do silêncio e da ação. Com isso, Rousseau critica os
educadores que acreditam agir sobre as crianças com filas de palavras (2004, p.78):
Em meio ao longo fluxo de palavras com que as cumulas incessantemente, achais que não há nenhuma que elas compreendam mal? (...) Mestres zelosos, sede simples, discretos, contidos (...) Deixai que venha a criança: espantada com o espetáculo, ela não deixará de vos fazer perguntas (2º Livro).
O “Emílio” (29) é, sem dúvida, um dos livros que mais contribuiu para promover uma
escola e um Estado laicos, liberado da tutela das igrejas, mas essa escola e esse Estado foram
bastante ingratos: transformaram a exigência de Rousseau, de respeito à liberdade das
crianças e dos Homens, em neutralidade. Jean-Jacques teria revoltado-se com a neutralidade,
pois neutro significa “nem um nem outro”, sem interesse.
A educação de “Emílio” tem um só objetivo: formar um homem livre, capaz de
defender-se contra os constrangimentos.
58
E o meio apontado para a formação de homens livres consiste em tratá-los com seres
livres, respeitando a liberdade das crianças. E a obra distingue cuidadosamente o respeito às
necessidades naturais da criança (e a liberdade é a primeira dessas necessidades), da
satisfação de seus desejos e caprichos.
Os educadores fracos, que cedem a todos os pedidos do educando longe de respeitar a
sua liberdade, corrompem-na submetem-no as suas fantasias e paixões. O mais grave não é
que eles próprios tornem-se escravos do filho ou aluno, o pior é que fazem dele um escravo e
um déspota. A autoridade dos adultos se propõe às crianças e jovens como colaboração
necessária a estas.
Rousseau sugere que as expressões obedecer e mandar sejam substituídas por
necessidade e responsabilidade. E uma verdade desponta: nunca é cedo demais para dar ao
homem, ao adolescente, à criança, o sentido das suas responsabilidades e, portanto, para
confiar-lhe a responsabilidade de sua própria educação.
Portanto, a questão da autoridade, da disciplina e da liberdade, como fatores
inseparáveis da educação, não é recente. Chamam à atenção a atualidade das idéias dos
pensadores de Rousseau e Pestalozzi e o despreparo e insegurança dos educadores de hoje,
frente a um problema tão antigo e relevante.
Um aspecto que não pode permanecer à margem da discussão é a atual tendência dos
educadores brasileiros de responsabilizarem o Estatuto da Criança e do Adolescente, pela sua
dificuldade em exercer autoridade perante os alunos. Equivocadamente, desvirtuam a
interpretação legal, lançando o mito de que o Estatuto (resultado de conquistas inéditas em
relação à defesa dos direitos infanto-juvenis no Brasil) significa a “porta aberta a impunidade”
e contempla “regra de rompimento das relações de autoridade na família e na escola”.
As crises de identidade e de autoridade vivenciadas pela escola hoje são traduzidas
pelos modelos pedagógicos inadequados e ineficazes utilizados para responder aos problemas
59
novos e antigos, dentre eles a violência escolar. E, nesse contexto, a escola desenvolve
sentimento de incapacidade e impotência e, por insegurança, isola-se dos demais atores
sociais que poderiam contribuir positivamente.
Em meio a essa discussão, de proporções mundiais, Savater cita exemplos, em
extremo oposto a mencionada realidade brasileira, como da Inglaterra, que cogita a
reimplantação do castigo corporal nas escolas.
Em cidades como Nova York, o tempo das aulas está reduzido a durações
inacreditáveis (às vezes menos de meia hora!) a fim de que a variação constante impeça o
cansaço, que poderia se transformar-se em agressividade. Os alunos, mal educados na cultura,
do “zapping”, que os torna incapazes de ver ou escutar do início ao fim, têm dificuldade de
suportar uma aula completa de algo que não os apaixone e, o pior, obrigue-os de um pouco de
esforço.
Assim, o professor, muitas vezes em situação de risco a sua integridade física, e a
escola, que não é responsável por situações semibélicas decorrentes de conflitos sociais, não
conseguem resolver esses problemas.
A infância e a adolescência estão cada vez mais freqüentemente imersas na prática da
violência: sofrendo-a ou exercendo-a, ou ambos, sucessivamente. Nesse panorama, a função
humanizadora da educação está premente, aliada ao equilíbrio entre autoridade e liberdade,
em que a disciplina implique respeito mútuo, expresso na assunção da observância de limites
que não podem ser transgredidos.
60
5 A VIOLÊNCIA ESCOLAR
Somos culpados de muitos erros e de muitas falhas, mas nosso pior
crime é abandonar as crianças, desprezando a fonte de vida. Muitas coisas do
que precisamos podem esperar. A criança não pode. É exatamente agora que
seus ossos estão se formando, seu sangue é produzido, seus membros estão se
desenvolvendo. Para ela não podemos responder “amanhã”. Seu nome é
“hoje” (GABRIELA MISTRAL).
5.1 Violências nas escolas: conceitos e variáveis
Embora a violência nas escolas não represente grandes números e apesar de não ser no
ambiente escolar que ocorrem os eventos mais violentos da sociedade, ainda assim é um
fenômeno preocupante tanto pelas seqüelas que inflige diretamente aos envolvidos (autores,
participantes e testemunhas) como pelo que contribui para rupturas com a idéia da escola
como lugar seguro de conhecimento, formação do ser e da educação, como veículo da
aprendizagem e do exercício da ética e da comunicação por diálogo e, portanto, antítese da
violência.
A escola não seria mais representada como um lugar seguro de integração social, de
socialização, tornando-se um cenário de ocorrências violentas, que geram o angustiante
sentimento de vulnerabilidade.
A instituição escolar vem enfrentando profundas mudanças, com o aumento das
dificuldades decorrentes de suas próprias pressões internas e da efetiva desorganização da
ordem social, expressa por fenômenos exteriores à escola, como a exclusão social e
institucional e a crise e conflito de valores.
Na comunidade escolar verificam-se mútuas críticas e acusações e a escola aparece,
simultaneamente, como causa e conseqüência de problemas que não consegue responder e
cuja solução, muitas vezes, não esta ao seu alcance.
61
Ultimamente, vêm-se desenvolvendo novas concepções acerca da violência nas
escolas, pelos significados que assume ampliando-se a sua definição, deixando de identificar-
se apenas coma criminalidade e a ação policial, incluindo eventos que passavam por práticas
sociais costumeiras. Assim, compreende todas as formas de violência verbal, simbólica e
institucional.
Por fim, um outro aspecto que deve ser objeto de reflexão ao analisar-se a violência
escolar consiste em reconhecê-la como fenômeno complexo, que impõe o desafio de uma
ótica transdisciplinar, multidimensional e pluricausal.
Na obra “Violência nas Escolas”30 está evidenciado o interesse de organismos
internacionais na construção de uma cultura de paz, tendo como ponto de partida a escola,
incorporando a reflexão critica, chamando a atenção para a relevância da pesquisa e da
prospecção para o tema delicado como o da violência nas escolas. O estimulo ao debate
amplo gera a mobilização para ações que busquem a prevenção e o combate da violência nas
escolas do Brasil.
As manifestações de violências nas escolas representam uma ameaça a princípios
internacionalmente reconhecidos sobre a educação. Na apresentação da obra “Violência nas
Escolas” (30), Jorge Werthein, diretor da UNESCO no Brasil, no ano de 2004 (p. 25), afirma
que as violências nas escolas abalam diariamente os quatro pilares do conhecimento,
reconhecidos pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI: aprender a
conhecer, a fazer, a viver juntos e a ser (Delors, 1998). Tendo em vista o poder irradiador da
educação, isso representa prejuízos não apenas às gerações presentes, mas também às futuras.
Simultaneamente, as violências no ambiente escolar impõem novos desafios aos saberes, em
especial sobre o ensino e incorporação da “ética do gênero humano” e “conhecimento
humano”.
30ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violência nas Escolas. Brasília: UNESCO. Instituto Ayrton Senna. UNAIDS. Banco Mundial. USAID. Fundação Ford. CONSED. UNDIME, 2004.
62
A abrangência do fenômeno da violência nas escolas acaba por afetar praticamente
todas as relações do ambiente escolar: entre alunos, professores, funcionários e pais.
Portanto, todos esses atores e suas relações sociais devem ser considerados, na medida
em que influem na formulação e execução de políticas públicas cujo foco recai diretamente
sobre a escola.
Se a escola é lugar de formação e informação dos jovens, a violência representa um
elemento que demanda atenção especial no processo de socialização. Cuidar do tema significa
trabalhar para desconstruir fontes de violências, evitando sua multiplicação em outros lugares
e tempos, arriscando o hoje e o amanhã.
5.1.1 Definições do Termo Violência
Debarbieux (citado na obra “Violência nas Escolas” (30), (2004, p. 67), analisando
historicamente os estudos da violência no meio escolar, observa relevantes mudanças tanto no
que é considerado violência, como no enfoque dado ao tema. “Uma lição essencial da história
poderia ser esta variabilidade de sentidos da violência na educação, correlacionada às
representações da infância e da educação” (Dearbieux, 1996, p. 32). O autor identifica uma
fase na qual as análises recaíam sobre a violência do sistema escolar, especialmente por parte
dos professores contra os alunos (punições e castigos corporais).
Já na literatura contemporânea, sociólogos, psicólogos e outros especialistas
privilegiam a análise da violência entre alunos, ou desses contra a propriedade e, em menor
proporção, de alunos contra professores e vice-versa.
Observa-se que as ênfases dos estudos dependem do conceito de violência.
Bernard Charlot (citado na obra “Violência nas Escola” (30), p. 69), refere-se à
dificuldade em definir violência escolar, não somente porque esta remete aos “fenômenos
63
heterogêneos, difíceis de delimitar e ordenar”, mas também porque desestrutura “as
representações sociais que têm valor fundador: aquela da infância (inocência), a da escola
(refugio da paz) e da própria sociedade (pacificadora no regime democrático)” (CHARLOT,
1997, p. 1).
Ainda, a dificuldade conceitual é acentuada pelo fato de o significado de violência não
ser consensual, variando em função do estabelecimento escolar, de quem fala (diretores,
professores, alunos...), da idade e do sexo.
Segundo alguns autores, o termo violência é complexo e polissêmico, ou seja,
apresenta diferentes sentidos, e o seu significado define-se a partir do seu contexto formados –
social econômico ou cultural –, consoante o sistema de valores adotados por cada sociedade e
considerando o seu nível de tolerância para com a violência.
O fenômeno da violência é sintetizado por Cleo Fante31 reportando-se ao livro “Mapa
da violência: os jovens do Brasil”, escrito pelo Coordenador de Desenvolvimento Social da
UNESCO Brasil, Jacob Waiselfisz, quando afirma que os atos de violência apresentam-se
hoje na consciência social não apenas como crimes, mas nas relações familiares, na escola e
nos diversos aspectos da vida social. Não se refere somente a violência como manifestação
física, mas também às situações de humilhação, exclusão, ameaças, desrespeito, indiferença,
omissão para com o outro. A violência hoje estaria ligada ao conceito de alteridade,
expressando-se nas formas e mecanismos pelos quais a sociedade convive com as diferenças.
Consoante CHAUÍ32 (1999, p. 336-337):
(…) Desde a Antigüidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos perceber que, em seu centro, encontra-se o problema da violência e dos meios para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a conservação do grupo social.
31 FANTE, Cleo. Fenômeno Buillyng: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. 2. ed. São Paulo: Versus Editora, 2005, p.156.32 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 1999.
64
Evidentemente, as várias culturas e sociedades não definiram e nem definem a
violência da mesma maneira, mas, ao contrário, dão-lhe conteúdos diferentes. Segundo os
tempos e os lugares.
Ainda, segundo Chauí (32), em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da
força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua
natureza e ao seu ser. A violência e violação da integridade física e psíquica, da dignidade
humana de alguém.
Partindo-se desse conceito, o presente trabalho pretende analisar questões como as
seguintes: que critérios são utilizados pela escola comumente para qualificar um aluno como
violento? Quais os tipos mais comuns de violência que sofrem e praticam os alunos
pesquisados? Como ocorre a participação da família e da escola no contexto da violência
escolar? A educação familiar e escolar, que destaque ética e valores, pode prevenir a violência
no âmbito da escola?
Observa-se que a literatura nacional, ao buscar a conceituação de violência, contempla
não apenas a violência física, mas inclui o acento na ética e preocupação em dar visibilidade a
“violências simbólicas”. E, gradativamente, começa a identificar que a expressão violência
não tem como identificador também comportamentos que envolvem conotações emocionais.
Alguns estudos e pesquisas vêm focalizando conflitos entre alunos, denominados de
“bullying”. Este termo não encontra tradução exata em português, mas aproxima-se de algo
como “intimidação”.
5.1.2 Classificação
No âmbito da escola, é necessário que o profissional de educação, ao classificar um
65
aluno como violento ou agressivo, considere os inúmeros fatores que influenciam suas
relações interpessoais. Ocorrências consideradas como “problemas de indisciplina”, ou
“brincadeiras próprias da idade”, podem, na verdade, ser fonte causadora de sofrimento
intenso a muitos alunos, com prejuízos emocionais que ocasionam traumas e seqüelas que
refletem no seu desenvolvimento sócio-educacional.
Comumente, as vítimas de comportamento violento ou agressivo vivenciam
sentimentos de medo, vergonha, raiva e impotência que diminuem a auto-estima. E, sendo por
prolongado período de tempo expostos a ação de seus agressores e aos olhares indiferentes ou
omissos dos “espectadores”, é natural que reajam com ansiedade, irritação, angústia, tristeza,
além de pensamentos de vingança e suicídio.
A essas relações pode-se somar o estresse, acompanhado de sintomas psicossomáticos
como dor de cabeça, tontura, “branco”, sudorese, resfriamento das extremidades, boca seca,
náuseas, vômito, dor de barriga, diarréias, tremores, sensações de sufocação, dor no peito,
taquicardia, respiração ofegante, nervosismo, agitação, cansaço, insônia, sonolência,
pesadelos e outras reações, além de transtornos psicológicos graves, que poderão eclodir a
qualquer momento da vida sob as mais variadas formas de violência (31), 2005, p.158.
Em consonância com a posição de alguns estudiosos, realizamos uma classificação das
diversas formas de violência, com a finalidade de distinguir entre atos de violência e atos de
indisciplina, tendo em vista a constatada dificuldade que os profissionais de educação tem de
operar essa distinção. É preciso distinguir comportamentos violentos de más relações
escolares, em que pese as semelhanças entre ambos.
As más relações são problemas mais generalizados, porém menos intensos, que
surgem com a indisciplina ou com o mau comportamento dos alunos. Perturbam o andamento
das atividades escolares, entretanto não podem ser considerados atos de violência. Conforme
Fante (31), os atos de indisciplina são comportamentos contrários às normas da escola e estão
66
previstos no Regimento Interno Escolar. Diversos termos são utilizados para designar esses
comportamentos indesejáveis na escola: “disrupción”, “perturbação, interrupção nas aulas ou
no aprendizado”, e “desaffection”, “desinteresse pelas aulas ou pelo ensino”. Já os atos de
violência ou agressividade dos alunos acontecem com grande freqüência, porém nem sempre
são identificados pelos professores (evidenciadas por violência física, sexual, verbal e
psicológica).
5.1.3 Variáveis Endógenas e Exógenas
Seja quanto à violência propriamente dita, seja quanto aos atos de indisciplina, impõe-
se compreender e, se possível, explicar os fenômenos.
Abramovay e Rua (30) afirmam que na literatura nacional e estrangeira os trabalhos
sobre violências nas escolas analisam várias associações como características e atributos das
vítimas e dos agressores; ou as distintas instituições e ambientes freqüentadas pelos jovens,
que, por sua vez, têm dinâmicas singulares.
As autoras citam, dentre outras, como causas exógenas (2004, p. 76), a família,
influenciando na formação de personalidades violentas; a mídia, contribuindo para a
banalização da violência; características do ambiente em que se situa a escola.
Em alguns estudos realizados no Brasil, a escola é percebida como vítima de
violências que se originam fora dela, sendo comum a referencia a pobreza e à violência nas
comunidades carentes e ao pertencimento de alunos e bandos de tráfico e gangues que seriam
introduzidas na escola, mas não seriam nela originadas.
Miriam Abramovay e Maria das Graças Rua (30), (2004, p. 76), trazem informações
acerca de um dos levantamentos mais extensivos feitos na França desmistificando a idéia de
67
fatalidade da violência na escola situada nas zonas de alto nível de criminalidade, concluindo
que políticas internas podem ser eficientes no sentido de preservar a comunidade escolar.
Na literatura nacional encontram-se advertências contra associações deterministas
entre pobreza e violência no bairro e na escola, pois em tais ambientes haveria escolas com
diferentes níveis de violência (Sposito, 1998; Batista e Elmoor, 1999; Lucinda Nascimento e
Candaus, 1999 – citados na obra “Violências nas Escolas” (30), (2004, p. 88).
Por outro ângulo, como variáveis endógenas (internas ao ambiente escolar), são
destacadas: a idade e a série dos estudantes; as regras e a disciplina do projeto pedagógico das
escolas, bem como o impacto do sistema de punições; os professores que, por banalizar a
violência e não dar atenção às incivilidades e discriminações, estariam contribuindo ao
desrespeito do direito à proteção dos alunos e perderiam o momento pedagógico de educar a
favor da cultura de paz; e, finalmente, a má qualidade do ensino, a carência de recursos
humanos e o tratamento autoritário dispensado aos alunos como potencializadores de
violência.
Os debates sobre fatores de “fora” e de “dentro” da escola torna-se mais complexo
quando o foco é violência versus autonomia da escola perante outras instituições e processos
sociais. É consensual o reconhecimento da vulnerabilidade negativa (riscos e obstáculos) da
escola diante da realidade contemporânea.
Para identificar variáveis comumente encontrados entrelaçados com as violências nas
escolas, percorre-se diversas outras relações e processos sociais, sendo que a tendência é não
isolar fatores, mas proceder a enfoques multidimensionais, e aqui surge a importância da
abordagem transdisciplinar, especialmente com a concorrência da sociologia, da psicologia,
da ciência política, das ciências da educação e da justiça criminal.
Constata-se, portanto, que o comportamento agressivo ou violento nas escolas
constitui-se em fenômeno complexo e difícil, por afetar a sociedade como um todo, atingindo
68
crianças no mundo inteiro. Ainda, resultando de inúmeros fatores, externos e internos à
escola, caracterizados pelos tipos de interações sociais, familiares, sócio-educacionais e pelas
expressões de comportamentos agressivos, manifestadas nas relações interpessoais.
Os fatores externos são decisivos na formação da personalidade do aluno, pela
influência que recebe no seu contexto familiar e social e pelos meios de comunicação. A
escola praticamente não dispõe de meios para impedir essa influência externa sobre seus
alunos, entretanto, torna-se alvo de muitos casos de violência, praticados em decorrência
desses fatores que não estão sob seu controle.
Quanto aos fatores internos, podem ser considerados o clima escolar, as relações
interpessoais e as características individuais de cada membro da comunidade escolar.
Espera-se, hoje, que a escola estimule a criança a educar suas emoções, a lidar com os
seus medos, conflitos, frustrações, dores e perdas, com sua ansiedade e agressividade,
canalizando-os para ações que resultem em benefícios sociais e para novas formas de relações
capazes de produzir empatia, favorecendo assim o aumento da probabilidade de a criança
tornar-se um adulto equilibrado e feliz.
Se as crianças encontrarem em sua vida professores capazes de dar-lhes apoio e
segurança, e de ajudá-las a educarem suas emoções por meio de estímulos positivos, que
despertem sentimentos de confiança, amizade e amor, provavelmente crescerão saudáveis e
estarão empenhadas na construção de uma sociedade promotora da paz.
Observa-se, contudo, certa dificuldade em esperar-se dos educadores comportamentos
marcados pelo auto-controle, a serenidade, a atitude positiva, a aceitação do aluno com
dificuldades comportamentais, evitando os confrontos, mantendo os alunos ocupados num
ambiente de cooperação, respeito e amizade. O afeto e a atenção individualizada favorecem a
empatia e facilitam o processo ensino-aprendizagem. Esse tipo de relacionamento deve
prevalecer entre ambas as partes.
69
A profissão docente representa, na atualidade, sinônimo de estresse, este percebido
como sentimento agonizante e não desejável, resultado da percepção que a pessoa tem das
demandas de uma determinada situação.
Cleo Fante (31) (2005, p. 204) cita pesquisas que analisam a qualidade de vida do
educador, que evidenciam que no Brasil 92% dos professores estão estressados. Pode-se dizer
que esse dado alarmante, que demonstra que os educadores estão adoecidos e adoecendo
quem com eles convivem, perdendo em qualidade de vida pessoal, familiar e profissional, já é
questão de saúde pública.
Mister que as autoridades sensibilizem-se e considerem a questão da saúde emocional
do professor e dela cuidem. Nesse intento, devem considerar fatores causais como a baixa
remuneração, a desvalorização da categoria, jornada excessiva de trabalho, grande número de
alunos por sala, falta de verba para capacitação e pesquisa, falta de tempo para estudos e
preparo das aulas, bem como para descanso e lazer, além de diversas outras dificuldades
enfrentadas no quotidiano escolar.
5.2 Regras na escola: transgressões e punições
Pela ação educativa, o meio social influencia os indivíduos e estes, ao assimilarem e
recriarem essas influências estabelecem relação transformadora em relação àquele. Essas
influências manifestam-se por intermédio de conhecimentos, experiências, modos de agir,
costumes, crenças e valores acumulados pelas gerações e transmitidos, assimilados e recriados
pelas novas gerações.
Para Abramovay e Rua (30) (2004, p. 139), os modos de vida dos sujeitos em
interação no cenário escolar propiciam as trocas, criando condições necessárias para que os
processos sociais expressem-se. O ambiente propiciado pela escola favorece os processos
70
informativos e de comunicação, produzindo amplo universo simbólico, estimulando
configurações de sentidos e significados, possibilitando a constituição da subjetividade e das
identidades.
Nesse ambiente de diversidade, as escolas precisam administrar atos de agressividade
e de violência, normalmente utilizando-se de procedimentos formais e informais, consoante a
proposta pedagógica e o entendimento da Direção. E os procedimentos adotados são, em sua
maioria, advertências, suspensões, transferências e expulsões conforme a gravidade do caso.
As regras, a seu turno, refletem os valores que devem ser comuns e conhecidos por
todos os envolvidos no processo de interação.
As escolas, em seus Regimentos Internos, prevêem punições específicas a serem
aplicadas aos comportamentos considerados transgressões disciplinares.
Na obra “Violência nas Escolas” (30), (2004, p. 144-145) consta um levantamento
esclarecedor sobre as causas de transgressão e os tipos e duração das punições, resultado da
pesquisa nacional realizadas nas escolas, consoante o quadro a seguir:
CAUSAS TIPOS DE PUNIÇÃO
QUANTIDADE DURAÇÃO
1 Conversas e brincadeiras em sala de aula.Encaminhar o
estudande ao SOE (Serviço de Orientação
Educacinal).
Quantas forem necessárias.
2Conversas e brincadeiras em sala de aula: assistir às aulas
com os materiais e deveres incompletos. Advertência oral Quantas forem necessárias.
3 Deveres incompletos.Encaminhar o aluno à
biblioteca. Várias vezes.
4 Excesso de bagunça, deveres incompletos, falta de respeito
ao professor. Cancelar o recreio. Várias vezes.
5Deveres incompletos, bagunça, pequenos desentendimentos
com os colegas.Segurar o aluno após
o horário. Várias vezes.6 Mau comportamento e falta de tarefas escolares. Tirar ponto. Várias vezes.
7Uniforme incompleto, falta de crachá de identificação. Mandar o aluno de
volta para casa. Uma ou duas vezes.
8Quando está atrapalhando o andamento da turma com
conversas excessivas.Expulsar o aluno da
sala de aula. Várias vezes.9 Excesso de conversa ou desentendimento com colegas. Mudança de turma. Até duas vezes.
10Conversas excessivas, brigas com os colegas,
desentendimento com o professor, atrasos freqüentes e desinteresse pelos estudos.
Termo de compromisso.
Sem informação.
71
11Conversas e brincadeiras excessivas em sala de aula,
discussão com colegas e professores, não cumprimento dos horários e reincidência nos casos de deveres incompletos.
Advertência por escrito.
Até 3 por ano.
12 Alunos que apresentam problemas nos anos anteriores. Não renovação da matrícula. Sem informação.
13Reencaminhamento à direção após três advertências por
escrito, brigas sérias, agressões físicas, namoro, consumo de cigarro e drogas.
SuspensãoUma ou mais vezes,
dependendo da escola. Duração de 1 a 15 dias conforme o
caso.
14Quando o aluno encaminhado à direção já foi suspenso e o
caso for considerado grave. Por exemplo, fumar maconha na escola, brigar até sangrar o colega, ameaçar os professores e
os coordenadores.
Transferência e/ou expulsão.
Uma vez.
Quadro 1 – Transgressões e punições constatadas em escolas nacionais.Fonte: obra “Violência nas Escolas”.
Importante observar que as punições, uma vez aplicadas de forma arbitrária,
identificam a escola como “lócus” privilegiado de exercício da violência simbólica. Também
caracterizam essa violência castigos e situações de humilhação e constrangimento.
5.3 Relacionamento Tenso e Confuso Entre Escola e Sistema de Justiça
A fim de aclarar competências e atribuições, importante observar as distribuições de
responsabilidades operadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, por força do
acolhimento da Doutrina da Proteção Integral e da Prioridade Absoluta (artigos 1.º e 4.º).
A normativa, que neste ano completou quinze anos, atribui responsabilidade à família,
à comunidade, à sociedade e ao Estado, em relação as suas crianças e adolescentes.
As questões de ordens sociais, em regra, passaram a ser responsabilidade do poder
público municipal, em decorrência da municipalização do atendimento ECA, 88,I),
executáveis por intermédio das políticas sociais básicas. Já ao Sistema de Justiça foi delegada
a responsabilidade pela proteção especial e garantia de direitos, executadas pelo Conselho
Tutelar, Ministério Público e Juizado da Infância e da Juventude.
Considerando esse contexto, observa-se que junto a professores, dirigentes escolares,
pedagogos e demais profissionais, tradicionalmente atuantes no âmbito escolar, atualmente
continuação
72
estão inseridos outros agentes sociais, como Conselho Tutelar, Ministério Público e Juizado
da Infância e Juventude, que, sem reduzir a importância daqueles, passaram a envolver-se
com as questões educacionais.
Buscaremos, neste momento, refletirmos acerca da necessária intervenção eficaz, no
cenário da violência escolar, desses profissionais, oriundos de áreas estranhas à educação,
especialmente dos Promotores de Justiça.
O ConselhoTutelar passou a exercer, em virtude do artigo 136 do ECA, atividade
ligada a defesa do direito ao acesso, freqüência e aproveitamento escolar, ou intervindo em
casos concretos, seja por ação ou omissão do responsável pela criança ou adolescente; seja
por abuso ou negligência da instituição de ensino ao deixar de oferecer ou oferecer de forma
insatisfatória ou irregular o serviço de educação.
Nos casos citados, o CT pode aplicar medidas protetivas aos pais ou responsáveis
(artigo 101, inciso III, c/c 129, inciso V do ECA) ou desencadeando procedimento
administrativo por infração às normas legais de proteção ( artigo 195 c/c 245 do ECA) ou
ainda, provocando a ação do Ministério Público ou da autoridade judiciária (artigo 136, III e
IV do ECA).
As hipóteses interventivas do CT estão previstas no artigo 98 do ECA: quando a
criança ou adolescente estiver atravessando dificuldades decorrentes da ação ou omissão da
sociedade (discriminação da comunidade escolar) ou do Estado (necessidade de acionar
algum serviço público); nos casos de falta ou suspeita de omissão ou abuso dos pais ou
responsáveis (maus tratos ou negligência, por exemplo) ou ainda em razão de sua conduta
(nesse contexto entendida como a conduta que ultrapassa a infração às normas disciplinares e
que necessitam do encaminhamento a serviço de apoio sócio-familiar).
Oportuna a reflexão acerca dos atos de indisciplina, que devem ser resolvidos no
âmbito do próprio sistema educacional. As regras de disciplina devem estar previstas no
73
Regimento Escolar e aplicadas pelo Conselho Escolar (após assegurada a ampla defesa),
contemplando sanções pedagogicamente corretas, que não importem na exclusão do aluno do
sistema educacional ou destituídas de caráter educativo (com a suspensão que acaba
correspondendo a um aparente “prêmio” pelo ato de indisciplina).
Importa observarmos, ainda, que o desinteresse pelas atividades escolares e as
dificuldades na aprendizagem, ocasionando o insucesso escolar, podem gerar atos de
indisciplina.
O Procurador de Justiça paranaense Olympio de Sá Sotto Maior Neto33 menciona a
necessidade de o sistema educacional não se limitar a atuação na eliminação de atos de
indisciplina, mas deve aprofundar o conhecimento acerca de suas causas, identificando a
origem dos problemas daqueles que recebem o rótulo de indisciplinados. Complementa com a
reflexão de que a disciplina está associada a outros aspectos comportamentais e seu
desenvolvimento representa conquista progressiva, à medida em que o indivíduo amadurece,
aprimora sua inteligência, agrega equilíbrio emocional, autonomia e capacidade de relacionar-
se com seu semelhante.
Não pode ser considerado indisciplina a crítica ao processo pedagógico ou às
propostas educacionais, tampouco as contestações aos critérios avaliativos, já que são direitos
do educando (artigo 53, inciso IV e parágrafo único do ECA). A participação dos pais e da
comunidade na resposta aos atos de indisciplina é importante, considerando a co-
responsabilidade que se instaura.
