entrevista do coletivo beleza da margem sobre o documentário "malucos de estrada"
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36 SALVADOR DOMINGO 9/2/2014 37SALVADOR DOMINGO 9/2/2014
#303 / DOMINGO, 9 DE FEVEREIRO DE 2014REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
NAIR DE CARVALHO MODA PÃES ARTESANAIS CLÁUDIO SIMÕES VINHOS «
BelezaPURAO longa Malucos de Estradamostra a reestruturação domovimento hippie no Brasil
ÍNDICE 9.2.2014ABRE ASPAS Nair de Carvalho fala deamor e do acervo de Genaro de Carvalho
08
FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE
CAPA Documentário reflete sobre aatualidade do movimento hippie no Brasil
18RAFAEL LAGE/ DIVULGAÇÃO
CIDADE BAIXA Ribeira, Humaitá ePedra Furada no roteiro desta semana
26
FERNANDO VIVAS / AG. A TARDE
14 MODAModelagem ampla ediversos tons devermelho em vestidosideais para o verão
23 BIOExperiência-performanceda artista visual RosaBunchaft fala do excessona produção fotográfica
24 ATALHOLôro Stella Mares sofisticaa praia e traz cardápiocontemporâneo comdestaque para o mar
28 GASTRÔAusente na cozinhabaiana, a fermentaçãonatural de pães dátrabalho, mas compensa
EDITORIAL
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Cena do documentárioindependente Malucosde Estrada, dirigidopor Rafael Lage
»MAKINGOF,VÍDEO
SEFO
TOSEM
ATARDE.UOL.CO
M.BR/M
UITO
SUGESTÕ
ES,CRÍTICAS:
REVISTAMUITO@GRUPOATARDE.CO
M.BR
SIGAAMUITOEM
:TW
ITER.COM/REVISTAMUITON
em cinema, nem TV. O lançamento do documentárioMalucos de Es-
trada, programado para março, será tão alternativo quanto sua pro-
dução, que consumiu apenas R$ 66 mil, obtidos graças a uma cam-
panha de financiamento colaborativo nas redes sociais. A ideia é dis-
ponibilizarna internet, comacesso tão livrequantoavidadosartesãos
viajantes retratados no longa dirigido por Rafael Lage, do coletivo
A Beleza da Margem. A equipe percorreu 19 estados e mais de 80 municípios, regis-
trando a reestruturação do movimento hippie brasileiro. Não por acaso, as filmagens
foram concluídas em Arembepe, na lendária Aldeia, que ainda resiste à passagem do
tempo, apesar da precária infraestrutura. A Bahia também surge em cena nas imagens
e histórias da Chapada Diamantina, especialmente do Vale do Capão. A jornalista Carla
Bittencourt conversou com Lage emostra a trajetória singular desses artistas nômades
no século 21. Boa leitura. Kátia Borges, editora-coordenadora (interina)
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ARTE EM
Texto CARLA BITTENCOURT carlapb@gmail.com
Produzido com financiamento colaborativo,grupo finaliza em Arembepe filmagens deum longa-metragem sobre a atualizaçãodo movimento hippie no Brasil
Ocaminho pode ser no asfalto, recortado
pelos carros que cruzam as avenidas, ou
no chão de terra, de onde se vê no ho-
rizonte o desenho irregular dos morros.
Fato é que se anda. Um barbudo fala de
insatisfação,umtatuado,dedesencanto.
Close namão que faz do arame artesanato: é o quemove
oviageiropordiversos territóriosemMalucosdeEstrada:a
reconfiguração domovimento hippie no Brasil.
O documentário, que teve as filmagens concluídas em
janeiro, é resultado de três anos de caronas, paletas, pe-
daladas e alguns voos. Na jornada do coletivo Beleza da
Margem,19estadosemaisde80municípios.Aúltimapa-
rada foiemArembepe,ondeaprimeiraaldeiadopaís rein-
venta o tempo, quatro décadas depois. Em fase de edição,
o filme comemora o sucesso de uma campanha de finan-
ciamento colaborativo que rendeu R$ 66mil.
Não vai passar no cinema nem na televisão. O plano é
lançar emmarço pela internet e deixar o acesso livre para
quemquiser ver e levar paraescolas, cineclubes, praçasou
para casa. Do projeto que originou o longa-metragem (e
que depois vai virar uma série) vem a proposta de tratar o
temasema ingenuidadedobicho-grilo-paz-e-amornemo
MOVIMENTOArtesão viageiro, foto tirada na
Chapada Diamantina, Bahia
RAFAEL LAGE / ARQUIVO PESSOAL
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estereótipo do sujo, drogado e vagabundo, abordagens equivo-
cadas e já midiatizadas à exaustão. “A gente quer provocar o re-
conhecimento domaluco de estrada oumaluco de BR, comouma
expressão cultural brasileira”, pretende o diretor Rafael Lage.
