espanhol e portuguÊs em contato: o atrito da l1 … · para a realização deste trabalho. ......
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Universidade de Braslia UnB Instituto de Letras IL Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo LET Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada
ESPANHOL E PORTUGUS EM CONTATO: O ATRITO DA L1 DE IMIGRANTES ESPANHIS
NO BRASIL.
MARA CAROLINA CALVO CAPILLA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada da Universidade de Braslia como requisito obteno do ttulo de Mestre em Lingstica Aplicada.
Orientador: Prof. Enrique Huelva Unterbumen
Braslia
2007
C169 Calvo Capilla, Mara Carolina. Espanhol e portugus em contato: o atrito da L1 de imigrantes
espanhis no Brasil. / Mara Carolina Calvo Capilla. -- Braslia, 2007.
xvi, 173 f. : 30 cm. Orientador: Enrique Huelva Unterbumen
Dissertao (mestrado) Universidade de Braslia, Instituto de Letras, Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo, 2007.
1. Lingstica. 2. Atrito lngua materna. 3. Bilingismo. 4. Imigrantes espanhis. 5. Brasil. I. Unterbumen, Enrique Huelva. II. Ttulo.
CDU 800.732
Ficha elaborada pelo bibliotecrio: Massayuki Franco Okawachi, CRB1 -1821
ii
iii
TERMO DE APROVAO
MARA CAROLINA CALVO CAPILLA
ESPANHOL E PORTUGUS EM CONTATO:
O ATRITO DA L1 DE IMIGRANTES ESPANHIS NO BRASIL.
Dissertao aprovada como requisito para obteno de grau de Mestre em Lingstica
Aplicada do Programa de Ps-Graduao em Lingstica Aplicada do Departamento de
Lnguas Estrangeiras e Traduo, Instituto de Letras, Universidade de Braslia, pela seguinte
banca examinadora:
Orientador: Prof. Dr. Enrique Huelva Unterbumen
Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo, UnB
Examinador Externo: Prof. Dr. Tommaso Raso Faculdade de Letras - Lingstica aplicada ao ensino de
lnguas estrangeiras, UFMG
Examinador Interno: Prof. Dr. Mark D. Ridd
Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo, UnB
Suplente: Profa. Dra. Maria Luisa Ortz Alvarez
Departamento de Lnguas Estrangeiras e Traduo, UnB
Braslia, 15 de fevereiro de 2007
iv
v
AGRADECIMENTOS
Desejo expressar minha gratido a todos que, direta ou indiretamente, contriburam
para a realizao deste trabalho.
Meu especial agradecimento aos participantes desta pesquisa.
A
Famlia e amigos.
Encarnacin Ponce, in memoriam.
Enrique Huelva, orientador desta dissertao.
Antonio Gonalves de Arajo Neto, pela reviso da dissertao.
CAPES, pela bolsa que facilitou a minha dedicao exclusiva
realizao desta pesquisa.
Professores, alunos e pessoal administrativo do Programa de Mestrado
em Lingstica Aplicada da UnB.
Mara Luisa Ortz Alvarez, Mark Ridd e Tommaso Raso, pela sua
participao na banca.
Elena Haz e Luis Fernando Valdivia, pela sua amvel colaborao.
Monika Schmid, pela sua inestimvel ajuda.
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vii
SUMRIO
LISTA DE TABELAS ................................................................................................................................. ix LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ................................................................................................. xi RESUMO ...................................................................................................................................................... xiii ABSTRACT .................................................................................................................................................. xv 1 INTRODUO ......................................................................................................................................... 1 1.1 APRESENTAO DO TEMA............................................................................................................... 1 1.2 PROBLEMA ........................................................................................................................................... 1 1.3 OBJETIVO.............................................................................................................................................. 2 1.4 JUSTIFICATIVA.................................................................................................................................... 3 1.5 PERGUNTAS DE PESQUISA ............................................................................................................... 4 2 REVISO DE LITERATURA................................................................................................................ 6 2.1 O BILINGISMO................................................................................................................................... 6 2.1.1 Bilnges Equilibrados e Bilnges Dominantes .................................................................................. 8 2.1.2 Bilnges Precoces e Bilnges Tardios ............................................................................................... 8 2.1.3 Bilnges Compostos e Bilnges Coordenados................................................................................... 9 2.1.4 O continuum......................................................................................................................................... 10 2.2 O ATRITO: DEFINIO E DESCRIO ............................................................................................ 11 2.3 CAUSAS DO ATRITO: SIMPLIFICAO VS. INFLUNCIA DA L2 .............................................. 15 2.3.1 A Teoria da simplificao..................................................................................................................... 18 2.3.2 A teoria da Transferncia ou Influncia Interlingstica ...................................................................... 21 2.4 PERDA DE COMPETNCIA VERSUS PROBLEMAS DE DESEMPENHO ..................................... 26 2.5 O ATRITO NOS DIFERENTES NVEIS LINGSTICOS .................................................................. 28 2.6 FATORES EXTRALINGSTICOS...................................................................................................... 30 2.6.1 Idade ..................................................................................................................................................... 30 2.6.2 Educao .............................................................................................................................................. 31 2.6.3 Contato ................................................................................................................................................. 32 2.6.4 Durao da emigrao .......................................................................................................................... 33 2.6.5 Atitudes ................................................................................................................................................ 33 2.7 ALTERNNCIA DE CDIGO VERSUS ATRITO .............................................................................. 34 3 METODOLOGIA .................................................................................................................................... 39 3.1 INSTRUMENTOS PARA A COLETA DE DADOS ............................................................................. 40 3.2 SELEO DOS PARTICIPANTES....................................................................................................... 43 3.3 PONTO DE REFERNCIA.................................................................................................................... 46 3.4 AVALIAO DOS DESVIOS OU ERROS .......................................................................................... 46 4 ANLISE DOS RESULTADOS ............................................................................................................. 48 4.1 PERFIL SOCIOLINGSTICO DOS PARTICIPANTES ..................................................................... 48 4.1.1 Variveis Demogrficas ....................................................................................................................... 48 4.1.2 Variveis Concernentes Imigrao .................................................................................................... 50 4.1.3 Conhecimentos Lingsticos................................................................................................................. 50 4.1.4 Utilizao das Lnguas ......................................................................................................................... 52 4.1.5 Atitudes ................................................................................................................................................ 54 4.2 ANLISE DO CORPUS: TRAOS LINGSTICOS........................................................................... 56 4.2.1 Nmero de Desvios e Avaliao da Competncia em L1 dos Participantes......................................... 56 4.2.2 Anlise Qualitativa ............................................................................................................................... 57 4.2.2.1 Nvel fontico .................................................................................................................................... 61 4.2.2.2 Nvel lxico ....................................................................................................................................... 62
4.2.2.2.1 Extenses ou decalques semnticos................................................................................................ 62 4.2.2.2.2 Aglutinao semntica.................................................................................................................... 69 4.2.2.2.3 Decalques de uso ............................................................................................................................ 71 4.2.2.2.4 Decalques lxicos ........................................................................................................................... 73 4.2.2.3 Nvel morfossinttico......................................................................................................................... 74 4.2.2.3.1 O gnero ......................................................................................................................................... 74 4.2.2.3.2 O artigo ........................................................................................................................................... 75 4.2.2.3.3 A regncia verbal ............................................................................................................................ 76 4.2.2.3.4 As preposies ................................................................................................................................ 77 4.2.2.3.5 Advrbios e conjunes .................................................................................................................. 78 4.2.2.3.6 Verbos pronominais........................................................................................................................ 81 4.2.2.3.7 Outras interferncias morfossintticas ............................................................................................ 81 4.2.2.4. Nvel sinttico.................................................................................................................................... 82 4.2.2.4.1 A expresso do sujeito pronominal................................................................................................. 83 4.2.2.4.2 A omisso de clticos ...................................................................................................................... 86 4.2.2.4.3 A substituio do possessivo por de + pronome ............................................................................. 87 4.2.2.4.4 A posio dos pronomes ................................................................................................................. 88 4.2.2.4.5 A ordem das palavras...................................................................................................................... 89 4.2.2.4.6 As respostas com repetio............................................................................................................. 89 4.2.2.4.7 Omisso da preposio a no objeto direto de pessoa...................................................................... 90 4.2.2.4.8 Omisso da preposio a na locuo verbal de futuro (ir + a + infinitivo) .................................... 92 4.2.2.4.9 Uso do subjuntivo ........................................................................................................................... 92 4.2.2.4.10 Outros decalques estruturais ......................................................................................................... 93 4.2.2.5 Alternncia de cdigo ........................................................................................................................ 96 4.2.2.6 Desvios intralinguais ......................................................................................................................... 99 4.2.3 Recapitulao e Balano.......................................................................................................................102 5 DISCUSSO TERICA..........................................................................................................................105 5.1 SINAIS DE ATRITO NA L1 ..................................................................................................................105 5.2 FATORES EXTRALINGSTICOS......................................................................................................106 5.3 INFLUNCIA DA L2 .............................................................................................................................108 5.4 PERDA DE COMPETNCIA OU PROBLEMAS DE DESEMPENHO ...............................................111 5.5 O ATRITO NOS DIFERENTES NVEIS LINGSTICOS...................................................................113 6 CONCLUSO...........................................................................................................................................115 7 REFERNCIAS........................................................................................................................................118 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .............................................................................................................127 ANEXO 1 - QUESTIONRIO SOCIOLINGSTICO ...........................................................................130 ANEXO 2 - TRANSCRIES DAS ENTREVISTAS ..............................................................................136
viii
ix
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - A CLASSIFICAO DO ATRITO DE VAN ELS.................................................................14
TABELA 2 - VARIVEIS DEMOGRFICAS.............................................................................................48
TABELA 3 - VARIVEIS CONCERNENTES IMIGRAO.................................................................50
TABELA 4 - CONHECIMENTOS LINGSTICOS....................................................................................50
TABELA 5 - AUTO-AVALIAO DE COMPETNCIA EM L1 E L2......................................................51
TABELA 6 - CONTATOS COM A L1..........................................................................................................53
TABELA 7 - ELEIO DA LNGUA...........................................................................................................54
TABELA 8 - ATITUDES................................................................................................................................55
TABELA 9 - NMERO DE DESVIOS / INTERFERNCIAS POR PARTICIPANTE...............................56
TABELA 10 - AVALIAO DA COMPETNCIA EM L1.........................................................................57
TABELA 11 - NMERO DE PRONOMES SUJEITO USADOS POR 1000 PALAVRAS.........................84
TABELA 12 - NMERO DE DESVIOS DA NORMA ANALISADOS (POR CATEGORIA).................103
x
xi
LISTA DE SIGLAS
AE - Dicionrio Aurlio Eletrnico Sculo XXI.
