“eu sou filho de preto, sou brasileiro” diálogos...
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“EU SOU FILHO DE PRETO, SOU BRASILEIRO”1:
Diálogos identitários na música popular
Kywza Joanna Fideles P. dos Santos2
Resumo
A música popular brasileira tem dado ampla condição investigativa no campo dos estudos pretendem compreender seus engendramentos conflituais identitários, assim como nos processos de ressignificação e reidentificação simbólica dentro da cultura midiática. Nesta perspectiva, a proposta deste trabalho é identificar e analisar contextualmente os diálogos em torno desses processos identitários, para tanto foram escolhidos dois momentos distintos no cenário da música popular, passando pela produção musical de Maria Bethânia e Gilberto Gil e as produções atuais de Mariene de Castro e Criolo. Assim, pretende-se vislumbrar como se dispõem e se ressignificam os discursos de classe, “raça”, região, origem e pertencimento, e de que maneira acionam e reconfiguram os debates conceituais e políticos presentes na história brasileira, como miscigenação, negritude, multiculturalismo, identidade, através de elementos simbólicos. O que esses compositores e intérpretes têm em comum e no que diferem? Como acionam os discursos identitários? Como são ressignificados e reconfigurados os sintomas discursivos, que de diversas formas pautam os debates em torno das identidades, da racialização do discurso, seja este utilizado como negação ou afirmação? Qual o papel do discurso de tradição e ancestralidade no processo de legitimação da música popular brasileira?
Palavras-chave: Identidades. Ancestralidade. Legitimidade. Negritude. Música Popular.
1. Introdução
No Brasil, os discursos em torno da identidade nacional, de celebração da
miscigenação e da cordialidade ainda estão intrinsecamente ligados a um “mito fundador”
(CHAUÍ, 2000) e ao caráter dos próprios sistemas organizados para manutenção de um status
quo. Entretanto, é no âmbito da cultura, que os debates conceituais e políticos em torno das
identidades negras e mestiças e do Novo racismo vêm à tona de forma sintomática. A música
popular brasileira sempre esteve permeada por estes debates, desde suas primeiras expressões,
dentro das tradições afro-religiosas, até a influência e reelaboração dessas tradições pelos
diálogos transatlânticos.
1 Trabalho apresentado no GT 03 – Mídia, musica e processos identitários do V Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado no período de 29 a 31 de agosto de 2013, no Centur, Belém-PA. 2 Aluna doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação – PPGCOM/UFPE. E-mail: kywzafideles@gmail.com .
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O mundo dos orixás, suas mitologias, encantos e cantos, crenças e homenagens estão
presentes na música popular brasileira desde seus primeiros passos na conquista autonomia
enquanto produto cultural de circulação e consumo dentro das indústrias culturais. É possível
identificar facilmente as influências das religiões afro-brasileiras nascidas na África ou no
Brasil (candomblé, xangô, umbanda, tambor de crioula, jurema entre outras) através de
elementos simbólicos ou narrativas que fazem parte do repertório cultural e das interlocuções
histórico-conceituais, que de forma direta ou indireta estão estruturalmente ligados ao
imaginário brasileiro.
Desde as primeiras gravações de samba encontra-se músicas que acionam o repertório
do candomblé e da umbanda, os orixás, caboclos, feitiços, os pontos de macumba, e a elas
ligadas nomes importantes da história da música popular como Pixinguinha, Donga, Sinhô,
João da Baiana, Amor. A própria formação do samba está intrinsecamente ligada ao universo
das manifestações afro-religiosas, num complexo processo de negociação e disputa.
Os elementos afro-religiosos marcaram o surgimento do que viria a se entender ou
constituir como música popular brasileira, tanto no que diz respeito à construção da
identidade nacional, no campo político e cultural, quanto no papel desse discurso de
africanidade, religiosidade e ancestralidade, e posteriormente de negritude, como
determinante no âmbito das disputas simbólicas. Além disso, também pode ser compreendido
como marcador cultural que transita entre dois mundos marcados pela travessia, que ainda
permanece flutuando o imaginário identitário, onde um dia o que foi desassossego do
pertencimento tornou-se o deleite da celebração e o lugar de reivindicações políticas.
O que nos interessa aqui é vislumbrar esses diálogos identitários nos processos
contextuais e suas contradições, é entender as transformações, os sintomas discursivos que
operam na (des) construção de mitos através de mitos. O protagonismo exercido no âmbito
das disputas simbólicas por esses modos de pertencimento tem marcado o jogo das
permanências e ausências na memória coletiva. Podemos refletir, ainda, sobre o papel dessas
expressões no processo de legitimação do que viria a ser chamado de música popular
brasileira, visto que a autonomia da canção popular está intrinsecamente ligada a um processo
longo e complexo de reconhecimento e afirmação das culturas negras e mestiças em
permanentes disputas, trocas, cooptações e articulações.
