escrevivÊncia de carolina maria de jesus: tempo ... · palavras-chave: memória, carolina maria de...
Post on 12-Nov-2020
0 Views
Preview:
TRANSCRIPT
ESCREVIVÊNCIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS: TEMPO,
EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA ATRAVÉS DE UMA POÉTICA DE RESÍDUOS.
Jonatan Gomes dos Santos e Silva
Mestrando em História - Universidade Estadual Paulista (UNESP-Assis)
jonatan.gomes@unesp.br
Resumo
A presente comunicação propõe a análise da relação entre memória, tempo e experiência
na escritura de Carolina Maria de Jesus, que pode ser classificada como uma poética de
resíduos, tendo como fonte os manuscritos e datiloscritos utilizados na elaboração de sua
autobiografia póstuma, Journey de Bitita (Diário de Bitita), publicada primeiramente na
França em 1982, e no Brasil apenas em 1984. Esses textos são constituídos pelas
memórias da escritora e seguem uma ordem temporal flutuante entre os anos de 1918 e
1940. Estudos nos quais mulheres negras aparecem como sujeitos passam por deficiência
de documentos em que elas narram suas próprias experiências, principalmente pelo fato
da literatura brasileira ter obstáculos de classe social, raça e gênero que, por um longo
período, permitiam que ela fosse gerida quase exclusivamente por homens brancos.
Portanto, a obra de Carolina de Jesus, marcada pela sua memória, oralidade e vivência, é
um importante suporte para o estudo da literatura feminina negra, pois nos possibilita
apreender a imagem da mulher negra sob seu próprio olhar.
Palavras-chave: Memória, Carolina Maria de Jesus, literatura afro-brasileira.
Introdução
Carolina Maria de Jesus foi uma escritora negra que obteve sucesso em 1960 com
a publicação de seu primeiro livro “Quarto de despejo”. Este foi constituído pelos seus
diários, que narravam o cotidiano da escritora, a luta quotidiana de uma mulher negra,
migrante, pobre e desprovida de favores do Estado, de organismos sociais, de instituições
e até de amigos, em um período de grande propaganda de desenvolvimento econômico e
de modernização do Brasil. Contudo, as mais de 5.000 folhas presentes nos acervos
brasileiros contendo os escritos de diversos gêneros de Carolina de Jesus nos mostram a
importância que a escrita tinha para a construção de sua identidade, bem como a riqueza
literária e memorialística que ainda foi pouco explorada pela história.
Após a publicação de “Quarto de Despejo”, a escritora passou por um processo de
esquecimento característico dos estudos literários que se estavam fora do que chamamos
de cânone, uma vez que vêm de espaços historicamente silenciados e marcados por
resquícios ainda presentes, na contemporaneidade, do colonialismo e da escravidão. De
acordo com Barossi (2017, p. 22), a reivindicação do direito à escritura – e à escrevivência
– tem sido ouvida aos poucos. Nos últimos anos, a crítica passou a valorizar a obra de
Carolina de Jesus como uma produção digna de ser estudada como literatura. Além disso,
a escritora é fundamental para se pensar diversas questões sobre a mulher negra, racismo,
identidade e escrita periférica.
A tortuosa escritura de Carolina acaba se revelando como fiel expressão da dura
rotina que marca o cotidiano de uma mulher negra, que percorre incessantemente as ruas
de São Paulo a fim de garantir, através dos restos, a sobrevivência de sua família. Dessa
forma, a poética de resíduos é oriunda da condição de marginalidade que ela vivia. Até
mesmo os materiais que utiliza para a escrita e leitura possuem o caráter de retalho, afinal,
os seus cadernos vêm do lixo que vasculha.
Carolina de Jesus como escritora constrói-se de forma constante com o
conhecimento que adquire de forma autodidata. Através de suas narrativas expõe como
adquiriu conhecimento sobre a realidade que à cerca conforme era absorvida pelas
palavras, pela linguagem, pelas leituras, e estando ela própria inserida na linguagem,
sentia-se presa à matriz do conhecimento que precisa ser colocado no papel para sanar as
perturbadoras, mas esclarecedoras, ideias (FERNANDEZ, 2019).
