estudo no livro de gênesis antônio neves de mesquita
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PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
UMA PALAVRA
MAIS UMA PALAVRA
PREFÁCIO DA QUARTA EDIÇÃO
CAP. I - A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO VELHO TESTAMENTO
CAP. II - LITERATURA DO VELHO TESTAMENTO
CAP. III - INTRODUÇÃO AO LIVRO DE GÊNESIS
CAP. IV - RELAÇÃO E CRÍTICA SOBRE AS ANTIGAS TRADIÇÕES E O LIVRO DE GÊNESIS
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
Teorias Que Tentam Explicar a Origem do Universo
Teoria da Nebulosa.
Teoria da Grande Explosão.
Nota sobre a Ordem em Que Se Encontram os Planetas no Espaço
CAP.VI OS SEIS DIAS DA CRIAÇÃO
Trabalho do Primeiro Dia - 1:2-5
Trabalho do Segundo Dia - Expansão - Céus - 1:6-8
Trabalho do Terceiro Dia - Mares, Terra e Vegetação - 1:9-13
Trabalho do Quarto Dia - Sol e Lua - 1:14-19
Trabalho do Quinto Dia - Animais Aquáticos e Pássaros
CAP. VII ORIGEM DAS ESPÉCIES E A TEORIA DARWINIANA
Origem e Antigüidade do Homem
2.O Homem, a Criação por Excelência - Gênesis 1:26-2:7
CAP. IX O DIA SÉTIMO
Narrativa Suplementar da Criação
CAP. X A PREPARAÇÃO DO JARDIM
A Criação da Mulher
CAP. XI A TENTAÇÃO E A QUEDA
O Tentador
A Tentadora
A Punição
A Promessa
Novo Nome Dado à Mulher
Primeiro Sacrifício
A Expulsão do Éden
Os Efeitos Mentais do Pecado
CAP. XII CAIM E ABEL
Os Dois Sacrifícios
O Primeiro Homicídio
A Mulher de Caim
Lameque e Suas Duas Mulheres (4: 19-24)
O Nascimento de Sete (4:25-26)
CAP. XIII TÁBUA GENEALÓGICA
CAP. XIV O DILÚVIO
Causa do Dilúvio: Casamentos Mistos (6:1-8)
A Construção da Arca Salvadora
Notas sobre as Diversas Tradições do Dilúvio
Noé Entra na Arca (Gênesis 7:1-8:12)
A Saída da Arca (Gênesis 8:13-22)
Em Busca da Arca
CAP. XV O NOVO MUNDO
Um Culto Novo
Uma Promessa Nova
Outra Aliança (capítulo 9)
Monoteísmo e Politeísmo
Um Novo Pecado Depois do Dilúvio (Gên. 9:20-27)
Uma Vida Longa e útil
CAP. XVI AS GERAÇÕES DOS FILHOS DE NOÉ
Resenha da Localização das Diversas Raças
CAP. XVII A TORRE DE BABILÔNIA OU BABEL E A CONFUSÃO DAS LÍNGUAS
Tentativa de Centralização
Intervenção Divina
CAP. XVIII OS DESCENDENTES DE SEM - A LINHAGEM DA PROMESSA
As Gerações de Terá - Gên. 11:27-32
Abraão, uma Personalidade histórica
CAP. XIX UR DOS CALDEUS
Abraão e a Saída de Ur dos Caldeus - capítulo 12:1-3
Um Novo Princípio
Partida de Harã para Siquém - 12:4-8
A Fome e a Descida ao Egito - 12:9-20
A Volta de Abraão do Egito - 13:1-4
Separação entre Abraão e Ló - 13:5-13
Jeová Aparece Novamente a Abraão - 13:14-18
(Comparar Gên. 12:1-3; 15:1-21; 17:1-14; 22:1-19.)
A Batalha dos Nove Reis - Ló É Levado Cativo - 14:1-12
O Cativeiro de Ló e a Participação de Abraão na Guerra
Abraão, Melquisedeque e o Novo Rei de Sodoma - Gên. 14:17-24
Quem Era Este Melquisedeque?
CAP. XX A PROMESSA DE DEUS RENOVADA
O Desânimo de Abraão - cap. 15: 1-6
A Conversão de Abraão
O Concerto - cap. 15:7-21
Uma Apreciação Mais Precisa
Expedientes Humanos para Cumprir Apressadamente a Promessa de Deus - Gên. 16
Sara, Impaciente, Toma Suas Próprias Medidas - vv. 1-6
A Fuga de Agar e o Nascimento de Ismael - 16:7-16)
Renovação do Concerto a Abraão, e Sua Ampliação - cap. 17
A Promessa Repetida - vv. 1-8
O Selo do Concerto - 17:9-14
Deus Promete a Abraão Que Sara, Sua Mulher, Lhe Dará o Herdeiro das Promessas -
17:15-22
Abraão Cumpre o Que Deus Lhe Tinha Ordenado - 17:22-27
Abraão Hospedando os Anjos e o Senhor dos Anjos - 18:1-8
A Promessa Repetida e Ampliada do Nascimento de um Filho - vv. 9-15
CAP. XXI DESTRUIÇÃO DAS CIDADES CORRUPTAS
Dois Anjos à Porta de Sodoma e o Destino da Cidade - cap. 19
Ló Recebe os Dois Anjos - 19:1-11
A Destruição Anunciada, o Aviso de Salvamento 19:12-23
A Destruição das Cidades de Sodoma e Gomorra, Adamá e Zeboim,Cidades da
Planície
Abraão Contempla o Triste Drama da Destruição - 19:27-29
Ló e Suas Duas Filhas
Abraão Emigra para a Cidade de Gerar, e Nega de Novo Sua Mulher - cap. 20
CAP. XXII NASCIMENTO E VIDA DE- ISAQUE
Pacto Feito entre Abimeleque e Abraão - 21:22-34
A última e Maior Prova de Fé de Abraão - cap. 22 O Oferecimento de Isaque - 22:1-
14
Deus Renova as Promessas a Abraão - vv. 15-19
Abraão Recebe Notícias de Sua Família Distante - vv. 20-24
Morte e Enterro de Sara - cap. 23:1-20
Providências para o Casamento de Isaque - cap. 24:1-9
Eliézer Parte para a Mesopotâmia, em Busca da Noiva - vv. 10-27
Rebeca Anuncia a Vinda de Eliézer - vv. 28-33
O Servo de Abraão Anuncia o Propósito de Sua Vinda - vv. 34-53
Concluído o Negócio. Eliézer Quer Voltar ao Seu Senhor - 24:54-61
Encontro de Isaque com Rebeca - 24:62-67
Abraão Toma Outra Mulher - Quetura, a Mulher de Abraão - 25:1-4
O Testamento de Abraão - 25:5-6
Morte de Abraão - 25:7-11
Gerações de Ismael - 25:12-18
Gerações de Isaque - 25:19-23
CAP. XXIII NASCIMENTO DE ESAÚ E JACÓ
Esaú Vende a Sua Primogenitura a Jacó
A Fome em Canaã e a Emigração, de Isaque - 26:1-5
Permanência de Isaque em Gerar - 26:6-11
A Prosperidade de Isaque e a Inveja dos Filisteus - 26:12-25
Concerto entre Abimeleque e Isaque em Berseba - 26:26-33
Jacó Tira Fraudulentamente a Bênção de Esaú - 27:1-29
A Decepção de Esaú - 27:30-40
A Ira de Esaú - 27:41-48
CAP. XXIV FUGA E CONVERSÃO DE JACÓ
Jacó Continua Alegremente Sua Viagem até Encontrar os Pastores em Harã - 29:1-14
Jacó Faz Contrato com Labão para Ganhar Raquel - 15-20
Triste Desapontamento de Jacó 21-30
Jacó com Quatro Mulheres em Lugar de uma Só - As Disputas de Família - 30:1-24
Jacó Faz Novo Contrato com Labão - 30:25-43
A Prosperidade de Jacó Causa Separação - 31:1-21
Labão Persegue a Jacó - 31:22-35
Concerto entre Jacó e Labão - 31-43-45
Jacó Prepara-se para Encontrar Esaú - 32:1-12
A Oração de Jacó
O Expediente de Jacó para Ganhar o Irmão - 32:13-31
A Luta com o Anjo - vv. 22-32
O Encontro de Esaú e Jacó 33:1-19
CAP. XXV INCIDENTES NA VIDA DOMÉSTICA DE JACÓ
Imposição de Deus para Salvar Jacó - 35:1-14
A Morte de Raquel - vv. 15-20
Genealogia dos Filhos de Esaú - cap. 36
A História de Jacó Continua - Genealogia de Jacó - 37:1-4
O Sonho de José - 37:5-11
A Viagem Funesta de José - 12-29
A Mensagem a Jacó - 31-36
Separação de Judá - Um Capítulo de Sua História - cap. 38
CAP. XXVI JOSÉ NO EGITO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS COM ELE
A Tentação de José - 39:7-1 8-
José na Prisão - 39:19-23
O Copeiro e o Padeiro de Faraó na Prisão com José - cap. 40
Os Sonhos de Faraó - 41:1-13
José na Presença do Rei - 41:14-46
José É Escolhido para Príncipe sobre a Terra do Egito - vv. 37-57
Os Irmãos de José Descem ao Egito O Dia da Vingança - 42:1-4
José Encontra Seus Irmãos e os Reconhece - vv. 5-20
O Despertar da Consciência dos Irmãos de José - vv. 21-24
José Vende o Trigo aos Irmãos e Eles Partem - vv. 25-38
Forcado pelas Circunstâncias, Jacó Consente na Ida de Benjamím,Garantido pela Vida de
Judá-43:1-14
Outra Triste Surpresa para, os Filhos de Jacó - vv. 15-25
O Jantar de José a Seus Irmãos - vv. 26-34
José Dá-se a Conhecer a Seus Irmãos - 45:1-15
Faraó Sabe da Vinda dos Irmãos de José - vv. 16-28
CAP. XXVII IMIGRAÇÃO E RESIDÊNCIA DE JACÓ E SUA FAMÍLIA NO EGITO
A Linhagem de Jacó Que Foi ao Egito - 46:8-34
José Apresenta Cinco de Seus Irmãos a Faraó - 47:1-6
Jacó é Apresentado a Faraó
O Quinto para Faraó - 47:13-26
Jacó Mora 17 Anos no Egito, Dá Ordens Quanto à Sua Sepultura e 'Faz Declarações
Quanto ao Futuro do Seu Povo - 47:27-31
Os últimos Dias de Jacó - vv. 48-49
Jacó Abençoa José na Pessoa de Seus Dois Filhos - 48:8-16
O Desgosto de José - 48:17-22
As Bênçãos de Jacó sobre Seus Filhos - cap. 49
CAP. XXVIII ANÁLISE DO DESTINO DE CADA FILHO DE JACÓ
Simeão e Levi, Segundo e Terceiro Filhos de Léia
Judá, Quarto Filho de Léia
Zebulom, Sexto Filho de Léia.
Dá, Primeiro Filho de Bila, Serva de Raquel
Issacar, Quinto Filho de Léia
Gade, Primeiro Filho de Zilpa, Serva de Léia
Aser, Segundo Filho de Züpa, Serva de Léia
Naftali, Segundo Filho de Bila, Serva de Raquel
José, Primeiro Filho de Raquel a Amada de Jacó
Benjamim, Segundo Filho de Raquel
A Morte de Jacó - 49:28-33
Os Preparativos para o Enterramento - 50:1-6
O Enterro de Jacó - 50:7-14
Mais um Toque da Consciência:
- Os Irmãos de José Temem Que Tome Vingança do Pecado Contra Ele Cometido -
50:15-21
Os últimos Dias de José - 50:22-26
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
A literatura evangélica do Brasil vem de ser enriquecida, sensivelmente, com este
comentário sobre o primeiro livro da Bíblia.
O autor é eminente professor do Velho Testamento no hebraico e no vernáculo, no
Seminário Teológico Batista de Pernambuco, e para esta tarefa acumula longos anos de
preparo no Brasil e no estrangeiro, uma década de ensino à mocidade chamada ao
ministério de Cristo, o uso de bibliotecas cujos tesouros são assim doados aos estudantes
brasileiros, da Palavra de Deus, a experiência pastoral e de ensino desta matéria a grandes
classes populares em as aulas noturnas do Colégio da Bíblia, e um estilo fácil e bem
compreensível sem perda de sublimidade e reverência.
O leitor e o estudante encontrarão aqui o melhor que a erudição conservadora pode
oferecer para esclarecer os problemas e a interpretação da obra-prima de Moisés. Não se
saltam os pontos difíceis. Assim, o comentário é um auxílio iluminador, mesmo a quem se
sinta, porventura, obrigado a discordar desta ou daquela interpretação do autor. Fazemos
votos para que entre centenas e milhares de estudantes da Bíblia este comentário seja o
Vade Mecum na investigação inicial do Velho Testamento, e que estas primícias da
atividade literária do Dr. Antônio Neves de Mesquita sejam o augúrio de muitas outras
obras na Exegese dos livros do Velho Testamento.
É justo dizer que a obra foi publicada nas oficinas tipográficas desta casa educandária
durante as férias, quando o autor pouca oportunidade teve de colaborar na revisão. Os
senões, portanto, que talvez haja, correm por conta dos publicadores, e em segunda
edição serão removidos pelo autor em circunstâncias mais favoráveis.
WILLIAM CAREY TAYLOR
Recife, 22 de outubro de 1928
PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO
Folgo saber que uma nova edição do Comentário do Dr. A. N. Mesquita sobre o livro
de Gênesis sairá do prelo por estes dias. É uma notícia boa e alvissareira para a causa de
Cristo e para os estudantes das Escrituras. Um abalizado professor do Velho Testamento
em hebraico e no vernáculo me disse, quando foi publicada a primeira edição do mesmo
livro: "É o melhor Comentário sobre o Livro de Gênesis que tenho lido em qualquer
língua." Felizes somos, pois, em que esta geração de estudantes da Bíblia tenha de novo
tão valioso auxílio em entender esta parte da revelação divina. O Dr. Mesquita tem sido o
único, que eu saiba, a ativar-se neste terreno literário, preparando comentários sobre os
livros de Moisés. Jesus Cristo disse: "Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se
deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos." É de suma
importância, pois, que tenhamos interpretação exata, reverente e culta dos livros de
Moisés. O Velho Testamento e o Novo ficarão de pé juntos, ou juntos cairão. Mas, se o
desnorteado subjetivismo de um criticismo destrutivo fizer cair o Pentateuco da estima e
confiança de nossa geração no Brasil, na próxima geração cairá em dúvida a própria pessoa
e obra redentora do Salvador. Em firmar a fé, pois, o autor deste Comentário se faz credor
da gratidão de todos nós que amamos a Deus e a sua Palavra.
W. C. Taylor
Rio de Janeiro, 18 de julho de 1943
UMA PALAVRA
Não foi só o desejo de publicar um livro, e muito menos o de ver meu nome no
frontispício de qualquer obra, que me levou a escrever as páginas que agora vão ser dadas
à publicidade. Conquanto seja nobre o desejo de publicar livros, e agradável o espírito de
contribuir para o cultivo intelectual do povo, este livro é o resultado de outro motivo, mais
forte e premente. Desde os primeiros tempos de minha conversão a Cristo sinto a grande
falta de literatura adequada ao cultivo espiritual dos crentes, e posso ainda recordar o dia
em que pensei que, se algum dia pudesse, escreveria alguma coisa e de bom grado
contribuiria para esse fim. A falta de livros em português sobre a Bíblia não deve ser
atribuída à culpa de nenhuma pessoa. Ela é natural. Novo como é o evangelho no Brasil, e
poucos como são os homens e mulheres capazes de escrever sobre assuntos religiosos,
não podemos nos queixar de ninguém, nem julgar isso desleixo por parte dos que têm tido
a direção do trabalho. Com as mãos cheias, mais do que podem suportar, cuidando de
desenvolver a evangelização e a educação em geral, não tem sobrado tempo aos obreiros
nativos e missionários para se dedicarem ao trabalho de escrever. Não obstante, diga-se,
para justiça sua, já um considerável número de boas obras, tanto didáticas como de
instrução geral, tem aparecido e está aparecendo, e o desejo, por parte de todos, de
contribuir para esta fase do trabalho está despertando inteligências viçosas e exuberantes.
Escusado é dizer que a educação dos crentes é o mais firme apoio de nossas
esperanças no futuro. Evangelizar sempre precedeu o educar, mas este é o conseqüente
lógico daquele. Na grande Comissão dada por Jesus aos seus discípulos está tanto o
elemento evangelístico como o educativo! "Ide, portanto, fazei discípulos de todas as
nações, batizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar
todas as coisas que vos tenho mandado..." (Mat. 28:19,20). Qualquer sistema
evangelístico que se descuida da educação poderá crescer por um pouco de tempo, mas
está fadado à morte num prazo breve. Um dos meus amados professores nos Estados
Unidos costumava dizer que nossa missão é não somente a de evangelizadores do Reino,
mas de construtores desse Reino. Um cristianismo educado é a mais firme garantia de
sucesso e estabilidade do mesmo cristianismo. Certamente não se deve entender que a
educação por si só seja capaz de resolver o problema da Causa. Longe de mim pensar
assim. A piedade, a sinceridade e a consagração seguem, corno predicados de grande
beleza, à educação, mas, deixadas a si sós, facilmente podem degenerar em misticismo e
fanatismo. E é o conjunto que faz o todo e não uma de suas partes. Evangelizemos,
instruamos os evangelizados, e teremos adequadamente encarado o programa do
evangelho. E educação em si mesma é um assunto complexo para ser abordado aqui, e
nem estas palavras visam a tal coisa. O que estou atacando de frente é a educação bíblica
dos membros das igrejas e a familiaridade com as doutrinas do grande Livro. Nem todos
podem ir a seminários ou colégios receber instrução e nem todos são capazes de adquirir
conhecimentos gerais da Bíblia, assistindo aos cultos nas igrejas. Isto é muito bom e
imprescindível, mas cumpre que se ponham bons livros na mão do povo, e que se desperte
nele a sede de leitura, visto que, por muitas razões, crentes há que nada lêem, nem
desejam ler. A democracia em geral repousa na inteligência e no amor à liberdade, e a
democracia praticada pelos batistas, para ser observada, exige educação. O Dr. Grambrell
dizia que entre os batistas não havia mais tolos que nos outros credos, mas havia a
diferença de que os tolos dos outros credos tinham freios (strings on their noses),
enquanto que os batistas viviam à vontade. Essa liberdade, que tem sido por todos os
séculos o ideal batista,. requer educação.
São estes conceitos abreviadamente expostos que me têm feito pensar e desejar
contribuir para a educação dos crentes em geral. Convém mesmo pedir escusas por referir
ou particularizar credos; foi à guisa de desculpa por pretender escrever para o público.
Meu desejo é que este livro seja o primeiro da série que espero escrever sobre o Velho
Testamento, dando particular atenção ao texto de cada um deles. Livros de instrução geral
já existem alguns, mas, até onde eu saiba, pouco ou nada existe no gênero de
interpretação. O plano está mais ou menos baseado no comentário de Carrol sobre a
Bíblia em geral, mas minha preferência é dar particular atenção ao texto sagrado, em lugar
de escrever sobre o conteúdo em geral. Certamente que não pretendo, tampouco, fazer
trabalho exegético, dada a vastidão do campo a percorrer. Em lugar de tomar verso por
verso, prefiro tomar as diversas narrativas na ordem em que elas estão e extrair os
ensinamentos mais gerais, tomando um outro verso sempre que ele tiver particular ensino
ou requerer atenção especial.
Gostaria, se fosse possível, de escrever para eruditos, mas prefiro escrever para o povo. A
crítica ainda pode esperar por outros mais capazes. Os problemas, neste sentido, ainda
não chegaram até nós, mas certamente virão; portanto, esperem o seu dia. Todavia, não
desejo passar ignoradamente pelos pontos mais em controvérsia, sobretudo no livro de
Gênesis, dando-lhes por isso toda a atenção possível dentro dos limites que eu mesmo
impus a este trabalho. Assuntos como: evolução, teoria sobre os dias da criação etc.,
receberam cuidado especial; outros, porém, de menor monta, foram tratados de acordo
com a natureza da obra. Escrever grossos volumes seria não somente impossível, mas
inutilizar o resultado prático. Defeitos a obra terá muitos e ninguém mais do que eu os
reconhece. Sintética, como desejo fazê-la, não seria possível incorporar nesta obra
momentos de crítica destrutiva ou conservadora, pois que um volume grande é sempre de
difícil aquisição, mormente nos tempos que correm. Em futuras edições espero ampliar
certas partes que de propósito resumi agora.
Em parte, estas notas já foram dadas às minhas classes de interpretação do Velho
Testamento, e foi com o pensamento nos meus estudantes que abordei alguns pontos,
que o público em geral poderia dispensar. O ideal é um ministério capaz, com a mais vasta
erudição possível, preparado para as demandas do evangelho no presente e no futuro.
Graças a Deus que já morreu a idéia de que os ministros são homens ignorantes; mas nem
por isso se julgue que já sabem demais ou que não haja muitos que, por motivos diversos,
não puderam adquirir uma educação teológica, aos quais cabe ler tudo que os puder
ajudar, como aos que puderem cabe ajudá-los. Ler a Bíblia com inteligência, eis o
soberano ideal. Minha classe tem usado, a par destas notas, outras obras de maior monta
e de mais adiantado escopo, algumas das quais são mencionadas de vez em quando em
conexão com certas passagens difíceis; e um curso regularmente feito no Velho
Testamento requer, além da Bíblia em português, que é o livro principal, um manual de
interpretação geral e diversas obras em que assuntos particulares sejam especialmente
cuidados. "The Heart of the Old Testament", pelo Dr. Sampey, acompanha o curso, bem
como outras obras em inglês, tais como "The Motiuments and the Old Testament", pelo
Dr. Ira M. Price, Archeology and the Bible", pelo Dr. George Barton etc. Há muitos outros
livros bons que infelizmente não estão à mão dos leitores em geral, por estarem em inglês,
sendo apenas consultáveis pelos que conhecem a língua inglêsa. Em português nada
temos, pelo menos que eu saiba, que possa dispensar o pequeno livro, The Heart of the
Old Testament", que é o coração mesmo e realmente, mas não todo o corpo. Ainda que
não haja coisa superior ao coração, nem por isso se vive só com ele. Para os meus
estudantes, pois, foi que comecei a compilar notas desde que fui convidado para ensinar a
história do Velho Testamento no Seminário de Pernambuco em 1917. Desejo que sirva a
eles e a todos que desejam conhecer melhor o programa de Deus para com o mundo
perdido. Difícil é sequer imaginar quando sairão os outros livros que devem seguir a este.
Melhor talvez seria esperar que todos ficassem completos, mas seria prejudicar os que
desde agora precisam de ajuda, e esperar sem saber até quando.
Recife, 22 de outubro de 1928
MAIS UMA PALAVRA
Quando foi publicada a primeira edição de "Estudo no Livro de Gênesis", mal
imaginava a aceitação que a obra ia ter por parte dos crentes e até de amigos do
evangelho. Essa minha natural dúvida nascia da consciência das suas muitas imperfeições
e também da minha incapacidade para tratar de um trabalho que tem desafiado o que de
melhor a inteligência humana tem produzido em todos os tempos. Não obstante isso, em
pouco tempo a obra estava esgotada. Uma nova edição impunha-se, mas eu não sabia
quem a poderia fazer ou custear. Por isso, foi com grande surpresa e contentamento
mesmo que ouvi do Diretor Geral da Casa Publicadora, Dr. T. B. Stover, que o MS
devidamente revisado seria mandado para as oficinas. Com esta promessa, ficava eu
satisfeito e também os muitos que, desejando possuir esta obra, iam ter a sua
oportunidade.
A primeira edição foi um ensaio feito com temor e tremor. Naturalmente, a segunda
edição deveria ser revista e mesmo modificada. Isso foi feito dentro dos limites do
trabalho mesmo, pois sempre pensei que obras muito volumosas e custosas não atingiam
o fim desejado de dar ao povo qualquer auxílio em matéria de interpretação da Bíblia. As
revisões e modificações foram feitas, tendo em vista este princípio. Especialmente a parte
que trata dos onze primeiros capítulos do Livro de Gênesis foi bastante alterada.
Reconheci que os crentes precisavam de outras informações, deliberadamente deixadas de
parte na primeira edição, assim como reconheci a necessidade uma outra distribuição da
matéria. A parte restante do livro foi deixada sem modificação, salvo numa ou noutra
coisa de menor monta.
No preparo desta edição tive a boa colaboração de alguns pastores. O Pastor Rafael
Zambrotti datilografou quase todas as notas dos primeiros capítulos e pôs na nova
ortografia parte do livro. O Pastor José dos Reis Pereira fez a revisão geral, quanto à
acentuação, e reviu também as provas tipográficas, dando valiosas sugestões, que aceitei
quase sempre na sua inteireza. Agradeço também a parte que o Prof. Moisés Silveira teve
nesta edição, parte esta que dificilmente pode ser dada em meia dúzia de frases. À Casa
Publicadora, na pessoa do seu Diretor Geral, também agradeço e devem agradecer todos
os que tanto desejaram ver esta segunda edição, pois que poucas obras têm sido tão
desejadas como esta, não pelo seu valor, já se vê, mas pela sua oportunidade e
necessidade.
Pondo, pois, a segunda edição de Estudo no Livro de Gênesis na mão do povo, rogo a Deus
que ele sirva de auxílio na boa e sadia interpretação da "obra-prima de Moisés", como bem
disse o Dr. W. C. Taylor, quando prefaciou a primeira edição.
Rio de Janeiro, 14 de julho de 1943
PREFÁCIO DA QUARTA EDIÇÃO
Faltando-me agora a pena do Dr. W. C. Taylor, que prefaciou as duas primeiras
edições de ESTUDO NO LIVRO DE GÊNESIS, tenho eu de fazer o trabalho, e o faço com o
pensamento voltado para o passado, dando graças a Deus por esse passado e pelo que ele
valeu.
Quando me aventurei a escrever sobre a Bíblia, foi uma ousadia temerária. Não
tinha nome de escritor, não tinha credenciais para isso (não afirmo que as tenha agora).
Era um simples pastor e professor, sem maiores credenciais. Foi o Dr. Taylor quem me
iniciou na tarefa de escrever para o povo, escrever em estilo simples, arredando termos
empolados, construções artificialmente arranjadas. Já se passaram mais de 40 anos desde
que Estudo no Livro de Gênesis veio à luz, e de então para cá a sua aceitação vem sendo
maior cada dia, e essa aceitação eu acredito advir da simplicidade da linguagem
empregada, sem prejuízo da doutrina e da erudição literária.
A segunda edição está esgotada há muitos anos; só agora, graças ao interesse tomado pelo
Dr. Almir S. Gonçalves, é que se afigura possível uma terceira edição, muito reclamada
pelos estudantes do sagrado Livro.
Quando iniciei os meus passos como escritor bíblico, tinha grandes planos. Pensava
em Comentários sobre todos os livros da Bíblia, e o mesmo Dr. Taylor insistiu comigo, por
muitas vezes, que eu escrevesse um comentário ao livro dos Salmos, Isso eu teria
dificuldades de fazer. Durante esses anos, outras ocupações e a carência de recursos para
a publicação dos meus livros levaram-me a desistir do ideal. Agora é tarde, "Inês é morta!"
como diz o adágio. Durante os 33 anos que servi à Junta de Beneficência, recebi apelos e
mais apelos de pastores para que deixasse essa Junta e me dedicasse a escrever. Como
poderia fazer isso?
Como deixar uma obra que tinha nascido no meu coração, aí pelos idos de 1914? Eu não
sei o que pensar sobre isso: se deveria ter seguido tais conselhos ou não. Tudo pertence
ao passado.
Com a esperança, que agora se oferece, de ver reeditados os meus livros e
publicados outros, que tenho quase prontos, e se Deus ainda me der mais alguns anos de
vida, espero recuperar parte do perdido e ainda servir ao povo nesta capacidade.
Ao fazer a revisão do livro, procurei não alterar a sua feição original. Verifiquei que
algumas páginas deveriam ser refundidas, e alguns estudos aumentados. Isso iria, não só
aumentar o tamanho do livro, como também alterar-lhe a feição. Preferi então manter o
ESTUDO em sua forma original, acrescentando algumas notas de rodapé e fazendo ligeiras
alterações em dois capítulos apenas. Ao Capítulo V, sobre as origens do universo,
acrescentei mais uma teoria científica, dentre outras, quando os espaços siderais estão
sendo devassados. Só mais uma teoria científica, para provar que a Cosmogonia de Moisés
ainda não pôde ser alterada, nem o será jamais, estou certo. Ao Capítulo XIV acrescentei
algumas informações, e o Capítulo XV foi reescrito, por considerá-lo muito imperfeito.
Apenas estas alterações foram feitas no texto.
Acredito que este livro ainda pode esperar o aparecimento de outros textos mais
específicos, mais profundos. Sempre esperei que outros professores de seminários se
interessassem por estes trabalhos, de modo que o meu tivesse apenas servido de ensaio.
Nada disso aconteceu. Os que podem e sabem não escrevem. Por que, não sei. Desta
forma, o meu livro verá ainda uma ou mais edições, até que seja suplantado por outro ou
outros melhores. Nunca tive, e ainda não tenho, grandes pretensões, como escritor.
Sempre reconheci que um homem ocupado com diversas tarefas como eu não pode
pretender escrever grandes livros. Todos os que tenho escrito, o foram nas horas vagas,
nos feriados, nos sábados. Só agora, no crepúsculo da vida, é que posso dispor de algum
tempo para escrever. Vou fazer isso, até que chegue o fim.
Rio de Janeiro, 14 de abril de 1966
Antônio Neves de Mesquita
Da Academia Evangélica de Letras, ex-professor, Catedrático de Hebraico e de Velho
Testamento no Seminário Batista do Norte do Brasil, Professor de Introdução à Bíblia e de
Sociologia no Seminário Batista do Sul do Brasil e Professor de Novo Testamento no
Seminário Betel - atualmente jubilado.
CAP. I - A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO VELHO TESTAMENTO
Não é demais insistir na importância deste estudo e nos característicos necessários
para ele. O professor, por sua vez, precisa conhecer o assunto em geral e possuir regular
dose de conhecimentos relacionados com o mesmo, o que não é fácil, visto a multidão de
assuntos que a ele se prendem. Não somente o Velho Testamento requer cuidadoso e
meticuloso estudo, paciência e erudição, mas sobretudo deve ser estudado
carinhosamente, porque nele está a base da revelação. Por muitos motivos ele se
apresenta corno estudo difícil. A língua em que foi escrito morreu há muitos séculos e não
poucos vocábulos perderam a sua significação, de modo que agora só com o auxílio de
penosas investigações comparativas com outras línguas irmãs e com o auxílio das ciências
arqueológicas é que se pode verificar um sem-número de coisas encontradas nesta parte
da revelação. A própria tendência do povo em geral é relegar o Velho Testamento para
um plano demasiado inferior, no cômputo da revelação, havendo mesmo quem chegue ao
ponto de preteri-lo por completo, alegando que a revelação completa está no Novo
Testamento e que o Velho já cumpriu sua missão. A natureza histórica da maior parte do
livro é, até certo ponto, responsável pela aversão que muitos lhe votam, visto que a
história só interessa a espíritos investigadores. As condições éticas e morais dos tempos
em que os diversos livros foram escritos, em franco contraste com os costumes hodiernos,
o tornam antiquado e sensabor para o gosto atual. Há, finalmente, um sem-número de
causas que tendem cada dia a encostar mais o Velho Testamento ou dar-lhe um lugar
pequeno demais na economia religiosa. Não vão longe os tempos em que se afirmou que
não havia lugar nem na História nem na Ciência, e muito menos na religião, para que se
desse ao V.T. qualquer importância, pequena ou grande, Felizmente, já morreu tal idéia e,
hoje, mais que nunca, o livro em que se alicerça o plano glorioso de Deus para a redenção
dos homens está ganhando apoio nos círculos históricos, geográficos, étnicos e científicos.
Pondo de parte as objeções feitas ao Velho Testamento, creio que ele deve ser estudado
(não meramente lido) com carinho e atenção por diversos motivos:
1. É uma parte considerável da Bíblia e como tal pouco estudada. Seja qual for a
preferência que certo livro mereça, tanto em valor intrínseco como teológico ou
apreciativo, não nos esqueçamos de que Deus nada fez de mais nem de menos, e que tudo
que foi escrito o foi para nossa instrução e edificação.
2. É a parte menos cuidada e mais negligenciada. As coisas mais desprezadas são as
que justamente devem merecer maior cuidado, visto que nem sempre o desprezo é justo e
eqüitativo. A controvérsia tenaz e destrutiva dos últimos cinqüenta anos fez voltar as
vistas dos estudiosos para a revelação do Velho Testamento e deu-lhe um lugar no plano
geral da Bíblia de acordo com o seu mérito. Não sejamos nós, os que aceitamos
integralmente a Bíblia, os primeiros a relegar esta ou aquela parte, por ser menos
importante.
3. Por sua relação com o Novo Testamento. Longe de mim, dizer que o N. T. não é a última
revelação completa e final de nosso Deus, que para isto fez vir ao mundo o seu Unigênito
Filho. Todos os crentes ortodoxos aceitam e defendem esta verdade; não obstante,
convém dizer que o Novo Testamento, sem o Velho, ficaria, se não obscuro, pelo menos
difícil de ser compreendido em muitas partes. Por exemplo, poderia o teólogo explicar a
Carta aos Hebreus, se não tivéssemos o livro de Levítico? Poderíamos nós entender o
ritual ali descrito, sem os livros do Pentateuco? Como poderíamos entender as Cartas aos
Romanos e aos Gálatas, sem conhecer o plano da revelação no V.T. ? As duas partes da
revelação não se opõem uma à outra, antes, se completam. Os escritos da antiga
economia são a semente que brotou viçosa e robusta na nova dispensação, mas se a
semente não é tão importante como a árvore, nem por isso deixa de ser essencial a ela.
Há uma vital relação entre as duas partes da revelação, de modo que uma sem a outra não
está completa. Ainda mais, se quisermos compreender o plano de Deus como se
apresenta no Novo Testamento, temos de compreender este mesmo plano esboçado no
Velho. Note bem o leitor que não estou fazendo depender uma parte da outra ou crendo
que o Novo Testamento sem o Velho não seria todo suficiente para nos levar a Cristo, mas
insistindo que, para leitura inteligente e compreensão razoável, precisamos conhecer toda
a Bíblia. Têm havido milhares de crentes que, sendo ignorantes, ou melhor, analfabetos,
encontraram o seu Senhor pela fé somente, mas isto não indica que não precisemos de
estudar ou que a fé exclui o estudo das Sagradas Letras.
Há outros motivos de ordem secundária que se impõem como uma força irresistível ao
nosso espírito. Já acima aludi às críticas destrutivas a que tem sido submetido o Velho
Testamento e de como pouco faltou para levá-lo ao descrédito nos meios científicos. O
primeiro ataque feito foi em 1753, por Francisco Astrue, médico francês, que supôs ter
Moisés usado dois documentos diferentes na composição do livro de Gênesis; num, sendo
usada a palavra Elohim para designar Deus e noutro Jeová. Daí em diante, a batalha foi
cada vez mais renhida contra o Velho Testamento. Sem que pretendesse destruir a
autoridade de Moisés, apenas sugerindo que ele teria usado material previamente
arranjado por outro, Astrue abriu, entretanto, o caminho para as mais pequeninas e
curiosas concepções bíblicas. Eichhorn, mais tarde, fortificou a hipótese de Astrue e deu-
lhe forma definitiva e permanente, de que Moisés se serviu de documentos preexistentes,
ficando assentado que, quando muito, ele foi um compilador de histórias correntes entre o
povo. Esta idéia foi conhecida como a "hipótese documentaria". Outros, mais tarde, de
1800 em diante, reduziram o Pentateuco a um sem-número de fragmentos, sem lógica
nem cronologia, arruinando não somente a ordem da narrativa e a autoria de Moisés, mas
dando a cada pedaço da história um autor diferente e diferente época, culminando na
ousada afirmativa de que Moisés nada escreveu e que alguém criminosamente usou seu
nome autorizado, para impingir à sua geração uma obra de que Moisés não tinha a menor
responsabilidade. Conforme esta escola, Moisés nada escreveu, porque não se teria
lembrado disto e porque no seu tempo a arte de escrever não era conhecida. Nada mais
faltava para desacreditar o V.T. Se o Pentateuco, como o temos atualmente, não é de
Moisés, o Velho Testamento e o Novo nada valem, porque ambos são unânimes em
afirmar a autoria mosaica. Feito isto, nada mais restava para reduzir tudo à fábula e mito.
Esta escola, porém, era radical demais, e por isso forçou uma contra-hipótese chamada
hipótese suplementar, crendo que alguém, menos Moisés, usou de fato certo documento
antigo e adicionou outros fatos correntes em seu tempo, pretendendo explicar a
diversidade de nomes e duplicidades encontradas nos primeiros livros da Bíblia. O
melhoramento foi insignificante. O descrédito do Pentateuco era flagrante e a tradição
tinha sofrido o mais tremendo choque que imaginar se podia. Para remediar este mal,
alguns críticos, mais conservadores, resolveram fazer voltar o assunto à primitiva teoria da
hipótese documentária, mas deslocando tudo para o tempo do reino e para o período pós-
exílico. O primeiro livro escrito, conforme esta escola, foi Deuteronômio, escrito por
alguém no tempo do rei Josias e capciosamente escondido num canto do Templo, a fim de
ser encontrado, como de fato foi, dando lugar à maravilhosa reforma operada no tempo
daquele bom rei. O resto do Pentateuco teria sido escrito depois, e possivelmente a maior
parte foi escrita no tempo e depois do cativeiro.
Assim, todos os escritores e oradores, incluindo Jesus mesmo, ou foram mentirosos ou
ignorantes da história, afirmando e crendo que Moisés escreveu cinco livros, quando ele
nada escreveu. Feito isto e crido assim nos grandes círculos eruditos da Alemanha e
Inglaterra, fácil era desacreditar todo o Velho Testamento. A história de Gênesis sobre a
criação caiu no ridículo, e foi substituída pela teoria da evolução. A história do dilúvio, dos
patriarcas, da escravidão no Egito não ficou sendo mais que um mito fabricado por pessoas
malévolas ou piedosas. Moisés não existiu, Abraão, Isaque, Jacó etc. passaram a ser
personagens tribais. O povo mais ludibriado foi o mesmo povo israelita, e depois dele
todos os que aceitaram a Bíblia tal como chegou até nós. A história do reino unido foi
consequentemente desacreditada. Sargão II nunca existiu; a Assíria, a Babilônia antiga,
com seus célebres monarcas, suas conquistas, suas glórias, tudo passou para o plano da
ficção e, para culminar a obra, o Deus que asses livros descrevem como um Deus
providencial e soberano não merecia um lugar superior a qualquer Deus do panteão
assírio, babilônico, grego ou romano. Neste pé, só restava uma coisa aos fiéis e piedosos
que tinham nascido e desejavam morrer na velha crença: baixar a cabeça, e aceitar o
"veredictum" da crítica racionalista, pedir informações aos povos que há séculos tinham
desaparecido. Grandes empresas foram organizadas, e milhares de cruzeiros foram postos
ao serviço das escavações orientais. O Senhor tinha reservado, escondida no coração da
terra, a história das velhas civilizações, para confundir a sabedoria dos sábios modernos.
Hoje, graças a estas investigações, podemos ler a história da Babilônia, da Assíria e do
Egito. O capítulo 14 de Gênesis, com a menção da memorável batalha que arrastou
Abraão a pegar em armas, e cuja historicidade tinha sido contestada, os monarcas nela
mencionados a vida política e comercial das antigas civilizações, os antigos povos, tais
como os hiteus, a permanência do povo israelita no Egito, a possibilidade histérica dos
patriarcas, a história da nação mesma, tudo isto e muito mais do livro de Gênesis que aqui
não é mencionado, pode ser lido e contrastado com o conteúdo do Velho Testamento.
Este maravilhoso livro, que esteve à beira do abismo do descrédito e, com ele, toda a
história da revelação preparatória, arranca hoje de todos os lábios sinceros os mais francos
aplausos de admiração. Por fim, como que para culminar a obra de exaltação, vêm as
outras ciências, tais como a Geologia, a Etnologia, a Paleontologia, ciências
verdadeiramente subsidiárias, para confirmar a história da criação, como se encontra no
primeiro capítulo de Gênesis, afirmação de que todas as raças do mundo tiveram sua
origem em Adão e se dispersaram após a confusão das línguas, como nos diz Moisés nos
capítulos 10 e 11 de Gênesis, e a verificação de que o homem não é produto da evolução,
mas criação de Deus.
Poderá parecer desarrazoado e desnecessário tudo isto, para se poder crer na Bíblia. É
verdade. Ao mesmo tempo se crerá com mais inteligência e razão, sabendo os transes por
que tem passado este livro e de como tem saído incólume de todos os embates. Anima
crer num livro contra o qual se têm levantado os maiores cérebros de todos os tempos e
de todas as nações e que, afinal, tem podido resistir a tudo e a todos. Deus mesmo deixou
que o descrédito abalasse até à medula o V.T., para depois desmascarar os ousados e
temerários sábios que tão apressadamente tiraram conclusões de premissas
demasiadamente precárias.
O Brasil está quase virgem quanto a este assunto. Pelo menos os crentes em geral
ignoram por completo o problema. Só de longe ele tem sido ventilado, e por poucas
pessoas, mas isto não milita a favor do fato de que não é preciso estudar o V.T. O saudoso
Dr. José Carlos Rodrigues abordou o assunto do estudo do V.T. com carinho e abnegação,
mas, infelizmente, sua obra, além de ser custosa, ressente-se das idéias críticas acima
citadas, de modo que eu não ousaria recomendar o seu livro a estudantes inexperientes.
Ele aceita a teoria da hipótese documentaria à luz da crítica racionalista, o que, por muito
ameno que seja, dá margem a especulações e dúvidas. Foi assim que Astrue começou e,
sem querer, foi o precursor de todas as idéias extravagantes que deram assunto vasto para
os debates universitários dos últimos cinqüenta anos. O Dr. Rodrigues foi o precursor
destas idéias no Brasil. É questão de tempo a chegada aqui dos mesmos problemas que
nossos irmãos têm tido e estão tendo noutros países. Se conseguirmos criar ou formar
idéias sãs a respeito do Velho Testamento, teremos salvo o evangelho no Brasil de muitos
debates e discussões desnecessários. Que se faça a luz e que ela venha, mas a luz e não as
trevas de uma critica destrutiva e desonesta, como tem acontecido tantas vezes. É visando
a estas futuras questões que aqui vão, à guisa de brado, algumas idéias mal alinhavadas. O
tempo exigirá que outros toquem no problema. Eu acho que, por agora, basta o que fica
dito. Poderão ser encontrados bons livros, especialmente dedicados às diversas fases
deste estudo, nas bibliotecas dos seminários. Alguns já foram mencionados, outros que
tenho o prazer de recomendar são os livros do sábio Dr. William Green, professor de
literatura oriental e do Velho Testamento no Seminário Teológico de Princeton, entre os
quais destaco o The Unity of Genêsis", The Canon, the Text and the Higher Criticism of the
Pentateuch. O Dr. James On é autor de um admirável livro, intitulado The Problem of the
Old Testament. Com esta munição, qualquer pastor ou leigo que leia inglês poderá estar a
salvo dos ataques racionalistas. Infelizmente, há homens bons e sinceros que não podem
crer que se possa ser erudito sem crer mais ou menos nas críticas universitárias e aceitar
algo que seja diferente do consenso comum. O saudoso Dr. Driver e seu ilustre
companheiro, Dr. Davidson, na Inglaterra, podem ser chamados os luminares desta escola
média. Enquanto desejam crer na revelação de Deus Jeová, acham que podemos crer, sem
prejuízo, que a Bíblia tem muita verdade misturada com muito erro; que os escritores não
precisam ser absolutamente capacitados para escrever sem isenção de erro desta ou
daquela natureza; que a Bíblia contém a verdade de Deus, mas não é a verdade de Deus.
CAP. II - LITERATURA DO VELHO TESTAMENTO
O Novo Testamento, como o temos atualmente, foi escrito em grego, a admirável língua
dos povos helenos, que também serviu ao ideal de tornar a última revelação de Deus clara
e perfeitamente acessível a todos os povos. O Velho Testamento foi escrito em hebraico,
uma das línguas semíticas. Mais concisa que a grega, de mais difícil mutabilidade, bem se
adaptou ao plano divino de conservar dentro de moldes certos e firmes a revelação
preparatória; com exceção de seis capítulos em Daniel (2:4-7:28), mais ou menos, três em
Esdras (4:8-6:18 e 7:12-26) e um verso em Jeremias (10:11), que foram escritos em
aramaico, todo o restante foi escrito na língua de Moisés. Para podermos ler no original a
nossa Bíblia, precisamos conhecer pelo menos três línguas: hebraico, aramaico e grego.
Este precioso livro, escrito durante um período de quase 1.600 anos, é a maior maravilha
em harmonia e escopo. Escrito por homens diferentes, em períodos diversos, em
circunstâncias diversas, tratando de assuntos variadíssimos, parte escrita em prosa, parte
em poesia, parte em drama e romance, algumas partes tratando de assuntos históricos,
outras de assuntos religiosos, ora dedicando-se às coisas atuais ora às futuras, é,
entretanto, um livro só, com um plano belamente delineado, de maneira que o leitor que
passa através de suas páginas sente estar acompanhando o desenrolar de uma mesma
história, tendendo para uma finalidade. Estes livros, à medida que eram escritos, eram
entregues à guarda dos sacerdotes e usados para leitura e instrução do povo. Sob esta
custódia, as mais exigentes regras eram aplicadas, de modo a não permitir a corrupção do
texto sagrado. Os que desejarem conhecer o escrúpulo com que os judeus guardavam os
livros que hoje compõem o Velho Testamento devem ler o Talmude judaico. Toda sorte de
cuidados eram empregados para que o texto sagrado não sofresse corrupção no ato de ser
copiado. Durante o longo período da história deste povo, as Sagradas Escrituras passaram
por muitas vicissitudes e, por mais de uma vez, foram elas objeto de criminosa busca e
destruição. Antíoco Epifânio destruiu todas as cópias que pôde encontrar durante o
período de seu governo na Palestina.
No tempo dos romanos, muitos rolos de pergaminho foram também destruídos. Não
obstante, alguns manuscritos foram preservados, na boa providência de Deus, e puderam
chegar até aos nossos dias. Nos museus do Cairo, Louvre, Britânico etc., podem ainda hoje
ser lidos os mais antigos manuscritos do Velho Testamento. O mais recente data do século
1º, da nossa era. Crêem alguns eruditos que durante este longo tempo diversos erros
foram introduzidos no texto original, devido aos processos elementares de reprodução
que, na falta de imprensa como a atual, eram copiados à mão. Se tal coisa é possível,
podemos descansar, que o texto hebraico de hoje é substancialmente o mesmo do tempo
dos profetas. Podemos assim crer porque, como foi notado, os escribas encarregados de
copiar os sagrados escritos eram extremamente zelosos e suas cópias, depois de
completas, eram examinadas cuidadosamente e, no caso de serem encontradas algumas
faltas, eram inutilizadas.
Até ao ano 250 a.C., mais ou menos, nenhuma tradução desses escritos tinha sido feita. A
primeira foi a conhecida LXX, feita no Egito a pedido de Ptolomeu Filadelfo, conforme a
tradição. Justino Mártir relata a maravilhosa história desta tradução. Diz ele que
Ptolomeu pediu ao sumo sacerdote, em Jerusalém, escribas peritos para procederem à
tradução das Escrituras hebraicas para o grego, a fim de servirem aos muitos judeus que
moravam no Egito e que tinham perdido o conhecimento de sua própria língua. O sumo
sacerdote mandou 72 anciãos, que se separaram em grupos de dois, fazendo cada grupo
sua tradução, e finalmente combinaram os diversos trabalhos e acharam que estavam
exatamente iguais, atribuindo a Deus este milagre. Esta história é certamente fictícia, mas
quanto ao fato de que esta tradução foi feita no Egito não resta dúvida, ainda que não
tenha sido feita de uma só vez e por uma só pessoa, porque as diversas partes do Velho
Testamento são diferentemente traduzidas, como se pode verificar pela natureza do estilo
e pureza do grego. O Pentateuco é a parte que recebeu a melhor tradução, e o livro de
Daniel, a pior. Pensa-se que alguns destes tradutores não conheciam bem nem o hebraico
nem o grego. A despeito das deficiências desse trabalho, não padece dúvida que a
tradução é de valor inestimável, porque nos coloca em frente do texto hebraico muitos
anos antes da era cristã e nos deixa ver o seu estado nesse tempo. Se outro valor não
tivesse, tê-lo-ia para a crítica textual.
Outras versões em grego foram feitas entre os anos 200-100 a. C. por judeus em diversos
lugares. Orígenes (230) preparou a Hexapla em seis colunas, pondo em cada uma delas,
em ordem, o texto hebraico, uma transliteração do mesmo texto, e mais quatro traduções
gregas, cujo fim parece ter sido a comparação entre o texto original e as outras traduções.
Infelizmente, pouco nos resta desta maravilhosa obra. Outras traduções mais importantes
foram a Peshita, entre 150-200 A. D., de origem siríaca; os diversos Targuns ou paráfrases
do original hebraico algumas vezes, outras, traduções literais. Os mais importantes
Targuns são o de Onquelos, o de Jonatã e o de Jerusalém,.
As traduções latinas do segundo século A.D. foram feitas da Septuaginta, e não do
hebraico, e por isso não podem ser tão exatas como as gregas nem têm o valor crítico
destas, visto serem feitas de outras traduções. A mais importante é a de Jerônimo,
chamada também de Vulgata, que é a tradução usada pela Igreja Católica.
Os judeus dividem a sua Bíblia (Velho Testamento) em três partes:
(1) A lei ou Tora,
(2) os profetas e
(3) os escritos ou quetuvin.
A primeira divisão inclui os cinco livros de Moisés, os mais estimados e que foram a base
do livro. A segunda divisão inclui tanto os profetas como os livros históricos a partir de
Josué até Reis. Compreende os profetas desde Isaías a Malaquias. A última parte contém
os livros poéticos, os cinco rolos, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes,
Ester, e os livros de Crônicas, Esdras, Neemias e Daniel.
A nossa Bíblia segue uma outra ordem, obedecendo mais à qualidade literária que à
importância dos livros.
(1) Pentateuco
(2) Históricos
(3) Poéticos
(4) Proféticos.
Sobre os autores dos diversos livros da Bíblia não é fácil dar resposta final. Os cinco
primeiros foram escritos por Moisés, exceto o último capítulo de Deuteronômio, que relata
a sua morte e foi, provavelmente, escrito por Josué ou outro ajudante imediato do grande
legislador. Contra a autoria de Moisés não se pode oferecer argumento plausível, em face
da natureza dos mesmos livros, que denotam flagrantemente que quem os escreveu tinha
a experiência do que escreveu; da tradição judaica, que sempre atribuiu a Moisés sua
autoria; e, finalmente, da autoridade dos autores inspirados, incluindo nosso Salvador
mesmo. Josué foi escrito por ele, mas crê-se que foi escrito no tempo do Reino, por algum
escriba ou mesmo por algum dos profetas, talvez Natã. I e II Samuel caem na categoria de
Josué. Pensam alguns escritores que Samuel mesmo escreveu ou mandou escrever, e,
conquanto nada em contrário se possa aduzir podemos aceitar que, se não foram escritos
pelo homem cujo nome os livros têm, foram escritos por pessoa bem familiar com a
história. Os livros têm o nome de Samuel, não tanto porque ele os tenha escrito, mas
porque trazem a história de sua vida e seus feitos. Os dois livros dos Reis foram escritos lá
pelo fim do reino de Judá ou durante o cativeiro. Qualquer profeta estaria plenamente
qualificado para ser o historiador da nação. Os profetas eram os líderes e cronistas do
Reino. Não a pessoa que escreveu, mas o que ela escreveu foi tomado, juntamente com
sua autorização divina, como norma da canonicidade do livro. Jó foi escrito, talvez, por
Moisés, no tempo em que esteve em Midiã. Esta foi sempre a tradição, até que, nos
últimos tempos, alguns autores passaram a colocar o livro no fim do Reino. Seja qual for o
autor, não padece dúvida que é muito antigo. O livro dos Salmos deve sua maior parte a
Davi. Há outros autores, como Salomão, os filhos de Asafe e outros, anônimos. Provérbios
deve sua maior parte a Salomão. Outros escritores, como Agur, têm alguns provérbios na
coleção. Cântico dos Cânticos tem sido tradicionalmente atribuído a Salomão
ultimamente, tem sido disputada sua autoria. Se não foi escrito por Salomão, foi escrito a
respeito dele. Eclesiastes, pela mesma forma, foi sempre atribuído a Salomão, mas os
críticos modernos o colocam entre 440-200 a.C. Com tanta razão o podem colocar no fim
do período profético como no princípio. Eles têm liberdade de dizer o que quiserem. O
livro sempre foi tido como da autoria de Salomão. Os livros de Crônicas foram escritos
depois do cativeiro, por qualquer profeta, conforme pensam alguns, ou no tempo do
Reino, como querem outros. O fato de estes, livros aparecerem na última parte da Bíblia
hebraica indica simplesmente que eles não foram escritos por pessoas da categoria de
quem escreveu I e II Reis. Os livros proféticos todos são atribuídos aos homens cujos
nomes trazem.
Convém dizer aqui que todos os livros do Velho e Novo Testamentos foram escritos para
satisfazer a uma necessidade contemporânea. Não foi o mero prazer que levou qualquer
destes autores a escrever. O povo semita é demasiadamente prático para perder tempo
com qualquer coisa que não se imponha no momento. Compreendido isto,
estamos melhor habilitados para entender o livro. Não se julgue insignificante o problema
do estudo inteligente da Bíblia. Qualquer pessoa pode crer, mesmo sem poder ler, mas
isto não justifica o descaso da leitura bíblica. Para ler com o maior aproveitamento
possível, se o original satisfaz, mas como este privilégio é de poucos, comparativamente,
insistimos em que se leia a Bíblia com toda a reverência, usando todo o material à mão que
aclare e aplaine o caminho a seguir. Mesmo os que lêem no original têm suas grandes
dificuldades, devido a ter desaparecido a língua hebraica como língua falada, e ainda mais
por ter sido abandonada pelos nativos por um largo período. Assim que hoje é assaz difícil
saber o que significam muitos vocábulos e mesmo expressões encontradas nos
manuscritos originais. A crítica comparativa entre o hebraico, o aramaico, o etíope e o
árabe tem prestado relevantes serviços, e só com o auxílio destas línguas é que é possível
resolver um grande número de dificuldades, mas ainda resta muito para resolver. Não
pense, pois, o leitor inteligente e cônscio de sua responsabilidade que o problema seja de
fácil manejo. Um curso de três anos, num bom seminário, certo há de habilitar o obreiro
para esta grande obra, mas, ainda depois de ele ter gasto muitos anos de paciente estudo,
compreenderá que nem tudo está entendido. Não é para desanimar que digo isto, mas
para convencer da necessidade de um aparelhamento sólido. Os maiores inimigos da
Revelação têm sido alguns dos homens mais eminentes; os defensores não devem ser
inferiores. Para uma razoável compreensão da Bíblia, deve o leitor conhecer:
(1) Os costumes do povo e seu modo de viver. Isto ajuda a compreender o emprego de
certas expressões ou frases.
(2) Os costumes do tempo do escritor, se o livro foi escrito posteriormente à história
que relata.
(3) Manejar bem o contexto. Se a expressão oferecer mais de uma interpretação,
nada como o contexto, junto com outros conhecimentos, poderá ajudar a interpretação.
(4) Conhecer o estilo do autor e suas peculiaridades e vocabulário.
(5) Não dar à sentença sentido figurado ou alegórico. A História e a Etnologia
prestarão grande serviço à interpretação. A Bíblia é a história do homem em sua relação
com Deus e dá tanto o lado divino e seu propósito, como o humano e sua tendência.
Muito ajudará o conhecimento da psicologia do povo cuja história se estuda.
(6) No caso de uma passagem se referir ao homem em sua relacão com Deus, convém que
ambas as partes sejam consideradas e que não se dê valor demasiado a uma, com prejuízo
da outra.
(7) A natureza da língua e do ambiente deve ser considerada. O estudante do grego
não deve aplicar seus conhecimentos desta língua ao estudo do hebraico, além do que de
geral pertence a todas as línguas. A natureza da Revelação encontrada no Velho
Testamento é preparatória, e, tendo muito em comum com a do Novo Testamento, tem ao
mesmo tempo sua própria natureza e finalidade. O Velho Testamento dá muitos
ensinamentos em figuras e tipos, que se vão desdobrando gradativamente, conforme o
grau de avanço espiritual do povo. Devemos, pois, atender a este progresso.
(8) A referência a outros livros serve muito, mas não determina o sentido final e infalível.
O significado de certa passagem num livro não deve ser trazido para outro livro de data
muito anterior, a não ser que haja sérios motivos para tal.
(9) O conhecimento da gramática e a natureza do livro. O hebraico não tem uma
gramática tão complexa como o grego, mas tem sua própria gramática, e quem a
desconhecer pode ficar certo de que não poderá compreender o Velho Testamento tão
bem como se a soubesse.
(10) A Bíblia contém uma história viva, de um Deus vivo, para um povo vivo; e não uma
fábula ou mito. Por melhor que seja o equipamento do intérprete, convém não esquecer
que o melhor intérprete é a Bíblia mesma.
Há no V. T. trinta e nove livros, e no Novo, vinte e sete. O total é de sessenta e seis
livros. A Bíblia romana tem no V.T. quarenta e seis; e os mesmos livros que a nossa no
Novo. A razão disto é que a Igreja Católica aceita alguns livros apócrifos, que nunca
receberam admissão no Cânon hebraico. A Bíblia judaica tem na Velho Testamento (o
Novo, os judeus não aceitam) os mesmos livros que a nossa, mas a maneira de enumerar é
diferente. Alguns rabis dão o número total de 24, outros o de 22. No primeiro caso,
combinam I e II Samuel como um livro, I e II Reis como um livro, I e II Crônicas como outro
livro. Esdras e Neemias outro e os doze menores profetas outro, fazendo o total de vinte e
quatro com os outros livros. Os que fazem o número de 22 aceitam a divisão acima e
juntam Juízes e Rute como um só livro e Jeremias e Lamentações como outro. Em
qualquer caso reconhecem a tríplice divisão do Velho Testamento.
A ordem dos livros na Bíblia hebraica também é diferente em alguns casos, mas isto em
nada afeta sua canonicidade. Conquanto não se saiba a quem atribuir a tríplice disposição
dos livros do Velho Testamento, ela obedece à natureza literária dos mesmos livros e não à
sua diferença superior ou inferior, inspiracionalmente falando, pois que nunca houve
disputa relevante acerca da superioridade de um livro sobre outro. A Torá sempre
recebeu mais carinho, por ser considerada a base de toda a Revelação. Somente por isto.
A atual divisão em capítulos não é de origem divina nem inspirada. Teve Lugar
aproximadamente em meados do século 13 A.D. e é geralmente atribuída ao Cardeal Hugo
ou ao Arcebispo de Canterbury, Stephen Langston. A divisão em versículos foi feita no
século 16 por Robert Stephens, tipógrafo em Paris. Tanto uma quanto a outra coisa muito
contribuíram para facilitar o estudo e tornar possível as concordâncias. Conquanto esse
trabalho mereça os mais francos aplausos, infelizmente lugares houve em que a conexão
ficou arruinada e partes deslocadas de seu próprio lugar.
Não desejo dizer que uma parte da Bíblia é mais importante do que a outra, nem que certa
parte seja mais difícil que outra. Não obstante, todos reconhecemos que cada livro tem
seu próprio plano e serve especialmente a um determinado fim e que conforme a natureza
do livro assim sua relativa facilidade ou dificuldade. O Pentateuco é não só o mais difícil,
como tem sido o mais atacado. Por que é mais difícil? Por muitas razões. Trata de
assuntos transcendentais, como sejam, a criação do universo e do homem, o dilúvio etc., e
muitos outros assuntos que dificilmente podem ser verificados. Nesta parte, portanto,
temos a base da religião. Sendo de natureza tão difícil, fácil é inventar teorias e formular
especulações para explicar o que, muitas vezes, é inexplicável. Se conseguirmos defender
o Pentateuco, teremos defendido o resto da Bíblia, se não, todo o mais está sujeito a
controvérsias. Se Deus não criou o homem, como explicaremos a revelação dada a esse
homem e como harmonizaremos todo o conteúdo bíblico que aceita implícita e
explicitamente a criação do homem como sendo diretamente de Deus? Do Pentateuco
ainda podemos destacar o livro de Gênesis, como o mais atacado. De fato, não pouco se
tem dito deste maravilhoso livro, sobretudo dos dois primeiros capítulos. É ali que está o
âmago do problema. Quem puder aceitar estes dois capítulos da Bíblia, aceitará todo o
resto. É certo que se precisa mais da fé que da razão para os aceitar; há mais coisas que os
sábios aceitam pela fé, visto admitirem sua existência e não poderem explicá-las. Esta fé
não é cega, entretanto, porque até onde a razão e os conhecimentos têm chegado, a
narrativa de Gênesis tem recebido luz. E, se o homem pudesse explicar todos os
fenômenos do universo por meios matemáticos e físicos, teríamos explicado a narrativa de
Gênesis. Esperemos que a Ciência confirme o que lá está, mas debalde esperaremos que
ela a contradiga. Há atualmente no mundo intelectual verdadeira aversão para com o livro
de Gênesis, não porque algo tenha sido descoberto que o contradiga, mas simplesmente
pela facilidade com que se aceitam teorias, que não resistem à mais elementar análise dos
fatos. A evolução tão falada hoje outra coisa não é que mera teoria ou hipótese que ainda
não recebeu a mais insignificante prova. É o espírito de antagonismo à revelação que causa
tudo isto, e não a luz da Ciência. Ergamos um hino à razão e demos-lhe o seu lugar, mas
não desloquemos a fé para dar seu lugar às extravagâncias racionalistas.
Outro lado da questão do Pentateuco é sua relação com os povos contemporâneos da
história que ele relata. Sem os livros de Gênesis e Êxodo nada saberíamos da origem das
raças, pouco saberíamos dos velhas civilizações babilônica, egípcia, assíria e outras. Mas
não é o subsídio que estes livros dão à história destes povos que mais nos interessa, e sim
a relação que estes povos mantêm com a história de Gênesis. Na pesquisa dá verdade,
todos os elementos que possam trazer luz devem ser aproveitados honestamente. Todos
os historiadores confessar que os tempos primitivos da raça humana são os mais difíceis
de examinar, devido à escassez de informações, e não poucos têm arranjado teorias e
métodos para explicar a maneira de vida dos antigos povos, alguns dos quais pouco têm de
científico. Ainda hoje corre, mundo a fora, a crença de que os homens pré-históricos eram
meio humanos e meio brutos, em sua maneira de viver, e debaixo deste conceito têm-se
forçado todas as antigas raças, fosse qual fosse seu lugar ou estado de civilização, a um
mesmo padrão de moral e de vida social e religiosa. Nada mais falso do que isto. A culpa
está não somente na deficiência de dados informativos, mas na falsa idéia de que o
homem tem estado a se aperfeiçoar através dos séculos, sofrendo, pelo contato com
outros povos e pelas contingências de sua vida local, uma contínua transformação,
tendente ao seu aperfeiçoamento. É nem mais nem menos a nefasta idéia da origem bruta
do homem ou sua evolução do antropóide. O Pentateuco livra-nos de tal concepção
infantil e denunciadora da falta de conhecimentos etnológicos. Até onde é possível
penetrar através das mais velhas civilizações, podem-se descobrir vestígios de grandes
civilizações, capazes de envergonhar os aperfeiçoados deste século.
As grandes descobertas arqueológicas têm reconstruído, desde a base, a velha concepção
evolucionista e mostrado que naqueles tempos, como nos atuais, havia homens vivendo
no meio de admiráveis civilizações, ao passo que outros viviam nas suas povoações
lacustres. Enquanto que hoje um povo vive em Nova York, Paris ou Londres, gozando
todos os requintes de comodidades modernas, muitas tribos na África e noutros
continentes vivem dez mil anos atrasadas. Talvez, mesmo nos arredores destes grandes
centros de civilização, vivam milhares de criaturas numa condição de vida de milhares de
anos inferior. O mesmo fenômeno se observa nos dias da infância da raça. Os assírios
viviam no esplendor de sua invejável civilização, enquanto outros povos vizinhos viviam
vida de escravos, sem cultura e sem civilização. Enquanto os egípcios desfrutavam as
maravilhas de sua antiquíssima civilização, viviam os cananeus em cavernas, alimentando-
se de frutos, ervas e cascas. Reduzir todos os antigos povos a um mesmo nível social e
político é confessada ignorância da História. Ninguém é culpado. Estes povos não
escreviam sua vida e quando começaram a escrever não puderam espalhar sua literatura.
As contínuas contendas raciais, a ambição acentuada de conquista, que sempre
caracterizou o homem de todos os tempos, sepultou, nas ruínas de cidades incendiadas e
arrasadas, os últimos vestígios de sua literatura. Assim que as gerações sucessivas se
virem privadas dos conhecimentos de seus antecessores e daí a concepção mutilada que
se tem feito da vida de nossos antepassados. Conhecessem os homens que escrevem
História as narrativas do Pentateuco, e nos teriam poupado o desgosto de ver tantas
heresias históricas misturadas com um pouco de verdade, achada por acaso. Infelizmente,
os livros da Bíblia arrostam tremendos preconceitos e só à custa de renhida propaganda é
que sua história virá a ser conhecida. Ainda hoje se encontram homens que se orgulham
de possuir educação esmerada e que ignoram por completo a história antiga.
Recordemos que a Bíblia, além de ser um livro de religião, é um livro da história de
um povo que entrou em contato com os mais velhos povos da terra, e que só por isto deve
ser lida e ocupar um lugar na estante mais humilde ou mais opulenta.
CAP. III - INTRODUÇÃO AO LIVRO DE GÊNESIS
Há um incontrastável prazer no estudo dos clássicos, pelo acréscimo de
conhecimentos que eles nos trazem à grande bagagem do saber moderno. Não há, porém,
prazer maior do que estudar o Livro das Origens do Universo, o livro único que em tempos
tão remotos catalogou, em poucas páginas, uma soma de conhecimentos que têm enchido
de pasmo e admiração as últimas gerações. A primeira sentença de Gênesis: "No princípio
criou Deus o céu e a terra" (Universo), por si só representa todas as conquistas da
moderna astronomia, da geologia, e o restante do primeiro capítulo, composto de 31
versículos, abrange a maior parte das ciências modernas, tais como a Paleontologia, a
Paleantropologia, a Zoologia, a Biologia, a Física, a Química etc. E é difícil a um sábio
moderno penetrar nos umbrais da Ciência sem topar com Moisés, no seu maravilhoso livro
primeiro. O restante aborda os grandes problemas da origem da espécie humana: o
pecado, a sua propagação e a dispersão do povo, as línguas e as primeiras civilizações, hoje
perfeitamente identificadas. Um livro como este não pode passar despercebido pelos que
amam a verdade e a desejam encontrar, onde quer que esteja. "O desígnio do livro de
Gênesis, sem dúvida, é, em si mesmo, suficiente para mostrar a sua incomensurável
superioridade sobre todos os remanescentes da literatura humana primitiva, porque a sua
história é uma introdução à História do Reino de Deus entre os homens, desde o Éden ao
Calvário." (1)
A Assíria e a Babilônia deixaram-nos uma vasta literatura, registrada em tijolinhos
encontrados nas intermináveis escavações arqueológicas dos dois últimos séculos; mas
Moisés deixou-nos um relato feito e acabado dos primórdios da vida do universo e da vida
humana. "A primeira página de Moisés", diz Jean Paul, "tem maior peso que todos os fólios
dos homens de Ciência e Filosofia". O estudo das civilizações egípcia e babilônica fascina,
pela sua grandeza e deslumbramento, mas não há nada nelas tão deslumbrante e
encantador como a narrativa de Moisés. A mitologia e cosmogonia destes povos, a sua
religião, os seus templos e seus deuses, bem como as suas especulações sobre a vida e a
morte, são de fato admiráveis, mas muito mais admirável é o registro límpido, conciso e
acabado que encontramos no Gênesis. Talvez a coisa mais notável neste livro seja a sua
concepção monoteística de Deus, coisa em que povo algum da terra conseguiu tomar pé.
Renan pensava que a origem monoteística da religião se deve a concepções piedosas da
raça semita, porém Max Müller, que não afinava pelo diapasão de seita alguma e cuja
erudição não poderá ser posta em dúvida, afirma "que o instinto monoteístico não podia
ser implantado no mundo por nações que adoravam Elohim, Jeová, Jeová Sabaote,
Moloque, Nisroque, Rimom, Nebo, Dagom, Astarote, Baal, Bel, Baal-Peor, Belzebu,
Quemós, Milcom, Adrame-leque, Niba, Tarka, Asima, Nerval, Sucote, Benote, o Sol, a Lua,
os astros e todas as hostes celestes". Estava errado Renan. "Nem se pode admitir
explicação possível", diz ainda Max Müller, "sobre fundamentos históricos, como os
hebreus obtiveram esta idéia e tão aferradamente aderiram a ela. As suas crônicas
mostram contínuas fugas para a idolatria, mas ao mesmo tempo eles restauravam por si
mesmos o princípio monoteísta, até que, afinal, depois de dura disciplina, trazida pelas
calamidades nacionais, voltaram com entusiástica devoção ao culto de Jeová". (1)
Voltaram ao monoteísmo, para não mais o abandonar. A verdade é que entre todos os
povos da terra se encontram resquícios de monoteísmo, como uma prova de que esta
deveria ter sido a religião primitiva dos povos e que o politeísmo não é mais nem menos
do que a corrupção deste ensino primitivo.
Os povos que habitaram a Mesopotâmia, terra de onde emigrou Abraão, ligam a sua
história ao livro de Gênesis (Gên. 10:10,11) ; têm uma história e uma língua comuns, a
língua Tártaro-Turca ou Turânia. A eles se deve considerável contribuição sobre
conhecimentos antigos, conhecimentos que, como veremos mais adiante, têm uma
relação muito íntima com a história dos primeiros capítulos de Gênesis. Os sumérios e
acádios foram notáveis tanto em coisas religiosas como científicas e sociais. A astrologia, a
história natural, as matemáticas, o comércio, o sistema de pesos e medidas, as transações
bancárias, a jurisprudência etc., eram coisas comuns entre eles. (2 ) Especialmente o
último monarca assírio, Assurbanipal, dedicou todo o seu tempo a colecionar documentos
sobre os conhecimentos da época, reunindo tudo numa famosa biblioteca de 30.000
volumes, há anos desenterrada e atualmente no Museu Britânico. Entre esta vasta
literatura, há poemas, salmos, história, matemática, geografia, uma narrativa sobre o
sábado, outra sobre Jó etc. Contemporâneo de Abraão, viveu o célebre Hamurabi, cujo
código, traduzido para algumas línguas modernas, constitui justificado motivo de
admiração, pelo conjunto de leis de todas as naturezas, leis estas que, como veremos,
apresentam notável semelhança com as próprias leis de Moisés.
Tudo isto, pois, deve induzir-nos a crer numa origem comum destas narrativas, a caldaica e
a mosaica, se bem que esta última se avantaje a todas as outras pela sua pureza e
precisão.
Do ponto de vista científico, tem o livro de Gênesis suscitado graves controvérsias.
Isso tem servido para que alguns mais apressados se aventurassem a querer desacreditar o
grande livro. Por outro lado, os cristãos, ciosos do seu rico patrimônio, não permitiam que
se dissesse qualquer coisa que pudesse diminuir a sua intangibilidade. Quando Galileu
afirmou que a terra era móvel e se movia em torno do sol, e que este é que era fixo, veio a
Igreja contra o sábio, obrigando-o, sob pena de morte, a dizer que "a declaração de que o
sol é o centro do Universo, e imóvel, no seu lugar, é absurda porque contradiz
expressamente as Escrituras". "A declaração de que a terra não é o centro do Universo,
nem imóvel, é absurda, filosoficamente falsa e totalmente errônea, porque contradiz a fé."
(1) Diálogos sobre os Sistemas Principais. Galileu estava certo e a Bíblia também estava
certa, mas a Igreja, vendo as suas interpretações e o seu crédito abalados, obrigou o sábio
a desdizer-se, e ele o fez, mas não de acordo com a ciência e sim de acordo com as
Escrituras e a fé. Ora, as Escrituras nunca disseram que a terra era o centro do universo e
que o sol se move em sua volta. Os Salmos 93:1 e 102:2 apenas dizem que "os céus foram
estendidos como cortina" e "o mundo está estabelecido de modo que não pode ser
abalado", mas isso não tem nada com a ciência, a respeito da esfericidade da terra ou sua
imobilidade no espaço. Calvino caiu no mesmo erro quando tentou provar que os textos
sagrados provavam conclusivamente que a terra estava parada no meio dos céus e que o
sol se movia a seu redor. (2) Calvino, sobre os Salmos.
Pode ver-se que apenas conclusões apressadas e dogmatismo exaltado têm dado causa a
estas conclusões, muita vez desabonadoras para a ciência e para a fé. A ciência ainda está
na infância hoje, e muito mais atrasada estava ela há cinco séculos passados. Onde as
contradições parecerem flagrantes, será melhor esperar um pouco mais do que concluir
que há erro da Bíblia em favor da Ciência. Possivelmente, a Ciência poderá estar errada e
já o esteve muita vez em relação a certas declarações bíblicas. Não vai longe o barulho
feito por alguns críticos alemães, sobre a historicidade das crônicas encontradas nos livros
de Reis e Crônicas. Como se sabe, esses livros narram, em linhas gerais, os muitos conflitos
travados entre os monarcas assírios e babilônios, em relação à nacionalidade hebraica. Os
grandes guerreiros Sargão II, Esaradon, Tiglate-Pileser, Assurbanipal, Nabucodonozor, Ciro,
Dario e uma lista de outros, não eram conhecidos há dois séculos passados, e, por
conseguinte, não era conhecida a sua história. Isso bastou para que a Bíblia fosse
impugnada como contrária à História, mentirosa, falsa, lendária etc. Quem ousaria hoje
afirmar tal coisa? A Arqueologia encarregou-se de desenterrar todas estas civilizações, e
fazê-las viver em nosso século. A Bíblia tornou-se o livro mais acreditado entre todos os
que vieram de épocas antigas, e hoje só a estreiteza do doxmatismo ou a pressa de alguns
sábios poderá fazer reviver o conflito entre a Bíblia e a Ciência.
Do ponto de vista das ciências que se relacionam com a terra, os astros, a vida e as nações,
o Gênesis, em sua admirável síntese, quando visto por olhos que desejam a verdade,
constitui um admirável repositório do saber. Impressionam as conclusões da Geologia,
sobre a formação da terra, suas épocas, a vida e seu desenvolvimento em Radiata,
Articulata, Molusca, Peixes, Répteis, Pássaros, Quadrúpedes e Homem, segundo Cuvier.
Acrescentando-se a vida vegetal, teríamos em primeiro lugar, relva, erva, árvores
frutíferas, para depois entrarmos no reino animal. Tudo isto é mais que maravilhoso, se
tomarmos em conta a era em que Moisés escreveu.
Creio estar perfeitamente estabelecida a identidade entre as afirmativas da Bíblia e as
conclusões da Ciência, mas a crítica impiedosa e sectária nem sempre aceita as últimas
conclusões como um aviso para maior cautela. Assim é que se já não se pode impugnar a
Bíblia, no que diz respeito à segurança das suas afirmativas, ainda alguns acham que
Moisés não escreveu uma obra de cunho científico, e, portanto, o seu grande livro
continuará apenas e por favor um livro de religião. Concordo com as restrições. Moisés
não pretendeu mesmo escrever um livro de ciência. Escreveu para o seu povo, sob a
inspiração de Deus. Escreveu a história do pecado e da graça divina, e antes de entrar no
tema principal da sua obra, deu-nos uma introdução maravilhosa, ao que poderíamos
chamar os começos do universo e da vida em relação a Deus. É isto que se encontra do
capítulo 12 em diante. E graças a Deus que ele assim fez, porque, doutra forma,
estaríamos às cegas sobre como apareceu o maravilhoso conjunto universal. Ele bem
poderia escrever com mais acentuado sabor científico, se quisesse, visto que tinha sido
educado nas melhores universidades de seu tempo e era filho da mais afamada civilização
contemporânea. Heródoto disse, com justiça, que a civilização grega tinha vindo das
margens do Nilo. (1) Mas Moisés preferiu escrever para ser entendido pelo seu povo e não
para satisfazer à curiosidade dos homens dos séculos XIX ou XX. Sua cosmogonia é a mais
eloqüente possível, porque alia, à simplicidade e concisão, à certeza. Serviu para os seus
contemporâneos, e tem servido para todos os que reverentemente se aproximam dela e
desejam descobrir as grandes verdade eternas. O que ele não poderia fazer era escrever
para satisfazer a gosto de cada cientista moderno. Isto lhe tem valido certa diminuição por
alguns que se apressam a tirar conclusões sem fundamento. A lição porém, tem
aproveitado a muitos, e todos os que prezam seu nome devem precaver-se de acusar
Moisés de ignorância, antes de ter em mãos todos os dados necessários à prova.
Certamente não digo que ele soubesse tanto de Geologia, Astronomia, Botânica ou outras
ciências, como muitos homens de nossos dias. Não. Mas digo, sim, que o que ele
escreveu pode resistir, como tem resistida, a todas as investigações científicas e não causa
pavor afirmar que, quanto mais os homens descobrirem e conhecerem, mais veraz se
tornará a história do maravilhoso livro de Gênesis. Moisés usou seu saber, é certo, mas foi
guiado por Deus para escrever esta história, e, se isto é contraditável, pode-se afirmar que
ele foi, é e continua a ser o maior mistério do mundo. Já se passaram aproximadamente
quatro mil anos desde que Moisés escreveu, e até agora nada se pode acrescentar nem
diminuir à sua cosmogonia, a despeito de o mundo ter sido testemunha do aparecimento
das mais maravilhosas mentalidades, em todos os ramos do conhecimento humano. Se o
que ele escreveu saiu apenas da sua mente, devemos considerá-lo muito mais que um
homem e muito mais que um anjo.
O fenômeno da criação da matéria é incompreensível, tanto para o teólogo como para o
materialista, e, por mais que se sofisme e se penetre no assunto, jamais se saberá a
contento como pôde ser criado o universo. O materialista encolhe os ombros e diz que
algures sempre existiu uma força que agiu por sua própria deliberação, e que foi ela que
deu origem ao universo. Outros, mais exatos, afirmam que a matéria é eterna e que por
suas leis deu origem à vida. E assim vai correndo de mão em mão o problema, sem
encontrar quem o resolva. Por isto mesmo tem-se negado a história da criação da matéria
e do homem, e, para substituir a velha crença da criação por Deus, não poucas têm sido as
especulações inventadas ao talante de cada um. A mais curiosa é a chamada teoria da
evolução, que recebeu ligeira atenção no lugar próprio deste livro. Como todas as
inovações, esta teve o seu dia com as conclusões a que chegou a Biologia. Se a história de
Gênesis puder ser contestada com seriedade, nada mais nos fica para crer, visto que todos
os demais livros da Bíblia repousam na doutrina de que o homem foi criado por Deus e que
este mesmo Deus é o criador e governador do mundo. Não somente isto, mas o livro tem
em embrião as mais queridas doutrinas da fé cristã. A promessa de um Redentor
encontra-se no limiar deste livro, e segue a queda como a sombra segue o corpo. Se não é
verdadeira a queda do homem, muito menos o é a promessa do Salvador (Gên. 3:15). A
doutrina da existência de Satanás e sua obra nefasta, da tendência para o mal, inata nos
homens, a depravação da raça, a destruição pelo Dilúvio, finalmente a interferência de
Deus nos destinos do mundo e do homem, encontram-se graficamente delineadas neste
livro. Se ele é falso, todo o resto o é; se verdadeiro, toda a Bíblia fica em sua posição,
como livro de religião infalível e autorizado.
Não é fora de propósito reafirmar que a narrativa de Gênesis encontra eco em todas as
cosmogonias antigas, e pode-se dizer mesmo que há entre elas verdadeiras afinidades. É
problema que não pode aqui ser discutido demoradamente, mas, ainda assim, desejo dar
aos leitores alguns trechos comparativos entre a narrativa de Gênesis e as narrativas
babilônicas, para que se veja que a cosmogonia mosaica não era uma novidade no seu
tempo, nem uma ficção. Há elementos étnicos que são patrimônio de todos os povos, seja
qual for sua origem e desenvolvimento.
O poema épico da história da criação, corrente na Babilônia no sexto século a.C., compõe-
se de 7 partes, contendo um total de 938 linhas. Grande parte deste poema ainda não foi
descoberta, tendo apenas aparecido partes separadas. Algumas destas partes estão de tal
modo quebradas que a tradução é impossível. Vejamos alguns espécimens.
1. Houve um tempo quando acima céu não era chamado
2. Embaixo à terra nenhum nome tinha sido dado
3. Então o principal abismo seu começou a gerar,
4. O rugente mar que os fez nascer
5. Suas águas ... estavam todas misturadas;
6. O campo não tinha sido formado, nem continentes vistos.
7. Tempo houve quando deuses não tinham sido feitos,
8. Nenhum nome feito nenhum destino (determinado)
9. Então foram criados os deuses no meio do céu.
10. Lakhmu e Lakhamu eram formados (juntos)
11. Gerações multiplicadas.
12. Anshar e Kishar foram............ formados e sobre eles
13. Dias eram prolongados, então apareceu
14. Anu, seu filho
15. Anshar e Anu.
16. E o deus Anu etc.
A primeira parte compõe-se de 142, linhas e termina com a criação do mundo.
A segunda parte descreve a vingança de Tiamate sobre os outros deuses.
1. Tiamate fez poderosas obras.
2. O mal ela intentou contra os deuses, sua geração etc.
Termina com a prisão de Tiamate para salvar a vida da geração, e com a
recomendação de obediência às ordens recebidas. Esta tábua corresponde ao terceiro
capítulo de Gênesis, onde vem a história da queda.
A terceira parte compõe-se de 138 linhas e parece descrever a luta entre os diversos
personagens. Fala de um banquete de embriaguez e termina com a intervenção de
Marduque, o redentor, para salvar os que tinham sido destinados à destruição.
O resto do poema menciona a luta começada, chega à destruição de todos os maus
(linha 34, parte sétima) e termina com a exaltação do transgressor arrependido. (1) Barton,
Archeology and the Bible, pág. 236.
Pena que não seja possível dar maior citação deste admirável poema, mas não
desejo sobrecarregar este livro, apenas mostrar que a história da criação não era ignorada
pelos outros povos. Os que puderem ler inglês e desejarem maior conhecimento poderão
consultar o livro do Dr. Barton, por mais de uma vez mencionado. O que aí fica não deixa
dúvida sobre o paralelismo das duas narrativas, hebraica e caldaica. Ambas começaram
com um tempo em que não havia céus, nem terra, nem homens. Depois, apareceram os
abismos, a terra seca, os campos e os homens.
Outra semelhança notável é a contagem do tempo em sete. As partes do poema
babilônico são sete, e sete são os dias da criação. A série Babilônica culmina na celebração
de Marduque por todos os deuses; os dias da criação bíblica terminam com o sábado e o
louvor ao Criador. Ambos combinam na ordem da criação dos céus no quarto dia ou
quarto canto, e a criação do homem no sexto. Há alguma diferença quanto à criação da
lua e das estrelas no quinto dia, em lugar do quarto, no cântico babilônico.
A criação dos animais não é dada no poema, mas encontra-se noutros cânticos separados.
Há um fragmento destes cantos em treze linhas que começa assim:
1. Quando os deuses em suas assembléias tinham feito os céus
2. O Armamento tinham estabelecido e segurado,
3. Seres vivos foram criados de todas as espécies,
4. Gado do campo, bestas do campo e criaturas moventes das cidades etc.
Nos pontos mais importantes, os dois documentos concordam; no que eles são
diferentes deve ser levado à conta da corrupção, que a tradição sofreu através de muitos
séculos.
Há um ponto em que os dois são fundamentalmente diferentes: na ação dos
deuses. A narrativa do Gênesis dá apenas um Deus como criador auto-existente, enquanto
a Babilônia dá os deuses como gerados. Um é politeísta e outro monoteísta. Daqui a
marcada diferença de concepção religiosa. A explicação é plausível. Moisés escreveu por
inspiração divina; os escritores babilônicos escreveram as tradições correntes. A raça
hebraica tinha preservado estas tradições primitivas com mais pureza; os outros povos,
pelo seu afastamento de Deus, deixaram-nas corromper.
Além dos poemas épicos da criação, há outros fragmentos esparsos sobre outros assuntos,
encontrados nos primeiros capítulos de Gênesis. O sábado babilônico é consagrado
especialmente num "tablet" em que Marduque e Zarpanite dão uma festa, cujo conteúdo
doutrinário se assemelha muito ao quarto mandamento (Êx. 20:9-11).
Através da imensa literatura achada nas escavações feitas nas velhas cidades
orientais, têm-se encontrado pedaços de poemas descrevendo especialmente certas fases
mais importantes da vida nos primeiros dias da criação. A queda, por exemplo, mereceu
especial menção. Há uma lenda em que a queda é descrita com quase tanta minúcia como
no terceiro capítulo de Gênesis. O Adapa babilônico parece-se com o Adão da Bíblia.
Aquele, como este, cresceu em conhecimento, o qual era uma dádiva da divindade. Adapa
pode quebrar a asa do vento do sul e ir além dos limites impostos pela divindade. Adão foi
tentado pelo demônio e desejou tornar-se semelhante a Deus. Ea, o deus que tinha
permitido a Adapa tornar-se sábia, temeu que este lhe usurpasse a imortalidade, como
Jeová julgou que Adão pudesse chegar à árvore da vida e viver para sempre. Ea relatou
uma mentira a Adapa, quando ele estava para sair da presença do supremo deus, Anu, a
fim de evitar que comesse do fruto que o faria imortal. Finalmente, Adapa foi ferido com
doenças e contínua tribulação, como resultado de sua falta. Isto corresponde à narrativa
de Gênesis 3:17. Como Adão foi vestido de peles, assim Adapa foi coberto com roupa
especial por Anu. Em muitos pontos, pois, as duas histórias não se assemelham, mas em
muitos outros se assemelham. Entretanto, não sofre dúvida, que os dois povos possuíam
as mesmas idéias sobre a criação e a queda dos primeiros habitantes da terra.
Como o Gênesis, os mitos babilônicos nos falam da longevidade dos seus primeiros
homens. Comparando as duas narrativas nota-se que até os próprios nomes dos
antediluvianos são semelhantes em muitos casos.
O dilúvio mencionado em Gênesis teve repercussão universal, visto como foi
cantado e reduzido à escrita por este antigo povo babilônico. O cântico mais importante
contém 205 linhas, em que é narrada a maneira por que vieram o dilúvio e a destruição
dos homens. Em ambas as narrativas houve uma revelação divina ao herói fiel, enquanto
que a catástrofe veio sobre todo o resto da raça sem ser percebida. Em ambos os casos há
uma arca, pichada ou betumada por dentro e por fora. Quase todos os eruditos crêem
haver íntima relação: entre as duas descrições, dada a forma dos detalhes de ambas. A
linha 58 dá as dimensões da arca. "Segundo o seu plano, suas paredes eram de 120 cúbitos
de alto, e (59) 120 cúbitos correspondentes ao comprimento." Linha 94: "Eu embarquei no
navio, e fechei a porta." Linha 99: "0 deus Adá trovejou no meio (do espaço)." Linha 147:
"Eu trouxe uma pomba e deixei-a ir" e (148) "a pomba ia e voltava e não achava descanso,
e voltava". Linhas 151-154 descrevem o corvo indo e vindo, sem encontrar lugar para
descanso.
Somente mais um documento antigo desejo mencionar, o qual, ainda que não tenha
relação direta com a história de Gênesis ou do Pentateuco, nos ajudará a compreender o
grau de adiantamento político e social dos povos contemporâneos. No capítulo 14 de
Gênesis é mencionada uma célebre batalha entre quatro reis babilônicos e cinco
palestínicos. Um dos reis babilônicos traz o nome de Anrafel, que era aliado dos outros
três. Este Anrafel é geralmente identificado com Hamurabi ou Hamurapi, antigo rei de
Babilônia, do ano de 1980 a.C. Este poderoso monarca foi o sexto rei da primeira dinastia
babilônica e deixou-nos numerosos documentos sobre seu governo. Conforme Gênesis
14:1, ele reinou na mesma terra de Ninrode (Gên. 10:10), o fundador da mais antiga
civilização. Sem que seja possível determinar quantos anos depois de Ninrode ele
governou, parece que foi sobre os diversos reinos do tempo de Ninrode que Anrafel
organizou um dos mais famosos impérios antigos. Ao historiador moderno é impossível
dizer que mudanças sofreram estes povos no decorrer dos tempos, dada a carência de
documentos. Apenas pode fazer cálculos, e os mais prováveis dão o velho império
ninrodiano como dividido e subdividido, sobretudo por causa da confusão das línguas, e
novamente unido debaixo do cetro de Hamurabi. Convém lembrar que ele foi
contemporâneo de Abraão e talvez reinasse em Ur mesmo ou estendesse até ali seus
domínios. O célebre código de leis, promulgado no seu tempo e sob sua direção, é o mais
admirável que nos vem daquela época. O prólogo contém 700 linhas sobre a vida e
grandeza do autor. Os mais aproximados cálculos dão o número total de 282 leis sobre
todos os negócios e assuntos sociais, civis e legais. Pena que uma boa parte se tenha
perdido, mas o restante, legível e intacto, é suficiente para nos mostrar o grau de cultura
da terra de Abraão.
O mais admirável deste código é sua analogia com as leis de Moisés. Não é possível dar
aqui mais que uma pequena amostra desta similaridade, podendo o leitor examinar
melhor este documento no livro do Dr. Ira M. Price, The Monuments and the Old
Testament".
COMPARAÇÃO DOS DOIS CÓDIGOS
Êxodo 21:2 Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas no sétimo será forro, de
graça.
Hamurabi - N. 117 Se um homem estiver em dívida e vender sua mulher, filho ou filha, ou
os entregar para servidão, por três anos trabalharão na casa do comprador ou senhor; no
quarto ano serão livres.
Êxodo 21:15 O que ferir seu pai ou sua mãe certamente morrerá.
Hamurabi - N. 195 Se um filho ferir seu pai, eles lhe cortarão os dedos.
Êxodo 21:28 E se algum boi escornear um homem ou mulher, que morra, o boi será
apedrejado, certamente, e a sua carne se não comerá; mas o dono do boi será absolvido.
Hamurabi - N. 250 Se um touro, passando pela rua, ferir um homem e este morrer, este
caso não tem culpabilidade.
Êxodo 22:2 Se o ladrão for achado na mina e for ferido, e morrer, o que o feriu não será
culpado do sangue.
Hamurabi - N. 22 Se um homem for encontrado com o roubo, e for preso, tal homem será
morto.
Estas são apenas algumas das muitas analogias entre as leis de Moisés e as de
Hamurabi. Moisés viveu pelo menos 500 anos mais tarde, e a grandeza e sublimidade de
suas leis, sob o ponto de vista humano, não nos deve admirar, visto que séculos antes dele
já havia países onde as leis eram cuidadosamente feitas e observadas.
CAP. IV - RELAÇÃO E CRÍTICA SOBRE AS ANTIGAS TRADIÇÕES E O LIVRO DE GÊNESIS
Sobre o Código de Hamurabi e as leis de Moisés tem-se feito sérias restrições,
alegando alguns críticos que, visto Hamurabi preceder Moisés, certo este copiou as leis
daquele. Concedendo que uma resposta formal sobre tão delicado assunto seja difícil,
pode-se ajuntar que, não obstante a similaridade entre os dois códigos, há uma multidão
de diferenças que tornam os dois inteiramente independentes. Por outro lado, devemos
ver que muito antes de Moisés escrever as suas leis, já o mundo tinha conhecido grandes
intelectualidades, como vimos, e que havia leis comuns a muitos povos. Se Moisés usou
leis já em prática em outros países, ou pelo menos certos princípios ou substância dessas
leis, certo lhes deu tanto nova interpretação, como novo significado. A sociedade do
tempo de Hamurabi, comparada com a de Moisés, oferece tão grande contraste que ainda
que Moisés tenha usado material existente, lhe deu uma aplicação tão espiritual e étnica
que, pode dizer-se, suas leis pouco ou nada têm que ver com outras existentes.
Sobre as tradições babilônicas relacionadas com a história da criação, queda, dilúvio etc.,
não é fácil dar também uma resposta satisfatória. O que se tem dito e escrito tanto
deslustra como ilustra a maravilhosa narrativa dada por Moisés. Os argumentos podem
reduzir-se a três:
1. Que Moisés escreveu sua história inteiramente debaixo da direção divina, nada
sabendo de quaisquer outras narrativas congêneres existentes anteriormente.
2. Que Moisés conhecia as diversas tradições correntes, tanto no Egito como em
Babilônia, e, ao escrever sua cosmogonia, se serviu delas e as refundiu, dando-nos, assim,
uma história de segunda mão.
3. Que ele, conhecendo as diversas narrativas existentes, e sendo levado a escrever a sua,
por ordem expressa de Deus, usou elementos verazes nas já existentes, não porque
fossem correntes e aceitos, mas porque eram verdadeiros, escrevendo sua cosmogonia de
acordo com a verdade histórica, servindo-lhe de guia o Espírito de Deus, para relatar o que
nas outras estava falseado e para ajuntar o que nelas tinha faltado. (1)
Não é fácil dizer uma palavra que nos ponha a salvo de fazer injustiça a Moisés e à
Revelação divina. Devemos ser muito cautelosos. Não há dúvida de que estas tradições
são muito antigas e que delas Moisés devia ter conhecimento. Elas são patrimônio de
todas as raças primitivas. Os hindus, os egípcios, os babilônios, os assírios, os gregos e os
romanos, todos, enfim, têm tradições mais ou menos correlacionadas com Gênesis. Isto é
facilmente explicável. Todas as raças provieram de um mesmo tronco. Até que se deu a
dispersão, por causa da confusão das línguas, todos os povos mantinham a vida em
comum. A primeira pessoa a quem estas verdades foram comunicadas foi Adão. Como,
não sabemos, mas Deus lhe disse, por qualquer forma a nós desconhecida, a maneira
como tinha criado o mundo. O resto das narrativas ele sabia por experiência. Digo que
Deus lhe deu a conhecer algo sobre a criação do universo, porque doutra forma não seria
possível encontrar esta mesma história narrada por tantos povos diferentes e com visos
tão marcados de analogia. Teve uma origem comum. Adão foi contemporâneo de
Matusalém por 243 anos. Aquele podia ter conversado por longo tempo com este sobre
as primitivas coisas do mundo. Matusalém foi contemporâneo de Noé por 598 anos.
Abraão nasceu dois anos depois de Noé morrer, o que significa que Terá, seu pai, foi
contemporâneo de Noé por muitos anos. Deste modo Adão pôde contar a Matusalém a
história dos primeiros dias do mundo, Matusalém a Noé, e este a Terá, pai de Abraão.
Terá morava em Babilônia, onde estas tradições eram correntes, de modo que quando
Abraão emigrou de Ur para a Palestina foi portador de todas estas tradições, as quais ele,
por sua vez, ensinou a seus filhos, e, portanto, no tempo de Moisés toda a nação era
conhecedora delas. É crível que devido à contínua separação do povo de Abraão e seus
descendentes, estas tradições fossem conservadas mais puras, de modo que no tempo de
Moisés correspondessem mais ao original que qualquer outra. Já notamos que todas as
demais são politeístas e têm braços extravagantes na concepção religiosa. A de Moisés,
além de ser genuinamente monoteísta, apresenta-se de forma mais racional e crível.
Com este conhecimento tradicional, que Moisés indiscutivelmente possuía, não lhe foi
preciso recorrer a outras tradições para poder escrever o livro de Gênesis. Assim, nem ele
copiou dos outros, nem os outros copiaram dele. Todos tinham a mesma fonte de
informação. Deus guiou seu servo a escrever com a precisão que todos lhe reconhecem, e
nisto achamos a explicação da diferença entre sua narrativa e as outras e sua veracidade
sob todo e qualquer ponto de vista. Por mais sábio que Moisés fosse, e por mais acurada
que fosse a tradição que possuía, se não tivesse a direção de Deus, não lhe seria possível
escrever sobre assunto tão melindroso e inacessível, com a precisão com que escreveu.
Descansemos, pois, na maravilhosa história que Deus nos deu por intermédio de Moisés, e
não nos preocupemos com as demais narrativas existentes no seu tempo ou antes dele.
Não foram somente os caldeus que, como já vimos, tinham tradições a respeito de Deus
ou dos deuses, do mundo e dos homens. A teologia do Egito, onde Moisés morou com o
seu povo, dizia como Osiris, o sol, criara os sete grandes deuses planetários, os doze
deuses menores dos sinais de zodíaco, e como estes, por seu turno, geraram vinte e oito
para presidir as estações da lua, setenta e duas companheiras do sol e muitas outras
divindades. A teologia hindu fala do Espaço produzindo primeiro água, colocando nela o
germe que, depois de algum tempo, gerou o grande ovo, de grande esplendor, para,
finalmente, este gerar o grande Brama, o pai das criaturas. Os gregos, mais
antropomórficos em suas concepções religiosas, fizeram uma multidão de deuses, segundo
as paixões humanas, cada qual com sua função, sendo o pai de todos eles o grande Zeus.