Mas maluco não é pejorativo? O contrário, ele diz. Rafael de-
fende que foi assim que o hippie americano encontrou a sua tra-
duçãonoBrasiledesenvolveujeitopróprio,cominfluênciaafricana
e indígena. Aqui, ficou valendo a filosofia versada por Raul Seixas
e Cláudio Azeredo nos idos de 1977, a de que omaluco beleza é o
contraponto ao sujeito que se esforça para ser normal e fazer tudo
igual. Em resumo: “Você não vai encontrar ninguém falandopara
o outro ‘e aí, hippie?’. O que se diz é ‘e aí, maluco?’”.
ATITUDEPara contar sobre o artesão nômade pelo Brasil foram realiza-
dasmaisde200entrevistas, sempredemaneira informal: câmera
ligada, gente falandodooutro lado, algumasprovocações eodis-
curso sem filtros. Cada depoimento serviu para construir um ce-
nário maior, onde o artesão é a figura que, historicamente, sub-
verteuo crimedevadiagemtrabalhandoelementosdanaturezae
fezdissoumestilodevida(“maluconãoétrampo,éatitude”), com
um código que diz, por exemplo, que a comida de um é de todos.
E, numa linguagemdeles, na qual pedra é ponto de encontro; rá-
dio-cipó, a avó das redes sociais;mocó é dormida de improviso; e
mangueio é troca.
Na feitura desse inventário cultural, o coletivo topou com algu-
mascontradições, comoumacerta intolerânciaaoestrangeiro jus-
to por quem gosta tanto de viajar ou ainda o machismo e a ho-
mofobiaexpressadosporquemteveoamor livre comobase. Isso,
pondera Rafael, não é regra nem émais importante do que a re-
sistência de umgrupo que sempre estevemarginalizado. Que en-
frentouarepressãodaditaduramilitareentendeuqueelatambém
existenademocracia.Hoje,cercade20milpessoassereconhecem
comomalucos de norte a sul do país, seja em comunidades rurais
ou nas pedras urbanas, afirma o diretor.
Nascidades,ocenáriojuntaquemfogedaviolêncianaperiferia,
quemé politizado, quemquer ser “micróbio” (omais largado dos
malucos) e quem diferencia as viagens lisérgicas da barra pesada
doálcooledocrack.Háossimpatizantescomacausaquevivemna
fronteira,assimcomosempretemoplayboyquequertirarondaou
o hippie de verão, que só se fantasia. Rafael nega que o sonho
tenha acabado. “Foi essemovimento que infiltrou na sociedade a
ideia de ecologia. Se pensarmos bem, é algo atemporal, que vem
muito antes dos beatniks. Jesus era umartesão que só andava de
burro porque não existia bicicleta”.
BELEZA DAMARGEMMaluco de Estrada é parte de um projeto que começou há 15
anos, quando o então adolescente Rafael Lage deixou o conforto
da famíliamineira de classemédia para pedalar pelo Brasil. Virou
artesão sem endereço fixo ou curso universitário. “Cheguei a ficar
três meses só trocando, sem tocar em di-
nheiro”.Quandovoltou,viuoquantotinha
mudado e, sem conseguir falar sobre tan-
tos acontecimentos, decidiu fotografar.
Em 2009,montou a exposição A Beleza
daMargem,ÀMargemdaBeleza, naPraça
Sete de Setembro, em Belo Horizonte, lu-
gar que estava sendo duramente repreen-
dido pela fiscalização da prefeitura. Não
deu outra: teve as fotos confiscadas por
“obstrução da via pública” e levou uma
multa de R$ 17 mil. Em vez de desistir,
montou o coletivo, fez umblog e começou
afilmar.OcurtaACriminalizaçãodoArtista:
como se fabricammarginais emnosso país superou ummilhão de
visualizações e foi usado como documento na denúncia feita ao
Ministério Público, corregedoria da Polícia Militar, Defensoria Pú-
blica e prefeitura.
Esses embates também foram decisivos para gestar o lon-
ga-metragem.CoubeaopsicólogoCiroAlmeida transformaras fil-
magens esporádicas em algo mais roteirizado. Veio dele ainda a
proposta de migrar de uma produção bancada “na tora” para o
financiamento colaborativo via Facebook. A campanha chegou a
esmorecer depois de um ótimo começo (eles conseguiram R$ 30
mil nosprimeiros trêsmeses).Mas, emdezembrode2013, voltou
abombar, completandoovalororçado.“Fugiu totalmentedonos-
so controle. O dinheiro não estava vindo mais só de pessoas que
compartilhavameapareciamemnosso feeddenotícias. Tevemui-
RAFAEL LAGE/ ARQUIVO PESSOAL
Imagens mineiras: mãe e bebê na praça Sete de
Setembro, em BH; Rafael Lage na Serra do Cipó;
a exposição À Beleza da Margem, À Margem da
Beleza; e cena do curta autobiográfico Dê um Rolê
Resistência na
Praça Sete, em
2009. A ação da
PM mineira foi o
ponto de partida
para as
filmagens de
Rafael Lage
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tagentealiquenemconhecemos,masque
apostou na causa”.