Portanto, o objetivo desse texto é analisar a relação entre memória, tempo e
experiência na escritura de Carolina Maria de Jesus, a partir dos textos que originaram a
sua coletânea de contos e poesias autobiográficos, publicada originalmente na França e
traduzida para o português com o título “Diário de Bitita”.
A poetisa da Favela
Não se saber ao certo a data de nascimento de Carolina Maria de Jesus, mas
estima-se que seja por volta de 1914, numa pequena cidade no sudoeste de Minas Gerais
chamada Sacramento. Preta, neta de ex-escravos, foi criada somente pela mãe. Carolina
migrou de Sacramento-MG para São Paulo no final da década de 1940, em busca de
melhores condições na moderna e industrializada capital que segundo Rolnick (1988)
passa de cidade/entreposto comercial de pouca importância no país escravocrata para
cidade-vanguarda na produção industrial. São Paulo se transformara na cidade mais
populosa e o mais importante centro financeiro do Brasil. Um novo surto industrial ocorre
acompanhado da abertura das rodovias Anchieta e Presidente Dutra.
Ocorre, portanto, uma erradicação das “casas de cômodos”, tendo como
justificativa o remodelamento do espaço público, o que resulta na expulsão dos pobres do
centro urbano por meio de medidas coercitivas. Restando a população improvisar e
construir barracões com os restos madeiras e outros materiais que encontravam
abandonados na cidade (BONDUKI, 1988).
Nesse ambiente conturbado que Carolina de Jesus sentiu a inspiração para
começar a escrever, mesmo com apenas dois anos de ensino escolar, que foi interrompido
no começo das andanças, da migração interna, que marcaram a vida e obra da escritora.
Os seus textos funcionam, portanto, como uma forma de criar um percurso orientado ao
caos dos eventos cotidianos.
O jovem jornalista Audálio Dantas foi até o Canindé para fazer uma reportagem
sobre a favela e acaba encontrando Carolina brigando com alguns homens que brincavam
em um parque, falando que iria colocá-los no seu diário. Ele se interessa pelos cadernos,
e fica responsável pela edição e publicação que sai após dois anos. O sucesso é enorme.
Em 5 de maio de 1960 foi lançado “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”,
nos três primeiros dias vendeu mais de 10 mil cópias, número muito alto até para os
parâmetros atuais, superando livros de autores consagrados, como Jorge Amado. A
atenção da imprensa nacional é imensa, o que ajuda na visibilidade internacional, assim
o território brasileiro se apequena para as palavras de Carolina de Jesus, pois o livro foi
traduzido em 19 línguas e publicado em mais de 40 países (FERNANDEZ, 2019).
O diário de Carolina choca a elite brasileira não apenas por revelar as mazelas da
urbanização paulistana, mas também por expor suas práticas e teorias para resistir à
violência de gênero e ao racismo.
Contudo, a queda é tão grande quanto o sucesso. Já na publicação do seu livro
posterior em 1961, “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”, as vendas
despencam. Nesse livro, Carolina descreve seu cotidiano a partir do dia de lançamento do
“Quarto de Despejo”, relatando sua saída da favela após realizar o grande sonho de residir
em uma casa de alvenaria.
Passada a agitação em torno do lançamento de Quarto de Despejo, Carolina de
Jesus passa por um processo de esquecimento. Ela queria publicar outros gêneros
literários:
Ela tentava se firmar como escritora ficcional, leitora de clássicos e criadora
de histórias que falavam, entre outros temas, de amor, traição, injustiça,
vingança, remorso e verdade, o que estava longe de interessar a um meio
desacostumado a dar voz aqueles que desafiavam a ordem estabelecida e
procuravam ocupar espaços antes reservados a determinados grupos. (PERES,
2016 p. 91)
Carolina de Jesus ainda conseguiu publicar com recursos próprios mais dois
livros, o romance Pedaços da Fome em 1963 e Provérbios em 1965. Contudo, esses livros
são vistos com indiferença, a “poetisa da favela”, como era chamada, que deixara a favela
do Canindé, já não tinha mais espaço na literatura.