Os romanos, que herdaram dos gregos a mitologia, tinham o seu Júpiter com um séquito
infindável de divindades, cada qual com a sua função administrativa no mundo material e
espiritual.
Nenhum povo se avantajou aos mesopotâmios, nas especulações sobre a origem do
mundo, dos deuses e dos homens, decerto porque eles estavam mais perto da fonte
original, visto que cada dia se torna mais plausível a idéia da origem mesopotâmica da raça
humana. (1) Mas isso não diminui a suposição de uma origem comum para todas as
tradições, pelo contrário, quanto mais se devassa a vida dos antigos povos, mais se
acentua essa possibilidade. Desde que a raça tenha sido criada por Deus (e até agora
ciência alguma produziu qualquer argumento de valor em contrário, nem a antropologia,
nem a biologia, nem a história), é mais natural que todas as verdades de Gênesis
encontrem eco por toda a terra.
Moisés, além de ter sido criado e educado no Egito, o grande centro de cultura da época,
igual ou superior à Babilônia, devia conhecer a civilização dos caldeus e dos hiteus, os
maiores povos daquele tempo, e também a dos outros povos menos importantes.
Naturalmente, estava capacitado para produzir o livro que produziu, mesmo que não se
levasse em conta a inspiração divina que, sem a menor dúvida, o assistiu, pois que, para
escrever um livro como Gênesis, ou Deus o escreveu ou Moisés foi inspirado por Ele. Se,
como pensam alguns, a família de Moisés descendia diretamente do grupo que preservou
o monoteísmo com todas as tradições mais ou menos puras, maior razão temos ainda para
aceitar que, ao mesmo tempo que ele conhecia as várias maneiras de interpretar os
conhecimentos da vida primitiva, conhecia também os que se aproximavam da verdade.
Entretanto, parece que Moisés não pensava, ao escrever o seu livro, em dar uma resenha
das tradições das origens do universo, da vida e do homem. Parece assim, porque se ele
tivesse tido essa preocupação ou se interessasse ao plano divino dar ao mundo um tratado
sobre astronomia, geologia, etnologia etc., outra seria, a estrutura do livro. Ele tinha que
escrever a história da família eleita, para, por sua vez, escrever a história da nação e o seu
papel no cenário da redenção da raça humana. Arites de fazer isso, deu um mero esboço
das primeiras coisas, e o deu tão rápido, com linhas tão espaçadas, que mal se divisa, na
sua estrutura, qualquer plano, mesmo sintético, de dar uma história da criação. Não há,
portanto, por onde se buscar paralelismo entre as várias narrativas e a narrativa de
Gênesis, como não há por onde se exigir uma conformidade científica da narrativa dada
com os rigores da ciência moderna. Não sendo uma narrativa feita para satisfazer a um
estudo comparativo, com as crenças gerais, nem tampouco uma obra de cunho científico,
o seu trabalho, sintético e conciso, feito na linguagem do povo, resiste às mais duras
provas a que a ciência o queira submeter, no sentido da precisão e fidelidade quanto ao
fenômeno criativo.
O livro de Gênesis obedece assim a um duplo plano, como já foi notado por mais de uma
vez. É o livro das origens, do mundo, do homem, do pecado e da família escolhida.
Os primeiros onze capítulos dão-nos a história da raça em geral. O restante, dá-nos
a eleição da família e suas gerações. O esboço de Moisés é o seguinte:
Introdução geral ao livro, Gênesis 1:1.
Introdução à primeira parte do livro, Gênesis 1:2-2:23.
Daqui em diante vêm as gerações, ou divisões do livro.
1. "Gerações dos céus e da terra", Gênesis 2:4-3:26.
2. "Este é o livro das gerações de Adão>, Gênesis 5:1-6:9.
3. "Estas são as gerações de Noé", Gênesis 6:9-9:29.
4. "Estas são as gerações dos filhos de Noé", Gênesis 10:1-11:9.
5. "Estas são as gerações de Sem", Gênesis 11:10-11:26.
6. "Estas são as gerações de Tera", Gênesis-11:27-25:11.
7. "Estas são as gerações de Ismael", Gênesis 25:12-18.
8. "Estas são as gerações de Isaque", Gênesis 25:19-35:29.
9. "Estas são as gerações de Esaú", Gênesis 36:1-37:1.
10. "Estas são as gerações de Jacó", Gênesis 37:2-50.
Dez gerações ao todo formam o esqueleto deste livro. Se incluirmos as duas
introduções, teremos o livro dividido em doze partes.
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
(Gên. 1:1)
"No princípio criou Deus o céu e a terra." Moffat traduz "céus e terra" por Universo,
tradução muito adequada. Este verso, em toda a sua simplicidade e grandeza, está
desafiando as sutilezas dos cientistas e arrancando êxtase dos crentes na revelação Divina.
Nada lhe pode ser acrescentado e nada lhe pode ser tirado. Quanto o cosmos contém de
maravilhoso e sublime e complexo está exarado nesta sentença.
A palavra "Princípio" significa começo de tempo e deve ser distinguida da palavra
princípio em João 1:1, onde significa eternidade. Houve, portanto, um tempo em que não
havia mundo ou universo. O universo existe desde o seu princípio. Segundo esta
declaração, ele não é eterno. Só Deus é eterno.
O tempo ou época da criação foi o "Princípio". Medir este princípio ou época ninguém
pode. Podia ser um segundo ou um bilhão de anos. Mas parece consentâneo com o
espírito do verso admitir que o ato da criação foi um "fiat" de Deus.
Alguns teólogos imaginam que este ato criador de Deus trouxe o universo ao estado
em que o encontramos no sexto dia, e que o caos que encontramos no verso 2 foi o
resultado da queda de Satanás. Isto, porém, é atribuir demais à queda de um anjo. A
matéria de que se compõe o universo foi criada no princípio; a ordem e embelezamento
vieram gradualmente, corno se encontra nos versos seguintes. O verso 1 contém um
parágrafo inteiramente distinto do verso 2, e ensina que a matéria foi criada antes da vida
e que, como crêem muitos cientistas, um período de imensa duração mediou entre o ato
do primeiro verso e do segundo. Este verso põe-nos face a face com o problema, hoje tão
debatido, de Deus ter criado o mundo ou de o mundo criar-se a si mesmo. Para
aceitarmos a segunda teoria, temos de reconhecer o mundo como um Deus, o que
equivale a uma simples troca de personalidades, um trocadilho de termos. Se Deus o
criou, como diz Moisés, então Deus é auto-existente e eterno. Se o mundo se criou a si
mesmo, é também auto-existente eterno. Temos simplesmente de escolher a que Deus
vamos adorar e qual ficará entronizado no universo: o Deus da Bíblia, o Ser eterno, livre,
Inteligente e bondoso, ou o deus materialista, cego, inconsciente e fatalista. O problema
não é difícil, e sim simples questão de escolha; é mais simples e necessário assim como a
Bíblia e a razão no-lo apresentam. Há mais consolo e esperança no Deus da Providência do
que no deus natureza.
O verbo Criar (Bará) significa, segundo as melhores autoridades hebraístas, criar sem o
auxílio de material preexistente. Criar do nada. Gesenius, o grande hebraísta, em sua obra
"Thesaurus", diz: "O uso deste verbg em kal (a conjugação aqui empregada) é inteiramente
diferente da significação primária deste verbo (cortar, formar, dar forma) e é usado mais
como um novo produto do que uma elaboração de alguma coisa já existente. O primeiro
verso de Gênesis ensina a criação original do universo em sua rude e caótica forma,
enquanto o resto do capítulo primeiro dá a elaboração e distribuição da matéria criada, e a
conexão de ambas as seções é perfeitamente clara." Muhlan e Volk, em sua nova edição
de Gesenius, Handwõrterbuch, dizem: "Bará é usado somente da divina criação e nunca
com acusativo de material. Dilmann diz: "Os hebreus usavam somente a conjugação do
Piel (forte) quando falavam da ação humana de formar ou dar forma, enquanto só usavam
kal, quando se referiam a Deus." Ewald diz: "Há uma distinção marcada e precisa da
laboriosa e artificial formação pelo homem, e uma espontânea e fácil criação de qualquer
coisa por Deus. ( acusativo de material nunca se encontra em kal, como se encontra com
as palavras que expressam formar ou fazer." Delitzsch diz: "A palavra Bará, na sua
etimologia, não exclui a existência de material prévio. Tem, como mostra a forma Piel, a
idéia fundamental de cortar ou arrancar. Mas, como em outras línguas, as palavras que
definem a criação de Deus têm a mesma idéia etimológica fundamental. Bará adquiriu um
sentido idiomático da criação divina, tanto no reino natural, como, no histórico ou
espiritual, de modo a expressar a existência de alguma coisa não previamente existente.
Bará nunca se usa a respeito da criação humana, diferindo desta forma de asah, Yatzar,
valah, que se usam tanto a respeito de ações humanas como divinas. Nunca se usa com
acusativo de material, e por esta razão se conclui que o vocábulo define o ato criativo de
Deus sem qualquer limitação, e seus resultados, quanto ao próprio material como sendo
inteiramente novo." Kalisch diz: "Deus trouxe o universo à existência (criou-o do nada),
sem o emprego de matéria informe, preexistente ou coeva com Ele mesmo." Paginus tem
a mesma definição: "Bará é uma palavra apropriada unicamente a Deus como criador do
mundo do nada . O grande comentador Connant, diz: "Criou para fazer (Gên. 2:3), criou do
nada, a fim de que pudesse fazer tudo que é relatado nos seis dias da criação." Oehler,
teólogo alemão, (1) diz: "Pelo absoluto Bereshith - no princípio - a criação divina é fixada
como absoluto princípio, não como um trabalho sobre alguma coisa que já existia." O
verso 2 não pode ser o princípio de uma história, porque começa com a conjunção.
Apenas os que excluem o sobrenatural da vida do universo têm escrúpulos em aceitar a
existência do mundo como um ato original de Deus, e o fazem porque não podem crer que
do nada possa vir alguma coisa; mas têm de lançar mão de outras explicações muito
absurdas à razão e ao bom senso. "O autor da carta aos Hebreus 11:3 diz que as coisas
não vieram das que são, ou, literalmente, as coisas que se vêem não foram criadas das que
se viam (comp. Prov. 8:22).
A palavra Deus aqui traduzida vem da palavra hebraica Elohim, que significa literalmente
"deuses", mas é empregada com o verbo no singular. O agente da criação é pluralístico em
pessoa; quanto à ação é singular. Mais de uma pessoa agindo, mas uma só ação. Isto
combina com o que João diz: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus... Todas as coisas foram feitas por Ele e sem Ele nada do que foi feito se
fez" (1:1-3). O Dr. Strong admite francamente a co-participação da Santíssima Trindade na
criação, tanto por causa do texto de Gênesis como pelo teor geral da Bíblia. O verso 2 fala
do Espírito movendo-se sobre o abismo, como infundindo-lhe vida. Deus, o Pai, Deus, o
Filho, Deus, o Espírito Santo, estavam associados à obra da criação; o termo Elohim
incidentalmente afirma isto. (1)
O livro de Gênesis não afirma que há Deus, nem nega que haja Deus ou que haja mais de
um. Simplesmente reconhece a existência de Deus como governador e orientador da vida
humana. Aliás, a mesma verdade se encontra em todas as religiões. Não há a
preocupação de afirmar ou negar a existência de Deus. Isso vale por afirmar que a Sua
existência é admitida por todos os povos. É uma crença comum. O próprio nome de Deus
encontrado no Gênesis não constitui patrimônio israelita. Jeová e Elohim são os dois
nomes principais usados no Velho Testamento em relação a Deus. El também aparece em
Gênesis 22:14, e aparece em composição com muitos nomes próprios, tais como Penuel,
Meujael, Betel etc. Com certeza El era o nome mais antigo, o nome do Deus dos
patriarcas, e é usado com outros nomes de Deus como El-Shadai El-Elion e, por sua vez,
Elohim, que é uma forma pluralística do nome e certamente implica na existência da
Trindade. Moffat pensa que os hebreus começaram a usar Elohim em lugar de El, para
distinguir o Nome da forma El usada pelos pagãos. (2)
U ou Hu era o nome do Deus dos fenícios, (1) o deus dos céus, a quem os gregos
chamavam Uus e a seus auxiliares davam o nome de Eloeim. O deus dos babilônios era
também , algumas vezes El, que entre os egípcios tinha o nome de Rã. Todos os povos
cananeus e babilônios tinham o mesmo nome para o deus principal, variando muito os
nomes das outras divindades inferiores. Um nome comum e um Deus comum é evidente
entre todos os antigos. O monoteísmo mesmo parece ter sido a religião primitiva de todos
os antigos povos, e a corrupção desta doutrina deu o politeísmo. Na índia mesma, afirma
o Prof. Max Muller: "Há um monoteísmo que precede o politeísmo dos Vedas e na
invocação de seus inumeráveis deuses a lembrança de um deus, deus infinito, transparece
através do nevoeiro da sua fraseologia idolátrica como o céu azul que foi escondido por
uma nuvem passageira."(1)
Como já vimos noutras páginas, a civilização e religião espalharam-se da Caldéia para o
Extremo Oriente e o primitivo monoteísmo foi transplantado para outras terras, com o
curso do tempo advindo o politeísmo. O Prof. Max Muller traduziu um admirável hino
hindu, no décimo livro de Rig Veda, no "qual a idéia de Deus é expressa com tal precisão e
poder, que nos faz hesitar antes de negar à nação ariana um instintivo (ou antes herdado)
monoteísmo". No referido hino, que infelizmente não posso reproduzir aqui por falta de
espaço, Deus, Senhor e soberano sobre tudo e todos, é verdade continuamente
reafirmada. "Ele era a luz de ouro do princípio; foi Ele quem deu a vida, criou as
montanhas e os mundos; superintende e governa o universo; Aquele que é Deus sobre
todos os deuses e a Quem nós devemos oferecer nossos sacrifícios; a fé monoteísta ainda
fala. na linguagem de seu politeísmo." (2)
O verso que estamos considerando por si só sustenta as doutrinas fundamentais da Bíblia e
nega algumas heresias das mais populares. Ensina a unidade de Deus, declarando que ele,
somente ele, criou, no princípio, o universo. Afirma a personalidade de Deus, atribuindo-
lhe vontade e determinação. Ensina sua onipotência, em criar do nada este maravilhoso
universo. Declara sua bondade, em fazer tudo isto para felicidade do homem. Nega ao
mesmo tempo o ateísmo, afirmando que Deus foi o criador do mundo. Nega o politeísmo,
ensinando que não há muitos deuses, mas Deus foi o criador. Nega o materialismo,
afirmando a criação da matéria e, portanto, sua temporalidade. Nega o fatalismo,
aceitando a agência e liberdade do Ser Supremo com um plano inteligente e beneficente.
Nega o dualismo, afirmando a existência de um só princípio ou causa, e não dois. Nega a
emanação, atestando que o universo e Deus são perfeitamente distintos e inconfundíveis.
Nega, finalmente, a geração espontânea, atribuindo a criação, em tempo, a um ato único e
completo, excluindo a possibilidade de a matéria continuar a se criar ou a se desenvolver.
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
Teorias Que Tentam Explicar a Origem do Universo
O fato da criação do universo é tão maravilhoso, que ninguém pode dar-se ao luxo
de tentar ignorá-lo. Desde meninos nos acostumamos a olhar para cima, procurando
descobrir e desvendar o que há lá. A ciência mesma não se tem sentido desobrigada da
curiosidade que a mesma criação provoca e tem tentado por todos os meios ao seu
alcance, dar uma palavra que explique a origem das coisas e do homem. Talvez nenhuma
outra declaração, constante da literatura humana, tenha provocado tanta discussão, tanta
polêmica, como o primeiro verso de Gênesis. Ainda não está terminada a discussão. O
assunto não está esgotado. A explicação ainda não veio.
Gostaria de reproduzir nesta página tudo que se tem escrito a respeito da criação, porém
temo fazer isto, por dois motivos: Primeiro, porque talvez isso não interesse à maioria dos
leitores; segundo, porque aumentará demasiado o volume, que desejo manter dentro dos
limites de um compêndio comum. Todavia, pelo menos algumas teorias ou tentativas de
explicação sobre a origem do universo serão dadas para não se ignorar de todo o
problema.
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
Teoria da Nebulosa.
Laplace, seguido de Guiot, e antes Kant, deram-nos o seguinte esquema:
1. No princípio, Deus criou a matéria, que se encontra espalhada pelo universo e
que constitui o nosso sistema planetário e outros sistemas ainda não conhecidos. Essa
matéria teria aparecido em estado gasoso, possivelmente, hidrogênio; e como os gases
ocupam espaço muito maior que os sólidos, essa matéria original ocuparia todo o espaço
conhecido e desconhecido.
2. Toda, essa matéria se revolveria ao redor do seu eixo. Dada a sua
incomensurável grandeza, o movimento seria muito lento, de modo que um "dia" nebular
ou cósmico seria de milhões se não de bilhões de anos. Nenhum planeta hoje tem essa
revolução.
3. Com o passar do tempo, a dita matéria se foi condensando, à medida que
continuava a sua revolução ao redor do seu eixo e, à medida que se condensava, diminuía
de volume. Aumentando de rotação, assim como diminuía de volume, foi-se
transformando numa espiral, que terminaria por se desagregar em suas partes
constitutivas, formando cada parte separada de todo um mundo à parte ou, como
diríamos, um planeta. O centro dessa nebulosa, o meio do seu eixo, continuaria imutável,
enquanto as diversas partes separadas continuariam a mesma rota ao redor do seu centro
de gravitação. O nosso sol seria, pois, o centro da nebulosa, como é o centro do universo.
Não se sabe ainda qual será o planeta mais distante do sol, pois que os telescópios ainda
não puderam devassar todo o universo. Qualquer que seja o último planeta ou a última
galáxia, esse ou essa, será o extremo do eixo da matéria original. Netuno fica a um bilhão
cento e cinqüenta milhões de léguas distante do sol. Qualquer elemento material que
fique além desse planeta, significará o limite da espiral. O planeta Plutão fica ainda muito
mais longe, mas não se sabe qual a distância.
4. Da atividade desta matéria, também denominada atividade molecular, resultou,
pelo atrito, a luz. É o que nos ensina o verso 3 de Gênesis, quando Deus ordenou que a luz
aparecesse. Nesta altura da vida do universo, já os planetas estariam separados da
nebulosa original e, portanto, a nossa terra, o teatro das grandes atividades do Criador,
seria agora um grande globo de fogo ou de matéria incandescente. Teríamos então um dia
cósmico e a luz cósmica. Até aqui, tínhamos tido um universo imerso nas trevas e,
consequentemente, uma terra escura e sem forma. Agora, temos um dia glorioso. "E foi a
tarde e, a manhã, o dia primeiro." A esta luz Deus deu o nome de dia.
Esta teoria foi posteriormente desenvolvida pelo Padre Moreux, dando-lhe alguns
retoques que a tornaram mais plausível. Porque as diferenças são secundárias, deixo de
entrar em outros detalhes.
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
Teoria da Grande Explosão.
O Dr. Alexander Friedmann, matemático russo, baseado no que Einstein chamou a
teoria da relatividade, imaginou o nosso universo como uma imensa bola de hidrogênio,
que se expandiria indefinidamente, até atingir distâncias quase infinitas. Mais tarde, o Dr.
H. P. Robertson, da Universidade de Califórnia, indicou, com a ajuda dos telescópios, que
esta massa ainda continua em expansão. As distâncias são de tal monta, que as que
separam os nossos planetas uns dos outros são como nada. O Dr. Edwin P. Huble, do
Observatório do Monte Wilson, também examinou o problema e confessou que a distância
até às galáxias, que se deslocam no espaço, é simplesmente incomensurável. A mais
próxima de nós, chamada Nuvens de Magalhães, fica a 200.000 anos-luz de distância. (Um
ano-luz significa o seguinte: A luz percorre 300.000 quilômetros por segundo, portanto,
cada minuto tem apenas 300.000 X 60 e cada hora luz tem 300.000 X 60 X 60, e assim até
multiplicarmos os segundos, os minutos e as horas de um dia, e os dias de um ano. Isso
significa que um raio de luz, partindo daquela multidão de estrelas, calculadamente em
100 milhões, leva 200.000 anos-luz para chegar até nós. Todas estas observações se
prendem ao fato da existência original da matéria, cujo raio seria o da nebulosa de
Laplace.
Feitas estas observações, nasceram muitas perguntas na mente dos astrônomos,
como nascem na de qualquer um de nós. Há quanto tempo teria ocorrido a Grande
Explosão? Como se teriam formado as estrelas e as galáxias? Como teriam sido criados os
vários elementos de hélio, oxigênio, ferro, urânio e outros, encontrados nestes corpos
celestes? Foram perguntas feitas por cientistas e que demandavam uma resposta.
Com a construção da gigantesco telescópio do Monte Palomar, quando foi possível
devassar o universo com mais precisão, quase toda a teoria da Grande Explosão foi
destruída. Verificada a existência de ferro e outros minerais nos elementos celestes,
pergunta-se: "De onde teriam vindo? Se o ovo original seria composto apenas de
hidrogênio, como é que se encontram outros elementos no espaço? Ninguém sabia
explicar tal coisa. Depois, os cientistas concluíram que as estrelas queimam hidrogênio
que, por sua vez, se converte em hélio, extraindo energia, no curso desse processo. No
núcleo de uma estrela ocorre a elevada temperatura de 20 milhões de graus centígrados e,
ao se esgotar o hidrogênio, fica o hélio, e este, por sua vez, se transforma em ferro, cobre,
chumbo e em todos os outros metais nossos conhecidos. A estrela, pois, é uma espécie de
forno transformador de metais. Quanto a nós, nenhuma dúvida levantamos a esta teoria,
porque a matéria de que se compõe uma estrela é a mesma de que se compunha o
universo ao ser criado. Os minerais que se encontram na terra encontram-se nas estrelas
e nos planetas, e talvez noutros astros que ainda não conhecemos.
Segundo esta teoria, o universo resultou, no que tange a uma existência cósmica, de uma
Grande Explosão. Muito bem. Quando teria ocorrido a tal Grande Explosão? De início,
aceita-se que seja mais velha que a terra ou que o todo seja mais antigo do que esta parte
que chamamos terra. O Dr. Sandage calculou que as estrelas da nossa galáxia devem ter,
pelo menos, 12 bilhões de anos. O Dr. William Fowler calculou que pequena porção de
urânio e tório encontrada na terra seria proveniente das estrelas, que teriam explodido há
muito tempo e atirado na terra estes elementos. Este processo de queimar hidrogênio e
transformá-lo em hélio, e, por sua vez, em urânio, tório e outros elementos, leva
justamente 12 bilhões de anos. Então a idade da Grande Explosão é precisamente de 12
bilhões de anos. Confessamos que é muita sabedoria fazer todos estes cálculos. Outros
elevam esta idade a 70 bilhões de anos.
Resta ainda determinar a idade do universo e sua origem, pois que não basta constatar os
elementos existentes; queremos saber de onde vieram, de onde veio o hidrogênio que as
estrelas queimam, para o transformar em hélio etc.
Tentando dar a idade do universo, o Dr. Martin Ryle, de Cambridge, descobriu, com
o auxílio do telescópio, a localização de milhares de objetos, galáxias e quasars, e que tais
elementos emitem ondas, que devem ser medidas, para por elas se chegar à idade do
mundo. Afirma mais, que a antiga radiação, rodando pelo universo, deve chegar até nós
agora, com uma onda de energia baixa. Qual seria a intensidade da onda original?
perguntam alguns. Se puderem responder a essa pergunta, então poderão dar a resposta
quanto à idade do universo. Mas, e quanto à sua origem? "Já nos enganamos demais",
afirmam. Não temos meios de medir o espaço ocupado pelas mais distantes galáxias, de
maneira a podermos dizer qualquer coisa de monta. Estamos na infância da Cosmologia.
Esta declaração pessimista para os sábios, quanto ao tamanho do universo, maravilhoso
como é, e ainda mais quanto, à sua idade, deixa sem explicação dois fatos, que podemos
considerar secundários. O que nós queremos é que os cientistas nos digam de onde velo o
"ovo" que gerou os mundos, as galáxias, as estrelas, os metais e tudo mais. Isso que nós,
estudantes, temos o dever de pedir, ao mesmo tempo que agradecemos esforços e tempo
gastos nestas pesquisas, que de modo nenhum desprezamos.
O melhor é darmos a palavra ao Dr. Moisés: "No princípio criou Deus o céu e a terra (o
universo).. e, pronto, está dito. Até que se prove o contrário, é esta a sabedoria que
aceitamos como verdadeira.
Há ainda outras teorias, que nem desejo expor, tais como a teoria do equilíbrio, a
explicar que no princípio tudo era como uma planície. Não houve tal coisa como a Grande
Explosão, mas um desdobramento de matéria em forma de ondas que se espraiavam pelo
universo, até atingir distâncias incomensuráveis. Esta teoria, diferindo da outra ou das
outras, não contradiz nenhuma delas, pois, como acabamos de ver, a extensão da matéria,
no universo, é qualquer coisa fora de medida.
Para concluir esta digressão, talvez inútil e fastidiosa, dou a seguir a lista dos planetas até
agora conhecidos que, como se conclui pelas mais recentes descobertas científicas, são
apenas partes da matéria original que se estende pelo universo em fora. O autor não
podendo perfilhar qualquer teoria dentre as apresentadas, se inclina mais para a de
Laplace, mesmo que esteja cientificamente posta de lado. Como teoria, merece o nosso
exame.
CAP. V - ORIGEM DO UNIVERSO
Nota sobre a Ordem em Que Se Encontram os Planetas no Espaço
1) O Sol como centro.
2) Mercúrio fica a 14 milhões de léguas distante do Sol, tem uma rota igual à da
Terra e é 5 vezes menor que ela.
3) Vênus fica a 27 milhões de léguas, tem os dias iguais aos nossos, e um ano de 224
dias dos nossos.
4) A Terra fica a 28 milhões de léguas do Sol, tem um satélite, a Lua. O eixo da Terra
tem 3.000 léguas.
5) Marte fica a 35 milhões de léguas. É do mesmo tamanho da Terra.
6) Grupo de asteróides, provavelmente restos de algum planeta que explodiu.
7) Júpiter fica a 200 milhões de léguas do Sol, é 1.400 vezes maior que a Terra. O ano de
Júpiter tem 12 dos nossos, e um dia em Júpiter tem apenas dez horas.
8) Saturno, colocado a 364 milhões de léguas do Sol, é 734 vezes maior que a Terra
e gasta 30 anos para dar uma volta em torno do Sol. Entretanto, os seus dias são de 10
horas, como os de Júpiter. Tem 8 luas. É cercado por uma série de anéis, que giram em
volta dele.
9) Urano. Pouco se sabe deste planeta. Gasta 84 anos dos nossos para dar uma
volta em torno do Sol.
10) Netuno é 103 vezes maior que a Terra e fica à distância de 1 bilhão e 150 milhões de
léguas de nosso planeta. Um ano de Netuno é igual a 164 anos dos nossos.
11) Plutão, cuja distância não é certa. Há ainda outros planetas, mas não há
instrumentos capazes de os observar. Há cometas cujas curvas geométricas indicam uma
distância de 32 bilhões de anos-luz.
Como se vê, o extremo do nosso universo é ainda uma incógnita. Por esta amostra
real do nosso mundo, e pela disposição em que se encontram os planetas, parece óbvio
que o sol fica no centro do sistema cósmico, assim como seria o centro da massa que
formaria a nebulosa original. A imensa tarde tinha desaparecido, e um grande dia tinha
chegado. "E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro", verso 5 do capítulo primeiro. A esta luz
Deus chamou dia.
Esta ligeira amostra a respeito das investigações científicas leva-nos ao primeiro dia
da criação. Se o caso se deu como os sábios dizem, deu-se pela direção divina, porque o
texto sagrado diz: "Disse Deus: haja luz, e houve luz. O estado da terra descrito pelo verso
2, de que falarei adiante, descreve o estado da terra durante o período que medeia entre
sua formação e o aparecimento da luz. Para o que crê na inspiração da Bíblia tanto faz que
este processo se desse mediante certa lei ou leis que o Criador mesmo tenha dado à
matéria ou se ocorresse pela intervenção direta de Deus. Em qualquer caso foi trabalho
divino.
Sobre a habitabilidade dos planetas e o gênero de criaturas que porventura lá morem nada
se sabe. A filosofia espírita contenta-se em imaginar essa vida, que serve para a
purificação dos espíritos. O que se sabe, pelo uso dos poderosos telescópios, é que não há
vida humana em qualquer desses planetas. A vida dos marcianos, se eles existissem, seria
notada facilmente. Poderia ser visto um trem em movimento, um alto edifício, qualquer
obra de arte ou se lá houvesse gente incomparavelmente mais desenvolvida que a da
terra. Parece, pois, que a vida interplanetária não passa de uma vaga suposição, e mesmo
que vida haja por esses mundos perdidos, será vida tão diferente, que nenhuma relação
terá com a vida terrestre. Os lunícolas, por exemplo, não têm outra existência além da
especulativa, pois já se sabe que a vida seria impossível ali. A Astronomia é admirável nas
suas observações, mas isso nada tem que ver com a vida humana e muito menos com a
salvação da alma. Depois da segunda edição deste livro, há 26 anos passados, grandes
progressos foram feitos no terreno astronômico. A lua foi, finalmente, devassada e seu
solo visitado por engenhos humanos. Os russos e americanos conseguiram fazer pousar
nela um aparelho espacial e obtiveram diversas fotografias do seu solo. O que se sabe é
que possui um solo poroso, duro, sem qualquer manifestação de vida, coisa que há muito
ficou devidamente reconhecida. Igualmente, os russos conseguiram pousar em Vênus.
Que novidades têm trazido essas descobertas para modificar o ensino da Bíblia?
Nenhuma, absolutamente. Apenas, se vai confirmando cientificamente o que a Bíblia
ensina. Nos últimos tempos, têm aparecido nos céus sinais luminosos a que se deu o
nome de Discos Voadores, chegando alguns a tomar tais sinais como engenhos mandados
pelos marcianos.
De tanto se discutir o assunto, chega-se à conclusão de que nada de real existe, tudo não
passando de ilusão ótica. Nenhum observatório ou centro científico ousou afirmar
qualquer verdade que desminta as nossas afirmativas de que a vida é um patrimônio do
planeta terra, e que só aqui o Criador destinou para desenvolver o Seu plano de Revelação.
Até onde chegam as conclusões dos astrônomos, só a terra oferece condições capazes de
manter a vida, pois não basta supor a existência de seres viventes, é necessário que
condições outras propiciem a existência e continuidade de quaisquer seres. No estado em
que está o problema, se vida houvesse noutros planetas, seria de tal modo diferente da
vida terrena, que escaparia ao conceito de "vida". Nós cremos que os seres humanos
continuam vivendo, seja no céu, seja noutro lugar; mas que relação há entre o modo de
vida do espírito e a vida plena como a conhecemos? Portanto, este livro, que já conta seus
50 anos de existência, ainda não viu modificados os conceitos então emitidos. O problema
da criação, é um problema de REVELAÇÃO, problema decorrente do amor de Deus, que se
expressa objetivamente na criação. Daí, o não ser admissível que esta revelação tenha,
por necessidade, de ser difusa com um sistema aqui, outro em Marte ou Vênus e assim por
diante. Se assim fosse, este amor divino teria mais de uma expressão; já não seria
harmônico.
A teoria de Laplace que esbocei está hoje desacreditada, por ser contraditada pela sua
própria mecânica, porque pelos seus princípios todos os astros deviam girar no mesmo
sentido; entretanto, um satélite de Júpiter, um de Saturno e diversos de Urano gravitam
em sentido contrário, o que torna inexplicável a mecânica da teoria Laplaciana. O Padre
Moreux tem contribuído, ultimamente, com dados valiosos para a explicação do mistério,
mas o fato é que cada novo sistema que surge deixa logo clara a necessidade de outro. O
mistério da criação e da formação ou preparação do universo continua insondável, e, até
que a ciência nos diga como foi, preferimos ficar com o ensino da Bíblia e aceitar pela fé o
que não pode ser explicado pela inteligência. O crente não tem que temer as
investigações científicas, porque quanto mais coisas elas revelarem, mais acreditada ficará
a Bíblia.
Hoje, aceita-se que a terra, para chegar ao estado sólido, passou por grandes
transformações, que teriam levado miríades de anos, e mesmo depois de ter chegado a
este ponto ainda não teria estado em condições de receber a vida. Deus esperou uma
eternidade para criar a matéria, e podia também esperar bilhões de anos para esta matéria
criada chegar ao ponto de receber a vida que lhe era destinada. Deus fez tudo como a
Bíblia diz. Dado que as teorias cosmogônicas sejam verdadeiras ou tenham pelo menos
alguma verdade sobre a questão em foco, que há demais nisso sobre a criação? Somente
que Deus, em lugar de completar a obra num segundo, levou seis dias ou seis períodos
muito longos ou muito breves. Quem será capaz de questionar o poder do Criador? Quem
tem o direito de questionar o método que ele em sua infinita sabedoria usou? Sabemos
que ele faz as coisas, mas não sabemos como. (1)
Depois destas considerações, talvez dispensáveis, voltemos à análise do primeiro verso. A
expressão "céus e terra" deve ser compreendida por Universo. (2) É assim que os melhores
comentadores traduzem. Compreende tanto a nossa terra, o nosso planeta, como todos
os outros que viajam pelo espaço. Não entenderíamos céus, por certo, no sentido do lugar
da habitação divina e dos seres celestiais. Quando olhamos para cima e dizemos que
vemos o céu, estamos apenas usando linguagem acomodativa, estamos vendo a expansão,
o azul do firmamento, que parece com uma abóbada, por causa da ilusão ótica. Deus
criou, pois, tudo que se encontra nos espaços, tudo a que Moisés dá o nome de céus e
terra, tudo que fazia parte da chamada nebulosa primitiva. Quanto à criação destes céus e
terra cremos, sem dúvida alguma, que foi num momento, num fiat. Não foi assim com o
arranjo ou preparação destes céus e terra.
Tem-se questionado o método da linguagem que Moisés usou. Se ele sabia que a
expressão "céus e terra" compreendia o universo, no seu todo, por que não usou então
linguagem diferente? Pela mesma razão que nós hoje cometemos a mesma falta. Esta era
a linguagem entendida pelo povo, e ele não escreveu para satisfazer às inquirições
astronômicas dos nossos dias, mas para satisfazer às necessidades espirituais do povo de
então. Estava dando a revelação de Deus a esse povo e convinha que esta revelação fosse
dada em termos vulgares. Pouco se sabia então de Mecânica, Astronomia, Geografia e
muitas outras ciências de nossos dias. Havia, sim, conhecimentos parcos de Astrologia, e
certos princípios adquiridos pela observação, mas não havia um corpo de doutrinas sobre
qualquer ramo de conhecimentos, e, se houvesse, ainda assim ele escreveria para o povo
compreender. Ainda mais: os primeiros capítulos de Gênesis são uma introdução ao plano
da salvação ligado à chamada de Abraão, e, como introdução, dá apenas os traços gerais.
O que lhe interessa e diz respeito a que plano é mostrar como Deus chamou um homem e
por este homem inicia o grande plano da redenção da raça caída. Tinha o seu plano, e
tudo foi dito de acordo com ele.
Pela expressão céus e terra devemos, pois, entender todos os corpos celestes, mas não na
disposição em que se encontram hoje no espaço. Nossa terra é um pequeno planeta entre
muitos outros, uns conhecidos, outros ainda desconhecidos, e todos eles faziam parte do
grande todo original, da Nebulosa. Quanto tempo Deus levou para fazer isto, para esses
planetas se desagregarem de seu núcleo central e se condensarem? Quanto tempo nossa
terra levou para poder receber vida? Ninguém sabe. Um período de imensa duração
mediou entre o ato criador de Deus no princípio e o trabalho do primeiro dia. A Geologia
procura investigar estas idades, dando a cada pedra uma determinada idade e certo
número de séculos que ela tomou para se formar, mas isto não vai além da boa vontade
de satisfazer ao espírito inquisitivo do homem.
Se a idade da terra é de 20 milhões de anos, como pensam alguns geólogos, ou de 60
milhões, como pensam outros, é difícil determinar, e nem há elementos que permitam um
cálculo seguro ou sequer aproximado. Sem dúvida alguma, se tomarmos em consideração
o problema unicamente do ponto de vista da Física e da Mecânica, o período que mediou
entre o Princípio ou ato criador de Deus e o aparecimento de vida na terra, temos de
admitir um período de imensa duração. O mesmo se pode dizer respeitante aos outros
períodos até a chegada do Homem. Todavia, o problema continua insolúvel e nem parece
que a felicidade humana, ou a ciência mesma, exija a determinação do tempo em anos.
Creio, entretanto, que de dia em dia, de época em época, os homens irão aprendendo e
conhecendo mais, e é possível que um dia se possa resolver o problema. Assim, como
muitas outras coisas ignoradas no passado são hoje parte do patrimônio científico da
humanidade, por que não admitir que a humanidade não completará o seu ciclo sem
entrar na posse de todos os conhecimentos da Física, da Química e da Mecânica celeste?
Se isso não for conseguido nesta vida, talvez o seja na outra. (1)
CAP.VI - OS SEIS DIAS DA CRIAÇÃO
(Gên. 1:2-25)
Trabalho do Primeiro Dia - Gên. 1:2-5
O verso 2 de Gênesis é uma espécie de parêntesis entre o verso primeiro e o terceiro.
Descreve o estado da terra depois de criada, antes mesmo do aparecimento da luz.
Abismo, desolação e confusão era o estado dela. As teorias antes esboçadas estão de
acordo com esta descrição, da informe condição terráquea. Sobre a face do abismo movia-
se o Espírito de Deus. A palavra hebraica traduzida aqui por mover ou pairar, como traduz
a Versão Brasileira, não representa o original. A tradução inglesa Brooding é muito mais
exata. O particípio "Merahefet" não só descreve ação contínua, ininterrupta, mas ação
vivificadora. Como uma ave se assenta sobre os ovos, para os incubar e dar vida, assim o
Espírito de Deus, no Seu ato de vivificar o caos, movia-se sobre ele.
Da ação da terceira pessoa da Trindade saiu toda a beleza que contemplamos no universo.
Ao Espírito é atribuída e reconhecida a função de dar vida, tanto espiritual como natural.
Ele é o autor do novo nascimento, da nova criação. Nascer do Espírito é condição essencial
para entrada no Reino de Deus. Sua ação "no princípio" foi dar vida ao novo mundo.
Nestes dois versos encontra-se material suficiente para uma demonstração da doutrina da
Trindade.
A palavra "águas" é por muitos comentadores entendida como a principal matéria
cósmica do universo. O termo hebraico parece exprimir a idéia de fluído material. O
Salmo 148 talvez tenha essa mesma idéia quando diz: "Águas que estão sobre os céus"
(Sal. 148:4). Estas águas eram distintas das que estavam abaixo, no abismo (verso 7) e o
"vapor" acima (verso 8). A nossa terra estava envolvida na grande massa de fluído
material, que ainda enchia o espaço, e sobre ela, embaixo, o Espírito se movia. "Disse
Deus: haja luz; e houve luz". Notemos que a luz não foi criada. O verbo empregado é o
verbo ser. Houve, portanto, luz antes de haver sol. O autor lembra-se de quando, nos
seus primeiros dias de conversão, foi abordado por um companheiro que se empavonava
de ser ateu e lhe perguntou como é que podia haver luz antes de haver sol, visto que este
só foi criado no quarto dia e a luz apareceu no primeiro. Esta pergunta insidiosa, lhe fez
sentir a necessidade de estudar o assunto. A ciência ensina que a matéria que se encontra
nos corpos celestes era, a princípio, muito rarefeita e de rotação muito lenta. À medida
que se foi condensando, foi aumentando de velocidade e, como já foi dito, desta atividade
molecular surgiu a luz. Esta, por sua vez, estava encoberta nos densos nevoeiros que
enchiam o espaço de modo a não poder ser vista. Foi aqui que Deus, o bondoso Criador,
interveio, separando os nevoeiros e deixando a luz livre para brilhar. Haja luz, fiat lux, e
houve luz. Existiu, portanto, luz antes de haver sol. Moisés assim diz e a ciência confirma.
Deus mesmo é a luz e onde Ele habita não pode haver trevas. Ele é a luz que alumia todo
homem que vem ao mundo (João 1:9).
Deus fez separação entre as trevas e a luz e chamou as trevas, noite e a luz, dia. E foi a
tarde e a manhã, o dia primeiro. Até este ponto tudo era treva sobre o cosmos, e essa
treva é representada pela palavra tarde; e a luz que se seguiu é representada pela palavra
dia. Uma longa noite tinha pairado sobre a terra e um longo dia se seguiu a ela. Este foi o
trabalho do primeiro dia.
De quantas horas foi este dia da criação? Sobre o termo "dia" aqui empregado há
muita discussão. Alguns teólogos pensam que é um período de duração indefinida, outros,
que é um período de 24 horas. Em assuntos tão controvertidos, não é fácil dar uma
opinião que não tenha de dissentir de uns ou de outros, mas é impossível também ficar
sem opinião.
Ninguém negará que Deus podia fazer tudo que fez em seis dias num só dia, bem como
podia fazer num momento o que fez no primeiro dia, ainda que este fosse de 24 horas.
Não temos, pois, necessidade de discutir a questão do poder divino, mas o método divino.
Para Deus, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. Parece que os que aceitam a
idéia do dia de 24 horas esquecem que para o Criador o tempo é questão insignificante.
Moisés certamente usou o termo "dia" com muita propriedade, sem que
precisemos crer num dia do nosso planeta. A lua tem o seu dia, que é 26 vezes maior que
o nosso. Os outros planetas têm os seus. Portanto, este termo não é fixo. Desde o
momento em que Deus criou o universo, no princípio, até que fez a separação entre as
trevas e a luz, houve uma longa noite, talvez de milhares de anos.
Houve noite antes de haver dia, e nada pode representar estes dois termos tarde e manhã
como a palavra dia. Portanto, tem razão Moisés de nos falar no termo dia visto que nada
poderia exprimir a idéia tão perfeitamente. Se quisermos dar crédito à ciência, esta diz
que o universo levou miríades de anos preparando-se para poder receber vida. Que,
sendo a princípio uma massa difusa e disforme, foi pouco a pouco se condensando, até
que se tornou, pelo efeito do atrito, uma enorme massa incandescente, para depois esfriar
na superfície, formando a crosta terrestre, e poder receber vida. Ainda se pode verificar
que o centro da terra está em forma ígnea, como evidência de que toda ela foi um globo
de fogo, como ainda é o sol hoje. Há muita plausibilidade nesta declaração dos sábios, e,
se assim foi, então 24 horas é pouco demais para um processo tão complexo.
Podemos demonstrar que a Bíblia não usa uniformemente o vocábulo dia para indicar
período de 24 horas. Aliás, este sentido é quase estranho à Bíblia. O trabalho dos seis dias
da criação é mencionado como sendo um só dia (cap. 2:4): "No dia em que Jeová Deus fez
os céus e a terra." Não padece dúvida que o autor inspirado usa a palavra dia para denotar
espaço de tempo, época ou período.
Os profetas comumente usavam a palavra dia em sentido indefinido. "O dia de
Jeová" constitui uma nota contínua nas profecias, e ninguém teimará em crer que este dia
seja de 24 horas. O último dia! O Dia do Senhor! O Dia do Julgamento! é inegavelmente
um período de longa duração. Vejamos o que Jesus diz sobre o último dia em João
6:39:54; 12:48; no N.T. 12:36; Luc. 10:12-14. Paulo, em I Cor. 4:3-5. O último dia é
também representado no N.T. como o período da nova criação. Ver Mat. 19:28; Atos 4:21;
Rom. 8:19-23. Poderíamos multiplicar as escrituras que mostram a diversidade em que
esta palavra é usada, mas estas bastam. As palavras do quarto mandamento, em que Deus
ordena trabalhar seis dias e descansar um, à semelhança do seu trabalho de criação, não
oferecem tanta base para disputa como querem alguns comentadores, visto que Deus está
falando a homens e só pode falar-lhes em termos que eles compreendam, mas ninguém
insistirá, afirmando que Deus está na estrita obrigação de fazer seu trabalho como o fazem
os homens. Pedro diz que um dia para Deus não é como um dia para o homem (II Pedro
3:7,8). Se estes dias da criação foram de 24 horas, Satanás é somente poucas horas mais
velho do que o homem, bem assim, todos os querubins e serafins da corte celestial.
Nós mesmos não somos exatos em nossa terminologia quanto ao termo dia. Um homem
trabalha seis dias na semana. De quantas horas são esses dias? de 24 horas? Há uma
tremenda luta para que todos os dias de trabalho sejam de 8 horas. Podem ser de oito
horas, de dez ou de doze, mas nunca de 24 horas. O nosso dia de trabalho bem podia ser
tomado como período de trabalho ou atividade, mas esta é a linguagem comum e daí o
usarmos a palavra dia. Moisés fez o mesmo. Ele descreveu períodos de atividade divina
de acordo com a maneira de seu povo entender estes períodos, pela palavra dia. Há, pois,
precisão no termo empregado.
1. Este fato tem levado os teólogos às mais sutis especulações para achar o meio de
explicar por que Moisés usou o termo dia. Alguns crêem que usou linguagem alegórica ou
mística, à semelhança dos hindus e gregos, descrevendo as legendas de seus deuses. Mas
não se pode tirar o elemento histórico da narrativa sem destruir sua unidade.
2. Outros crêem na interpretação hiperliteral da narrativa de Gênesis, separando o
verso 1 do verso 2, pondo um imenso período de tempo entre os dois acontecimentos
narrados e fazendo da descrição começada no verso 2 uma narrativa literal de seis dias de
24 horas. Sobre esta interpretação sirvam as notas sobre a palavra dia", dadas
anteriormente.
3. Após, vem a teoria chamada hipercientífica, que tem por fim fazer a narrativa mosaica
concordar em detalhes com as investigações científicas e sobretudo com a Geologia. Este,
porém, não é método bíblico. Ainda que a narrativa possa ser confrontada com qualquer
investigação científica, não podemos esperar encontrar as minúcias que ciência menciona.
4. A interpretação sumária e panorâmica é a que tem maior número de adeptos e
está mais ou menos de acordo com a Hipótese da Nebulosa (ver Dr. Strong, "Systhematie
Theology", Vol. II, páginas, 394-395).
5. Finalmente, tem a palavra o sábio Hugh Miller, para nos dar a sua interpretação
dramática. Segundo ele, Deus fez passar diante de Moisés o drama da criação em seis
panoramas ou vistas, cada uma delas representando um dia. Assim, Moisés relatou o que
viu na superfície da terra e à tona da água, e nada mais.
Parece ser muito mais natural crer que a história que Moisés nos legou era um
patrimônio de todas as nações e que foi transmitida de geração em geração, sendo Adão o
primeiro que recebeu a informação de como Deus criou o mundo. Como veremos mais
tarde, a vida dos antediluvianos foi tão longa que Adão pôde conversar com Matusalém,
pois, segundo a melhor cronologia, este foi contemporâneo de Adão por espaço de 243
anos. Matusalém foi contemporâneo de Noé por 600 anos, e Noé viveu depois do dilúvio
350 anos, sendo contemporâneo de Terá, pai de Abraão, por espaço de 56 anos.
Assim, Abraão podia ter recebido a história da criação diretamente de seu pai Terá, este,
de Noé, Noé de Matusalém, e Matusalém de Adão. A coisa mais notável é que todas as
nações antigas, como Egito, Babilônia, Índia, China etc., têm tradições correntes sobre a
criação, e todas elas, em geral, são idênticas, denunciando uma origem comum.
Mais uma palavra sobre a dificuldade de o termo "dia" equivale ao nosso dia de 24
horas. Diz-nos a ciência que a nossa terra ocupava um espaço muitíssimo maior, quando
estava em estado gasoso, e, portanto, devia levar muito mais tempo para dar uma volta
sobre si mesma do que leva hoje. Logo, um dia devia ter muito mais horas do que hoje.
Os dias e as noites são governados pelo sol, e este só apareceu no quarto dia. Daqui a
necessidade de tomar o termo dia em sentido mais vasto. O texto sagrado diz que Deus
fez separação entre as trevas e a luz. O resultado e não o ato constituiu o primeiro dia (ver
Guiot - Creation; Taylor Lewis - Six Days of Creation; Thompson - Man in Gene 'a and
Geology; Dawson - -Story of Eaxt and Man; Leonte - Seiencè and Religion).
Trabalho do Segundo Dia - Expansão - Céus - 1:6-8
O trabalho dos três primeiros dias foi lento e moroso. O resultado do primeiro dia
foi a luz, o do segundo dia foi a criação da expansão ou separação entre as águas debaixo e
as águas de cima.
Águas em estado líquido e águas em estado gasoso. Aquelas sobre a face da terra e
estas suspensas nos ares. Esta separação tornou possível o aparecimento da expansão de
cima. A esta expansão Deus chamou céus. Devemos, porém, notar que os céus foram
criados no princípio, juntamente com a terra, conforme o verso primeiro. Assim, o que se
deu agora foi o seu aparecimento e não sua criação. O problema, como o
compreendemos pelo estudo das ciências físicas, era mais ou menos o seguinte: como já
notamos, a matéria estava a princípio, em estado gasoso e foi pouco a pouco se
solidificando no nosso planeta. À medida que ia esfriando a crosta da terra, os vapores que
estavam no espaço, como resultado do enorme calor desprendido do planeta, foram se
condensando pouco a pouco e caindo sobre a terra em forma de água, de modo a haver
água embaixo e água em cima, como dizem os versos 6 e 7.
As águas suspensas no espaço não permitiam que o céu fosse visto. Um imenso oceano
cobria toda a terra e um espesso nevoeiro, dificilmente deixando transparecer a luz do sol,
toldava a atmosfera em cima.
É certo que a terra esteve imersa por espaço de tempo ignorado, visto que em
qualquer parte se encontram vestígios de vida marinha. Com isso combina o texto
sagrado, como se vê nos versos 9 e 10 deste capítulo.
Tal foi, pois, o trabalho deste dia. Insignificante à primeira vista, mas
consideravelmente grande em si mesmo. O caos do verso 2 tinha sido fundamentalmente
modificado pelo aparecimento da luz e pela separação entre águas e águas. Beleza e
ordem começam a invadir este cenário em que vivemos. Há progresso e beleza nesta
singela narrativa.
A linguagem de Moisés "E chamou Deus à expansão céus" não nos deve confundir, e muito
menos é caso de atribuir-lhe ignorância por confundir expansão com céus. Nós usamos,
muitas vezes, esta linguagem acomodava e formal, sem merecermos, por isso, a pecha de
ignorantes ou descuidados. Chamamos a abóbada celeste céus, quando sabemos que os
céus estão muito além, e são muito diferentes do azul do firmamento. Portanto, a palavra
céus, usada daqui em diante, não deve atrapalhar-nos. Ela é empregada como sinônimo
de expansão ou firmamento. O que Deus criou neste segundo dia nem foi o céu nem o
firmamento, mas o espaço ou, como bem diz o texto, a expansão entre o firmamento e a
terra. O lugar onde correm as nuvens carregadas de água, onde voam os pássaros, os
aeroplanos etc.
A mesma linguagem usada para o primeiro dia é usada aqui: foi a tarde e a manhã, o dia
segundo. De quanto tempo foi este dia, não sabemos, mas, se considerarmos os diversos
processos por que passam o hidrogênio e o oxigênio, para se transformarem em água e
vice-versa, vemos que grande foi o espaço de tempo tomado por este dia. Talvez menor
do que o primeiro, mas grande, todavia.
Trabalho do Terceiro Dia - Mares, Terra e Vegetação - 1:9-13
O terceiro dia de Gênesis corresponde ao período Secundário ou Mesozóico em
Geologia. Um imenso mar cobria toda a terra, por causa da condensação das grandes
camadas de vapor que tinham enchido a atmosfera por longos milênios. Dando todo o
crédito à Geologia e à Paleontologia, com suas várias divisões em períodos Laurenciano e
Huroniano, verifica-se perfeita analogia entre a ciência e o Gênesis. Os depósitos de
grafite encontrados no Canadá pertencem a esse período e representam as mais
rudimentares formas de vida vegetal, vida esta que se prolonga até ao principio do Quinto
Dia, quando apareceu a vida animal. Nós temos de convir que é extremamente difícil para
o geólogo determinar com precisão a concordância entre os dias da Bíblia e os períodos
geológicos, visto que as alterações que a crosta terrestre sofreu modificaram muito as
várias camadas em que se encontram os vestígios da vida primitiva. Contudo, é de admirar
que numa época tão remota Moisés deixasse um relato abreviado da origem do mundo e
da vida, que não obstante os preconceitos de muitos, continua a resistir a todos os exames
e investigações. Tão grande precisão científica não se encontra em literatura alguma que
nos venha da antigüidade. Nem os babilônios, nem os egípcios, nem os gregos, que
herdaram a ciência destes antigos povos, (1) nos puderam dar uma filosofia tão precisa
sobre a ordem e a origem das primeiras coisas. Isto deve representar muito mais que
meros conhecimentos humanos, desde que nenhum outro historiador escreveu como
Moisés. É por isso que nós cremos na inspiração da Bíblia. Outros sábios houve no tempo
de Moisés. Admiráveis especulações filosóficas também, mas verdade como Moisés
deixou em tão poucas palavras ninguém conseguiu alinhar. Dia a dia a ciência vai
convencendo de que não há contradição entre a Revelação e a mesma ciência; e quando
houver contradição, serão os sábios que estarão errados e não a Bíblia, como já, por
muitas vezes, se evidenciou.
O trabalho deste dia foi separar a terra das águas e fazer que ela produzisse ervas. A
linguagem bíblica é, como sempre, simples e concisa. Ajuntem-se as águas debaixo do céu
num lugar à parte e apareça a porção seca. Aceitamos candidamente que este processo se
efetuou por meio de abalos vulcânicos. A terra tinha uma pequena crosta, cobrindo a
parte incandescente do interior e uma formidável camada d'água cobrindo a mesma
crosta.
Esta crosta ia engrossando pouco a pouco e a água ia lentamente se infiltrando, até
encontrar a parte interna em fusão. Ainda, o encontro da água com a matéria em fusão
produziria, inevitavelmente, uma explosão de vapores, que, por sua vez, refletiria na
superfície, alterando sua conformação grandemente. Estes abalos ou, como chamaríamos
hoje, terremotos, levantariam uma certa extensão da terra e abaixariam outra, dando
lugar à elevação de montanhas e abaixamento de vales. As cordilheiras, como a dos
Andes, as montanhas, como o Himalaia, os enormes picos encontrados por toda a terra, e
os profundos vales e abismos, crê-se, foram originados por estes abalos subterrâneos. A
elevação de uma porção de terra e o abaixamento de outra fizeram que as águas
procurassem a parte mais baixa, deixando a outra parte descoberta. Esta parte seca foi
por Deus chamada terra, e a parte onde as águas se reuniram foi chamada mar. Ainda
hoje se dão os mesmos fenômenos, se bem que em menor número. De um momento para
outro, podem aparecer novas ilhas e desaparecer certos continentes. Bastaria um
pequeno abaixamento nas imediações das ilhas britânicas, para que a Inglaterra fosse
submergida. Não há muita dúvida hoje, nos círculos científicos, de que onde está agora o
Oceano Atlântico houve outrora um grande continente chamado Atlântida. Os vulcões não
são outra coisa senão resquícios das condições em que a terra estava neste terceiro dia.
As erupções vulcânicas são causadas pelo acúmulo de matéria incandescente que ainda se
encontra no coração da terra, alimentada pela infiltração das águas oceânicas e das que
caem sobre a terra, as quais vão se acumulando, até que, uma vez cheia a cratera, dá-se a
erupção. À medida que se entra no coração da terra, o calor aumenta, um grau em cada
trinta metros, segundo as experiências de um sábio francês. Portanto, o que Moisés diz
em poucas palavras é tão verdade como é verdade tudo que se tem dito e escrito há
muitos anos sobre este assunto.
Apenas apareceu a terra, Deus lhe deu a ordem de produzir relva. É crível que mesmo no
fundo dos oceanos Deus tivesse criado as algas marinhas, espécies elementares de
verdura, e estas, uma vez imersa a terra, continuassem sua vegetação. A palavra hebraica
traduzida erva na tradução de Almeida é traduzida relva na tradução Brasileira (1) e está
muito mais de acordo com o sentido original. Há muita diferença entre relva e erva. A
melhor tradução é: Produza a terra relva verde, erva que dê semente ... Esta relva
pertence à família dos criptógamos, que só se reproduzem por meio de esporos, e não por
sementes. A erva recebeu capacidade de produzir semente, enquanto que a relva não.
Notemos a ordem da criação deste dia: (1) Relva. (2) Erva que dê semente. (3) Árvore
frutífera que dê fruto. Há uma admirável ordem na criação. Há uma admirável economia
do poder divino. Gesenius, famoso hebraísta alemão, traduz relva por "primeiros rebentos
da terra". Moisés não escreveu uma história natural, bem como não escreveu um tratado
de Geologia sobre a primeira parte deste dia, mas nem por isso sua narrativa deixa de ser
científica. A Geologia confirma que a primeira evidência de vida vegetal no globo era
muito rudimentar. Antes das florestas, donde se originaram os grandes depósitos de
carvão, de onde nos abastecemos para diversos fins, encontram-se vestígios de vida
vegetal muito simples. As grandes florestas vêm muito depois. Estas imensas camadas de
carvão de pedra foram o resultado da tremenda vegetação que cobriu a terra e dos
terremotos que, alterando continuamente sua feição, sepultaram, à profundidade
considerável, as florestas, e daí sua petrificação, transformando-se em carvão. Os inimigos
da revelação sobrenatural têm tomado estes fatos para mostrar que houve evolução tanto
nas plantas como nos animais. Primeiro relva, depois erva, em seguida árvores, e assim
por diante. Mas Deus salvou desta doutrina o mundo, dando a cada planta a lei de
reprodução: "Segundo sua espécie". Deus criou certo número de famílias e deu-lhes o
poder natural de se reproduzirem segundo sua espécie. Não há nada que prove que uma
planta pode mudar-se noutra de diferente espécie. O alarde que se tem feito sobre a
origem das espécies de Darwin tem mais fumo do que fogo, é trovoada sem chuva. Ele
mesmo, depois de ensaios pacientes, concluiu que se dava o aperfeiçoamento de uma
espécie, mas não a sua mutação noutra. Os criadores de gado podem melhorar suas
espécies, mas não podem mudar uma espécie. Os agricultores e botânicos podem
aperfeiçoar uma planta, mas nunca mudar sua espécie.
Outra coisa que a ciência moderna confirma é que muito antes de aparecer vida animal,
existiu vida vegetal. O tempo ninguém pode medir, mas o fato pode ser constatado. A
vida animal vem do quinto dia. Houve, portanto, um imenso período de tempo entre a
criação dos vegetais e a criação dos animais.
Diz-se que essas três espécies de plantas mencionadas aqui apareceram com
intervalos imensamente grandes. No fim da época Siluriana, só havia os criptógamos e as
algas marinhas, plantas muito rudimentares. Na época Devoniana aparecem as árvores e
outras plantas do reino vegetal, de estrutura desenvolvida. Se estas classificações têm
razão de ser, o terceiro dia foi de longa duração, e entre a criação da relva, da erva e das
árvores mediou considerável espaço de tempo. Para nós, é irrelevante o tempo que Deus
gastou, se foi um momento ou miríades de séculos. Cremos que ele criou e que tudo o
que o universo apresenta é o resultado das atividades divinas.
A Bíblia diz que este ato do Criador constituiu o terceiro dia, havendo tarde e manhã.
Trabalho do Quarto Dia - Sol e Lua - 1:14-19
Tem sido um ponto favorito para os críticos que a cosmogonia mosaica falha nos
pontos mais elementares da Astronomia e se contradiz a cada passo, pondo a criação do
sol no quarto dia, quando a luz apareceu no primeiro dia. Qualquer menino de escola
primária sabe, porém, que podemos ter luz mesmo sem ter sol. Os indígenas sabem fazer
fogo com atrito de dois paus.
Nós, que temos os fósforos, podemos ter luz mesmo numa noite tenebrosa. Houve
luz antes de haver sol. Ainda mais, todos sabemos que a terra e os demais planetas que se
encontram no espaço giram todos em torno do sol, e que este é o centro do sistema
planetário. Como é que Moisés, dizem, escreve que o sol e a lua só foram criados no
quarto dia, quando não se explica a existência da terra sem o sol? Mas este é um
argumento bem pobre para se fazer dele questão de controvérsia. Moisés diz que os céus
e a terra foram criados no PRINCÍPIO, e por céus e terra entendemos o universo. Logo, ele
diz que todos os astros ou a matéria de que todos eles se compõem foram criados no
princípio. Assim, o sol e a lua foram resultado do ato criador no princípio. Alguns
comentadores crêem que a luz que Deus fez aparecer no primeiro dia não foi tanto o
resultado do atrito da matéria, mas a luz do sol mesmo, que procurava atravessar a densa
névoa que ainda cobria os astros. Moisés não está discutindo a técnica da criação, mas
descrevendo o fato como ele aparecia aos olhos do observador. Voltaire, que se ufanava
de encontrar contradições na Bíblia, chegou a afirmar que não podia haver luz sem haver
sol, e, portanto, ou não houve luz no primeiro dia ou o sol não foi criado no quarto dia.
Vejamos o que diz o texto sagrado:"Haja luminares na expansão dos céus... " Não se diz
que foram criados. O verbo haver nunca foi usado como sinônimo de criar. A forma é a
imperativa do verbo ser. Mais adiante diz: "E fez Deus os dois grandes luminares ..." Estes
dois verbos decidem por si mesmos o problema. Deus não criou o sol e a lua no quarto
dia, mas os fez aparecer. Sejam ou apareçam é o que Moisés diz. Nunca estes verbos são
usados para indicar criação de alguma coisa que antes não existia. "No princípio criou Deus
os céus e a terra." No quarto dia, fez aparecer o sol e a lua; não os criou. O verbo fazer é
usado 32 vezes no Velho Testamento no sentido de preparar, e não no de criar. Basta isto
para nos mostrar a certeza com que Moisés descreveu, há tantos séculos, o que nos
tempos que passam tem dado tanto trabalho para comprovar.
A função destes dois astros foi:
(1) governar o dia e a noite;
(2) marear as estações. Até aqui tinha havido dia e noite ou, de acordo com a
ordem bíblica, tarde e manhã; mas daqui em diante temos dia e noite, compreendendo o
espaço de 24 horas. A nossa terra já estava dando a esse tempo as mesmas revoluções
que dá hoje, mas era inapreciável sua revolução em torno do sol, visto este não estar à
vista do observador. Como ficou notado, a densa névoa que cobria a terra não permitia
que o sol desse luz, mas isto não importa na crença de que ele não existia antes.
Juntamente com o sol e a lua, foram feitas as estrelas.
Não havia estrelas antes? Certamente que sim. Mas, por que foram feitas neste dia? Pela
mesma razão indicada acima e referente ao sol e à lua. Elas lá estavam, mas não podiam
cintilar, pela mesma razão que a luz do sol não podia brilhar. Dias e noites e anos
começaram a existir desde este momento.
A segunda função destes luminares foi trazerem ou marearem as estações. Ainda
hoje estes astros servem para estações.
Qualquer agricultor sabe que certa fase da lua é melhor para certa plantação do que
outra. Ouvi um grande discurso, numa ocasião, em que o orador demonstrava, diante de
auditório erudito, que para se poder ter uma boa colheita de batatas era preciso procurar
a lua própria para plantá-las. Ele desafiou racionalistas presentes para contestarem, e
fiquei até não haver mais ninguém no auditório, para ver se alguém vinha apresentar
contestação, mas ninguém apareceu.
Outra expressão que merece ser mencionada é a que diz: "tempos determinados". Que
significa isto? Tempos fixos, dias, meses, anos, séculos, milênios etc. Até este ponto, os
dias dependiam do tempo tomado para uma determinada atividade; agora este tempo é
fixado pela lei da gravidade e sua conseqüente apreciação na volta da terra, em tomo de
seu centro de gravitação.
"E foi a tarde e a manhã, o dia quarto." Já havia tempos "determinados" e fixos
agora, mas a expressão '"tarde e manhã" continua como no princípio, como se o
aparecimento do sol e da lua não tivessem trazido ao mundo uma nova ordem de
fenômenos cosmológicos.
Convém notar que nenhuma criação foi feita neste Dia. A vida vegetal do Terceiro Dia,
composta de musgos, algas etc., depois árvores frutíferas, continuou através do período
em que a atmosfera se libertou das compactas camadas de gás carbônico, de maneira a
tomar possível o aparecimento do Sol e da Lua. Do ponto de vista paleontológico, o
Quarto dia compreende o Paleozóico ou Primário, e o Mesozóico ou Secundário, pois que
nenhuma nova forma de vida apareceu neste dia, continuando naturalmente as existentes.
Daí vem que nós não podemos forçar a narrativa de Gênesis a concordar com as divisões
da Geologia.
As classificações ordinariamente dadas pelos tratados de Geologia são:
(1) Período Azóico, que corresponde ao Primeiro e Segundo Dias da Criação da
matéria e ao aparecimento da luz.
(2) Período Paleozóico ou Primário, que corresponde ao Terceiro Dia, quando foi
criada a vida vegetal, desde os musgos até as árvores frutíferas, vida esta que se prolonga
através de todos os demais dias e períodos, inclusive o quarto, em que nenhuma atividade
criadora houve.
(3) Período Mesozóico ou Secundário, que corresponde ao Quinto Dia de Gênesis,
com o aparecimento da vida animal, primeiro nas águas e depois na terra. A vida vegetal
continuou, apenas diminuindo em proporções, à medida que diminuíam os gases da
atmosfera.
(4) Período Cenozóico ou Terciário, que corresponde à primeira parte do Sexto Dia, em que
apareceram os mamíferos de grande tamanho, alguns dos quais há muito desapareceram
e outros, já muito reduzidos, tais como o elefante, o urso, o hipopótamo etc., que estão
desaparecendo. Finalmente,
(5) o Período Quaternário, que, em Geologia, se divide em quaternário antigo e
moderno, correspondendo à segunda parte do Sexto Dia de Gênesis, aparecendo o
homem no quaternário moderno.
De um modo geral, é esta a relação entre as duas ciências: a da Bíblia e a da Geologia e
Paleontologia. Se bem que não nos preocupemos demasiadamente com as semelhanças,
nem por isso deixamos de nos alegrar com elas.
Trabalho do Quinto Dia - Animais Aquáticos e Pássaros
Pelas notas do tópico anterior, se viu que a vida do segundo dia continua através do
Quarto e do Quinto. O que há de novo neste dia é o aparecimento da vida animal. A
ordem dada pela narrativa mosaica é lógica e obedece ao plano do Criador de povoar a
terra com os animais, cujas estruturas e desenvolvimento se acomodariam às condições
terráqueas. Assim, (1) os peixes miúdos, (2) as aves e (3) os grandes monstros marinhos
constituíram as atividades criadoras deste Período ou Dia. A Paleontologia nos presenteou
com enormes escorpiões e gigantescos insetos, de que temos vaga idéia pelos fósseis.
Algumas formas desapareceram completamente, tais como o Ictiosaurus, o Plesiosaurus, o
Petersaurus, o Megalosaurus etc. Algumas formas de gigantescos répteis, de natureza
anfíbia, aparecem neste Período. Os fósseis de algumas espécies de pássaros também nos
indicam o que foi a vida nos ares naquela época. Pássaros de dentes encontram-se desde
a época Jurássica.
Deveria ser maravilhoso o nosso mundo naquela época remota. Uma vegetação fantástica
que nos havia de dar as imensas camadas carboníferas, o petróleo, o gás natural, os
diamantes e mil outras utilidades. Por outro lado, vida abundante no mar e na terra. A
Bíblia, com a sua escala da vida, é um maravilhoso livro de saber. No mar, os protozoários,
espongeários, celentérios, crustáceos etc. Em terra, as aves de grandes proporções
encheriam o espaço. Como tudo era grande e abundante!
É baseados nesta observação que alguns querem que estas formas elementares de vida
sejam os tipos originais de onde evoluíram as formas desenvolvidas. Esta suposição,
porém, cai por terra, se forem tornados em consideração outros elementos científicos
relacionados com a formação da terra, que poderia a princípio receber espécies
desenvolvidas; além de que todas as formas de vida receberam a ordem de se reproduzir
segundo sua espécie. É precário tomar em consideração um elemento e desprezar o outro.
Quem poderá crer que a terra podia, no terceiro dia, quando a atmosfera estava
carregadíssima de gases, sobretudo de carbono, receber o homem ou mesmo outro
animal? A não ser que Deus lhe desse uma natureza dupla, capaz de acomodar-se às
condições do sexto dia, quando estes gases tinham diminuído desproporcionalmente, ser a
impossível viver nos dois períodos. Está, pois, fora de especulação o fato de não ter havido
a princípio formas de vida complexas, como fora de discussão fica o dar este fato qualquer
subsídio à moderna doutrina evolucionista.
Notamos método e progresso, a par com desenvolvimento, e nada mais. Deus criou
primeiro os répteis. Em seguida, as aves, depois os monstros marinhos, e por fim, já no
sexto dia, os animais da terra. As primeiras formas de vida sobre a terra foram as
marinhas, mas ninguém poderá dizer que este relato se parece com o protoplasma do
fundo do mar, de onde os evolucionistas derivam o seu sistema. Nada mais razoável do
que crer que as águas eram mais propícias à vida neste período do que a terra. A vida
aparece abruptamente sobre o planeta e nada há que possa explicar este fato senão a
Bíblia. Os fósseis são flagrante testemunho disto. Não se pode afirmar que entre os peixes
pequenos e os grandes mediou certo tempo, mas parece ser certo isso, visto que a Bíblia
oferece margem para esta suposição e os fósseis marinhos a comprovam.
1. "E Deus disse: produzam as águas abundantemente... É difícil exprimir em
português a palavra hebraica sherets, nem temos outro recurso senão usar de uma frase:
produzir abundantemente. Nada se pode comparar, em fecundidade, aos peixes. A fêmea
do salmão pode produzir, em cada estação, mais de meio milhão de filhos. Vejamos a
sardinha, que chega a produzir cardumes, bem assim, o bacalhau. Parece que a vida no
mar é mais variada que na terra, mas qualquer pessoa pode verificar que o salmão, a
sardinha, o bacalhau e qualquer outro peixe só produzem peixes da mesma qualidade.
Eles tiveram ordem de reproduzir segundo a sua espécie.
2. "' ... e voem as aves sobre a face da expansão dos céus..." e (no verso 21) "toda
ave conforme sua espécie". As aves foram criadas depois dos peixes, conforme a mesma
lei de reprodução.
3. "E Deus criou as grandes baleias (monstros marinhos) ... conforme suas espécies."
Não se sabe muito bem que espécie de animal aquático é representado pela palavra baleia
ou, antes, monstro marinho, mas sabe-se que existiram peixes de grandes dimensões que
não se encontram hoje, pelo menos na superfície das águas. Talvez, na profundeza dos
mares se encontrem peixes desconhecidos e mais de uma vez estes seres estranhos já
apareceram na superfície do mar, talvez arrastados por correntes vulcânicas submarinas.
Existiram, não há dúvida, se é que não existem mais.
Convém notar a expressão "almas viventes". Tanto os animais terrestres, como os
marinhos, são chamados almas viventes. O homem mesmo foi feito alma vivente com o
sopro divino em seu nariz. O que esta expressão significa é difícil saber, se não for que
"Deus comunicou a estes seres a vida". Há poucos anos o mundo foi alarmado com a
descoberta de que tinham sido encontrados os diversos elementos de que se compõe o
corpo animal, e que era uma questão de tempo, para se gerar a vida nos laboratórios, de
modo que se poderiam fazer homens de acordo com as necessidades, tanto da guerra
como da paz, do mar como da terra, da cidade como do campo. Coisa muito fascinante, e
tentadora. Cada pessoa podia, assim, escolher o tipo que quisesse. Mas os tempos vão se
escoando e o costume velho continua, isto é, cada novo ser vem ao mundo pelo mesmo
processo do tempo de Adão, quando nada se sabia de laboratórios. A vida é um dom de
Deus. Os escultores fazem estátuas e os modistas desenham seus manequins, mas vida,
não a podem dar. Esperemos pacientemente pelas investigações científicas, e apoiemo-las
no que elas trouxerem de novo e útil, mas será uma triste ilusão, se esmerarmos que a
vida nos venha dos laboratórios. Deus criou todo o reino animal, "alma vivente". "Frutificai
e multiplicai-vos." Deus não criou tantos animais como existem hoje, mas criou todas as
espécies. Esta é a declaração enfática, categórica, simples e singela da Bíblia. Não
somente "multiplicai-vos", mas "multiplicai-vos segundo vossa espécie".
CAP. VII - ORIGEM DAS ESPÉCIES E A TEORIA DARWINIANA
Nas páginas que precedem, diversas alusões foram, de vez em quando, feitas à
chamada teoria Darwiniana e seu conflito com a narrativa de Gênesis. Valerá a pena mais
algumas referências a esse assunto, que tantos males tem causado à fé, em se tratando de
crentes inexperientes e fracos, e à verdade mesmo.
A narrativa de Gênesis declara que as plantas e os animais foram por Deus criados e
receberam a comissão de se reproduzirem segundo sua espécie. Finalmente, o homem
recebeu a ordem de se multiplicar e crescer, conforme a ordem previamente estabelecia.
Sua diferença dos outros animais consistiu em que ele foi feito à imagem e semelhança de
Deus.
Contra tudo isto se levanta o darwinismo ou, como hoje é mais popularmente conhecido, o
evolucionismo, dizendo que todas as espécies de animais encontradas na terra descendem
de três ou quatro progenitores, que as plantas descendem do mesmo ou ainda de menor
número, e que o homem, que é uma exceção a esta regra, descende de um dos três ou
quatro tipos originais do reino animal. Darwin avança mesmo e diz que "a analogia o
impele a crer que tanto os animais como as plantas descendem de um mesmo protótipo",
Origem das Espécies. Em outras palavras, Darwin fica indeciso, se deve crer na moderna
evolução teísta ou ateísta, se Deus criou pelo menos o protoplasma, se este se originou a si
mesmo, se houve um Deus criador do universo ou se o universo se criou a si mesmo.
Entretanto, parece que Darwin acreditava na criação teística. Estes três ou quatro
progenitores originais estão de acordo com a classificação do reino animal em
vertebrados, articulados, moluscos, radiários e protozoários, porém esta classificação é
nula se acredita que todos estes tipos originais descendem de outros ou do protoplasma
original.
Darwin, na "Origem das Espécies", não declara que não houve criação original e fica
indeciso sobre a transmutação de uma espécie noutra, mas deixa o problema tão
baralhado que o leitor é levado à impressão de que não somente as espécies variam, mas
evoluem, sujeitas às contingências da vida. Conforme esta suposição, toda e qualquer
classificação desaparece; a diferença entre vegetais e animais é impossível sob o ponto de
vista de suas gêneses. No seu livro "Descent of Man" (Vol. II, pág. 372, citado por Cowles,
no seu "Pentateuc"
, Darwin diz: "Os quadrumanos e todos os mamíferos mais desenvolvidos se derivam de
um antigo marsupial, e este, através de um longo período, de formas diversas, se deriva ou
de um réptil ou de qualquer animal de sua espécie, e ainda este, de alguma forma de
peixe. No longo e obscuro passado, podemos ver que o progenitor de todos os
vertebrados era um animal aquático, provido de brânquias, com os dois sexos unidos no
mesmo corpo e com os mais importantes órgãos (coração e cérebro) imperfeitamente
desenvolvidos. Este animal parece ser mais ou menos a larva das ascídias marinhas, de
preferência a qualquer outra forma.
Se tivesse recuado mais um pouco, teria dito que não a larva, mas o protoplasma
encontrado nas profundezas do oceano, originado por um processo que ele não poderia
explicar, foi o pai de todos nós, e dos animais de toda espécie encontrados na superfície da
terra ou debaixo dela. Quem lê estes dois livros de Darwin não pode deixar de confessar
seu espanto diante do problema complexo que o autor tinha diante de si, querendo
explicá-lo e não podendo. Pie mesmo, depois de penosos ensaios, para produzir um
pombo doméstico, deixa claro, nas entrelinhas, que todos os produtos do cruzamento
tendiam a se conformar com o tipo original, e, quando isto não acontecia, dava lugar a
casos híbridos, que se não reproduziam mais. (1) Sua discussão sobre este assunto pode
condensar-se em poucas proposições.
(1) A seleção natural varia muito ligeiramente entre o progenitor e o produto gerado e é
preciso um período de tempo incomensurável para se poderem verificar insignificantes
diferenças, e estas de cor, mas não de estrutura.
(2) Quando os animais se multiplicam além das possibilidades de subsistência, dá-se
o que ele chama luta pela existência, em que o mais perfeito ou mais forte destrói o mais
fraco, aperfeiçoando, assim, a espécie (seleção natural). O outro argumento (seleção
sexual) tendente a melhorar a espécie é o de um animal macho preferir uma fêmea mais
bonita, assim melhorando também os tipos. Estes dois processos são fundamentais na
doutrina darwiniana, mas veremos que a réplica dada no fim desta nota destrói os seus
fundamentos até a base. (2)
(3) As diversas analogias de estrutura e conformação; por exemplo: o braço do homem e a
perna dianteira do cavalo, a asa do pássaro e as barbatanas do peixe são outro indício de
que todos eles e todos nós viemos do mesmo tronco.
(4) No estado embrionário, quase todos os seres são indistinguíveis e passam por
períodos evolutivos, indo, da forma de protoplasma, para peixe, depois para anfíbio,
depois para vertebrado e finalmente para menino ou menina de olhos azuis e cabelos
louros etc.
(5) A existência de órgãos rudimentares em alguns animais e desaparecidos no homem
prova que o progresso deste tornou desnecessários aqueles órgãos. Por exemplo, os
macacos tinham caudas, como ainda têm, mas o outro animal acima dele (em virtude do
"elo perdido", como dizem os cientistas) perdeu a cauda por causa do costume de
assentar-se. Pouco a pouco este hábito foi roendo este órgão, até que finalmente chegou
a perder-se por inteiro. Esta é a razão por que os homens não têm cauda, dizem estes
sábios.
Examinemos ligeiramente estas considerações:
(1) Sobre a inapreciável variação observada por Darwin, em suas tentativas para
modificar uma dada espécie ao ponto de alterá-la ou criar uma espécie nova, bastam os
conhecimentos atuais da Biologia, a que me refiro noutro lugar. Darwin tinha razão em
pensar que por meio de cruzamento se podiam criar novas espécies, mas no estado atual
da ciência ninguém diria isso, ou, pelo menos, não o provaria. Com essa mesma
orientação foi que os antropologistas tentaram mostrar, pelos vários fósseis humanos
encontrados na Europa e na Ásia, que o homem antigo diferia muito do moderno na
capacidade eraniana e noutras disposições anatõmicas, que a antropometria se
encarregou de reduzir a suas verdadeiras proporções. "O Homo Neanderthalensis, a bem
definida espécie de paleolítico, de caracteres tão distintos e primitivos dos de qualquer
tipo humano atual", na expressão de Mendes Correia, e cuja ossada se encontra no Museu
de Bonn e que foi por alguns considerado como o ancestral do homem atual, foi
examinado pelo sábio Dr. Brass, que lhe comparou o crânio com o de Beethoven, tendo
encontrado indicações de superioridade intelectual no espécimem do paleolítico (1400
a.C.). A descrição, que se dá desse notável fóssil pode parecer um verdadeiro retrato do
homem-macaco, mas a verdade é que, se "ele não se escalona entre o homem, também
não se escalona entre os símios". Não é lugar própria para entrarmos em apreciações
antropológicas, mas pode-se afirmar que nenhum dos mais antigos fósseis tem dado
substancial auxílio à doutrina da evolução, quando é certo, por outro lado, que todas as
contribuições das ciências, inclusive da História, são contrárias a ela.
Se há evolução, o homem de há sete ou oito mil anos atrás devia ser meio homem, meio
macaco, mas não é isto que se verifica. Entre as múmias dos primeiros imperadores
egípcios e os nossos esqueletos não há diferença. Parece até que são mais estéticas. Há
poucos anos visitei o Museu Nacional e o Museu do Cairo, no Egito, tive ocasião de
examinar ligeiramente algumas múmias que ali estão em exposição. Crê-se que uma delas
data do tempo de Moisés, ou seja, 3.500 anos mais velha do que nós, mas não se pode ver
diferença apreciável. Certamente não medi o crânio, mas deixo que alguém o meça e diga
quantas polegadas ou centímetros de diferença há entre o dela e o seu. (1) As múmias de
Totmés III e de sua esposa Macará, para não falar de muitas outras mais antigas,
encontradas no Museu do Cairo, podem ser examinadas. Suas formas anatômicas não
diferem de nós e sua capacidade intelectual está na História. No Museu de Atenas há
esqueletos cuja idade se perde na noite dos tempos. Examinados mesmo ligeiramente,
são iguais a nós. Foi isso que o autor observou ligeiramente.
(2) O segundo argumento é quanto à seleção natural; cremos que o mais forte
vence o mais fraco, e que o mais feio busca o mais bonito, mas quem pode provar que de
um sapo nasça um galo de campina ou mesmo qualquer outro animal mais próximo do
sapo? Quem foi que já viu sair da água um animal da terra? O tubarão e a baleia
destroem miríades de outros peixinhos e mesmo os seus semelhantes mais fracos, mas
que resulta daí?
O tubarão continua tubarão, a baleia, baleia e assim por diante. Temos diante de nós
experiência de milhões de pessoas em muitíssimas gerações, todas elas dedicando-se à
criação, mas ainda ninguém nos mostrou que houvesse nascido, no seu quintal ou cercado,
outra coisa além do que ali foi posto. Se existe tal lei de evolução, ela devia ter mostrado
sua ação, ainda que fosse muito imperceptivelmente. Demais, se esta lei existe, por que
parou no homem? Hoje já se pode construir história anterior a Abraão, ou seja, de 8.000 e
tantos anos atrás, e tudo que se sabe daquela gente é que era igual a nós: andava, comia,
bebia e fazia guerra. Onde está a evolução que nada tem mostrado em tão longo espaço
de tempo? Parar não podia, porque, sendo uma lei, não tem liberdade nem vontade, tem
de continuar seu curso cegamente.
Sobre seleção sexual ou a escolha da mais bela, basta dizer que há uma inata tendência à
degeneração; elementos estranhos, na vida orgânica dos animais, pendem de contínuo
para degenerá-los, como uma conseqüência do elemento descomponente e desvitalizador,
que culmina na morte, e Deus colocou neles o instinto de preservação e aperfeiçoamento,
como uma reação contra o germe da morte. A mesma reprodução enfraquece os
reprodutores e, se algo não se fizer, o desequilíbrio não demorará a derruir a raça e a
produzir a involução, em lugar de evolução.
(3) Sobre a homogeneidade anatômica, do braço ou da perna do homem, a perna dianteira
e traseira do cavalo e do macaco, a asa do pássaro, pode-se dar uma explicação mais
racional do que uma reles demonstração descendente. Estes órgãos estão perfeitamente
de acordo com as necessidades locomotivas dos diversos animais. Cada qual tem os meios
de prover sua subsistência e defesa. Sem as asas, o pássaro seria vítima do menino
curioso, atraído pela beleza ou pelo canto ou sua plumagem; sem as quatro pernas, o
coelho seria fácil repasto ao caçador, e sem os braços a indústria e o progresso seriam para
sempre condenados à estabilidade. O macaco é, como querem os evolucionistas, o bisavô
do homem, mas ainda assim é com dificuldade que ele segura a banana para comer. Há
mais razões em admitir que o Criador bondoso assim proveu os diversos animais dos meios
necessários a seus misteres de vida, do que crer que eles representam avanços na ordem
evolutiva.
(4) Sobre a embriologia comparativa, é impossível discorrer aqui, mas uma palavra sobre
as mais recentes conclusões nesta matéria será cabível.
Os estudos mais recentes feitos por notabilidades deixam claro que há semelhanças
e dessemelhanças. Quanto às semelhanças nada mais natural, porquanto a vida, de um
modo geral, obedece a um plano de conjunto. Há semelhanças nos aparelhos
respiratórios, circulatórios, digestivos, locomotores, e em alguns casos há mesmo perfeita
identidade. Todavia, o sangue que circula nas veias do carneiro produz lã, o que circula
nas veias da cabra produz pêlo; e o que circula nas veias do homem não produz nem uma
coisa nem outra. Portanto, pelo lado das dessemelhanças entre a vida dos vários animais
não há necessidade de argumentação, porquanto elas são flagrantes.
Se compararmos os protozoários com os moluscos e estes com os quadrúpedes, vamos
também encontrar analogias num ponto ou noutro. As várias escalas da vida animal,
mesmo sem revelarem descendência umas das outras, revelam um plano de conjunto que
se eleva até chegar ao homem.
Sobre as analogias anatõmicas entre o homem e o macaco, de que se tem feito
tanto alarde, também o problema não é o que parece. O conhecimento das primeiras
fases da evolução embrionária do Homem e dos Símios é ainda imperfeitamente
conhecido, mas os estudos de Selenka fazem crer que nos símios do Antigo Continente,
nos Antropóides e nos Hominídeos há íntima semelhança, se não identidade, nos
fenômenos essenciais que caracterizam essas fases.
(1) Mais ainda, falando das diferenças que se notam cedo no processo evolutivo dos fetos
humanos o nos do orangotango, não obstante os estudos de Strahl mostrarem apenas
pequenas diferenças vistas ao microscópio, diz o mesmo autor: Cedo se podem distinguir,
porém, o embrião humano do dos símios providos de cauda, pelo crescimento desta nos
últimos. Confrontando o embrião humano de quatro a cinco meses com o correspondente
dos Antropóides, registam-se algumas diferenças, como a conformação da mão e a do pé e
a posição dos órgãos genitais externos...
(2) Examinando despretensiosamente os fetos humanos e de símios, verificam-se, à
primeira análise, as profundas dessemelhanças, ao lado de algumas semelhanças. Mas
isso é verdade quanto a muitos outros fetos. Não é, pois, por aí que se poderia
estabelecer o parentesco do homem com o macaco, pois o mesmo Mendes Correia, com
as suas predileções evolucionistas, diz que, "se estes fatos permitem crer nesse parentesco
(do Homem e do Macaco), afirma-se que nenhum dos macacos atuais se pode considerar o
antepassado humano". Mendes Correia, Homo, Porto, 1926.(pág. 14).
Portanto, o que resta de toda a boa vontade em encontrar um parentesco entre as duas
espécies não passa de um esforço para responder à pergunta de onde viemos? por não
quererem os homens aceitar as conclusões da Revelação.
Aceitando que a primitiva manifestação de vida foi o protoplasma, convém
perguntar como nasceram os olhos, os ouvidos e os outros órgãos dos primeiros seres
vivos. Aqui a doutrina racionalista tem um pedaço de mau caminho. Há pouco tempo li
uma exposição evolucionista em que o autor afirmava que os olhos nasceram ao primeiro
animal da seguinte forma: Ao sair do sol, esta "gia" (ou o que quer que fosse ) voltava a
cabeça para o lado do sol, e pouco a pouco foram aparecendo dois pigmentos, que
terminaram em ferida; daí vieram os olhos. Além deste argumento ser anticientífico,
porque o sol é um destruidor e não criador, cabe perguntar por que só nasceram dois
olhos e não meia dúzia? Por que só dois ouvidos e não mais? Isto mostra de quantas
especulações se tem de lançar mão para não aceitar o que a Bíblia diz.
(5) Quanto aos órgãos rudimentares encontrados nos animais inferiores, tais como o dedo
mínimo da pata do boi, as barbatanas do peixe etc., seria entrar num labirinto, para
explicar tudo racionalmente. Quando algum evolucionista provar que eles são relíquias de
nosso antigo estado, podemos entrar numa discussão racional do problema.
Tomemos o boi ou o cavalo, por exemplo, e perguntemos se estes rudimentos que
apresentam nas patas são restos dos dedos que perderam e então teremos mais prova de
retrocesso do que progresso. Tiveram dedos como nós, mas perderam-nos e, neste caso,
só nos resta esperar que seremos um destes animais mais tarde, em lugar de já o
havermos sido.
Deus disse: "Produzam segundo a sua espécie". Isto nos contenta mais do que todas as
especulações racionalistas. Há mais consolo e segurança no que a Bíblia diz do que em
todas as especulações anticientíficas dos últimos séculos.
Em resumo, esta teoria requer, para o desenvolvimento do seu sistema, um imenso
período de tempo, que nos leva muito além dos primeiros traços de vida vegetal ou
animal, e, portanto, faz-nos crer alguma coisa de que não se pode apresentar a menor
evidência e muito menos qualquer tato. Coloca-nos em mera hipótese, que não encontra
resposta nem na ciência nem na razão. É especulação sem base. Toda a ciência está
baseada em fatos, que se podem explicar total ou parcialmente; e esta teoria não encontra
explicação em parte alguma, nem mesmo nas ciências mais diretas, como sejam, a
Geologia, a Paleontologia, a Arqueologia e especialmente a Antropologia.
Mas ainda este sistema requer uma sucessão íntima de espécies, diferindo de pai para
filho, sem pular de uma espécie para outra, sem deixar elos quebrados, revelando
ascendência normal, de modo a poder desenvolver uma espécie de tal forma que a espécie
seguinte seja da mesma natureza, com as diferenças próprias ao progresso desejado.
Assim entre o homem e o macaco deve haver uma série de centenares ou milhares de elos
intermediários, pois que nenhum evolucionista aceitará que o homem é o produto
imediato do ape. Mas onde estão estes elos?
Desde muitos anos que se procura pelo menos "o elo" e até agora nada se achou. Tem-se
pedido à terra que ajude a resolver o problema e tem-se escavado o solo em busca do ELO
perdido, mas ainda nada se encontrou. Desde o protoplasma ao peixe, no réptil, nos
animais vertebrados e invertebrados, nos pássaros, no cavalo, no crocodilo, no macaco,
enfim, exigem-se estes elos, mas não podem ser encontrados. Darwin limitou-se a dizer
que a Geologia é muito imperfeita e que pouco podia ministrar à sua teoria. Realmente é
muito imperfeita sobre seu sistema e nada diz que o ajude a provar a origem do homem e
dos outros animais. É uma teoria surda-muda de nascença, que nunca teve a faculdade de
falar. Se esta teoria fosse verdadeira, não há dúvida que poderia encontrar, não meros
vestígios, mas abundância de provas nas diversas camadas geológicas mas só se
encontram animais que caem nas classificações ordinárias. Nada tem sido descoberto que
não entre na classificação da Bíblia.
Origem e Antigüidade do Homem
Já se passaram muitos anos desde que Darwin publicou a sua obra "Descent of
Man" (1871), na qual sustentava que o homem provinha de espécies inferiores, através de
estágios quase imperceptíveis. A extrema antigüidade do homem, que poucos anos antes
tinha constituído a fascinação de alguns sábios, recebeu a última demão com o
aparecimento dessa teoria. Mas Wallace, um dos mais autorizados naturalistas e um
grande advogado do darwinismo, afirma: "É uma curiosa circunstância: não obstante o
cuidadoso estudo que o assunto tem merecido em toda parte do globo e as numerosas
escavações resultantes da abertura de estradas de ferro e minas, que têm oferecido
facilidades incomparáveis para as descobertas geológicas, nenhum progresso tem sido
feito, por um grande número de anos, em determinar o tempo e o modo em que apareceu
o homem. Os apetrechos paleolíticos no Norte da França há 50 anos passados ainda são as
mais antigas provas da existência do homem; e entre as mais variadas relíquias do antigo
mundo que têm sido trazidas à luz nenhuma evidência de qualquer dos elos perdidos que
deviam ligar o homem aos animais inferiores jamais apareceu. O que se diz do homem
pode-se dizer dos outros animais. Nenhuma evidência existe de que os animais inferiores
ou as plantas tenham evoluído." (1) A.B. Wallace, Tropical Nature and Othera Essays.
Nenhuma autoridade seria mais respeitável que a dos Profs. Virchow e Dana, o primeiro
dos quais afirma que nem um simples crânio fóssil de macaco ou macaco-homem foi
encontrado que pudesse pertencer ao ser humano; todas as descobertas de objetos que se
tem obtido como material para discussão nos têm afastado mais da hipótese proposta, e,
sobretudo, temos reconhecido a absoluta ausência do homem de espécie inferior". Huxley
achava que "entre o homem e o mais desenvolvido dos brutos, há 'um enorme golfo', uma
diferença imensurável, infinita". E Max Müller afirma: "Só o homem emprega linguagem,
só ele se compreende a si mesmo, só ele tem o poder de abstração, só ele tem idéias
gerais, só ele crê em Deus."
Mendes Correia, com as suas predileções pela evolução, diz: "Não sendo (o homem) mais
que um primata mais ou menos especializado, o Homem tem com os símios superiores
parentesco evidenciado por dados numerosos extraídos da anatomia comparada, da
embriologia, da teratologia, da paleontologia, da própria fisiologia, patologia e psicologia
comparadas etc. Mas se estes dados permitem crer nesse parentesco, afirma-se que
nenhum macaco atual se pode considerar antepassado do ser humano". Mendes Correia,
Homo, pág. 1.Mais adiante: "A constatação de que o homem, se, por certas
particularidades morfológicas, se aproxima de outros, foi a principal razão que conduziu
muitos investigadores à convicção de que nenhum dos Antropóides atuais é o antepassado
do Homem e de que à Paleontologia cabe procurar o antepassado comum dos Hominídeos
e simídios." R. Artman, cit. em Mendes Correia, Los Singos Antropoidos et I'Homme.
Está certo. Procura-se na Paleontologia o verdadeiro antepassado do homem, porque até
agora ainda não foi encontrado. A Geologia, a Paleontologia, a Antropologia, a Anatomia e
a História etc., têm sido convidadas a dar o seu depoimento sobre a origem e a
antigüidade do homem na face da terra, e até o presente nada disseram que diminuísse a
credibilidade de que o homem veio da mão de Deus. Que este admirável ser fosse criado
com capacidade de desenvolvimento e aperfeiçoamento moral e intelectual não
precisamos argumentar, porque a Teologia aceita esta conclusão, visto como Deus não
criou outro deus nem um ser estático. Cremos mesmo que o homem tenha sido
degradado em certas circunstâncias e que, nessa degradação, se tenha aviltado, e assim
seja encontrado em várias partes do globo, mas erigir esse estado incidental em caso
universal é concluir demais. Concluir da degradação de certa tribo a degradação de toda a
espécie não é nem filosófico nem científico. Há tribos inteiramente degradadas hoje em
certas partes da África, mas isso não quer dizer que a degradação seja igual em Londres,
Nova York e Rio de Janeiro. É certo que numa mesma cidade há modos de vida que se
distanciam de séculos, mas isso não quer dizer que a diferença seja de épocas. Há no Rio
de Janeiro favelas nos bairros de Ipanema, Copacabana etc., onde se leva vida primitiva, ao
lado de outra vida super civilizada. É isso que noutros casos deu lugar a especulações sobre
os vários estágios de civilizações que pareciam distanciar-se por milênios, quando em
verdade eram coevas. Heródoto diz-nos que os gelonis, uma tribo grega, foram expelidos
das cidades do Norte do Euxino e se retiraram para o interior e lá viveram em cabanas e
falavam uma língua meio grega e meio cita. E Mela diz-nos, deste mesmo povo, que se
tinha tornado completamente bárbaro, que usava como roupa para si as peles dos
inimigos que matava e como mantas para os seus cavalos. Os párias da índia, sudras,
degradados até à mais baixa condição de vida, devem descender dos primitivos habitantes
do solo, vindos da admirável civilização caldéia. A língua deles é um sânscrito corrupto, na
opinião de Max Müller. Se eles hoje vivem atrasados em milhares de anos, não significa
que estejam evoluindo, mas sim, que involuíram, de um povo ultracivilizado, para um povo
bárbaro. Não vai longe a Idade Média. Que foi? Simplesmente a degradação da
civilização clássica dos romanos, por efeito das invasões bárbaras, povos atrasados e
incapazes de continuar o ritmo de vida clássica. Quem poderá afirmar que daqui a um
milênio, se tanto, a Europa não estará vivendo como viviam os bretões há 1.300 anos
passados? Aí estão os esquimós e os fueguinos, milenariamente atrasados simplesmente
porque o seu clima não permite uma civilização desenvolvida.
A ausência de religião, entre algumas tribos apressadamente estudadas, foi tida como
prova da evolução da espécie humana. Entretanto, a aparente ausência de religião ou a
sua prática grosseira não devem ser tomadas como sintomas evolucionistas, mas como
prova de decadência. "Se há uma coisa que o estudo da religião comparativa coloca em
verdadeira luz, é a inevitável decadência a que toda religião está exposta", diz Max Müller.
O animismo, feiticismo, totemismei, politeísmo, tabuismo etc., estão longe de ser provas
da evolução da raça e da religião, e são é provas de regressão e decadência social e
religiosa. Concomitantemente com estados sociais e religiosos atrasados, vamos
encontrar povos de alta cultura e de religião aprimorada. Entre os egípcios verifica-se isso.
Há 5.000 anos passados, mais ou menos, tinham eles uma civilização que ainda hoje
maravilha. Ao mesmo tempo, os seus vizinhos árabes viviam em completa barbária.
Quando erigiram a grande pirâmide de 746 pés quadrados de base e 450 de altura,
exigindo um trabalho de 30 anos e talvez 12 milhões de trabalhadores carregando blocos
de pedra das pedreiras do Sinai, pesando 30 toneladas cada um, não seria preciso uma
civilização anterior capaz de responder por estas maravilhas ?