COREC - Corpus Oral de Referencia del Espaol Contemporneo da Universidade
Autnoma de Madri, editado por MARCOS MARIN.
CREA - Corpus de Referencia del Espaol Actual da Real Academia Espanhola.
DP - Diccionario panhispnico de dudas da Real Academia Espanhola.
HO - Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa.
MM - Diccionario de Uso del Espaol de MARA MOLINER.
RAE - Diccionario de la lengua espaola da Real Academia Espanhola (on-line).
SE - Diccionario del Espaol Actual de SECO.
LISTA DE ABREVIATURAS
Ex. - Exemplo
Fr. - Francs
Ing. - Ingls
L1 - Lngua materna
L2 - Segunda lngua; faz referncia lngua adquirida aps a L1 num lugar onde utilizada
como lngua de comunicao cotidiana (o portugus no Brasil).
LE - Lngua estrangeira; se refere ao idioma aprendido num lugar onde no usado como
lngua de comunicao habitual (o espanhol no Brasil).
Tab. - Tabela
xii
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RESUMO
O objetivo desta dissertao explorar o processo de atrito (ou eroso lingstica) que se produz na L1 de imigrantes hispanofalantes espanhis adultos residentes no Brasil e com proficincia em portugus, que , portanto, a L2, a lngua de contato. A ao desta lngua desempenha um papel primordial, j que a sua influncia sobre a L1 na forma de interferncias uma das duas causas principais do atrito, sendo a outra a falta de contato com a L1 e a conseguinte privao de insumo. A pesquisa, de tipo qualitativo, analisa a fala de 8 participantes. Os dados foram elicitados mediante entrevistas semi-estruturadas gravadas e posteriormente transcritas. Tambm foi utilizado um questionrio sociolingstico que proporcionou informaes pessoais variadas sobre os participantes, as quais ajudam a explicar alguns dos resultados. A anlise do corpus de fala permitiu marcar, classificar e descrever os traos lingsticos que singularizam o espanhol/L1 dos participantes e que podem ser interpretados como sinais de atrito. O objetivo principal descobrir e mostrar os efeitos experimentados pela L1, o espanhol, quando exposto ao contato prolongado com a L2, o portugus do Brasil. Palavras chave: atrito da L1; influncia da L2; interferncia; contato de lnguas.
xiv
xv
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to explore the process of attrition or language loss which is produced in the L1 of Spanish speaking adult Spaniards who are immigrants and residing in Brazil and who are proficient in Portuguese, which is, therefore, the L2, the contact language. The action of the latter language plays a decisive role, since its influence over the L1 in the form of interference is one of the main causes of attrition, the other being a lack of contact with the L1 and the resulting deprivation of input. The research carried out, of a qualitative nature, analyses the speech of 8 participants. The data was elicited by means of semi structured interviews which were later transcribed. A sociolinguistic questionnaire was also used to obtain personal information of a varied nature about the participants, which helped explain some of the results. The analysis of the speech corpus allowed us to identify, classify and describe the linguistic features that characterize the participants L1/Spanish and which can be interpreted as signs of attrition. The main goal is to find out and show the effects suffered by the L1, Spanish, when exposed to prolonged contact with the L2, Brazilian Portuguese. Keywords: L1 attrition; L2 influence; interference; language contact.
xvi
1 INTRODUO
1.1 APRESENTAO DO TEMA
A linguagem humana dinmica por natureza e, ao longo da vida, no s ganhamos
competncia lingstica nos processos de aquisio, mas tambm a perdemos no caso do
atrito1 ou eroso lingstica, tema desta pesquisa. De fato, como CAVALCANTI (2005 e
2006, p. 248-9) afirma, no h na realidade perdas ou assimilaes, mas um constante
processo de mudanas lingsticas.
O atrito lingstico, de acordo com essa viso, faz parte das mudanas normais que se
produzem na competncia ao longo do tempo. Surgiu como rea de estudo nos anos 80 e pode
ser considerado um sub-campo do Bilingismo ou dos estudos de Contato de Lnguas,
englobado, portanto, na Lingstica Aplicada.
O estudo desse processo de perda ou deteriorao de uma lngua no qual consiste o
atrito inclui toda uma variedade de casos. A presente pesquisa se interessa por um dos mais
desatendidos at o momento: o atrito da L1 de imigrantes hispanofalantes espanhis adultos
residentes no Brasil e proficientes em portugus.
1.2 PROBLEMA
Em um mundo globalizado como o atual, onde o enorme desenvolvimento das
telecomunicaes e dos meios de transporte favorecem os deslocamentos de populao, as
lnguas, como qualquer outra manifestao humana, raramente permanecem isoladas. Elas
entram em contato e esto, como as prprias sociedades, em constante movimento.
1 Neste trabalho decidiu-se utilizar o termo atrito como traduo do ingls attrition, que o mais empregado na literatura anglfona, amplamente majoritria nesse tema (KPKE, 1999, p. 20). Nos poucos trabalhos em portugus, os termos empregados so eroso (RASO, 2003) e atrito (ARAJO, 2004). Este ltimo foi o primeiro artigo em portugus ao qual teve acesso a autora, fato que com certeza deve ter infludo na hora da escolha. As tradues de attrition mais freqentes nos dicionrios so atrito, desgaste e frico. Todos esses termos compartilham com eroso a idia de desgaste por frico. De fato, no dicionrio on-line da Princeton University a primeira acepo de attrition que aparece erosion by friction, definio que reflete a origem geolgica da designao, questo qual voltaremos no cap. 2. Contudo, o termo atrito (que segundo o Dicionrio HOUAISS, vem do latim attrtus,us ='esfregadura, frico, roadura'), permite exprimir de forma metafrica a frico constante entre as duas lnguas em contato, L1 e L2. Outros termos utilizados em ingls so language loss (SHARWOOD SMITH, 1989) e regression (RAMREZ, 2003), em francs restructuration (GROSJEAN; PY, 1991) e em espanhol desgaste (SILVA-CORVALN, 2003) e atricin (BRAVO, 1994).
1
Na opinio de COOK (2003, p. 3) os falantes nativos monolnges no so mais os
seres humanos tpicos, so cada dia mais escassos2. Como afirma SILVA-CORVALN
(1995, p.3), mais da metade dos quase 400 milhes de pessoas que falam espanhol se
encontram em situaes de bilingismo, de contato com outras lnguas. Inclusive
historicamente, o espanhol evoluiu em contextos multilnges3, algo que, na realidade, mais
a norma do que a exceo, como se tende a pensar. De fato, segundo ROMAINE4, citada por
CAVALCANTI (1999, p. 388), o nmero de lnguas existentes trinta vezes maior do que o
nmero de pases, o que implica que o bilingismo est presente na maioria dos pases do
mundo.
No caso do Brasil, como lembra a prpria CAVALCANTI (1999, p. 387) existe um
mito de monolingismo no pas (...). Esse mito eficaz para apagar as minorias, isto , as
naes indgenas, as comunidades imigrantes.
Um destes grupos imigrantes o foco desta pesquisa: os imigrantes espanhis
estabelecidos em Braslia, Goinia e Luzinia desde longa data, entre os quais habitual que
surjam comentrios como j no falo mais espanhol, o meu espanhol agora muito ruim
ou j no falo nem espanhol nem portugus, mas portunhol. O fenmeno que est por trs
destas afirmaes no outro que o atrito, um processo de eroso lingstica que sentido na
maioria das ocasies como uma verdadeira perda.
1.3 OBJETIVO
O objetivo da pesquisa explorar esse atrito ou eroso lingstica (as mudanas, em
outras palavras) que se produz na lngua materna (L1) de imigrantes hispanofalantes
espanhis adultos residentes no Brasil e proficientes em portugus, que , por conseguinte, a
L2, a lngua do contexto. Pretende-se, com isso, compreender melhor um fenmeno, o de
lnguas em contato, que, como foi dito, aumenta ao mesmo ritmo da globalizao. O Brasil,
geograficamente rodeado por pases hispanofalantes, no escapa a essa tendncia e se integra
cada dia mais ao seu entorno. O Mercosul s um exemplo desse processo, que ultrapassa o
mbito puramente econmico ou poltico.
2 Segundo HAMERS e BLANC (2000, p. 1) o nmero de indivduos bilnges j supera o dos monolnges. 3 Isso no s na Amrica, mas tambm na Espanha, onde, alm do espanhol, existem outras trs lnguas oficiais em diferentes regies bilnges do pas. 4 ROMAINE, S. Bilingualism. 2 ed. Oxford: Blackwell. 1995, p. 8.
2
Os participantes na pesquisa so portanto bilnges, cujo comportamento lingstico
nos permite observar a relao que existe entre duas lnguas no mesmo indivduo. Segundo
COOK (2000, p. 1) transferncia uma das palavras que tm sido usadas para apreender essa
relao5; mas transferncia h nas duas direes, como j apontava WEINREICH em 19536
no seu Languages in Contact. Porm, at o momento, grande parte das pesquisas tem
focalizado os efeitos da L1 sobre a L2, isto , as transferncias (ou interferncias7) numa
direo s, L1 > L2. Esta pesquisa, pelo contrrio, se prope estudar os efeitos da L2 sobre a
L1 dos participantes, as interferncias L2 > L1.
1.4 JUSTIFICATIVA
Alm das motivaes sociais mais abrangentes e j mencionadas, existem outras
justificativas mais especficas para a pesquisa. Entre elas esto as de ordem terica e pessoal.
No que se refere s ltimas, o prprio comportamento lingstico da pesquisadora
permite advertir atrito na sua L1, o espanhol.
