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ETNODESENVOLVIMENTO E A GARANTIA DA CIDADANIA
MULTICULTURAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Alex Junior Tosin1
Jonas de Moura Radin2
Lincoln Marcos de Jesus3
Sadir Dalmolin Júnior4
RESUMO
A população indígena, segundo a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), órgão vinculado ao Ministério da
Saúde e responsável pela política e serviços de atenção à saúde indígena, está estimada atualmente em cerca de
440.000 (quatrocentos e quarenta mil) pessoas, o equivalente a aproximadamente 0,2% da população total do
país. E destas 440.000 pessoas, estima-se que cerca de 60% vive atualmente na região da Amazônia legal,
ocupando, ao total, cerca de 104 milhões de hectares, equivalente a 12% de todo o território nacional. A despeito
deste elevado número, seus direitos sempre foram negligenciados pelas políticas públicas do Estado nacional,
que procurou antes integrar essas populações na cultura dominante do que propriamente respeitas as suas
singularidades. Com a mudança de paradigma provocada pela Constituição Federal de 1988, no entanto, o debate
ganhou um novo pano de fundo, ocasião em que a autonomia e a autodeterminação dos povos indígenas
ganharam destaque nas discussões nacionais. Fala-se, a partir de então, em etnodesenvolvimento, assim
considerado o desenvolvimento de diversas culturas e etnias em um mesmo Estado, ambas respeitadas nas suas
especificidades. Nessa perspectiva, várias iniciativas já foram adotadas como forma de preservar a cultura
indígena, seja nos aspectos econômicos, ambientais, políticos etc. A metodologia adotada na presente pesquisa
foi a pesquisa bibliográfica, consubstanciada na pesquisa à doutrina especializada e no levantamento de
pesquisas e dados realizados pela FUNAI. A despeito do preconceito ainda existente quanto aos povos indígenas,
o reconhecimento de sua autonomia e autodeterminação tem prevalecido no âmbito da legislação brasileira.
Palavras – Chave: Indígena – Cidadania – Etnodesenvolvimento – Constituição Federal Brasileira de 1988
RESUMEN
La población indígena, según la Fundación Nacional de salud (FUNASA), un organismo vinculado al Ministerio
de salud responsable de la política y servicios de salud indígenas, se estima actualmente en unos 440.000
personas, el equivalente de aproximadamente 0,2% de la población total del país. Y estas 440.000 personas, se
estima que aproximadamente el 60% vive en la Amazonia legal, ocupando, en total, aproximadamente 104
millones hectáreas, equivalentes al 12% de todo el territorio nacional. A pesar de este gran número, sus derechos
siempre han sido descuidados por la política pública del estado nacional, que buscaba integrar antes estas
poblaciones en la cultura dominante que respeto sus singularidades. Con el cambio de paradigma provocado por
la Constitución Federal de 1988, sin embargo, el debate ha ganado un nuevo telón de fondo, ocasión en la que la
autonomía y la autodeterminación de los pueblos indígenas ganaron prominencia en los debates nacionales. Se
habla, desde luego, considerado el etno-desarrollo de las diversas culturas y etnias en un mismo estado, ambos
respetan sus especificidades. En esta perspectiva, varias iniciativas ya se han adoptado como una forma de
preservar la cultura indígena, ya sea en los aspectos económicos, ambientales, políticos etc.. La metodología
adoptada en esta investigación fue la investigación bibliográfica, fundamentada en la investigación de la doctrina
1 Acadêmico do X Termo do Curso de Direito pela AJES – Faculdades de Ciências Contábeis e Administração
do Vale do Juruena. E-mail para contato: alex-jr3@hotmail.com 2 Acadêmico do X Termo do Curso de Direito pela AJES – Faculdades de Ciências Contábeis e Administração
do Vale do Juruena. E-mail para contato: jonasradin@yahoo.com.br 3 Acadêmico do X Termo do Curso de Direito pela AJES – Faculdades de Ciências Contábeis e Administração
do Vale do Juruena. E-mail para contato: 4 Acadêmico do X Termo do Curso de Direito pela AJES – Faculdades de Ciências Contábeis e Administração
do Vale do Juruena. E-mail para contato: sadir_junior@hotmail.com
2
especializada y en la investigación y recopilación de datos realizada por la FUNAI. A pesar de los prejuicios que
todavía existen en relación con los pueblos indígenas, el reconocimiento de su autonomía y autodeterminación
ha prevalecido bajo la legislación brasileña.
Palabras clave: Indígenas – Ciudadanía – Etno-desarrollo - Brasileño Constitución Federal de 1988
SUMÁRIO: 1. BREVES CONSIDERAÇÕES – DO ENFOQUE DADO AO ESTUDO; 2. CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 E O RECONHECIMENTO DA CIDADANIA MULTICULTURAL DO INDÍGENA; 3.
ASPECTOS DO ETNODESENVOLVIMENTO; 4. AUTONOMIA DO INDÍGENA E SUA
AUTODETERMINAÇÃO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1. BREVES CONSIDERAÇÕES – DO ENFOQUE DADO AO ESTUDO
Em um país onde as diferenças insistem em serem encaradas de maneira
preconceituosa, o instituto indigenista e a autonomia do indígena sempre suscitam polêmicas
nas discussões travadas sobre o tema, sobretudo no que tange às políticas públicas voltadas à
afirmação dos direitos desses povos.
Não sem razão, não são raras as discussões nos diversos meios sociais que pretendem
equiparar os povos indígenas ao “homem branco”, aplicando-lhes as mesmas normas vigentes
em meio a nossa sociedade, ignorando as suas especificidades tradicionais e diferenças
culturais, tudo sobre o fundamento da igualdade absoluta entre as pessoas.