Não há tal coisa como evolução de espécie ou de sociedade humana. Há civilizações que
se aprimoram e outras que decaem. O homem desenvolve-se ou retrograda segundo as
condições de vida e do meio em que vive. Não é certo que o homem aparecesse
grunhindo, gesticulando, trepado pelas árvores, comendo coco de palmeira, gastando
milênios para chegar a falar. As primeiras civilizações surgiram após o aparecimento do
homem. Depois do dilúvio, o homem se nos apresenta como construtor, capaz de erigir
uma torre que chegasse aos céus, construindo cidades que hoje estão perfeitamente
identificados tais como Ereque, Calné, Ur, etc.
A cronologia, tanto bíblica como étnica, não dá segurança alguma quanto a datas antigas.
Tudo repousa em meros cálculos, muitas vezes sem base alguma. No livro francês L'Art de
Vérifier les Dates, nada menos de 108 opiniões são dadas a respeito do período de Adão
até Cristo. Des Vignoles (citado por Ideler e Geikie) diz que podem ser dados 200
testemunhos sobre esse período, ao qual uns dão 6.984 anos e outros 3.483. Panodorus,
um monge alexandrino que viveu aí por 412 d.C., diz que Cristo nasceu no ano 5493 da era
de Adão. Anianus, outro monge egípcio, dá o ano de 5501. Juliu's Africanus calculou que
foi em 5500. Seallinger e Kepler, Calvisius e Petavius que foi entre 3950 e 3498. Portanto,
estas datas variam de 6984 a 3498. Não há jeito de dogmatizar sobre um assunto que
permite todos os cálculos e todas as conjecturas. O assunto não é claro na Bíblia. A
Septuaginta foi traduzida do hebraico e as datas nesta última língua eram escritas em
caracteres, e, não raro, uma letra era trocada por outra por engano, alterando
profundamente o total designado. Por outro lado, não havia, por parte dos escritores
sagrados, a menor preocupação cronológica, como, aliás, não havia em escritor algum dos
tempos antigos. Os únicos dois cronologistas mais antigos, Maneto e Berocius, deram
datas calculadas a seu jeito, sobre o Egito e a Babilônia, e as investigações modernas, neste
campo, têm mostrado que raramente se pode confiar nos cálculos deles.
Assim, a idade do homem continua sendo um enigma. Oscar Schmidt, que tentou ajudar
Darwin em suas especulações, ofereceu uma árvore genealógica que, dá o homem como
provindo do "Ornithor Rynchus" da Austrália., M. Laland diz que "xele é eterno". M.
Pietrement diz que os arianos tinham já amansado o cavalo antes de 19337. (1) A tentativa
de conciliação de Gênesis com estas especulações tem levado alguns a supor que houve
uma raça anterior a Adão e que a Bíblia nada diz sobre ela. Outros entendem que o
homem apareceu numa época geológica relativamente recente. O término do Período
Glacial assistiu ao aparecimento do homem. Para fortalecer esta hipótese, examinam-se
cuidadosamente todas as formações geológicas e todos os contornos geográficos do
mundo, para tirar conclusões a respeito da possibilidade de vida humana sobre a face da
terra em eras remotas ou recentes.
A narrativa de Gênesis, a respeito do Dilúvio, indica que o homem devia ter existido pelo
menos três mil anos antes, segundo alguns, e que, segundo outros, ele já existia no
Período Mioceno, portanto, muito anterior ao Período Glacial. Assim, tanto podem ter
razão uns como os outros, desde que tudo descansa em suposições. O problema do clima
e das mutações atmosféricas próprias ao habitat do homem também não pode ser
determinado com precisão, visto como, em cada período geológico, profundas
modificações se deram, que não podem hoje ser precisadas. Se ele coexistiu com a Rena,
o Mamute, o Rinoceronte e outros animais, alguns desaparecidos, não pode ser
determinado, porque as camadas geológicas em que aparecem esses fósseis não oferecem
continuidade segura. Pensava-se, há anos passados, que a formação de terrenos de
aluvião decidiria da antigüidade do homem em relação com as idades em que aparecem
resquícios de suas atividades. Cria-se que uma polegada de limo na Caverna de Kent
levava 5.000 anos para se formar; outros afirmam que noutras partes crescia 1/3 de
polegada por ano, o que daria um pé de profundidade em 30 anos. Assim, os depósitos de
aluvião dependem muito de circunstâncias. M. de Rossi pensa que as camadas de aterro,
no curso do Tibre, não vão além da República Romana. M. Chabas fez cuidadosas
escavações ao Norte da França e verificou que, num lugar, pedaços de cerâmica romana,
noutro uma moeda do tempo de Carlos VIII da França, noutro, pedaços de tijolo amarelo,
estavam tão profundos em camadas que pertenciam à Idade da Pedra que abandonou a
esperança de verificar qualquer coisa segundo a posição em que se encontravam estes
materiais.
Em tempos passados, pensava-se determinar as várias idades da civilização humana,
dividindo-as segundo remanescentes encontrados no subsolo. Assim, a Idade da Pedra
Lascada, Idade da Pedra Polida, Idade do Bronze e Idade do Ferro, eram conceitos certos e
decisivos. O Duque de Argyle diz: "Não há prova alguma de que tais idades alguma vez
existissem no mundo." Primeval Man, pág. 181; comp. Oncken, História Universal, pág.
34.
De fato, uma nação tem usado, a um tempo, instrumentos de pedra e ferro ou
bronze. Instrumentos de pedra eram usados no Sul da África, juntamente com outros de
ferro, e em certos lugares se usaram mesmo instrumentos de pedra, como, por exemplo,
na Mesopotâmia, embora fossem raríssimos. Na França, M. Chabas encontrou ferro onde
deveria haver pedra, e pedra onde deveria encontrar ferro. A Idade do Bronze tem de
desaparecer, porque o ferro encontra-se de permeio com ela por toda parte, segundo o
Prof. Desor. Noutros lugares, como a Holanda, encontram-se instrumentos de pedra
rústicos, em lugares onde deveriam usar o ferro, no preparo de tetos polidos para câmaras
mortuárias... Rossi encontrou evidentes provas de "Idade da Pedra", em épocas recentes
na Itália, por onde ele conclui que a Idade da Pedra é coeva da história verdadeira. O uso
recente da pedra é evidente nas descobertas egípcias, simultaneamente com o ferro, em
épocas de admirável desenvolvimento industrial. Temos um exemplo bíblico notável.
Josué circuncidou o povo com facas de pedra, mas neste tempo os egípcios usavam
ferramentas de metal da mais dura têmpera. Os árabes ainda hoje raspam a cabeça com
facas de pedra.
Portanto, estas idades nunca existiram e por estes achados não se pode determinar a
idade do homem sobre a terra. Pensava-se, outrossim, que o fato de se encontrarem
objetos humanos de permeio com ossadas de animais extintos devia ser uma prova da
grande antigüidade do homem. Partes do mamute, o urso das cavernas, a rena etc.
encontraram-se a dois pés de profundidade, nas cavernas de Rully de Germolles; e uma
queixada humana, um dente de mamute, uma flexa de pedra polida também foram
encontrados a uma profundidade de trinta e duas polegadas. Não se nega hoje que as
diferenças de clima permitiam a um urso viver em lugares onde hoje seria impossível. As
alterações que o globo tem sofrido nas variações de clima têm determinado mudanças de
vida nos animais em várias épocas. Tem-se encontrado restos de rinoceronte nos trópicos
e na Sibéria.
Do ponto de vista geológico, também nada se pode precisar a respeito da idade do
Homem. A terrenos a que foram dados 100.000 anos por alguns geólogos, outros deram
apenas 10.000. A terra do Golfo de Bótnia eleva-se, em média, 39 polegadas em 100 anos.
De acordo com esses cálculos, 3.000 anos dariam uma elevação de noventa e sete pés. Se
isso fosse real, a Rússia, desde Moscou a Sebastopol, teria sido transformada num imenso
lago. Certo é que tem havido elevações e depressões em vários lugares, como é certo que
os ditos movimentos geológicos alteram a fisionomia geográfica em vários pontos, e, com
isso, as mudanças de clima também. Usar estes cálculos para precisar a data do
aparecimento do homem na terra não tem dado resultado algum.
No Egito foram encontrados, nos subterrâneos mortuários pinturas que datavam de
15.000 anos antes de Cristo. Champolion mostrou que não eram mais antigas que o
Império Romano. Alguns deram à China uma idade de milhões de anos. Recentemente,
tem-se mostrado que a história da China não vai além de 2.000 anos antes de Cristo. Do
mesmo modo está provado que a civilização chinesa veio do Eufrates e talvez não remonte
além de 1200 a.C. Do mesmo modo, dava-se à índia uma história de centenas de milhares
de anos, mas a Ciência mostra que ela não vai além de 2000 a. C. As tribos arianas
apareceram no Indostão, aí por 1800 a. C. Desta forma, a índia não é multimilenária, como
se pensava. A mesma coisa se deu com o Egito. Boeckh, erudito alemão, deu ao primeiro
reino egípcio, de Menes, a data de 5702, Brugisch, 4455, Lepsius e Ebers dão 3892, Birch,
3000, Mr. Reginald, 2717, Poole, 2691. Entre os dois extremos há nada menos de 3.011
anos. Mr. Horner desenterrou do Delta um pedaço de cerâmica e fez estudos sobre o
crescimento do aluvião, dando o pedaço de barro por enterrado há 13.000 anos. Robert
Stefenson achou, também no Delta, perto de Damieta, a uma profundidade muito maior
que a de Horner, um tijolo com a efígie de Mechemet Ali, portanto, de 100 anos passados.
Os que criam no crescimento do Delta à razão de 3 polegadas e meia por 100 anos devem
ter verificado que ele cresce à razão de 18 polegadas nos mesmos 100 anos. Geikie, Hours
with the Bible.
A Filologia também foi empregada para provar a incomparável antigüidade do homem.
Pensava-se que para o aparecimento de uma língua ou dialeto eram precisos muitos
milênios, mas os estudos modernos de sociologia destruíram essa crença. Em poucos
séculos desaparece uma língua e surge em seu lugar um grupo de dialetos.
As mais antigas línguas egípcias mantêm perfeita conexão com as línguas indo-
européias e semítica. O velho Egípcio, assim como o Berber e o Tuareg, tem parte do
vocabulário semítico e parte do ariano. O mesmo fenômeno se dá com as línguas
tibetanas e burmesas, que são constituídas de vocabulário ariano e ao mesmo tempo
monossilábico, como a língua da China. Alguns filólogos não trepidam mesmo em afirmar
que o YhKing, o mais antigo e mais ininteligível chinês, dos monumentos chineses, não é
outra coisa senão a corrupção do velho assirio-acádio dos monumentos babilônicos.
Muitas palavras E,rn chinês começam com "i", em acádio com "g". Noite em chinês é Ilie",
em acádio, "ge".
Crê-se, com justificada razão, que a civilização chinesa, bem como a sua língua, vieram de
Susa. Bunsen, Egyto; Farrar, Origins of lnventions of Language; Sayel, em Conternporary
Review, janeiro, 1884. A identidade das várias línguas de toda uma região ou continente,
mesmo ininteligíveis que sejam entre si, é coisa comum. Que a civilização hindu e chinesa
da Ásia veio da Mesopotâmia, assim como a egípcia, ninguém hoje pode contestar com
provas substanciais. Terrien de La couperie, The Oldest Book of Chinese, cit. por Strong,
Vol. II, pág. 479. Que esta civilização se estendeu em várias direções, segundo as formas
de vida dos vários núcleos, originando-se daí as várias línguas e dialetos, é matéria
geralmente aceita. Pezzi, Aryan Philology, 125, Sayce, Principles of Comparative Philology,
págs. 132-174.
Estas diferenças não levariam, entretanto, muitos milênios para se cristalizarem. Um
milénio basta para que uma língua morra e em seu lugar apareçam dezenas delas. Os
arianos que emigraram para a índia falavam o sânscrito. Pouco tempo depois desapareceu
esta língua e surgiram vários dialetos. O Grego, o Latim, o Inglês, o Alemão e os grupos
eslavos todos provieram dele. O Latim deu lugar ao Português, ao Francês, ao Italiano e ao
Espanhol, e um inglês de hoje não entenderia um saxônio de seis séculos passados. Não
são necessários muitos milênios para uma língua morrer e em seu lugar aparecerem
diversas outras. Basta que ocorram inimizade, modificações geográficas ou dispersão,
para que os diversos grupos se encarreguem de criar uma nova forma de falar. Isso
também não prova - pelo contrário, combate - que as línguas evoluíram, e que o primitivo
homem não tinha o dom da palavra. A evolução ainda continua e continuará, enquanto
houver um grupo de seres humanos em alguma parte da terra. Qualquer que seja a idade
do homem, não é preciso imaginar idades e mais idades, períodos ou épocas, para que ele
se desenvolvesse até ser o homem que nós conhecemos. Felizmente, que as descobertas
arqueológicas têm reduzido o problema a seus próprios termos e a fantasia de alguns tem
sido reduzida a nada. Pretender que o homem precisasse de centenas de milhares de anos
para revelar o que é, hoje é perder tempo. A civilização caldaica e a egípcia, que não se
envergonhariam, em muitos respeitos, ante a civilização moderna, não são tão velhas.
Que sejam mesmo de 7.000 anos, isso coloca os egípcios e acádios dentro de nossos dias,
comparativamente.
A Antropologia também não tem muita simpatia por essas especulações. Pensava-se que
teriam sido precisos períodos quase infinitos para que o africano formasse o pigmento
escuro. Entretanto, já se sabe hoje que a cor do africano não é preta, mas cobreada, e que
o preto se formou no litoral ou em lugares pantanosos e sob condições especiais. Esta é a
opinião de Winwood Read. Os povos mudam de compleição e cor segundo os lugares que
habitam. Os americanos do Norte estão depressa perdendo as características arianas, para
tomarem as dos peles vermelhas. Cada região tem o seu próprio tipo, e se o exterior não
reagir, terá de haver regressão, e não evolução.
Creio, pois, que o homem apareceu algures entre o Nilo e o Ganges, possivelmente junto
do Tigre e do Eufrates, e apareceu tal como é hoje, desenvolvendo certas indústrias mais
rapidamente num lugar que noutro. Depois, veio o Dilúvio e mais tarde a dispersão
causada pela confusão das línguas. Desta dispersão vieram as antigas nações, que não
devem ir além de seis ou sete mil anos. Está é a idade do homem.
No estado em que está a ciência, não há perigo de o Gênesis ser desacreditado.
Nunca houve tal perigo e, cada dia que passa, menor é a possibilidade de descrédito.
Se a Palecintologia e a História não bastassem para desacreditar de uma vez a teoria da
evolução, bastaria a mais moça de todas as ciências para o fazer: a Biologia, que não tem
mais de 70 anos, encarregou-se de provar que as espécies se reproduzem justamente
como a Bíblia diz. Quando Mendel apresentou ao mundo as suas conclusões tiradas do
cruzamento de ervilhas de várias cores, Tehermach, de Vries, e Batson, de vegetais,
Correns, de ervilhas e feijão, Hurst, de coelhos, Devenport, de galinhas, mal se imaginara
que estas experimentações iriam dar fim ao darwinismo. Todas estas experiências
demonstraram que o produto da cruza não se afasta do princípio fundamental de que cada
espécie se reproduz segundo a espécie de onde provém. Por exemplo, Mendel cruzou
ervilhas amarelas e verdes. Obteve, na primeira geração, amarelas mestiças. Na segunda
geração, obteve um quarto de produtos verdes, um quarto amarelo, e dois quartos
mestiços, de amarelo e verde. Isto prova que o caráter verde e amarelo estava latente na
primeira geração e veio aparecer na segunda. Devenport cruzou galinhas andaluzas pretas
e brancas. Na primeira geração obteve cinzentas ou pintadas. Na segunda geração,
obteve metade dos produtos cinzentos ou pintados, um quarto preto e outro quarto
branco. Não é preciso amontoar provas. "Toda herança normal e patológica tem por
fundamento estas leis, e elas esclarecem pontos inteiramente incompreensíveis outrora
para os patologistas. Há um certo número de afecções, como a coréia de Huntington, o
mal de Meleda (Keratodermia Hereditária das extremidades), má formação em pinça de
lagosta, hipogalangia, hemeralopia ou cegueira noturna... das quais se diz que são de
caráter mendeliano dominante: outras, como o albinismo, a surdo-mudez, a retinite
pigmentar, as curiosas doenças ditas de herança matriareal, como a atrofia essencial do
nervo ótico, o daltonismo, a paralisia periódica, a hemofilia... são de caráter mendeliano
recessivo." (1)
Coube, pois, à Biologia mostrar como as virtudes e defeitos dos pais se transmitem aos
filhos de geração em geração, sem que se precise de qualquer desvio. Milênios antes de a
Biologia decidir assunto tão palpitante, quer para a ciência quer para a Bíblia, já Moisés
tinha declarado que as plantas, os animais e os homens se reproduzem segundo suas
espécies. O evolucionismo está para sempre liquidado.
O Homem, a Criação por Excelência - Gênesis 1:26-2:7
A segunda parte do dia foi tomada para a criação do mais alto ser - o Homem. A
linguagem em que Moisés nos dá a história da criação do homem é significativa: E Deus
disse: façamos o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança." Para com
nenhuma outra criação Deus usou linguagem tão expressiva, o que bem mostra a
superioridade do homem sobre todos os demais seres criados. Um ato especial presidiu a
sua criação, e linguagem especial foi usada. "Cada passo na criação ,diz o Dr. Carrol, foi
uma profecia da vinda do homem". Este mundo é digno da presença de um ser como o
homem, ainda que este, em seus pecados, se desvirtue e se aniquile, separando-se de
Deus e fazendo do mundo mesmo e seus prazeres o seu deus. Mas quem não se abismará,
ao pensar nos imensos recursos armazenados no coração da terra, para gáudio e conforto
do homem?
Façamos o homem à nossa imagem... Que significa esta linguagem? Com quem está Deus
tomando conselho? Que significa "nossa imagem e semelhança"? Diremos primeiro o que
significam o pronome e o verbo no plural.
Há três interpretações possíveis para este texto:
(1) Que Deus está associando os anjos à criação do homem, portanto, invocando
sua cooperação.
(2) Que Deus está falando em estilo real, à semelhança dos antigos monarcas.
(3) Que este pronome e este verbo no plural incluem as três pessoas da Trindade.
Sobre a primeira interpretação obsta-se que, conquanto os anjos se tenham alegrado
quando Deus lançou os fundamentos da terra, todavia, eles não aparecem em parte
alguma como co-participantes na criação. Seria, aliás, uma honra demasiado grande para
seres criados.
Sobre a segunda interpretação, objeta-se também que este estilo real, não se
encontra nos escritos dos antigos e que era mesmo desconhecido. É estilo moderno e tem
mais de democrático que de real.
A terceira é aceitável, por estar de acordo com o teor geral da Bíblia, de que as três
pessoas da Santíssima Trindade tomaram parte na criação (Gên. 1:4; João 1:1-5 e ref.).
*Nossa imagem e nossa semelhança" significam a mesma coisa. Não se podem referir à
imagem física de Deus, por que ele não tem forma. Deus é espírito, diz Jesus Cristo. É
notável, entretanto, que, não tendo Deus forma, sempre que se manifesta
antropomorficamente, escolhe a forma humana. Ou porque o homem seja a forma mais
ideal, ou porque esta forma tenha algo de superior, que nós não podemos compreender.
Deus Jeová apareceu muitas vezes a Abraão, Jacó, Isaque e outros personagens, sendo
sempre na forma humana.
"Imagem e semelhança de Deus" só tem paralelo no homem moralmente. Ele é um ser
moral, racional e espiritual. Se em tudo mais ele se pudesse igualar com os outros animais,
sua razão, espiritualidade e moralidade o tornariam infinitamente superior a qualquer
outro animal. Além disto, tem consciência de que é reflexo de sua natureza moral, tem
vontade livre e racional, tem capacidade de escolher inteligentemente. Estes predicados o
tornam o rei de toda a criação.
"Imagem e semelhança", crêem alguns teólogos, incluem somente personalidade e
tendência para a religião. Não se desconhece que a personalidade é maior que qualquer
outra coisa no Reino Moral, mas há outros predicados verificáveis no homem, que o
tornam semelhante a Deus em mais coisas do que na personalidade. Os atributos morais e
de santidade devem ser incluídos na personalidade do homem, ou ele não poderá ser a
imagem e semelhança de Deus. "Santidade" é um atributo fundamental de Deus e deve,
necessariamente, ser um atributo do ser criado à sua imagem. Algumas escrituras ensinam
que esta qualidade é inerente ao homem (Ecl. 7:29; Ef. 4:24; Col. 3:10). Esta verdade da
inerência moral do homem é o seu maior predicado e ascendência sobre todos os brutos.
Por mais degradado que seja um homem, sempre revela maior ou menor propensão para a
moral. É uma tendência sua que pretende reviver a imagem de Deus em si, perdida por
Adão. Esta constante luta em direção ao céu é mais que "personalidade* e tendência
religiosa. Também Satanás é uma personalidade, mas com tendência para a perdição e
com espírito religioso desassociado de Deus. O homem foi criado para refletir o caráter do
bem, tanto quanto pode ser demonstrado. Podemos enumerar os predicados do homem,
que não só o colocam infinitamente acima de toda a demais criação, mas o tornam a
imagem e semelhança de Deus:
(1) vontade;
(2) livre arbítrio e
(3) santidade.
Outros predicados secundários:
(1) responsabilidade;
(2) espírito religioso;
(3) amor;
(4) espírito em contraposição com alma vivente;
(5) reflexo da imagem de Deus em sua forma física;
(6) domínio sobre as paixões carnais;
(7) domínio sobre a criação e
(8) comunhão com Deus. (1)
(1) A palavra ALIO significa, no pensamento hebreu, o "pai de todos os viventes",
assim como Eva significa "vida". Adão, em hebraico, é o Ânthropo do Grego, que significa
"o que olha para cima". Homo, em latim, pensava-se que provinha de humus, a terra, mas
essa interpretação foi abandonada, para aceitar a que significa "o que fala". A Cosmogonia
Fenícia chama-o Adam Quadmu, o que "nasce da terra". No Egito pensava-se que tinha ele
sido feito do lodo do Nilo. A narrativa caldaica chamava o primeiro homem "o que a terra
produz".
O homem foi criado com corpo e espírito, enquanto que todos os outros animais
foram criados corpo e alma vivente. Devemos fazer distinção entre "espírito" e alma
vivente. O sopro divino no homem não o tornou um "ser divino", mas tornou-o
infinitamente superior a qualquer outro animal, visto que ele se tornou alma vivente só
depois que o espírito lhe foi comunicado. Jó 27:3 descreve, com toda a precisão, que o
espírito do homem não é alma animal e que, não obstante ser vida, o princípio que anima
seu ser, esta vida, é de origem divina. A palavra Neshama não é empregada na criação dos
outros animais nem expressa meramente vida animal (Gên. .7:21-23; Deut. 20:16-22; Js.
11:11-14; 1 Reis 17:17). O espírito do homem foi, portanto, o resultado do ato especial de
Deus, assim como foi o seu corpo. Quanto aos peixes, ele diz: "Produzam as águas
abundantemente". Quanto aos outros animais, diz: "
Produza a terra." Mas, quanto ao homem, diz: "Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança". O homem é, pois, diferente na criação, na vida e na morte. Esta diferença o
separa de todos os demais seres criados e o une, em ser, natureza e atividade, com o
Criador (Prov. 20:27; Jó 5.33:4; 27:2,3). Daqui em diante não só toda a criação, mas todas
as atividades de Deus são para tornar esse homem feliz e digno de seu Criador. Vejamos o
programa e missão do homem:
1 . O homem foi criado:
(a) Inocente em si mesmo e à vista de Deus.
(b) Em comunhão com o Criador.
(e) Em feliz harmonia com todo o programa criativo.
(d) Livre da morte. Esta veio como conseqüência do pecado que aboliu a
relação existente entre o homem e Deus. Quebrou-se o elo da vida eterna, e o homem
morreu.
2. Foi criado para encher a terra: "Frutificai e multiplicai-vos." Deus podia fazer com
a raça humana o que fez com os outros animais, mas deixou este privilégio para o homem,
que é uma parte do programa divino. A concessão de uma ajudadora, além do seu fim
social, teve como objeto a execução deste plano de Deus. Nada há mais sublime e divino
na terra que a lícita propagação e multiplicação da raça humana, e Deus mesmo tem
rodeado este programa dos mais intensos afetos e privilégios. Nada há na estrutura social
que rivalize com o casamento, e nenhum outro gozo suplanta o que produz a chegada de
um ser a este mundo, trazendo nos lábios o doce nome de mãe. Nenhum outro pecado é
de conseqüências tão funestas à sociedade como a corrupção dessa instituição divino-
social.
3. Foi criado para domínio e conquista:
(a) "Sujeitai a terra,
(b) dominai sobre seus habitantes e
(e) sobre todos os seus poderes." Este é um dos característicos mais
salientes do homem - dominar e governar. Cada dia este programa está sendo mais
expansivo. Hoje ele domina a terra, o mar e os ares. Está indo além do seu programa e
comissão. Poucas Escrituras se tem tornado tão práticas como esta.
4. Destinado a todas as bênçãos da terra. Em sua comissão de governar é incluída a
prescrição alimentar. Toda a erva e fruto da terra, bem como todos os animais, são para
alimentar o rei da criação. Tem-se procurado provar que a disposição edível do homem é
contrária ao uso de carnes, e que só escolheu para seu alimento as ervas e os frutos, mas
aqui Deus declara que todo animal em que há alma vivente será para alimentar o homem.
A divisão entre animais limpos e imundos veio mais tarde, com o cerimonialismo judaico
(Lev. 17:10-18; ver Atos 15:9-20). Está, assim, completo o programa criador. Nada falta na
terra para que seja o paraíso.
CAP. IX - O DIA SÉTIMO
(Gên. 2:1-3)
"Tudo que Deus tinha feito era muito bom", até a sua própria vista. Estava pronta a
grande obra da criação. O plano onde tantos dramas haviam de realizar-se nas eras
vindouras acabava de sair das mãos do supremo artífice e era muito bom, não tinha
defeito. O pecado ainda não tinha entrado no mundo e destruído a grande obra. "E os
céus e a terra foram acabados." A referência é principalmente à terra. Não somente a
terra e os céus, mas todas as suas hostes. Esta palavra significa hoste organizada.
O escritor de Gênesis contempla a terra pronta, com todos os elementos que lhe dão vida
e beleza. Toda a criação obedeceu a um plano de Deus. Nada surgiu por acaso. Fosse
qual fosse o tempo para criar tudo que o nosso planeta contém, tudo obedeceu a um
plano. A Bíblia o diz e toda a verdadeira ciência o confirma. A luz da estrela mais remota
que se conhece leva 330 mil anos para chegar à terra e crêem os astrônomos que a luz de
algumas estrelas ainda não chegou a nós, a despeito de correr 300 mil quilômetros por
segundo. Todas estas grandezas e a imensa pequenez de um átomo são partes essenciais
deste grande todo que Deus completou nos seis dias da criação. Um cientista afirmou que
a destruição de uma mônada alteraria a conformação do universo inteiro. Um mundo ou
universo como este precisaria ter um Deus como a Bíblia revela. A pobreza materialista
nunca conseguirá explicar a origem e governo do universo. Só a Bíblia o faz.
Completado, assim, o programa criativo, Deus descansa no sétimo dia. Deus descansou,
não porque estivesse cansado, mas porque cessou sua obra criadora; mas não descansou
da obra governadora nem da obra providencial. Só no primeiro sentido Deus descansou.
Este dia de descanso é ensinado através de todo o Velho Testamento e é típico do dia do
Senhor no N.T., bem como uma lição objetiva ao homem de todos os tempos.
O homem deve descansar de duas formas: (a) fisicamente e (b) moralmente. Deus
descansou para nosso descanso. O homem que não descansa morre cedo. É um problema
que não deve ser negligenciado por nenhum governo. De sua observância ou não decorre
a virilidade da raça. A mente do homem deve descansar das coisas materiais; precisa
meditar, comungar com Deus. Nada é mais ruinoso à sociedade do que a abstenção do
culto. O materialismo, a imoralidade e tantas outras coisas que estão minando a estrutura
orgânica da sociedade e da família têm sua origem na falta de espiritualidade. O
embrutecimento de um povo é fácil, quando esse mesmo povo deixa o seu espírito ao
abandono.
A palavra sábado vem da palavra hebraica Shabbath, que significa descansar de trabalhos
temporais, para fins santos. Portanto, o dia de sábado é um dia santo. No N.T. esta
palavra ocorre como dia de descanso (He. 4:9, traduzida repouso). É um dia de descanso
ou cessação de atividades materiais, para fins espirituais. A legalidade deste dia veio
depois com a Lei de Moisés, mas em sentido algum alterou seu significado original de culto
e atividades espirituais. Sábado não é, pois, o dia seguinte à sexta-feira, não é o sétimo
dia, mas o dia de descanso. O que importa é sua aplicação, e não a sua ordem.
Narrativa Suplementar da Criação
(Gên. 2:4-25)
O verso 4 começa uma nova divisão. Estas são as "gerações do céu e da terra". Esta
expressão ocorre dez vezes no livro de Gênesis e serve de base às divisões do livro. Ao
lermos este capítulo atenciosamente, em português mesmo, notamos uma apreciável
diferença no estilo e na fraseologia do primeiro capítulo. Alguns críticos têm visto nesta
diferença um outro autor, além de Moisés; e outros têm chegado à conclusão de que o
livro de Gênesis é um amálgama de documentos de diferentes idades e autores, reunidos
por um indivíduo a que eles chamam redator.
Uma análise ligeira e uma consideração mais honesta para com o conteúdo do capítulo
mostrarão, porém, que a diferença em estilo não denuncia diferença de autor ou época,
mas diferença de assunto. O estilo de cada parte é o produto do assunto discutido. O
primeiro capítulo de Gênesis consiste de narrativas breves, sentenciosas, gráficas, tais
como a natureza do assunto mesmo requer. O segundo capítulo, como, aliás, todo o resto
do livro, toma a narrativa do primeiro, elabora-a, expande-a, de modo a dar-lhe beleza e
gosto. O estilo, pois, é suave, complexo, elaborado.
Outra notável diferença é a que se refere ao nome de Deus. No primeiro capítulo
encontramos uniformemente a palavra "Deus" (Elohim). No segundo, "Jeová Deus", pelo
que dizem que o segundo capítulo não foi escrita pelo mesmo autor do primeiro. "Jeová
Deus", porém, aparece através de todo o V. T. e, se toda vez que esta forma do nome
divino aparecer tivermos que arranjar um autor diferente, poremos em pedaços a
harmonia do livro de Deus. A explicação que se tem procurado dar e que todos os crentes
ortodoxos aceitam é que a palavra "Deus" (
Elohim) ocorre sempre que a divindade age abstratamente ou em geral, como em sua
função criadora; e "Jeová Deus", quando expressa a revelação da divindade em sua relação
com o homem. Em outras palavras, "Jeová Deus" é o "Deus do concerto"; Deus é o Ser
Supremo, em sentido geral, o Deus Criador. Jeová Elohim é o Deus da revelação e do
concerto.
O segundo capítulo, parece descrever a ordem da criação diferentemente do primeiro. No
primeiro capítulo, a ordem cronológica é seguida restritamente, o homem aparecendo por
fim; no segundo, surge a declaração de que não havia na terra nem erva nem homem, e
após declara a criação do mesmo homem, sem mencionar outras atividades criativas. A
razão destas diferenças é facilmente explicável. Na primeira narrativa, Moisés começa
declarando que Elohim criou o Cosmos; depois passa a descrever em ordem, graficamente,
o método da criação. No segundo capítulo, o autor apenas descreve elaboradamente
alguns pontos que tinham sido tocados ligeiramente na primeira narrativa.
Por exemplo, no capítulo 2:5, ele declara que não "havia planta no campo, porque Jeová
não havia feito chover sobre a terra, e ainda não havia homem para cultivar a terra".
Certamente Moisés tem em mente o estado caótico da terra antes da criação, desde o
primeiro dia, porém não a ordem da criação, dia após dia, visto já haver feito o seu relato.
Em poucas palavras, ele descreve o que a terra era, sem pretender descrever o processo
que a modificou. No primeiro capítulo, diz que o homem e a mulher foram criados, mas
nada diz de como a mulher foi formada, nem tampouco descreve o processo usado por
Deus na criação do homem. O segundo capítulo diz-nos como o corpo do homem foi
formado do pó, da terra e como lhe foi comunicado o espírito, e como a mulher foi
formada da costela de Adão. Esta é uma descrição elaborada ou uma explanação à
primeira narrativa do capítulo primeiro, e não uma história diferente, narrada por um
autor diferente daquele do primeiro capítulo.
O segundo capítulo supre, da mesma forma, os detalhes acerca da preparação do jardim
para o homem e as condições em que ele entrou na sua posse. O homem assumiu certas
responsabilidades e obrigações impostas pelo Criador e, da mútua aceitação, concluímos
que Deus pela primeira vez entrou em concerto com o homem. Outra preciosa informação
fornecida pelo segundo capítulo é sobre a capacidade intelectual do homem. Alguns
etnologistas têm procurado demonstrar que o primitivo homem era de intelectualidade
rudimentar, incapaz para os grandes empreendimentos sociais, e invocam em favor desta
hipótese o fato de que o homem primitivo morava em cavernas, e que as chamadas idades
da Pedra Lascada, da Pedra Polida, do Bronze etc. são vestígios naturais da capacidade
rudimentar do primeiro homem. Afirmam que os selvagens de nossos dias não são outra
coisa senão relíquias do primitivo homem. Não está nos moldes deste comentário
responder a todas essas
teorias, (Ver o Capítulo VIII) mas cremos firmemente que Adão era um homem de
capacidade e intelectualidade suficientemente grandes para compreender as
responsabilidades de rei e dominador da criação e entrar em concerto com Deus mesmo.
Os selvagens são a degeneração do primitivo tipo humano, e não o homem civilizado, o
produto da evolução do selvagem.
Lucas, escrevendo a genealogia de Jesus segundo a carne, declara que Adão não era
nem filho de macaco nem um selvagem rudimentar. No v. 37 do capítulo 3, diz Moisés: "
Matusalém, que era filho de Enoque, que era filho de Jarede, que era filho de Enos, que
era filho de Sete, que era filho de Adão", que era filho de... de quem? da família
quadrumana dos evolucionistas? da família selvagem ultimamente evoluída do
antropóide? Não! Mas... filho de Sete, que era filho de Adão, que era filho de Deus. Deus
criou todos os seres na perfeição em que se encontram hoje e certamente não criaria o rei
da mesma criação como os selvagens das nossas florestas. Feito à imagem e semelhança
de Deus, o homem exclui a probabilidade de qualquer hipótese evolucionista. Não se pode
aceitar tal hipótese, sem ser destruída uma parte considerável da história humana e sem
se alterar, até aos fundamentos, os patrimônios mais queridos de todos os povos e raças,
sem se destruir mesmo a maior Roma de conhecimentos científicos de qualquer natureza.
Esta aparente duplicidade de narrativas, tem dado lugar a muitas divagações. Foi Astrue,
filósofo francês, quem primeiro levantou a suspeita de que Moisés usou duas narrativas ao
escrever o seu Gênesis. Todavia, Astrue não levantou qualquer dúvida sobre a Revelação.
Apenas Moisés teria se valido de documentos anteriores.
Posteriormente, foi esta hipótese elaborada pelas diversas escolas racionalistas. Os
mais conservadores elaboraram a hipótese, reconhecendo que, dos dois documentos de
que Moisés se teria valido, um usava o nome divino Jeová e o outro, Elohim. Daí, o
batismo dos dois documentos com os nomes Jeovístico e Eloístico. Mas o processo de
decomposição não parou aí. Logo descobriram que em cada "Documento" havia palavras
estranhas aos dois. Portanto, houve outros colaboradores a que deram nomes muito
significativos. Então alguém teria usado os tais documentos e os teria elaborado, incluindo
vocabulário propriamente seu. Esse colaborador recebeu o nome de "Redator". Ainda
não parou aí o processo de decomposição ou elaboração dos dois inocentes documentos
de Astrue. Um deles pertenceria a uma Escola Eloísta, chamada também sacerdotal, e
outra Jeovista.
Quando os racionalistas alemães se propuseram a determinar, a seu modo, o que teriam
sido estas escolas, chegaram ao ponto de negar a autoria mosaica do Pentateuco,
atribuindo os cinco livros a estas escolas do segundo período da monarquia hebraica.
Foram mais longe. Em lugar de Pentateuco, devemos dizer "Exateuco", para incluir Josué,
e o Deuteronômio, do tempo do rei Josias, rei de Israel. Em conclusão, nada
devemos a Moisés e nem mesmo se pode saber a quem se devem estes livros.
A confusão chegou a tal ponto que um determinado verso tem uma frase pertencente ao
Doe. Eloístico, uma palavra do Doe. Jeovístico, uma do Doe. Sacerdotal e uma ou mais
dos redatores.
Este é o caminho a que a incredulidade leva a suposta sabedoria crítica, que termina
negando tudo, desde Moisés e até mesmo a Deus.
CAP. X - A PREPARAÇÃO DO JARDIM
(Gên. 2:8-25)
Em preparação para o advento do homem, este alto e privilegiado ser, Deus tinha
providenciado para que não ficasse à mercê do tempo, como os outros animais inferiores:
fez-lhe um jardim, uma deliciosa habitação, o jardim do Éden.
Éden não era verdadeiramente o jardim, mas o distrito ou local em que estava
situado, a leste do qual ficava o jardim, propriamente. Alguns comentadores preferem, em
lugar da expressão "da banda do Oriente" (Leste), a expressão "banda do tempo antigo",
significando que Deus preparou o jardim muito antes do homem. A palavra "Paraíso",
sinônimo de Éden, ocorre apenas três vezes na Bíblia, e estas no N.T., como designação do
céu, da habitação do povo de Deus, tanto durante o tempo da morte, como da
ressurreição (Lucas 23:43: II Cor. 12:2; Ap. 2:7). Ezequiel fala diversas vezes do jardim do
Éden (28:13; 31:9, 16, 18). Isaías 51:3 e Joel 2:3 usam o termo como designação de um
lugar de delícias, abundância de frutos, ininterrupta comunhão com Deus, inconsciência de
culpa ou pecado, despreocupação das contingências da vida, vestuário, comida, tudo.
Tudo isto constituía o harmonioso conjunto que rodeava a vida de nossos primeiros pais.
Entre todas as coisas, destacava-se a árvore da "Ciência do Bem e do Mal", a prova da
liberdade de adorar e servir a Deus voluntariamente, ou voluntariamente escolher outro
caminho.
Muito se tem feito para achar o lugar do jardim e nada se tem conseguido de
positivo. A descrição dada na Bíblia não encontra solução na geografia atual. É fácil
explicar por que não se pode identificar o lugar. Deus mesmo esconderia da posteridade
um lugar para o qual ela se tornou indigna. As transformações que o solo sofre muitas
vezes alterando fundamentalmente a sua configuração, pelo levantamento de montes e
aparecimento de vales em seus lugares, mudando o curso dos rios etc., explicam por que
os dados bíblicos não encontram paralelo na geografia. Alguns crêem que o lugar
conhecido por Mesopotâmia representa o antigo lugar do jardim, mas não parece
proceder a suposição. O lugar mais provável é a alta Armênia, onde têm sua origem os
dois únicos rios restantes dos quatro que regavam o jardim. As tradições pérsicas e hindus
parecem favorecer a Mesopotâmia; e muitos comentadores localizam o jardim algures
entre o Tigre e o Eufrates, o Nilo e o Indo. Esta área, porém, é grande demais para um
caso tão circunstancial. Os dois rios que faltam para satisfazer à topografia bíblica só
podem ser, dizem, o Nilo na África, e o Indo na índia. Outros tomam a palavra "rio" no
sentido de Ribeiro, tendo desaparecido, no decorrer dos tempos, os outros dois, ou se
fundido com o Tigre e o Eufrates. Só Adão teve o privilégio de conhecer este lugar. Talvez,
o dilúvio alterasse ou destruísse o local, de modo a impossibilitar a sua identificação.
(Geikie, Houra with the Bible, Cap. 7.)
Na opinião do autor, o local mais apropriado para o jardim são as imediações do Mar
Cáspio. A natureza, com a sua exuberância, a flora e a fauna, são ali de tal porte, que o
ambiente parece ser o único na face da terra. Ainda hoje é assim. Blaikie admite que este
foi o lugar onde Deus colocou o homem que criara.
Não apenas o ambiente do ponto de vista geral, mas até a antropologia ali e em
suas imediações dá um capítulo diferente. O Cáucaso não fica muito distante. Pois bem, é
no Cáucaso onde se encontram os melhores espécimens da raça humana. Diz-se que a
mulher caucasiana é qualquer coisa de se admirar. O homem também deve ser assim. Só
há dois lugares na face da terra que se assemelham: Cáucaso e Andaluzia, na Espanha.
Gênesis 11:2 parece determinar de uma vez o assunto. A descendência de Noé estaria
justamente onde tinha estado o jardim: "Partindo do oriente, dirigiram-se para o sul, onde
habitaram, na terra de Sinai", justamente a Baixa Babilônia. É certo que foi naquelas
imediações que desceu a barca de Noé, e isso não quer dizer que a barca parasse
justamente no local onde estivera o jardim, mas, inegavelmente, há muita relação entre o
novo lar da raça e o primitivo. Fosse mais para o norte ou mais para o sul, na
impossibilidade de se determinar um local, é fato indiscutível que o Oriente Próximo foi o
berço da raça. De lá vieram as ondas humanas que povoaram o Egito, uma, e a Europa,
outra ou outras. Estas ondas humanas acompanham o movimento da terra. Uma possível
exceção teria sido a emigração ocorrida, que se dirigiu de Babilônia para o distante
Oriente, mas as exceções são a confirmação da regra.
Nós, que nos contentamos com as afirmações da Bíblia, rebuscamos na História tudo que
ela nos pode dar, mas, pelo que já vimos, mesmo que não possamos resolver todos os
problemas, é sempre mais seguro ficar com a Bíblia do que entregarmo-nos a hipóteses e
formulações, produto da cabeça de quem pretende saber mais do que deve saber.
CAP. X - A PREPARAÇÃO DO JARDIM
(Gên. 2:8-25)
A Criação da Mulher
No capítulo primeiro nada se diz de como Deus criou a mulher. Apenas isto:
"Homem e mulher os criou." É no segundo capítulo que Moisés dá os detalhes. Esta é
outra diferença. Criando o homem, não houve entre todos os animais um que lhe servisse
de companhia. Por um processo que a ciência chamaria de anestesia e que a Bíblia chama
sono, Deus pôde tirar uma costela do homem e formar Eva. Crê-se que a expressão seja
parabólica, porém é preferível o que a Bíblia diz, aceitando-se a declaração literal e
reconhecendo que ela ministra profundos ensinamentos.
(1) A mulher foi tirada do homem e é, portanto, parte do seu ser. Foi isto mesmo que
Adão disse: "Osso do meu osso e carne de minha carne." Adão, pois, é a cabeça da raça, e
não Eva. Se Adão não tivesse pecado, o comer Eva do fruto não arrastaria a humanidade
ao pecado. Foi o pecado de Adão que arruinou a raça.
(2) A mulher foi tirada do lado, bem perto do coração. Isto significa que seria
ajudadora. Ela só era inferior a Adão em ser derivada dele; em tudo mais era igual. A
mulher nunca deve procurar ser a mentora do homem. A verdadeira mulher não é a que
governa o marido, mas a que o ajuda. O verdadeiro marido não é o que tem uma esposa
só para a cozinha, mas para ser associada em todos os seus negócios, prazeres, tristezas,
vitórias e derrotas.
Na luz desta discussão sobre a relação entre Eva e Adão e entre Adão e a posteridade,
convém perguntar se nossa semelhança com Adão se limita somente ao corpo ou ao corpo
e ao espírito, se nosso espírito nos foi legado por nosso ancestral simultaneamente com o
corpo, ou se o espírito procede de Deus, enquanto que o corpo procede de nossos pais, à
semelhança do pecado de Adão. Sem desejar entrar nos meandros desta questão
teológica e discutir os próprios méritos das teorias a respeito, limitar-me-ei a dar opiniões
correntes, acentuando a que parece ser mais racional e conformável com o ensino geral da
Bíblia. As diferentes opiniões sobre o assunto classificam-se em três grupos.
1. A teoria da preexistência das almas. Conforme esta opinião, a alma existe antes da
concepção do corpo e é-lhe ajuntada ou no ato da concepção mesmo ou ao nascer. Sobre
como e quando a alma foi originada é difícil dogmatizar. Não se confunde esta teoria com
a reencarnação dos espiritistas. É possível crer que Deus criou um número limitado de
espíritos e dá um a cada corpo. Esta teoria não tem base nas Escrituras e contradiz a
declaração de que o homem foi criado à imagem de Deus, e que nossa atual condição de
pecado é o resultado da queda de Adão.
2. A teoria da criação dos espíritos. Nosso ser é procedente de nossos pais somente
quanto ao corpo; o espírito ou alma é concessão de Deus. Não se confunde esta teoria
com a precedente. Aquela aceita a criação pré-generativa ou, antes, da geração do corpo;
esta, na ocasião da geração ou em qualquer período durante a gestação da criança, no
ventre da genitora. Conforme alguns filósofos e teólogos, Deus dá o espírito no momento
da geração; segundo outros, somente no ato do nascimento, e, ainda outros, durante a
gestação.
Esta teoria tem contra si o fato de que o homem não é semelhante a seus pais somente,
no tocante ao físico; não responde ao fato de que o homem herda as tendências morais
dos seus genitores, todas as suas qualidades. Falece também no ponto inexplicável da
origem do pecado, atribuindo a Deus a falta, ou de criar um espírito com tendência
pecaminosa ou de colocá-lo num corpo corruptível e, portanto, sujeito à corrupção. A
humanidade não é, pois, o resultado da transgressão de Adão, nem todo o nosso ser é sua
legítima descendência por intermédio de nossos pais. Mas tem a seu favor muitas
escrituras que declaram que Deus é o pai dos espíritos etc. (Ecl. 12:7; Is. 57:16;- Zc. 12:1;
Hb. 12:9; Sal. 139:13, 14 e ref.).
3. A teoria traducionista ensina que tanto o corpo como o espírito são produto dos
progenitores imediatamente, sendo Deus o Criador mediatamente, ou sancionador do
novo espírito, comunicando-lhe as qualidades espirituais eternas, que o distinguem do
animal irracional, conforme a lei por ele mesmo estabelecida. Aceita e reconhece a
transmissão física, mental, moral e espiritual das tendências da família. Os predicados
bons e maus são o resultado imediato da condição de nossos pais. Não há dúvida de que
esta teoria explica por que, em geral, cada filho é legítimo herdeiro das tendências e
natureza dos pais e é o legítimo propagador natural da raça desde Adão. Ao mesmo
tempo, conforma-se com o teor geral das Escrituras, que dizem ter sido a humanidade
criada por Deus em Adão. Faz do homem um todo homogêneo e livra o Criador supremo
de responsabilidade direta ou indireta, no atual estado moral e espiritual da humanidade.
Adão foi criado por Deus alma e corpo e recebeu do Criador a ordem de multiplicar-se
segundo a lei estabelecida, isto é, "segundo sua espécie". A maior objeção levantada
contra esta teoria é firmada no fato de ser o homem espiritualmente imortal, quando ele é
geração de seres pecadores e mortais; mas esta objeção desaparece diante dos fatos (1)
de que o primeiro homem foi criado com esta capacidade de reprodução espiritual e (2) da
mediação divina na criação do novo espírito. A teoria espiritualista cai pela base, não
podendo explicar a natural reprodução de todas as tendências morais de nossos
progenitores.
Voltando ao nosso ponto de partida, Adão foi a cabeça da raça, e não Eva. Ela mesma foi
derivada dele e dele herdou sua natureza. Eva foi o nome dado por Adão à sua mulher,
como a mãe de todos os viventes, mas seu nome original era "Isha", feminino de "Ish",
varão.
CAP. XI - A TENTAÇÃO E A QUEDA
(Gên. 3)
Neste capítulo temos a história da desobediência do primeiro homem, sua queda e
expulsão do jardim do Éden. Muito se tem escrito sobre a história deste capítulo e os
escrúpulos de alguns teólogos em figurar Deus colocando no jardim, entre as frutas boas,
uma que em si tinha o gérmen da morte. Dizem que se trata de uma parábola e não de
uma história verídica. As muitas referências ao jardim e à queda do primeiro homem,
porém, não oferecem dúvida quanto à historicidade da narrativa. A árvore da ciência do
bem e do mal não seria em nada diferente das outras árvores. O que a tornava especial
era a recomendação do Criador para que não comessem de seu fruto. Esta árvore não
tinha em si mesma o poder ou qualidade de dar conhecimento do bem e do mal. Este
conhecimento veio após a transgressão. A árvore era um meio de provar a fidelidade e a
obediência do primeiro homem. Obedecendo a Deus, Adão continuaria inocente;
desobedecendo, pecaria, e deste pecado viria a consciência do mal. Até ali só tinha
consciência do bem, mas a sua transgressão lhe trouxe o conhecimento do mal. Caiu do
seu estado original, cuja suprema diretriz era servir e honrar seu Criador. Agora que tinha
tomado outro curso, ficou sujeito a servir, por sua própria deliberação, debaixo da
influência do anjo tentador.
O Tentador
A serpente era mais astuta que todos os outros animais. Não somente era astuta,
mas, possivelmente, tinha mais beleza do que os outros animais. Satanás não usaria um
instrumento reles para a perpetração de seu crime. A maldição divina reduziu a serpente
ao que ela é hoje, um animal abjeto. Crêem alguns comentadores que ela andava ereta, e
não de rastos como agora, e que tinha a faculdade da palavra articulada, mas talvez seja
exagero. Na maldição que Deus pronunciou sobre ela, foi condenada a "andar sobre o seu
ventre", o que parece favorecer a idéia de que antes andava ereta.
O vocabulário bíblico é extenso e descritivo, dando a serpente como animal perigoso,
tanto no veneno mortal, como também pela malignidade e astúcia. Em certos países
orientais, a serpente é adorada, e no Egito era usada como símbolo de imortalidade e do
deus benéfico "Kneph". Os fenícios, gregos e romanos a tinham como emblema de poder
beneficente. Moisés obrou o primeiro milagre no Egito convertendo sua vara em cobra,
para por este meio castigar a idolatria da serpente no Egito.
Na Bíblia ela é descrita de três formas:
(1) como animal venenoso;
(2) como símbolo de Satanás;
(3) como símbolo da malícia.
(Ver Gênesis 3:1; 4,9:17; Prov. 25:32; Ec.10:8; Is. 59:5. Simbolicamente
é empregada em II Cor. 11:3; Ap. 12:9,14,15; 20:1-3, 7-10; Mat. 23:33.)
O Zoroastrianismo consagra uma boa parte de seu ensino à serpente, crendo que o
espírito maligno, Arimã, botou a perder a formosa região preparada no princípio pelo
espírito do Bem, Ormuz, e que foi Arimã, espírito mau, que se encarnou numa serpente,
para ensinar o homem a pecar. Como o Zoroastrianismo, todas as religiões orientais
relacionam a queda do homem com a serpente.
O que ela era não podemos saber perfeitamente, mas não resta dúvida de que o relato
bíblico encontra eco em todos os povos primitivos, em relação à queda da humanidade.
Não é possível que uma mera parábola, como querem alguns comentadores, tivesse ganho
lugar tão saliente em todas as religiões étnicas e bíblicas.
A Tentadora
O homem não foi tentado, mas a mulher, sendo tentada, seduziu o homem.
Satanás procurou a mulher, em lugar do homem, talvez porque soubesse que não seria
bem sucedido com Adão. Se somente Eva tivesse comido do fruto, não teria a raça caído,
mas esta comeu, gostou e ofereceu ao companheiro. Este, por sua vez, sendo tentado,
não resistiu, e arrastou consigo a sua posteridade. O concerto tinha sido feito com Adão e
sua posteridade, incluindo Eva mesma. Parece que Eva ignorava a gravidade do ato que
havia praticado. Não sentiu que estava nua. Que ela sabia haver Deus proibido comer o
fruto, não há dúvida, mas a gravidade da transgressão, parece que não conhecia. O
tentador tinha usado uma forte argumentação, e ela não se mostrou invulnerável;
entretanto, demorou mais em ceder do que o próprio Adão. Primeiro o tentador mostrou-
lhe que não era justo Deus excluir uma árvore dentre muitas outras, para dela Adão não
fazer uso. Foi uma forte insinuação. Vencida neste ponto, foi fácil mostrar que Deus não
tinha sido franco com o homem e a mulher. Satanás acusa Deus de desonestidade, em
negar ao homem um dos primeiros privilégios: ser igual a Deus mesmo, conhecendo o bem
e o mal. Por outro lado, Satanás acusou Deus de ter faltado à verdade ao dizer que
morreriam no dia que comessem do fruto, quando, disse o tentador, não morrereis, mas
ficareis mais sábios. Estes argumentos venceram "Isha", e ela, olhando para a árvore, viu
que em nada diferia das demais e, com o desejo de provar, comeu, achou bom e levou o
fruto ao companheiro. Se Adão estivesse junto da companheira, talvez ela não caísse.
Onde estaria ele? Nada oferece melhor garantia à família e à sociedade como a contínua
comunhão entre marido e mulher. Notemos, portanto, que a tentação de Eva foi externa
e interna. Passou por uma operação mental, pela qual Adão não passou. Ela lhe ofereceu
o fruto, e ele comeu. Não há dúvida de que Eva lhe relataria que um anjo de Deus veio
com uma mensagem muito interessante, sobre a verdadeira natureza da árvore, e que
tinha aceitado os conselhos, tinha comido e nada de anormal tinha acontecido; portanto,
ele também podia comer. É certo, pois, que a raça caiu em Adão. Mal ele comeu, notaram
ambos que estavam nus. A consciência de falta foi materializada na nudez, e esta foi o
reflexo da transformação de suas naturezas de seres inocentes em seres pecadores.
A Punição
Jeová costumava visitar o primeiro casal ao cair do dia, para conversar com ele. Até
aqui a vinda de Jeová era esperada e desejada, e era motivo das mais íntimas alegrias,
porém agora era motivo de horror. Adão e Eva esconderam-se de Deus, mas, como diz o
Salmista, onde poderiam eles esconder-se? O diálogo entre Deus e Adão é interessante.
Adão parece botar a culpa do pecado em Eva, mas não é assim. Ele simplesmente diz que
ela lhe deu do fruto, e ele comeu. Há, certamente, um pouco de desculpa nesta
expressão: "A mulher que me deste ..." A mulher, por sua vez, botou a culpa na serpente.
Mas desculpas não desculpam, e a sentença é terrível.
(1) A serpente foi amaldiçoada por ter servido de instrumento a Satanás. Entre todos os
animais do campo não há outro que provoque mais medo e repugnância. Os próprios
animais desta família, que não são venenosos, são repugnantes e repelentes.
(2) A mulher teria prolongadas as horas de sua maternidade, acompanhadas de
cruciantes sofrimentos. Não somente isto, mas sua independência terminou aqui;
doravante, ela seria sujeita a seu marido, a ponto de todo seu desejo convergir para ele. A
degradação a que tem sido submetida a mulher por mais de 6.000 anos é um atestado da
punição que recebeu. Somente o cristianismo a restaurou à sua original posição de ser
livre, bem assim, o homem. Em todos os países onde não é conhecido o cristianismo a
mulher é privada dos mais elementares direitos de liberdade. Na China, há hoje milhares
de meninas de menos de 10 anos de idade que os pais já casaram com outros meninos da
mesma idade. Não lhes é reconhecido o direito de escolher marido. A maior desgraça que
pode visitar um lar é o nascimento de uma menina. É sinal de desagrado da divindade para
com os pais. A mulher que tiver três meninas seguidas pode ser repudiada pelo marido, e
se torna merecedora de todo escárnio social. Os próprios judeus, que se avantajavam
grandemente a qualquer outro povo em assuntos sociais, tinham um padrão baixo para a
mulher; e a própria Bíblia lhe consigna privilégios rudimentares, em competição com o
homem. Só Jesus Cristo, o segundo Adão, levantou a mulher ao seu original estado de
verdadeira companheira e ajudadora do homem.
(3) O homem foi punido com a pena de prover seu sustento com fadigas e aflições,
colhendo da terra espinhos e cardos, em vez do bom fruto. Foi forçado a continuar esta
luta, até que voltasse à mesma terra donde havia sido tomado. A morte foi o salário da
sua falta. Adão foi criado para viver eternamente, mas sua transgressão ganhou a morte, a
esta viria depois de um período de agonias, desapontamentos e tristezas.
Quanta coisa uma pequena falta produziu! É que para Deus não há faltas pequenas
e grandes. Sua metragem é uma só, sua balança não tem mais que um peso, e seu
dicionário só tem uma palavra que descreve nossa atitude de rebeldia para com Ele:
PECADO.
(4) A terra foi amaldiçoada por causa de Adão. A maldição converteu este planeta, do
Éden, num vale de lágrimas. Tinha sido criado com todos os seus ornatos, para gáudio do
rei da criação, mas num momento foi revogada a lei e convertido num palco, onde os mais
tétricos dramas se haviam de realizar. Bom é que não pensemos nas multiformes tristezas
que andam pela terra, visitando os pobres filhos de Adão, herdeiros de tão fatídico legado,
e que só pensemos no bem que o Benigno Criador permite gozarem os que piedosamente
se conformam com o seu governo, a fim de não agravarmos a situação a que fomos
atirados por nosso primeiro pai.
A Promessa
No meio de todas as aflições com que Deus puniu a falta da mulher, encontramos
uma promessa consoladora, o gérmen de todas as promessas futuras. A humanidade está
arruinada e diante de um novo programa de dores e aflições. Mas o Criador divisou um
remédio que cortaria os efeitos do veneno mortal que acabara de ser inoculado na novel
raça. Se Deus não tivesse um remédio tão eficaz, talvez, na sua infinita bondade, tivesse
desviado o plano do tentador. O verso 15 dá-nos o primeiro som do evangelho, e tem por
isso sido classificado como o "proto-evangelho". Da semente da mulher sairia um que
esmagaria a cabeça da serpente. A tradução da Vulgata (Bíblia usada na Igreja Católica) dá
a mulher como sendo quem esmagaria (ver cap. 12 de Ap.) a cabeça da serpente, mas
tanto a tradução de Figueiredo, como a Brasileira são fiéis ao original, onde se lê que não a
mulher, mas a sua semente, esmagaria a cabeça da serpente. Alguns acham que esta
profecia não se refere, tampouco, a Cristo somente, mas a todos os crentes nele.
Em certo sentido, é aplicável a toda nova criação, visto que, pelo poder de Cristo, estamos
continuamente destruindo os planos da serpente, o maligno, mas quem cumpriu esta
promessa e profecia foi Cristo. A linguagem deve entender-se de acordo com a
terminologia bíblica. Prat pensa que a mulher aqui descrita é a Igreja, e em favor de sua
teoria cita o capítulo 12 de Apocalipse, em que a mulher, que estava para dar à luz, foi
perseguida pelo Dragão, a antiga serpente; seu filho foi arrebatado para o céu, e a mulher
fugiu para o deserto. Se este ponto de vista é correto, ainda fica de pé que foi a semente
da mulher que, direta e indiretamente, esmagou a cabeça da serpente. Todo o poder da
Igreja de Cristo dimana de Cristo mesmo, e não de nós, porque foi Ele quem venceu
Satanás. Com esta presunção é que o papado desloca Cristo e coloca a Igreja como
vencedora e mesmo salvadora, pois que, estar fora dela é estar perdido.
Novo Nome Dado à Mulher
Já vimos que Eva tinha por nome "Isha", que significa "parte" ou "derivação do
homem". Agora, ela recebe o nome de Eva, que significa "mãe dos viventes", Sua posição
de igual com o homem foi reduzida, em virtude do pecado cometido, mas, em
compensação, recebe outra missão, que lhe era desconhecida. Isto não significa que não
seria mãe de toda a raça mesmo no caso de não haver transgressão, visto que Deus lhe
dera a comissão de crescer e multiplicar, mas esta missão surge agora em condições
diferentes e termos antes ignorados. Entre todas as honras que podem assistir à mulher,
não há outra igual à maternidade. Ser mãe é o maior dos privilégios da mulher, e só a
corrupção, que tem acompanhado o progresso da humanidade, é responsável pela
profanação e desrespeito a quem tem sido submetida a propagação natural da raça,
evitando-se por todos os artifícios, o lícito crescei e multiplicai-vos.
Primeiro Sacrifício
Quando Adão e Eva se viram nus, fizeram para si aventais de folhas de figueira.
Deus, porém, os proveu de coisas mais duráveis: fez túnicas de peles de animais para os
vestir. A sua nudez, símbolo do pecado, foi por Deus mesmo coberta. Matou alguns
animais, para com as peles cobrir a falta do primeiro par. Faz-se mister o derramamento
de sangue, para cobrir uma falta grave. Para que a transgressão de Adão não continuasse
visível, teve que haver morte de animais inocentes.
A declaração é feita sem preâmbulos e em termos tão singelos que o teólogo apenas pode
tirar ilações; mas não haverá quebra de doutrina ou preceito, se virmos neste caso o
protótipo do cordeiro pascoal no Egito, cujo sangue inocente fez que o anjo exterminador
passasse de longe; bem como, este cordeiro pascoal é o protótipo do "Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo".
A doutrina da substituição é clara em todo o Velho Testamento. As peles destes
animais substituíram a inocência perdida por Adão e Eva. Há alguma dificuldade para
saber o que foi feito da carne daqueles animais, visto como ainda não era conhecido o
ritual de oferecê-la sobre o altar. Moisés não nos diz como Deus fez, mas sim que Ele fez.
Que a origem do sacrifício deve remontar a esta época, não resta dúvida,- visto que Abel,
pouco tempo depois, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho, um sacrifício a Jeová.
Conforme a lei de Moisés, a pele dos animais pertencia ao sacerdote que oferecia o
sacrifício (Lev. 7:8). Quando Deus instituiu o primeiro sacrifício, reservou para si as peles,
com que fez as túnicas de Adão e Eva. Este sacrifício à porta do jardim do Éden perdido é a
primeira prefiguração do grande sacrifício do Calvário - a porta do Éden reconquistada.
A Expulsão do Éden
Ainda que o pecado de Adão houvesse sido coberto, Deus vindica sua autoridade,
expulsando do Éden o primeiro par transgressor. No Jardim, Deus havia colocado uma
árvore, cujo fruto era o antídoto do fruto da ciência do bem e do mal. Árvore, talvez, igual
às outras, mas com um desígnio especial no altíssimo plano de Deus. Para que Adão não
lançasse mão deste fruto, foi expelido do jardim. Tinha se tornado indigno da confiança
divina de tal modo que sua penetração ali era impossível, por causa da espada flamejante
que se volvia em todas as direções.
Qualquer que fosse a virtude da árvore da vida mencionada aqui e em Ap. 22:2, parece
que era imprópria para um corpo irregenerado. O primeiro Adão fechou a porta do jardim
do Éden, e o segundo abriu-a e restaurou o pecador ao privilégio primitivo de participar
daquela árvore.
Os Efeitos Mentais do Pecado
Convém notar o que o verso 22 diz: "Eis que o homem se tornou como um de nós,
conhecendo o bem e o mal", disse Jeová. Parece que Deus conhece o mal no mesmo
sentido de Adão. Há, porém, diferença. Adão conheceu o bem e o mal por experiência;
Deus não pode ter qualquer experiência do mal, reconhece apenas sua existência e
atuação. Até aqui Adão era inocente, não tinha a menor experiência do pecado nem era
onisciente, para conhecer o que estava além do seu conhecimento e experiência. Aqui
novamente Jeová usa o pronome "nós", "como um de nós". A expulsão envolveu a
sentença de morte e sofrimento. Um futuro cheio de aflições e dores acompanhou a saída
dos dois transgressores do jardim.
Crêem alguns exegefas que o corpo de Adão não era imortal; estava sujeito à decadência
como tudo que é terreno. Para evitar essa decadência e conseqüente morte, Deus tinha
provido o jardim da árvore da vida , com cujas folhas o homem evitaria a decadência física
e a morte. Depois do pecado, a vida contínua seria uma calamidade, em virtude dos
sofrimentos a que ficou sujeita a raça. Por isso, Deus expulsou o homem do jardim, para
que não tocasse na árvore da vida e vivesse para sempre. A ser verdadeira esta
interpretação, há nela mais uma prova da bondade do Criador, não permitindo que a raça
humana ficasse perenemente sofrendo. A morte deixa de ser uma calamidade, para ser
uma bênção, pois que liberta o mortal de uma situação de dores intermináveis.
A "árvore da vida, cujas folhas servem para a saúde das nações" (Ap. 22: 2), a que se refere
o último livro da Bíblia é mencionada em circunstâncias análogas às existentes antes da
queda, o que parece robustecer esta interpretação. Ali não há mais morte, dores ou
sofrimento de qualquer espécie. A harmonia volta a reinar no universo e Cristo é o
Supremo rei da cidade da vida. Há, inegavelmente, uma admirável harmonia nos dizeres
do Gênesis e do Apocalipse. No primeiro, há uma situação irremediavelmente perdida,
pela introdução do pecado no mundo; no segundo, uma situação inalteravelmente
bendita, pela remoção do pecado do mundo e da vida.
Além da espada flamejante, Deus colocou ali um dos querubins. É difícil determinar a
natureza e ofício destes seres. Além deste caso, a palavra ocorre 73 vezes na Bíblia: 44
vezes em referências aos símbolos que foram colocados sobre a arca do concerto e 19
vezes no livro de Ezequiel. Em Isaías 6, estes seres aparecem de uma maneira especial. O
mais que sabemos deles é que eram mensageiros de Deus. É isto que significa o termo
"anjo". Querubim parece ser uma ordem superior à dos anjos, apesar de às vezes
aparecerem indiscriminadamente. A terminologia bíblica favorece a idéia de ordem
gradativa entre os seres angélicos.
A nota predominante no terceiro capítulo de Gênesis é o pecado. Pela primeira vez vemos
sua introdução e atuação na vida dos primeiros seres racionais. Como uma luz brilhante
nas trevas, surge a promessa e a conseqüente redenção. Todo o resto da revelação divina
é saturado com os efeitos do pecado em suas muitas formas, atos e manifestações. O
Velho como o Novo Testamento oferece um vasto campo teológico ao estudante que
deseja conhecer como o mundo está saturado de idéias e pensamentos pecaminosos.
Farta linguagem descritiva de todos estes fenômenos encontra-se em ambos os
Testamentos. O Dr. Carroll dá 11 palavras que expressam atos pecaminosos de diferentes
maneiras, mas há muitas outras ainda de valor secundário. O estudante não deve
esquecer que o vocábulo "pecado" é religioso e tem significado religioso.
Pecado e "crime" são sinônimos, se bem que em campos ou esferas diferentes. O primeiro
se relaciona invariavelmente com os atos do homem em relação a Deus; o segundo, em
relação à lei civil. A palavra pecado, propriamente, significa "errar o alvo", isto é, Deus tem
posto diante de cada indivíduo um ideal, um programa, um padrão para ser alcançado,
para servir de modelo na vida, mas o homem falha, não atinge o ideal, e o pecado é a
causa.. Daqui decorre toda sorte de desvios e sinuosidade em que se perde o homem. Isto
é o pecado. Há outros significados que indicam ilegalidade, dessemelhança com Deus,
apostasia, iniqüidade etc.
Pecado, pois, em qualquer de suas formas, é "crime" e merece ser punido. Não se pode
conceber quebra de preceito legal sem pena. Por isso o código prescreve deveres ou leis e
penalidades. O crime, porém, não afeta senão o ser físico, enquanto o pecado atinge o
físico e o moral, envolve o coração. O crime é uma quebra de preceito humano e só pode
ser passível de pena nos limites humanos, enquanto que o pecado, por seus motivos
espirituais, atinge o espírito. Este não é uma quebra de preceitos humanos, mas divinos;
não só atinge o físico, mas também o espiritual. Seus efeitos, pois, são carnais e
espirituais. O juiz é a divindade ofendida, que vindica a lei e a justiça, pune tanto no físico
como no espiritual. O pecado não pode ser punido somente no físico porque envolve a
quebra de leis morais e escritas no coração (Romanos 1:28-32). O homem peca por
determinação, consciência e inconsciência. Para remediar esta falta, que escapa aos
próprios atos volitivos, o sistema levítico fez provisão para os pecados por ignorância (Lev.
4:14-20, 31; Sal. 19:12; Rm. 7:9, 10).
"O pecado", diz o Dr. Stroing, "não é meramente uma caixa negativa ou ausência de amor
a Deus. É uma escolha positiva, fundamental, ou uma preferência egoísta em lugar de
Deus, como objeto de afeto e supremo fim. Em lugar de fazer de Deus o centro da vida,
entregando-se incondicionalmente a Ele e possuindo sua vontade subordinada a Deus
mesmo, o pecador faz de si mesmo o centro da vida, põe-se diretamente contra Deus e
constitui seus próprios motivos e sua própria vontade e regra suprema. Ao mesmo tempo
que o pecado é um estado de não conformidade é o Deus, em princípio, em realidade é
oposição a Ele, como um ato de transgressão às suas leis; a essência desse ato, em toda
parte, é a glorificação própria. Em outras palavras, o pecador põe-se a si mesmo onde se
deve pôr Deus". Strong, Teologia Sistemática, Vol. II.
Esta descrição leva-nos à consideração de uma pergunta muitas vezes feita: - Qual a
origem do pecado? O autor não se propõe a resolver o problema, nem a esclarecer as
coisas que Deus mesmo deixou irresolutas. Podemos filosofar, raciocinar, aprender muita
coisa, mas temos que reconhecer nossa incapacidade para penetrar todos os assuntos. A
Bíblia é simples e clara em declarar onde e como o pecado se originou, mas não vai além
disto. O problema que a existência do pecado envolve fica por explicar. O pecado,
sabemos, originou-se com os anjos. Os anjos, como o homem, foram criados livres
agentes morais, possivelmente submetidos a uma lei de provação. Daqui sua possibilidade
de obedecer e ficar firmes ou desobedecer e cair. A maioria deles ficou firme; são os
chamados anjos eleitos (I Pedro 1:12). Muitos, porém, caíram e perderam o primitivo
estado de inocência. Desses anjos caídos, Satanás é o chefe. Não permaneceu firme na
verdade (João 8:44). O orgulho parece haver
sido a causa de sua derrota (1 Timóteo 3:6). Este anjo caído tem, na Bíblia, diversos
nomes, como Lúcifer, que significa "filho da manhã"! Isto indica que era anjo brilhante e
poderoso, mas perdeu esta posição e tornou-se Satanás, que significa "adversário". Como
Belzehu, é príncipe dos outros anjos caídos. Como Diabo, seu nome indica tudo que pode
ser falso. Para o homem, acusa a Deus. Para Deus, acusa o homem (veja o primeiro
capítulo de Jó). É também chamado tentador, em sua atividade destruidora. Seu programa
é demolir, destruir, tanto os planos de Deus, como o homem; seu programa final é a
anarquia do governo divino.
Conhecendo, assim, onde o pecado se originou, indaguemos como se originou. Deus não é
autor do pecado. Satanás é o seu autor. Perguntará alguém: Quem criou Satanás?
Ninguém. Deus criou um anjo; este rebelou-se e tornou-se Satanás. Deus o criou livre
para agir, obedecer ou desobedecer e foi esta faculdade de escolher que deu origem à
transformação de um anjo inocente em Demônio. A escolha foi a ocasião do pecado.
Perguntará ainda o leitor: "Por que não criou Deus os anjos sem faculdade de escolher?"
Se eles fossem criados assim, seriam meras máquinas, e nunca seres livres. Por que
Satanás se revoltou e quando a Bíblia não diz. Parece que o orgulho foi que deu lugar à
queda; mas, qual a razão desse orgulho? Não se sabe. Mistério!!! O mundo espiritual
está envolto em mistérios que a mente humana não pode penetrar nem discutir. Sabemos
tudo que é necessário e essencial, mas o porquê das coisas não essenciais Deus reservou
para si.
Outro grande problema, talvez o mais difícil, é a permissão que Satanás tem para
prosseguir em sua obra destruidora. No infinito plano redentivo de Deus há lugar para o
Demônio exercer suas atividades; mas, afinal, os resultados dessas atividades são contra
Satanás mesmo. No livro de Jó notamos a liberdade que, Deus lhe deu para destruir a
felicidade de Jó, mas esta liberdade é reduzida e limitada, e, afinal, Jó é restaurado à sua
original abundância e conforto e Satanás logrado no seu plano. Reconhecereis que todo o
mal que o maligno pode causar temporariamente ao homem provoca bênçãos que de
outra forma não seriam apreciadas. Tudo esta baseado no grande plano redentivo de
Deus.
Em conclusão, Satanás caiu por sua livre escolha e tornou-se o primeiro pecador, o pai do
pecado e da mentira. O homem, por sua livre vontade, caiu, depois de ser tentado, e
legou-nos essa triste herança.
Todo o problema está baseado na livre escolha, tanto dos anjos como dos homens.
O livre arbítrio é o maior patrimônio da humanidade, mas como todas as coisas nobres
envolve tremendas responsabilidades.
CAP. XII - CAIM E ABEL
(Gênesis 4)
No capítulo 4 temos, no princípio, o primeiro nascimento ocorrido na terra e o
primeiro ato de cultor espiritual. Em Caim e Abel, temos dois tipos diferentes de
adoradores; um, que julga poder adorar a Deus segundo seu próprio modo; e outro,
conformando-se com o método divino. Abel aproximou-se de Deus por meio do sacrifício
de sangue, e foi aceito; Caim, aproximou-se por meio estranho, e foi rejeitado. O culto,
pois, dependia do estado do coração para com Deus.
Podemos notar, de passagem, que Adão e Eva não tiveram filhos antes da queda,
bem como os filhos de Noé, que, sendo casados, só tiveram filhos depois do dilúvio (10:1).
O primeiro filho foi motivo de admiração e regozijo da parte do casal. Caim, que significa
"Aquisição", foi uma prova de estabelecimento e validez de concerto entre Deus, Adão e
Eva. É possível que eles julgassem ter perdido o privilégio recebido, de povoar a terra, em
vista do pecado cometido. As próprias palavras de Eva - "Adquiri um homem com o auxílio
de Jeová" - mostram que a promessa da semente estava realizada e que por meio desta
semente havia de ser esmagada a cabeça da serpente.
É possível que eles julgassem ser este rapaz quem esmagaria a cabeça da serpente e
restauraria o primitivo estado de pureza. É difícil afirmar ou negar.
Depois nasceu Abel, que significa "Vaidade". O período entre o nascimento de Caim
e Abel parece ter sido infeliz e cheio de desapontamentos, de modo que Eva começou a
encarar a vida, ainda nos pontos mais brilhantes, como simples vaidade. Realmente, o
futuro a convenceria ainda mais da crueza da vida, com a morte do próprio Abel.
Estes dois filhos seguiram profissões diferentes e tinham temperamentos diferentes. A
humanidade dividiu-se por diferentes caminhos.
Caim era agricultor, e Abel, pastor de ovelhas. Ambas as profissões eram lícitas,
mas a de Abel era mais de acordo com a natureza sacrificial.
Ao cabo de dias, Caim trouxe, dos frutos da terra, uma oferta a Jeová; e Abel, dos
seus primogênitos, ofereceu um sacrifício. A expressão "ao cabo de dias" sugere o dia do
culto, o sábado. O lugar do culto e da manifestação de Deus parece ter sido ao Oriente do
Jardim, conforme a expressão de Caim: "Eis que hoje me lanças fora da tua presença".
Havia um lugar particular para Deus ali ser adorado. É interessante perguntar quem
instruiu os dois filhos de Adão a oferecerem sacrifícios. Sem que possamos responder
afirmativamente, o sacrifício data da ocasião da transgressão, quando Deus usou animais,
para deles tirar as peles, a fim de cobrir Adão e Eva. É natural que daí em diante os dois
primeiros habitantes da terra sentissem a contínua necessidade de comunhão com Deus,
por meio do sacrifício, e que toda a família participasse deste culto. O espírito de sacrifício
como meio demonstrativo de gratidão e acesso à divindade ofendida encontra-se em
todas as religiões do mundo; e no V. T., muito antes de a Lei ser dada, encontramos
diversos homens, em ocasiões diversas, oferecendo sacrifícios. O sacrifício é parte da
natureza religiosa do homem, pois que ele é incuravelmente religioso, como diz Bastian.
Os Dois Sacrifícios - (Gên. 4:3-7)
Os dois sacrifícios eram de natureza diferente. Um era sacrifício de sangue e era
feito com os primogênitos do rebanho, conforme a lei levítica, já em prática no tempo de
Adão. A carne, com a gordura, era oferecida sobre o altar, na dispensação Mosaica, e, a
julgar pelo ritual a que Abel se submeteu, parece que já existia o altar naquele tempo. O
culto estava bem elaborado. Na falta de sacerdote, o próprio pecador oferecia sua própria
oferta. Os dois sacrifícios não somente são diversos em si mesmos e com valor
profundamente diferente, mas os próprios ofertantes são dois tipos diferentes.
Crê-se que Caim não podia oferecer sua oferta de manjares, sem primeiro oferecer
sacrifício de sangue, para expiar seu pecado, a fim de, depois, oferecer das primícias da sua
terra. Se isto foi a causa de Deus não haver atentado para a sua oferta, é difícil dizer. Só
há uma alternativa: ou a oferta não estava de acordo com o estado espiritual do ofertante,
ou a oferta não foi acompanhada do espírito de adoração, e, neste caso, era uma simples
formalidade. Parece que a última conjectura é a mais razoável. De qualquer forma, Deus
aceitou uma e rejeitou a outra. Os rabis têm uma tradição de que Deus mostrou sua
aprovação pela oferta de Abel fazendo vir fogo do céu e consumindo o holocausto, como
no caso de Elias com os profetas de Baal. Este era, sem dúvida, um modo por que Deus
aceitava o sacrifício de sangue, muitas vezes, mas nunca aceitava desta forma a oferta de
manjares. Se a tradição fosse verídica, explicaria por que Caim se irou, vendo que o fogo
não consumia sua oferta, como tinha consumido a de Abel. Entretanto, é apenas uma
tradição, que pode ser ou não verídica. O autor da carta aos Hebreus diz que, pela fé, Abel
ofereceu melhor sacrifício do que Caim (Hb. 11:4). A rejeição da oferta parece ter sido
devida ao coração de Caim. Ele não estava adorando o Criador, mas simplesmente
conformando-se com o rito da família.
A ira e o ciúme abrasaram Caim, e o seu semblante caiu. Deus pergunta-lhe por que ficou
tão irado, e diz: "Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti?" (Não terás levantado teu
semblante?) A ira de Caim não era justificável; ele não tinha sido desprezado; se
procedesse bem, continuaria a gozar dos favores divinos, mas, se procedesse mal, o
pecado estava à porta, como um leão pronto a lançar-se sobre a presa. A última parte do
verso 7 é realmente difícil de entender: " ... para ti será seu desejo, mas tu dominarás
sobre ele." Há três maneiras de interpretar esta última parte do verso.
A primeira interpretação trata do significado da palavra "pecado" (se realmente significa
pecado no sentido ordinário da palavra, ou oferta pelo pecado) e afirma que a palavra aqui
realmente significa pecado. (Em hebraico as palavras pecado e oferta expiatória são
iguais.)
A segunda interpretação é que esta palavra significa "oferta pelo pecado". Ambos
os significados são amplamente justificados na Bíblia. Se, portanto, traduzirmos a palavra
por "oferta pelo pecado" ou "oferta expiatória", daremos à tradução do verso o seguinte:
"Se não procederes bem, a oferta pelo pecado à porta." Isto é, à porta do curral, tens
animais que podem ser oferecidos, como sacrifício pelo mal que fizeres; não fiques, pois,
iracundo, há um meio aceitável para ti.
Em resumo, a primeira interpretação diz que, no caso de a palavra significar "pecado"
literalmente, então, este pecado está à porta, como uma fera pronta a saltar sobre Caim: "
... para ti será seu desejo, mas tu dominarás sobre ele". Este pecado será constante
perseguidor de Caim, mas este conseguirá vencê-lo. A segunda interpretação diz que a
"oferta pelo pecado" está à porta e pode ser usada sempre que precisar. Na terceira
interpretação, alguns comentadores separam a última parte do verso 7 da primeira parte,
e fazem que ela se refira à primogênitura de Caim. Caim julgou ter sido repudiado por
Deus, havendo sua oferta sido rejeitada, e a conseqüência lógica seria ter sido despojado
dos direitos da primogenitura. A idéia de que Abel agora passava a ser seu senhor, fez-lhe
cair o semblante como reflexo do estado moral em que tinha caído, pela rejeição da
oferta. Deus, que tanto via o semblante como o coração, divisou o móvel de toda a
transformação e, para consolar o irado Caim, diz-lhe (parafraseando o texto): "Se fizeres
bem, continuará a haver aceitação para ti; se fizeres mal, o pecado jaz à porta (segundo a
primeira interpretação) e tu sofrerás as conseqüências de teu mau procedimento, ou
(conforme a segunda interpretação), a oferta pelo pecado está à porta e teu mal pode ser
expiado; não obstante tua falta agora, e tua falta possível no futuro, tu continuarás a
dominar sobre teu irmão." "para ti será todo o seu desejo." (de teu irmão). O verso é
difícil, mas a idéia é clara. Deus quer desviar a ira de Caim e evitar o terrível pecado que já
estava começando a dominar o seu coração. Se Caim tivesse ouvido o conselho de Deus,
qualquer que seja a verdadeira interpretação, continuaria na posse dos privilégios e
bênçãos da primogenitura e a dominar sobre o irmão.
A última destas três interpretações parece ser a mais razoável e tem em seu favor a
opinião dos melhores "scholars" e é a que o autor aceita, de preferência. A expressão "..
para ti será todo o seu desejo e tu dominarás sobre ele" só pode referir-se a Abel e Caim,
porque o pronome em ambos os lugares é masculino e não pode referir-se a pecado. Era
natural a ira de Caim. Sua oferta tinha sido rejeitada, e a primeira coisa que pensou foi
que tinha perdido a primogenitura. Deus intervém e mostra-lhe que não, que ele
continuaria a dominar sobre Abel e este a ser seu servo. Esta promessa, entretanto,
condicionada à conduta de Caim, tendo ele se desviado pelo crime que praticou, o chefe
da família, após Adão, não foi mais Caim, mas Sete que veio em lugar de Abel. Por sua
atuação, o primogênito perdeu a primogenitura, que teria passado a Abel, mas como este
foi morto, passou para o seu substituto, Sete. A história da raça é clara sob este ponto de
vista, confirmando, destarte, esta última interpretação.
O Primeiro Homicídio
Após a cena entre Deus, Abel e Caim, dá-se o primeiro homicídio na terra. A morte
era ainda desconhecida; e foi Abel, o justo, o primeiro a prová-la. Caim tinha ficado irado
contra seu irmão, e, a despeito da promessa consoladora de que ele não seria repudiado,
esperou a primeira oportunidade para se ver livre de seu irmão. Abel era-lhe um estorvo,
e era preciso removê-lo. Ele era incrédulo, e não tinha podido dar crédito às palavras de
Deus. Abel tinha fé, e por isso seu sacrifício foi aceitável a Deus. Este fato é o primeiro
conflito entre fé e incredulidade. A raça dividiu-se neste ponto, e está dividida até hoje.
As maiores guerras têm sido guerras religiosas. A religião é um patrimônio da
humanidade, e a falta dela é a causa de tantos conflitos. Daí em diante, duas linhas
genealógicas podem constatar-se: a dos filhos de Deus, os homens religiosos, os crentes, e
a dos filhos dos homens.
Adão e Eva estão começando a colher os frutos da sua falta. O primogênito tornou-se
criminoso e proscrito, e o filho que pensavam ser da promessa estava morto.
Jeová aparece a Caim depois do crime, e pergunta-lhe por Abel. A resposta revela a
perversidade de Caim: "Sou eu o guardador de meu irmão?" Outro pecado, o da mentira.
Todo criminoso é mentiroso. Ele bem sabia onde estava Abel, mas achou que era melhor
responder que fosse perguntar ao pai e à mãe. Ele nada tinha a ver com a conduta de
quem tinha pai e mãe. Vai perguntar ao pai e à mãe, eles devem saber onde ele está. Difícil
era para Caim esconder o seu crime. Deus pergunta-lhe: que fizeste? "A voz do sangue de
teu irmão clama até mim desde a terra". Não houve testemunha ocular, mas o próprio
sangue do justo clamava. Há uma grande doutrina aqui. Era pelo sangue inocente que o
pecador, no V.T., se reconciliava com Deus, e foi pelo sangue da aspersão, que fala
melhores coisas que o de Abel, que Jesus se tornou mediador de um novo concerto.
Jeová, supremo juiz, pronunciou a condenação de Caim e expeliu-o da sua face. É a
primeira maldição descarregada sobre um homem. Quando Adão pecou, Deus amaldiçoou
a terra, mas não a ele; agora, porém, o pecado agravou-se de modo tal, a ponto de
destruir a própria obra divina. A raça caminha a largos passos para a ruína. Caim não pode
negar seu crime, e sua própria consciência lhe diz que a punição é maior do que se pode
suportar, mas não maior do que ele merece. Considera-se indigno da presença de Deus e,
como vagabundo, sem a proteção de Deus e do homem, será morto pelo primeiro homem
que o encontrar, e para fugir à perspectiva, delibera ir para uma terra afastada, para evitar
ser morto mais depressa.
Deus, porém, dá-lhe a promessa de que não será morto e põe-lhe na testa um sinal. Duas
coisas devemos notar aqui. A primeira é que a morte de Caim não expiaria seu próprio
pecado. A Bíblia desconhece o costume pagão dos sacrifícios humanos. Além de outras
razões, eles são incapazes de corresponder às exigências sacrificiais. A segunda é quanto
ao sinal que Deus pôs em Caim. Este sinal devia estar em lugar bem conspícuo, de modo a
poder ser visto ao longe. Alguém crê que foi um sinal preto e que daqui vem a raça escura,
mas isto é mera suposição. A raça preta descende de Cão (Ham), filho de Noé, e não era
possível que este sinal se reproduzisse noutra pessoa que nada tinha com o crime de Caim,
e muito menos que Cão fosse escuro e os demais irmãos brancos.
A questão de cores deve relacionar-se com as condições topográficas, climatéricas e
ecológicas. Está, pois, para ser respondida a pergunta sobre que sinal seria esse. O autor
crê que foi um sinal bem visível e intransmissível.
A Mulher de Caim
Muitos crentes neófitos têm sido confundidos com a pergunta: Quem era a mulher
de Caim? E não poucos críticos têm achado nesta simples narrativa suficiente material para
crer que havia duas raças diferentes, uma, descendente de Adão e Eva, e outra, que tinha
evoluído dos animais inferiores.
Isto é ignorar propositada ou perversamente o estilo do autor e as condições da
narrativa. Nada se diz de como nem de onde se originou esta mulher, mas é certo também
que Moisés nada diz dos outros filhos de Adão e nem uma só palavra das filhas, não
obstante dizer que teve filhos e filhas (Gênesis 5:4). A narrativa é circunscrita à linha
genealógica e, portanto, deixa de parte tanto os personagens como os incidentes de valor
secundário. Adão viveu 800 anos, depois que gerou o último filho mencionado, Sete, e,
certamente, devia ter muitos outros filhos, nascidos antes e depois de Sete. A raça estava
já espalhada no tempo em que Caim foi banido. Por outro lado, não é nada improvável
que Caim tenha levado consigo sua mulher. Repugna-nos crer que levasse sua mulher,
porque, neste caso, seria sua própria irmã, mas este era, indiscutivelmente, o caso. Ela
podia ser sobrinha ou mesmo descendente em grau mais adiantado, mas, no caso de ser
irmã, não seria ele o único a tomar por mulher sua irmã, visto que os primeiros
casamentos só foram possíveis entre irmãos. Muitos anos depois desta história, Abraão
casou com uma meio irmã.
Tal prática é hoje condenável e proibida pelo código e é mesmo desnecessária. Não é,
pois, preciso recorrer à existência de outra raça, visto a legitimidade naquela ocasião dos
casamentos consangüíneos e a numerosidade admissivel da prole adâmica.
Caim, em chegando à terra de Node, conheceu sua mulher, e ela lhe deu Enoque. O
verbo "conhecer" aqui tem significado conjugal e nada prova em favor da teoria de que ela
desconhecia a Caim. Com o medo de ser morto, edificou uma cidade murada e deu-he o
nome de seu filho Enoque.
Lameque e Suas Duas Mulheres (4:19-24)
Lameque era descendente de Caim e, como este, foi introdutor de um pecado no
mundo: o da poligamia. Não somente foi polígamo, mas também assassino. A terra estava
sendo povoada e já havia mulheres bastante para um só homem ter duas. O
temperamento deste homem é bem semelhante ao de Caim. Na narrativa de seu crime
encontramos o primeiro espécimen de poesia hebraica. O povo hebraico não adquiriu sua
cultura poética nos últimos anos de sua história política, como muitos crêem, visto que em
eras remotas como esta, em que foi escrito este livro, já se escrevia poesia. Os filhos
destas mulheres foram os inventores de instrumentos de corda e de instrumentos de
cortar, com o ferro, cobre, etc. Na infância da raça nota-se a sua capacidade para a
música, a poesia e a indústria.
Algumas nações antigas e bastante civilizadas tinham o costume dos casamentos
consangüíneos. Um caso bem notável e que, provavelmente, se relaciona com a própria
história bíblica, é o de Tutmosis II do Egito, que casou com sua Irmã mais velha, por nome
Hatscheput Qu Hatschepsut, a qual tinha já sido co-regente com o pai Tutmosis I e, por
morte do marido, casou com Tutmosis III, possivelmente, meio irmão. Acredita-se que foi
esta notável princesa que salvou Moisés das águas. Reinou em 1580 a.C. (História
Universal, de Onken, Vol. II, pag. 183). Releva notar ainda que os egípcios tinham uma
moral muito superior à dos outros povos antigos. Não é de admirar que Caim casasse com
uma de suas Irmãs ou mesmo sobrinhas.
Lameque era descendente de Caim e. como este, foi introdutor de um pecado no mundo:
o da poligamia. Não somente foi polígamo, mas também assassino. A terra estava sendo
povoada e já havia mulheres bastante para um só homem ter duas. O temperamento
deste homem é bem semelhante ao de Caim. Na narrativa de seu crime encontramos o
primeiro espécimen de poesia hebraica. O povo hebraico não adquiriu sua cultura poética
nos últimos anos de sua história política, como muitos crêem, visto que em eras remotas
como esta, em que foi escrito este livro, já se escrevia poesia. Os filhos destas mulheres
foram os inventores de instrumentos de corda e de instrumentos de cortar, com o ferro,
cobre, etc. Na infância da raça nota-se a sua capacidade para a música, a poesia e a
indústria.
O Nascimento de Sete (4:25-26)
Adão e Eva tiveram mais um filho, que veio substituir Abel. Possivelmente, tiveram
outros filhos e filhas depois de Abel, mas nenhum foi capaz de preencher o lugar do morto,
talvez porque seguissem mais ou menos o caminho de Caim. A promessa de Deus feita no
Jardim aviva-se novamente na mente do primeiro casal, que, sem dúvida, esperava a
redenção prometida por meio deste filho. A Sete nasceu também um filho, que recebeu o
nome de Enos. Este nome é bem significativo, quer dizer "fraco", "mortal". A decadência
física e moral acentua-se cada vez mais, e a esperança de melhores dias afagada pelo
círculo adâmico ia se evaporando cada vez mais, de modo que este neto de Adão recebeu
um nome que bem revela o estado de alma da família religiosa.
Esta situação convenceu os homens piedosos de que Jeová era o único que podia ajudar;
por isso, daí em diante começaram a invocar o nome de Jeová. A religião é a única coisa
que pode confortar um espírito abatido.
CAP. XIII - TÁBUA GENEALÓGICA
(Gênesis 5)
No capítulo 4 notamos a raça se dividindo em duas correntes opostas, a de Caim e a
de Abel, um, adorando a Deus, por meio do sacrifício expiatório, e outro, esquecendo-se
que era pecador caído, oferecendo simplesmente fruto da terra. Abel afirmou a
necessidade de um Salvador e Caim negou-a. Abel foi morto, e a corrente foi quebrada,
até que Sete a restaurou e restabeleceu o culto a Jeová. Por um pouco de tempo o mal
dominou, mas afinal o bem foi restaurado.
O capítulo 5 abre uma nova seção: "Este é o livro das gerações de Adão." Sete foi
gerado à semelhança de Adão, e Adão tinha sido formado à semelhança de Deus. Sete
sendo gerado à semelhança de Adão, quer dizer que este lhe comunicou sua própria
natureza, isto é, a natureza do pecado, que é em si mesmo a semelhança de Adão. Adão
perdeu para si e para toda a raça a semelhança de Deus sob o ponto de vista de pureza,
restando-lhe a semelhança moral e também física, no sentido teofânico (quando Deus se
revela ao homem fisicamente, toma sempre a forma humana; a estas revelações dá-se o
nome de teofania).
Adão teve muitos outros filhos e filhas. Sete foi gerado quando Adão tinha 130 anos e
viveu Adão até 930 anos, tempo bastante para uma vasta prole.
De Sete, sucessor de Abel, vem a nova linha genealógica - Sete, Enos, Quena,
Maalalel, Jarede, Enoque, Matusalém, Lameque e Noé. De todos, foi Matusalém quem
mais viveu, 969 anos, mais 39 anos que o próprio Adão. A linhagem de Caim pereceu no
Dilúvio e a de Sete tomou possessão da terra. Esta lista de antediluvianos é a mais antiga
que possuímos e a que mais importância tem para nós. Comparando as diversas idades
destes homens, descobrimos que Matusalém foi contemporâneo de Adão e Noé, o
primeiro e o último da primeira parte da história humana. Ele foi contemporâneo de Adão
243 anos, e 600 de Noé. Lameque, pai de Noé, foi contemporâneo de Adão 56 anos e
apenas 123 anos mediaram entre a morte de Adão e o nascimento de Noé. Desta forma,
toda a revelação dada a Adão por Deus pode ser transmitida quase pessoalmente a Noé.
Lameque mesmo podia ter ouvido de Adão o que contou a Noé, e este a seus filhos.
Sabemos que foi com os filhos de Noé que a terra foi povoada, e a similaridade das
narrativas da criação entre todas as raças antigas é conclusão evidente de que todas
tiveram a mesma origem. A raça hebraica descende de Sem, e tem sido ela a fiel
guardadora dos oráculos divinos. Concluímos que os filhos de Sem guardavam de geração
em geração o que tinham ouvido do pai, até ao tempo em que Moisés escreveu o
Pentateuco. Todos os orientalistas reconhecem a grande capacidade de memória do povo
semita, de modo que era fácil reter e perpetuar tradições, tais como a da criação, a do
Dilúvio e a das histórias dos patriarcas, até que Moisés reduziu à escrita todas elas.
É desnecessário relembrar o problema de como e onde Moisés arranjou os conhecimentos
que incorporou no livro de Gênesis. Aceitamos que ele escreveu por direção divina, e
podemos concluir, do exposto acima, que estava bastante familiarizado com todas as
tradições. As cosmogonia caldaica e egípcia que havia estudado certamente o
convenceram da veracidade das histórias que seus pais lhe haviam contado. A crítica
moderna tem de tal modo baralhado o problema da origem das narrativas contidas nos
primeiros capítulos de Gênesis, que dificilmente se pode dar qualquer discussão sucinta do
problema. A mais antiga escola acreditava que Moisés usou, na composição do livro de
Gênesis, dois documentos: um, que usava o nome de Elohim para Deus e que é chamado o
documento Eloístico, e outro, que usava o nome de Jeová, chamado Jeovístico, por causa
das tão faladas diferenças do nome empregado para Deus no primeiro capítulo de Gênesis.
Outra escola, mais tarde, afirmou que Moisés não escreveu coisa alguma, mas alguém
juntou os dois falados documentos, fazendo a ligação necessária entre eles. Daí as tão
discutidas repetições em histórias como a da criação e a do dilúvio. Ainda outros,
mais tarde, atribuíram todas estas narrativas a diversas escolas do tempo do reino unido e
do cativeiro. A reação da crítica conservadora tem forçado a volta do problema à tradição
original de Moisés como autor, usando as tradições correntes e aproveitando o material
porventura existente. O leitor poderá encontrar informação detalhada no livro do Dr.
Angus.
Entre os antediluvianos, quem mais prende a nossa atenção, pelo espírito que revelou e
pela singularidade de sua transladação, é Enoque. Diz o relato divino que ele "andava com
Deus"
. Em outras palavras, vivia em comunhão com Deus. Como prêmio de tal conduta, Deus o
privou de passar pela morte. Somente ele e Elias tiveram esse privilégio.
CAP. XIV - O DILÚVIO
(Gênesis 6-8)
Noé
O capítulo 5 termina com o nascimento dos três filhos de Noé. Noé significa
"descanso". As agruras da vida tinham trazido amargas experiências a todos estes
homens, e o nascimento de Noé foi para Lameque como que uma nova estrela no
horizonte da vida. Daqui em diante começa um novo capítulo na história da humanidade.