Assim, a escola somente deve encaminhar um caso ao Conselho Tutelar após esgotar
todos os recursos e serviços disponíveis em sua estrutura educacional e previstas em sua
regulamentação interna, aplicando as medidas pedagógicas previstas no regimento interno.
33 NETO, Olympio de Sá Sotto Maior. Ato infracional, medidas sócio-educativas e o papel do sistema de justiça na disciplina escolar. Pela Justiça na Educação. Coordenação geral: Afonso Armando Konzen. Brasília: MEC, FUNDESCOLA, 2000.
74
Por via transversa, quando da prática de um ato infracional, a escola não pode
desempenhar o papel do sistema de justiça, que devera apreciar e julgar o caso. Dessa forma,
se a conduta do aluno ultrapassar em gravidade os limites da normativa escolar e, não sendo o
caso de intervenção protetiva do Conselho Tutelar, a escola pode e deve acionar a Autoridade
Policial (Brigada Militar ou Polícia Civil) para coibir ou deter ato previsto na legislação penal
como crime ou contravenção e praticado no ambiente escolar.
Obviamente que não se está propondo instalar a força policial na escola para coibir
qualquer transgressão, tampouco para propiciar situações de humilhação e vergonha quando
sua presença se faz absolutamente necessária, em situações excepcionais, também em face a
proposta de despoliciação introduzida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
De qualquer forma, em sendo a presença da força policial maior do que a necessária,
há indícios veementes de que a pedagogia está inadequada, propiciando o ambiente de tensão,
indisciplina e violência.
Na temática da violência escolar, há ainda a intervenção do Ministério Público, pelo
Promotor de Justiça da Infância e Juventude, quando da prática de ato infracional por
adolescente. O Ministério Público, como destinatário da atividade policial, desencadeia a
aplicação de medida sócio-educativa, de natureza sancionadora e conteúdo pedagógico.
Além dessa atribuição, o Ministério Público pode e deve ser acionado pela escola em
face a constatação de ameaça ou violação dos direitos e garantias individuais ou coletivos dos
alunos, pela ação ou omissão da família, sociedade ou Estado, adotando as medidas
extrajudiciais ou judiciais cabíveis.
Insta procedermos a breve comentário sobre a violência intra-familiar como potente
vetor de violência no âmbito escolar. Os alunos, angustiados, tensos e traumatizados pelas
violências de que são vítimas no seio de suas próprias famílias, reproduzem comportamentos
semelhantes na escola, principalmente quando a capacidade de resiliência para superar os
75
obstáculos do quotidiano familiar é reduzida.
Ainda, há a possibilidade de a escola encaminhar ao Ministério Público caso
específico, geralmente relacionado a evasão escolar (como a implementação da FICAI – Ficha
de Comunicação do Aluno Infreqüente) ou a ato de indisciplina no âmbito da escola, após
esgotadas as providências ao alcance desta (tanto no plano pedagógico como normativo) e
realizada a intervenção do Conselho Tutelar.
Quanto ao Juizado da Infância e da Juventude, pela nova proposta do Estatuto da
Criança e do Adolescente de desjudicialização dos problemas sociais, centra sua atividade em
dirimir conflitos, de ordem individual, coletiva ou difusos, que são submetidos à sua
apreciação e decisão jurisdicional.
Obviamente que, quaisquer dos agentes – Conselho Tutelar, Polícias, Ministério
Público e Juizado da Infância e da Juventude – não só podem como devem atuar junto a
sociedade, na divulgação da proposta executória de direitos e de responsabilidades na vara
infanto-juvenil, traduzida pela CF/88 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como
na mobilização visando a implementação da estrutura de atendimento elencada no Estatuto da
Criança e do Adolescente, inclusive em atividades com fins preventivos à violência escolar.
5.4 Políticas Públicas Para a Redução da Violência Escolar
Por intermédio do estabelecimento de políticas capazes de proteger os grupos sociais
menos favorecidos, da descentralização político-administrativa e da participação popular por
meio de suas organizações representativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente
representou proposta inovadora no trato das questões infanto-juvenis.
Em virtude da superação do paradigma da “situação irregular” pelo da “proteção
integral”, não cabe mais espaço para ambigüidades. Há necessidade de compromisso firme e
76
posicionamento real voltados a promover prioritariamente crianças e adolescentes à
inclusão social, inclusive a inclusão daqueles que, por uma circunstância da vida, se
colocaram em conflito com a lei ou com as regras sociais.
Segundo o Promotor de Justiça Wilson Donizeti Liberati34:
Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades de crianças e adolescentes (...). Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante.
Sposito reflete que a violência escolar tem sido um problema com importante
visibilidade social, de maneira que o Poder Público tem sido pressionado a dar resoluções. As
medidas adotadas, contudo, freqüentemente são antidemocráticas e buscam soluções
emergenciais, em geral pontuais e descontínuas.
A questão não é um fenômeno recente, principalmente nas escolas públicas. Mas,
apesar da sua intensa presença no debate publico, a pesquisa sobre violência e escola ainda é
incipiente no Brasil.
As políticas públicas que tentam enfrentar a questão desde os anos 80 oscilam entre o
pólo da mera repressão e o de projetos educativos voltados para a prevenção. Na transição
democrática, foram desenvolvidas ações que visavam a abertura democrática das escolas, com
a criação de novas modalidades de interação e participação. No plano estadual, decretou-se a
abertura das escolas nos finais de semana para a população (atividades culturais, esportivas e
de lazer). Nos municípios, ação semelhante foi proposta, pela adesão das escolas. Os
resultados foram diferenciados: experiências de sucesso e, principalmente, de fracasso.
34 LIBERATI, Wilson Donizeti. O Estatuto da Criança e do Adolescente. Comentários, Ed. IBPS, p. 04-05. <http://www.mp.pa.gov.br/caoinfancia/links/jurisprudencia/familia.html>.
77
“Motivos: falta de recursos financeiros e humanos, ausência de repercussão nas atividades
práticas cotidianas35”.
Nos demais anos da década, prevaleceram ações de segurança. Resultado: organismos
policiais passaram a interferir demasiadamente no cotidiano escolar. As medidas de cunho
educativo foram minimizadas.
Uma real transformação da cultura escolar demanda que os projetos e programas
empreendidos esforcem-se por realizar uma alteração das imagens e práticas que o mundo
adulto tem sobre as crianças e os jovens, principalmente os que freqüentam a escola pública
radicada nos bairros periféricos. Esses têm sido vistos sob a ótica do medo e, assim, tratados
como virtuais criminosos e delinqüentes. E demanda, especialmente, o comprometimento e a
responsabilidade do mundo adulto quanto à ética e valores que estão ensinando e
exemplificando as suas crianças e jovens.
Do estudo e pesquisa realizados pela UNESCO nas escolas brasileiras; exposto na
obra “Violência nas Escolas” (30), visando a identificação e mapeamento do fenômeno da
violência escolar em nosso país, resultou uma série de sugestões e recomendações, constantes
na obra citada “Violência nas escolas” relacionadas com a implementação de políticas
públicas que focalizam as violências nas escolas e requerem o apoio das três esferas
governamentais e da sociedade civil. A seguir, serão referidas algumas das sugestões (2004, p.
328-330):
No âmbito da escola, a participação de todos os envolvidos é fundamental, tendo como
princípio que programas bem sucedidos podem alterar a situação das escolas, criar novas
expectativas, possibilitando relações sociais positivas, prazerosas e de pertencimento.
Às Secretarias da Educação cumpriria acompanhar implantação de medidas contra a
violência nas escolas, assessorando e facilitando a execução de políticas públicas,
35 SPOSITO, Marilia Pontes. As vicissitudes das políticas públicas de redução da violência escolar. In.: WESTPHAL, Maria Clara (org). Violência e Criança. São Paulo: Edusp, 2002.
78
participando do treinamento e capacitação de funcionários, além de discutir políticas de
gestão e segurança com a escola e a comunidade.
A título de cuidados com o entorno da escola são sugeridas medidas simples, como
colocação de semáforos ou faixa de pedestres; iluminação em bom estado nas imediações;
controle de vendas de bebidas alcoólicas a menores no entorno; fiscalização e proibição de
estabelecimentos de jogos de azar nas imediações; mecanismos de controle para coibir
circulação de drogas ilícitas;
No campo do lazer, sugere a abertura do espaço escolar, visando a implantação de
programa de abertura da escola fins-de-semana: envolvendo família e comunidade para
atividades de cultura, arte, lazer e esporte, voltadas para a educação, para a cidadania, e para
construção de cultura de paz.
Outros aspectos salientado no estudo são a interação escola, família e comunidade
( sensibilização sobre o problema da violência e necessidade de sua redução); a realização de
atividades transdisciplinares, visando conscientizar os alunos sobre as conseqüências do uso
de armas, drogas, roubos, e quanto aos preconceitos, intolerância, que promovem desrespeito
e humilhação; a sensibilização dos professores sobre questões relacionadas à violência:
incivilidade, maus tratos, assédio sexual entre alunos e professores; e a valorização e
organização do jovem (protagonismo juvenil).
São ressaltados como pontos importantes também o espaço físico da escola, com
ambientes agradáveis e a participação dos jovens em atividades várias para desenvolver
sentido de pertencimento; regras e punições clara e gerais (para todos daquele universo);
segurança eficiente, com policiamento no entorno, que iniba a violência, bem como a
sensibilização da polícia para evitar autoritarismo e abuso de poder.
Por fim, os pesquisadores da UNESCO sinalizam para a necessidade de articulação
entre escola, Ministério Público, Conselho Tutelar, Poder Judiciário e Secretarias de
79
Educação na elaboração conjunta de medidas preventivas contra a violência, em consonância
com o Estatuto da criança e do Adolescente e acerca da importância de apoio especializado
para a elaboração e implementação dessas medidas (mediante pesquisas e levantamentos de
dados que permitam conhecer a realidade das escolas e desenvolver ações adequadas e
oportunas).
80
6 METODOLOGIA
6.1 Tipo de Pesquisa
O presente trabalho obedeceu a critérios de natureza qualitativa, em proposta
consistente em estudo exploratório, no município de São Vicente do Sul, acerca da realidade
da indisciplina e da violência escolar e a atuação da família e da escola nesse contexto.
6.2 População e Amostra
A população define-se por alunos matriculados no ensino fundamental, de 5ª a 8ª série,
em escola da rede pública estadual de São Vicente do Sul, que possuem anotações em suas
fichas disciplinares individuais, pela prática de ato de indisciplina e/ ou de violência no
ambiente escolar, bem como os respectivos responsáveis por esses alunos, integrantes da
Direção e do corpo docente da mesma escola.
Foram remetidas à pesquisadora 21 fichas, sendo destas selecionadas 05, consoante os
critérios a seguir referidos.
A amostra perfectibilizou-se com o estudo de 05 adolescentes do sexo masculino, dos
respectivos pais ou responsáveis destes, do Diretor e da Supervisora da escola, bem como de
duas professoras comuns a todos os alunos pesquisados, no período analisado. A amostra
totalizou, assim, 14 participantes.
81
6.3 Procedimento e Instrumento
A partir das fichas remetidas à pesquisadora pela Direção da escola (escolhidas
consoante os critérios da Direção por referirem-se aos “piores alunos” ou aos “mais difíceis”),
obedeceu-se aos seguintes critérios para a escolha da amostra pesquisada: a ficha escolar
apresentar registro de ato de indisciplina e/ ou violência no período de doze meses,
compreendido entre o mês de agosto de 2004 a agosto de 2005; tratar-se de aluno adolescente
(12 anos completos); estar o aluno ainda estudando na escola; a família e o aluno terem aceito
participar da pesquisa.
Esclarece-se que não foram selecionadas estudantes do sexo feminino em razão de
apenas uma ficha disciplinar encaminhada à pesquisadora referir-se a uma menina, com dez
anos de idade. Portanto, não preenchia a condição de ser adolescente para integrar a amostra
pesquisada.
Para proceder-se ao estudo dos participantes – alunos, seus responsáveis, professores e
Direção da Escola - utilizou-se entrevistas semi-estruturadas individuais, com questionários,
visando apurar a indisciplina e violência escolar. Os roteiros encontram-se em anexo (anexos
I, II, III).
Foi elaborado, ainda, com a mesma finalidade, roteiro para observação e coleta de
dados sobre o ambiente físico da escola focando especialmente aspectos atinentes à segurança
e ao comportamento dos alunos, funcionários e professores (anexo IV).
Por fim, analisou-se o regimento escolar, enfatizando a proposta pedagógica da escola
e o trato previsto às transgressões disciplinares (com suas regras e punições).
Os objetivos da utilização dessa metodologia organizam-se em torno da averiguação
da participação da família e da escola no contexto da violência escolar, enfatizando-se a
82
função da educação familiar e escolar, especialmente no que diz respeito à construção de
valores.
Como procedimentos foram escolhidas fichas de alunos de 5ª à 8ª série, com registros
de ato de indisciplina e/ ou violência, no período analisado.
Essa escolha obedeceu aos critérios de o aluno ter praticado o ato registrado em sua
ficha enquanto cursava de 5ª à 8ª série do ensino fundamental, ter 12 anos completos na época
da prática do fato, estar ainda estudando na escola e o aluno e seu responsável terem aceito
participar da pesquisa.
6.4 Definições Operacionais
a) Violência escolar: considerados os atos de indisciplina e de violência praticados no
âmbito da escola, pelos alunos (contra os colegas, contra os professores e a Direção,
contra o patrimônio da escola e patrimônio particular de terceiros) e pelos professores
e Direção contra os alunos, no recinto da escola;
b) ato de violência: conceito complexo e polissêmico, pois apresenta diferentes sentidos e
define seu significado a partir do contexto analisado, consoante o sistema de valores
adotado pela sociedade e considerando o nível de tolerância desta. Aqui compreendido
como o uso da força física e/ou do constrangimento psíquico para obrigar alguém a
agir de modo contrário a sua vontade. Consiste, portanto, na violação da integridade
física ou psíquica de alguém. São atos que exigem intervenção efetiva do Estado, por
meio de seus agentes (conselheiros tutelares, policiais, Promotores de Justiça e Juizes),
uma vez que contrariam a lei;
83
c) ato de indisciplina: limita-se aqui ao ato perpetrado no ambiente escolar. Consiste em
problema mais freqüente, porém menos intenso do que o ato de violência, não se
confundindo com este. São comportamentos contrários as normas da escola e devem
estar previstos no Regimento Interno Escolar, que surgem do mau comportamento dos
alunos, expresso na forma de perturbação e interrupção nas aulas ou no aprendizado e
desinteresse pelas aulas ou pelo ensino. Necessitam ser resolvidos no âmbito do
sistema educacional, mediante a observação e aplicação das normas previstas no
Regimento Escolar;
d) adolescente: pessoa com idade entre doze anos completos e dezoito anos incompletos;
e) valores: constituem no conjunto de qualidades que nos distinguem como seres
humanos independentemente de credo, raça, condição social ou religião, estando
presentes em todas as filosofias ou crenças religiosas. São inerentes à condição
humana e dignificam e ampliam a capacidade de percepção do ser consciente, que tem
no pensamento e nos sentimentos sua manifestação palpável e aferível. São qualidades
que os homens consideram importantes, como a verdade, justiça, solidariedade,
retidão, paz, amor e não violência, que unificam e afastam do individualismo,
enaltecendo a condição humana e dissolvendo preconceitos e diferenças;
f) São Vicente do Sul: localizado na região central do Estado do Rio Grande d Sul, com
8.812 habitantes, cuja atividade econômica principal é a agropecuária.
6.5 Coleta de Dados
Os dados da pesquisa foram coletados em três etapas. Primeiramente, observou-se as
fichas individuais encaminhadas pela escola, selecionadas pela Direção por referirem-se aos
alunos “mais difíceis” ou de “pior comportamento”, onde constam anotações referentes às
84
transgressões disciplinares e sanções aplicadas. Na mesma fase, analisou-se o regimento
escolar da instituição pesquisada.
Na segunda etapa, procedeu-se a visitas de observação da escola, ocasiões em que
foram coletados os dados gerais sobre a escola (como número de alunos, professores e
funcionários; número de turmas; cursos que oferece...), observados aspectos atinentes à
segurança do ambiente (como muros, portões, iluminação, controle de entrada e saída de
pessoas, existência de grades, uso de uniforme) quanto ao equipamento físico da escola (a fim
de verificar a qualidade, conservação e higiene das instalações (prédio, salas de aula,
corredores, cozinha, refeitório, pátio externo); e observado o ambiente escolar (atitudes dos
alunos, funcionários, professores e autoridades da escola).
Na terceira e última etapa, realizou-se entrevistas pessoais com os alunos, familiares
destes, professores e integrantes da Direção da Escola selecionados.
Os dados foram coletados examinando-se itens que compõem os roteiros em anexo.
A coleta foi efetuada assegurando-se reserva de sigilo, limitando-se em sua finalidade,
para o âmbito desta pesquisa.
6.6 Análise dos Dados
O estudo dos dados coletados fundamentou-se pela análise de conteúdo.
A execução desse estudo envolveu uma série de procedimentos, descritos a seguir:
a) partiu-se do exame todo, mediante a análise do contexto geral em que se insere a
escola (observação; análise de documentos e entrevistas);
b) seguindo-se pela escolha de transcrições parciais das entrevistas gravadas, mediante a
significação dos dados subjacentes;
c) após, realizou-se a categorização, com a eleição das expressões que melhor definem os
85
tópicos, para transformá-las em categorias;
d) ordenação das categorias;
e) depois, procedeu-se à discussão dos resultados, mediante reflexão analítica destes,
possibilitando a organização criteriosa dos elementos coletados.
Optou-se pela criação de categorias, a fim de permitir a classificação dos dados
apurados.
86
7 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Precedendo a discussão dos resultados das investigações, a fim de contextualizar os
dados pesquisados com o ambiente escolar analisado, serão consignados os dados gerais sobre
a escola, coletados nas visitas de observação efetivadas pela pesquisadora durante a realização
da pesquisa.
7.1 Observação da Escola
7.1.1 Dados Gerais Sobre a Escola
Idade da escola: 47 anos (Fundada em 19/11/1958);
Número total de alunos: 1157
Distribuição dos alunos: - Curso Profissionalizante (Técnico em Contabilidade): 96; -
Curso Regular: Ensino fundamental: 486; Ensino Médio: 311; - EJA: Ensino Fundamental:
135; Ensino Médio: 129;
Número de professores: - Com regência: 57; - Sem regência: 15;
Número de funcionários: 09;
Número médio de alunos por turma: 25 a 30;
Dependências da escola: 14 salas de aula, 05 banheiros, 01 cozinha, 01 refeitório, 01
pátio, 04 salas do setor administrativo, 02 laboratórios, 01 biblioteca e 01 quadra coberta.
7.1.2 Ambiente Escolar
87
a) segurança:
- escola cercada com tela;
- controle de entrada dos alunos é feito pelo coordenador de turno, pelas listas de
alunos (não há carteira de identificação, uniforme, detector de metais e câmeras);
- não há estacionamento;
- só algumas janelas têm grades (setor administrativo, cozinha, laboratório, algumas
salas de aula);
- só há uma porta com grade no interior da escola (acesso à cozinha e ao refeitório);
- não há funcionários inspecionando corredores e banheiros;
- possui alarme.
b) equipamento físico:
- qualidade das instalações das salas de aula: espaço adequado, boa iluminação,
ventiladores nas salas, algumas com infiltração; classes – algumas boas, outras
precárias; limpeza razoável (reclamação da Direção de defasagem de funcionários
nesse setor);
- espaço externo: bom grau de limpeza; pátio grande, com luz natural, vegetação e
piso cimentado; área coberta;
- qualidade das instalações do prédio: refeitório limpo e organizado, utensílios de
cozinha antigos, mas limpos, alimentos em bom estado; laboratório de informática
muito bem equipado.
c) funcionários:
- secretaria: foram educados;
- direção e professores entrevistados: educados e cordiais, manifestaram boa vontade
em colaborar com a pesquisa;
d) Comportamento dos alunos durante as visitas:
88
- não foram vistos alunos fumando, entrando e saindo à vontade das salas, ou nos
corredores. Também não foram presenciados desentendimentos ou atos de indisciplina ou
violência.
Essas observações foram consideradas relevantes a fim de situar o contexto da escola
pesquisada, que se trata de escola pública de grande porte, tendo em vista estar situada em
município com aproximadamente dez mil habitantes, oferecendo o ensino fundamental, o
médio, profissionalizante e EJA (Educação para Jovens e Adultos).
Quanto à adoção de providências visando a garantir a segurança do ambiente escolar,
observou-se que se limitam ao cercamento do espaço com tela, utilização de alarme, grades
em algumas aberturas e controle de entrada dos alunos por coordenador de turno (mediante a
utilização de listas). Em que pese se tratar de escola integrante de pequena comunidade do
interior do Estado, onde a violência e a criminalidade são reduzidas, constatou-se a
preocupação dos educadores entrevistados em adotar outros procedimentos de segurança no
espaço escolar, como, por exemplo, a presença de policiais na escola e no entorno desta.
No que se refere ao equipamento físico, quanto à qualidade das instalações das salas
de aula, espaço externo e instalações do prédio, observou-se, em geral, serem boas.
Os integrantes da Direção e os professores entrevistados foram educados e cordiais
com a pesquisadora, manifestando boa vontade em colaborar com a pesquisa, manifestando
seu interesse e esperança em que o presente trabalho seja útil para contribuir na transformação
da realidade da escola.
Por fim, durante as visitas, não foram vistos alunos fumando, entrando e saindo à
vontade das salas, ou nos corredores. Também não foram presenciados desentendimentos ou
atos de indisciplina ou violência.
89
7.2 Entrevistas
Quanto aos dados obtidos nas entrevistas serão discutidos de forma sistemática e
conjunta, analisando-se os resultados comuns e divergentes, em cotejo com o referencial
teórico, visando a alcançar os objetivos desta investigação.
A discussão foi organizada nas seguintes categorias que serão a seguir analisadas: O
insucesso da família como instituição socializadora; Crise de autoridade da família; Reflexão
em torno da tarefa educativa: a crise de identidade e de autoridade da escola; Encontros e
desencontros alunos, família e escola; Relacionamentos da escola com profissionais de áreas
diversas à educação; Violência e indisciplina escolar; A percepção da atuação ineficaz do
Ministério Público no cenário da violência escolar; A ausência de proposta de educação para
valores na escola.
7.2.1 O Insucesso da Família Como Instituição Socializadora
7.2.1.1 O Eclipse da Função Educacional da Família
As informações obtidas por meio das dez entrevistas realizadas com os alunos e seus
respectivos responsáveis evidenciam aspectos atinentes ao relacionamento familiar e à
educação proporcionada pelas famílias aos adolescentes pesquisados.
Observou-se que a maioria dos adolescentes entrevistados afirmou relacionar-se “mal”
ou “mais ou menos” com a família. Apenas um (“D”) considera “bom” o relacionamento
familiar.
Esse dado causa preocupação, se considerada a importância da família como primeiro
núcleo a promover a socialização do indivíduo, o qual, antes mesmo de entrar em contato com
a escola, já experimentou a influência educacional de seu ambiente familiar, que continuará
90
sendo determinante durante a infância e a adolescência.
No núcleo familiar, a criança deveria aprender atitudes fundamentais, que compõem a
“socialização primária”, a qual lançará as bases da socialização secundária, proporcionada
pela escola.
O aprendizado familiar apresenta como pano de fundo um eficaz instrumento de
convencimento: a ameaça (imaginária) de perder o carinho daqueles seres sem os quais a
criança não sabe como sobreviver. Goethe afirmava que dá mais força se saber amado do que
se saber forte: a certeza do amor, quando existe, nos torna invulneráveis.
Essa afetividade e proteção inicial infundem confiança no vínculo humano, que
dificilmente catástrofe futura apagará, e as demais formas de socialização não substituem
satisfatoriamente o núcleo familiar, quando este não existe.
Assim, o principal agente da efetividade do Direito à Educação é a família. Se a escola
deve atuar como associada, essa associação não deve ensejar o afastamento da noção de que
os pais ou responsáveis são os agentes principais pela educação dos filhos.
Consoante Konzen36: “o dever para com a educação escolar constitui-se em uma das
especificidades do dever de educar o filho, sentido amplo que atribui aos pais o encargo de
alcançar-lhe o referencial ético para a vida em sociedade”.
Apesar do aparato legal prevendo a obrigação da família em relação a educação das
crianças, os educadores têm percebido que estas chegam à escola com um núcleo básico de
socialização insuficiente para enfrentar com êxito a tarefa de aprendizado. Queixam-se que,
em razão dessa falha na família, a escola, além de não conseguir realizar sua tarefa específica
de transmitir conteúdos, também começa a ser objeto de novas demandas, para as quais não
está preparada.
36 KONZEN, Afonso Armando. Conselho Tutelar, Escola e Família – Parcerias em Defesa do Direito à Educação. Pela Justiça na Educação. Coordenação geral Afonso Armando Konzen – Brasília: MEC, FUNDESCOLA, 2000.
91
Um dos outros motivos, apontado pelos estudiosos, do eclipse da família como fator
de socialização primária, decorre da transformação do “status” das próprias crianças, com o
“desaparecimento da infância”.
Durante séculos, a infância manteve-se num limbo à parte do qual as crianças somente
saiam gradualmente, consoante a vontade pedagógica dos adultos. As duas fontes de
informação eram os livros e as lições orais de pais e professores, sabiamente dosadas.
A criança crescia numa obscuridade aconchegante, levemente intrigada por esses
temas sobre os quais ainda não lhe davam respostas completas, admirando com inveja a
sabedoria dos adultos e ansiosa para crescer e ser digna de compartilhá-la. Mas a televisão
rompe esses tabus e, de maneira desordenada, “conta tudo”. Fornece meios de vida, exemplos
e contra-exemplos, viola recatos e promove entre as crianças a urgência de escolher, que está
inscrita na abundância de notícias freqüentemente contraditórias.
Enquanto a função educacional da família está em crise, a educação da televisão ocupa
cada vez mais espaço, proporcionando que as crianças tenham contato com tudo desde o
início, sem respeito pelos trâmites pedagógicos.
Se ao menos os pais acompanhassem-nas e comentassem esse bombardeio de
informações! No entanto, é próprio da televisão funcionar enquanto os pais não estão e,
muitas vezes, para distrair os filhos da ausência dos pais, ao passo que em outras ocasiões eles
estão, mas tão mudos diante da tela quanto às próprias crianças.
Na presente pesquisa, apurou-se sobre a influência dos meios de comunicação na
educação familiar, sendo que a exercida pela televisão é, sem dúvida, a maior. A maioria dos
responsáveis entrevistados busca informações sobre como educar os filhos (ou neto, no caso
de “D”) no referido veículo de comunicação.
Entre os adolescentes entrevistados, esse número aumenta, pois todos afirmaram que o
meio de comunicação a que têm acesso é a televisão, sendo eleitos como programas favoritos
92
novelas, filmes e programas esportivos. Apenas dois referiram o rádio (“C” e “D”) e, outros
dois, revistas (“B” e “E”). Destes dois últimos, “B” tem acesso a livros e “E”, a jornais.
Oportuno referir que talvez o acesso restrito aos meios de comunicação esteja ligado
não somente a questão da renda familiar, uma vez que a menor renda familiar declarada pelos
entrevistados corresponde a R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais, mas também à questão
cultural, em face da falta de estímulo familiar para que os jovens tenham contato com outros
meios de comunicação.
Fator a evidenciar a ausência de orientação e diálogo da família sobre os programas
assistidos pelos adolescentes consiste na afirmação de quatro dos cinco entrevistados de que
não conversam sobre os programas, tampouco assistem à televisão com a família (alunos “A”,
“B”, “C” e “E”). O aluno “C” complementou: “a família não dá bola, pois tem mais o que
fazer” e os familiares consideram-no grande demais para “teimar” e pequeno demais para
“intrometer-se nos assuntos dos adultos”.
Nesse contexto, também a tarefa atual da família e da escola é complicada. Antes, o
educador podia jogar com a curiosidade dos educandos, ansiosos por conseguir adentrar em
mistérios que ainda lhe eram vedados. Atualmente, porém, as crianças e adolescentes já
chegam envoltas de mil notícias e visões multiformes, que não lhes custou nenhum esforço
para adquirir e que receberam até sem querer.
O educador (familiar e professor) precisa ajudá-los a organizar essa informação,
combatê-la parcialmente e oferecer-lhes ferramentas cognitivas para torná-la proveitosa e não
nociva.
Contudo, essa nova situação da educação, embora multiplique as dificuldades dos pais
e professores, também abre promissoras possibilidades para a formação moral e social dos
futuros cidadãos. Mostra ainda a possibilidade de superação de preconceitos e dos modelos de
93
vida impostos pelo núcleo de socialização familiar.
7.2.1.2 A Demissão Familiar
Aspecto comum ao quotidiano dos alunos entrevistados, a demonstrar o grau de
envolvimento familiar na vida escolar dos adolescentes, é o fato de o responsável,
normalmente a mãe, com exceção de “D” (a avó) e “E” (o pai), comparecer na escola somente
nas ocasiões em que é chamado. Dos cinco alunos ouvidos, três manifestaram que gostariam
que a participação de seus pais na escola fosse maior, exceto “B” e “D”. Sendo que o aluno
“B”, na ocasião da entrevista, encontrava-se institucionalizado no abrigo do Município, por
omissão da mãe que se negava a recebê-lo em casa. E, quanto ao adolescente “D”, percebeu-
se que omitia informações e prestava declarações incondizentes com a verdade, não
colaborando adequadamente durante a entrevista.
A análise desses últimos dados será aprofundada no item 7.2.4 da discussão dos
resultados.
No momento, interessa-nos a constatação acerca do reduzido envolvimento dos
familiares com o quotidiano escolar dos adolescentes, a expressar o sentimento de
“abandono” experimentado por estes, a desqualificar, ainda mais, os relacionamentos em
família.
