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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
ISSN 2236-1855 439
ENSINO VOCACIONAL: UMA PEDAGOGIA ADIANTE DE SEU TEMPO
Angela Rabello Maciel de Barros Tamberlini1
Introdução
Investigamos nesta pesquisa o Ensino Vocacional, projeto implementado na rede
pública do Estado de São Paulo na década de 1960. O Serviço de Ensino Vocacional foi criado
em 1961 a partir de uma brecha na legislação da reforma do ensino industrial de São Paulo,
sob a coordenação da Professora Maria Nilde Mascellani, com o intuito de viabilizar uma
nova concepção de educação que rompesse com a formação dual em vigor há muitos anos,
caracterizada por cindir a formação geral da formação profissional.
Visando instaurar a discussão acerca da renovação das escolas de ensino secundário,
objetivando a criação de Centros de Treinamento de Professores e de Pesquisa Educacional,
em 1961, o Secretário da Educação do Estado de São Paulo, Luciano Vasconcellos de
Carvalho, durante o governo Carvalho Pinto, tomou a decisão de recrutar um grupo de
especialistas em educação que pudesse executar tal intento. Ainda vigoravam as Leis
Orgânicas do Ensino, editadas na Era Vargas, constituindo um entrave para as mudanças
necessárias naquele momento e as discussões e tramitação da nossa primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional ainda estavam em curso.
Em 03 de fevereiro de 1961, por meio da Lei 6.052, foi no âmbito estadual que foram
aprovadas as diretrizes da reforma do Ensino Industrial de São Paulo, e a partir de então, a
Comissão de educadores que reunia especialistas do Ensino Industrial e do Ensino
Secundário, passou a redigir o Decreto 38.643, publicado em 27 de junho de 1961, que iria
regulamentar a mencionada lei e delinear o novo tipo de ensino médio que, posteriormente,
passaria a se respaldar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20
de dezembro de 1961.
Foi criado o Serviço de Ensino Vocacional, SEV, órgão destinado a coordenar as
unidades de Ensino Vocacional, os Ginásios Vocacionais, sob a coordenação da Professora
Maria Nilde, que já trazia consigo a bagagem adquirida nas classes experimentais do
1 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Professora Associado no Departamento Educação, Sociedade e Conhecimento da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Campus Niterói. E-mail: angmlini@gmail.com
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Instituto Narciso Pieroni do município de Socorro, no Estado de São Paulo, onde trabalhara
com a professora Olga Bechara, também participante de sua equipe no SEV. Este órgão
surgira em situação privilegiada: era diretamente subordinado à Secretaria Estadual de
Educação e não à Coordenadoria de Ensino Normal, como normalmente acontecia.
A partir de 1962 foram criados os primeiros ginásios, hoje correspondentes ao segundo
segmento do ensino fundamental, seguindo-se a instalação de outras escolas, totalizando seis
unidades ginasiais estaduais, uma na capital e cinco no interior do Estado, em 1968 foram
criados o curso noturno e o segundo ciclo, hoje equivalente ao ensino médio. Voltadas para a
formação do homem brasileiro, visando o engajamento e a transformação social,
profundamente enraizadas na comunidade em que se inseriam, ministrando uma educação
libertária que interagia com a coletividade, promovia a cultura local e a participação social,
estas escolas tinham um currículo diferenciado e uma organização distinta que as tornaram
alvo das perseguições do regime vigente. Caracterizadas por se valer dos métodos ativos,
promovendo alterações na organização curricular, na metodologia, na avaliação e mesmo na
arquitetura escolar, o Ensino Vocacional que vigorou até o final de 1969, quando as escolas
foram invadidas pelo exército até a sua extinção pelo Decreto Estadual 52.460, de 05 de
junho de 1970, que extingue o ensino renovado em todas as escolas experimentais estaduais,
foi pouco estudado durante muitos anos.
Alguns trabalhos acadêmicos o criticaram, de forma bastante genérica, por considerar
estas escolas dispendiosas, mais preocupadas com aspectos psicológicos da formação em
detrimento dos aspectos lógicos (RIBEIRO e WARDE, 1980), sem, no entanto, proceder a
uma análise documental de seus fundamentos teóricos e suas práticas pedagógicas. Poucos
trabalhos foram publicados sobre o tema até a década de 1990 e, a partir de então, surgiram
publicações de ex-professores e ex-alunos que haviam participado do projeto, nos trazendo
contribuições importantes no estudo do tema, dentre eles o fundamental trabalho de
Mascellani (2010).
Ao pesquisar o Ensino Vocacional visamos nos aprofundar na análise de sua proposta
curricular e suas práticas, contextualizando-as, buscando compreender a renovação
pedagógica que empreendeu, a formação ministrada aos seus discentes, os seus objetivos
articulados aos seus pressupostos teórico-metodológicos, procurando desvelar e registrar o
seu sentido social e político e a sua relação com a comunidade e o governo da época, no
intuito de buscar contribuições para repensar o ensino público hoje. Para tal, nos valemos de
fontes documentais pertencentes aos acervos do Centro de Documentação e Informação
Científica “Professor Casimiro dos Reis Filho”, Cedic, da Pontifícia Universidade Católica de
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São Paulo e também do Centro de Memória da Educação, CME, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo. Valemo-nos ainda das fontes orais, já que muitos dos partícipes
desta experiência, por meio de seus depoimentos, nos permitiram ampliar a compreensão
acerca desta pedagogia renovada, seus fundamentos e sua relação com o sistema político
vigente. No contexto de supressão das liberdades democráticas, período em que vigorou a
experiência, consideramos a relevância da utilização das fontes orais como fontes históricas
complementares, posto que tivemos uma lacuna nas informações acerca das escolas
renovadas durante o regime militar, sobretudo nos chamados “anos de chumbo”, lacuna esta
agravada pelo fato das instituições escolares terem sido invadidas, tendo muitos documentos
queimados e outros destruídos, concomitante às prisões de pais, alunos e professores. Ainda
que saibamos que a entrevista ou o depoimento não se configuram como “a revelação do real”
(ALBERTI, 2010), achamos pertinente a sua utilização como fonte histórico documental que
nos possibilitasse ouvir diferentes vozes e “comparar as múltiplas verdades” (VILANOVA,
1986). A pluralidade das fontes utilizadas contribuiu para o embasamento de uma análise
elaborada na perspectiva da totalidade da história, tal como concebe Vilar (1992), rechaçando
uma visão fragmentada da realidade social e política, que não abarque as múltiplas
dimensões do real.