A escritora acaba mudando para um sítio em Parelheiros, zona sul de São de Paulo.
Isolada, Carolina de Jesus passa a escrever a maior parte de seus contos e poesias
autobiográficos, nesse contexto ela reconstrói suas reminiscências de infância. Em 1972
foram entregues dois cadernos para a jornalista Clélia Pisa que continham uma coleção
dessas memórias (FERNANDEZ, 2014). Esses cadernos apenas doze anos mais tarde
resultariam na obra póstuma “Diário de Bitita”. Ela volta a catar papel esporadicamente
e morre em 1977, esquecida por todos, num sítio em Parelheiros.
Poética de Resíduos e Escrevivência Caroliniana
Analisar a obra de Carolina de Jesus é um desafio singular na associação da
Literatura com a História, pois os modelos tradicionais dos cânones literários não podem
suportá-la, afinal, ela desenvolveu sua escritura de maneira autônoma com apenas dois
anos de ensino escolar. De acordo com Fernandez (2019), a obra de Carolina de Jesus é
marcada por um hibridismo que mescla: influências da literatura do século XIX;
romances; melodramas; teatro, crônicas dos jornais; radionovelas; e, sobretudo, a
oralidade que é essencial na sua formação cultural e para sua apreensão do mundo. Mas
Carolina de Jesus não se limitou aos textos, também tinha forte ligação com a música,
tocava violão e produziu dois Long-plays (LP’s) com variados gêneros musicais. Além
disso, ela gostava de produzir suas fantasias para o carnaval, tendo registro da criação de
um “vestido elétrico”, ou seja, Carolina de Jesus excursiona pelas artes em geral.
Portanto, o que muitas vezes é definido como estética da fome, literatura marginal
ou literatura periférica, pode ser entendido como uma poética de resíduos:
uma reciclagem literária ao modo de um bricoleur que vai colando no seu texto
pedaços de discursos alheios. Procurando uma aproximação com a literatura
‘ilustrada’, linguagem entendida como “arma” crítica, ela vai colando retalhos
ou restos de ideias e de formas em seus experimentos de escrita.
(FERNANDEZ, 2019, p. 26).
A Vida e a obra de Carolina de Jesus se misturam não apenas no conteúdo, mas
também na sua forma não linear e cheia de descontinuidades. Os seus textos seguem uma
estruturação ligada ao seu ofício de catadora, pois os seus materiais de escrita e leitura
eram retirados do lixo.
Essa poética de resíduos contém a bagagem da cultural que a escritora adquiriu
em suas migrações e vivência nas favelas, onde pessoas de diferentes lugares, culturas e
costumes foram amontoadas às margens do desenvolvimento urbano. Os seus textos são
marcados pela mescla de vozes sotaques e acentuações que revelam “esse agrupamento
de discursos nos quais sua escrita se equilibra ao recriar aproximações das unidades de
origem e de suas significações ao rebocá-las em seus textos” (FERNANDEZ, 2019, p.
64).
Ao mesmo tempo, Carolina de Jesus é uma beletrista que busca na linguagem
clássica uma referência para seus textos. Com essa aproximação da literatura tradicional,
a escritora também procura legitimar o seu texto, contudo, isso não pode ser visto como
uma mera imitação subalterna, afinal, a partir da bricolagem, da mescla de estilos, ela cria
um estilo inusitado que compreende a arte como conhecimento e beleza (FERNANDEZ,
2019, p. 37).
O que resulta num bucolismo de tom idílico expresso nas constantes descrições
das belezas da natureza, como se pode presenciar na segunda versão do “Prólogo” de seu
livro de poesias, texto em que a escritora reflete sobre o nascimento de sua aptidão
literária. Para isso, ela realiza uma pequena autobiografia, cuja a mudança na infância
para uma fazenda é um evento importante, pois a partida da cidade é triste inicialmente
porque significava em abandonar a escola. Contudo, em pouco tempo Carolina de Jesus
passa a gostar da sua nova vida:
Dias depois eu comecei a apreciar a vida no campo. Mamãe deixava o leito
antes do astro rei surgir. Ia preparar a nossa refeição. Eu permanecia no leito
ouvindo os gorjeios das aves. Eu era sempre a última a deixar o leito. Ia abluir-
me no regato. A brisa perpassava suavemente. Eu aspirava o perfume que
exalava das flores. Comecei a apreciar aquela vida tranquila e silenciosa. Eu
tinha impressão de que tínhamos nos transportado de um mundo para o outro.