(Gênesis 6-8)
Causa do Dilúvio: Casamentos Mistos (6:1-8)
Este capítulo começa descrevendo as terríveis condições a que tinha chegado a raça
e dá, ao mesmo tempo, estas condições como a causa do Dilúvio. A iniqüidade vinha se
multiplicando na terra desde a morte de Abel. A despeito de todos os esforços divinos
para conservar sua criação nos moldes do programa original, a corrupção cada vez mais se
acentuava. Deus tinha posto o homem na terra para dominar sobre ela, para ser o seu rei,
mas estes foros e direitos estavam se perdendo pouco a pouco, e de tal modo se
corrompeu, que perdeu totalmente todos os direitos de senhor e dominador da criação
divina. Uma das causas mencionadas nestes primeiros versos, e talvez a maior delas, foi o
casamento de crentes piedosos, da semente de Sete, com a descendência corrupta de
Caim. A terra estava começando a ser povoada. Não era mais uma família, ou duas, mas
uma numerosa prole, dividindo-se e subdividindo-se em diferentes tipos, com diferentes
inclinações. Era problema complexo e difícil. Os primórdios da religião da família estavam
sendo descartados, o culto abandonado, a união de um homem com uma mulher tomou
caráter profano e, conforme as condições, cada homem tomava para si tantas mulheres
quantas sua cobiça pudesse desejar. O bígamo Lameque tinha incubado o germe da
corrupção da família, e no seu próprio tempo apareceram os frutos patentes, numa
poligamia desbragada. A família é a base e estrutura da sociedade. O padrão familiar de
qualquer povo decidirá o seu futuro como povo civilizado e honesto. A decadência de
qualquer nação começa no lar. A ruína dos primitivos habitantes começou com a não
observância dos estatutos divinos de multiplicar-se pelos processos lícitos e consentâneos
com a natureza da raça mesma. Neste ponto, o programa divino ficou frustrado e só
restava um recurso: destruir a raça apóstata e começar de novo. Deus não pode ser
acusado de injustiça, porquanto o homem tinha perdido todos os direitos a senhor da
terra.
Muitos anos se passaram desde a morte de Abel, e durante esse tempo os homens se
multiplicaram na terra (v. 1) e nasceram-lhes filhas, que iam sendo tomadas por outros
homens, sem reserva de espécie alguma: "Viram os filhos de Deus que as filhas dos
homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas que escolheram." Neste
verso temos uma das escrituras mais debatidas e sobre que mais se tem escrito. O verso é,
geralmente, interpretado de três modos, e pode dizer-se que todas as escolas teológicas
têm dado sua palavra sobre o assunto. Reconhecemos que é difícil a interpretação, mas, à
luz dos precedentes capítulos e da história da raça, não parece haver lugar para as
extravagâncias racionalistas a respeito da diversidade de raças sobre a terra.
Dou aqui as três interpretações e a que penso ser verdadeira:
1. A causa da multiplicação do pecado no mundo e conseqüente punição pela
vinda do Dilúvio sobre a terra teria sido o casamento dos filhos de Deus, a descendência de
Adão, com as filhas dos homens, mulheres meio brutas, descendentes de animais
inferiores, que pelo processo da evolução tinham chegado a ter forma humana, andavam
eretas, mas, além dessas aparências humanas, eram ainda seres brutos e irracionais. Esta
teoria nega que as outras raças, além da branca, sejam descendentes de Adão. Haveria,
portanto, no mundo, duas raças fundamentalmente diferentes: uma, criação direta de
Deus, a outra, produto da evolução, desde o protoplasma até ao macaco e depois ao
homem.
Os que advogam esta teoria crêem que estas mulheres foram os seres intermediários
entre o homem e o macaco, ou o elo de que tanto falam e que há dezenas de anos
procuram, em achar. Reconhecem que, a despeito de o macaco oferecer certas
imagináveis aparências, não deixa, entretanto, de haver um abismo entre ele e o homem,
e que, portanto, não é possível que a descendência do quadrumano seja o homem. Daí a
necessidade que têm os aderentes desta doutrina de recorrerem a outros seres
intermediários, de que estas mulheres teriam sido parte.
Esta escola pode ainda dividir-se em duas: a que admite a criação da matéria por Deus, e a
que nega, tanto a existência de Deus, quanto a conseqüente criação. A primeira chama-se
teísta, e a segunda, ateísta.
Conforme a doutrina da primeira, Deus criou o mundo e talvez algumas espécies
elementares de vida animal, que, pela lei da evolução, foram se desenvolvendo até chegar
ao homem. Outros vão mais longe e dizem que Deus criou apenas a matéria e deu-lhe
certas leis, a que chamam forças residentes, mediante as quais a dita matéria se
desenvolveu por si mesma, até produzir o primeiro elemento vivo, que geralmente é
chamado protoplasma, o qual, nela mesma lei da evolução, produziu todos os seres que se
encontram na face da terra. Em qualquer dos casos, esta teoria requer centenas de
milhares de anos, para poder produzir todas as espécies que se encontram espalhadas
pelas cinco partes do mundo. Alguns teólogos, meio críticos, admitem que Deus criou o
primeiro par conforme ficou dito, donde vem a raça branca; e que as outras raças são
produto da evolução, pertencendo as mulheres que são aqui chamadas "filhas dos
homens" a esta raça não criada por Deus. Em resumo, as "filhas dos homens" são o
produto da evolução, e os "filhos de Deus" são os descendentes de Adão e Eva.
Convém notar que entre a teoria teísta, que aceita Deus como o criador da matéria e
talvez de algumas espécies originais, e a teoria ateísta, que nega em absoluto, tanto Deus
como a criação, não há muita diferença, porque em ambas é admitida a evolução como
causa necessária da criação. Mesmo no ramo mais conservador, que admite a criação de
um par original, Adão e Eva, aceitando que as outras raças sejam o resultado da evolução,
não há muita diferença, porque no final todas elas se confundem na célebre evolução.
2. A segunda escola de interpretação diz que as "filhas dos homens" eram realmente a
descendência de Adão e Eva e que os "filhos de Deus" eram os anjos que entraram em
conúbio com a raça humana. Os adeptos desta teoria baseiam-se, primeiro, no teor geral
das Escrituras, que chama aos anjos "filhos de Deus"; segundo, que alguns manuscritos da
Septuaginta têm "anjos" em lugar de "filhos de Deus"; terceiro, que os versos 6 e 7 de
Judas mostram que a falta dos anjos foi darem-se ao pecado de miscigenação, entrando
em contacto com a carne; quarto, que os gigantes de Gênesis 6:4 eram anjos, e que,
finalmente, a descendência deste conúbio deu uma raça de gigantes, de que fala Gênesis
em diversos lugares, cuja descendência habitava Canaã, quando os doze espias foram
revistar a terra.
Examinando, ligeiramente, esta teoria, responde-se:
(1) que em algumas passagens das Escrituras os anjos são chamados
filhos de Deus, mas nunca em Gênesis,
(2) a Septuaginta, traduzindo "anjos" em lugar de "filhos de Deus",
violenta o texto hebraico para se conformar à teologia alexandrina;
(3) o argumento de Judas 6 e 7 desfaz-se à primeira análise. O verso 6
refere-se aos anjos que não guardaram sua própria habitação, isto é, que não ficaram fiéis
à sua missão, ficando por isso reservados para o dia do Juízo. O verso 7 é uma analogia ou
aplicação do verso 6. Assim como os sodomitas tinham fornicado, desviando-se das
normas naturais, semelhantemente, os anjos se tinham desviado de sua posição. Deus
entregou os sodomitas ao juízo, sofrendo eles a pena do fogo eterno. A expressão "ido
após outra carne", no verso 7, refere-se à relação sexual dos sodomitas e gomorritas que,
conforme Romanos 1:27, se tinham desviado da ordem da natureza, para se corromperem
entre si mesmos. Não há nenhuma confusão neste sentido, e simplesmente comparação
entre o ato dos anjos e o ato dos sodomitas.
Demais, o caso em Judas é diferente de Gênesis 6:2. Aqui é casamento legal, enquanto em
Judas é pecado de sodomia. A natureza dos anjos exclui em si mesmo tal união. Os anjos
são incorpóreos (Sal. 104:4.; Hb. 1:14; Ef. 4:12); não têm sexo (Mat. 22:30); são imortais
(Lc. 20:36); são super humanos e ao mesmo tempo finitos, com sabedoria e poder
diferentes dos do homem (II Sm. 14:20; II Pedro 2:11; Mat. 24:36; I Pedro 1:2; Ef. 3:10);
eles não têm descendência nem ascendência, não têm família. Não foram criados na
mesma ordem que o homem. Cada um permanece fiel ou cai por si mesmo; não fazem
parte da economia humana, sendo sua redenção, em caso de pecado, possível, mediante
processo diferente do que redime o homem (Hb. 2:16). Os anjos são, sim, criados, e,
portanto, finitos, mas por origem são chamados filhos de Deus; por natureza, espíritos;
pelo caráter, santos (Jó 5:1; Sal. 98:5-7; Daniel 18:13; Judas 14). Todos estes predicados os
excluem de, por sua natureza, entrarem em relação com a humanidade.
(4) Os Nefelins (Gênesis 6:4 e Números 13:33) não são anjos, mas homens de grande
estatura, célebres por seu caráter violento. A palavra "nefelim" será examinada
ligeiramente, e o leitor verá que ela significa, conforme a raiz de onde se deriva,
"caidores". O verbo "nafel" significa cair, não sabendo os teólogos se "nefelim" significa
"caidores" sobre os outros homens mais fracos, dando-Ihes, desta forma, a ascendência
sobre eles, ou se significa "caídos" moral e espiritualmente. Seja qual for a mais correta
significação de nefelim, o termo nada oferece que se possa aceitar como indicativo de ser
diferente da raça humana.
(5) A origem desta raça de gigantes é coisa explicável, sem necessidade de admitir
miscigenação de seres humanos e espirituais. Ainda hoje há homens que junto de outros
são verdadeiras gigantes. Os irlandeses são de estatura muito maior que os brasileiros.
Nem por isso se diria que os irlandeses são gigantes para os brasileiros.
3. A terceira interpretação diz que "os filhos de Deus" são descendentes de
Sete, ou seja, a linhagem piedosa e obediente a Deus, e as filhas dos homens, as mulheres
da descendência de Caim, ou seja, a linhagem da desobediência e rebelião. Com isto, está
de acordo Gênesis 4:26: "então começaram os homens a invocar o nome do Senhor", ou
como seria melhor traduzido: "Então começaram os homens a ser chamados pelo nome do
Senhor." Estas duas correntes humanas são claras através de toda a história da
humanidade. Hoje mesmo, os homens se dividem em duas correntes, uma, seguindo a
Cristo e a sua lei, outra, seguindo as inclinações de seu coração corrompido. Em favor
desta interpretação, pode mencionar-se a lei da reprodução "segundo sua espécie". Os
homens se reproduzem segundo a união de naturezas iguais, bem como os outros animais.
A natureza dos anjos, sendo espirituais e sem sexo, os inibe de entrar em relações sexuais
com qualquer espécie. O fato de Moisés mencionar estes casamentos e dá-los mesmo
como causa da corrupção que se seguiu, não nos deve surpreender, porque o Novo e o
Velho Testamento proíbem casamento de pessoas de condições espirituais diferentes (Ed.
10; Nm. 13; Êx. 34:15, 16; Deut. 7:3, bem como, no N.T., II Cor. 4:14-17).
Em muitos outros casos no V. T., o casamento de crentes com descrentes foi causa
de sérios embaraços, como se deu com Salomão. O pecado dos filhos de Deus consistiu
em entrarem em relações matrimoniais com mulheres de sentimentos e educação
diferentes, somente porque eram bonitas. Dentre as teorias mencionadas, o autor aceita
esta última.
A expressão "de todas que escolheram", parece indicar que cada um tomou mais de uma
mulher, continuando a poligamia que Lameque tinha introduzido no mundo. O grande
comentador Conant sumaria assim a passagem: "Os descendentes de Caim eram uma raça
irreligiosa, e alguns se distinguiram por proezas e opressões. Os descendentes de Sete
entraram em relações matrimoniais com as mulheres dessa raça, e desta união saíram
homens distinguidos por igual caráter e conduta. Assim, toda a raça se corrompeu."
(Conant, Comentário ao Livro de Gênesis).
Seja qual for o verdadeiro significado da palavra que denomina os descendentes destes
casamentos ilícitos, é certo que eles foram o resultado imediato da falta de obediência a
Deus. A terra encheu-se de violência, e Deus, como que se fatigou de lutar com a raça,
deliberou destruí-la. O Espírito de Deus, o doador e preservador da vida, foi retirado do
homem, e o fim chegou em breve: Meu espírito não contenderá para sempre com o
homem... O Espírito divino no homem é a única esperança para sua conduta, mas sua
persistência no erro terminará afugentando-o, e o homem, uma vez entregue a si mesmo,
breve se afoga na corrupção. Notemos, porém, que Deus, por meio do seu Espírito, tenta
guiar o homem e encaminhá-lo na trilha do bem e da virtude, e só depois que vê baldado
seu esforço é que deixa o homem a sós, é o pecado contra o Espírito Santo, de resistir
profanamente contra sua presença visível, tanto na vida pessoal como coletiva. Não há
remédio para o homem nestas condições.
"Porque ele também é carne." Em outras palavras, "porque ele... é carne", e nesta
carnalidade continuará em seu erro.
A palavra não pode ser, pois, entendida aqui em seu sentido ordinário, como que
comparando fisicamente o homem a Deus. Em seu pecado e na continuidade do erro, o
homem é sempre carnal.
Por causa desta carnalidade, Deus mareou um limite à vida humana, não um limite
para a idade do homem, mas para a idade da raça. "Seus dias serão 120 anos". A raça
sobre a terra duraria mais 120 anos e então seria destruída pelo Dilúvio.
"E arrependeu-se Jeová de ter feito o homem sobre a terra". Aparentemente, temos aqui
duas dificuldades a vencer: a primeira, que Deus, sendo impassível, imutável, conforme
nosso credo, não se pode arrepender (I Sm. 15:29). A segunda, que Deus se pode
arrepender. Ponhamos à margem nosso credo e examinemos as Escrituras. O texto diz:
"Pesou-lhe em seu coração". O Dr. Conant expressa-se assim: "Não podemos penetrar no
profundo significado da linguagem, quando tratamos com o Deus Infinito e Perfeito. Como
Deus é afetado pelo pecado não pode ser conhecido por nós; esta linguagem tem por fim
exprimir o pensamento divino, tanto quanto possível, para a nossa concepção e imperfeita
natureza. O escritor de Gênesis está pondo pensamentos divinos em termos humanos, e o
abismo que medeia entre as duas coisas não tentaremos abordar. Em Jesus temos um vivo
exemplo desta resolução de Deus. Como Jesus pôde ser tocado pelos problemas, tristezas
e angústias humanas dificilmente compreenderemos; sabemos que foi. É assim também
com Deus."
Conforme isto, Deus não se arrependeu no sentido em que o homem se arrepende, mas
sim, pesou-lhe em seu coração, ficou triste por ver sua obra destruída. É tudo que
podemos dizer sobre o assunto. É o limite do nosso pensamento. Há uma grande verdade
através das Escrituras: nós determinamos o curso do trabalho providencial de Deus, o
condicionamos à diretriz de nossa vida.
Façamos ligeira pausa e inquiramos a razão de ser da catástrofe que ameaça o
mundo, o Dilúvio. Até que ponto era a raça responsável pelo que ia acontecer? Teria ela
se afastado de Deus por voluntária e impenitente disposição, ou ter-se-ia afastado
naturalmente, por falta de luz e meios preservativos? Tê-la-ia Deus deixado entregue a si
mesma, para seguir seu curso natural, ou teria sido encaminhada divinamente, de modo
que pudesse perpetuar a boa disposição de Sete, Enoque e tantos outros santos? Do peso
destas considerações dependem em grande medida o valor do juízo e a dignidade do
"veredictum" humano, se "veredictum" se pode chamar a destruição da humanidade.
Em outras palavras, destruiu Deus a sua criação, sem lhe dar uma oportunidade de se
corrigir e melhorar? A narrativa é de tal modo breve, que o estudante precisa de
capacidade, de perspicácia, para conseguir documentar a justiça do ato divino. Não que ao
homem reste direito, em qualquer tempo, de apelo, diante da sentença divina, pois, que é
o barro para que se volte contra o oleiro? Não obstante isto, convém certificar-nos da
rigorosa justiça com que Deus sempre faz acompanhar seus atos. Veremos que não foi a
falta de luz e conhecimento divinos que levou esta geração à ruína, mas o desprezo votado
por ela à revelação. Os antediluvianos tinham os mesmos conhecimentos que nós temos
hoje, com a diferença de grau apenas. Tinham a revelação da natureza a respeito do poder
e bondade de Deus (Sal. 19:6; Rm. 1:18-20; Atos 14:17). Tinham a revelação de Deus
internamente, em suas próprias consciências (Rm. 2:15). Tinham a noção e o
conhecimento da natureza divina e de suas próprias ordens, pelo intercurso de Deus
mesmo com o homem, desde o tempo de Adão. Tudo isto reunido, não era tanto quanto
ao que a natureza caída da raça podia recorrer, mas era suficiente para que perecesse sem
culpa. Eles recusaram esta revelação no mesmo grau que os homens rejeitam a luz do
evangelho. Os motivos são os mesmos, qualquer que seja o grau de revelação que
possuam. Ainda se pode dizer, em favor da justiça divina, que Deus lhes tinha oferecido
oportunidades e meios convenientes, de modo a poderem manter a primitiva comunhão
que Adão gozou mesmo depois de pecar.
Examinemos alguns casos que deixam sem desculpa a raça e exaltam a divina justiça do
castigo:
1. A promessa de um Redentor feita no Éden (Gên. 3:15). Esta promessa
tinha sido perfeitamente entendida por Adão e Eva, como se pode ver no próprio nome
que Adão deu à mulher - Eva, que significa, mãe dos viventes e no nascimento do primeiro
filho (Gên. 4:1) Caim, que significa "Aquisição", exprimindo a esperança de Adão e Eva de
que este seria o redentor do pecado.
2. O estabelecimento do lugar de culto ao oriente do Éden, onde o homem,
por meio do sacrifício, podia ver seus pecados expiados e continuar a gozar as delícias da
comunhão com Deus (Gên. 3:24). À entrada do jardim, entre os querubins, Deus podia ser
propiciado. Foi ali que Abel ofereceu o seu holocausto e foi declarado justo pela fé.
3. Deus mesmo instituiu sacrifícios expiatórios, como meio para o pecador poder se
aproximar dele (Gên. 3:21; 4:3,4). Adão e seus filhos praticavam este culto ao Altíssimo.
4. O sábado, como dia de culto (Gên. 2:3; 4:3).
5. A facilidade de perpetuar as primitivas tradições, devido à longevidade dos
antediluvianos.
6. A existência de profetas como Enoque, que não cessariam de admoestar o
povo.
7. A pregação de Noé, que 120 anos anunciou a vinda do juízo.
8. Ministério do Espírito Santo (Gên. 6:3) no coração dos homens, admoestando-os de seus
pecados.
Estas e outras oportunidades Deus deu ao povo, para que se desviasse de seus
pecados. O castigo veio em tempo e justamente. Diante do estado pecaminoso a que
chegou a raça humana, Deus deliberou destruí-la e começar de novo com a família de Noé.
Talvez o exemplo aproveitasse e o novo começo satisfizesse às exigências divinas.
O Dilúvio foi a terceira experiência de Deus para ver se era possível manter a sua
criação dentro dos moldes a que tinha sido destinada. Lembremo-nos de que Deus não
está experimentando achar o caminho que suas criaturas devem trilhar para se convencer
a si mesmo da completa ruína espiritual do homem, mas para nos mostrar seu caminho e
complacência e ao mesmo tempo convencer-nos de que só há um meio para podermos
servi-lo e que este meio deve ser crido e aprendido pela experiência. O último recurso de
que o Criador usou foi severo e jamais será esquecido enquanto durar o mundo. "E Jeová
disse: destruirei, de sobre a face da terra, o homem que criei." Não somente o homem,
mas os próprios irracionais. Estes eram irresponsáveis, porém, como auxiliares do homem,
só tinham razão de existir se vivesse o homem. A criação principal no mundo somos nós.
Tudo mais existe para nosso proveito e conforto, daí sua aniquilação juntamente com a
humanidade, que se tinha tornado indigna.
No meio de toda a geração ímpia viu Deus um homem justo: Noé; e o justo não perece
com o ímpio. Com ele o Criador se comunica e lhe anuncia o fim de toda a carne, dá
instruções sobre os meios de preservar a si e a seus filhos, bem como um par de cada
espécie. A lei de repovoamento da terra tinha de continuar como desde o princípio: " ...
cada um segundo sua espécie".
Ainda que tudo estava irremediavelmente perdido, Deus deu 120 anos para que o
castigo não surpreendesse a raça rebelde. "Seus dias serão 120 anos". Desde o divino
decreto, de destruir a terra, até a sua execução, medíou o período de 120 anos. Noé foi o
pregoeiro da justiça durante esse tempo e, se houvesse arrependimento, a sentença divina
podia ser derrogada. Nínive seria destruída depois de 40 dias, mas a pregação de Jonas e o
consequente arrependimento do povo evitaram a catástrofe. Se os antediluvianos se
houvessem arrependido como os ninivitas, não teria vindo o Dilúvio. Deus é
misericordioso e longânimo.
A Construção da Arca Salvadora
Deus vem a Noé e lhe ordena que construa uma arca de madeira de gofer. Não se
sabe que madeira era esta, mas certamente não se refere a uma qualidade qualquer, mas
a madeira incorruptível. Gofer talvez signifique "madeira incorruptível" ante a ação da
água, tal como o cedro ou cipreste, conforme edição atualizada. Este enorme navio tinha
300 côvados de comprido por 50 de largo. Não era um navio com toda a estética naval de
nossos dias, mas obedecia ao mesmo princípio. Cada côvado tinha cerca de 22 polegadas;
portanto, a arca tinha 450 pés de comprimento, 75 de largo e 45 de altura, em números
redondos. Com os três andares, oferecia espaço suficiente para alojar todos os espécimes
de animais da terra, bem como Noé e sua família.
A Bíblia menciona três filhos de Noé ao tempo do Dilúvio, mas é provável, senão certo, que
tinha outros, porém talvez do tipo do resto da raça e que, portanto, não são mencionados
ou então teriam morrido. Durante os 120 anos, Noé ocupou-se da construção da Arca e da
pregação do arrependimento. A Bíblia nada diz de como Deus proveu Noé do necessário
às despesas de tão grande empreendimento. É possível que fosse homem de meios e os
gastasse na construção. Pelo menos os 120 anos ele deu a este trabalho.
É admirável a fé que este homem tinha, entregando-se a uma obra tão grande, no meio de
um povo que o cercaria de contínuo da pecha de tresloucado. Sua fé e pregação nada
conseguiram, porque apenas ele e sua família, mencionada na ocasião do decreto fatal,
tiveram o privilégio de salvar-se.
Deus promete fazer com Noé um concerto que serviria de base ao novo princípio. É
a primeira vez que a palavra "concerto" ocorre na Bíblia, embora houvesse outro concerto
anterior entre Adão, Eva e Deus. Mas aquele concerto era tão diferente em si mesmo, que
não oferecia os termos de concerto, propriamente. Parece que a ocasião em que Deus
promete entrar em concerto com Noé foi posterior àquela em que ordena a construção da
arca e anuncia o Dilúvio. Houve, não há dúvida, diversas manifestações divinas durante os
120 anos. Os filhos dos filhos de Noé aqui mencionados podem ser os filhos que nasceram
depois do Dilúvio ou a geração futura. O concerto foi feito com Noé e com toda a
humanidade depois dele. Houve diversos concertos feitos em ocasiões diferentes, mas
todos baseados no molde original - a promessa de um Salvador. Tudo mais é secundário
depois deste plano. A salvação e restauração da raça perdida em Adão é a chave da Bíblia.
Meu concerto estabelecerei contigo mostra que não fez um novo concerto, mas o
restabelecimento do antigo, em novos moldes. Nada mais alto podia premiar Noé, pela
sua fé e obediência, do que ser usado para restabelecer o concerto de Deus com a criação.
Noé Entra na Arca (Gênesis 7:1-8:12)
A arca ficou pronta e Deus ordenou a seu fiel servo entrar nela. Sete dias depois,
Deus fez chover torrencialmente sobre a terra, e o desfecho terrível do juízo divino
chegou. As Escrituras indicam que, além da chuva, houve ruptura dos abismos, e a água
borbotava em furiosos cachões. "As fontes do grande abismo" indicam isto ou que o mar
quebrou as muralhas e invadiu a terra. A primeira idéia parece ser mais natural com o
texto bíblico. Muitas dúvidas se têm levantado, na mente de muitos estudantes, sobre a
historicidade do Dilúvio, e muito se tem feito para dar-lhe apenas um caráter parabólico e,
por outro lado, muito se tem trabalhado, para prová-lo com dados científicos. É hoje uma
questão liquidada. A Bíblia permanece impassível de geração em geração, e cada dia que
passa deixa mais uma prova de sua origem divina.
Diversas dificuldades e objeções têm sido levantadas sobre o Dilúvio. A primeira é sobre a
sua extensão. A segunda, sobre o tempo usado por Deus para fazer submergir todos os
seres viventes, se foram 40 dias e 40 noites, como dizem os versos 12 e 17, ou 150 dias,
como diz o verso 24. Uns têm procurado descobrir discrepâncias e, outros, duplicidade de
narrativas. Há outras diferenças de menor monta, como a data etc., que deixamos de
mencionar.
Examinemos estas duas:
1. Foi o Dilúvio universal, ou local? Questão de relativa importância sobre o fato do Dilúvio
mesmo, mas ao mesmo tempo importante, porque a Bíblia diz que foi universal e a ciência
tem procurado mostrar que não. Afirmam alguns arqueólogos e geólogos que não há
vestígios universais do Dilúvio. Depende do modo como entendemos a palavra universal.
Se a entendemos sob o ponto de vista geográfico atual, não seria universal; se a
entendemos sob o ponto de vista de Noé e Moisés, era universal. Qual seria a extensão
geográfica do mundo para os homens daquele tempo? Conheciam eles a América, as Ilhas
do Oceano Pacífico, a Groenlândia etc.? Cremos que não. Qual era então o seu mundo?
Saberiam matemáticamente o tamanho de um meridiano terrestre? Diremos, não. O
mundo nesse tempo era apenas o que conheciam da terra. Dirá alguém: Se eles eram
ignorantes assim, como podemos aceitar o que escreveram? Depende do que chamamos
ignorância. O autor destas notas é ignorante em muitas coisas, todavia, não gostaria de
ser classificado com os ignorantes comuns. O autor inspirado podia ser ignorante de coisas
alheias à narrativa, e bastante mestre no que estava escrevendo.
Portanto, a Bíblia, usando expressões como - "O Dilúvio esteve sobre a terra", e "as águas
prevaleceram sobre a terra" - dá ao Dilúvio um caráter universal tanto quanto o autor
conhecia do universo. Por outro lado, qual era a necessidade de um Dilúvio universal, no
sentido próprio, se a terra não estava ainda povoada? O fim do Dilúvio foi destruir a
criação, logo, não havia necessidade de Dilúvio onde não havia vida animal. A dificuldade
maior é o modo por que as águas podiam obedecer às leis de gravidade em espaço
relativamente pequeno e em volume tão grande. Este milagre, porém, não é maior do que
qualquer outro.
Por outro lado, quem pode afirmar que o Dilúvio não cobriu de fato a terra? Se aqui ou ali
não aparecem vestígios dele, isto nada explica. Há lugares, hoje tomados pelo mar, que
não deixam vestígios de terem sido terra seca, como há lugares secos que já foram mar.
Ademais, que provas oferece a ciência para negar que as águas do Dilúvio não cobriram
toda a terra? Somente porque não há vestígios de vida marinha em certos lugares?
Lembremo-nos de que o Dilúvio durou pouco mais de um ano, como veremos, tempo
relativamente curto para deixar indeléveis vestígios por toda parte. Os cientistas
enganam-se muitas vezes, e apressam-se a tirar conclusões prematuras, que futuras
explorações deitam abaixo.
Não há, pois, dificuldade em crer que o Dilúvio foi universal em termos da geografia de
Moisés ou da nossa geografia, ainda que o autor se incline para a primeira.
2. Quanto à segunda dificuldade, notemos o seguinte: A elevação da terra
acima do mar é insignificante, tornando a superfície como um todo plano. Os montes
Himalaia e os Andes são apenas pequenas elevações na superfície da terra. Foi, pois, fácil
a imersão. Por 40 dias e 40 noites choveu torrencialmente, mas as águas continuaram a
subir ao fim deste tempo; logo, não foi somente a chuva que causou o Dilúvio, mas
também a invasão ou erupção das águas do mar na terra. Em 150 dias as águas
continuaram a crescer e 15 côvados acima do mais alto monte as águas subiram (7:20). No
fim de 150 dias começaram a minguar. Examinemos, em detalhes, a Bíblia sob este ponto.
Noé tinha 600 anos quando entrou na arca, e no dia 17 do segundo mês (ano 600, da vida
de Noé) foram abertas as fontes do abismo (7:1). Portanto, 13 dias deste segundo mês e
30 dias de cada um dos 10 meses seguintes perfazem, até ao fim do ano, 313 dias. Mas
somente no dia 27 do segundo mês, do ano seguinte, 601, ou seja, 57 dias depois de ter
começado o novo ano da vida de Noé, ou no dia 370 desde o começo do Dilúvio, foi que a
terra ficou seca. Durou, pois, o Dilúvio mais de um ano. Em 40 dias choveu
torrencialmente e depois continuou a chover, mas não tão fortemente, e em 150 dias as
águas continuaram a crescer, o que indica que além da chuva, houve inundação das águas
do mar. Não há, pois, dificuldade alguma da narrativa. As águas, depois de se fecharem as
fontes do abismo, tiveram mais ou menos o mesmo tendo para diminuir que tinham
levado para crescer.
A destruição podia ser momentânea, mas Deus escolheu este processo, e teve razão para
isso. Depois de cessar o Dilúvio, Noé ficou na arca por algum tempo, até que as condições
na terra permitissem sua saída. No dia 17 do sétimo mês do Dilúvio, a arca parou nos
montes do Arará. O pico culminante destas montanhas tem 5.230 metros, o Arará grande;
e o segundo em altura tem 5.025 metros acima do nível do mar. A palavra "descansaras"
em 8:4, não significa que a arca ficou ali, e sim que com o decréscimo das águas tocou este
monte e, continuando a boiar, resvalou e manteve-se ao sabor das águas, até que estas
secaram. Não é possível que a arca tivesse ficado ali, pois que, neste caso, a descida seria
impossível. Até hoje ainda não foi possível subir até ao pico deste monte, ainda que
diversos ensaios tenham sido feitos, para se poder averiguar se Noé poderia descer, no
caso de a Arca ter ficado ali. Os árabes têm tradições acerca da parada da arca neste
monte e dizem que Deus assim fez para que ninguém pudesse vê-la depois do Dilúvio. É,
porém, uma tradição sem base, que a experiência não confirma, e não parece razoável que
Deus tivesse operado um milagre, para fazer descer Noé e seus companheiros de salvação.
O fato de que o batel descansou neste monte é significativo, visto ser este o ponto central
do velho continente, o berço da raça indo-germânica e não foi fácil contestar que este foi o
berço da raça depois de Noé. Passaram-se ainda alguns dias, e Noé teve confirmação de
que as águas diminuíam, e começavam a aparecer as culminâncias dos montes da
Armênia.
Depois de 40 dias, soltou um corvo, mas este não voltou, ficando a saciar-se na carniça que
boiava em cima das águas. Soltou uma pomba, mas esta nem podia ficar na cumeada dos
montes nem em cima dos cadáveres, e voltou à arca. Depois de 7 dias, repetiu a
experiência, e desta vez ela trouxe no bico um ramo de oliveira. Esta árvore pode ficar por
longo tempo imersa na água e não morrer. Ainda depois de 7 dias, soltou de novo a
pomba e esta não mais voltou, pelo que Noé entendeu que as águas tinham secado.
Não obstante ter Noé certeza de que as águas tinham secado, esperou pacientemente que
Deus lhe viesse abrir a porta. Deus o tinha fechado ali e, só Ele o podia tirar.
A Saída da Arca (Gênesis 8:13-22)
A primeira coisa que Noé fez, ao sair da arca, foi erigir um altar e oferecer um
sacrifício a Deus pela sua salvação. É a primeira vez que a Bíblia fala em altares, mas não
em sacrifícios. O sacrifício é tão velho como o pecado. O altar acompanha a prática do
sacrifício. Foi por meio deste hábito, que Noé conseguiu manter-se justo, no meio de uma
geração corrompida. A prática da religião é a única coisa que preserva o homem da
corrupção. Jeová aceita este sacrifício e, como toque de sua apreciação pelo gesto de Noé,
protesta que nunca mais destruiria a terra e para testemunho desta transação põe no
firmamento o arco-íris.
(Gênesis 6-8)
Notas sobre as Diversas Tradições do Dilúvio
O maior argumento que se pode usar sobre a historicidade do Dilúvio é que faz
parte de todas as tradições dos povos mais antigos. Os museus estão cheios de
documentos, contendo a narrativa desta calamidade, que não é produto da imaginação
israelita. Em 1852, George Smith descobriu, nas escavações de Babilônia, tijolinhos com
inscrições cuneiformes, narrando o acontecimento, e, sem dúvida, antes que esta história
fosse reduzida à escrita, corria oralmente de geração em geração. Todos os povos mais
antigos têm tradições do Dilúvio, o que comprova sua universalidade. Os próprios eruditos
em antigüidades aceitam este acontecimento como fato histórico. Diferem quanto ao
modo como se daria, mas aceitam sua realidade.
Berósio (Bercicius) coligiu de antigos documentos uma narrativa muito similar à dos
tijolinhos caldaicos, na qual a história é relatada por Kharisatra, salvo do Dilúvio, a Gis-
dubar, um herói, que depois de ter sido atacado de lepra foi para uma terra distante. Há
diversas cópias desta narrativa antiga e teria sido delas que Assurbanipal, o último
monarca Assírio do sétimo século antes de Cristo, mandou fazer a sua história do Dilúvio.
Kharisatra relata a sua história mais ou menos assim: "Eu te revelarei, ó Gis-dubar, a
história da minha preservação, e te direi" - o oráculo dos deuses. A cidade de Surripak,
como tu sabes, está no Eufrates. Era muito antiga, quando os deuses determinaram, em
seu coração, fazer vir o Dilúvio, os grandes deuses, tantos como estes: seu pai Anu, o seu
rei, o grande Bel, o portador do trono, Adar, seu príncipe En-nugi. Ea, o deus da sabedoria,
sentou-se com eles e repetiu o decreto: "Homem de Surripak... (deve referir-se a Noé),
constrói um navio e acaba-o (depressa). Os deuses destruirão a semente da vida, mas tu
viverás, e faze entrar no navio a semente de todas as espécies. O navio tu construirás...
côvados (não é dado o tamanho por estar quebrado o tijolinho,as medidas do
comprimento e as medidas da largura e altura). Lança-o ao mar e cobre-o com um teto. Eu
compreendi e disse a Ea: 'Meu Senhor, o (navio) que me mandaste construir, quando eu o
construir, tanto os jovens como os velhos (se rirão de mim). Ea abriu a boca e falou: (Se
eles se rirem de ti) tu lhes dirás: Aquele que me insultar perecerá, (porque a proteção dos
deuses) está sobre mim. Eu (Ea) exercerei juízo sobre os que estão em cima e embaixo...
(Quanto a ti) (não) feches a porta (até) o tempo em que eu te falar. Então entra pela porta
do navio, trazes contigo grão, tua fazenda, provisões para tua família, teus servos e servas,
teus filhos, o gado do campo, as bestas da terra, tantas quantas eu preservarei, eu as
mandarei a ti e elas ficarão contigo atrás da porta (do navio). No quinto dia, os dois lados
do navio estavam postos. Os lados e a coberta tinham catorze medidas. Coloquei o teto e
cobri-o. Dividi os compartimentos, dividi as passagens em sete. Dividi o interior em sete
quartos. Tapei todas as brechas, por onde a água entraria. Derramei três saris de betume
por fora e três por dentro. Três saris de homens, porteiros, trouxeram os cestos das
provisões."
A narrativa continua dando minuciosas informações sobre as provisões para o sustento da
família de Surripak. Entre as provisões havia bois, carneiros, vinho, cerveja em quantidade,
como água dos rios.
Samas (o deus do sol) fixou o tempo e anunciou nestes termos: "À noite eu farei
chover destruição dos céus; entra no navio e fecha a porta. Mu-seri-ina-namari
(personificação da chuva) levantou-se no horizonte do céu, como uma negra nuvem.
Raman trovejou no meio dele - Nebo e o deus do vento saíram na frente - os carregadores
do trono passaram sobre as montanhas e planícies. Nergal, o poderoso, destruiu os
ímpios; Adar adiantou-se, destruindo tudo na sua frente. Os espíritos das cavernas
soltaram o Dilúvio e em sua fúria destruíram toda a terra. O Dilúvio de Raman (o Hércules
caldeu) subiu até aos céus e a noite tornou-se em treva densa. Destruíram toda a vida da
face da terra." Todo o restante da narrativa, que é longa, obedece, em linhas gerais, tanto
à duração do Dilúvio, como às suas conseqüências. Até as montanhas, onde a raça topou,
são mencionadas. "O navio era tangido de um lado para o outro na terra de Nizir; a
montanha de Nizir arrastou o navio e não permitiu que passasse além." A seguir, é
mencionada a pomba. "Ao aproximar-se o sétimo dia, enviei uma pomba. A pomba ia e
vinha e não encontrava onde pousar, e voltava ao barco. Eu enviei uma andorinha; ela ia e
vinha e não encontrava onde pousar. Eu enviei um corvo; o corvo foi e viu os corpos
boiando sobre as águas; comeu e voou, ficou, e não retornou à arca". (Para maiores
informações, veja-se Charlés Marston: A Bíblia Disse a Verdade, págs. 36-46).
Seria enfadonho repetir toda a narrativa caldaica, mas os trechos dados bastam para
identificar as duas narrativas a caldaica e a mosaica. . Da Caldéia, passaram estas
narrativas para o Egito e para o Ocidente, onde as encontramos entre os gregos e
romanos, com ligeiras variantes. Do mesmo modo, vamos encontrar os povos americanos
possuindo narrativas similares. Até entre os índios Cree, o Sr. John Richardson achou
traços similares do Dilúvio. No Taiti, os nativos falam do deus Ruahatu destruindo o
mundo pelo Dilúvio, e noutras terras se encontram histórias do altar erigido à divindade
depois do Dilúvio. Os habitantes de Fiji contam que do Dilúvio só se salvaram oito pessoas.
(Geikie, Hours with the Bible).
Sobre os fenômenos que dariam causa ao Dilúvio do ponto de vista astronômico e
geológico, uma vasta literatura tem sido produzida. Em 1823, o Prof. Buckland publicou a
sua Reliquiae Diluvianae, na qual tentou vindicar a autoridade das Escrituras, mostrando
que a existência de vestígios de vida marinha onde atualmente não há sinal de rio ou mar
só pode ser atribuída ao Dilúvio. O Dr. Burnet, na sua Theory of the Earth, publicada em
1680, supõe que o Dilúvio encontrou a superfície da terra perfeitamente plana, sem
montanhas e vales, e que o interior da mesma estava cheio de água. A superfície aqueceu
pelo calor do sol e rebentou, despejando todo o líquido interno. Daí vieram as montanhas
e vales. John Ray, professor em Cambridge, adotou a teoria de que o Dilúvio resultou de
um ligeiro sacudimento do centro da terra. O Dr. Alley, notável astrônomo, pensava que o
Dilúvio tinha ocorrido em virtude de um choque entre um cometa e a terra. (Os estudantes
que desejarem maiores informações poderão examinar os dois capítulos dados sobre o
assunto por Cunninghan Geikie, em Hours with the Bíble).
Se não é possível mostrar cientificamente como o Dilúvio se verificou, e nem isso interessa
à Bíblia, nem por isso a sua veracidade histórica pode ser contestada. Ele é tão real como a
própria raça que levou consigo, para todas as extremidades da terra, o terrível fato.
Quanto à sua antigüidade, pouco se pode dizer, e nem há elementos históricos que
possam determiná-la. Um mistério profundo envolve grande número de acontecimentos
ocorridos com a raça humana, que nem a Bíblia nem a pré-história decidem. Os estudos
que se têm feito para determinar, por meio da fauna, até onde o Dilúvio chegou, ou por
meio da flora, os vegetais sobreviventes à terrível catástrofe, pouco têm adiantado. O fato
continua cada vez mais certo e a Bíblia sempre na vanguarda de todas as verdades que a
picareta do geólogo ou a perspicácia dos botânicos e zoólogos podem precisar. (Langdon
propõe 3.300 anos antes de Cristo para a data do Dilúvio. M. André Parrot dá 3.000. Se
aceitarmos que Abraão nasceu 1.072 anos depois do Dilúvio, então a data deste teria
ocorrido em 3.200 a.C. A dinastia de Kish, remonta a 5.500 anos a.C. e a de Ur 4.100. O
Dilúvio, pois, veio posteriormente a estas civilizações, de onde vieram também as
tradições das tabuinhas de Kish e de Nínive).
À crítica moderna, oferecem, estas narrativas antigas, um vasto, campo comparativo, e
diga-se, para seu crédito, que cada palavra tem sido comparada, e, a despeito das
diferenças que as diversas narrativas oferecem, as similaridades são tantas, que não
deixam a menor dúvida sobre o fato. Esta história está ligada à religião em qualquer dos
povos onde se encontra, e outra coisa não era de esperar, visto que o saber religioso da
vida das nações antigas e a maneira como a divindade, ou divindades, agiram na vinda do
Dilúvio constituem a fundamental diferença entre a narração bíblica e as narrativas
étnicas. Babilônia parece haver sido o local do drama, e com tal vivacidade é descrito nos
tabletes de barro, que só resta ao crítico aceitar sua veracidade inquestionável. Desta
região, como centro do novo mundo, se espalhou a tradição do acontecimento, de modo
que se encontra em todas as nações antigas, como Assíria, Pérsia, Escandinávia, Grécia,
índia, México etc. As diversidades das narrativas são, como ficou dito, devidas às
concepções religiosas do povo: mitologistas, politeístas; e a hebraica, puramente
monoteísta.
Em Busca da Arca
A busca da arca de Noé tem sido não apenas um motivo de interesse internacional,
mas uma curiosidade natural. Encontrar o navio que salvou Noé e a nossa raça seria
satisfazer a um desejo e também uma confirmação histórica do acontecimento.
A Bíblia diz o seguinte a respeito do lugar em que a arca teria parado: "No dia
dezessete, do sétimo mês, a arca repousou sobre as montanhas de Arará". (Gên. 8:4). O
verbo hebraico traduzido por repousar não é muito claro em sua tradução. Alguns
traduzem por "flutuar", porquanto as águas ainda estavam minguando, e só depois de
quarenta dias é que Noé abriu a arca (Gên. 8: 6). Por outro lado, as montanhas de Arará
constituem um sistema muito extenso, de modo a tornar praticamente impossível
determinar em que ponto teria parado o barco. Poderia até ter parado num vale do
mesmo sistema ou num pico qualquer. O certo é que nem o texto sagrado diz nem
ninguém jamais foi capaz de determinar o ponto em que teria ficado a arca.
Isto, entretanto, não tem diminuído o interesse nesta busca, que se arrasta por séculos. A
narrativa conhecida como Epopéia de Gilgamesh, já referida, diz o seguinte: "No monte
Nisir parou o barco. O monte Nisir reteve o barco, que não o deixou mais balançar".
(Charles Marston, A Bíblia Disse a Verdade, pag. 46). Berósio, escritor caldeu do segundo
século antes de Cristo, diz que a nau de Noé encalhou nos montes Cordianos da Armênia, e
o nome Cordianos evoca o nome de Curdistão, com o seu monte Nisir, e a Armênia, o
monte Arará. Um outro escritor, conhecido como Nicolau de Damasco, diz: "Há acima de
Minias, na Armênia, uma grande montanha chamada Baris, onde, segundo se conta, muita
gente se refugiou durante o Dilúvio e foi salva". Diz-se ainda que certo homem, vagando
num barco, foi parar no cume desta montanha e que os restos do barco foram
conservados por longo tempo... Os muçulmanos também têm as suas crenças a respeito
da arca, e acham que ela parou no monte Djudi, já bem próximo da Mesopotâmia. Não
são estas as únicas referências encontradas nos escritos antigos com respeito à arca de
Noé. Muito naturalmente, assim como tantos se ocuparam com o acontecimento, teriam
de se ocupar igualmente com os detalhes do mesmo. Pela variedade de narrativas,
incluindo-se a de Gênesis, o que fica certo é que ninguém sabe o lugar exato onde a arca
parou. Isso, entretanto, não tem diminuído o fervor histórico, na busca do precioso barco.
Qualquer que tenha sido o local, parece-nos que seria difícil encontrar-se, depois de tantos
milênios, qualquer coisa que se parecesse com a arca. Acredita-se que, tendo a arca
parado numa montanha alta, o gelo a teria conservado. Por outro lado, qualquer
investigação na montanha, com metros de gelo a quebrar e ventos a enfrentar, se tornaria
infrutífera. Podemos ainda acrescentar que Deus não haveria de desejar satisfazer à
curiosidade do homem, deixando a barca em ponto de ser encontrada. Muitos outros
fatos históricos ficaram para sempre ocultos da curiosidade humana. O local onde Moisés
foi sepultado; o local exato e seguro onde Jesus foi crucificado, e o sepulcro onde foi
sepultado, são lugares de buscas e dúvidas. Se pudéssemos saber onde está a arca, muita
gente venderia até a camisa, para fazer uma viagem, de modo a satisfazer à sua
curiosidade. O que Deus quer é que se conheçam os seus juízos, as verdades
fundamentais da sua ação. Quanto à curiosidade, esta fica para os homens.
Todavia, isto não basta. O barco é que se busca. Conta-se, com pouca plausibilidade, que
um monge, há mais de um século, conseguiu escalar a montanha de Arará, de 5.200
metros de altura, e trouxe de lá um pedaço de madeira, como sendo da arca. Muita coisa
parecida tem se dito com respeito à cruz de Cristo. Quantos pedaços de madeira do
"santo lenho" andam por aí? Quem pode dar crédito a isso? Os árabes mesmo têm criado
muitas dificuldades às tentativas de busca na montanha. Dizem que o lugar é de acesso
proibido, que raios e coriscos caem continuamente ali, como uma proibição de se chegar
até lá. Tradições, até mui cabalísticas, dão outros informes de alguém que teria chegado
até perto e adormecido, não tendo podido continuar nem voltar sem a interferência de
Deus. Entre tantos busilis, crendices e dificuldades naturais, o anseio pela descoberta
continua. Em 1829, um viajante francês de nome Parrot chegou perto do cume de Arará,
mas nada conseguiu, porque havia alguns metros de neve cobrindo a montanha. Em 1850
uma brigada topográfica, apetrechada de tudo que se poderia considerar necessário para
uma escalada eficiente, conseguiu, apesar da proibição, chegar até perto do cume, mas
voltou sem nada trazer. Em 1876, Lord Bryce foi até perto do cume, e voltou de lá
trazendo um pedaço de madeira, afirmando que era da arca. O Czar da Rússia, em
resposta a uma comunicação do aviador Roskovitsky, de que tinha avistado nos flancos da
montanha certa conformidade como um barco, mandou uma comissão de sábios para
verificar o local, mas nenhuma prova conseguiu. Mais recentemente, franceses,
americanos e ingleses, munidos de tudo, inclusive de dinheiro, tentaram escalar a
montanha de Arará, mas não o conseguiram.
Pelo visto, tendo-se em consideração a incerteza do local exato e preciso, as dificuldades
de ascensão, as condições meteorológicas do lugar, as dificuldades que os árabes opõem a
qualquer busca, por considerarem sagrada a montanha, tudo isto somado dá-nos a
segurança de que a arca jamais será encontrada. Seria isso necessário à confirmação do
fato histórico do Dilúvio? Certo que não. O fato está confirmado, não apenas pelo
Gênesis, mas por todas as lendas e folclores das nações antigas. É um fato bem
confirmado. Para corroborar estas informações, vem agora a Arqueologia dizer-nos que na
Mesopotâmia foi encontrada uma camada uniforme de areia, depois de uma camada de
detritos e restos da última civilização caldaica e, por baixo desta, outra camada de uma
civilização anterior, e bastante desenvolvida. Que camada seria esta? Que rio ou mar teria
interferido entre a primeira civilização e a última? Os sábios não têm dúvida. Essa camada
representa a areia deixada pelo Dilúvio, que não inundou apenas toda a área, mas teria,
naturalmente, produzido urra erosão tremenda no local, arrastando e arrasando
elevações. Quando as águas diminuíram, ficou, então, no fundo, essa camada. Por cima
dela foi construída a civilização sumeriana e acadiana, como nos relata Gênesis no capítulo
1.
CAP. XIV - O NOVO MUNDO
(Gênesis 9)
Nos primeiros versos, Deus dá a Noé as mesmas ordens que deu a Adão. Crescer e
multiplicar-se, seguindo a ordem natural. Encher a terra, dominá-la e realizar a obra
idealizada pelo Criador. O Dilúvio foi um incidente triste na história da criação, mas de
modo algum alterou o programa divino para a raça humana. Há umas tantas repetições de
normas primitivas, como se tudo estivesse começando agora, e há outras inovações, que
regeriam a conduta dos sobreviventes até o fim. Algumas delas foram o não comer
sangue. Era o prenúncio da legislação mosaica em Levítico.
Um Culto Novo
O culto não é uma inovação atual, como não o foi anteriormente. É uma
naturalidade do coração humano que reconhece a bondade do Criador e vota-lhe a sua
admiração e reconhecimento. O sacrifício ou culto dos filhos de Adão, Sem e Caim, não foi
qualquer imposição divina, mas uma natural resposta do coração humano. Assim, Noé,
tão logo saiu da sua arca e recompôs a sua vida, virou-se para Deus, que o tinha livrado da
destruição, erigindo um altar, em que foram sacrificados os primeiros animais depois da
catástrofe.
A distinção entre animais limpos e animais impuros é de novo reafirmada, e com isso fica
evidente que há coisas puras e impuras, há distinções a fazer, para que a comunhão com
Deus seja aceitável e possível. Neste culto aparece uma admirável teantropia, que merece
um bom sermão. Logo que Noé sacrificou os animais e os colocou no altar em forma de
holocausto (o que sobe), o Senhor aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo: "Não
tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem ...". Deus "aspirou", como se fosse um
ser humano, participando do gosto provocado pelos sentidos, gostou do cheiro da carne
assada no fogo. Esta e muitas outras maneiras de Deus se sentir unido com a Sua criação
dão às narrativas bíblicas um sentido que ordinariamente não é percebido pelo leitor
menos avisado. Deus, o supremo, o infinito, o eterno, fez o homem à sua imagem e
semelhança, e com ele se identifica, até nos prazeres normais, como seja, no comer e no
beber.
Uma Promessa Nova
Assim que Deus provou o bom cheiro do culto de Noé, logo prometeu que a terra
não seria mais destruída pela água. Não obstante ser mau o coração do homem, o amor
de Deus supera em tudo esta maldade. Portanto, não haveria mais dilúvio. Esta promessa
teria sido uma resposta ao pavor que acompanharia a raça dali por diante. Como poderia
o homem trabalhar e progredir com a lembrança da terrível catástrofe? Estaria sempre
monologando: "Valerá a pena construir, trabalhar? Daqui a pouco, uma catástrofe virá e
tudo estará novamente perdido". Deus sabia destes naturais temores, e veio logo ao
encontro dele, prometendo que, enquanto houvesse dia e noite, outra coisa igual não
ocorreria. O homem podia trabalhar descansado, que não iria mais morrer afogado pelo
dilúvio.
Outra Aliança (capítulo 9)
Para firmeza do que Deus havia afirmado, quanto à segurança da raça, foi feito um
novo concerto de sobrevivência. Neste concerto são reafirmadas as anteriores obrigações
do homem de:
(1) povoar a terra;
(2) dominar sobre toda a criação, infundindo pavor em todos os animais
quanto ao homem;
(3) proibir o uso do sangue;
(4) usar a pena de talião para quem matasse o seu semelhante.
Com estas normas tão simples, estava elaborada a nova Constituição social e
religiosa da nova raça. Para que estas normas não fossem esquecidas, Deus usa outra
teantropia: "Eu me lembrarei da minha aliança, firmada entre mim e vós e todos os seres
viventes de toda a carne." (Gn. 9:15). Deus não se esquece, não pode esquecer-se de
nada, porque Ele é todo lembrança continuada e eterna, tanto quanto é eterno. Mas o
homem se esquece facilmente, e nesta conformidade Deus se iguala a ele, e diz que, para
não se esquecer, colocará o SEU ARCO nas nuvens, de modo que, quando o arco
aparecesse, Ele se lembraria do concerto, e a chuva passaria. É um fato que todos
observamos. Pode parecer que o Dilúvio vai voltar, mas no momento em que a luz do sol
se decompuser através da chuva, esta passará. Não há perigo de morrermos afogados. O
fim deste mundo está destinado de outra forma, que não será muito melhor, mas é de
outra maneira, segundo Pedro (II Pedro 3:7). Este mundo se decomporá, como se
decompõe o átomo, e desta fusão nascerá outro mundo, em que habitará a justiça para
sempre. Será outra forma muito melhorada.
Não sabemos se convém entrarmos em outros detalhes a respeito da nova terminologia
usada pelo Criador, mas convirá dizer que os termos da nova Aliança são muitos; mais
antropomórficos do que os das outras, anteriores. A raça humana estava progredindo e
continuaria a progredir; e este progresso requeria um intercâmbio mais íntimo entre a raça
e Deus, e quem sabe se por essa causa Deus usa agora outro tipo de linguagem.
O Deus da revelação não é um Deus inacessível, extramundano, de modo a não ser
percebido pelo homem. Nada disso. Essas muralhas, levantadas nas religiões, são o fruto
da especulação humana. Deus, sendo infinito, aquiesce em conviver com o finito; sendo
espírito, aquiesce em conviver com o material. A convivência entre Deus e suas criaturas é
o que mais eleva a revelação. O que Deus quer não é uma criação vivendo a sua vida à
parte, com um Deus inacessível, mas um Deus que convive, que come e bebe, digamos,
com a sua criatura, que toma parte no seu culto, finalmente, que quer ser uma parte de
tudo que se desenvolve na terra. Jesus deu esta nota de maneira final, não apenas
convivendo, comendo e dormindo, como os outros seres, mas fazendo questão de ser
considerado como igual a seus irmãos. Deus e homens existem para conviver, e não para o
separatismo. As barreiras levantadas pelas religiões étnicas e mesmo cristãs, assim
chamadas, é que têm arruinado esta doutrina. Voltemos a ela.
CAP. XV - O NOVO MUNDO
(Gênesis 9)
Monoteísmo e Politeísmo
O reconhecimento da união do homem com Deus, coisa tão singularmente
delineada através do V.T. e tão sublimemente exposta em o Novo, leva-nos a pedir uma
palavra sobre o que se conhece como monoteísmo e politeísmo. O que nós mais sabemos
é que a humanidade se acha afundada no politeísmo, seja ele de que natureza for, e que
há muitos deuses ou divindades ou santos militando entre a criatura e o Criador. Não teria
sido sempre assim. Não podia ter sido sempre assim. Os filósofos franceses e alemães
creditaram ao povo semita a capacidade de se elevar do politeísmo ao monoteísmo, e com
isso dar ao mundo uma nova interpretação do problema religioso. Estão errados todos
eles. O povo semita, a quem atribuímos a capacidade de preservação da religião e sua
interpretação, tanto por sua gênese como por eleição, não merece tanto. Os semitas
sempre foram monoteístas, e monoteístas sempre foram os grandes e primitivos povos. O
Dr. Langdon, notável orientalista, professor em Oxford, Inglaterra, não tem qualquer
dúvida de que os primitivos caldeus eram monoteístas, e que o politeísmo se desenvolveu
na medida em que os homens se afastavam de Deus. Em sua notável descrição, diz:
"Receio que a minha opinião não consiga convencer que na religião sumeriana, como na
semita, o monoteísmo precedeu o politeísmo. Tive o máximo cuidado em estabelecer
provas aduzidas e razões fundamentais em favor de total conclusão, tão contrárias às
conclusões aceitas e difundidas por todo mundo, levando sempre em conta os argumentos
da parte contrária. Afirmo, com a mais profunda sinceridade, que a minha conclusão é o
fruto de um estudo prolongado, e não uma hipótese temerária. Embora os árabes do sul e
os acádios estejam muito à frente dos beduínos, na época das inscrições, a sua história e o
seu temperamento semita levaram-nos a empregar nomes de animais, mesmo quando a
sua cultura já estava grandemente desenvolvida, tendo em vista a influência recebida do
totemismo primitivo. Não pretendo condenar o totemismo. As primitivas religiões
cananéia e hebraica já estavam bem longe da era do totemismo, se é que passaram por
esse estágio evolutivo da raça... Todas as raças semitas parece terem começado pelo
monoteísmo, a crença numa divindade única, a quem consideravam como o Criador."
(Langdon, Semitie Mythology, introdução, pág. 18).
Sempre a palavra semita, para designar Deus, era "EI", e significa o Poderoso, o Deus
Altíssimo, que Moisés depois transforma no El-Eli-on, o Deus Altíssimo.
No primeiro verso de Gênesis ocorre a palavra Eloim no plural, cuja raiz é, sem
dúvida, "EI". O singular de Eloim ocorre poucas vezes, mas isso devido ao fato de o uso
pluralístico ter se tornado comum. Ocorre, sim, na poesia, a forma singular de Elah. Todos
os mais antigos documentos caldeus apresentam El como o nome da divindade principal.
Até nas inscrições muito posteriores, encontradas no seminário de Ras-Shanra, no norte da
Palestina, não obstante o politeísmo dominante e confuso, se encontra o nome da
principal divindade "EL". O mesmo Dr. Langdon evoca o testemunho de um sábio fenício,
conhecido como o Sanchuniaton que viveu aí pelo ano 1000 a.C., e confessa que a principal
divindade do panteão em Biblos era Elioum, também chamada Hipsistos ou Altíssimo.
Certo que Elioun não é diferente de Eloim ou de El-Elion.
O Dr. Charles Marston invoca o nome do sábio Peter Le Page Renouf, tradutor do "Livro
dos Mortos" do Egito, quando afirma que no período histórico primitivo, lá para os idos de
5000 a.C., o nome próprio da principal divindade era El, e que toda a teologia egípcia,
mesmo no meio da sua quase infinita confusão politeísta, reconhece que só há um Deus.
Chamaria a atenção do leitor para o fato de Amenotepe IV, lknaton (Herege), no ano 1400
a.C. ter mudado ou reformado a religião egípcia para o monoteísmo, com o disco solar
como símbolo ou emblema. Vindo para mais perto da nossa era, mencionaríamos o
panteão grego, que, entre seus muitos deuses, continha um que era supremo sobre todos
os demais - Zeus. Os romanos dedicaram o seu melhor culto a Júpiter, que é uma forma
romana de Zeus. Nas ruínas de Baalbeque, na Síria, entre diversos templos, há um que é o
supremo, o Templo de Júpiter. Isto nos leva a ver que, não obstante os milênios
decorridos entre as primeiras civilizações caldaicas e as modernas grega e romana, a idéia
não se perdeu. Os velhos chineses, tão distantes do mundo oriental médio, onde se
desenrolou a sociedade primitiva, não fogem a esta conclusão. Dizem eles: "Zeus é o
eterno, Zeus é a terra, Zeus é o céu, Zeus é o universo, Zeus é o que está além do
universo". Deus, diríamos, é tudo, como afirmam os hindus.
O autor está preparando uma obra sobre a Trindade nas religiões étnicas, onde mostra
que, qualquer que seja o estado da religião, o centro dela é Deus em três formas ou
pessoas.
No Seminário de Serabite, no Monte Sinai - onde, provavelmente, Moisés teria
colaborado, durante o período que esteve em Midiã, no pastoreio do gado do seu sogro
que, por sinal, era também sacerdote com o nome composto de El, Rouel, e que faria parte
do professorado de Serabite - foram encontrados restos de um culto muito semelhante ao
de Levítico, por onde se conclui que Moisés teria até incorporado ao sistema mosaico
muitos dos princípios doutrinados nesse seminário. Ora, os habitantes do Sinai eram
semitas, mesmo vivendo sob o protetorado do Egito, que usava as minas do Sinai para as
suas construções faraônicas. Houve, pelo menos, regiões em que o politeísmo nunca
existiu. Se traçássemos uma linha desde Ur dos caldeus, passando por Padã-Arã e depois
descendo até o Egito, abrangeríamos todos os povos mais antigos. Pois estes eram
monoteístas na maioria das épocas. O politeísmo é uma corrupção religiosa, tal como os
muitos santos católicos são uma corrupção do cristianismo. O monoteísmo não é uma
concepção semita, como pensam alguns críticos, é um fato de todos os povos antigos.
Gênesis 9)
Um Novo Pecado Depois do Dilúvio (Gên. 9:20-27)
Temos de lamentar a queda de Noé, tão depressa, depois do Dilúvio. O uso do vinho não
era proibido naqueles tempos, mas sim o abuso. Logo que saiu da arca, Noé plantou e
colheu. Esta a norma de continuação da vida. Plantou vinhas, e colheu vinho. Bebeu
demais, e embebedou-se. Caído descompostamente, provocou o riso do filho Cão, que
por isso lhe faltou com o respeito. Acordando e saoube do ato generoso dos filhos Sem e
Jafé, daí nasceu uma das mais notáveis profecias, com largo e profundo sentido na história
humana. Não foi, entretanto, o filho Cão o amaldiçoado pelo seu mau ato, mas o filho
mais velho deste, por nome Canaã, como que a designar que não seria um homem, mas
um povo, a sofrer as conseqüências do pecado. Os versos 25-27 do capitulo 9 de Gênesis
dão-nos conta dos efeitos da falta de respeito filial. Canaã, o filho mais velho de Cão, seria
maldito. Jafé seria o dono do mundo; Sem, o pai da religião. Com um mapa diante de nós
e um pouco de conhecimento da distribuição dos primeiros povos, iremos descobrir que os
jafetitas tomaram o rumo da Europa e conquistaram e deram ao mundo o que nós
conhecemos hoje como civilização ocidental. Foram os jafetitas feitos gregos e romanos
antigos que nos deram os povos neolatinos, senhores do mundo por suas conquistas e por
sua indústria. Foram eles que descobriram outras terras e as dominaram. Não contentes
com a Europa, levaram suas naus ao Oriente distante, tomaram as ilhas do Pacífico,
dominaram a China, a fndia e até o Japão, em certo sentido, senão poeticamente,
industrialmente, pelo menos. Conquistariam a África e a dominaram até recentes anos. A
profecia foi: "Alargue ou engrandeça Deus a Jafé e more nas tendas de Sem." Depois de
dominar o mundo, veio a dominar também o povo semita, que só atualmente está
procurando reconquistar a sua independência.
O povo camita nos deu algumas civilizações notáveis na Caldéia e no Egito, mas sempre
sob o domínio dos jafetitas. Os semitas nunca se afastaram do Oriente Próximo. Na
Caldéia, misturando-se com acádios e amoritas, depois difundindo-se nos edomitas,
amonitas e moabitas, formando o mundo árabe, foram sempre, de um modo geral, os
encarregados de preservar a religião. A profecia é: "Bendito seja o Senhor Deus de Sem".
Deus seria bendito neste povo. Aqui está o retrato dos mundos antigo e moderno. Como
se aproxima o fim desta geração, os três ramos da raça humana estão se misturando e
confundindo, de modo a formar uma só civilização. O estudante de história bíblica não
pode deixar de anotar que os conflitos modernos são um meio rústico de acabar com as
barreiras entre camitas, jafetitas e semitas. O povo semita, conhecido como israelita,
descendente de Abraão, o pai da fé, tem vivido segregado por muitos séculos, por um
lado, e misturado com todos os povos, por outro. Desde o ano 70 da nossa era, com a
dispersão dos judeus, a sua nacionalidade desapareceu, mas, em verdade, o povo
continuou a viver a sua vida comunitária entre as nações do mundo. Agora, com o
estabelecimento da sua nacionalidade na Palestina, foi restaurada simbolicamente a sua
nacionalidade. Continua um povo à parte. Tanto quanto o gênio industrial dos jafetitas
pertence a todos, eles também estão partilhando desse gênio.
Uma Vida Longa e útil
Noé viveu, depois do dilúvio, 350 anos. Foi contemporâneo de Abraão e, quem
sabe, teriam morado juntos nas planícies da Mesopotâmia. Adão e Matusalém
conviveram, e este foi contemporâneo de Noé, e Noé de Abraão. Segundo alguns
cronistas, Noé morreu um pouco antes de Abraão nascer. Foi, pois, contemporâneo de
Terá, pai de Abraão, por 128 anos. Como a cronologia antiga é muito confusa, nós não
dependemos muito destas conclusões, que servem apenas para estudos aproximados. O
que nos interessa, à parte da revelação mesma, é a possibilidade de transmissão de
narrativas que a Bíblia nos dá. Foi Moisés o grande cronologista dos tempos antigos, e as
suas memórias vieram em linha direta desde o princípio. Ao legar-nos o seu admirável
Gênesis, ele se teria valido de conhecimentos recebidos e, fundamentalmente, da
revelação que Deus lhe deu, pois muita coisa que nos legou não podia vir de tradições, por
mais antigas e de melhor crédito que fossem. Os primeiros capítulos de Gênesis fogem a
qualquer tradicionalismo e a qualquer escola moderna ou antiga.
CAP. XVI - AS GERAÇÕES DOS FILHOS DE NOÉ
(Gênesis 10)
Distribuição Etnográfica dos Povos
Na providência de Deus, os três filhos de Noé não tiveram descendência senão
depois do Dilúvio (10:1), o mesmo tendo acontecido com nossos primeiros pais.
Terminada a catástrofe que pôs fim à raça iníqua e começado um novo princípio, os três
filhos de Noé tiveram uma numerosa prole.
O capítulo 10 dá-nos a lista dos nomes dos descendentes dos filhos de Noé. Alguns
destes nomes ocorrem no plural, mostrando que eles não se referem tanto aos filhos de
Noé, mas às tribos ou nações que se formaram de seus nomes. Em outras palavras: um
destes filhos tomou possessão de certa terra, estabeleceu-se ali, e tanto aquela terra
quanto o povo dela ficaram chamados pelo nome do fundador da tribo, passando o nome
a significar não mais um indivíduo, mas uma raça. O nome da terra que os gregos
chamaram Egito, é bem hebraico, Mizraim, nome no plural, que alguns "scholars" dizem
referir-se mais ao baixo e alto Egito do que ao povo, mas que outros, sendo estes a
maioria, afirmam vir do nome do segundo filho de Cão.
É curioso notar, de passagem, que toda sorte de investigações têm sido feitas para
averiguar se de fato a terra foi povoada com descendentes de Noé, e, neste caso, verificar
se estes nomes se encontram como base das nações antigas ou modernas. E alegra-nos
verificar que apenas dois ou três nomes da lista dos filhos e descendentes de Noé não têm
podido ser identificados, como adiante veremos, havendo evoluído talvez noutros nomes,
pela contínua vida nomádica destes povos, ou mesmo desaparecido no decorrer dos
tempos.
É significativo para o estudante do V.T. não perder de vista o ponto principal que o autor
tinha em mira ao escrever este livro de Gênesis.
Não era sua preocupação principal relatar os pormenores das diversas famílias mas
provar, indiretamente, a unidade da raça, e, diretamente, traçar a linhagem da família
eleita. Tudo mais é secundário nesse plano. Mostrar como Deus criou e preservou um
homem ou uma família, ou famílias, de geração em geração, até que pôde formar um
povo, a quem Ele tornou depositário de seus oráculos, é o alvo de Moisés. Notaremos que
Sem é o homem de que há de sair o povo escolhido, e é com ele e com seus descendentes
que Moisés se ocupa de preferência. Tudo mais entra no drama com papel secundário.
A Arqueologia muito tem contribuído para a identificação destes nomes bíblicos, alguns
dos quais hoje não existem mais.
Pela ordem em que aparecem na Bíblia, estudemo-los aqui e vejamos o papel que
tiveram no povoamento da terra.
Descendentes de Jafé (10:2-5):
1. Gomer (seus filhos) Asquenaz, Rifá e Togarma;
2. Magogue;
3. Madai;
4. Javã (seus filhos) Elisá, Társis, Quitim e Dodanim;
5. Tubal;
6. Meseque;
7. Tiras;
Entre filhos e netos, 14 ao todo.
1. Gomer. Deste primeiro filho de Jafé descenderam os Gamir ou Gamirai, ou
cimercanos, galos, celtas, que aparecem nas inscrições assírias e que desempenharam
papel importante em conexão com este grande povo guerreiro. A eles se refere Ezequiel
38:6. Pertencem às tribos indo-germânicas, a que Heródoto chamou citas. Floresceram
muito no reino de Sargão, rei da Assíria, quando já Israel estava em decadência. Entraram
em contato com os frígios e lídios, a cuja capital puseram fogo. Foi só mais tarde que eles
foram exterminados. .
2. Magogue. Gomer e Magogue aparecem juntos em Ezequiel 38:1-6, e este é príncipe
sobre uma tribo muito importante daquele tempo. Gogue é uma abreviação de Magogue,
e aparece com o nome de Gagu nas inscrições assírias.
(Não padece dúvida que os povos referidos nesta seção sejam os bem
conhecidos russos, com sua capital Meseque, Moscou. Tubal é uma região junto ao Mar
Negro e faz parte da Rússia atualmente Especialmente o v. 7 do cap. 38 contém uma
referência muito específica a respeito das condições de Israel. A Rússia declarará guerra a
Israel... Então, se cumprirá a profecia de Apocalipse 16:16. O final da batalha ocorrerá no
bem conhecido monte de Israel, onde muitas e duras refregas tiveram lugar através da
História - o MONTE DE MEGIDO. Como e quando, só Deus sabe; mas, a profecia é muito
clara, para que haja qualquer dúvida).
(As referências antigas ao povo de Meseque (Moscou) não compreendiam
nem o território nem a qualidade do povo que o habitava. Voltamos a referir-nos ao
capítulo 38 de Ezequiel, para esclarecer e elucidar o texto).
3. Madai. Um grande povo, os persas, descende deste Madai, que aparece no plural,
bem como os medos. De fato, não era simplesmente um povo, mas muitos povos que
habitavam o NE da Ásia e que, depois de destruírem a Assíria e Babilônia, se tornaram um
dos povos mais históricos da antigüidade. Foi sob o domínio deste povo, que os judeus
tiveram permissão de voltar à Palestina. Em outras regiões aparecem com o nome de
Argos. Uma destas tribos emigrou para o Sul e localizou-se nas imediações do Golfo
Pérsico, formando a antiga Pérsia, que ainda existe. Tem-se encontrado na Grécia tribos
desta origem que não puderam ser assimiladas. Nas inscrições assírias aparecem com o
nome de Cansuti-Plural.
4. Javã, o louan dos gregos, de onde veio a famosa tribo ou raça jônia, que chegou a ter a
preponderância sobre os áticos e dórios. Supõe-se que Chipre tenha sido o berço desta
raça. Os quatro filhos de Javã: Elisá é Helas, na Grécia. Ezequiel 27:7 diz que das ilhas de
Elisá vinham jacinto e púrpura. Társis, tantas vezes mencionado em Isaías, é o Tartasenos
espanhol, perto de Gibraltar, onde iam os fenícios e gregos, em expedições e aventuras
comerciais. Foi nestas constantes viagens que os fenícios chegaram a colonizar grande
parte da Europa Ocidental. Celtem ou Quitim supõe-se serem os habitantes da cidade hoje
Lamarca, capital de Chipre. Dodanim é, provavelmente, o Rodanim ou Rodes. Calcula-se
que seus habitantes sejam os dórios.
5. Tubal. Este foi o pai dos tabalins ou tabali, que foram guerreiros famosos e valiosos
auxiliares de Xerxes, segundo Heródoto. No tempo de Senaqueribe e Sargão, dominavam
até a Cilícia, onde Xenofonte, com suas tropas, os encontrou. Não só foram célebres
guerreiros, mas também célebres artífices em ferro, cobre e prata.
6. Meseque ou os Muski das inscrições assírias, estabeleceram-se na Frígia. Célebres
por suas proezas guerreiras. Foram, afinal, dominados pelos romanos e reduzidos a
tributários. Paulo pregou-lhes o evangelho e deve ter fundado ali algumas igrejas.
7. Tiras. É ainda algo desconhecido. Acredita-se que seja a Trácia, mas não está
plenamente confirmado.
Em verdade, disse Noé: "Dilate Deus a Jafé." Toda a Europa e grande parte da Ásia foram
povoadas por esta família. "Por estes foram as ilhas e as nações divididas" (v. 5). Moisés
não tinha um mapa diante de si, como temos hoje; ainda assim, sua descrição é
religiosamente exata, nos limites em que ela se acha.
Descendentes de Cão (Ham) - Gên. 10:1-21:
1. Cusi;
Filhos de Cusi: 1) Sebá; 2) Havilá; 3) Sabtá; 4) Raamá; 5) Sabtecá; 6)
Ninrode.
Filhos de Raamá: 1) Sebá; 2) Dedã.
2. Mizraim;
Filhos de Mizraim: 1) Ludim; 2) Anamim; 3) Leabim; 4) Naftuim; 5)
Patrusim; 6) Casluim;
7) Caftorim; e os Filisteus.
3. Pute;
4. Canaã;
Filhos de Canaã: 1) Sidom; 2) Hete; 3) Jebuseus; 4) Amorreus; 5)
Girgaseus; 6) Heveus;
7) Arqueus; 8) Sineus; 9) Arvadeus; 10) Zemareus; 11) Hamateus.
1. Cusi deu origem à Etiópia e à costa sudoeste da Arábia. É o Pum dos egípcios.
Uma raça branca, similar à egípcia, que entrou em contato por muitos séculos com os
núbios. Isaías fala de Tiraca, rei da região de Cusi (37:9). A mulher de Moisés era árabe, da
descendência desta tribo (Núm. 12:1). Os filhos de Cusi deram o nome a diversos outros
lugares. Seba estabeleceu-se no Sul, na África, no Egito, no território hoje conhecido como
Núbia ou Abissínia. Sabtá, Havilá, e Sabtecá são localizados, pelos geólogos bíblicos, na
costa da África, perto do Mar Vermelho, e estreito de Mabel-Mendebe, até o Oceano
índico. Sebá e Dedã são localizados a leste da Arábia, no Golfo Pérsico. É impossível aos
geógrafos fixarem os limites destas diversas nações, por causa de se haverem espalhado
pela África, Arábia, até o monte Sinai. Alguns localizam Sebá na Arábia Félix, perto do Mar
Vermelho, donde veio a célebre rainha de Sabá, em visita ao não menos célebre Salomão.
Outros comentadores, porém, querem que esta Sebá, seja filha de Joetã, da tribo de Sem.
Entretanto, os abissínios têm uma velha tradição de que a religião judaica que
professavam antes de se converterem ao cristianismo foi introduzida no país pela rainha
de Sabá, que se havia convertido ao judaísmo, na visita que fez a Salomão, e que se tornou
sua mulher; desse casamento houve um filho, que tomou o nome de Menelique, o qual
sucedeu a Sabá, sua mãe, e continuou a praticar o judaísmo, e cuja linhagem real não
mudou até hoje.
Cusi era também pai de Ninrode, que foi o primeiro a tornar-se célebre na terra. Nada
sabemos deste homem, até Miquéias (Mq. 5:6) falar da Assíria como a terra de Ninrode.
Se assim é não foi Ashur que fundou Nínive, mas Ninrode. 18 milhas ao sul de Nínive
existem as ruínas de um palácio, com o nome de Ninroque. Os versos 10 e 11 dizem que
ele foi o fundador dum grande reino, na terra de Sinear e que dali foi para a Assíria e
edificou Nínive. A questão é se Ashur e Assíria são, no original, a mesma coisa, e se a
tradução deve ser: "saiu para Ashur" ou "saiu para a Assíria". Se a primeira tradução for
correta, então Ashur, compelido por Ninrode, saiu e foi para as bandas do Norte e edificou
Nínive, capital da Assíria. Se a segunda for correta, Ninrode saiu de Sinear e fundou o
reino da Assíria. A primeira interpretação conforma-se mais com a história, porque os
assírios eram de origem semita; mas fica o assunto por decidir, sendo uma das questões de
criticismo bíblico que não cabe aqui discutir.
2. Mizraim (Egito). Pode ser filho de Cão ou descendente dele, porque o plural ou, pelo
menos, dual , pode corresponder ao baixo e alto Egito. Alguns crêem que Mizraim vem de
Mazors, muralhas, de onde derivou o nome do país. Ou seja, Mizraim, o filho de Cusi, ou
sejam seus descendentes, ou mesmo derivado de muralhas, é certo que o Egito foi
povoado pelos descendentes de Cusi. Ludim, Anamim, Leabim, Naftuim, Patrusim, Casluim
e Caftorim, todos estes deram nomes aos diversos povos da África. Os ludins são os lídios,
mercenários muito usados pelos egípcios contra os assírios. Os anamins são os habitantes
de Heliópolis. Os leabins são os líbios, que chegaram a dominar o Egito por algum tempo.
Os casluins e os caftorins são aqueles de onde vieram os fenícios (Deut. 2:23; Jr. 27:4). Em
Jeremias 47:4 verificamos que os filisteus vieram da ilha de Caftor (Creta), mas a expressão
é ambígua e pode significar ilha ou costa. Os caftorins encontram-se também no Delta do
Nilo e, possivelmente, emigraram daí para Creta.
3. Pute ou Fute, o terceira filho de Cão, deu origem à Mauritânia que agora é ocupada por
Marrocos, Fez e Argélia. Um fragmento do tempo de Nabucodonosor relata que ele
derrotou Amasis, rei do Egito, e Ezequiel 23:10 ameaça Pute ou Fute de ser destruído
juntamente, com os egípcios e os lídios.
4. Canaã e seus descendentes. Sidom foi o filho mais velho de Canaã. O território
ocupado por Canaã limita-se, a princípio, a uma estreita faixa de terra ao longo da costa da
Palestina, mas foi se dilatando, até chegar a dominar considerável região. Foi ele que deu
o nome à terra de Canaã.
Na volta dos israelitas do Egito, era esta a raça mais poderosa e aquela que não podiam
poupar. Sidom deu o nome a toda a terra na costa do Mediterrâneo (Js. 13:16; Juízes
18:17). Esta raça desempenhou papel importante na história israelita. Foi o progenitor de
muitas outras tribos, tais como as que se encontram em Gên. 10:15-18.
Hete foi o pai dos heteus, nação poderosa da antigüidade de que só agora se está
tomando conhecimento. Sua língua, já decifrada, trouxe muita luz sobre a história antiga.
Há muita discussão sobre o berço desta poderosa raça, mas parece que foi na Ásia Menor,
e depois, levada pelo instinto de conquista, desceu e apossou-se da Palestina. Mais tarde
atacou o Egito por diversas vezes e também a Babilônia. Quando Abraão veio da Babilônia,
encontrou os heteus dominando na terra, e foi deles que comprou a terra para o sepulcro
de Sara (Gên. 23:3,7). A aparente dificuldade com esta raça, se admitirmos que emigrou
do norte para o sul, é que ela se encontrava muito distante do primitivo berço; mas, ao
mesmo tempo, esta dificuldade desaparece, admitindo-se que estes pequenos núcleos se
espalharam movidos por condições diversas, e que mais tarde, pelo crescimento do povo,
tiveram de emigrar, em busca de melhores terras para o seu gado ou de melhores
facilidades de vida ou então pelo instinto de conquista. Se os heteus vieram do oeste da
Ásia Menor, como se pensa, e se localizaram ao sul da Palestina, fizeram-no mais por
instinto de conquista. Foi este o característico principal deste povo. Pensam alguns
eruditos que dominavam, no tempo de Abraão, desde o extremo noroeste da Palestina até
às imediações do Mar Vermelho. Até que sua literatura seja decifrada, temos de ter
paciência e esperar que venha luz sobre tão grande povo da antigüidade.
Os outros filhos de Canaã - os jebuseus, amorreus, girgaseus, heveus, arqueus, sineus,
hamateus, arvadeus e zemareus - encontram-se todos na Palestina no tempo de Moisés.
Os jebuseus ocupavam Jerusalém e suas imediações. Os amorreus, no baixo Jordão; os
girgaseus, a oeste do Jordão (Josué 24:11). Os heveus, nos montes Hennom e Líbano, até
Siquém (Gên. 34:2; Js. 9:7-17; 11:19). Os arqueus e sineus, perto do monte Líbano. Os
arvadeus, na terra da Fenícia (Ez. 27:8-11). Os zemareus (Joel 18:22; II Cr. 13:14). Os
hamateus, em Hamate, principal cidade da alta Síria, perto do Orontes. A família dos
cananeus ocupava, pois, quase toda a Palestina, e só foi daí erradicada pela sua iniqüidade,
depois da volta dos hebreus do Egito.
(Para um conhecimento mais completo da origem e história desta raça, o autor recomenda
o livro "O Segredo dos Hititas", escrito por W. Seran, Livraria Itatiaia, Belo Horizonte.
Quando a segunda edição de "Estudos no Livro de Gênesis" foi publicada, ainda não se
conhecia, como se conhece agora, este povo, cujo habitat se estendia do ocidente da
Turquia até ao norte da Mesopotâmia. Foi talvez o povo mais notável da antigüidade).
Nestas ligeiras notas temos notado como os filhos de Noé e seus descendentes se
espalharam pelo mundo a fora e de como ainda hoje se pode confirmar a narrativa bíblica,
com exceção de uns poucos que, ou no decorrer dos séculos foram exterminados nas
guerras, ou se perderam pela assimilação com outras nações. As guerras exterminadoras
dos reis da Assíria e o método usado, de deslocar um povo conquistado e substituí-lo por
outro, talvez contribuíssem para a dificuldade de identificação de alguns povos, cuja
existência resta confirmar.
Já notamos que muitos destes nomes têm forma pluralística e, sem dúvida, representam o
povo, descendente do patriarca, mais do que o patriarca mesmo. Alguns como - Mizraim -
podem significar realmente o filho de Noé ou seu descendente, ou o nome por que ele era
conhecido; nós, porém, nos inclinamos para o primeiro caso. É possível que alguns dos
nomes que Moisés usou fossem os nomes por que eram conhecidos no seu tempo estes
povos, e, neste caso, usou o plural, em lugar do singular; mas não pode haver dúvida de
que o nome no plural representa o povo oriundo de descendente ou filho de Noé.
Linhagem de Sem (Gênesis 10:21-31):
1. Elão;
2. Assur;
3. Arfaxade, que gerou Salá, que gerou Eber; que gerou Pelegue e Joctã; Joctã
gerou Almodade,
Selefe, Hazarmavé, Jerá, Adorão, Uzal, Diclá, Obal, Abimael, Seba, Ofir,
Havilá, Jobabe;
Pelegue gerou Reú, que gerou Serugue, que gerou Naor, que gerou Terá,
que gerou Abraão,
Naor e Harã, que por sua vez, gerou Ló.
4. Lude;
5. Arã, que gerou Uz, Hul, Geter e Más;
Moisés não dá os filhos de Assur e Lude, ou porque não os tivessem tido ou porque
não ocupassem papel saliente entre os povoados da terra.
O V. 21 diz que Sem é o pai de todos os filhos de Eber ou hebreus (conf. 14:13). É
ainda questão aberta, se o termo hebreu vem de Eber, filho de Arfaxade, ou se é derivado
do verbo "aver", que significa "passar além" e se refere ao fato da saída de Abraão de
Babilônia. A primeira vez que o nome aparece é em conexão com a chegada de Abraão à
terra de Canaã, e parece dar a idéia de estrangeiro ou emigrante (Gên. 14:13). Os heteus
conheciam Abraão como o hebreu, mas não sabemos como este nome se tornou
conhecido nem em que sentido o usavam. A expressão "pai de todos os filhos de Eber",
liga-os aos hebreus, à raça eleita, e são filhos de Sem.
(Algumas tradições, sem grande fundamento, recordam que Abraão e seu pai Taral
ou Terá se envolveram em grandes guerras antes de Abraão passar à Palestina. Uma
tabuinha cuneiforme, escrita em hebraico arcaico, nas ruínas de Raas-shanra, dá-nos a
notícia de um conflito entre Querete, rei da Sidônia, e seus inimigos, comandados por
Teraque. Seria este Teraque o pai de Abraão? Parece que não, porque Terá ou Teraque já
era bastante velho quando chegou a Padã-Arã. De qualquer sorte, só agora é que se está
tomando conhecimento de muitos fatos com respeito a Abraão e sua família. O que nos
causa certa dificuldade é terem os heteus recebido Abraão com honras de grande chefe e
o terem chamado de "senhor". De onde lhes velo este conhecimento? Que Abraão era
guerreiro, demonstrou-o quando desbaratou numa noite os exércitos conjuntos de quatro
monarcas caldeus. Isso nos basta!)
1. Elão, o primeiro filho de Sem, foi o pai dos antigos vizinhos dos persas; aparecem
com o nome de elamitas, habitando o Norte da Pérsia no tempo de Moisés.
2. Assur foi o pai dos assírios, aquele poderoso reino que derrotou as dez tribos do
Norte e que foi o mais famoso império antigo.
3. Arfaxade foi o pai dos babilônios ou caldeus.
4. Lude foi o pai dos lídios, na Ásia Menor.
5. Arã foi o pai dos sírios, povo que habitou o nordeste da Palestina e que por
diversas vezes entrou em conflito com os israelitas. Uz, filho de Arã, deu nome à terra de
Uz, onde morava Jó, na direção do Norte da Arábia. Dos outros três filhos de Arã, só
sabemos que formaram pequenas tribos aramaicas ou sírias. Todo o resto da narrativa
centraliza-se em Eber. Dos filhos de Eber, o mais importante é Pelegue, que significa
"Divisão". "Porque nos seus dias foi a terra dividida." O que esta expressão significa é difícil
dizer. Não se sabe se a divisão da terra foi moral ou física, e ambas as possibilidades têm
bons defensores. Alguns crêem que se refere à divisão da terra em continentes, que até
aqui toda a terra era unida; outros crêem que se refere ao vale do Jordão, que desde o pé
do Líbano até ao Mar Vermelho, numa profundidade de 420 metros abaixo do nível do
mar, foi aberto por ocasião do Dilúvio, quando a terra sofreu enormes convulsões. Ainda
outros acham que esta divisão significa o espalhamento do povo após a confusão das
línguas na torre de Babel. Qualquer que seja a verdadeira interpretação, não resta dúvida
que foi um acontecimento extraordinário, de modo a ser comemorado e perpetuado no
nome de Pelegue. A confusão das línguas e conseqüente dispersão não foi de modo algum
um acontecimento passageiro e que, menos do que qualquer outro fenômeno, enchesse
de tétrico pavor e reverência o espírito do povo, e que por isso fosse celebrado no nome
deste filho de Eber. Parece muito natural aceitar-se esta última interpretação, em lugar
das outras, que exigem acontecimentos físicos sobrenaturais que não são facilmente
prováveis. O salmista (Salmo 55:9 no original) usa a mesma palavra (Palag) dividir, com
referência à divisão das línguas.
O outro filho de Eber, Joctã, teve 13 filhos, dos quais pouco sabemos, mas cre-se que
ocuparam todo o Sul da península da Arábia. Três merecem especial menção: Sabá, Havilá
e Ofir. Este último nome é freqüentemente mencionado na Bíblia, para designar a terra
que melhor ouro possuía. Sabá é o mesmo nome do filho de Cusi. É possível que os sebitas
filhos de Cusi se detivessem na Arábia antes de descer à África, e que depois os sebitas
descendentes de Eber se unissem com eles e formassem o povo que dominou na Arábia
Félix. Tem sido difícil aos geógrafos identificarem este povo, de modo que uns o dão como
povo camita, outros, como semita e ainda outros, como mistura de ambos. O mesmo
fenômeno se deu na antiga Babilônia. Os camitas fundaram o antigo reino da Acádia, na
terra de Sinar, de que Ninrode foi o primeiro rei. Os semitas invadiram a terra mais tarde,
expulsaram os reis acádios e estabeleceram um novo reino; mas os camitas, que ficaram
no país, foram assimilados pelos invasores semitas, de onde provieram os babilônios, povo
meio semita e meio camita. Foi por este processo que muitos destes antigos povos
perderam a identidade.
Os abissínios, pois, podem ser tanto semitas como camitas ou uma mistura de ambos, e
talvez tenham razão na sua tradição de que a rainha de Sabá foi a fundadora do seu reino
e dinastia. O problema resolve-se nisto. Houve dois Sabás, mas só se pode identificar um
povo com este nome; ele é, portanto, um dos dois ou uma mistura de ambos. No caso de
não ser misto, é camita, porque o maior peso da informação que temos pende para este
lado.
Com referência a Havilá, também já estudamos outro nome igual, descendente de
Cão e que se estabeleceu na costa oriental da África, lado oposto ao estreito de Mabel-
Mandebe. O Havilá semita, estabeleceu-se na costa da Arábia, perto do Mar Vermelho.
Não nos devemos surpreender com o fato de nos faltar luz sobre alguns destes antigos
povos. As contínuas guerras e invasões, as constantes emigrações de um lugar para outro,
a total ou parcial destruição de um povo e sua substituição por outro, são as causas do
geógrafo encontrar tanta dificuldade na localização das primitivas raças, conforme os
nomes de seus sucessores mencionados em Gênesis. Os reis da Assíria tiveram o completo
domínio da grande maioria destes povos por longo tempo, e era costume de alguns deles
conquistarem um reino, levarem cativo o povo para outra parte e substituírem-no por
outro povo. Foi assim que Sargão II fez com as dez tribos do reino de Israel, levando cativo
o povo e substituindo-o por outro, que trouxe do Oriente, de onde vieram os samaritanos.
CAP. XVI AS GERAÇÕES DOS FILHOS DE NOÉ
(Gênesis 10)
Resenha da Localização das Diversas Raças
Todas as tribos semitas se estabeleceram na parte oeste da Arábia, limitando-se ao sul
com alguns ramos da raça jafetita, que ocupavam a costa do Mar Cáspio e Mar Negro,
estendendo-se até ao sul da Arábia e o Golfo Pérsico. A raça de Cão ocupou toda a África
até o Mar Vermelho. A despeito de estarem separadas por mar, se misturaram em
diversos casos, como vimos acima. A raça iafetita ocupou um território limitado. Desde o
leste da Arábia, por toda a Europa, tomaram não só a maior extensão territorial, mas a
mais rica e fértil. Tiveram um vasto campo para o desenvolvimento da sua grande
capacidade física e mental, oportunidade que não tiveram os semitas e os camitas.
O verso 32 diz que destas famílias, dos filhos de Noé, foram formadas as nações da terra. É
uma das coisas mais simples a provar e convencer o estudante de que os muitos povos da
terra, com seus milhares de línguas e dialetos, costumes e conformações físicas, se podem
classificar em três grupos bem distintos, e que a profecia de Noé em 9:25-29 tem
permanecido como um marco intangível através de toda a história da raça humana. O fato
da diferença de cor e compleição física entre os muitos povos da terra tem levado alguns.
escritores a suspeitar da unidade da raça e a reconhecer-lhe mais de uma origem. Para os
que aceitam a Bíblia como a última palavra sobre qualquer assunto religioso, o problema é
simples e incontrovertido, visto a solene declaração de que Deus fez de um mesmo sangue
todas as nações dos homens que habitam na face da terra". Conquanto este testemunho
seja para nós decisivo, ainda assim, podemos ajuntar outras provas, à guisa de reforço.
1. A redenção de Cristo foi para todos os seus irmãos segundo a carne. Se esta
redenção foi para todos os homens, segue-se que todos ,,mantêm relações com a natureza
que ele tomou - natureza humana.
2. A natureza humana é uma e a mesma em toda parte.
(1) Fisicamente, todos temos os mesmos ossos, os mesmos nervos, a mesma
conformação. A anatomia ainda não descobriu qualquer diferença entre uma raça e outra,
por mais culta ou menos culta que seja, por maior que seja a diferença física que
apresente.
(2) Moralmente, todos os homens se apresentam como filhos de um mesmo pai. As
paixões variam, e o modo de dar satisfação à natureza humana varia de acordo com o
ambiente e educação do ser, mas, no âmago, todos os impulsos têm os mesmos motivos, a
mesma origem e a este complexo problema , não é difícil atribuir uma causa comum,
"Somos todos feitos de um só sangue> Por exemplo: o viajante, o missionário e o
explorador encontram por toda parte, em qualquer raça, a inata tendência de culto, quer
seja bárbaro ou civilizado, quer provenha de medo da divindade, como querem alguns
etnologistas, ou saia do coração espontaneamente, como um tributo de gratidão ao
Criador. Seja como for, há um ponto comum de convergência entre todas as nações,
raças, tribos e línguas. Isto denuncia eloqüentemente a origem comum de todos os povos.
Assim como o culto, muitos outros costumes e práticas são patrimônio de todos os povos.
O amor, o ódio, a vingança, a gratidão, são tanto qualidades dos civilizados como dos
bárbaros, dos brancos como dos amarelos ou vermelhos. Não há duas origens, mas uma
só para o homem.
3. Qualquer que seja a cor, a educação ou o costume, a estatura ou a conformação, o
cruzamento é normal entre homens e mulheres, por maiores diferenças que ofereçam.
Para os anatomistas, este argumento é razoável. Não acontece assim com certos animais
de natureza diferente, em que a reprodução ou é impossível ou a progênie é estéril.
A velha questão de que a diferença de cabelo, cor etc. destrói a tese de que todos
proviemos da mesma fonte é hoje assunto fora de debate, porque as condições de vida,
clima e alimentação produzem todas estas diferenças. Os judeus oferecem uma boa
ilustração. Todos são de origem branca, 'olhos azuis, cabelos alourados; entretanto,
encontram-se hoje judeus escuros, de cabelos e olhos pretos e amarelados, e, enfim,
apresentam tal diversidade, que só mesmo a educação e preservação de suas tradições é
que impedem que todos eles se tornem americanos, índios, africanos, brasileiros etc.
Entre os cientistas de hoje, não há muita dúvida sobre a velha questão da raça preta. As
condições climatéricas do continente africano, com sua insalubre e pestífera natureza e as
condições de vida daí decorrentes, como a péssima e insuficiente alimentação, junto a
muitas outras causas apreciáveis, foram, no decorrer dos séculos, cavando grandes
diferenças, até alterar a compleição original. Os índios da América do Norte são diferentes
em cor e temperamento dos da América do Sul. Aqueles são vermelhos escuros, enquanto
os nossos, muitos deles, são brancos ou pelo menos morenos. Ninguém duvida de que
todos vieram da mesma raça. Os antigos-mexicanos tiveram tradições sobre a emigração
de seus antepassados, das terras do Norte, e suas artes e costumes os identificam com
alguns povos orientais da raça de Cão. Certamente os índios da América do Sul tiveram a
mesma origem. Todos vieram pelo estreito de Bering ou, se houve tempo em que a
América esteve unida à Ásia, todos atravessaram pelo mesmo lugar. Resta à arqueologia
brasileira confirmar esta afirmativa de que o autor nada teme, qualquer que seja o
"veredictum".
CAP. XVII - A TORRE DE BABILÔNIA OU BABEL E A CONFUSÃO DAS LÍNGUAS
(Gênesis 11:1-9)
Os primeiros nove versos do capítulo 11 devem ser tratados como parte do capítulo
10, visto fazerem parte das gerações dos filhos de Noé. A seqüência da narrativa mesmo
exige esta conexão. Na ordem de tempo estes nove versos do cap. 11 deviam preceder o
cap. 10, visto que o espalhamento do povo e sua formação em nações já foi o resultado da
confusão das línguas, descritas nestes nove versos. Nós, porém, seguimos a ordem em
que se encontram os dados históricos, deixando a cronologia no mérito em que Moisés a
colocou.
O primeiro verso do capítulo 11 declara que antes da confusão das línguas todo o mundo
de então "era de uma mesma língua e de uma mesma fala".
Qual seria esta língua, ainda ninguém pôde dizer. Antigamente, tanto judeus como
cristãos criam que essa língua era a hebraica e ainda há hoje quem assim pense, sendo que
só a tribo que ficou fiel a Jeová, a de Sem, teve o privilégio de reter a língua original, língua
esta que foi falada no Éden e continuou depois da queda e da torre de Babel. No entanto,
os progressos da filologia não deixam muita base a esta teoria. A origem das línguas é um
assunto assaz difícil, e algumas delas têm sua história perdida nas brumas do passado, sem
que o filólogo lhes consiga achar o começo. A língua hebraica é uma destas. Se ela foi a
língua original ou não, é, como vimos, difícil afirmar e difícil negar, mas, caso não seja,
deve ter tido um princípio como as outras, e, neste caso, qual teria sido? A nação hebraica
veio de Abraão, e Abraão veio de Ur dos Caldeus, e a língua que se falava ali não era o
hebraico como o temos nos escritos do V.T. A língua caldaica desse tempo era a antiga
língua da Acádia que, provavelmente, foi a língua primitiva da terra.
Os documentos ou tijolinhos descobertos nas ruínas das cidades contemporâneas de
Abraão, todos são do tipo cuneiforme, e só temos que admitir que esta foi a língua de
Abraão antes de mudar-se para Canaã. É, pois, difícil achar-se o ponto de partida, a gênese
do hebraico. Crêem alguns, que ela começou a se desenvolver com o intercurso de Abraão
com os povos da Palestina e se elaborou durante os anos que os hebreus permaneceram
no Egito.
À primeira vista, tomando as diversas estórias que se relacionam com a vida de
Abraão, parece que uma era a língua tanto dos hebreus como dos heteus e mesmo
egípcios, porque Abraão desceu de Padã-Arã e pôde comunicar-se com os heteus que
moravam na terra. Desceu ao Egito por causa da terrível fome na Palestina, e lá o
encontramos em franco intercurso com os egípcios, como se a sua língua fosse a deles.