Situando o Ensino Vocacional: referências históricas e características
O Ensino Vocacional, escolas experimentais definidas como renovadoras ou de Ensino
Renovado, se inspiram nas proposições da École de Sèvres, trazendo as marcas das
formulações francesas, muito influentes no Brasil, embora tenham se apropriado de algumas
destas ideias, adequando-as à realidade brasileira e lhes dando o seu próprio timbre.
Em 1945, Edmée Hatinguais, Inspetora Geral de Educação na França, idealizadora da
reforma educacional francesa no pós-guerra, criou o Centre International d’Études
Pédagogiques, CIEP, objetivando difundir as concepções das classes experimentais francesas,
as classes nouvelles, além de promover o intercâmbio entre educadores de várias partes do
mundo (TAMBERLINI, 2001; STEINDEL, DALLABRIDA, ARAÚJO, 2013). Convidada pelo
governo brasileiro, Hatinguais esteve no Brasil, em 1954, estabelecendo contato com os
educadores brasileiros, dentre os quais o professor Luiz Contier, que foi bolsista em Sèvres e,
ao assumir a direção do Departamento de Educação no Estado de São Paulo, em 1958, lança
as bases para a instalação das classes experimentais secundárias, criadas em 1959. A primeira
classe experimental foi instalada no “Instituto de Educação Narciso Pieroni”, na cidade de
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Socorro, no interior do Estado de São Paulo e teve a participação da professora Maria Nilde
Mascellani e da professora Olga Bechara na implementação desta pedagogia renovada.
A instalação das classes experimentais foi precedida de uma análise estrutural do
ensino secundário no Brasil, efetuada por Contier (1956, apud TAMBERLINI, 2001, p.48),
que destaca os pontos críticos de nossa legislação.
A legislação do ensino secundário já não corresponde às necessidades da vida cultural presente, nem tão pouco atende ao ritmo precipitado das descobertas científicas dos últimos tempos e muito menos acompanha o desenvolvimento econômico e social que se processa no Brasil em compasso verdadeiramente vertiginoso.
Para reformular o ensino secundário, possibilitando-lhe ministrar uma formação
integral que contemplasse as necessidades de nossa vida cultural de então, à articulação com
as descobertas científicas da contemporaneidade e às demandas de nosso desenvolvimento
econômico e social, era preciso reformular a escola e suas metodologias e concepções. A
adoção dos métodos ativos fazia parte da mudança e, inspirada nas acepções francesas,
consistia em adaptar a pedagogia à democratização do ensino. Os métodos ativos abrangiam
o “aprender também fazendo”, os desenhos, os trabalhos manuais, o trabalho em equipe, o
estudo do meio humano e natural, não separando escola e vida. Era central na proposta a
ideia de que a educação secundária deveria ser democratizada e não apenas voltada para os
extratos sociais mais altos. Os programas e métodos deveriam se adaptar à democratização
do ensino, visando formar o aluno para a vida e o trabalho e a integração no mundo em
transformação. Priorizava-se o trabalho em equipe, recorrendo ao estudo dirigido, ao estudo
do meio e à coordenação de disciplinas. O estudo do meio possibilitava que os educandos
adquirissem noções de espaço e de tempo, permitindo que se situassem na sociedade a que
pertenciam. Na literatura, dava-se prioridade aos autores mais próximos dos jovens, para que
a partir da identificação com os seus interesses, fosse possível conduzi-los, paulatinamente, a
uma diversidade literária maior. Apostando em uma formação integral, que desenvolvesse
não só o intelecto do aluno, mas também transmitisse valores e o integrasse socialmente, as
propostas de Sèvres estiveram presentes nas classes experimentais de Socorro e também
deixaram suas marcas no Ensino Vocacional. Formuladas por educadores vinculados à
Resistência Francesa, traduziam uma concepção mais aberta e participativa de educação em
que os estudantes, diferente do que ocorre na escola tradicional, fossem sujeitos do processo
de construção do conhecimento. Muitas são as matrizes teóricas das escolas de ensino
renovado, no Brasil as idéias de Dewey, traduzidas e introduzidas entre nós por Anísio
Teixeira, também deixam marcas, mas no Ensino Vocacional as correntes francesas é que se
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tornaram referência e a Professora Maria Nilde se destacou na implementação das classes
experimentais de Socorro e se tornaria a coordenadora do Ensino Vocacional.
Preocupada com a formação do aluno crítico, atuante, participativo e engajado, a
professora Maria Nilde visava construir um projeto pedagógico voltado à nossa realidade,
que possibilitasse aos jovens brasileiros uma formação que lhes propiciasse a auto-realização
e inserção na sociedade e tinha clareza de que apenas as mudanças metodológicas não seriam
suficientes para a consecução de seu projeto arrojado, que se fundava em bases filosóficas.