Nesse sentido, vale conferir as lições de Antônio Brand, que debate com clareza o
paradigma etnocêntrico dominante até pouco tempo. Vejamos:
Até recentemente, a única alternativa de futuro admitida era a integração ou a
diluição dos povos indígenas como etnias distintas. A partir da década de 1970,
todavia, como resultado da quebra do silêncio histórico imposto aos povos indígenas
desde o período colonial, surgiram diversas iniciativas de afirmação de sua
autonomia cultural, por meio primeiro das assembleias indígenas e depois de mais
de uma centena de organizações. Embora estivessem inicialmente centradas na
denúncia do desrespeito aos territórios, no fim da mesma década nasceu entre
indígenas a sociedade de entorno. Essa irrupção histórica dos povos indígenas após
tantos anos de silêncio encontrou eco na redação da Constituição Federal de 1988.5
Conforme leciona o autor recém mencionado, pela primeira vez em nosso país, com a
Constituição Federal de 1988, deixaram-se de lado políticas de integração do indígena ao
5 BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. Pag. 31. Disponível em:
<http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Estado-e-Povos-Indigenas.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
3
meio social do homem branco, mudando-se o foco, agora, para a garantia do direito à
diferença6.
Essa pseuda igualdade, tal como defendem aqueles que defendem um tratamento
igualitário entre índios e “brancos”, não gera senão mais desigualdade entre as pessoas, haja
vista que nenhum ser humano, em toda sua complexidade, pode ser considerado igual a outro.
A substância da igualdade, como não poderia ser diferente, consiste justamente em assegurar
a diferentes pessoas um tratamento diferenciado, de acordo com as suas particularidades,
assegurando às pessoas de diferentes realidades o devido respeito aos seus valores e tradições.
São a partir de pré-conceitos desta natureza, aliás, que vários interesses indígenas são
criticados, sobretudo as políticas públicas voltadas ao atendimento de suas necessidades.
Assim, por exemplo, interessante destacar a discussão instaurada quanto à quantidade de
terras destinadas aos indígenas em nosso país, talvez um dos maiores fatores responsáveis
pelos conflitos entre os indígenas e o “homem branco”.
.
Figura 1- Distribuição da população indígena no Brasil
Fonte: http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/encarte_censo_indigena_02%20B.pdf
6 BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. Pag. 32. Disponível em:
<http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Estado-e-Povos-Indigenas.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
4
A população indígena, segundo a Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), órgão
vinculado ao Ministério da Saúde e responsável pela política e serviços de atenção à saúde
indígena, está estimada atualmente em cerca de 440.000 (quatrocentos e quarenta mil)
pessoas, o equivalente a aproximadamente 0,2% da população total do país. E destas 440.000
pessoas, estima-se que cerca de 60% vive atualmente na região da Amazônia legal, ocupando,
ao total, cerca de 104 milhões de hectares, equivalente a 12% de todo o território nacional.
Conforme se infere dos dados apresentados acima, o tratamento dispensado à
população indígena difere bastante daquele dispensado ao “homem branco”, que, em tese, tem
de trabalhar de sol a sol para conseguir pagar o aluguel ou adquirir a casa própria. Os
fazendeiros e produtores rurais, por sua vez, abordam a questão sob a ótica da produtividade
econômica da terra, que restaria prejudicada em razão da ocupação indígena de vastas áreas
de terra, supostamente desnecessárias para a população indígena.
Em que pese o clamor de determinadas classes sobre discursos desse cunho, não há
que se olvidar que tais análises partem de um paradigma estritamente etnocêntrico e que
desconsidera a realidade indígena em sua essência, prejudicando, pois, as suas conclusões.
A título de ilustração, algumas comunidades indígenas são nômades, não se fixam em
determinados locais de seu território, ao passo que outras comunidades vivem da agricultura,
da caça, da pesca etc., fixando-se em comunidades maiores e mais populosas. Como não
poderia ser diferente, as necessidades dessas comunidades são diferentes: as comunidades
autossuficientes, aquelas que plantam, caçam e pescam seu alimento, dependem de um espaço
territorial consideravelmente menor do que aquelas comunidades nômades, que dependem de
vastos territórios para conseguir alimento suficiente aos seus membros; a cultura da
comunidade indígena pode demandar mais ou então menos a atenção do Poder Público; e
assim por diante.
Como se vê, qualquer estudo que se faça sobre a população indígena, sobretudo
quanto ao instituto do indigenato – a ser analisado adiante -, deve passar, necessariamente,
pela análise de suas tradições e costumes, sob pena de se chegar a conclusões errôneas,
preconceituosas e/ou etnocêntricas.
Feita essa breve discussão acerca do preconceito com que se debate a questão
indigenista, passa-se a abordar o instituto do indigenato e o reconhecimento da cidadania
multicultural da população indígena.
5
2. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O RECONHECIMENTO DA
CIDADANIA MULTICULTURAL DO INDÍGENA
Segundo os estudiosos do direito indigenista, as questões indígenas sempre foram
tratadas em nosso país de maneira preconceituosa e etnocêntrica, amparadas por leis e
decretos que visavam antes resolver conflitos agrários entre índios e brancos, determinar as
populações indígenas conforme a lei nacional, do que propriamente garantir a preservação e o
bem estar das destas comunidades.
Nessa perspectiva, tendo em vista a minoria dessa população em nosso país, as
políticas públicas em busca da garantia de seus interesses sempre foram procrastinadas, o que
se infere, por exemplo, do prazo fixado pela Lei 6.001/88 (Estatuto do Índio) para a conclusão
dos processos de demarcação das terras indígenas, previstas também no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e até hoje sem solução.
Conforme salienta Antônio Brand,
Donos originários dos territórios, com estratégias de luta específicas e definidas a
partir tanto de seu arsenal de recursos culturais quanto do conhecimento que tinham
e têm do entorno regional, os índios vêm desenvolvendo uma história marcada pelo
confronto. Historicamente, esse entorno se apropriou de seus territórios, explorou
suas riquezas humanas e naturais, impôs-lhes sua cultura e, a partir de
interesses próprios, determinou seus parâmetros de convivência e futuro.7
Colonizados pelos europeus, os povos indígenas paulatinamente perderam a
autoridade sobre os seus territórios, sofreram mudanças em suas crenças devido à diversidade
cultural advinda dos novos habitantes da “terra nova”, mudaram seus hábitos etc.
Com a grande importação de escravos e de habitantes para desenvolver o território há
pouco descoberto, bem como em razão da monarquia instaurada como forma de governar o
país, as tradições e crenças das populações indígenas restaram diretamente prejudicadas,
denotando que desde o início da colonização de nosso país os povos indígenas são tratados
como povos colonizados.