(JESUS, 2018, p. 21).
A partir dessa mudança para a fazenda iniciam, ainda muito jovem, as andanças
de Carolina de Jesus, a migração interna em busca de melhores condições vida com a mãe
e o padrasto. Mais tarde caminharia sozinha até chegar em São Paulo, onde a solidão e a
frustração com o grande conglomerado urbano formaram as condições para emergir a
vontade de escrever:
Percebi que o meu pensamento se modificava. Não era o mesmo lá do interior.
Sentia ideias que eu desconhecia. As ideias surgiam initerruptamente. No meu
cérebro parecia que havia alguém me ditando algo. Eu pensava, pensava, mas
não sabia definir. Senti-me tão só nesta grande metrópole. Um dia, apoderou-
se de mim um desejo de escrever. Escrevi: Adeus, dias de ventura!/ Adeus,
dias de ilusão!/ Vou morar na sepultura/ Debaixo do frio, no chão/Vou
satisfeita, risonha/ Contente por não voltar/ Minha vida é tristonha/
Morrendo... Vou descansar (JESUS, 2019, p. 24).
Em muitos textos Carolina de Jesus trata esses infortúnios da vida com uma
linguagem jocosa, representando-os com hilaridade, muitas vezes promovendo um auto-
escárnio:
Quando eu cheguei aqui em São Paulo, eu não sabia tomar o bonde. Pensava:
‘Deve ser bom andar naquilo’. Parava em qualquer lugar, fazia sinal e o bonde
passava. Eu exaltava e bradava:\ - Eu vou pagar! Eu tenho dinheiro, olha o
dinheiro aqui. Vocês não param o bonde por que eu sou preta? (JESUS, 2018,
p. 76).
A escritora, inclusive, organiza uma coleção desses textos e os nomeia como
“Humorísmos”. Mas esse escárnio de Carolina de Jesus está em toda sua obra, um dos
cadernos que originaram a publicação do livro “Journal de Bitita” na França em 1982,
nos serve de exemplos, pois evidencia essa característica logo no seu título. A escritora
nomeou um dos cadernos como “Um Brasil para os brasileiros”, que seria uma referência
irônica às ideias políticas de Rui Barbosa, uma vez que suas poesias e contos
autobiográficos expõem as mazelas da população negra no começo do século XX , ou
seja, um Brasil que não serve aos brasileiros (FERNANDEZ, 2019, p. 218).
As ideias de Rui Barbosa eram transmitidas para Carolina de Jesus através das
leituras de um oficial de justiça de Sacramento que lia para a população negra que não
fora alfabetizada as notícias dos jornais, sempre ressaltando a importância da
alfabetização. Os discursos e histórias do avô Benedito José da Silva, ou o Sócrates
Africano, como ela gostava de chamá-lo, que era muito reconhecido na cidade por sua
sabedoria que era disseminada em seus discursos.
Esses cadernos também exemplificam a intensa interferência editorial nas obras
de Carolina de Jesus. Em 1984 foi publicado no Brasil “Diário de Bitita”, que seria uma
tradução de “Journal de Bitita”. Além da alteração no próprio título, uma estratégia de
marketing, por ter sido publicado na França diversas intervenções foram feitas no texto
para se adaptar ao público francês, seja na sua estrutura, seja no conteúdo. Portanto, a
organização dos textos feita pela escritora, que marcadamente contavam a sua história
através da linguagem poética ou da autobiográfica, procurando dar conta de episódios
significativos de sua vida, não foi respeitada.