É na idéia de currículo integrado e de ensino conceitual que as classes experimentais de Socorro se distinguem das demais experiências de Classes Experimentais. A experiência de Socorro incluiu a definição clara de objetivos, o desenho de um currículo que incorpora as grandes noções de cultura geral, as práticas de reconhecimento da realidade local no seu cotidiano, a seleção de conteúdos com destaque de conceitos, considerados elementos mediadores de todo o currículo, o trabalho em grupo, o estudo dirigido, o estudo do meio, as práticas de avaliação (MASCELLANI, 2010, p.84).
Inspirando-se na experiência de Socorro, que propiciara um aprimoramento cultural e
social ao seu alunado, estruturou-se o Serviço de Ensino Vocacional constituindo um
verdadeiro sistema, com sólida estrutura administrativa, tendo uma coordenadoria, equipe
de assessores pedagógicos e administrativos, equipe de pesquisa com sociólogos e
psicopedagogos, setor de pessoal, de publicações, de relações públicas, de despesas, de cursos
e estágios, de biblioteca, de audiovisual e de documentação: todo o trabalho era articulado e
minuciosamente planejado e os professores trabalhavam em tempo integral.
Valorizando as características econômicas, sociais e culturais da localidade em que as
escolas seriam inseridas, a sua criação era sempre precedida de uma pesquisa de
comunidade, em que se buscava detectar as atividades da economia local, o nível cultural dos
habitantes, suas expectativas em relação à escola e a formação de seus filhos, seu nível de
aspiração e assim por diante. As escolas foram instaladas em locais distintos, com realidades
diversas: em 1962, foram criadas as escolas de São Paulo, no Brooklin, o “Ginásio Vocacional
Oswaldo Aranha”, de Americana, o “Ginásio Vocacional João XXIII” e de Batatais, o “Ginásio
Vocacional Cândido Portinari”. Em 1963, foram criados os ginásios de Rio Claro, “Ginásio
Vocacional Chanceler Raul Fernandes” e de Barretos, “Ginásio Vocacional Embaixador
Macedo Soares” e, finalmente, em 1968, o ginásio de São Caetano, conhecido como Ginásio
Vocacional de Vila Santa Maria (não há muitas informações sobre o efetivo nome desta
escola). Em 1968 ainda foram criados o curso noturno e o segundo ciclo, com projetos
aprimorados. Havia interesse em diversificar a experiência educacional em comunidades
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diferentes, buscando atender às necessidades da localidade e adequar a escola às demandas
de seu público e sua realidade.
Os primeiros vocacionais foram os de: São Paulo, com características de um centro mais cosmopolita; Batatais, uma região agrícola e Americana, industrial. Então, o que foi feito? Uma equipe fez, anteriormente, pesquisa de campo nas três comunidades. A equipe designada fez um curso de treinamento para assumir estas unidades, sobretudo o diretor, o orientador educacional, o orientador pedagógico. O trabalho era centralizado em São Paulo(...).Foi feito um trabalho interessante com toda a equipe, inclusive com os professores, a partir da pesquisa de campo. Estudou-se essa realidade para ver que tipo de escola deveria ser organizada naquele lugar. E então, o que aconteceu? Era importante o conhecimento dos alunos também. Analisamos as suas expectativas, interesses e aspirações para definir objetivos e elaborar a proposta de trabalho da escola, das áreas de estudo e disciplinas (GUARANÁ, 1997, apud TAMBERLINI, 2001, p. 58-59).
Os objetivos eram definidos em função da análise das pesquisas de comunidade
efetuadas e a partir deste momento se elaborava um trabalho pedagógico e um currículo
diferenciado. O Ensino Vocacional concebia a educação como um processo contínuo de
modificação de conceitos e formas de conduta, em um processo dinâmico que partia do ser
humano concreto, situado em um contexto social, que norteava a elaboração do currículo que
envolvia, em sua parte diversificada, áreas técnicas definidas em função das características
mais específicas das diferentes comunidades que abrigavam os ginásios, buscando sempre
articular a formação geral a uma formação mais voltada para o trabalho. O currículo era
norteado por uma filosofia e concebido como um todo do processo educativo e não como um
rol de matérias, uma vez que se acreditava que “(...)o processo educativo, por sua natureza,
apresenta situações globais e integradas”.2 Havia uma integração das disciplinas que tinham
como eixo integrador a área núcleo Estudos Sociais, concebida em uma perspectiva
sociológica, ministrada por dois professores, um de história e um de geografia, que
trabalhavam em conjunto. Este currículo nuclear e interdisciplinar visava desenvolver uma
educação que formasse o jovem no entendimento da realidade socioeconômica, política e
cultural do país e, ao mesmo tempo, o tornasse capaz de intervir nessa realidade. Além dos
objetivos gerais, havia os específicos, vinculados às realidades locais de cada ginásio. O
currículo integrado, além das áreas de língua portuguesa, matemática, estudos sociais
(historia e geografia), ciências e inglês, era constituído pela educação física, educação musical
e artes plásticas, que assumiam o papel de “práticas educativas” na relação com a sociedade
local. Outras áreas denominadas técnicas eram: artes industriais, práticas comerciais,
2 Conforme documento “Particularidades Pedagógicas dos Ginásios Vocacionais do Estado de São Paulo” s. d. , p.2. Acervo do Cedic – PUC – São Paulo.
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agrícolas e educação doméstica. A integração curricular era garantida pelas “unidades
pedagógicas”, ferramentas responsáveis pela definição dos conceitos e da sequência de
apresentação dos conteúdos ensinados (MASCELLANI, 2010).
O Ensino Vocacional entendia o currículo como um instrumento para a ação, traduzida
na concepção de “core curriculum”, uma espécie de “coração do currículo”, definido em seus
Planos Pedagógicos e Administrativos (PPA/GVs, 1968, p.82-83, apud NEVES, 2010).