Quanto aos motivos tericos ou acadmicos, existe nas universidades brasileiras um
nmero considervel de pesquisas sobre a aquisio de espanhol por brasileiros e os efeitos
que em forma de interferncias pode ter a L1/portugus sobre a LE/espanhol. Porm, o
fenmeno inverso, isto , o atrito da L1 de hispanofalantes residentes no Brasil e os efeitos da
L2/portugus sobre a L1/espanhol, segundo o conhecimento da autora no tem sido estudado.
De outro lado, um certo nmero de hispanofalantes residentes em Braslia8 se dedica
ao ensino do espanhol. provvel que todos eles sejam afetados de algum modo pelo atrito na
sua L1. Dessa forma, algumas salas de aula de espanhol no Brasil podem ser o cenrio onde
se encontram os dois fenmenos mencionados: as interferncias da L1/portugus sobre a LE
de aprendizes de espanhol, e o atrito da L1/espanhol, dos professores hispanofalantes como
conseqncia do contato com a L2/portugus. Portanto, a investigao sobre o atrito na L1
5 Esta citao, como as demais originrias de outras lnguas, traduo nossa. O original : Transfer is one of the words that has been used to capture this relationship. 6 Nas referncias aparece a 6 reimpresso de 1968. As suas palavras so: Those instances of deviation from the norms of either language which occur in the speech of bilinguals (...) as a result of language contact, will be referred to as INTERFERENCE phenomena (grifo nosso, WEINREICH, 1968, p. 1). 7 De fato, o termo usado por WEINREICH interferncia (cf. nota precedente). Alguns autores como BROWN (2000, p. 94) distinguem entre transferncia e interferncia (ver cap. 2), mas, geralmente na literatura, os termos fazem referncia ao mesmo fenmeno: a introduo de elementos ou propriedades de uma lngua em outra (RASO, 2003, p. 1). 8 Trs dos oito participantes nesta pesquisa so professores de espanhol (cf. 4.1.1).
3
pode ajudar a compreender melhor os complicados processos de ensino/aprendizagem que se
do numa sala de aula de lngua estrangeira (LE). De fato, como MORENO FERNNDEZ
(1994, p. 129) afirma qualquer situao de ensino de segundas lnguas ou de lnguas
estrangeiras , na realidade, uma situao de lnguas em contato9; do mesmo modo que o
atrito, o qual em palavras de SCHMID (2004, p. 244) no mais do que uma situao de
lnguas em contato10.
Alm disso, um dos pesquisadores pioneiros nesta rea, SHARWOOD SMITH (1989,
p. 188), considera que o atrito deve ser visto como parte integrante dos estudos de aquisio
de segundas lnguas, j que ambos os processos esto relacionados e implicam mudanas na
competncia. Da mesma opinio DE BOT11, citado por HANSEN (2001, p. 61), para quem
atrito e aquisio apresentam um paralelismo quanto aos tpicos estudados e ao papel que
desempenham fatores como a influncia interlingstica, a idade, as diferenas individuais, o
cenrio lingstico, as atitudes e a motivao.
No mesmo sentido, de acordo com COOK (2003, p. 1), as mudanas que experimenta
a L1 daqueles que conhecem outras lnguas tm conseqncias para a pesquisa em
ensino/aprendizagem de L2/LE.
1.5 PERGUNTAS DE PESQUISA
Esta pesquisa pretende observar o atrito na L1 de imigrantes hispanofalantes espanhis
adultos residentes no Brasil e com proficincia em portugus. O objetivo indito e
heurstico, dado que, at onde alcana o conhecimento da autora, no existem no Brasil outros
trabalhos sobre o atrito da L1 de hispanofalantes em contato com o portugus brasileiro12.
Os imigrantes espanhis no Brasil no formam uma verdadeira comunidade, um grupo
estruturado. Conseqentemente, o foco desta pesquisa se situa no comportamento lingstico
de indivduos.
Segundo KPKE (1999, p. 71), se partimos do princpio de que a organizao
psicolingstica fundamentalmente a mesma em todos os bilnges e os monolnges,
9 ...cualquier situacin de enseanza de segundas lenguas o de lenguas extranjeras es, en realidad, una situacin de lenguas en contacto. 10 is nothing more than a situation of language contact. 11 DE BOT, K. Foreword. In HANSEN, L. (Ed.), Second language attrition in Japanese contexts. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. viiviii. 12 A autora teve acesso a dois estudos sobre o atrito na L1 de imigrantes italianos no Brasil: o artigo de
ARAJO (2004), entitulado Um caso de interlngua e atrito lingstico de imigrantes e aprendizes de italiano e Litaliano parlato a S. Paolo da madrelingua colti. Primi sondaggi e ipotesi di lavoro de RASO (2003).
4
podemos prever que o atrito segue os mesmos princpios universais. Assim, a inteno desta
pesquisa descobrir alguns dos fenmenos que se podem considerar caractersticos do
espanhol em contato com o portugus do Brasil. Para isso, foi realizada uma anlise dos
desvios da norma destacados do corpus de fala das entrevistas. Essa anlise tem carter
exploratrio e futuras pesquisas podero aprofundar o estudo do corpus.
As perguntas que se pretende responder so:
como se manifesta o atrito lingstico nos nveis lxico, morfolgico e sinttico
da L1 de imigrantes hispanofalantes espanhis com proficincia em
portugus/L2?
At que ponto importante no atrito da L1 desses imigrantes bilnges a
influncia interlingstica (crosslinguistic influence)?
So os desvios induzidos externamente ou interlinguais (isto , as
interferncias), mais freqentes do que os desvios induzidos internamente ou
intralingais (hipergeneralizao, simplificao) na fala desses imigrantes
espanhis no Brasil?
5
2 REVISO DE LITERATURA
A primeira seo introduz alguns conceitos bsicos sobre o bilingismo que servem
como contextualizao do fenmeno estudado: o atrito da L1 em um meio de L2. Na segunda
parte, apresenta-se o fenmeno do atrito e algumas das definies bsicas. A terceira seo se
ocupa das causas do atrito e oferece uma descrio dos dois modelos tericos que interessam
presente pesquisa. Na quarta parte, discute-se o alcance do fenmeno atravs da dicotomia
competncia versus desempenho. A quinta seo analisa os fatores extralingsticos, os quais
tambm desempenham um papel importante no atrito. Por ltimo e a modo de adiantamento, a
sexta seo traz o debate sobre a distino entre alternncia13 de cdigo e atrito.
2.1 O BILINGISMO
O tema desta pesquisa o atrito da L1 em um contexto de bilingismo, de contato
entre a L1/espanhol dos imigrantes e a lngua do meio, do pas de acolhida, a L2/portugus.
Trata-se, portanto, de observar o comportamento lingstico de indivduos bilnges ou
trilnges, que alcanaram de forma no simultnea um domnio varivel de uma L2, o
portugus. Nesse contexto, torna-se necessrio apresentar alguns conceitos bsicos em torno
ao bilingismo.
O primeiro problema que surge ao se estudar o bilingismo se refere grande
variedade de definies existentes. COOK (2003, p. 5), por exemplo, evita utilizar a palavra
bilnge14 no s por causa da pletora de definies confusas, mas tambm porque
habitualmente invoca-se o ideal platnico do bilnge perfeito, mais do que a realidade da
pessoa comum que usa uma segunda lngua para as necessidades do seu dia a dia15.
13Embora parte da literatura em portugus utilize mudana de cdigo como traduo do ingls code-switching, neste trabalho ser utilizada a outra opo existente, alternncia de cdigo (vide seo 2.7), termo que parece refletir melhor o sentido de switch em ingls (ir e vir) e que aparece na prpria definio de code-switching: ... the alternate use of two languages in the same utterance (grifo nosso), (HAMERS; BLANC, 2000, p. 369). O termo mudana mais amplo e pode fazer referncia a processos de modificao ou evoluo dentro de uma mesma lngua. 14 Ele utiliza no seu lugar usurio de L2 (L2 user) ou pessoa que conhece duas lnguas (people who know two languages). 15 not only because of the plethora of confusing definitions, but also because they usually invoke a Platonic ideal of the perfect bilingual rather than the reality of the average person who uses a second language for the needs of his or her everyday life.
6
Assim, num extremo dessa multiplicidade, encontramos a definio estruturalista
focalizada na competncia do bilnge perfeito de BLOOMFIELD16, citado por
EDWARDS (2004, p. 8), HAMERS e BLANC (2000, p. 6) e KPKE (1999, p. 25). Para ele,
bilingismo o domnio de todos os aspectos de duas lnguas como um nativo. Mas esse tipo
de bilnge, com uma competncia perfeita e totalmente equilibrada entre as duas lnguas,
muito raro.
No outro extremo est MACNAMARA17, citado por HAMERS e BLANC (2000, p.
6), segundo o qual bilnge aquele que possui uma competncia mnima em pelo menos
uma das quatro habilidades lingsticas (compreenso auditiva e escrita, e expresso oral e
escrita). Do mesmo modo que a primeira definio restringe enormemente o alcance do
bilingismo, a segunda o amplia at incluir quase qualquer pessoa. Para EDWARDS (2004, p.
7-9), este tipo de definies no aplicvel, j que o bilingismo aparece como uma questo
de grau difcil de determinar.
Na opinio de HAMERS e BLANC (2000, p. 23) as mencionadas definies
conceituam o bilingismo em termos de competncia, mas ignoram outras dimenses no-
lingsticas importantes. Por outro lado, no definem claramente o que entendem por
competncia mnima ou por competncia nativa, a qual tambm varivel entre os falantes
monolnges. Para tentar superar essas deficincias, os autores citados propem definir o
bilingismo como o estado psicolgico de um individuo que tem acesso a mais de um cdigo
lingstico como meio de comunicao social18. O acesso varia de acordo com dimenses
como a competncia relativa, a organizao cognitiva e a idade de aquisio, entre outras. As
variaes que dizem respeito a essas dimenses permitem distinguir entre diferentes tipos de
bilnges.