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2. Dos orixás ao Black is beautiful: os diálogos transatlânticos
Vale salientar ainda que já era possível apontar um entrelaçamento mais concreto do
samba com a classe média e as ressignificações de classe e raça. O samba passa a ocupar
outros espaços e o discurso de tradição através da africanidade sofre um apagamento contínuo
dentro do gênero, segundo Nei Lopes (2005). Entretanto, esse apagamento pode ser analisado
como sintoma do alargamento de uma conjuntura social, em que o embate cultural e os
entrelaçamentos identitários são deslocados para um novo plano, o da indústria, muito embora
este não seja determinante. Para Nei Lopes, esse processo de “desafricanização” da música
popular brasileira, que se faz mais presente a parir de 1960, reflete o fenômeno da
globalização do gosto. Todavia, se analisarmos esses processos tentando ver através das
fissuras e ramificações, podemos constatar que essas lacunas, desvanecimento, apagamento
ou desafricanização apontam para mais de um sintoma, que refletem a reconfiguração do
discurso de africanidade e negritude, nas novas conjunturas culturais, em que outros modos de
pertencimento articulam seus diversos diálogos transculturais, seja no campo do simbólico ou
político.
Dentro desses aspectos, abordaremos essas reconfigurações e acionamentos nas
canções de dois ícones da música popular brasileira que atravessaram gerações e momentos
políticos distintos, mas que até os dias atuais têm suas obras marcadas por diferentes aspectos
das culturas negras, dos motivos de candomblé à negritude pop engajada, dos cânticos dos
orixás ao black is beautiful. Desse modo, destacaremos aqui as canções de Gilberto Gil (um
dos ícones do movimento Tropicália no final dos anos 60, e do que viria a ser MPB hoje) e
Criolo (rapper, Mc, que tem se destacado no cenário atual) têm suas canções marcadas tanto
pelos discursos de africanidade, quanto de negritude, dialogando com o pop e a world music
em suas formas de expressão. Ambos tensionam as fronteiras do gênero musical e os
discursos no campo das disputas simbólicas como forças legitimadoras. Como também
abordaremos as canções gravadas por Maria Bethânia (da mesma geração musical de Gil, hoje
uma das figuras mais emblemáticas da MPB) e Mariene de Castro (revelação entre as cantoras
de samba, na última década, tem se destacado com seu repertório de samba-de-roda baiano).
Ambas apresentam uma estreita relação com o mundo afro-religioso em seu repertório,
acionando o panteão do candomblé e de outras religiões, seus cantos, celebrações e narrativas
mitológicas.
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São anos de produção de uma nova forma de cantar em que elementos da cultura do candomblé vão se firmando com legitimidade entre as classes médias, consumidoras do que se produz de mais avançado no país. Os temas baianos estavam na ponta de renovação da música popular brasileira, com o candomblé ocupando um lugar especial. (PRANDI, p. 198-199, 2005).
Da tropicália até os dias atuais, é possível perceber que Gilberto Gil degustou a
antropofagia de forma iconoclasta, principalmente, se pensarmos o seu repertório tanto ligado
às tradições afro-religiosas como sua conexão com a cultura negra transatlântica. As noções
de africanidade, ancestralidade, mestiçagem e negritude são compartilhadas em diversos
modos de pertencimento, permeando várias fases de sua obra.
Dentro do escopo das identidades negras, sua inspiração vai desde os deuses
mitológicos, ao homem negro urbano, além de diversas composições em que as personagens
estão dispostos entre classe, raça e região (local e global). As temáticas ligadas aos elementos
das culturas negras são recorrentes na vasta obra de Gilberto Gil e estão presentes tanto na
construção melódica (ritmos de afoxé, samba-de-roda, batuques, afrobeat, blues, jazz, reggae,
e etc), como no discurso poético.
No panteão da música popular brasileira, Gilberto Gil é um dos compositores,
instrumentistas e cantores mais emblemáticos no sentido de identificação pessoal e artística
com a cultura afro-brasileira, juntamente com outros contemporâneos. Um dos ícones do
movimento Tropicalista, de uma geração que sofreu e criou uma nova estética em meio à
censura do longo período ditatorial.
Das influências negras nordestinas como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro (fruto
de sua vivência infante em Ituaçu, no sertão baiano) às permanências da cultura do candomblé
soteropolitano, à confluência antropofágica do tropicalista e às inspirações transatlânticas das
experiências negras dentro e fora da world music, Gil condensa as narrativas conexas e
desconexas de pertencimento em torno da “raça significante flutuante” (Hall, 1995.), e mais
especificamente do ser negro. Em declaração ao jornal O Globo no ano de 1977, Gilberto Gil
afirma que: “A cor negra é como um combustível luminoso, vibrátil, que fornece uma espécie
de energia pra toda a humanidade, da qual a humanidade está cada vez mais carente, uma
energia telúrica, tá entendendo? Ela dá no sentido principalmente da miscigenação que vai se
fazendo cada vez mais no mundo”. (GÓÉS, 1982, p. 103). De acordo com Caetano Veloso,
seu amigo e parceiro em várias composições,
No final da década – sobretudo sob o impacto de Jimi Hendrix – Gil vestiu a máscara do negro com consciência racial, e essa nova persona, em vez de
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meramente ocultar o homem resolvido além dos conflitos, revelou conteúdos de mágoa e orgulho havia muito latentes sob o antigo véu. Era como se ele se tivesse longamente submetido à crença de que não era preciso bater no peito e gritar “sou negro!” ou protestar contra discriminações, considerando bastante ter uma vida digna e afirmar-se social e intelectualmente como fizera seu pai. Agora, com o aspecto “black is beautiful” da cultura pop que ele abraçava como consequência de seu refinamento pessoal, ele encontrava africanidades em suas reminiscências domésticas e revolta contra os aspectos raciais da injustiça da sociedade brasileira. É revelador de profunda verdade sobre essa questão no Brasil o fato de Gil ter sido um exemplo perfeito de filho de preto doutor baiano e, (...), ter se tornado um líder mítico dessas novas massas negras. Assim o pequeno burguês bossa-nova de 63 é cantado pelos blocos afro dos anos 80 e 90 como aquele que ficou no lugar de Bob Marley na defesa de seu povo (VELOSO, 1997, 288).