(...) O “core curriculum” será uma ideia ou um grande conceito que poderá vivificar a seqüência de problemas e dar-lhes a desejada unidade. Esta ideia ou conceito deverá ter implicações universais, mas estará vinculada à realidade próxima em que vivem os educandos, pois, somente assim, cada educando poderá treinar a condição de ser universal. (...) O “core curriculum é um instrumento de direção na interpretação da cultura e nos permite interpretar, também, o processo histórico, trazendo para o presente a contribuição dos fatos passados. As recorrências ao passado não devem ser entendidas como apelo à chamada cultura geral ou clássica”, mas como condição indispensável para a compreensão do processo histórico.
Neves (2010) nos explicita que estas ideias se concretizam em uma estrutura
“concêntrica” do currículo, em que o primeiro círculo equivale à primeira série,
compreendendo o município, o segundo círculo equivalendo à segunda série correspondendo
ao Estado de São Paulo, o terceiro círculo vinculado à terceira série correspondendo ao
Brasil, até chegar ao quarto círculo, voltado para o conhecimento do mundo. Esta estrutura,
segundo Neves (2010, p.129), implicaria uma interligação de todos os espaços.
Uma relação muito particular se estabelecia entre o primeiro círculo e o último: o local representava o ponto de vista a partir do qual o mundo seria conhecido e o mundo, uma vez conhecido, forneceria orientação e aporte instrumental, sobretudo conceitual e técnico, para as ações comunitárias, construtivas, que era a forma de intervenção social dos alunos em seu espaço específico e eram praticadas, sistematicamente, na última etapa do curso ginasial. A partir desta estrutura curricular organizava-se a relação escola-comunidade.
Concebida como escola comunitária, esta relação tinha centralidade na proposta do
Sistema Vocacional. A construção curricular era articulada aos objetivos educacionais
previstos em atividades de planejamento de professores e orientadores, permanentemente
avaliadas e reavaliadas, envolvendo tanto os objetivos gerais do sistema, como os objetivos de
cada ginásio, das áreas de estudo, do ano letivo e das unidades pedagógicas bimestrais.
O currículo integrado concebia a aprendizagem como processo global que
necessariamente abrangia o desenvolvimento intelectual, de atitudes e de habilidades e tinha
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o objetivo de possibilitar a elaboração de novos conhecimentos que permitissem a ampliação
crescente da experiência e a percepção e compreensão da complexidade do mundo.
Visando desenvolver as Unidades Pedagógicas, o Ensino Vocacional se valia de técnicas
pedagógicas, utilizava o trabalho em grupo que possibilitava o desenvolvimento do
pensamento operatório, para a formação de atitudes de cooperação, possibilitando treino de
vida social, de opções e condições de propiciar o surgimento da independência, iniciativa e
responsabilidade. Recorria ainda ao estudo dirigido, individual e em grupo, envolvendo
pesquisas de campo e pesquisas bibliográficas. Não eram utilizados livros didáticos e, sim,
livros de consulta variados, ensinando os alunos a pesquisar.
Uma das principais técnicas utilizadas era o Estudo do Meio, que possibilitava um
contato direto com a realidade social e humana, sobretudo com a comunidade da escola. A
partir desta integração na realidade mais simples, os estudos do meio eram ampliados em
seus objetivos e organização abarcando, gradativamente, realidades mais complexas com o
objetivo de ampliar a compreensão da dimensão e profundidade dos vários aspectos da
realidade. O trabalho em grupo era utilizado não só pelos alunos, mas também pelos
professores, no que se refere ao planejamento, execução e avaliação de suas atividades. Para
viabilizar o trabalho em grupo e estudo dirigido foi preciso proceder a uma nova organização
do espaço, com a introdução de inovações no mobiliário da escola, de um novo modelo de
prédio escolar, com nova concepção arquitetônica.
O Ensino Vocacional ainda compreendia as instituições didático-pedagógicas que
reproduziam vivências próprias do mundo do trabalho nas escolas, também crescendo em
complexidade de acordo com o desenvolvimento dos alunos nas diferentes séries, envolvendo
a administração da cantina do colégio, pelos próprios discentes, articulada às aulas de
Matemática e Práticas Comerciais, a administração de um banco onde os alunos depositavam
as suas pequenas economias, além de outras atividades semelhantes, também trabalhadas de
forma integrada com áreas do conhecimento correlacionadas entre si. O Sistema Vocacional
não dissociava educação e trabalho, ministrando aulas de disciplinas teóricas
articuladamente aos conteúdos das áreas técnicas, também não cindia educação e cultura,
valorizando a cultura local e desenvolvendo vários tipos de atividades culturais abertas à
participação da comunidade, com a qual interagia fortemente. O planejamento pedagógico
escolar ao considerar as demandas e expectativas da comunidade, pretendia ampliar as
oportunidades de acesso aos bens culturais para a população local, com o intuito de favorecer
o seu aprimoramento cultural, tornando-se assim um pólo irradiador de cultura. As escolas
tinham galerias de arte administradas pelos estudantes, onde organizavam mostras de
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trabalhos de alunos e de professores e, por vezes, de artistas renomados, como ocorreu em
Batatais, onde a família de Portinari, residente em Brodósqui, cidade vizinha, contribuiu para
a realização de uma mostra no colégio, ao emprestar algumas obras do artista para esta
exposição. Assim, alunos, pais e moradores da localidade puderam ter acesso à fruição
estética, participando de debates e interpretações da pintura de Portinari. Atividades
culturais, exibição de peças de teatro, com especial destaque para o dramaturgo Jorge
Andrade, que deu aulas de teatro no Ginásio de Barretos, e participação nas festas e eventos
significativos da comunidade tinham sentido relevante no Sistema Vocacional.