Outros autores como GROSJEAN19, citado por HAMERS e BLANC (2000, p. 6) e
KPKE (1999, p. 25), chamam a ateno sobre o fato de que esse tipo de definies provm
de um enfoque monolnge do bilingismo. Assim, ele afirma que o bilnge no a soma de
16 BLOOMFIELD, L. Language, London: Allen & Unwin, 1935. 17 MACNAMARA, J. The bilinguals linguistic performance. Journal of Social Issues, 23, 1967, p. 58-77. 18 as the psychological state of an individual who has access to more than one linguistic code as a means of social communication (HAMERS; BLANC, 2000, p. 25). Cabe perguntar at que ponto o termo estado psicolgico supe de fato uma superao. 19 GROSJEAN, F. Neurolinguists, beware! The bilingual is not two monolinguals in one person. Brain and Language, 36, 1989, p. 3-15.
7
dois monolnges; os bilnges desenvolvem um comportamento lingstico prprio20 que
lhes permite usar cada uma das lnguas para cumprir diferentes funes comunicativas. De
fato, um bilnge raramente utiliza as duas lnguas em todos os mbitos.
KPKE (1999, p. 26) no seu estudo sobre o atrito da L1 de bilnges tardios prope
como definio mais apropriada a seguinte: so bilnges aquelas pessoas com competncia
funcional nas duas lnguas, a qual lhes permite satisfazer as suas necessidades lingsticas.
Essa definio, como a de HAMERS e BLANC (2000, p. 25), implica uma grande
variabilidade de acordo com uma srie de dimenses que, como foi mencionado antes,
possibilitam a classificao dos bilnges. A seguir, se apresentam as trs distines mais
pertinentes dentro deste estudo.
2.1.1 Bilnges Equilibrados e Bilnges Dominantes
Esta primeira distino se estabelece com base na competncia relativa do individuo.
Os bilnges equilibrados possuem uma competncia equivalente nas duas lnguas, enquanto
os dominantes so mais competentes numa delas. Como lembra EDWARDS (2004, p. 9), os
bilnges equilibrados constituem a exceo mais do que a regra.
Segundo HAMERS e BLANC (2000, p. 27), o mais comum que a lngua dominante
seja a L1. Porm, de acordo com KPKE (1999, p. 30-2), os resultados de vrias pesquisas
indicam que a dominncia lingstica evolui ao longo da vida em funo das necessidades
comunicativas. Esse aspecto de grande interesse para o estudo do atrito da L1, j que mostra
que a L2 pode se tornar dominante, mesmo em indivduos que a aprendem depois da
adolescncia. Essa mudana na dominncia pode ser um estgio precursor do atrito, embora
isso no signifique que o atrito aparea sempre que se produz uma mudana de lngua
dominante (KPKE, id.). Todavia, na presente pesquisa, como veremos na seo 4.1.3, a
maioria dos participantes auto-avalia sua competncia em L2 igual de L1 (cf. tab. 5, p. 51),
de modo que, ao menos na sua percepo, a L2 no se tornou dominante; poderiam, portanto,
ser considerados bilnges equilibrados.
2.1.2 Bilnges Precoces e Bilnges Tardios
A idade de aquisio das lnguas determina a diferena entre bilnges precoces e
tardios. Os primeiros adquirem as duas lnguas durante a infncia, de forma simultnea
20 Numa linha semelhante de pensamento esto as idias de COOK (cf. sees 2.3 e 2.3.2).
8
(bilnges simultneos) ou consecutiva (bilnges consecutivos); no caso dos segundos, a
aprendizagem da L2 se produz em uma idade mais avanada, cujo limite situado
freqentemente em torno puberdade, entre os 10 e os 12 anos. Esse limite est relacionado
com a hiptese de LENNEBERG21, citado por KPKE (1999, p. 32), que postula a existncia
de um perodo crtico para a aquisio da lngua (L1 ou L2), o qual terminaria com a
maturidade neuropsicolgica, por volta dos 13 anos. Toda aquisio posterior seria
qualitativamente diferente, j que com a lateralizao que se completa durante a puberdade se
extingue a grande plasticidade cerebral da criana. Segundo KPKE (id.), os estudos mais
recentes indicam que o final do perodo crtico se situa antes da puberdade. A mesma autora
(ibid., p. 43) recolhe os resultados de pesquisas neurolingsticas recentes, cujos dados,
obtidos por meio de imaginologia cerebral22, confirmam claramente a distino entre
bilnges precoces e tardios baseada na hiptese de um perodo sensvel para as aquisies
lingsticas.
Dentre os participantes nesta pesquisa, quatro podem ser considerados bilnges
precoces simultneos, j que adquiriram durante a infncia o espanhol e a lngua verncula da
regio de onde so originrios (cf. sees 3.2, 4.1.3 e tab. 4, p. 50). No obstante, todos os
participantes, exceto P1 e P8, adquiriram o portugus posteriormente, na idade adulta (cf. tab.
3 e 4, p. 50). P1 e P8 chegaram ao Brasil com 11 anos, idade que se situa no limite do
perodo critico (cf. sees 3.2 e 5.2).
2.1.3 Bilnges Compostos e Bilnges Coordenados
A idade e o contexto de aquisio podem levar a diferenas na organizao cognitiva.
No bilnge coordenado, os significantes de cada lngua esto associados a um significado
distinto que reflete o sentido exato da palavra na lngua correspondente. No caso do
composto, os significantes de cada lngua esto associados a um nico significado que
constitui uma amlgama dos significados da palavra nas duas lnguas.
De acordo com HAMERS e BLANC (2000, p. 27), mesmo no existindo uma
correlao exata entre forma de representao cognitiva, idade e contexto de aquisio, um 21 LENNEBERG, E.H. Biological Foundations of Language. New York: Wiley, 1967. 22 Os novos mtodos de imaginologia cerebral (os mais usados so a tomografia axial computadorizada, a ressonncia nuclear magntica e a ultra-sonografia) desenvolvidos nos ltimos anos, permitem visualizar de forma fivel as partes do crebro envolvidas numa tarefa concreta. Por exemplo, uma das pesquisas mencionadas (Kim et al. Distinct cortical areas associated with native and second languages. Nature, 388, p. 171-174, 1997, citado por KPKE, 1999, p. 41), mostra que nos bilnges tardios o uso da L2 ativa na rea de Broca zonas diferentes, mas adjacentes das ativadas pelo uso da L1. Essa diferena no constatada nos bilnges precoces.
9
indivduo que tenha aprendido as duas lnguas na infncia e no mesmo contexto mais
passvel de possuir uma nica representao cognitiva para duas palavras que so
equivalentes de traduo (ing. translation equivalents). Pelo contrrio, algum que tenha
aprendido uma L2 num contexto diferente daquele da L1, ter provavelmente uma
organizao coordenada com duas representaes separadas para dois equivalentes de
traduo.
PARADIS23, citado por KPKE (1999, p. 29), sugere que os bilnges coordenados
mostrariam um menor grau de interferncia do que os compostos, mas HAMERS e BLANC
(2000, p. 165) advertem que no existem evidncias. Para eles (ibid. p. 27), a distino entre
compostos e coordenados no binria, mas um continuum que vai de um plo composto at
um plo coordenado. Em outras palavras, um bilnge pode ser mais composto para certos
conceitos e mais coordenado para outros.
2.1.4 O Continuum
Existe um problema com essas distines: como lembra EDWARDS (2004, p. 9-11)
difcil no s medir o bilingismo, mas tambm classificar claramente os indivduos dentro de
uma ou vrias das suas categorias ou graus.
Para resolver esse problema, a tendncia atual considerar o bilingismo um
continuum no qual no existem tipos ou classes que formem compartimentos estanques.
Segundo PY e GROSJEAN (2002, p. 20), a definio de bilingismo tem-se amenizado nos
ltimos anos, atribuindo-se um papel central aos aspetos funcionais, de modo que o aprendiz
de L2 hoje considerado um bilnge em construo (fr. en devenir). Essa concepo se
aproxima da proposta de SILVA-CORVALN (1995, p. 4) do Continuum Bilnge. Este se
desenvolve em situaes de bilingismo social e compreende diferentes graus de domnio das
duas lnguas, que vo do espanhol padro ou sem restries, a um uso emblemtico do
mesmo (e vice-versa na outra lngua). No nvel individual, esses letos (ing. lects) no se
correspondem com dicotomias fixas do tipo composto-coordenado ou equilibrado-
dominante. Ao invs disso, constituem uma ampla variedade de nveis dinmicos de
proficincia24.
23 PARADIS, M. On the representation of two languages in the brain. Language Sciences, 7 (1), 1985, p. 1-39. 24 from unrestricted or standard Spanish to an emblematic use of Spanish (and vice versa in the other language). At the individual level, these lects do not correspond to fixed dichotomies of the type
10
Prximo tambm dessa viso se encontra o Continuum de Integrao de COOK (2003,
p. 6-9), de acordo com o qual a relao que existe entre duas ou mais lnguas na mente se
situa num ponto do continuum que vai da integrao total (as duas lnguas formam um nico
sistema) at a separao total (semelhante segundo o prprio COOK idia de bilingismo
coordenado). Entre esses dois infreqentes extremos, existem diferentes graus e tipos de
interconexo entre as lnguas.
Essa concepo do bilingismo parece se adaptar aos participantes nesta pesquisa, os
quais mostram uma heterogeneidade difcil de se classificar dentro dessas dicotomias fixas
(cf. seo 4.1).
Por ltimo, cabe fazer meno a uma questo estreitamente relacionada com o tema do
atrito: como mantm o bilnge as suas duas lnguas separadas? Segundo HAMERS e
BLANC (2000, p. 196), estamos apenas comeando a entender o processamento lingstico
nos bilnges. Existem controvrsias no resolvidas sobre o nvel do processamento no qual
se produz a separao das lnguas, ou como funciona a memria bilnge (um depsito para
cada lngua ou um comum s duas). Com respeito a este ltimo ponto, as pesquisas de finais
dos anos noventa parecem apoiar os modelos hierrquicos que assumem a existncia de um
processador comum no nvel semntico e processadores separados nos nveis superficiais.