Dessa forma, as análises dos manuscritos, datiloscritos e de obras que mantêm a
estrutura original dos textos da escritora sãos fundamentais para evitar distorções no texto
de Carolina de Jesus. O que não significa desconsiderar a interferência do “Outro” em
suas páginas, uma vez que “é importante determinar quem é o interlocutor imaginário ao
qual o relato se dirige, e que tipo de relação o narrador estabelece com ele” (PEREIRA,
2000, p. 124).
A escritora Conceição Evaristo cunhou o conceito escrevivência para dar conta de
sua escrita que mistura memórias transmutadas em experiência, oralidade e ficção. O livro
“Becos da Memória” inaugura esse experimento que não teme inventar: “As histórias são
inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do
fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção” (EVARISTO, 2017,
p. 11). A oralidade é uma das bases desse conceito, pois suas memórias foram construídas
coletivamente pelas narrações das diversas histórias acompanhadas das pessoas que
cruzavam os becos da favela em que morava na infância.
Evaristo tinha um objetivo claro em sua obra: contar a história “dos seus”, e
Carolina de Jesus compartilha desse sentimento em seus textos, ela queria contar a
história do “povo que faltava”. Bem como compartilha a cor da pele, o gênero e as
memórias advindas dos becos das favelas. Aspectos esses que refletem na hora de pôr a
tinta no papel e de legitimar o seu texto como relevante de ser lido.
Dessa forma, o conceito de escrevivência pode ser aplicado à obra de Carolina de
Jesus, pois a escritora estrutura seus textos com elementos da sua história, a escrita
memorialística acompanha todo o percurso da obra. Sua escritura “ganha força porque
Carolina de Jesus consegue mediar as relações entre vida e obra, isto é, ela usa memórias
como experiência para transmutá-las em literatura” (FERNANDEZ, 2019, p. 35).
No texto “A Empregada” fica nítido os traços biográficos da escritora
transmutados em literatura híbrida:
Uma jovem deixou o interior e veio empregar-se em São Paulo para ganhar
mais. Não apreciou o São Paulo com seu bulício diário e o seu clima
enigmático. Enfim, ela estava descontente e regressou ao interior. As amigas
foram cumprimentá-la e foram saber que tal é São Paulo. Ela respondeu-lhes
assim: / Quando eu era empregada / Sofri tanta humilhação / Às vezes eu tinha
vontade / De dar uma surra no meu patrão / Era um patrão malcriado / Não
deixava eu parar um segundo / E o diabo ainda falava / De mim para todo
mundo. / Obrigava eu levantar / A uma da madrugada. / E ainda andava
dizendo / ‘Esta malandra não faz nada’ / Se a gente dá um passo, / O diabo está
sempre atrás / Vive Sempre pondo defeito / Em todo serviço que a gente faz /
Não gostei de trabalhar, / Foi para as donas de pensão, que quer tudo muito
limpo / Mas não quer comprar sabão / Se a gente dá um passo / A diaba está
sempre junto. / Vive sempre observando, / Se a Empregada come muito / Vive
sempre pondo defeito / Em todo serviço que a gente faz (JESUS, 2018, p. 84-
5).
As dicotomias entre empregada/patrão, campo/cidade, negro/branco são temas
constantes na obra da escritora. Nesse texto estão presentes as memórias dos primeiros
trabalhos de Carolina de Jesus quando ela inicia a sua migração em São Paulo, na primeira
metade do século XX. Tudo indica que não lhe faltava serviço em casas de famílias
brancas e economicamente bem colocadas, contudo, “segundo suas próprias palavras, ela
era independente demais para ficar limpando bagunças alheias” (MEIHY, 1994, p. 21).
Com a gravidez de João, seu primeiro filho, as portas dessas famílias abastadas se
fecharam, bem como a moradia se tornara um problema, uma vez que residia nas casas
onde trabalhava. Sem nenhuma perspectiva, Carolina de Jesus começa a catar papel para
sobreviver e com tabuas que encontra nas ruas constrói um barraco, ainda grávida, na
favela do Canindé, local que ela vai chamar de quarto de despejo da cidade de São Paulo.
