fernando cunha krum - práticas transversais em artemídia: uma análise da colaboração
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE
FERNANDO CUNHA KRUM
PRÁTICAS TRANSVERSAIS EM ARTEMÍDIA: UMA ANÁLISE DA COLABORAÇÃO A PARTIR DE EVENTOS DE
CULTURA DIGITAL NO BRASIL
Salvador 2013
FERNANDO CUNHA KRUM
PRÁTICAS TRANSVERSAIS EM ARTEMÍDIA: UMA ANÁLISE DA COLABORAÇÃO A PARTIR DE EVENTOS DE
CULTURA DIGITAL NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Messias Guimarães Bandeira.
Salvador 2013
Sistema de Bibliotecas da UFBA
Krum, Fernando Cunha. Práticas transversais em artemídia: uma análise da colaboração a partir de eventos de cultura digital no Brasil / por Fernando Cunha Krum. - 2013. 91 f.: il. Inclui anexos. Orientador: Prof. Dr. Messias Guimarães Bandeira. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2013. 1. Arte e tecnologia. 2. Artemídia. 3. Arte digital. 4. Cultura. 5. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. I. Bandeira, Messias Guimarães. II. Universidade Federal da Bahia. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos. III. Título. CDD - 700.105 CDU - 7.01: 6
Aos meus pais, com amor e gratidão.
AGRADECIMENTOS
O desenvolvimento deste trabalho, tanto no que engloba esta redação quanto às experiências
dos últimos três anos, não teria sido possível sem o apoio de algumas pessoas.
Agradeço aos meus pais, Solano e Myrian, e à minha irmã, Christiane, pelo apoio
incondicional, pela paciência e confiança durante todo este percurso e os tantos outros que já
trilhei.
A Bruno, Thayná e Figo pela acolhida em Salvador, pela parceria e compreensão.
A Dani e Alessia pelo convívio, conselhos e apoio.
Aos amigos que conheci em Salvador, especialmente, Clarinha, Jarbas, Diego, Ícaro, Felipe e
Anamil, os quais me ajudaram a expandir meus pensamentos e a ver a realidade de outra
forma.
Ao professor, Messias Bandeira, por acolher e incentivar esta pesquisa com todas as
dificuldades que surgiram ao longo do caminho. Obrigado pela confiança!
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo apoio
financeiro possibilitou a dedicação exclusiva a este projeto.
RESUMO
Esta investigação se propõe a compreender as práticas em artemídia, através da reflexão sobre eventos de cultura digital vivenciados em diferentes ambientes de produção artística. Recorremos ao estudo da artemídia – a qual faz uso de ferramentas tecnológicas como matéria-prima para a elaboração de obras – no sentido de esquadrinhar as realidades afetadas pelas chamadas “novas tecnologias”. O desenvolvimento de tais obras envolve encontros entre indivíduos com conhecimentos complementares, os quais se relacionam de forma colaborativa num processo de compartilhamento de experiências. Assim, este trabalho busca circunstanciar as estratégias e práticas inter-multi-transdisciplinares, a partir da análise de cinco eventos de cultura digital no Brasil, a saber: “Narrativas digitais para a participação comunitária na gestão de ecossistemas costeiros”, “Laboratório de arte interativa: artes e interfaces”, “Introdução à Computação Física com Arduino e Pure Data”, “Instalações interativas da mostra Toque para Mover Sentidos” e “Hacklab Interfaces Físicas e controladores DIY aplicados a performances sonoras e audiovisuais, utilizando ferramentas livres”.
Palavras-chave: artemídia; colaboração; cultura digital; interatividade; transdisciplinaridade.
ABSTRACT
This research aims to understand the practices in media art through the reflection on digital culture events experienced in different environments of artistic production. We resorted to the study of media art – which makes use of technological tools as raw material for the production of artworks – to scrutinize those realities affected by the so-called "new technologies". The development of such artworks involves encounters between individuals with complementary skills that relate collaboratively in a process of sharing experiences. Thus, this work aims to detail the strategies and inter-multi-disciplinary practices through the analysis of five events of digital culture in Brazil, namely: “Narrativas digitais para a participação comunitária na gestão de ecossistemas costeiros”, “Laboratório de arte interativa: artes e interfaces”, “Introdução à Computação Física com Arduino e Pure Data”, “Instalações interativas da mostra Toque para Mover Sentidos” and “Hacklab Interfaces Físicas e controladores DIY aplicados à performances sonoras e audiovisuais utilizando ferramentas livres”. Keywords: media arts; collaboration; digital culture; interactivity; transdisciplinarity.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Magnet TV (1965) de Nam June Paik. ................................................................... 16
Figura 2 – A Cave do EVL(Electronic View Laboratory) da Universidade de
Illinois, Chicago. ....................................................................................................................... 18
Figura 3 – Precision Optics, de Duchamp (1920). ................................................................. 19
Figura 4 – Robert Rauschenberg e Billy Klüver com a obra Oracle (1963)
(Fonte: Robert Rauschenberg – Oracle | Paulspen. .................................................................. 23
Figura 5 – E.A.T. em estande de divulgação na reunião anual (1967) da IEEE,
(Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos, tradução nossa). .................................... 24
Figura 6 – Aparelho cinecromático #1 Azul e Roxo em Primeiro Movimento (1949). .......... 27
Figura 7 – Primeiro mouse conectado à estação de trabalho de Engelbart, 1966,
Stanford Research Institute (SRI). ............................................................................................ 34
Figura 8 – ReConstitution 2012 – Sosolimited (2012). Captura de tela do sistema. ............... 42
Figura 9 - Representação gráfica da lógica do terceiro incluído. ............................................ 45
Figura 10 – Capa e sexta página do primeiro número do People’s Computer
Company, (out. 1972).. ............................................................................................................. 50
Figura 11 – Terminal do Community Memory do lado de fora da Leopold’s Records,
Berkeley, Califórnia, 1975. ....................................................................................................... 51
Figura 12 - Wau Holland, co-fundador do CCC, operando um modem de
acoplador acústico em uma cabine telefônica. ......................................................................... 53
Figura 13 - Referência de um sensor de gás, gerada por um aluno do workshop. .................. 57
Figura 14 – Oficina do grupo LabOCA e Jorge Crowe durante o FILE 2010, São Paulo .... 57
Figura 15 – Telemediações Open Lab: experimentações com medidas elétricas em
organismos vivos. ..................................................................................................................... 59
Figura 16 – Etapa de testes do Projeto Hexapod, no makerspace Artisan’s Asylum. ............. 61
Figura 17 – Detalhes sobre conversão analógico/digital, Oficina de áudio digital,
Garapuá, abr. 2010. ................................................................................................................... 65
Figura 18 – Trabalho em grupo, discutindo os lugares a serem visitados,
Garapuá, abr. 2010. ................................................................................................................... 66
Figura 19 – Mapeamento GPS da rota de coleta de marisco, Garapuá, abr. 2010. ................. 67
Figura 20 – Processo de desenvolvimento da instalação “XOX – The Vending Body
Machine”. Salvador, jun. 2011. ............................................................................................... 69
Figura 21 – Trabalho em equipe durante os experimentos do workshop,
Porto Alegre, dez. 2011. ........................................................................................................... 71
Figura 22 – Projeto “Interart”: montagem da estrutura e em funcionamento na mostra. ........ 73
Figura 23 –Projeto “Po-Imagem”: filmagens e montagem da instalação. ............................... 73
Figura 24 –Projeto “Sucata”: filmagens de entrevistas e game em funcionamento
na mostra. .................................................................................................................................. 73
Figura 25 – Projeto “Na linha do Subúrbio”: filmagem de conteúdo, adaptação de uma
máquina de fliperama, desenvolvimento do mapa e totem em funcionamento. ....................... 74
Figura 26 – Projeto “Sem Limites”: filmagem de conteúdo nas calçadas da cidade,
montagem dos sensores na cadeira de rodas, ajustes finais e jogo em funcionamento. .......... 75
Figura 27 – Protótipo do instrumento desenvolvido durante o encontro. Detalhe dos dois
potenciômetros e botão tipo switch localizados na tampa da lata, Salvador, fev. 2013. .......... 78
Figura 28 – Detalhe dos quatro LDR’s localizados no corpo da lata, Salvador, fev. 2013. .... 78
Figura 29 – Testes do protótipo do instrumento, Salvador, fev. 2013. ................................... 78
Figura 30 - Detalhe do cabeamento de setup de um sintetizador Moog. ................................ 88
Figura 31 – Captura de tela de um programa simples que realiza a função soma para
exemplificar as diferenças entre as entradas “quentes” e entradas “frias” do sistema. ............ 89
Figura 32 –Vista superior da placa Arduino Uno. ................................................................... 90
Figura 33 – Dois shields de extensão conectados à uma placa Arduino. ................................ 91
SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................................... 12
1. Introdução: A artemídia e suas interações ....................................................................... 16
1.1 UM POSSÍVEL PERCURSO QUE NOS CONDUZ À ARTEMÍDIA ................................. 17 1.1.1 Klüver e sua contribuição à artemídia .................................................................................. 20 1.1.2 O movimento da artemídia no Brasil .................................................................................... 26
1.2 SOBRE INTERFACES E INTERATIVIDADE ..................................................................... 28 1.2.1 Mapas de bits, janelas e desktops ......................................................................................... 32 1.2.2 Algumas possibilidades de interação .................................................................................... 36
2. Multi, Inter, Transdisciplinaridade e seus desdobramentos em artemídia .................. 38
2.1 IDENTIFICANDO OS PREFIXOS MULTI, INTER E TRANS NAS DISCIPLINAS ...... 38 2.1.1 O Multidisciplinar ................................................................................................................. 40 2.1.2 O Interdisciplinar .................................................................................................................. 41 2.1.3 O Transdisciplinar ................................................................................................................ 43
2.2 HACKLABS, MEDIALABS E MAKERSPACES: ESPAÇOS DE COLABORAÇÃO ......... 47 2.2.1 Hacklabs – laboratórios hacker ............................................................................................ 47 2.2.2 Medialabs – laboratórios de mídia ....................................................................................... 54 2.2.3 Makerspaces – espaços de criação ....................................................................................... 59
3.1 NARRATIVAS DIGITAIS / CAIRU (BA) .............................................................................. 64 3.2 LABORATÓRIO DE ARTE INTERATIVA: ARTE E INTERFACES / UFBA,
SALVADOR (BA) ............................................................................................................................ 67 3.3 WORKSHOP INTRODUÇÃO À COMPUTAÇÃO FÍSICA COM ARDUINO E PURE
DATA / NÓS COWORKING, PORTO ALEGRE (RS) ................................................................. 70 3.4 INSTALAÇÕES INTERATIVAS DA MOSTRA TOQUE PARA MOVER SENTIDOS /
OIKABUM! ESCOLA DE ARTE E TECNOLOGIA, SALVADOR (BA) ................................ 71 3.5 HACKLAB: INTERFACES FÍSICAS E CONTROLADORES DIY APLICADOS À
PERFORMANCES SONORAS E AUDIOVISUAIS, UTILIZANDO FERRAMENTAS
LIVRES / FESTIVAL DIGITALIA, SALVADOR (BA) ............................................................. 76
Considerações finais ............................................................................................................... 80
Anexos ...................................................................................................................................... 87
Anexo 1: Panorama de Pure Data ......................................................................................... 88
Anexo 2: Panorama de Arduino ............................................................................................ 90
12
APRESENTAÇÃO
Vivemos um momento de convergência. As culturas se tornaram mais permeáveis,
possibilitando a busca por infiltrações que em outras épocas não eram possíveis ou, ao menos,
imagináveis. O intercâmbio acelerado de informações, promovido pelo avanço das redes
telemáticas, possibilita um diálogo intercultural frutífero, na medida em que o objeto da
comunicação, o próprio conteúdo, consegue transpassar barreiras como a das terminologias,
dos nichos, das classificações e também da própria linguagem e seus respectivos “sotaques”1.