Dessas circunstâncias resultam, obviamente, os diversos atos de desrespeito à
autonomia dos povos indígenas, que têm as suas regras, seus costumes e tradições (que
passam de geração para geração) simplesmente desconsideradas pelo “homem branco”, que
exige desses povos um padrão de comportamento espelhado nos seus costumes, e não nos
deles.
7 BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. Pag. 31. Disponível em:
<http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Estado-e-Povos-Indigenas.pdf> Acesso em: 30.08.2013
6
Conforme destaca Antônio Brand, verificava-se um “[...] completo descompasso entre
o texto das leis e as políticas implementadas no chão concreto das aldeias [...]”8, reflexos da
política integracionista-indigenista brasileira cuja principal finalidade por décadas não passou
de tentar integrar o indígena na cultura do branco.
Com isso, tendo a sua diversidade cultural simplesmente ignorada pelo grupo
dominante, a história nos mostra que os indígenas desencadearam vários movimentos no
âmbito de seus respectivos Estados buscando pelo reconhecimento de seus direitos, caso em
que as respostas dos Estados variaram de acordo com a expressão do movimento indígena, ora
tratadas com violência, ora com a racionalidade que se espera.
Nesse sentido, urge destacar os ensinamentos de Paul E. Little, que em breve síntese
destaca a luta indígena pelo reconhecimento de seus direitos. Vejamos:
Houve paralelamente com o avanço do desenvolvimento econômico um movimento
pelo reconhecimento da diversidade cultural e étnica existente no interior dos
distintos Estados nacionais do mundo. Esse movimento não foi - e não é - uniforme,
já que elaborou estratégias políticas e sociais muito diferentes de acordo com a
natureza das reivindicações dos distintos grupos étnicos e das respostas dadas pelos
Estados nacionais. Em alguns casos houve movimentos separatistas por parte de
grupos étnicos frente aos Estados nacionais, o que provocou respostas que variaram
entre a guerra civil (p.ex. Iugoslávia) e a constituição de repúblicas federativas (p.ex.
Espanha). No caso dos povos indígenas do mundo - também conhecidos como
povos originários, povos tribais, o Quarto Mundo ou aborígines - suas demandas
ganharam destaque e reconhecimento nos fóruns mundiais, como atesta a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e o Grupo de Trabalho
da ONU sobre Povos Indígenas (veja BURGER, 1990).9
No Brasil, conforme destaca Antônio Brand, a situação modificou-se com o advento
da Constituição Federal de 1988, que deu novos ares ao tema. São as palavras do autor:
O texto constitucional alterou profundamente as normas legais de relação entre esses
povos e a sociedade nacional. Pela primeira vez, deixou de ser atribuição do Estado
legislar sobre a integração dos povos indígenas, ou seja, sua desintegração como
povos etnicamente diferenciados, cabendo-lhe, ao contrário, o dever de garantir o
direito à diferença. Outros países do Mercosul, como a Argentina e o Paraguai,
também passaram por revisões mais ou menos abrangentes da política indigenista.10
Esse direito à diferença, há tempos negligenciado, tem sido reconhecido nos últimos
anos por diversas nações espalhadas pelo mundo, que têm consagrado em suas constituições o
direito dos indígenas (não só deles) em ver respeitada a sua diferença, consubstanciado no
8 BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. Pag. 31. Disponível em:
<http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Estado-e-Povos-Indigenas.pdf> Acesso em: 30.08.2013
9 LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. Pag. 36.
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
10 BRAND, Op. Cit. Pag. 32.
7
direito ao livre desenvolvimento étnico e cultural dentro de seus respectivos Estados, o que
garante, dentre outras coisas, o reconhecimento de sua autonomia.
Fala-se, então, do surgimento de “Estados Pluriétnicos”, em contraste com os
“Estados-nação” como conhecemos, distinguindo a valoração atribuída às diversas culturas e
origens da população de um determinado Estado e a forma como os Estados tem trabalhado
para garantir esse direito à diferença.
Afirma-se que nos “Estados-nação” apenas são reconhecidas pessoas de uma mesma
nacionalidade, formadas a partir de uma mesma cultura, economia, jurisdição una etc., ou
seja, o multiculturalismo e as diferentes etnias devem obediência a uma única ordem e seus
respectivos valores. Não há o reconhecimento das diferenças por parte do Poder, o que acaba
por privilegiar a hegemonia da nacionalidade dominante, pressionando os grupos sociais e
étnicos excluídos desta nacionalidade a se ajustarem com os seus valores, sob pena de serem
excluídos da vida social.
Consuelo Sanchéz, ao discorrer acerca desta problemática, elucida bem a questão:
No tocante à presença de diversos grupos étnicos e nacionais existentes dentro de
sua jurisdição, o Estado-nação é aquele que se configura como encarnação de uma
só nacionalidade. Portanto, esse tipo de Estado é conformado a partir de uma
cultura, uma economia, um direito e um sistema de valores congruentes com a classe
dominante da nacionalidade dominante, enquanto nega a diversidade sociocultural
existente no país.
Também são considerados Estados-nações aqueles que, apesar de reconhecerem
certos direitos e proteções aos diversos grupos étnico-nacionais existentes em seu
território, não conseguem transformar a configuração monoétnica do Estado.11
Conforme se infere das lições da autora citada logo acima, para que o Estado seja
reconhecido como Multiétnico não basta que reconheça certos direitos e mecanismos de
proteção aos diferentes grupos étnicos e culturais se tais instrumentos não são suficientes para
afirmar a sua existência distinta da cultura dominante, caso em que não se teria senão o
reconhecimento formal da multiculturalidade em um Estado monoético.
Os Estados Pluriétnicos, por sua vez, representam o oposto do paradigma egocêntrico-
cultural que vige nos Estados-nação. Isso porque, nos Estados Pluriétnicos, o Estado vincula-
se com duas ou mais culturas nacionais, sem se importar, para isso, de seu número ou
composição demográfica. As culturas nacionais reconhecidas podem ser dominantes ou
11
SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 76-77. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-politicas-na-
america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
8
minorias (em geral as duas convivem juntas), recebendo do Estado o reconhecimento de suas
diferenças culturais e étnicas no âmbito de suas relações.