A relação da obra de Gilberto Gil vai desde o misticismo afro-religioso com
homenagem e louvação aos orixás a personagens da história dos negros no Novo Mundo,
numa estreita ligação expressiva com a África negra e Áfricas diaspóricas no mundo, que têm
profunda relação com as transformações e rearticulações do discurso de negritude. A conexão
entre raça, classe e região está disposta no que chamo de reconfiguração do discurso de
negritude. A obra de Gilberto Gil vem afirmar as reidentificações simbólicas das identidades
nas diversas esferas culturais, tendo um papel preponderante no surgimento de uma estética
da negritude na música popular brasileira.
Tendo em vista a extensão e a importância da obra de Gilberto Gil para a música
popular brasileira, é possível destacar aqui apenas algumas das canções que refletem os
diálogos com a africanidade e negritude. Góes (1982) denomina a fase africanista de Gilberto
Gil de “Baba Alapalá”, que corresponde às produções voltadas para os motivos de cânticos de
candomblé. Dentro da fase “Ré” (Refazenda -1975, Refavela -1977 e Realce/Sarará Miolo -
1979), pode-se dar ênfase a canção “Refavela”, do disco homônimo, e Sarará Miolo, em que
tem-se as questões do negro urbano e a negritude pop moderna. Contudo, há outras produções
dentro dessas temáticas como “Gil Jorge: Oxum, Xangô” (LP duplo em parceria com Jorge
Bem Jor, gravado em 1975); “Quilombo” (1984); “Z300 Anos de Zumbi” (1995) e Kaya
N'Gan Daya (2002), um tributo a Bob Marley, gravado no Tuff Gong Sudios, em Kingston
(Jamaica), no qual registrou 16 de suas obras de Marley, em numa roupagem inspirada
correspondências rítmicas entre o baião, o xote e o reggae.
As viagens transatlânticas através dos diálogos musicais com as culturas negras
diaspóricas. Por exemplo, é Gilberto Gil o responsável por apresentar Jimmy Cliff ao público
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brasileiro no final dos anos 70. Eles gravariam juntos, em 1980, um especial exibido pela TV
Globo.
Dentro da vasta produção de Gilberto Gil, citemos algumas das muitas canções que
transitam nesse universo temático: “Batmacumba” (parceria com Caetano Veloso), “Babá
Alapalá”, “Nega (Photograph Blues), “Filhos de Gandhi” (que virou um hino para o bloco
afro Afoxé Filho de Gandhi, “De Bob Dylan a Bob Marley – um samba provocação”; “Buda
nagô”; “Emoriô; “Jubiabá”; “Axé Babá”; “Chuckberry Fields Forever”; “Logunedé”; “Eu vim
da Bahia”; “Haiti”; “ Z: 300 anos de Zumbi”; “Afrolodumultimídia”; “Afoxé badauê”;
“Balafon”; “Afoxé é”; “São João, Xangô menino”; “Alujá do Rei Xangô”; “As Ayabás”;
“Quilombo, o eldorado negro”; “Ganga Zumba (o poder da bugiganga)”; “A chegada em
Palmares”; “Zumbi, a felicidade guerreira”; “Namba, a gangamorada”.
Para fins didáticos, trabalharemos três conexões a africanidade celebrativa tanto
mitológica quanto histórica, a mestiçagem e negritude brasileira e os diálogos com a negritude
pop moderna transnacional. Dentro da conexão com a ancestralidade, observemos a canção
“Logunedé3”: “É de Logunedé a doçura/ Filho de Oxum, Logunedé/ Mimo de Oxum,
Logunedé, edé, edé/ Tanta Ternura/ Logunedé é demais/ Sabido puxou aos pais/ Astúcia de
caçador/ Paciência de Pescador (...)”. O discurso de miscigenação,por exemplo, passa da
função de catalizador de tensões e passa a ser utilizado como um aspecto importante da
negritude brasileira, como podemos ver em “Sarará Miolo”: “Sara sara sara/ Sara sara sarará
Miolo/sara sara sara cura/ Dessa doença de branco/ De querer cabelo liso/ Já tendo cabelo
louro/ Cabelo duro é preciso/ Que é pra ser você crioulo”. Sarará é a denominação usada para
o mulato alourado ou arruivado (LOPES, 2004). Obervemos as correspondências entre as
palavras sara e cura, que não apenas se resume à ao campo das enfermidades, mas também à
ave saracura, que se apoia numa só perna, assim como o mestiço que se apoia na braquitude.
A hierarquia na qual a branquitude é valorizada sem se falar nela, a mestiçagem destacada e a negritude silenciada, enfrenta um quadro em que rappers como Mano Brown e MV Bill se reconhecem como cidadãos globais, parte de um movimento cultural cosmopolita. O rap representa uma voz narradora diferente da tradição bossa-novista e tropicalista, ao falar diferente, como “povo”, para um público projetado como semelhante, vizinho ou concidadão e não, em primeiro lugar, apreciador. (SOVIK, 2009, p. 102-103).