Portanto, quando somos capazes de compartilhar conteúdo, transformando-o em algo
compreensível aos demais, estamos criando pontes entre os conhecimentos e as novas
possibilidades que daí emergem. Acredito que, quando submetidos a um problema comum,
podemos vislumbrar soluções de diferentes pontos de vista, e o exercício da comunicação
exige a prática de uma linguagem comum que utilize as analogias necessárias para atingir o
objetivo de fazer-se entender.
Sendo Engenheiro Eletricista, graduado em 2005, pela Universidade Federal de Santa
Maria, algumas experiências vivenciadas em minha trajetória acadêmica e pós-acadêmica
motivaram-me a buscar este Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da Universidade Federal da Bahia.
Durante os primeiros anos da graduação, participei de um grupo de pesquisa2 como bolsista
de iniciação científica, trabalhando em conjunto com colegas da graduação e da pós-
graduação em projetos de eletrônica de potência, participando de congressos e apresentando
artigos científicos. Durante esta época, acompanhei uma iniciativa de retomada do movimento
cineclubista da cidade, através do Cineclube Porão da TV OVO3 (2001).
Em 2002, fui bolsista do Centro de Processamento de Dados da UFSM, em um
departamento de desenvolvimento de páginas web e, no mesmo ano, participei de um curso de
extensão em cinema digital promovido pela Faculdade de Comunicação da mesma
Universidade (2002). No ano seguinte, interrompi, durante um ano, o Curso de Engenharia e
fiz um intercâmbio cultural em Londres, onde estudei, trabalhei e fiz provas de proficiência na
língua inglesa. Após retornar ao Brasil e graduar-me em Engenharia Elétrica, cursei 1 Por “sotaques”, me refiro aos pormenores de cada linguagem, cultura ou conhecimento; poderia, também, ser comparado ao timbre da voz de um discurso: a forma nesse caso é menos importante do que seu significado. 2 GEPOC – Grupo de Eletrônica de Potência e Controle. Disponível em: <http://www.ufsm.br/gepocufsm/>. Acesso em: 16 mar. 2013. 3 A TV OVO (Oficina de Vídeo Oeste) é uma organização sem fins lucrativos que atua em diversas frentes, principalmente, no ensino da linguagem audiovisual a jovens da periferia da cidade de Santa Maria, RS. O projeto teve início no ano de 1996, na região oeste, dando o nome à organização. Disponível em: <http://tvovo.org>. Acesso em: 16 mar. 2013.
13
disciplinas relacionadas à realidade virtual, à computação gráfica e à inteligência artificial da
Pós-Graduação do Instituto de Informática da UFRGS (2006), na cidade de Porto Alegre.
Nesta época, após ter submetido um portfólio para seleção em uma escola de fotografia de
Madri, estive durante dois anos (2007-2008) vivendo naquela cidade, onde trabalhei com
fotografia still4, como operador de controle de câmera em estúdios de gravação de televisão,
ou dando aulas particulares de técnicas de edição de imagem. Foi em 2008, que tive, pela
primeira vez, contato com a programação de interatividade, através do software livre Pure
Data. Após retornar ao Brasil (2009), participei de uma oficina sobre o tema em Santa Maria e
no ano seguinte (2010), fui trabalhar em um projeto de arte interativa em Salvador, com a
intenção de estudar a arte eletrônica no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação.
Portanto, o ciclo apresentado nos parágrafos anteriores conforma uma trajetória que
concilia interesses distintos que, em um primeiro momento, parece ser divergente, mas, que
ao longo do caminho, provara ser complementar e convergente no contexto da artemídia. A
possibilidade de conexão entre estes conhecimentos, num processo de trabalho e aprendizado
coletivo, com uma abordagem experimental de criação, foi o que estimulou o
desenvolvimento desta investigação.
Sendo assim, compreender as práticas em artemídia através da reflexão sobre eventos
de cultura digital vivenciados em diferentes espaços constitui o principal objetivo deste
trabalho. Portanto, um questionamento central baliza nossa investigação: em que medida nos
apropriamos dos recursos tecnológicos no âmbito da arte, conferindo-lhe práticas transversais
em nossos expedientes de produção?
A artemídia é um gênero artístico que faz uso expressivo de mediação tecnológica.
Para Arlindo Machado (2007, p. 8), “se toda a arte é feita com os meios de seu tempo, as artes
midiáticas representam a expressão mais avançada da criação artística atual”. O que constitui
uma afirmação contundente, arriscada, haja vista a grande diversidade de possibilidades de
expressão artística na contemporaneidade. No entanto, a artemídia possibilita que
questionemos nossa relação com a ampla gama de dispositivos que atualmente nos cerca. É
preciso assumir uma posição questionadora e de apropriação tecnológica, descobrimento e
lucidez, quando somos incentivados de tantas formas a embarcar em uma jornada embalada
por ondas de consumismo, centralização de poder e, por que não, euforia. Para aquele autor,
hoje, torna-se difícil a tarefa de distinguir a contribuição original de um criador a qual pode
4 Alguns trabalhos estão disponíveis em <http://ferkrum.com/old/portfolio/elarriero/index.html> e <http://ferkrum.com/old/portfolio/mensajedenavidad/index.html>. Acesso em: 16 mar. 2013.
14
ser considerada como “mera demonstração das virtudes de um programa” (MACHADO,
2007, p. 37).
Acredito que, de fato, trata-se de uma tarefa complicada, porém só teremos maior
capacidade de julgamento no momento em que pudermos identificar ambas as partes da
equação: tanto a “contribuição do criador” quanto as “virtudes do programa” que, a propósito,
também é escrito por um “criador”, humano, que desenvolveu tais rotinas de instruções para
uma máquina igualmente projetada por uma pessoa. A transgressão de seu uso e os
questionamentos levantados é que poderão elevar seu status de mercadoria para o que será
chamado de “obra de arte”. É justamente a identificação ou o reconhecimento destes criadores
que deve ser trazido para debate, quando os instrumentos de expressão são reinventados
constantemente, produzidos e recombinados coletivamente.
O autor norte-americano Steven Johnson (2001) faz uma provocação ao comparar a
contribuição de James Joyce e a sua obra Ulisses, de 1922, com a invenção dos tipos móveis
de Gutenberg, os quais deram origem à imprensa, em 1453. Para Johnson, ambos foram
artistas, ambos foram criadores que revolucionaram nossa maneira de ver o mundo: “Joyce
escreveu software para um hardware originalmente materializado por Gutenberg”
(JOHNSON, 2001, p. 14). Gutenberg, por sua vez, agiu criativamente, remodelando a forma
de escrita, adaptando-a através dos tipos móveis. Portanto, a arte e a tecnologia vivem um
processo de retroalimentação há bastante tempo, com a diferença de que, agora, as revoluções
midiáticas acontecem com tal frequência que uma mesma geração pode vivenciar seus efeitos,
tornando a experiência da adaptação muito mais intensa. Johnson (2001) prossegue,
afirmando que
O livro reinou como o meio de comunicação de massa preferido por vários séculos; os jornais tiveram cerca de 200 anos para inovar; até o cinema deu as cartas durante 30 anos antes de ser rapidamente sucedido pelo rádio, depois pela televisão, depois pelo computador pessoal. A cada inovação, o hiato que mantinha o passado à distância ficou menor, mais atenuado. [...] A explosão de tipos de meios de comunicação no século XX nos permite, pela primeira vez, apreender a relação entre a forma e o conteúdo, entre o meio e a mensagem, entre a engenharia e a arte. Um mundo governado, exclusivamente, por um único meio de comunicação é um mundo governado por si mesmo. Não se pode avaliar a influência de uma mídia quando não se tem com que compará-la (JOHNSON, 2001, p. 15).
Para o desenvolvimento desta pesquisa, analiso cinco experiências em artemídia
realizadas em contextos diferentes nos quais os participantes aportam seus conhecimentos ao
longo das atividades. Os grupos (tanto os facilitadores das atividades, quanto os participantes)
são compostos por pessoas com formações variadas, levantando questões de apropriação
tecnológica e trabalho colaborativo. Para tanto, este trabalho está dividido em cinco partes,
15
contando com esta apresentação. O primeiro capítulo traz um histórico do desenvolvimento
da artemídia, a evolução dos primeiros experimentos realizados em regime de colaboração
entre engenheiros e artistas, o movimento da artemídia no Brasil e detalhes sobre o
desenvolvimento das interfaces homem-máquina, listando algumas possibilidades de
interação atuais. O segundo capítulo promove um levantamento das metodologias multi, inter
e transdisciplinares as quais tratam das interações entre áreas distintas, suas semelhanças,
características e exemplos, passando, em seguida, para os espaços de colaboração atuais dos
hacklabs, medialabs e makerspaces. Já o terceiro capítulo descreve e analisa as experiências
práticas em artemídia as quais ocorreram durante os últimos três anos. O quarto e último
capítulo traça as considerações finais e propostas futuras decorrentes deste trabalho.
16
1. INTRODUÇÃO: A ARTEMÍDIA E SUAS INTERAÇÕES
Este capítulo trará um levantamento histórico dos movimentos e protagonistas que
contribuíram para o desenvolvimento da artemídia. Ao tratar-se de um meio artístico
fundamentalmente multidisciplinar e intimamente ligado aos avanços tecnológicos também
serão pautados os conceitos de interface e de interatividade e sua relação com a cultura na
contemporaneidade.
O significado de arte tem sua origem no grego tekhnè, “um conceito filosófico que
visa a descrever as artes práticas, o saber fazer humano em oposição a outro conceito chave, a
phusis ou o princípio de geração das coisas naturais” (LEMOS, 2008, p. 26). A arte sempre
foi produzida com os meios de seu tempo, buscando novas formas de expressão, utilizando as
ferramentas disponíveis, de maneira criativa e transgressora. Nas artes midiáticas, os artistas
ressignificam o uso clássico das máquinas semióticas, levando-as a operarem de forma não
projetada originalmente (MACHADO, 2007). Esta apropriação vem de encontro à filosofia da
caixa preta, de Vilém Flusser (1998), quando os objetos técnicos são confinados em uma
“caixa opaca”, na qual não se pode vislumbrar seu interior, conhecendo-se somente seu
comportamento mediante a aplicação de um estímulo externo e verificação de suas
respectivas reações.
Somos cada vez mais operários destas máquinas, tornamo-nos usuários de um
programa prescrito que delimita um campo de ação e que pode nos levar a uma padronização
estética e a uma consequente homogeneização de discurso. Quando Nam June Paik (1965)
intervém no fluxo “natural” dos elétrons em uma televisão, com o auxílio de ímãs poderosos
(obra Magnet TV, 1965, Figura 1, abaixo), o artista está intervindo em seu sistema, chamando
o público para refletir e questionar o seu funcionamento.
Figura 1 - Magnet TV (1965) de Nam June Paik
Disponível em: <http://www.medienkunstnetz.de/works/magnet-tv/>.
Acesso em 23 nov. 2012. Arte eletrônica, arte-comunicação, poéticas tecnológicas e arte interativa são
expressões artísticas que consideramos contempladas pela artemídia e, portanto, a partir de
17
agora, iremos utilizar esta denominação quando nos referirmos à arte produzida através dos
meios tecnológicos e digitais. Entendemos igualmente a urgência das devidas classificações e
das especificidades de cada prática, no entanto, o uso de um termo mais abrangente nos
parece mais adequado para o escopo deste trabalho.
1.1 Um possível percurso que nos conduz à artemídia
Seguindo uma linha histórica, Richard Wagner, compositor de ópera alemão do século
XIX, introduz o conceito de “obra de arte total” na obra The Art-work of the Future (1849), na
qual propõe um sistema teórico-prático para integrar as artes. Wagner definiu o conceito
como uma nova forma interdisciplinar, ao integrar todas as artes em uma única forma de
expressão. Com a ópera The Ring (1876), Wagner previa uma experiência mais potente e
completa da obra de arte, idealizando a unificação da música, dança, poesia e artes visuais
para obter o poder expressivo que desejava para transformar a música dramática em um
instrumento capaz de tocar a cultura alemã. A primeira performance de The Ring ocorreu em
1876, no teatro Festpialhaus, localizado na cidade de Bayreuth, Alemanha, e especialmente
construído sob a supervisão do artista, para proporcionar uma experiência sensorial: Wagner
foi o primeiro a diminuir a intensidade da luz no teatro, criou fosso para orquestra e
revitalizou a disposição dos assentos inspirados no anfiteatro grego para trazer o foco do
público para o palco (PACKER, 2001). Foi o primeiro passo em direção às obras imersivas de
artemídia que conhecemos na atualidade.