O ofício de empregada doméstica era uma das poucas opções para as mulheres
negras, e continha muitos resquícios do regime escravocrata, algumas patroas no começo
do século XX ainda utilizavam chicote para punir suas empregadas. Na contingência da
miséria, mesmo com a impossibilidade da existência de uma vida privada, trabalhar como
empregada dava a essas mulheres o local onde dormir e o alimento pra continuar vivendo
(BERNARDO, 1998, p. 56).
De acordo com Gullestad (2005), a maior parte das narrativas de vida atuais são,
de alguma maneira, testemunhos dos processos históricos, econômicos, sociais e culturais
da modernidade capitalista. Atualmente, a modernização tornou-se um fenômeno
mundial, que não se limita a suas formas ocidentais. As narrativas expõem possibilidades
de reações, adaptações e resistências específicas à modernidade.
A obra de Carolina de Jesus não se encaixa nos moldes tradicionais da literatura,
mas o gênero autobiográfico está se concretizando e se transformando por estender-se a
novos grupos, novos contextos e novas regiões do mundo como parte das presentes
mudanças. Essa extensão pode ser considerada uma luta contemporânea por constelações
fundamentadas de significação dentro de processos cada vez mais globais.
(GULLESTAD, 2005).
Considerações Finais
Os contos autobiográficos de Carolina de Jesus não deixam de ser uma
ficcionalização, uma escrevivência, de fatos e acontecimentos absolutamente reais.
Desorganizar o tempo por meio da narrativa possibilita a organização de um tempo
próprio, a identidade narrativa “construída por esse novo tempo, realizado pela reescrita
de si, pode emergir como chave para criação de uma autoficção, visto que viabiliza novas
possibilidade de reconhecimento de uma existência” (FERNANDEZ, 2019, p. 288).
Portanto, a obra de Carolina de Jesus vai muito além da denúncia e do testemunho.
A escritora “criar a si mesmo” a partir de seus textos, assumindo o lugar de fala com o
propósito de construir uma história em que ela também tenha o direito de registrar o seu
lugar de sujeito.
Referências bibliográficas
Bonduki, Nabil. Crise de habitação e a luta política no pós-guerra. In: Lúcio Kowarick.
(Org.). As Lutas Sociais e a Cidade. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
BERNARDO, Terezinha. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São
Paulo: Editora UNESP, 1998.
COSTA, Renata Jesus da. Subjetividades femininas: mulheres negras sobre o olhar de
Carolina Maria de Jesus, Maria Conceição Evaristo e Paulina Chiziane. 2007.
Dissertação (Mestrado em História Social) Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.
FERNANDEZ, Raffaella. Entrevista Clélia Pisa. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 18, n.
35, p. 297-304, 2014.
FERNANDEZ, Raffaella. A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus. São
Paulo: Aetia Editorial, 2019.
GULLESTAD, Marianne. Infâncias imaginadas: construções do eu e da sociedade nas
histórias de vida. Educação & Sociedade, Campinas, v.26, n. 91, 509-534. 2005.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo:
Paulo de Azevedo, 1960.
JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo:
Paulo de Azevedo, 1961.
JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da Fome. São Paulo: Áquila, 1963.
JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Edição da Autora, 1965.
JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. São Paulo: Sesi-SP editora, 2014.
JESUS, Carolina Maria de. Meu sonho é escrever...:contos inéditos e outros escritos.
Raffaella Fernandez (Org.). São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.
PEREIRA, L. M. L. Algumas reflexões sobre histórias de vida, biografias e
autobiografias. HISTÓRIA ORAL, 3, 2000, p. 124.
PERES, Elena Pajaro. Carolina Maria de Jesus: insubordinação e ética numa literatura
feminina de diáspora. In: Assis, Maria Elisabete Arruda de; Santos, Taís Valente dos.
(Org.). Memória Feminina: mulheres na história, história de mulheres. 1ed. Recife:
Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2016, v., p. 89-97.
ROLNIK, R. São Paulo, início da industrialização: o espaço é a política. In: Lúcio
Kowarick. (Org.). As Lutas Sociais e a Cidade. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
top related