3 Orixá filho de Oxóssi e Oxum. Guarda a natureza do pai e da mãe. Durante seis meses é um jovem caçador, como o pai, e nos outros seis é uma bela ninfa, como a mãe.
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No contexto hodierno, mais que nunca, é possível perceber que embora a elite
reconheça a importância da cultura negra, lhe é caro compartilhar os espaços dentro da
produção cultural ou conceder status de legitimidade. Nesse ponto, foi dentro da chamada
periferia, e através das novas tecnologias, que sob uma nova dinâmica dentro da economia de
mercado, que o rap engajado conseguiu se estabelecer enquanto expressão e produto cultural
para fora do seu eixo periférico, dentro e fora das margens, uma tendência em vários estilos e
gêneros musicais. Essa mudança característica que se segue ao longo dos anos 90, traz
diversos e complexos contornos no seio das identidades raciais e sociais.
O rapper e/ou Mc Criolo, conhecido no início de sua trajetória no final dos anos 80
como Criolo Doido, vem se destacando no cenário nacional pelas composições que dialogam
tanto com a questão de classe, raça e região, quanto com a volta à africanidade, numa
atualização híbrida desses diálogos identitários muito semelhante aos percursos identitários de
Gilberto Gil.
Dentro das semelhanças com a estética negrista de Gilberto Gil e Criolo está a
enunciação e celebração dos orixás, além do desprendimento de criação dentro dessa mesma
estética, num dialogismo constante com as expressões de negritude moderna nas Áfricas pelo
mundo. Outro ponto são os acionamentos da mestiçagem como marco de negritude, além da
reidentificação do pop internacional com as identidades nacionais e regionais, podendo nos
trazer o olhar incipiente do novo cosmopolitismo brasileiro, onde o mestiço cultural
desconfigura a ideia de nacionalidade e reconfigura uma dimensão do regional fortemente
conectado as culturas transnacionais vigentes, sem amarras ao velho nacionalismo. Mas,
comprometido com os fluxos identitários correspondentes e divergentes.
O rapper Criolo é paulista, filhos de migrantes nordestinos cearenses, e cresceu na
periferia de São Paulo. Tem sua musicalidade marcada pela influência das margens culturais
dos grandes centros. Apesar de ter começado sua carreira em 1989, só se tornaria conhecido
do grande público na primeira década dos anos 2000. Ainda com o nome artístico de Criolo
Doido, gravou seu primeiro álbum em estúdio em 2006, intitulado “Ainda há tempo”. Em
2009, ao comemorar 20 anos de carreira, gravou o DVD “Criolo Doido Live in SP”, lançado
no mercado no ano seguinte. Em 2010 lançou o cd single com as faixas "Grajauex" e
"Subirusdoistiozin", que vinham com uma nova roupagem de estilo dentro do rap. Em 2011,
disponibilizou gratuitamente, via internet, seu novo álbum “Nó na Orelha”, que veio afirmar
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sua presença no cenário musical, agora como Criolo. É a partir de então que seu repertório
confirma sua tendência mais dialógica para além e com o rap, através da influência do soul,
do funk, do afrobeat e da MPB. Suas canções compartilham os novos modos de
pertencimento dentro das contínuas disposições e dos descontínuos engendramentos de raça e
classe, com uma ligação inequívoca à negritude.
Os diálogos identitários na música popular brasileira em torno da africanidade e
negritude reconfiguram-se numa constante reatulaização contextual e conceitual, como é
compreensível aos processos culturais. Entre Gilberto Gil e Criolo houveram momentos
distintos, um deles é o de vasta produção no que diz respeito à estética da negritude, com
Gilberto Gil Jorge Bem Jor, Caetano Veloso Itamar Assumpção, Naná Vasconcelos, e outro
pouca produção e/ou pouca produção dentro da estética da negritude, como a década de 90
com poucas expressões novas como Chico César, Rita Ribeiro e Zaca Baleiro e Chico Science
e Nação Zumbi. Na verdade, a Nação Zumbi marca essa mudança de lugar do discurso da
negritude, fora da MPB, e é também um novo marcador das correspondências entre classe,
raça e região, mas já apontando para a influência do rap na reconfiguração da estética da
negritude. Esta, dentro de suas várias formas de expressão, esteve sempre em trânsito,
ressignificando a musicalidade dentro de diversos gêneros e estilos.
Gulberto Gi,l um visionário, traz dentro dos batuques, dos afoxés e da saudação aos
orixás, uma espécie de culto à ancestralidade; dentro dos diálogos transatlânticos traz o
reggae baião, ao rap repente. Criolo faz essa mesma volta aos orixás e saúda o batuque, o
samba, o rap e a MPB, como é possível perceber em “Mariô” (Nó na orelha- 2011), em que a
saudação a Ogum (Ogum adjo, ê mariô, Okunlakaiê) precede a referência a nomes
importantes da música negra como o rapper Sabotage e Fela Kuti (músico e político
nigeriano, criador do afrobeat), que compartilharam do discurso de africanidade e negritude:
“Antes de Sabota escrever Um Bom Lugar /A gente já dançava o Shimmy Shimmy Ya ...
Mulato, Astatke e Fela Kuti escutar”, desembocando sempre no entrelaçamento dos discursos
de raça e classe: “E pode crer, mais de quinhentos mil manos/
Pode crer também, um dialeto suburbano/ Eu não preciso de óculos pra enxergar/ O que
acontece ao meu redor/ Eles dão o doce pra depois tomar/ Hoje vão ter o meu melhor”.