Entretanto, nada há de similaridade entre os hieróglifos do Egito e a língua hebraica. O
problema parece resolver-se, se atentarmos em que haveria pontos comuns entre todas e
que não seria preciso muitos meses para qualquer pessoa, numa terra de língua estranha,
se poder fazer compreender. Este assunto, conquanto seja fascinante e mereça acurado
estudo, não pode ser estudado aqui, ficando para a filologia comparativa decidir a questão,
se puder.
Crêem alguns expositores que Abraão abandonou sua língua quando chegou a Canaã e
adotou a língua da terra, e que, quando desceu ao Egito, já falava a língua corrente na
terra de Canaã, quer fosse o cananeu ou heteu ou qualquer outro idioma, e que dessa
língua veio depois o hebraico. Alguns monumentos descobertos têm inscrições com
caracteres hebraicos, o que leva a crer que o hebraico já seria falado na Palestina quando
da vinda de Abraão para ali. Em Isaías 19:18 há uma expressão que parece denotar que a
língua de Canaã era falada até mesmo no Egito; Mas esta Escritura ou profecia visa ao
futuro e pouca força tem para mostrar que a língua de Canaã era o hebraico e que foi
levada por Jacó para o Egito e na volta do povo ainda era falada na terra. É admissível que
houvesse pontos de contato entre as diversas línguas, ou mesmo similaridade, mas é difícil
crer que o hebraico fosse falado na Palestina no tempo de Abraão. Não há dúvida de que
havia um grande grupo de línguas irmãs, ainda assim bem diferentes, mesmo nos
caracteres, como sejam, a etiópica, a árabe e mais tarde a aramaica, e talvez elas sejam
filhas de uma outra língua, provavelmente morta.
As recentes descobertas arqueológicas lançam muita luz sobre o problema filológico,
especialmente no que se refere ao hebraico. Sabe-se que o hebraico é língua flexionável,
portanto, do ramo indo-germânico ou europeu, enquanto as demais línguas antigas são
todas do tipo cuneiforme ou hieroglífico, como a egípcia. Alguns admitem o ano de 1.600
para o início da língua hebraica; outros, a colocam em 1.500, mais ou menos. Dá-se,
Igualmente, como terra original desta língua a Península do Sinai. As tabuinhas
encontradas em Serabite estão escritas num hebraico arcaico. Entre as diversas línguas
usadas no Seminário de Raz-Shanra, no norte da Palestina, o hebraico era uma delas. O
hebraico compõe-se de 22 letras, enquanto os alfabetos grego e latino têm 24, (quase o
mesmo número). Há, pois, certa relação entre o hebraico e as línguas neolatinas. Quem
foi o seu autor? De onde veio? Já se admite que Moisés, no Egito ou mais tarde em Midiã,
organizou o alfabeto hebraico, o qual depois foi levado ao norte da Palestina e, pelos
fenícios, ao mundo ocidental, dando a estes a glória de serem os seus inventores. No
campo da filologia, há muito que investigar, mas a glória da Invenção do alfabeto está
errada: não foram os fenícios os seus inventores. Os livros do Pentateuco foram escritos
no hebraico; logo, esta língua existia no tempo de Moisés.
Para não deixar o assunto sem dizer uma outra palavra sobre qual seria a primitiva língua
do mundo antes da confusão, mencionarei, ligeiramente, alguns conhecimentos que o
estudo do assunto tem trazido à luz.
Como já vimos em Gênesis 11:1, diz-se que toda a terra era originalmente de uma
mesma língua. Este problema tem sido para a filologia o que a pedra filosofal foi para a
alquimia; tem estimulado exaustivos estudos e conseguido arranjar um volumoso material;
e ainda que tudo isto não tenha compensado o esforço despendido, tem, todavia, aberto o
caminho para as mais brilhantes descobertas no campo intrincado da filologia.
Crendo, como diz o relato divino, que houve um tempo em que só existia uma língua,
conjeturou-se que esta primitiva língua ainda existiria ou pelo menos poderia ser
descoberta entre os muitos dialetos e línguas do mundo. Daí, as mais penosas
investigações no estudo comparativo das línguas, as mais dispendiosas expedições a terras
longínquas, e um enorme vocabulário colecionado e a mais angélica paciência,
examinando e comparando tudo isto, tomando em consideração a idade de cada uma das
línguas sujeitas ao estudo, a fim de descobrir a língua mãe.
Muitas conclusões prematuras foram tiradas, e cada qual dos investigadores reclamava
para si o privilégio de haver descoberto a preciosa língua materna. À medida, porém, que o
estudo continuava, a maior soma de material era adquirida, mas se foi tornando patente
que o problema não era de tão fácil solução e muito restava fazer para descobrir o alvo
almejado, e que todas as conclusões precedentes tinham sido prematuras.
Pensava-se que a mera similaridade de sons entre duas ou mais línguas fosse
suficiente para denunciar uma origem comum, mas em breve se verificou que isso pouco
contribuía para desvendar o mistério e que essas similaridades eram casuais.
A presença de palavras iguais em duas línguas foi também admitida, como prova de que
ambas provinham de um tronco comum, ou uma provinha de outra, sem indagar se uma
tinha tomado tais palavras por empréstimo da outra ou não. Por exemplo, há no
Português um grande número de palavras de origem saxônica. Será isto suficiente para
provar que o Português e o Inglês tiveram a mesma origem? Esta suposição breve se
esvaeceu também.
Assim que a mera relação ou similaridade entre duas ou mais línguas, tomada a
princípio como ponto de partida seguro, teve de ser abandonada e ser nova trilha
procurada. Tiveram de deixar a superfície do assunto, e penetrar até ao âmago, e logo que
esse curso foi adotado, uma completa revolução se efetuou em todas as noções e
concepções prévias e, a despeito do grande número de línguas e da enorme distância que
separa muitas delas, a mais significativa similaridade de estrutura e vocabulário se revelou
aos olhos dos filólogos. Daí em diante foi relativamente fácil a classificação em famílias e
grupos, de modo que as mais recentes investigações reduzem a três grupos principais
todas as línguas do mundo:
1. As línguas isoladas, ou que não desenvolveram as primitivas raízes, nas quais não há
flexão nem meio de exprimir a relação de número, pessoa ou gênero. As raízes
permanecem estagnadas, sem desenvolvimento ou evolução. Para formar o plural ou
gênero, ajunta-se palavra a palavra, sem nexo, afinidade ou coerência. O plural de um
nome é feito pelo ajuntamento de dois nomes iguais no singular, como "casa" mais "casa",
igual a "casas". A língua dos primitivos babilônios, e que, sem dúvida, é vizinha da língua
mãe, é desse tipo. O hebraico apresenta vestígios disso (II Reis 3:16).
2. As línguas aglutinadas, que representam um grande avanço sobre as isoladas. Possuem
já as várias formas da linguagem, suportando modificações de forma, para expressar a
idéia; a este grupo pertence a maioria das línguas orientais.
3. As línguas flexionáveis, as mais desenvolvidas e perfeitas. Estas línguas são
faladas pela raça indo-européia ou jafetita e pela raça semita. Ambas pertencem ao Velho
e Novo Testamentos. A língua semita, o hebraico, é a língua em que o V.T. foi escrito.
Talvez a mais rica e flexionável das línguas indo-européias seja a grega, usada no N.T. O
sânscrito, que se crê ser a língua mãe do grego, pertence a este grupo.
Tomando estas conclusões como um todo, parece que estamos em vias de resolver o
assunto de qual foi a língua a que se refere Gênesis 11:1, mas, infelizmente, não é assim. É
lógico que a língua mais elementar destes grupos seja a mais próxima do original, mas,
assim mesmo, o tempo operou tantas transformações, que esta mesma não representa o
tipo primitivo.
Ao filólogo cabe dissecar, no laboratório de sua perspicácia e argúcia científica, o
corpo desta língua rudimentar e ver o que o tempo lhe acresceu, e do restante verificar se
é ou não a primitiva. Mas, há duas dificuldades insuperáveis, a nosso ver: primeiro, faltará
um ponto de contato no processo comparativo, para se poder afirmar que esta língua,
separados os elementos acrescidos através dos séculos, é realmente a língua primitiva; em
segundo lugar, é impossível, pela mesma razão, saber o que foi original e o que foi
acrescentado. Assim que, é difícil sair do labirinto filólogo. Entretanto, não há que
desanimar. As investigações nos têm levado, talvez, bem perto do alvo, e se ainda não
pudermos chegar lá, pode ser que futuros conhecimentos nos removam o resto dos
obstáculos, e possamos deleitar-nos no estudo das línguas que Adão, Noé, Sem, Cão, Jafé,
Ninrode e o resto de nossos antepassados falaram; e se nunca chegarmos a esse paraíso,
consolemo-nos com a verdade de que antes da confusão das línguas, na torre de Babel,
"toda a terra tinha uma mesma língua e uma mesma fala".
Como ficou dito, a narrativa do cap. 10 está em conexão com o cap. 11:2, que terminou na
confusão de línguas e conseqüente dispersão da raça. Este verso parece indicar que o
povo estava ainda morando nas imediações da terra de Arará, onde a Arca parou. Se Arará
é a mesma Armênia, o que é duvidoso, então o povo começou a mover-se para o Oriente,
até a planície de Sinear ou Babilônia, numa extensão de 220 léguas, aproximadamente.
Como a Armênia é um país extremamente montanhoso, é possível que o povo seguisse o
curso do rio Eufrates numa extensão considerável, até chegar ao imenso planalto na terra
de Sinear.
Ainda que mais de 100 anos já tivessem passado depois do Dilúvio, devemos pensar que o
povo não era ainda muito numeroso e que tal emigração não era difícil; ao mesmo tempo,
é crível que alguns ficassem nas terras da Armênia. O território ocupado abrangia os
antigos impérios da Assíria e Babilônia.
Gênesis 11:1-9)
Tentativa de Centralização
Logo que chegaram a essa terra fértil e agradável, surgiu a idéia da formação de um
grande centro, com meios de escapamento, no caso de outra catástrofe como a do Dilúvio:
fundar uma cidade e erigir uma torre que tocasse os céus. Não é preciso supor que o fim
desta torre fosse insultar e desafiar a Deus, mas sim prover os meios de segurança a
refúgio. A falta maior estava em que a ordem de Deus era povoar a terra por meio de
dispersão, e eles queriam ficar juntos. E disseram uns aos outros: "Eia, façamos tijolos e
queimemo-los bem. E tijolos serviram-lhes de pedra, e betume de cal. E disseram: Eia,
edifiquemos uma cidade e uma torre cujo topo toque nos céus e façamo-nos um nome,
para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra." Justamente o contrário do
que Deus tinha ordenado. Havia um motivo: "façamo-nos um nome". Havia um receio:
ser espalhados pela face de toda a terra. A empresa era digna da ambição mundana de
Ninrode.
Conforme o cap. 10:10, Babel ou Babilônia foi a primeira cidade do mundo. Assíria, a
segunda, se aceitarmos a tradução comum de 10:11. Nínive, antiga capital do Império da
Assíria, foi edificada depois por Ninrode, mas preferimos a outra tradução já mencionada,
que será: "E desta forma saiu Assur e edificou a Nínive... em lugar de ... saiu à Assíria"; e,
enquanto Ninrode era descendente de Cão, Assur era de Sem, e o povo assírio foi semita, e
não camita.
Os últimos anos têm assistido ao ressurgimento de toda esta primitiva civilização,
segundo crêem os arqueologistas. Os tabletes de tijolo em que escreviam estes antigos
ninrodianos ou acádios têm jorrado verdadeiros caudais de luz sobre a historicidade da
narrativa nestes capítulos, e a Babilônia antiga tem sido desenterrada dos escombros do
passado, e sua literatura fala-nos com a mesma clareza que aos seus contemporâneos. A
literatura em português é paupérrima demais neste assunto, mas a inglesa e a alemã são
fartas.
Estas investigações foram levadas a efeito para certificar se a narrativa bíblica era histórica
ou mitológica ou mesmo fictícia, diante dos formidáveis ataques do racionalismo alemão, e
há mais de 50 anos que se escava o solo oriental onde floresceram estas civilizações,
enchendo os museus da Europa e América com preciosos documentos comprobatórios de
que de fato o relato bíblico está baseado em história bem documentada. Deixamos para
mais tarde algumas notas sobre esta antiga cidade de Babel ou Babilônia.
Se é histórica a cidade de Babel, também o é a torre de Babilônia. As duas caem ou ficam
de pé juntas. Cria-se, nos círculos intelectuais conservadores, que, a despeito da existência
de tal torre construída e destruída no tempo de Ninrode, Deus nada teria deixado que nos
pudesse dar o consolo de ver, pelo menos, os alicerces. Josefo, historiador judaico,
reproduziu a tradição corrente entre os judeus de que Deus tinha demolido ate aos
fundamentas essa torre, com raios e coriscos, de maneira a não deixar vestígios de sua
existência. É possível que isto acontecesse, mas Moisés nada diz a repeito.
As recentes investigações afirmam ter-se encontrado na elevação que tem o nome árabe
de Birs Nimrod o antigo local da torre. Nabucodonozor encontrou estes restos de ruínas,
reedificou-os e embelezou-os, constituindo uma das belezas do seu reino. Mas, recentes
informações afirmam que os próprios alicerces da torre foram descobertos e medidos,
dando uma área suficientemente grande para suportar um monumento de estupenda
altura. Talvez o futuro ainda revele muita coisa sobre este passado, tão importante em
conexão com a Bíblia.
(Gênesis 11:1-9)
Intervenção Divina
Os versos 5-7 descrevem a descida de Jeová para ver a torre. A linguagem com que
Moisés descreve Jeová é antropomórfica, isto é, põe Deus em condições humanas,
descendo para ver a torre, como se a Deus houvesse qualquer coisa invisível. É grande
maravilha como o Todo-poderoso se adapta às condições humanas, para fins redentores.
Jeová desceu, viu a torre, viu também que todo o povo tinha uma mesma língua, e
determinou fazer-lhes justamente o que eles temiam: espalhá-los pela face da terra.
"Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do
outro". Mais uma vez notamos Jeová empregando o plural, como se outras pessoas fossem
convidadas a participar da ação. Jeová, desceu ali, confundiu a língua do povo e o
espalhou por toda a terra. A confusão das línguas deve ter sido uma formidável lição para
os ninrodianos e um dos mais estupendos milagres. Deus lançou a semente da confusão
nas línguas, e até hoje, à medida que a terra se vai povoando, novas línguas vão
aparecendo. É bem possível que fosse tão radical a diferença entre a língua original e as
outras que surgiram do ato divino, que achar qual foi a original seja um problema
demasiado difícil para desafiar o intelecto humano. Os críticos, visto não poderem
compreender o problema, lançam mão de diversos meios para explicar o fenômeno, tais
como a hipótese documentária ou a existência de mais um documento onde Moisés teria
copiado este relato, e que um dos documentos é espúrio, sem base histórica. Afirmam que
somente o capítulo 10 é histórico e que os 9 versos do capítulo 11 são invenção. Que o
capítulo 10 reconhece as diversas famílias espalhando-se por toda a terra, levadas pelo
instinto natural da emigração e conquista, e que as diversas línguas são o resultado desta
dispersão e separação de um povo de outro. Quando, porém, têm de dizer por que há tais
diferenças irreconciliáveis entre as muitas línguas, refugiam-se na filologia e no fato de que
ela ainda é muito nova e está atrasada. Isto é um simples meio de pôr à parte o que o
homem não pode compreender e uma presunção tola de negar a intervenção divina no
curso da história humana. Mas estes críticos terão de sofrer a decepção de ver ruir suas
idéias, enquanto que a narrativa bíblica continua inalterável, século após século. Nada há
que possa explicar a diferença fundamental entre as principais línguas senão um fenômeno
como o descrito aqui. Se fosse uma questão evolutiva de uma língua para outra, por causa
das condições locais, fácil seria identificar ou achar a língua original .Mas não; há um ponto
em que o labirinto é tal que todas as sutilezas filológicas caem por terra e deixam o sábio
estarrecido.
O Dr. Conant, citado por Carroll, em seu livro sobre Gênesis, diz:
"A diversidade de línguas da terra apresenta um problema que a filologia tem em
vão procurado resolver. A filologia comparativa tem, entretanto, mostrado que as muitas
línguas diferentes são agrupadas por afinidades comuns, como ramos da mesma família,
tendo todos a mesma língua original, como mãe comum. Não obstante o grande número
de línguas diversas, todas elas podem ser ligadas a umas poucas línguas maternas
originais. A dificuldade jaz na diversidade essencial destas poucas primitivas línguas, sem
que exista a mais remota afinidade que denuncie uma origem comum ou uma relação
histórica, problema este, para o qual a filologia comparativa não pode encontrar solução.
Os críticos não podem achar explicação natural para o problema e se recusam a admitir o
sobrenatural. O problema resolve-se facilmente, aceitando-se a intervenção divina no
curso da história humana. Havia uma língua original. Deus aparece e multiplica esta língua
em diversas outras, digamos, três ou oito. Destas, outras surgiram no curso da História, as
quais, por um processo dedutivo, podem ser investigadas até à sua origem, em que se
encontrarão estas três ou oito: mas, destas, até a única original, não há jeito de chegar,
porque, quando Deus a dividiu, não deixou vestígio de seu estado original. De acordo com
isto, serão baldados todos os esforços humanos para desvendar o mistério. Qualquer que
tenha sido a língua dos ninrodianos antes da confusão, perdeu-se, morreu, e o ponto de
partida agora deve começar aqui, e o passado ser deixado com o infinito soberano. A
Bíblia não pode ser entendida sem levarmos em conta , a parte que Deus tem tomado na
história do povo que ela descreve. Fora disto, é entrar num beco sem saída, é especular e
encher a terra de problemas e dificuldades desnecessárias. Conquanto pareça à mente
humana difícil resolver este assunto e outros iguais, ele não é tão difícil como os sábios o
têm feito. Os que negam a historicidade deste e de outros eventos, porque não os podem
compreender nem explicar, e que por isto procuram evasivas e interpretações sui generis,
nada têm produzido que nos ajude a compreender a Bíblia ou a história dos nossos
antepassados.
O nome da cidade que os pós-diluvianos edificaram ficou sendo Babel, porque ali Deus
confundiu suas línguas. Babel significa "confusão". Daí vem o nome grego Babilônia. A
existência de uma cidade tão antiga, com um nome tão significativo, é fato de alguma
importância que não pode ser posto de lado, a gosto de quem quer que seja. Babel tem
permanecido de geração em geração, de milênio em milênio, como o indicador divino
apontando para o quadro tétrico desenrolado na confusão das línguas, como uma lição de
que o homem procura debalde executar seus planos contra a ordem divina. O caminho de
Deus é sempre o mais curto, por mais sinuosidade que ofereça. "Daqui Jeová os espalhou
pela face de toda a terra."
CAP. XVIII - OS DESCENDENTES DE SEM - A LINHAGEM DA PROMESSA
(Gênesis 11:10-26)
Gerações de Sem
No capítulo 10, Moisés deu a descendência de Sem, juntamente com a de Jafé e a
de Cão, para mostrar como toda a terra foi povoada por estes três filhos de Noé.
Novamente ele dá a Iinhagem de Sem, mas agora, para traçar a descendência da raça
eleita. Outra circunstância notável é que nem sempre o autor começa com o primogênito,
e sim com aquele que teve a preeminência. Aqui, começa com Arfaxade, o terceiro filho
de Sem, que nasceu dois anos depois do Dilúvio. Moisés está procurando traçar a história
do povo escolhido, e por isso destaca o tipo que deu início à linhagem. Sem foi o patriarca
ou tronco de onde proveio a raça semita, e Arfaxade foi o filho de Sem que iniciou
diretamente a linhagem escolhida. Damos aqui estas idéias, porque elas são fundamentais
ao escopo que Moisés tem em vista. Tudo mais, fora do movimento em torno do povo
eleito, é incidental. Assim, ele começa aqui um novo ciclo histórico.
Pondo o pensamento divino em termos humanos, era impossível conseguir coisa alguma
permanente com toda a raça em conjunto. Já vimos a que estado ela chegou antes e
depois do Dilúvio. Com esta tremenda lição era de esperar que o plano de Deus fosse
respeitado e obedecido. Mas, não: sempre o mesmo instinto de rebelião. A semente
lançada por Satanás no Éden tinha brotado pujantemente, e todo o curso da história
humana está eivado deste espírito de rebelião. Daí, a necessidade de começar com um
círculo menor. Não houve injustiça por parte de Deus em chamar um homem para esse
fim, e não chamar os outros. Primeiro, só este satisfaria aos requisitos divinos; segundo, as
bênçãos provindas desta eleição seriam para todos, "Em ti serão benditas todas as famílias
da terra." Por outro lado, Deus é o Soberano da terra e tem o direito de governar o seu
reino como lhe parecer melhor e para conseguir a maior soma de bem, sem com isto
prejudicar a ninguém, visto que a eleição de um homem, além de ser incidental, tinha por
objeto a felicidade de todos. Se Deus não tivesse chamado Abraão, descendente de Sem,
chamaria Melquisedeque ou outro do mesmo espírito, mas não poderia chamar Ninrode
ou Cão, porque o espírito e a natureza deles eram contrários ao programa de obediência
que Deus tinha traçado.
Não devemos pensar que esta chamada foi baseada no caráter e na bondade de Abraão.
Foi baseada no propósito divino, mas ainda assim, o espírito do eleito satisfazia
plenamente às exigências.
A sublime doutrina da eleição elaborada no Novo Testamento podemos dizer que
teve o seu começo com Abraão. É muito difícil compreende-la ou mesmo impossível, mas
muitas são as consolações que ela ministra. A maior delas é que Deus mesmo é o
propulsor da história humana, e que nada acontece por acaso, mas debaixo da presciência
do Criador e para fins beneficentes. Assim, que nossa vida e salvação têm um forte braço a
governá-las. Deixemos de lado o que não podemos entender e apeguemo-nos ao que é
prático.
Esta genealogia serve apenas para ligar Sem e seu filho Arfaxade com Terá e Abraão;
portanto, é breve e não tem quaisquer incidentes, mesmo porque já foram dados no
capítulo 10. Estamos, pois, preparados para entrar no estudo de um vasto círculo histórico
em torno de Abraão, o novo herói, que vai entrar no plano da redenção e dar-lhe uma
feição como ainda não tinha tido.
(Gênesis 11:10-26)
As Gerações de Terá - Gên. 11:27-32
Esta seção estende-se até Gênesis 24:12 e tem por fim introduzir e descrever a vida
de Abraão. Ainda que Abraão apareça em primeiro lugar, era o filho mais novo de Terá.
Pela ordem dada em 11:27, Abraão vem em primeiro lugar, mas era o mais novo dos três
irmãos. Moisés está chegando ao ponto culminante de sua narrativa, introduzindo o
personagem progenitor do povo eleito. Toda a narrativa converge para este ponto.
Comparando as gerações de Terá (27-32) com Atos 7:2-4 e Gên. 12:1-14, notamos que
enquanto Abraão ainda morava em Ur dos Caldeus, Deus lhe apareceu e ordenou que
saísse dali para ir à terra que ele lhe mostraria. Não se depreende de Atos 7:2,3 que Deus
fizesse qualquer promessa nesta ocasião e, sim, quando lhe apareceu pela segunda vez em
Padã-Arã, depois da morte de Terá. O chamado veio a Abraão, mas toda a família o
acompanhou. Certamente, ele fez conhecida aos seus a ordem de Jeová de sair de Ur; e
seu pai, com seu irmão e suas mulheres, não o estorvaram na execução do plano divino.
Arã parece que tinha morrido, porque nada se diz dele além de que era filho de Terá, e é
mencionado seu filho como acompanhando o tio e avó. Da mesma maneira, nada se diz
aqui sobre a vinda de Naor, mas, conforme Gên. 24:15,24, Naor saiu com seu pai e irmão e
estabeleceu-se em Padã-Arã, ao Norte da Mesopotâmia.
Diversas tentativas Deus tinha feito para preservar a religião pura na terra, e todas elas
tinham falhado. Nesta última, resolveu escolher um homem dentre uma geração idólatra
e com ele começar o seu trabalho. Dez gerações tinham passado depois de Sem, e neste
curto período de tempo toda a terra se tinha novamente corrompido como antes do
Dilúvio. Aqui e ali, uma ou outra família preservava as lições da catástrofe diluviana e
mantinha vivas as comunicações divinas; porém o resto ia se degradando pouco a pouco.
De tudo que sabemos de Babilônia no tempo de Abraão, é que era uma cidade idólatra e
corrupta. De fato, foi ali que um novo curso de desobediência começou, debaixo da
liderança de Ninrode.
Por que Terá o sua família pararam em Harã e não foram a Canaã não sabemos. Canaã era
o ponto terminal da viagem. Talvez porque a idade de Terá (250 anos) agora não
permitisse a continuação da viagem, ou porque Harã, sendo uma região fértil, despertasse
a cobiça da família, não sabemos, mas o fato é que Abraão e Ló enriqueceram ali. A
viagem era longa e penosa de Ur para Canaã, sobretudo por causa do deserto da Arábia,
que tornava o caminho em linha reta impossível, sendo preciso seguir o curso do rio
Eufrates, até ás cabeceiras, então contornar os montes ao norte e tomar a direção do
oeste.
Alguém crê que Naor não acompanhou a família desta vez, mas se ajuntou a ela mais
tarde, em Harã. Parece mais fácil admitir que Moisés não o mencionou na lista (11:27-32)
do que julgar que ficou em Ur e depois foi só com sua mulher juntar-se à família. Não
devemos nunca esquecer que estas narrativas mencionam apenas as personagens que
desempenharam qualquer papel saliente; os outros só aparecem incidentemente. Da
mesma forma, nada se nos diz da pessoa com quem Abraão casou, ainda que este fosse
um ponto importante na vida do patriarca. Mais tarde, encontramos Abraão dizendo que
sua mulher era sua irmã, o que aceitamos como verdade, mas como foi que casou com
uma irmã e quem ela era Moisés não diz. Era incidental ao seu plano.
Convirá a nós, entretanto, dar aqui um resumo das conjecturas dos comentadores sobre o
assunto. Arã tinha morrido antes da saída de Ur, deixando duas filhas, a mais velha das
quais, Milca, casou com Naor seu tio e foi a mãe de Rebeca, a mulher de Isaque (24:47). A
segunda, Iscá, segundo a opinião de muitos, casou com Abraão, mudando o nome depois
do casamento, de Iscá para Sarai, que significa "minha princesa", nome talvez mudado por
Abraão mesmo, por causa de sua beleza. O nome Iscá desaparece assim da História e nada
se diz da sua morte, pelo que se crê que foi o nome Iscá que desapareceu e não a pessoa.
Outros tomam outra posição, baseada nas próprias palavras de Abraão, que Sarai é "filha
de meu pai, mas não filha de minha mãe", e concluem que Sarai era filha de outro
matrimônio de Terá, portanto, filha de outra mulher e, neste caso, era meio irmã de
Abraão. Outros, ainda, supõem que, das duas supostas mulheres de Terá, uma foi a mãe
de Arã, pai de Iscá ou Sarai, e a outra a mãe de Abraão, de modo que Iscá era sua irmã
paterna e sobrinha, filha de seu meio irmão, Arã. Assim, diria que ela era sua irmã. No
mesmo sentida Abraão chama seu sobrinho Ló irmão (14:14). Sarai era filha de seu pai,
mas não de sua mãe.
Sarai, pois, era sobrinha de Abraão ou meio irmã. Em qualquer dos casos a linguagem é
própria, chamando-a de irmã. Quer Iscá tenha sido filha de seu irmão Arã quer tenha sido
filha de outro matrimônio de Terá, caso seja esta a "Sarai", cabe-lhe perfeitamente o nome
de irmã, dado por Abraão.
(Gênesis 11:10-26)
Abraão, uma Personalidade histórica
As modernas descobertas arqueológicas têm trazido muita luz sobre esta antiga
cidade de Abraão e sua civilização. O nome na literatura antiga era "Uru", e recentemente
é conhecida por Mazheir. Não resta dúvida, em face destas descobertas, de que Ur foi um
grande centro de cultura e comércio, como não resta dúvida também de que esta foi a
cidade de Terá e Abraão, homens de grande influência. Nuns tijolinhos, com inscrições
cuneiformes foi encontrado um contrato escrito, em que Abraão alugava uma junta de
bois e um pedaço de terra e se comprometia a dar certa importância de aluguel. Alguns
críticos querem que este nome Abraão se refira a outra pessoa e não ao nosso Abraão,
mas não há razão para isto; porém, ainda que se refira a outro Abraão, prova que este
nome era usado na antigüidade e não é, portanto, um nome tribal, como alguns
racionalistas querem.
Muito devemos a estas descobertas, no sentido de comprovar as narrativas bíblicas. O que
para muitos era incrível e sem base histórica além da Bíblia é hoje um fato. Os museus da
Europa estão cheios desta documentação, que, como uma tremenda caudal, jorra luz
sobre esta velha civilização de que a Bíblia é o único livro a falar.
Não fossem as descobertas de Bota, cônsul francês no Oriente, Sayce, Layard e
muitos outros, nosso V. Testamento seria por muitos tido como um livro de ficção.
Negava-se a história de Abraão, Isaque, Jacó; negava-se que o povo de Israel já estivesse
alguma vez no Egito e dizia-se que estes nomes não eram mais que personalidades tribais,
que, o que o V. Testamento diz da antiga Assíria e Babilônia é falso. Negava-se que Sargão
II, Tiglate-Pileser e Assurbanipal fossem personagens históricas. Que Anrafel e outros reis,
que são mencionados no capítulo 14 de Gênesis fossem históricos. Diziam, ainda, que
Moisés não tinha podido escrever o Pentateuco porque no seu tempo ainda não era
conhecida a arte de escrever; negava-se, enfim, tudo, reduzia-se a mito toda a narrativa
bíblica. Mas Deus tinha reservado em tesouro toda esta antigüidade, escondida nas ruínas
do passado, para no século XX ser desenterrada e assombrar nossa supercivilização.
A Assíria com os seus grandes reis Sargão, Tiglate-Pileser, Assurbanipal, Esharadon e
outros, ergueu-se do seu sono para nos contar as suas glórias e vitórias de que a Bíblia fala.
Anrafel, antigo rei de Babilônia, surge com o seu nome caldaico de Hamurabi e mostra-se
em toda a sua grandeza, e mesmo em sua guerra com os reis de Sodoma e Gomorra, na
qual Abraão interferiu.
Este mesmo Hamurabi, que viveu perto de mil anos antes de Moisés, legou-nos o
mais célebre código de leis que a antigüidade conheceu. Só há superior o código mosaico.
Está traduzido em diversas línguas modernas e ninguém há que possa negar o alto grau de
cultura atingido muitos séculos antes de Moisés. Se, pois, se podia e sabia escrever mil
anos antes de Moisés, certamente que ele saberia escrever o Pentateuco, sendo, como
era, filho de uma grande civilização como a egípcia.
A enorme biblioteca do último rei da Assíria, composta de uns 30.000 volumes e contendo
obras da mais remota antigüidade, é eloqüente em sua mudez, para nos falar de um
passado esquecido de que só o V. T. fazia ligeira menção.
Graças, pois, a todas estas descobertas que, além de trazerem à luz grandes feitos
antigos, trouxeram a bênção de comprovar que o V.T. é um livro inspirado e que o que
relata sob o ponto de vista divino ou histórico pode sofrer qualquer confronto, sem medo
de ser achado em falta.
À medida que prosseguirmos em nosso estudo, daremos ligeiras referências comparativas
com a Arqueologia. Estudo exaustivo é impossível aqui, mas o autor recomenda alguns
livros em inglês, tais como "A Arqueologia e a Bíblia", escrito por Barton, "Os Monumentos
e o Velho Testamento", pelo Dr. Price, e outros que se podem encontrar em nossas
bibliotecas.
A cidade em que Terá morava e Abraão nasceu era cidade idólatra, e não parece
haver muita dúvida de que pelo menos Terá não somente era idólatra, mas fabricante de
ídolos. Muito mais tarde, quando Jacó fugiu da casa de seu sogro Labão, Raquel furtou os
terafins da família; isto serve para mostrar que, se Labão não era inteiramente idólatra,
pelo menos, tinha os seus deuses domésticos, os seus penares. Esses terafins eram tidos
mais como deuses protetores do lar, do que como recebedores de culto. Não é preciso
tentar inocentar Terá, ou mesmo Abraão, desta prática, visto que moravam uma terra
onde todo o povo era idólatra. Admitindo mesmo que o fossem, não podemos descrer de
que sua confiança estava em Jeová. O conhecimento do Deus de Sem, seu ancestral, não
teria ainda desaparecido. Apenas dez gerações tinham passado depois do Dilúvio, e ainda
que tenha sido um grande lapso de tempo, dada a longa vida dos homens naquela época,
não foi longo bastante para erradicar da memória dos homens piedosos o conhecimento
do Deus Vivo. Assim que, a despeito de tudo, a família de Abraão seria diferente das
outras como um todo.
Uma dificuldade a resolver é relativa à qualidade de povo que habitava Ur. Como já vímos,
toda essa planície foi tomada pelos ninrodianos antes da confusão das línguas; era,
portanto, povo de Cão. As recentes descobertas confirmam que os primitivos ninrodianos,
como os acádios, etc., eram de descendência camita. Houve, porém, depois, diversas
invasões semitas, e os camitas foram desalojados. Na pior das hipóteses, o povo
contemporâneo de Abraão era uma mistura de camitas, ou descendentes de Cão, e
semitas. Abraão, porém, era filho de Sem. Era, portanto, semita. Isto nos ajuda a
compreender que o homem a quem Deus escolheu para um novo começo era de raça
diferente da que habitava na sua terra.
Por outro lado, a eleição de Abraão para ser pai de muitas nações e a bênção de todas as
famílias da terra foi um ato soberano de Deus e não teve como base os méritos do herói.
Que era homem fiel a Deus, não há dúvida; doutra forma, não teria respondido tão
prontamente ao chamado divino.
Os últimos versos do capítulo 11 parecem dar lugar à suposição de que houve duas
chamadas distintas. Uma em Ur dos Caldeus e a outra em Harã, onde Abraão estava
morando antes de entrar na terra de Canaã. O verso 31 do capítulo 11 dá a saída de Terá,
Abraão, Ló e suas mulheres, de Ur dos Caldeus, e parece colocar Terá como o líder da
emigração, quando nós sabemos que o chamado foi dirigido a Abraão. Isto não deve
preocupar-nos. Terá era o chefe da família e é a ele que Moisés se refere aqui como líder,
mas a chamada veio ao filho, e não ao pai. Estêvão, no seu discurso perante o Sinédrio
(Atos 7:2-3), diz: "O Deus da glória apareceu a nosso pai Abraão, estando ele ainda na
Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, e disse-lhe: sai da tua terra e dentre a tua
parentela, e dirige-te à terra que eu te mostrarei." Estas palavras são uma citação verbal
do primeiro verso do capítulo 12 e parecem excluir a possibilidade de o verso 31 do
capítulo 11 e o verso primeiro do capítulo 12 serem dois eventos distintos. A última parte
do capítulo 11 relaciona Terá com Sem, na terra dos caldeus, mas esta saída só pode
referir-se ao chamado do capítulo 12. Moisés dá a saída antes de descrever a chamada. O
verso 31 do capítulo 11 e o verso 1 do capítulo 12 são uma só história.
Como foi esse chamado feito não sabemos, nada se nos diz, mas deve ter sido feito de
maneira bastante impressiva, de modo a mover todo o coração da família. Talvez fosse
uma das aparições de Deus a Abraão na presença de Terá, ou talvez o filho relatasse o
aparecimento ao pai e este deliberasse acompanhar o filho. Estas emigrações eram
freqüentes, e este caso não é uma coisa singular. Naor ou acompanhou a família desta vez
ou veio juntar-se a ela mais tarde em Harã.
CAP. XIX - UR DOS CALDEUS
Ur, terra de Abraão, foi primitivamente localizada ao norte da Mesopotâmia, mas os
geógrafos modernos a colocaram em Warka, ao sul da Mesopotâmia 120 milhas a sudeste
de Babilônia. Rawlinson e outros a colocam em Mugleir, perto da confluência do Tigre e
Eufrates, e 125 milhas distante do golfo Pérsico. Parece que esta última localidade, se não
é exata, é, pelo menos, a mais provável. A designação de Ur dos Caldeus é moderna. A
mais antiga designação da vasta região, que se estende desde as montanhas da Armênia,
ao norte, até ao golfo Pérsico, ao sul, tendo a leste, a Pérsia e a oeste a Arábia, era
Babilônia, e outras vezes Assíria Babilônia. Mais tarde, os gregos deram a esta região
nome de Mesopotâmia, que significa "entre rios", sendo a parte mais fértil entre o Tigre e
o Eufrates. No tempo de Abraão, o termo Mesopotâmia incluía até as altas regiões da
Síria. O próprio vocábulo babilônia não se encontra nas inscrições antigas, e crê-se que a
palavra deriva do ato da confusão das línguas, quando os primitivos habitantes tentaram
construir a torre, dando ao lugar o nome de "Babel" ou confusão. Ainda se discute hoje, se
o verbo hebraico etimologicamente significa mesmo "confundir" ou se o resultado do ato
divino deu origem a que os povos cujas línguas foram confundidas chamassem ao lugar
Babel, ou mesmo, se os outros povos no futuro, sabendo do que havia acontecido, lhe
deram esse nome. Nas inscrições babilônicas, os nomes deste lugar são Ascade e Shumer,
e às vezes Ascade somente. Há muita probabilidade de que Shumer seja o Sinear da Bíblia
(Gên. 10:10; 11:12).
Conquanto não se possa dizer com segurança onde foi o primitivo berço da raça humana,
sabe-se, todavia, que depois do Dilúvio os descendentes de Noé deixaram as montanhas
da Armênia e se dirigiram para o sueste, em busca de melhor terra para a agricultura, até
que acharam um vale na terra de Sinear (Babilônia) e ali habitaram (Gênesis 11:2),
lançando os fundamentos do antigo reino de Acade (Gênesis 10:10). Ninrode foi o líder
desta emigração e o primeiro monarca do império. As primeiras cidades foram Ereque,
Acade e Calné, segundo Gênesis 10:10; mas outras cidades se seguiram, cujos nomes são
Larsa, Nipur e Ur. Todas estas cidades já eram velhas, quando a Assíria foi edificada por
Assur (Gên. 10:11), o qual, como se crê, teve de fugir de Sinear, por causa da violência de
Ninrode e seu povo.
A raça que primeiro dominou na Babilônia foi a camita (descendente de Cão), mas, tempos
depois, uma invasão semita destruiu a velha civilização camita e deu começo a uma nova
dinastia, cujo povo era uma mistura de semitas e camitas. Politicamente, Babilônia atingiu
uma considerável influência sobre todos os outros povos, incluindo mesmo a Assíria, que
lhe ficou sujeita por muitos séculos. É certo que quase toda a primitiva história destes
antigos povos nos está para sempre oculta, pelo fato de que não usaram escrita de
qualquer espécie, mas a arte de escrever foi posteriormente inventada e grandemente
desenvolvida muitos anos antes de Abraão, de modo que toda a civilização
contemporânea do grande homem que estamos considerando, e mesmo muito antes dele,
tem chegado até nós.
Nabonido, um dos reis da Babilônia do VI século antes de Cristo, fala de Naran Sin,
fundador de um templo, e que tinha vivido 3.200 anos antes. Este Naran Sin parece ser
semita, e, como já foi observado, os sernitas vieram estabelecer-se na Babilônia ou, pelo
menos, tomaram Babilônia muitos séculos depois de os camitas se terem estabelecido na
terra. Sem muita probabilidade de erro, diz-se que o domínio semita na Babilônia remonta
a 2.500 ou 3.000 anos antes de Cristo. Abraão viveu em 1920 antes de Cristo, deixando,
portanto, quase 1.000 anos de civilização semita antes dele. Somando estes 1.000 anos de
civilização semita antes de Abraão, e 1.000 ou mais anos de civilização camita, conclui-se
que Abraão era filho de uma civilização de 2.000 anos de idade. Não há motivo, pois, para
nos admirarmos da maravilhosa cultura científica e literária da terra de Abraão e de Deus
escolher para começo do seu trabalho um homem nascido e criado num meio de tal forma
desenvolvido. A vasta literatura desenterrada nos últimos 50 anos nos arredores de
Babilônia e Assíria, e que enche os museus europeus e americanos não nos deixa em
dúvida quanto ao que foi a terra de Abraão antes e depois de ele a deixar. Todo estudante
deve conhecer um pouco desta civilização, visto que por toda a história do povo escolhido
Babilônia manteve com ele relações bastante íntimas. Entre a vasta literatura sobre o
assunto, lembro aqui alguns dos principais autores em inglês: The Five Great Monarchies
of the Ancient Eastern World, por George Rawlinson; The Story of Chaldea, The Story of
Assyria, The Story of Media, Babylonia and Persia, por Z. A. Ragosin; Babylonians and
Assyrius, por Sayce; The Monuments and the Bible, por Ira M. Price; Archeology and the
Bible, por Barton.
Dei estes alinhaves históricos acerca da Babilônia para despertar nos estudantes e leitores
da Bíblia o gosto por estes antigos povos com quem os personagens bíblicos se
relacionaram em tantas ocasiões e por
tantas formas. Em português, o único livro que conheço é o do saudoso ministro
presbiteriano Álvaro Reis, "Lendas Caldaicas", que deveria ser encontrado na estante de
cada pastor, pelo menos. Se a história política destes povos é interessante, não o é menos
a religiosa. Da primitiva religião dos ninrodianos não sabemos muito, mas o que sabemos
não deixa dúvida de que eram uma espécie de monoteístas com tendências para o
politeísmo. Ou melhor, tinham uma divindade principal, mas adoravam outras divindades
inferiores. No tempo de Abraão, o politeísmo era a religião dominante, sendo possível
existirem muitas almas piedosas mantendo a crença pura em um só Deus. Se este era o
caso de Terá, não sabemos, ainda que pareça ter sido politeísta.
Abraão e a Saída de Ur dos Caldeus - capítulo 12:1-3
O verso 27 do capítulo 11 de Gênesis dá as gerações de Terá, pai de Abraão, e os
versos seguintes dão a morte de Arã em Ur e os casamentos de Naor e Abraão. O verso 31
dá a saída de Terá de Ur dos Caldeus, juntamente com toda a sua família, para a terra de
Canaã, mas, por qualquer razão a nós desconhecida, para em Harã, onde Terá morreu. O
capítulo 12 dá pormenorizadamente a chamada de Abraão, com todas as promessas
referentes à nova posição que ia assumir ao entrar em relação com Jeová. A dificuldade a
resolver aqui é se esta chamada do capítulo 12 se relaciona com a saída de Ur, conforme
os últimos versos do capítulo 11, ou se foi outra chamada que Abraão recebeu em Harã.
Há advogados para ambas as interpretações. Em todas as referências, a Bíblia dá a saída
de Abraão de Ur dos Caldeus, e não de outra parte. Neemias 9:7 refere-se à saída de Ur e
no capítulo 15:7,8 de Gênesis Deus declara ter tirado Abraão de Ur dos Caldeus. Por outro
lado, o chamado a que se referem estas passagens pode ser tanto o de Ur conio o de Harã
ou ambos, porque a saída da terra pátria foi uma só, e o propósito desta saída um só
também. Imagina-se que Terá saísse de Ur com toda a família depois de Abraão ter sido
chamado e, depois de uma longa viagem, parassem em Harã para descansar e, como a
terra fosse boa para os gados, ali permanecessem por muito tempo (como realmente
permaneceram, porque o verso 31 do capítulo 11 diz que "ali habitaram"), de modo a
esquecerem o supremo propósito da viagem, e que, por isso, Deus novamente aparecesse
a Abraão e lhe avivasse a incumbência que lhe tinha sido dada ao sair de Ur. Não seriam,
propriamente, duas chamadas, mas uma só, com a admoestação posterior de continuar a
viagem. Há quem suponha que a chamada veio a Terá na Babilônia e que, depois de terem
parado em Harã, foi que Deus chamou a Abraão, embora esta suposição seja inadmissível,
visto as diversas referências darem a saída de Abraão de Ur a mandado de Deus.
Se pudéssemos pensar pela mente de Moisés e ter presente o seu propósito ao escrever
este livro, facilmente poderíamos resolver o problema. Minha maneira de entender esta
questão satisfaz-me plenamente. A chamada que se encontra nos primeiros versos do
capítulo 12 devia preceder o verso 27 do capítulo 11, mas Moisés está descrevendo a
genealogia da família eleita e, para não interromper a seqüência do pensamento, depois
de ter mencionado todos os ancestrais de Terá, dá a seguir sua genealogia, visto ser ele o
pai do personagem com quem começou a realizar-se o plano divino. Depois de ter dado a
linhagem de Terá, dá a sua saída, sem mencionar os motivos, até que a morte pôs ponto
final na vida do homem cuja genealogia ele descreve. Feito isto, Moisés como que
retrocede e diz como Terá saiu, ainda que o nome não seja mencionado em conexão com a
chamada divina, mas é claro que, não mencionando Terá, menciona Abraão, por cuja causa
Terá saiu de Ur. Noutros termos, pode dizer-se que Moisés contou a saída e a viagem, para
depois dar os motivos. Se Deus novamente apareceu a Abraão em Harã e insistiu para que
continuasse a viagem não sabemos, mas é provável. O verso 4 do capítulo 12 diz: "Assim
partiu Abraão, como o Senhor lhe tinha dito, e foi Ló com ele." O advérbio "assim" pode
referir-se tanto à continuação da viagem em Harã, como à saída de Babilônia.
Parafraseando esse verso, pode dizer-se: "De modo que depois de ter estado por algum
tempo em Harã, por causa da idade de Terá, ou por causa da doença que o vitimou, ou
porque as condições fossem tentadoras, Abraão continuou a viagem encetada em Ur,
tomando consigo seu sobrinho U, deixando o resto da família, que o não quis
acompanhar."
O ato de Deus em chamar um indivíduo para começar um novo capítulo na história bem
pode chamar-se:
Um Novo Princípio
Todas as tentativas divinas para conservar a raça pura e servir aos seus desígnios
tinham falhado. Deus agora toma um novo caminho, experimenta de novo e de outra
forma. O método é o mais radical possível, as medidas são extremas. Separa o homem
que deve servir a este plano de sua própria terra e parentes, fá-lo perder todas as
conveniências de uma cidade supercivilizada e manda-o a um lugar desconhecido, sujeito a
toda sorte de peripécias, para que esse personagem se acostume a depender
continuamente daquele que o chamou. Abraão era homem talhado para esta empresa.
De fidelidade e obediência incontestáveis, prestou-se resolutamente à nova empresa.
Deus o cercou de todas as promessas e pôs-lhe na frente um alvo supremo: ser pai de uma
numerosa prole. Esta era a maior ambição de qualquer personagem daqueles tempos.
Entre a obediência e a promessa, dificilmente poderíamos dizer qual pôde mais na vida do
patriarca; se, por um lado, desejava ser pai de uma numerosa nação, por outro, desejava
ser fiel ao que o tinha chamado, e isto provou no restante de seus dias.
A chamada e a prontidão de Terá e sua família em obedecer nos coloca face a face com o
problema de saber se Deus era conhecido e adorado na Babilônia. Pela história que temos
dos contemporâneos de Abraão, sabemos que o povo era profundamente religioso, mas se
adorava e servia unicamente ao Deus de Abraão é que eu não sou capaz de crer nem
afirmar. Por certo, havia muita gente piedosa que não se satisfazia com o culto imoral que
era tributado aos muitos deuses e que, mesmo ignorantemente, procurava servir ao Deus
vivo. Muitas famílias teriam conseguido reservar as tradições dos antigos patriarcas, tais
como o cataclismo do Dilúvio e sua causa, e através dos séculos manteriam a crença no
Deus eterno. Terá e sua família podiam estar no caso, como podiam ser incrédulos, como
diríamos hoje, mas de ânimo pronto para obedecer, tanto que, logo que Deus falou a
Abraão e este o comunicou ao pai e parentes, todos aceitaram a nova situação,
desfazendo-se dos ídolos e do culto pagão. Mais tarde, vamos encontrar a família de
Abraão em Harã, tendo em casa ídolos, embora em sentido algum isto prove que não
tivessem conhecimento de Deus e não o servissem.
Partida de Harã para Siquém - 12:4-8
Por quanto tempo ficou Abraão em Harã não se pode dizer, visto o silêncio que a
Bíblia guarda a este respeito, mas, tomando em consideração diversos fatos, tais como a
fertilidade da terra e a aparente riqueza de Abraão ao sair dali, infere-se que ficou por
muito tempo. Talvez fosse mesmo preciso que Deus lhe trouxesse à memória os motivos
que o tinham feito sair da Caldéia. Siquém ficava bem ao norte da terra prometida, na
estrada que mais tarde ia da Palestina à Babilônia. Nesse tempo já o comércio era regular
nessas regiões, visto que a família de Terá pertencia a uma civilização onde o comércio
tinha atingido proporções admiráveis e a nova terra era de se cobiçar. Depois da morte do
chefe da família, todos fizeram do lugar sua terra. Dali veio mais tarde Rebeca, e ali foi
Jacó em busca de mulher. Como já disse, Abraão mesmo parece que se tinha esquecido de
continuar a viagem, ou então, algum impedimento tinha obstado a continuação, ou, quem
sabe, teria julgado ser aquele o lugar para onde Deus o tinha chamado, visto que tinha
saído de Ur sem saber para onde ia. Daí, o supor-se que Deus lhe apareceu de novo e
insistiu que fosse à terra de Canaã. Tomando sua mulher e Ló, seu sobrinho, e os servos
que tinha, deixou Harã e dirigiu-se para o sul. A tradição diz que ele parou em Damasco,
onde nasceu Eliézer, o damasceno, seu fiel mordomo nos anos vindouros (15:2,3). A
viagem de Harã a Siquém é de uns 1.300 quilômetros, através de um dos mais belos
cenários do mundo. Os viajantes que foram à Palestina dizem que a poucas horas de Betel
descortina-se um panorama de inexcedível beleza. Este cenário foi um consolo para o
homem, que deixou sua, terra para vir a outra, de que nada sabia que, após entrar nela,
deveria ter ficado animado.
Em chegando a Siquém, Abraão estendeu suas tendas (v. 8) e estabeleceu ali um altar,
onde ofereceria sacrifícios a Jeová.
O aparecimento de Deus em certo lugar era, na concepção religiosa do povo, sinal
de que ali era sua morada. Não tinham a idéia que nós hoje temos, da onipresença divina,
e consideravam o lugar do aparecimento como a morada da divindade, e a terra como a
terra de Deus mesmo. O altar era a um tempo o lugar de culto e de testemunho de que a
terra pertencia ao Deus ali adorado e, conseqüentemente, a seus adoradores.
Aqui, havia um frondoso carvalho, árvore desconhecida para o povo das regiões tropicais
como nós. Essa árvore oferecia excelente sombra para os rebanhos nas horas de calor. É a
sombra mais fresca que há, não só devido à grande ramaria, como à própria qualidade da
árvore. O nome "Moré" era talvez derivado do antigo dono daquela terra. Mais tarde foi
conhecido por Manre, aliado de Abraão.
De Siquém, Abraão continuou a viagem e chegou a outro lugar, ao ocidente de Betel
e oriente de Ai, famosa cidade do tempo de Josué. Ali, edificou novamente um altar e
invocou o nome do Senhor. "Betel" é uma palavra hebraica que significa "Casa de Deus",
este nome foi dado àquele lugar por Jacó mais tarde, quando ia fugindo de Esaú, seu
irmão. Não deve oferecer dificuldade, Moisés ligar a viagem de Abraão com o nome de um
lugar que ainda não existia neste tempo, porque ele está escrevendo muitos anos depois e
sua descrição baseia-se no nome dos lugares do seu tempo e não do tempo de Abraão
mesmo. O nome do lugar no tempo de Jacó era Luz, e foi ele quem lhe deu o nome de
Betel.
Os cananeus habitavam então a Palestina. Talvez fosse de recente data o estabelecimento
ali deste povo, cujo centro era a Babilônia antiga. Além dos cananeus, habitavam ali
também os heteus, seus parentes, filhos todos de Cão.
A Fome e a Descida ao Egito - 12:9-20
É-nos impossível saber quanto tempo Abraão morou em Canaã, antes de descer ao
Egito; mas, a linguagem parece indicar um curto espaço de tempo. A seca, tão comum
naquelas partes, visitou a terra neste tempo, acompanhada de sua inseparável
companheira, a fome, e Abraão teve de seguir para o sul, até o Egito. As pastagens para os
gados tinham secado, faltava a preciosa água dos ribeiros e mesmo o trigo para fazer o
pão. Para salvar a sua vida e a do seu povo e seu gado, o patriarca teve de ir para o sul,
onde a seca não tinha atingido. Filho de uma grande civilização, era natural que tivesse
desejo de conhecer a outra grande civilização, a egípcia, talvez a maior do mundo nesse
tempo.
Ao entrar no Egito, Abraão percebeu que sua vida corria risco por causa de sua mulher,
que era bonita. As leis egípcias não permitiam que nenhuma homem tomasse a mulher do
outro, mas, em caso de querer fazer isto, era preciso liqüidar primeiro o marido, para que,
ficando viúva a mulher, pudesse ser tomada. O rei tinha o direito de reclamar para o seu
harém qualquer donzela, ou dispor da vida de qualquer homem e tomar-lhe a mulher. Foi
a idéia da morte que levou Abraão a fazer concerto com Sara, a fim de que ela passasse
por sua irmã, para, no caso de ser reclamada, Abraão ficar com vida. Conforme esse
concerto, eles passariam por irmãos e nada impediria que a bela Sara fosse tomada.
É difícil imaginar qualquer desculpa que inocente Abraão desta grande falta. Ela era sua
irmã, sim, mas era sua esposa e, isto, ele negou. Alguns comentadores acham que não há
lugar para culpa em Abraão, porquanto ele não lesou ninguém com esta mentira. O fim,
dizem, foi salvaguardar sua vida e não lesar a outrem, e que a culpa de Abraão foi
provocada pela falta de respeito e pela violação dos direitos dos estrangeiros que os
egípcios praticavam. Que seria melhor: cometer esta falta ou ser morto? Perder a vida
seria deixar sua mulher exposta e abandonada num meio hostil, sujeita a todas as
vicissitudes. Muitas desculpas se podem inventar e todas elas com certo peso de razão,
mas no fim de tudo Abraão ainda fica inescusável. É certo que ninguém foi lesado, senão
ele mesmo, mas a mentira é mentira, ainda que só ofenda ao que mente. É certo, também,
que para um povo a quem a vida não era sagrada, só um expediente como esse podia
servir; mas qualquer que seja o homem ou povo com quem transacionemos, temos a
estrita obrigação de ser fiéis. Por essa falta, Abraão expôs a sua honra e a de sua esposa e
trouxe a censura do povo sobre si, e, se não fosse Deus intervir, ninguém pode dizer o que
teria acontecido. Longe esteja de mim querer ou pretender fazer qualquer juízo sobre a
conduta de Abraão. Estou simplesmente dizendo que quaisquer que sejam os motivos que
tenhamos, as circunstâncias em que nos encontremos, temos a obrigação de ser fiéis à
verdade. Melhor seria para Abraão confiar no seu Deus e esperar nele. Se me competisse
emitir um juízo sobre este ato de Abraão, diria que sua falta foi o resultado de sua
pequena fé. Tivesse ele confiança e fé no seu Deus, e teria coragem para confessar que
Sara era sua mulher.
As Escrituras não fazem juízo formal sobre este ato de Abraão, tanto desta como da outra
vez, nem tampouco sobre Isaque, quando praticou a mesma falta. Limitam-se a narrar o
fato e deixá-lo ao seu próprio mérito. É uma das evidências divinas da Bíblia, que ela não
esconde as faltas de seus maiores heróis. Abraão, Isaque, Davi e muitos outros já
morreram há muitos séculos, mas os seus bons feitos, como os maus, continuam a ser
mencionados em todas as gerações e em todas as raças. Se a Bíblia fosse um livro comum,
procuraria esconder as faltas dos seus maiores vultos e só apresentar as suas virtudes.
Deus interveio na duplicidade de Abraão e Sara, e feriu Faraó antes de praticar qualquer
ato indigno. Todos os antigos reis, e até mesmo Salomão, tinham um grande número de
mulheres, e cada uma delas tinha o seu dia marcado para aparecer diante do rei. Os
próprios servos tinham a incumbência de trazer ao harém todas as mulheres bonitas que
fossem encontradas no reino. Algumas vezes passavam-se anos, sem que certa mulher
tivesse oportunidade de ir diante do rei. Isto explica por que Sara não foi contaminada por
Faraó. É possível que o rei nem a tivesse visto ainda. Ela foi gabada pelos príncipes e
trazida para o palácio, mas Faraó não se daria pressa em ir ver uma mulher bonita, entre
muitas outras, talvez tanto ou mais bonitas que ela. Os antigos palácios reais não podem
ser comparados a qualquer casa ou palácio de nossos dias. Cobriam imensas áreas de
terreno, com edifícios de toda sorte, para o rei, a rainha e os cortesãos, oficiais, lacaios,
servos, etc. Cada qual tinha seu próprio lugar. O rei não saía dos seus aposentos para ir
passear nas dependências dos outros. Tudo isto ajudou Sara a não ser profanada.
A intervenção divina foi contra Faraó e não contra Abraão, ainda que aquele, e não este,
era o inocente. Parece que as pragas com que Jeová visitou o rei não eram um castigo,
porquanto estava inocente, e o que tinha feito era direito, segundo o costume de seu
tempo; serviram para adverti-lo e evitar que se consumasse o pecado.
Como Faraó reconheceu que estas pragas eram devido a ter tomado Sara não
podemos dizer, mas talvez houvesse consulta entre o pessoal da corte e os magos e
descobrissem que elas se ligavam à presença do estrangeiro na terra. Estes povos, a
despeito da sua idolatria, eram profundamente religiosos e qualquer acontecimento
extraordinário era tido como um desagrado ou ira da divindade. Descoberto o pecado, foi
a mulher restituída ao seu marido, e este ainda foi presenteado ricamente. Só a
intervenção de Deus nos negócios humanos pode explicar como, depois de uma falta
destas da parte de Abraão para com Faraó, este ainda o presenteie por causa de sua
mulher. Conquanto Faraó estivesse agindo de conformidade com os costumes da terra,
não estava inteiramente inocente, ainda mesmo que Abraão e Sara fossem irmãos. Eram
estrangeiros na terra e tinham direito à hospitalidade e ao respeito. A intervenção divina
despertou este sentimento no coração do rei e o levou a presentear Abraão. Alguém tem
querido ver, neste espírito de Faraó, uma como que gratificação a Sara.
Mas só a perversidade ou ignorãncia justificarão tal presunção. A Escritura claramente diz
que ela não chegou a vir à presença do rei; portanto, não havia lugar para gratificação. A
satisfação pela remoção das pragas que Deus mandou e o fato de o estrangeiro ter o favor
de um Deus tão poderoso foram os principais motivos para que Abraão assim fosse
presenteado.
"Faraó" era o título usado por todos os monarcas egípcios. É um título e não um
nome. As vezes, o nome do rei vinha ligado ao título, como Faraó Neco (II Reis 22:29),
Faraó Hofra (Jr. 44:30).
Sobre o Egito e seus atuais dominadores, direi alguma coisa mais tarde, quando escrever
sobre a descida dos hebreus para lá. Há toda a probabilidade de que o Faraó do tempo de
Abraão não fosse um monarca nativo, e, sim, que pertencesse aos chamados reis hicsos ou
reis pastores, cujo domínio no Egito se estendeu por um período de 500 ou mais anos. Foi
com eles que José chegou a ser o primeiro ministro do Egito.
A Volta de Abraão do Egito - 13:1-4
Depois do incidente de negar que Sara era sua mulher, saiu Abraão do Egito, rico em
gado, prata e ouro. Durante o tempo de sua permanência no Egito, a fome que tinha
assolado a terra teria desaparecido e nada impedia que ele, mal visto agora ali, se dirigisse
à terra onde antes tinha estado. Depois de uma viagem de meses talvez, por causa dos
rebanhos, chegou Abraão a Betel (Casa de Deus), onde ainda estava o seu altar que erigira
quando ali parou, vindo de Harã, e invocou o nome de Jeová.
Separação entre Abraão e Ló - 13:5-13
O propósito de Deus foi separar Abraão de toda a família, mas já notamos que toda
ela o acompanhou até Harã. Ali Terá, seu pai, morreu e, depois de sua morte, Abraão
continuou a viagem, levando em sua companhia o sobrinho. Este, pelo que aprendemos
da narrativa e de sua posterior história, era um tipo mundano e ambicioso que tudo
sacrificaria ao seu egoísmo; seria um tropeço na vida do tio e uma dificuldade no plano de
Deus com Abraão. Era independente do tio, tendo seus próprios rebanhos e servos. A
contenda começou com os criados e foi levada até Abraão mesmo. Bem podia este, que
era o herdeiro da terra, impor sua autoridade a Ló e fazer acabar a questão. Entretanto,
preferiu mostrar um espírito bem diferente, espírito este que, se fosse imitado sempre,
removeria toda contenda entre os homens. "Não está toda a terra diante de ti? Se
escolheres a direita, irei para a esquerda, se a esquerda, irei para a direita." Ló teve uma
oportunidade de mostrar seu egoísmo, escolhendo a campina do Jordão, regada por
diversos riachos e de uma fertilidade assombrosa.
Não resta dúvida de que pouco era o povo que morava na terra: algumas pequenas tribos
esparsas aqui e ali. A terra era a melhor possível, mas o tempo depois do Dilúvio ainda não
tinha sido suficiente para povoá-la. Quinhentos anos mais tarde, já estava povoada com
povo mais forte que os israelitas. Desse modo, teve Ló uma boa oportunidade para
escolher o melhor pedaço. Esta escolha, porém, converteu-se em maldição mais tarde.
Uma vez foi levado cativo, e noutra teve de fugir para salvar a vida, e isto graças à
intercessão de Abraão. Quão diferente era o caráter de Abraão: "Não haja contenda,
peço-te, entre ti e mim." Preferiu o dano, a ver a contenda. Paulo, escrevendo aos gentios,
expressou-se no mesmo espírito. "Por que não sofreis antes o dano?" (I Cor. 6:7). O pobre
Ló foi enganado pela vista. Mudando continuamente de lugar para lugar, chegou à
corrupta cidade de Sodoma onde se estabeleceu e, parece, casou, chegando a ocupar uma
posição de destaque. Mas o povo era corrupto e devasso e ele lá ficou afligindo sua alma,
mas sem sair do lugar. Triste exemplo do homem que só busca os interesses deste mundo
e a eles sacrifica tudo. Virá o dia quando tudo irá abaixo. Ló, como sabemos, conseguiu
escapar com vida, perdendo a mulher e toda a sua fazenda; as filhas se salvaram, mas
deixaram uma nódoa na história bíblica que chega a dar a impressão de que melhor seria
tivessem perecido juntas com todos os outros sodomitas e gomorritas.
Abraão contentou-se com o que a cobiça de Ló lhe deixara, mostrou o espírito nobre, que
não busca seus próprios interesses egoisticamente, e foi por isso recompensado. Logo
após a separação, Jeová lhe aparece e renova as promessas duma forma positiva e
categórica.
Jeová Aparece Novamente a Abraão - 13:14-18
(Comparar Gên. 12:1-3; 15:1-21; 17:1-14; 22:1-19.)
Como uma recompensa por sua nobre atitude, Jeová fala a Abraão e repete as promessas
antes feitas de que toda aquela terra era propriedade sua, em concerto perpétuo. A
palavra "concerto" não aparece aqui como em Gênesis 6:18, mas os termos desta
promessa envolvem um pacto ou concerto, e Paulo, em sua carta aos Gálatas, refere-se ao
concerto da graça, feito 430 anos antes da doação da lei no Sinai.
O Dr. Carroll dá uma longa discussão sobre este concerto, que merece ser lida por
todos os estudantes da Bíblia. (Infelizmente está em inglês e poucos a podem ler.)
A promessa envolve duas coisas: a doação da terra e uma numerosa prole, saída de
Abraão. O lugar em que Abraão estava oferecia não só uma vista magnífica do vale do
Jordão, mas permitia ver uma grande extensão territorial. As descrições dadas pelos
exploradores da Palestina confirmam a descrição bíblica de que deste lugar se avista o Mar
Morto, que era nesse tempo ocupado pelas cidades da planície, Sodoma e Gomorra.
Avista-se também uma grande extensão do vale do Jordão.
A Batalha dos Nove Reis - Ló É Levado Cativo - 14:1-12
A coligação mencionada neste capítulo é um parêntesis na vida de Abraão, e não
parece ter outro fim senão mostrar que Ló já está começando a colher os frutos de sua má
escolha e, ao mesmo tempo, introduzir outro célebre personagem: Melquisedeque.
Há poucos anos passados, cria-se que este incidente jamais tinha acontecido e que
era uma pequena história romântica na vida do patriarca. Hoje, porém, depois das
descobertas arqueológicas, ninguém ousa mais dizer que de fato não se deu tal luta entre
os reis da Babilônia e os da planície de Sodoma. O motivo desta luta foi a recusa do
pagamento do tributo e conseqüente revolta dos reis palestinos contra o soberano
Quedorlaomer.
A expedição babilônica era chefiada por Quedorlaomer, rei de Elã, antiga Pérsia, e não por
Anrafel, rei de Sinear ou Babilônia.
Este Anrafel, como veremos, foi um dos reis mais brilhantes da antigüidade, mas
Quedorlaomer não o foi menos. Era de esperar que aquele, e não este, guiasse a
expedição. Todavia, não é isto o que parece. As inscrições descobertas na Assíria e El
Mugheir (Ur dos Caldeus), cidade de Abraão, descrevem uma linha de reis poderosos, que
dominaram em Elã, cujo império se estenderia desde o sul da Caldéia até ao Mediterrâneo
(Geikie, "Hours with the Bible", Vol. I).
Anrafel era rei de Sinear, cidade fundada por Ninrode. Arioque, rei de Elasar, que ainda
não está bem identificado, nem tampouco ainda se sabe muito bem onde estava localizada
Elasar. Tidal, rei de nações, não é conhecido perfeitamente, mas crê-se que era pequeno
vassalo de Anrafel ou Quedorlaomer e que sua história esteja misturada com a do
suserano. O futuro trará ainda alguma luz sobre os dois reis desta velha batalha.
Entretanto, os dois mais importantes nos falam hoje por seus velhos documentos e
monumentos, como se vivêssemos nos seus dias.
Supõe-se que Elasar seja o antigo nome de Sarsa, na baixa Babilônia, e que hoje tem o
nome de Senquerem. Tidal tinha por título rei das nações ou Goim. Este título significa
talvez a mistura de raças de que Tidal era rei.
Podemos, pois, dizer que os dois principais reis desta expedição são bem
conhecidos hoje e suas capitais e civilizações são assuntos históricos. Anrafel é o moderno
nome do Hamurabi (Hamurapi) dos monumentos caldaicos; teve por capital Sinear, cidade
fundada por Ninirode.
Há poucos anos foi descoberto um código de leis promulgadas por esse rei, código este,
mil anos mais velho do que o código de Moisés, e que só lhe é inferior sob o ponto de vista
religioso. Este código está hoje traduzido em diversas línguas e é um forte atestado do
grau de cultura atinando naquele tempo. O dito código tem provisões para todos os
misteres da vida política, comercial, social e religiosa. Alguns trechos comparados com o
código mosaico nos convenceriam da grandeza daquele rei e do seu reinado. Alguém
pensa que Moisés tinha diante de si este código quando escreveu o seu (ver na introdução
a este comentário o que falo sobre Hamurabi).
Quedorlaomer é outro personagem histórico, ainda que não tão importante como Anrafel
ou Hamurabi. Tidal e Arioque não são bem conhecidos hoje, como ficou dito, talvez por
causa das mudanças de nomes das cidades onde governaram.
Os cinco reis palestinos - Bera, rei de Sodoma; Birsa, rei de Coinorra, outra cidade
importante e que foi destruída junto com Sodoma, por causa de seus pecados, cujo local se
crê, está hoje tomado pelo Mar Morto; Sinabe, rei de Admá; Semeber, rei de Zeboim; e o
rei de Belá (Zoar) - todos tinham seus reinados nas proximidades do lugar onde Abraão
morava. Não pensemos deles como pensamos do rei de Espanha ou Itália. Estes reinados
eram pequenos territórios, muitas vezes uma pequena tribo. Alguns destes lugares tem
sido identificados, tais como Sodoma e Gomorra e Zoar, mas há alguma dúvida sobre os
outros dois.
O motivo desta expedição contra os reis da Palestina, uma das mais célebres da
antigüidade, parece ter sido a revolta contra Quedorlaomer, a quem serviam havia doze
anos. Este reuniu os seus aliados e marchou com um poderoso exército na direção do
oeste, destruindo os refains em Asterote-Carnaim, depois os zuzins em Há, os emins em
Savé-Siriataim, até chegar aos horeus, junto ao Sinai, no deserto de Parã. Continuando sua
campanha, dirigiu-se para o norte, destruiu os amalequitas, os amorreus ao sul do Mar
Morto, até que chegou às cidades da planície de Sodoma e seus confederados, que
destruiu também.
Os amorreus eram descendentes de Cão e foram por algum tempo aliados de Abraão. Os
amalequitas, de remota origem, a quem Balaão chama "primeira das nações" ou Goim,
foram terríveis inimigos dos israelitas (Números 24:20). De quem eram descendentes
ainda não se sabe com precisão. Esaú teve um neto chamado Amaleque (Gênesis 34:10-
16), mas parece que os amalequitas tiveram outra origem.
Os horeus, que habitavam no monte Seir, ao Norte da Arábia, eram descendentes
de Esaú. Seu próprio nome devia ser lotamitas, porque eram filhos de Lotã (Gên. 36:22),
mas derivam o nome de Hori, filho de Lotã. "Horeu" veio significar mais tarde "morador de
cavernas". Pertenciam, conforme a opinião de alguns, aos chamados trogloditas, que se
supunham serem dos primeiros habitantes da terra, no tempo em que os homens ainda
não sabiam construir casas, e que outros críticos querem que sejam os imediatos
descendentes dos antropóides. Entretanto, os moradores de cavernas não são tão velhos
como se pensava. São do tempo de Abraão, e nesse mesmo tempo floresceram as mais
célebres civilizações antigas, tais como Babilônia e Egito. O habitante das cavernas não é,
forçosamente, um homem pré-histórico, rudimentar, semibárbaro ou ainda em estado
evolutivo, meio homem, meio macaco. O costume de morar nas cavernas talvez fosse
devido ao excessivo calor do lugar. Os estrangeiros que moram ou vão passar algum
tempo nestas partes desertas têm de passar as horas do calor em casas subterrâneas
cavernas, e ainda assim o calor é asfixiante.
As tribos ou reinados destruídos por Quedorlaomer e seus aliados nas planícies do Jordão,
os refains, zuzins e emins, eram os habitantes originais da Palestina antes de os cananeus
emigrarem para ali e tomarem possessão da terra. Eram filhos de Jafé ou Sem. De grande
estatura e vivendo em contínuas guerrilhas, dificilmente se acomodariam a ser vassalos de
um reinado longínquo como o de Elã. Quando os israelitas voltaram do Egito uns 500 anos
depois, restavam alguns destes gigantes na terra, que tanto apavoraram os espias
mandados por Moisés.
A batalha foi ferida no vale de Sidim (Mar Salgado) entre os nove reis, sendo quatro
babilônios e cinco palestinos. Os últimos não puderam resistir, e fugiram, caindo nos
poços de betume, sendo suas cidades pilhadas.
Devemos lembrar-nos de que Sodoma e Gomorra ainda não tinham sido destruídas e que,
portanto, segundo os melhores conhecimentos do assunto, o Mar Morto ainda não existia,
visto estar no lugar onde estiveram localizadas estas cidades. Tanto o Mar Morto como as
imediações, todo o planalto limítrofe é cheio de betume e outros elementos de natureza
mineral que alguns exploradores pensam ser o resultado da catástrofe que destruiu as
cidades. O verso 10 do capítulo 14, porém, diz que havia ali poços de betume, e isto antes
da destruição. É bem possível que Deus usasse esses elementos - betume, querosene e
enxofre - que se encontram em abundância nestes lugares e, por meio de um abalo
subterrâneo, os fizesse incendiar e assim destruísse não só as cidades, mas alterasse o
próprio local.
Na descrição bíblica, diz-se que Deus fez chover fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra,
e esta descrição pode ser tanto exata em si mesmo, como à vista do observador.
Pensemos em Abraão, testemunha ocular do estupendo acontecimento, olhando desde o
carvalho de Manre, pouco distante do lugar, e vendo a coluna de fumo subir até às nuvens.
Para ele, estava chovendo fogo e enxofre, e sua combustão produzia o tétrico cenário por
ele mesmo descrito a Isaque e por este, a seus filhos, até que Moisés o incorporou no
sagrado relato. Se Deus fez chover fogo e enxofre ou usou os elementos que já existiam
no lugar, é questão secundária.
Antecipo aqui estas notas à destruição de Sodoma e Gomorra, que vem no cap. 19, para
explicar a presença de poços de betume neste local.
O Cativeiro de Ló e a Participação de Abraão na Guerra
Da batalha alguém escapou para vir contar ao hebreu o acontecimento da captura
de Ló. Abraão não podia ficar indeciso. Ordenou a militarização do seu pessoal e marchou
em perseguição dos invasores.
Seu pessoal era de 318 soldados, servos seus, junto com seus três aliados, Aner,
Escol e Manre (v. 24), com os quais pode fazer um formidável exército; se não era
poderoso em número, era-o, pelo menos, em organização. Os invasores voltaram à
Babilônia por outro caminho, o que ligava Babilônia à Palestina e que seguia o curso do rio
Eufrates. Abraão alcançou o inimigo em Dã, ao norte do território israelita, à esquerda de
Damasco, capital da Síria. Com uma hábil estratégia, dividindo seus soldados em colunas,
de noite, sem talvez ser pressentido, pode esmagar os reis valorosos e libertar Ló. Não foi
o rico despojo que atraiu Abraão ao combate, mas seu sobrinho ganancioso. Ló estava já
colhendo os frutos temporãos de sua separação do tio. O espírito de Abraão é digno de
menção. Seu sobrinho não só tinha quebrado a lei de obediência e respeito devidos ao tio,
mas o tinha explorado também, escolhendo a melhor parte da terra. Tudo isto, porém,
pesou pouco no ânimo grande e no espírito nobre do patriarca. Ló era seu sobrinho, e este
fato por si só podia mais que todas as faltas.
Abraão, Melquisedeque e o Novo Rei de Sodoma - Gên. 14:17-24
O verso 10 nos diz que o rei de Sodoma caiu nos poços de betume, mas, na volta de
Abraão, o novo rei veio ao seu encontro. Logo que os reis invasores se retiraram, nada
mais natural que o povo espalhado pelas montanhas se reunisse e elegesse novo rei e
procurasse restaurar os estragos. E é esse novo rei que foi saudar Abraão, na volta de sua
campanha. Pode ser que o rei que tinha caído no poço tenha conseguido Sair, mas a
narrativa parece indicar que morreu ali. O encontro deu-se no vale de Sedim, que depois
passou a ser chamado "vale do rei", perto de Jerusalém, onde Melquisedeque reinava (II
Sm. 18:18).
Além do rei de Sodoma, outro personagem ilustre foi saudar Abraão pela brilhante vitória.
A este rei deu o general Abraão o dízimo de tudo, e o resto entregou ao rei de Sodoma,
tirante a parte que cabia aos seus tirados. Para si, nada tirou Abraão, para que não se
dissesse que tinha enriquecido à custa dos reis vencidos. Ele tinha direito inegável a uma
parte, assim como Aner e os outros dois aliados, e ninguém o poderia censurar por isso,
mas como não tinha ido à guerra por espírito ambicioso, nada quis para si. Não precisava,
embora este não fosse o ponto envolvido, não quis que se dissesse que tinha enriquecido à
custa da batalha. Espírito mais nobre é difícil encontrar. Os que o acusam de receber
presentes no Egito, por causa de sua mulher, devem saber que a honra e dignidade de
Abraão podem ser provadas neste caso. Era rico, mas licitamente.
Melquisedeque soube da batalha, o veio abençoar e receber os dízimos.
Quem Era Este Melquisedeque?
Pergunta difícil de responder. O salmista (Sal. 110:4) refere-se a ele, mas não nos
diz quem era e donde veio.
Um pesado silêncio e um profundo mistério envolvem este grande personagem.
Muitos querem que seja Sem, outros Cão, outros Jafé. Não podia ser qualquer destes,
tanto pelo espaço de tempo que mediou do tempo em que viveram à época de Abraão,
como pela declaração de Hb. 7:3, de que não tinha pai nem mãe, isto é, pai e mãe
conhecidos.
Outros, querem que seja Cristo, no seu estado de pré-encarnação, mas esta teoria está em
conflito com o Sal. 110:4 e com o teor geral das Escrituras, que fazem Cristo e
Melquisedeque duas personalidades distintas e dois sacerdotes também distintos, um
prefigurado no outro. Uma coisa não pode ser prefigurada em si mesma. Quem era, pois,
esse homem? Um anjo? Não. Do pouco que sabemos dele, cremos que era um homem
pio que permanecia fiel à religião de Noé, ou ao primitivo monoteísmo e neste caráter era
um sacerdote como Jetro, sogro de Moisés.
Historicamente, segundo Josefo, era rei de Salém, que depois se e tornou Jerusalém.
Parece ser o rei dos jebusitas, descendentes do terceiro filho de Cão (Gên. 10:16), que
habitaram em Jerusalém até ao tempo de Davi (11 Sm. 5:6), tendo Josué deles feito
tributários (Js. 11:3), na tomada da Palestina. A palavra Jerusalém deriva-se de Jebus e
Salém. Este nome foi dado à cidade depois da conquista de Davi. Na conquista de Canaã,
o nome do rei era Adoni-Zedeque, que significa "senhor de justiça" ou "rei de justiça". É
interessante notar uma cidade de origem camita (Cão) com história tão profundamente
religiosa. A coleção das cartas encontradas em Tel-Amarna, no Egito, contém algumas
escritas pelo rei de Salém ou Salaim ao rei do Egito, pedindo socorro contra os invasores
Haburi (hebreus), nas quais ele declara ser rei eleito por Deus, e cujo reinado não teve
princípio e nem teria fim. Parece haver a crença de que o primeiro rei da terra tinha sido
posto por Deus mesmo, fato de que se orgulhavam bastante.
Seja qual for o grau de verdade que haja em toda esta tradição, é fato que Melquisedeque
era um destes reis e sacerdotes, parecendo, assim, comprovar a pretensão de que a nação
jebusita tinha tido uma sucessão de monarcas cuja origem se perdia nas brumas do
passado e cuja continuação criam ser de aprovação divina. Anima pensar que entre uma
tribo que não era de linhagem semita e no meio de uma degradação religiosa profunda, se
encontrasse um rei com foros sacerdotais bíblicos e uma vida genuinamente religiosa.
Com estes requisitos de rei-sacerdote, foi ao encontro de Abraão, o abençoou, e este lhe
deu os dízimos de tudo que tinha tomado na batalha, o reconhecendo maior que si
mesmo. Tal sacerdócio, na pessoa de um filho de Cão, parece ser uma violação dos
direitos semitas, que eram, segundo a profecia de Noé, os "abençoados de Jeová"; e
mesmo a familiaridade que parece existir entre os dois personagens denuncia afinidades
raciais, ao mesmo tempo que era impossível que da raça amaldiçoada se destacassem um
ou mais homens piedosos do caráter de Melquisedeque. Por outro lado, podia ser semita,
ainda que governando um povo camita. O autor da Carta aos Hebreus descreve este
ilustre personagem como não tendo pai nem mãe, nem princípio de dias, nem fim de vida,
mas feito semelhante ao Filho de Deus (Hb. 7:3). Esta linguagem refere-se ao ofício da
pessoa e não à pessoa mesma. Como homem, tinha pai e mãe, princípio e fim de dias,
mas, corno sacerdote, não tinha genealogia. Primeiro, porque de quem tinha recebido o
ofício, não se sabe; seria para ele mesmo difícil saber quem tinha sido o seu predecessor,
se é que o teve. Segundo, não houve certo tempo quando o sacerdócio de Melquisedeque
começou. Neste caráter, foi semelhante a Cristo. Era um tipo, tanto no reinado, como no
sacerdócio. Humanamente mesmo, não sabemos quem eram seus pais, se Sem, Cão, Jafé
ou qualquer outro homem. Aparece, assim, ocasionalmente, e desaparece do mesmo
modo, deixando sua individualidade envolta em mistério. Nada sabemos do seu princípio
nem do seu fim. Encarado por estes dois lados, é uma figura sem princípio nem fim,
verdadeiro tipo de Cristo.
(Sobre a existência de povos monoteístas, chamo a atenção do leitor para as notas antes
oferecidas. Não se sabe ao certo se Melquisedeque era monoteísta, mas, se era sacerdote
do Deus Altíssimo, não podia ser politeísta. Há dois elementos importantes neste fato e
também no de Reuel, sogro de Moisés: Não somente o monoteísmo era uma verdade, mas
ainda mais, a existência de sacerdotes, que oficiavam cultos monoteístas).
Antes de passar ao capítulo 15, convém consignar aqui algumas palavras de crítica
aos esforços de alguns sábios tendentes a negar a historicidade das narrativas deste
capítulo. A escola racionalista alemã Graaf-Welhausen reduziu todo o conteúdo desta
maravilhosa história a mito e, diga-se de passagem, fez época por algum tempo, até que a
Arqueologia teve oportunidade de mostrar que Moisés não só sabia o que estava dizendo,
mas sabia ser história verídica.
Negava-se a possibilidade de uma guerra como a que é descrita aqui, por causa da
distância e das condições em que ela se feriu. Não era possível, diziam, a vinda de
exércitos de tão longe, por falta de estradas e outras coisas indispensáveis.
Hoje, porém, sabe-se que havia até correspondência postal regular entre a Palestina
e a Babilônia, e que havia uma estrada ao longo do Eufrates, entre os dois países. Dizia
esta escola que Anrafel e seus companheiros eram personagens mitológicas, como outras
que a Bíblia menciona. Hoje, este Anrafel da Bíblia vive em todo o seu esplendor nos
documentos descobertos na Assíria e na Babilônia e que ornam os museus da Europa e da
América. Foi no reinado deste homem que foi publicado o célebre código de leis,
conhecido nos círculos arqueológicos como Código de Hamurabi ou Hamurapi. O Anrafel
da Bíblia e o Hamurabi da história caldaica são, incontestavelmente, o mesmo
personagem. Não seria preciso usar argumentos silogísticos para provar que, se um
personagem é histórico, os outros o são também, visto serem contemporâneos e fazerem
parte da mesma narrativa. Mas o Quedorlaomer, chefe da expedição, também nos fala
pelas suas conquistas e vitórias.
Noldek e Driver, além de muitos outros, pretendem mostrar que os nomes arqueológicos
não são os mesmos da Bíblia, mas uma das maiores autoridades do assunto, o Prof. Sayce,
afirma que Anrafel e Hamurabi são uma e a mesma pessoa.
Outra dificuldade a vencer é o fato de que estes poderosos, reis destroçaram muitos
outros reinados, e Abraão, com os seus 318 servos e alguns aliados, os venceu numa só
noite. Não nos devemos admirar disto. Em primeiro lugar, não esperavam uma desforra
desta natureza. Para ele não havia possibilidade de um ataque e, portanto, não estavam
apercebidos para tal coisa. A segunda razão é que os soldados, depois de uma expedição
tão prolongada e penosa, deviam não só estar exaustos, mas reduzidos. Abraão cercou-os
de noite e fácil lhe foi destruí-los. Ao mesmo tempo não sabemos quantos soldados
faziam parte do exército dos seus aliados, mas somente os que Abraão sozinho pôde
arregimentar. É bem possível que os reis invasores não conhecessem tão bem como
Abraão o caminho por onde estavam voltando e que tomados de surpresa, à noite,
desconhecendo a qualidade de inimigo que tinham pela frente, se apavorassem e
fugissem. - Conquanto seja difícil tal situação, ninguém tem o direito de afirmar que ela
não é verídica.
Outra dificuldade é o aparecimento de Melquisedeque de uma forma toda misteriosa. De
fato, ele aparece e desaparece bruscamente. Todavia, o papel que tinha a fazer, o fez.
Nada tinha com a questão entre os reis do Oriente e os da Palestina, mas ao mesmo tempo
sentiu que devia louvar o gesto de um que, nada tendo também com o assunto, a não ser a
libertação de seu sobrinho, se aventurou a perder toda a sua casa. Foi um ato de
verdadeiro heroísmo e desprendimento. Isto incitou o sacerdote de Deus a vir aplaudi-lo.
Demais, quem sabe que outras relações existiam entre Abraão e Melquisedeque? Moisés
não prometeu dizer-nos tudo que sabia e que tinha acontecido. Limitou-se a relatar o
suficiente.
Afirmar que Melquisedeque é uma personagem mítica ou alegórica é precário diante da
documentação que temos hoje sobre a existência do reino em Salém. Tanto o que nós
sabemos quanto o que os próprios salemitas sabiam da origem do seu reino é bastante
para nos convencer de que, se Melquisedeque não é uma personagem histórica, não há
história em coisa alguma e tudo se pode reduzir a mito.
Cremos que este homem viveu e reinou porque a Bíblia o diz e porque a História o
confirma. O mesmo argumento usado para com Melquisedeque tem sido usado para
Abraão, Isaque, Jacó e outros. Tem-se procurado reduzir tudo a mito, mas hoje nenhum
homem imparcial negará a loucura destes inimigos da revelação.
Alguma coisa de importante do ponto de vista doutrinário ocorre aqui: a doutrina do
dízimo. De onde veio este costume, que se encontra em prática até entre o povo que não
era da família escolhida? Melquisedeque recebeu, e Abraão deu. Tanto um como o outro
conheciam bem este costume. Aliás, muitos anos depois, encontramos Jacó praticando a
mesma coisa.
A mesma pergunta poderia ser feita acerca do sacerdócio fora da família escolhida e
antes de Arão ser chamado ao ofício sacerdotal. O dízimo foi incorporado na lei, mas
existia antes de ser oficializado. Estas e outras coisas são fundamentais na economia
divina e não são produto de uma ou outra dispensação.
CAP. XX - A PROMESSA DE DEUS RENOVADA
A Conversão de Abraão - caps. 15-17
Este capítulo é, por muitas razões, bastante importante. Ele introduz na história
nova terminologia, nova linguagem e novos ideais. Deus mesmo se revela agora de uma
forma especial, como o Deus Jeová, como o escudo de Abraão e, ainda mais, como o Deus
do Concerto e da Promessa. Por mais de uma vez temos visto Deus aparecer a Abraão e
fazer-lhe promessas; mas, desta vez, esta mesma promessa toma forma quase atual, chega
à iminência de sua realização, pelo fato de que dos próprios lombos do patriarca sairia o
seu herdeiro. Para Abraão, este pensamento e problema tinham sido como que um
pesadelo. Não tinha filhos que pudessem ser seus herdeiros e já era bastante velho para
poder esperar descendência e, sobretudo, sua mulher tinha já passado da idade. Entre os
seus domésticos, havia um que poderia ser o herdeiro, mas isso estava longe de satisfazer
aos ideais de um homem como Abraão. Eliezer era não só seu doméstico, mas também o
único em toda a casa que poderia ser o seu sucessor. No entanto, se assim acontecesse,
seria uma infelicidade, a julgar pelos costumes de então, em que os filhos eram a prova do
favor divino, e a esterilidade a manifestação do desagrado de Deus. Foi justamente esta
queixa que o nosso herói fez a Deus, e recebeu como resposta que não dentre os seus
criados, mas de sua própria descendência viria o herdeiro. Este fato decidiu de uma vez
para sempre o destino e o futuro do servo de Deus. Ainda que a promessa tenha levado
algum tempo para se realizar, para Abraão jamais houve um dia em que a dúvida o
assaltasse.
O pico mais saliente, porém, deste capítulo é a imputação da justiça pela fé. É a primeira
vez que esta linguagem ocorre nas Escrituras, é o começo do nosso Novo Testamento.
"Creu Abraão em Deus, e isto lhe foi imputado por justiça." A grande doutrina da salvação
pela fé, da justiça de Deus pela fé, encontra-se aqui. Daqui por diante, não é mais um
homem obediente que temos a estudar, mas, um homem salvo pela fé.
O Desânimo de Abraão - cap. 15: 1-6
"depois destas coisas" quer dizer depois da batalha em que Abraão se envolveu com
os quatro reis do Oriente. Este feito de armas devia ter criado orgulho guerreiro e fama
mundial em Abraão. Depois de diversos reis serem destroçados, um após outro, o herói
desta batalha sem preparativos, sem treino militar, desbarata os reis vitoriosos e restitui a
presa aos seus próprios donos, nada reservando para si, mostrando seu desprendimento
das coisas em que qualquer homem de seu tempo, ou do nosso, se tornaria rico e famoso.
Os motivos eram muitos outros. Abraão não se deixou iludir pelas grandes possibilidades
desta vitória. Passado o momento da glória, veio a apreensão. Certamente, pensava ele,
que Quedorlaomer não se convenceria de ser derrotado por um guerreiro feito às pressas
e, refeito das perdas, voltaria para desforra. Para isto Abraão não estava preparado. Não
era, seu ideal celebrizar-se em batalhas. Demais, não tinha herdeiro para, no caso de
sucumbir numa luta, lhe suceder e herdar a terra que lhe tinha sido prometida. Foi nesta
conjuntura que a palavra de Jeová veio a ele numa visão, dizendo: "Não temas, Abraão, eu
sou o teu escudo, e tua recompensa será infinitamente grande." O lugar da visão é
Hebrom, e a ocasião é à noite. O estado mental de Abraão e a escuridão da noite eram
propícios para uma tal revelação. "A palavra de Deus," é uma nova expressão que daqui
em diante se torna bem familiar. Esta revelação parece ter sido dada
antropomorficarnente ou em forma humana. "A palavra de Deus"' tanto pode ser a voz da
pessoa, como a pessoa mesma. É dito por João, a palavra ou verbo ter sido o Salvador
antes de encarnar. Nada há em contrário a que Cristo mesmo aparecesse a Abraão e lhe
fizesse esta promessa de herdeiro. Podemos notar um progresso saliente nesta revelação
e, à medida que avançamos na história, reconhecemos cada vez maior progresso. Mais
tarde notaremos a indistinto entre o Anjo de Jeová e Jeová mesmo, entre estes dois
termos e Deus. A revelação divina foi dada de acordo com a capacidade do recipiente.
Agora, Abraão estava mais preparado para um grau adiantado da manifestação divina.
Mesmo as condições em que se encontrava o homem de Deus exigiam alguma coisa real,
clara, material mesmo, e foi o que aconteceu. A coisa mais gloriosa em toda a revelação é
a maneira por que Deus se acomoda às nossas limitações, de modo a tornar-se
compreensível, e até tangível. Só os grandes estados de transporte espiritual podiam
ajudar um pobre mortal a compreender algo do Ser supremo. Na maioria dos casos, era
necessário que o Ser divino se limitasse às condições humanas, para poder ser
compreendido. Foi isto que, parece, aconteceu aqui. O Jeová do Velho Testamento não é
um Deus inacessível e incompreensível em sua revelação, mas é um Deus que entra em
relações pessoais com o mortal e lhe revela sua vontade, entra em concerto com ele como
se homem fora. Por isso, Jeová é chamado o Deus do Concerto. Esta manifestação
jeovista não é de outra pessoa senão de Cristo mesmo, antes de encarnar no ventre de
Maria. Como na sua vida terrestre pôde ser visto tocado, assim em sua vida pré-encarnada
podia entrar em relação com a humanidade e prepará-la para a consumação da Revelação.
"Não temas", lhe disse. Pelo testemunho da história caldaica, sabe-se que Quedorlaomer
nunca mais voltou a perseguir o povo da Palestina. Pelo menos, o silêncio indica isto. Ou a
derrota foi tremenda ou uma desforra não compensaria os sacrifícios exigidos. Deus
mesmo pôs sua mão neste negócio. Pelo lado humano, só Deus podia prevenir um
monarca do tipo deste poderoso rei de Elã, para não voltar a tirar vingança de um que tão
traiçoeiramente lhe infligiu tão tremenda derrota.
Em conversa com Jeová, Abraão faz sentir que ninguém tinha que pudesse ser seu
herdeiro senão de seu servo Eliézer, de Damasco, e que este em nada satisfazia sua
aspiração de ter um herdeiro de sua propria raça. Nada sabemos deste damasceno, mas a
tradição, como já ficou dito, informa que este homem nasceu a Abraão em Damasco,
quando vinha de Padã-Arã. Não sabemos se Abraão tinha qualquer concubina de quem
Eliézer fora filho, mas parece que não. Talvez fosse filho de alguma serva sua e que, por
sua fidelidade, se tornou a pessoa de mais confiança na casa. Seja como for, Eliézer era de
Damasco e, na falta de um filho legítimo, seria o herdeiro forçado.
Em I Crônicas 2:34,35, temos um caso ilustrativo das condições de Eliézer em casa de
Abraão. Um tal Sesã não tinha filho, mas filhas, e tinha um servo egípcio em sua casa, a
quem deu por marido a uma de suas filhas, e o descendente foi o herdeiro da casa e
continuado da linhagem de Sesã. Talvez este fosse o caso de Abraão, na falta de um filho.
Esta questão, vexatória para o servo de Deus, ficou resolvida com a promessa de um
herdeiro. As apreensões desapareceram, e a tranqüilidade quanto ao futuro herdeiro
reinou no coração do patriarca.
Deus submete Abraão a uma nova experiência. Leva-o fora, mostra-lhe as estrelas dos
céus e pergunta-lhe se as pode contar. Assim, seria numerosa a sua descendência. "E creu
ele no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça". O céu oriental é claro como o nosso
céu. E como seria impossível a Abraão contar, a olho nu, as miríades de estrelas grandes e
pequenas, assim seria impossível ao homem realizar as aspirações de Abraão em ter um
filho; mas a intervenção divina, o preexistente Cristo, lhe afirma que a seu tempo nasceria
o herdeiro. Como seria realizada a promessa, nem Abraão perguntou nem Jeová disse,
mas ele creu e isto lhe foi imputado para justiça. Paulo usa este fato para ilustrar que não
é pelas obras da lei, mas pela fé que o homem é justificado. Não foi pela lei nem pelas
obras, mas pela fé que Abraão alcançou o título de amigo de Deus e de justificado pela fé.
A Conversão de Abraão
"Creu Abraão em Deus." Seria que antes Abraão não cria em Deus? Cria, mas desta
vez era necessário crer que Deus ia fazer alguma coisa que ainda não estava à vista e,
portanto, dependia de fé. Até aqui, Deus
ordenou que saísse de sua terra e fosse a uma terra desconhecida. Era uma questão de
obediência, e não de fé. Mais tarde, Deus prometeu que lhe daria aquela boa terra. Era
uma promessa que em parte estava realizada, visto Abraão já estar morando nela, mas
talvez ainda mais dependesse de Abraão mesmo a conquista. Era uma coisa realizável nos
domínios humanos. Mas a dádiva de um filho nas condições em que se achava Abraão era
uma coisa em que o homem nada podia fazer. Tudo dependia de Deus. E creu Abraão
nesta promessa e isto lhe foi imputado para justiça. É a primeira vez que achamos a
palavra "crer" na Bíblia.
Este fato transcendental na vida de Abraão foi o alicerce de toda a futura revelação.
Agora, Deus tinha um ponto de partida firme. Um homem havia crido pela fé e tinha sido
justificado por essa mesma fé.
O caminho da promessa estava franqueado, a salvação pela fé tinha dado o
primeiro fruto. Nada impedia o estabelecimento do concerto mediante a mesma fé
experimentada por Abraão.
O Concerto - cap. 15:7-21
A saída de Ur dos Caldeus era um fato sempre recorrente e sempre lembrado. No
verso 7, Deus o menciona para repetir que aquela terra seria dada a Abraão e à sua
parentela. Abraão pergunta: "Senhor Jeová, como saberei que hei de herdá-la?" A
resposta foi que ele preparasse um bezerro de três anos para o holocausto, e para ao
mesmo tempo selar, com o sangue, o concerto que Deus ia fazer. Notemos que a dúvida
de Abraão não é quanto ao filho herdeiro, mas quanto à herança da terra. A dúvida é
quanto à possessão da terra e à maneira por que a possuiria. Talvez não fosse dúvida, mas
apenas informação, o que Abraão pedia. Sem filhos e demasiado velho para tomar
possessão de uma terra já ocupada por outros povos fortes e numerosos, era um caso que
só Deus podia explicar. Trazidos os animais, os partiu pelo meio, mas as aves não partiu.
Os animais para o sacrifício estavam prontos. Agora, restava ter paciência e esperar que
Deus os aceitasse. Enquanto esperava, os corvos desciam e procuravam arrebatar a carne.
Caiu a noite e ainda Deus não tinha aceitado o sacrifício. Um profundo sono caiu sobre
Abraão e grande escuridão sobreveio, de modo que ele, em seu sono, viu o horror das
trevas. Medo, trevas e desânimo era tudo que restava no herói da fé. Neste momento,
"um forno de fumo e uma tocha de fogo" passaram pelos animais divididos. Era a
aceitação do sacrifício por parte de Jeová; o fogo era sinal de aprovação e da promessa de
Deus. A seguir, Deus mostra como ele herdaria a terra e explica-lhe o processo. Sua
semente seria escrava por quatrocentos anos (no Egito) e depois viria a possuir a terra. O
Senhor, porém, julgaria o povo a quem servissem. Uma admirável profecia. Abraão tinha
achado o mistério de como se tornaria possuidor da terra. Não ele pessoalmente, mas sua
semente depois dele. Passadas quatro gerações, seu povo voltaria do cativeiro e possuiria
a boa Canaã. Por agora, não era possível entrar na posse, porque ela já estava ocupada e
não havia meio lícito de desapossar seus legítimos donos. Era necessário que se enchesse
a medida dos pecados dos amorreus, que ainda não estava completa.