Sobre a configuração destes Estados, vale a pena conferir as lições de Sanchéz, in fine:
No sentido estrito, esse tipo de Estado deixa de ser a personificação de uma só
nacionalidade para atribuir equivalências às nacionalidades em questão. Os
movimentos indígenas na América Latina têm assumido a exigência de configurar
Estados pluriétnicos ou plurinacionais em seus respectivos países a partir do
estabelecimento de novas relações entre os povos indígenas e o conjunto da
sociedade nacional.12
Como se vê, com o reconhecimento do multiculturalismo e dos diversos grupos
étnicos existentes dentro de um mesmo território, não há mais espaço para a preponderância
de um grupo sobre o outro, independentemente de sua expressão e ocupação demográfica.
Aplicadas essas premissas a realidade de nosso país, não se pode afirmar que os
interesses do “homem branco” são mais importantes pois representam a maioria ou algo do
tipo. Tampouco podemos analisar a realidade das comunidades indígenas a partir da nossa,
sob pena de assumirmos uma postura de Estado-nação individualista e etnocêntrica.
A existência de normas ou de políticas públicas destinadas à proteção dos diferentes
grupos indígenas, voltadas à concretização de sua diversidade cultural e étnica, não são
suficientes, por si só, para que se reconheça o cunho multiétnico do Estado.
Aliás, embora o Brasil venha caminhando rumo ao reconhecimento de um Estado
multiétnico, com o reconhecimento dos direitos indígenas na Carta Constitucional de 1988 e
com a posterior edição de diplomas voltados à proteção da cultura e etnia indígena, várias
questões ainda tem sido negligenciadas, simplesmente procrastinadas ou tratadas com
descaso, tal como a demarcação das terras indígenas estabelecidas na ADCT, a impunidade de
crimes cometidos contra líderes indígenas, a inadvertida remoção de indígenas de seu
território de origem a fim de que a respectiva área seja utilizada economicamente etc., o que
demonstra que nossos instrumentos de reconhecimento da multiplicidade étnica ainda não tem
surtido os efeitos pretendidos.
12
SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 77. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-politicas-na-
america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
9
Desta forma, pode-se afirmar que a existência de um Estado Multiétnico está
diretamente relacionado com o prestígio de uma “cidadania multicultural”, esta, por sua vez,
consubstanciada no
“[...] reconhecimento jurídico de direitos políticos e sociais que se traduzem em
direitos como autonomia de decisão, autogoverno indígena sobre seus territórios e os
recursos naturais neles existentes, direito a representação política nas instâncias de
poder legislativo do Estado e protagonismo na formulação e no controle das
chamadas “políticas públicas” de seu interesse e necessidade [...]”13
Dentre os direitos integrantes desta cidadania multicultural e apontados pelo autor,
destacam-se dois fundamentos que estão na base desta relação de reconhecimento da
diversidade étnica e seus valores: a autonomia dos povos indígenas e o seu direito à livre
determinação. Sem essas prerrogativas, como veremos adiante, não há como se falar em
etnodesenvolvimento e em Estado multiétnico, ainda que haja a previsão de normas e
instrumentos voltados aos interesses indígenas.
3. ASPECTOS DO ETNODESENVOLVIMENTO
O termo etnodesenvolvimento é recente nos estudos indigenistas e decorre
imediatamente da mudança de paradigma adotada no tratar do tema, que passou a privilegiar o
respeito ao desenvolvimento das diversas culturas em detrimento de uma tentativa fracassada
de integração dos povos indígenas à cultura dominante.
Esse termo significa, de um modo geral, o desenvolvimento das diferenças étnicas e
culturais, com o respeito ao seu livre desenvolvimento sem interferências externas, exceto
aquelas de cunho afirmativas.
Segundo Paul E. Little, “o termo ‘etnodesenvolvimento’ tem duas grandes acepções na
literatura especializada: (1) o desenvolvimento econômico de um grupo étnico; e (2) o
desenvolvimento da etnicidade de um grupo social [...]”14
. Em outras palavras, o
etnodesenvolvimento implica no respeito às diferenças étnicas e culturais, de forma a garantir
a sua permanência no tempo, bem como na formulação de políticas que viabilizem a sua
manutenção em face da realidade social vivenciado no cenário local em que estão inseridos.
13
VERDUM, Ricardo. A cidadania multicultural e os limites do indigenismo brasileiro. Pag. 1. Disponível
em: < http://www.ciesas.edu.mx/proyectos/relaju/documentos/Verdum_Ricardo.pdf> Acesso em 30.08.2013.
14 LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. Pag.
39. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
10
Assim, conforme explica Little, políticas públicas que promovam o desenvolvimento
econômico demasiado de determinadas comunidades indígenas implicam imediatamente no
rompimento de suas bases culturais e étnicas, determinando uma conversão destas
comunidades à cultura dominante e à hegemonia compulsória.15
De outro lado, a ausência de políticas públicas no que tange ao desenvolvimento
econômico das comunidades indígenas podem implicar no enfraquecimento étnico destes
grupos que podem perder parte de sua autonomia em face do Estado nacional, haja vista que
sua autonomia de autogoverno e desenvolvimento fica dividida em meio às políticas estatais.
Sobre o assunto, leciona Paul E. Little que o etnodesenvolvimento implica na
convergência dialética entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento da etnicidade
das comunidades indígenas. Vejamos:
[...] existem em relação dialética constante de tal modo que o desenvolvimento da
etnicidade sem um correspondente avanço no plano econômico só promoveria a
existência de grupo étnico marginal e pobre; e um desenvolvimento econômico que
destrói as bases da etnicidade de um grupo representaria uma volta à hegemonia da
modernização que foi altamente destruidora da diversidade cultural.
Quando se combina a problemática do desenvolvimento com a do reconhecimento
da diversidade cultural, o etnodesenvolvimento introduz um conjunto de novos
temas no seio do espaço público dos Estados nacionais.