Tratando-se de imersão, pode-se recuar ainda mais, trazendo as pinturas nas cavernas
da região da Dordonha, sul da França, datadas de 15000 A.C., recentemente gravadas pelo
diretor alemão Werner Herzog, em seu documentário A Caverna dos Sonhos Perdidos5
(HERZOG, 2010). O professor Randall Packer, da Universidade de Berkeley, Califórnia,
chama atenção para a experiência multissensorial experimentada pelos frequentadores da
caverna em seus rituais, em uma mistura sinestésica de luz, sombra, cantos e odores, naquele
que seria talvez “o meio artístico mais antigo da humanidade: a instalação site-specific”6
(PACKER, 1999, p. 11, tradução nossa). Ironicamente, aproximadamente 17 mil anos depois,
o homem foi capaz de simular tal ambiente, usando areia (silício), álgebra e eletricidade –
5 “Cave of Forgotten Dreams”, título original. Fonte: “Cave of Forgotten Dreams – IMDb”. Disponível em: < http://www.imdb.com/title/tt1664894/>. Acesso em 11 nov. 2012. 6 “[...] what is perhaps humanity’s oldest artistic medium, the site-specific installation”. Tradução nossa.
18
numa maneira simples de chamar atenção para alguns dos elementos básicos que constituem
nossos computadores. A este ambiente imersivo deu-se o nome de CAVE (acrônimo para
Cave Automatic Virtual Environment7), criado em 1992, na Universidade de Illinois, Chicago,
como resposta a um desafio posto pela conferência especializada SIGGRAPH8, do mesmo
ano. Este mecanismo permite a visualização simultânea de várias telas projetadas nas paredes
de um cubo, criando um ambiente imersivo para o usuário.
Figura 2 – A Cave do EVL(Electronic View Laboratory) da Universidade de Illinois, Chicago.
Disponível em: Wikipédia. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:CAVE_Crayoland.jpg>. Acesso em: 08 nov. 2012.
Os artistas do século XX seguiram buscando maneiras de integrar disciplinas,
tradicionalmente separadas, em obras únicas. Somente com esta integração seriam capazes de
capturar a velocidade, a energia e as contradições da vida contemporânea.
Com as obras Bicycle Wheel (1913) e Precision Optics (1920, ilustrada na Figura 3 a
seguir) de Marcel Duchamp, Kinetic Construction (1920) de Naum Gabo e Light-Space
Modulator (1923-30) de László Moholy-Nagy, teve início a experimentação, através do
movimento das formas visuais, jogando com o espaço e o tempo (SHANKEN, 2003).
As ideias de Moholy-Nagy sobre o museu da Bauhaus (1929) mudavam a relação
entre obra e público: o então professor da escola alemã propunha novos meios dinâmicos de
7 “Caverna Ambiente Virtual Automático”, tradução nossa. A sigla é recursiva e repete a palavra “caverna” em seu significado. Também, rende homenagem à Caverna de Platão. Este ambiente utiliza-se de vários projetores multimídia simultaneamente para criar uma experiência imersiva, circundando o usuário com imagens projetadas e sincronizadas, utilizando softwares especiais. Fonte: Wikipédia, disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Cave_automatic_virtual_environment>. Acesso em: 9 nov. 2012. 8 “Special Interest Group on Graphics and Interactive Techniques”, ou “Grupo de Interesse Especial em Técnicas Gráficas e Interativas”, tradução nossa.
19
luz mecanizada, cenografia, filme e som eletrônico que dissolveriam a dita “quarta parede”
que separa o palco do público. Segundo Moholy-Nagy (1924)
É hora de produzir um tipo de atividade de palco que não mais permitirá as massas a serem espectadores silenciosos, que não somente os excitem internamente mas irá permiti-los a tomar parte e participar – de fato permiti-los a fundirem-se com a ação no palco no pico do êxtase catártico (MOHOLY-NAGY, 1942, s\p).9
Figura 3 – Precision Optics, de Duchamp (1920).
Disponível em: Abcgallery.com. Disponível em: <http://www.abcgallery.com/D/duchamp/duchamp30.html>.
Acesso em: 04 nov. 2012.
No final dos anos 40, através de uma série de eventos que combinam performance
colaborativa e uso de técnicas de indeterminação e operações do acaso10, o compositor
americano John Cage contribuiu para aproximar o público da obra de arte, compartilhando a
responsabilidade do artista no resultado do trabalho. As operações do acaso11 citadas são
resultado do encontro do artista com a filosofia indiana e o budismo zen. Através do livro “I
Ching” – um clássico da literatura chinesa que usa um sistema de símbolos para identificar a
ordem em operações de chance –, Cage passou a produzir suas composições, trazendo
questões ao livro e usando seu sistema para codificar suas respostas em notação musical.
O trabalho de Cage influenciou uma nova geração de artistas, dentre eles, o coreano
Nam June Paik, ao criar uma série de técnicas não-tradicionais de performance, gerando
9 “It is time to produce a kind of stage activity which will no longer permit the masses to be silent spectators, which will not only excite them inwardly but will let them take hold and participate—actually allow them to fuse with the action on the stage at the peak of cathartic ecstasy.” Tradução nossa. 10 “Indeterminacy and chance operations.” Tradução nossa. 11 Operações do acaso são operações que dão resultados aleatórios, como por exemplo o jogo “cara ou coroa” com uma moeda.
20
gêneros como o happening, o electronic theater, a performance art e as instalações
interativas.
Ainda nos anos 1960, o teórico das artes e das mídias Peter Weibel salienta a
proximidade da arte cinética12 e da op art13 com a arte algorítmica, baseada em regras, como
possuidoras de “atributos de dependência do observador, interatividade e virtualidade”
(WEIBEL, 2009, p. 91). Neste mesmo período, o movimento Fluxus substituía os objetos da
pintura ou escultura integralmente por instruções de ação, constituindo um passo a passo que
exigia a participação ativa do público.
A arte cinética, combinando o movimento gerado por motores elétricos, criava
volumes virtuais, ilusões óticas. Neste caso, “o movimento real e a luz real se tornaram mídia
de arte” (WEIBEL, 2009, p. 96). Neste contexto, os artistas buscam cada vez mais integrar a
tecnologia a seus trabalhos e foi com a aproximação de Billy Klüver, cientista da Bell Labs,
que a colaboração entre artistas e engenheiros se deu efetivamente.
1.1.1 Klüver e sua contribuição à artemídia
Johan Wilhelm Klüver foi um engenheiro eletricista nascido em Mônaco (1927) e
crescido na Suécia. Graduou-se no Royal Institute of Technology de Estocolmo (1951) e
quando, ainda dentro da academia, interessou-se por cinema, tendo ingressado na Film
Society localizada na faculdade de humanidades da Universidade de Estocolmo, “um ato sem
precedentes para um estudante de engenharia” (MILLER, 1998, p. 3). Seu interesse em unir
ciência e filme o levou a produzir um curta-metragem de animação educativo sobre a
movimentação dos elétrons no campo eletromagnético14. Posteriormente, trabalhou com o
cientista e navegador Jacques Cousteau, criando uma das primeiras câmeras de televisão à
prova d’água, auxiliando-o numa expedição que investigaria um náufrago a dois mil metros
de profundidade, nas proximidades de Marselha, França.
Posteriormente, Klüver viajou aos Estados Unidos (1954), onde, nos primeiros anos,
prosseguiu seus estudos15 e, logo após, mudou-se para Nova Iorque, onde começou a trabalhar
na companhia Bell Telephone Laboratories, em Nova Jersey. Nesta época, o engenheiro foi
convidado pelo artista cinético suíço Jean Tinguely (com quem havia feito amizade quando 12 Como a obra Precision Optics, de Duchamp mostrada anteriormente. 13 “Optical art” do inglês, ou “arte ótica”, tradução nossa. 14 Klüver apresentou o conceito de filmes educacionais de alto nível para a Enciclopédia Britânica, que não soube o que fazer com o material, já que nenhum filme com tal conhecimento havia sido feito anteriormente (MILLER, 1998). 15 Klüver cursou PhD em Engenharia Elétrica na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 1957.
21
morou em Paris, em 1953) para construir uma escultura mecânica que deveria se autodestruir
ao final de uma performance de 27 minutos. A obra Homage to New York (1960), composta
por pedaços de cadeiras velhas, bicicletas e sucata, foi apresentada no jardim do MoMA
(Museu de Arte Moderna de Nova Iorque) e teve grande repercussão na mídia. Desta
experiência, Klüver (apud MILLER, 1998, p. 24) comentou (sobre a colaboração com
artistas): "Eu sabia que eu poderia resolver os problemas, se eu tomasse um dia para isto, mas
a cortina tinha que subir. Os artistas ainda reclamam que os engenheiros nunca aprendem que
a cortina deve subir".16
Este evento trouxe novas demandas para Klüver, dentre elas, a obra Oracle (1963-
1965, montagem ilustrada na
16 “I knew that I could solve the problems, if I took a day, but the curtain had to go up. Artists still complain that engineers never learn that the curtain must go up.” Tradução nossa.
22
Figura 4, a seguir) do artista norte-americano Robert Rauschenberg, que buscava a
criação de um “ambiente interativo onde a temperatura, som, cheiro, luzes, etc., mudariam na
medida que o visitante se movimentasse” (KLÜVER apud MILLER, 1998, p. 23, tradução
nossa). Estes requisitos não eram possíveis com a tecnologia disponível nos anos sessenta,
então, o conceito foi adaptado para um ambiente sonoro, constituído de cinco esculturas feitas
com objetos que Rauschenberg havia encontrado nas ruas. Como o artista não queria nenhum
cabo conectando os objetos, o som era enviado do painel de controle para cada escultura,
através de ondas de rádio AM. O espectadores podiam variar o volume e a sintonia de cada
rádio, usando o painel de controle.
23
Figura 4 – Robert Rauschenberg e Billy Klüver com a obra Oracle (1963)
Disponível em:: Robert Rauschenberg – Oracle | Paulspen. Disponível em: <http://paulspen.com/the-engineer-as-catalyst-billy-kluver-on-working-with-artists/figure-2/>.
Acesso em 10 nov. 2012.
No ano de 1966, Klüver foi convidado por uma sociedade musical de Estocolmo para
organizar uma mostra que representaria a cena norte-americana em um festival de arte e
tecnologia na capital Sueca. Com auxílio de Rauschenberg, foram convidados outros artistas
que estavam envolvidos com os happenings daquele momento, em Nova Iorque. Finalmente,
a participação americana no festival foi cancelada, entretanto, desta preparação, surgiu a
oportunidade de exibir as performances no 69th Regiment Armory, em Manhattan. Assim,
com a colaboração de cerca de 30 engenheiros da Bell Laboratories e 10 artistas – Alex Hay,
David Tudor, Deborah Hay, John Cage, Lucinda Childs, Öyvind Fahlström, Robert
Rauschenberg, Robert Whitman, Steve Paxton e Yvonne Rainer – a exibição 9 Evenings:
Theatre and Engineering ocorreu de 13 a 23 de outubro de 1966 (BONIN, 2006).