Muitos comentadores têm encontrado dificuldade em explicar como Deus destruiu tantas
nações, para poder dar a terra a outro povo. Não há dificuldade inexplicável. Os cananeus
eram os donos da terra, e com eles os amorreus e muitas e muitas outras tribos. Seus
pecados os tornaram dignos de destruição e de que sua terra passasse a outros que
dessem melhores frutos. Ainda hoje, Deus age da mesma maneira. Uma nação é
destruída e outra toma posse da terra. Qual a causa? O pecado, certamente. Na volta dos
israelitas do Egito, estas tribos foram destruídas, não porque a terra tivesse de ser
entregue a seus donos, mas porque os pecados de seus habitantes tinham enchido a
medida.
Feita esta revelação, foi selada por Deus mediante um concerto com Abraão, segundo o
qual Deus se obrigava a cumprir a promessa, trazendo o povo do Egito. De Abraão nada
havia a exigir. Ele tinha já mostrado sua fé e isto lhe tinha sido imputado para justiça.
Quanto a Abraão mesmo, iria a seus pais em paz antes que a promessa se cumprisse.
Notemos a dificuldade cronológica acerca dos quatrocentos anos mencionados
neste capítulo, em relação a outras escrituras idênticas. Gênesis 15:13 diz: " ... e servi-los-
ão, e afligi-los-ão por quatrocentos anos." Em Êxodo 12:40 lemos: "O tempo que os filhos
de Israel habitaram no Egito foi quatrocentos e trinta anos." Atos 7:6 concorda com
Gênesis 15:13, mas não concorda com Êxodo 12:40. Em Gálatas 3:17, Paulo diz: "Que
tendo sido o testamento anteriormente confirmado por Deus, a Lei, que veio quatrocentos
e trinta anos depois, não o invalida, de forma a abolir a promessa." Paulo relaciona a
doação da lei com o concerto feito entre Deus e Abraão, como sendo o período de tempo
mencionado em Gên. 15:13. Este concerto foi feito muitos anos antes de a descendência
de Abraão ir para o Egito. Atos dá os quatrocentos anos como o tempo de escravidão no
Egito. O verso 16 do capítulo 15 de Gênesis diz que na quarta geração os filhos de Israel
voltariam do Egito, e esta linguagem só pode significar que, desde o tempo em que Deus
falava até a volta do povo do cativeiro, se cumpririam os quatrocentos anos. Quarta
geração não quer dizer, forçosamente, quatrocentos anos, tomando cada geração como
um período de cem anos. Muitas vezes esta linguagem era usada acomodativamente,
tomando-se uma geração por período de cem anos, quando podia ser de muito menos.
Mas, confrontando o v. 13 com o v. 16, parece que ambos significam uma mesma coisa.
Quatrocentos anos e quarta geração só podem confirmar uma mesma idéia. Certamente,
estes quatrocentos anos não indicam o tempo da servidão, mas o tempo que mediou
desde o concerto até a volta do Egito. Paulo faz claramente esta distinção, dizendo que a
lei que foi dada quatrocentos e trinta anos depois do concerto não invalidou este. Qual foi
este concerto? O que Deus fez com Abraão. Notemos, ainda, que Deus fez mais de um
concerto com Abraão, mas todos tendiam para uma mesma coisa. O concerto feito em
Gên. 12:1-4 pode ser tomado como o ponto de partida. O concerto feito em Gên. 15 é
uma reafirmação, sendo que este tem característicos nacionais e é chamado, por alguns
comentadores, o concerto nacional. Paulo e Pedro tomam o concerto de Gên. 12:1-4
como o concerto da graça ou como o concerto de que todos os demais dependem. Os
quatrocentos e trinta anos que Paulo menciona em Gálatas devem contar-se desde o
primeiro concerto, aliás, poucos anos antes do segundo. A cronologia não é muitas vezes
rigorosa e tomam-se datas redondas, em lugar de dar números exatos.
Mas a dificuldade que estamos examinando é harmonizar a declaração de Paulo, de que
do concerto feito até a doação da lei houve quatrocentos e trinta anos, com a de Gên.
15:13, de que o povo seria escravo no Egito por quatrocentos anos, havendo, assim, uma
diferença de 30 anos, se é que as duas coisas são uma só, como parece.
Tomemos os quatrocentos e trinta anos que Paulo menciona como o tempo desde o
concerto de Gên. 12 até à doação da Lei. Jacó tinha 130 anos quando desceu ao Egito
(Gên. 47:9). Isaque tinha 60 anos, quando .Jacó nasceu, e o concerto com Abraão foi feito
trinta anos antes do nascimento de Isaque. Portanto, temos:
30 anos da data do concerto ao nascimento de Isaque;
60 anos que Isaque tinha quando Jacó nasceu;
130 anos que Jacó tinha quando desceu ao Egito.
Soma: 220 anos.
Deduzidos de quatrocentos e trinta anos os 220, ficam duzentos e dez anos de
estada dos israelitas no Egito.
Uma Apreciação Mais Precisa
Mas há um outro problema talvez mais sério. O autor de Êxodo, o mesmo de
Gênesis, diz no capítulo 12:40,41 o seguinte: "Ora, o tempo que os filhos de Israel
habitaram no Egito foi de quatrocentos e trinta anos. Aconteceu que, ao cabo de
quatrocentos e trinta anos, nesse mesmo dia, todas as hostes do SENHOR saíram da terra
do Egito." Como harmonizar esta linguagem com a de Paulo em Gálatas? A diferença entre
Gálatas 3:17 e Gênesis 15:13 e Atos 7:6 oferece pouca dificuldade, porque tanto Gênesis
quanto Atos 7:6 usam linguagem arredondada de quatrocentos anos ou quatro gerações,
enquanto Paulo é mais específico, usando os algarismos exatos de 430 anos.
Aparentemente, há discrepâncias nos textos sagrados, mas aparentemente apenas. Senão
vejamos.
1. O que o autor de Gênesis considera como ponto de partida é o concerto feito entre
Deus e Abraão, mediante o qual o povo teria de ser escravo por quatro gerações. O
período entre a lavratura do concerto, diga-se assim, e o início do cativeiro é irrelevante,
pois ambos estavam desde agora fazendo parte de um todo, um concerto e um cativeiro.
O texto de Gên. 15:13 parece conter este mesmo pensamento, isto é, que povo seria
cativo por quatrocentos anos. Logo, está subentendido que tempo entre o concerto e o
começo do cativeiro deixa de ser considerado.
2. O pensamento de Paulo em Gl. 3:17 não oferece maior dificuldade, mesmo que pareça
ser a maior. O que estava na mente de Paulo era o Concerto da Graça e a outorga da Lei.
Este era o seu argumento, lei e graça, pois o problema que ele estava enfrentando com os
Gálatas era justamente isso: ou lei ou graça. Nesta argumentação, ele como que ignora o
tempo que mediou entre o concerto e o início do cativeiro, o mesmo que o autor de
Gênesis 15:13 fez. Paulo não podia enganar-se e nem nós encontramos qualquer base
para engano de datas, mesmo que a cronologia antiga seja muito falha em todos os
campos. Se pudesse, diria que o lapso de tempo entre o concerto e o início do cativeiro é
irrelevante para o caso. Como argumento, diria ainda que o cativeiro não foi tampouco de
430 anos, porque a maior parte deste período foi de plena paz. Entre 1780, data da
descida de Jacó ao Egito, e 1520, quando começou o cativeiro propriamente dito, ou
sejam, 260 anos, o povo teve plena paz e garantia. José viveu uns 70 anos, desde a
chegada de seu pai ao Egito, e nesse periodo o povo gozou de todos os favores
imagináveis. Vê-se, pois, que a linguagem é aproximada e compreensiva. Só quando os
reis pastores foram expulsos é que o cativeiro propriamente começou.
3. Para aceitarmos literalmente a linguagem de que o cativeiro começou após o concerto
de Gênesis 15:13, teríamos apenas 210 anos para o cativeiro, o que contraria todo o
contexto da narrativa, e nem o cativeiro começou logo.
4. O êxodo ocorreu em 1440 a.C. Esta data é rigorosamente exata. Então 1440 mais
430 dão-nos 1870, quando Jacó desceu ao Egito. Jacó tinha 130 anos quando foi ao Egito.
Isaque tinha 60 anos quando Jacó nasceu, e Abraão tinha 100 anos quando Isaque nasceu.
Somadas essas datas, temos 290 anos acrescidos a 1870, quando Jacó foi ao Egito,
acusando justamente 2160, que é a idade do nascimento de Abraão. Verificamos, pois,
que o período de 430 anos deve ser contado desde a descida do povo ao Egito e não desde
o concerto feito 30 anos antes do nascimento de Isaque. Se tivéssemos de aceitar que o
cativeiro durou apenas 210 anos, então o povo teria caído logo no fogo do cativeiro sem
oportunidade de se desenvolver. Por outro lado, este fato contraria o período de governo
de José no Egito, que foi o melhor para o bem do povo. Ainda mais, aos 30 anos da data
do concerto, antes do nascimento de Isaque, nem José, filho de Jacó, estava no Egito,
porque só muitos anos depois é que ele nasceu. Logo, toda a história ficaria arruinada,
aceitando que o cativeiro tenha começado 30 anos antes do nascimento de Isaque.
5 Finalmente, parece que o assunto está plenamente explicado. Tratamos com algarismos
apresentados de formas diferentes e com propósitos diferentes. Todo exame do assunto
deve ser feito em conjunto, tendo em vista os fins a que os escritores sagrados aspiravam.
Logo, aceitamos a doutrina de Êx. 12:40,41 como o ponto de partida certo e seguro, e tudo
mais deve ser interpretado ao redor desta escritura.
O período de 210 anos de cativeiro seria insuficiente para o plano divino de
preparar um povo para os deveres da teocracia a ser inaugurada. O que Deus visava era o
preparo do povo, e nada mais. Se não houvesse Egito, não se sabe onde o povo seria
preparado para obrigações tão sérias como as da nacionalidade hebraica. Tudo estava
devidamente planejado, e Deus não pode equivocar-se.
Por outro lado, em 210 anos não seria possível compor-se uma nacionalidade de uns
3.000.000 de almas, visto que quando Jacó desceu ao Egito apenas 70 pessoas
compunham a sua tribo (Gên. 46:27). Sabemos que muitos cativos não israelitas saíram do
Egito com o povo, aproveitando-se da confusão reinante, mas ainda assim não seria
possível uma tribo com vida isolada, sem possibilidades de mistura, reunir tantos em 210
anos, como os que saíram do Egito com Moisés.
Finalmente, o cativeiro teve por fim preparar o povo para receber a sua lei, com
todos os deveres e obrigações inerentes. Os dois pontos culminantes neste incidente são
justamente Concerto e Lei, com o cativeiro de permeio, como preparativo. Foi isso que
Paulo compreendeu. Pedindo escusas por tanta minúcia, o autor considera explicado, a
seu modo, o incidente objeto desta discussão.
Expedientes Humanos para Cumprir Apressadamente a Promessa de Deus - Gênesis 16
Sara, Impaciente, Toma Suas Próprias Medidas - vv. 1-6
Imediatamente após a promessa de Deus de que o casal Abraão teria um herdeiro
(seu próprio filho), e que não seria filho bastardo, mas filho legítimo, Sara, impaciente pela
demora, propõe ao marido que, em vista de ela não ter filhos, tome sua escrava, para que
por meio dele venha logo o filho desejado. Tinham já passado dez anos desde que a
promessa tinha sido feita pela primeira vez (Gên. 16:3 e 1.N:7), e não nos devemos
admirar de que a dúvida tivesse invadido tanto Sara como Abraão mesmo, em virtude do
fato de que estavam envelhecendo apressadamente e ficando fora da possibilidade
humana de realização da promessa. Ainda tinham de esperar mais quinze anos, mas disto
nada sabiam; os dez anos passados eram bastante para desânimo. Abraão era, homem de
fé, mas não se pode afirmar que fosse capaz de esperar vir a ter um filho mesmo fora das
possibilidades humanas.
A linguagem do verso 2 faz-nos supor que ele relutou ao ouvir a esposa, dando por fim
ouvido à sua voz. A transação não era nada agradável para um homem de sua têmpera e
confiança, mas o homem é sempre o mesmo, e, ou por instâncias da esposa ou por sua
própria dúvida ou por ambas, concertam-se para adiantar a obra de Deus. Quiseram fazer
o que Deus tinha prometido. Humanamente falando, poderiam pensar que a promessa
não invalidava a agência sua e até mesmo teriam chegado à conclusão de que Deus estaria
esperando que tomassem suas providências e que, visto a natureza de Sara, a coisa mais
lógica era buscar outra mulher para Abraão. Dir-se-ia hoje que tal filho, caso viesse a
nascer, não pertenceria a Sara, mas este não era o caso naquele tempo. À semelhança do
tempo da escravatura, em que todos os filhos das escravas eram propriedade da casa,
assim seria no caso de Abraão. O filho que tivesse seria de Sara, tanto quanto de Abraão.
Assim o entenderam e devemos nós entender também.
Entre os domésticos de Abraão havia uma escrava egípcia que pertencia a Sara. Era
costume, naqueles tempos patriarcais, o homem ter mais de uma mulher, a fim de
aumentar a prole. Neste caso, porém, a questão era muito mais importante. Era questão
de um herdeiro; e ainda que não fosse filho do casal, nascendo em casa, pertenceria à
família. Contentar-se-ia esta mulher em ter um filho nestas condições? Até aqui Abraão
tinha sido rigorosamente monogamista, a despeito das condições de seu tempo, mas a
sedução da esposa e a vontade de ter um filho o fizeram quebrar este princípio. Talvez
julgassem ser falta sua não tomar alguma deliberação pessoal a fim de fazer cumprir a
promessa, considerando que Deus não faz o que o homem pode fazer. Se assim for,
estarão desculpados da falta; se foi simplesmente para abreviar o tempo, só a falta de fé
os pode desculpar, o que não é desculpa.
Abraão cedeu ao pedido da mulher, tomou a escrava e dela houve um filho. Mas, como
sempre acontece, a experiência foi amarga. Agar concebeu e em virtude disto
menosprezou sua senhora. Esta, vendo-se ridicularizada pela serva, pediu a sua expulsão.
Pela primeira vez, até onde sabemos, entra a discórdia e a desarmonia no lar do nosso
herói, e isto somente porque ele não esperou em Deus para o cumprimento da promessa.
O ter filhos era para os antigos a maior manifestação do agrado de Deus, bem como
a esterilidade, a prova de desagrado divino. Assim que, numa mesma casa, a senhora
estéril e a escrava tendo filhos, sobretudo nas condições deste caso, era motivo para
profundo desgosto por parte de Sara, a verdadeira esposa. Esta jogou a culpa sobre o
esposo e tomou o Senhor como juiz da sua própria loucura. Não procurarei inocentar
Abraão, mas, pelo que diz este capítulo, a iniciativa que trouxe a discórdia ao seu lar foi de
sua mulher e não dele. Abraão, prudente como era, entregou o caso nas mãos da mulher,
para fazer como melhor achasse. Fez o que ela quis. Maltratou a serva ao ponto de esta
ter de fugir de sua presença. Parece que não a serva, mas a senhora é que devia ser
castigada; no entanto, não foi assim. Deus, porém, fez justiça a Agar.
A Fuga de Agar e o Nascimento de Ismael - 16:7-16)
Sara foi castigada por não esperar de Deus o cumprimento da promessa. Agar o foi
também por seu orgulho, ao ser preferida a Sara. Entretanto, Agar foi a que mais perdeu,
visto faltarem-lhe os privilégios
da liberdade.
Agar, sendo expulsa, naturalmente dirigiu-se ao seu próprio país, o Egito. O anjo de
Jeová encontrou-a junto a um poço de água e demoveu-a do propósito de ir ao Egito.
Aconselhou-a a voltar à sua senhora e humilhar-se a seus pés, garantindo-lhe que o filho
que havia de nascer seria poderoso na terra. O nome do menino seria Ismael, que significa
"a quem Deus ouve". De fato, foi o pai dos ismaelitas, uma poderosa tribo. Foi entre este
povo que Moisés peregrinou. Foi a este mesmo povo que José foi vendido. Os ismaelitas
são hoje os maometanos e árabes, que formam uma população de 200 milhões,
aproximadamente, enquanto que os judeus não vão além de 15 milhões. A grande
profecia de que a semente de Agar seria grandemente multiplicada cumpriu-se
verdadeiramente. Esta raça tem também mantido sempre o culto de Jeová. No tempo em
que Moisés esteve em Midiã, eles preservavam o culto verdadeiro e Jetro era mesmo
sacerdote de Deus. Certo é que não aceitaram a Jesus Cristo como Redentor, mas ainda
assim não adoram outras divindades pagãs.
A mais importante coisa desta aparição a Agar é o anjo de Jeová ou Anjo Jeová. O
contexto identifica o anjo de Jeová com Jeová mesmo. Portanto, as duas designações não
apresentam duas pessoas, mas uma só. O Velho Testamento apresenta inúmeras
passagens, em que os anjos são enviados de Deus para servir ou executar certos trabalhos
divinos; todavia, devemos sempre ter em mente a diferença entre "um anjo de Jeová" e "o
Anjo de Jeová" mesmo. O capítulo 3 de Êxodo, verso 2 é característico. Primeiro aparece
o anjo de Jeová, depois Jeová e por fim Deus. As três designações são uma e a mesma
coisa e referem-se à mesma pessoa. O anjo de Jeová é Cristo antes de encarnar, é a
segunda pessoa da Trindade, e foi Ele quem apareceu a Agar e lhe fez a promessa. Ela
mesma compreendeu assim, quando disse: "Tu és o Deus que vê." Ao poço ela chamou
"Beer-Laai-Roi" ou "Poço do Vivente que me vê", ou como outros traduzem: "Vivendo
depois que tu tens visto."
Muitos anos antes de a virgem conceber e dar à luz o Unigênito de Deus, que se
apresentava para entrar em relações vitais com a raça decaída, já este mesmo Filho
entrava em relações com as suas criaturas, cuidava do povo que havia designado para
servir seus desígnios e planos. O Velho Testamento se torna mais encantador, à medida
que podemos ler nele a vida pré-histórica do nosso Salvador. Cristo se torna para nós
tanto mais amado, quanto mais compreendemos que, mesmo antes de aparecer no tempo
e entrar em relações humanas conosco, já estava trabalhando para preparar o caminho,
que depois devia trilhar até a Cruz. Certamente, nenhum, cristão sincero nega a
preexistência de Cristo, bem como sua eternidade; mas convém notar seu trabalho
redentor séculos antes de entrar na História. Em tudo isto o nosso bom Deus nos dá prova
de seu amor e cuidado antes e depois de mandar seu Filho a este mundo.
O grande desejo do autor de publicar o seu trabalho sobre a "Doutrina da Trindade no
Velho Testamento" já foi satisfeito;. É mais uma contribuição à grandeza messiânica do
V.T. e um auxílio ao crente que deseja conhecer o trabalho de seu Salvador antes mesmo
de aparecer na História.
Renovação do Concerto a Abraão, e Sua Ampliação - cap. 17
A Promessa Repetida - vv. 1-8
Treze anos se tinham passado depois da triste experiência no lar de Abraão e do
nascimento de Ismael. Abraão morava havia 24 anos na terra de Canaã, e a promessa lhe
tinha sido feita por diversas vezes de que herdaria a terra. A pressa de sua mulher em
cumprir ou fazer cumprir a promessa da vinda do herdeiro foi uma triste e dolorosa
decepção. Deus tinha já dito que dos próprios lombos do patriarca sairia o herdeiro, e
talvez ele pensasse que este tinha já nascido na pessoa do menino Ismael. Deus
novamente aparece e diz que não seria este o herdeiro. Triste ilusão! Agar mesmo, a
despeito da declaração de Jeová de que este seu filho não seria o herdeiro, talvez
abrigasse sua esperança. Passaram-se treze anos e eis que Deus vem desmoronar todas
aquelas esperanças, declarando que o herdeiro ainda não tinha nascido. Uns vinte e
quatro anos se tinham passado, desde que a promessa e concerto tinham sido
formalmente feitos (cap. 15), e, depois de uma tão parecida prova de que a promessa já
estava cumprida, vemo-la ainda por realizar. Todo filho de Deus que confia nele deve
confiar de fato, porque cumpre seus propósitos e não os nossos.
Jeová novamente é visto por Abraão, ou aparece a Abraão, e renova as promessas já feitas.
Não havia lugar para este servo de Deus desanimar, porque toda vez que seus
pensamentos se concentravam em torno de seus próprios planos, Deus intervinha e
repetia a promessa, de modo a manter viva a esperança de Abraão e fazer-lhe
compreender que não era como ele queria, mas como Deus queria. As palavras "Jeová
apareceu a Abraão" ou, como o original, "foi visto por Abraão", parecem indicar que Deus
desta vez apareceu em sua glória e não em forma humana, porque Abraão caiu sobre sua
face. Só a glória divina podia fazer este amigo de Deus cair por terra e esconder seu rosto.
Não podemos saber de que modo estas aparições divinas se realizaram sempre, mas
cremos que esta foi a segunda vez que Abraão teve o privilégio de contemplar a majestade
de Deus. Não quero dizer com isto que visse a Deus tal como ele é, porque Jesus diz que
Deus nunca foi visto por alguém, mas creio, sim, que Abraão viu a Deus na pessoa de Jeová
Cristo e teve uma manifestação de sua glória. As palavras com que o Senhor se apresenta
são: "Anda diante de mim e sê perfeito." Lembra-nos Enoque, que andava com Deus e foi
tomado. Não podemos agradar a Deus, andando como queremos. A perfeição é exigida
de todo servo de Deus que lhe quiser agradar.
Outra vez diz: "Farei o meu concerto contigo... " Quantas vezes fez Deus concerto com
Abraão? Diversas vezes, mas foram ratificadas solenemente apenas no capítulo 15; as
palavras aqui não significam outro concerto, mas a confirmação do concerto já feito.
Notemos também que desta vez o concerto foi ampliado à semelhança do capítulo 12,
sendo dito que Abraão seria pai de muitas nações. Diversas promessas são feitas aqui.
(1) Jeová manteria o concerto feito. "E eu farei meu concerto contigo."
(2) Ele seria grandemente engrandecido e seria pai de muitas nações. A promessa de que
não somente os hebreus, mas também os gentios gozariam das bênçãos divinas encontra-
se aqui claramente.
(3) Este concerto seria perpétuo entre Deus e a geração de Abraão. A palavra
perpétuo ocorre diversas vezes em relação às promessas feitas às nações e significa
perpétuo dispensacionalmente. Mas aqui significa perpétuo, eterno.
(4) A terra de Canaã seria dada em possessão à descendência de Abraão.
(5) Deus seria o Deus da nação, o Deus nacional. Todas as nações antigas tinham os seus
deuses, e cada Deus tinha seu próprio povo, eram deuses nacionais. Nesta mesma
capacidade, Deus seria o Deus do povo herdeiro da promessa. No curso da história
hebraica, Deus cumpriu sua promessa, sendo o guia e protetor de seu povo. Foi esta
concepção nacionalística dos judeus que fez com que considerassem todos as demais
povos como excluídos do privilégio de comunhão com Deus e checassem a ponto de julgar
que a salvação era propriedade da raça preferida. Neste espírito, recusaram o evangelho
aos gentios, e foi só depois de grandes lutas que a igreja em Jerusalém concordou que os
gentios tinham direito ao evangelho. Enquanto era vaidade, que Deus seria o Deus
nacional hebraico, é certo também que, conforme a promessa, uma multidão de nações e
reis participaria das bênçãos do concerto feito com Abraão. Este ponto foi sempre
escurecido pelo orgulho racial da raça eleita. O nome de Abrão foi mudado para Abraão,
que significa "Pai de uma multidão".
O Selo do Concerto - 17:9-14
O rito da circuncisão era o selo do concerto feito entre Deus e Abraão. Era concerto
perpétuo e esteve em vigor até o tempo em que os judeus o quebraram, rejeitando o seu
Messias. Este selo era um sinal, uma forma visível de concerto e tinha por fim conservar a
mente e o coração do povo não no rito, propriamente, mas no que ele recordava. Não
fazia parte essencial do concerto, visto que este tinha sido feito antes do selo ser dado, e
tinha mesmo sido ratificado antes. Usamos a palavra "selo" no sentido geral, em
referência à circuncisão, mas o selo do concerto, propriamente, foi o sacrifício que Abraão
fez depois de receber a promessa, conforme o capítulo 15:17,18. A circuncisão era uma
forma material, um sinal objetivo e tangível do concerto, e nesta capacidade foi
incorporada na própria Lei. Por ela, o povo conservava sua identidade, distinguindo-se dos
outros povos. A desobediência a este preceito era punida severamente, visto implicar na
quebra do pacto e na anulação da promessa. Em qualquer parte, em qualquer
circunstância, nada justificaria a negligência deste dever. A negligência envolvia punição
capital, como se pode ver no caso de Moisés e sua mulher, Zípora, o qual esteve a ponto
de ser morto por Deus, quando ia para o Egito, por ter negligenciado a prática da
circuncisão no seu filho (Êx. 4:24-26). Este rito era ainda a porta pela qual qualquer pessoa
podia ser admitida na família hebraica. Por esta razão, algumas pessoas crêem que o
batismo, sendo a porta de entrada na igreja, representa o rito da circuncisão ou é seu
substituto. Nós, porém, negamos qualquer relação entre os dois:
(1) O rito da circuncisão só era aplicado aos homens ou meninos. Homens, no caso de
escravos ou pessoa adulta que desejasse passar a pertencer à nação (Gên. 34:15). Todos
os meninos deviam ser circuncidados ao oitavo dia. O batismo é para homens e mulheres,
logo, não pode ser substituto da circuncisão. (2) O rito da circuncisão era forma externa
do converto e de aplicação nacional somente, enquanto que o batismo é universal, em sua
aplicação, tanto quanto o evangelho mesmo.
(3) Enquanto que a circuncisão foi dada antes da Lei e em conexão com a promessa, não
resta dúvida que era um rito legal e passou juntamente com a Lei. Esta doutrina é
fartamente discutida por Paulo em suas cartas aos Romanos e aos Gálatas. A prática da
circuncisão no evangelho esteve a ponto de arruinar sua espiritualidade. Inteiramente
alheia à graça, só poderia fazer parte do concerto das obras. Mas, perguntará alguém: "Se
a circuncisão não fazia parte do concerto da raça, por que foi dada a Abraão juntamente
com a promessa?" Por esta razão simples: estava feito o concerto, mas era necessária a
prática de alguma coisa natural que mantivesse a mente dos herdeiros da promessa
sempre continuamente fixa no pacto feito. Era uma forma externa, para contínua
lembrança. Assim que, conquanto não fizesse parte da promessa, ajudava a mantê-la na
mente do povo.
Alguns teólogos querem que a circuncisão e o batismo sejam instrumentos regeneradores.
Assim como o rito da circuncisão era efetuado na criança, assim também o batismo, para
eles, o deve ser. Mas podemos ver a inaplicabilidade da teoria:
(1) O rito era observado somente ao oitavo dia, e não resta dúvida que muitas
crianças morriam antes desse dia.
(2) Somente as crianças do sexo masculino podiam sofrer a prática da circuncisão;
neste caso a regeneração era somente para os meninos, o que não é lógico nem racional,
sob o ponto de vista religioso. Melhor é aceitar que esta exigência cumpriu sua missão,
assim como muitas outras práticas que tinham por função conservar e preparar a mente
do povo para a vinda daquele que cumpriu todas as coisas. Por outro lado, para
aceitarmos a regeneração circuncidária, teremos de aceitar a regeneração batismal e a
graça salvadora dos sacramentos. Isto nos porá em plena harmonia com a Igreja Católica
Romana. Não existe relação alguma entre circuncisão e batismo, como não existe entre
batismo e regeneração, como não existe entre a nação hebraica e a Igreja Cristã. Jesus não
botou vinho novo em odres velhos, nem remendo de pano novo em vestido velho.
Deus Promete a Abraão Que Sara, Sua Mulher, Lhe Dará
o Herdeiro das Promessas - 17:15-22
Uma série de mudanças na vida de Abraão, motivada pela sua posição perante
Deus, tinha, nestes últimos anos, lhe trazido grandes surpresas. Até agora, Deus nada
dissera acerca de Sara, embora o próprio nome de Abraão já tivesse sido mudado. Chegou
a vez de Sara. Como legítima esposa de Abraão, tinha de acompanhar os destinos do
marido na consecução dos planos que Deus tinha para eles. Seu nome tem sido até agora
Sarai ("minha princesa"), mas daqui em diante passará a ser Sara ("princesa"). Como já foi
sugerido, seu verdadeiro nome talvez fosse Iscá, mas ao casar com Abraão, este mudou-
lhe o nome para "minha princesa", por causa de sua beleza; era este pois um apelido.
Como "minha princesa" ela era a mulher para o seu lar, mas como "princesa" seria a mãe
da grande família que dela sairia. Seria a princesa do mundo; não mais a princesa de
Abraão. Quanto a ela manter a esperança de ter filhos é incrível; tudo na sua vida, tanto
idade quanto natureza, não comportavam tal esperança. Ismael, agora de 13 anos de
idade, era considerado como o verdadeiro sucessor de Abraão e, na falta de um filho
legítimo, satisfazia perfeitamente às exigências. Ela, já na casa dos noventa anos, e Abraão
na dos cem, nada poderiam esperar. Estavam fora de qualquer possibilidade humana.
Ainda que a contragosto, o filho da escrava seria o herdeiro. Na ânsia de ver cumprida a
promessa, há muito feita, foi que Agar entrou em relações com Abraão, e ainda que esta
circunstância fosse a causa de profundos desgostos, este era o caminho a seguir. Deus,
porém, ainda não tinha dito tudo e, depois de outras declarações, faz mais esta, de que
Sara teria um filho e seria mãe de muitas nações, conforme a promessa.
Diante disto, não estava reservado a Ismael o papel de herdeiro, mas a um menino que
ainda ia nascer. Como, porém, poderia ser isto, dada a idade de Abraão e Sara? Abraão
caiu sobre seu rosto e riu-se. Um misto de surpresa, alegria e descrença. Descrença talvez
não, porque já estava acostumado a ver outras manifestações de graça de Jeová, mas de
tal modo era esta nova, que, no meio de outras emoções, poderia achar que era muito.
Abraão responde: "Oxalá que Ismael viva diante de ti." Em outras palavras: "Conserva a
vida daquele em quem espero serem realizadas as promessas, porque quanto a Sara e a
mim, parece ser difícil". Deus, para ajudar a dificuldade de Abraão, responde que outro, e
não Ismael, seria o herdeiro, e que o nascimento deste menino comemoraria o riso que
esta nova provocou. Chamar-se-ia Isaque, que significa riso. Com ele seria estabelecido o
concerto para todo o sempre. Quanto a lsmael também seria grande, porque era seu filho;
dele sairiam doze príncipes.
Paulo imortalizou este acontecimento nas suas cartas aos Romanos 4:13-22 e aos Gálatas
4:21-30. De acordo com esta promessa, Abraão creu contra a esperança. Ele não podia
esperar o que tinha sido prometido, porque sua carne e de sua mulher estavam
amortecidas, mas ao mesmo tempo creu, porque Deus tinha prometido e era capaz de
cumprir a promessa. Firme nesta confiança da promessa e da capacidade do que tinha
prometido, creu, e isto lhe foi imputado para justiça. Mais linda e eloqüente
demonstração de fé não se pode encontrar noutra parte. Deus galardoou esta fé não só
com o nascimento do menino herdeiro, mas ao tomar em conta tal grau de fé. Ele foi
justificado pela fé e, podemos dizer, é o pai da fé.
As duas promessas, a de Ismael e a de Isaque, cumpriram-se literalmente, embora a de
Isaque tenha seu cumprimento mais moral que étnico. Os ismaelitas são mais numerosos
que os hebreus, mas os que vivem das esperanças que alimentaram a vida espiritual do
patriarca cifram-se em milhões, espalhados por toda a terra e por todos os séculos.
Acabada a conversação, Deus se foi de Abraão. Jeová apareceu visivelmente a
Abraão; de outra maneira, não podia ter-se retirado dali, como diz o texto. Jeová tomou
forma humana, para que suas palavras não oferecessem ambigüidade e para ajudar a fé do
interlocutor. Se fosse apenas uma visão, ou sonho, ou voz, não teria Abraão a impressão
de realidade que teve em entrar em colóquio com a pessoa que lhe estava prometendo o
impossível nos domínios humanos.
Muitas vezes encontramos estas referências, como já tivemos ocasião de notar, em que
Jeová entretém conversações com homens. Fala a Agar, encontra-se com Jacó, e luta com
ele, aparece ainda outras vezes a Abraão na pessoa do Anjo Jeová. Aquele que estava
desde o princípio com Deus e que tudo fez foi o que preparou todas as coisas também para
a sua própria vinda.
Abraão Cumpre o Que Deus Lhe Tinha Ordenado - 17:22-27
Depois que Deus se retirou, imediatamente Abraão cumpre o rito da circuncisão,
tanto em si mesmo, quanto em Ismael e em todos os homens de sua casa. É difícil
encontrar homem mais pronto para obedecer do que Abraão. Um homem de noventa
anos submetendo-se a um rito penoso, para cumprir a vontade de seu Deus. Nós que
somos seus filhos segundo a promessa, bem poderíamos imitar nosso pai espiritual na
obediência.
Abraão Hospedando os Anjos e o Senhor dos Anjos - 18:1-8
Talvez, poucos dias depois de Deus sair da presença de Abraão, este tenha recebido
novamente outra visita ilustre. Abraão morava nas vizinhanças de Hebrom, umas vinte
milhas ao sul de Salém, cidade de Melquisedeque, depois Jerusalém, cidade de Davi. Sua
tenda estava estendida debaixo do carvalho de Manre, seu companheiro e aliado (13:18;
14:13). Sentado à porta da tenda, pelo calor do dia, olhou e eis que três homens vêm em
direção de sua tenda. Abraão gostava de hospedar. Correu para os visitantes e ofereceu-
lhes hospedagem. Não sabemos como reconheceu serem três anjos, mas Moisés abre este
capítulo, dizendo que o Senhor apareceu outra vez a Abraão. Entre os três, reconheceu
que um era o Senhor, porque a este se dirigia, chamando-o de Senhor, quando poderia ter-
lhes chamado a todos senhores. De tal modo era familiar com o Senhor, que o reconhecia,
mesmo em presença de seres celestiais. O convite gentil de Abraão foi aceito e, pela
primeira vez, encontramos o costume de lavar os pés aos hóspedes, costume este ainda
em voga no tempo de nosso Senhor. Descansados os hóspedes debaixo do carvalho, foi
Abraão depressa buscar uma bezerra das melhores, manteiga e leite, e trouxe o jantar aos
seus hóspedes. Podemos imaginar com que prazer ofereceu estas iguarias ao seu Senhor!
Outra coisa que desperta nossa admiração é o fato de que estes seres celestiais, entre eles
nosso Senhor, participaram das coisas da mesa deste mundo. Esta é uma das mais
importantes antropomorfanias do Velho Testamento. Deus não só aparece em forma
humana, mas senta-se à mesa e participa dos manjares desta vida.
A Promessa Repetida e Ampliada do Nascimento de um Filho - vv. 9-15
Acabado o jantar, perguntou o Senhor por Sara. Ela estava ocupada com os
afazeres domésticos, ainda não tinha aparecido aos visitantes, e nem era costume uma
mulher aparecer a qualquer pessoa estranha. Muito esquisito devia ter parecido a Sara e a
Abraão também o ter um destes hóspedes perguntado por ela, se não tivesse conhecido
que ele era o Senhor. A liberdade da mulher no Oriente ainda hoje é muito limitada,
quanto mais naquele tempo. Sobretudo o povo semita tem grandes cerimônias sobre os
limites da liberdade da mulher na sociedade. Sara estava escutando na tenda o que o Anjo
do Senhor dizia e, quando repetiu que a seu próprio tempo ela teria um filho que seria o
herdeiro de todas as promessas feitas, que nele, e não em Ismael, repousaria a esperança
dos velhos pais, ela riu. Velha e alquebrada, não julgava mais ser possível ter um filho. O
anjo, porém, diz: "Há, porventura, alguma coisa difícil a Jeová? Ao tempo determinado
tornarei a ti por este tempo da vida, e Sara terá um filho." Esta passagem é um pouco
difícil, porque não sabemos quando Jeová tornou a visitar Abraão, mas o que quis dizer foi
que no tempo próprio para ela conceber ele, Deus, na sua providência e graça, lhe daria o
privilégio da conceição, e o que julgavam impossível se realizaria.
Quando ela ouviu a promessa de ter um filho, riu-se como se ignorasse que esta promessa
tinha sido feita muitas outras vezes. Não a ignorava, mas tinha já perdido a esperança.
Tantas vezes tinha sido prometido esse filho; agora, quando pensavam que Ismael fosse o
cumprimento da promessa e souberam que não era, perdeu ela a fé e seu marido ficou
muito desanimado. Não podemos conhecer os caminhos do Senhor! Ele age por vias a
nós desconhecidas. Para que aprendessem a confiar em Deus, e não em si mesmos, o
Senhor os provou tremendamente neste ponto cardeal de suas vidas. Ao ser advertida,
Sara negou que se tivesse rido. Teve medo de ser descoberta. É fácil errar, mas muito
difícil confessar o erro. Ela, porém, estava com medo, e deve ser desculpada.
CAP. XXI - DESTRUIÇÃO DAS CIDADES CORRUPTAS
(Caps. 18:16 - 20:38)
Oração Intercessória de Abraão por Sodoma - 18:16-33
"E levantaram-se aqueles varões dali e olharam para a banda de
Sodoma..." Abraão os acompanhou por algum tempo. Sodoma ficava a S.E.,
olhando de Hebrom, aceitando que ela estivesse onde hoje fica o Mar Morto, a
uma distância de uns 35 quilômetros. Foi naquele lugar que os quatro reis do
Oriente tiveram a célebre batalha com os cinco reis palestinos. Interessante é
pensar em Abraão ao lado do Senhor, conversando com Ele e com os outros
dois companheiros. Conquanto nos pareça coisa muito estranha, não é mais do
que ver esse mesmo Senhor conversando com uma mulher perdida, procurando
ganhar sua alma (João 4).
A alguma distância veio ao coração do Anjo Jeová revelar ao seu amigo Abraão o
fim daquela viagem. "Ocultarei a Abraão o que faço?" Não podia, porque seria o
homem mais importante na história humana, pai de muitas nações, e convinha
que tivesse o privilégio de conhecer pessoalmente um acontecimento que
ficasse indelevelmente marcado na história da humanidade. Demais, se outras
coisas, de alcance mais fundamental, lhe tinham sido reveladas, por que não
revelar-lhe mais esta, que era uma lição objetiva dos efeitos da maldade de um
povo? Ainda mais, conhecendo o coração de Abraão, sabia que intercederia
não só por seu sobrinho Ló, mas também pela cidade corrompida. Quando é
que Deus deixará de atender à oração Intercessória? Abraão intercedeu, e foi
ouvido; assim também nós somos.
O verso 19 encerra o coração dos motivos por que o Senhor revelou seu
propósito a Abraão. Deus tinha conhecido seu servo e sabia que ele ordenaria a
seus filhos que guardassem o caminho do Senhor para obrarem com justiça.
Era-lhes necessária esta tremenda lição do juízo divino sobre os pecados de
qualquer povo. Para que as bênçãos prometidas pudessem vir sobre eles, era
mister conservar a justiça divina em foco nas suas vidas. A palavra-chave neste
verso é o verbo "Conhecer". O Senhor conhecia que Abraão faria tal coisa,
porque conhece os intentos do coração e suas tendências. Este é o
conhecimento da presciência divina, ao qual nada pode escapar. Mas, notemos
mais, como Deus age antecipadamente conosco, baseado neste prévio
conhecimento.
Diante de tal conhecimento, de que a casa de Abraão seria dirigida nesta luz,
Jeová revela todo o segredo daquela visita. Mostra que estava cheia a medida
dos crimes dos sodomitas. Note-se a linguagem antropomórfica. Descerei, e
verei se em tudo têm praticado segundo o seu clamor, que é chegado a mim; se
assim não é, sabê-lo-ei. Será que Deus, não sabia do que se estava passando
em Sodoma? Haverá alguma coisa encoberta ao Senhor? Não, nada. Jeová
está falando a um homem e fala em termos humanos, como se homem fora.
Está se acondicionando à capacidade de compreensão do companheiro. É um
dos atributos jeovísticos adaptar-se ou conformar-se às condições das criaturas
suas, para que lhes seja bem compreensível, e sua mensagem, bem inteligível.
É neste sentido que devemos entender esta linguagem. Jesus, para ser
entendido e apreciado, não só se limitou às nossas condições, aniquilando-se ou
esvaziando-se, como diz Paulo, entrando em relações diretas conosco como
homem, mas condicionou-se, sempre que foi necessário, às nossas
circunstâncias. Tudo isto faz parte do plano redentor de Deus.
Ciente do que ia acontecer com Sodoma, Abraão intercede pela cidade e
pergunta se o justo perece com o ímpio. Perguntou se a cidade seria destruída,
havendo nela cinqüenta justos, e insistiu que tal coisa não fosse feita, pois o juiz
de toda a terra não poderia destruir o justo com o ímpio. De cinqüenta, passou
para quarenta e cinco, e assim até dez. Se ali se achassem dez justos, a cidade
seria poupada por amor deles. Notemos que justos, aqui, não significa pessoa
sem pecado, mas pessoa que não cometia as abominações dos sodomitas. O
termo "sodomita" é característico do mais vil pecado. Esta oração intercessória
e a resposta do Senhor, de que não destruiria a cidade, caso ali houvesse dez
pessoas justas, confirmam as palavras do Senhor no Sermão do Monte, de que
nós somos o sal da terra e a luz do mundo. É por causa dos justos que o mundo
está continuando seu curso.
Alguém tem pensado que Abraão assim intercedeu por Sodoma, porque ali se
encontrava seu sobrinho Ló. Certamente, este fato deve ter pesado muito na
balança da simpatia de Abraão por Sodoma, mas tal interpretação faz deste
grande homem, que por outras vezes mostrou seu altruísmo, um homem
egoísta, que só pensava nos seus. Qual seria a pessoa com puros sentimentos
humanos que não se condoeria, ao ver uma cidade ser reduzida a cinzas e uma
população perecer na perdição? Abraão intercedeu por sua família, mas ao
mesmo tempo, por todos os sodomitas e gomorritas.
A promessa de que a cidade seria poupada, caso houvesse dez justos, ainda
mostra a santa simpatia divina pelos pecadores. Deus sempre está pronto a
perdoar o ímpio e a dar-lhe mais uma oportunidade de arrependimento.
Quando Abraão cessou de pedir, o Senhor cessou de conhecer e se foi. Os
outros dois companheiros, parece, tinham já seguido caminho, só ficando o
Anjo Jeová e Abraão. Terminada a entrevista, o Senhor se foi pelo seu caminho
e Abraão voltou à sua tenda, debaixo do carvalho de Manre, para esperar os
acontecimentos. Só um pouco mais de tempo, e ficou convencido de que não
havia dez justos na cidade. Tremenda lição! Quando o fumo subia até aos céus,
Abraão podia ver o triste espetáculo. Como não teria ficado o seu coração,
pensando na cidade e no seu sobrinho Ló! Que desapontamento para o coração
do velho patriarca! Ele, que já por outra vez tinha arriscado sua vida e a vida
dos seus, para salvar aquele homem ambicioso de coisas mundanas, estava
agora na triste contemplação do fato de que talvez tivesse sucumbido no
cataclismo.
Dois Anjos à Porta de Sodoma e o Destino da Cidade - cap. 19
Ló Recebe os Dois Anjos - 19:1-11
Deve ter sido ao cair da tarde que estes dois estranhos hóspedes
bateram à porta da cidade condenada. Foi ao meio dia que eles chegaram à
tenda de Abraão, e parte da tarde foi gasta no jantar e na conversação com o
hospedeiro. A estrada de Hazazom-Tamor ou En-Gedi (14:7; II Cr. 20:2), a
mesma por onde tinham ido Quedorlaomer e seus aliados depois da batalha
palestina, tinha umas dezesseis milhas em linha reta, mas muito mais devido
aos vales e outeiros, o que tornava impossível a um homem fazer a viagem a pé
e ainda chegar de dia, porque Ló ainda estava à porta da cidade, em seu ofício
de juiz. Não é necessário crer no uso de milagres para vencer a jornada, mas
basta saber que a natureza dos viajantes não conhecia distâncias. Seres
celestiais, podiam transportar-se a qualquer lugar sem o uso de meios
locomóveis ou milagrosos. Jesus, depois de sua ressurreição, entrava e saía,
aparecia e desaparecia sobrenaturalmente.
Os anjos encontraram Ló à porta da cidade. As antigas cidades eram muradas,
por motivos bélicos, havendo apenas uma porta em cada um dos pontos
cardeais ou em qualquer lugar estratégico. Algumas cidades modernas, como
Lisboa, ainda conservam esse costume, não tanto por motivos de guerra, mas
para fins fiscais, para evitar a entrada de contrabando. A China possui a mais
célebre de todas as muralhas construídas na antigüidade, para preservar o país
de qualquer ataque dos inimigos.
À entrada destas portas estavam os vigias, que algumas vezes tinham suas
guaritas por cima dos muros, a fim de melhor poderem observar à distância a
aproximação de qualquer pessoa. A cidade de Jerusalém tinha algumas destas
guaritas em forma de torre; entre elas, se tornou célebre a Antonina. Além
destes vigias, sentavam-se ali também os que tinham o encargo de julgar os
negócios do povo. À porta da cidade eram
trazidas as demandas que surgiam entre os habitantes da terra (Jó 29:7; II Sm.
19:8 e ref.). Além disto, era ainda à porta da cidade que se ajuntavam os
palradores, para comentar qualquer acontecimento ou para discutir sobre
qualquer negócio. Ló ali estava, não podemos afirmar em que capacidade, mas,
sendo um homem justo e honesto, não nos podemos admirar de que fosse
escolhido pelos seus amigos para juiz. Estava plenamente qualificado para esse
lugar. O fato de estar sentado, denuncia a ocupação. O fato de ele, e não outra
pessoa, receber os visitantes, indica sua responsabilidade com as pessoas que
entravam na cidade. Possuidor do espírito de seu tio, gostava de hospedar. Os
orientais são muito mais hospitaleiros do que os ocidentais. Vendo os dois
homens, levantou-se e foi ao seu encontro, convidando-os para passar a noite
em sua casa. Bem sabia do espírito do povo da terra e de como seriam
ultrajados os visitantes que buscassem passar a noite na cidade. A linguagem
que usou é a mais cortês possível, mas os ilustres visitante estavam achando
que seria mais viável passarem a noite na rua. No entanto, era contra o
costume deixar assim um visitante sem hospedagem. Insistiu, e eles
consentiram em entrar em sua casa. Na rua não estavam a salvo dos ataques
daquele povo corrupto e nojento.
Com este acontecimento em mente foi que o autor da carta aos Hebreus (13:2)
recomendou a hospedagem, dizendo que sem o saber alguns hospedaram até a
anjos.
Os anjos traziam a comissão de verificar se o crime do povo era
justamente como se dizia e como Deus tinha conhecido. Há nisto uma prova da
necessidade de que a justiça divina seja tomada pelos homens como justa. A
vinda destes estranhos à cidade e a infame recepção que lhes foi dada pelos
habitantes deixariam sem a menor escusa sua destruição, e a justiça divina mais
exaltada. Deus não entregou a terra da Palestina a Abraão logo que este
chegou de Ur dos Caldeus, porque a medida dos pecados do povo ainda não
estava cheia (15:16).
A aparência atraente dos visitantes despertou a cobiça bestial dos depravados
sodomitas e com dificuldade pôde Ló poupá-los à sanha desses pecadores.
Convém silenciar aqui os esforços empregados para praticar mais uma vez os
seus muitos crimes contra Deus e contra si mesmos. Moisés não nos disse tudo,
mas disse-nos o bastante para que se cubra nosso rosto de vergonha. A lei do
respeito ao lar alheio e do sagrado dever de respeitar os que ali se tinham
abrigado não foi respeitada. Antes de a noite estar muito avançada, aqueles
homens cercaram a casa de Ló e exigiram a entrega dos hóspedes. Assim os
moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados. Que triste estado
moral! Ló saiu, fechando a porta atrás de si, como se temesse que mesmo às
escondidas algum penetrasse em sua casa. Seus rogos não foram ouvidos.
Ofereceu-lhes suas duas filhas como sacrifício à bestialidade deles, porém a
oferta não só foi rejeitada, mas ele mesmo foi insultado, porque, sendo também
hóspede estrangeiro, não se sujeitava às exigências do povo da terra. Foi
acusado de querer ser juiz de tudo (prova que era juiz da terra) e
arremessaram-se contra ele, para arrombar a porta. Graças à intervenção dos
anjos, Ló não sofreu mais. Uma profunda treva caiu sobre todos eles, de modo
que ficaram às apalpadelas. Nem ainda assim desistiram do seu intento. Desde
o maior ao menor todos procuravam achar a porta, para se vingarem de Ló. Sua
sanha tinha virado contra ele mesmo. Já não era tanto aos hóspedes que
buscavam, mas a Ló.
A Destruição Anunciada, o Aviso de Salvamento
E os homens disseram: tens tu mais alguém aqui? Os anjos são aqui
chamados de homens, e no verso 15 são chamados anjos. A expressão parece
denotar que apareceram em forma humana, o que é ensinado no verso 1, sem
que isto signifique que os anjos tenham justamente a forma de homem.
Em diversos lugares são representados como tendo asas, e em outras
partes, como tendo mais de duas (comp. Is.. 6 etc.). Neste caso, eles se
acomodaram à missão que vinham executar. Como mensageiros de Deus, para
tratar diretamente com homens, tomaram a forma destes, para assim serem
mais compreendidos. Talvez haja aqui uma outra grande lição. Se eles
aparecessem em forma angélica, não tomariam os sodomitas a atitude que
tomaram e assim não ficaria seu hediondo pecado mais uma vez provado. Em
qualquer caso, esta é uma forma de revelação de Deus. Para se fazer
compreendido e seus propósitos serem inteligíveis, Ele se manifesta
humanamente e manda seus mensageiros em forma e de acordo com as
circunstâncias humanas.
Perguntaram a Ló se tinha outras pessoas além dele para serem salvas. Não
pensemos que ignorassem que Ló tinha outras pessoas da família, ainda que
não eram oniscientes. Quiseram é fazer Ló sentir a emergência da situação. Ele
não tinha filhos, e sim filhas casadas. A ordem era buscar toda esta gente,
porque sem perda de tempo a justiça dos céus se manifestaria, punindo aquela
nação pecaminosa. Tinham ordem de Jeová, Aquele que ficaa conversando com
Abraão, para destruir a cidade, caso não se achassem ali dez justos, que de fato
não foram achados. Bem triste exemplo. Ló saiu imediatamente, avisando seus
genros de que tinha soado a hora da vingança para aquela terra, mas, à
semelhança dos dias de Noé, nenhum acreditou. Antes, foi para eles motivo de
troça. Estes genros ou eram já casados com outras filhas de Ló ou estavam para
casar com as duas que saíram juntamente com ele. A palavra original pode ser
genros "porque casaram" ou, "porque iam casar". Estariam talvez desposados
ou, como nós diríamos, noivos, mas não ainda casados. Para esta gente, seria
uma coisa inacreditável que Jeová fosse destruir assim uma cidade. Se este caso
se reproduzisse em nossos dias, quem acreditaria em nossa palavra? Todos nos
tomariam como idiotas. Assim, o maior número que Ló pôde conseguir foi de
quatro pessoas: ele, sua mulher e duas filhas.
Todo este drama se passou de noite. Ninguém dormiu naquela casa . E ,
quando a manhã chegou, os anjos apressaram Ló a sair da cidade. "Ele, porém,
se demorava." O amor aos seus haveres o fez vacilar. Foi a sua cobiça que o
impeliu para aquele lugar, e por causa desta mesma cobiça, teria perecido na
iniqüidade da terra, se Deus não tivesse misericórdia. Foi necessário que os
anjos lhes pegassem pelas mãos e os deitassem fora da cidade. Só pela
misericórdia do Senhor foi livrado. A ordem era sair, e não olhar para trás.
Olhar para trás era sinal de pena do que ficava e demonstração de
cumplicidade. "Escapa-te e salva tua vida e não olhes para trás de ti..." Tinha de
escapar para o monte. Toda a planície seria submersa. Ló, porém, interpôs
algumas dificuldades. Teve medo de fugir para as montanhas e ser destruído lá,
por isso pediu que lhe fosse concedido escapar para uma cidade pequena, a
pouca distância. Contentava-se agora mesmo com uma pequena cidade. Pediu
que por ser pequena não fosse destruída e Deus teve compaixão desse homem
e aceitou sua petição. Esta cidade era uma das cinco cidades da Planície e
chama-se Bela. Foi para Ló a cidade de refúgio. Até que ele chegasse ali, os
anjos nada podiam fazer. A oração tem muito poder... "depois nada posso fazer
antes que chegues ali". O nome da cidade ficou sendo Zoar, que significa "mal".
A Destruição das Cidades de Sodoma e Gomorra, Adamá e Zeboim,
Cidades da Planície
O sol tinha saído, quando Ló entrava em Zoar. Apenas dava entrada na
cidade, o Senhor fez chover fogo e enxofre do Senhor desde os céus, e as
cidades foram soterradas. Notemos a linguagem enfática, de que o Senhor fez
chover fogo do Senhor. Os dois anjos que tinham chegado a Sodoma eram duas
criaturas do Senhor, porém o ato de destruição foi feito pelo Senhor mesmo.
O Anjo Jeová que na véspera tinha ouvido a oração de Abraão mandou os
seus dois mensageiros salvar Ló e depois Ele mesmo destruiu as cidades. Este
cataclismo é mencionado no Velho Testamento treze vezes e uma no N. T., e
sempre como um fato assombroso. A mulher de Ló, com pena, talvez, das
amizades que deixava atrás, foi convertida numa estátua de sal, porque
desobedeceu à ordem de não olhar para trás.
Nenhum outro fato mencionado na Bíblia tem merecido maior estudo do que
este: se o Mar Morto é o lugar destas antigas cidades, ou não. Entretanto,
muito falta explicar, para que se saiba, cientificamente, se este mar ocupa o
lugar das cidades submergidas. Mas não resta dúvida alguma de que o
cataclismo aconteceu e que as cidades mencionadas devem ter sido substituídas
pelo mar. Dificilmente podemos imaginar a violência do terremoto. A Bíblia diz
que a destruição foi causada por chuva de fogo e enxofre, mas outros
acontecimentos acompanharam a vinda destes elementos, de modo a alterar
fundamentalmente a conformação do solo. É provável que as enormes jazidas
de betume que se encontravam no vale de Sidim (cap. 14:10) fornecessem
combustível para o incêndio. Hoje há ali grandes montanhas de sal, talvez
produzidas pelo cataclismo. Um dos problemas que a moderna arqueologia
procura resolver é: Onde as águas do Jordão desaguavam antes da catástrofe?
Pensava-se até há pouco que elas se dirigiam para o sul, até ao Mar Vermelho,
depois de passarem pelo pequeno Mar de Sodoma, mas o fato de que o Mar
Morto fica 1.300 pés abaixo do Mar Vermelho fez abandonar esta teoria. O fato
de as águas do Jordão não terem uma saída não tornaria o Mar de Sodoma o
que hoje é o Mar Morto, visto que em cada 24 horas o Jordão despeja,
aproximadamente, 6.000.000 de toneladas de água, quantidade bastante para
manter as águas potáveis. A condição anormal deste mar só pode ser atribuída
à enorme quantidade de sal desenterrado pelo cataclismo. O célebre geologista
alemão, Leopold von Buch, diz que a montanha de sal que se encontra ao sul do
Mar Morto foi o resultado da catástrofe que acompanhou a descida de fogo e
enxofre. Uma coisa é evidente, antes deste acontecimento, o vale de Sidim era
um paraíso, tanto que sua fertilidade atraiu a atenção de Ló, porém hoje é uma
desolação. Nesta vida não poderemos saber exatamente como foi o cataclismo,
se é que foi mais tétrico do que a Bíblia diz, mas podemos descansar, certos de
que até o fim do mundo esse lugar continuará como uma testemunha
silenciosa, mas eloqüente, da ira de Deus contra os pecados daquele povo.
Abraão Contempla o Triste Drama da Destruição - 19:27-29
Logo de manhã cedo, Abraão levantou-se e foi ver o que tinha acontecido
à cidade condenada, e sua vista foi atraída para a coluna de fogo que subia da
terra. De Hebrorn, lugar mais alto, podia contemplar a triste sorte daquelas
cidades ímpias.
Segundo a informação do Dr. Robinson, no "Biblical Researches", Abraão
teve de andar umas 6 léguas de manhã, para poder apreciar se a cidade tinha
sido destruída ou não. Naquela noite não dormiu, pensando em Ló. E, logo que
amanheceu, procurou saber se na verdade teria havido ali pelo menos dez
justos. A cidade em chamas confirmou que não. Podemos imaginar sua ânsia a
respeito de Ló. O fumo subia como de uma fornalha. Nada nos diz o texto de
ele ter visto o fogo e o enxofre descer, mas nos diz que viu seus efeitos. Moisés
certamente não procurou nos dar os detalhes da cena, mas toda a nossa
imaginação, chamada para descrever o que seria o espetáculo, ainda pouco nos
diria daquela manifestação da ira divina.
Ló e Suas Duas Filhas
Ló pediu ao anjo para lhe permitir fugir para Zoar, em lugar de ficar nas
montanhas, mas pouco tempo permaneceu ali. O terremoto devia de tal
maneira ter abalado seus nervos, que não se sentiria seguro perto do lugar da
cena. Saiu e habitou numa caverna, com suas duas filhas.
Os modernos sábios dizem que a vida nas cavernas pertence ao homem
Pré-histórico, mas parece que não. Não faz mais de 3.870 anos que Ló morou
numa caverna; e, se ele lançou mão deste recurso, é porque a vida da caverna
era coisa vulgar em seus dias. E ele é quase nosso contemporâneo.
O que se passou neste lugar, entre Ló e suas duas filhas, bem pode ser chamado
de reflexo da vida moral das cidades destruídas. Não é aceitável que elas não
pudessem encontrar homens que salvassem a progênie. Um pecado leva a
outro, como um abismo chama outro abismo. Morando numa cidade corrupta,
Ló viu-se de repente arruinado e pobre. Por isso temeu morar mais com outros
povos, e procurar companheira para si e maridos para suas filhas. A vida de
ócio e desespero levou estas duas mulheres a cometerem mais um dos pecados
que tinham causado a destruição de sua terra. A Bíblia relata o caso como se
passou como sempre faz, e passa adiante, deixando às claras este grande crime.
Os descendentes dos dois filhos destas mulheres, os moabitas e os amonitas
foram sempre terríveis inimigos dos filhos de Israel.
Abraão Emigra para a Cidade de Gerar, e Nega de
Novo Sua Mulher - cap. 20
Era perfeitamente natural que, depois das experiências do capítulo
precedente, Abraão mudasse de lugar. Assim, deixando Hebrom, dirigiu-se,
pela estrada do Egito, para o sul, e habitou entre Cades (Cades Barnéia) e Sur.
Por algum tempo morou em Gerar, terra dos filisteus. Foi aí que Isaque nasceu.
Gerar era uma pequena cidade, pelo que aprendemos de 26:16. Os costumes
do povo, ainda que diferentes dos do Egito, fizeram-lhe o medo de perder a vida
por causa de sua mulher. É notável que uma mulher da idade de Sara ainda
fosse tão bela, de modo a ser recrutada para o rei. Entretanto o era. Doutra
forma, passaria despercebida entre muitas outras. Temendo ser morto por
causa dela, Abraão usou do mesmo expediente que tinha usado no Egito e disse
que ela era sua irmã. Não me detenho aqui, examinando o porquê desta
linguagem e sua plausibilidade, visto que já foi feito, quando descrevi o caso
idêntico no Egito. Abraão explicou (v. 12) que de fato ela era sua irmã, filha de
seu pai, mas não de sua mãe (veja notas sobre o capítulo 11:29-30). Deus
interveio, e Abimeleque não consumou sua cobiça. É interessante como este se
desculpa diante de Deus, de haver tomado Sara. Havia cometido uma falta
grande, mas, de acordo com os costumes da terra, logo dizia-se inocente.
Abimeleque é um título do rei da terra, e não um nome.
Em sua revelação a este rei pagão, Deus diz que seu servo era profeta e oraria
por ele para que não morresse. É a primeira vez que a palavra profeta ocorre na
Bíblia, não no sentido de predizer futuros eventos, mas no sentido de
intercessão. O rei, em regozijo pela salvação da sua vida, ofereceu a Abraão e a
Sara presentes e disse-lhes que sua terra estava às ordens deles, para nela
morarem.
A oferta que fez a Sara, por intermédio de Abraão, é difícil de explicar...
Eis que tenho dado a teu irmão mil moedas de prata, isto te serve para cobrir os
olhos do que estão contigo. O que significa a expressão "cobrir os olhos" tem
sido interpretado de muitas formas, e algumas pouco airosas. Alguns têm visto
neste ato uma paga a Sara por ter estado em sua casa por algum tempo. Mas o
que parece mais natural é que esta oferta foi uma forma de reparação feita por
Abimeleque, mediante a qual Abraão e sua mulher não considerariam mais a
falta. Gesenius, grande hebraísta alemão, traduz esta expressão como uma
expiação da culpa cometida e um reparo feito a ela. Esta foi a segunda vez que
Abraão mentiu dessa maneira, e seu filho Isaque mais tarde fez o mesmo, e na
mesma terra. A falta de confiança na providência divina leva um fiel servo de
Deus a cometer grandes faltas. Não devemos temer os homens, mas, sim, a
Deus.
CAP. XXII - NASCIMENTO E VIDA DE ISAQUE
(caps 21-25:23)
Sara Torna-se Mãe - 1-7
Começa aqui um novo capítulo na vida de Abraão.
O anjo Jeová tinha dito a Abraão: "Certamente tornarei a ti por este
tempo da vida, e eis que Sara tua mulher terá um filho." Chegou afinal o tempo
de se cumprir esta promessa e de o feliz casal ver realizadas as suas mais
queridas esperanças. O nome do menino era Isaque, "riso" ou "ele rirá", porque
sua mãe tinha rido quando Jeová lho prometeu. Após o nascimento da criança,
Sara disse: "Deus preparou riso para mim; e todo aquele que o ouvir se rirá por
minha causa." Isaque nasceu em Gerar, bastante longe da terra da promessa.
Depois de uma grande decepção na vida destes dois servos de Deus, ao terem
cometido a falta de se concertarem para negar sua relação conjugal, Jeová
visitou Sara, como tinha prometido, e o menino nasceu. Quantas vezes ficamos
impacientes sobre alguma coisa que esperamos receber e, como estes, também
pretendemos apressar a vinda do que esperamos! Para Deus, nunca é tarde. "O
Senhor visitou Sara, como tinha dito...". Ele promete, e não falta. Como diz o
prolóquio popular: "Quando Deus tarda, vem pelo caminho." Estava, pois,
satisfeito o supremo desejo de Abraão e realizada sua esperança de ter um
herdeiro. O nascimento do menino quando Abraão tinha cem anos de idade e
sua mulher tinha passado a idade de ser mãe foi um verdadeiro milagre, como
foi milagre tudo que Deus fizera mediante a promessa a seu servo. As bênçãos
da vida cristã são dádivas divinas e nem sequer podemos compreender como
nosso Pai Celestial tem tornado possível esta herança chegar até nós.
Oito dias após o nascimento foi o menino circuncidado de acordo com o pacto
feito entre Abraão e Deus (capítulo 17:10). Este ato era o selo de união entre a
família e Deus. A guarda deste rito era necessária para a confirmação de que a
promessa continuava de pé.
Depois de algum tempo foi o menino desmamado e Abraão fez uma
festa. É a primeira vez que ouvimos de uma festa na casa de uma família
religiosa. Bem podemos imaginar o esplendor dessa festa. Aquele que tinha
sido por tanto tempo a esperança da casa chegara afinal e acabava de passar
por um período importante na vida. Lembremo-nos de que Abraão estava
ainda em Gerar, portanto, era terra alheia, se é que ele até agora tinha terra
sua. Poucos amigos tinha, mas possuía uma formidável casa de servos, e foi
com eles que fez a festa.
Abimeleque talvez fosse convidado, mas isto é mera conjectura. Nesta mesma
festa houve um incidente desagradável. Enquanto Isaque era acariciado e feito
objeto de todos os cuidados, o filho de Agar zombava dele. Já grande bastante
para compreender que este menino o tinha vindo deserdar, ridicularizou a
criança. Não podemos saber de que maneira foi o insulto, mas parece ter sido
grave. Se Agar tinha sido conivente ou não, nada se nos diz, mas é provável que
o feito de Ismael tivesse sido inspirado por sua própria mãe. Não quero,
entretanto, afirmar, visto o silêncio das Escrituras sobre o assunto.
O temperamento de Sara parece ter sido um pouco irascível. Da primeira vez,
apenas se viu ridicularizada, maltratou a serva, que, se tinha culpa, maior ainda
era a de sua senhora. Agora, por uma ofensa, se grande ou pequena, não
sabemos, pede de novo a expulsão da serva. Parece que os nomes de "minha
princesa" e princesa", o último, dado por Deus mesmo, não condiziam muito
bem com o seu temperamento. Era mais bela do que amável. Orgulhosa de sua
posição de senhora e de mãe do herdeiro de todas as promessas, não pôde
tolerar uma fã, a do filho de seu próprio marido. Quão diferente era Abraão! O
pedido de sua mulher, de deitar fora a escrava e seu filho, recusou, e foi depois
que Deus lhe disse que desse ouvidos à sua mulher que se decidiu lançar fora
seu próprio filho. Difícil seria criar estes dois filhos com pretensões iguais a
herdeiros, sem que houvesse contínuas questões. Para evitar isto, a separação
talvez fosse ajuizada. Paulo cita estas palavras do Senhor em Gálatas, capítulo
4, dizendo que Sara e Agar são duas alegorias, representando dois concertos,
um, feito no Sinai, gerando para a servidão, outro, espiritual, em que Sara
representava a Jerusalém celestial. Todos os filhos de Deus têm de nascer
espiritualmente. Sem esta interpretação, muito nos faltaria para compreender
a transação. Ismael nasceu segundo a carne, isto é, veio ao mundo
naturalmente, como resultado da união de um homem e uma mulher; mas
Isaque veio por promessa. Não haveria união que, nas condições deste caso,
fizesse nascer um menino. Por isso ele é o tipo dos crentes que nascem
espiritualmente.
No dia seguinte, de manhã cedo, em obediência ao mandado divino, Abraão
chama sua serva e seu filho e, com tristeza, lhes diz que é preciso sair de casa. A
ordem das coisas exige este sacrifício e ele, amoroso como era, pede e o
exemplifica. Não temos nesta singela narrativa o que este grande homem disse
à sua serva e a seu filho, mas, se conhecemos o seu coração, podemos saber de
que ternura usou ao despedir estes dois entes, que se tinham tornado seus. Só
os interesses do Reino de seu Deus lhe poderiam dar coragem para aquele
sacrifício. Entretanto, para estes atos sempre estava pronto. Mais tarde,
encontramo-lo oferecendo o filho da promessa sobre o altar, em obediência a
seu Deus. A religião que dá forças para oferecermos a Deus o melhor que
temos e cumprir cada ordem, por mais difícil que seja, é uma religião de poder.
Felizmente, desta vez Deus lhe poupou a agonia de perder o seu filho, sendo
este substituído por um carneiro, que providencialmente tinha sido ali posto.
Diz-nos o verso 14 que Abraão pôs o odre d'água no ombro de Agar e tomou
pão e pôs a caminho o filho e sua mãe. A pobre não sabia para onde seguir.
Errante pelo deserto, acabou-se a água. De tudo ainda tinha, mas faltava-lhe o
precioso líquido. Nestes lugares se viaja dias e dias sem encontrar água. É de
supor que ela se dirigisse para o poço-de Beer-Laai-Rói, onde Jeová encontrara
da outra vez e lhe dissera que voltasse para sua senhora, mas, exausta da
viagem, ainda que não estava muito longe, deitou-se debaixo de uma árvore,
esperando morrer, pondo o menino a pouca distância. Pobre criatura! Deus
ouviu a voz do menino, que chorava com sede, certamente, e por se ver
sozinho, e o anjo de Deus bradou desde os céus a Agar e a consolou. Mandou
que pegasse no menino, porque dele faria uma grande nação. Abrindo seus
olhos, viu uma fonte; foi ali, encheu o odre e deu de beber ao moço. Pouco
sabemos da vida deste moço e de sua mãe depois desta ocasião. Diz-nos o
verso 20, que Deus era com ele e habitou o deserto e sua mãe lhe procurou
mulher da sua raça na terra do Egito. Nada mais.
Que teria feito Abraão depois de despedir a serva e seu filho? Tê-los-ia
esquecido? Não Creio. É pena que nada mais saibamos, mas, mesmo sem
especular, podemos dizer que não foram esquecidos. A Bíblia não gasta
palavras desnecessárias. Esse homem tinha um papel diferente do de Isaque, e
é com este, e não com aquele, que a Bíblia se preocupa. No capítulo 25:6,
Moisés, ao falar do testamento, nos diz que Abraão aos Filhos de suas
concubinas deu presentes. Decerto não deserdou Ismael, porque não sabemos
de outras concubinas, além de Agar e Quetura. Se deu presentes aos filhos de
concubinas, deve ter dado a Ismael também.
Deus cumpriu sua palavra a Agar, que de seu filho faria uma grande nação. O
deserto de Parã, onde ele morou, abrange toda a península do Sinai, território
muito maior do que a Palestina, e toda esta terra ainda hoje está em poder dos
seus descendentes, árabes e turcos.
Setenta e dois anos depois, encontramos Ismael já velho, a tomar parte
no enterramento de seu pai Abraão, juntamente com Isaque.
Pacto Feito entre Abimeleque e Abraão - 21:22-34
"Naquele mesmo tempo", pode referir-se ao casamento de Ismael ou a
todo o parágrafo precedente. Abraão estava morando perto de Gerar, capital
do reino de Abimeleque. Não sabemos do que houve entre o povo de Abraão e
o de Abimeleque, que fez sentir a este a necessidade de viver em bons termos
com aquele. Sabemos, sim, que o rei tinha plena confiança no Deus de Abraão e
em Abraão mesmo. Tinha conhecido sua prosperidade, a ponto de dizer: "Deus
é contigo em tudo que fazes." Esta convicção da segurança e da proteção
religiosa do servo de Deus foi o motivo da espontaneidade, por parte do rei
pagão, em fazer as pazes com o estrangeiro. Assim veio ele, e seu general, a
principal pessoa do reino, o primeiro ministro, para fazer um concerto com
Abraão. Sabemos que houve contendas entre os pastores de Abraão e os
pastores de Gerar. A água era escassa naquelas partes, não havia rios. Era
difícil cavar um poço e achar água, de modo que um poço era coisa de muita
importância. Abraão tinha cavado um poço e os servos de Abimeleque
tomaram-no violentamente. Abimeleque confessou ignorar isto, quando
Abraão reprovou o ato, por isso não podemos saber se esta foi a causa da vinda
do rei, ou não.
Pode ser que ele ignorasse o fato antes de a contenda chegar a seu
conhecimento e que, quando Abraão fez a recriminação, ele dissesse que não
tinha sabido que seus servos tivessem tomado o poço. O direito de propriedade
não é muito respeitado pelos orientais, a não ser que haja entre eles juramento.
Para que esta irregularidade não se reproduzisse, houve juramento entre
Abraão e Abimeleque e este juramento foi selado com a entrega de sete
animais, que serviriam de testemunhas.
O Dr. Robinson crê que esse poço que Abraão cavou ainda se pode ver hoje. Diz
ele que dos dois poços que encontrou nas imediações deste lugar, um deles é
cavado na rocha viva. "Mede 12 e meio pés de largura por 44 e meio de
profundidade, até a superfície da água e 16 pés foram cortados na rocha." Um
poço desses era difícil e não nos surpreenderíamos se por causa dele houvesse
contenda. Para evitar a continuação de contendas sobre quem tinha direito ao
poço, fizeram este concerto, mediante o qual a propriedade de Abraão ficava
reconhecida. Feito isto, Abimeleque e seu general voltaram a Gerar. Este lugar
passou a ser chamado Berseba - Poço do Juramento. Os árabes ainda mantêm
este nome para aquele lugar. Ali Abraão plantou uma tamargueira, e habitou
muitos dias. Talvez até próximo de mudar-se para Hebrom, onde Sara morreu
(23:2). A significação desta árvore ou como Almeida diz, "bosque", não
podemos saber. Os dicionários traduzem o termo hebraico por tamarindo, uma
pequena planta que cresce em muitas partes no Oriente. O fato é que ela deve
ter tido um grande significado, doutra não seria mencionada. Talvez fosse uma
prova de que aquele lugar lhe pertencia. Ainda hoje, no Brasil, em lugares onde
não se conhece a propriedade particular de certo território, o primeiro que ali
plantar uma árvore tem a preferência para propriedade. Neste mesmo lugar,
Abraão invocou a Deus, chamando por um novo nome: "Senhor Deus Eterno." É
o terceiro nome de Deus que encontramos até agora: (I) Elohim-Deus, (II) Jeová,
(III) Deus Eterno.
A última e Maior Prova de Fé de Abraão - cap. 22 O Oferecimento de Isaque -
22:1-14
Por quantas provas duras e terríveis não tinha passado este servo do
Senhor! Mas ainda outra, a mais terrível, o esperava. Foi primeiro provado
sobre se confiaria na promessa de ter um filho que fosse seu herdeiro. Agora
foi provado sobre se amaria mais a este filho do que a Deus. É uma prova que a
linguagem humana não pode analisar. Que amava muito o seu Deus, não temos
dúvida; e que amava muito o seu filho, hão podemos duvidar. Que estes dois
afetos não se confundiam, era certo também. O que restava saber era se, no
caso de ter de entregar seu filho por amor de Deus, sua obediência seria
bastante para essa entrega. Era, portanto, uma questão de saber qual o amor
que predominava na sua vida. Depois da prova, ficou indiscutível que a vontade
de seu Deus era coisa suprema em sua vida. Ele foi provado na coisa mais
querida da vida, e é só nas coisas mais queridas que nós podemos provar nossa
devoção a Deus, no caso de elas serem reclamadas. Muito se tem dito, pregado
e escrito sobre este acontecimento, mas ainda não se disse tudo. Esta história,
cada vez nova, continuará a ser relembrada enquanto o mundo continuar seu
curso. Mais uma coisa se destaca: é a imediata obediência de Abraão.
O verso 1 deste capítulo diz que "Deus experimentou Abraão". Esta é uma
tradução defeituosa. Deve ser "provou Abraão". A versão de Almeida diz que
Deus tentou Abraão, mas esta tradução é ainda mais defeituosa. Deus prova,
mas não tenta. A tentação visa a arruinar, mas a prova, a fortalecer. Deus falou
a Abraão depois destas coisas. Depois da experiência que tinha tido com
Abimeleque. Mal acaba de sair de uma dificuldade, outra lhe aparece. Deus
fez-se ouvir audivelmente, chamando Abraão e dando a ordem: "Toma teu filho,
o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali
em holocausto sobre um dos montes que te hei de mostrar." Tremenda ordem!
Como ficaria aquele pobre pai diante de uma ordem, a que ele não podia
desobedecer?... Seu espírito de prontidão pode ver-se nestas palavras:
"Levantou-se, pois, Abraão pela manhã cedo... " Certamente, o sono não tinha
sido muito naquela noite e, diante de uma ordem como esta, quanto mais
depressa a cumprisse melhor.
Albardou seus jumentos, tomou seus moços, lenha seca para queimar o
holocausto, tomou o filho que ia ser imolado, e foi. Tudo que podia ser
necessário para o sacrifício fez parte dos preparativos. Isaque devia ter notado
toda a preparação e a maneira desusada de ir fazer um sacrifício fora do altar da
família, mas nada perguntou até chegar o momento de ser oferecido o animal.
Nesta conjuntura, disposta a lenha, o archote na mão, sua curiosidade não
suportou mais, e perguntou pelo animal. O lugar do sacrifício foi o monte
Moriá, vinte léguas distante de Berseba. A viagem levou três dias. Foi sobre
este mesmo monte que anos depois foi erigido o templo de Salomão, único
lugar por Deus determinado para lugar de sacrifício.
( Entre outras referências dadas a este lugar, acrescentarei que foi justamente
ali que Salomão construiu o grande templo a Jeová. Muito tempo depois do
acontecimento aqui referido, Davi teve uma experiência bem desagradável. No
primeiro livro de Crônicas, 21:1-30, encontra-se o relato da compra da eira de
Ornã que era justamente o lugar em que Abraão ofereceu Isaque. É uma
admirável planície do lado oriental de Jerusalém olhando para o Monte das
Oliveiras. Depois da destruição do templo, os árabes construíram a sua grande
Mesquita de Omar, que ainda hoje ocupa grande parte da área. A pedra sobre a
qual Isaque foi estendido ocupa o centro da Mesquita. Está cercada, em toda
volta, por uma grade de ferro, de modo que não se pode entrar até ela. Tanto
judeus como árabes consideram aquele lugar sagrado, e a pedra também.
Sondem-se todos os episódios - a vinda de Abraão de tão longe a Moriá, o
incidente na vida de Davi e a construção do templo - para dar a este lugar um
caráter excepcional).
O sacrifício do filho amado de Abraão neste monte foi o tipo do sacrifício do
filho amado de Deus no mesmo lugar 1.900 anos depois. Como Isaque foi
levado para o lugar do sacrifício, levando às costas a lenha em que devia ser
posto o seu corpo, assim o eterno Jeová levou sua cruz, para sobre ela ser
imolado, oferecendo o único e final sacrifício pela redenção da humanidade. O
autor da Carta aos Hebreus (11:17) diz que, ainda que neste filho estivesse
assegurada a promessa, Abraão não trepidou em oferecê-lo em sacrifício,
reavendo-o por semelhança. Semelhança de quê? Semelhança de substituição.
O carneiro ali posto, preso pelas pontas, substitui Isaque, assim como o nosso
Salvador substitui todos os pecadores. Por meio do animal, foi Isaque redimido;
por meio de Cristo, o fomos nós. Jesus mesmo diz que Abraão exultou quando
viu o seu dia (de Cristo), e, conquanto não nos diga quando foi este dia, nenhum
outro, dentre todos os que viveu, foi mais real do que este quanto à futura
substituição que Jesus veio fazer. Do estado da alma de Abraão quanto à
exigência divina, nada sabemos; e, com receio de deslustrar este brilhante ato
de fé e obediência, prefiro nada dizer. Em Hebreus 11:18, diz o autor que
Abraão julgava ser Deus poderoso para ressuscitar dos mortos a Isaque, mas
não é claro se o autor cria que esta fosse de fato a esperança de Abraão. Ele
cria que Deus era poderoso para ressuscitar o filho imolado ou para lhe dar
outro pela mesma forma que tinha dado este ou que Deus teria qualquer outra
solução. Seja como for, o ato de Abraão foi a última, a mais estupenda prova de
fé que qualquer homem pôde dar. Foi a maior prova que Deus exigiu do seu
servo, e ele manteve-se à altura da provação divina.
Alguns críticos rejeitam, indignados, este fato e ridicularizam a religião hebraica,
comparando-a a outras religiões em que são oferecidos sacrifícios humanos. A
leitura atenciosa do trecho, porém, em que é narrada esta experiência não
deixa a menor dúvida de que o que Deus pedia não era o sacrifício de Isaque,
mas a prova da fé de Abraão. O Velho Testamento ignora os sacrifícios
humanos e deixa claramente subentendido que não são suficientes para pagar a
culpa do transgressor. Para substituir o homem defeituoso, Deus pede um
animal limpo, sem mácula, inocente, verdadeiro tipo do cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo.
Abraão foi levado até ao ponto extremo da prova, mas quando o braço estava
levantado para desferir o golpe no rapaz, Deus brada desde os céus e susta o
sacrifício, apontando ao mesmo tempo o carneiro que ali estava esperando para
substituir Isaque. O único sacrifício humano que Deus aceitou foi o de Seu
próprio Filho, porque era perfeito e imaculado.
Este lugar foi por Abraão chamado "Jeová-Jiré", que se traduz: "Deus
proverá." Como Deus proveu o carneiro para Abraão, assim proveu Seu Filho
unigênito para nos redimir da maldição eterna. Muito perdemos por não
apreciar devidamente a doutrina da Providência divina. Um carneiro que ali
teria ficado preso pelos chifres e que talvez se tivesse tresmalhado do rebanho
foi usado por Deus para a substituição de Isaque.
Nos momentos mais críticos da vida, Deus provê uma saída para nossas
dificuldades. O que precisamos é somente confiar. Ele terá cuidado de nós,
como diz o hino do cantor:
"Aflito e triste coração, Deus cuidará de ti; Por ti opera a sua mão, que
cuidará de ti".
Deus Renova as Promessas a Abraão - vv. 15-19
Então o Anjo de Jeová bradou a Abraão desde os céus pela segunda vez,
e disse: "Por mim mesmo tenho jurado, diz Jeová: porquanto fizeste esta ação e
não negaste o teu filho, o teu único".
Esta passagem importante é estudada por Paulo em suas cartas aos
Romanos, aos Gálatas e aos Hebreus. É a segunda vez que o Anjo de Jeová fala
desde os céus. A pessoa que falou a Abraão é a mesma que, falou a Agar.
Notemos que o Anjo Jeová ou de Jeová é aqui também identificado com Jeová
mesmo. Diz que jurou por si mesmo. A primeira vez que ele falou a Abraão
desde os céus, foi para conter a mão levantada de Abraão contra Isaque. Agora
que a oferta tinha sido feita, brada de novo, e afirmou que, em vista desta
obediência, oferecendo seu próprio filho, as bênçãos da promessa ficavam mais
uma vez prometidas e com juramento. Como diz o autor da Carta aos Hebreus:
" ... pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade de
seus conselhos aos herdeiros, se interpôs com juramento."
Como Abraão foi submetido à última prova de sua fé, assim Deus deu a última
palavra sobre a promessa. Como não tivesse outra pessoa em nome de quem
jurasse, jurou por si mesmo. A sempre recorrente promessa é que seria pai de
uma grande nação, acrescentando que sua.
Abraão Recebe Notícias de Sua Família Distante - vv. 20-24
Após terminar o sacrifício no monte Moriá, voltou Abraão com seu filho e
servos para Berseba, e diz-nos o texto que morou ali. "Depois destas coisas... "
Depois deste ato de obediência. Adam Clarc supõe que foi 15 anos depois do
acontecimento do parágrafo precedente que vieram as notícias da família de
Abraão. Tanto se pode dizer que foi 15 anos depois, como 20. Nós não
sabemos que idade tinha Isaque guando foi oferecido em sacrifício. O que
sabemos é que tinha quarenta anos quando casou. A linguagem parece indicar
que foi logo após o incidente no monte Moriá que as notícias de Padã-Arã
chegaram.
A razão deste incidente ser mencionado aqui só pode ser para mostrar onde
Isaque foi buscar sua mulher, conforme o capítulo seguinte. Naqueles tempos,
não era tão fácil como hoje receber notícias da família, e mesmo as condições
eram tão diferentes que cada um cuidava de sua própria casa, não se
preocupando muito com a casa dos parentes. O nascimento de filhos era
sempre recebido com bons augúrios e promissoras esperanças. Sobretudo na
família do patriarca, pois que tinha de, no futuro, decidir, em grande medida, a
sorte dos herdeiros da promessa.
Morte e Enterro de Sara - cap. 23:1-20
Por mais longa que seja a vida, sempre tem um fim. Depois de 127 anos
de existência cheia de experiências, desapontamentos e alegrias, Sara chegou
ao fim da viagem. O lugar de sua morte foi Hebrom, onde morou por mais de
20 anos. No último capítulo deixamos a família de Abraão em Gerar e Berseba,
onde teve lugar o concerto entre ele e Abimeleque, e onde Abraão cavou o
célebre poço que ainda hoje se pode ver. Como os dias de sua mulher se
apressassem para o fim, ou por qualquer outro motivo que nós ignoramos,
mudaram-se para Hebrom. A expressão "Abraão veio para carpi-la e chorar por
ela," parece sugerir que estava distante dela na hora da morte, mas a linguagem
tem outro significado. Quer dizer apenas que ele chorou a morte de sua
companheira. Quando se levantou do estado de abatimento e tristeza pela
morte daquela que tinha sido sua companheira por mais de 60 anos, dirigiu-se
aos filhos de Hete para comprar um pedaço de terra onde enterrar seu morto.
Os heteus eram uma das mais poderosas tribos daquele tempo. São ainda hoje
desconhecidos, a despeito de os museus estarem cheios de suas obras de arte e
de sua literatura indecifrável. Manre era aliado de Abraão e pertencia a essa
gente. Estavam de posse da terra e Abraão tinha sido estrangeiro entre eles,
ainda que tudo aquilo lhe pertencesse. O nome de Efrom, nesta conexão,
parece indicar que Manre, velho amigo e aliado de Abraão, tinha já morrido. Foi
a ele que Abraão se dirigiu para comprar a terra. A resposta deste homem
revela o alto conceito em que Abraão era tido entre eles. Ofereceu-lhe toda
terra que quisesse para enterrar seu morto, mas Abraão não quis a oferta. O
Dr. Carroll pensa que esta oferta de Efrom era mera cortesia, uma expressão e
costume muito peculiar dos latinos de dizer isto é nosso, seja casa, propriedade
etc., mas apenas como simples cortesia. Parece que neste caso Efrom não quis
mostrar simples cortesia, mas dar a terra que Abraão precisava. "O que é um
pedaço de terra no valor de 400 siclos de prata, entre ti e mim?" disse o heteu.
Para uma amizade tão velha, era realmente pouca coisa o que Abraão pedia;
mas ainda assim não aceitou a oferta, preferiu pagar. Há certas coisas que são
mais baratas pagando, do que aceitas de graça.
Cada siclo valia, naquele tempo, o equivalente a Cr$ 20,00 de nossa moeda.
Não havia dinheiro cunhado, mas sim o metal em bruto. Depois de recusar a
oferta, Abraão pesou os quatrocentos siclos de prata na presença dos filhos de
Hete, isto é, diante das testemunhas. Não havia entre eles o costume de
escrever contratos, ainda que na Babilônia havia contratos escritos de compra
ou venda ou de qualquer outra transação. A civilização destas tribos era mais
rudimentar e dispensava estas exigências de uma civilização elaborada. O maior
documento era o testemunho dos que tinham visto pesar o dinheiro da compra.
Notemos mais que todos os filhos de Hete, todos os moradores da cidade, eram
testemunhas deste contrato; portanto, valia por uma boa escritura. Uma
transação desta natureza em nossos dias seria anulada na primeira geração,
mas entre os orientais um contrato, mesmo oral, bem testemunhado, valia por
uma escritura lavrada em notas de qualquer tabelião. Abraão tomou conta do
campo com tudo que havia, inclusive uma caverna. As cavernas serviam tanto
para morada dos vivos, como dos mortos. Nesta caverna foi Sara sepultada,
com todas as honras de uma princesa. No mesmo lugar foi sepultado Jacó, a
seu pedido. Isaque, Léia, Rebeca e Abraão também. Era o mausoléu da família
abraâmica. O túmulo de
Abraão, segundo tradição árabe, ainda se pode ver em Hebroni, mas a primitiva
caverna deve ter sido muito alterada, de tal forma, que só se pode saber o lugar
em que estava.
Este incidente é de grande importância histórica sob o ponto de vista
comercial e étnico. Dá-nos a idéia da maneira de transacionar entre os antigos
e o modo como sua palavra valia por uma documentação. Revela-nos a
existência de um povo que os egípcios reconhecem como poderoso e perante
quem Abraão era tido como respeitável. Bem poderia alongar os comentários
sobre este importante relato, mas não quero tomar mais espaço do que o que
julgo absolutamente necessário. Sobre estes pormenores podem ser
examinados outros livros. Um bom livro é ,"The Babylonian and the Assyrian",
por Sayce; e outro, "Biblical Researches in Palestina", pelo Dr. Robinson
(infelizmente todos estes bons livros, estão em inglês).
Providências para o Casamento de Isaque - cap. 24:1-9
Este capítulo dá-nos uma das mais interessantes histórias sobre a
maneira de escolher uma esposa no Oriente. Abraão era já velho e não, queria
morrer sem deixar o seu único filho em condições seguras de continuar sua
geração. Havia muitas mulheres na terra de Canaã, onde morava, mas não
serviam para companheiras do herdeiro da promessa. Muito dependia o futuro
da história do povo da natureza do casamento. Assim, Abraão chamou seu servo
Eliézer, aquele mesmo que seria o sucessor e herdeiro, no caso de Abraão não
ter filhos, e pediu-lhe, com juramento, que não buscasse para Isaque mulher
dentre as filhas dos cananeus. Isaque estava com quarenta anos, idade
bastante para fazer sua própria escolha; não era este o costume do seu tempo,
e nem os interesses da casa requeriam que um negócio tão sério fosse a ele só
delegado.
Havia pouco, chegaram notícias da família de Abraão, que morava em Harã,
lugar onde ele mesmo morou por algum tempo, depois de vir de Ur dos Caldeus
e antes de descer à terra de Canaã. Ali morava Betuel, filho de Naor, seu irmão,
pessoas de índole e religião do patriarca. Convinha ir ali procurar a esposa de
Isaque. Eliézer replicou que a moça não ouviria o seu pedido, mas Abraão disse
que o Deus que o tinha tirado de sua terra e parentela mandaria seu anjo
adiante, para que fizesse prosperar o caminho de Eliézer.
De tal importância era este negócio, que Abraão pediu que Eliézer jurasse que
não tomaria mulher de qualquer outra raça. Velho e prestes a partir para a
eternidade, podendo mesmo morrer antes da volta de Eliézer, queria ter
certeza de que sua vontade seria cumprida depois de sua morte. A maneira de
juramento é nova para nós e não sabemos de outro juramento igual, a não ser o
de José com seu pai Jacó, de que não enterraria seu corpo no Egito. Talvez a
natureza destes juramentos particulares obedecessem a esta regra. Os de
natureza religiosa ou legal exigiam o sacrifício ou, como no caso de Abimeleque
e Abraão, a entrega de animais como testemunhas. Este caso era privado;
portanto, não obedecia a requerimentos de ordem pública. Só no caso de
recusa por parte da moça em seguir o enviado, estaria Eliézer livre do
juramento.
O casamento seria celebrado, mesmo na ausência do noivo, uma espécie de
casamento por procuração. A saída da noiva da casa do pai era consentida
mediante a celebração do casamento. Os noivos não tomavam parte na
transação, isso era privilégio dos pais.
Eliézer Parte para a Mesopotâmia, em Busca da Noiva - vv. 10-27
Na manhã seguinte, cedo ainda, tomando os presentes para a moça,
Eliézer partiu para a cidade de Naor. Chegando ali, fez que seus camelos
esperassem junto do poço onde as mulheres viriam sem falta, pela tarde, tirar
água. Havia ali fontes ou chafarizes onde se abastecia a cidade e o gado.
Chegando lá, Eliézer orou. Sua oração é uma das orações da providência. É um
bom método para ser bem sucedido em qualquer negócio deixar que Deus
mesmo o resolva.
Uma das primeiras moças a chegar ao poço foi Rebeca, prima de Isaque.
Com ela Eliézer fez como tinha pedido a Jeová e tudo saiu como tinha orado,
pelo que concluiu que esta era a escolhida para seu senhor Isaque. Depois da
experiência e de receber resposta a tudo que tinha pedido a Jeová, tirou um
anel e o pôs no dedo da jovem, em sinal de grande estima e reconhecimento, e
perguntou-lhe de quem era filha. A resposta foi uma bela surpresa para o velho
servidor. Betuel era conhecido seu de nome e em breve viu que a porta estava
aberta para a consumação do negócio. Perguntando se haveria alojamento
para ele e os camelos, ela respondeu que havia lugar e também palha para os
animais.
A família de Betuel parecia estar em boas condições financeiras, ainda que não
fosse rica, como podemos ver das condições que Jacó encontrou, quando para
lá foi. Naor tinha tido doze filhos, e ainda que tivesse uma regular fortuna, esta,
depois de partida entre todos, reduziria bastante a herança de cada filho. Mas,
ainda assim, o aspecto da narrativa denuncia as condições satisfatórias da casa.
Betuel parece que só tinha Rebeca e Labão.
Rebeca Anuncia a Vinda de Eliézer - vv. 28-33
De anel e pulseiras, correu a anunciar à sua mãe a vinda do servo de seu
parente. Labão correu para ver o homem e saber que outras surpresas teria
para dar. Interesseiro, como se mostrou mais tarde com Jacó, talvez esperasse
receber também presentes, como sua irmã. Ou porque fosse o irmão mais
velho e lhe competisse receber o hóspede, ou fosse pelas duas razões, veio
onde estava Eliézer e, chamando-o de "Homem de Jeová", mandou que
entrasse. Em toda esta narrativa, Betuel, o chefe da família, aparece como
personagem apagada; Labão é tudo. Parece que era realmente o diretor de
todos os negócios.
O apelido de Homem de Jeová dado a Eliézer revela o conhecimento que esta
família tinha do Deus verdadeiro, ainda que adorassem a outros deuses.
O Servo de Abraão Anuncia o Propósito de Sua Vinda - vv. 34-53
A descrição de Eliézer não exige comentários. É uma repetição do que já
sabemos ter se passado entre ele e Abraão, e entre ele e Rebeca, junto ao poço.
Nisto não tinha outro intento senão mostrar que Deus tinha conduzido todo
aquele negócio e que, portanto, a melhor coisa a fazer era aceitar a sua
proposta, porque assim cumpririam a vontade de Deus. De permeio com o seu
relato, mostrou que, no caso de a moça aceitar a proposta, fazia muito bom
negócio, porquanto o rapaz era rico e depositário de grandes promessas de
Deus. Em fazendo isto, salientava duas coisas importantes: Primeiro, que era
um casamento por todas as formas vantajoso; segundo, que o Deus de Abraão
era um Deus forte, a quem convinha servir. Outra coisa que referia, com
ênfase, era o fato de que Isaque era o único filho, e, portanto, único herdeiro.
Sabemos que Abraão teve outros filhos, a quem deu parte da fortuna, mas a
melhor e maior parte pertencia ao filho legítimo. Como sabemos, era sempre
motivo de alegria uma numerosa prole; mas isto acarretava a pequenez da
herança, ainda que a casa fosse das mais ricas.
Terminando o discurso, pergunta para que lado devia virar-se. Caso fosse aceita
a proposta, virar-se-ia para a direita, isto é, daria sua vinda por bem empregada;
se recusada, virar-se-ia para a esquerda, sinal de desapontamento. Uma
poética figura de linguagem.
Labão, o filho mais velho, toma a palavra e diz: "Este negócio procede de
Jeová. Rebeca está aí, toma-a e vai-te." Singularidade que Betuel, sendo o pai,
nada diz, e o filho mais velho é quem decide.
Não era costume, mas parece que Betuel era um desses homens de pouca
iniciativa, sendo o filho o gerente da casa. Josefo, historiador judeu, supõe que
o pai tinha morrido e que o Betuel aqui citado era um filho menor, e que, por
morte do pai Betuel, Labão tinha assumido a direção dos negócios paternos.
Realmente há lugar para esta suposição, porque, de acordo com os costumes
orientais, não é aceitável que o pai fique calado e o filho tome a frente. Mas a
suposição não tem base. Nada se pode aduzir em abono da hipótese da morte
de Betuel, pai de Rebeca, e de que o Betuel aqui citado seja um filho menor. O
mais natural é que Betuel, como ficou dito, era homem de fraca iniciativa e se
contentava com a orientação do filho.
Rebeca foi dada antes de ser consultada. Este era, e ainda é, o costume oriental
de dispor das filhas, sem que elas tenham o direito de escolher seus próprios
noivos. Rebeca, porém, teve oportunidade de dizer se queria ou não. Uma
consulta formal, porquanto o negócio estava feito e difícil seria para ela
desmancha-lo.
Uma vez realizado o negócio, Eliézer tirou as jóias que tinha trazido, deu-
as a Rebeca, a Labão e a sua mãe. Nada para o pai, Betuel. Não podemos
deixar de confessar nossa surpresa diante disto!
Duas lições nos oferece este trecho da história oriental. Labão reconheceu que
este negócio vinha de Deus. Teria ele conhecimento de Jeová como verdadeiro
Deus? A chamada de Abraão de Ur dos Caldeus devia ter criado um novo
espírito de culto naquela família, se é que não era família monoteísta. Os
deuses que mais tarde Raquel roubou talvez fossem simples deuses domésticos,
à semelhança dos penates dos romanos, e o verdadeiro deus da família fosse
Jeová. Fosse Terá um adorador de Jeová ou dos deuses de Ur, não resta dúvida
que suas idéias deviam ter mudado consideravelmente após a emigração, e sua
prole não podia deixar de reconhecer a Jeová como verdadeiro Deus. A outra
lição é a que nos dá Eliézer, adorando a Deus por ver realizado seu negócio com
tanta felicidade. Diante de todos, pôs o joelho em terra e adorou ao Senhor,
que tinha feito prosperar seu caminho.