2.2 O ATRITO: DEFINIO E DESCRIO
Do mesmo modo que com o bilingismo (cf. 2.1), o primeiro problema que aparece
quando tentamos delimitar o fenmeno do atrito que no existe acordo sobre uma definio
provada, consistente. Como afirmam KPKE e SCHMID (2004, p.1-2), aps mais de 20 anos
de pesquisa, as perguntas superam as respostas. De fato, segundo SCHMID (2004, p. 239) as
concluses de alguns estudos no permitem afirmar com certeza que uma lngua materna (L1)
plenamente adquirida possa chegar a experimentar um atrito significativo: at que ponto a
reduo de proficincia que implica o atrito afeta as habilidades comunicativas do sujeito na
interao com falantes nativos da sua L1, tanto da perspectiva destes como desde a dele
prprio?25 realmente possvel esquecer a L1?
compound-coordinate, or balanced-unbalanced. Rather, they represent a wide range of dynamic levels of proficiency.
25 Nesse sentido COOK (2003, p. 9) afirma que a perda de algum aspecto da L1 s uma desvantagem se impede o usurio de L2 de realizar uma atividade com sucesso [... losing some aspect of the first language is only a disadvantage if it prevents the L2 user carrying out some activity successfully].
11
Do ponto de vista da psicologia cognitiva alguns autores26 consideram que o
conhecimento lingstico, como qualquer outro, no pode perder-se, desaparecer. Ele se torna
inacessvel com a falta de uso, mas recupervel com os estmulos adequados (HANSEN,
2001, p. 67)27. Assim, segundo SHARWOOD SMITH e VAN BUREN (1991, p. 18-23) o
atrito poderia ser interpretado como problemas de recuperao, de acesso on-line forma ou
estrutura apropriada, isto , ao conhecimento que pode permanecer inalterado28. Esta questo
est relacionada com o debate sobre competncia e desempenho que ser mencionado mais
adiante (vide seo 2.4).
Para HAMERS e BLANC (2005, p. 76-7), o atrito um processo de regresso
lingstica que forma um continuum29, que vai desde leves problemas de acesso at a perda
total de uma lngua. Na sua opinio, este ltimo caso s possvel no caso de crianas
imigrantes de pouca idade ou em situaes ps-mrbidas. Mais comum seria o que eles
chamam de atrito ambiental, no qual o uso restringido da L1, produto da aquisio e utilizao
da lngua do ambiente, a L2, leva perda parcial de certos aspectos da L1. Essas perdas
podem ser supridas com elementos da L2. Porm, como os autores mencionados afirmam, o
atrito no deve ser confundido com a mistura de cdigo30. Esta desencadeada pelo contexto
social, o atrito, pelo contrrio, ocorre at em contextos monolnges.
Por outro lado, em muitos casos a palavra perda no chega a refletir o processo de
mudana que o atrito produz na L1. Esse processo se manifesta na forma de desvios da
norma31, decalques lxicos e semnticos da L2, mudanas morfossintticas, manifestaes
nas quais SELIGER (1989, p. 175; 1991, p. 238), entre outros, considera que existe uma parte
26 KPKE (1999, p. 77) cita BADDELEY, A. La mmoire humaine. Thorie et pratique. Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1992. 27 Hansen um dos nomes mais importantes no campo do atrito de L2. 28 SHARWOOD SMITH e VAN BUREN (1991a). 29 Cf. seo 2.1.4, Continuum Bilnge de SILVA-CORVALN (1995, p. 4) e Continuum de Integrao de COOK (2003, p. 6-9).
30 Segundo HAMERS e BLANC (2005, p. 369) mistura de cdigo (ing. code-mixing) uma estratgia de comunicao usada por bilnges na qual o falante duma lngua Lx transfere elementos ou regras duma lngua diferente (Ly) para Lx (a lngua base); porm, diferena do emprstimo, esses elementos no so integrados ao sistema lingstico de Lx. [A communication strategy used by bilinguals in which the speaker of a language Lx transfers elements or rules of a different language (Ly) to Lx (the base language); unlike borrowing, however, these elements are not integrated into the linguistic system of Lx].
31 Com este termo se alude ao que outros autores denominam erros (ing. error, SCHMID, 2004 e KPKE, 1999, entre outros), mudanas (ing. changes, SILVA-CORVALN, 1994) ou variantes de contato (fr. variantes de contact, PY e GROSJEAN, 2002). similar ao empregado por SELIGER (1989) e SHARWOOD SMITH (1989) ing. deviant forms. Desvio da norma a traduo do ingls deviation from the norm, utilizado por WEINREICH (1968, p. 1) na sua conhecida e j mencionada (cap. 1, nota 6) definio de interferncia.
12
de criatividade importante que permite o desenvolvimento de novas regras. De fato, como
afirma SHARWOOD SMITH (1983, p. 226) o falante nativo ou ex-falante nativo pode
acabar com um conjunto de recursos enriquecido, combinando o melhor de ambos os
sistemas32.
Na opinio de SHARWOOD SMITH (1989, p. 186) aquisio e perda lingstica (isto
, atrito da L1) aparecem como processos relacionados e opostos. Em outras palavras,
estaramos contrapondo fenmenos de expanso versus diminuio, de complicao versus
simplificao. Essa viso desenvolvida pela Hiptese da Regresso de Jacobson. Como
explicam KPKE e SCHMID (2004, p. 15-6), essa teoria se baseia no pressuposto de que a
perda lingstica na afasia o reverso da aquisio lingstica nas crianas: o que foi
aprendido em ltimo lugar seria o primeiro a se perder33. Mas a perda lingstica patolgica
localizada e repentina, no progressiva como a aquisio da L1 na infncia. A regresso,
portanto, no verossmil como explicao da afasia. Porm, no caso do atrito no patolgico
a regresso mais provvel, j que, este sim, um processo gradual e no localizado.
O termo atrito provm da rea da Geologia e refere-se eroso que sofre a crosta
terrestre pela ao de agentes externos como a gua e o vento34. Trata-se, portanto, de um
desgaste causado pela frico. De acordo com SCHMID (2006), isso nos indicaria que no
comeo o atrito lingstico era visto como a ao desgastante de uma lngua sobre outra,
situando-se assim no campo terico do contato de lnguas.
De acordo com KPKE e SCHMID (2004, p. 5) o sentido estrito de atrito a
reduo no patolgica35 da proficincia numa lngua previamente adquirida por um
indivduo, isto , perda intrageneracional36, sendo este o campo de estudo da presente
pesquisa. Na opinio das mesmas autoras, o atrito deve ser distinguido de fenmenos sociais
como mudana, substituio37, perda e morte lingstica (ing. language change, shift, loss and
32 The native speaker or ex-native speaker may end up with an enriched set of resources by combining the best of both systems.
33 Em ingls Last in, first out, SCHMID (2006). 34Assim aparece definido no dicionrio de ingls on-line da Princeton University: Meaning 1: erosion by friction. Meaning 2: the wearing down of rock particles by friction due to water or wind or ice. 35 Diferente, portanto, da perda lingstica patolgica ou afasia, originada por leses cerebrais.
36 ... the non-pathological decrease in proficiency in a language that had previously been acquired by an individual, i.e. intragenerational loss. 37 Substituio lingstica e mudana lingstica so termos diferentes e no devem ser confundidos, embora estejam relacionados de forma estreita. WEINREICH (1968, p. 236-243) descreveu a substituio lingstica (ing. language shift) como a troca ou deslocamento de uma lngua de uso habitual por uma outra.
13
death) que se produzem em comunidades bilnges ao longo de vrias geraes. Todavia, essa
distino terminolgica no aplicada por muitos pesquisadores.
Tambm deve ser diferenciado da aquisio incompleta, fenmeno que se observa
com freqncia em crianas que adquirem duas (ou mais) lnguas de forma simultnea. Como
aponta MONTRUL (2002, p. 39), muitos desses bilnges tm uma exposio insuficiente a
uma das lnguas na infncia, tanto em termos de quantidade como de qualidade, ou carecem
da continuidade de input necessria para alcanar a proficincia plena.
A classificao do atrito mais difundida a atribuda a VAN ELS38 (citado por
KPKE; SCHMID, 2004, p. 8), mas criada na realidade por De Bot e Weltens em 1985. A
diviso feita em relao lngua afetada (lngua materna/L1 ou segunda lngua/L2) e ao
ambiente lingstico (de L1 ou de L2). Resultam quatro tipos de atrito (ver tabela 1), dos
quais a reverso e a perda de dialeto tm sido muito pouco estudadas. A imensa maioria das
pesquisas focaliza os outros dois tipos39: o atrito da L1 em um ambiente de L2, objeto de
estudo deste trabalho, e o atrito de L2 em um ambiente de L1. Embora tenham comeado de
forma paralela, a partir dos anos 90 as reas de estudo de atrito da L1 e de atrito da L2
separaram-se e comearam a utilizar mtodos de elicitao de dados diferentes (KPKE;
SCHMID, 2004, p. 8-10).
TABELA 1 - A CLASSIFICAO DO ATRITO DE VAN ELS
Ambiente lingstico
Lngua afetada L1 L2
L1
Perda de dialeto
Atrito da L1
L2
Atrito da L2
Reverso lingstica
(nos idosos) FONTE: KPKE; SCHMID (2004, p. 9)
KPKE (1999, p. 70) acrescenta a essa classificao a distino entre o estudo do
atrito em comunidades ou enclaves, normalmente atravs de vrias geraes, ou em
indivduos de uma mesma gerao. A primeira situao tem mais interesse para a
38 VAN ELS, T. An overview of European research on language attrition. In: WELTENS, B.; DE BOT, K.; VAN ELS, T. (Ed.). Language Attrition in Progress. Dordrecht: Foris, 1986. p. 3-18. 39 Esta circunstncia leva KPKE e SCHMID (2004, p. 9) a sugerirem que esta classificao possa ter perdido a sua utilidade.
14
sociolingstica, enquanto a psicolingstica privilegia o estudo do atrito a nvel individual. A
presente pesquisa se enquadra dentro da segunda situao.
De modo geral, o atrito da L1 em um ambiente de L2 um processo no qual a falta de
contato com a L1 leva a uma reduo na proficincia desta lngua (SCHMID; DE BOT, 2004,
p. 210). SELIGER e VAGO (1991, p. 4) alvitram uma outra definio: a L1 enfraquecida
pelo aumento de uso e funo da L2. Ambas as definies podem ser consideradas
complementares e apontam as duas causas para o atrito que identificam SHARWOOD
SMITH e VAN BUREN (1991, p. 22): a privao de input da L1 e a influncia
interlingstica (ing. crosslinguistic influence-CLI) de outra lngua que est sendo adquirida e
usada.