Podemos mencionar ainda a música “Linha de frente” como mais um dilogismo de
Criolo no sentido de acionar referências da música brasileira ligada à africanidade, observado
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ver na semelhança melódica coma canção de Clara Nunes, “Tristeza Pé no Chão”. Diga-se de
passagem, Clara Nunes foi uma das grandes expressões da música popular brasileira, e teve
seu repertório marcado pelas canções ligadas ao candomblé. Essa semelhança vem
acompanhada por um motivo musical que aciona metaforicamente a dura realidade do tráfico,
que assola as comunidades pobres: “O dinheiro vem pra confundir o amor/ O santo pesado
fica sem andor/ Na turma da Mônica do asfalto/ Cascão é rei do morro e a chapa esquenta
fácil”. Nesse sentido, a conexão entre classe e raça aparece em forma marcador de gênero e
discurso social, diferentemente de Gilberto Gil na canção “Refavela”, onde são retomados os
temas étnicos-raciais, projetando o contexto social e a efervescência da cultura negra na
reinvenção da favela: “A refavela/ revela o salto/ Que preto pobre tenta dar/ Quando se
arranca / Do seu barraco Prum bloco BNH4/ A refavela, a refavela, ó.../ Como é tão bela,
como é tão bela, ó...”; assim como em termos culturais no sentido do caráter cosmopolita da
cultura brasileira na iminência das identidades: “A refavela/revela a escola / De samba
paradoxal: brasileirinho pelo sotaque/ Mas de língua internacional”.
Gil ainda canta a esperança de renovação nos jovens negros e na cultura com a
referência ao movimento Black Rio5: “A refavela/ Revela o passo/ Com quem caminha a
geração/ Do Black jovem/ Black Rio/ Da nova dança do salão”. São duas abordagens
diferentes em suas semelhanças. Em outras canções de Criolo, como “Sucrilhos”, é possível
observar a relação classe e raça nos exemplos cotidianos de exclusão social racializada,
consumo e representação, identificação cultural: “Cientista social/ Casas Bahia e tragédia/
Gosta de favelado mais que nutela/ Quanto mais ópio você vai querer?/ Uns preferem morrer
ao ver o preto vencer (...)/ Cartola virá que eu vi /Tão lindo e forte/ Como Mohamed Ali”. Os
últimos versos são uma readaptação de versos da canção “O índio”de Caetano Veloso.
O afrobeat é uma referência musical forte da África Negra moderna, tanto para
Gilberto Gil e Criolo, como para muitos músicos, compositores e cantores no mundo.
Entretanto, digamos que o reggae está para Gilberto Gil como o afrobeat está para Criolo,
apesar dos dois compartilharem essas influências. A canção “Bogotá” é a mais emblemática
nesse sentido. Com arranjo característico dos instrumentos de sopro nos convida à Nigéria de
Kuti e a letra nos convida para ir a Bogotá, no seu recorrente jogo poético.
4 Banco Nacional de Habitação 5 Movimento musical encabeçado por jovens negros da periferia do Rio de Janeiro na década de 1970, que teve influência do Soul norte-americano.
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O discurso de mestiçagem como afirmação da negritude presente em “Sarará Miolo”,
também aparece em “Que Bloco é esse?”, música regravada por Criolo (que inseriu novos
versos) e o bloco afro-baiano Ilê Aiyê6. O vídeo clip fez parte do projeto cultural “Que Bloco
é esse?”, uma inciativa da Petrobrás, que busca promover o encontro entre os blocos afro e de
vários nomes da nossa música. Nessa música se condensam os discursos de africanidade e
negritude em todos os aspectos. Primeiro, com a celebração de ancestralidade através da
religião, que aparece no batuque do Ilê e nas imagens de mães de santo vestidas como para
uma cerimônia. Segundo, e ao mesmo tempo, o rap mais ritimado, a letra traz o discurso de
mestiçagem como marcador de afirmação de negritude através da religião, da estética e da
consciência racial.
Já em “Sarará Miolo”, vê-se a crítica à braquitude valorizada no mestiço, e pelo
mestiço, criolo, sarará: “uma doença branco/ De querer cabelo liso Já tendo cabelo louro/
Cabelo duro é preciso/ Que é pra você ser criolo”. Enquanto na música “Que bloco é esse?”, a
afirmação da negritude não só vai além das nuances de cor, como sua letra destaca mais pela
negritude acionada em sua essência, o discurso afirmativo-valorativa: “Que bloco é esse/ Eu
quero saber/ É o mundo negro/ Que viemos mostrar pra você (...)/ Branco se você soubesse/ o
valor que o preto tem/ Tu tomava banho de pixe/ Pra ficar negão também (...)/ Somos criolo
doido/ Somos bem legal/ Temos cabelo duro/ Somos Black Power (...)/ Eu sou filho de preto/
Sou brasileiro”. Na dinâmica de pertencimento e/ou identificação, o discurso da mestiçagem
também é ressignificado. Tanto em Sarará Miolo quanto em Que bloco é esse? Essas
ressignificações da mestiçagem invertem o discurso de “eu sou mestiço, sou brasileiro”, para
“Eu sou filho de preto/ Sou brasileiro”, da valorização da braqnuitude do mestiço para a
afirmação de uma negritude brasileira.