Os alunos, questionados acerca dos responsáveis por sua educação, responderam:
aluno “A” – a mãe; aluno “B” – ninguém, pois educa-se sozinho; aluno “C” – a mãe e o
padrasto; aluno “D” – a avó; aluno “E” – a madrasta, referindo que o pai só o repreende
depois de ter errado.
Nos casos dos alunos “A” e “D”, as informações foram confirmadas pelos respectivos
responsáveis (a mãe e a avó). Quanto ao aluno “B”, abrigado em instituição do Município por
negligência da mãe, a afirmação de não ser educado por ninguém, naquele momento de
abandono extremo, era absolutamente compreensível, divergindo da informação materna,
94
onde a mãe considera-se responsável pela educação do filho.
Destacam-se as considerações da mãe de “C”, afirmando que a responsabilidade de
educar seria dos pais, mas às vezes estes não conseguem (“Dá vontade de fugir e largar
tudo”). E do pai de “E”, admitindo ser a responsabilidade dos pais, “quando os filhos
obedecem”, e alegando ter problema com o filho a partir dos 14 anos de idade deste.
Observou-se, das informações prestadas pelos responsáveis, que as dificuldades
quanto à educação dos filhos coincidem com o período em que estes ingressam na
adolescência, evidenciando o despreparo dos pais para lidar com essa fase da vida de seus
filhos.
Segundo Savater (12), uma das causas para essa renúncia da família das suas funções
educacionais é o fanatismo pelo juvenil. Parecer velho e ser um velho que assume o tempo
que passou, é algo quase obsceno, que condena a solidão e ao abandono.
No entanto, para que uma família funcione educacionalmente é imprescindível que
alguém nela se resigne a ser adulto. O pai que só quer figurar como “o melhor amigo de seus
filhos” tem pouca serventia, e a mãe cuja vaidade é que a consideram irmã mais velha da
filha, não serve muito mais.
Sem dúvida, são atitudes psicologicamente compreensíveis e, com elas, a família
torna-se mais informal, menos frustrante, mais simpática e falível, em compensação, a
formação da consciência moral e social dos filhos não é muito favorecida.
Em decorrência desses comportamentos, as instituições públicas da comunidade
sofrem sobrecarga. Quanto menos os pais quiserem ser pais, mais paternalista se exige que o
Estado seja.
7.2.1.3 Criar, educar e cuidar: a quem caberá essas tarefas?
95
Dado merecedor de destaque relaciona-se à composição familiar dos alunos
pesquisados, onde foram constatadas composições diversas: núcleos formados pela mãe e os
filhos; ou por estes e pelo padrasto; ou pelo pai, filhos e madrasta ou, ainda, pelos avós, tios e
neto. E, consoante os padrões conceituais contemporâneos, todas são consideradas “famílias”,
com direitos, deveres e obrigações decorrentes desse status.
Vannúzia Leal Andrade Peres (16), no artigo “Desenhos de Família”, entende que o
movimento histórico de transformação da família vem se alterando não somente em sua
estrutura, mas também o padrão de seu ciclo de vida, levando a apresentar uma independência
de modelos e, em razão disso, uma singularidade. Segundo Philippe Ariès (17), isso significa
que não podemos mais falar de família como um padrão único a ser seguido ou como um
sistema universalizado, mas sim de famílias, entendendo que cada qual tem sua estrutura e
estilo de funcionamento.
Acerca da preparação para criar/cuidar/educar os filhos e do sentimento ou
intenção de desistir dessa tarefa, manifestaram as mães dos alunos “A”, “B” e “C” não se
sentirem preparadas e intencionar desistir.
Mãe do aluno “A” – Não se sente preparada. Já tentou entregar o filho (entrevistado)
para o pai.
Mãe do aluno “B” – Não se sente preparada. Tem muitos problemas com o filho mais
velho (entrevistado). Abrigado em instituição municipal, na oportunidade.
Mãe do aluno “C” – Não se sente preparada. “Se soubesse que criar um filho era tão
difícil, não teria sido mãe”. Mas, agora, que já botou no mundo tem que criar até o fim. Já
pensou em desistir e tentou suicídio. Quando o filho era bebê pensou em matá-lo e suicidar-
se, mas foi impedida por vizinhos. O filho foi abrigado recentemente no abrigo municipal por
desentender-se com o padrasto.
96
Quanto ao apoio na criação diária dos filhos, todos os responsáveis entrevistados
referiram buscá-lo junto à família. A mãe do aluno “B” afirmou também encontrar apoio no
Conselho Tutelar e no Ministério Público.
No que se refere à busca de informações sobre a criação dos filhos, a televisão
mereceu destaque, referida por três dos responsáveis (“B”, “D” e “E”); a escola foi referida
por dois responsáveis (“A” e “D”); o Conselho Tutelar e o Ministério Público, por duas
mães (“A” e “B”); a avó de “D” referiu a religião e a mãe de “D”, as revistas. Quanto à mãe
de “C”, afirmou não buscar informações.
A família atual permanece com as atribuições de cuidar e educar sua prole, porém,
tem-se manifestado sem referenciais para dar conta dessa tarefa, em virtude de fatores como:
a complexificação da vida moderna, as intervenções do dito saber científico produzido sobre
educação de crianças, que vem atestando a sua incompetência, o esvaziamento e a
superficialidade das relações e vínculos, inclusive os parentais.
O termo “criar” é amplo, incluindo os conceitos “educar” (desenvolver as atividades
físicas, intelectuais, morais e afetivas) e “cuidar” (assegurar atendimento às necessidades
básicas, inclusive afetivas). Inclui, portanto, o atendimento às necessidades básicas e também
educar, no sentido de ensinar, transmitir valores, princípios, atitudes e os conhecimentos
universais. Exige, portanto, empreendimento visando atender ao seu desenvolvimento
integral.
Cabe à família, tenha ela a estrutura e organização que tiver, a função criadora,
cuidadora e educativa, e, na sua intimidade, via de regra, está tentando exercer essa tarefa.
Para isso, buscam como bases de apoio cônjuges ou companheiros, avós, igrejas, escola,
meios de comunicação, vizinhos, Conselho Tutelar e Ministério Público.
Mas a função criadora/educativa é compartilhada com outras esferas. No decorrer da
história, inúmeros são os registros da intervenção do Estado na família, essencialmente as dos
97
setores populares, quando a julga sem competência para a função de criar/educar seus filhos,
uma vez que poderiam tornar-se um risco para a sociedade. No Brasil sob a égide do Código
de Menores essa associação entre carência/delinqüência era evidente e as famílias populares,
quase sempre associadas à ignorância, pobreza, descuido, vício, abandono, licenciosidade, e
muitas vezes vista como criadoras de delinqüentes, eram acusadas de incapazes no que diz
respeito à educação e à formação de suas crianças.
Contudo, esse mesmo Estado, pouco privilegiou as famílias nas suas políticas sociais,
privilegiando apenas o indivíduo como portador de direitos.
A família, como grupo, percebeu-se sozinha no processo de educação dos filhos e foi
culpabilizada individualmente pelo fracasso desse empreendimento. As incontáveis teorias
sobre educação de crianças em sua maioria acabaram enfatizando as carências e limitações da
família em sua função materna/paterna, mas nunca seus potenciais. O próprio Estado, em seu
modelo de atendimento, fragmentou a família num somatório de necessidade, identificando-a
como carente de bens e serviços. Os autores fazem referência ainda à psicologização das
relações, uma tendência das teorias que ganhou força enfatizando mais o caráter de carência
das famílias.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a família “ressurge como unidade
econômica e direito da criança” (17) (1995, p. 12) e, assim, entra na agenda das políticas
públicas para ser atendida em suas carências, a fim de garantir os direitos dos indivíduos.
Contudo, atribui também à sociedade e ao poder público a garantia desses direitos, por
intermédio de políticas sociais e atividades voltadas para o apoio da família na tarefa de
criação/educação dos filhos. Objetivo, na prática, ainda não atingido, em face a quase
inexistência de serviços multiprofissionais de atenção à família e em razão da ineficiência,
descontinuidade, setorização e fragmentação dos serviços oferecidos.
Do panorama traçado, forçoso concluir que o mesmo Estado, que muito contribuiu
98
para a construção do discurso de família desestruturada, incompetente, carente, pouco
ofereceu em suas ações, serviços, auxílio e orientação à família. Inclusive, buscando retirar-se
do cenário das políticas sociais, repassando essa iniciativa para as organizações não-
governamentais, que não dispõe de recursos humanos e financeiros para assegurar a
continuidade e a qualidade das atividades, e/ou para a iniciativa privada, que não tem
compromisso com o grupo que atende.
7.2.1.4 A educação para valores: modelos e conteúdos da educação familiar
Consoante mencionado, o efeito direto do esvaziamento da família como autoridade na
criação/educação dos filhos é a estigmatização da instituição familiar, que assumiu a posição
de “incompetente” nessa tarefa. E essa desqualificação da família, que a instala
simultaneamente na condição de vítima e de responsável por sua condição, fragiliza seus
laços afetivos e sua coerência interna, contribuindo para que influências externas, nem sempre
positivas, obtenham “êxito” na socialização da criança.
Diversos estudiosos da família brasileira apontam que esta se encontra num momento
histórico de mudanças significativas no que diz respeito aos valores éticos e morais, aos
padrões de comportamento e a educação dos filhos.
Se a família é o sujeito principal das estratégias de reprodução dos comportamentos
sociais, verificamos que ela encontra-se em vias de constituir uma nova configuração,
determinada pelo modelo de relações sociais no mercado consumidor. Nesse campo das
relações sociais, destaca-se o aspecto “descartável” ou de superficialidade das relações sociais
e o caráter de “redução do sujeito à condição de coisa”. Essas características das relações,
lamentavelmente, transparecem no campo afetivo e familiar.
E o que esperar de famílias com esses referenciais, reforçados pelos meios de
comunicação, na educação de seus filhos? Qual a educação moral que desejamos?
99
Acerca da educação familiar, os alunos pesquisados externaram os ensinamentos que
recebem; e os responsáveis, o significado da educação e a forma de educar. Da observação
dos dados coletados nota-se os valores prevalentes na concepção das famílias pesquisadas.
A maioria das respostas dadas pelos alunos e por seus responsáveis foi convergente,
evidenciando que, apesar de haver deficiência na comunicação (dificultando o entendimento)
com os adolescentes, por parte da família, esta, de alguma forma, preocupa-se em transmitir
valores àqueles.
O aluno “A” respondeu que a família “aconselha”, demonstrando desconhecer o
significado da expressão “valores”, ao questionar “como assim, valores?” A mãe do aluno
entende que a função da educação é tornar uma pessoa de bem, sendo que educa o filho
aconselhando-o a ser honesto e a respeitar os demais.
O aluno “B” referiu que a mãe ensina-lhe “etiqueta” (“com licença”, “por favor”) e o
certo e o errado (contradizendo-se em relação à afirmação anterior de não ser educado por
ninguém). Convergiu com a concepção de sua mãe, para quem educar é “ensinar o que é certo
e errado” e que educa seu filho aconselhando-o a ser “educado, respeitador e honesto”.
Para o aluno “C”, a família ensina “a não roubar, não brigar, a estudar e a revidar
quando for agredido ou ofendido”. A mãe deste não soube apontar aspectos importantes na
educação, tampouco externou o significado desta, limitando-se a afirmar que “às vezes
conversa, mas ele é empacado quando decide alguma coisa”.
O aluno “D” afirmou receber os ensinamentos segundo os quais deve “respeitar, ser
companheiro e correto”. Resposta semelhante à de sua avó, para a qual educar significa “ver a
pessoa ser feliz. É ter estudo, conviver com pessoas de bem e ser querido por todos. É
respeitar os outros e não responder mal para as pessoas”. Aconselha o neto a ser honesto.
Quanto à forma de educar, utiliza o aconselhamento e o diálogo. E, revelando a distância
geracional entre ambos, “não acha que deve criá-lo como foi criada, pois o mundo está
100
mudado”.
Já, as manifestações do aluno “E” e seu pai são as que apresentam maior dissonância,
evidenciando o relacionamento familiar conturbado (marcado por mágoas e ressentimentos),
onde o diálogo é difícil ou praticamente inexistente. O aluno referiu nunca ter sido cuidado,
além de ser vítima de agressões físicas e humilhações por parte da família, freqüentemente.
Mencionou que, várias vezes, teve de vir para a escola, vestindo bermudas, sentindo-se
humilhado pelos colegas que notavam suas pernas marcadas pelas agressões perpetradas pelo
pai. Para o pai, educar é ensinar a respeitar. Quanto aos meios utilizados para educar, alegou
que aconselha, dá tudo o que os filhos precisam e admitiu provocar e bater no filho
entrevistado, assumindo que desfere contra este “laçaços, tapas (inclusive no rosto) e
empurrões”.
Na história de “E”, relevante mencionar que, apesar de residir na mesma cidade em
que sua mãe, após a separação dos pais, quando ainda criança, nunca mais teve contato com
ela (foi referido pelo pai que o filho a ignora). Foi criado pelo pai e pela madrasta, que não o
aceita e adota tratamento discriminatório em relação ao dispensado aos outros irmãos,
segundo registros do adolescente. Quanto ao pai, aparentou traços de autoritarismo,
agressividade e violência.
Fala-se cada vez mais em educação integral, mas, na prática, o que se verifica é uma
educação restrita ao acúmulo de aquisições intelectuais. Se a educação integral supõe cuidar
de todas as capacidades humanas, será necessário concedermos uma nova relevância à
educação moral.
Uma das propostas mais brilhantes e simples na busca da formação humana da criança
como ser capaz de ser co-criador com outros de um espaço de convivência social desejável é,
sem dúvida, a trazida por Maturana (10), na biologia do amor. No âmbito familiar, propõe o
acolhimento da criança como um ser legítimo em sua totalidade em cada instante e não como
101
uma passagem para a vida adulta.
Nessa perspectiva, considerando que a aceitação e o amor são indispensáveis para o
desenvolvimento do ser humano responsável e livre, espera-se dos educadores que, ao
imprimirem à convivência familiar um ambiente amoroso e não competitivo, corrijam o fazer
e não o ser das crianças, estimulando suas capacidades reflexivas e de ação, tornando-as
capazes de ver e corrigir seus erros; de cooperar e possuir um comportamento ético; “e capaz
de não serem arrastados para as drogas e o crime, porque não dependerão da opinião dos
outros não buscando a sua identidade em coisas fora de si” (MATURANA, 2000, p. 12).
Guiar-se nos atuais contextos sociais, em que coexistem diferentes modelos de vida,
exige um esforço pessoal de construção de critérios morais próprios, raciocinados, solidários e
não sujeitos a imposições. Caso contrário, será fácil imergir em uma existência desencantada
e desordenada, em face à ausência de princípios e normas pessoais que dêem sentido e
orientação à vida.
Em síntese, a melhor maneira de viver parece ser aquela em que o sujeito decide
voluntária e racionalmente como viver.
Observa-se hoje que os problemas mais significativos da humanidade exigem uma
solução além do técnico-científico, que perpassa por uma reorientação ética dos princípios. As
relações do homem consigo mesmo e com os demais povos, raças ou crenças; com seu
trabalho; seu ambiente natural e urbano, são todos problemas de orientação e de valor, que
exigem que a família e a escola conceda-lhes uma atenção prematura na educação de suas
crianças.
Busca-se, com a educação moral, conseguir que os jovens desenvolvam os tipos de
comportamentos coerentes com os princípios e normas que pessoalmente construíram e
adquiriram também as normas que a sociedade, de modo democrático e justo, oferece-lhe.
Essa educação busca o equilíbrio pessoal e coletivo.
102
Com base nessas reflexões, espera-se que as famílias recebam a base de apoio
necessária para que possam evoluir a um modelo de educação marcado pela autonomia e
independência de filhos responsáveis por si e pelo outro. Tendo sempre clara a reflexão de
Maturana (10), segundo a qual não se ensina valores, cooperação e respeito, se não vivenciá-
los.
Contudo, o que se observa constantemente são pais considerando-se incapazes de
educar seus filhos e reconhecendo sua impotência quanto ao estabelecimento de regras e
limites, fragilizando-se no exercício de sua autoridade e exigindo que o Estado substitua-os
nessa tarefa.
7.2.2 A Crise de Autoridade da Família e a Distorção Interpretativa do ECA
Todos os familiares de alunos entrevistados afirmaram exercer sua autoridade
conversando e aconselhando os adolescentes. O pai de “E” assumiu que bate no filho
(“laçaços, tapas, inclusive no rosto, e empurrões”).
Observou-se, contudo, nos diálogos, que todos os demais familiares responsáveis
acabaram admitindo já terem batido nos filhos (ou no neto, no caso de “D”), quando crianças,
em algumas oportunidades. Provavelmente não tenham admitido claramente perante a
entrevistadora, por receio de estarem praticando ilegalidade ao baterem nos filhos.
Duas opiniões diferentes serão transcritas, demonstrando a desesperança da mãe de
“C” e o otimismo da avó de “D” (senhora analfabeta).
Mãe do aluno “C” – “Desisti de falar o que está errado, deixo por isso mesmo e choro,
pois não adianta. O padrasto do guri me desautoriza, dando ordens diferentes das minhas. Se
pudesse, iria para bem longe dos dois”.
Avó do aluno “D” – “Não bato. Conversar é melhor. Antigamente os pais faziam o
103
que queriam com os filhos, mas hoje a lei proíbe os maus tratos, graças a Deus”.
Das punições aplicadas, o castigo foi a mais citada por todos os responsáveis
entrevistados. A mãe de “C” referiu pôr o filho de castigo, mas que logo desiste e o pai de “E”
afirmou punir o filho também com agressões físicas e privando-o de alguns bens de que gosta.
Dado alarmante exsurge da observação das manifestações dos responsáveis, a
desnudar a crise de autoridade vivenciada (e sofrida) pelas famílias, atualmente. Com
exceção da avó de “D”, que não admite ter problemas para impor sua autoridade ao neto
(apesar deste apresentar, na escola, atitudes que denotam ausência de limites, que deveriam
ser estabelecidos em casa), todos os demais familiares afirmaram não conseguir (responsáveis
por “B”, “C” e “E”) ou sentir dificuldade (mãe de “A”, que referiu, ainda, a ausência paterna)
em exercer a autoridade.
Observou-se que apenas o adolescente ”E” possui a figura paterna bem definida, em
que pese manter com este relacionamento conturbado e buscar a negação de qualquer
identificação com o pai (contudo, não mantém nenhum contato com a mãe, ausente desde a
separação dos pais). As histórias de vida dos demais adolescentes são marcadas pela ausência
paterna. No caso de “B” (não reconhecido pelo pai) e de “C” (sem contato com o pai desde os
5 anos de idade) há a presença dos padrastos, mas em ambas as situações, os adolescentes
foram abrigados em instituição municipal em decorrência de violência (agressões e ameaças
de morte) perpetrada pelos respectivos companheiros de suas mães.
Quanto ao aluno “A”, confirmando a informação da mãe, o pai reside em outro
Estado, é caminhoneiro, viaja muito, já constituiu outra família, passa anos sem contato com o
filho e alega não poder assumir a responsabilidade em relação a este.
Por fim, quanto ao adolescente “D”, a mãe e o pai não assumiram o filho, que é criado
pela avó.
A fim de observar-se a noção dos responsáveis entrevistados sobre o ECA e
104
verificar-se se associam a crise de autoridade que experimentam à lei e às instituições, foram
questionados, manifestando suas opiniões, que serão analisadas.
Os responsáveis por “A”, “B” e “E” não conhecem ou nunca ouviram falar no Estatuto
da Criança e do Adolescente. A mãe de “C” já ouviu falar, mas nunca leu. Sabe que é “um
papel que prevê ordens e direitos”. E a avó de “D” já ouviu falar, “mas não lembra o que é,
pois é muito esquecida”.
Apesar de a mãe de “B” não conhecer a lei, relaciona “um pouco” a esta sua crise de
autoridade. E, quanto ao pai de “E”, que “nunca ouviu falar” no Estatuto da Criança e do
Adolescente, também relaciona a crise de autoridade à lei, afirmando que “a lei só protege,
deixa o adolescente fazer o que quer”.
Quanto aos responsáveis de “A” e “D”, consideram que a crise de autoridade
relaciona-se à legislação; e a mãe de “C”, não soube responder.
Os responsáveis foram questionados, ainda, sobre sua concepção acerca do Conselho
Tutelar e do Ministério Público. Todos referiram já terem mantido contato com ambos os
órgãos, em razão de problemas envolvendo os alunos entrevistados.
Observou-se que, apesar de terem contato com o Conselho Tutelar e o Ministério
Público, não compreendem as atribuições de cada um dos órgãos.
As mães de “A” e “B” informaram ter contato freqüente com o Conselho Tutelar e o
Ministério Público, em virtude dos problemas apresentados pelos filhos, recebendo apoio e
orientação.
A mãe de “C” narrou que o contato ocorreu quando seu filho foi abrigado na “Casa de
Passagem”, após desentender-se com o padrasto. Não considerou uma boa experiência.
A avó de “D” afirmou ter ido ao Ministério Público uma vez com o neto, “que se
envolveu em más companhias, mas que acabou tudo bem, já que o neto foi inocentado, pois
não tinha culpa”.
105
A concepção do pai de “E” é a de que “só servem para dar razão aos menores e
desautorizar os pais”.
Etmologicamente, a palavra autoridade não significa “mandar”, mas “ajudar a
crescer”. A autoridade na família deveria servir para ajudar os membros mais jovens a
crescerem, configurando de modo afetuoso o “princípio da realidade”. Esse princípio,
segundo Savater (12), implica na capacidade de restringir as próprias vontades tendo em vista
as dos outros e adiar ou moderar a satisfação de alguns prazeres imediatos.
Naturalmente, as crianças carecem de maturidade para compreender a sensatez
racional desse procedimento, e por isso é preciso ensiná-lo a elas.
Se os pais não auxiliam os filhos, com sua autoridade amorosa, a crescer, as
instituições públicas ver-se-ão obrigadas a impor-lhes o princípio da realidade quase sempre,
não com afeto, mas à força. Assim não se conseguem crianças que serão cidadãos adultos
livres.
O modelo de autoridade na família tradicional foi o pai, uma figura cuja dimensão
temível e ameaçadora, embora pudesse ser também afetuosa e justa, propiciou excessos com
influência aniquiladora. E no atual eclipse geral da família como unidade educacional, a
figura do pai é a mais eclipsada de todas: o papel mais questionado e menos grato, o triste
encarregado de administrar a frustração.
A atenuação ou abolição da figura paterna traz algumas dificuldades de identificação
positiva para os jovens, que vários estudiosos relacionam diretamente à delinqüência juvenil e
a perda destrutiva de modelos de auto-estima.
Savater (12) defende que talvez o desafio seja propor e assumir um tipo de pai com
autoridade masculina e com a terna solicitude doméstica, próxima e abnegada, que
secularmente caracterizou o papel familiar da mãe. Um pai que não renuncie a ser pai, mas
106
que, simultaneamente, saiba se maternizar, para evitar os abusos castradores patriarcais do
sistema tradicional.
Observa-se, ainda, outro fator atual que reforça a desresponsabilização familiar: a
interpretação distorcida e equivocada da legislação brasileira, protetiva da infância e da
juventude. E o alvo de maiores críticas da população, talvez por ignorância no sentido de
desconhecimento do texto legal, é o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Integra o senso comum, traduzido no discurso da sociedade brasileira, que o referido
Estatuto é sinônimo de desautorização familiar, de “quebra das relações de autoridade com a
família e a escola”, de “porta aberta à impunidade”, afinal “os ‘menores’ não podem ser
responsabilizados por seus atos”!
E aqui atenta-se para a obrigação dos profissionais que atuam, tanto na proteção
quanto na sócio-educação infanto-juvenil, de difundir informações precisas sobre a proposta
da legislação nacional, de universalização dos direitos fundamentais, alcançando a todas as
crianças e adolescentes brasileiros.
Urge, ainda, os profissionais e instituições de apoio auxiliem a família a desenvolver
modelos de educação marcados pela construção da autonomia e independência de seus filhos.
Consoante o professor americano de desenvolvimento infantil, David Elkind37, “o
contrato de liberdade e responsabilidade é fundamental em todo cuidado paterno/materno. Os
pais, reconhecendo o desamparo inicial dos bebês, esperam que, quando as crianças
crescerem, tornem-se progressivamente capazes de assumir a responsabilidade de seus
próprios comportamentos. Mas os pais devem controlar com sensibilidade o nível de
desenvolvimento intelectual, social e emocional do filho para poder lhe proporcionar as
liberdades e oportunidades adequadas para o exercício da responsabilidade.
37 ELKIND, David. Sem tempo para ser criança: a infância estressada. Trad. Magda França Lopes. 3. ed. Porto Alegre: ARTMED, 2004, pág. 172.
107
Consequentemente, à medida que a criança amadurece, o contrato de liberdade e
responsabilidade vai sendo várias vezes reescrito. Na verdade, os pais e filhos constroem e
reconstroem suas realidades coletivas. Quando isso não é feito, pode ocorrer um dano
interpessoal significativo. Mas quando há uma correspondência estreita entre as expectativas
dos pais e o desempenho da criança, e entre as expectativas da criança e o desempenho dos
pais, há relativamente pouco estresse nas interações familiares. As violações contratuais, e daí
o estresse, ocorrem quando os pais não recompensam a responsabilidade com liberdade ou
quando as crianças exigem liberdade sem demonstrar responsabilidade.”
Acerca do tema, ensina-nos Paulo Freire (26) que a liberdade amadurece no confronto
com outras liberdades, na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, professores e
do Estado.
Nesse sentido é indispensável que os pais tomem parte das discussões com os filhos
em torno do amanhã. Não podem omitir-se, contudo, precisam assumir que o futuro é de seus
filhos e não seu. É preferível reforçar o direito à liberdade de os filhos decidirem, mesmo
correndo o risco de não aceitar, a seguir, a decisão dos pais. É decidindo que se aprende a
decidir.
Por outro lado, faz parte do aprendizado da decisão a assunção das conseqüências do
ato de decidir. A decisão é um processo responsável. Em razão disso, uma das tarefas
pedagógicas dos pais é deixar óbvio aos filhos que se trata de dever paterno a sua participação
no processo de tomada de decisão deles, e não uma intromissão, desde que não decidam pelos
filhos. A participação dos pais deve dar-se, sobretudo na análise, com os filhos, das
conseqüências possíveis da decisão a ser eleita.
7.2.3 Reflexão em torno da tarefa educativa: as crises de identidade e de autoridade da escola
108
7.2.3.1 A Função da Educação
Consoante Enguita (25), no século XX, a intensificação das mudanças sociais, que
esteve na base da universalização da escola e da “época dourada” do magistério, converte-se
no detonador daquela e na desorganização deste. Isso significa necessidade de reestruturação
da aprendizagem, chamando a atenção para a responsabilidade do corpo docente de assegurar
a cada aluno a oportunidade de aprender a aprender.
Mas seria absurdo pensar que todos serão obrigados a aprender durante toda a vida...
menos o professor. Segundo Enguita (25), como todo grupo profissional, o dos professores se
vê diante da necessidade de adaptação permanente, mas, diferentemente da maioria deles,
pode encastelar-se no saber e no saber-fazer inicialmente adquiridos, nos métodos de sempre.
Também pode procurar acompanhar o ritmo da mudança, pode, inclusive, antecipar-se a ela,
no sentido de prevê-la e tirar desta o melhor proveito. Mas é comum o professor prometéico
(referência ao personagem mitológico Prometeu = “aquele que pensa antes”), que olha para
frente, chocar-se de imediato com o seu colega epimetéico (de Epimeteu = “aquele que pensa
depois”), o que só olha para trás, seja em forma de reação hostil, de falta de apoio ou de
simples indiferença, e tanto por parte de seus colegas como indivíduos quanto da escola como
instituição ou da administração educacional como autoridade. Na presente pesquisa,
reclamações de “professores prometéicos” surgiram nesse sentido, alegando sentirem-se
isolados na escola em face à resistência, por ora exercida pelo restante da comunidade escolar,
ou à indiferença desta.
Essa perda de referência com relação às funções necessárias é também uma perda do
status do professor. Enquanto sua formação atual é praticamente a mesma que há um século, o
nível geral do público elevou-se e a dissonância daí decorrente reflete-se diretamente nas
crises de identidade e de autoridade da escola.
109
O biólogo Maturana (10), ao lançar sua proposta reflexiva e de ação em torno da tarefa
educativa, assegura que “a tarefa da educação é formar seres humanos para o presente, para
qualquer presente, seres nos quais qualquer ser humano possa confiar e respeitar, seres
capazes de pensar o todo e de fazer tudo o que é preciso como um ato responsável a partir de
sua consciência social” (2000, p. 10).
A tarefa da educação escolar, como um espaço de convivência, consiste em permitir e
facilitar o crescimento das crianças como seres humanos que respeitam a si e os outros com
consciência social e ecológica, de modo que possam atuar com responsabilidade e liberdade
na comunidade a que pertencem. E a responsabilidade e a liberdade, segundo Maturana (10),
só são possíveis a partir do respeito por si, que permite escolher voluntariamente e “não
movido por pressões externas” (2000, p. 13).
Na educação escolar, Maturana propõe a aplicação da “biologia do amor”, que
consiste em que o professor aceite a legitimidade de seus alunos como seres válidos no
presente, corrigindo apenas o seu fazer e não o seu ser. Pois, o respeito pelo outro ou a
conduta amorosa para com ele só ocorre se for visto e aceito. E, para que isso seja possível,
propõe que o professor tenha capacitação suficientemente ampla para tratar a temática que
ensina, e atue com o prazer que essa liberdade criativa traz consigo. Ainda, a implementação
no ensino da biologia do amor exige que se dê maior atenção à formação humana dos
professores. Por essa razão é necessário maior comprometimento do Estado na conservação
da dignidade dos professores, ofertando condições para que guardem o respeito por si mesmos
e sua autonomia criativa.