Existe uma controvrsia sobre qual seria o fator mais importante como desencadeador
do atrito, a falta de uso ou a influncia da L2. Porm, a nica circunstncia que permitiria
verificar que a falta de uso causa suficiente seria a situao do sobrevivente a um naufrgio
numa ilha deserta proposta por SHARWOOD SMITH e VAN BUREN (1991. p. 22): um
falante nativo sem oportunidade de ler ou ouvir a sua L1, de se comunicar com outros falantes
nativos e de interagir em uma outra lngua. Mas essa situao, que para os autores
mencionados a mais pura, seno impossvel, quando menos bastante improvvel e, por
razes bvias, difcil de se estudar. A situao normal que estamos em condies de observar
mais complexa e envolve no s falta de exposio L1, mas tambm o segundo fator
citado, a exposio a uma L2. Em outras palavras, trata-se de uma situao de bilingismo.
Do exposto no pargrafo anterior, se deduz que ambos os fatores, um interno, a falta
de uso, e outro externo, a influncia da L2, devem influir em maior ou menor medida no
desencadeamento do processo de atrito.
2.3 CAUSAS DO ATRITO: SIMPLIFICAO VS. INFLUNCIA DA L2
Uma das questes mais debatidas no estudo no s do atrito, mas da mudana
lingstica em geral, tem sido as causas que motivam esse processo: fatores internos como a
mencionada falta de uso, ou externos, como a influncia da L2.
SELIGER e VAGO (1991, p. 7-10) e SILVA-CORVALN (1994, p. 92, 133), entre
outros, ao analisarem as mudanas que o atrito produz na L1, distinguem entre motivos
internos e externos, os quais podem ser identificados respectivamente com os processos de
15
atrito intra-sistema (ing. intra-system) e inter-sistema (ing. inter-system) descritos por
PRESTON40 (citado por SHARWOOD SMITH, 1989, p. 192). Essa distino permite
classificar os desvios da norma ou erros que aparecem na L1 dos falantes atingidos pelo atrito
em dois tipos: intralinguais, devidos a causas internas, e interlinguais, devidos a causas
externas, isto , a influncia da L2. Entre os primeiros esto fenmenos como a simplificao,
a hipergeneralizao, a regularizao e a substituio de formas sintticas por analticas ou
perifrsticas; entre os segundos se contam a transferncia ou interferncia e a convergncia.
Porm, no existe uniformidade terminolgica entre os diferentes autores. Assim, esses
fenmenos que poderamos qualificar de universais so denominados e, s vezes, definidos de
diferentes formas. , portanto, necessrio explicitar com que sentido se empregam esses
termos no presente trabalho. Utilizam-se para tanto basicamente as definies de SILVA-
CORVALN (1994, p.2-5), caso contrrio, so mencionados os autores.
Fenmenos intralinguais:
Simplificao: o uso de uma forma expandido (ou generalizado) a um maior nmero
de contextos, de modo que se produz uma reduo de formas e a eliminao de
alternativas, isto , um sistema simplificado com menos formas.
Hipergeneralizao41: o processo de estender o uso de uma regra a itens que esto
excludos dela na norma lingstica. A diferena da simplificao que esta produz
contrao, j que implica o uso menos freqente ou eliminao de uma outra forma. A
hipergeneralizao, no entanto, aparece em contextos nos quais no existe outra forma
competidora, assim no ocorre reduo (por exemplo, a pronominalizao do verbo
em (134)42 (VIII-320) *se estn cambiando *de plumas [estn cambiando las plumas]
= esto mudando as penas; ou a ditongao de (128) (VII-23) *nuevecientos
[novecientos] = novecentos).
40 PRESTON, D. How to lose a language. Interlanguage Studies Bulletin. 6, 2, 1982, p. 64-87. 41 Alguns autores como RASO (2003) usam o termo hipercorreo para fazer referncia a desvios da
norma no devidos influncia da L2, nos quais o falante tenta diferenciar as duas lnguas quando estas coincidem (exemplos do corpus, (VIII-27) le preguntamos *de la capota [le preguntamos por, sobre la capota] = perguntamos-lhe pela, sobre a capota; ou (VII-23) *nuevecientos [novecientos] = novecentos. O falante ditongou o numeral seguindo o modelo de nueve = nove). De fato, a hipercorreo uma hipergeneralizao na qual o falante, numa busca excessiva de correo, troca uma forma correta da lngua que ele interpreta como incorreta, por uma outra forma que ele considera correta, mas que nesse contexto no .
42 Os nmeros entre parntese situados antes dos exemplos do corpus so os utilizados na seo 4.2 para numerar os desvios da norma analisados neste trabalho.
16
Regularizao: termo relacionado com o anterior que se aplica quando as formas
hipergeneralizadas so as de maior distribuio. Como define Preston, o resultado a
criao de regularidades onde havia irregularidades.
Fenmenos interlinguais:
Transferncia ou interferncia: ambos os termos so freqentemente utilizados para
fazer referncia ao mesmo fenmeno, a incorporao de traos de uma lngua a uma
outra com a conseqente reestruturao de padres nos subsistemas envolvidos. Mas
outros autores no campo de ensino de L2/LE, como BROWN (2000, p. 94),
estabelecem uma diferena entre transferncia como transmisso de conhecimento
prvio que corretamente aplicado e facilita a aprendizagem, e interferncia, quando
esse conhecimento incorretamente associado e perturba a aprendizagem.
Transferncia e interferncia seriam, portanto, a face positiva e negativa
respectivamente do mesmo fenmeno, considerado uma estratgia de aprendizagem
universal. De fato, alguns autores como HAMERS e BLANC (2000, p. 41) utilizam o
termo transferncia negativa para fazer aluso interferncia. Dado que poucos
autores parecem aplicar essa distino entre ambos os termos, neste trabalho sero
utilizados como sinnimos.
Contudo, existem pesquisadores que, embora estejam se referindo ao mesmo
fenmeno evitam a utilizao da palavra interferncia. Assim, PY e GROSJEAN
(2002, p. 20-1) os quais consideram inadequado encarar os fenmenos de mistura
lingstica de forma negativa, como fracassos. Conseqentemente, introduzem uma
nova denominao variante de contato. Do mesmo modo, COOK (2000, p. 4-5)
prefere falar de efeitos da L2 sobre a L1; na sua opinio, no se trata de
transferncia de itens de uma lngua a outra, mas de criao por fuso de algo
diferente, uma competncia com alteraes que no devem ser interpretadas como
deficincias.
Convergncia: consecuo de uma maior semelhana estrutural em um aspecto dado
da gramtica das duas lnguas. Em geral, o resultado do processo de transferncia,
mas, tambm pode ser o resultado de tendncias preexistentes motivadas internamente
e aceleradas pelo contato.
17
Aps esses esclarecimentos e voltando-se aos desvios intralinguais e interlinguais,
necessrio ressaltar a importncia dessa categorizao na presente pesquisa, j que um dos
objetivos da mesma analisar o papel da influncia da L2 no atrito da L1 dos imigrantes
espanhis no Brasil.
No obstante, como lembram SCHMID e DE BOT (2004, p. 212-3), em muitas
ocasies difcil distinguir entre mudanas devidas influncia da outra lngua e aquelas
produzidas por modificaes dentro do prprio sistema. Neste sentido, SILVA-CORVALN
(1994, p. 2) aponta que a inclinao terica do lingista vai determinar o peso que confere s
causas internas ou externas. Desse modo, surgem dois modelos tericos: a teoria da
simplificao, que privilegia os fatores internos, e a teoria da transferncia ou influncia
interlingstica, que focaliza um dos fatores externos43, a influncia da L2.
2.3.1 A Teoria da Simplificao
A respeito do primeiro modelo, KPKE e SCHMID (2004, p. 16) afirmam que a
simplificao no pode, na realidade, explicar nada44. Isso devido, em parte, falta de
preciso do termo simplificao. Em alguns casos, ele faz referncia preferncia por
estruturas analticas no lugar das sintticas; mas tambm pode indicar a eliminao de
estruturas que exigem mais tempo para processar ou de aquelas que requerem mais
transformaes. De fato, como lamenta SILVA-CORVALN (1994, p. 2-3), no existe
acordo entre os pesquisadores sobre o significado deste termo; para ela a simplificao supe
a maior freqncia de uso de uma forma X em um contexto Y (isto , generalizao) em
prejuzo de uma forma Z, que habitualmente est em concorrncia com X e semanticamente
relacionada com ela (...) o resultado final deste processo a reduo ou perda de formas e a
eliminao de alternativas, isto , um sistema simplificado45.
Todavia, como adverte SCHMITT (2004, p. 313), a simplificao no pode explicar
aqueles casos nos quais o atrito supe um incremento do nmero e da complexidade ao invs
de uma reduo. Entre os exemplos que aporta a mesma autora, no caso do russo/L1 falado
por crianas emigradas aos Estados Unidos, esto o aumento do nmero e da complexidade
43 Os fatores externos abrangem o que SILVA-CORVALN (1994, p. 1) denomina foras sociais externas (external social forces), nas quais se inclui a L2. 44 ... it cannot, in reality, explain anything. No mesmo sentido SCHMITT (2004, p. 299).
45 ... the higher frequency of use of a form X in context Y (i.e. generalization) at the expense of a form Z, usually in competition with and semantically closely related to X (...) its final outcome is reduction or loss of forms and elimination of alternatives, i.e. a simplified system.
18
das conjunes, e o aumento dos sujeitos pronominais. Esses casos, segundo a autora
poderiam ser atribudos convergncia com a outra lngua.
Uma variante do modelo de simplificao supe que o atrito segue os mesmos
princpios da mudana lingstica. De acordo com SCHMID46, citada por KPKE e
SCHMID (2004, p. 17) estes seriam: reduo de registros devido reduo de funes;
reduo do lxico afetando mais especificamente os itens de baixa freqncia, e reduo da
complexidade morfolgica que tem como resultado uma estrutura lingstica mais
analtica47.