As obras exibidas apresentavam uma diversidade incrível e os dispositivos criados
para solucionar as demandas das obras poderiam figurar como uma “cronologia de conquistas
da engenharia”17 (MILLER, 1998, p. 25). Klüver (apud Hertz, 1995) comentou, em uma
entrevista concedida em 1992, que
Através do contato com a arte] o engenheiro expande sua visão e se envolve com problemas que não são os mesmos tipos de problemas racionais que aparecem em sua rotina diária. E o engenheiro se compromete porque torna-se um problema
17 “A chronology of engineering achievement.” Tradução nossa. As obras contaram com televisão infravermelha para Rauschenberg, acesso direto a sons de NY para Cage, um ambiente sonoro para o coreógrafo Steve Paxton, flocos de neve que ascendiam no espaço para Oyvind Fahlström e um sistema de controle proporcional para David Tudor, no qual podia controlar luzes e sons com o movimento de uma lanterna apontada para um painel de controle com foto-células (MILLER, 1998).
24
tecnológico fascinante que ninguém mais haveria levantado. (KLÜVER apud HERTZ, 1995, s\p) 18
A exposição 9 Evenings contou com cerca de dez mil visitantes e o entusiasmo gerado
entre os envolvidos culminou na posterior formação do Experiments in Art and Technology19
(E.A.T.), em dezembro de 1966, por Billy Klüver, Robert Rauschenberg, Fred Waldhauer e
Robert Whitman.
O E.A.T. é uma organização sem fins lucrativos que tem como objetivo principal
promover a colaboração entre artistas e engenheiros. Nos primeiros três anos, o projeto já
contava com 2 mil artistas e 2 mil engenheiros dispostos a trabalharem juntos espalhados pelo
país. Além de oferecer o programa de serviços técnicos, o E.A.T. conduzia projetos próprios,
como por exemplo, o grandioso Pepsi Pavilion na Expo ’7020 em Osaka, Japão (1969-1970).
Figura 5 – E.A.T. em estande de divulgação na reunião anual (1967) da IEEE (Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos, tradução nossa) Fonte: Media Art Net.
Disponível em:< http://www.medienkunstnetz.de/artist/eat/biography/?desc=full>
Acesso em: 15 nov. 2012.
À medida que as tecnologias de hardware, comunicações, processamento de dados e a
instrumentação de comando e controle se desenvolviam, no início da década de 1970, o
E.A.T. identificou a importância da contribuição efetiva de artistas em áreas de
18 “The engineer expands his vision and gets involved with problems which are not the kind of rational problems that come up in his daily routine. […]And the engineer becomes committed because it becomes a fascinating technological problem that nobody else would have raised.” Tradução nossa. 19 “Experimentos em Arte e Tecnologia”, tradução nossa. 20 O Pepsi Pavilion foi organizado e administrado pelo E.A.T., contando, inicialmente, com a participação de um núcleo de quatro artistas: David Tudor, Forrest Myers, Robert Breer e Robert Whitman. À medida que o projeto foi sendo desenvolvido, outros artistas foram sendo chamados para contribuir com o andamento da exibição, somando vinte artistas e cinquenta engenheiros e cientistas (VASULKA, 1992).
25
desenvolvimento de tecnologia, gerando uma série de projetos interdisciplinares que
estendiam as atividades dos artistas na sociedade. Projects Outside Art: Rooftop Gardening
(1969-1971) dialogava com sustentabilidade e biologia, produzindo um telhado verde em
parceria com um laboratório da Universidade do Arizona; o projeto Children and
Communication (1971), em colaboração com especialistas da Universidade de Nova Iorque,
trazia experiências com comunicação, utilizando 14 linhas telefônicas dedicadas e
dispositivos, tais como máquinas de fax e telex para crianças de 6 a 14 anos de idade
comunicarem-se entre si, unindo dois pontos separados da cidade. Já o projeto Telex: Q&A
(1971) expandiu esta experiência a outro nível: fazendo parte da exposição Utopia & Visions
1871 – 1981 ocorrida no museu Moderna Museet (Estocolmo, Suécia), o público foi
convidado a enviar questões sobre o ano de 1981, conectando o museu sueco à base
americana do E.A.T., em Nova Iorque, ao Instituto de Design de Ahmedabad (Índia) e
também a um espaço público localizado no Sony Building, de Tóquio. Mais de 400
mensagens foram enviadas e respondidas durante o mês da exposição21.
Estes projetos reforçam o entendimento de Klüver e Rauschenberg de que a relação
entre arte e engenharia deve ser a de colaboração e de troca. Em uma palestra, Klüver (apud
Miller, 1998) afirmou que
[...] um engenheiro deveria ser somente outra ferramenta para o artista. Mas Bob [Rauschenberg] muito especificamente disse, ‘Não! Deve ser uma colaboração.’ Eu imediatamente entendi o que Bob estava dizendo. A colaboração um-a-um entre pessoas de campos diferentes sempre guarda a possibilidade de produzir algo novo e diferente que nenhum deles poderia ter feito sozinho (KLÜVER apud MILLER, 1998, p.28)22.
Atualmente, encontramos o trânsito entre diferentes áreas menos “congestionado”. As
informações trafegam com mais facilidade e as trocas já ocorrem com maior naturalidade.
Antes de prosseguir, é necessário apontar para o percurso do desenvolvimento das artes
midiáticas no Brasil.
21 Fonte: SNAC. Experiments in Art and Technology (Organization). Disponível em: <http://socialarchive.iath.virginia.edu/xtf/view?docId=experiments-in-art-and-technology-organization-cr.xml>. Acesso em: 17 nov. 2012. 22 “[...] an engineer should be just another tool for the artist. But Bob [Rauschenberg] very specifically said, ‘No! It has to be a collaboration.’ I immediately understood what Bob was saying. The one-to-one collaboration between two people from different fields always holds the possibility of producing something new and different that neither of them could have done alone.” Tradução nossa.
26
1.1.2 O movimento da artemídia no Brasil
O movimento das artes midiáticas do Brasil se deu paralelamente ao movimento
mundial, guardadas as devidas dimensões e particularidades históricas de cada espaço.
Segundo o pesquisador Arlindo Machado, o contexto brasileiro estava “em sintonia e
sincronia com o que estava sendo produzido fora do Brasil, o que dava aos brasileiros uma
condição de atualidade, quando não até mesmo precocidade em alguns casos específicos”
(MACHADO, 2007, p. 50). No contexto brasileiro, a figura de Abraham Palatnik foi decisiva
na inserção do país no campo da arte tecnológica.
Palatnik nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 1928, filho de uma família de
judeus-russos que se instalou na cidade, em 1912. Com a idade de 4 anos, viajou com os pais
à Palestina onde realizou seus estudos primários, secundários e, posteriormente, no campo da
mecânica e da física, especializando-se em motores de explosão. Nesta época, frequentou,
simultaneamente, um ateliê livre de arte no qual teve aulas de desenho com modelos vivos,
pintura e estética. Retornou ao Brasil em 1948, instalando-se no Rio de Janeiro, onde
conheceu o critico de arte Mário Pedrosa, na época, “um dos mais importantes intelectuais
brasileiros, dividindo suas ações entre a arte e a política” (MORAIS, 1999, p. 52.).
Através de Almir Mavignier, Palatnik conheceu o Hospital Psiquiátrico do Engenho
de Dentro (onde Almir atuava como orientador do ateliê de pintura), e sua experiência foi
arrebatadora: “me vi diante de gente que nunca havia estudado, que não passara por nenhum
tipo de aula, produzindo obras de linguagem complexa e profunda” (PALATNIK apud
MORAIS, 1999, s\p). Esta experiência somada às conversações com Pedrosa levaram o artista
a abandonar a pintura, decidindo buscar uma técnica diferente, apoiada nas conquistas
tecnológico-científicas e que “poderia trazer para a arte pictórica a possibilidade da luz e do
movimento no tempo e no espaço.” (PALATNIK apud MORAIS, 1999, p. 53.).
Entre 1949 e 1950, o artista cinético Abraham Palatnik criou seu primeiro "aparelho
cinecromático" denominado Azul e Roxo em Primeiro Movimento, fundando a “vertente
tecnológica da arte brasileira” (MORAIS, 1999, p. 53.). O aparelho substituía as tintas por
motores, lâmpadas, lentes e um prisma para usar a refração da luz como pigmento, na qual
101 focos de luz de diferentes intensidades movimentavam-se no espaço.
27
Figura 6 – Aparelho cinecromático #1 Azul e Roxo em Primeiro Movimento (1949)
Disponível em: < http://cdn2.tecnoartenews.com/wp-content/uploads/2012/10/abraham-palatinik-nara-roesler-
02-200x300.jpeg>. Acesso em: 15 nov. 2012.
Palatnik (1940 apud ZANINI, 1997), questionava:
Por que nos sujeitarmos eternamente ao instrumental clássico: tinta, pincel, cavalete? Não haverá algo mais que isso? Se a ciência nos permite projetar o caleidoscópio no espaço, dando-lhe uma sabedoria plástica consciente, devido principalmente à movimentação ordenada dos corpos e a cor luminosa, pura, obtida através da refração da luz pelo prisma, por que deverá ela ficar de lado? (PALATNIK apud ZANINI, 1997, p. 234).
A obra foi exposta na I Bienal de São Paulo, em 1951, porém havia sido cortada pelo
júri nacional, com o argumento de não enquadrar-se em nenhuma das categorias regimentais.
No entanto, a obra finalmente foi exposta em uma sala que havia sido reservada aos
integrantes da delegação japonesa que não puderam comparecer. Azul e Roxo em Primeiro
Movimento recebeu menção honrosa após ser reconhecida por um júri internacional.
Seus aparelhos cinecromáticos foram expostos outras vezes na Bienal de São Paulo e
também em mostras coletivas e individuais no exterior. Palatnik deu início, a partir de 1964, a
uma pesquisa com “objetos cinéticos” feitos de hastes ou fios metálicos com discos de
madeira em suas extremidades pintados de várias cores, acionados por motores ou, em alguns
casos, eletroímãs. O artista seguiu esta pesquisa criando, em 1965, um objeto lúdico no qual o
“espectador-participante” usa os polos de ímãs para atrair ou repelir formas geométricas que
constituem fragmentos de uma estrutura maior (MORAIS, 2012, p. 54).
No final da década de sessenta, o Brasil vivenciou a discussão aberta pela poesia
concreta, tendo criado um dos primeiros exemplos de poesia gerada em computador, por
Erthos Albino de Souza (MACHADO, 2007, p.51), poeta, artista gráfico e engenheiro. Erthos
28
foi autor e editor da revista baiana Código23 e é reconhecido por ter desenvolvido técnicas de
dessemantização de textos, “por meio da introdução em seus corpos de taxas controladas de
ruídos, de modo a fazer degenerar mensagens previamente construídas” (ERTHOS, 2006, p.
45).
Em 1969, em parceria com o físico e engenheiro Giorgio Moscati, Waldemar
Cordeiro24 desenvolveu a obra As derivadas de uma imagem, inaugurando as experimentações
em computer art no país (ARANTES, 2005). As obras nacionais, em oposição ao que vinha
sendo feito mundialmente, se destacavam pelo viés político, uma vez que o país passava por
uma vida política marcada pela ditadura militar.
Cordeiro também foi responsável pela exibição Arteônica – O Uso Criativo dos Meios
Eletrônicos em Arte, em 1971, na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), dando
especial ênfase ao potencial democratizador das artes telemáticas, que dentre outras
características, permite eliminar a necessidade do deslocamento físico dos fruidores, fazendo
uso dos meios eletrônicos de comunicação.
Nota-se, portanto, que houve um desenvolvimento paralelo no Brasil com relação ao
andamento das artes num contexto mundial. As primeiras infiltrações de outros elementos nas
obras artísticas também foram feitas através da arte cinética, arte ótica e, posteriormente, as
experimentações mais profundas de computer art e arte eletrônica se deram mediante a
colaboração entre indivíduos de áreas complementares (engenheiros e artistas).
É interessante frisar que esta troca estabelecida entre profissionais de áreas diferentes
se dá através de uma linguagem, um elemento tradutor que possibilita a comunicação entre as
duas partes. Este elemento pode ser entendido como uma interface. Veremos que este termo
também se aplica a outras áreas e podemos traçar paralelos entre estas.