Os professores que participaram da pesquisa foram instados a refletirem acerca da
tarefa educativa e os resultados denunciam a distância entre a educação que temos e a
educação proposta como ideal pelos pensadores. Três (1, 2 e 4) dos quatro professores
entrevistados consideram que a função primordial da educação deveria ser formar para a
110
vida. Contudo, admitem que a escola esteja falhando, pois não está preparando nem para o
futuro profissional (para o PEIS ou vestibular), tampouco para a vida. Concluem, ao constatar
que apesar de a escola hoje ter liberdade de oferecer currículo próximo à realidade do aluno
(professor 1), conta com o grande desafio de conciliar interesses diferentes dos alunos e
tornar-se atrativa, exigindo que o professor estimule a criatividade, empreste sentido e
utilidade ao conhecimento e saiba por que está na escola (professores 2 e 4).
Já a concepção de educação escolar para o professor 3 é restrita, consoante observa-se
da transcrição abaixo:
Professor 3: “passar conhecimento e não dar educação. Até porque se os alunos não
aceitam os limites dos pais, por que aceitariam da professora? Se os pais não dão educação,
por que o professor vai dar?”
O educador Paulo Freire (26), (1996, p. 22), ao afirmar que ensinar não é transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção, induz-nos
a conclusão de que se nos colocamos na posição de objeto, formados pelos docentes, somos
meros pacientes que recebem os conhecimentos e conteúdos acumulados pelo sujeito que sabe
e que são a nós transferidos. Referido autor ainda demonstra sua perseverança nos seres
humanos e na educação autêntica como o caminho necessário para a justiça e a paz.
Assegura, ainda, que é no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura,
da opção, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade. A ética torna-
se inevitável e sua transgressão possível é um desvalor, jamais uma virtude.
Nesse intento, é indispensável seja preservada a infância de modo que a pessoa em
crescimento, numa relação de confiança e aceitação com o educador, conserve o respeito por
si mesmo e pelo outro (aceitação sem exigir justificação da própria legitimidade e da
legitimidade do outro), em um domínio social de cooperação, cuidado e respeito mútuo.
111
Paulo Freire (26), (1996, p.77) elenca capacidades mínimas necessárias à prática
educativa de qualidade. Dentre elas, refere que o educador democrático deve reforçar a
capacidade crítica do educando, sua curiosidade e insubmissão; deve investir em sua
formação permanente, assumindo-se como pesquisador; deve respeitar os saberes dos
educandos; agir com ética e corporificar as palavras pelo exemplo; rejeitar qualquer forma de
discriminação; arriscar; aceitar o novo; e, sobretudo, estar convicto de que a mudança é
possível.
7.2.3.2 A Crise de Identidade
No entanto, o que se verificou com a presente pesquisa foi a dificuldade de os
professores desenvolverem as capacidades acima elencada a fim de elevarem-se a verdadeiros
educadores. Consiste em entendimento unânime entre os professores entrevistados que a
escola passa, atualmente, por uma crise de identidade, diante da dificuldade em assumir
novas responsabilidades (muitas decorrentes da omissão familiar) e acompanhar
mudanças.
Professor 1 – “A escola passa por uma crise. Ao assumir o papel da família (inclusive
afetivo), enfraqueceu o conhecimento. Não consegue acompanhar as mudanças no mesmo
ritmo. O Estado não investe na qualificação de professores e, muitas vezes, não há interesse
destes”.
Professor 2 – “A maioria dos professores sente dificuldade em acompanhar as
mudanças, pois estão sendo delegadas muitas funções que fogem da alçada da escola. A
família é ausente e a escola desenvolve trabalho restrito à educação formal, e não consegue
atender à defasagem, até porque os professores não estão preparados”.
112
Professor 4 – “A sociedade exige muitas responsabilidades da escola, desonerando a
família. Precisa trabalhar em quatro horas os conteúdos e a educação que caberia à família.
Ainda, os professores estão despreparados para enfrentar a inclusão dos alunos com
necessidades especiais”.
A concepção do professor 3 destoa das demais quanto à função da escola, mas
converge ao apontar a crise de identidade experimentada por esta.
Professor 3 – “Vejo a escola totalmente perdida, pois, do meu ponto de vista, a escola
tem que passar conhecimento e não dar educação, dar limites. Isso quem deve fazer é a
família”.
Segundo as diferentes percepções dos atores da comunidade escolar sobre o papel da
escola, os alunos apresentam significados contraditórios. Por um lado, a escola é considerada
como um espaço para a aprendizagem, como caminho para a inserção positiva no mercado de
trabalho e na sociedade, por outro, considerada como local de exclusão social, onde são
reproduzidas situações de violência e discriminação. Apesar disso, os estudantes pesquisados
apresentam uma visão positiva sobre a escola, o estudo e o ensino.
Sobre a utilidade das coisas que a escola ensina, surpreendentemente, nenhum dos
alunos pesquisados classifica-as como inúteis, pois todos consideram esses ensinamentos úteis
e necessários para o futuro. Esboçam percepção quanto ao valor e a função da educação ao
refletirem em seus depoimentos almejarem “uma vida melhor”, pois acreditam que o estudo
“desenvolve a inteligência” e oportuniza a segurança pessoal no futuro, favorecendo a
“independência financeira”.
Contudo, a maioria dos alunos entrevistados referiu não gostar das aulas, ficando
implícita a informação que apesar de considerarem útil o ensino, não gostam das aulas. Esse
dado relevante oportuniza a reflexão sobre a forma como estão sendo explorados os conteúdos
em aula.
113
Em que pese a interdisciplinaridade esteja prevista no regimento da escola, os
professores entrevistados sinalizam que se trata de exceção na forma de trabalhar os
conteúdos. Referem ser trabalhada quando há projetos e temas que propiciam a relação entre
as disciplinas. Mencionam que na EJA (Educação de Jovens e Adultos) a construção do
conhecimento de forma interdisciplinar é melhor trabalhada.
Foi referido pelo professor 2 que as dificuldades enfrentadas pelos educadores para
trabalhar a interdisciplinaridade tendem a diminuir com a capacitação destes. Mencionam que
o percentual de 20 a 30% dos professores da escola pós-graduaram-se, recentemente, em
pedagogia, propiciando que a escola, ainda de forma incipiente, avance para a educação
global.
Edgar Morin (23), (2003, p. 33), ao relacionar as conseqüências da fragmentação do
conhecimento na formação humana, constata que “temos um pensamento que separa muito
bem, mas que reúne muito mal”. Significa que a desunião, a dispersão e a desagregação atuam
com mais presença do que qualquer relação que estabelece vínculos, dificultando a prática da
ética da solidariedade.
O mesmo autor, no texto “Notas a uma Emílio Contemporâneo”, ao refletir sobre
educação e cidadania, manifesta suas preocupações com relação a hiperespecialização na
educação. Atribui a este fenômeno a fragmentação do conhecimento, que nos levou a
apreender os problemas isoladamente, sem perceber as relações existentes com um contexto
maior, excluindo-nos da relação global-local. Aponta a necessidade de uma reforma do
pensamento que propicie nova atitude: a alteridade epistemológica, que implica em abertura e
diálogo com vários campos do conhecimento.
Segundo Morin (2003, p. 38):
Os setores especializados do saber são compartimentados e fecham-se todos em um domínio, muitas vezes delimitados de maneira artificial, ao passo que deveriam estar unidos em um tronco comum e se comunicar entre si. Mais profundamente, nosso
114
sistema educacional ensinou-nos a isolar os objetos, separar os problemas, analisar, mas não a juntar. Nós devemos pensar o ensino com base na consideração dos efeitos cada vez mais graves da hiperespecialização dos saberes e da incapacidade para articula-los uns com os outros. A hiperespecialização impede que se veja o global (que ela fragmenta em parcelas), assim como o essencial (que ela dissolve). Ora, os problemas essenciais nunca são parciais e os problemas globais são cada vez mais essenciais. Além disso, nenhum problema particular pode ser formulado e pensado corretamente fora de seu contexto, e seu próprio contexto deve ser inserido mais e mais no contexto planetário global. Vimos, particularmente no decorrer dos dez últimos anos, que todos os grandes problemas tornaram-se planetários: para pensar localmente é preciso também pensar globalmente.
Pelo pensamento sistêmico ou complexidade proposto por Morin, o todo é mais do que
a soma das partes.
Morin propõe a inscrição desses princípios básicos já na escola primária, pois entende
que a verdadeira reforma do entendimento – a do pensamento – deve começar no nível
elementar de ensino. As crianças põem em prática, espontaneamente, suas aptidões sintéticas
e analíticas, sentem espontaneamente as ligações e as solidariedades. Nós, adultos, é que
produzimos modos de separação e ensinamos a construir entidades separadas.
Mister que as crianças sejam educadas a fim de que mantenham a percepção de que os
objetos devem ser conhecidos, não isoladamente, mas integrados em seu ambiente. Assim, um
ser vivo pode ser conhecido somente em relação com o seu meio, de onde extrai energia e
organização. Ao esquecermos os vínculos causamos danos inestimáveis a apreensão do
conhecimento, tornando o ensino enfadonho e a escola cada vez menos atrativa.
A proposta de Morin (23) consiste em levar a buscar o ponto de partida do ensino,
elaborando para o ensino fundamental um programa interrogativo. Interrogar o homem,
descobrir sua tripla natureza, biológica, psicológica (individual) e social. Interrogar a
biologia, descobrir que todos os seres vivos são da mesma matéria que os outros corpos
psicoquímicos e que diferem deles apenas por sua organização. Então, a física, a química e a
biologia podem ser matérias distintas, mas não isoladas.
115
O programa sugerido, segundo Morin (23), é fácil de formular, mas encontra a
seguinte dificuldade: “Quem educará os educadores?” Esse paradoxo está ligado a um outro:
para reformar os espíritos é preciso reformar as instituições, mas para reformar as instituições
é preciso reformar os espíritos. Referido autor atribui ao pensamento sistêmico a
responsabilidade de criar a mudança do estado de espírito
A via que se abre para a solução desses paradoxos é, portanto, que os espíritos
reformadores possam beneficiar instituições piloto e ensinar s futuros mestres, buscando-se o
resgate da laicidade, de forma que os professores reencontrem o sentido de sua missão.
O aperfeiçoamento de professores, por suas instituições, passaria pela iniciação em
novos tipos de ciências, como a ecologia, cosmologia e ciências da terra. E um dos saberes
indispensáveis à prática educativa crítica e integradora é a forma de lidar com a relação
autoridade-liberdade, sempre tensa, e que reflete na disciplina ou indisciplina.
7.2.3.3 A Tensão Entre Autoridade e Liberdade
Como os maiores problemas da escola são apontados pelos professores entrevistados
nessa ordem de importância: alunos desinteressados e indisciplinados; pais desinteressados e
carências materiais e humanas (falta de espaço, professores insuficientes e falta de livros e
equipamentos). Em semelhante sentido os problemas detectados pelos alunos são alunos
desinteressados e indisciplinados e professores ruins (incompetentes).
Assim, foi detectado que a indisciplina dos alunos é um problema para a escola.
Os membros do corpo pedagógico afirmaram que o maior problema da escola é a
indisciplina, falta de respeito, falta de responsabilidade, falta de educação, “pois os alunos
vêm de casa totalmente deseducados”. Apontam, dessa forma, para a família como a
responsável pela indisciplina, por não estabelecer limites.
116
Por outro lado, os responsáveis entrevistados julgam que a indisciplina resulta do fato
de ser a “escola enfadonha, em que os professores não estão interessados em dar aula, querem
mais é se livrar das aulas”.
Já, os pais desinteressados surgem como a segunda indicação dos mais graves
problemas da escola, pelos membros do corpo pedagógico.
A família, ainda que timidamente, reconhece seu desinteresse pelos estudos e pela
relação com a instituição escolar, normalmente, alegando falta de tempo (4 dos cinco
entrevistados) ou desânimo, pois “ não adianta” (a mãe de “c”).
O professor 3 também elege como causa o comportamento familiar: ”os pais dão
muita razão para os filhos, desautorizando o professor e reforçando sua crise de autoridade”.
Atribui o enfraquecimento da autoridade também a pouca cobrança nas avaliações e notas
pela escola: “são dadas muitas chances e, se o aluno fracassa, a culpa é do professor. E isso
faz decair sua autoridade”.
A questão referente à omissão familiar será desenvolvida no próximo item (número 5),
passando-se, de imediato à análise de um dos mais graves e freqüentes problemas da escola: a
crise de autoridade do professor.
Variam as causas apontadas pelos professores como fundantes dessa crise, mas todos
os entrevistados admitem a ocorrência do fenômeno do enfraquecimento do educador, na
escola atual.
Dois professores (1 e 2) relacionam o abalo da autoridade à (in)competência do
educador.
Professor 2 – “O professor que respeita o aluno e tem conhecimento, não tem
problemas para se impor. Se tem preparo, motiva os alunos para uma educação para a vida,
com significado, e dificilmente será desrespeitado”.
Professor 1 – “A escola já esteve mais perdida. Há confusão entre autoridade e
117
autoritarismo. O bom professor, que conhece o seu papel, não tem problema com a
indisciplina. A questão da autoridade está ligada a da competência. É necessário estabelecer
regras e normas”.
Já o professor 4 atribui a crise de autoridade à desvalorização do professor (em face
dos baixos salários e a própria postura destes em não se valorizar como profissional) e à
omissão familiar, sendo que a família, além de não exigir responsabilidade do aluno, em
algumas ocasiões, desautoriza o professor.
É importante termos em mente que a liberdade não significa ausência de
condicionamentos, mas a conquista gradativa e constante de autonomia e responsabilidade.
Nesses termos, nem mesmo Rousseau pensava de modo diverso.
Nessa concepção educar não é fabricar adultos segundo um modelo, mas sim estimular
a liberdade em cada educando do que o impede de ser ele mesmo, permitindo com que se
realize. Mas nenhum processo educacional é possível sem disciplina. Consoante Savater (12),
neste ponto há coincidência entre a experiência dos primitivos ou antigos, modernos ou
contemporâneos.
Segundo o mencionado autor, a própria etimologia latina da palavra (discis = ensinar e
pueripuella = crianças) vincula a disciplina ao ensino: trata-se da exigência que obriga o
neófito a manter-se atento ao saber que lhe é proposto e a cumprir os exercícios que o
aprendizado requer. A autoridade (que não se confunde com autoritarismo) sobre as crianças
deve ser exercida pela família e pela escola, de modo contínuo. A autoridade dos adultos se
propõe às crianças como colaboração necessária a estas.
Citada por Savater (12), Hannah Arendt (A Crise da Educação, em Between Past and
Future, Viking Press, Nova York, 1968, p. 128), em seu ensaio polêmico sobre a crise
contemporânea da educação, disse:
118
As crianças não podem rechaçar a autoridade dos educadores como se fossem oprimidos pela maioria composta de adultos, embora os métodos modernos de educação tenham tentado, de fato, pôr em prática o absurdo de tratar as crianças como uma minoria oprimida que têm a necessidade de se libertar. A autoridade foi abolida pelos adultos, e isso só pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo em que puseram seus filhos.
Assim, seriam os adultos que induzem as crianças a revelarem-se, com a intenção de
desvenciliarem-se da tarefa de oferecer-lhes o apoio sólido, afetivo, mas firme, paciente e
constante, que as auxiliará a crescer adequadamente no sentido da liberdade.
Implica no problema da demissão familiar, sobretudo paterna, no encaminhamento
gradual do crescimento da criança.
A fim de não exigirmos da escola além do que ela pode nos oferecer, é importante a
constatação de que nem tudo pode ser resolvido na escola ou compensado com o bom
desempenho dos professores. A escola não pode atuar à margem do entorno social e familiar
da criança e muito menos contra ele, como um corretivo externo que duplique seu empenho,
quando os outros desistam de exercê-lo.
Um aspecto que não pode permanecer à margem da discussão é a atual tendência dos
educadores brasileiros de responsabilizarem a legislação protetiva à infância e à juventude,
em nosso país, especialmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, pela sua falta de
autoridade perante os alunos. Equivocadamente, talvez mais por ignorância do que por má-fé,
desvirtuam a interpretação legal, lançando o mito de que o Estatuto (resultado de conquistas
inéditas em relação a defesa dos direitos infanto-juvenis no Brasil) significa a “porta aberta a
impunidade” e contempla “regra de rompimento das relações de autoridade na família e na
escola”.
Consoante apurado nas entrevistas realizadas com os professores pesquisados, a
maioria dos educadores guarda a concepção de que o Estatuto da Criança e do Adolescente
limita e restringe sua atuação, representando um entrave às relações de autoridade.
119
Considera o professor 3 que o ECA limita e restringe a atuação do professor, não
colaborando com nada.
Para o professor 4, a maioria dos professores, por desconhecimentos, vê o ECA como
fator limitador, pois os alunos conhecem bem seus deveres. Mas devem ser esclarecidos e
lembrados de seus deveres.
O interessante no cruzamento dos dados da pesquisa é que, curiosamente e
contrariando a afirmação do professor 4, a maioria dos alunos entrevistados (quatro) afirmou
não conhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente (A, C, D e E) e, também quatro (A, B, D
e E) alegaram não saber para que serve o Ministério Público.
No mesmo sentido, a afirmação do professor 2: “O ECA ainda não foi bem
compreendido pelos professores, que consideram que não serve para nada, que atrapalha, pois
dá muita chance ao adolescente. De fato, representou um limite para algumas ações mais
punitivas que, às vezes, os professores querem aplicar”.
O professor 1 mencionou considerar o ECA um grande aliado. É oportuno esclarecer
que esta professora é membro atuante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, há vários anos.
Observou-se a necessidade de ser intensificado, junto à comunidade escolar, o trabalho
de esclarecimento e desmitificação do Estatuto da Criança e do Adolescente e das funções das
instituições responsáveis pela fiscalização de sua aplicação.
A infância e a adolescência estão cada vez mais freqüentemente imersas na prática da
violência: sofrendo-a e/ou exercendo-a. Nesse panorama, a função humanizadora da educação
está premente.
A solução passa por uma postura equilibrada e sensata do educador, que não utilize
métodos de disciplina militar ou carcerária, mas que proponha limites claros. E a sensatez do
educador verifica-se, sobretudo, na habilidade de conciliar magistério e autoridade. Essa
120
conciliação inclui a difícil prática de educar, fazendo-se respeitar, mas que introduza como
lição necessária, o cultivo da espontaneidade e da dissidência arrozoada como via de
amadurecimento intelectual.
O educador deve ser capaz de seduzir sem hipnotizar. É hora de recordar que a
pedagogia, além de ciência, é arte, que admite conselhos e técnicas, mas que seu domínio se
faz pelo próprio exercício diário, que tanto deve, nos casos mais felizes, à intuição.
Assim, resultando da harmonia ou do equilíbrio entre autoridade e liberdade, a
disciplina implica necessariamente o respeito mútuo, expresso na assunção da observância de
limites que não podem ser transgredidos.
Ensina Freire (26) que somente nas práticas em que autoridade e liberdade afirmam-se
e preservam-se no respeito mútuo é que se pode falar de práticas disciplinadas ou favoráveis à
vocação do ser mais.
A autonomia, enquanto amadurecimento do ser, não ocorre em data marcada. E, nesse
sentido, uma pedagogia da autonomia, proposta pelo educador Paulo Freire, deve centrar-se
em experiências estimuladoras, ao longo da vida, da decisão e da responsabilidade, que
respeitem a liberdade.
Por fim, registre-se que as crises de identidade e de autoridade vivenciadas pela escola
são traduzidas pelos modelos pedagógicos inadequados e ineficazes utilizados para responder
aos problemas, dentre eles a violência escolar. Assim, a escola desenvolve sentimento de
incapacidade e impotência e acaba, por insegurança, isolando-se dos demais atores sociais que
poderiam contribuir positivamente.
Ao transformar-se em espaço não mais imune a influências externas, a escola,
correlatamente, deixou de ter exclusividade no trato das questões relativas ao processo
educativo, já que novos agentes sociais passaram a integrar o seu quotidiano, conforme
121
exploraremos no item 5 da discussão dos resultados. Contudo, ainda apresenta resistência em
reconhecer sua incompletude e abrir-se à mudança do modelo pedagógico.
7.2.4 Alunos, família e escola: encontros e desencontros
Nesse item, buscou-se observar a qualidade dos relacionamentos envolvendo os
sujeitos da comunidade escolar.
7.2.4.1 Relacionamento Escola/Alunos
A maioria dos alunos pesquisados, quando questionados sobre o que não lhes agrada
na escola, afirmou não gostar das aulas. Acerca da qualidade dos relacionamentos com os
colegas, com exceção do aluno “D”, todos os demais a classificaram como ruim.
Este último resultado chama a atenção na medida em que os alunos referem que não
gostam de relacionar-se com seus colegas, questionando a suposta percepção da escola como
um espaço de convívio social prazeroso entre os jovens pares. Ao mesmo tempo em que estes
jovens exibem certa desvinculação, isolamento e até mesmo estranhamento em relação aos
seus colegas de escola, eles constituem formas alternativas de agregação, como galeras,
grupos ou gangues, as quais não têm como critério de pertencimento a organização
institucional da classe de alunos ou da escola como tal.
Dado alarmante revelado pela pesquisa consiste na dificuldade externada pelos alunos
em conviver com seus colegas, professores e familiares. Isso induz ao questionamento acerca
da qualidade da educação que estamos proporcionando às nossas crianças e jovens, os quais,
ao não conseguirem conviver com as diferenças, demonstram atitudes marcadas pela
122
intolerância e pelo preconceito.
Consoante Pedro Demo (9) a sociologia pode afirmar que a sociedade humana mais
tolerável seria aquela em que a pluralidade dos conviventes pudesse conviver em relativa
harmonia e conflito, de maneira que o bem comum pudesse sempre prevalecer, ao final. Esse
seria o ideal de democracia.
Para o referido autor, a ética comparece como referência crucial no cenário da
convivência humana, pois a vida de um ser humano tem impacto inevitável na vida do outro,
de forma que nunca podemos alegar que o outro não nos diz respeito.
Considerando que, em termos de personalidade, os indivíduos são diferentes, a
convivência humana coloca uma questão ética, porque não se trata de convivência de iguais,
mas de diferentes. Assim, dizemos que a sociedade humana não é propriamente igual, mas
pode ser igualitária, no sentido de que as diferenças poderiam ser geridas e negociadas
segundo oportunidades em princípio iguais.
Um dos esteios da ética é a responsabilidade. Ao falarmos em autonomia,
costumamos perder de vista que o excesso de autonomia de um compromete a do outro, daí a
impossibilidade de autonomias absolutas. Ainda, mister termos em mente que o exercício da
liberdade penetra o exercício da liberdade do outro e, vice-versa, de maneira que será sempre
necessário negociar um tipo aceitável de convivência para ambas as partes.
Autonomia supõe, assim, as habilidades de impor-se, bem como de ceder. Como meu
comportamento impacta o comportamento do outro, sou responsável por isso. Não posso
alegar que nada tenho a ver.
Do que foi analisado até o momento, podemos concluir que ética não pode ser
imposta. Consoante prelecionava Sócrates, educar, aprender e conhecer são dinâmicas de
dentro para fora, que devem fazer parte da convicção própria. Pois formação ética exige
introspecção, trabalho de elaboração interna e, sobretudo, ir além do discurso retórico,
123
demonstrando-se pela prática convincente.
Diferentemente do moralista, que imagina vender ética, a característica inspiradora dos
comportamentos éticos é a não imposição, mas a conquista pela via da autoridade do
argumento. Convencer sem vencer, pois não há sentido em aderir à convivência sob
alienação, artimanha ou imposição. Por outro lado, deve integrar o comportamento ético de
pessoas que convivem saber ceder, pois quem não cede não respeita os demais.
E um exemplo disso foi o ataque dos fundamentalistas árabes aos Estados Unidos, em
11 de setembro de 2001, apresentando como resposta ofensiva ainda mais fundamentalista a
ação do Presidente do país atacado, George Bush.
Ainda, quando tudo é apenas resultado da socialização, temos marionetes, ou seres que
agem não por convicção. Como afirma Paulo Freire (26), educar é influenciar o aluno de tal
maneira que este não se deixe influenciar. Ética é conceber este tipo de influência que, ao
invés de subordinar o outro, liberta-o Por essa razão, trata-se de ética de cultivo, porque é
virtude que não se encontra em qualquer lugar, ainda que integre o equipamento
evolucionário e histórico.
Seres humanos precisam de orientação. E consiste em dever legal da família e da
escola a educação que trabalhe com as crianças a noção de fraternidade universal, capaz de
congregar a diversidade social e histórica infinita. O gesto de percebermos o outro como
concorrente deve ser substituído, sob a orientação de éticas multiculturais, pelas noções de
bem comum e de sociedades igualitárias, formadas por homens que sabem sentir e pensar, na
busca da convivência possível.
Ainda, se os jovens, além de não considerarem a escola um espaço privilegiado para a
convivência humana, manifestam não gostarem das aulas, evidenciando a dificuldade dos
professores em despertar o interesse dos alunos, de que maneira podemos exigir que
considerem o ambiente escolar atrativo.
124
7.2.4.2 Relacionamentos Difíceis Entre Alunos e Professores
Alunos e professores foram questionados, na presente pesquisa, acerca do tratamento
dispensado pela maioria destes últimos aos primeiros e as respostas foram divergentes.
Os alunos “B”, “C” e “E” afirmaram que a maioria dos professores não está
interessada nos alunos, briga e utiliza linguagem pesada com estes. Mencionando, ainda, que
alguns trazem problemas pessoais para a sala de aula e abusam do poder de autoridade.
Contudo, todos os quatro educadores entrevistados consideram que a maioria dos
professores adota a postura de orientação e diálogo e compreensão em relação aos alunos. Os
professores 1 e 4 admitiram, entretanto, que alguns educadores não estão interessados nos
alunos ou brigam, usando linguagem pesada.
Os alunos, por sua vez, afirmam reagir ao tratamento dos professores ficando
“bravos”, respondendo com agressão verbal, “batendo boca” e “não fazendo nada” em aula.
Na relação com os professores, os alunos entrevistados externaram os seguintes
sentimentos experimentados: humilhação, intimidação, desrespeito, violação da auto-estima e
receio de ser acusado injustamente de algo.
Os alunos criticam casos em que os professores praticam ações que se enquadram na
classificação de violência simbólica, em que o abuso de poder se vale de símbolos de
autoridade. Foi evidenciado que o excesso no exercício do poder pelo professor consolida
situação de constrangimento entre os atores envolvidos.
Os dados demonstram relações difíceis, em que professor e aluno não se entendem, e,
em algumas situações, que o primeiro leva problemas pessoais para a sala de aula e, em
outras, têm dificuldade de dialogar com os alunos, humilhando-os e ignorando seus
problemas. Ainda, há casos em que tratam mal os alunos, recorrem a agressões verbais e os
125
expõe ao ridículo quando estes não entendem algo ou quando não conseguem responder a
alguma pergunta.
Os jovens demonstram revolta e se consideram injustiçados quando, em nome de sua
autoridade, o educador os acusa sem provas.
Contudo, a situação do professor em sala de aula também não é confortável, pois, não
raras vezes, sentem-se desrespeitados e humilhados pelos alunos, sendo comuns os
xingamentos e insultos.
Existem poucas profissões nas quais a atividade realizada pelo profissional e o serviço
recebido pelo cliente mostrem-se tão coexistensivas, como na educação. Primeiro, porque o
tempo de aprendizagem do aluno é, sobretudo, o que passa com o professor, e o tempo de
trabalho deste, o que passa com os alunos, tanto mais quanto mais precoce for o ciclo de
aprendizagem considerado. Uma pessoa não passa esse tempo nem com o médico, nem com o
Juiz, nem com o Promotor, tampouco com a polícia, nem mesmo nesses tempos em que as
turbulências da vida conduzem a uma relação mais intensa e prolongada com eles.
Segundo, porque na relação educador-educando estão envolvidas todas as facetas do
educador. Por isso, é importante não apenas o que os professores aprenderam, mas que tipo de
pessoas são, qual seu modo de vida fora das salas de aula, de que meio cultural procedem, que
concepções do mundo acalentam. Terceiro, os professores constituem não a totalidade, mas o
essencial dos recursos da atividade escolar.
Quarto, e último, a relação professor/aluno baseia-se em permanente face a face entre
ambos, o que multiplica a importância de toda espécie de detalhes e incidentes e dos estados
de ânimo dos participantes. Há poucos lugares como a sala de aula em que se pode viver com
tanta proximidade com os outros e, para isso, surgem com força particular na convivência e
no conjunto de atividades próprias da instituição todas as peças que compõem a pessoa. Isso
126
se aplica a todos os presentes na sala de aula, incluindo o professor, mas, nesse caso, com
efeitos ampliados, já que se trata do participante com maior significação, influência e poder.
Por essas razões, considerando a exposição a que se encontra sujeito o professor,
inclusive na condição de exemplo ou modelo de conduta, espera-se que repensem seus
conceitos e modifiquem suas atitudes, visando a qualificação de seu relacionamento com os
alunos. Com isso, almeja-se que as relações difíceis relatadas pelos alunos entrevistados
(marcadas por ausência de diálogo, humilhações e ofensas) sejam cada vez menos freqüentes.