No plano político, o etnodesenvolvimento dá um recorte étnico aos debates sobre a
questão da autodeterminação dos povos e, no processo, questiona, pelo menos
parcialmente, as noções excludentes de soberania nacional. No plano econômico, as
práticas de etnodesenvolvimento tendem a ocupar o lugar de "alternativas"
econômicas, particularmente onde a ideologia neoliberal é predominante.16
Ao abordar a questão, Consuelo Sanchéz traça um paralelo entre o direito à livre
determinação e à eliminação das relações de opressão existentes entre o Estado nacional e as
comunidades indígenas. Segundo a autora,
Esses Estados deveriam garantir o regime de autonomia e o justo desejo dos povos
indígenas reconstituírem seus povos (fragmentados pelo processo de dominação),
reforçarem suas próprias formas de organização sociopolítica (inter-comunitárias ou
macro-comunitárias) e reconfigurarem seus sistemas e instituições jurídicas, de
governo, econômicas, culturais, etc., distintas das configuradas pelo Estado
nacional. A opção pela autonomia pressupõe, assim, a formação de Estados
pluriétnicos ou plurinacionais. É a aposta por um modelo de Estado que ofereça as
condições favoráveis para o desenvolvimento de uma sociedade pluricultural, capaz
de incluir as distintas formas sociais, culturais, políticas e econômicas das
coletividades étnicas que se assentam no país.17
15
LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. pag.
39. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
16Ibidem, pag. 39-40.
17 SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
11
Como se vê das lições colacionadas acima, o etnodesenvolvimento implica na
formulação de políticas públicas que respeitem as diferenças étnicas e culturais das
comunidades indígenas, assegurando-lhes condições de participarem das discussões
relacionadas aos seus interesses, influenciando nas decisões que lhes afetam e promovendo
mudanças em suas práticas econômicas e sociais, respeitada a sua autonomia em face do
Estado nacional.
Por fim, não obstante a definição de etnodesenvolvimento apresentada acima, mister
frisar que outra concepção do termo tem sido adotada entre alguns estudiosos do direito
indigenista e, sobretudo, do direito ambiental.
Para essa parcela mais restrita da doutrina, cujo conceito nos parece partir de
perspectivas equivocadas, o termo etnodesenvolvimento tem sido associado aos debates sobre
desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental, utilizando-se, para tanto, da
“promoção dos povos indígenas” como forma de preservar os recursos naturais em face da
atuação humana em busca do desenvolvimento econômico.
Segundo Ricardo Verdum,
Em relação aos territórios indígenas, quando reconhecidos formalmente pelo Estado
brasileiro, persiste sobre eles a idéias [sic] de que são reservas de recursos naturais a
serem incorporados ao circuito econômico nacional, quando necessário, e, em
última instância, uma questão de segurança nacional. A partir dos anos 1990, num
contexto de ressurgir do discurso desenvolvimentista, renovado pelo debate sobre
possibilidades e viabilidade da ocorrência de “crescimento econômico” associado
com “sustentabilidade ambiental”, renova-se o discurso da necessidade de promoção
do chamado “desenvolvimento dos povos indígenas” como solução para “os seus
inúmeros problemas”18
Por muito tempo se admitiu a ideia de etnodesenvolvimento relacionada à
sustentabilidade ambiental e preservação dos recursos naturais, deixando-se o discurso do
respeito às diferenças étnicas e culturais, bem como a concretização de seus valores, para um
segundo plano, supostamente de menor importância.
A despeito desta mudança verificada no paradigma de etnodesenvolvimento, há que se
ressaltar, ainda, que muitas políticas públicas adotadas com vistas à concretização da
“cidadania multicultural” ainda não abandonaram o paradigma ligado à gestão dos recursos
socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 78. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-politicas-na-
america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
18 VERDUM, Ricardo. A cidadania multicultural e os limites do indigenismo brasileiro. Pag. 2. Disponível
em: < http://www.ciesas.edu.mx/proyectos/relaju/documentos/Verdum_Ricardo.pdf> Acesso em 30.08.2013.
12
naturais, adotando determinadas decisões em favor dos índios antes sob a perspectiva
ambiental do que propriamente voltadas ao seus etnodesenvolvimento.
Conforme preconiza Verdum,
No Brasil, ao longo dos últimos cinco anos, expressões como etnodesenvolvimento
e desenvolvimento indígena sustentável têm servido como artefatos de articulação e
sentido para a ação de inúmeras pessoas e instituições, governamentais e não-
governamentais, indígenas e não-indígenas, nacionais e internacionais que, de
diferentes perspectivas, têm afirmado estarem interessadas na transformação da
situação de “insegurança alimentar e pobreza” em que várias comunidades
encontram-se hoje mergulhadas ou na promoção de “maior autonomia política e na
sustentabilidade econômica e territorial indígena”. O etnodesenvolvimento passa,
nesse contexto, por um processo de fetichização, particularmente entre os setores
governamentais ligados a “gestão de recursos naturais” e ao “desenvolvimento
rural”. Acobertada sob uma retórica de defesa da pluralidade sócio-cultural, de
tolerância e de inclusão, se observa na esfera governamental brasileira uma práxis
política – conduzida com uma linguagem aparentemente técnica - que caminha no
sentido inverso, isto é, no sentido da manutenção das/dos indígenas na condição de
tutelados do Estado nacional e da integração dos seus territórios e os recursos
naturais e culturais nos circuitos econômicos de produção e comercialização
regional, nacional e internacional de mercadorias. Exemplos desta tendência são, por
exemplo, a recorrente “dificuldade” do governo federal de dialogar com o
movimento indígena organizado [...].19
Feita essa breve crítica acerca da indevida noção de etnodesenvolvimento na
articulação da máquina pública em prol da promoção dos interesses indígenas, passa-se a
discorrer sobre a autonomia indígena e sua autodeterminação como instrumentos de garantia
do etnodesenvolvimento no Brasil e a garantia à cidadania multicultural.
4. AUTONOMIA DO INDÍGENA E SUA AUTODETERMINAÇÃO
Autonomia e autodeterminação são conceitos que caminham juntos, de modo que sem
a implementação de um o outro dificilmente irá ser verificado.
A autonomia dos indígenas, e nesses caso nos referimos principalmente à autonomia
cultural, consiste na manutenção de suas tradições, crenças e modo de viver, em
contraposição às políticas integracionistas dos homens brancos. Assim, essa autonomia
implica no reconhecimento da autoridade dos povos indígenas em tomarem as suas decisões
nos seus respectivos territórios, bem como, principalmente, em participarem das políticas do
homem branco naquilo que lhes disser respeito.