A falta de reconhecimento e associação de Deus à vida contemporânea é a
causa de tanta formalidade. Deus é hoje servido semanalmente, e isto às vezes.
Durante os negócios, não procuramos a ajuda imprescindível que pode vir de
Deus. Assim a vida dos crentes se torna fria, formal e desassociada de Deus.
Concluído o Negócio. Eliézer Quer Voltar ao Seu Senhor - 24:54-61
Depois do banquete que se seguiu ao contrato de casamento, Eliézer
queria voltar de manhã cedo, e a despeito da insistência da família da noiva,
não quis demorar. Chamaram Rebeca, para lhe perguntar se queria ir. Ela
respondeu: Irei. Tão feliz estava o pobre servo com o sucesso da embaixada,
que não queria demorar em voltar para o seu amo. Aprontadas, todas as coisas
para a viagem, puseram-se a caminho, levando Rebeca suas aias ou amas. Isto
não significa que ela fosse rica, mas simplesmente que tinha suas próprias
escravas.
Encontro de Isaque com Rebeca - 24:62-67
Isaque devia estar impaciente pelo resultado da viagem. Não tinham as
facilidades de se comunicar como nós temos, de maneira que só a volta poderia
dizer do sucesso ou insucesso da missão.
Saindo para meditar, pela tarde, olhou, e eis que vinham camelos. Supôs,
sem demora, que era a volta do servo fiel que tinha ido buscar sua
companheira. Pensava se Jeová teria sido ou não benigno para com ele desta
vez, como das outras! Rebeca viu Isaque e, como não o conhecesse, perguntou
quem era. O servo lhe disse que era seu senhor. Então ela cobriu o rosto com o
véu. É certo que vinha viajando com o rosto descoberto, pois os companheiros
já se tinham tornado familiares. Demais, vinha encontrar seu esposo, que ainda
não conhecia, e não podia aparecer diante dele com o rosto descoberto.
Notamos que ela também desmontou do camelo. Não era próprio para uma
mulher acompanhar um homem na mesma posição. A mulher era inferior em
condição social. Provavelmente, toda a companhia a imitou e foram ao
encontro de lsaque a pé. Isaque tomou Rebeca, levou-a para a tenda, ela se
tornou sua esposa e assim foi ele confortado pela morte de sua mãe. Diz-nos
mais que ela o amou. Esta a simples história do casamento de dois personagens
bíblicos. Simples, elegante e dignificante. Um espécime dos costumes daquele
tempo. Não foi chamado o juiz, nem houve qualquer formalidade. A união de
duas pessoas que se amavam constituiu o casamento. O verdadeiro casamento
não é o que o juiz faz, mas o que é feito pelo amor. A intervenção do
magistrado é necessária para legalizar a união e dar à sociedade os meios de
garantia e estabilidade. Ninguém pode quebrar este preceito sem infringir um
dos mais importantes pontos em que se apoia a nossa estrutura social. Mas
naquele tempo a sociedade era rudimentar, e no caso vertente não havia
sociedade alguma, no sentido em que entendemos o termo. Era apenas uma
família, a de Abraão, porque as demais pertenciam a outras tribos e raças.
Merece especial menção e imitação o espírito religioso de Isaque. Diz-nos o
texto que ele foi meditar no campo, pela tarde, hora calma, quando o dia
começa a descambar para o seu ocaso. É a primeira vez que encontramos
mencionado este espírito de meditação. Bem se diz que Isaque era um
pensador. Não tanto intelectualmente, mas espiritualmente.
Abraão Toma Outra Mulher - Quetura, a Mulher de Abraão - 25:1-4
"E Abraão tomou outra mulher". Ou, como seria preferível traduzir:
"tinha tomado outra mulher." Calvino foi quem pela primeira vez pôs em dúvida
a tradução do verbo hebraico, pelo pretérito perfeito simples e deu a tradução
pelo mais que perfeito composto: "tinha tomado". A prova de que esta mulher
tinha sido tomada antes do nascimento de Isaque é que ele teve filhos dela, aos
quais deu presentes, juntamente com Ismael (Gênesis 25:6); e quando lhe foi
prometido Isaque considerou impossível o nascimento de um filho a um homem
de cem anos (17:17). Logo, não podia casar com Quetura depois da morte de
Sara, porque ela morreu muitos anos depois de Isaque nascer, sendo,
conseqüentemente, Abraão ainda muito mais velho. Esta mulher foi, pois,
tomada por Abraão muitos anos antes de Isaque nascer, e seus filhos são
homens ao tempo de repartir os bens da casa.
Paulo, em Romanos, diz que o corpo de Abraão já estava amortecido quando
Isaque nasceu e que só por interferência divina o menino poderia nascer. Se
Abraão casou depois da morte de Sara, ou seja, 40 a 50 anos depois de Isaque
nascer, não há lugar para milagre quanto ao nascimento deste menino, pois
que, se ele podia ter filhos cinqüenta anos depois, também os podia ter
cinqüenta anos antes. O defeito da tradução ressalta à primeira vista,
considerando que o casamento é mencionado em conexão com o aparecimento
de filhos crescidos, como se vê no verso 6. As traduções são sempre
defeituosas, e sobretudo o hebraico, que só tem dois tempos, como dizemos
em português: o imperfeito e o perfeito, e ambas estas formas são traduzíveis
pelo passado, presente e futuro, dependendo não do tempo, como dizemos,
porque o hebreu nada entendia de tempo, mas da natureza da ação. Demos
graças a Deus por podermos ler a sua revelação em nossa própria língua, mas
não esqueçamos que as traduções estão sujeitas a defeitos e erros como este
que estamos considerando.
A menção de Quetura e seus filhos aqui não tem outra razão de ser, senão a
disposição que Abraão fez de seus bens antes de morrer, dando tudo a Isaque e
aos filhos das concubinas presentes, isto é, a maior parte ao herdeiro único, mas
os outros filhos, tanto de Quetura como de Agar, receberam uma parte, ainda
que pequena, comparativamente.
O autor lembra-se de quando escreveu pela primeira vez esta história do
casamento de Abraão depois de tão velho e depois de haver perdido a
companheira de tantos anos, e da má impressão que teve da conduta de
Abraão, que era demasiadamente sensual e que muito pouco respeito teve para
com a companheira que o deixara. Hoje, porém, estas idéias não fazem mais
peso. Abraão perdeu a sua Sara e ficou só, aguardando a oportunidade de se
encontrar com ela.
O Testamento de Abraão - 25:5-6
Abraão não esperou pela morte para dividir seus bens. Ainda em vida
dispôs de tudo que tinha. Os testamentos quase sempre causam desgostos e
trazem desapontamentos; para que não sucedesse tal coisa, fez ele mesmo a
divisão.
O verso 5 diz que ele deu tudo a Isaque, e o verso 6, que deu presentes
aos filhos das concubinas e mandou-os embora da presença de Isaque. Em
outras palavras, não houve divisão: toda a casa pertencia ao filho herdeiro; aos
filhos das concubinas deu partes pequenas. Conforme a Lei de Moisés, o filho
mais velho tinha porção dobrada da herança (Dt. 21:17), mas como neste caso
só havia um filho legítimo, este teve direito a tudo. Entretanto, Abraão foi justo
para com os outros filhos, que, não tendo direito a nada, receberam presentes
do pai.
Quem eram estes filhos de concubinas? Ismael e os seis filhos de Quetura. Não
sabemos de nenhuma outra mulher que Abraão tivesse tido. Estes filhos estão
crescidos ao tempo da morte de Sara e ao tempo da partilha, que teve lugar
pouco tempo depois, o que vem em abono do fato de que Abraão não tomou
esta mulher depois da morte da esposa, mas a tinha tomado muitos anos antes.
Talvez a este tempo ela mesma já tivesse morrido. De qualquer forma não é
mencionada, mas simplesmente os filhos.
Todos estes filhos de Abraão, exceto Isaque, foram homens do campo. Todos se
tornaram numerosos em suas descendências. Os midianitas, de Midiã, e os
ismaelitas, de Ismael, tornaram-se um mesmo povo, sendo que os midianitas
deram o nome a uma grande extensão territorial, ao sul da península de Sinai,
até ao Golfo Pérsico e leste do Egito. Foi entre este povo que Moisés morou 40
anos, quando fugiu do Egito, e onde casou. No capítulo 37 estes midianitas
confundem-se com os ismaelitas e são um mesmo povo. Ou eles eram
ismaelitas, filhos de Ismael, e midianitas porque moravam em Midiã, ou a
distinção entre as duas tribos tinha quase desaparecido, de modo que
ismaelitas e midianitas eram uma e a mesma coisa. Ou outros filhos de Abraão
misturaram-se com os moabitas (Núm. 23:7; 25:1, 2, 17, 18; 31:2, 3).
Morte de Abraão - 25:7-11
Abraão morreu 35 anos depois do casamento de Isaque, seu filho. Há um
pouco de dificuldade para saber onde Abraão estava por ocasião do casamento
de Isaque, e na ocasião da morte de Sara. Sabemos que ela foi enterrada em
Hebrom, e parece que ele estava morando lá. Mas é bem possível que estivesse
morando em Berseba e se encontrasse em Hebrom ao tempo da morte de sua
mulher, ou a negócios, ou porque visse que se aproximava o fim dos dias de sua
boa companheira e quisesse enterrá-la na terra que ia herdar mais tarde. Não
sabemos o que aconteceu além da catástrofe de Sodoma, que fez Abraão deixar
o carvalho de Manre e estabelecer sua tenda em Berseba.
Abraão morreu "cheio de dias", isto é, satisfeito com sua vida. Difícil é uma
pessoa morrer satisfeita. É isso o que significa a expressão "cheio de dias".
A frase "foi recolhida a seus pais" é interessante e significativa. Expressa
diversas coisas:
1. A naturalidade da morte. É nosso privilégio viver com os nossos
queridos aqui no mundo e a morte é uma separação temporária, porque a eles
nos vamos reunir outra vez. Isto torna a morte mais amena. Moisés, o
admirável servo de Deus, recebeu a mesma ordem de reunir-se a seus povos,
como Arão, seu irmão, se tinha reunido a seus povos, parentes (Dt. 32:50). A
morte é horrível, mais pelo que dela pensamos, do que pelo que ela é. Cremos
que muito do horror que se tem à ida para a verdadeira morada de todos nós é
causada, primeiro, pelo fato de não haver esperança de coisa alguma na outra
vida, senão uma terrível expectação de sofrimento e incerteza, um mistério
insondável; em segundo lugar, por causa da educação religiosa que os povos
que não têm a Bíblia recebem. A morte dos personagens da Bíblia afigura-se-
nos a coisa mais natural deste mundo.
2. A certeza de que esta vida é simplesmente preparatória. Cumprido o tempo,
havemos de ir. Abraão, que tinha sido tão fiel, bem podia ter ficado aqui pelo
menos por mais algum tempo. Mas não. Cento e setenta e cinco anos já eram
quase demais. Se todos os homens pensassem nesta verdade da vida
preparatória, talvez cuidassem mais de se preparar nela.
3. A imortalidade da vida verdadeira. Esta vida é passageira, porém, não
é realmente a verdadeira vida, é apenas a introdução da vida. A vida real,
interminável, começa quando esta acaba. Os que crêem que com a morte cessa
tudo quanto a vida canta, para parafrasear o velho Camões, estão enganados.
Se tudo acabasse aqui, para que ir um homem reunir-se ao que não existe?
Seria dar uma esperança falsa na hora em que ela mais se aprecia. A Bíblia não
pode enganar-nos nesta singeleza e simplicidade de linguagem. Não há nada
artificioso aqui. Nós somos imortais em espírito. Disto a experiência humana
tem recebido inumeráveis provas.
4. A naturalidade da vida além. A Bíblia fala da outra vida com a mesma
naturalidade que nós falamos desta aqui. Tanto os santos quanto os ímpios são
desertos como tendo certas atividades, ou, pelo menos, como mantendo o
perfeito estado de consciência e vida. A morte é a abertura da porta para uma
vida que é tanto descritiva de um estado, como de um lugar. Podemos dizer
que o lugar é particular, enquanto que o estado é geral. Pouco importa onde é,
se em cima ou embaixo, muito alto ou muito baixo, é um lugar onde todos se
reúnem. Como aqui no mundo se congregam povos de todas as línguas e raças,
temperamentos e paixões, assim lá se reunirão no outro mundo. O lugar é uma
questão teológica que depende da atitude do homem para com seu Deus.
Como viveremos ali? Eis a pergunta. Trabalharemos, dormiremos todo o
tempo, plantaremos, segaremos, como viveremos? A minha opinião é que a
vida além será tanto mais natural quanto é possível imaginarmos naturalidade
numa vida de que apenas temos conhecimentos elementares, sem experiência.
Continuaremos a vida que começamos aqui, eis tudo.
Ismael e Isaque juntaram-se para enterrar o velho pai. É muito admirável isso.
Eles, que na vida do velho Abraão tinham sido irreconciliáveis, unem-se agora.
O que na vida não se pode unir une-se, muitas vezes, na morte. Ismael era a
esse tempo, possivelmente, o pai de uma inumerável prole, e, talvez, rico
também, de maneira que, em nada diferia de Isaque, senão de ser este o
herdeiro das promessas de Deus, o que para aquele, talvez, não seria muita
coisa, em vista de sua vida mais temporal do que espiritual.
Entretanto, convém lembrar que, neste transe, Ismael mostrou um bom
espírito. Havendo sido expulso de casa junto com sua mãe, não pesou esta
afronta na hora da morte de seu pai.
Assim, terminou uma grande vida. Entre os homens que são do nosso
conhecimento, nenhum se apresenta com credenciais mais nobres e elevadas
do que este. Sua vida continua há três mil e tantos anos a
inspirar vidas. Sua religião e fidelidade a seu Deus continuarão por toda a
eternidade. Viver é muito bom, mas viver bem é muito melhor Que
contribuição estamos dando aos nossos semelhantes? Para que estará servindo
a nossa vida? Eis aqui perguntas que bem merecem um pouco de nossa
meditação.
Não somente a vida de Abraão, mas a religião que fez tal vida merece ser
ponderada. Uma vida nunca irá acima do ideal que a inspira, como a água
nunca sobe acima do seu manancial. Esta vida foi inspirada por grandes ideais,
mas todos saíram da religião. Pensemos como quisermos da religião, mas
nunca poderemos apagar do mapa da vida o fato relevante de que ela é que
inspira e engrandece. Ela enche a vida de esperança e a eternidade de consolo.
Gerações de Ismael - 25:12-18
O livro de Gênesis é o livro das gerações. Moisés tinha em mira este
esboço das gerações dos principais personagens quando escreveu Gênesis. Só
assim se pode entender este grande livro.
Ainda que Ismael não exercesse grande papel na formação da família
eleita, todavia, foi-lhe consignada uma bela página na história do povo de Deus.
Conforme a promessa de Deus a Agar e a Abraão mesmo, Ismael foi pai
de muitas nações. Doze de seus filhos e príncipes são aqui mencionados. Como
já foi notado noutra parte, esta geração foi mais numerosa e é mais vasta que a
de Isaque. Muitos destes nomes perderam-se no curso da História, mas os
descendentes aí estão espalhados por toda a Arábia e todo o Egito, divididos em
árabes e outras raças menores.
Gerações de Isaque - 25:19-23
Isaque era de 40 anos de idade quando casou, e os seus dois filhos
nasceram 20 anos depois do casamento, portanto, quando tinha 60 anos.
Abraão tinha 100 anos, quando Isaque nasceu, 140 quando ele casou e 160
quando Esaú é Jacó nasceram. Morreu com 175 anos, aos 15 anos de idade dos
filhos de Isaque. Pôde, assim, ver os dois netos já bem crescidos, e suas
aspirações sempre realizadas. O nascimento destes dois meninos devia ter-lhe
feito a diversidade de natureza dos povos seus descendentes. Para seu
desapontamento e de Isaque, Rebeca era estéril e foi depois de instantes
orações que ela concebeu. A Bíblia menciona muitos casos de esterilidade, e
todos eles ministram grandes lições da Providência divina. Os filhos eram, e
ainda são, para os judeus e árabes a melhor prova do favor divino e a maior
felicidade. Nisto são bem diferentes de muitos povos modernos, que inventam
tudo para evitar a progênie. Entretanto, não sabemos se Isaque lançou mão do
expediente de Sara, para cumprir a promessa. A lição teria aproveitado bem a
todos, e melhor foi esperar que Aquele que tinha sido fiel noutra coisa o fosse
também nesta. Ainda, durante o período da gravidez, Rebeca notou que algo
de anormal se passava dentro de si, o que a preocupou seriamente, a ponto de
perguntar se valia a pena viver. Inquirindo ao Senhor sobre o que seria aquilo,
respondeu que duas nações diferentes estavam dentro dela, e ao mesmo tempo
anunciou a inversão do costume de que o menor serviria ao maior. Este
problema tem dado muito o que pensar aos teólogos, mas Deus ainda continua
com a palavra, para dizer que tem poder de revogar as tradições e costumes. O
mais velho era o herdeiro da herança paterna, porém, agora, seria o contrário.
A doutrina da eleição divina ou da predestinação é um consolo e uma
segurança, ainda que não se possa compreender. Sobre este incidente Paulo
baseia grande parte de sua Carta aos Romanos.
Os jacobitas e os esauítas têm sido sempre terríveis inimigos, a despeito de
serem irmãos. Dois irmãos de temperamentos fundamentalmente diferentes e
de desejos opostos. Toda a sua história revela este espírito de aversão e de
interesses diferentes. Esaú, carnal e mundano; Jacó, espiritual, caseiro e
amoroso.
Como foi que ela, Rebeca, consultou a Jeová não sabemos; talvez Abraão
mesmo, que era profeta, inquirisse a respeito, como o fez em muitas outras
ocasiões.
Em parte alguma podemos encontrar melhor material para biografias do
que entre estes caracteres: Abraão, Isaque, Esaú, Jacó. São verdadeiros
contrastes. Entretanto, eram homens com quem Deus estava procurando
começar seu povo. Isto nos ajuda a simpatizar com a diversidade de
temperamentos e espíritos existente em nossas igrejas e ver que foi com esse
mesmo material que Deus sempre trabalhou.
CAP. XXIII - NASCIMENTO DE ESAÚ E JACÓ
(25:24-27)
O nascimento destes dois meninos é um evento de marcada importância
na história, tanto da família abraâmica, quanto da nação israelita ou no restante
de toda a história bíblica. O Novo Testamento consigna uma boa parte de seu
ensino, sob o ponto de vista da salvação, analogamente a estes dois meninos. A
primeira coisa digna de menção foi o seu nascimento gêmeo. Mas não somente
isto, a ordem de primogenitura foi invertida e o mais moço tomou o lugar do
mais velho. Como diz Deus adiante: "Aborreci Esaú e amei Jacó." Conforme o
costume patriarcal, o filho mais velho era o herdeiro dos privilégios paternos e
herdeiro da maior parte dos bens materiais. Esaú vendeu sua primogenitura
mais tarde e tornou plausível o próprio ato de Deus; mas o decreto veio de
cima, sendo ele apenas instrumento para legalização ou conformação do plano
divino. Ainda que Deus tenha em suas mãos o governo e o destino dos homens,
todavia, faz sempre o que lhe apraz, que seus atos se revistam de uma
moralidade conforme aos costumes humanos.
O temperamento dos dois irmãos foi fundamentalmente diferente. Esaú
gostava do campo, da caça; Jacó amava a casa, era caseiro. Era de costumes e
tendências mais simples. Os árabes têm uma tradição que dá Jacó como
homem pio, honesto, simples, enquanto Esaú é considerado um estouvado, sem
afeto, rude e grosseiro. Mas parece que Esaú era pelo menos tão honesto como
Jacó e muito mais franco do que ele. Quando teve fome, vendeu a
primogenitura por um prato de lentilhas. Nisto foi simples e ao mesmo tempo
venal. Jacó foi astuto e matreiro. Paciente, sempre que se tratava de seus
interesses, nunca deixava que o tempo passasse sem tirar partido de sua
paciência. Veja-se o seu caso com Labão.
Isaque gostava de Esaú, de seu temperamento e franqueza, enquanto que
Rebeca gostava de Jacó. Assim, estava a casa dividida entre os dois filhos. Esse
espírito de mau governo doméstico causou, não pouco dissabores, tanto aos
dois filhos como aos pais.
Esaú Vende a Sua Primogenitura a Jacó - 25:29-34
Deus tinha já declarado que o mais velho serviria ao mais moço. Os pais
sabiam disto, e é possível que os próprios filhos o soubessem também e, quem
sabe, foi isto que criou o espírito de rivalidade entre eles. Parece que Jacó
estava de prontidão, esperando uma oportunidade para lançar mão da
primogenitura do irmão. Um dia, Esaú veio do campo com fome e Jacó estava
preparando um guisado de lentilhas que Esaú muito apreciava. Despertado o
seu apetite e açulado o seu espírito glutão, não trepidou em oferecer tudo por
um pouco daquele manjar. Estas lentilhas, ou o que quer que seja que fosse de
vegetais, tinham, ao ser cozinhadas, cor vermelha. Por causa disto, ficou Esaú
chamando-se Edom, Vermelho. Jacó, que estava esperando uma oportunidade
para lançar mão da primogenitura do irmão, retorquiu que sim; dar-lhe-ia o
prato de lentilhas, contanto que Esaú lhe vendesse sua primogenitura. Esaú,
loucamente, fez a venda em troca de um pouco de comida. Interessante foi o
argumento de Esaú: "Eis que estou a ponto, de morrer, e para que me servirá
logo a primogenitura?" E Jacó, porém, foi ainda mais longe e exigiu que Esaú
jurasse. E Esaú jurou que lhe vendia a primogenitura. Não quero ser juiz de
nenhum deles, mas Esaú pecou porque trocou as coisas espirituais, ou pelo
menos seus direitos domésticos e mesmo divinos, por um guisado vermelho;
Jacó pecou porque se aproveitou da fome e da fraqueza do irmão, para lhe
arrancar o direito de primogenitura. É bem possível que Esaú não levasse a sério
a transação, porque mais tarde ficou irado quando se viu roubado na bênção
paterna.
Que papel teria Rebeca desempenhado nesta transação? A Bíblia silencia neste
ponto. Descreve com as cores mais vivas a venda das coisas santas, e o faz para
nossa lição, e passa adiante. Rebeca era a mentora de Jacó e não será falta
grave atribuir-lhe co-participação neste negócio. O velho Isaque, sim, estava
alheio a tudo. Qualquer que tenha sido a atitude de Rebeca e o valor do papel
do glutão Esaú foi isto usado por Deus para executar seus desígnios. Quão
admiráveis são os caminhos do Senhor! Deus tinha amado Jacó e aborrecido
Esaú, e este fato foi a causa dessas transações familiares.
A Fome em Canaã e a Emigração de Isaque - 26:1-5
Como já foi notado noutra parte, a Palestina e os países circunvizinhos
são de vez em quando assaltados por terríveis secas, que sempre terminam
criando terríveis situações. Foi uma destas ocasiões que fez Jacó e Abraão irem
ao Egito, e Isaque, a Gerar.
Isaque partiu com destino ao Egito, mas Jeová embargou-lhe o passo e
lhe ordenou que ficasse em Gerar, à pequena distância de Berseba, onde
morou, repetindo Deus a antiga Promessa. O rei da terra era Abimeleque, o
mesmo nome do rei no tempo de Abraão. Conclui-se que Abimeleque era título
do rei do país, bem Como Faraó era título do rei do Egito.
A data da Partida de Isaque de Berseba não sabemos, mas, com toda certeza, foi
muito antes do negócio discutido no último capítulo, sobre a venda da
Primogenitura por Parte de Esaú. Sabemos que Jacó pode enganar Isaque,
porque este era velho e cego, condições estas que tornam impraticável uma
viagem a País estranho. Naturalmente, a viagem foi feita poucos anos depois da
morte de Abraão. A cronologia mais fiel que temos faz datar este evento como
tendo ocorrido no ano 1805 a.C., quando Isaque tinha 93 anos e Rebeca 73, mas
isto não está muito de acordo com a história dos versos 6-9, em que Rebeca é
ainda formosa. Sara também o era. Não há dúvida de que essa viagem se
verificou muito antes do fato narrado no capítulo precedente. A cronologia,
além de ser uma coisa difícil, não era muito conhecida nesse tempo, nem muito
seguida. A preocupação do escritor era dar os fatos como se tinham passado,
sem se preocupar com as datas, Os próprios Evangelhos não são rigorosamente
cronológicos. Dão-nos a vida de Jesus qual se desdobrou, sem a preocupação
de precedência deste ou daquele evento. Este foi o caso com Moisés também.
Relatou o que se tinha passado na vida de cada personagem, sem a
preocupação de ordem dos acontecimentos. Este capítulo, sem a menor
dúvida, precedeu o anterior. Esta viagem foi feita ou antes do nascimento de
Esaú e Jacó, portanto, antes de Isaque ter 60 anos e Rebeca ter 40 anos, ou
poucos anos depois do nascimento dos dois gêmeos.
Permanência de Isaque em Gerar - 26:6-11
Isaque passou Pela mesma experiência de Abraão seu Pai, negando que
Rebeca era sua mulher. No caso de Abraão, houve entendimento prévio entre
ele e sua mulher, sobre a relação de um para o outro, mas no caso de Isaque,
conforme o verso 8, parece que não. Eles moravam havia muito na terra de
Gerar, quando a beleza de Rebeca começou a atrair a atenção do povo. Pelo
menos, moravam já havia muito na terra, antes de o rei ser atraído para a
formosa Rebeca. Eram conhecidos como irmãos e, se não fora o estar Isaque
brincando com Rebeca um dia, teriam passado por tal. O verso 7 diz que
quando os homens do lugar perguntaram quem era Rebeca, Isaque disse ser sua
irmã, com medo de ser morto e sua mulher tomada. Assim passou muito
tempo, até que Abimeleque olhando da janela e vendo-os brincar, desconfiou
que fossem casados. Abimeleque mesmo os tinha conhecido por irmãos, a
ponto de perguntar se de fato eram irmãos ou eram casados. Isaque foi
honesto em confessar a falta e dar as razões; o rei o foi também em reprovar a
falsidade cometida, dizendo que, logo que eram irmãos, facilmente um da terra
a teria tomado por mulher e traria. assim, uma grave falta sobre o País. Este
Abimeleque seria filho do outro Abimeleque do tempo de Abraão e estaria a par
do que tinha acontecido e da proteção que o Deus daqueles estrangeiros
dispensava aos seus, a ponto de temer que uma falta grave fosse cometida e
trouxesse perturbação ao Estado. Em outras palavras, ou Abimeleque temia o
pecado do adultério, por medo do castigo de Deus, ou então o padrão de moral
era bastante elevado a ponto de estes pecados serem pouco freqüentes. Mas,
parece que este não era o caso. A proteção de Deus tinha tornado os nossos
personagens imunes diante daqueles pagãos.
A similaridade destas duas histórias, de Abraão e Isaque, no mesmo lugar, tem
levado alguns críticos a supor que temos aqui dois documentos diferentes
relatando uma mesma história, mas não há a menor necessidade de recorrer a
este expediente. Os nomes são diferentes, tanto das mulheres como dos
homens que tomaram parte nestas cenas.
O lugar e o nome do rei são os mesmos, mas quanto ao lugar não deve
haver dificuldade, visto ser geograficamente o mais acessível, tanto a Abraão
como a seu filho. O mesmo nome do rei não resta dúvida de que era um título e
não um nome pessoal. Podemos mesmo dizer que Isaque repetiu o que seu pai
tinha feito, fato de que ele certamente tinha conhecimento. Sirva-nos a
pequena lição de fé que tanto um como outro mostraram na hora do perigo.
A Prosperidade de Isaque e a Inveja dos Filisteus - 26:12-25
Depois da experiência dos últimos versículos, Isaque dedicou-se à
agricultura e criação com tanto mais fervor quanto Deus era grandemente com
ele. Por algum tempo os habitantes da terra não o molestaram e, pelo que nos
diz o verso 11, tinha até toda a proteção do próprio rei. Mas a inveja não
conhece direitos, e chegou o dia da contenda. Abraão, quando ali tinha estado,
cavara uns poços que depois foram entulhados pelos filisteus. Isaque cavou de
novo estes poços, mas isto deu nas vistas do rei, que pediu a Isaque se retirar,
visto ser mais poderoso que ele mesmo, pretexto, talvez, para expulsar aquele
que tempos antes tinha protegido. Isaque saiu da cidade e foi habitar no vale
de Gerar, perto dela, e ali desentulhou outros poços que Abraão tinha cavado e
que os filisteus tinham entulhado. E a contenda continuou. Os servos de
Abimeleque tomaram os poços e Isaque teve de mudar seu acampamento mais
para o norte. Cavou outro poço, mas teve ainda de abandoná-lo por causa da
contenda, até que, finalmente, cavou um que chamou Rebote que significa
espaço. Afinal tinha encontrado um lugar de paz.
Isaque foi o homem que mais poços cavou durante sua vida. Isto revela seu
grande desenvolvimento comercial. Os poços eram necessários para dar de
beber aos rebanhos, em que consistia a principal riqueza daquele tempo. Os
hebreus chamavam às águas nascentes dos poços "água vivas", tal era o valor
que tinham na sua vida. Há poucos rios naquelas paragens e é mesmo difícil
cavar um poço e encontrar água; daí o seu grande valor e o motivo das
contendas. Alguns destes poços era simples cisternas para coletar as águas
pluviais.
Depois de alguns anos em Gerar e no Vale de Gerar, mudou de acampamento
para Berseba, lugar bastante familiar a todos os estudantes de Gênesis. Ali,
Abraão morou muito tempo, talvez até a morte de Sara. Numa noite Jeová lhe
apareceu e renovou as promessas familiares de que o abençoaria e o faria
prosperar grandemente. Ao mesmo tempo lhe oferecia proteção contra os
inimigos filisteus. Nas horas de maior apreensão na vida dos servos de Deus,
Jeová aparece para confortá-los e repetir as solenes promessas. Em resposta a
esta aparição, Isaque erige um altar e invoca o nome de Jeová. Este era o
costume, sempre que Deus aparecia a qualquer patriarca.
Não sabemos o que motivou a mudança repentina de Isaque do Vale de Gerar
para Berseba, mas é provável que algum incidente tenha ocorrido entre ele e os
filisteus. Não tendo espírito de contenda, preferia abandonar suas posições a
viver em guerra. Assim, deixou os poços e sua terra cultivada e foi à sua antiga
residência. Aqui, cavou novamente um poço, perto do altar, para servir ao
ritual do sacrifício. É significativo que nesse lugar não houvesse poços,
porquanto Abraão tinha morado ali tanto tempo! Ou ele precisava de mais
este, ou os que Abraão tinha cavado tinham sido tomados por alguma tribo da
terra. Pela mesma razão, construiu um altar, parecendo que não havia altar no
lugar, ou que Abraão não tinha o costume de erigir altares onde quer que
pousasse, o que não é admissível. Neste caso, ou o altar estava arruinado, e foi
reedificado, ou o lugar ficava distante daquele em que seu pai morreu.
Concerto entre Abimeleque e Isaque em Berseba - 26:26-33
Noventa anos, aproximadamente, tinham passado desde que esta
mesma cena se passara entre Abraão e Abimeleque. Não é crível que este
Abimeleque seja o mesmo que fez concerto com Abraão, pois parecia ser
bastante velho naquele tempo. Ficol, capitão do exército de Abimeleque, ainda
vive e ainda é capitão do exército de Abimeleque II. E outro novo personagem
aparece nesta cena, possivelmente conselheiro do rei.
Isaque ficou receoso desta visita e a recebeu mesmo com indiferença,
alegando que eles o tinham expulsado grosseiramente, e agora vinham visitá-lo.
Isto nos mostra que Isaque deixou o Vale de Gerar por causa de violência por
parte dos filisteus, ainda que a Bíblia nada diga a respeito.
A vinda de Abimeleque foi um estratagema político, e nada mais. Não temia a
Jeová, mas reconhecia que aqueles a quem Ele protegia eram de merecer
respeito. Portanto, seria falta de tino ter um inimigo vizinho que tinha como
Deus um que fazia sentir seu poder e proteção na vida de seus adoradores. Foi
este o motivo alegado por Abimeleque: "Vimos bem que Jeová é contigo, e
dissemos: Haja agora juramento entre nós a ti; e façamos aliança contigo ...".
Foi, pois, o medo do Deus de Isaque que fez vir este rei a procurá-lo. Depois de
um discurso elogioso, Abimeleque terminou dizendo: "Tu és agora o bendito de
Jeová". Conquanto não adorasse a Jeová, rendeu louvor e respeito ao seu servo.
Assim, houve concerto entre estes dois poderosos homens. Isaque fez um
banquete em que, certamente, entrou a parte sacrificial como testemunho do
concerto feito e, depois de jurarem reciprocamente, os despediu em paz.
Nesta mesma ocasião chegaram os servos, anunciando que tinham cavado um
poço e tinham achado água. A este poço chamaram pelo nome de Seba, que
significa juramento. Abraão tinha cavado ali mesmo um poço e tinha lhe dado o
mesmo nome, devido ao juramento que tinha feito com Abimeleque. Alguém
pensa que este poço era o mesmo que Abraão tinha cavado e que os filisteus
tinham enchido de terra. Pode ser assim, ou não. Presentemente, há dois
poços antiquíssimos em Berseba a uns duzentos e cinqüenta metros distantes
um do outro, o maior dos quais tem doze e meio pés de diâmetro. O Dr.
Robinson supõe que o maior deles seja o de Abraão. Neste caso, o poço que os
servos de Isaque cavaram foi um novo, e não o de Abraão que tinham
desentulhado. O Dr. Robinson procurou diligentemente o poço chamado por
Isaque Reobote, mas não o achou. Entretanto, este poço foi encontrado
posteriormente a 16 milhas ao sul de Berseba, e ainda conserva o mesmo nome
em árabe. O nome próprio em árabe é: er-Ru hai beh, conforme o Dicionário
Bíblico de Schaff.
Por algum tempo, Isaque parece ter gozado calma e paz, até que Esaú casou
com duas mulheres hetéias. Se houve intervalo entre os dois casamentos não
se pode dizer, mas pelo menos apresentou as duas mulheres a Isaque ao
mesmo tempo. Este ato seria um ultraje à crença e programa de seu pai, mas
Esaú era homem a quem pouco importavam interesses religiosos ou
domésticos, contanto que conseguisse aumentar seu prestígio e grandeza.
Tanto Isaque quanto sua mulher se afligiram com este casamento e viram que o
filho estava inteiramente divorciado do plano divino de ser o continuador das
promessas paternas.
Se outra coisa não tivesse havido, este ato, por parte de Esaú, era suficiente
para lhe fazer perder o direito de primogenitura, visto que se afastava dos
costumes familiares e introduzia na família raças inimigas e da linhagem dos
pecadores da terra que, por causa dos seus pecados, seriam mais tarde
condenados à destruição, e, com alianças desta natureza, seria impossível
executar o programa divino. Nada há que mais ponha em perigo nossa vida e
futuro espiritual do que as alianças com o mundo.
Jacó Tira Fraudulentamente a Bênção de Esaú - 27:1-29
O último verso do capítulo precedente dá-nos o casamento de Esaú com
as mulheres hetéias. Conforme alguns comentadores, Esaú tinha vendido sua
primogenitura a Jacó um ano antes do casamento, ou seja, quando tinha 39
anos. Neste caso, Jacó fugiu para Padã-Arã quando tinha 40 anos de idade,
voltando dali aos 60. Com 139 anos (cap. 47:3) desceu ao Egito, e fica assim um
período de 70 anos de sua vida sem qualquer notícia de suas atividades. Adam
Clark coloca o casamento de Esaú no ano 1804 a.C., e a ocasião do roubo da
primogenitura no ano 1779 a.C., ou seja, 25 anos depois do casamento de Esaú,
quando os dois irmãos tinham 65 anos. Conforme a cronologia comum, Esaú
teria 77 anos agora, tendo vendido a primogenitura 44 anos antes, quando
tinha 33 anos.
Isaque havia chegado ao ponto culminante de suas atividades; cego, paralítico e
julgando morrer de um momento para outro, achou conveniente dispor os
negócios, ou, diríamos hoje, fazer seu testamento. Conforme o costume
patriarcal, toda a casa pertencia a Esaú, filho mais velho; a Jacó tocava qualquer
parte que o pai quisesse dar como presente. Portanto, chamou Esaú e ordenou-
lhe que fosse ao campo apanhar uma caça e lhe preparasse um guisado do jeito
que ele gostava. Parece que o fim era, como diz o verso 4, alegrar o coração do
velho pai, para que, na transmissão do direito paterno e bênção patriarcal, a
própria alma de Isaque como que se derramasse sobre a vida do filho
primogênito. Pelo menos não vemos que este ato fosse praticado por Abraão e
repetido por Jacó mais tarde.
Os movimentos, palavras e atos de Isaque eram cuidadosamente vigiados por
sua mulher, que queria inverter os papéis, e fazer recair a bênção de Esaú em
favor do seu filho predileto, Jacó. Assim que ouviu a conversação e apenas Esaú
saiu para o campo, chamou Jacó e relatou que havia chegado o dia de decidir
sua sorte. Não havia tempo a perder. Esaú em breve estaria de volta.
Portanto, convinha matar um dos animais domésticos e sem perda de tempo
preparar o guisado e apresentar-se a Isaque para receber a bênção. Às palavras
de Rebeca, Jacó responde com uma solução pronta, como se todos estes planos
estivessem amadurecidos em sua mente. Rebeca era mulher de ação e de
espírito imaginativo. Seja qual for o juízo que se faça sobre seu caráter, não
resta dúvida alguma em relação ao seu talento, e sua falta pode ser levada à
conta da simpatia e afeto que Jacó devotava a seus pais, bem como sua
fidelidade às tradições da família e repulsa à vida mundana de Esaú. Pelo que
aprendemos na Bíblia, Deus mesmo não se agradou da vida de Esaú, pelo que o
aborreceu e amou Jacó.
Jacó sujeitou-se a tudo que sua mãe quis fazer: vestiu as roupas de Esaú, cobriu
o pescoço e as mãos com peles de cabras e, com o guisado na mão, apresentou-
se a Isaque. Este desconfiou que tão depressa o filho tivesse matado a caça e
preparado o guisado, mas uma mentirazinha desfez a dúvida do velho, dizendo
Jacó que Deus tinha mandado a caça ao seu encontro. Talvez esta provisão
fosse também de Rebeca. A segunda dúvida foi sobre a voz. Apalpando, viu
que era Esaú, mas a voz era de Jacó. Quem poderia, porém, tirar esta dúvida e
confirmar a suspeita? Perguntando Isaque se era mesmo Esaú, respondeu-lhe
logo Jacó: Eu sou. A comprovação foi o cheiro do rapaz; cheirando os vestidos
de Esaú, reconheceu que de fato eram do filho amado e, sem hesitação,
concedeu-lhe a bênção.
Esta bênção contém três elementos importantes:
1. Prosperidade material: abundância de tudo que há na terra.
2. Domínio sobre outros povos: seus próprios parentes ficavam
doravante sujeitos a ele, inclusive o primogênito.
3. Segurança contra as maldições de outrem: todas as coisas boas
reverteriam a seu favor, e as más seriam devolvidas ao próprio autor.
A Decepção de Esaú - 27:30-40
Mal Jacó acaba de sair da presença do pai, entra Esaú do campo com a
caça. Apressadamente a prepara e corre à presença do pai, para receber a
bênção. Perguntando quem é, recebe em resposta ser o filho Esaú. O logro do
pobre velho estava descoberto, mas tarde demais para ser remediado. A
bênção patriarcal tinha sido dada a Jacó e não podia ser retirada.
Podemos imaginar o desespero de Esaú. Era o culpado, pois por sua
frivolidade e glutonice vendera a primogenitura uns 40 ou 50 anos antes. É
perigoso brincar com as coisas santas, e foi o que Esaú fez. Em realidade, tinha
de ser assim, porquanto fora profetizado que o maior serviria ao menor, mas a
falta de Esaú em vender a primogenitura e a de Jacó em apossar-se dela de um
modo tão desairoso é indesculpável para qualquer deles. No auge do
desespero, Esaú pergunta: "Não reservaste uma bênção para mim também?
Tens tu só uma bênção, meu pai? Abençoa-me também." Acerca deste
desespero, o autor da Carta aos Hebreus (cap. 12:15-17) tem uma boa
explanação, que deve ser lida.
Incompativelmente, Isaque responde a Esaú: "Eis que eu o tenho posto por
senhor sobre ti, e teus irmãos lhe tenho dado por servos."
Ante a insistência de Esaú, Isaque lhe deu uma quase bênção também
(vv. 39 e 40). Notemos que esta bênção não se refere aos dois irmãos, e, sim, às
suas gerações, embora haja certos elementos pessoais nas ditas bênçãos. A
promessa de que Esaú viveria das gorduras da terra e por sua espada cumpriu-
se tanto na sua vida como na de sua geração. Sua descendência tem sido
sempre belicosa, e a parte que ela tem ocupado nas montanhas de Seir é rica
em pastagens para gado e abundante de árvores, conforme diz o Dr. Robinson
nas suas investigações bíblicas. Quando os jacobitas voltavam do Egito, tinham
de passar pelas vinhas dos esauítas, o que estes se recusaram a permitir; e
quando Jacó voltou de Padã-Arã, com fartos presentes para apaziguar o irmão
defraudado este lhe respondeu que tinha bastante e não precisava de
presentes.
A Ira de Esaú - 27:41-48
"E aborreceu Esaú a Jacó..." Jacó e sua mãe colheram desta fraude o que
mereciam. Esaú ameaçou matar o irmão e este teve de fugir para Padã-Arã.
Assim, Rebeca se viu privada do filho de sua afeição. Se esperasse em Deus
para executar a promessa, outro seria o resultado, mas, como Sara, teve pressa
e a conseqüência foi triste. Há sempre perigo em fazermos o que Deus deve
fazer. Ela mesma teve de aconselhar o filho a fugir. Padã-Arã era a terra de
Rebeca. Lá estavam seu irmão Labão e seus parentes, e Jacó estaria, assim, a
salvo da ira de Esaú. Ela morreu sem poder ver a volta do filho amado ou a
reconciliação dos dois. Esaú esperava a morte do pai para se vingar. Não
havendo tribunais para punir o criminoso, toda a justiça partia do pai; morto
este, estava afastada a possibilidade de qualquer castigo, e Esaú podia vingar-
se. Isto, porém, chegou aos ouvidos de sua mãe e esta divisou o meio de
frustrar a tentativa.
CAP. XXIV - FUGA E CONVERSÃO DE JACÓ
(Caps. 28-33)
Jacó foge para a casa do tio e ali fica por 20 anos.
Dois foram os motivos que fizeram Jacó deixar o lar paterno e ir à terra
de sua parentela em Padã-Arã: fugir à ira do seu irmão e casar com uma mulher
da mesma linhagem. . Entretanto, o primeiro verso deste capítulo parece
ignorar o primeiro motivo. Talvez Isaque mesmo ignorasse o que seu filho mais
velho planejava contra o mais moço, e aprovasse a viagem do filho com o
simples motivo de este casar entre os seus. Esaú tinha casado havia muitos
anos, talvez 35 anos antes, enquanto Jacó permanecia solteiro, o que, sem
dúvida, seria apreensivo para o velho patriarca, que, na beira da sepultura,
temia morrer, e não gostaria que o herdeiro das promessas cometesse o mesmo
erro que o filho mais velho tinha cometido, casando com mulheres de outras
raças. Assim, ou ignorando o outro motivo ou dando-lhe valor secundário, seu
pensamento centralizou-se no casamento. Isaque não tinha seguido a mesma
tática de Abraão, em procurar esposa para o seu filho, ou porque Esaú tivesse
prejudicado este costume, casando sem permissão paterna com as cananéias ou
por qualquer outra circunstância que ignoramos. Bem diferente foi o
casamento de Jacó do de seu pai. Eliézer, carregado de presentes, foi por
Abraão mandado ao mesmo lugar onde Jacó se dirigia agora, a fim de trazer de
lá uma mulher. Jacó, porém, vai como um foragido, com as mãos vazias, ele
mesmo, buscar a companheira.
Padã-Arã era o lugar onde Terá parou com a família depois de virem de Ur dos
Caldeus. Abraão continuou a viagem, mas toda a família ali ficou e foi ali que
nasceram as mulheres de Isaque e de Jacó. A começar com Abraão, todos estes
personagens casaram com pessoas da família. Abraão casou com a sobrinha, ou
meio irmã; Isaque, com uma prima carnal, e Jacó também. Alguns casamentos
em família foram por Moisés proibidos, mas os de primos jamais foram.
A conduta de Isaque, recomendando ao filho para casar com uma
parenta, despertou Esaú a fazer o mesmo e foi à família de Ismael, seu tio, e de
lá tirou outra mulher (vv. 6-9), pensando que assim remediava todo o mal que
tinha cometido antes; assim, porém, como era tarde para reaver a bênção
vendida, o era para desfazer o mal que os outros casamentos lhe tinham
causado. Entretanto, louvemos o seu desejo de corrigir os erros passados.
Isaque residia em Berseba, antiga morada dos patriarcas. Dali, Jacó partiu para
Harã. Em certo lugar, cansado da viagem, deitou-se, adormeceu e sonhou.
Tinha viajado umas poucas léguas, talvez 20 ou 25. No sonho teve a visão bem
familiar a todos os leitores de Gênesis: Deus se aproximou diretamente do seu
servo, e, desta aproximação, saiu um outro Jacó. Segundo João, esta escada
representava Jesus ligando o céu com a terra. Esta foi a primeira lição que Deus
ensinou a Jacó, e ele a aprendeu bem. Mundano em suas aspirações, pouco
escrupuloso em seus métodos, atirado fora da casa paterna, sem dinheiro e sem
proteção, foi um momento azado para Deus começar o trabalho que havia de
transformar este Jacó no doce e amoroso patriarca.
Acordado do sonho, seu primeiro pensamento foi que Deus morava ali e que
mui terrível era aquele lugar! Os antigos não tinham a concepção espiritual da
divindade que nós temos, nem conheciam tanto de sua onipresença como nós,
de modo que uma aparição destas era tomada logo como prova de que Deus
morava ali; em seguida, erigia-se o altar para o culto dos sacrifícios. Apressado
como ia, Jacó não tinha tempo de construir este altar. Portanto, usou a pedra
que lhe tinha servido de travesseiro, botou nela um pouco de azeite do que
levava consigo para fins medicinais e chamou ao lugar "Betel", que significa
"Casa de Deus". O nome do lugar antes era Luz. Nesta visão, Jeová repete a
promessa tantas vezes feita de que sua linhagem seria numerosa. Jacó, por sua
vez, faz um voto em base toda comercial, de que, de tudo que Deus lhe desse,
lhe daria o dízimo. Nisto podemos ver a nova idéia que Jacó teve de Deus, na
sua vida. Esta manifestação foi o despertamento para um novo começo de vida,
muito diferente da que tinha vivido antes. A isto se tem chamado a conversão
de Jacó, e tem sido bem empregada a frase. As experiências que o esperavam
não amorteceriam esta nova concepção de Deus, e, uns trinta anos depois,
encontramos Jacó neste mesmo lugar, oferecendo a Jeová o dízimo de todas as
coisas que tinha conseguido (cap. 35:7).
Esta é a segunda vez que encontramos a prática do dizimo no Velho Testamento
antes da Lei de Moisés. A primeira foi no caso de Abraão e Melquisedeque. O
dízimo parece ter sido um costume inerente à religião dos patriarcas, ou
melhor, uma prática instintiva da religião. Como não sabemos onde Caím e
Abel aprenderam o costume de oferecer sacrifícios a Deus, assim não sabemos
onde Abraão e Jacó aprenderam a dar o dízimo. O autor crê que estes costumes
são tão naturais à religião do indivíduo como à religião mesma, e a sua não
prática representa uma violência estúpida, uma degeneração de nossa natureza
religiosa. Jacó não tinha praticado o dizimo antes porque sua religião parece ter
sido fraca, mas logo que chegou à noção perfeita de dependência divina em sua
vida, o dízimo aparece espontâneo, como uma parte da religião. Os que se
opõem ao dízimo têm uma tarefa difícil para estabelecer o costume contrário;
têm de derruir uma parte considerável de nossa religião, para desfazer a prática
natural desta bênção. O fato é que os que dão o dízimo ordinariamente podem
dar muito mais, e os que não o dão, nunca podem dar coisa alguma sem
constrangimento. Deus tem abençoado maravilhosamente os que são fiéis a
esta prática e assim tem reivindicado o lugar que ocupa na Bíblia. Jacó parece
haver-se descuidado de dar o dizimo depois de ter prosperado em Padã-Arã, e
foi somente depois do trágico acontecimento com sua filha Diná, 7 anos após a
volta de Harã, que ele veio a Betel e ali ofereceu de uma só vez os dízimos de
todos os anos. Talvez sua negligência causasse aquela infelicidade doméstica.
Lembremo-nos de que Deus manda que paguemos nossos votos e que melhor é
não prometer do que prometer e não pagar.
Terminada a ereção da pedra como memorial do aparecimento de Jeová a Jacó
e da promessa de pagar os dízimos de tudo, põe-se a caminho para a terra de
seus parentes, em busca da companheira.
Sobre este costume de usar pedras como monumentos religiosos, grande
crítica se tem feito aos antigos patriarcas, e muitos críticos têm mesmo
afirmado que eles adoravam as pedras ou praticavam o que se chama
Totemismo, prova da religião grosseira e indigna. Mas este costume em nada
revela adoração de pedras, e sim um simples memorial. O que Jacó fez não foi
mais nem menos do que o que hoje em dia se faz em memória dos grandes
vultos, erigindo-lhes estátuas que lembram seus feitos aos vindouros. Em
muitas partes, ainda hoje se pratica o animismo, com toda sua corte de práticas
grosseiras, mas nesta e noutras histórias dos patriarcas nada há que garanta
terem adorado pedras ou árvores ou qualquer outro objeto inanimado ou
animado, senão somente a Jeová; e foi em memória do aparecimento de Jeová
que esta pedra foi ungida por Jacó. Se, pois, qualquer idéia de adoração existe
neste ato, a adoração é a Deus, e não à pedra.
Jacó Continua Alegremente Sua Viagem até Encontrar os
Pastores em Harã - 29:1-14
Radiante de alegria com o que tinha acontecido, Jacó levantou o seu pé,
como diz o texto em hebraico, e foi à terra que não conhecia ainda. O primeiro
encontro foi com os pastores, a quem perguntou por Labão, seu tio. Quando
ainda estavam falando, chega Raquel. Encontro dos mais tocantes. Mesmo
sem a conhecer, beijou-a e chorou. Choro de alegria, certamente, por
encontrar, uma pessoa da família logo ao chegar à terra estranha. Beijou-a,
num extravasamento de afeto e carinho para com a que tão de perto falava de
sua própria mãe, a quem não mais veria. Este momento trouxe à mente de Jacó
todas as recordações e experiências da vida passada. Todos os momentos
especiais passaram na sua mente como na tela passam as vistas e figuras da
película cinematográfica. Como uma pessoa perdida e que repentinamente
encontra salvação, assim parece que aconteceu com Jacó. Fugindo à ira de seu
irmão, forçado a abandonar o lar paterno e ir a uma terra desconhecida, ao
encontrar a prima, sentiu-se de novo no meio da família, e isto por si só explica
aquela impetuosidade com que depositou nas faces coloridas da bela Raquel o
seu primeiro ósculo.
Passado o momento de comoção, diz quem é, de onde vem, e Raquel, meio
assustada e confundida, corre a anunciar a Labão a chegada do sobrinho. O
encontro foi dos mais cordiais. Após o abraço de cordialidade, Labão diz que
Jacó é seu osso e sua carne, e pede que fique com ele. Esta expressão, tão
comum na Bíblia, indica íntima relação de parentesco ou afeto.
Jacó Faz Contrato com Labão para Ganhar Raquel - 15-20
Por um mês Jacó foi hóspede de seu tio. Depois deste tempo, convinha
acertar as condições de permanência na casa, e Labão perguntou qual seria seu
salário. Jacó voluntariamente se ofereceu para trabalhar 7 anos, para ganhar a
sua amada Raquel. Raquel era a mais nova e, segundo o costume, era a mais
velha que devia casar primeiro. Admitindo-se que Léia fosse meiga, ainda assim
a beleza de Raquel venceu o herói.
Labão, despretensiosamente, diz que lha daria sem preço, e que melhor seria
dá-la a ele do que a outro. Ainda assim, serviu-o Jacó por 7 anos, o que lhe
pareceu como 7 dias, tal o amor que tinha pela noiva.
Convém notar que nesta transação nada há que indique o costume de vender as
filhas. Jacó tinha de dizer quanto queria ganhar, e cego pelo amor ofereceu-se
para trabalhar 7 anos, e depois casar. Em receber Raquel deu-se por bem pago.
Certamente, havia o costume de dar arras. e, não tendo dinheiro nem bens,
deu-se a si mesmo. Quando Abraão quis casar Isaque, mandou grandes
presentes, tanto à noiva como à família. Este era o costume. Jacó foi mandado
vazio, coisa difícil de explicar. Ou porque os direitos de primogenitura ainda não
estivessem decididos, ou por qualquer outra circunstância desconhecida, Jacó,
filho de homem rico, tinha de dar um valioso presente e, como nada possuísse à
mão, deu-se a si mesmo.
Ainda hoje, entre os árabes, é costume dar as filhas aos parentes mais
aproximados, e o primo carnal tem, ordinariamente, a preferência, caso possa
dar o devido prêmio ou arras.
Triste Desapontamento de Jacó - 21-30
Findos os 7 anos, Jacó pediu sua esposa. Labão fez uma festa e convidou
os vizinhos. No fim da festa, posto o véu sobre a cabeça de Léia, entregou-a a
Jacó como sendo Raquel. Só na manhã seguinte Jacó deu pelo logro e foi pedir
satisfação a Labão. Este responde que não era costume dar a mais nova
enquanto a mais velha estivesse solteira, o que era mais uma desculpa e uma
trica financeira do que outra coisa, ainda que de fato este fosse o costume.
Talvez Labão soubesse como Jacó tinha roubado de Esaú o direito da
primogenitura, e o defraudador viu-se defraudado também. Labão morava num
lugar de almocreves e traficantes e devia ser bem perito em tricas comerciais.
Tinha gostado do trabalho sincero e honesto de Jacó, e queria-o por mais 7
anos. Conhecedor do seu amor pela sua filha, sabia que de bom grado o serviria
outros 7 anos. Se os costumes de então fossem como os de nossos dias, em que
o juiz é chamado e as testemunhas têm de assinar o contrato, seria impossível
uma decepção desta natureza. A simplicidade da vida daqueles tempos, porém,
dispensava certas cerimônias, que tão necessárias são para evitar fraudes
sociais e garantir a estabilidade da família.
Para amenizar a decepção de Jacó, Labão pede que ele cumpra a semana de
Léia e então lhe dará Raquel, na condição de o servir por mais 7 anos. Jacó teve
de aceitar a proposta, e assim tornou-se polígamo à força. Os efeitos foram
terríveis na vida do patriarca. A disputa e o ciúme da progênie fizeram
amargurados muitos dias de Jacó, como veremos nos capítulos seguintes.
Jacó com Quatro Mulheres em Lugar de uma Só - As Disputas de Família - 30:1-
24
Amoroso como era Jacó, devotado a uma só mulher como Raquel, viu-se
de um momento para outro nas malhas da poligamia. Raquel era estéril,
enquanto sua irmã, Léia, tinha filhos. Os filhos sempre foram e continuam a ser
o mais forte laço entre marido e mulher, mas a questão aqui ia mais além. A
presença de um filho entre os israelitas era sempre considerada como uma
graça e favor de Deus, e a esterilidade, como desagrado e falta de favor divino.
Por outro lado, existia o desejo e a ambição, por parte de cada homem e de
cada mulher, de ser progenitor de uma numerosa prole.
Uma família numerosa era a melhor parte da riqueza doméstica. Tomemos
estes fatos como razão sobeja para que Raquel desejasse ter filhos. Há ainda o
fato de que, sendo sua própria irmã sua companheira de lar e não tendo filhos,
era muito natural que o ciúme e a inveja começassem a dominar o seu coração.
A tal ponto foi a sua tristeza, que exigiu de Jacó filhos ou a morte. Este, irado,
respondeu que não estava em lugar de Deus, para dar ou reter prole. Raquel,
nesta emergência, lançou mão do recurso de sua velha parenta Sara,
entregando sua escrava Bilha a Jacó, para que por meio dela tivesse filhos. Jacó,
ou por desejo de ver sua amada satisfeita, ou pelo desejo de numerosa prole,
ouviu a mulher e tomou a escrava como concubina e deu-lhe dois filhos. A este
tempo, Léia tinha deixado de ter filhos e, enciumada pelo progresso da irmã,
ofereceu também a Jacó sua escrava, para dela ter outros filhos. Assim, viu-se o
patriarca, marido de quatro mulheres, em lugar de uma. Qualquer que seja a
culpa que se possa botar em Jacó, o responsável imediato foi Labão. Tivesse
cumprido sua palavra, dando Raquel ao seu amado, teria conservado indiviso o
seu afeto. Entretanto, quão profundos e inescrutáveis são os caminhos de
Deus! Desprezando e dissimulando estas fraquezas, Deus usou isto para
cumprimento de sua promessa. É assim que faz conosco muitas vezes: esquece
nossas fraquezas e tira delas, para nós e para sua Causa, grandes proventos.
Nos versos 14-17 temos um incidente interessante e que só as condições sociais
da época nos podem ajudar a compreender. Léia tinha cessado de ter filhos, e,
ao pedido de Raquel de lhe dar as mandrágoras que Rúben tinha encontrado no
campo (espécie de maçãs), queixou-se de não só ter sido roubada de seu
marido pela irmã, mas de ainda esta querer as frutas de seu filho. Como no
caso de Esaú, vendendo a primogenitura a Jacó pelo prato de lentilhas, assim
Raquel consentiu em que Jacó, seu amado, ficasse com Léia por um pouco de
mandrágoras. Transação infantil e ingênua. Mas decerto não foi o desejo de
comer as mandrágoras simplesmente, mas a idéia reinante, ainda hoje, no
Oriente, de que estas frutas predispõem para a concepção. Assim, o pedido de
Raquel torna-se razoável em querer comer a fruta desejada. Esta narrativa
revela também o domínio que Raquel exercia sobre Jacó, a ponto de a outra
esposa ter de comprar um pouco de seu afeto.
Ao leitor desacostumado ou pouco familiar com os costumes orientais, estas
histórias parecerão um pouco desconcertantes, e até já têm sido, por alguns
críticos, acoimadas de imorais. É, porém, preciso ter presente que aquele povo
tinha seus próprios costumes e viveu há 4.000 anos passados. Nós estamos no
século XX e temos nossos próprios costumes e uma civilização que em muitos
pontos escandalizaria os personagens daquele tempo. Nossa opinião do juízo
deve ser formulado de acordo com os tempos e os costumes daquela época.
Assim fazendo, nos livramos de uma injustiça e poupamos alguém de verberar
nossa pouca familiaridade com a história antiga.
Depois de sete anos de impaciência e de vergonha, Raquel teve finalmente um
filho, a quem deu o nome de José, que significa "Acrescentará", esperando que
Jeová lhe daria ainda outros. Como temos notado, a paixão por filhos ia ao
extremo, mormente em caso de competição, como esta, em que duas irmãs
disputavam para ver qual teria o maior número. Raquel de fato teve outro filho,
mas mal sabia quanto lhe custaria (35:18).
Jacó Faz Novo Contrato com Labão - 30:25-43
Os catorze anos de serviço e exílio tinham terminado, e Jacó desejava
voltar à sua terra. Os motivos que o tinham feito sair talvez tivessem sido
amenizados pelo tempo, mas, enquanto ali permanecesse, não passaria de um
empregado sem salário nas mãos do ambicioso Labão. Toda sua fortuna
consistia, depois de catorze anos de incessante labor em 4 mulheres, 12 filhos e
uma filha. Nada mais. Labão, porém, que sabia o valor de tal servo, sobretudo
tendo conhecimento de que Jeová o abençoava, a ele, Labão, por causa de Jacó,
não consentiu que saísse, e pediu-lhe outra vez que dissesse quanto queria
ganhar, alegando ter visto como Jeová abençoava os seus serviços. Jacó, por
sua vez, sabia com que qualidade de homem estava lidando e cumpria ser
seguro no novo contrato, para não ser espoliado uma vez mais. As condições do
acordo encontram-se no verso 32. Todas as cabras e ovelhas malhadas seriam
separadas, e todas as malhadas que dali em diante nascessem seriam o salário
de Jacó. Para evitar mistura, Jacó separou-se da outra parte do rebanho por um
espaço de três dias de caminho. Labão alegremente aceitou o plano, talvez
esperando que Jacó saísse logrado, pois um negócio destes bem poderia ser
chamado negócio de azar. Jacó, porém, devia ter estudado bem seu plano,
sobretudo, devia ter confiança que Jeová vingaria o seu trabalho das mãos do
patrão usurário. O expediente usado por Jacó encontra-se nos versos 37-43. O
autor deixa a explicação do fenômeno para quem melhor a possa fazer.
Entretanto, sabe-se que no tempo da prenhez e, sobretudo, no ato de
concepção, qualquer vívida impressão feita na fêmea é susceptível de
reprodução no novo ser. Descascou, pois, Jacó, as varas em riscos e as pôs
diante do rebanho quando vinha beber, na época do cruzamento, concebendo
as fêmeas diante destas varas postas dentro d'água, cujas listras, pelo
movimento das mesmas águas, ondulavam e produziam impressão no animal.
O mais esquisito é saber onde Jacó adquiriu este conhecimento. Que tinha
certeza de que Deus o abençoaria, não há dúvida! Mas ter conhecimento de tal
experiência parece singular. Entretanto, acusam os antigos de ignorantes. Há
muitos milhares de sábios, hoje, que ignoram este fato e muitos outros
semelhantes a este.
No verso 42, há alguma coisa que requer explicação. Parece haver duas
qualidades de animais no rebanho, e assim era com efeito. Os animais nascidos
no começo da primavera são mais fortes; os que nascem mais tarde são mais
fracos. Estes Jacó deixava para Labão, não punha à prova das varas. Assim,
Labão foi logrado, tanto na qualidade como na quantidade.
Quanto à honestidade do ato de Jacó, não pode haver dúvida. Agia de
pleno acordo com o contrato. Todos os expedientes eram aceitáveis, contanto
que não tomasse animal algum além dos malhados. Se pudesse fazer com que
todos assim nascessem, ainda estaria sendo perfeitamente fiel ao trato. Parece
que Jacó não tinha compaixão do patrão ao explorá-lo assim, mas, tratando-se
de um homem sem escrúpulos como Labão, era conveniente fazer tudo, menos
roubo, para pagar-se do seu trabalho de 14 anos passados. Esta prosperidade
não agradou a Labão, que em breve tratou de se desfazer do genro, que estava
fazendo toda a fortuna para si próprio. Deus condescendeu em abençoar este
servo seu contra a rapacidade de Labão, e serviu-se de um expediente natural,
para compensar a honestidade do homem que tinha trabalhado noite e dia
fielmente, apesar de saber que estava sendo explorado. Entretanto, diga-se
que Jacó colheu o fruto do seu trabalho com seu próprio irmão Esaú. É possível
que tivesse aprendido a lição e que depois procurasse remir sua falta com
aquele grande presente que preparou para Esaú.
A Prosperidade de Jacó Causa Separação - 31:1-21
Os filhos de Labão não estavam satisfeitos com o progresso de Jacó, e
começaram a murmurar, dizendo que os tinha roubado. Jacó podia desafiá-los
a provar o que diziam, porque no seu rebanho não havia animal que
pertencesse a Labão, conforme o acordo feito. Labão estava calado e os filhos
limitavam-se a murmurar, embora não satisfeitos, o que Jacó viu no rosto de
Labão. Tinha-se criado uma nova situação. Deus viu que era tempo de haver
separação e avisou Jacó que devia partir para a sua terra. A comunicação divina
vem nos versos seguintes. Labão estava ausente 3 dias, de viagem (v. 19), para
assistir à tosquia dos rebanhos, ocasião de grandes festas, e Jacó aproveitou a
oportunidade da ausência para, de acordo com a ordem divina, pôr-se a
caminho. Certamente, nada tinha que temer, visto ter um cadastro limpo
diante do sogro, porém a prudência mandava que evitasse qualquer conflito,
pois conhecia o homem com quem estava lidando e bem sabia que não seria
fácil a saída, como podemos ver mais tarde.
Chamou as mulheres, fez um ligeiro histórico da transação com o pai delas e
propôs-lhes o caso da retirada, acrescentando que o Anjo Jeová lhe tinha
aparecido, prometendo confirmar o acordo que fizera com Labão, e que
ordenava a volta à terra nativa. As mulheres, Raquel e Léia, responderam como
quem bem conhecia o que as esperava na casa paterna. "Há qualquer parte ou
herança para nós na casa de nosso pai?" Elas mesmas tinham visto a injustiça
com que haviam sido tratadas pelo próprio pai, que as tinha vendido como
escravas, se bem que as condições tivessem sido algo diferentes. Em si mesmo,
o caso implicava em catorze anos de serviço de Jacó para o pai, e nada para
elas. Portanto, alegremente replicaram que era tempo de partir.
Depois de um longo intervalo, aparece de novo o Anjo Jeová, que
expressamente diz ser o "Deus de Betel" que tinha aparecido a Jacó quando
vinha fugindo para Harã. Os leitores já estão familiarizados com esta divina
pessoa, que é a segunda da Santíssima Trindade.
Tudo decidido, Jacó pôs-se a preparar a partida. Talvez, com seus planos
antecipadamente preparados, só lhe restava aproveitar a ausência do sogro e
sair. As mulheres o ajudaram bastante, anuindo à quase fuga. Pôs o povo nos
camelos e o gado na frente e partiu, roubando o coração de Labão, por sair sem
avisar, e Raquel roubando os serafins da casa. É a primeira vez que ouvimos
falar de serafins na Bíblia. É provável que a família de Labão fosse idólatra, visto
ter vindo de uma terra idólatra. Mas estas imagens não eram propriamente
ídolos a que prestassem culto. Eram os deuses do lar, a que os antigos romanos
chamavam penares. Estes deuses domésticos eram da família, talvez tivessem
pertencido a Terá, Abraão, Naor, e é o que a linguagem de Labão implica (vv. 30
e 53). Alguns comentadores não poupam Labão e sua família, taxando-os de
idólatras, pelo fato de terem em casa estes serafins. O autor pensa
diferentemente, ainda que ache plausível, que não fossem rigorosamente
monoteístas. Abraão e Naor vieram de uma terra idólatra, e talvez fossem
idólatras até Deus lhes aparecer, e não seria possível que de um momento para
o outro mudassem radicalmente de religião. Mudanças desta natureza não se
operam da noite para o dia. Daí o fato de reterem certos objetos de culto. O
que não parece razoável é que continuassem idólatras como os demais povos.
Por outro lado, a comunicação divina foi especialmente para Abraão, e não para
Naor e seus filhos, de modo que, enquanto Abraão e sua geração se desfizeram
da idolatria, seus parentes bem podiam continuar praticando-a em certo grau.
Jacó não pode, de modo algum, ser acusado de comparticipar do ato da mulher,
roubando e escondendo os deuses. Estava inteiramente ignorante do ocorrido,
como se vê no cap. 31, V. 32
Labão Persegue a Jacó - 31:22-35
Três dias depois da partida de Jacó, alguém disse a Labão que seu genro
tinha fugido. Labão estava longe da casa três dias de caminho. Pela narrativa,
parece que voltou à casa para ajuntar seus irmãos e perseguir o genro.
Portanto, Jacó estava com seis dias de viagem, quando Labão saiu de Padã-Arã.
A viagem era demorada, por causa dos rebanhos, das mulheres e crianças, de
maneira a tornar possível a Labão alcançá-lo depois de alguns dias.
Talvez Labão encontrou Jacó pelo oitavo dia de viagem, nas montanhas
de Gileade. A expressão "seus irmãos" não quer dizer os irmãos carnais de
Labão, mas estes e todos os aparentados, vizinhos e associados, servos, etc.
Podemos inferir que uma boa companhia de perseguidores se reuniu em torno
de Labão como capitão. O propósito não parece ser tirar uma mera satisfação,
mas fazer voltar o fugitivo, com toda a sua casa, e reduzi-lo a pior condição do
que aquela em que tinha estado por muitos anos. Valeu a Jacó o seu Deus, que
em sonho proibiu Labão de tocá-lo. Deus era seu protetor e bastava isto para
que estivesse a coberto de qualquer incidente desagradável.
Não é possível dizer se Labão encontrou Jacó no monte Gileade mesmo ou nas
montanhas do mesmo nome. Em hebraico é fácil a confusão entre monte ou
montanhas. Em qualquer dos casos, Jacó estava longe de Padã. As montanhas
de Gileade formam a região elevada, a leste do Jordão, com umas 60 milhas de
extensão. O ponto culminante é chamado Monte Gileade. Parece que Jacó
encontrava-se nas montanhas de Gileade e não, propriamente, no monte
principal. Labão acampou perto do seu inimigo. Muito suntuosamente, Labão
repreende Jacó por fugir sem lhe ter dado ocasião de beijar os filhos e as filhas,
e então despedi-los com música e flores. Estas palavras de Labão não eram
verdadeiras. O que o fez falar assim foi a entrevista que Deus teve com ele.
Pelo que nos diz o texto sagrado, o propósito era, como vimos, reduzir Jacó à
submissão e fá-lo voltar. Não havia motivo para tanta gente acompanhar
Labão, se este não fosse o propósito, mas agora Deus lhe proibiu de fazer bem
ou mal a Jacó, e mostrasse contrariado porque não houve oportunidade para
separação amistosa e alegre. O ímpeto de Labão arrefeceu depressa.
A resposta de Jacó foi que tinha medo de ser roubado na família e em
tudo mais. Declaração franca e verdadeira. Agora que não era possível levar
por diante o propósito de fazer voltar Jacó, só uma outra coisa faltava a Labão:
achar os ídolos. Jacó nem sequer suspeitava que a sua amada Raquel os tivesse
roubado e escondido.
Não trepidou em oferecer a vida de alguém que os tivesse tomado. Por certo o
que animou Jacó foi a certeza de que os deuses não estavam em seu
acampamento, e que isto era um mero pretexto de Labão e não o desprezo que
ele, Jacó, tivesse pela vida de qualquer dos seus. Quando chegou perto de
Raquel, ela deu sua desculpa de não poder mover-se. No seu tratamento para
com o próprio pai, usa linguagem muito do seu tempo, chamando o pai de
senhor, no sentido de escrava. Depois de a devassa terminar e nada ser
encontrado, a ira de Jacó chegou ao auge. Os versos 36-42 são um discurso
vindicativo, onde a honestidade de um homem contra a vilania de outro chega
ao ápice. Jacó queixa-se dos maus tratos a que tinha sido submetido por 20
anos e, por fim, do vexame causado por seu sogro, de lhe remexer tudo, para
achar uma coisa que lá não estava; de o haver julgado ladrão e de ter pouca
cortesia pelo lar alheio. Remata, dizendo que se não fora o Deus de seus pais,
por certo teria sido despedido vazio. Jacó colheu, em dobrada medida, os frutos
de sua sementeira com seu próprio irmão.
Concerto entre Jacó e Labão - 31-43-45
Aos protestos de Jacó, replica Labão, em tom orgulhoso e adulador, que
as filhas eram suas filhas, e os meninos seus meninos, o gado e tudo mais que
Jacó possuía era seu. Agora, que posso eu fazer a ti e a tudo que é teu?
Conforme os costumes orientais do tempo e de acordo com o uso patriarcal, o
chefe da casa era o senhor de tudo, mas, no caso atual, isto não era exato.
Serviu para adoçar a boca de Jacó e fazer terminar a contenda de bons termos.
Assim, depois de feitas as pazes, Labão convida o genro para entrarem num
concerto amigável. Juntaram um monte de pedras, para servir de testemunho,
conforme o costume, comeram e beberam sobre o monte e invocou cada um o
seu Deus. Labão invocou o Deus de Abraão, de Naor e de Isaque. Jacó invocou
o "Temor de seu pai Isaque". Labão invocou a Deus em linguagem politeísta, e
Jacó, para invocar o Deus verdadeiro, chamou-o pelo "Temor de Isaque". O
monte de pedras foi chamado "o monte do testemunho" ou Jeo-ar-Saaduta.
Jacó chamou o monte pelo nome Galced que significa o mesmo. Labão
acrescentou o nome "Mizpá", que significa a torre do testemunho.
Terminada a cerimônia, ofereceram sacrifícios e se despediram amigavelmente.
Nota: Labão usou o nome Elohim, que é traduzido Deus, mas a palavra
está no plural, e foi no sentido de deuses que a usou, pelo que Jacó preferiu
usar o "Temor de Isaque", que significa o verdadeiro Deus que Isaque conhecia.
É inexplicável por que todas as traduções são a palavra Elohim, Deus, na boca
de um idólatra, quando devia ser deuses, que é o que a palavra literalmente
significa.
No verso 53, tanto o verbo como o substantivo, estão no plural,
significando os "deuses de Abraão", e não o Deus de Abraão. As traduções
inglesas e americanas inserem na margem: "ou deuses". Não há possibilidade
de dúvida sobre esta interpretação. Labão conhecia alguma coisa do Deus
verdadeiro, mas não o bastante para o reconhecer como o único Deus.
Terminada a cerimônia, Jacó ofereceu sacrifícios no monte, convidando os
parentes para a festa. Estes sacrifícios, como temos visto, são, ordinariamente,
a maneira de selar um pacto feito entre duas ou mais pessoas.
Jacó Prepara-se para Encontrar Esaú - 32:1-12
Após os incidentes do último capítulo, Jacó marchou para a terra de seu
nascimento. De caminho, encontrou um exército de anjos. Nada se nos diz do
motivo deste aparecimento celestial, mas é bem possível que viessem confortá-
lo, depois da transação que tinha tido com Labão. Este lugar ficou sendo
chamado "Manada" que significa dois acampamentos ou exércitos. A geografia
é um tanto incerta sobre o lugar exato deste aparecimento, mas os melhores
mapas o colocam ao norte do ribeiro de Jacó. Davi, em sua fuga de Absalão,
chegou a este lugar no segundo dia da saída de Jerusalém, o que mostra não ser
muito distante do citado ribeiro.
De Maanaim para o país de Seir, onde Esaú morava, era jornada de alguns dias.
Jacó mandou mensageiros a seu irmão, anunciando sua prosperidade e
grandeza, para desta forma ganhar sua simpatia. Enquanto voltavam, Jacó
esperava pela resposta. Ele não se aventurava a chegar perto. A submissão
oferecida por Jacó foi humilhante. Era o senhor, mas aqui se declara servo.
Jacó não era homem para a luta. Se tivesse oportunidade de conseguir vitória
por qualquer meio astuto, bem; .se não, deixava as coisas correrem por si
mesmas.
O sucesso da embaixada foi infeliz. Mal os mensageiros tinham viajado alguns
dias, souberam que Esaú vinha ao encontro do irmão. A impressão foi
desoladora, como podemos imaginar. Demais, vinha acompanhado de
quatrocentos homens. Estes preparativos denunciavam motivos hostis, e sobre
isto Jacó não tinha a menor dúvida. A ira e o rancor de meu irmão não
esmoreceu, pensava Jacó, e agora é o tempo de pagar caro a minha astúcia.
Escapando de Labão, caiu nas mãos de seu maior inimigo. Outro, que não fora
este servo de Deus, poderia ter tão pouca confiança no Deus que lhe tinha dito:
"Sai e vai-te à terra de teus pais." Mas, depois de tantas provas de apreço por
parte de Deus, não era motivo para temer; porém Jacó não era homem para
todas as ocasiões. Diante disto, só lhe restava orar, e foi o que fez.
A Oração de Jacó
O primeiro expediente foi dividir o povo que estava consigo em duas
companhias, cada uma com uma parte do gado, para, no caso de uma ser
apanhada, a outra poder escapar. Feito isto, derramou seu coração perturbado
diante de Deus e orou. Nesta simples, mas bela oração, lembrou que Deus era o
Deus de seus pais Abraão e Isaque, e sobretudo, o Deus que o tinha mandado
sair de Padã-Arã, como que dizendo: "Se era para cair nas mãos de meu irmão,
para que me mandaste vir?" Humildade e inteira dependência dominam o
espírito desta súplica. Talvez, a primeira oração encontrada na Bíblia, como
Pratis sugere. Sobretudo, ele apelou para o fato de que Deus lhe tinha
prometido fazer bem.
Dividido em dois grupos, desfalecido e desalentado, seu coração pairava sobre
suas mulheres e filhos, que não viessem a ser presa da ira do irmão ofendido.
Quão terrível a consciência de que estamos recebendo os frutos da sementeira
na vida! 20 anos se tinham passado, mas a consciência da ofensa ao irmão mais
velho não tinha morrido e, se não fora a idéia de que Deus lhe havia prometido
fazer bem, teria sucumbido. Na oração, ele encontrou lenitivo.
A Oração de Jacó
O primeiro expediente foi dividir o povo que estava consigo em duas
companhias, cada uma com uma parte do gado, para, no caso de uma ser
apanhada, a outra poder escapar. Feito isto, derramou seu coração perturbado
diante de Deus e orou. Nesta simples, mas bela oração, lembrou que Deus era o
Deus de seus pais Abraão e Isaque, e sobretudo, o Deus que o tinha mandado
sair de Padã-Arã, como que dizendo: "Se era para cair nas mãos de meu irmão,
para que me mandaste vir?" Humildade e inteira dependência dominam o
espírito desta súplica. Talvez, a primeira oração encontrada na Bíblia, como
Pratis sugere. Sobretudo, ele apelou para o fato de que Deus lhe tinha
prometido fazer bem.
Dividido em dois grupos, desfalecido e desalentado, seu coração pairava sobre
suas mulheres e filhos, que não viessem a ser presa da ira do irmão ofendido.
Quão terrível a consciência de que estamos recebendo os frutos da sementeira
na vida! 20 anos se tinham passado, mas a consciência da ofensa ao irmão mais
velho não tinha morrido e, se não fora a idéia de que Deus lhe havia prometido
fazer bem, teria sucumbido. Na oração, ele encontrou lenitivo.
O Expediente de Jacó para Ganhar o Irmão - 32:13-31
O nosso herói era rico em expedientes. Descansou aquela noite, e de
manhã pôs mãos à obra. Não obstante saber ou calcular o propósito da vinda
do irmão, pensou também que um bom presente acalmaria o ímpeto do irmão
irado. Preparou um presente de 200 cabras, 20 bodes, 200 ovelhas, 20
carneiros, 30 camelas de leite com as crias, 40 vacas, 10 novilhas, 20 jumentas e
10 jumentinhos. Entregou cada grupo na mão de um servo e mandou-os
adiante com instruções para, quando se encontrassem com Esaú e este
perguntasse de quem era o gado, respondessem: "São de teu servo Jacó, é
presente que envia a meu senhor Esaú." Encontrando o segundo rebanho,
receberia a mesma resposta, o terceiro, o quarto e até o último.
Por mais duro que fosse o coração, em busca de vingança, seria quebrantado
diante de tanta liberalidade e amizade por parte do ofensor. Demais, criaria a
impressão de que este homem que assim vinha oferecer presentes era pessoa
cuja amizade valia alguma coisa, não era inimigo fácil de vencer. Finalmente, se
tudo isto não apaziguasse Esaú, pelo menos abrandaria o seu furor e tornaria a
tarefa do encontro algo mais suave. Como diz Provérbios 18:16: "O presente do
homem lhe alarga o caminho e leva adiante os grandes." Parece que
o homem mais zangado do mundo se acalmaria antes de acabar de receber
todos esses presentes, diz o Dr. Carroll.
Tudo que um homem sábio podia fazer estava feito. Agora, cumpria
enfrentar o inimigo cara a cara. Fugir era impossível e desastroso. Em Padã-Arã
nada havia. A leste ou oeste, as terras não eram suas. Assim, mandou o
presente adiante e, com um pouco de distância, continuou a marcha em direção
do sul.
A Luta com o Anjo - vv. 22-32
Toda a narrativa passada teve lugar em Maanaim. Agora que os
presentes iam adiante, Jacó passou a família para o lado oposto do rio Jaboque
e ficou sozinho por algum tempo, pensam alguns comentadores, para poder
orar melhor. A noite devia estar em meio. Que apreensões e ansiedades
dominariam seu pensamento! Por fim, ele mesmo dispõe-se a passar o riacho.
De repente, um estranho personagem se aproxima e a luta começa. A princípio
Jacó desejava ver-se livre, mas pouco a pouco a luta pareceu algo misteriosa, e
não deixou que o companheiro de luta se separasse antes de o abençoar.
Este pedido de bênção torna claro que conheceu estar lutando com uma
personalidade celeste. Quando o dia vinha clareando, disse o Anjo: "Deixa-me
ir, porque já a alva subiu." Jacó, porém, não o deixou antes que o abençoasse.
O Anjo pergunta-lhe qual o seu nome e ele responde: Jacó. O Anjo muda-lhe
este nome, de Suplantador, para o de "Israel", que é Lutador com Deus. O
nome de Jacó relembrava um dos feitos mais tristes de sua vida e, agora que
estava nas vésperas de se cumprirem as grandes promessas de Deus, seu nome
era mudado. (Alguns comentadores traduzem a expressão por: "príncipe que
luta com Deus" ou "soldado de Deus".) O motivo de o Anjo lhe dar este nome
foi porque lutou com Deus como príncipe e prevaleceu com ele e com os
homens. Com Deus tinha lutado, saindo vencedor, mas quem eram os homens
com quem prevaleceu? Os 400 homens de Esaú, pensam muitos comentadores,
e há razão para este pensamento. O autor, porém, crê que a expressão inclui
mais do que estes 400 homens, que todos os inimigos presentes e futuros:
Labão, cananeus, egípcios etc. Jacó perguntou-lhe também como se chamava.
Mas o Anjo recusou-se a responder. Abençoou-o ali, e se foi. Jacó, entretanto,
sabia quem era o visitante, porque deu ao lugar o nome de "Penuel" (face de
Deus), acrescentando que tinha visto Deus face a face e não tinha morrido. A
crença era que homem algum podia ver a Deus e viver. Mais tarde, esta crença
foi confirmada por Deus mesmo (Êx. 33:20). Oséias chama este Anjo pelo nome
de Deus (Oséias 12:1-5). Este Anjo era o LOGOS, o Filho de Deus, que é já
bastante familiar aos leitores destas notas, e que daqui até à eternidade será o
constante guia e diretor do seu povo, o capitão das hostes de Jeová (conf. Éx.
3:2; Jz. 13:21-23 e ref.). O Anjo do concerto aparece agora ao herdeiro das
promessas como havia aparecido ao primeiro, a quem haviam sido feitas, o
eterno Filho de Deus, que em tempo havia de aparecer entre os homens, e
aparece aqui como um raio de luz numa noite de trevas, anunciando que a
alvorada vem em breve.
Nesta luta, Jacó ganhou uma medalha, que não mais perdeu. Vendo o Anjo que
não prevalecia, adaptando a linguagem às inteligências humanas, tocou-lhe a
coxa e marcou-o para toda a vida. Quando passou o ribeiro, manquejava. Por
isto os filhos de Israel não comem esta parte dos animais.
Qual seria o efeito sobre Esaú, ao ver este homem coxeando? Sem pau
na mão, sem capacidade física para uma luta corporal, com um coração
penitente, revelado no grande presente feito, não teria isto influído
poderosamente em Esaú, caso quisesse vingar-se? Este Jacó não é mais o Jacó
que roubou a bênção auxiliado por sua mãe. O tempo, as circunstâncias, as
experiências e sobretudo Deus mudaram este homem. O Dr. Carroll
aconselhava seus discípulos a comprar todos os comentários e livros sobre esta
luta de Jacó com o Anjo, e dizia que neste incidente está o segredo de poder de
Jacó. É certo isto. Vale a pena os pregadores lerem e relerem esta história. Ela
é sempre nova. Depois de um contacto destes com Deus, Abraão, Paulo e
muitos outros foram mudados para toda a vida.
(O riacho de Jaboque está seco seis meses do ano, e mesmo quando
cheio tem pouca água. O autor passou a seco este rio há tempos atrás. Nem
sinal de água. Em certo ponto os árabes Indicam o lugar da luta entre o Anjo e
Jacó. É um lugar deserto atualmente; a não ser uma birosca, nada mais se vê no
local.)
O Encontro de Esaú e Jacó 33:1-19
Havia raiado o dia, o anjo tinha partido e Jacó estava sozinho. Passou o
riacho de Jaboque e, ao levantar os olhos, viu seu irmão, acompanhado de 400
homens. Seu primeiro intento foi separar o seu povo em grupos, para ver se de
alguma forma escaparia alguém. Pôs cada mãe com seus filhos, as duas
concubinas na frente, depois Léia, e por fim, sua amada Raquel e José.
Adiantou-se, para ir ao encontro de Esaú, a fim de que fosse ele mesmo a
suportar a principal fúria do combate. Pouco se nos diz do estado do coração
deste pobre homem, mas bem podemos calcular. De Esaú, nada sabemos
senão que veio ao encontro do irmão com quatrocentos homens. Para quê? Eis
aqui uma pergunta que tem sido respondida de duas formas. Alguns
comentadores crêem que Esaú veio encontrar Jacó com aquela companhia para
dar-lhe uma prova de apreço e mostrar sua grandeza e que em seu coração
havia morrido todo o ódio de 20 anos atrás. Outros, que viera com estes
homens armados para se desforrar do irmão. É uma questão para ser decidida
por todos os que lerem estas escrituras. Entretanto, não parece haver muita
dúvida de que o propósito de Esaú era hostil e foi para vingar-se que veio com
tanta gente. Para um encontro amável e fraternal não seria preciso tanta gente;
e, se era para mostrar que não tinha mais ressentimento do irmão, melhor
podia mostrar isto, preparando um presente e meia dúzia de homens para o
conduzirem, como Jacó mesmo fez. Esaú, ao avistar o irmão, viu desaparecer
de si todo o rancor e desejo de vingança. Caíram-lhe dos olhos as escamas.
Nem ele sabia explicar como. Correu para Jacó e lançou-se-lhe ao pescoço e
beijaram-se reciprocamente. Que grande mudança! Deus operou esta
transformação no coração desse homem. Jacó tinha lutado com Deus e com os
homens, e tinha vencido pelo poder de Deus mesmo. Como é maravilhosa a
providência e direção divina na vida dos homens que servem a Deus!
Passados os momentos de emoção, Esaú pergunta quem eram aquelas
mulheres e os meninos. A presença de uma numerosa família era uma das
evidências da graça e favor divinos. A resposta de Jacó mostra ainda o espírito
de servilidade e temor que o dominava. Esaú, generosamente, convida o irmão
para ser seu companheiro até Seir, mas este alega que tem de ir devagar e pede
que seu senhor vá adiante, que ele depois chegará. Esta escusa não parece
muito natural para quem tinha já feito em tão poucos dias tão grande viagem.
Esaú deseja tornar-se agradável e pede para deixar parte da companhia que
tinha trazido como que para proteger o irmão, mas Jacó, ou por desconfiança,
ou por outro motivo, recusa ainda esta oferta do irmão e insiste que o deixe ir
só. Parece que no espírito de Jacó não havia a franqueza que havia no de seu
irmão Esaú, e assim foram recusadas todas as ofertas sinceras e leais. Esaú
despede-se naquele dia e vai-se à sua terra, nas montanhas de Seir, esperando
ver ali mais tarde seu irmão. Era de todo provável Jacó desejar cumprir esta
promessa. Ele ia de volta à terra de seu pai, e não de seu irmão, e, neste caso,
devia dirigir-se a Berseba. Entretanto, não foi para um nem outro lugar, mas
passou outra vez o rio Jaboque e veio habitar em Sucote, onde construiu casas
para si e estábulos para o gado. Por que mudou de intento, não é possível
saber-se. Alguém julga que Jacó não continuou a viagem, por ter sabido por
Esaú, que sua mãe era morta e que seu pai estava cego e inválido.
Se isto é verdade, não há desculpa possível para Jacó, em não ir visitar seu pai
nos últimos dias de vida (conf. 27:2, 41). Em Sucote, Jacó habitou por alguns
anos porque, ao chegar a Siquém, deu-se o rapto de Diná, o que demandava ter
ela pelo menos 12 ou mais anos, e tinha no máximo 6 anos quando se deram os
últimos acontecimentos, sendo mais ou menos da mesma idade de José (30:25,
31-42). Isto exigia uma demora em Sucote de 6 ou mais anos. A narrativa dos
versos 17 e 18 parece não exigir tempo entre um acontecimento e outro, mas o
propósito do escritor não é relatar fatos cronológicos, e sim dar os
acontecimentos. O verso 17 diz que Jacó construiu casa ali para si e currais para
o gado. E isso não seria feito se não houvesse o propósito de permanecer. O
que anos depois motivou a mudança de Sucote para Siquém deve ter obedecido
a interesses de sua fazenda mesmo. Aqui comprou um pedaço de terra aos
filhos de Hamor, pai de Siquém, depois de ter cultivado por sua própria conta a
terra que estava vazia.
As palavras "veio em paz à cidade de Siquém" parecem denotar ter havido
alteração de ordem em Sucote, mas a expressão é muita familiar, mesmo sem
designar perturbação. Nesta cidade, ele edificou um altar e invocou ali El-Eloí-
Israel, Deus, o Deus de Israel, que também significa o poderoso Deus de Israel.
O nome de "EI" - Deus - significa Poderoso, e foi com este sentido que Deus fora
invocado por este nome. Jacó usou pela primeira vez o seu novo nome numa
solenidade de culto ao seu Deus. Muito perdem os leitores do Velho
Testamento que não colhessem o valor dos nomes dados a Deus.
CAP. XXV - INCIDENTES NA VIDA DOMÉSTICA DE JACÓ
(Caps. 34-38)
A Filha de Jacó Raptada - Suas Conseqüências - cap. 34
Todo este capítulo é dedicado ao triste incidente ocorrido na casa de
Jacó. Ninguém deve desanimar diante das dificuldades da vida. Como
sabemos, Jacó era um homem de quem Deus cuidava abertamente, e não
obstante teve os seus dissabores, e bem freqüentes. Este não deve ter sido dos
menores. Diná era a única filha, e embora as mulheres não tivessem tanto valor
quanto os homens, ela devia ser muito amada, pelo que este desastre deve ter
amargurado seriamente a Jacó.
fato ocorreu durante uma festa, conforme a opinião de Josefo. Nem tudo
estava perdido, porque o rapaz gostou dela e desejou-a para esposa, mas entre
o povo de Jacó e os cananeus havia um abismo de separação. Não era possível
que uma filha de Jacó fosse dada em casamento a um gentio, embora este fosse
o príncipe da terra. O crime estava cometido, mas o criminoso foi cavalheiro e
quis reparar o mal. Assim falou a seu pai, Hamor, para que pedisse a moça de
Jacó. Os filhos de Jacó estavam no campo e ao voltar souberam do ocorrido
planejaram uma terrível desforra. Hamor fez as mais leais promessas de
reparação, sugerindo uma aliança entre o seu povo e o de Jacó, aliança que os
casamentos reforçariam. Os filhos de Jacó tomaram a frente do negócio e
exigiram a circuncisão de todos os habitantes da terra como condição, o que
alegremente aceitaram. Mal suspeitavam da traição que lhes estava sendo
preparada. Conforme o verso 24, todos os homens da cidade foram
circuncidados. Não se pode imaginar maior infâmia numa família religiosa.
Usar um rito sagrado, para um fim tão miserável! O plano estava feito e na hora
própria seria executado, como foi. A Bíblia é imparcial ao registar as faltas com
toda a franqueza e mostra a falta dos filhos de Jacó com as cores mais vivas.
Não há nada que os possa absolver deste crime. A vingança seria cabível, mas
em termos eais e francos. O pobre Jacó parece não ter tido parte nesta infâmia.
Nem teria tido poder para reprimir o ímpeto dos filhos. A história futura destes
homens não deixa muita dúvida sobre os seus atos. Nos seus últimos
momentos, Jacó regista a impressão que este ato tinha produzido em seu
coração (Gên. 49:5-7). Simeão e Levi eram irmãos de Diná, filhos da mesma
mãe, e naturalmente sentiram a ofensa mais que os outros. Este
acontecimento criou uma situação difícil para Jacó, pelo que Deus lhe ordena:
Saia e vá para Betel.
o meio deste horrível pecado há uma coisa que merece destaque: a honra de
uma mulher valer mais que sua própria vida. Se os povos de nossos dias
tivessem o mesmo zelo que os filhos de Jacó tiveram por sua irmã, não haveria
tantos pecados sociais nem tantas meretrizes no mundo. Qualquer nação que
perde de vista o padrão de virtude e honra que acompanha a virgindade e
pureza de uma mulher está perto da ruína.
Imposição de Deus para Salvar Jacó - 35:1-14
A nova situação criada pelo pecado de Simeão e Levi pôs a vida e os
destinos do patriarca em perigo. Deus, portanto, ordena a partida dali para
Betel, com ordem de levantar lá um altar a Deus que o tinha livrado de Esaú.
Deus está trazendo à memória do seu servo a falta de cumprimento de seus
deveres. Jacó se havia esquecido de pagar o voto feito em Betel quando ia
fugindo de Esaú, como se tinha descuidado de limpar dos ídolos sua casa. O
verso 2 diz que ordenou que fossem postos fora todos os deuses estranhos que
tinham sido roubados de Labão. Não somente os ídolos, mas todos os ornatos
gentílicos, como brincos de orelhas e de nariz. A casa de Jacó era uma casa
religiosa com ritos idólatras; e ele, tão amoroso e descuidado, permitiu que se
passassem oito e mais anos sem fazer uma limpeza nessas profanações. Bom
foi que tivesse acontecido o desastre com seus filhos, trazendo uma hora de
incerteza e agonia ao espírito, para que se lembrasse de ser fiel a Deus.
É assim conosco ainda hoje. Para nos corrigirmos de alguns defeitos, é mister
que surjam reveses na vida; aí recorremos a Deus, e ele tem sua oportunidade
de ser obedecido. Portanto, todos os ídolos foram atirados às urtigas e Jeová
ficou sendo adorado naquela casa, como havia muito devia ter sido. O
resultado foi que o temor de Deus caiu sobre todos os habitantes em redor e
não perseguiram os destruidores dos siquenitas. Esta foi a conversão da casa de
Jacó. É preciso que não somente sejamos crentes, mas que nossa casa seja
convertida a Deus.
Jacó chegou à Luz, antigo nome da cidade, que ele mesmo tinha mudado para
Betel quando ali dormiu e o Senhor lhe apareceu em sonho na ocasião em que
fugia de Esaú. O novo nome, porém, não era conhecido e nem o foi até os
israelitas a tomarem e lhe mudarem o nome antigo. Aqui, construiu o altar e
chamou o lugar BETEL, que significa o "Deus da casa de Deus". Que recordações
este lugar não evocaria! Esta linguagem implica em que cumpriu aqui o seu
voto, dando ao Senhor o dízimo de tudo. Podemos imaginar quantas vítimas
foram imoladas em sacrifício para pagar o dízimo de tanta riqueza.
A menção da morte de Débora, ama de Rebeca, quando Rebeca mesma não é
mencionada, parece favorecer a idéia de que esta tivesse morrido havia tempos,
e a serva tivesse deixado Berseba, onde Isaque, velho e acabado, morava, em
procura de Jacó. Pratis pensa que ela deixou Isaque e Esaú também, e que Jacó
mudou o rumo de sua viagem e para lá não foi, porque Isaque estava velho,
paralítico e cego. Se é fato isto, não há desculpa para os filhos e os servos mais
próximos, que não estavam perto dele nos últimos momentos de sua vida.
Nos versos 9 a 15 temos a menção de nova revelação de Deus a Jacó,
reafirmando a mudança do nome e a certeza de herdar as bênçãos prometidas.
Como testemunho desta aparição, Jacó levantou um altar e derramou sobre ele
ofertas de libação. Novamente chamou este lugar Betel. Como já foi referido, o
lugar do aparecimento de Deus indicava, à vaga compreensão dos antigos sobre
a espiritualidade de Deus, que ele morava ali. A idéia de que Deus tem sua casa
e seu lugar para ser adorado durou até que o Messias disse que "nem neste
monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai". A religião cristã pôde desfazer o
materialismo que rodeava todo o culto de Jeová.
A Morte de Raquel - vv. 15-20
Depois de morar em Betel - não sabemos a razão - Jacó levantou
acampamento e dirigiu-se para o sul. Por quê ele viajou numa ocasião tão
crítica, não se sabe; o certo é que esta viagem bem pode ter contribuído para
que a "délivrance" de Raquel fosse trabalhosa, e ela não resistisse. No lugar
Efrata ou Belém-Efrata (Miq. 5:2), ela deu à luz Benôni,. "filho de minha tristeza"
(nome que Jacó mudou para Benjamim - "filho de minha mão direita"), talvez
por Benôni lhe trazer amargas recordações. Jacó levantou ali um mausoléu à
sua amada Raquel. Foi-se o encanto dos seus dias e da sua vida. Parece que
com ela se foi de verdade todo o conforto da vida de Jacó, porque daí em diante
toda ela é um conjunto de dissabores. Nesta vida de Jacó temos uma
consoladora lição: nossas aflições não estão esquecidas diante de Deus. Jacó
era o eleito do Senhor, por quem velava com terno carinho. Não obstante isto
teve uma das vidas mais atribuladas que a Bíblia conhece. Razão teve ele para
dizer: "Poucos e maus têm sido os dias dos anos de minha vida" (Gên. 47:9).