Esse modelo freqentemente usado em estudos de enfoque sociolingstico que se
ocupam do atrito intergeneracional em grupos ou comunidades. Dentre essas pesquisas, duas
so especialmente relevantes para o nosso tema: a de PY e GROSJEAN (2002) sobre o
espanhol falado em comunidades de imigrantes espanhis na Sua francfona, e a de SILVA-
CORVALN (1994) sobre a variedade de espanhol das comunidades mexicanas em Los
Angeles. Em ambos os casos, o atrito visto como uma forma de mudana lingstica
acelerada num indivduo ou numa comunidade (SCHMID; DE BOT 2004, p. 213).
J no caso de PY e GROSJEAN (2002, p. 23) a influncia da L2 aparece como a
principal fonte das mudanas, mas coincidem na viso do atrito48 como promotor da mudana
lingstica. Assim, consideram que as que denominam variantes de contato49
(interferncias) podem revelar tendncias profundas do sistema e ilustram um estado
transitrio numa competncia mutvel50. O processo de reestruturao da competncia que
implica aprender uma L2 (isto , o surgimento do bilingismo) est determinado pelo
princpio da simplicidade: quanto mais simples uma regra da L1, melhor resiste presso
da outra lngua51. A simplicidade definida por trs critrios: a extenso do domnio de
46 SCHMID, M. S. First Language Attrition, Use, and Maintenance. The case of German Jews in Anglophone countries. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2002, p. 13.
47 ... reduction in registers due to reduction in functions; reduction of the lexicon affecting more specifically low-frequency items; and reduction in morphological complexity resulting in a more analytical language structure.
48 O termo utilizado por eles restructuration (reestruturao), j que desejam evitar o uso de palavras como atrito ou interferncia, as quais na sua opinio escondem uma viso negativa dos fenmenos de mistura lingstica (PY; GROSJEAN, 2002, p. 20-1).
49 De acordo com PY e GROSJEAN (2002, p. 20-1) as variantes de contato so formas produzidas por um contato prolongado e regular com outra lngua e diferem das variantes padro, estruturas cuja legitimidade reconhecida pelas gramticas coetneas da lngua em questo. Com esse termo aludem s interferncias.
50 ... um tat transitoire dans une comptence mouvante. 51 Plus une rgle est simple, mieux elle resiste la pression de lautre langue.
19
aplicao de uma regra, a salincia dos indcios que permitem reconhecer as formas
compreendidas neste domnio e a reduo do nmero de operaes requeridas pela regra52.
SELIGER (1989, p.173) prope um princpio similar como causa ltima do atrito, o
Princpio de Reduo da Redundncia (ing. Redundancy Reduction), segundo o qual Se
ambas as lnguas contm uma regra que serve a mesma funo semntica, a verso da regra
que formalmente menos complexa e tem uma distribuio maior (...) substituir a regra mais
complexa e com menor distribuio53. De fato, essa transferncia das regras mais simples da
L2 reduz a carga da memria; o falante bilnge pode manter as duas lnguas combinando
elementos da L1 e da L2, conseguindo desse modo uma gramtica mais econmica (ing.
parsimonious) (SELIGER, 1989, p.182-3).
Essas propostas se aproximam das idias de SILVA-CORVALN (1995, p. 9)
segundo a qual, para tornar mais leve a carga cognitiva que supe recordar e usar duas
lnguas, os bilnges desenvolvem estratgias, sendo uma delas a transferncia da L2 (as
outras so simplificao, hipergeneralizao, desenvolvimento de construes perifrsticas e
alternncia de cdigo). No mesmo sentido, SHARWOOD SMITH (1983, p. 226) aponta que a
transferncia (da L1 na aquisio, da L2 no atrito) supe a facilitao do processamento
lingstico quando se trata de duas lnguas. Assim prope como hiptese que sero adotadas
(na L1 ou na L2) da outra lngua aquelas estruturas que levem a maior simplicidade de
processamento.
Segundo SILVA-CORVALN (1994, p. 92), muitas das mudanas tm uma causa
interna dado que j estavam em andamento na variedade monolnge antes de se produzir o
contato. No obstante, tambm admite a existncia de modificaes produzidas pela
influncia da L2. Assim, de acordo com a sua concepo, existem cinco fenmenos
caractersticos do bilingismo: simplificao, hipergeneralizao, anlise (desenvolvimento
de construes perifrsticas), transferncia e convergncia. Dentre eles, os trs primeiros
tambm caracterizam a mudana lingstica em comunidades monolnges e com freqncia
so, portanto, o resultado de fatores intralingsticos. S os dois ltimos seriam conseqncia
da influncia interlingstica. Por exemplo, considera que as mudanas observveis no
sistema verbal espanhol dos imigrantes mexicanos em Los Angeles possam ser explicadas em
52 ...ltendue du domaine dapplication dune rgle, la saillance des indices permettant de reconnatre les formes comprises dans ce domaine, et la rduction du nombre doprations requises par la rgle.
53 If both languages contain a rule which serves the same semantic function, that version of the rule which is formally less complex and has a wider linguistic distribution (...) will replace the more complex more narrowly distributed rule.
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termos de simplificao, generalizao e perda de categorias. Porm, a preferncia pelo uso
do indicativo no lugar do subjuntivo e a neutralizao da oposio perfeito-imperfeito no
poderia ser interpretada como uma transferncia (quando menos indireta) do ingls, o qual
no possui esses contrastes?
Em sntese, SILVA-CORVALN (1994, p. 218) considera que no processo de atrito
intervm quatro tipos de fatores: os j mencionados intralingsticos e interlingsticos, mais
dois, os cognitivos e os sociais. Dentre os primeiros, destaca a necessidade de simplificar e
generalizar regras, talvez para fazer a produo oral mais rpida e automtica54 (ibid., p. 92),
e a maior complexidade cognitiva de certos tipos de discurso55 (SILVA-CORVALN,
1990, p. 7); dentre os segundos sobressaem trs fatores extralingsticos (cf. seo 2.6) que
favorecem o atrito na L1: a ausncia de presses normativas na L1, a restrio dos usos
comunicativos da L1 e as atitudes positivas dos falantes sobre a L2 (SILVA-CORVALN,
1994, p. 7). Contudo, na sua opinio, o fator determinante do grau de difuso das inovaes e
do resultado final do contato lingstico a histria sociolingstica dos falantes (ibid. p. 6).
2.3.2 A teoria da Transferncia ou Influncia Interlingstica
Se, como acabamos de ver, o modelo anterior privilegiava as causas internas do atrito,
o presente modelo volta seu olhar para os motivos externos, em concreto, a influncia da L2.
Dado que esta pesquisa pretende observar o papel desempenhado por esse fator no atrito da
L1, a teoria da transferncia est no foco do nosso interesse.
O atrito no conseqncia unicamente da falta de uso da L1. Segundo SCHMID e
DE BOT (2004, p. 212) nas situaes de contato lingstico as modificaes que se produzem
no sistema de uma das lnguas so devidas, ao menos em parte, invaso de uma lngua na
outra: a L1 sofre o ataque da L2 quando esta muito usada e, por conseguinte, comea a
perder elementos. Essas perdas levam apario de lacunas (ing. gaps) que sero preenchidas
por itens da L2. Esta imagem blica utilizada por SCHMID (2006) e SHARWOOD SMITH
(1989, p. 185) para descrever o processo do atrito reflete a importncia que uma grande parte
dos pesquisadores da rea concede influncia da L2 como causa principal.
De fato, no idioleto dos indivduos que experimentam atrito aparecem desvios da
norma que mudam segundo a lngua de contato: na fala dos imigrantes hispanofalantes nos
54 ... the need to simplify and generalize rules, perhaps to make oral production quicker and more automatic.
55 ...higher cognitive complexity of certain types of discourse.
21
Estados Unidos, na Sua ou no Brasil observam-se desvios diferentes, que mostram a
influncia do ingls, do francs e do portugus, respectivamente. evidente, portanto, que a
influncia da L2 desempenha um papel decisivo56, embora no seja o nico fator
interveniente. A seguir recolhem-se alguns exemplos destas interferncias na L1 de
imigrantes hispanofalantes:
Ingls como L2: atendimos la junta, no lugar de asistimos a la junta, por influncia
do ingls to attend (em portugus assistir); la llamo patrs, por le devuelvo la
llamada, do ingls to call back (literalmente poderia ser traduzido por ligar atrs,
mas na realidade significa ligar de volta)57.
Francs como L2: decidi de llamar al mdico, no lugar de decidi llamar al mdico,
por influncia do francs il a dcid dappeler le mdecin (em portugus ele decidiu
chamar o mdico); no entiendo el ruido del tren, por no oigo el ruido del tren, do
francs je nentend pas le bruit du train (em portugus eu no ouo o barulho do
trem)58.
Portugus como L2: ( parecido con quin, por parecido a quin, por influncia do
portugus parecido com quem;(47) chillante, em espanhol chilln, formada
provavelmente a partir do portugus gritante59.
Assim, para explicar este tipo de fenmenos, nos primrdios dos estudos sobre atrito,
SHARWOOD SMITH (1989, p. 185) prope a Hiptese da Influncia Interlingstica (ing.
Crosslinguistic Influence) segundo a qual, dentre os processos que determinam o atrito, a
transferncia um dos mais importantes. O termo de origem psicolingstico e se refere
influncia que um dos sistemas lingsticos que o aprendiz possui pode exercer sobre o outro,
tanto quando existe uma lngua j desenvolvida (ing. mature) como quando h uma
interlngua ainda em desenvolvimento. O termo pretende ser mais amplo do que
transferncia e inclui emprstimos, influncia da L1 na L2 e evitao da transferncia.
56 Com o que concorda SILVA-CORVALN (1995, p. 11-2). 57 Exemplos de TORIBIO (2000, p. 176) 58 Exemplos de PY e GROSJEAN (2002, p. 21). 59 Exemplos do corpus da presente pesquisa.
22
Posteriormente, com um enfoque similar, SELIGER (1991, passim) e SHARWOOD
SMITH e VAN BUREN (1991, passim) comeam a aplicar as noes chomskianas de insumo
(input) e evidncia (evidence)60 para explicar essa influncia da L2.