Essa participação não era uma obrigação formal, mas correspondia à concepção de educação integral e integrada, implicando em estabelecimento da maior sintonia possível entre a vivência escolar e a vida social em seu sentido amplo. Mas, o sentido de escola comunitária ia além dessa sintonia de vivências. O Ginásio Vocacional se estruturava e atuava como um centro cultural comunitário, de modo a, além de participar das atividades locais, contribuir para o enriquecimento dessas atividades e da própria vida social da comunidade. Assim, o Sistema Vocacional, em todas as unidades escolares, mantinha grupos específicos de atividades que integravam membros de todos os segmentos da comunidade escolar, os pais e membros da comunidade em geral. Em cada ginásio havia: Corais e Grupos Instrumentais, Grupos de Teatro, Galerias de Arte, Grupos de Dança que podiam se estruturar como grupos permanentes ou se organizarem para atividades ou eventos esporádicos. Esses grupos desenvolviam suas atividades no interior da escola e em espaços da comunidade (NEVES, 2010, p.188-189).
Além das festas dos pais, do Festival de Corais e das várias atividades culturais
promovidas pelo Sistema Vocacional, as festas de formatura que encerravam o ano letivo
eram grandes festas coletivas que contavam com a contribuição de todos os envolvidos no
processo: professores, setores da administração, funcionários, pais e os próprios alunos.
Sempre havia a representação de uma peça de teatro vinculada à produção dos alunos e ao
sentido de sua educação no Ensino Vocacional, em eventos marcantes, com repercussão na
comunidade e, por vezes, na imprensa.
A rememoração das aulas de teatro, de artes, das festas e inúmeras atividades coletivas,
deixaram marcas e vínculos ainda hoje presentes nas boas lembranças dos alunos, com
significativos desdobramentos em sua formação pessoal e profissional, como atestam os
depoimentos colhidos no instigante documentário Vocacional: uma aventura humana
(2011), dirigido pelo cineasta Toni Venturi, ex-aluno do Ginásio Vocacional.
Os trabalhos com projetos e as Ações Comunitárias em que os estudantes, envolvidos
com os problemas locais, eram incentivados a se debruçar sobre eles, buscando formas de
solucioná-los, também integravam as práticas pedagógicas deste sistema que, dentre outras
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ideias, se inspirava nas concepções de pessoa e comunidade do filósofo socialista cristão
Emmanuel Mounier. Mascellani (2010, p.104) a entendia “(...) como uma pedagogia social,
crítica e transformadora”, caracterizada por valorizar “(...) as relações de sociabilidade como
suporte da comunicação e a socialização como prática de partilha solidária”.
Nesta acepção, a avaliação também se reveste de outras formas, compreendendo a
auto-avaliação, feita pelo aluno com a ajuda do professor, avaliação pelo grupo, avaliação
pelo professor, priorizando a avaliação qualitativa, processual e emancipatória que visa o
aprimoramento do aluno e não a sua punição. Ao considerar que a ação educativa envolve
uma evolução, a avaliação era global e constante, levando em conta o esforço e o progresso do
aluno em relação a todos os objetivos do sistema de ensino em questão, envolvendo a
elaboração de conceitos, a formação de atitudes, o pensamento crítico e a participação
comunitária. Tratava-se de um processo contínuo, retratando a evolução do aluno durante
todo o curso. Todos os dados eram registrados e analisados pelos educadores e compunham a
ficha de observação do aluno, FOA, que continha todas as observações feitas ao longo dos
quatro anos. Estes dados subsidiavam uma primeira sondagem para a orientação vocacional
do aluno, destacando as suas preferências e desempenho nas várias disciplinas das diferentes
áreas. Não eram utilizadas notas numéricas, apenas o acompanhamento da evolução do
aluno ao longo do curso. Nesse sentido, já se antecipava a ideia de ciclo em educação, em
substituição ao critério excludente de notas e reprovação ou aprovação anual. Rechaçando a
padronização dos currículos, hoje tão em voga, o Sistema Vocacional se baseava na concepção
de que a ação didática deve considerar a diversidade concreta dos alunos, nos aponta Rovai
(2015, p. 129), ao destacar a importância da integração das áreas teóricas às de caráter
prático, propiciando aos alunos a percepção de suas potencialidades e interesses, ao vivenciar
o contato com diversas áreas do conhecimento “ou diferentes expressões da cultura humana”
em processo em “que os conteúdos das disciplinas (...) ganham a dimensão de instrumentos
para a compreensão do meio em que se vive”.
Esta vinculação entre formação intelectual, social, afetiva, ética e política, em interação
com a cultura e a concretude do mundo, também se traduziu nos projetos do curso noturno e
do segundo ciclo, criados em 1968, com uma concepção mais avançada politicamente, porém
em um momento em que o regime militar passa por um recrudescimento, acentuando-se as
perseguições políticas e as restrições à autonomia individual e institucional.
Menos estudados do que as proposições e práticas dos ginásios, os cursos noturno e de
segundo ciclo trazem as marcas e contribuições de outros autores, permitindo entrever em
seu currículo e estruturação as concepções gramscianas, como o trabalho concebido como
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princípio educativo, no segundo ciclo e a atenção dada ao jovem e adulto trabalhador no
projeto do curso noturno. Ambos foram instaurados em março de 1968 junto ao Ginásio
Vocacional do Brooklin, na capital do Estado de São Paulo, com programas fortemente
voltados para o mundo do trabalho, inspirados na mesma concepção e abrangência do curso
ginasial.
O período noturno dos ginásios se destinava aos alunos que trabalhavam e a
comprovação deste fato era pré-requisito para a matrícula. Da mesma forma que ocorrera
com a instalação dos ginásios, a dos cursos noturnos foi precedida de pesquisa de
comunidade, de levantamento de dados sobre a sua possível clientela e sua caracterização,
informações estas levadas em conta na estruturação do currículo. O perfil dos alunos revelava
pertencerem a famílias de baixa renda e serem filhos de pais com baixa escolaridade, tendo
cursado apenas o ensino primário. A pesquisa também avaliava as suas expectativas, valores,
aspirações, acesso às atividades culturais e preocupações, procedendo a um levantamento de
sua situação psicossocial.