1.2 Sobre interfaces e interatividade
Em linhas gerais, as interfaces são superfícies que delimitam dois sistemas distintos,
podendo ser físicos, químicos ou sociais. Costuma-se utilizar o termo para sistemas 23 A revista Código foi uma das mais importantes revistas brasileiras de poesia de vanguarda e teve sua primeira edição em 1974. 24 Artista nascido em 1925, em Roma, veio para o Brasil, em 1946, instalando-se em São Paulo onde trabalhou como jornalista. Em 1952, ao lado de outros artistas, fundou o Grupo Ruptura e lançou um manifesto com o objetivo de romper com a arte figurativa. A partir da década de 60, afastou-se do rigor concretista e começou a criar usando objetos do cotidiano e sucata. Realiza as primeiras pesquisas com o uso do computador nas artes visuais a partir do final da década de 60. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=3529>. Acesso em: 20 fev. 2012.
29
informáticos, nos quais o usuário faz uso de determinado sistema operacional através de uma
interface projetada para tal. Neste contexto, teclado e mouse constituem interfaces físicas que
transformam a manipulação do usuário em impulsos elétricos que são codificados e
interpretados pelo sistema. Da mesma forma, as interfaces gráficas de usuário (GUI25)
mapeiam graficamente os monitores de trabalho, representando, virtualmente, objetos
familiares ao operador, facilitando o uso de certas aplicações como, por exemplo, os
processadores de texto que utilizam a metáfora da folha de papel para a digitação, como nas
antigas máquinas de datilografar.
As interfaces representam dispositivos que compatibilizam a troca de informação ao
criar uma padronização na comunicação entre dois sistemas. Ao relacionar esta ideia com as
trocas que encontramos em uma sociedade heterogênea e complexa, podemos manter a
mesma terminologia: as interfaces também podem compatibilizar a troca de informação entre
grupos sociais distintos e, seguramente, também servem não para “padronizar”, mas para criar
“analogias” entre diferentes sistemas sociais. Em se tratando de analogias, cabe lembrar o que
o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (1987) comenta sobre emigração de
teorias, segundo ele,
A ciência do paradigma emergente, sendo [...] assumidamente analógica, é, também, assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem (SANTOS, 1987, p. 18).
Através da tradução dos conceitos, criam-se interfaces entre ideias, entre campos do
conhecimento que são complementares e que, muitas vezes, compartilham desafios
semelhantes. Acreditamos que o trabalho em regime associativo/colaborativo, quando faz uso
consciente das analogias necessárias para a tradução efetiva de conceitos, possibilita um
crescimento significativo para ambos os lados daquela "superfície delimitadora" citada
anteriormente, tornando-a porosa, suscetível à infiltrações, emissora e receptora de
informações.
O autor norte-americano Steven Johnson na apresentação da versão brasileira de seu
livro “Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e
comunicar”26 identifica a interface como “[...] todo o mundo imaginário de alavancas, canos,
25 “Graphical User Interface”, tradução nossa. 26 “Interface Culture: How New Technology Transforms the Way we Create and Communicate ”, título original do livro, publicado pela primeira vez em 1997.
30
caldeiras, insetos e pessoas conectados – amarrados entre si pelas regras que governam este
pequeno mundo, isso, para mim, é uma interface em seu modo de arte elevada” (JOHNSON,
2001, p. 11). O autor salienta a abrangência da interface em nossa sociedade, na qual ela de
fato está em toda parte e serve como intermediador de nossa relação diária com nosso
entorno, composto por todos seus elementos, tanto técnicos quanto sociais. Este trabalho irá
enfatizar a interatividade homem-tecnologia, quando a entendemos como uma “atividade
tecno-social presente em todas as etapas da civilização” (LEMOS, 2008, p. 112).
O pesquisador brasileiro André Lemos (2008) usa a televisão como exemplo para
identificar diferentes níveis de interação, iniciando pela “interação nível 0”, com a televisão
transmitida em preto e branco, com poucos canais e controle somente do acionamento do
aparelho, volume, brilho e contraste. A seguir, passa-se ao “nível 1” com a TV a cores e uma
grade mais ampla de canais, permitindo uma maior autonomia da telespectação, quando o
usuário pode zappear27 entre um programa e outro – o que o autor comenta ser o antecessor
da navegação contemporânea na web. A “interação nível 2” acontece quando o telespectador
se apropria do “objeto TV”, ao acoplar videocâmaras ou consoles de videojogos, instituindo
uma temporalidade própria, independente da programação destas. O “nível 3” se dá quando
elementos de interatividade digital interferem no conteúdo das emissões televisivas através de
telefones, faxes ou correio eletrônico. Finalmente, a chamada “interação nível 4” é aquela na
qual, através das redes telemáticas, o telespectador pode escolher ângulos e câmeras de
transmissão, interferindo no conteúdo informativo recebido em tempo real.28
Notamos que atualmente existe uma crescente aproximação do espectador à produção
de conteúdo, quando ele é incentivado a opinar durante o andamento da programação, o que
cria uma via de diálogo entre as partes, porém isto se dá de forma parcial, quando as
emissoras, na realidade, têm o poder de filtrar e selecionar o que é inserido em seus
programas. O que vemos com mais frequência são mensagens enviadas pelo público a
programas de auditório ou a transmissões de partidas desportivas nas quais os torcedores dão
27 Termo oriundo do inglês zapping que resume o ato de navegar pelos canais de televisão em busca de algo de interesse do telespectador. Fonte: Wikipédia, disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Zapping>. Acesso em: 11 dez 2012. 28 É importante observar que a “interação nível 4” se trata de uma possibilidade de escolha refinada oferecida ao usuário: sua ação reflete unicamente no conteúdo que está sendo reproduzido individualmente em seu televisor. É diferente do que acontece na “interação nível 3”, quando o espectador interage com o programa, usando o telefone, por exemplo, sendo que o resultado é transmitido abertamente a todos os espectadores. No Brasil, a Rede Globo de tevê aberta fez sua primeira experiência com um programa dito “interativo” de teledramaturgia, em 1992, através do “Você Decide”. Nele, os telespectadores eram convocados a participar, decidindo o rumo de histórias polêmicas mediante votação telefônica. Trata-se de uma interação branda, na qual os usuários são incentivados a escolher entre poucas opções já pré-determinadas e pré-gravadas pela emissora. A interatividade serve muito mais a título de marketing do que de um ponto de vista funcional. Disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/TVGlobo/Comunicacao/Institucional/memoriaglobo/CDA/Pop/tvg_cmp_memoriaglobo_pop_descricao_subtema/0,35985,22913,00.html>. Acesso em: 11 dez 2012.
31
suas opiniões sobre o andamento dos jogos. Trata-se de uma interatividade limitada. Tal
limitação não parece ser um problema para a maior parte dos telespectadores que, muitas
vezes, é absorvida pelas programações de tal forma que não se incomoda, nem mesmo, com a
cobrança pela participação, como a que ocorre no caso das votações realizadas por telefone,
debitadas diretamente na conta dos usuários.
Este fenômeno é o que Lemos (2012) afirma ser o da transição a um modelo “pós-
massivo” de comunicação, no qual “todos têm o direito de fala” e o agenciamento29 torna-se
pulverizado, não centralizado (LEMOS, 2012, p. 113). De fato, com a disseminação das
redes, os usuários encontram mais espaço para expressar seus pontos de vista e algumas
ferramentas permitem uma maior repercussão das opiniões individuais30. Porém não se trata
de um direito de fala igualitário a “todos”, visto que estas tecnologias ainda não são acessíveis
a uma grande parcela da população e o controle imposto pelas mídias de massa agora não se
encontra somente na figura da televisão, mas, também, nas redes sociais online, nas
ferramentas de busca, nos portais de notícias, embarcados no leiaute destes serviços. Existe
uma hierarquia impressa nas páginas de internet que são exibidas em janelas que dispõem as
informações “mais relevantes” no topo e o restante da informação é lida mediante a rolagem
de cima para baixo. A maior parte dos serviços online que utilizamos é “gratuita”, mas
coletam os dados dos usuários como forma de pagamento, contabilizando um grande fluxo de
acesso, o que é revertido, posteriormente, em moeda de troca na venda de espaço publicitário,
ou seja, todos são “livres para falar” nos espaços concedidos por serviços que lucram com
estes diálogos.
O papel das interfaces neste cenário é o da tradução, conversão, garantia de
acessibilidade, integração de sistemas e emprego de analogias e metáforas do mundo real que
são usadas para dar sentido a códigos que são intangíveis, necessitam ser interpretados e não
existem fisicamente (embora sejam armazenados isso, sim, em suportes físicos31). Estas
29 Agenciamento é a pauta proposta pelos meios de massa para discussão do público. Fonte: <http://andrelemos.info/2012/05/movimentos-sociais-2-0/>. Acesso em: 12 dez 2012. 30 As redes sociais se tornaram uma forma conexão entre as empresas e seus consumidores. Quando certa companhia abre oficialmente uma conta no Twitter (Disponível em: <http://www.twitter.com>. Acesso em: 12 dez. 2012), por exemplo, está assumindo uma responsabilidade por aquilo que circula ao redor de sua marca e deve estar a par das discussões que envolvem o seu perfil. Dessa forma, consumidores que se sentem enganados por determinado serviço podem demandar soluções abertamente nestas redes, citando o perfil oficial de tal empresa em suas mensagens. Estas ações, quando não são respondidas prontamente, podem tomar maiores proporções quando outros usuários se identificam com a causa e realimentam a discussão. 31 As informações que guardamos, recuperamos e manipulamos podem ser armazenadas em diversos suportes como: fitas magnéticas, cartões perfurados, discos rígidos, discos óticos (CDs) ou memórias estáticas (como os pendrives, por exemplo). Atualmente, existe, também, o conceito de armazenamento na “nuvem”, na qual a informação do usuário não é guardada localmente, mas em servidores distantes que são acessados via rede. Este armazenamento utiliza os mesmos suportes citados
32
traduções/conversões vêm sendo feitas há um certo tempo, quando, por exemplo, exploramos
o espaço eletromagnético para a transmissão de ondas de rádio para a comunicação32
(HUGHES, 1879), ou excitamos uma barra de ferro com um campo magnético análogo ao
áudio capturado por um microfone33, constituindo o princípio de gravação de áudio em fitas
magnéticas (popularmente conhecidas como “fitas cassete”).
Estamos imersos em um mundo de radiações eletromagnéticas no qual somente temos
acesso nato a uma estreita faixa de frequência a qual chamamos de “luz visível”34 e que
captamos com nossos olhos. A grande porção restante do espectro operacionalizamos seu uso
através de instrumentos que convertem sinais em informações compreensíveis aos nossos
sentidos35. Estas conversões acontecem constantemente na informática desde sua criação.
Traremos a seguir dos aspectos evolutivos que aproximaram os computadores da vida
cotidiana, através do desenvolvimento das interfaces gráficas de usuário, juntamente com o
surgimento da microeletrônica, na segunda metade da década de 1970 (LEMOS, 2008).
1.2.1 Mapas de bits, janelas e desktops
O desenvolvimento da computação foi impulsionado pela corrida armamentista,
quando as primeiras unidades eram utilizadas para fazer cálculos de balística ou criptografar
mensagens enviadas em campos de batalha. Os computadores, nesta época, eram
equipamentos volumosos, consumiam muita energia elétrica e requeriam um conhecimento
profundo do operador para sua manipulação.