As abordagens de africanidade e negritude aparecem reconfiguradas no cenário
musical dentro dos diálogos identitários nacionais e transnacionais, seja em gênero, forma ou
conteúdo. Jorge Bem Jor é um dos exemplos mais emblemáticos nesse sentido, em sua batida
pop moderna criou o samba rock. O que se observa é que a estética da negritude desde Gil até
Criolo foi ressignificada por diversas vertentes em torno dos discursos de raça e classe, e de
6Criado em 1974, é um dos mais importantes e tradicionais blocos afro de Salvador. Os Blocos afro surgiram na década de 1970, em busca de espaço e reconhecimento da cultura negra dentro e fora do carnaval baiano. Com suas letras marcadas pela valorização do negro através do resgate de sua história, através da mitologia dos orixás e narrativas de ancestralidade.
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acordo com as dinâmicas contextuais e conceituais, numa constante reatualização e seus
diálogos transatlânticos.
3. “Não mexe comigo, que eu não ando só: é por onde eu vou que o santo me leva”
7
É compreensível a forte presença da narrativa de motivos africanos ou da mitologia
dos orixás na música através da conexão do samba com os pontos de candomblé, com os
terreiros e da figura de mães de santo, desde a sua constituição consolidação na era do rádio
conquistaria status e legitimidade enquanto música e enquanto símbolo da cultura nacional.
O universo mitológico dos orixás, as cantigas de terreiro, a relação com as religiões de
matriz africana e o sincretismo religioso, estão em diversos momentos da história da música
popular brasileira. Contariando a ideia defendida por Nei Lopes de desafricanização da
música popular a partir do final da decada de 1960, muitos intérpretes e compositores como
Martinho da Vila, Clara Nunes e Maria Bethânia acionaram africanidade através da
religiosidade, quase sempre num mote celebrativo e em narrativas mitológicas.
Maria Bethânia, hoje uma das intérpretes mais respeitadas da chamada MPB, surgiu
no cenário musical através do teatro. Fez parte dos doces bárbaros, grupo formado por seu
irmão Caetano Veloso, e pelos amigos Gilberto Gil e Gal Costa. Indiretamente também esteve
ligada ao movimento tropicalista, mas, nunca assumiu um estilo definido, transitando entre o
repertório convencional do samba e da Bossa Nova, ao romantismo dor de cotovelo, boleros
de boemia, às influências do iêiê da Jovem Guarda. Contudo, a temática dos orixás delineia
boa parte da musicalidade em sua obra. Nascida em Santo Amaro da Purificação, no
Recôncavo, região considerada o berço do candomblé baiano.
Podemos citar muitas canções em sua longa trajetória, composições de Caymmi como
“Oração à Mãe Menininha8”, uma homenagem a uma das mais importantes Ialorixá da Bahia;
de Baden Powell e Vinícius: “Samba da Benção”, um dos mais famosos afro-sambas; de
Gilberto Gil: “As Ayabás9” e “São João, Xangô Menino”. A essas canções se somam outras,
numa longa lista de registros fonográficos na voz de Maria Bethânia, que trazem os orixás, as
mitologias, celebrações e batuques, os cânticos de candomblé, os pontos de macumba, a
7 Versos da canção “Carta de Amor” (Oásis de Bethânia, 2013). 8 Menininha do Gantois, famosa Ialorixá, mãe-de-santo de Salvador, respeitada pela sabedoria e pelo papel disseminador do candomblé. Agregou personalidades distintas ao seu terreiro, como Dorival Caymmi, Tom Jobim e Antônio Carlos Magalhães. 9
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jurema, o Tambor de Mina; e o sincretismo religioso. Dentro dessas temáticas, podemos
destacar nas seguintes canções: “Cabocla Jurema”; “Canto de Nanã”; “Canto de Oxum”;;
“Filhos de Gandhi”; “Iansã”; “Dona do Raio e do vento”; “Kirimurê”; “Louvação a Oxum”;
“Mamãe Oxum”; “Iemanjá”; “Rainha do Mar”; “Medalha de São Jorge”; “Canto do Pajé”;
“Navio Negreiro/ O índio”; “Ponto de Oxóssi”; “Ponto de Oxum”; “Ponto de Xangô”;
“Rainha Negra”; “Reconvexo”; “Sete Trovas”; “Santa Bárbara”; “Coroa do Mar”; “Linha de
Caboclo”; “Feita na Bahia”; “Ê Senhora (Batatinha Roxa); “Encanteria”; “Carta de Amor”, e
entre tantas outras.
A estética da negritude está sempre apoiada nas referências à africanidade, muitas
vezes como ponto aglutinador de pertencimento, outras dentro de sua ressignificação na
cultura popular regional e nacional. A louvação aos orixás, principalmente os femininos,
como Oxum, Iansã e Iemanjá, é tradicionalmente acompanhada suas palavras de saudação
iorubanas, usadas nas cerimônias de candomblé. Geralmente, o uso os batuques dos terreiros
em suas gravações como marcador do motivo musical, que pode ser celebrativo ou com
arranjos de um canto de lamento. Observemos a canção Iemanjá, rainha do mar: “Quanto
nome tem a Rainha do Mar?/ Quanto nome tem a Rainha do Mar?/ Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã, Maria, Dona Iemanjá/ Perfume, Flor,
espelho e pente/ Toda sorte de presente /Pra ela se enfeitar/ Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?/ Alodê, Odofiaba, Minha-mãe, Mãe-d'água,
Odoyá (...)”. A exaltação de Iemanjá e suas características, como forma de respeito e devoção,
assim como na canção “Louvação a Oxum”: “Oxum que me cura/ com água fresca/ Sem gota
de sangue/ Dona do oculto, a que sabe e cala/ No puro frescor de sua morada/ Oh! Minha
mãe, rainha dos rios/ Água que faz crescer as crianças/ Dona da brisa de lagos/Corpo divino
sem osso nem sangue/ Orarei a Oxum/ Que Adoro Oxum (...)”.