De acordo com SHARWOOD SMITH e VAN BUREN (1991, p. 23), o falante nativo
precisa de evidncias no s para desenvolver a sua L1, mas tambm para mant-la. Assim, a
L1 muda no por falta de uso, mas por falta de evidncia que permita confirmar que a L1 do
modo que ela 61. No caso do atrito, ante a falta de insumo da L1, a L2 comea a
desempenhar esse papel e se transforma, em palavras de SELIGER (1991, p. 237), em
evidncia positiva indireta, isto , quando se produz um problema para recuperar ou acessar
formas ou estruturas da L1, o bilnge acode gramtica da L2 como fonte de conhecimento
para avaliar a L1. Mas a evidncia positiva indireta pode-se transformar em evidncia positiva
direta, quando um nmero suficiente de falantes comea a utilizar esses desvios da norma,
essas variantes de contato. Desse modo, a nova gramtica que resulta do processo de atrito
reforada e pode supor o comeo de um dialeto imigrante. Assim acontece na situao
estudada por PY e GROSJEAN (2002, o espanhol dos imigrantes espanhis na Sua
francfona).
Na opinio de KPKE (1999, p. 109-110), a questo mencionada no pargrafo
anterior a principal diferena entre as situaes nas quais o atrito se produz em indivduos
que vivem de forma isolada e aquelas nas quais o indivduo se integra em comunidades
lingsticas ou enclaves. Neste caso, a variante modificada da L1 se transforma na norma que
serve de referncia aos falantes dessa comunidade. No primeiro caso, no se dispe de insumo
suficiente da L1 e, portanto, a nica possibilidade recorrer ao insumo da L2.
Conseqentemente, a autora considera que razovel atribuir L2 um papel importante no
processo de atrito.
De acordo com a classificao que utiliza SILVA-CORVALN (1994, p.4-5), existem
transferncias diretas e indiretas. Entre as primeiras distingue dois tipos:
60 A palavra insumo faz referncia s amostras de lngua alvo, orais ou escritas, que o aprendiz encontra durante seu processo de aprendizagem e so uma fonte para elaborar hipteses sobre a estrutura dessa lngua. A noo de evidncia remete s informaes que permitem ao aprendiz julgar a validade das suas hipteses. Elas podem ter a forma de evidncias negativas diretas (correes feitas pelos interlocutores), evidncias negativas indiretas (a ausncia ou baixa freqncia de estruturas agramaticais) e evidncias positivas (as estruturas corretas produzidas pelos outros falantes). Para mais detalhes ver CHOMSKY, N. Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981, citado por SHARWOOD SMITH (1989, passim).
61 The L1 changes not because of lack of use but because of a lack of confirming evidence that the L1 is the way it is....
23
1- uma forma ou estrutura da L1 substituda por uma outra da L2, ou uma forma ou
estrutura desta lngua incorporada L1; no corpus analisado nesta pesquisa (cf.
seo 4.2.2), este tipo est representado pelos decalques lxicos, os decalques
estruturais, a regncia verbal e a alternncia de cdigo; por exemplo, *bobage substitui
a tontera e alquer usado como medida de superfcie;
2- o significado de uma forma da L2 incorporado a uma forma da L1; nesta pesquisa,
formam este grupo os decalques e as aglutinaes semnticas, e alguns aspectos da
morfossintaxe como as preposies, advrbios e conjunes; por exemplo, o verbo
colar incorpora o valor de aderir que em espanhol pegar, e este, por sua vez,
incorpora o sentido do portugus, segurar, prender.
As transferncias indiretas tambm podem ser de dois tipos:
1- a maior freqncia de uso de uma forma; neste corpus, corresponde aos decalques de
uso e algumas questes sintticas como a expresso dos pronomes sujeito ou a
susbstituio do possesivo por de + pronome; por exemplo, o uso de mas no lugar de
pero (= mas), sendo esta ltima a mais usada no espanhol monolnge ou sem contato;
2- a perda de uma categoria ou uma forma na L1 que no tem equivalente na L2; no
corpus observa-se nas omisses de clticos e da preposio a no objeto direto pessoal e
na locuo verbal de futuro; por exemplo, tuvo usted [lo tuvo a usted] (= teve o
senhor), onde esto ausentes o cltico lo e a preposio a, ambas formas no utilizadas
no portugus.
Para autores como COOK (2000, 2003) ou SCHOENMAKERS (1989), a influncia
da L2 no se restringe aos aspectos formais ou lingsticos, mas tambm leva a uma mudana
semntico-conceitual. Segundo COOK (2000, p. 5), os usurios de L2 (cf. seo 2.1, nota
14) adquirem uma outra viso do mundo que no simplesmente acumulativa, isto L1 + L2,
j que supe a criao de algo diferente (cf. seo 2.3). Na sua opinio, os efeitos da L2 sobre
a L1 no so nem positivos nem negativos: simplesmente produzem diferenas na
competncia lingstica que no devem ser interpretadas como deficincias. Mas no s isso,
a mente do usurio de L2 tambm diferente da dos monolnges.
SCHOENMAKERS (1989, p. 103-6), da sua parte, prope a Hiptese Conceitual que
explica o atrito no nvel semntico como uma mudana de conceitualizao no sistema
lingstico, devido ao afastamento da comunidade da L1 e ao contato intensivo com a
comunidade da L2. Segundo a autora, cada comunidade lingstica tem a sua prpria maneira
24
de conceitualizar a realidade; todavia, o significado essencial o mesmo para todas as
lnguas, mas as fronteiras entre os termos bsicos de diferentes lnguas podem mudar62.
Assim, o atrito se produz quando existem diferenas de conceitualizao entre L1 e L2; nesse
caso, o conceito da L1 gradualmente adaptado ao conceito em L2.
No entanto, segundo PAVLENKO (2004, p. 54), o atrito da L1 e a influncia da L2 na
L1 so dois fenmenos diferentes. Geralmente, nos estudos de atrito assume-se que as
interferncias so devidas ao atrito; so consideradas, em palavras de HAMERS e BLANC
(2000, p. 41), a expresso da falta de competncia lingstica63. Mas nem sempre assim:
como analisa PAVLENKO (id.), a influncia da L2 pode ocorrer na fala no erodida de
bilnges normais em um contexto bilnge64. Para contar como atrito, essa influncia deve
produzir uma perda ou reestruturao permanente de formas ou regras da L1, constatvel no
s em contextos bilnges, mas tambm em contextos monolnges de L165.
De fato, a influncia da L2 produz uma mistura lingstica (ing. linguistic mixing), que
de acordo com HAMERS e BLANC (2000, p. 41) e SELIGER e VAGO (1991, p. 6) no
necessariamente uma questo de interferncia; pode ser uma estratgia especfica do falante
bilnge. Do ponto de vista das normas monolnges, a mistura e a alternncia de cdigo (ing.
code-mixing e code-switching) podem parecer anomalias, desvios. Mas, segundo
GROSJEAN66, citado por HAMERS e BLANC (2000, p. 41), os bilnges normalmente
misturam as lnguas quando falam com outros bilnges com os quais compartem as suas
lnguas. A simples alternncia de cdigo no deve ser considerada uma prova de atrito, j que
o uso de um ou vrios elementos da L2 no significa que o falante tenha perdido os
correspondentes da L1; simplesmente, pode considerar que mais apropriado em um contexto
comunicativo determinado.
Em relao influncia da L2, aparece a questo da semelhana entre as duas lnguas.
Para alguns autores (SELIGER, 1989, p. 182; SHARWOOD SMITH, 1989, p. 194-5 e 1983,
p. 225; WEINREICH, 1968, p. 57) as formas estruturalmente semelhantes so mais propensas
interferncia. O primeiro autor, situa a semelhana estrutural entre os fatores que podem
62 ... the core meaning is the same for every language, but the boundaries between the basic terms of different languages may differ. 63 ... an expression of the lack of linguistic competence.... 64 KPKE; SCHMID (2004, p. 31). 65 Concordam HAMERS; BLANC (2000, p. 77). 66 GROSJEAN, F. The bilingual as a competent but specific speaker-hearer. The Journal of Multilingual and Multicultural Development, 6, p. 467-477, 1985.
25
conspirar para facilitar67 o atrito. Igualmente, pesquisas como as de ALTENBERG (1991, p.
191), KPKE (1999), SILVA-CORVALN (1994, p. 217) e SCHOENMAKERS (1989)
parecem indicar que a semelhana uma condio necessria para que se produza
transferncia. Assim sendo, a influncia da L2 seria mais forte quando as duas lnguas so
similares68.
Em sntese, de acordo com levantamento realizado por KPKE (1999, p. 110-111), a
maioria das pesquisas sobre atrito da L1 tanto em crianas como em adultos, constatam que as
mudanas observadas so, ao menos em parte, imputveis interferncia da L2. Dentre esses
estudos69, apenas trs testam explicitamente a influncia da L2, os de ALTENBERG (1991),
PELC (1998) e SCHOENMAKERS (1989), mas este ltimo evidencia um nvel de atrito
mnimo.
Por ltimo, no se deve esquecer que, apesar das diferenas existentes entre os dois
modelos da simplificao e da influncia interlingstica, ambos se aproximam ao aceitar a
transferncia como um dos fenmenos bsicos no atrito, o que funciona como estratgia
facilitadora da carga cognitiva que supe recordar e usar duas lnguas no processamento
lingstico bilnge (cf. seo 2.2.1).
2.4 PERDA DE COMPETNCIA VERSUS PROBLEMAS DE DESEMPENHO
Aps a discusso sobre as causas internas e externas do atrito, ponto focal desta
pesquisa, apresentaremos brevemente outra das questes bsicas e mais debatidas pelos
autores; se refere esta pergunta sobre o verdadeiro alcance do fenmeno: as mudanas que o
atrito produz implicam uma modificao da competncia lingstica subjacente ou se situam
no nvel do desempenho? Trata-se de saber, como foi antecipado na seo 2.1, se o atrito
consiste em uma verdadeira perda de conhecimento lingstico ou apenas em uma reduo da
acessibilidade.
De acordo com KPKE (1999, p. 105), a distino entre competncia lingstica
subjacente e a sua manifestao atravs do desempenho observvel do falante uma das
67 ... might conspire to facilitate .... 68 Apesar de portugus e espanhol serem lnguas afins, a presente pesquisa no se ocupa dessa questo,
j que no possvel provar o impacto da semelhana estudando apenas duas lnguas.
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