Entre os componentes desta situação, salientam-se a escala de valores dominantes como ser honesto, trabalhador, bom marido; a dificuldade de expressão; a resistência à formação de grupos de amigos, a insegurança quanto a emprego aliada à preocupação com a subsistência; o imediatismo; o tipo de expressão gráfica; a ignorância dos direitos; a tendência à submissão; os baixos níveis de aspiração; a noção do valor do estudo; a colaboração com
a família; a preocupação sexual. 3
A análise deste levantamento contribuiu para a elaboração do currículo em que se
priorizou o trabalho em grupo, a educação sexual, a ênfase dada à área de português e o
combate ao conformismo detectado nas entrevistas. Os direitos trabalhistas e sua legislação
também compunham o currículo.
Objetivos foram traçados para fazer com que os discentes se conscientizassem de seu
valor como seres humanos e se entrosassem na comunidade, por meio de uma educação que
visava permitir o prosseguimento nos estudos e a inserção profissional. O currículo abrangia
áreas de cultura geral e práticas educativas correspondentes, visando ampliar conhecimentos
e experiências necessárias à vida social, ao trabalho e a estudos posteriores. Os conteúdos de
Estudos Sociais eram desenvolvidos em conformidade com “a maturidade dos alunos
insistindo-se na visão do Homem brasileiro vivendo o processo de desenvolvimento”. A partir
3 Conforme “Ensino Vocacional rompe barreiras”, 1969, p.64.
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da terceira série ginasial o conteúdo era aprofundado “de modo a permitir a visão do
universal adequada à experiência deste tipo de aluno (do curso noturno).”4
A discussão de temas da atualidade de então, a exibição e discussão de filmes e debates
com elementos da comunidade também eram realizados. A realidade específica do aluno do
curso noturno, que trabalha, era levada em consideração na elaboração do currículo e no
desenvolvimento das atividades escolares.
Os alunos do curso noturno saiam para fazer estudo do meio, estudavam disciplinas separadas, mas nas sínteses elaboravam um pensamento globalizante, plural, não fragmentado. Quando cada um contava as suas experiências de trabalho, tínhamos um terreno maravilhoso para que todas as disciplinas se interligassem e trabalhassem os conhecimentos necessários incluindo os conhecimentos que o trabalhador tem que ter a respeito dos seus direitos e deveres, das leis que regem o seu trabalho. Então, isto eles estudavam também. O que era muito bonito era a estrutura deste curso noturno. Ele estava todo organizado para o aluno que ia receber. Quem era esse aluno? Era aquele que chegava cansado, transpirando e com fome. Havia almoçado e chegava sem jantar. Então, havia banho: as primeiras atividades diziam respeito ao conforto pessoal dele como gente. Se eu ensino que todo mundo é uma pessoa eu preciso tratá-lo como uma pessoa dentro das necessidades que ele está mostrando. As primeiras aulas eram de Educação Física, de tomar banho, de comer no primeiro horário, depois vinham os outros horários. (...) grande contingente da população ficava à margem da experiência (da educação) obstaculizada pela experiência do labor cotidiano. Foi pensando nesta população que se elaborou o plano do curso noturno no qual os alunos pudessem refletir sobre o seu trabalho (...) pensavam a sua própria prática. (PIMENTEL, 1997, apud TAMBERLINI, 2001, p. 90-91).
Esta proposta do curso noturno, voltada para o aluno trabalhador, de baixa renda,
valorizando a sua experiência do trabalho e adequada às suas condições de vida, era
extremamente avançada para a época e ainda hoje não encontra experiência similar em
nossas escolas.
Também em março de 1968 foi criado o segundo ciclo, que hoje equivale ao ensino
médio. Com um projeto bastante avançado para a época, esta etapa de ensino traduz as
concepções que caracterizaram a última fase da experiência do Sistema Vocacional: bastante
vinculado às características de seu tempo, com uma estrutura dinâmica e comprometido com
as lutas por transformação social, o Ensino Vocacional recebe novos docentes em seus
quadros e promove a formação permanente dos que se integram à proposta e não passam
impunes pelas ricas discussões e efervescência cultural, política e social da década de 1960.
Assim surge o projeto do segundo ciclo se propondo a fazer uma revisão do primeiro ciclo.
Concebendo o trabalho em acepção muito mais complexa do que a simples formação técnica,
4 Conforme documento “Esquema preliminar do plano do Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha”, s.d. p.6.
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endossamos a tese de Neves (2010, p.124), segundo a qual, “no Vocacional o trabalho era
concebido como princípio educativo” (grifo da autora). Reformulações foram feitas nos
fundamentos filosóficos e na metodologia, com um aprimoramento do trabalho neste ciclo
em que a noção de conteúdo também foi revista, passando-se a reconhecer que “o conteúdo é
intrinsecamente educativo”, pois a formulação de objetivos e critérios para a elaboração do
processo de construção do conhecimento que implica escolhas de conteúdos para as diversas
áreas do saber e valores e atitudes almejadas na formação oferecida “não podem prescindir
desta base (do conteúdo) sob pena de se reduzirem a discursos vazios, destituídos de
significado” (NEVES, 2010, p.308).
Desta forma, o projeto é aprimorado, valendo-se ainda da mesma concepção e
abrangência da proposta inicial. As turmas de segundo ciclo eram organizadas em
subconjuntos profissionalizantes de técnicos de nível médio, tendo sido instalados os cursos
de Eletrotécnica e Eletrônica, Comunicações, Edificações, Serviço Social, Administração de
Empresas e de Base.