Outra característica são as canções que relacionam os sincretismos religiosos,
principalmente, no que diz respeito à atribuição de correspondências entre os orixás e os
santos católicos, forjadas outrora durante o processo de transcultura. Nesse sentido, podemos
apontar a canção “Dona do raio: O vento”: “O raio de Iansã sou eu/ Cegando o aço das armas
de quem guerreia/ E o vento de Iansã também sou eu/ E Santa Bárbara é santa que me
clareia”. A baianidade e a cultura popular que bebe nas referência de africanidade são bem
recorrentes com seus personagens híbridos, como podemos ver em “Reconvexo”: “Eu sou a
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sombra da voz da matriarca da Roma Negra/ Você não me pega, você nem chega a me
ver”(...)/ Eu sou o preto norte-americano forte/ Com um brinco de ouro na orelha/ Eu sou a
flor da primeira música a mais velha/ Mais nova espada e seu corte/ Quem não rezou a novena
de Dona Canô/ Quem não seguiu o mendigo/Joãozinho Beija-Flor/ Quem não amou a
elegância sutil de Bobô/ Quem não é recôncavo e nem pode ser reconvexo”.
Nos últimos álbuns de Maria Bethânia “Encanteria” (2009), “Festa Amor e Devoção”
(2010) e “Oásis de Bethânia” (2012), a temática religiosa reaparece envolta por outras
referências dentro do panteão das religiões afro-brasileiras. Em Encanteria, por exemplo, a
Jurema10, a Encanteria11, o Tambor de Mina, aparecem como marcador das identidades
religiosas dos sincretismos afro-indígenas apontado para os diálogos com outras expressões
fora da Bahia. As canções “Linha de caboclo”: “Já chegou a hora/ Quem lá no mato mora/ É
que vai agora se apresentar/ No chão do terreiro/ A flecha do Seu Flecheiro
Foi que primeiro/ Zuniu no ar (...)/ Vi Seu Pena-Branca rodopiar
Seu/ Mata-Virgem/ Seu Sete-Estrelas/ Vi Seu Vira-Mundo me abençoar/ Vi toda a falange do
Jurema/Dentro do meu gongá (...); e “Encanteria”: “Vou queimar a lamparina quando o rei
me der sinal/ Eu sou da casa de Mina/ Ele é da casa Real/ Eu desci da lua cheia/ Pelo raio que
alumia/ Eu desci na sua aldeia para fazer encanteria (...)” ressaltam bem esses diálogos
identitários.
A baianidade marcada pelo discurso de ancestralidade africana está em “Fui feita na
Bahia”: “Fui feira na Bahia/ No terreiro de Oxum/ Os tambores sagrados bateram pra mim
(...)/ Um velho preto Araketu12 me disse que foi lá de Ketu13 que eu vim/ Eu já vim
predestinada a cantar assim/ Sou iluminada sou/ Sou de Ketu sim (...)”. Já a identificação com
as expressões populares mais locais fica por conta da influência das cantigas de samba-de-
roda do Recôncavo, como na canção “Ê Senhora” (Batatinha Roxa14): “Ê Senhora, Ê Senhora/
10 Nome dado ao culto afro-ameríndio no Brasil. É também uma planta usada no preparo de uma bebida indutora do transe. 11 Expressão religiosa presente no Piauí, com forte influência da Encanteria e do Tambor de Mina do Maranhão, São cultuados voduns, caboclos e encantados, denominação de cada uma das entidades nos candomblés de caboclo. 12 Uma das mais importantes comunidades religiosas da Bahia, fundada no fim do século XIX por Otampé Ojarô, uma africana de Ketu, atual Benin, que teria vindo como escrava para o Brasil ainda criança (LOPES, 2004). 13 “Antigo reino da África ocidental cujo território foi cortado em dois pela fronteira Nigéria-Benin, estabelecida pelo colonialismo europeu (...). O povo Ketu é um subgrupo dos Iorubás”, de onde originalmente pertenceria uma das importantes culturas do candomblé (LOPES, 2004). 14 Batatinha roxa
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Lê rê Le rê/ Senhora”, verso repedido em coro feminino, como é comum nos sambas-de-roda.
A letra traz o sincretismo religioso pedido de um amor a Maria, santa católica, e ao mesmo
tempo aciona, ao som dos batuques e do samba, a superstição e o misticismo em torno dos
amuletos de sorte e proteção: “um bocado de alfazema/ e uma santa para me proteger/ Maria,
Maria”.
No cenário da música de cunho temático voltado para os orixás, além de Maria
Bethânia, teremos um destaque na década de 1990 para Marisa Monte e Rita Ribeiro. Mas,
essas temáticas não permanecem. No momento atual, a baiana Mariene de Castro, sido uma
das revelações da MPB nessa vertente de identificação com o candomblé, com o samba-de-
roda, o folclore popular regional e o sincretismo religioso. Lançou seu primeiro cd, “Abre
Caminho” em 2004, no qual já se evidencia essa tendência africanista. Em “Santo de casa”
(2010), esses diálogos se intensificam.