O ciberativista londrino Richard Barbrook ressalta em seu livro “Futuros Imaginários”
(2008) a relação direta das investigações no campo do cálculo eletrônico com as demandas
impostas pela guerra. As descobertas patrocinadas pelo Estado para manter a segurança
nacional eram posteriormente transformadas em produtos destinados ao cidadão/consumidor
anteriormente e esta opção somente é praticável quando é possível trabalhar com um fluxo de dados (velocidade, taxa de transferência) mínimo aceitável para a aplicação em questão. 32 Descoberto pelo galês David Edward Hughes em 1879. Fonte: Wikipedia, disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/David_Edward_Hughes>. Acesso em: 12 dez 2012. 33 Teoria descrita por Oberlin Smith em 1878, porém o protótipo foi criado e patenteado pelo dinamarquês Valdemar Poulsen em 1899. Fonte: The History of Magnetic Recording. Disponível em: <http://www.h2g2.com/approved_entry/A3224936>. Acesso em: 12 dez 2012. 34 Frequências de 400 a 790 THz (Terahertz), aproximadamente. (Fonte: Visible Spectrum. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Visible_spectrum>. Acesso em: 12 dez 2012). 35 O exame laboratorial de ressonância magnética, por exemplo, permite gerar uma representação visual de um órgão humano bombardeado por frequências eletromagnéticas da ordem dos Megahertz (Mhz). Este exemplo busca clarificar a importância das conversões, transformações de base, escalonamento de sinais para a análise humana. Atualmente, com o desenvolvimento da informática, é possível a manipulação de grandes quantidades de dados, proporcionando novos pontos de vista que facilitam a geração de diagnósticos, não somente médicos, mas também evolutivos, de identificação de tendências, correlações entre variáveis em diversas áreas.
33
comum, tentando justificar os enormes investimentos gastos nestas pesquisas. Segundo
Barbrook, (2008, p. 68), “[...] reatores nucleares eram geradores de eletricidade barata, e não
fábricas de bombas atômicas. Foguetes eram construídos para levar heróicos astronautas para
o espaço, não para lançar ogivas nucleares em cidades russas”.
Ao término da Segunda Guerra Mundial, o engenheiro norte-americano Vannevar
Bush36 descreve em seu artigo As We May Think37 (publicado na revista The Atlantic Monthly,
em julho de 1945), um sistema que funcionaria como um “expansor” ou “indexador” de
memória, facilitando o inter-relacionamento de informações, através de “trilhas”38 que seriam
seguidas, criadas e compartilhadas pelos leitores. Batizado de “Memex”, o sistema
eletromecânico faria uso de microfilmagens para armazenar a informação miniaturizada, a
qual seria posteriormente recuperada através de sistemas óticos que recriariam a imagem em
uma tela. Segundo Bush (1945), este aparelho estaria aproximando-se do funcionamento da
mente humana, por associação entre eventos, pois,
O homem não pode esperar duplicar artificialmente seus processos mentais por completo, mas ele, certamente, é capaz de aprender com ele. [...] poderia ser possível vencer a mente no que concerne a permanência e clareza dos itens recuperados do armazenamento39 (BUSH, 1945, p. 57.).
O artigo de Bush inspirou muitos cientistas na época, dentre eles Douglas Engelbart,
então técnico de radar da marinha americana. Baseado nas ideias de Bush, Engelbart
publicou, em 1962, o artigo Aumentando o Intelecto Humano: uma Estrutura Conceitual40”
no qual inclui uma atualização do Memex, na forma de um sistema chamado NLS (oN-Line
System), capaz de fazer referências cruzadas de artigos científicos para serem compartilhados
por pesquisadores à distância, divisão tela entre usuários remotos, entre outros. Engelbart
acreditava em uma conexão homem-máquina que permitisse o acesso imediato à informação,
o que o levou a desenvolver a primeira interface gráfica, através do mapeamento de bits e o
protótipo do mouse.
36 Vannevar Bush esteve envolvido nas pesquisas que levaram ao desenvolvimento do primeiro computador analógico na década de 1930. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi nomeado pelo presidente Franklin Roosevelt, diretor do Office of Scientific Research and Development (OSRD) – a agência responsável pelas pesquisas científicas com propósitos militares durante o período da guerra, incluindo o desenvolvimento da bomba atômica. 37 “Como nós podemos pensar”. Tradução nossa. 38 “Trails”. Tradução nossa. Estas trilhas podem ser compreendidas como uma primeira aproximação do que viria a ser posteriormente a estrutura do hipertexto da World Wide Web, na qual palavras-chave são pontos de vínculo com outros temas em comum. 39 “Man cannot hope fully to duplicate his mental process artificially, but he certainly ought to be able to learn from it. [...] it should be possible to beat the mind decisively in regard to the permanence and clarity of the items resurrected from storage.” Tradução nossa. 40 “Augmenting the Human Intellect: a Conceptual Framework”. Tradução nossa.
34
Figura 7 – Primeiro mouse conectado à estação de trabalho de Engelbart, 1966,
Stanford Research Institute (SRI)
Disponível em: <http://dougengelbart.org/site/images/img0023.jpg>. Acesso em: 20 dez 2012.
Ao contrário do que Ivan Sutherland havia feito com seu programa Sketchpad (1963),
no qual o usuário podia desenhar na tela usando uma caneta especial (light pen), Engelbart
mapeou o próprio espaço informacional, usando representações gráficas na tela do
computador que, a partir de agora, passou a ser pensada como uma matriz de pixels, um
espaço bidimensional, uma janela, a ser explorada pelo usuário. A “tela preta” de até então
passou a imprimir objetos familiares ao usuário, que “navega” entre eles, usando um
dispositivo apontador (o mouse), introduzindo o princípio da manipulação direta.
A manipulação direta possibilitou o envolvimento maior do usuário com o sistema
quando, usando o exemplo do mouse, o movimento do objeto no espaço físico real é
totalmente análogo àquele executado no espaço virtual. Steven Johnson (2001, p. 30), afirma
que o “mouse de Engelbart fazia o papel de representante do usuário no espaço de dados”
(grifo nosso). A partir desse momento, passamos a trabalhar imersos no espaço de dados,
pensando-o como um ambiente a ser explorado, não como uma prótese que unicamente
amplia nossos sentidos. Engelbart demonstrou os avanços de sua pesquisa nos laboratórios do
SRI41 na conferência Fall Joint Computer Conference, em São Francisco, 1968.
A navegação no espaço delimitado pelas janelas concebidas por Engelbart foi
aprimorada anos mais tarde (1972), por Alan Kay, nos laboratórios PARC42, da Xerox, em
Palo Alto, Califórnia. As janelas com informação competiam entre si e rapidamente
acumulavam-se na tela. Kay inseriu uma “terceira dimensão” naquele ambiente 41 “Stanford Research Institute”, ou Instituto de Pesquisa de Stanford, tradução nossa. 42 “Palo Alto Research Center”, ou Centro de Pesquisa de Palo Alto, tradução nossa.
35
bidimensional, permitindo que algumas janelas ficassem sobrepostas umas sobre as outras.
Era a metáfora do desktop, ou “tampo de mesa”, no qual os diversos elementos estavam
dispostos e podiam ser manipulados à vontade, como em uma mesa de escritório, com seus
papéis acumulados e ordenados, conforme o gosto do usuário. A Xerox usou estas técnicas
em um sistema operacional experimental chamado Smalltalk, introduzindo a interface gráfica
de usuário (GUI) no ALTO (1973), o primeiro computador pessoal conectado a uma rede local
(Ethernet) (PACKER, 1999).
A partir desse momento, é dado início a uma série de lançamentos de computadores
pessoais que incorporam a metáfora do desktop, agregando novas funcionalidades, assim
como sucessivas brigas judiciais entre fabricantes devido às violações dos direitos autorais e
aos registros de patentes – que não são relevantes para o seguimento deste trabalho. Nesse
ponto, é importante notarmos o papel das interfaces na disseminação do uso dos
computadores em nossa sociedade. Além de tratar-se de uma máquina técnica, uma
“calculadora refinada”, o computador é capaz de organizar informações, administrar grandes
bases de dados e, quando associado em rede, abre inúmeras possibilidades de trocas entre
usuários, criando uma via livre de tráfego de informação.
Com o uso das metáforas citadas anteriormente, os designers de interface mapeiam o
espaço informacional em formas reconhecíveis pelo usuário “comum”, que já acostumou-se
com certas convenções estabelecidas. Segundo Johnson (2001), existe um compromisso entre
a inovação e a previsibilidade no desenho de interfaces: “Nunca obrigue um usuário a
aprender a fazer a mesma coisa duas vezes” (JOHNSON, 2001, p. 207). Trata-se de um
exagero, mas compreende-se o motivo de tal afirmação, quando a facilidade de uso é um
ponto crucial no projeto de uma interface bem-sucedida.
Atualmente, com a evolução das mídias digitais, a convergência midiática e o acesso
disseminado às redes telemáticas de comunicação, as interfaces gráficas de usuário são nosso
ponto de contato com um mundo codificado. Para Giselle Beiguelman (2006), a interface não
é apenas uma membrana que separa o espaço do ciberespaço; “A interface é uma espuma que
agrega a relação num espaço informacional” (BEIGUELMAN apud DIMANTAS, 2006,
p.60). Quando entendemos as interfaces como nossas intermediárias no trato com nossas
ferramentas de trabalho, por exemplo, nos damos conta que elas também influenciam
intrinsecamente nossas ações, criando um hall extenso, porém limitado de possibilidades de
atuação. Daí a importância de estarmos atentos às possibilidades de cada meio e adotarmos
uma postura crítica em relação ao que nos é oferecido. Este é um dos papéis fundamentais da
36
arte: questionar criativamente. Embora tenhamos trazido a evolução das interfaces num tópico
separado da artemídia, ambas evoluíram simultaneamente e se retroalimentam continuamente.
No cenário atual de criações artísticas estimuladas pelas trocas interdisciplinares
potencializadas pelas redes, trazemos, no próximo tópico, uma listagem de tipos de interação
proposta por Joshua Noble em seu livro Programming Interactivity43 (2009).
1.2.2 Algumas possibilidades de interação
Dentre as diversas possibilidades de desenho de interação, Noble (2009) lista tipos
relevantes de interação, lembrando que não se trata de uma categorização, uma vez que
grande parte destes é híbrida, com muitos pontos de contato entre si:
• Manipulação física é aquela na qual a interação se dá através da mudança de
estado de um botão, sliders ou knobs. O controle de volume é um exemplo
prático deste caso.
• Entrada usando código é dada através de comandos inseridos através de um
teclado conectado ao sistema. O autor cita o uso de hot-keys, ou teclas de
atalho, como exemplo de entrada usando código. Acredito que as hot-keys
estariam melhor classificadas como manipulação física, quando executam
determinada tarefa mediante uma mudança de estado ou uma combinação de
teclas. Parece-me mais adequada a técnica do live-coding, na qual o usuário
efetivamente interfere na execução do sistema, mediante a edição ou adição de
novos trechos de código no programa durante sua execução.
• Manipulação com mouse ocorre através das ações de clique duplo e clique e
arraste, comuns aos usuários de sistemas informáticos atualmente.
• Presença, localização e imagem é o tipo de interação que acontece a partir da
posição do fruidor no espaço. Pode ser feita a partir de sensores de peso,
movimento, calor ou som.
• Interfaces táteis e de multitoque são usadas a partir do reconhecimento do
toque em uma superfície sensível. As ações comuns são o toque simples,
duplo, toque e arraste, uso de mais de um dedo para expandir, contrair ou
rotacionar algum objeto.
43 Programando Interatividade. Tradução nossa.
37
• Gesto é usado através do reconhecimento de um padrão pré-determinado. O
gesto pode ser capturado por uma tela multitoque ou uma câmera, por
exemplo.
• Voz e reconhecimento de fala é uma modalidade usada para ativar alguma
ação, de acordo com algumas características do som (amplitude e frequência).
Em casos mais avançados, alguns sistemas identificam padrões de áudio
(reconhecimento de fala), permitindo uma interação expandida com o sistema.
Esta lista aponta algumas possibilidades de interação com ferramentas disponíveis
atualmente. Sabemos, no entanto, que a todo momento novas técnicas são criadas e a
transformação do uso programado a alguns objetos também faz parte do movimento da
artemídia. Devemos lembrar que a interatividade é "prevista ou programada" pelo artista.