O currículo era constituído por uma parte geral e uma específica; a parte geral era
formada por áreas básicas destinadas a todos os alunos: Português, Matemática e Estudos
Sociais; por áreas básicas para alguns subconjuntos específicos: Física, Química e Biologia;
por áreas complementares: Línguas Estrangeiras e Artes, que variavam de acordo com o
planejamento de cada curso. Em todos os subconjuntos a Educação Física constituía
atividade obrigatória, sendo oferecida como parte específica para cada conjunto as disciplinas
relativas`a formação técnica.
O currículo continuava se caracterizando pela integração das áreas e “o tema central
estabelecido para o currículo do ensino médio era o Brasil” (NEVES, 2010, p.305). Problemas
específicos da realidade brasileira, vinculados aos campos de conhecimento e atividades
específicas de cada subconjunto, relacionados à inserção no mundo do trabalho compunham
a estrutura do currículo do segundo ciclo.
O grande diferencial desta proposta foi a introdução da exigência da experiência do
trabalho para efetuar a matrícula e esta exigência deveria implicar que houvesse uma relação
entre este trabalho e o conteúdo encontrado no estudo, portanto o segundo ciclo foi
concebido integrando a formação geral e a formação profissional.
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“Trabalho remunerado é também considerado atividade curricular, enquanto previsto
como obrigatório sob a forma de emprego que todo aluno buscará (se já não o tiver) como
condição para a matrícula.”5
Embora muitos alunos da escola sediada na capital, ao contrário dos estudantes das
escolas do interior, não tivessem a necessidade trabalhar durante o segundo ciclo, esta
exigência era, sobretudo, uma opção política.
Não se tratava de uma questão econômica e sim de uma proposta pedagógica que, concebendo o trabalho como o ato criativo fundamental do ser humano, o instituía como constitutivo do processo educativo. Essa concepção implicava um posicionamento político-ideológico, significava reconhecer e valorizar o trabalhador como agente criador da cultura e da história. Era essa visão que se esperava que o aluno fosse capaz de adquirir, por meio de seus estudos, mas com o concurso da experiência própria, a partir de sua integração no mercado de trabalho (NEVES, 2010, p.309).
Destacamos ainda a importância da área de Estudos Sociais, núcleo integrador do
currículo em ambos os ciclos do Ensino Vocacional, que continua tendo centralidade nesta
etapa e operando a crítica das proposições e projetos dos vários subconjuntos. No segundo
ciclo as Ciências Humanas compunham a área de Estudos Sociais com professores de
Geografia, História, Sociologia, Economia, Psicologia Social e Filosofia possibilitando uma
formação integral na perspectiva da formação humana.
O Ensino Vocacional angariou o respeito de educadores progressistas e passou a ter
maior visibilidade, inclusive na imprensa. Na escola de São Paulo, diversamente do que
ocorria nas escolas do interior, pais de alunos de melhor nível socioeconômico passaram a se
interessar por matricular os seus filhos. É importante registrar que, visando corrigir
distorções, ao perceber que uma clientela de maior poder aquisitivo passou a procurar a
escola, a equipe do Ensino Vocacional procedeu a uma reformulação em seu processo de
seleção. Procurou-se adotar um novo critério que assegurasse a representatividade da curva
socioeconômica da comunidade em que a escola se situava, para não privilegiar a clientela de
elite que lograva obter melhores resultados no processo de seleção tradicional, em
detrimento das camadas de menor renda. O processo de seleção reformulado objetivava que
o ginásio se constituísse “numa amostra representativa da área a que tem servido”
(GUARANÁ, 1969, p.2).6 Assim sendo, as vagas foram oferecidas de acordo com o percentual
obtido na caracterização de comunidade da pesquisa inicial, constatando-se após a realização
5 Cf. Planos Pedagógicos e Administrativos dos Ginásios Vocacionais, p. 361. 6 Os professores que compunham a Equipe do SEV produziam textos, participavam de Simpósios nos quais
apresentavam consistentes trabalhos acadêmicos e tinham presença constante em Revistas Acadêmicas como a Revista Educação Hoje, uma coleção com 12 números publicada pela Editora Brasiliense.
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de novas pesquisas, que após a reestruturação do processo seletivo passou a haver uma quase
identidade com a curva socioeconômica da comunidade. Deste modo procurava-se assegurar
o direito à educação de forma mais equitativa. Não se tratava de promover mudanças
estruturais, mas dentro dos limites de poder de um sistema de ensino, constituía uma
concepção de política pública avançada para a época que, ao combater as assimetrias de
oportunidades, visava ampliar o acesso à educação para os segmentos de menor renda.
Procurava reparar distorções pretendendo criar oportunidades participativas menos
desiguais, tentando construir uma nova articulação entre a universalização de direitos e as
carências de grupos socioeconômicos distintos, sem perder de vista o projeto global que
implementava.
Já em sua última fase, sobretudo após a edição do Ato Institucional nº 5, o AI-5 , no
período mais repressor do regime militar, estas escolas que formavam indivíduos críticos,
bastante conscientizados em relação aos problemas de seu tempo, trabalhando em suas aulas
com muitas questões atuais naquela época, tiveram tensões no âmbito interno, pois alguns
professores mais conservadores das unidades do interior não se adaptaram ao sistema e não
foram recontratados, passando então a delatar os seus colegas e a equipe do SEV como
subversivos. O espaço e projeção adquiridos pelo SEV também provocaram controvérsias ou,
na verdade, ressentimentos em alguns educadores receosos de sua visibilidade. Muitas
críticas foram tecidas ao conceito de inovação educacional e às escolas experimentais por
educadores que disputavam espaço e poder com docentes que pertenciam à equipe do SEV.