Nesses diálogos identitários, que vão desde as referências aos orixás, como em “Prece
de Pescador”: “Que luz é essa/ Que vem lá do mar/ é a senhora das Candeias/ Mãe dos Orixás
(...)/ Glória ê gloria/ Glória mamãe sereia; ao discurso de baianidade em “Falsa Baiana”: “A
falsa baiana quando entra no samba/ Ninguém se incomoda, ninguém bate palma, ninguém
abre a roda/ Ninguém grita ôba/ Salve a Bahia, senhor (...)” , às cantigas de domínio público
(Ciranda e Mamãe Oxum) que fazem parte do imaginário cultural brasileiro. Fica claro que a
retomada dessas temáticas também revela uma questão para além de uma compreensão
midiática que repouse apenas na lógica de consumo. É preciso salientar ainda que já se
delineou uma estética da negritude na música popular brasileira, onde a constituição do
simbólico opera com mais força.
No álbum “Tabaroinha” (2012), essa tendência se confirma, e a predominância dos
orixás pode ser observada ao longo das faixas, em várias canções, a exemplo de “Ponto de
Nanã”; “Orixá de Frente”. Em 2013, com o álbum “Ser de Luz – Uma homenagem a Clara
Nunes”, Mariene de Castro não só se afirma como cantora, como torna a referência à
africanidade, através do candomblé, sua vertente dentro da estética da negritude.
4. Considerações finais
Foi possível até aqui vislumbrar brevemente as disposições de africanidade e
negritude, bem como as ressignificações simbólicas em torno do da ideia de pertencimento.
Desde o surgimento do rádio, é possível observar os elementos do candomblé, da umbanda na
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música de outras de maneira inevitavelmente oportuna e para entrar no imaginário do
candomblé na seara dos temas musicais. A transfiguração e reconstrução a partir do remoto
podem ser destacadas em diversos momentos de lutas políticas através da afirmação dessa
cultura ancestral através da religião, assim como através da cultura do “Atlântico Negro” e
dos ideais de negritude moderna.
Vale salientar ainda as reconfigurações da estética da negritude a partir de um discurso
que tem rearticulado os discursos de classe e raça, ao mesmo tempo em os motivos de
candomblé e o mundo dos orixás ainda são acionados como marcador de uma negritude
ancestral através da africanidade, onde o regional e o local também regem em suas misturas
culturais.
A tese de desafricanização da música popular no final dos anos 60 dá lugar agora para
uma nova estética da negritude, que se parecia num primeiro momento desvanecida, encontra
eco nos diálogos identirários modernos, em que a africanidade ainda é acionada em suas
diversas formas. O discurso de mestiçagem na música popular brasileira também passa por
rearticulações dinâmicas, e acabou sendo invertido, no sentido de que a branquitude do
mestiço como negação da negritude é rejeitada e a valorização da negritude passa a ser
marcador do discurso de mestiçagem.
No momento atual, os engendramentos políticos e culturais também fomentaram os
trânsito e diálogos identitários da estética da negritude âmbito da música (samba, reggae, hap
funk). Os diálogos das expressões negras dentro e fora da indústria cultural, permite-nos ver
um cosmopolitismo negro mais latente nas expressões vindas da periferia, onde raça e classe
se mostram cada vez mais indissociáveis. Talvez esse mote temático, de religiosidade,
ancestralidade, africanidade e negritude, nunca se esgote, nem se apague, pois estão ligados
profundamente aos sintomas raciais que ainda operam em nossas estruturas sociais.
Referências
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VVVVVVVV EEEEEEEENNNNNNNNCCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRROOOOOOOO DDDDDDDDEEEEEEEE PPPPPPPPEEEEEEEESSSSSSSSQQQQQQQQUUUUUUUUIIIIIIIISSSSSSSSAAAAAAAADDDDDDDDOOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEESSSSSSSS EEEEEEEEMMMMMMMM CCCCCCCCOOOOOOOOMMMMMMMMUUUUUUUUNNNNNNNNIIIIIIIICCCCCCCCAAAAAAAAÇÇÇÇÇÇÇÇÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO EEEEEEEE MMMMMMMMÚÚÚÚÚÚÚÚSSSSSSSSIIIIIIIICCCCCCCCAAAAAAAA
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GÓES, Fred. Literatura Comentada: Gilberto Gil. São Paulo: Abril Educação, 1982. HALL, Stuart. Raça, o significante flutuante. ZCultural, Ano VIII, 02. Trad. Liv Sovik. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/raca-o-significante-flutuante%EF%80%AA/. Acesso em 05 de maio de 2013. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. __________. A presença africana na música popular brasileira. Revista Espaço Acadêmico – N 50 - Julho/2005. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/050/50clopes.htm. Acesso em 10 de junho de 2013. PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. 1ª Edição São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. 1ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Dicografia pesquisada
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Vinícius Bethânia Toquinho (Vinicius de Moraes, Maria Bethânia e Toquinho) – RGE – LP. 1971; Edu e Bethânia (Edu Lobo e Maria Bethânia) – Elenco – CD. 1967; Kaya N'Gan Daya (Gilberto Gil) – WEA Music – CD. 2002; Z: 300 Anos de Zumbi (Gilberto Gil) – Warner Music – 1995;
Soy Loco por Ti, América – WEA – CD – 1987;
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