Portanto, o fruidor/usuário dispõe de um cardápio de escolhas pré-definidas; a interação é
limitada por aquilo que foi delineado pelo artista, salvo naquelas instalações nas quais o
comportamento é generativo, levando em conta elementos de aleatoriedade que criam novas
possibilidades à medida que o trabalho se desenvolve.
As artes midiáticas mantêm um diálogo constante com as tecnologias contemporâneas
e sua natureza multidisciplinar requer o envolvimento de várias pessoas em seu
desenvolvimento. É similar à produção audiovisual, na qual diversos especialistas
encarregam-se de um determinado tema para que o trabalho como um todo seja produzido
harmonicamente. Na artemídia, esta integração entre conhecimentos é ainda mais íntima,
quando as obras questionam o próprio sistema em que estão inseridas e o processo criativo é
também considerado parte tão relevante quanto a obra “acabada”.
Quando comparamos a produção contemporânea das artes midiáticas àquelas que
aconteceram no final dos anos sessenta – como as experiências realizadas pelo E.A.T (citadas
no item 1.1.1 deste trabalho) – notamos que os trinta anos que separam uma experiência da
outra estão marcados, principalmente, pela aceleração das trocas de conhecimento
proporcionadas pelas redes de informação e a chamada cultura livre. Todo este contexto traz a
necessidade de pensarmos no entrelaçamento de culturas e disciplinas que ocorre nas práticas
de criação coletiva em artemídia, dando especial ênfase às ideias de multi, inter e
transdisciplinaridade.
38
2. MULTI, INTER, TRANSDISCIPLINARIDADE E SEUS DESDOBRAMENTOS EM
ARTEMÍDIA
O presente capítulo analisará as definições de multi, inter e transdisciplinaridade e
suas relações com o contexto das produções coletivas em artemídia. Com a disseminação
atual do conhecimento através das interconexões possíveis das redes de comunicação, estas
práticas encontraram uma via livre para progressão, dando início a novas experimentações de
criação coletiva.
Associada a estas práticas, abordaremos a ideia dos hacklabs, medialabs e
hackerspaces como espaços para encontros livre-associativos, nos quais troca-se
conhecimento, principalmente, em torno da tecnologia, linguagens de programação, ciência e
arte digital, mas, também, com relação à utilização do espaço público, meio-ambiente e
políticas públicas. Estes espaços constituem ambientes de permutas multidisciplinares desde
sua gênese, quando os envolvidos nas atividades colaboram voluntariamente, assumindo,
muitas vezes, a própria manutenção destes espaços.
2.1 Identificando os prefixos multi, inter e trans nas disciplinas
Antes de chegarmos aos conceitos de multi, inter e trans relacionados às disciplinas, é
importante traçarmos um breve histórico da evolução do conhecimento até sua estratificação
em áreas com a multiplicação das especialidades separadas em disciplinas de fato.
Conforme aponta o filósofo brasileiro Ivan Domingues, na introdução de seu livro
“Conhecimento e transdisciplinaridade II: aspectos metodológicos” (2005), na Antiguidade, o
conhecimento era único, enciclopédico, numa época em que a quantidade de livros existente
chegava a algumas centenas de exemplares somente. O intelectual de então era representado
por Aristóteles que “dominava virtualmente todo o saber de sua época” (DOMINGUES,
2005, p. 27), quando ele próprio era dono da maior biblioteca existente naquele período.
Deve-se notar aqui que o autor adota uma perspectiva ocidental, eurocêntrica, que descarta
qualquer outro conhecimento não ortodoxo, como aquele repassado através da oralidade, por
exemplo.
O conhecimento estava armazenado em um montante palpável e humanamente
“digerível” por uma única pessoa. Aristóteles, já nessa época, empregava uma organização do
39
conhecimento em três grupos distintos: as ciências práticas, as ciências poéticas e as ciências
teoréticas, o que consistia em uma forma inicial de compartimentalização do saber.
A seguir, Domingues (2005) complementa que, na Idade Média, o número de livros
cresceu, chegando aos 1338 exemplares na biblioteca da universidade de Paris-Sorbonne, a
maior da França, na época. Em seguida, durante o Renascimento, a figura do intelectual
multifacetado era incorporada pelo italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) que versava sobre
ciência, arte, anatomia e matemática e é considerado um dos grandes gênios da humanidade.
Da Vinci foi responsável por inúmeras invenções, incluindo máquinas de voar, pontes
levadiças, esboços detalhados da anatomia humana e de animais, assim como suas
mundialmente conhecidas pinturas, como a Mona Lisa (La Gioconda, pintada entre 1503 e
150644) e a Última Ceia (L'Ultima Cena, pintada entre 1495 e 149845).46
Posteriormente, Descartes propõe o método analítico, que separa o sujeito (reservado à
filosofia, à meditação interior) do objeto (a coisa entendida). Nele, o filósofo propõe a
estratificação de problemas complexos em elementos menores, a fim de compreender o
comportamento do todo a partir das propriedades das partes. A razão passa a ocupar o centro
do universo, superando a estrutura “onto-teológica (explicações de ordem divina) para uma
estrutura onto-antropológica (razão científica)” (LEMOS, 2008, p. 45).
Finalmente, com a chamada modernidade tardia, dos séculos XIX e XX, houve uma
explosão no acervo das bibliotecas, saltando para os milhões de volumes, juntamente com a
divisão do conhecimento em múltiplas disciplinas, tornando “simplesmente impossível
alguém dominar o conhecimento em extensão e profundidade, qualquer que seja a área do
conhecimento” (DOMINGUES, 2005, p. 28). Com isso, surge a necessidade da instauração
de uma inteligência distribuída, na qual o conhecimento poderá ser expandido mediante a
cooperação entre especialistas, entendendo que a soma de indivíduos poderá finalmente
“sintetizar o conhecimento de Leonardo”47.
44 Fonte: Mona Lisa Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Mona_Lisa>. Acesso em: 8 jan. 2013. 45 Fonte: The Last Supper (Leonardo da Vinci) Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/The_Last_Supper_(Leonardo_da_Vinci)>. Acesso em: 8 jan. 2013. 46 A amplitude e profundidade dos interesses de Da Vinci, especialmente, o trânsito entre as artes, ciências e tecnologia inspirou a criação das publicações periódicas Leonardo, iniciadas em Paris, em 1968, pelo artista cinético e cientista espacial norte-americano Frank Malina. Malina vislumbrou a necessidade de um canal de comunicação internacional onde artistas que faziam uso da ciência e tecnologia em seus trabalhos pudessem dialogar. Após a morte de Frank, em 1981, seu filho, Roger Malina, levou o periódico a São Francisco, Califórnia (EUA), criando a organização sem fins lucrativos Leonardo/The International Society for the Arts, Sciences and Technology (Leonardo/ISAST). Além do periódico, existe a série de livros Leonardo Books, publicados pela editora MIT Press. (Disponível em: <http://leonardo.info/isast/leostory.html>. Acesso em: 09 jan. 2013). 47 Em referência ao subtítulo “Como sintetizar Leonardo” do artigo “Práticas colaborativas transdisciplinares em ciberarte: da multimídia às instalações em software art” (DOMINGUES; REATEGUI, 2009, p. 273).
40
Ainda, existe a ideia de conhecimento avançado, tratada no livro A república dos
saberes: arte, ciência, universidade e outras fronteiras, em 2008, organizado por Carlos
Brandão. Segundo o autor, o conhecimento avançado é aquele “que se encontra nas fronteiras
do saber em suas várias áreas e campos disciplinares” (BRANDÃO, 2008, p. 19, grifo nosso)
e a hiperespecialização, embora possa dificultar a visão ampla de certos temas, é responsável
por estender sua abrangência, levando o conhecimento disciplinar a “tocar as fronteiras de
outras especialidades e criar corredores de comunicação entre ambos, transferir métodos e
criar novas disciplinas, novas artes, ciências e tecnologias.” (BRANDÃO, 2008, p. 20).
É justamente nos espaços entre as disciplinas que se acomodarão as metodologias
multi, inter e transdisciplinares, quando se cruzam os olhares especializados em torno de um
objetivo comum. A seguir, veremos suas semelhanças e particularidades, iniciando pela
multidisciplinaridade.
2.1.1 O Multidisciplinar
A metodologia multidisciplinar, também chamada de pluridisciplinar, promove o
encontro entre disciplinas ao redor de um mesmo tema, porém mantém suas metodologias
intactas. Cada especialista contribui em sua respectiva área sem interferir nos métodos
vizinhos (DOMINGUES, 2005).
Podemos citar como exemplo o desenvolvimento do Projeto Manhattan, responsável
pela criação da “Bomba A” na Segunda Guerra Mundial (DOMINGUES, 2005, p. 23). Nele,
uma equipe de físicos, matemáticos, químicos, engenheiros e militares atuaram para criar o
artefato, reservando as metodologias particulares de cada equipe. Não houve, nesse caso, uma
fusão metodológica entre as disciplinas, mas sim, uma coordenação entre as equipes para que
o projeto fosse bem sucedido e ocorresse com segurança total. O contexto da guerra imprimiu
um ritmo intenso de trabalho, quando a Alemanha e a Rússia também corriam para
desenvolver sua versão do armamento.
Voltando-nos ao contexto da artemídia, podemos citar as experimentações de Billy
Klüver e Jean Tinguely como as precursoras da multidisciplinaridade no campo das artes,
quando ambos desenvolveram, em regime de colaboração, a obra "Homage to New York", em
1960. Alguns anos mais tarde, Klüver, juntamente com Robert Rauschenberg, Fred
41
Waldhauer e Robert Whitman, fundaram o conhecido Experiments in Art and Technology48
“formalizando” os encontros multidisciplinares entre engenheiros e artistas na década de
1960.
Ambos exemplos, portanto, retratam as trocas entre áreas distintas, as quais podem ser
extremamente especializadas, porém não compartilham metodologias, mantendo-se imunes ao
contato mais íntimo. Vejamos a seguir como se dão as trocas interdisciplinares.
2.1.2 O Interdisciplinar
A metodologia interdisciplinar, assim como a multidisciplinar, aproxima áreas
diversas, a fim de resolver problemas específicos, com a diferença de haver um
compartilhamento de metodologias e a formação de novas disciplinas, a partir da fusão entre
as envolvidas na cooperação (DOMINGUES, 2005). Como exemplo, podemos citar a união
da biologia, com a engenharia, a física e a informática para o estudo de dados biológicos, tais
como as cadeias de DNA. Usando a metodologia da informática, criou-se a bioinformática:
disciplina responsável pelo armazenamento, busca e análise de dados biológicos que facilitam
o desenvolvimento de novos medicamentos.
O compartilhamento metodológico da interdisciplinaridade pode dar-se de várias
formas, podendo ser múltiplo e compartilhado entre todas as disciplinas envolvidas na
pesquisa, propondo pontos de contato entre as ciências.
As artes midiáticas, quando desenvolvidas coletivamente, podem constituir
experiências interdisciplinares, no momento em que se estabelece o compartilhamento
metodológico entre as áreas envolvidas no desenvolvimento de determinada obra ou
instalação. A obra ReConstitution (2012), desenvolvida pelo coletivo norte-americano
Sosolimited, consiste em um sistema de análise de discurso, que permite a criação de
estatísticas e visualização de dados em tempo real49, através do reconhecimento de palavras-
chave que são filtradas, comparadas e exibidas, à medida que um diálogo qualquer acontece,
48 “Homage to New York” e “Experiments in Art and Technology” foram abordados no item 1.1.1 deste trabalho, respectivamente. 49 Nota-se uma tendência atual do emprego da expressão “tempo real” em diversos contextos como sinônimo de “ao vivo”, de atualização constante, dinâmica, ou simplesmente, como estratégia de marketing. Uma busca pelo termo no Google retorna resultados como “Alagoas em Tempo Real – O portal líder em notícias de Alagoas”, “Tempo Real Eventos” ou “Tempo Real - Negócios imobiliários” além de diversos portais de notícias e esportes (busca realizada em 18 fev. 2013). O termo é originalmente vinculado à ciência da computação e delimita a situação na qual uma determinada instrução deve satisfazer um requisito de tempo. Como exemplo, podemos citar uma aplicação de videoconferência. Neste caso, existe um fluxo constante de dados que transita de um ponto ao outro com um tempo limite de entrega, caso contrário, parte do fluxo deverá ser descartado, para que o restante do fluxo permaneça dentro dos limites impostos pela aplicação.