Como assinala Chiozzini (2014, p. 50-51):
Algo que merece ser investigado é a relação dos Ginásios com a rede pública de ensino e como isso levou o SEV a ocupar, ainda que de maneira embrionária, um lugar institucional concorrente ao das Faculdades de Educação. O significado mais amplo desse processo pode ser não apenas revelador do fim dos Ginásios, mas também dos interesses políticos por trás das definições de algo como “inovador” ou “experimental” na educação brasileira.
No âmbito externo, as relações com o regime militar que já eram difíceis, após as
denúncias passaram a atrair ainda mais a desconfiança dos governantes. O Ensino
Vocacional passou a ser visado pelos militares e as perseguições se avolumaram: em
27/01/1969, pelo decreto nº 51.319, o Serviço Vocacional passou a ser subordinado à
Coordenadoria do Ensino Básico e Normal e não mais à Secretaria de Educação, perdendo
autonomia e força política. Alvo de denúncias, as professoras Maria Nilde Mascellani e Áurea
Sigrist foram afastadas de seus cargos em 19/06/1969. Em um clima de repressão, prisões
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arbitrárias e supressão de direitos, muitos professores perdem o direito à cátedra tanto nas
universidades, quanto na educação básica.
Em 12/12/1969, houve, simultaneamente, a invasão policial-militar nas seis escolas,
com prisão de pais, professores, funcionários e alunos e apreensão de livros e documentos da
experiência pedagógica.
Em 05/06/1970, o Decreto 52.460, fez com que os Ginásios Vocacionais passassem a
integrar a rede comum de ensino, com a instauração de vários inquéritos policial-militares,
IPMs, que ainda se estenderam por muito tempo e a professora Maria Nilde foi cassada e
aposentada com base no AI-5, interrompendo uma das mais significativas experiências
pedagógicas já implementadas na rede pública no Brasil.
Considerações Finais
Constituindo um sistema complexo de educação, bastante estruturado, propiciando
sólida formação geral, na perspectiva da formação humana, assentada em valores
substantivos, tais como o compromisso com a transformação social e o enraizamento na
comunidade em que a escola estava inserida, se auto-avaliando com freqüência e
acompanhando as transformações constantes que ocorrem na economia, na cultura, nas
tecnologias e no mundo do conhecimento, o Ensino Vocacional traz em si uma forte carga de
atualidade.
Não só cumpriu as expectativas da época, preconizadas nos documentos e análises
efetuadas pelo professor Luiz Contier, atendendo “as necessidades da vida cultural” de então,
acompanhando “o ritmo precipitado das descobertas científicas” do período e o rápido
“desenvolvimento econômico e social” que se processavam rapidamente naquele momento,
como, ao mapear as atividades econômicas das comunidades em que instalavam as escolas,
as suas aspirações e carências nos planos social e cultural, buscando atendê-las, iam além dos
desígnios do referido professor, atuando no sentido de transmitir valores de solidariedade
humana e social. Destacaram-se por enfrentar a dualidade estrutural de nosso sistema
educacional, preponderante sobretudo no ensino médio na história da educação brasileira,
formando os educandos “pelo” trabalho e não “para” o trabalho, em um projeto que se
aproximou do conceito gramsciano de politecnia, propiciando uma formação que permitia
que os discentes tivessem acesso aos fundamentos da produção moderna, sendo capazes de
articular teoria e prática, antecipando as previsões legais da atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, a LDB em vigor, que vem sendo desfigurada na atualidade.
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Ao propor uma outra forma de avaliação, processual, contínua, sem a utilização de
notas numéricas, voltada para o acompanhamento permanente e atento do desenvolvimento
dos alunos, o Ensino Vocacional também antecipou a idéia de ciclos, por vezes mal
compreendida ao ser associada à promoção automática, sem o devido acompanhamento do
discente e atendimento de suas necessidades. No que se refere ao ensino noturno, o Sistema
Vocacional efetivamente o adequou às condições do educando, como prevê a nossa
Constituição, previsão esta que na prática jamais foi implementada.
Esta escola que não dissociava escola e vida, com forte inserção na comunidade, se
destacou por valorizar a cultura, ministrar aulas de artes, teatro, música, educação física,
áreas fundamentais que propiciam o contato com as diferentes dimensões da cultura
humana, permitindo que o jovem fizesse as suas escolhas, descobrisse e desenvolvesse os
seus talentos, nesta pedagogia que acolhia e respeitava as diferenças. Criou critérios de
seleção mais justos, que buscavam minorar as assimetrias de oportunidades, antecipando, de
certa forma, as ações afirmativas, em uma espécie de cota socioeconômica.
Destacamos ainda a centralidade da história no Ensino Vocacional, a sua capacidade de
articulação com a dinâmica dos acontecimentos, a sensibilidade e integração com as
manifestações culturais locais, a estruturação do currículo e da prática pedagógica do
segundo ciclo embasados na concepção do trabalho como princípio educativo que, ao se opor
à visão tecnicista do regime militar, destinada a formar as classes populares para a execução
de tarefas mecânicas, ministrou uma formação que permitia “que cada cidadão possa se
tornar governante e que a sociedade o coloque, ainda que abstratamente, nas condições
gerais de poder fazê-lo (...)” (GRAMSCI, 1985, p.126).
Muitos são os legados que herdamos do Ensino Vocacional que, ao valorizar a história,
a formação integral que abrangia a razão, a emoção, a imaginação, a formação profissional, a
cultura e a inserção social nesta proposta de educação igualitária, nos mostrou ser possível
ter uma educação de qualidade na escola pública.
Referências
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Filme
VOCACIONAL: uma aventura humana. Direção: Toni Venturi. Brasil, 2011, 77 minutos.
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