7.2.4.3 Relação Escola/Família
Segundo Enguita (25), o período de expansão da escolarização foi e ainda é
semelhante a conquista da América. Afirma que o encontro entre os dois mundos, que mais
pareceu um “encontrão”, também se aplica à escolarização: famílias carentes de educação em
vez de índios alheios à civilização, aldeias e bairros de absorção em vez de assentamentos,
professores em vez de missionários, escolas em vez de igrejas ou missões, a letra em vez da
cruz. As famílias, por um lado, não podiam resistir a essa invasão, e, por outro, não viam
porque fazê-lo, dado que também abria para seus filhos um mundo de oportunidades inéditas
e promissoras (2004, p. 46).
A generalização da escolaridade pôs a instituição em contato com uma infinidade de
famílias diferentes, percebidas por ambas as partes em um escalão abaixo daquela na escala
da cultura, da civilização, da modernidade e do progresso. Ao mesmo tempo, porém, a escola
pressupunha a família, contava com ela como base de apoio, embora os professores, em seu
âmbito de atuação, substituíssem com plenos direitos os pais.
Tudo isso mudou radicalmente. Do ponto de vista da escola, a família já não tem as
mesmas possibilidades e funcionalidades de antes. Isso supõe um deslocamento da família
para a escola, das funções de custódia e da socialização, em sua forma mais elementar. Por
127
outro lado, a família já não aceita com facilidade a posição de subordinação obsequiosa
perante os professores, gerando o seguinte problema: o de quem controla quem.
Ao analisar-se a relação entre as famílias dos alunos e a escola, observou-se que
consideram compartilhar com a escola a tarefa de educar, sendo que as expectativas daquelas
em torno da educação escolar restringem-se ao ensino formal (“aprender a estudar”), a fim de
que o jovem “tenha profissão e futuro”, “seja alguém na vida”, no sentido de ter trabalho e
poder aquisitivo que lhe proporcione aquisições materiais.
A escola, contudo, reclama que a família transfere-lhe muito mais do que o ensino
formal.
Familiares e professores entrevistados foram unânimes ao afirmar que a família
somente comparece na escola quando chamada. E quatro (“A”, “B”, “D” e “E”), dos cinco
responsáveis entrevistados, referiram preocupar-se com a violência escolar e afirmaram
conhecer a ficha disciplinar individual do aluno (foram chamados na escola para conhecê-la).
A omissão familiar é externada pelos educadores, que atribuem a causas diferentes,
conforme se observa das seguintes manifestações:
Professor 4 – A família interfere pouquíssimo. “Está deixando muito a desejar”. Há
pais que não comparecem na escola durante todo o ano, deixando tudo nas mãos desta.
Professor 3 – A família não se interessa pelos estudos dos filhos, não cobra. “Está
completamente perdida com a lei, que limita bastante”.
Professor 2 – A família é distante. Apontou problemas locais, como a baixa renda e as
reduzidas condições intelectuais dos pais dos alunos. Por via transversa, mesmo pais com
melhores condições financeiras, relegam para segundo plano o estudo dos filhos. Referiu
haver maior participação dos pais dos alunos até a 4ª série.
128
Seguindo essa mesma lógica, todos os professores pesquisados afirmaram que a
participação da comunidade escolar na elaboração da proposta pedagógica da escola é
mínima.
Consoante Abromavay e Rua (30) (2000, p. 171):
Este jogo de culpabilização entre pais e professores já foi constatado em outras pesquisas (Waiselfsz, 1998), nas quais o discurso gira em torno da privação cultural dos alunos, responsabilizando a família pela falta de atenção e convívio com os jovens, o que comprometeria o diálogo escola-família. As dificuldades dos alunos, portanto, são geralmente localizadas pelos membros do corpo técnico – pedagógico em um ambiente externo à escola, principalmente em seu ambiente familiar e cultural: olha, eu acho que a base de tudo é a família sabe (...) A família que orienta os filhos (...) aí na escola, é muito difícil [ encontrar] uma família onde a criança tem limites.
A família, ainda que timidamente, reconhece seu desinteresse pelos estudos e pela
relação com a instituição escolar, normalmente alegando falta de tempo (4 dos cinco
entrevistados) ou desânimo, pois “ não adianta” (a mãe de “C”).
Referiu o professor 4 – “É difícil trazer os pais para a escola. Teoricamente, os planos
de ensino deveriam ser voltados para a realidade local, mas é difícil”.
Para o professor 2, a participação reduzida da família (talvez 10%) muitas vezes
atribui-se à indisponibilidade de tempo. Referiu que os pais mais cultos, teoricamente com
mais saber, são os que menos vêm à escola. Não acompanham seus filhos.
Ainda que sejam freqüentes entre os professores as críticas à “transferência” de
responsabilidades por parte da família (querem ficar livres das crianças o maior tempo
possível; vêem na escola uma creche ou albergue; etc), não há nada de surpreendente nesse
processo. Conforme Enguita (25), trata-se de uma socialização da custódia análoga a de
qualquer outra atividade para a cobertura de nossas necessidades. As residências são cada vez
menos auto-suficientes e seria impensável as mulheres e homens saírem para a esfera pública
sem essa maneira coletiva de assumir a custódia dos filhos. Hoje, a escola complementa a
família, como fazia antes a pequena comunidade a sua volta.
129
É incompreensível que se lamente por esse deslocamento de funções de custódia das
crianças para a escola. Se os pais tivessem mais tempo para estar com seus filhos a todo
momento, talvez se fizessem presentes na escola com maior freqüência. Em algumas
situações, observa-se a intenção da escola em não assumir nem suas funções básicas e
demonstrar incompreensão quanto aos compromissos (normalmente profissionais) assumidos
pelos responsáveis pelos alunos, que os impede de comparecer a reuniões escolares.
A crise da família e da comunidade como instituições de custódia é também, em parte,
sua crise como instituições socializadoras. As instituições que antes compartilhavam a
socialização das crianças, hoje desaparecem, retraem-se, ou simplesmente perdem a eficácia,
fazendo com que aumentem, por exclusão, a necessidade e a carga relativa à escola. Esta
constitui-se na primeira instituição pública (não doméstica) de acesso da criança de modo
sistemático e prolongado, representando lugar de aprendizagem de formas de convivência que
não cabe aprender na família.
A escola, por sua vez, também mudou. Se antes ocupava apenas um lugar discreto na
vida das pessoas, passou a absorver praticamente toda a infância, adolescência e parte da
juventude. É desnecessário dizer que esse tempo a mais na escola é tempo a menos na família
e na comunidade, o que, por si só, justifica um papel maior da escola na moralização das
crianças. Progressivamente, a escola varreu todas as instituições extra-familiares entes
encarregadas da socialização e foi acuando a própria família.
A principal função da escola nunca foi ensinar, mas sim educar. Como o de qualquer
forma de educação, sempre foi mais o de modelar a conduta, as atitudes, as disposições, do
que o conhecimento teórico ou as atividades práticas. E os professores de nível fundamental e
médio sempre reivindicaram seu papel de educadores em oposição ao de simples
professores, mas, hoje, verificamos o oposto. Essa é a antiga fórmula da educação integral,
130
completa, multilateral, etc, de que o indivíduo é um todo, e a escola não pode pretender
ocupar-se apenas de uma parte.
O professor, que antes encontrava pais e mães com nível acadêmico e profissional
muito inferior ao seu, dispostos a aceitar sua autoridade como legítima e indiscutível, agora
encontrou outro tipo de interlocutores, muitos com níveis acadêmicos iguais ou superiores aos
seus, não dispostos a conceder ao educador um cheque em branco na educação de seus filhos.
Sua palavra já não é uma revelação, suas decisões podem ser discutidas, sua capacidade e
desempenho profissional chegam a ser questionados. Assim, seu status, ou prestígio,
deteriorou-se, e não porque sua formação tenha piorado, mas sim porque não melhorou.
Observa-se, ainda, um desencanto dos pais e alunos em relação aos mecanismos de
participação na escola. A hostilidade com a participação da comunidade se faz notar na
atitude dos pais, em suas associações e nos conselhos escolares. Os responsáveis referem que,
na realidade, os professores preferem que compareçam na escola quando convocados, e um a
um. Curiosamente, a constante cantinela em torno da falta de apoio e de colaboração da
família, por outro lado, em alguns casos, plenamente justificada, coexiste com reações
defensivas em relação a sua aproximação individual e hostis a sua mobilização coletiva. As
associações de pais são vistas, mais comumente, com receio; e os conselhos escolares como
um obstáculo imposto pela administração. Acrescenta-se que, quando se impõe essa atitude de
reserva em relação ao público direto, não cabe pensar em abertura mais ampla para a
comunidade, pelo menos que não vá além de declarações puramente retóricas.
Diante dessas circunstâncias, não se crê fazer sentido questionar se os pais abdicaram
de controlar seus filhos ou se foram os professores que fizeram isso, se as famílias exigem
mais da escola ou se é esta que oferece pouco, e assim sucessivamente . O que importa é
compreender que a família e a escola ficaram sozinhas nessa tarefa, que nenhuma outra
131
instituição virá a socorrê-las, a não ser em funções secundárias e que, portanto, cabe a ambas,
em meio a um diálogo possível, nova divisão de tarefas adequada, eficiente e eficaz.
7.2.5 Relacionamento da Escola com Profissionais de Áreas Diversas à Educação
Os educadores participantes da pesquisa, ao relatarem acerca do contato exercido com
profissionais da área da saúde, psicólogos e assistentes sociais, evidenciaram a face do
isolamento e da completa ausência de suporte com que atuam.
Todos os entrevistados apontaram para a inexistência de equipe multidisciplinar
atuando na escola ou com disponibilidade para atendê-la.
Professor 1 – “Praticamente inexiste. Não há equipe multidisciplinar. Com a inclusão
dos alunos com necessidades especiais nas turmas regulares, ficou mais evidente a
necessidade de equipe multidisciplinar”.
Professor 2 – “O Estado não fornece nada. A escola encaminha os casos sérios para a
psicóloga do Município. Esporadicamente, profissionais da saúde fazem palestras na escola”.
Professor 3 – “Inexiste relação contínua. Só algumas palestras”.
Professor 4 – “Praticamente inexiste, só há uma orientadora educacional, com 20 horas
semanais. Não há psicólogos e assistentes sociais”.
Assim, a escola não conta com equipe de apoio, que desenvolva trabalho contínuo,
nem junto aos alunos ou familiares, tampouco em relação aos educadores. Mas, questiona-se
até que ponto a escola está interessada em abrir-se para o entorno, expondo suas falhas?
Quanto às relações da escola com o Conselho Tutelar, Polícias (Civil e Brigada
Militar), Ministério Público e Judiciário, foi constatado também não serem adequadas e
qualificadas, Especificamente no que se refere às relações com o Ministério Público serão
abordadas na categoria 7.2.7.
132
Mencionaram os educadores que o CT só é chamado na escola em casos extremos, os
considerados graves pela Direção. Durante o ano de 2005 (até o mês de outubro), afirmou o
educador 1, que a presença do CT foi solicitada em apenas uma oportunidade. O professor 4
complementou trazendo a informação de que os educadores não gostam do CT, pois este,
além de forçar o retornos dos alunos evadidos, inclusive no final do ano letivo, abriga-os a
permanecer na escola contrariados.
A relação da escola com a Polícia Civil limita-se aos registros de ocorrências, quando
da prática de ato infracional ou crime no ambiente escolar. Até o mês de outubro do ano de
2005, foram efetuadas duas ocorrências por furto ao patrimônio da escola. O contato com a
Brigada Militar deu-se em razão desta ter desenvolvido o PROERD com algumas turmas da
escola e por atuar um policial militar da reserva, durante oito horas diárias, na segurança
externa da escola.
Com o Poder Judiciário foi mencionado pelos educadores que a relação limita-se aos
ofícios encaminhados à escola para instruir procedimentos judicializados referentes às
FICAIS (Fichas de Comunicação de Alunos Infreqüentes), sobre a freqüência e
aproveitamento escolar dos alunos.
No que se refere ao relacionamento da escola com o Ministério Público, foi ressaltado
pelos educadores o início de trabalho significativo, mas que deveria ser intensificado com
palestras e encontros no ambiente escolar. Referiram, ainda, a necessidade de desmitificar a
atuação do Promotor de Justiça, substituindo os sentimentos de temor e receio, presentes na
comunidade escolar.
Os professores, instados a sugerir práticas visando a qualificação dos relacionamentos
da escola, referiram:
Professor 1 - Suporte de equipe multidisciplinar; aproximação maior da família,
intensificar parcerias com o MP, por exemplo.
133
Professor 2 - Integração de ações envolvendo família, escola, CT, MP e de
profissionais de áreas diversas à educação.
Professor 3 – Trabalho conjunto do CT e MP junto à escola para esclarecer dúvidas
dos pais, professores e alunos, por meio de palestras.
Professor 4 – Maior presença do CT na escola, para fazer palestras, principalmente
sobre o ECA.
Quanto aos alunos, a maioria dos entrevistados mencionou desconhecer a finalidade da
atuação do Ministério Público.
Constatou-se, ao analisar-se os dados obtidos na pesquisa, o relacionamento tenso e
confuso entre escola e Sistema de Justiça, sendo que o ECA, que neste ano (2006) completará
dezesseis anos, permanece na posição de ilustre desconhecido da comunidade escolar.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os serviços destinados à infância e à
juventude foram organizados da seguinte maneira: as questões de ordem social, em regra,
passaram a ser responsabilidade do poder público municipal, em decorrência da
municipalização do atendimento (ECA, artigo 88, inciso I), executável por intermédio das
políticas sociais básicas. Já ao Sistema de Justiça foi delegada a responsabilidade pela
proteção especial e garantia de direitos, executadas pelo Conselho Tutelar, Ministério Público
e Juizado da Infância e da Juventude.
Considerando esse contexto, observa-se que junto a professores, dirigentes escolares,
pedagogos e demais profissionais, tradicionalmente atuantes no âmbito escolar, atualmente
estão inseridos outros agentes sociais, como Conselho Tutelar, Ministério Público e Juizado
da Infância e Juventude, que, sem reduzir a importância daqueles, passaram a envolver-se
com as questões educacionais.
Consoante evidenciado pelo Promotor de Justiça Neidemar José Fachinetto38:
38 FACHINETO, Neidemar José. Ensaio de uma proposta pedagógica preventiva à violência escolar. < http://www.mp.rs.gov.br>.
134
Este novo conjunto de reações da sociedade e órgãos públicos, como já dito, passou a interagir com a escola, a ponto de, neste aspecto, também se verificar facetas da denominada crise de identidade da escola, notadamente pela constatação de que, especialmente nos últimos tempos, de forma progressiva e acentuada, ela vem perdendo a prerrogativa de, exclusivamente, tratar das questões relacionadas ao processo educativo e pedagógico.
O Conselho Tutelar passou a exercer, em virtude do artigo 136 do ECA, atividade
ligada a defesa do direito ao acesso, freqüência e aproveitamento escolar, ou intervindo em
casos concretos, seja por ação ou omissão do responsável pela criança ou adolescente; seja
por abuso ou negligência da instituição de ensino ao deixar de oferecer ou oferecer de forma
insatisfatória ou irregular o serviço de educação.
Nos casos citados, o Conselho Tutelar pode aplicar medidas protetivas aos pais ou
responsáveis (artigo 101, inciso III, c/c 129, inciso V do Estatuto da Criança e do
Adolescente) ou desencadeando procedimento administrativo por infração às normas legais de
proteção ( artigo 195 c/c 245 do ECA) ou ainda, provocando a ação do Ministério Público ou
da autoridade judiciária (artigo 136, III e IV do ECA).
Assim, espera-se que o CT não continue sendo chamado na escola meramente a fim de
desempenhar o papel de fixador de limites, que, inclusive, nem integra seu rol de atribuições.
O CT também não deve ser acionado somente quando a escola está com um “aluno-
problema” (classificação comumente atribuída pelos dirigentes escolares para alunos
infreqüentes, indisciplinados, resistentes às regras, com dificuldade de aprendizagem), até
mesmo porque, nessas hipóteses, a ação preventiva da escola falhou.
O CT deve “adentrar” à escola, principalmente, para desempenhar seu papel mais
importante: o de orientação dos educandos acerca de seus direitos e das responsabilidades
decorrentes destes, contribuindo para implementar na escola um verdadeiro espaço de
socialização, mediante a convivência adequada, atuando como verdadeiro órgão de
exigibilidade de direitos.
135
As hipóteses interventivas do CT estão previstas no artigo 98 do ECA: quando a
criança ou adolescente estiver atravessando dificuldades decorrentes da ação ou omissão da
sociedade (discriminação da comunidade escolar) ou do Estado (necessidade de acionar
algum serviço público); nos casos de falta ou suspeita de omissão ou abuso dos pais ou
responsáveis (maus tratos ou negligência, por exemplo) ou ainda em razão de sua conduta
(nesse contexto entendida como a conduta que ultrapassa a infração às normas disciplinares e
que necessitam do encaminhamento a serviço de apoio sócio-familiar).
Em se tratando de ato de indisciplina, praticado no ambiente escolar, a escola somente
deve encaminhar um caso ao Conselho Tutelar após esgotar todos os recursos e serviços
disponíveis em sua estrutura educacional e previstas em sua regulamentação interna,
aplicando as medidas pedagógicas previstas no regimento interno.
Por via transversa, quando da prática de um ato infracional, a escola não pode
desempenhar o papel do sistema de justiça, que devera apreciar e julgar o caso. Dessa forma,
se a conduta do aluno ultrapassar em gravidade os limites da normativa escolar e, não sendo o
caso de intervenção protetiva do Conselho Tutelar, a escola pode e deve acionar a Autoridade
Policial (Brigada Militar ou Polícia Civil) para coibir ou deter ato previsto na legislação penal
como crime ou contravenção e praticado no ambiente escolar.
Obviamente que não se está propondo instalar a força policial na escola para coibir
qualquer transgressão, tampouco para propiciar situações de humilhação e vergonha quando
sua presença se faz absolutamente necessária, em situações excepcionais, também em face de
proposta de despoliciação introduzida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
De qualquer forma, em sendo a presença da força policial maior do que a necessária,
há indícios veementes de que a pedagogia está inadequada, propiciando o ambiente de tensão,
indisciplina e violência.
136
Na temática da violência escolar, há ainda a intervenção do Ministério Público, pelo
Promotor de Justiça da Infância e Juventude, quando da prática de ato infracional por
adolescente. A atuação do Ministério Público será abordada no item 7.2.7.
Quanto ao Juizado da Infância e da Juventude, pela nova proposta do Estatuto da
Criança e do Adolescente de desjudicialização dos problemas sociais, centra sua atividade em
dirimir conflitos, de ordem individual, coletiva ou difusos, que são submetidos à sua
apreciação e decisão jurisdicional.
Obviamente que, quaisquer dos agentes – Conselho Tutelar, Polícias, Ministério
Público e Juizado da Infância e da Juventude – não só podem como devem atuar junto a
sociedade, na divulgação da proposta executória de direitos e de responsabilidades na vara
infanto-juvenil, traduzida pela CF/88 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como
na mobilização visando a implementação da estrutura de atendimento elencada no Estatuto da
Criança e do Adolescente, inclusive em atividades com fins preventivos à violência escolar.
Em um contexto diverso, mutável, incerto e turbulento uma organização não tem outra
solução para sobreviver, prosperar e desenvolver sua funções a não ser comportando-se como
um sistema flexível e aberto. Se cada elemento humano da organização fecha-se na função
recebida e não está disponível para nenhuma outra, não haverá reorganização possível, por
mais necessária que seja. Consoante Enguita (25), por trás da eterna demanda de mais
recursos, às vezes, está latente essa atitude, mas também pode ler-se assim: não pretendam
que se faça outra coisa nem adicional, nem diferente, se não mandarem outra pessoa para
fazer isso.
Ao contrário, a flexibilidade organizacional só é possível se os membros têm uma
atitude de compromisso com o conjunto da organização e com seus fins, não com sua
incumbência tal como um dia fora definida ou como querem entender que foi.
137
Espera-se de um sistema escolar aberto que apresente a característica da
permeabilidade que, segundo Enguita (25), consiste em manter constante intercâmbio de
recursos com o exterior. Atualmente, muitos dos recursos que se requer para a educação não
estão na escola (a não ser que façamos desta uma duplicação da sociedade!), porém estão e
podem ser obtidos no entorno das escolas. Aí se encontram os saberes profissionais, os
conhecimentos técnicos, as destrezas práticas e as experiências sociais de que a escola
necessita como apoio a seu trabalho.
O filão disponível para as escolas entre os grupos de interesses, as associações
voluntárias, as instituições públicas, as organizações sociais, as empresas privadas e os grupos
profissionais presentes em seu entorno é ilimitado, e renunciar a aproveitá-lo para não alterar
o sono dos que se acostumaram aos velhos limites pode ser muito cômodo, mas promete
pouco e ameaça deixar a instituição escolar à margem do desenvolvimento.
O primeiro instrumento dessa abertura para o entorno já existe: é o conselho escolar.
Mas para que desempenhe suas funções, mister assuma sua posição de órgão efetivo da
comunidade e da gestão da escola, não como um lugar em que, por infelicidade, é preciso
ratificar as decisões que o corpo docente já tomou e que preferiria decidir sozinho. À Direção,
por outro lado, caberia importante papel na colaboração entre a escola e a comunidade,
deixando de ser a direção dos professores para ser da comunidade e sobre os professores.
Quando a organização escolar abre-se a si mesma (torna-se flexível) e flexibiliza sua
relação com o entorno (torna-se aberta), passamos do nível da estrutura ao do sistema em
sentido pleno. Seu equilíbrio passa a ser dinâmico, mutável. Não se empenha em manter
configurações próprias nem relações com o entorno, que já caducaram, ou que não respondem
nem aos fins nem ao contexto, mas busca novos estágios de equilíbrio. Então, a organização
se desenvolve, evolui para responder a necessidades e oportunidades mutáveis. Para isso,
requer de seus membros atitude de disposição à cooperação (não individualista ou ritual),
138
proativa (não estática ou reativa) e de compromisso com seus fins (não de apego às suas
posições ou às suas rotinas).
7.2.6 Violência e Indisciplina Escolar
7.2.6.1 Indisciplina e Violência X Regras e Normas
A escola passa por momento de profundas mudanças, devido ao aumento das
dificuldades decorrentes de fenômenos externos à instituição e de suas próprias pressões
internas. Além de enfrentar problemas internos de gestão e precariedades que afetam o
processo pedagógico, a escola vê-se em um período de contestação da ideologia que a
sustentou até agora. O valor da educação é questionado sob alegações diversas: por perda de
qualidade e autoridade; por não preparar para o mercado de trabalho; por não estar centrada
na educação do homem integral; por não corresponder à expectativa de proporcionar
segurança aos jovens.
Ao selecionar as percepções de alunos, pais e educadores visando identificar e
caracterizar as múltiplas formas de violências na escola, bem como observar as relações entre
estas violências e as questões ético-valorativas, este estudo entrelaça narrativas e olhares,
descrevendo o estado do conhecimento, o percebido, o expresso e o silenciado, alertando
sobre os riscos de banalização da violência no âmbito escolar.
A pesquisa busca, além de identificar a violência escolar, propor medidas de combate
às violências nas escolas, tendo por base, além da literatura, as manifestações de alunos, corpo
técnico-pedagógico e pais, anunciando uma vontade por uma cultura de paz, que perpassa por
políticas públicas preventivas e pela revisão de pedagogias e gestão escolar.
E a formulação de políticas públicas efetivas com a finalidade de diminuir as
violências nas escolas brasileiras exige o entendimento do atual contexto escolar e a
compreensão das percepções dos próprios atores sobre o fenômeno.
139
Sposito, citada por Marília Pontes39, como Arendt40, encontra um nexo entre a
violência e a quebra do diálogo, da capacidade de negociação, esta consistente em matéria-
prima do conhecimento/educação. Assim, para a autora, “violência é todo ato que implica a
ruptura de um nexo social pelo uso da força. Nega-se, assim, a possibilidade da relação social
que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo, pelo conflito”.
Consoante Abramovay e Rua (30), (2004, p. 139):
A educação consiste em um fenômeno social e universal, senão uma atividade humana necessária à existência e funcionamento de todas as sociedades. Cada uma delas precisa cuidar da formação dos indivíduos, auxiliar no desenvolvimento de suas capacidades físicas e espirituais, preparando-os para a participação ativa e transformadora nas várias instâncias da vida social. Por intermédio da ação educativa, o meio social exerce influência sobre os indivíduos e estes, ao assimilarem e recriarem essas influências, tornam-se capazes de estabelecer uma relação ativa e transformadora em relação àquele. Tais influências se manifestam por meio de conhecimentos, experiências, valores, crenças, modos de agir, técnicas e costumes acumulados por muitas gerações de indivíduos e grupos, transmitidos, assimilados e recreados pelas novas gerações.
O ambiente propiciado pela escola, favorecendo os processos informativos e de
comunicação, produz o amplo universo simbólico, estimulando configurações de sentidos e
significados, a possibilitar a constituição da subjetividade e a construção das identidades.
Nesse contexto de diversidade, as escolas convivem com atos de indisciplina e de
violência, adotando procedimentos formais ou informais, em consonância com o modo de ser
de cada Direção ou projeto pedagógico. Normalmente, as medidas adotadas para a solução
dos conflitos cabem à Direção da Escola.
Na escola pesquisada, os procedimentos adotados consistem, em sua maioria, em
advertências, afastamento da sala de aula, comunicado aos pais e suspensão, conforme a
gravidade do caso. Medidas como transferências e expulsões não são corriqueiras, mas não
39 PONTES. Marília. No artigo A instituição escolar e a violência. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, nº 104, p. 60, jul. 1998.40 ARENDT, Hannah. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
140
são afastadas. Assim, normas são observadas pela Direção para lidar ou inibir a indisciplina e
a violência.
As regras, a seu turno, refletem os valores que devem ser comuns e conhecidos por
todos no processo de interação. A ausência delas na sociedade levaria ao caos, ao mesmo
tempo em que refletiria a total desintegração da consciência coletiva entre os indivíduos. As
regras de conduta estimulam os indivíduos a comportarem-se segundo as expectativas do
papel social que estão desempenhando.
Revelando-se tais aspectos, o presente trabalho irá abordar as regras e punições
aplicadas pela escola pesquisada, já que são elas que normatizam a convivência escolar. São
exploradas, ainda, as percepções e motivações dos seguintes atores pesquisados - alunos,
professores e Direção – sobre o ensino e a escola de que fazem parte. Enfocam-se também as
influências do contexto escolar, permeado por interações conflituosas e consensuais, entre os
alunos, seja de forma positiva ou negativa.
O Regimento Escolar da instituição de ensino pesquisada prevê, no item nove, as
“Normas de Convivência”, onde, de forma genérica e lacunosa, são previstos os
procedimentos a serem adotados pela Escola nas situações envolvendo “problemas
disciplinares” de alunos.
Consoante observar-se-á da transcrição integral do único trecho do Regimento Escolar
que se refere às regras e punições, são utilizadas expressões amplas, que permitem
interferência excessiva da subjetividade em sua interpretação, como “problemas
disciplinares”, “medidas mais enérgicas” e “falta de responsabilidade”, favorecendo a
arbitrariedade por parte da Direção na aplicação das punições e a insegurança entre os alunos
quanto às condutas consideradas “indisciplinadas” e “irresponsáveis”. Observou-se, assim, a
ausência de regras claras.
Consta no item nove do Regimento Escolar:
141
Em caso de problemas disciplinares de alunos, após advertência oral e escrita, com o conhecimento dos pais, serão tomadas medidas mais enérgicas, pela Direção, em conjunto com a Coordenação Pedagógica e Conselho Escolar em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quando houver dano ao Patrimônio Púbico será solicitada reposição ou conserto do bem danificado.
Quando o aluno faltar com a responsabilidade no cumprimento das atividades escolares ou apresentar problemas disciplinares será comunicado aos pais/responsáveis, por escrito, em um documento que deverá retornar à escola assinada pelo mesmo.
Desse contexto, emergem referências dos alunos insatisfeitos com as atitudes dos
professores ou da Direção, tecendo críticas às punições, refletindo negativamente nas
relações. As críticas que receberam maior destaque foram o tratamento diferenciado
dispensado a alguns alunos (“avisei a Direção que o aluno estava com um canivete e não
fizeram nada”). Por outro lado, observou-se que em situações de impunidade o aluno sente-
se protegido pelo próprio sistema e envaidecido diante dos colegas (“é uma esculhambação, a
gente faz o que quer na aula e a professora não faz nada, continua passando a matéria e não ta
nem aí”). Outra crítica refere-se ao exagero das ameaças de punir, que levam ao descrédito
(“tem professora que parece que ta de mal com o mundo e qualquer coisa que a gente faz
ameaça mandar para a supervisora ou para o Diretor”).
Os dois integrantes da Direção da escola e os dois professores participantes da
pesquisa foram questionados sobre a percepção acerca das expressões “problemas
disciplinares”, “medidas mais enérgicas”, “falta de responsabilidade”, bem como acerca das
punições mais freqüentes e os resultados obtidos são os que seguem.
Como “falta de responsabilidade” são consideradas as seguintes condutas:
injustificadamente, chegar atrasado, faltar às provas, não cumprir com as tarefas propostas em
aula ou para serem executadas em casa, vir para a escola sem material. Já os comportamentos
considerados como “irresponsáveis” parecem estar claros para os professores e para a Direção
da escola, que apresentaram significados convergentes para caracterizar aludidas condutas.
142
O regimento escolar, para os atos de irresponsabilidade, prevê como sanção à
comunicação aos responsáveis, por escrito, em documento que deverá retornar à escola
assinado.
Duas criticas, acompanhadas por sugestões, merecem ser destacadas pela
pesquisadora: a primeira refere-se a caracterização da irresponsabilidade, conceito que parece
de simples compreensão para os professores e Direção, mas que poderia ser melhor
esclarecido aos discentes e seus responsáveis, ao exemplificar-se no texto do regimento,
algumas das condutas classificadas como atos de irresponsabilidade passíveis de punição. A
segunda guarda referência com a aplicação equânime e igualitária da sanção prevista no
regimento a todos os alunos que transgredirem as regras.