19
VERDUM, Ricardo. A cidadania multicultural e os limites do indigenismo brasileiro. Pag. 2-3. Disponível
em: < http://www.ciesas.edu.mx/proyectos/relaju/documentos/Verdum_Ricardo.pdf> Acesso em 30.08.2013.
13
Paul E. Little, comentando esse aspecto externo da autonomia cultural, preconiza que
ela implica em assegurar aos indígenas
[...] uma participação direta nas decisões sobre o destino dos recursos naturais
contidos no seu território e, igualmente importante, controle sobre os recursos
culturais do grupo (língua, organização social, práticas tecnológicas, etc.). A
autonomia cultural, para funcionar como um verdadeiro subsídio para o
etnodesenvolvimento, teria que operar em pelo menos três planos: político,
econômico e simbólico.20
No plano político, segundo o autor, é preciso que se afaste o paradigma de que o
indígena representa um “estorvo”, devendo, por isso, ser integrado na sociedade nacional. É
preciso que seja afastada essa noção colonialista dos povos indígenas que se tinha outrora, em
que o “[...] principal interesse do Estado brasileiro frente aos povos indígenas foi sua
‘pacificação’ e não seu desenvolvimento enquanto etnias diferenciadas”21
.
Essa perspectiva da autonomia representa, pois, um dos mais importantes aspectos
para o etnodesenvolvimento, uma vez que o poder de decidir sobre políticas públicas voltadas
aos indígenas ainda está nas mãos do homem branco. Sem a sua compreensão sobre os
valores e necessidades desses povos, será praticamente impossível a adoção de políticas que
favoreçam o desenvolvimento multicultural.
De outro lado, sob a perspectiva da autonomia econômica, deve-se assegurar aos
povos indígenas que obtenham os próprios recursos, necessários à manutenção de seus
projetos tradicionais. Essa autonomia não está relacionada com a produção de excedente por
parte dos indígenas de modo a integrá-los no mercado capitalista do homem branco,
circunstância que, em verdade, pode até se revelar contra as culturas e tradições dos povos
originários.
Trata-se de garantir que tenham acesso aos recursos naturais da forma como determina
a sua tradição, pois, do contrário, caso o homem branco proibisse, p.ex., a caça e a pesca nas
aldeias, fornecendo toda a alimentação aos indígenas, restaria comprometida não somente a
autonomia desses povos como também a sua autodeterminação perante a comunidade
nacional.
20
LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. Pag.
41. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
21 Ibidem, pag. 41.
14
De outro lado, no que tange à autonomia no plano simbólico a que se refere Little, o
autor aborda a questão sob a ótica do fortalecimento dos processos científicos e educativos
das aldeias. São as suas lições:
No plano simbólico, o etnodesenvolvimento local requer controle sobre os
conhecimentos científicos e sobre os processos educativos. Quanto ao conhecimento
científico, a valorização e fortalecimento dos "saberes locais e suas tecnologias
associadas constituem uma tarefa importante (LITTLE, 2001). Os estudos
etnocientíficos mostraram a solidez, tanto empírica quanto teórica, das múltiplas
formas diferenciadas de lidar com o mundo biofísico por parte dos povos indígenas
e outros povos tradicionais. Esse reconhecimento também provém das grandes
empresas biotecnológicas e farmacêuticas que cobiçam esses conhecimentos com a
intenção de incorporá-los nas suas pesquisas e técnicas de modificação genética para
depois ganhar uso exclusivo sobre eles. Nesse contexto, a necessidade de proteção
da propriedade intelectual dos grupos étnicos, seja isto individual ou comunitário, se
toma uma tarefa urgente (WHITT, 1998). A proteção desses direitos está
intimamente ligada com o controle sobre os recursos culturais.22
Ora, a realidade indígena representa tradições e culturas notavelmente singulares,
cercada de crenças e hábitos completamente diversos daquelas que se observam na sociedade
nacional. Dessa forma, não há que se olvidar que a cultura dessas populações reclamam um
tratamento diferenciado, sobretudo no que tange aos seus métodos de ensino aos mais jovens,
o que só pode ser feito pelas suas próprias comunidades.
Basta recordar o modelo adotado pelo império de Portugal quando iniciaram a
colonização dos índios que habitavam o nosso território, em que padres portugueses
“educavam” os povos originários de acordo com a cultura e os interesses da coroa portuguesa,
o que resultou numa rápida e paulatina extinção das crenças e tradições indígenas.
Logo, a intervenção humana nas aldeias indígenas, tal como realizada pela FUNAI e
FUNASA, deve estar orientada pelo respeito à autonomia cultural desses povos, atuando
somente de modo a fortalece-la, sob pena de cometer, aos poucos, verdadeiro etnocentrismo.
Para Sanchez, a autonomia implica num
[...] sistema pelo qual os povos indígenas podem exercer seu direito à livre
determinação sob o marco de seus respectivos Estados. Para ela, são imprescindíveis
o reconhecimento jurídico e político da existência dos povos indígenas
(comunidades étnicas ou nacionais) e sua configuração em coletividades políticas,
em um marco estatal baseado na diversidade sociocultural. Tal reconhecimento
implica na configuração de um regime de autonomia, pelo qual as coletividades
indígenas teriam capacidades especiais em conduzir livremente seus modos de vida,
22
LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo global. Pag.
42-43. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
15
exercer o controle de seus assuntos, gerenciar certas questões por si mesmas e
exercer um conjunto de direitos.23
Conforme se infere das lições de Sanchéz, a autonomia representa o reconhecimento
de instrumentos que garantam a efetiva autodeterminação dos indígenas. O seu
reconhecimento político, jurídico e simbólico, imprescindível para a concretização de sua
autonomia cultural, implica no reconhecimento do “Estado indígena” por parte do Estado
nacional.
Nesse território indígena, portanto, deve-se reconhecer um governo autônomo, uma
jurisdição própria e o seu território demanda reconhecimento por parte do Estado. De outro
lado, sob o aspecto externo dessa autonomia, deve-se reconhecer, também, a participação
dessas comunidades na discussão e formulação de políticas públicas que lhes digam respeito.