O fato de os integrantes do Beleza da
Margem teremumhistórico na estrada fa-
cilita, mas pede cuidado. Para Ariane Ro-
cha, autora de muitos textos do coletivo
(elausaa formaçãoemciências sociais pa-
ra embasar o projeto teoricamente), o de-
safioénãodeixaraexperiênciapessoal im-
pregnar o olhar. “Não é imparcialidade,
masmanter o estranhamento para enten-
dermelhor”.Arianeacreditaqueacompre-
ensão sobre a malucada seguirá uma tra-
jetória semelhante à da capoeira, que an-
tes de ser cultura já foi considerada crime.
Outro desafio é deixar claros os limites
ideológicos do projeto. Este é um dosmo-
tivos pelos quais o filme não vai estrear no
circuito comercial. Quando a campanha
ganhou mais visibilidade, Rafael lembra,
teveapropostadeumestilista para levar a
estética domaluco para o Rio FashionWe-
ek. O coletivo recusou, e a justificativa fica
para reflexão: “A indústria tem a perspicá-
cia de transformar tudo em produto. Mas
será que há uma contrapartida válida des-
sa movimentada indústria para aqueles
aos quais ela se refere?”. «
(Colaborou Kátia Borges)
Naquele tempo enos dias de hojeNão haveria melhor cenário para as últimas filmagens deMa-
lucos de Estrada. A 25 km de Salvador, Arembepe, em Cama-
çari, aindaéo lugar. Tantoparaperceberqueo tempopassou–
e trouxea luzelétrica,oPoloPetroquímico,aviolênciaeoarroz
branco–quantoparaouvir asmelhores histórias – Janis Joplin
doidaporumpescador,MickJaggerblaséeRomanPolanskina
fila do cinema improvisado, que funcionava com a luz do sol.
Os carros continuam sem poder entrar, e o acesso à Aldeia
Hippie é feito a pé, pela areia. Para quem ficou, há um sentido
de resistência, conta o artesão Jarbas Vieira, morador há 25
anos.“Aqui,nãoderrubaporquetemhistória”,orgulha-se,con-
tandoque“nãofaltouassédioparaconstruíremumresort”. Ele
acreditaqueo lugaronde ficaaÁreadePreservaçãoAmbiental
do Rio Capivara ganhoumais força coma chegada dos primei-
ros malucos. “Somos bandeirantes do Brasil. Os lugares mais
lindos, a gente é que descobre”.
Para o arquiteto baiano Beto Hoisel, havia na aldeia um sa-
bordenovidadequeseperdeu.Nadécadade1970,eleviveuali
por três anos, experiência quemesclou à ficçãopara escrever o
místico, poético, filosófico e bem-humorado Naquele Tempo,
em Arembepe (século22editora). Sem nostalgia, Hoisel acha
que a autenticidade de antes não cabe no contexto atual, mas
reforça que o movimento hippie deixou sementes, como a li-
berdade sexual e a ecologia. Esta, porém, ainda não respei-
tada. “Osonhoagoraéoutroe,às vezes, vemcompesadelo.O
homem está destruindo o planeta aceleradamente”.
ACESSEO blog do coletivo:belezadamargem.comA Criminalização doArtista (curta):vimeo.com/27659191Campanha do filmeMaluco de Estrada:mobilizefb.com/malucosdeestrada
MARA MÉRCIA/ ARQUIVO AG. A TARDE/ 7.11.1990
Mais antiga do
país, a Aldeia
Hippie de
Arembepe virou
cenário das
filmagens, em
janeiro deste ano
BIO ROSA BUNCHAFT
Performance dentroda câmera escuraTexto ERON REZENDE eronrezende@gmail.comFoto FERNANDO VIVAS vivasf@gmail.com
A cada minuto, 60 horas de vídeo são disponibilizadas no YouTube, 2.500 fotos são pu-
blicadas no Flickr, 500 tweets apontam para links de vídeo. O Facebook já possui 250
bilhõesde fotos emseubancodedados.Nummomentoemqueo consumoeaprodução
de imagensatinge taisníveis,porquenãosimularaexperiênciadeseestardentrodeuma
câmera? Foi o que se perguntou a artista visual Rosa Bunchaft, em 2012, quando iniciou
seumestradonaEscoladeBelasArtesdaUfba.Desdeentão,elavemtransformandoquar-
tosdehotéiseporões comoopróprioaparatoparaacaptaçãode imagens, simulandoum
enorme lambe-lambe. A experiência-performance, na qual o espectador é convidado a
participar, “clicando” imagens da paisagemao redor dentro da “câmera”gigante, foi pre-
miadano13ºSalãoNacionaldeArtesdeItajaí,emdezembrodoanopassado,eseráagora
realizadaemespaçosdoRiode JaneiroedeSãoPaulo. “Aexpressãoquemais percebono
rosto do público é de espanto e fascínio, como uma criança que acaba de descobrir um
truquedemágica”.ParaBunchaft,nascidaemNápoles,naItália,eradicadanoBrasildesde
os 14 anos, o fascínio e o espanto ficam mais evidentes quando surgem os produtos da
experiência: as fotos. “As pessoas percebem que tirar fotos é uma ação no tempo”, diz.
“Que uma foto não congela o tempo,mas que, ao contrário, o tempo prova, a cada foto,
o quanto é irrefreável”. «
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