Como “problemas disciplinares” dos alunos são considerados pelos professores e
Direção: faltam de respeito em relação aos professores (na maioria das vezes respondendo a
estes ofensivamente), ofensas verbais e apelidos aos colegas, atitudes desrespeitosas entre os
alunos (empurrões, tapas), desentendimentos (brigas entre os alunos) e danos. Os alunos que
praticam esses atos são classificados como os “piores alunos”.
Contudo, dois dos professores entrevistados confundem atos de indisciplina com
irresponsabilidade (professores 3 e 4), o que evidencia que nem para estes os conceitos são
tão claros.
As punições referidas pela Direção e professores foram: primeiro, conversa com o
aluno e advertência; na segunda vez, registro na ficha individual do aluno e chamado, por
escrito aos responsáveis; e quando o aluno é retirado três vezes da sala de aula, só entra na
escola acompanhado por responsável. Portanto, as punições mencionadas pela Direção e
professores estão em consonância com o Regimento Escolar que prevê advertência oral e
escrita para as transgressões disciplinares dos alunos.
Entretanto, as mesmas críticas e sugestões tecidas pela pesquisadora aos atos de
143
irresponsabilidade são pertinentes aos atos de indisciplina, cujos mais freqüentes deveriam ser
previstos, juntamente com as sanções disciplinares correspondentes, e com aplicação
observando à lógica da igualdade.
A falta de clareza na previsão das sanções disciplinares pode ser observada ao
cotejarmos as punições anotadas nas fichas disciplinares dos alunos e as previstas no
regimento da escola. Neste, limitam-se à advertência oral e escrita, com o conhecimento dos
pais e reposição ou conserto do bem danificado. Já, nas fichas individuais foram referidas,
além destas, as seguintes punições: ser encaminhado para a supervisão; ficar sem recreio; ser
retirado da sala de aula; ser encaminhado de volta para casa; suspensão e encaminhamento da
FICAI (Ficha de Comunicação do Aluno Infreqüente) ao Conselho Tutelar.
Informações interessantes surgiram quando a Direção e os professores indicaram as
‘‘medidas mais enérgicas, adotadas em conjunto pela Direção, Coordenação Pedagógica e
Conselho Escolar em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente”.
O Diretor entrevistado não indicou quais seriam as medidas, limitando a assegurar que
são evitadas, privilegiando-se o diálogo. A supervisora e uma das professoras pesquisadas
apontaram a suspensão como ‘medida mais enérgica’. E, outra professora indicou a
transferência ou encaminhamento para o Conselho Tutelar, referindo não haver expulsão.
Os efeitos da suspensão são questionados por um dos professores entrevistados, pois
normalmente o aluno vai para casa e fica “ocioso”, sem fazer “nada de útil”, ao mesmo tempo
em que não recebe orientação para refletir sobre as atitudes que o levaram a ser punido. O
aluno muitas vezes considera mais essa punição como um prêmio.
Observa-se, ainda, que a suspensão é aplicada em muitos casos em que os pais se
omitem, sugerindo que a escola, implicitamente, opera uma discutível transposição de
responsabilidades, atribuindo essa atitude à omissão dos pais e da família. Verifica-se essa
conduta em ocasiões em que os responsáveis não atendem ao chamado para comparecer na
144
escola, sendo os filhos suspensos até que os pais apareçam para resolver a situação.
Nas fichas disciplinares dos alunos pesquisados as suspensões foram aplicadas em
ocasiões que os alunos desrespeitaram (retiram-se da aula) ou foram mal educados
“responderam” indevidamente com os professores.
Quanto ao encaminhamento para o Conselho Tutelar, nas raras situações em que
ocorreu, normalmente verificou-se nos casos onde a violação das regras ocorreu fora dos
limites da escola, sobretudo quando os alunos faltam às aulas para “ficar á toa”. Na ficha de
um dos alunos pesquisados consta a anotação de encaminhamento da FICAI (Ficha de
Comunicação do Aluno Infreqüente) ao Conselho Tutelar.
Enquanto a expulsão é negada pelos entrevistados, não havendo previsão no
Regimento Escolar, a transferência é referida como último recurso para casos extremos de
indisciplina, quando a escola já esgotou todos os meios de que dispunha para resolver a
situação. Todavia, esse tipo de punição acaba somente transferindo o “problema” de uma
escola para outra e não o solucionando.
Na maioria das ocasiões, ao invés de aplicar punições, é suficiente que as autoridades
escolares ameacem comunicar as transgressões aos pais, seja porque os alunos temem a
reação destes, seja porque não intencionam decepcioná-los.
Os responsáveis são comunicados e convocados pela escola para conhecimento das
transgressões e para, em conjunto com a direção, encaminhar ou acatar uma solução para o
problema (“o diálogo é a melhor solução para os problemas, evitando aplicação de punições”
consoante a Direção da escola). Ocorre que, em alguns casos, os familiares convocados não
comparecem e a Direção e os professores vêem-se “enfraquecidos”, “desautorizados” e
“perdidos”, consoante mencionaram os entrevistados.
Aqui, novamente, é suscitada a questão da omissão familiar e de seus reflexos na crise
de autoridade da escola, ambas já analisadas. Porém, o dado a ser acrescido e destacado
145
consiste no impacto dessa omissão e da crise de autoridade da escola na indisciplina e
violência escolar, contribuindo para a sua propagação.
Por outro lado, as punições podem se tornar tão banalizadas que passam a ser
desconsideradas como sanções. Nestes casos, conforme observado na escola pesquisada, a
Direção mostrou-se resistente em reconhecer os castigos aplicados como punições, pois
argumenta que “são evitadas medidas punitivas o diálogo é a melhor solução”.
Consoante o relato dos atores do ambiente escolar, percebeu-se haver uma hierarquia
entre as punições, que vão se agravando até atingir seu ápice, com a transferência da escola.
Outro dado importante, observado nas fichas individuais encaminhadas pela Direção
da escola à pesquisadora, consiste em representarem estas os registros dos alunos
considerados como “os piores”, que acabam estigmatizados como “alunos problema”,
tornando-se conhecidos por todos os membros da Coordenação/Direção da escola, ou ainda,
sua história (com as punições aplicadas) passa a ser divulgada pelos professores como forma
de intimidação aos demais alunos.
Verificou-se também falta de critérios e abuso de poder, pois uma mesma infração
pode resultar em punições diferentes. Machucar um colega, por exemplo, na ficha do aluno
“A”, correspondeu à advertência, já, na do aluno “B”, consta à punição de suspensão.
Desrespeitar um professor pode corresponder às mais diversas sanções: suspensão (aluno
“B”); afastamento da sala pelo professor e advertido pela direção (aluno “D”); retorno à
escola só com a presença do responsável (aluno “E”). E à infração de retirar-se da sala de aula
sem permissão: ao aluno “A” foi aplicada advertência e ao aluno “E” imposta a presença do
responsável para voltar à escola.
Fator que dificulta a análise dos critérios de aplicação das punições é a forma genérica
e lacunosa com que são efetuadas as anotações nas fichas individuais dos alunos. Não há
especificação, por exemplo, no que consistiu “machucar o colega” ou “desrespeitar o
146
professor”, por exemplo. Ou, ainda, “perturbar o andamento da aula” (aluno “D”) ou “atitudes
inconvenientes” (aluno “E”).
Assim fichas disciplinares preenchidas de forma esclarecedora, especificando a
conduta transgressora e a punição correspondente, contribuiriam para afastar a imagem da
escola como “lócus” privilegiado de exercício de violência simbólica.
Consoante Abramovay e Rua (30), (2004, p. 146):
O simbólico seria entendido, segundo Pinto (2000), como atividade de conhecimento (sentido), dinâmica de representação, estando, portanto, no domínio do subjetivo e operando por meio de signos nas relações sociais. Pela educação, principalmente na escola, administrar-se-iam sistemas simbólicos, legitimando as instituições de ensino como instância de poder. A violência, nesse caso, seria exercida mediante consentimento, pelo uso de símbolos de poder que não necessitam do recurso da força física nem das armas, nem do grito, mas que silenciam protestos. E no ambiente escolar, com alta probabilidade, seria exercida não somente entre alunos, mas nas relações entre eles e os professores.
Observou-se na pesquisa a dificuldade dos professores e também dos alunos em
identificar a violência simbólica (ou institucional) no âmbito escolar, em que pese sua
existência seja inegável.
Todos os alunos pesquisados apontam como violências mais freqüentes na escola a
violência física (traduzida em agressões entre alunos) e a verbal (representada por ameaças,
praticada pelos alunos).
Na ótica dos quatro educadores e dos cinco alunos entrevistados, as agressões físicas e
verbais entre alunos são consideradas os casos de violência escolar mais freqüentes. Em
segundo lugar, estariam os furtos e deterioração do patrimônio da escola (rasgar cortinas,
quebrar classes, estourar bomba no lixo), seguido por danos e furtos à propriedade particular.
Agressões verbais entre alunos e professores são referidas por um professor (3) e por um
aluno (“E”).
147
Quanto à violência psicológica, é referida por apenas dois educadores pesquisados (2
e 4), na modalidade de “apelidos” pejorativos e ofensivos, de cunho discriminatório,
traduzindo preconceito racial e discriminação social (“gay”, “gordo”, “negro”, “Maria
breteira”), fenômeno atualmente conhecido por bullying. Um dos educadores citados admite
que as violências psicológicas, apesar de comuns no ambiente da escola, não chegam ao
conhecimento da Direção. Portanto, a Direção não se ocupa com essa última modalidade de
violência denunciada.
Em que esse estarem sendo desenvolvidos, no Brasil, inúmeros projetos e programas
visando a diminuição da violência escolar, são escassas as notícias que se têm sobre o
desenvolvimento de programas educacionais que incluam o combate e a prevenção do
fenômeno bullying em nossas escolas.
Segundo mencionado por Cleo Fante (31), a implantação de um programa preventivo
ou que objetive a redução deste fenômeno deveria ser embasada em três premissas essenciais,
para a obtenção de resultados positivos:
a) não existem soluções simples para a resolução do bullying, por tratar-se de fenômeno
complexo e variável;
b) cada escola deveria desenvolver suas próprias estratégias e estabelecer suas
prioridades no combate de tal fenômeno;
c) a única forma de obtenção de sucesso é a cooperação de todos os envolvidos: alunos,
professores, gestores e pais.
Questionados acerca dos encaminhamentos efetuados pelos educadores nos casos de
violência escolar, todos responderam que os casos são resolvidos quase sempre no âmbito da
escola, não sendo encaminhadas para outros órgãos por não serem considerados graves.
Apesar das dificuldades envolvendo algumas relações entre vários atores envolvidos
no cenário escolar, a escola simboliza importante espaço de socialização. É lugar onde
148
ocorrem aprendizagens significativas, já que o modo de vida dos sujeitos que interagem na
escola propicia trocas materiais e simbólicas.
Sob essa perspectiva tem-se que a escola que se organiza à base de princípios
democráticos e que constrói as regras a serem seguidas, juntamente com os alunos, consegue
um maior comprometimento no que tange a sua observância. Nesse caso, o aluno se sentirá
menos encorajado a testar os limites da conduta aceitável pelos adultos, pois como foi a
maioria que as definiu, ele também será cobrado pelos mesmos.
Os dados obtidos sobre os praticantes e vítimas da violência indicam que,
independentemente do tipo de violência, os praticantes são predominantemente os alunos.
Quatro dos cinco alunos pesquisados admitiram já terem figurado como autores e vítimas de
violência física e/ou verbal, no ambiente escolar. Ao focalizar a vitimização pela violência,
observa-se que os alunos também são as vitimas mais constantes. Seguidos pelos professores.
A violência física, como se observou, foi apontada como a mais freqüente.
Contudo, independentemente do tipo de violência, observa-se, da análise dos dados,
que a violência é uma construção social, com inúmeras e variadas percepções. Como ocorre
em relações sociais, envolve alteridades e sentimentos diferenciados para os atores envolvidos
e para a sociedade de referência. Alude-se a processos complexos e requer visão
multidimensional.
Em decorrência da dificuldade de definir o que seria violência escolar, na pesquisa
não definiu, “a priori”, o fenômeno. Optou-se por conhecer o mundo da escola e a percepção
de seus diversos atores. Assim, além de indicadores da violência apresentados nos
questionários e nas entrevistas, permitiu-se aos informantes a construção de sentidos sobre o
que seriam, para eles, violências na escola. O foco, então, pode ser delimitado como sendo
como a concepção, definição e explicação da violência no ambiente escolar, segundo aqueles
que a vivenciam.
149
Observou-se entre os jovens pesquisados que já foram vítimas ou agentes da violência,
em algumas situações. E mesmo nos casos em que não se envolveram diretamente, relataram
circunstâncias das quais tomaram conhecimento ou presenciaram no espaço escolar. Esta
proximidade contribuiu para banalizar o comportamento violento, tornando trivial a
ocorrência de agressões físicas, vinganças, furtos, depredações, entre outros.
A violência física é, portanto, a face mais visível do fenômeno na escola. O confronto
corporal ou armado (este último, menos freqüente), mobiliza grande parte das discussões.
Apesar de todos educadores entrevistados negarem a presença de armas na escola, os alunos
apontaram ocorrências envolvendo a apreensão, o uso de facas ou o porte de facas, canivetes,
estiletes, correntes e soqueiras.
Em algumas situações, a violência aparece justificada como vingança, como forma
de defesa pessoal ou como atitude para proteger os amigos. Em outras, aparece como
atitude impensada diante de uma provocação ou como resultado de um temperamento que não
admite a “humilhação” de “levar desaforo para casa”.
Independentemente de sua justificativa, a violência traduz-se em forma de negociação
de poder que exclui o diálogo, ainda que impulsionada por múltiplas circunstâncias,
inclusive de conotação moral, como a defesa dos amigos e dos excluídos.
Consoante Abramovay e Rua (30), tratar de violência escolar significa lidar com uma
interseção de elementos, isto é, um fenômeno de uma nova ordem, e não simplesmente o
somatório dos objetos “escola” e “violência”. É um fenômeno singular, pois envolve práticas
sociais que, para serem compreendidas, requerem um olhar que não as reduza a meras
extensões de praticas violentas ou escolares.
7.2.6.2 Reações dos Atores Envolvidos na Violência Escolar
Comumente, as vítimas de comportamento violento ou agressivo vivenciam
150
sentimentos de medo, vergonha, raiva e impotência que diminuem a auto-estima. E, sendo por
prolongado período de tempo expostos a ação de seus agressores e aos olhares indiferentes ou
omissos dos “espectadores”, é natural que reajam com ansiedade, irritação, angústia, tristeza,
além de pensamentos de vingança e suicídio (FANTE, 2005, p. 158).
Diante das conseqüências provocadas pelo fenômeno da violência, considera-se
inadmissível que, nos tempos atuais, com tamanha evolução tecnológica, a escola seja
sinônimo de sofrimento e infelicidade ao aluno. Deve ser responsabilidade do profissional da
educação identificar as diversas formas de violência que os alunos possam estar enfrentando
silenciosamente para, assim, poder ajudá-los.
Ao se pensar em políticas e programas contra violência nas escolas, é indispensável
observar as diferenças entre universos simbólicos que permitem melhor compreensão acerca
do comportamento dos membros da comunidade escolar em face da violência. Destaca-se
serem comuns as discrepâncias entre os registros feitos pelos alunos e pelos membros do
corpo técnico-pedagógico (como, por exemplo, quando os primeiros apontam a vingança
como reação mais comum dos alunos agredidos e, os segundos, registram que, nesses casos, a
reação mais freqüente consiste em procurar a Direção).
Isso parece significar a presença de barreiras na comunicação, divergência de
perspectivas e de concepções da realidade, possivelmente evidenciando conflito entre tais
sujeitos.
Analisando-se as reações dos alunos diante das agressões sofridas no ambiente escolar
e das brigas de terceiros, observa-se que a reação mais freqüente entre os alunos, nestas
situações, consiste, respectivamente, em pedir ajuda aos amigos para vingar-se e incentivar as
brigas entre terceiros (na condição de “torcida” e “platéia”).
Não há registro, entre os alunos pesquisados, de terem se omitido diante de briga dos
colegas (pois a prática comum apontada é a de incentivar ou procurar separar) ou se mantido
151
inerte quando vítimas de agressão. Tampouco assumem atitude de resolução do problema,
como buscar auxílio da Direção, professores, pais ou órgãos externos à escola.
Os alunos entrevistados afirmam haver brigas com tapas, socos e pontapés entre
estudantes, inclusive entre as alunas. Em alguns relatos, transparece a dificuldade dos alunos
em se comunicar, conversar e resolver seus conflitos, iniciando discussões que terminam em
violência física.
Mais uma vez é evidenciada na presente pesquisa a dificuldade dos jovens em manter
convívio harmonioso com seus pares, favorecendo a reflexão acerca da educação que estamos
proporcionando-lhes, a qual sequer prepara-os para manterem a comunicação e resolverem
seus conflitos pelo diálogo.
Muitas vezes, consoante referem os alunos, os desentendimentos iniciam na escola e
são “resolvidos” fora do espaço escolar, mediante agressões físicas (“vou te pegar na saída”).
Enfatiza-se que os dados coletados sugerem a prevalência, entre os alunos, de um
padrão de comportamento que descarta o recurso à autoridade policial ou à ajuda
familiar, em favor do exercício privado da violência praticada em grupo, estimulando a
disseminação de atitudes favoráveis a novos confrontos. Esse padrão de reação às agressões e
de enfrentamentos violentos entre terceiros parece ser componente de uma cultura que
incorpora a violência ao universo dos alunos, manifestando-se seja como prontidão ou estado
de alerta, diante das ocorrências, seja como envolvimento efetivo nos eventos violentos.
Outra modalidade de rivalidade apurada entre jovens, que se desdobra em
enfrentamentos violentos, é a que opõe estudantes de escolas ou de bairro diferentes,
freqüentemente estimuladas por disputas esportivas.
Alguns eventos esportivos, como o futebol, acabam estimulando a violência, o que
sugere reflexão sobre a mudança de seu significado: o jogo, o entretenimento, o lúdico,
perderia assim a qualidade de competição saudável, de solidariedade e de companheirismo.
152
Por fim, tanto os alunos como os membros do corpo técnico-pedagógico registram
como principais causas das agressões verbais (já que físicas não foram registradas) dos
primeiros contra os professores a desavença ocasionada pelas faltas disciplinares, pelo nível
de exigência ou por problemas de avaliação ou nota.
7.2.6.3 Repercussões Mais Freqüentes da Violência
A violência presente no ambiente escolar compromete o que deveria ser a identidade
da escola, como espaço de sociabilidade positiva, de aprendizagem de valores éticos e de
formação de espíritos críticos, pautados no diálogo, na aceitação da diversidade e na herança
do conhecimento acumulado. As situações violentas repercutem sobre a aprendizagem e a
qualidade de ensino tanto para alunos como para professores
Consoante Abramovay e Rua (30) (2004, p. 298), estudo recente da Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Educação mostra que, além das conseqüências diretas, as
violências têm desdobramentos que afetam negativamente a qualidade do ensino e
aprendizagem Tais impactos seriam semelhantes àqueles exercidos por outros fatores já
conhecidos: a má formação dos profissionais da educação, a falta de infra-estrutura, o
reduzido nível de escolaridade dos pais e a falta de material bibliográfico nas residências dos
alunos.
Os dados da presente pesquisa corroboram essas afirmações. A maioria dos alunos (B,
C e E) sustenta que as violências no ambiente escolar fazem com que não consigam se
concentrar nos estudos. Aliado a isso, os mesmos alunos expressam ficarem nervosos e
revoltados com as situações de violência que enfrentaram na escola.
Ficou evidente que os alunos não apenas aparecem como os mais freqüentes autores e
vítimas das violências, como já analisado, mas também como os que mais sofrem as suas
conseqüências.
153
A falta de concentração, o nervosismo e a revolta dos alunos também foram
enfatizados pelos professores pesquisados como as principais conseqüências da violência e
indisciplina escolar sobre o desempenho dos alunos.
Quanto aos membros do corpo técnico-pedagógico, a conseqüência primeira, referida
por todos os educadores entrevistados, é a perda do estímulo para o trabalho. As outras
repercussões consistem nos sentimentos de revolta, nervosismo e irritabilidade, seguidos pela
dificuldade de se concentrar nas aulas.
Cleo Fante (31) (2005, p. 165), ao comentar as repercussões da violência escolar,
elenca algumas graves conseqüências, incidentes sobre os atores envolvidos. No corpo
discente: perturbação, interrupção, desinteresse, absentismo (falta de assistência às aulas),
problemas somáticos e psicológicos (ansiedade, tédio, depressão), desencanto pela escola,
queda ao rendimento escolar, falta de perspectiva de futuro melhor via educação, queda de
auto-estima, evasão escolar e descrença no poder público.
No corpo docente e no quadro de funcionários: desesperança e desencanto pela
profissão, absentismo, descrença no sistema educacional, queda da auto-estima, problemas
somáticos e psicológicos, síndrome de Burnout ou síndrome do “esgotado” (problemas
relativos ao estresse profissional, caracteriza-se por progressiva perda do idealismo, energia e
objetivos profissionais, como resultado das condições de trabalho – baixos salários, tempo de
preparação insuficiente, desvalorização profissional, distanciamento entre aspirações e
expectativas) e descrença no poder público.
Na família e na sociedade: falta de perspectiva de futuro melhor via educação,
desvalorização do ensino, descrença no sistema educacional e descrença no poder público.
Considera-se que a escola tem o dever de prevenir a violência que se desenvolve em
seu contexto, e de intervir impedindo a sua proliferação. Mas, para que isso ocorra, seus
profissionais devem ser capacitados para atuar na melhoria do ambiente escolar e das relações
154
interpessoais, promovendo a solidariedade, a tolerância, a atitude ética e o respeito às
características individuais, utilizando estratégias adequadas à realidade educacional que
envolvam a comunidade escolar como um todo.
Segundo Cleo Fante (31) (2005, p. 169):
Os cursos de graduação devem focar sua atenção na necessidade de prevenção à violência. Para isso, devem oferecer aos futuros profissionais de educação os recursos psicopedagógicos específicos que os habilitem a uma atuação eficaz em seus locais de trabalho para que utilizem metodologias estimuladoras ao diálogo como forma de resolução de conflitos; que promovam a solidariedade e a tolerância entre os alunos, criando com isso um ambiente emocional que incentive a aceitação e o respeito às diferenças inerentes a cada indivíduo; que promovam a tolerância nas relações interpessoais e socioeducacionais, proporcionando assim a construção de um ambiente alegre e criativo, resultando na melhoria do processo ensino-aprendizagem.
Considerando a amplitude de repercussões possíveis na vida de vítimas e autores da
violência escolar, é inadmissível que o problema seja ignorado ou considerado de menos
importância tanto pela comunidade escolar, como pela sociedade em geral e pelo Poder
Público.
Koichiro Matsura, Diretor-Geral da UNESCO, em 2004, na obra “Violência nas
Escolas” (30).
Os jovens reproduzem na escola as violências e tensões do mundo exterior. A família, a sociedade no seu conjunto, mas também e, sobretudo as escolas, são locais de transmissão desses valores culturais. A escola é, portanto, o local onde novos valores humanistas podem e devem ser transmitidos e onde eles devem desabrochar nas vivências quotidianas da sala de aula e da escola. É por isso que a UNESCO roga sem cessar pelo ensino generalizado dos direitos humanos e pela transmissão valores de tolerância, de não violência, de solidariedade, de respeito mútuo, através da reorganização de programas e textos escolares (2004, contracapa).
7.2.6.4 Medidas Contra a Violência e a Indisciplina Escolar Sugeridas Pela Escola Pesquisada
Foi apresentado aos professores participantes da pesquisa, em questionário, um leque
de medidas para a contenção da violência na escola pesquisada, a fim de que selecionassem
cinco e as apontassem por ordem de prioridade. Os resultados foram os seguintes:
155
1ª - Medidas preventivas de participação ampliada, baseadas na interação de atores
(estabelecimento de diálogo entre alunos, pais, professores e diretoria para solucionar a
violência e parceria entre escola e comunidade);
2ª - Qualificar a interação entre profissionais da educação e de outras áreas, como
psicólogos, assistentes sociais, conselheiros tutelares, policiais, juizes e promotores de justiça;
3ª - Medidas de segurança dentro e fora da escola (vigilância policial na escola e
intermediações);
4ª - Medidas de segurança ou de fiscalização na escola (instalação de detectores de
metais na entrada da escola; cercamento com muros altos ou grades de proteção; câmeras de
circuito interno de TV; contratação de vigilantes e agentes de segurança para fiscalizar
internamente a escola);
5ª - Medidas disciplinares orientadas para os alunos (disciplina mais inflexível com
expulsão dos que praticam atos irregulares).
Considerando que o conteúdo dessas sugestões já foi analisado no curso da presente
discussão de resultados, desnecessário repetir-se os comentários, evitando-se tautologia.
7.2.7 A Percepção da Atuação Ineficaz do Ministério Público no Cenário da Violência Escolar
Durante a realização da pesquisa, emergiu dado relevante acerca da atuação do
Ministério Público na escola: foi evidenciado o total desconhecimento da comunidade escolar
acerca das atribuições ministeriais. Observou-se que a instituição é identificada quase que
exclusivamente com sua atuação na esfera criminal, dado que causou surpresa à pesquisadora,
tendo em vista que trabalho de divulgação e esclarecimento sobre direitos/deveres, atribuições
e competências, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, já havia sido iniciado na
156
escola pesquisada quando da realização da pesquisa. Mas, ao mesmo tempo, motivou a
pesquisadora, como profissional integrante dos quadros do Ministério Público Riograndense,
a perseverar em sua atuação, repensando formas de abordagem e de aproximação da escola,
famílias e alunos, a fim de reduzir distâncias e favorecer a atuação institucional visando a
transformação social.
No que se refere ao relacionamento da escola com o Ministério Público foi ressaltado
pelos educadores o início de trabalho significativo, mas que deveria ser intensificado com
palestras e encontros no ambiente escolar. Referiram, ainda, a necessidade de desmitificar a
atuação do Promotor de Justiça, substituindo os sentimentos de temor e receio, presentes na
comunidade escolar.
Quanto aos alunos e responsáveis, a maioria dos entrevistados mencionou desconhecer
a finalidade da atuação do Ministério Público.
Sugestões relevantes emergem dos registros dos educadores, ao manifestarem-se sobre
a forma de interação entre família, escola e Ministério Público, capazes de contribuir para a
transformação positiva do cenário da indisciplina e da violência escolar.
Transcrevem-se, nesse sentido, as seguintes narrativas:
Professor 1: “Somente um trabalho integrado poderá reduzir a violência escolar, bem
como resgatar o papel de cada um. A família responsável pela educação do filho; a escola
responsável pelo acesso ao conhecimento, a Promotoria, zelando para que a criança tenha seus
direitos garantidos. A escola, a família e a Promotoria realizando um trabalho como parceiros,
terão mais força e êxito para resolverem os problemas do cotidiano”.
Professor 2: “É de suma importância a participação dos três segmentos, visto que a
família deve apoiar ajudando a cuidar as atividades e também cuidando da freqüência e dando
superior atenção a valorização dos estudos. A escola tem que cumprir a sua função social de
tentar, através da educação formal, elevar os discentes a patamares elevados de saber, moral,
157
ético e humano, buscando dar condições para poder ter acesso a postos de trabalho que
possam desencadear superações de toda a ordem. A escola tem que ser o lugar da superação e
busca do resgate do cidadão. A Promotoria, como representante estatal, deve esclarecer os
direitos e deveres dos alunos, pais e professores, para que efetivamente aconteçam essas
condições para diminuir a violência”.
Professor 3: “A interação só contribuirá positivamente para a transformação desse
cenário, pois através da família poderemos nos interar dos problemas dos alunos e qual os
motivos que os levam à violência. Já com relação à escola e Promotoria, só acrescentará, pois
tendo a união entre ambas, a família sentirá maior segurança e apoio para cobrar mais dos
seus filhos. Há uma imagem errônea com relação a Promotoria, que, segundo a visão da
família, só atua para punir e não para ajudar a orientar melhor caminho a seguir, com relação
a árdua tarefa de educar. Por isso, muitos pais estão lavando as mãos com relação a
estabelecer limites a seus filhos, acarretando no crescimento da violência. A unidade e a
motivação são indispensáveis para obter-se resultados positivos na solução dos problemas.
Família e professores deveriam traçar linha de atuação conjunto para dar mais força”.
Professor 4: “Se houver uma interação realmente, poderá haver melhoras. A
Promotoria pode atuar com palestras e a família deve estar mais presente na Escola”.
Em busca da transformação positiva do cenário da violência escolar, espera-se que a
atuação do Ministério Público torne-se efetiva e eficaz.
Na temática da violência escolar, por decorrência de imposição legal, necessária a
intervenção do Ministério Público, pelo Promotor de Justiça da Infância e Juventude, quando
da prática de ato infracional por adolescente. O Ministério Público, como destinatário da
atividade policial, desencadeia a aplicação de medida sócio-educativa, de natureza
sancionadora e conteúdo pedagógico.
Além dessa atribuição, o Ministério Público pode e deve ser acionado pela escola em
158
face à constatação de ameaça ou violação dos direitos e garantias individuais ou coletivos dos
alunos, pela ação ou omissão da família, sociedade ou Estado, adotando as medidas
extrajudiciais ou judiciais cabíveis. Nesse sentido, perante o Poder Judiciário, cabe ao
Promotor de Justiça, utilizando-se do instrumento da ação civil pública, submeter postulações
visando à defesa de interesses de ordem individual, coletiva ou difusos, de titularidade de
criança ou adolescentes, sob os fundamentos de uma tutela jurisdicional diferenciada.