Dessa forma, pode-se afirmar que a autonomia não consiste somente no
reconhecimento das comunidades indígenas e no respeito a sua autonomia interna, mas
também, e sobretudo, no reconhecimento de novos modelos de organização política do Estado
que permitam a efetiva participação das comunidades indígenas nas respectivas políticas
públicas em que estejam envolvidas.
Comentando a outra face da moeda, Sanchéz preleciona que a autodeterminação
consiste justamente na autonomia interna das comunidades indígenas, ou seja, uma vez
reconhecido o seu autogoverno, defere-se às comunidades a escolha do governo que
entenderem mais adequado às suas tradições e cultura. É dizer, a autodeterminação dos povos
indígenas decorre do reconhecimento de sua autonomia, sem a qual ficam sob o crivo da
cultura nacional, submetidos à integração multicultural.
Segundo a autora,
O direito à livre determinação é um principio geral que precisa se concretizar. Por
ele, tem-se dito que é importante especificar que uma coisa é o princípio geral do
direito à livre determinação, enquanto que outra são os diversos caminhos concretos
que podem se derivar do exercício desse direito, e que vão desde (a) a conformação
de entes autônomos sob o marco de um Estado pré-existente até (b) a independência
e a constituição de um Estado nacional próprio (Díaz-Polanco, 1996: 157-164).
É precisamente pelo direito à livre determinação que os povos indígenas têm a
opção de decidirem que tipo de organização política querem adotar. A preferência
expressa pela maioria das organizações indígenas em seus documentos e declarações
tem sido a de exercer o direito à livre determinação dentro dos países em que estão
23
SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 69. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-politicas-na-
america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
16
inseridos os povos indígenas, ou seja, a tendência geral não tem sido de separação e
constituição de um Estado nacional próprio, mas sim de garantir a manutenção e o
desenvolvimento de suas próprias formas de vida sociocultural sob o marco de seus
respectivos âmbitos estatais, por meio da autonomia, do autogoverno ou outro
regime semelhante.24
Nesse sentido, alguns pontos podem ser apontados como decisivos para o
reconhecimento da autonomia e autodeterminação desses povos, implementando-se em nosso
país um verdadeiro estado pluriétnico e multicultural:
a) Consentimento livre, prévio e informado acerca das políticas públicas e decisões
voltadas às comunidades indígenas;
b) Respeito à governança das lideranças indígenas em seus territórios;
c) Criação de espaços nas aldeias destinados à participação da comunidade na
formulação e discussão de políticas de seus interesses;
d) Respeito à autonomia cultural e à autodeterminação dos povos indígenas,
garantindo-lhes meios de manutenção de suas atividades tradicionais, ressalvada a
elaboração de planos de preservação ambiental;
e) Formulação de políticas voltadas à autonomia econômica dos povos indígenas,
fortalecendo-se as suas bases políticas; etc.
Por fim, não é demasiado salientar a importância do desenvolvimento econômico dos
indígenas em harmonia com a preservação da natureza, de modo a compatibilizar as tradições
indígenas quanto ao uso da terra com a preservação de seus recursos naturais.
Dentre as iniciativas comunitárias e de entidades brasileiras voltadas à gestão
territorial indígena, vale conferir alguns dados levantados pela FUNAI acerca da gestão
territorial dos Potiguara, presentes no território paraibano, voltados à gestão de seus recursos
naturais. Vejamos a tabela a seguir:
24
SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina. Brasília: Instituto de Estudos
socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 64-65. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-politicas-na-
america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
17
Figura 2 - Fonte:
http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/PlanosGestao/Etnomapeamento_Potiguara_Paraiba.pdf
18
Esses planos de gestão territorial, além de fortalecerem a economia local dos indígenas
e primarem pela conservação dos espaços naturais, atuam na busca dos mais variados
objetivos. A título de exemplo, cite-se os objetivos apontados pela FUNAI no Plano de
Gestão Aragwaksã de etnomapeamento, implementado em meio aos Povos Pataxós:
- Administrar o território – Sustentabilidade – Autonomia - Fortalecimento da
cultura - Defesa do território – Respeito - Compromisso de cada aldeia -
Cumprimento de metas - Vida digna - Estruturar o território - Demandas para
setores de governo - Importante para o planejamento - Garantia de direitos indígenas
- Demarcação do território - Ser um instrumento para o futuro - Atingir filhos e
netos.25
Interessante notar, após a realização desses trabalhos, a percepção dos Caciques e
Lideranças Pataxó de Barra Velha e Águas Belas sobre o Plano de Gestão Aragwaksã, o que
denota a percepção positiva que esses povos têm sobre projetos desta natureza, na medida em
que respeitam as suas crenças, tradições e culturas, ao mesmo tempo em que contribuem com
os indígenas no desenvolvimento e fortalecimento de uma economia local mais consistente e
ambientalmente sustentável. Vejamos o que pensam os Caciques e Lideranças Pataxó de
Barra Velha e Águas Belas sobre o Plano de Gestão Aragwaksã sobre suas áreas, in verbis:
Aragwaksã é a conquista da terra, é o que todos os mais velhos vêm sonhando há
muito tempo, ter a terra em nossas mãos. Também é o nosso sonho. Os mais velhos
lutaram e agora nós estamos aqui e queremos conquistar o que é nosso, por isso o
documento, por isso este plano.
O plano de gestão é a conquista da terra, é boa educação, é boa saúde, é trabalho. No
plano a gente pensa na água pura, na floresta viva, nos pássaros, é um meio da gente
estar revivendo o que foi destruído no passado, é uma nova vida.
Na época dos guerreiros Pataxó nós conseguimos muito, e hoje estamos em outra
luta, e nós vamos vencer no que queremos. Acreditamos que o plano para o território
é um grande sucesso, pois é união, onde faremos o que é nosso, buscando a força do
espírito da floresta, o poder espiritual de onde vai nascer todo o conhecimento para
levar o plano a conquistar o que os nossos velhos lutaram.
O plano é o que pensamos e colocaremos em prática, o que os velhos sonharam,
uma conquista daqui para frente, para os nossos jovens, para as nossas crianças. O
plano é nosso, hoje temos o nosso plano, ninguém amanhã ou depois poderá colocar
ou fazer o plano para nós. Daqui para frente alcançaremos novos espaços em cima
do plano, pois antes tínhamos só a fala, hoje temos a fala e o papel, e trabalharemos
com ele, avançaremos com ele.