O verso 22 relata um outro pecado: o de incesto cometido pelo filho mais velho,
com a concubina de seu pai. Conforme a Lei de Moisés, mais tarde, este pecado
era punido com a morte, mas parece que nada aconteceu ao pecador. Mal
recobrava das saudades da mulher querida, quando lhe vem mais este revés. O
texto diz que Israel soube do acontecimento, mas não nos diz como. Nós pouco
sabemos dos eternos propósitos da Providência, e achamos que melhor seria
que não soubéssemos de tal infâmia, mas a Bíblia é o livro da história dos
pecadores, ou melhor, da história de Deus lidando com pecadores, e assim o
pecado aí está, negro como a noite. Alguns críticos acham que a Bíblia é um
livro imoral, porque revela estes pecados. Se não fosse assim, não seria o Livro
de Deus, seria dos homens, porque estes tudo fazem para que seus pecados não
sejam descobertos.
O capítulo termina com a lista dos filhos de Jacó e com o encontro de Jacó com
seu velho pai Isaque em Hebrom. Conforme a cronologia mais aceitável, já dez
anos tinham passado desde a volta de Padã-Arã. Nada sabemos das relações de
Jacó para com o velho pai durante este tempo. Quando Jacó foi para Padã-Arã,
deixou os pais em Berseba, mas agora encontramos o velho em Hebrom e nada
mais sabemos de sua mulher, Rebeca. É inadmissível e imperdoável que Jacó
não visitasse seu pai durante esses 10 anos, o que faria a soma de 30 anos sem
ver Isaque. Não temos os pormenores da vida de nenhum destes personagens,
mas podemos crer que se tinham encontrado alguma vez antes de Jacó se
mudar para o lugar de Isaque. Por fim, depois de uma vida de 180 anos, mais de
30 cego e doente, passou à sua morada permanente, e os dois filhos juntaram-
se para lhe dar sepultura. Daqui em diante os dois vivem juntos e cuidam dos
interesses recíprocos da casa paterna. A amizade foi finalmente cimentada e
Jacó pode morar com o irmão sem receio.
Genealogia dos Filhos de Esaú - cap. 36
Este capítulo não oferece coisa de interesse especial, senão sob o ponto
de vista etimológico. O ponto, para nós, de maior relevância é a relação dos
filhos de Esaú com os horitas.
Ao mesmo tempo dá-nos a relação dos diversos povos relacionados com
o filho de Isaque. É um parêntesis na narrativa de Jacó e sua família. Esaú, como
vimos no cap. 26:34, casou com duas mulheres hetéias chamadas "filhas de
Canaã" e uma delas era filha de Zebeo, o qual era filho de Seir, o horeu. Este
fato é de relevância para nós, porque nos mostra que entre a mistura de povos,
naquele pedaço de terra, um heteu era ao mesmo tempo heveu, horeu ou
cananeu. Os heteus eram uma raça formidável, cuja origem e civilização ainda
estão envolvidas em mistério. Em Canaã tomaram diversos nomes, conforme as
nações que se iam formando. Os cananeus eram filhos de Canaã, quarto filho
de Cão e os heteus eram filhos de Hete (Gên. 10:6-15), mas em Canaã, terra que
lhe tomou o nome, eram às vezes indistinguíveis. Isto, aliás, era muito comum
nos tempos antigos, quando, por qualquer circunstância, uma pessoa mudava
de nome, como já vimos no caso de Abraão, Jacó e outros, Os nomes destas
mulheres de Esaú, nos caps. 26:34; 28:9, são algo diferentes, por esta mesma
razão. Personagens há que aparecem com três nomes, como no caso de Jetro,
sogro de Moisés. O estudante deve conservar isto em mente, a fim de poupar o
trabalho e o desgosto de algumas vezes não poder harmonizar os diversos
nomes de uma mesma pessoa.
Quatro vezes encontramos, nos primeiros 13 versículos, que Esaú é Edom.
Tanto um nome quanto o outro significa "vermelho". Os idumeus, encontrados
mais tarde, são filhos de Esaú. Notamos também que Esaú tomou os seus filhos
e filhas e todos de sua casa e foi para outra terra, deixando Canaã, porque não
podia habitar junto com seu irmão. A terra mencionada é Seir e parece excluir a
possibilidade de Esaú ter habitado nela previamente. Entretanto, já morava em
Seir quando Jacó voltava de Padã-Arã (32:3), e a segunda menção de sua
retirada para aquela terra sem mencionar a primeira pode explicar-se de dois
modos: englobar os fatos iguais num só, para poupar espaço, ou por julgar esta
última resolução como final, a fim de deixar toda a Canaã a seu irmão Jacó.
Nos versos 4-19 são mencionados os filhos de Esaú, entre os quais o célebre
Amaleque, que séculos mais tarde deu tanto que fazer aos jacobitas. A família
de Esaú deu um número respeitável de chefetes, mencionados nos versos 15 a
19. Isaque abençoou Esaú e disse que seria pai de numerosa prole. Esta
profecia cumpriu-se à risca. Sua descendência não só foi numerosa, mas
poderosa. Não é coisa comum, em tão pouco tempo, um homem dar na sua
geração um número tão respeitável de príncipes. As terras ocupadas por estas
tribos foram, como já vimos, as montanhas de Seir, que antes pertenciam aos
horeus e que mais tarde se tornaram a Iduméia. Portanto, horeus, idumeus
esauítas, todos ocuparam a mesma terra. Na volta do Egito, os israelitas
tiveram de fazer uma grande volta, por não lhes ser permitido passar pela terra
de Seir, em poder de Edom, descendente de Esaú.
Nos versos 20-28, temos a descendência de Seir, predecessor de Esaú nas terras
de Edom. Nada sabemos dele, senão que foi o pai dos horeus primitivos
habitantes da terra. O próprio nome "horeu" parece ter derivado da maneira
de vida dos habitantes. Em hebraico significa "Morador de Cavernas". Ainda
hoje se vêem por toda parte as antigas cavernas cavadas na rocha viva. Como já
foi observado, os moradores de cavernas não são homens pré-históricos em
processo de evolução, como crêem alguns críticos. Na Palestina mesmo, havia
muitas cavernas de habitantes do tempo de Abraão.
Entre os filhos de Disã, um tem o nome de "Uz", que, pensam alguns, deu o
nome à terra onde se passou o drama narrado no livro de Jó. O resto do
capítulo dá-nos algumas genealogias de pouco interesse para nós.
A História de Jacó Continua - Genealogia de Jacó - 37:1-4
Isaque é morto e Esaú está morando em Seir. Jacó continua na terra das
peregrinações de seus pais. Esta parte do livro abre uma nova seção nas dez em
que o livro está dividida - as gerações de Jacó.
O livro de Gênesis termina com a genealogia deste patriarca. Não
esqueçamos que Jacó já está morando na terra que Deus prometeu a Abraão,
mas ainda é incapaz de possuí-la. Assim, viveu como estrangeiro na sua própria
terra até que seus descendentes estivessem capacitados para possuí-la, o que
só se realizou depois da volta do Egito. Daí em diante, José torna-se o
personagem por excelência. Sua pouca experiência, junto à manifesta
parcialidade de seu pai, fez que se criasse ódio entre os irmãos e a casa fosse
dividida. Há manifesto perigo em pai ou mãe demonstrar mais simpatia por um
filho ou uma filha, que pelos outros. Ninguém gosta de ser repudiado. Para
culminar na obra de odiosidade, Jacó fez a túnica de muitas cores para José, o
que ainda mais contribuiu para o tornar odioso aos irmãos.
Não se sabe bem que túnica era esta, mas os melhores hebraístas interpretam a
palavra como sendo um vestido comprido com mangas à moda oriental, mas
diferente, quer na cor, quer no feitio. Era a insígnia de preferência que Jacó
tinha por ele.
O Sonho de José - 37:5-11
A cumplicidade de Jacó e a inexperiência de José foram, na providência
de Deus, os meios para levar José ao Egito, a fim de preparar o lugar para a ida
da família. Quão insondáveis são os caminhos do Senhor! José tinha agora 17
anos, idade suficiente para se conduzir com prudência diante de seus irmãos,
mas parece que era simples de coração e sem malícia. O sonho, depois de
relatado, não deixou dúvida nos irmãos quanto às inocentes pretensões do
rapaz. Foi assim que lhe perguntaram: "Tu, pois, deverás reinar sobre nós?" O
sonho seguinte foi ainda mais impressivo, porque colocava pai e mãe debaixo
de sua autoridade. Por isso Jacó o repreendeu. Mas a insensatez de José foi ao
ponto de revelar ainda este sonho a seus irmãos.
Nota: Há muita gente que dá demasiado valor aos sonhos. O sonho foi
uma das mais antigas formas de revelação e a menos usada por Deus. Mas
lembremo-nos de que o tempo das revelações já passou, e hoje só podemos
depender da revelação escrita. Entretanto, há grupos de crentes que procuram
explicar cada sonho como uma revelação divina, quando nada há que autorize
este costume.
A Viagem Funesta de José - 12-29
Jacó está morando em Manre ou Hebrom (verso 14) porém as exigências
de pastagem para o gado demandavam a retirada dos pastores para lugares
distantes. Como já sabemos, toda a riqueza de Jacó consistia em formidáveis
rebanhos de animais, e não era fácil achar pastagem para tanto gado dentro dos
limites de uma aldeia. Os pastores iam de lugar em lugar, fazendo um circuito
de algumas léguas, até que voltavam ao lugar de partida, dando tempo para que
o pasto crescesse.
Outras vezes, tomavam na ida uma direção e na volta outra, indo e voltando por
lugares diferentes. Só depois de meses é que voltavam a casa. Os moradores
eram poucos, em comparação, e havia muito espaço para pastagem. Mais
tarde, tornou-se esta maneira de vida mais difícil, com o povoamento da terra,
deixando apenas as montanhas e os lugares imprestáveis para a agricultura.
Numa destas viagens, os filhos de Jacó demoraram mais do que era
esperado, e ele ficou apreensivo e mandou José saber como iam. José era como
Jacó seu pai, de natureza caseira. Ficou em casa fazendo companhia ao velho.
Os pastores tinham já viajado algumas léguas e não estavam mais no vale de
Hebrom, mas estavam em Siquém, talvez a oito ou nove léguas de Hebrom. Foi
neste lugar que se deu o triste caso entre os siquenitas e os filhos mais velhos
de Jacó. É estranho que tivessem vindo para este lugar. Possivelmente, tudo
tinha mudado entrementes e não havia mais perigo de uma represália. Mesmo
Deus fez cair tal temor diante do povo da terra para com Jacó, que ele e sua
família ficaram acobertados por esse respeito invisível. Andando de lugar em
lugar, perguntou José a um homem onde estavam seus irmãos. Este lhe
respondeu que em Dotã, lugar mais tarde célebre com Eliseu. Apenas o moço
foi visto pelos irmãos, planejaram o modo por que se veriam livres dele, visto
estarem longe de casa e ser fácil encobrir o crime. Havia muitas cisternas ou
poços por toda parte, para coletar as águas pluviais, a fim de abeberar os
rebanhos no tempo da seca. O primeiro ímpeto foi matá-lo e esconder o corpo
numa destas cisternas. Assim, não só ficava escondido, mas no caso de ser
descoberto, havia possibilidade de se dizer que tinha caído nela e tinha morrido
de fome. Rúben, o que tinha pecado contra o próprio pai, deitando-se com sua
concubina, deu conselho que, em lugar de matá-lo, o botassem dentro da
cisterna vivo, talvez para que logo fosse possível retirá-lo e restituí-lo ao seu pai.
Esta é uma nota agradável do caráter de um homem que aparece na história
bíblica com um feito tão triste. Rúben era, talvez, um desses homens de bom
coração, mas de paixões indomáveis, incapaz de dominar-se na hora do perigo.
Este conselho foi aceito e logo que José se abeirou deles, nada faltava para que
fosse eliminado o sonhador e acabados os seus sonhos. Pobre do homem que
se levanta para destruir os planos de Deus. Eles, porém, ignoravam a origem
daqueles sonhos. Tiraram-lhe a túnica e lançaram-no na cisterna. Entre estas
cisternas, havia algumas que não sustinham a água e talvez esta fosse uma
delas. Feito isto, sentaram-se para comer pão ou, como nós diríamos, para
almoçar ou jantar.
Passado algum tempo, não sabemos quanto, viram que se aproximava uma
caravana de mercadores, que descia ao Egito para vender as especiarias de que
o Oriente era tão rico. Gileade era célebre nestas especiarias. Judá alvitrou que
em lugar de matar o rapaz o vendessem a esses ismaelitas. Havia duas
vantagens neste conselho: a de evitar a morte de uma pessoa e a do lucro da
venda. Todos concordaram e, chamando os mercadores, venderam José por
vinte siclos de prata, o preço de um escravo. Rúben não estava presente
quando esta transação foi feita. Teria ido juntar algumas cabeças de gado que
se estavam tresmalhando. Quando voltou e não encontrou o irmão, ficou
desolado. Não se diz que ele foi notificado da transação, e sim que após sua
volta tingiram a túnica com o sangue de um animal, para enganar o pobre pai.
Entretanto, este negócio não teria ficado encoberto a Rúben, mas nada ele
poderia fazer, em benefício do irmão. Tinha o consolo de que pelo menos
estava vivo, e, talvez, de uma ou de outra forma, mais tarde, se pudesse
libertar. Nos versos 25 e 28, estes mercadores aparecem com dois nomes
diferentes, como se fossem duas diferentes caravanas. A explicação é fácil.
Tanto ismaelitas quanto midianitas, todos descendiam de Abraão. Os ismaelitas
eram filhos de Ismael. Os midianitas descendiam do quarto filho de Abraão e da
concubina Quetura. Ambos estes povos ocupavam mais ou menos o mesmo
território, e mais tarde os midianitas eram todos os que moravam em Midiã,
quer descendessem de Quetura, quer de Ismael.
A Mensagem a Jacó - 31-36
Estes versos terminam a triste história do pecado daqueles homens
desumanos e sua desfaçatez em trazer uma mensagem mentirosa ao aflito Jacó.
Um pecado chama outro pecado - Abyssus abyssum invocat. Vendido
José, era preciso inventar uma mentira, para encobrir o pecado. Não foi difícil.
A túnica estava tinta de sangue. Por que não crer que um animal feroz o tinha
devorado? Havia tantos naqueles lugares! Não podemos ler este trecho sem
sentir viva simpatia por aquele coração quebrantado, Jacó. Rasgou seus
vestidos e cobriu-se de saco, em sinal de profundo desgosto, recusando até ser
consolado. Por todo o resto de sua vida ia Jacó lamentar a perda do seu amado
filho. Vieram seus filhos e filhas (Diná e as noras, mulheres de seus filhos), mas
não o puderam consolar. Que consolo hipócrita teriam aqueles homens sem
coração para dar? Parece até que tão frio era este consolo que Jacó chegou a
desconfiar. Anos depois acusou os filhos de o terem desfilhado (43:39). Em sua
agonia, declarou que desceria à sepultura sem consolação.
A palavra sepultura é traduzida na versão Brasileira por "Sheol", que é a palavra
hebraica. Sobre o significado deste termo, na terminologia hebraica, há uma
imensidade de literatura que vale a pena ser consultada. Há, em geral, duas
opiniões. Primeira, que o termo descreve o estado dos mortos depois desta
vida. Segunda, que descreve o lugar destes mortos. No N.T. a palavra
correspondente é "Hades", que se aplica tanto ao lugar dos salvos quanto ao
dos perdidos. Os judeus usaram este termo indistintamente, para descrever o
lugar dos mortos sem se preocuparem com a condição destes mortos. No N .T.
prevalece o mesmo sentimento. Sheol ou Hades é o lugar para onde vão os
mortos, tanto salvos como perdidos. Os teólogos têm-se encarregado de
investigar se estes termos descrevem um lugar ou um estado. Entretanto, não
parece ser fácil uma solução aceitável para todos. Os católicos romanos
dividem os lugares do além em Limbo, Purgatório, Inferno e Céu. Os
Evangélicos rejeitam o Limbo e o Purgatório, ficando o Céu e o Inferno. Agora,
se os termos designam o estado das almas depois desta vida é impossível
verificar, porque, onde quer que ocorram, não há a menor explicação. (Ver I Sm.
28:19; II Sm. 12:23 e conf. Lc. 23:42, 43; II Cor. 5:6-8; 12:2-4; Ap. 6:8; 20:14.).
Estas últimas citações referem-se ao Paraíso e, comparadas com as outras,
verifica-se que o Paraíso e o Céu são uma e a mesma coisa. Somando-se todos
os resultados desta investigação, a conclusão natural é que Sheol e Hades são o
estado e não o lugar das almas depois de desencarnadas. Todas as almas vão
para a eternidade, isto é, para o Sheol ou Hades. Quanto aos lugares de gozo ou
sofrimento, não é uma questão que estes termos tenham de resolver. As
palavras de Jacó são que morreria, iria para a eternidade, sem ser consolado.
O último verso dá-nos a notícia de que José foi vendido a Potifar, capitão da
guarda de Faraó, no Egito, onde o encontraremos no capítulo 39.
Separação de Judá - Um Capítulo de Sua História - cap. 38
A história de José aqui é interrompida, para se introduzir a história do
irmão de cujo clã sairia o Leão da Tribo de Judá; este torna-se, na história
futura, a principal figura. É difícil determinar quando se deram estes
acontecimentos. Mas parece ter sido pouco depois da vinda de Padã-Arã. Este
capítulo foi aqui introduzido fora da conexão cronológica e histórica. É um dos
capítulos mais tristes de toda a história bíblica, e uma nódoa na vida de Judá.
Muita gente tem achado que um capítulo como este nunca deveria ser posto
num livro destinado à leitura de santificação e edificação. Mas esta gente se
esquece de que talvez não seja melhor do que os personagens da mesma
história aqui relatada. Certamente, não deve ser lido em lugares públicos nem
mesmo no culto doméstico, visto que há tantas outras Escrituras que podem ser
lidas, mas, ainda assim, ninguém tem o direito de chamar a Bíblia um livro
imoral, nem mesmo a este capítulo. A história é dada na sua maior
naturalidade, e, a não ser que o leitor tenha a mente cheia de preconceitos e o
coração cheio de rapina e pecado, não verá nada de imoral aqui, mas
simplesmente a história do pecado de um homem. Se a história de cada
homem pudesse ser publicada, por certo que teria mais ou menos cores
diferentes e linguagem e acontecimentos diferentes, mas, somadas todas elas,
dariam um resultado aproximado nuns, e pior noutros. Paulo diz que toda a
Escritura, incluindo este capítulo, foi dada por inspiração e serve para ensinar,
para corrigir e para instruir em justiça. Esta escritura serve para corrigir e evitar
que caiamos no mesmo pecado daquele homem, para que não colhamos os
frutos justamente como ele colheu. Deus, em seu saber inescrutável, achou de
colocar aqui esta história, que quiséramos nunca tivesse acontecido com um
servo seu, mas Deus quer mostrarmos o que o homem é: se os melhores fazem
assim, que não farão os piores ? Tudo é puro para os puros.
Não penso ser necessário dar um comentário minucioso sobre este capítulo,
para não agravar ou amenizar o seu conteúdo. Apenas registo alguns fatos mais
salientes, neste pedaço da história de Judá; à guisa de recomendação, note-se
que quase todo este capítulo se encontra substancialmente em Mateus 1:3,
sobre a genealogia de nosso Senhor.
O primeiro erro de Judá foi o de separar-se da família e procurar viver à
parte. Separado dos seus, caiu entre os habitantes da terra. Casou com uma
cananéia, de costumes e ideais diferentes. Seu primeiro filho, seguiu-lhe o
exemplo e também casou com uma cananéia. Este filho era tão mau que Jeová
o matou. Os crentes devem ser muito cuidadosos em contrair núpcias com
pessoas de outra fé. Morto Er, cabia, conforme o costume, a Onã suscitar
semente a seu irmão. Onã, sabendo que não seria sua esta semente, pecou
também e do mesmo modo Deus o matou. Duas mortes por causa de pecado.
Devia agora o terceiro filho de Judá cumprir a lei de manter a linhagem de seu
irmão, mas este era ainda novo e Judá pediu a Tamar, a viúva, que esperasse. O
rapaz cresceu e o pai parece que se esqueceu de dá-lo à nora, e deu a outra
mulher, porque temia que este também morresse. Tamar era mulher honesta,
e esperou pacientemente pelo cumprimento da promessa. Vendo, porém, que
ela falhava, usou de um estratagema, que nada melhor que o próprio texto
pode explicar. Os versos 12-23 dão-nos a história deste artifício, que à primeira
vista parece ser vergonhoso para Tamar, mas, à luz do tempo e dos costumes
entre eles, é o mais lícito e natural. Tamar seria considerada criminosa se se
entregasse a outro homem, porém, visto que Judá não tinha sido fiel para com
ela, dando-lhe o filho, apanhou-o por meio do estratagema. Judá, por sua vez,
merece a nota de censura, pelo ato que praticou. Tamar tinha direito à família
de Judá, mas este estava procurando ver-se livre dela, o que não era justo.
No meio desta história tão pouco recomendável, soa uma nota que, como um
raio de luz numa densa treva, nos envergonha a nós, os puros e civilizados deste
século das luzes. Logo que Judá soube que sua nora estava grávida, declarou
que ela era digna de morrer, e certamente morreria se ele não fosse o autor.
Em Canaã, como noutros países orientais, o meretrício era punido com a morte,
não sendo levada a efeito esta lei quando os interesses de famílias se
antepunham. Isto, porém, não invalida o princípio de que o meretrício era
considerado um crime. Em nossos dias, esta praga social, que é a vergonha e o
escárnio da civilização, é regulada por leis; nalguns países, e, em outros, é
deixada à vontade dos caprichos e volúpia dos libertinos.
Heródoto e Cícero dizem que o meretrício, ou melhor, o adultério, era um crime
grave, dando algo de descaso ao pecado das mulheres não casadas. Em outras
palavras, só consideravam o adultério entre pessoas casadas, deixando as
solteiras para se conduzirem como quisessem. A Bíblia desconhece este duplo
padrão de moral. Adultério dá-se tanto com mulheres casadas quanto solteiras,
dê-se-lhe o nome que se quiser. Não esqueça, entretanto, o leitor, que ao
homem do século vinte é difícil entender esta linguagem bíblica sem conhecer
os costumes das terras bíblicas e a franqueza de linguagem usada entre eles,
que a nós nos faz corar e que para eles era à linguagem natural. O artifício nas
palavras e os rodeios são coisas novas.
Os versos 27-30 dão-nos o nascimento dos dois filhos de Tamar e Judá. Um
deles era Farez ou Perez, de quem descendeu Davi, e por fim nosso Senhor.
Deste e de Zera, seu irmão, descendeu a tribo.
Só a certeza de que Deus age por sua imensa sabedoria nos consola
diante do fato de Jesus Cristo, segundo a carne, vir de uma família originada de
um ato de incesto e adultério. "E Judá gerou Perez e Zera de Tamar e Perez
gerou Esrom... " (Mat. 1:3). Por que assim o fez o nosso Deus? Alguém pensa
que foi para não dar lugar a que a pessoa escolhida para trazer ao mundo o
Filho encarnado de Deus fosse adorada, visto proceder de uma família com a
mais triste origem. Se este foi o propósito divino, não se sabe. Sabemos, no
entanto, que foi assim, que aprouve ao Todo-Poderoso. Com Davi, anos depois,
começou a linha direta até Jesus; e que homem aparece na Bíblia com nódoa
mais feia que ele? A Escritura que diz: Deus mandou o seu filho em semelhança
de pecado na carne é real e literal diante deste fato, narrado no capítulo 38 do
primeiro livro da Bíblia.
CAP. XXVI - JOSÉ NO EGITO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS COM ELE
(Caps. 39-46)
O capítulo 38 interrompeu a história de José por um momento.
Encontramo-lo agora, de novo, em casa de Potifar, a quem tinha sido vendido
como escravo. Estes capítulos (39-46) podem ser classificados como a história
da Providência na vida de um homem. Os que não compreendem o porquê de
muitas coisas, em suas vidas e os que não crêem que todas as coisas contribuem
para o bem daqueles que amam a Deus devem ler esta história. Não somente é
inspiradora mas é consoladora também. Quem poderia ver no ato iníquo e
desumano dos irmãos de José o dedo da Providência? Quão insondáveis são os
caminhos do Senhor!
Tinha de preparar seu povo para os grandes deveres da vida nacional na terra
prometida, e não havia na terra nação onde melhor este povo pudesse ser
educado. O Egito era, naquele tempo, o centro da civilização e das artes, e
nenhum povo ficaria mais apto para estes grandes privilégios do que aquele que
mantivesse com os egípcios longos anos de contato. José foi o escolhido para
preparar o caminho. Para executar o plano, ele, certamente, teve de sofrer
provações, que alguém chamaria de calamidades, mas o Deus que prova nunca
deixa de dar o conforto e a graça precisos para o triunfo. Potifar conheceu em
José um personagem de dotes e qualidades raros, doutra maneira não o poria à
frente dos negócios de sua casa. José prosperou e a casa de seu senhor
também, a ponto de este reconhecer que Jeová estava com ele (José). Não
esqueceu José sua religião, nem a ocultou, como muitos de nós fazemos. Jeová
tornou-se conhecido àquele incrédulo e este foi o primeiro resultado da ida de
José para o Egito. Tal foi a prosperidade e a confiança por ele conquistadas, que
toda a casa foi posta em suas mãos. Acompanhado da graça de Deus em sua
vida, tinha ainda a vantagem de ser "formoso de parecer, e formoso à vista".
Esta qualidade é rara, sobretudo quando se ajunta com estoutra, a honestidade.
Todo este conjunto fez do herói o homem de Deus para uma grande obra.
Todos nós podemos saber quando Deus está realizando sua obra por nosso
intermédio. Infelizmente, as condições mudaram e José, o servo de Deus, viu-se
de repente a braços com um problema sério.
A Tentação de José - 39:7-1 8.
Não sabemos quantos anos de paz e prosperidade José gozou na casa de
seu senhor. Sabemos que tinha 17 anos quando foi vendido, e pelo menos 5
anos tinha passado no Egito, pois que realizações tão grandes como as que se
deram com ele naturalmente tomaram tempo. Deus nunca age
milagrosamente, quando os meios naturais, são possíveis.
Imaginemos que ele tenha agora 23 anos. É jovem, belo, cuidadoso e de
grande influência em toda a casa de seu amo. A mulher de seu senhor pôs nele
os olhos e cobiçou-o. Corajosamente, repudia a oferta e declara que cometer
tal crime seria não só um pecado, mas abuso de confiança. Longe estava ele de
pensar nos perigos decorrentes de se recusar às fascinantes e insidiosas
palavras da mulher de Potifar. O "amor não correspondido gera o ódio", e foi o
que aconteceu. Munida com o próprio vestido de José, prova tremenda do seu
suposto crime, ela o denuncia a seu esposo, como um sedutor. José não se
pode defender da acusação. Estrangeiro na terra, ele teria perecido nesta
situação difícil, se Deus não fora com ele. Todo jovem deve ler esta passagem e,
inspirar-se na recompensa de Deus para com os que lhe ficam fiéis. José
preferiu arrostar com todas as conseqüências e ficar com a consciência limpa, a
gozar uma vida fácil, com todos os favores.
José na Prisão - 39:19-23
O crime suposto de José merecia a morte, mas, ou porque Potifar amasse
o rapaz, ou porque mantivesse alguma dúvida sobre a veracidade da acusação,
em lugar de matá-lo, mandou-o para a prisão. Não era a prisão comum, mas
aquela para onde iam somente os prisioneiros da casa real. Entretanto, não se
julgue que fosse um lugar delicioso. A prisão ficava mesmo na casa de Potifar,
num subterrâneo, possivelmente, como indica o texto hebraico. Neste lugar,
Jeová não abandonou o fiel jovem, que pôde resistir contra o pecado até o
sangue (Hb. 12:4). Deus deu-lhe graça diante do próprio carcereiro, como tinha
dado perante Potifar. Aquele o pôs como seu ajudante, e tudo que fazia estava
bem-feito. Em toda parte Jeová estava com José e em todas as contingências lhe
dava graça para achar favor diante dos que tinha de servir. Este incidente na
vida de José não teve, diante do seu próprio senhor, tanta gravidade como
geralmente se supõe, pela razão acima mencionada, de que Potifar talvez não
acreditasse na denúncia da esposa. Quando o copeiro e o padeiro de Faraó
pecaram e foram parar na mesma prisão, o carcereiro entregou-os, com pleno
conhecimento de Potifar, aos cuidados de José (40:4). É, pois, claro que o que se
tinha passado com sua mulher não tinha trazido demérito à confiança de que
José gozava.
O fato é que Potifar não podia deixar de punir uma denúncia contra um homem
que tinha sido apontado diante de todos os demais servos da casa como
perturbador da honra doméstica. Mas é difícil derrubar um homem que anda
com Deus e que nele deposita sua confiança.
É bem certa a palavra de Salomão, quando diz: "Há um homem que
perece por causa da sua justiça, e um perverso que prolonga sua vida fazendo
mal" (Ecl. 7:15).
O Copeiro e o Padeiro de Faraó na Prisão com José - cap. 40
Embora na prisão, José teve sua sorte amenizada pelos contínuos favores
de que gozava ali mesmo. Chefe de todos os prisioneiros, com a estima do
carcereiro e a aprovação de Potifar, ia dia a dia mostrando que seu coração era
reto e puro, e Deus tomava a si o encargo de o tornar cada dia mais aceitável a
todos. Os dois eunucos de Faraó, o padeiro e o copeiro, foram parar na prisão
também, na prisão real, que, como ficou dito, era na mesma casa de Potifar,
sendo este o capitão da guarda.
Os eunucos nas cortes orientais ocupam importantes papéis, sobretudo nos
haréns dos monarcas. Às vezes, desempenham funções de alta
responsabilidade, e, não raro, são as pessoas de mais confiança do rei. O
próprio Vaticano ainda conserva alguns destes eunucos, que são usados na
música da Capela Sixtina. São, aliás, os únicos encontrados num país cristão.
Contra tal mutilação em vida se levanta a própria Bíblia (Dt. 23:1; Lev. 21:20),
classificando-a de ímpia e desumana.
Não sabemos o que estes servos de Faraó fizeram para irem para a cadeia, mas
sabemos que a mais insignificante falta era punida com o maior rigor. Talvez
mesmo trivialidades ou, quem sabe, falta de fidelidade. Esta gente de ordinário
era intrigante, mexeriqueira, disputada e pronta para qualquer obra menos
escrupulosa.
Na prisão, teve cada um seu sonho. Muito mais que hoje, os sonhos,
naquele tempo, tinham grande significação, e toda sorte de interpretações se
procurava para explicar os sonhos. Isto era verdade, tanto entre os povos
pagãos quanto entre os hebreus, sendo que estes tinham seus profetas, que
eram os oráculos divinos.
Os sonhos eram de tal caráter que os dois prisioneiros ficaram aterrados. José
veio a eles e perguntou-lhes por que estavam assim tristes. Responderam que
não havia intérprete para seus sonhos. José afirma que as interpretações
pertencem a Deus. imediatamente, lhe contaram os sonhos, e ele os
interpretou. José tinha tido os seus sonhos e não sabemos se tivera ou não a
chave dos significados; todavia, agora o vemos com o discernimento da
interpretação. Ou ele possuía o dom de interpretação, ou Deus lhe deu essa
graça na ocasião, o fato é que revelou o que cada sonho significava. Parece que
esta revelação foi-lhe dada na ocasião.
No terceiro dia, os sonhos se cumpriram. No aniversário do rei, este restaurou
o copeiro-mor e enforcou o padeiro. O costume de fazer festa de aniversário é
bem antigo. O copeiro não mencionou o bom amigo da prisão, ou por
esquecimento ou por conveniência, mas Deus conservava a lembrança para
uma ocasião mais oportuna. Aqueles dias deviam ser, para José, de apreensão e
dúvidas, mas o bom Deus lhe deu graça para esperar a sua hora. Talvez depois
de dois anos tenha chegado a ocasião de o copeiro-mor se lembrar de José e em
circunstâncias muito mais favoráveis para ele. É coisa difícil esperar, mas é
melhor esperar, que agir antes do tempo.
Os Sonhos de Faraó - 41:1-13
Chegou a vez de José entrar em cena. Faraó teve dois terríveis sonhos,
que muito o perturbaram e que ninguém podia interpretar. Os sonhos de Faraó
nos são bem familiares e dispensam menção aqui. Entretanto, duas palavras
sobre sua importância não farão mal. O Egito seria um eterno deserto, se não
fora o Nilo que lhe empresta sua fertilidade. Somente ao longo do rio ou até
onde suas águas podem chegar há possibilidade de agricultura. Para isto, os
antigos Faraós empregaram milhares de homens na construção de canais, a fim
de levarem as águas do Nilo às partes mais distantes do deserto. As mais
célebres obras da engenharia antiga tiveram sua origem no Egito. O Nilo é
como o Amazonas, que cresce cada seis meses e baixa nos outros seis. Durante
o período de enchente, a terra é inundada e na vazante deixa o limo que as
águas trazem das partes altas.
Nisto consistia a grande fertilidade do Egito. O sonho de Faraó incluía espigas e
vacas. Isto devia ter despertado o seu espírito supersticioso, uma vez que os
sonhos se relacionavam com a vida do país. Os animais eram sagrados, sendo o
boi divindade muito adorada. Não somente isto, mas o fato de que as 7 espigas
e as 7 vacas devoravam umas as outras era singular. Todas estas coisas
contribuíram para tornar o sonho mais terrível.
Foram chamados todos os sábios, do que o Egito era fértil, mas nenhum
deu volta aos sonhos. Estabeleceu-se o alarma no palácio. Nesta altura, o
copeiro lembrou-se do prisioneiro que tinha interpretado seu sonho, e falou ao
rei sobre ele. Incontinente foi chamado o jovem hebreu à presença do rei. Para
quê? perguntaria José. "Para aumentar minha aflição ou para libertar-me?"
Neste caso, só uma grande confiança em Deus poderia dar um sopro de alívio.
José na Presença do Rei - 41:14-46
José apressadamente barbeou-se, mudou de roupa e foi à presença do
rei. O costume de fazer a barba não é hebraico, mas egípcio. Os orientais
aparecem nos monumentos de barbas compridas, enquanto que os egípcios são
representados de barba rapada. Estes detalhes históricos são uma evidência
irrefragável da historicidade da narrativa. O rei informou José acerca dos
sonhos e disse-lhe que nenhum dos sábios da terra os poderia interpretar.
Respondeu José que a faculdade de interpretá-los não reside nos homens, mas
em Deus. Jeová foi pela primeira vez anunciado diante de Faraó. Havia um
Deus fora do panteão egípcio, que reservava para si o poder de fazer o que
nenhum outro deus podia. Como obteve absoluta certeza de que Deus ia
revelar-lhe o segredo dos sonhos não nos é dito, mas podemos supor que José
estivesse investido das funções de profeta, e disto tivesse certeza, tanto porque
tinha já revelado o sonho dos outros, quanto ainda porque durante este tempo
Deus lhe teria dado outras demonstrações nesse sentido. A confiança com que
fala, não deixa dúvida sobre sua consciência de profeta. Os sonhos vieram de
Deus e só Ele podia dar a interpretação. Estes sonhos eram mais que sonhos,
em sentido vulgar, eram verdadeiras revelações. Deus revelou o futuro a Faraó,
mas reservou para seu servo a interpretação do que revelara.
Nos versos 25-36, José não só interpreta os sonhos, mas sugere a solução do
problema. Em dois sentidos, o escravo hebreu se mostra como um personagem
além do vulgar. Ele, seu pai Jacó, seus irmãos, a família eleita, enfim, estavam
movendo o mundo em seu benefício. Para que foi levado ao Egito? Ele mesmo
o disse mais tarde, que para a salvação da família tinha sido vendido para o
Egito. Não somente a família de Jacó tinha de passar por estes transes, mas o
Egito tinha de ser tocado. Esta, neste tempo, era a nação culta do mundo, o
centro das artes e das letras, e ali, melhor que em qualquer outra parte, podia a
nova raça ser treinada para os grandes misteres da redenção.
Depois que José interpretou os sonhos, deu instruções como preservar o povo
da morte pela fome durante os anos da seca, e com tal certeza explanou o
assunto, que não deixou a menor dúvida, nem em Faraó nem em seus príncipes.
Onde ir buscar um homem melhor do que ele para tomar conta da árdua tarefa
de aproveitar os anos de fartura para os anos da fome?
José É Escolhido para Príncipe sobre a Terra do Egito - vv. 37-57
Não teríamos a presunção de supor que sem Deus esta maravilhosa
transformação se tivesse operado. Por mais sábio que José se tivesse mostrado,
não seria mais que um sábio célebre entre muitos outros sábios, mas Deus teve
oportunidade de mudar o coração do rei e seus príncipes, e todos a uma
concordaram que José era o melhor homem para tomar conta da situação. A
corte estava reunida para ouvir o que o prisioneiro tinha a dizer, e a maneira
como se houve revelou duas coisas: era mais sábio que os outros sábios, e seu
Deus era mais poderoso do que os outros deuses do Egito. Esta foi a hora de
Deus para fazer José o único capaz aos olhos de seus príncipes para a grande
obra de preservação. Alguns críticos querem rejeitar esta história, por acharem-
na milagrosa, mas não há nada de milagres aqui. O que temos é um fenômeno
entre milhares de outros que Deus opera por sua divina providência no governo
do mundo. Quem nega a Providência tem de aceitar o acaso cego e
inconsciente, que deixa o mundo e os homens entregues aos seus caprichos. A
mão misteriosa da Providência na vida dos homens e das nações é mais
consoladora do que o acaso, o fatalismo ou qualquer outra idéia pessimista e
irreverente.
Nomeado príncipe sobre toda a terra do Egito, Faraó pôs-lhe no dedo o anel,
símbolo de autoridade real, o vestido de linho branco sinal de dignidade, e pôs-
lhe um colar de ouro no pescoço; depois, passando triunfalmente na segunda
carruagem real, com os arautos na frente, proclamando sua grandeza e
dignidade, estava indigitado a todas as honrarias principescas da terra do Egito.
À sua passagem, todos tinham de se ajoelhar, em sinal de obediência e mesmo
de reverência, porque o rei era pessoa sagrada no Egito. Como se um morto
saísse dá sepultura, assim José saiu da masmorra para ser elevado às
culminância da honra e dignidade. Mardoqueu foi elevado ao poder em
circunstâncias diferentes, mas quase pelos mesmos transes providenciais. Para
assegurar a obediência popular e garantir o sucesso do ex-escravo e prisioneiro,
o rei casou José com a filha do sacerdote de Om, um dos mais reverenciados
deuses do Egito, de modo a fazê-lo uma pessoa da terra e sagrada.
Há muitas possibilidades de que o Faraó que reinava no Egito fosse de origem
estrangeira, o que, em caso afirmativo, simplifica muito este estupendo transe
na vida de José. Sabe-se que o Egito foi invadido por pastores vindos do
Oriente, os quais deslocaram os monarcas nativos para o sul e se apossaram da
terra e a governaram por mais de 600 anos. A cronologia egípcia é ainda difícil e
confusa em muitos lugares, mas as melhores investigações e conclusões
colocam esta invasão poucos anos antes de Jacó descer ao Egito com sua
família. Outra coisa ainda não verificada com certeza é se esses pastores eram
semitas ou não, mas tudo favorece a idéia de sua origem semítica, a julgar pelos
traços de civilização que deixaram na terra do Egito. Este fato por si só reduz à
metade a admiração que muitos críticos sentem, pelo fato de um monarca
poderoso colocar à frente dos negócios de seu reino um escravo estrangeiro. O
mesmo Faraó seria estrangeiro, e possivelmente semita, ou seja, da mesma raça
de José. A expressão em Êx. 1:8, que se levantou um rei que não conhecia José,
é tomada como indicação de que a dinastia dos hicsos ou reis pastores já tivesse
sido expulsa, tendo a expulsão como primeiro reflexo a vingança sobre os
estrangeiros.
Tal foi o rancor que estes usurpadores criaram no Egito, que, ao serem expulsos,
tudo que desse sinais de seu governo foi raspado dos edifícios públicos.
Após ser investido das honras reais, José pôs-se de viagem por toda a
terra, fazendo preparativos e tomando as providências que o caso exigia. O
sonho cumpriu-se à risca, e eis que sete anos de abundância foram sucedidos
por outros sete, de fome. Durante os anos de abundância, José recolheu em
armazéns, para os anos de fome, tudo que sobrava, e, como veremos mais
tarde, o Egito tornou-se o celeiro do mundo. Alguns comentadores pensam que
a fome veio corno conseqüência da não inundação do Nilo. Se isto é verdade,
houve outras causas, porque por toda a Palestina houve fome. No Egito a falta
de chuva não tinha realmente muita importância, uma vez que o Nilo inundasse
as terras, o que não acontecia na Palestina e noutros lugares. Possivelmente,
nem o Nilo subiu mais na época própria, nem choveu por alguns anos. Aliás, as
secas periódicas no Oriente não nos admiram, porque são conhecidas de todos,
e em Gênesis mesmo notamos que Abraão e Isaque tiveram de emigrar por
causa da fome causada pela seca. O nosso Nordeste oferece muitos pontos de
contato com o Oriente, neste sentido.
Os Irmãos de José Descem ao Egito. O Dia da Vingança - 42:1-4
Os efeitos da fome tinham-se feito sentir por toda aquela região,
inclusive na Palestina, a terra de nossos heróis. Portanto, a seca não atingiu
somente o Egito. Esgotados todos os recursos locais, correu a notícia de que no
Egito havia trigo em abundância. O Egito foi por muitos séculos o celeiro do
mundo, graças à sua fertilidade, causada pelas inundações periódicas do Nilo.
Jacó soube dessa boa-nova, e perguntou aos filhos por que ficavam indecisos e
não iam logo comprar trigo, antes que morressem de fome. A linguagem é bem
significativa. Ir ao Egito, o lugar para onde nós vendemos nosso irmão? "Quem
nos diz que ele não nos encontrará ali e nos reconhecerá?" A consciência é coisa
temível! Com razão, relutavam em descer ao Egito. Finalmente, os filhos mais
velhos resolveram ir, deixando em casa Benjamim, porque Jacó não consentiria
que a última amostra do amor de sua Raquel se expusesse, desconfiando que o
outro filho tivesse sido destruído pelos próprios irmãos mais velhos.
José Encontra Seus Irmãos e os Reconhece - vv. 5-20
O trigo estava depositado nas cidades do Egito, onde os nativos o podiam
comprar, mas os estrangeiros tinham primeiro de falar com o governador, antes
de fazer qualquer transação. Digamos que tinham de apresentar documentos
comprobatórios de que não eram espiões. Os irmãos de José tinham
fatalmente de encontrá-lo. Provavelmente, ele sabia que eles mesmos teriam
de vir, e por isto estava de sobreaviso. A este tempo, José já sabia do desígnio
da Providência em ter dirigido todos os negócios e ter consentido na sua venda
para aquela terra. Assim, era-lhe muito fácil conhecer seus irmãos, porque os
esperava, enquanto que a estes era difícil, porque mal sabiam se ainda viveria
ou onde estaria, visto que como escravo deveria ter tido uma vida penosa e de
pouca duração. Os pobres escravos usualmente morriam debaixo do azorrague
do capataz. Ao mesmo tempo que assim raciocinavam, nada lhe podia
assegurar que estavam livres de se encontrar com o irmão, e daí sua irresolução
em descer ao Egito.
Quando estes homens violentos chegaram junto de José e se curvaram até à
terra, lembrou-se dos sonhos, em que via todos os seus irmãos se curvarem
diante dele. Reconheceu-os e falou-lhes asperamente, acusando-os de espias.
Para se defenderem, tiveram de contar toda a sua história e de como, sendo
todos filhos do mesmo pai, um dos irmãos tinha desaparecido. José descreu de
todas as histórias e exigiu como prova de que não eram espias que o irmão mais
moço viesse, e pôs a todos na prisão por 3 dias. Depois, lembrou-se de que seu
pai e irmãos estariam passando fome, e soltou-os, vendendo-lhes o trigo, mas
exigindo que um deles ficasse como refém, até que fossem e trouxessem o
outro irmão. O motivo alegado por José, para não cumprir a sentença, foi que
temia a Deus. Estas palavras deviam ter consolado muito os pobres homens.
O Despertar da Consciência dos Irmãos de José - vv. 21-24
Para que aqueles homens se tivessem podido entender, houve
necessidade de intérprete (verso 23), para desta forma não haver a menor
suspeita; entretanto, José entendia tudo que seus irmãos diziam. Despedido o
intérprete, podiam falar à vontade, porque o governador nada entendia.
Abriram o coração e começaram a falar da infame transação que tinham feito
com o irmão mais moço. Rúben acrescentou e disse: não vos falei eu, dizendo:
"Não pequeis contra o rapaz? E vós não me ouvistes... " José estava ouvindo e
entendendo tudo isto! Como devia estar seu coração! Retirou-se deles e
chorou. Alguns críticos negam a historicidade desta narrativa, incluindo-a entre
as histórias fantásticas do Oriente, mas esta não admite possibilidade de
negação. É uma história viva, detalhada, cheia de transes atuais, sem o cunho
das histórias fabricadas ou inventadas.
José Vende o Trigo aos Irmãos e Eles Partem - vv. 25-38
Na ordem de encher os sacos, estava a de pôr dentro deles o dinheiro do
preço do trigo. O fim, por parte de José, era tornar a situação mais precária, em
seu benefício e no de seus irmãos mesmo. Estavam em suas mãos para tudo,
visto que a continuação da vida estava nos celeiros do Egito e, com todas estas
peripécias, tinha por fim provar-lhes sua sincera amizade e perdão. No
caminho, um deles abriu o saco e encontrou o dinheiro, o que foi tomado por
mau augúrio, mas parece que não teve peso demasiado, e atribuíram o fato a
um engano por parte do encarregado da venda do trigo.
Em chegando a casa, contaram o ocorrido a seu pai, e Jacó viu que todo o mal
que temia lhe batia à porta. Benjamim era forçado a descer ao Egito, ou Simeão
não seria libertado. Abriram os sacos e encontraram o dinheiro do preço.
Ficaram assustados, mas, como pretendiam voltar, levariam o dinheiro e
provariam que eram sérios e não o tinham feito dolosamente. Jacó, porém, não
se conformava com a idéia da saída de Beniamim. Acusou os filhos de terem
deixado Simeão preso e queixou-se amargamente da perda de José, como
querendo dizer que eles eram culpados. Rúben intervém e oferece seus dois
filhos como garantia de que Benjamim voltaria e, no caso negativo, poderia
matá-los. Aliás, esta não foi a primeira vez que manifestou bons sentimentos,
ainda que inconstante em outras coisas. O velho patriarca não se deixou
convencer. De que lhe serviria receber a vida de dois netos, se o que queria era
o filho Benjamim?
GÊNESIS - COMENTÁRIOS DE A. N. MESQUITA
CAP. XXVI - JOSÉ NO EGITO E A PROVIDÊNCIA DE DEUS COM ELE
(Caps. 39-46)
Forçado pelas Circunstâncias, Jacó Consente na Ida de Benjamím,
Garantido pela Vida de Judá - 43:1-14
A fome se tornava cada vez mais terrível na terra e, depois de esgotado o
suprimento trazido da primeira vez, Jacó pediu que voltassem para trazer mais.
Podemos imaginar o formidável suprimento que tinham trazido, porque Jacó e
sua família faziam o número de 70 pessoas, afora os muitos servos, e todos
tinham comido, talvez, por dois meses. Ao mesmo tempo era rico. Senão,
como poderia comprar mantimento para tanta gente e ainda prometer pagar
dobrado, quando o dinheiro foi encontrado nos sacos? Judá disse que
absolutamente eles não poderiam ver o rosto do homem da terra sem que
levassem o filho mais novo. Assim, tinha dito o governador. Jacó maldiz-se e
acusa os filhos de terem contado que tinham outro irmão. Mas o momento não
admitia indecisões, eles tinham de ir ou então perecer, e isto José bem sabia.
Judá oferece-se como garantia da vida de Benjamim, dizendo que, se não
tivesse sido a demora, já podiam estar de volta a segunda vez.
Jacó resolve consentir na ida do filho amado e pede que levem alguns
frutos da terra e algumas especiarias e quantidade dobrada de dinheiro, para
pagar o trigo da primeira viagem. Embora não tivessem colheitas, não estava a
terra de todo desolada. Encomendou-os à graça de Deus e conformou-se com o
que pudesse acontecer quanto a Benjamim. De Hebrom, onde moravam, a Zoã,
onde José habitava, era viagem de pelo menos duas semanas, pelo que
inferimos que devia haver ainda em casa algum resto da primeira compra.
GÊNESIS - COMENTÁRIOS DE A. N. MESQUITA
Outra Triste Surpresa para os Filhos de Jacó - vv. 15-25
Munidos dos presentes para José, retornaram ao Egito os filhos de Jacó,
para de lá trazerem nova remessa de trigo. À vista da presença de Benjamim,
deu José ordem ao seu copeiro-mor, que preparasse o banquete, para jantar
com seus irmãos. Contra os costumes egípcios, mandou matar reses, dando-
nos, assim, uma pálida idéia do que foi o banquete. Os egípcios consideravam
sagrados os animais e até lhes prestavam culto. Aos irmãos, mandou levá-los
para casa.
Não sabendo do que se tratava, começaram a apresentar desculpas
sobre o dinheiro que tinham encontrado nos sacos, pensando que iam ser
chamados a contas por aquele fato. O criado procurou consolá-los o melhor
que pode, afirmando que o Deus deles e de seus pais lhes tinha dado tesouros
escondidos. Para um gentio era coisa natural falar deste modo, ironicamente,
porque Deus não era por ele conhecido, nem nada significava para ele. Foi, sem
dúvida, uma hora de perplexidade para aqueles homens. Com um grande
número de coisas na consciência, umas acusando, outras absolvendo, mas todas
elas apontando para o crime da venda do irmão, o que já se tinha constituído
um espantalho em suas vidas, pensavam que todos estes transes eram lógicas
conseqüências do seu feito. O consolo do despenseiro de pouco lhes serviria
diante de tantas apreensões.
O Jantar de José e Seus Irmãos - vv. 26-34
A esperança dos homens estava no presente que iam fazer ao homem da
terra. Esses presentes tinham maiores proporções do que somos capazes de
crer. Talvez alguns camelos carregados de especiarias e frutos. Logo que José
apareceu, perguntou-lhes pelo pai, e pondo os olhos no seu irmão Benjamim
teve de retirar-se para não chorar diante dos outros. Entrou no seu
apartamento e chorou. Recompondo-se ou dissimulando a emoção, mandou
pôr o jantar à parte para os irmãos, por não ser permitido a um egípcio comer
com outra gente, e mandou assentá-los à mesa na ordem de suas idades,
dobrando o prato de Benjamim cinco vezes mais do que o dos outros. Todos
estes detalhes deveriam ter produzido séria impressão e estupefação. Ele
mesmo serviu de copeiro, repartindo a porção de cada um, no que se
maravilharam, mas nada compreendendo.
Foram momentos de relativa consolação para aqueles homens acossados pela
consciência, mas que duraram pouco. Acabado o jantar, deu José ordem ao
despenseiro para encher os sacos para os filhos de Jacó e despedi-los,
ordenando que botasse no saco de cada um o dinheiro, e no de Beniamim o seu
copo de prata. Tudo isto foi feito sem os irmãos saberem. O copo era parte
importante da etiqueta egípcia: servia tanto para uso da mesa, como para fins
de magia: punham dentro dele pedras preciosas, ouro, prata e depois o
enchiam d'água e, conforme as figuras que se desenhassem dentro do copo,
tirava-se a conclusão acerca dos acontecimentos futuros.
Há ainda hoje um costume no Brasil que bem se parece com ele: o de, na noite
de São João, botar a clara de um ovo num copo d'água e descobrir as figuras
que se formam e daí pressagiar o futuro do ano.
Logo que amanheceu, puseram-se os homens a caminho para Hebrom,
radiantes de alegria por tudo ter saído tão admiravelmente. Mas, mal tinham
saído das portas da cidade, quando foram alcançados pelo servo de José e
acusados de roubo. Surpresos e ao mesmo tempo confiantes de que a acusação
fosse improcedente, não trepidaram em dar a vida do que fosse encontrado
criminoso, ficando os outros mesmos como escravos. O despenseiro aceitou a
proposta, e, sem detença, abriu cada um seu saco, até que foi aberto o de
Benjamim, e eis que lá estava a taça de prata. Seu pecado os tinha afinal
apanhado, pensaram, e, rasgando seus vestidos, tristes até a morte, por tão
grande fatalidade, voltaram à cidade.
José os estava esperando. Logo que o viram jogaram-se a seus pés, em
desesperada aflição. Repreendeu-os. Em resposta disseram que sua iniqüidade
tinha sido descoberta e ofereceram-se para ficar por servos. Judá tomou a
palavra e disse que nada podiam dizer. De que serviria apresentar desculpas,
quando a falta estava à vista? Terrível situação! De um lado, a consciência da
inocência, do outro, a lembrança do velho pai, que esperava ansioso pela volta
tão problemática do filho querido. Hora aflitiva! No meio de tudo isto, só uma
coisa era real em suas consciências: a iniqüidade que tinham praticado havia 23
anos passados. E isto bastava para atormentá-los. José rejeitou a oferta de
todos ficarem como escravos e pediu que ficasse apenas aquele em cujo saco
foi encontrado o roubo. Se todos ficassem como escravos, seria mais fácil.
Como poderiam eles aparecer diante do pai sem o filho cuja partida tanta
relutância causou a Jacó? Judá tomou a palavra e explicou tudo a José, pedindo
que o aceitasse em lugar de Benjamim. O propósito de José parece ser
averiguar se seus irmãos mantinham para com Benjamim a mesma atitude que
tiveram para com ele e, sem dúvida, logo se convenceu de que as experiências
dos últimos anos tinham mudado o coração de seus irmãos.
O discurso de Judá não comporta comentos. Sublime e admirável, cheio de
lances emocionais e amorosos, revelando uma alma sincera e tocante,
permanecerá por toda a eternidade como uma gema da literatura bíblica, sem
superior no gênero. José não pode mais: rendeu-se, convencido de que diante
dele não estavam mais aqueles irmãos desumanos, indiferentes às suas
súplicas, mas um grupo de penitentes, prontos a remediar a falta, se porventura
fosse possível. Deu-se a conhecer, pois, aos irmãos, como recompensa pela
transformação que se tinha operado neles.
José Dá-se a Conhecer a Seus Irmãos - 45:1-15
A cena tinha chegado ao ponto culminante. José tinha agido como bom
ator, mas o papel chegou a tal ponto que não pode prosseguir mais. Fez sair
todos os servos de sua presença e declarou aos irmãos quem era, com a voz
cortada por soluços. Seus irmãos não se podiam ter diante dele, estarrecidos
pela declaração de que aquele homem era o irmão que tinham vendido para o
Egito. Tal foi o alarde, que na casa de Faraó foi ouvido o choro.
Passado o momento da emoção mais forte, José perguntou por seu pai,
para se certificar de que tudo que tinha ouvido não era sonho. Depois procurou
amenizar a impressão de remorso que a revelação tinha produzido naqueles
homens, dizendo que por determinação divina foram eles levados a vendê-lo,
para que por esta forma escapassem da terrível fome que estava assolando
toda a terra. Isto devia cair como um bálsamo no coração dos irmãos de José.
O pecado deles ficaria indelevelmente gravado em seus corações, mas a idéia de
que esta falta tinha resultado tão grande bem devia dar-lhes certo consolo.
José procurou mostrar-lhes que não mantinha para com eles qualquer
ressentimento, e que era tempo de pensar mais no futuro que no passado.
Apressa-se, pois, a perguntar por seu pai e ordena que partam imediatamente e
o tragam, para que, por todos os anos de miséria que ainda faltavam, pudesse
ser cuidado com o carinho que um bom filho deve dispensar a um pai idoso.
José tinha sido amplamente galardoado por Deus, por toda a sua fidelidade.
Pôde ver finalmente como sua obediência tinha recebido recompensa. Daí o
não querer agravar a culpa dos irmãos. Pede que subam e tragam, sem perda
de tempo, o velho pai e lhe dêem a boa-nova de que José ainda vive e é grande
na terra do Egito. Que Jacó viesse, pois, a Gósen a melhor e mais fértil parte da
terra, que teria lugar para seus rebanhos.
Na despedida, José se lançou ao pescoço de Benjamim e chorou.
Faraó Sabe da Vinda dos Irmãos de José - vv. 16-28
Alguém que vira a cena fora contar a Faraó que os irmãos do governador
tinham chegado. Faraó mandou chamar o seu ministro e ordenou-lhe que
dissesse aos irmãos que carregassem as bestas e rumassem sem demora a
Canaã, para buscar o velho pai, e disse que do melhor da terra ele comeria.
Duas coisas são claras aqui. Primeira, o modo por que Deus dispõe os
acontecimentos e os corações dos homens para servir seus eternos desígnios.
Segunda, o fato de que, a não ser que esses Faraós sejam os chamados hicsos
ou reis pastores (que governaram o Egito por 600 anos e, portanto, eram
estrangeiros ali também e, possivelmente, da mesma raça de José), é difícil
admitir tanta liberalidade e complacência para com um povo estranho. Os
egípcios não costumavam dispensar honrarias e favores a outros povos da
maneira que notamos aqui. Para eles, todos os demais povos eram bárbaros,
corno para os judeus, anos depois, todos que não eram judeus eram gentios,
povos que nada mereciam, e como para os gregos, quem não era grego, era
bárbaro. É admirável como o Senhor do mundo toma a História em suas mãos
para servir aos seus desígnios. Desalojou a dinastia nativa e colocou no trono
uma estrangeira, para melhor poder hospedar aqueles que iam ali receber
luzes, a fim de serem mais tarde os mestres da religião e da moral em todo o
mundo.
Os versos 25-28 nos dão a nova de como Jacó recebeu noticias do filho perdido.
Por mais de uma vez temos notado que duvidava da veracidade da história
contada pelos filhos em relação a José. Os incidentes do Egito deviam ter
despertado em sua mente certos pressentimentos. Quando lhe foi dito que
José ainda vivia, não suportou a nova, não acreditou nos filhos. Tantas tinham
sido as trapaças deles, que pouco crédito restava para as suas afirmações,
sobretudo, no tocante a José. Como, porém, lhe contassem tudo e de como
deviam descer ao Egito, logo seu coração reviveu. E disse: "Vive ainda meu filho
José! ... "
CAP. XXVII - IMIGRAÇÃO E RESIDÊNCIA DE JACÓ E SUA FAMÍLIA NO EGITO
(Caps. 46-50)
Nos versos 1-7 deste capítulo temos detalhes da descida de Jacó ao Egito,
depois de ter oferecido sacrifícios ao Deus de seu pai. Deus lhe aparece em
sonhos e diz-lhe que não tema descer, porque ali lhe faria uma grande nação.
Jacó ainda estava morando em Hebrom, mas velo a Berseba oferecer os
sacrifícios no velho altar da família. O passo que ia dar era da maior
importância, e por isso escolheu o antigo santuário para este sacrifício, e para
certificar-se de que esta era a vontade de Deus. Certamente, devia ter receios
justos de descer a uma terra estranha já nos últimos dias de sua velhice; não
viesse ele a sacrificar todo o futuro da raça. Deus manda que vá, porque fará
dele uma grande nação e o fará voltar, e que José fecharia os seus olhos,
ajuntando que Ele mesmo desceria a Jacó, para garantir a viagem. Conforme
esta promessa, Jacó seria multiplicado por muitos milhares, Deus o guardaria ali
e, depois de findo o tempo, faria subir sua semente da terra do Egito, como
aconteceu anos depois no tempo de Moisés. A promessa de que José fecharia
seus olhos indica que não seria abandonado e morreria debaixo de todo carinho
e cuidado.
A Linhagem de Jacó Que Foi ao Egito - 46:8-34
Nesta lista temos os nomes dos filhos de Jacó, no total de 70 pessoas (v.
27), incluindo José, seus dois filhos e o próprio Jacó. Entretanto, devemos
compreender que era muito maior o número de pessoas que acompanharam
Jacó na sua ida da terra de Canaã. O verso 26 exclui as mulheres dos filhos de
Jacó, como não pertencendo à sua geração. Estêvão, em Atos dos Apóstolos
(7:14), dá o número de 75 pessoas que desceram ao Egito com Jacó, mas
baseou suas palavras no texto da LXX, que, por qualquer razão a nós
desconhecida, acrescenta certos filhos a Manassés e Efraim, fazendo o total de
75. O número exato é de 70 pessoas, mas precisamos saber que Jacó tinha
numerosa criadagem e que toda ela foi com ele, mas não foi contada, por não
fazer parte do povo escolhido. Os hebreus ficaram no Egito 430 anos, segundo
Êx. 12:40, e quando voltaram dali, somavam, talvez, dois e meio ou três
milhões, o que dá uma idéia do crescimento descomunal, ainda que se
multiplicassem milagrosamente. Quatro gerações não é tão pouco para tal
crescimento. Podemos conceber que além da família de Jacó foi muito mais
gente que, por ter sido circuncidada, fazia parte da família, manda que não
fosse contada como sendo descendente, e que na saída do Egito muitos
escravos e mesmo egípcios, que tinham visto a salvação de Deus e se tinham
interessado neste povo, saíram com eles, fazendo, assim, uma multidão maior
do que era de esperar. As muitas queixas e murmurações dos israelitas, pelo
deserto, devem ter sido causadas por este elemento estranho, que tinha
aproveitado essa boa oportunidade para sair daquela terra de escravidão.
Judá foi mandado adiante para avisar José de que o seu pai tinha chegado. O
encontro foi o que se podia prever. Linguagem humana, por mais dramática
que seja, não descreve fielmente aqueles transportes de alegria e emoção. Por
isso, deixo o leitor apreciar esta cena tocante descrita pela linguagem singela da
Bíblia. Depois que choraram, o pai sobre o pescoço do filho, e o filho sobre o do
pai, disse este: "Morra eu agora, pois tenho visto o teu rosto, que ainda vives."
Tudo estava em boa ordem quanto ao estabelecimento do povo em Gósen; só
faltava avisar Faraó de que tinham chegado. Ainda que ele mesmo tinha
mandado que viessem, convinha que fosse notificado e, se, como se crê, a
dinastia reinante fosse estrangeira, convinha tomar todas as precauções para
que a vinda de um grupo tão grande não suscitasse qualquer levante. Por outro
lado, os egípcios odiavam a vida pastoril, por causa do culto que prestavam aos
animais, de modo que era bom que Jacó tomasse um lugar separado da vida
egípcia. Tomadas estas providências, José ensina como se deviam
portar diante de Faraó, a quem seriam apresentados, para que recebessem
permissão de permanecer no país e negociar. Ao dizerem o que eram e de que
viviam, deviam pedir a terra de Gósen, por ficar separada do centro populoso,
para que assim não houvesse motivo de contenda entre eles e os egípcios. A
terra de Gósen era uma das partes mais férteis de todo o Egito e em tal situação
topográfica que os hebreus podiam manter seu culto e vida social sem contato
com os egípcios. Não é possível dizer com segurança que parte do território
compreende Gósen, mas é certo que esta região ficava ao Norte, perto do Delta,
e era de fácil acesso a Canaã.
José Apresenta Cinco de Seus Irmãos a Faraó - 47:1-6
Depois das primeiras demonstrações de afeto a seu pai e irmãos, José
seguiu para o palácio a avisar Faraó da chegada da sua família, que se
encontrava na terra de Gósen, onde desejava que ficasse. Conforme
o que fora combinado, apresentou cinco irmãos ao rei, que ficou satisfeito com
a escolha que tinham feito de Gósen, para nela morarem. Ficou entendido que
vinham apenas passar algum tempo, enquanto durava a fome, e isto era o que
eles mesmos esperavam, mas Deus tinha outro plano. Esta parte do país é
chamada "terra de Ramessés". Ramessés foi um dos monarcas mais poderosos
do Egito, que alguns pensam ser o Faraó da opressão. Como este nome é
mencionado aqui antes de a pessoa existir (ainda que o nome podia ser
conhecido entre os egípcios), não sabemos. Noutro local foi feita a observação
de que Ramessés era um nome nacional, que depois veio a ser de alguns
monarcas.
Quando os irmãos de José foram apresentados ao rei, este mandou que fossem
administradores do seu próprio gado. Os egípcios não eram pastores e
detestavam a vida pastoril, mas parece que no caso atual o próprio rei tinha
rebanhos. Se este Faraó era da dinastia usurpadora e que é conhecida na
História pelo nome de reis pastores, que tinham vindo da Ásia, explica-se a
existência de rebanhos do rei e também fica explicada a facilidade com que uma
tribo estrangeira foi recebida no Egito com todas as honras. Conforme isto,
tanto Jacó quanto o próprio Faraó, eram estrangeiros e, provavelmente, da
mesma raça semita; logo, deviam proteger-se mutuamente.
Jacó é Apresentado a Faraó
Ao ser apresentado a Faraó, Jacó abençoou o rei e, ao sair, o abençoou
outra vez. Jacó não presumia ser o que realmente era e não se julgou superior
ao rei em sentido algum, mas, pelo fato de que era homem religioso e que cria
no poder de Deus, abençoou-o, ou antes, desejou-lhe todas as felicidades pelos
favores que lhe estava prestando. Como faríamos hoje, esta bênção era uma
prova de gratidão e uma expressão de desejo de prosperidade e felicidade.
Faraó perguntou a Jacó quantos anos tinha, e este respondeu que poucos e
maus eram os anos de sua peregrinação. Cento e trinta anos era a idade do
servo de Deus, o que julgava insignificante, à vista dos anos de seus ancestrais.
A vida destes patriarcas era de peregrinações. Consideravam-se como
estrangeiros em terra estranha, esperando ser recebidos em sua própria terra.
A vida neste mundo era para eles passageira e incerta. A verdadeira vida estas
,a muito além da própria Canaã. Realmente, Jacó tinha tido uma vida bastante
acidentada. Desde moço foi obrigado a fugir de casa. Em Harã passou pelos
maiores dissabores e desapontamentos. Na volta, quando parecia ter melhores
dias, teve o encontro com o irmão, o que lhe custou serias apreensões.
Houve a infelicidade da filha única e o terrível desfecho em Siquém. Depois a
suposta morte do filho querido, a fome e seus tristes resultados e, finalmente,
já no último quartel da vida, forçado a ir a uma terra estranha, valer-se da
influência de um filho, que bem poderia cair de um momento para outro.
Poucos e maus tinham sido seus dias, repetimos nós. A não ser depois de
estabelecido na terra, quando teve relativa paz, podemos dizer que toda a sua
vida foi agitada. Pensando em Jacó, podemos ganhar confiança para nossas
atribulações. Muitas vidas cristãs parecem-se com a de Jacó. Mas no fim
terminam com a mesma bonança dos que passam muitos e bons dias. Se não
fosse a confiança de Jacó no seu Deus, teria sucumbido.
O Quinto para Faraó - 47:13-26
A história secular informa-nos que os egípcios pagavam o quinto ao rei,
bem como toda a terra do Egito pertencia a Faraó, e que os egípcios tinham o
direito de cultivá-la, pagando dos rendimentos a quinta parte. Este costume
perde-se na noite dos tempos, mas a Bíblia nos diz onde e como se originou.
Não havendo mais pão na terra e somente nos celeiros reais, que pela previsão
de José estavam repletos, o povo veio a José por causa do pão. Pediu os
animais que os egípcios tinham para fins de agricultura. Depois vieram para
comprar mais e como nada mais tivessem para dar, entregaram as terras, de
modo que no fim desse período todo o Egito era propriedade do rei. Somente
as terras dos sacerdotes ficaram fora desta solução, pois eram consideradas
propriedades sagradas. Esta foi a condição do Egito, quando os gregos, séculos
mais tarde, chegaram ali, e que nos tem sido transmitida em suas memórias.
Não devemos imaginar que todos os egípcios possuíram terras, porque o Egito
era essencialmente um país de escravos.
Na construção de uma das pirâmides do antigo império trabalharam
200.000 operários por espaço de 20 anos, e este número era revezado cada 3
anos, por não resistirem os escravos mais do que este tempo em trabalhos
forçados. Só nessa obra monumental, calcula-se que um milhão e quatrocentos
mil escravos foram usados. Tudo que se possa dizer desses infelizes ainda será
pouco. O calor é exaustivo e o tratamento cruel, de maneira que a vida dos
escravos era a mais penosa e miserável que se poderia imaginar.
Quando passaram os anos de fome, todo o povo e toda a terra eram
propriedade real. José deu-lhes semente e distribuiu-os por todo o país, para
que a cultivassem, dando para o tesouro um quinto. O costume de dar uma
parte das colheitas para o rei é muito antigo. Entre os semitas perde-se na
História. Quando Melquisedeque foi ao encontro de Abraão, este lhe deu os
dízimos ou a décima parte. Já este costume estava em voga nesse tempo. O
dizimo foi depois incorporado à Lei como uma necessidade pública na
manutenção do sacerdócio e como uma ensinança religiosa de que a terra
pertence a Jeová e que o povo é seu, foi comprado, tanto quanto José comprou
os egípcios. Não é demais que ainda hoje se pratique este costume, porque o
que temos é dado por Deus, e nossas vidas e propriedades pertencem-lhe por
natureza.
Jacó Mora 17 Anos no Egito, Dá Ordens Quanto à Sua Sepultura e Faz
Declarações Quanto ao Futuro do Seu Povo - 47:27-31
Dezessete anos de vida pacífica tinha Jacó vivido no Egito, durante os
quais tinha visto a prosperidade de seus filhos e a alegria do seu amado José.
Foram talvez os melhores anos de sua vida. Feliz o homem que pelo menos
passa os últimos anos de sua vida em paz. O Dr. Carroll contrasta Jacó com
Salomão e diz que este começou gloriosamente, e aquele, pobremente, mas as
vidas dos dois foram verdadeiramente opostas no seu término. Jacó morreu
gloriosamente na companhia de toda a sua parentela, que a esse tempo seria
bastante numerosa. Sentindo aproximar-se a hora de juntar-se a seus pais,
mandou chamar José e pediu-lhe que não o sepultasse no Egito, mas levasse
seu corpo para Macpela, onde jaziam os restos de seus antepassados.
José prometeu, com juramento, que assim faria. O motivo de Jacó não desejar
ficar no Egito foi o de saber que seu povo sairia dali um dia. Ao mesmo tempo
fazia uma profecia desta saída. A maneira por que exigiu de José a certeza de
que seu pedido seria cumprido é singular. Pediu que o filho pusesse a mão
debaixo de sua coxa e jurasse. Abraão fez com Eliézer o mesmo quando o
mandou a Padã-Arã, buscar mulher para Isaque. Este costume implicava na
seriedade do negócio, e nada em nossos dias poderá imitá-lo. O juramento era
uma espécie de concerto. Não era a jura vulgar, tão usada em terras católicas,
feita por qualquer coisa, simplesmente para dar valor à palavra. Não foi desta
natureza o juramento de José.
Os egípcios praticavam com maior perfeição o embalsamamento de seus
mortos, de modo que os Faraós sepultados há cinco mil anos estão ainda hoje
em perfeito estado de conservação. Isto revela o grau de cultura a que aquele
povo tinha chegado. Conhecedor disto foi que Jacó pediu que seu corpo fosse
levado para a Palestina. Para fazer a viagem, eram necessárias umas duas
semanas e só embalsamado poderia o corpo ser levado para a terra da
promissão.
Os últimos Dias de Jacó - vv. 48-49
Depois do juramento ou concerto entre José e Jacó, aquele partiu para
tomar conta de seus negócios. Pouco tempo depois soube que seu pai estava
doente, e veio vê-lo. José era um homem muito ocupado, visto que todos os
negócios da terra do Egito estavam em sua mão, mas apenas soube da doença
do pai, deixou tudo e veio. Jacó soube de sua vinda e, tomando alento,
assentou-se na cama. Frente a frente com José, Jacó reafirmou sua confiança
nas promessas de Jeová e referiu-se à visão que teve em Luz e de como toda a
terra lhe tinha sido prometida. Queria que os dois filhos de José fossem seus e
tivessem iguais privilégios na herança. O fim desta declaração foi mostrar ao
filho que as promessas de Deus valiam mais que todas as glórias do Egito e,
portanto, queria que os dois netos não se entregassem à vida do Egito, mas
jogassem sua sorte com seus próprios filhos.
Destarte, José mesmo ficaria preso às tradições e esperanças da casa paterna e
não se deixaria envaidecer com as grandezas e glórias que desfrutava na terra.
Alguns comentadores crêem que a princesa egípcia, Asenate, mulher de José,
não tinha outros filhos e, temendo que estes fossem chamados a tomar o lugar
do pai, nas futuras empresas da nação, é que Jacó dispõe deles como se seus
filhos fossem. Nada mais natural que aquela mulher desejasse que seus filhos
seguissem a carreira brilhante do pai, mas, pelo desejo de Jacó, os filhos, como
o pai, ficavam presos às antigas promessas feitas por Deus.
Portanto, tinha Jacó treze filhos. Onze filhos seus e dois de José, que valeriam
por dois no seu lugar. A tribo de Levi não recebeu herança, ficou espalhada por
toda a terra, para preservá-la da corrupção, sendo a tribo encarregada do culto
e da preservação da religião. Doze tribos somente são mencionadas como
tendo parte na herança, não se esquecendo que eram treze os herdeiros de
Jacó. Em sua última vontade, mencionou o lugar onde repousava sua amada
Raquel. Sublime amor, que mesmo depois de tantos anos de morta, a
companheira ainda é relembrada no momento mais sério do sobrevivente!
Jacó Abençoa José na Pessoa de Seus Dois Filhos - 48:8-16
José, vindo visitar seu pai nos últimos dias de sua vida, achou de trazer
seus dois filhos, provavelmente, com o desejo de que participassem das
bênçãos patriarcais. Durante algum tempo Jacó não viu os dois netos, mas,
sabendo que estavam ali, pediu que se acercassem dele, visto não poder ver
bem, por causa da idade. Chegados os dois juntos, beijou-os e exclamou que
não pensava mais ver José, mas pôde vê-lo e aos seus filhos também. Beijou-os
e abraçou-os. José trouxe pela mão direita e à esquerda de Jacó a Efraim, e pela
esquerda e à direita de Jacó, a Manassés, para que a bênção recaísse sobre a
cabeça do mais velho. Mas o patriarca estendeu a mão e abençoou o mais
moço, Efraim. Era o desejo de Jacó abençoar José com os direitos da
primogenitura que Rúben tinha perdido por causa do horrendo pecado
praticado contra o próprio pai (49:3-4), mas a preeminência ficou com Judá,
ficando José com dobrada porção, apenas na pessoa de seus dois filhos. Efraim
obteve a preeminência sobre Manassés.
Ao transmitir a bênção, Jacó invocou a Deus, perante quem seus pais tinham
andado, o Anjo Jeová, o Anjo que lhe aparecera quando vinha de Padã-Arã e o
livrara das mãos de Esaú, seu irmão. Este capítulo da vida de Jacó é
mencionado no Novo Testamento como um dos atos de fé viva (Heb. 11:21).
(Caps. 46-50)
O Desgosto de José - 48:17-22
José não ficou satisfeito porque seu pai tinha dado o direito de
primogenitura ao mais novo de seus filhos. Pegou nas mãos do velhinho e pôs a
direita sobre a cabeça do mais velho e a esquerda sobre a cabeça do mais moço.
Jacó, porém, insistiu em que o mais moço fosse o maior, ainda que o mais velho
seria também grande na sua geração. Jacó sabia o que estava fazendo e sabia
que esse ato tinha alcance além da observação de José. O espírito de profecia
estava guiando todos esses atos, de modo que não era a mera vontade de Jacó,
mas a de Deus que estava sendo feita. Por muitas outras vezes, Deus transferiu
os direitos de primogenitura do mais velho para o mais moço. José conformou-
se com a vontade explícita de seu pai, por entender que esta seria a vontade de
Deus. Jacó, com toda a resignação e calma, anuncia que Deus faria que eles
voltassem à terra das promessas. Esta é a fé que vence. Quanto mais perto da
sepultura, mais certo estava de que Deus cumpriria a palavra dita tantas vezes.
As Bênçãos de Jacó sobre Seus Filhos - cap. 49
Depois que abençoou os filhos de José e desta forma recompensou a
fidelidade e o amor do filho querido, Jacó dispõe da sua última vontade em
forma profética, declarando que todas estas coisas aconteceriam nos dias
vindouros. Reunidos todos os filhos em torno do leito, o velho homem de Deus
começa a ler a sentença de cada um de acordo com as suas tendências e os
feitos dos dias passados. A sentença foi proferida em forma poética, de modo
que convém ao estudante descontar da linguagem o que faz parte
simplesmente da poesia, a fim de melhor poder interpretar este admirável
capítulo. Todo poeta tem licença de dizer mais do que é necessário, e o poeta
hebraico, pelo próprio estilo, exagerava mais ainda do que os ocidentais.
Não se pense, entretanto, que nesta liberdade está incluída a liberdade de dizer
o que não é, mas sim a de falar redundantemente e hiperbolicamente. Este é
um dos mais belos espécimens da poesia oriental. A ocasião não podia ser mais
oportuna. A família esperada estava em vias de formação e Jacó já antevia o dia
da saída do Egito, em demanda da terra da promissão. Portanto, era agora o
tempo de dispor do futuro papel que cada filho representaria no
desdobramento do plano de Jeová. Isto Jacó fez por inspiração divina, como se
pode verificar no futuro cumprimento literal que estas palavras tiveram.
Ao estudar este capítulo, convém ainda notar o significado dos nomes de cada
filho, visto que cada nome foi dado de acordo com a ocasião em que nasceu.
Note-se o que o mesmo filho faria no futuro e o significado final no eterno
propósito de Deus, confirme o Novo Testamento, especialmente no Apocalipse,
capítulo 7.
CAP. XXVIII - ANÁLISE DO DESTINO DE CADA FILHO DE JACÓ
Rúben, Primeiro Filho de Léia
Sendo este o primogênito, cabiam-lhe todos os direitos de
primogenitura, como também dele devia vir o Messias. Mas as coisas tomaram
outro curso. "Rúben, tu és o meu primogênito, minha força e princípio de meu
vigor, o mais excelente em alteza e o mais excelente em potência. Fervente
como água, não serás o mais excelente, porquanto subiste ao leito do teu Pai
..." Rúben, como primeiro filho, representava todo o vigor físico de seu pai,
mas, fervente como água, não teria a Primogenitura. A expressão é elegante.
Em sua paixão, era como a água fervendo na panela, que sobe até à tona e se
derrama por cima do fogo, ora subindo ora descendo. Inconstante... Sem
governo próprio. Levado por sua natureza sensual, não respeitou o próprio leito
do pai e por isto não estava capacitado para as funções de primogênito.
Entretanto, era homem de boa qualidade. Na ocasião em que os outros irmãos
queriam matar José, interveio e o salvou da morte. Quando tinham de descer
ao Egito e levar Beniamim, como Jacó relutasse, ofereceu seus dois filhos como
reféns. Assim, por um lado, demonstradas intenções, por outro, falta de
segurança e de firmeza em suas ações, e falta de governo próprio. Sua tribo
nunca atingiu grande preeminência. Foi, entretanto, numerosa, conforme Dt.
33.
Simeão e Levi, Segundo e Terceiro Filhos de Léia
"Simeão e Levi são irmãos; as suas espadas são instrumentos de violência
..." Estas palavras referem-se ao ato violento e desumano do massacre dos
siquenitas, por causa do rapto de Diná. Nada poderá justificar a atrocidade
deste feito, em vista do desejo de reparação manifestado por Hamor a seu
povo. Sobretudo o processo usado, de, aproveitando-se do rito da circuncisão,
poderem destruir tantos homens indefesos. Por esta falta, seriam divididos em
Jacó, isto é, não receberiam herança entre as outras tribos. A tribo de Levi, por
causa de sua fidelidade futura e zelo pela defesa de Jeová quando o povo
fabricou o bezerro de ouro, foi escolhida para o sacerdócio, e nesta posição não
receberia terra, mas ficaria espalhada entre as outras tribos, como mestre e
guia da religião. A tribo de Simeão pode-se dizer que nada recebeu também. A
maior parte ficou espalhada entre as tribos, e um grupo misturado com a tribo
de Judá fundiu sua existência com ela, nunca mantendo vida separada. Em Jos.
19:1-9, diz-se que em virtude de o território da tribo de Judá ser grande, a
herança dos filhos de Simeão seria entre os filhos de Judá. Olhando no mapa,
vemos ao sul de Judá uma faixa de terra como pertencendo a Simeão, mas isto
não é rigorosamente certo; e, ainda que o fora, esta terra fica lá no deserto, o
que equivale a dizer que terra não tinham. Quando da divisão do reino, diz-se
que nos dias de Asa e Ezequias, os estrangeiros de Efraim e Manassés, incluindo
Simeão, andavam dispersos entre as tribos do Norte. Assim se cumpriram as
palavras de Jacó... "eu os dividirei em Jacó e os espalharei em Israel".
Judá, Quarto Filho de Léia
"Judá, te louvarão teus irmãos, a tua mão será sobre o pescoço dos teus
inimigos: os filhos de teu pai a ti se inclinarão. Judá é um leãozinho... O cetro
não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até que venha Siló, e
a ele se congregarão os povos." O leitor deve ler toda a profecia. Aqui dou
somente os trechos mais significativos.
O que sabemos da vida de Judá pouco o recomenda para a supremacia
diante de seus irmãos. Pelo contrário, parece ter sido ele quem mais se desviou
dos caminhos patriarcais, casando com mulheres cananéias. Seja como for, a
ele pertence o louvor de seus irmãos. Tomou a primogênitura e como
primogênito teria de dar ao mundo o Messias. Foi isto o que Jacó disse no verso
10. O cetro não se afastou das mãos de Judá por todo o tempo da história do
povo. Certamente, houve lapsos na sucessão real na tribo de Judá, mas sempre
que a restauração se efetuava, era por seu intermédio. O reino foi restaurado
depois do cativeiro babilônico por esta tribo. No tempo dos Macabeus a
monarquia davídica foi restaurada pelos filhos de Matatias, da descendência de
Davi. No tempo de Herodes, o Grande, que era idumeu, o cetro afastou-se,
aparentemente, de Judá, mas, antes que Herodes morresse, chefiou a Siló, o
Messias esperado. Há grande número de interpretações, tanto judaicas como
gentias, sobre esta palavra Shiloh, mas todas elas concordam em que, seja qual
for o exato significado literal do termo, refere-se a Cristo. Seja pacificador",
"Príncipe da Paz", "Maravilhoso", "Conselheiro" etc., é o Messias que é
mencionado (comp. Sal. 72:8-11; Zac. 9:10; Is. 9:6; Fil. 2:9-11 e outras
referências).
Zebulom, Sexto Filho de Léia.
Zebulom será porto de navios, o seu termo será para Sidom. Por toda a
História encontramos Zebulom vizinho de Sidom, ainda que alguns mapas
coloquem a tribo ao lado do Mar de Genezaré. Em qualquer dos casos, a
profecia de Jacó se cumpriu. Parece, porém, que a História coloca Zebulom
mais para o oeste. No mapa que tenho diante de mim, Naftali está colocada
junto ao Mar da Galiléia, Aser, junto ao Mediterrâneo e Zebulom, entre as duas.
A profecia diz que seus limites seriam para os lados ou junto a Sidom. A tribo de
Aser fica dentro do território dos sírios, e sabemos que este povo nunca deixou
de existir, e até manteve relações amistosas com Israel, sobretudo no tempo de
Davi e de Salomão. Convém atender que no decorrer dos séculos as fronteiras
das tribos perderam-se consideravelmente, de modo que uma entrava pelo
território da outra, sem que, todavia, perdessem sua identidade. Demais, os
israelitas nunca conseguiram incorporar no seu território toda a terra
prometida, e assim o cumprimento literal de certas profecias é assaz difícil.
Além desta designação de povo marítimo, nada mais é dito de Zebulom.
Zebulom e Naftali encontram-se sempre unidas nas diversas referências
bíblicas. Bem assim, Issacar é mencionada em Dt. 33:18 como mantendo certa
relação com Zebulon. O valor do conteúdo. desta profecia de Zebulom está no
caráter guerreiro de seus filhos (Juízes 5:18).
Issacar, Quinto Filho de Léia
"Issacar é jumento de fortes ossos, deitado entre dois fardos... " Esta
tribo fica entre Zebulon e Naftali ao norte, Manassés ao sul e o Jordâo a leste,
uma das partes mais férteis da Palestina. Daí, pois, sua carreira pacífica, como
animal deitado entre dois fardos. O que significa "servir debaixo de tributos"
não é fácil saber. Talvez por causa da sua natureza pacífica e ordeira, preferia
pagar o tributo a ir à guerra. Mas Débora proclama sua celebridade em correr à
guerra valentemente, e foram eles que primeiro vieram a Davi, para o fazerem
rei. Como povo pacífico, era, às vezes, como besta de carga para seus próprios
irmãos.
Dã, Primeiro Filho de Bila, Serva de Raquel
"Dã julgará seu povo como uma das tribos de Israel... " O próprio nome
"Dã" significa "julgar" e foi dado pela triste Raquel, em sinal que Deus tinha
julgado sua causa perante a zombaria de sua irmã. Sendo filho de uma escrava,
parece que devia ocupar posição mais humilde, mas não o viu assim Jacó.
Sansão foi filho desta tribo e de fato julgou as tribos de Israel num tempo de
luta contra os filisteus. A linguagem referente a ela é difícil. "Dã será serpente
junto ao caminho, que morde os calcanhares do cavalo e faz cair o cavaleiro por
terra." Esta linguagem é aplicável a um povo traiçoeiro, pusilânime e fraco, o
que não se dava com Dã, que era a segunda tribo, numericamente falando. No
tempo dos juízes, os danitas, desgostosos com a terra que Josué lhes tinha
dado, emigraram para o norte, roubaram os ídolos da casa de Micá e levaram o
levita que servia de sacerdote. É quase tudo que sabemos deste povo, e
possivelmente, este fato foi o cumprimento da profecia.
Se o verso 18 refere-se a Dã ou a Jacó, o leitor decidirá. Parece ser um suspiro
de alívio por parte de Jacó, ao contemplar no futuro do seu povo tanta
falsidade, e exclamar: "A tua salvação espero, ó Jeová!" Ainda que o povo que
tinha sido escolhido para os caminhos de Jeová no mundo inteiro era tão mau
como os demais, Jacó pode ver que a salvação viria e que nesta esperança ia
morrer (veja Dt. 33:20,21).
Gade, Primeiro Filho de Zilpa, Serva de Léia
"Gade, uma tropa o acometerá, mas ale a acometerá por fim." Esta
descrição prende-se ao pensamento de sua mãe quando ele nasceu. O nome
propriamente significa "boa sorte", pelo regozijo de Léia por haver tido um filho
da escrava Zilpa, em competição com sua irmã Raquel. É, pois, no sentido de
competir e vencer que este nome foi dado e neste mesmo sentido Jacó proferia
estas palavras. Veja o que Moisés diz dele em Dt. 33:20,21. Pela sua posição na
terra de Canaã, estava mais exposta a ataque que qualquer outra tribo. Foi ela
a primeira a ser deportada para a Assíria por Tiglate-Pilneser (I Cr. 5:26).
Aser, Segundo Filho de Zilpa, Serva de Léia
"De Aser, seu pão será gordo e ele dará delícias reais." O nome significa
"feliz". Combinado com o que Moisés diz em Deuteronômio 33:24, sua história
entre as outras tribos seria, como de fato foi, muito feliz. Colocada entre outras
tribos, teve por sorte um dos melhores pedaços de terra, mais fértil e de melhor
situação para uma vida de mais produtividade.
Naftali, Segundo Filho de Bila, Serva de Raquel
"Naftali é uma cerva solta; ele profere palavras formosas" (ver Dt. 33:23).
Nada sabemos de notável a respeito desta tribo. Alguns comentadores supõem
que estas palavras indicam capacidade para a oratória, mas como esta boa
qualidade, separada de outros elementos morais, não era muito apreciada
entre os israelitas, que buscavam o lado prático de tudo, não sabemos se os
naftalitas se destacaram ou não pela oratória. Sua terra de fato fornecia os
mais inspiradores cenários naturais, onde a poesia e a oratória encontrariam
farto manancial.
Como não sabemos de tudo que estas tribos fizeram, visto que só as coisas de
interesse geral e messiânico foram escritas, não podemos duvidar que este
povo se destacasse dos outros no sentido poético ou na oratória.
José, Primeiro Filho de Raquel a Amada de Jacó
"José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto à fonte, seus ramos
correm sobre o muro. Os frecheiros lhe deram amargura, e o frecharam e o
aborreceram. O seu arco, porém, susteve-se no forte, e os braços de suas mãos
foram fortalecidos pelas mãos do Valente de Jacó ..."
Quando chegou a vez de José, o filho de sua querida Raquel, parece que
Jacó se esqueceu de si mesmo e de sua posição de patriarca, dando largas a seu
afeto e simpatia por este filho. Sob o ponto de vista da profecia, não se
encontra nada que seja digno de especial menção. José seria próspero e forte
em Jeová, seria separado de seus irmãos, como, aliás, já o tinha sido desde o
princípio. Ele seria o pastor de seus irmãos.
Benjamim, Segundo Filho de Raquel
*Benjamim é lobo que despedaça, pela manhã comerá a presa, e à tarde
repartirá o despojo."
Benjamim, filho da mão direita, o nome que Jacó lhe deu em substituição
a Benôni, que Raquel tinha dado, que significa "filho de tristeza". Era, como já
vimos, o favorito de Jacó, sobretudo depois do desaparecimento de José. De
sua futura carreira nada sabemos. Sua história depois do Reino dividido perde-
se ora no Reino do Sul, ora no do Norte, sem ele manter qualquer papel
preponderante. Pelas palavras desta profecia, concluímos que seu caráter seria
guerreiro, mas não sabemos se o foi.
Uma coisa devemos ter sempre em mente: que estas tribos agiam em concerto
e para fins comuns, na maioria dos casos, de modo que, a não ser as que
tomaram a dianteira nos destinos nacionais, as outras ficam eclipsadas,
perdendo para nós o seu verdadeiro valor histórico. Assim, pois, uma tribo
podia ser justamente o que dela foi predito e não chegaram ao nosso
conhecimento os seus feitos.
A Morte de Jacó - 49:28-33
Terminando de abençoar seus filhos, Jacó conheceu que os seus últimos
momentos tinham chegado e que iria reunir-se a seus pais. Portanto, deu
ordem quanto ao seu enterramento na cova de Macpela, em Hebrom, que tinha
sido comprada por Abraão aos filhos de Hete ou heteus. Ali estavam sepultados
Abraão, Sara, Raquel, Isaque e Léia. Era para Jacó um motivo de suprema
alegria poder reunir seu corpo aos de seus antepassados naquele mausoléu da
família, e seu espírito ao deles no seio de Jeová. Este fato devia consolar
sobremodo o patriarca, como a nós nos consola, nestes dias, a certeza de que
vamos nos reunir a nossos parentes e irmãos que nos precederam na viagem
para a eternidade. Como morre um justo, assim morreu esse bravo e grande
servo de Jeová, deixando o povo prometido já no lugar em que devia educar-se
para os grandes empreendimentos do programa da redenção. Mais uma etapa,
e estariam cumpridas as promessas feitas a Abraão.
Todas as palavras de Jacó a seus filhos estão em linguagem poética, mas,
por economia de espaço, dei breves resumos, na forma prosaica em que a Bíblia
está em português.
Os Preparativos para o Enterramento - 50:1-6
José não pôde conter-se, quando viu chegar a última hora de seu velho e
querido pai. Abraçou-se com ele e chorou. Entre as últimas palavras do
capítulo precedente e estas do capítulo 50 não medeia um minuto. Jacó
encolheu-se na cama e morreu, e José lançou-se ao seu pescoço, estando ele já
com os seus pais.
O restante da narrativa dá-nos a cerimônia do embalsamamento pelos
médicos egípcios, que eram especialistas nesta arte, e os dias do choro,
conforme o costume da época. Os israelitas choraram Moisés por 30 dias, mas
Jacó foi chorado 40, conforme o costume egípcio. Cumpridos estes dias, José
pediu a Faraó para ir enterrar seu velho pai na Palestina, no que Faraó
consentiu. José não podia ausentar-se de seu gabinete de trabalho sem o
comunicar ao rei.
O Enterro de Jacó - 50:7-14
A narrativa dada nestes versos é interessante e significativa.
Acompanhamento de carros, cavaleiros, anciãos e líderes, tanto israelitas como
egípcios. Quando este cortejo chegou à planície do espinhal, perto do lugar do
túmulo, fez-se um grande choro, de modo que os habitantes da terra se
maravilharam. Para eles não era um mero estrangeiro que vinha ser enterrado,
mas um Faraó ou um grande da corte do Egito. E de fato o era. Jacó foi
sepultado com as honras de um príncipe. Não sabemos se além do lamento
próprio aos hebreus houve algo de cerimonioso à moda egípcia. Quero crer que
não, mas ao mesmo tempo não deixa de haver margem para esta suposição,
diante de tanto aparato. Posto no seu último lugar, onde ainda espera o tempo
para juntar-se aos milhões, que, firmes nas promessas que ele acariciou por
toda a sua vida, hão de levantar-se no último dia, José e toda a comitiva
voltaram ao Egito.
Mais um Toque da Consciência - Os Irmãos de José Temem Que Tome
Vingança do Pecado Contra Ele Cometido - 50:15-21
Nada mais natural que os irmãos de José temessem uma desforra agora,
visto que o protetor tinha partido e eles estavam à mercê de seu próprio irmão.
José, em virtude de seu ofício, não mantinha a camaradagem fraternal que era
de se supor; mesmo que o quisesse, não poderia fazê-lo. Portanto, mandaram
uma mensagem ao irmão, comunicando que Jacó, antes de morrer, tinha
pedido que José perdoasse a falta dos irmãos. Parece impossível que Jacó ainda
tivesse sequer pensado em tal coisa. O mais natural é que nem na mente de
Jacó, nem na de José, pairasse mais qualquer dúvida sobre o esquecimento da
faltas cometida, mas na mente dos que a praticaram ainda permanecia com
todo o seu vigor. O pecado estava continuamente diante deles. Enquanto que
o ofendido tinha esquecido a ofensa, os ofensores a tinham bem raivada na
mente.
Entretanto, o expediente era por demais bom, porque no caso de José ainda
manter qualquer ressentimento contra os irmãos, um pedido da parte de seu
pai na última parte de sua vida quebrantaria ou amorteceria este
ressentimento.
O mensageiro foi na frente, como para preparar o caminho, e os homens
foram atrás. Preparado o espírito de José, era fácil a eles, por um ato de
submissão apagarem de vez qualquer resquício do velho pecado. Em frente de
José jogaram-se a seus pés e se ofereceram como escravos. Afinal, o que tanto
tinham repudiado, foi voluntariamente praticado. Quando José contou o sonho
e entenderam que se fazia senhor de todos, não suportaram a afronta. Agora,
eles mesmos vêm voluntariamente se oferecer como servos.
José responde como cavalheiro temente a Deus: "Estou eu no lugar de Deus?
Vós intentaste mal, mas Deus inverteu o vosso pensamento e fez bem;
portanto, foi Deus quem dirigiu a minha vida, e a Ele, e não a mim, cabe a
punição. Ficai quietos e sossegados. Alimentar-vos-ei e cuidarei de vós até o
fim". E consolou-os. Neste sublime exemplo devemos inspirarmos, nós que
gostamos de tomar vingança. Não havia melhor ocasião para vingança do que
esta, mas José, depois de tomar a Deus como o providenciado de tudo, consola
os seus ex-algozes, pagando o mal com o bem. Minha é a vingança, diz o
Senhor.
Os últimos Dias de José - 50:22-26
Longos foram os dias de José: 110 anos, de modo a poder ver os filhos de
Efraim até a terceira geração. Contava com trinta anos quando feito
governador do Egito; tinha, portanto, governado 80 anos. Grandes tinham sido
as bênçãos que aquela terra tinha gozado por seu favor. Todos os filhos de
Efraim tinham nascido nos seus joelhos, ou regaço, para assim os identificar
consigo mesmo. Com uma vida cheia de serviços ao seu povo e àquela boa
terra, José viu que se abeirava o seu dia. Chamou os irmãos e disse: "Eu morro,
mas Deus certamente vos visitará e vos fará subir desta terra à terra que
prometeu a Abraão, a Isaque e a Jacó." Ele Cria firmemente nas promessas
divinas e que se cumpririam à risca, em breve. Portanto, "pela fé fez menção da
partida dos filhos de Israel do Egito e deu ordem acerca de seus ossos" (Heb.
11:22). Fez seus irmãos jurarem que assim fariam, e depois foi reunido ao seu
povo. Em virtude de sua real posição, José tinha direito à sepultura real no Egito
e seria reverenciado tanto quanto um Faraó. Por isso exigiu que seus irmãos
instruíssem a seus filhos para que, quando chegasse o dia da saída, levassem
seus ossos com eles, ou melhor, sua múmia, porque decerto seria
embalsamado. Assim, por todo o tempo que mediou entre sua morte e o
Êxodo, esta múmia esteve em lugar seguro, como um testemunho eloqüente
deste êxodo, esperando o dia da chegada. Seu povo foi fiel, e quando teve de
sair, às pressas, da terra do Egito, não esqueceu esta relíquia, que foi
transportada para a terra da Promessa. Não foi posta no mausoléu da família,
mas enterraram-na em Siquém, na terra que Jacó comprara aos filhos de
Hamor.
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