Conforme assinala Martha de Toledo Machado (20):
Na base da noção de proteção integral está a idéia de efetivação dos direitos fundamentais. Logo, na criação de instrumentos jurídicos que assegurem essa efetivação. Um deles, como dito, são as políticas sociais públicas. Outro é a tutela jurisdicional. (...) penso que o respeito à peculiar pessoa em desenvolvimento está no centro, também, dos fundamentos de uma tutela jurisdicional diferenciada, que a noção de proteção integral demanda (2003, p. 140).
Ainda, há a possibilidade de a escola encaminhar ao Ministério Público caso
específico, geralmente relacionado à evasão escolar (como a implementação da FICAI – Ficha
de Comunicação do Aluno Infreqüente) ou a ato de indisciplina no âmbito da escola, depois
de esgotadas as providências ao alcance desta (tanto no plano pedagógico como normativo) e
realizada a intervenção do Conselho Tutelar.
O Ministério Público teve seu papel redesenhado com o advento do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que passou a demandar da instituição a adoção de novas posturas
na defesa desse segmento da sociedade, sempre que houver violação ou ameaça de violação
de seus direitos e garantias constitucionais e legais.
Constata-se, diante disso, a necessidade de que o Promotor de Justiça da Infância e da
Juventude de hoje, rompendo com a antiga postura de mero burocrata legal, seja socialmente
engajado e comprometido com o ideal de defesa da população infanto-juvenil. É preciso,
ainda, que conheça a realidade local onde atua, aproximando-se da comunidade a fim de
constatar suas demandas e, uma vez verificadas as necessidades, buscar soluções que evitem o
159
conflito e a via contenciosa, privilegiando a atuação política do Ministério Público,
demonstrando que a prevenção de litígios pode ser vantajosa para todos.
Segundo a Promotora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Mônica Rodrigues
Cuneo41 (2004, p. 46):
Atuando junto à comunidade, a partir do conhecimento da realidade local, poderá fomentar o implemento de políticas sociais públicas de grande significado para a infância, bem como incentivar e tensionar a malha social para a implantação de programas socioeducativos, de apoio familiar, de colocação em família substituta, dentre outros, colocando-se à disposição da sociedade para o enfrentamento e busca de soluções que melhor atendam às deficiências locais no atendimento às crianças e adolescentes, além de incutir junto ao Poder público e à sociedade, utilizando-se do respeito e da confiabilidade de que desfruta na comunidade, a relevância de se implementar, com absoluta prioridade, as disposições da Doutrina da Proteção Integral
.
Ainda, na condição de fiscal da lei, espera-se que atue como verdadeiro agente
político, interferindo positivamente na realidade social, inclusive cobrando das autoridades
públicas uma atuação mais eficiente na elaboração e implementação de políticas públicas
destinadas às crianças e adolescentes, especialmente a fim de assegurar o acesso aos direitos
fundamentais E, dentre esses, uma educação de qualidade.
Nesse contexto, é indispensável que o Promotor de Justiça da Infância e da Juventude
tutele com absoluta prioridade os direitos infanto-juvenis, contribuindo para a formação de
um novo Ministério Público, comprometido com os interesses da sociedade, com a visão de
que isso significa defender prioritariamente as camadas mais distantes do ideal de cidadania.
Somente assim estará contribuindo para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária,
fazendo valer a prioridade absoluta no tratamento das questões afetas à infância e juventude,
41 CUNEO, Mônica Rodrigues. Novos olhares, novos rumos: a proteção integral e a prioridade absoluta no Estatuto da Criança e do Adolescente e o Papel do Ministério público diante dos novos paradigmas. Revista Juizado da Infância e Juventude. Publicado por Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Corregedoria-Geral da Justiça. Porto Alegre: Departamento de Artes Gráficas do TJRS, ano II, n. 3 e 4, p. 46, 2004.
160
efetivando, plenamente, a proteção integral de seus direitos fundamentais, dentre eles o direito
à educação, conferindo a tão pretendida dignidade às crianças e adolescentes brasileiros.
Finalmente, como agentes de transformação social, espera-se ainda, que os Promotores
de Justiça atuem preventivamente aos atos de indisciplina ou de violência, contribuindo para o
esclarecimento da comunidade escolar (alunos, professores, orientadores, direção,
funcionários, pais), da Sociedade em geral e do Estado (este responsável pela execução das
políticas básicas) acerca de seus direitos e deveres.
Mas, para atingir os objetivos esperados, dois obstáculos devem ser transpostos:
primeiro, os Promotores de Justiça devem introjetar em seu pensar e em seu agir a revolução
de princípios proposta pelo ECA, ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos, beneficiados pela proteção integral e pela prioridade absoluta, sensibilizando-se para
a proposta da legislação, para, após, trabalha-la com os profissionais de áreas estranhas ao
Direito. Em segundo lugar, precisam buscar formação e especialização ampliada, que
contemple conteúdos de outras áreas do conhecimento, como a educação, a psicologia (social
e educacional), o serviço social e a antropologia.
7.2.8 A Ausência de Proposta de Educação Para Valores na Escola
Observa-se nas sociedades atuais, especialmente nas escolas, que a temática da
construção de valores não têm sido muito discutida. Em que pese às escolas trabalhem
indiretamente (de forma consciente ou não) valores com seus alunos, essa atuação é incipiente
e desarticulada, baseando-se nos valores e na moralidade de cada grupo ou professor, mesmo
que, em alguns casos, estes não estejam de acordo com os interesses gerais da sociedade. Por
exemplo, quando apresentam práticas e discursos discriminatórios. Nos últimos anos não se
constata política pública de valorização do tema e nem formação profissional para que uma
161
educação moral calcada em valores humanitários de justiça, igualdade de direitos e cidadania
fosse adotada nas escolas brasileiras.
Na escola pesquisada, essa realidade está presente. Observaram-se escassas
referências, pelos educadores pesquisados, acerca da importância da construção de valores
favorecida pela escola. Apesar de a aquisição de valores estar presente em diversas passagens
do regimento escolar do estabelecimento de ensino pesquisado (em anexo), especialmente ao
referir os objetivos da escola e o processo pedagógico desta, constando como filosofia da
escola “educar para formar um cidadão capaz de integrar-se no meio em que vive,
acompanhando as mudanças, de acordo com os princípios de responsabilidade, ética,
criatividade, lealdade e justiça”, os educadores entrevistados praticamente não se referiram a
ela e, quando o fizeram, demonstraram estarem trabalhando de forma desarticulada e
incipiente.
No presente estudo, as reflexões acerca da proposta de educação para valores como
fator de prevenção à violência escolar foram desenvolvidas a título de alternativa para
enfrentar o problema.
Questiona-se hoje se estamos frente a uma humanidade sem humanidades, substituída
por especialidades técnicas que mutilarão as futuras gerações de visão histórica, filosófica
(ética e valorativa) e literária, imprescindível para o desenvolvimento completo da
humanidade.
O temor parece justificado. Os programas de ensino tendem a reforçar os
conhecimentos científicos ou técnicos de utilidade prática e imediata, diretamente aplicáveis
ao trabalho.
A questão das humanidades, dos valores e da ética não reside no título das matérias a
serem ensinadas, nem em seu caráter científico ou literário: todas são úteis, muitas são
oportunas e há as que são imprescindíveis. Considera-se que o êxito no trabalho das aludidas
162
questões não reside em seu conteúdo intrínseco, fora do tempo e do espaço, mas na maneira
adequada de transmiti-las, aqui e agora.
Em vários momentos do presente trabalho, referiu-se que as expectativas em torno da
escola são grandes. Espera-se que a escola, além de preparar para a realização profissional,
estimule o aluno a educar suas emoções, a lidar com os seus medos, conflitos, frustrações,
dores e perdas, com sua ansiedade e agressividade, canalizando-os para ações que resultem
em benefícios sociais e para novas formas de relações capazes de produzir empatia,
favorecendo assim o aumento da probabilidade de a criança tornar-se um adulto equilibrado e
feliz.
Parte-se do pressuposto de que se as crianças encontrarem em sua vida professores
capazes de dar-lhes apoio e segurança, e de ajudá-las a educarem suas emoções por meio de
estímulos positivos, que despertem sentimentos de confiança, amizade e amor, provavelmente
crescerão saudáveis e estarão empenhadas na construção de uma sociedade promotora da
paz.
Ainda, o professor precisa suscitar no aluno o desejo de aprender. Desenvolver
competência como a convivência democrática na sociedade plural, implica em desenvolver as
capacidades de respeito e tolerância e o entendimento de que a educação opera-se ao longo da
vida, aproximando-se do conceito de sociedade educativa, onde tudo pode ser ocasião para
aprender e desenvolver talentos.
Da família, como primeiro espaço educacional, espera-se que assegure a ligação entre
o afetivo e o cognitivo, bem como a transmissão de normas e valores.
Mas as relações da entidade familiar com o sistema educativo são, às vezes,
antagônicas: os saberes transmitidos pela escola podem opor-se aos valores da família, ou,
algumas famílias vêem a instituição escolar como um mundo estranho, que não
compreendem.
163
Um diálogo verdadeiro entre pais e professores é necessário, pois o desenvolvimento
harmonioso das crianças e adolescentes implica na complementaridade entre educação
familiar e escolar. Estreitando esses laços, as famílias conhecerão e respeitarão mais o sistema
escolar.
Cada um aprende ao longo de toda a sua vida no seio do espaço social constituído pela
comunidade a que pertence. A educação deriva da vontade de viver junto e de buscar a coesão
do grupo num conjunto de projetos comuns: a vida associativa, a participação numa
comunidade religiosa, os vínculos políticos, concorrem para essa forma de educação. E a
escola deve manter-se ligada ao ambiente social.
Assim, a comunidade constitui um poderoso vetor de educação, pela aprendizagem da
cooperação e da solidariedade, e pelo aprendizado ativo da cidadania.
A escola deve, em colaboração com os meios de comunicação, cultivar a abertura a
museus, teatros, bibliotecas, cinema e de um modo geral, ao conjunto dos espaços culturais,
incentivando, assim, o sentido da emoção estética e o desejo de familiaridade com as diversas
criações do espírito humano.
Importa, ainda, a superação do antagonismo entre educação e os meios de
comunicação. De um lado, os educadores criticam os meios de comunicação, especialmente a
televisão, por impor uma espécie de mínimo denominador comum cultural, de reduzir o
tempo dedicado à reflexão e à leitura, por impor imagens de violência e de especular com as
emoções. Contrário senso, o sistema escolar é acusado de imobilismo e de recorrer a métodos
antiquados para transmitir saberes ultrapassados, provocando nos alunos desinteresse e até
aversão à aprendizagem.
De qualquer forma, é inegável que os meios de comunicação integram nosso espaço
cultural e seus objetivos nem sempre são de natureza educativa, mas têm poder de sedução, e
isso deve ser levado em consideração. Assim, o sistema escolar deve servir-se deles para os
164
seus próprios fins: 90% das escolas do Japão utilizam a televisão como instrumento
pedagógico (DELORS42, 2004, p. 115).
A escola tem uma responsabilidade específica em relação aos meios de comunicação,
sobretudo a televisão, em face de esta ocupar espaço cada vez maior na vida dos alunos
(1.200 horas/ano na Europa Ocidental e o dobro nos EUA, sendo que as mesmas crianças
passam na escola cerca de 1.000 horas) (42) (2004, p. 116). É importante ainda, que os
professores estimulem uma leitura crítica que leve os alunos, por si, a usá-la como
instrumento de aprendizagem, fazendo a triagem e analisar as múltiplas informações.
Mister insistir sempre nesta finalidade essencial da educação: levar cada um a cultivar
as suas aptidões, a formular juízos e, a partir daí, a adotar comportamentos livres.
8 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES GERAIS
As considerações e conclusões abaixo consistem em uma tentativa de reunião do
referencial teórico estudado com os resultados da pesquisa, qualitativamente considerados.
Perseguiu-se, durante a realização do trabalho, a constatação acerca da participação da
família e da escola, como as principais instituições socializadoras, no cenário da violência
escolar, com ênfase na função da educação, especialmente quanto à construção de valores.
Nesse intento, partiu-se de reflexões em torno dos temas valores, ética e convivência
humana. Seguiu-se com a análise da educação familiar e escolar atual e de sua influência no
comportamento dos alunos, tendo-se observado que as crises de identidade (quanto às
42 DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir – 9 ed. – São Paulo: Cortez; Brasília, DF: MEC: UNESCO, 2004. “Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXI”, p. 115
165
funções, inclusive na construção de valores) e de autoridade da família e da escola, aliadas a
ausência de proposta de educação para valores nesta última, bem como o relacionamento
tenso e confuso entre ambas, contribuem para a propagação da violência escolar.
Considerando ser a família o principal núcleo de socialização do indivíduo e, portanto,
o agente primeiro para garantir a efetividade do Direito à Educação, os demais núcleos
socializadores devem atuar como associados e não substituí-la. No entanto, o que se observou
foi que, apesar de a família atual permanecer com as atribuições de cuidar e educar sua prole
tem se manifestado sem referenciais para dar conta dessa tarefa. Os alunos chegam a escola
com um núcleo básico de socialização insuficiente para enfrentar com êxito a função do
aprendizado.
E a escola, além de não realizar suas tarefas específicas como no passado, começa a
ser pressionada a atender novas demandas, para as quais não está preparada. Essa perda de
referência com relação às funções é também uma perda do status do professor. Enquanto sua
formação atual é praticamente a mesma de há um século, o nível geral do público elevou-se e
a dissonância daí decorrente reflete-se nas crises de identidade e de autoridade da escola.
O valor da educação atravessa um período de questionamento, sob diversas alegações:
por perda da qualidade e da autoridade; por não preparar para o mercado de trabalho, por não
estar centrada na formação do homem integral, por não corresponder à expectativa de
proporcionar segurança aos jovens.
Enquanto a função educacional da família e da escola está em crise, a função
educacional da televisão ocupa espaço cada vez maior, proporcionando que as crianças
tenham contato com tudo desde cedo, desrespeitando qualquer trâmite pedagógico.
Contudo, espera-se a superação do antagonismo entre educação e os meios de
comunicação, a fim de que estes sejam utilizados como ferramentas educacionais. De um
lado, os educadores criticam os meios de comunicação, especialmente a televisão, por impor
166
uma espécie de mínimo denominador comum cultural, de reduzir o tempo dedicado à reflexão
e à leitura, por impor imagens de violência e de especular com as emoções. Paralelamente, o
sistema escolar é acusado de imobilismo e de recorrer a métodos antiquados para transmitir
saberes ultrapassados, provocando nos alunos desinteresse e até aversão à aprendizagem.
A questão da demissão familiar surgiu em vários momentos durante a realização do
trabalho. Foi constatado o reduzido envolvimento da família com o quotidiano escolar dos
adolescentes, evidenciado quer pelas reclamações da escola, quer pelo expresso sentimento de
“abandono” por parte dos alunos e, ainda, pela clara assunção de “culpa” pelos familiares
responsáveis.
Observou-se pais considerando-se incapazes de educar seus filhos, principalmente
quando estes ingressam na adolescência, e reconhecendo sua impotência quanto ao
estabelecimento de regras e limites. E o efeito direto do esvaziamento da família como
autoridade na criação dos filhos consiste na sua estigmatização, ao assumir a posição de
“incompetente” nessa tarefa, instalando-se, simultaneamente, como vítima e responsável por
sua condição, fragilizando seus laços afetivos e sua coerência interna, contribuindo para que
influências externas, nem sempre positivas, obtenham êxito na socialização das crianças.
Assim, essa desqualificação da família pode ser considerada uma das principais causas
de seu distanciamento das atribuições de educar e criar seus filhos. Em decorrência disso,
verificou-se deficiências significativas na comunicação e no entendimento entre os
responsáveis e os adolescentes.
Nesse contexto, foi classificada como ruim, pela maioria dos alunos entrevistados, as
relações dos adolescentes entre si, com a família e com os professores, conduzindo-nos à
reflexão acerca da educação que estamos proporcionando-lhes, a qual sequer prepara-os para
a convivência humana.
167
Além de os jovens não considerarem a escola um espaço privilegiado para a
convivência humana, manifestaram não gostarem das aulas, evidenciando a dificuldade dos
professores em despertar o interesse dos alunos, fatores que fazem com que estes não
considerem atrativo o ambiente escolar.
No que se refere à educação para valores verificou-se a preocupação da família em
transmiti-los às suas crianças e adolescentes. Entretanto, desperta preocupação a constatação
acerca dos modelos educacionais reproduzidos pelas famílias, caracterizados pela tendência
ao individualismo, competitividade, superficialidade e redução do sujeito a “coisa
descartável”. Quanto à escola, não demonstrou empenho em auxiliar a família na educação
moral, restringindo sua atuação a mera transmissão de conhecimento intelectual.
Apontou-se para a necessidade de ser fomentada, no âmbito familiar e escolar, a
educação para valores universais, como a tolerância, a solidariedade, a fraternidade e a justiça,
visando favorecer a convivência qualificada entre os seres humanos, a fim de combater e
evitar atos de violência e indisciplina na escola.
Em semelhante sentido, mostrou-se indispensável que a escola preveja em seu
Regimento regras claras, que refletem os valores, que devem ser comuns e conhecidos por
todos no processo de interação, e normas predefinidas, a serem observadas pela Direção para
lidar ou inibir a indisciplina e a violência, prevendo sanções para os casos de descumprimento
das regras. Punições essas, previstas no Regimento Escolar, que deverão ser aplicadas de
forma igualitária e equânime, a todos os alunos que transgredirem as regras. Quanto às fichas
disciplinares individuais, resultou caracterizada a premência de passarem a ser preenchidas de
forma esclarecedora, especificando a conduta transgressora e a punição correspondente, a fim
de afastar a imagem da escola como lócus privilegiado de violência simbólica.
Ainda, sinalizou-se para a premência de os educadores serem sensibilizados para
almejarem uma formação profissional mais ampla e qualificada, que, além de auxiliá-los a
168
identificar os casos de violência escolar, evitando a sua banalização, os permita atuar com
eficiência, segurança e satisfação, impedindo que continuem a integrar o rol dos praticantes de
violência (institucional ou simbólica) contra os alunos.
Partindo da constatação da existência de nexo causal entre a violência e a quebra de
diálogo, da capacidade de negociação, de tolerância e de convivência, quando o conflito
substitui a comunicação, o estudo pretendeu, além de identificar a violência escolar, propor
medidas de combate às violências nas escolas, baseando-se na literatura e nas manifestações
de alunos, familiares e educadores, anunciando uma vontade por uma cultura de paz, que
perpassa por políticas públicas preventivas e pela revisão de pedagogias e gestão escolar.
Observou-se também, no contexto da violência escolar, a inexistência ou a freqüente
ineficácia da intervenção de profissionais de áreas estranhas à educação, além de muitas vezes
esta ser considerada intromissão pelos professores, principalmente em se tratando de
membros do Conselho Tutelar ou do Ministério Público. Constatou-se, ainda, o
desconhecimento dos integrantes da comunidade escolar pesquisados (alunos, responsáveis e
educadores) acerca do conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Diante disso, pretendeu-se sugerir a maior aproximação entre a comunidade escolar e
os profissionais de áreas diversas à educação, especialmente os membros do Ministério
Público. E, quanto a estes, antes de intencionar divulgar a proposta de universalização de
Direitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, atenta-se para a necessidade de além de
introjetar os princípios basilares do Estatuto (a proteção integral e a prioridade absoluta) em
seu pensar e em seu agir, aprimorem sua formação, ampliando-a com a inclusão de conteúdos
originalmente afeitos a outras áreas do conhecimento, como a educação, a psicologia (social e
educacional) e a antropologia.
Buscando a superação da antiga discussão em torno das funções da família e da escola,
e visando a efetivação do Direito à Educação, na forma constitucional e legalmente prevista
169
no Brasil, propôs-se uma mudança de atitude por parte de ambos os núcleos de socialização, a
fim de que se unam na tarefa de educar, transmitindo e construindo valores, pelo exemplo e
com afetividade, amando, respeitando e disciplinando crianças e jovens.
O indivíduo educado sem amor contribui para a perpetuação da sociedade em que
vivemos, na qual o individualismo, o egoísmo, a indiferença e a intolerância impedem o ser
humano de alcançar seu maior objetivo: ser feliz!
Seres humanos precisam ser orientados. E consiste em dever legal da família e da
escola a educação que trabalhe com as crianças e adolescentes a noção de fraternidade
universal, capaz de congregar a diversidade social infinita. O gesto de percebermos o outro
como concorrente deve ser substituído, sob a orientação ética, pelas noções de bem comum e
de sociedades igualitárias, formadas por homens capazes de sentir e pensar, na busca da
convivência possível. E, para ter preocupações éticas, deve desenvolver a capacidade de ver o
outro como um ser legítimo na relação.
Mas, para serem atingidos esses objetivos, necessariamente deve-se refletir acerca da
educação que se deseja.
8.1 Os Quatro Pilares da Educação
O relatório Jacques Delors (42), apresentado a UNESCO, aponta para a educação do
século XXI. A Comissão Internacional sobre educação que o elaborou, identificou tendências
e necessidades no cenário de incertezas que caracterizam este fim de século.
Visando atender à multiplicidade de questões originadas da diversidade, o Relatório
destaca quatro pilares básicos essenciais a um novo conceito de educação: aprender a
conhecer, aprender a viver juntos, aprender a fazer, aprender a ser.
170
Os pilares citados são sugeridos como essenciais para a construção de um novo
paradigma de valorização da vida e dos seres, uma educação que revele o tesouro escondido
em cada um.
Nesse intento, não há como restringir a educação a uma visão imediatista, mas sim,
construir espaços para considerá-la em sua plenitude: na busca da realização da pessoa, que
aprende a ser. E as soluções apontadas aos problemas ampliam as tarefas do Poder Público e
da própria sociedade civil.
Sob a perspectiva da educação para o século XXI, observa-se que uma educação
puramente quantitativa, que proponha grande acúmulo de conhecimento no começo da vida, é
inadequada. É necessário que a educação esteja à altura de aproveitar e explorar, durante toda
a vida, todas as ocasiões de atualizar, aprofundar e enriquecer os primeiros conhecimentos, e
de adaptar-se a um mundo em mudança.
E, na busca de compreender o conjunto das suas missões, a proposta consiste em que a
educação organize-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, no transcurso de
toda a vida, serão pilares do conhecimento do indivíduo:
a) Aprender a conhecer – combinando cultura geral e a possibilidade de aprofundar
alguns conhecimentos, significa aprender a aprender, para beneficiar-se das
oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida;
b) aprender a fazer – a fim de adquirir, não somente qualificação profissional, mas
competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar
em equipe. Também, possui o sentido de o indivíduo intervir em seu contexto, nas
diversas experiências sociais ou de trabalho;
c) aprender a viver juntos – desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das
interdependências, estimular a realização de projetos comuns e a preparação para gerir
171
conflitos, observando o respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e
da paz;
d) aprender a ser – via essencial, que integra as demais competências. Proposta que busca
o melhor desenvolvimento da personalidade, estimulando o agir com capacidade de
autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Nesse intento, não deve ser
negligenciada na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória,
raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.
e) o ideal seria que cada um dos “quatro pilares do conhecimento” seja objeto de igual
atenção por parte do ensino, para que a educação represente uma experiência global,
que se protrai no tempo, ao longo da existência.
Em face do contexto em que vivemos, onde os sistemas educativos formais tendem a
privilegiar o acesso ao conhecimento, em detrimento de outras formas de aprendizagem,
importa conceber a educação como um todo. E esta perspectiva deve inspirar e orientar as
reformas educativas, tanto em nível de elaboração de programas como da definição de novas
políticas pedagógicas.
Em função do tema delimitado no presente trabalho, interessa-nos, no momento,
aprofundarmos o estudo de um dos pilares do conhecimento: o aprender a conviver.
A aprendizagem de viver com os outros representa, atualmente, um dos maiores
desafios da educação, diante de um mundo em que a violência se opõe a esperança na
evolução da humanidade.
A história humana sempre foi conflituosa, mas há elementos introduzidos no século
XX que acentuam o risco, diante do extraordinário potencial de autodestruição criado pelo
homem.
Diante disso, questiona-se: será possível conceber uma educação capaz de evitar os
conflitos, ou de resolvê-los de maneira pacífica?
172
A tarefa de ensinar a não violência nas escolas é árdua, pois os seres humanos,
naturalmente, tendem a supervalorizar as suas qualidades e as de seu grupo, nutrindo
preconceitos em relação aos demais. Alia-se, ainda, o clima geral de competição e de sucesso
individual, lamentavelmente, muitas vezes, estimulado pelas escolas.
Para melhorar a situação não basta pôr em contato e em comunicação membros de
grupos diferentes (por meio de escolas comuns a várias etnias ou religiões, por exemplo). É
necessário que, além do espaço comum, que o contato seja feito num contexto igualitário
(regras equânimes) e que haja objetivos e projetos comuns, pois assim os preconceitos e
hostilidade poderão desaparecer, dando lugar à cooperação e talvez à amizade.
Seria importante que a educação utilizasse duas vias complementares: primeiro, a
descoberta progressiva do outro e, segundo, ao longo de toda a vida, a participação em
projetos comuns.
8.2 A Descoberta do Outro
A educação deve ter por escopo ensinar sobre a diversidade da espécie humana e
despertar a consciência das semelhanças e interdependências entre os seres do planeta. Desde
a tenra idade a escola deve aproveitar todas as ocasiões para esta dupla aprendizagem.
A família, a comunidade e a escola têm a responsabilidade de auxiliar a criança e o
adolescente a conhecerem a si mesmos e, a partir daí, desenvolverem a atitude de empatia,
posicionado-se no lugar dos outros e compreendendo as suas reações.
Os educadores, na condição de modelos, precisam reforçar em seus alunos a
capacidade de abertura à alteridade e de enfrentar inevitáveis tensões entre pessoas, grupos e
nações. O confronto pelo diálogo e pela troca de argumentos é um dos instrumentos
indispensáveis è educação do século XXI.
173
Consoante Maturana (10), o amor “é o domínio de condutas relacionais através das
quais o outro surge como um legítimo outro em convivência com alguém; e a agressão é o
domínio dos comportamentos relacionais através dos quais o outro é negado como um
legítimo outro em convivência com alguém” (2000, p. 15).
8.3 Tender Para Objetivos Comuns
A finalidade desses projetos deve ser a estimulação dos alunos para que ultrapassem as
rotinas individuais e valorizem aquilo que é comum e não as diferenças.
Algumas sugestões de projetos nesse sentido consistem em atividades desportivas e
culturais, atividades sociais, como ações humanitárias, ajuda aos menos favorecidos, serviços
de solidariedades entre as gerações, renovação de bairros... Todos são projetos que, além de
estimular valores positivos, enriquecem a relação educador/educando.
No Brasil, algumas poucas instituições adotaram como bússola pedagógica as idéias
contidas no Relatório da UNESCO, coordenado por Jacques Delors, e as do economista
indiano Amarthya Sen, utilizadas na construção do Paradigma do Desenvolvimento Humano
do PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento43.
O relatório foi adotado como balizador ético-político por essas instituições,
evidenciando que a grande tarefa histórica de nossa geração é buscar a diminuição da
distância entre o nosso PIB – Produto Interno Bruto (12º do mundo) e o nosso IDH – Índice
de Desenvolvimento Humano (65º). E isso passa pelo balanceamento entre desenvolvimento
econômico e equidade social (dados divulgados pelo PNUD em 2003).
Tanto o Desenvolvimento quanto os Direitos Humanos estão diretamente relacionados
aos princípios de liberdade, no sentido de garantir que o indivíduo esteja livre de
43 SEN, Amarthya. Desenvolvimento como Liberdade. Trad.: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
174
necessidades, violências, discriminações e livre para organizar-se, colocar-se, tomar decisões
(dentro da expectativa dos Direitos). Na esfera do desenvolvimento humano, a liberdade está
expressa no processo de ampliação de oportunidades e opções dadas a esse indivíduo para que
ele possa de fato, desenvolver seus potenciais (43).
Das análises tecidas no presente trabalho, considera-se que contribuição relevante
aponta para a proposta de implementação de um Paradigma do Desenvolvimento Humano.
E, para isso, socorre-se das reflexões do economista indiano Amarthya Sen e do pedagogo
Antônio Carlos Gomes da Costa 44.
O paradigma sugerido parte da consideração de que a vida é o mais básico e
universal dos valores, portanto, respeitá-la acima de tudo é o caminho para a justiça, a
solidariedade e a paz. Em uma perspectiva de igualdade, em que todo ser humano tem direito
ao acesso a condições básicas de bem-estar e dignidade, nenhuma vida humana tem mais
valor do que a outra.
Prossegue-se com a reflexão de que toda pessoa nasce com um potencial e tem o
direito de desenvolvê-lo, e qualquer condição impeditiva de que isto ocorra é, em si, uma
violência. Mas, para desenvolver o seu potencial, as pessoas precisam de oportunidades, e
as oportunidades educativas são aquelas que verdadeiramente desenvolvem o potencial
humano.
Nessa linha de raciocínio, o que uma pessoa se torna ao longo da vida depende de
duas coisas: das oportunidades que teve e das escolhas que fez. Assim, além de ter
oportunidades, as pessoas precisam ser preparadas para fazer escolhas, e as escolhas são
feitas com base nas crenças, valores, pontos de vista e interesses.
Perseguindo o ideal de responsabilidade social, cada geração deve legar para as
gerações vindouras um meio ambiente igual, ou melhor, do que aquele recebido das
44 COSTA, Antônio Carlos Gomes da; André, Simone. Educação para o Desenvolvimento Humano. São Paulo: Saraiva: Instituto Ayrton Senna, 2004.