25
C.f. CARDOSO, Thiago Mota; PINHEIRO, Maíra Bueno (Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão Territorial do
povo Pataxó de Barra Velha e Águas Belas. Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012. Pag. 12.
Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/PlanosGestao/Aragwaksa_PlanoGestao_Pataxo.pdf>
Acesso em: 30.08.2013.
19
Esta conquista é nossa, esta conquista é Pataxó!26
Como se vê da percepção dos indígenas sobre o estudo realizado, quando afirmam que
“o plano é nosso, hoje temos o nosso plano, ninguém amanhã ou depois poderá colocar ou
fazer o plano para nós”, levou-se em consideração em sua elaboração e desenvolvimento a
autonomia e autodeterminação dos indígenas, que pessoalmente mapearam as suas áreas e
definiram prioridades de atuação.
Trata-se de modelo de estudo em perfeita harmonia com o etnodesenvolvimento e os
valores inaugurados com a nossa Carta Magna de 1988, o que demonstra a sensibilidade de
alguns setores de nosso país quanto às questões indígenas, um exemplo que deve ser seguido
por toda e qualquer ação que envolva os interesses dos povos originários.
CONCLUSÃO
Preso por muitos anos na cultura colonialista portuguesa que explorou o país e seus
diferentes povos por muito tempo, o Brasil seguiu, até pouco tempo atrás, um modelo
integracionista em face das comunidades indígenas de seu território. Por muito tempo se
verificou um completo descompasso entre o texto das leis nacionais e as políticas
implementadas no chão concreto das aldeias.
Tendo a sua diversidade cultural simplesmente ignorada pelo grupo dominante, a
história nos mostra que os indígenas desencadearam vários movimentos no âmbito de seus
respectivos Estados na busca pelo reconhecimento de seus direitos, o que paulatinamente fez
com que os Estados refletissem sobre o tratamento dispensado ao indígena, notadamente
quanto à política integracionista adotada até então.
Com a edição da Constituição Federal de 1988, as questões relativas aos povos
indígenas ganharam novos ares, agora tendo como pano de fundo o respeito à diferença e a
garantia à autonomia e à autodeterminação. Isso porque, com o advento da Carta Magna,
alteraram-se as normas legais de relação entre esses povos e a sociedade nacional. O estado
deixou de legislar sobre a integração dos povos indígenas, reconhecendo o direito à diferença
em suas leis e em suas políticas.
26
CARDOSO, Thiago Mota; PINHEIRO, Maíra Bueno (Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão Territorial do povo
Pataxó de Barra Velha e Águas Belas. Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012. Pag. 7. Disponível
em: <http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/PlanosGestao/Aragwaksa_PlanoGestao_Pataxo.pdf>
Acesso em: 30.08.2013.
20
Com isso, distingue-se, agora, entre “Estados-nação” e “Estados pluriétnicos” na
medida em que um Estado reconhece ou não as diferentes etnias e culturas presentes em seus
territórios.
Assim, afirma-se que nos “Estados-nação” apenas são reconhecidas pessoas de uma
mesma nacionalidade, formadas a partir de uma mesma cultura, economia, jurisdição una etc..
Não há o reconhecimento das diferenças por parte do Poder, o que acaba por privilegiar a
hegemonia da nacionalidade dominante, pressionando os grupos sociais e étnicos excluídos
desta nacionalidade a se ajustarem com os seus valores.
De outro lado, nos “Estados pluriétnicos”, o Estado está vinculado com duas ou mais
culturas nacionais, sem se importar, para isso, com os seus respectivos números ou
composição demográfica. As culturas nacionais reconhecidas podem ser dominantes ou
minorias (em geral as duas convivem juntas), recebendo do Estado o reconhecimento de suas
diferenças culturais e étnicas no âmbito de suas relações.
Nessa perspectiva, o etnodesenvolvimento implica no reconhecimento desta cidadania
multicultal no âmbito de um mesmo Estado, no desenvolvimento de um Estado Pluriétnico, o
que corresponde, quanto aos indígenas, no reconhecimento de sua autonomia e
autodeterminação, seja no aspecto cultural, econômico, político, jurisdicional etc.
A despeito do preconceito que ainda existe em diversos setores de nosso país com
relação ao direito indigenista, não há que se olvidar que a Constituição de 1988 extirpou de
nosso ordenamento jurídico quaisquer disposições relacionadas às políticas integracionistas
outrora praticadas, de modo que a diferença deve ser respeitada e mesmo incentivada, como
se viu no exemplo do Plano de Gestão dos territórios dos índios Pataxós.
REFERÊNCIAS
BRAND, Antônio. Mudanças e continuísmos na política indigenista pós-1988. Pag. 31.
Disponível em: <http://laced.etc.br/site/arquivos/03-Estado-e-Povos-Indigenas.pdf> Acesso
em: 30.08.2013
CARDOSO, Thiago Mota; PINHEIRO, Maíra Bueno (Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão
Territorial do povo Pataxó de Barra Velha e Águas Belas. Brasília:
FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012. Pag. 12. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/Pdf/PlanosGestao/Aragwaksa_PlanoGesta
o_Pataxo.pdf> Acesso em: 30.08.2013.
21
LITTLE, Paul E. Etnodesenvolvimento local: autonomia cultural na era do neoliberalismo
global. Pag. 41. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/pgdr/arquivos/693.pdf> Acesso em:
30.08.2013.
SANCHÉZ, Consuelo. Autonomia, Estados Pluriétnicos e Plurinacionais. In: VERDUM,
Ricardo (Org.). Povos Indígenas: Constituições e Reformas Políticas na América Latina.
Brasília: Instituto de Estudos socioeconômicos, 2009, pp. 63-90, pag. 78. Disponível em:
<http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/livros/povos-indigenas-constituicoes-e-reformas-
politicas-na-america-latina/view> Acesso em: 30.08.2013.
VERDUM, Ricardo. A cidadania multicultural e os limites do indigenismo brasileiro.
Pag. 2. Disponível em: <
http://www.ciesas.edu.mx/proyectos/relaju/documentos/Verdum_Ricardo.pdf> Acesso em
30.08.2013.
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