175
gerações anteriores, pois isso significa respeitar o direito à vida daqueles que ainda não
nasceram. No mesmo sentido, os indivíduos, as organizações, as comunidades e as sociedades
devem ser dotados de poder para participar nas decisões que as afetam. Só o poder
participativo dos cidadãos poderá mudar os demais poderes: executivo, legislativo e
judiciário.
A promoção e a defesa dos Direitos Humanos seriam o caminho para a
construção de uma vida digna para todos, consistindo a Declaração Universal dos Direitos
Humanos em um projeto de humanidade a ser construído por todos e para cada um dos povos
ao longo da história. E a melhor forma de fazer os Direitos Humanos transitarem da
intenção à realidade traduz-se no exercício consciente da cidadania, esta entendida como
direito de ter direitos e dever de deveres.
Por fim, a política de desenvolvimento deve basear-se em quatro esteios:
liberdades democráticas, transformação produtiva, eqüidade social e sustentabilidade
ambiental.
E a ética necessária para pôr em prática o Paradigma do Desenvolvimento
Humano é a ética da co-responsabilidade. Co-responsabilidade entre as políticas públicas
(primeiro setor), mundo empresarial (segundo setor) e organizações sociais sem fins
lucrativos (terceiro setor).
Os jovens brasileiros, vivendo em um país de desigualdades e falta de oportunidades,
precisam encarar e transformar essa realidade, como protagonistas.
A pedagogia voltada para a formação para a autonomia, solidariedade e
desenvolvimento de competências, ligada ao Paradigma do Desenvolvimento Humano,
acontece sobre três eixos: protagonismo juvenil, educação para valores e cultura da
trabalhabilidade45.
45 COSTA, Antonio Carlos Gomes da. Protagonismo juvenil, mobilização social e capital social – três conceitos. Belo Horizonte: Modus Faciendi Desenvolvimento Social e Ação Educativa, 1998.
176
Esses três eixos de trabalho são explorados por Antônio Carlos Gomes da Costa nas
obras Protagonismo juvenil, mobilização social e capital social – três conceitos e Tempo de
Crescer, uma compilação de textos para a juventude.
Por fim, um dos saberes indispensáveis a quem trabalha em realidades marcadas pela
traição a nosso direito de ser é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade
ou determinismo. O mundo não é. Está sendo. O papel do educador, como subjetividade
curiosa, inteligente, interferidora e presente, deve ser o de quem intervém na realidade. Deve
constatar, não para adaptar-se, mas para mudar.
Ninguém pode estar no mundo de forma neutra, apenas constatando. Devemos buscar
inserção, que implica em presença, decisão, escolha e intervenção na realidade.
177
9 IMPLICAÇÕES E SUGESTÕES
Após contextualizar-se o tema, interessa, nesses momentos derradeiros de
considerações, esclarecer que a proposta inicial do trabalho consistia em analisar a atuação da
família e da escola no cenário da violência escolar (incluídos nesse conceito os atos de
indisciplina na escola).
Contudo, ao aprofundar-se o tema, procedendo-se a verdadeira dissecação das
entranhas da escola, surgiu à constatação da dificuldade dos operadores do Direito em
enfrentar a problemática da violência escolar. Sentiram-se, principalmente, as deficiências
traduzidas por um ensino limitado do Direito, evidenciando a necessidade urgente de os
cursos de formação e especialização investirem na melhoria do ensino desses profissionais,
revendo conceitos e posições, a fim de serem introduzidos em seus currículos conhecimentos
outros, em áreas como a educação, psicologia e antropologia.
Somente ampliando o estudo aos demais ramos dos saberes, que deverão atuar de
forma convergente (ou buscando a consiliência), e mediante uma mudança de atitude também
dos profissionais do Direito quanto à forma de ver o ECA, pode-se esperar mudanças
significativas em sua atuação, que, então estará qualificada
O biólogo americano Edward O. Wilson46 defende a unidade fundamental de todo o
conhecimento e a necessidade de uma busca da consiliência, ou seja, a prova de que tudo no
mundo está organizado conforme um número reduzido de leis naturais fundamentais, que
compreendem os princípios subjacentes a todos os ramos do saber. E a expressão consiliência
46 WILSON, Edward O. A unidade do conhecimento. Trad.: Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
178
é adotada pelo autor, em lugar de “coerência”, por ter conservado a precisão de seu
significado, literalmente, como “salto conjunto” do conhecimento pela ligação de fatos com a
teoria baseada em todas as disciplinas para criar uma base comum de explicação.
Wilson (45) (1999, p.2) utiliza a interessante expressão “Encantamento Jônico” para
significar a crença na unidade das ciências, com uma convicção bem mais profunda do que
mera proposta de trabalho, de que o mundo é ordenado e pode ser explicado por um pequeno
número de leis naturais. Suas raízes remontam a Tales de Mileto, da Jônia, no século sexto
a.C.
Lastreando-se nos estudos já analisados de Edgar Morin e de Wilson, em que, segundo
este, o maior empenho da mente sempre foi a tentativa de ligação das ciências com as
humanidades, constata-se os reflexos negativos da fragmentação constante do conhecimento
na educação. Segundo Morin, a solução seria o pensamento sistêmico e, consoante Wilson, “a
consiliência é a chave da unificação” (1999, p. 7).
Assim, não obstante a via a ser seguida, o importante é que se alcance a superação do
modelo educacional atual, sedimentado na fragmentação e desumanização do conhecimento.
A intenção do presente trabalho é de tentar apontar saídas, sinalizando para a
necessidade de prevenirmos e combatermos a violência na vida de nossas crianças e
adolescentes, já em suas manifestações iniciais, no âmbito escolar, a fim de evitar a
disseminação de uma subcultura especificamente ligada ao mundo da violência, com valores,
rotinas, linguagens e símbolos próprios, consoante evidenciado na obra “Cabeça de Porco”
47.
Insta mencionar, por fim, a necessidade de despertar os educadores (pais,
responsáveis, professores...) para a importância de fazerem-se presentes na vida dos
educandos. A presença é apontada como o cerne, o objetivo maior da ação educativa dirigida
47 SOARES, Luis Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de Porco. Rio de Janeiro: Objetiva Ltda, 2005.
179
ao adolescente em situação de dificuldade pessoal e social, inclusive envolvidos em atos de
indisciplina ou violência (e em atos infracionais).
A aprendizagem da presença, tarefa de alto nível de exigência, requer a dedicação do
educador ao ato de educar, a disponibilidade de “estar junto ao educando” para traduzir-se em
ação eficaz.
O educador Antônio Carlos Gomes da Costa, ao lançar sua proposta pedagógica da
“Pedagogia da Presença”, aduz: “Pela proximidade, o educador acerca-se ao máximo do
educando, procurando identificar-se com a sua problemática, de forma calorosa, empática e
significativa, buscando uma relação realmente de qualidade” 48.
O autor atenta para as reações que seriam esperadas de uma presença construtiva na
vida de um adolescente, Sugere que, diante de manifestações do educando como impulsos
agressivos, revoltas, inibições, intolerância, apatia, cinismo, alheamento e indiferença, deve o
educador situar-se num ângulo que lhe permita enxergar, além dos aspectos negativos, o
pedido de auxílio de alguém que, de forma confusa, se procura e se experimenta em face de
um mundo, a seus olhos, cada vez mais hostil e inteligível.
A orientação básica desta pedagogia, que busca que o educador assuma um papel
realmente emancipador, é resgatar e reforçar o que há de positivo na conduta dos jovens em
dificuldade, sem rotulá-los em categorias baseadas apenas em suas deficiências.
O ato de estar junto do educando envolve consentimento, reciprocidade e respeito
mútuo, convocando o educador para empenhar-se na tarefa também como pessoa humana e
cidadão.
Nesse intuito, é indispensável que o educando sinta ter valor para alguém e ser aceito,
desenvolvendo a consciência de aceitação, acolhimento, pertinência, integração e aconchego.
Pois os laços só são verdadeiros, contribuindo construtivamente para o existir, quando são
48 COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Pedagogia da Presença: da solidão ao encontro. 2. ed. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 2001.
180
frutos de uma troca, de um liberar e restringir acolhidos livremente.
A reciprocidade, entendida como interação entre pessoas que se revelam mutuamente,
aceitando-se e comunicando-se, é outro fator indispensável na Pedagogia da Presença.
Freqüentemente é o que explica os sucessos inesperados, quando desaparecidas as esperanças
razoáveis. Em busca desses resultados, surge uma pessoa-chave que compreendeu o jovem e
acolheu suas vivências, sentimentos e aspirações, filtrou-se a partir de sua própria experiência
e comunicou-lhe, com clareza, a solidariedade e força para agir.
A presença aberta, afetiva, solidária e contínua do educador deve contribuir para
despertar a auto - estima e amor próprio e ao próximo, favorecendo a convivência deste nos
contextos amplos, como a família, a escola, a comunidade e o trabalho.
Partindo-se do entendimento de que o objetivo da vida é crescer, evoluir, nenhum
esforço é demasiado nesse sentido. Apenas compreendendo isto, será possível que o educador
ajude alguém em seu caminho evolutivo, tornando sua presença realmente significativa.
Significar é assumir diante de alguém uma atitude de não-indiferença. Quando
deixamos de ser indiferentes diante de algo, aquilo assume para nós um valor (positivo ou
negativo). É desta valorização que nasce o significado da pessoa para nós. O valor que, em
determinado momento, esta vida tem para nossa vida.
O traço comum entre as pessoas que exercem influência sobre outras, tornando-se
significativas, consiste nas habilidades de lidar com outras pessoas.
Costa (48) (2001, p. 84-85), apresenta seis dimensões básicas (atitudes construtivas)
na relação terapêutica, mas que valem para o processo de ajuda como um todo. São elas:
empatia (capacidade de colocar-se no lugar do outro); aceitação incondicional ou respeito
(acolher); congruência (capacidade de ser autêntico, verdadeiro); confrontação (capacidade
de perceber e comunicar ao outro discrepâncias ou incoerência de seu comportamento –
distância entre o que fala e o que faz); imediaticidade (capacidade de trabalhar a própria
181
relação, abordando sentimentos imediatos durante o processo); concreticidade (capacidade
de decodificar a experiência do outro em elementos objetivos e concretos, para que ele possa
compreender sua experiência).
A efetividade de um processo de ajuda mede-se pelas mudanças que ele foi capaz de
desencadear. E a mudança no sentido positivo e construtivo significa crescimento físico,
emocional e intelectual.
Conforme o enfoque da Pedagogia da Presença considera-se socializado o jovem que
dá importância a cada membro da sua comunidade e a todos os demais, respeitando-os na sua
pessoa, em seus direitos e nos seus bens. Agirá não apenas por força de lei ou por meio de
sanções, mas por uma ética pessoal que determina o outro como valor em relação a si
próprio.
Assim, é imprescindível tenha-se em mente que o Direito à Educação, idealizado
constitucionalmente e pela legislação infraconstitucional, abrange o direito ao acesso, à
permanência e ao sucesso na escola, sendo incompatível com o ambiente de violência escolar.
Isso significa que o sucesso esperado hoje ultrapassa as fronteiras da realização profissional,
na busca da formação do ser humano integral, apto a conviver socialmente, ético e que
preserve valores fundamentais, como solidariedade, respeito, tolerância e justiça. Enfim, que
seja realizado e feliz!
Diante disso, perde o sentido discutir-se se foram os pais que abdicaram das suas
funções educacionais ou se forma os professores que assim agiram, se as famílias exigem
muito da escola ou se é esta que oferece pouco. O importante é compreender que a família e a
escola, carentes de políticas públicas que as assistam, ficaram sozinhas nessa tarefa, que
nenhuma outra instituição virá socorrê-las, exceto em funções secundárias. Portanto, cabe a
ambas, em meio a um diálogo possível, nova divisão de tarefas adequada, eficiente e eficaz.
Nessa perspectiva, deixa-se o questionamento: com os modelos de educação
182
desenvolvidos atualmente, a instituição familiar e a escola estão obtendo êxito na socialização
dos jovens?
A sociedade a ser construída depende da resposta à outra questão: em que mundo quer
viver? Pois nosso desejo guiará nosso agir, subordinando nossa razão a eles, e determinará o
mundo que construiremos para nossas crianças, com a possibilidade de oportunizar-lhes a
convivência humana responsável e livre.
183
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188
ANEXOS
189
ANEXO I – ROTEIRO PARA ENTREVISTA COM OS ALUNOS(Não foi aplicado questionário aos alunos – este material serviu como roteiro. As assertivas foram usadas como sugestões e surgiram várias outras afirmações não
previstas neste roteiro)
Nome:
Idade: Série: Turno:
I Vida Escolar/Violência na Escola
a) Pensando nas coisas que você aprende na escola, você acha que são:
( ) úteis para a vida, para o futuro;
( ) inúteis, mas precisa delas para ter chances de trabalho;
( ) inúteis, e não afetam as chances de trabalho;
( ) não aprende nada.
b) O que você não gosta na escola?
( ) do espaço físico;
( ) da secretaria, da direção;
( ) da maioria dos alunos (desapreciam os colegas);
( ) das aulas;
( ) da maioria dos professores.
( ) outro.
c) Considera os maiores problemas de sua escola:
( ) alunos desinteressados/indisciplinados;
( ) carências materiais e humanas (“falta de espaço”, “não há professores suficientes”,
“faltam livros, vídeos e computadores”);
( ) professores incompetentes e faltosos.
( ) outros. Especificar.
d) Já viu alunos, pais, professores, funcionários, membros da Direção sofrerem na escola:
( ) ameaça ou ofensa verbal
( ) agressão física
190
( ) violência sexual
e) Como a maioria dos professores de sua escola trata os alunos? Pode marcar mais de uma
opção
( ) orienta, conversa com os alunos
( ) procura compreender os alunos
( ) exige demais dos alunos
( ) não está interessado nos alunos
( ) briga, usa linguagem pesada com os alunos
f) Como eles reagem a este tratamento dos professores?
g) Na sua escola, quando um aluno sofre agressão de um colega, o que ele geralmente faz
(como ele reage)? Pode assinalar mais de uma assertiva.
( ) vinga-se com ajuda de amigos
( ) fala com os pais
( ) não faz nada, cala-se
( ) fala com a Direção da escola
( ) procura a polícia.
h) Quando ocorre briga entre alunos, na escola, o que a maioria dos alunos geralmente faz?
( ) incentiva
( ) procura separar
( ) não se mete
( ) chama professores/direção
( ) outro.
i) Ocorrência de ferimento grave ou morte de alunos, pais ou professores no ambiente da
escola:
( ) Sim
( ) Não
j) Uso de armas nas ocorrências violentas na escola:
( ) armas de fogo
( ) outras armas (facas, canivetes, estilete, corrente, cacetete, porrete)
( ) não há utilização de armas nas ocorrências.
k) Ocorrência de disparos de arma de fogo dentro ou próximo à escola:
191
( ) Sim
( ) Não
l) Violência contra a propriedade, se já aconteceu na escola:
( ) furto (sem violência à pessoa)
( ) roubo ( com violência ou grave ameaça à pessoa)
m) Já ocorreu algum tipo de violência contra o patrimônio da escola?
( ) destruição ou depredação do espaço e do equipamento escolar
( ) furtos de bens de propriedade da escola
( ) pichações
n) Tipo de violência mais comuns na escola:
( ) física
( ) verbal
( ) contra o patrimônio ou a propriedade
o) Praticantes da violência escolar (numerar em ordem de ocorrência mais freqüente):
( ) alunos
( ) professores
( ) funcionários
( ) membros de gangues
( ) adultos ligados à escola
( ) adultos criminosos
p) Vítimas de violência escolar (numerar em ordem de ocorrência mais freqüente):
( ) alunos
( ) professores
( ) alunos específicos (“CDFs” ou delatores, por exemplo)
( ) funcionários
( ) grupos discriminados (negros e homossexuais, por exemplo)
q) Você já sofreu algum tipo de violência na escola? Qual?
r) Na sua relação com professores desta escola, você já se sentiu:
( ) desrespeitado como pessoa;
( ) receia que os professores o acusem injustamente de ter feito alguma coisa;
( ) intimidado;
( ) foi ameaçado;
( ) foi humilhado;
( ) sofreu violação da auto-estima
192
s) Conseqüências da violência na escola sobre o desempenho escolar do aluno: como você
acha que a violência afeta ou afetou os seus estudos? (pode marcar mais de uma):
( ) não consegue concentrar-se nos estudos
( ) fica nervoso, revoltado
( ) perde a vontade de ir à escola
II Relacionamento Familiar:
a) Os pais comparecem na escola em que ocasiões?
b) Como gostaria que fosse a participação de seus pais ou responsáveis na escola?
c) Sobre o registro por indisciplina em sua ficha escolar, o que tem a dizer?
d) É considerado “aluno problema” pela escola? Por quê?
e) Como se relaciona com sua família? Quem educa?
III Meios de Comunicação:
a) A quais tem acesso? O que assiste na TV? Conversa com a família sobre o que assiste?
IV Relacionamento da escola com a família e as demais instituições:
a) Conhece o MP e o CT? Como gostaria que fosse a participação do MP e do CT na escola?
b) O que sabe sobre o ECA?
193
ANEXO II – FAMILIARES RESPONSÁVEIS PELOS ALUNOS
Nome do participante:
Idade: Escolaridade:
Nome do filho:
1 Constituição familiar
1.1 Composição familiar dos alunos (com quem vivem)
1.2 Tipo de união (casamento, união estável)
2 Renda familiar
3 Quanto à criação ( atendimento das necessidades básicas, materiais emocionais), e
também à educação (no sentido de ensinar, transmitir valores, princípios, atitudes e
conhecimentos):
3.1 de quem é a responsabilidade?
3.2 quem na verdade o faz?
3.3 sente-se preparado para criar seus filhos?
3.4 pensou em desistir de criar os filhos diante das dificuldades?
3.5 desistiu de criá-los porque “não dá mais conta”?
4 Bases de apoio da família na educação dos filhos
4.1 quem ajuda na criação diária dos filhos ou substitui os pais na ausência destes
4.2 referências para cuidar, educar e criar os filhos. Pessoas ou instituições procuradas
pelo familiar responsável quando este tem problemas com os filhos.
5 Onde busca informações sobre criação/educação dos filhos.
194
6 Significado de educação para as famílias. Questionar acerca dos valores.
7 O que considera mais importante para educar uma criança? /como educa seu filho?
8 Conversa com o filho (dialoga)?
9 Como exerce “poder de autoridade e disciplina”? Agride fisicamente o filho?
10 Divide com a escola a tarefa de educar? Acompanha a vida escolar do filho?
Como?
11 O que o filho deve aprender em casa? E o que deve ser ensinado na escola?
12 Preocupa-se com a violência escolar? Conhece a ficha individual do filho? Este já
foi vítima ou autor de ato de indisciplina ou violência na escola?
13 Conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente?
14 Que impressões tem do Ministério Público? Conhece as atribuições do Promotor de
Justiça?
195
ANEXO III – ENTREVISTA E QUESTIONÁRIO
PROFESSORES, ORIENTADORA E DIRETOR DA ESCOLA:
I DADOS PESSOAIS:
Nome:
Idade: Tempo de serviço: Carga-horária de trabalho:
II ENTREVISTA DIRETA GRAVADA (temas a abordar):
- função da educação - crise de identidade da escola e educação para valores;
- crise de autoridade do professor;
- visão do ECA;
- papel da família na educação;
- papel dos meios de comunicação na educação;
- relação da escola com profissionais de áreas diversas à educação: psicólogos,
assistentes sociais e outros;
- relação da escola com o Conselho Tutelar, Polícia, Ministério Público, Poder
Judiciário. O que fazer para melhorar?
- Casos mais comuns de indisciplina e punições mais freqüentes;
- Casos de violência mais comuns (questionar sobre a violência psicológica) e
encaminhamentos efetuados;
- Causas e consequências da violência escolar;
- Soluções.
- Como a interação entre família, escola e Promotoria de Justiça pode contribuir para a
transformação positiva do cenário da violência escolar?
III QUESTIONÁRIO (aplicado de forma direta pela pesquisadora)
196
a) Os maiores problemas de sua escola são (numerar em ordem de gravidade):
( ) carências materiais e humanas (“falta de espaço”, “não há professores suficientes”,
“faltam livros, vídeos e computadores”);
( ) alunos desinteressados/indisciplinados;
( ) pais desinteressados.
( ) sugerir outros:..........................
b) Relações entre alunos e professores:
Como a maioria dos professores de sua escola trata os alunos? Pode marcar mais de uma
opção
( ) orienta, conversa com os alunos
( ) procura compreender os alunos
( ) exige demais dos alunos
( ) não está interessada nos alunos
( )briga, usa linguagem pesada com os alunos
c) Formas de violência simbólica a que foram submetidos na escola.
Na sua relação com alunos desta escola, como professor, você já se sentiu (pode assinalar
mais de uma opção):
( ) desrespeitado como profissional;
( ) desrespeitado como pessoa;
( ) receoso de que os alunos o acusem injustamente de ter feito alguma coisa;
( ) intimidado;
( ) ameaçado;
( ) humilhado;
( ) sofreu violação da auto-estima
197
d) Opinião sobre a utilidade do que a escola ensina. Pensando nas coisas que você aprende na
escola, você acha que são:
( ) úteis para a vida, para o futuro;
( ) inúteis, mas precisa delas para ter chances de trabalho;
( ) inúteis, e não afetam as chances de trabalho;
( ) não aprende nada.
Violência escolar
e) Alunos, pais, professores, funcionários, membros da Direção já sofreram na escola:
( ) ameaça ou ofensa verbal
( ) agressão física
( ) violência sexual
f) Quando ocorrer briga entre alunos, na escola, o que a maioria dos alunos geralmente faz?
( ) incentiva
( ) procura separar
( ) não se envolve
( )chama professores/direção
g) Na sua escola, quando um aluno sofre uma agressão, o que ele geralmente faz?
( ) vinga-se com ajuda de amigos
( ) fala com os pais
( ) não faz nada, cala-se
( ) fala com a Direção da escola
( ) procura a polícia.
h) Ocorre o uso de armas nas ocorrências violentas na escola?
( ) armas de fogo
( ) outras armas (facas, canivetes, estilete, corrente, cacetete, porrete)
( ) não há utilização de armas nas ocorrências.
i) Ocorrência de disparos de arma de fogo dentro ou próximo à escola:
198
( ) Sim
( ) Não
j) Ferimento grave ou morte de alunos, familiares ou professores no ambiente da escola:
( ) Sim
( ) Não
k) Violência contra a propriedade privada, se já aconteceu na escola:
( ) furto (sem violência à pessoa)
( ) roubo ( com violência ou grave ameaça à pessoa)
l) Violência contra o patrimônio da escola, se já ocorreu nesta escola:
( ) destruição ou depredação do espaço e do equipamento escolar
( ) furtos de bens de propriedade da escola
( ) pichações
m) Violências mais comuns no ambiente escolar
( ) física
( ) verbal
( ) contra o patrimônio ou a propriedade
n) Praticantes da Violência Escolar (possibilidade de marcar mais de uma alternativa, em
ordem crescente de ocorrência):
( ) alunos
( ) professores
( ) funcionários
( ) outros não integrantes da comunidade escolar
o) Vítimas da Violência Escolar (possibilidade de marcar mais de uma alternativa, em ordem
crescente de ocorrência):
( ) alunos
( ) professores
( ) alunos específicos (“CDFs” ou delatores, por exemplo)
( ) funcionários
199
( ) grupos discriminados (negros e homossexuais, por exemplo)
p) Conseqüências da violência na escola sobre o desempenho escolar do aluno (pode marcar
mais de uma):
( ) não consegue concentrar-se nos estudos
( ) fica nervoso, revoltado
( ) perde a vontade de ir à escola
q) Nos últimos 12 meses você foi vítima de violência na escola?
( ) sim. Qual?
( ) não
r) Percepção das conseqüências da violência escolar sobre o desempenho profissional – Como
você considera que a violência afeta seu trabalho na escola (pode marcar mais de uma opção):
( ) seu estímulo para o trabalho diminuiu
( ) sente-se revoltado
( ) não consegue concentrar-se direito nas aulas
( ) perde a vontade de ir trabalhar
( ) fica nervoso e irritado na escola
s) Formas de reação: Se você sentir-se ameaçado, desrespeitado ou em perigo no ambiente
escolar, o que fará?
( ) buscará transferência para outra escola
( ) manterá a mesma conduta no trabalho
t) Medidas contra a violência nas escolas. Assinale, por ordem de prioridade, as cinco
medidas que considera mais eficazes a serem adotadas contra a violência escolar:
( ) Medidas de segurança ou de fiscalização na escola (instalação de detectores de metais
na entrada da escola; cercamento com muros altos ou grades de proteção; câmeras de circuito
interno de TV; contratação de vigilantes e agentes de segurança para fiscalizarr internamente
a escola);
200
( ) Medidas preventivas de participação ampliada, baseadas na interação dos atores
(estabelecimento de diálogo entre alunos, pais, professores e diretoria para solucionar a
violência e parceria entre escola e comunidade);
( ) Medidas de segurança dentre e fora da escola (vigilância policial na escola e
imediações);
( ) Medidas disciplinares orientadas para os alunos (disciplina mais in- flexível com
expulsão dos que praticam atos irregulares);
( ) Medidas preventivas, calcadas na defesa pessoal (aulas de defesa pessoal para alunos e
professores);
( ) Medidas reativas, por violência (ter uma arma de fogo para proteger a si mesmo e/ou
aos filhos).
( ) Qualificar a interação entre profissionais da educação e de outras áreas (direito,
psicologia e serviço social, por exemplo), como psicólogos, assistentes sociais, conselheiros
tutelares, policiais, juízes e promotores de justiça.
201
ANEXO IV – ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO DA ESCOLA
I Dados gerais sobre a escola:
- idade da escola;
- número de alunos e distribuição destes;
- número de professores;
- número de funcionários;
- número médio de alunos por turmas.
II Dados do ambiente escolar observados durante as visitas
a) segurança do ambiente:
1) Itens de segurança de trânsito encontrados em frente à escola
( ) semáforo ou sinal luminoso para pedestres;
( ) passarela para pedestre;
( ) faixa de pedestres respeitadas pelo motoristas.
2) A escola é cercada por muros ou telas?
3) Se alguém controla os que entram, o que ele faz ou usa:
( ) exige documento de identidade;
( ) usa detector de metais;
( ) interfona para saber se as pessoas podem entrar;
202
( ) utiliza câmera de TV interna.
4) Como é controlada a entrada de alunos:
( ) há carteirinha de indentificação;
( ) usa-se detector de metais;
( ) pelo uniforme.
5) Entre o portão de entrada e o acesso às dependências da escola (salas e secretarias) existe
algum outro portão (como proteção ou controle)?
6) Os corredores têm portas gradeadas para serem fechadas após as aulas?
7) Foi visto algum funcionário da escola inspecionando os corredores?
8) As janelas têm grades?
9) Existem pessoas responsáveis pela fiscalização dos banheiros e vestiários?
10) Existe outro tipo de fiscalização: câmera de TV, detector de metais, etc.?
11) A maioria dos alunos estava de uniforme?
b) equipamento físico da escola
b.1) qualidade das instalações das salas de aula
1) Como são as salas de aula:
( ) as salas são amplas;
( ) o tamanho das salas é suficiente para o número de alunos;
( ) as salas são apertadas.
2) Qual o estado de conservação das carteiras dos alunos:
( ) Ruim
( ) Bom
3) Qual o estado de limpeza do chão e das paredes da sala:
203
( ) Ruim
( ) Bom
4) As salas têm janelas amplas com boa iluminação (luz do dia) e ventilação natural?
5) As salas têm ventilador?
6) No geral as lâmpadas acendem?
Todas as variáveis acima foram agregadas de forma que as respostas positivas determinam
boas condições das salas e as negativas, más condições.
b.2) espaço externo
1) Condições de limpeza do pátio
( ) Ruim
( ) Bom
2) Aspecto de conservação em geral
( ) Ruim
( ) Bom
3) Tamanho do pátio
( ) Pequeno;
( ) Médio;
( ) Grande;
( ) Muito grande
3) A escola tem pátio interno?
4) O pátio é coberto?
5) O pátio é aberto à luz do sol?
6) O pátio tem vegetação: grama, arbustos, árvores, vegetação alta?
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7) O pátio é cimentado?
8) O pátio tem piso com algum revestimento (cerâmica, azulejo, etc.)?
O índice foi construído a partir da agregação dessas variáveis.
c) qualidade das instalações do prédio – a partir da agregação dos seguintes índices
(observados pela pesquisadora):
- qualidade do pátio
- qualidade dos corredores
- estado de conservação do prédio
- qualidade de atendimento da secretaria
- qualidade de atendimento das autoridades da escola
- qualidade das instalações dos banheiros da cozinha
- aspecto geral da cantina ou refeitório da escola:
d) Funcionários:
1) Atitude dos funcionários da secretaria para com os usuários?
( ) perguntaram se queria algo;
( ) ignoraram a presença da pesquisadora;
( ) tiveram má vontade;
( ) foram educados
2) Encontro com alguma autoridade da escola:
( ) Educado e cordial;
( ) Tiveram boa vontade;
( ) Ríspido, ofensivo ou desatencioso.
e) Comportamento dos alunos na escola durante as visitas:
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1) Foram vistos alunos fumando no pátio da escola?
2) Durante as aulas eles entram e saem das salas à vontade?
3) Foi presenciado desentendimento envolvendo alunos da escola?
4) Foi observado o uso ou a venda de drogas na escola ou nos arredores?
5) Os professores fumam diante dos alunos?
6) Foram vistos alunos andando a esmo pelos corredores durante o horário de aulas?
7) Havia funcionário da escola inspecionando os corredores?
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