42
neste caso, os debates presidenciais estadunidenses do ano de 2012. Para desenvolver o
projeto, o coletivo trabalhou em colaboração com James Pennebaker, psicólogo e autor do
livro The secret life of pronouns50 e Cindy Chung, pesquisadora da Universidade de Austin,
Texas, na área de análise textual, além Tim Branyen, desenvolvedor de software51.
Figura 8 – ReConstitution 2012 – Sosolimited (2012). Captura de tela do sistema
Disponível em: <http://thecreatorsproject.com/gallery/sosolimited/>. Acesso: 15 jan. 2013.
O projeto inverte a posição do público normalmente estudado por grandes empresas
que criam estratégias de marketing baseadas em seu histórico de compras, traçando perfis
detalhados dos consumidores, ou, ainda, usando o caso das campanhas eleitorais, revelam a
receptividade em determinada região ou grupo social de tal campanha, usando pesquisas de
intenção de voto. Na obra ReConstitution (2012), o público é dotado de uma ferramenta de
análise que empodera o cidadão comum com a capacidade principal da "comparação",
trazendo dados que, de outra forma, seriam imperceptíveis. Além disso, o
usuário/fruidor/eleitor ao deparar-se com tal tecnologia em funcionamento diante de si, é
convidado a refletir sobre as questões de privacidade e de rastreamento de informação que
vivemos atualmente, quando confiamos nossos dados pessoais a tantos serviços “gratuitos”52
na era da informação.
50 “A vida secreta dos pronomes”. Tradução nossa. 51 Fonte: ReConstitution 2012. Disponível em: <http://www.recon12.com/index.html>. Acesso em: 15 jan.2013. 52 Tais serviços gratuitos são as ferramentas de busca, indexadores de páginas web, servidores de correio eletrônico, redes sociais, dentre outros. Costumamos questionar qual a forma de ingresso destes produtos, uma vez que o usuário, geralmente, não paga pelo seu uso. Na realidade, existem diversas formas de monetização, sendo uma das mais conhecidas a venda de espaço publicitário personalizado. O Gmail, ferramenta gratuita de correio eletrônico da Google, imprimi anúncios relacionados ao conteúdo das mensagens trocadas entre seus usuários. Ou seja, se o usuário envia um convite a um colega para uma partida de tênis, por exemplo, ao lado desta mensagem o destinatário poderá receber ofertas de lojas desportivas de sua região, espaços para a prática do esporte, ou venda de ingressos para o campeonato regional. Portanto, a informação que trocamos nestes serviços são utilizadas de muitas formas, detectando tendências de mercado, podendo ser até mesmo
43
Muitas vezes, é difícil de identificar a diferença entre um projeto multi e um projeto
interdisciplinar. Sabemos que para haver a interdisciplinaridade é necessário o
compartilhamento de metodologias que, no exemplo trazido anteriormente, acreditamos ser a
metodologia da informática (por meio da criação do software que coordena a geração das
estatísticas), do "desenho de interfaces e ergonomia" (que determina a forma como as
informações serão exibidas na tela e como os usuários podem manipular cada modo de
exibição) e a metodologia da psicologia (através das análises textuais, que indicam o
comportamento de cada personagem). Já a “nova disciplina”, criada a partir da fusão das áreas
envolvidas, é a própria obra, híbrida em si mesma, que entrelaça as diversas informações e
que pode ser manipulada livremente pelo usuário, através de seu navegador web. Esta obra
apresentou uma forma criativa de uso da tecnologia para abordar um tema importante como o
da privacidade, usando como pano de fundo uma das eleições presidenciais mais relevantes da
atualidade. O entrelaçamento interdisciplinar permite um envolvimento profundo entre as
áreas, atingindo resultados que não seriam possíveis individualmente. Portanto, consideramos
que esta iniciativa adotou uma metodologia interdisciplinar. A seguir, veremos como se dá a
metodologia transdisciplinar.
2.1.3 O Transdisciplinar
A metodologia transdisciplinar, como as metodologias vistas anteriormente, ocupa os
interstícios entre as disciplinas, colocando-as em contato. No entanto, aqui, existe o
“compartilhamento de metodologias unificadoras, construídas mediante a articulação de
métodos oriundos de várias áreas do conhecimento” (DOMINGUES, 2005, p. 25) e a
ocupação dos espaços indefinidos entre as disciplinas se dá de tal forma que novas disciplinas
podem ser criadas ou não. O transdisciplinar caracteriza-se pelo “movimento, o indefinido e o
inconcluso do conhecimento e da pesquisa” (DOMINGUES, 2005, p. 25).
O termo transdisciplinar foi utilizado pela primeira vez por Jean Piaget no workshop
Interdisciplinarity – Teaching and Research Problems in Universities53, em 1970, quando
discutindo com Erich Jantsch e André Lichnerowicz, em um evento organizado pela OECD54,
vendidas, quando não infringirem os termos de privacidade de cada serviço.(Fonte: Will Social Networks on the Web Ever Make Money? Disponível em: <http://www.forbes.com/2009/02/19/facebook-myspace-twitter-linkedin-opinions-contributors_zuckerberg_internet.html>. Acesso em: 15 jan. 2013). 53 Interdisciplinaridade –Os Problemas de Pesquisa e Educação nas Universidades. Tradução nossa. 54 “Organization for Economic Cooperation and Development”, Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento. Tradução nossa.
44
em colaboração com o Ministério de Educação Francês e a Universidade de Nice. Na ocasião,
Piaget citou a, Esperança de ver um estágio superior ao da interdisciplinaridade que seria ‘transdisciplinar’, ou seja, que não estará limitado a reconhecer as interações e\ou reciprocidades entre as pesquisas especializadas, mas que irá localizar estas ligações dentro de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as disciplinas55 (PIAGET, 1972, p. 144 apud NICOLESCU, 2008, p. 1, grifo nosso).
Segundo o físico teórico romeno Basarab Nicolescu, Piaget se contradiz quando usa a
expressão sistema total, que remete à criação de uma super ou hiperdisciplina, enquanto que a
ideia da transdisciplinaridade é justamente extravasar as fronteiras disciplinares, em um
sistema aberto. É importante salientar que a transdisciplinaridade não exclui a
disciplinaridade. Existe uma relação de complementaridade entre as abordagens multi, inter
(consideradas disciplinares) e a transdisciplinar.
Com a finalidade de instrumentalizar a metodologia transdisciplinar, Nicolescu (2008)
propõe uma metodologia embasada em três axiomas: o axioma ontológico (relativo aos níveis
de realidade do sujeito e aos níveis de realidade do objeto), o axioma lógico (garante que a
passagem de um nível de realidade a outro se dá a partir da lógica do “terceiro incluído”) e o
axioma epistemológico (leva em conta a totalidade dos níveis de realidade, em que um nível
existe somente devido à existência simultânea dos demais níveis como um todo).
O axioma ontológico trata dos níveis de realidade, a partir de uma abordagem da física
quântica, quando um conjunto de sistemas não varia quando imerso em certo conjunto de leis,
porém apresenta um comportamento diferente quando submetido a outro grupo de regras.
Portanto, existem dois níveis de realidades diferentes no momento em que ocorre uma
descontinuidade ao passar-se de uma realidade à outra. Este entendimento abre portas a um
novo princípio de relatividade, vindo da pluralidade complexa e da unidade aberta nesta
abordagem: “nenhum nível de Realidade constitui um lugar privilegiado de onde é possível
entender todos os outros níveis de Realidade” (NICOLESCU, 2008, p. 7). Não se trata de uma
abordagem hierárquica. Os espaços entre um nível de realidade e outro são chamados de
“zonas de não-resistência” e fazem o papel do “terceiro incluído” entre o objeto
transdisciplinar e o sujeito transdisciplinar. Portanto, a existência do terceiro incluído na
figura das “zonas de não-resistência” permite fugir da lógica clássica binária, que não tolera
55 “[…] we hope to see succeeding to the stage of Interdisciplinarity relations a superior stage, which should be ‘transdisciplinary’, i.e. which will not be limited to recognize the interactions and or reciprocities between the specialized researches, but which will locate these links inside a total system without stable boundaries between the disciplines”. Tradução nossa.
45
contradições do “sim” e do “não”, da existência única do “A e não-A”, permitindo agora a
existência simultânea de “T” (o Terceiro incluído).
A figura abaixo representa graficamente a existência de uma terceira possibilidade “T”
no momento em que existem outros níveis de realidade (representados por NR1 e NR2).
Figura 9 - Representação gráfica da lógica do terceiro incluído
NICOLESCU (2008, p. 10)
A metodologia de Nicolescu está de acordo com a teoria da complexidade de Edgard
Morin, quando diz que a “complexidade horizontal se refere a um único nível de realidade
enquanto que a complexidade vertical se refere à múltiplos níveis de realidade”56
(NICOLESCU, 2008, p. 11).
Para Ivan Domingues (2005), não existem exemplos de experiências transdisciplinares
ainda, “trata-se de uma utopia” (DOMINGUES, 2005, p. 25). O mais próximo que houve,
segundo o autor, até hoje, foi a experiência da escola portuguesa de Sagres, na época das
descobertas, quando equipes de cartógrafos, engenheiros, matemáticos, astrônomos e
carpinteiros trabalhavam em conjunto para construir embarcações capazes de vencer os
desafios da navegação exploratória em mar aberto, incentivados por um rei visionário, Dom
Manuel. Era um momento de frouxidão disciplinar, com o emprego de um saber global,
agregador. A escola propriamente dita não existia fisicamente, tampouco seus professores ou
alunos: a escola se dava no trânsito entre a corte real e o cais do porto.
Trazendo a metodologia transdisciplinar ao contexto da artemídia, vemos uma
crescente mobilidade dos criadores em diversas áreas do conhecimento e igualmente oriundos
de diversas formações, produzindo obras em regime associativo, transitando por aquelas
56 “[…] the horizontal complexity, which refers to a single level of reality and vertical complexity, which refers to several levels of Reality.” Tradução nossa.
T
A Não-‐A
NR1
NR2
46
“zonas de não-resistência” citadas anteriormente. Os múltiplos níveis de realidade se
encontram quando os sujeitos envolvidos permitem infiltrações em suas realidades e tratam
das descontinuidades sem preconceitos. Nicolescu (2008, p. 14) afirma que “nossos
preconceitos são frutíferos: é precisamente a fusão dos preconceitos que nos leva à
verdade”57. É uma visão curiosa que adota um caminho integrador que finalmente faz emergir
a “verdade” ao unificar preconceitos individuais. Tais “preconceitos” são aqueles pré-
concebidos pelos interlocutores de um diálogo entre sujeitos de formações ou níveis de
realidade diferentes.
Conforme visto anteriormente, a artemídia envolve a participação ativa de
profissionais com capacidades complementares, passando pela experiência multidisciplinar do
E.A.T. de Billy Klüver e Rauschenberg, na década de 1960, seguindo pela experiência
interdisciplinar do projeto ReConstitution (2012) do coletivo norte-americano Sosolimited.
Acreditamos que as experiências de desenvolvimento de obras de artemídia em um contexto
colaborativo aberto constituem uma experiência transdisciplinar, quando há espaço para o
diálogo aberto, com trocas de metodologias entre os envolvidos, em que as possibilidades de
interação são regadas pelos diversos níveis de realidade que convivem em um mesmo espaço,
em busca de um ponto em comum. Para a pesquisadora Diana Domingues (2009, p. 273),
“[...]quando as disciplinas investigam as mesmas questões, todas as ciências se tornam uma
única ciência”.
Esta “integração entre ciências” através das trocas entre artistas e cientistas foi
institucionalizada, de certo modo, com a criação dos Medialabs, tendo como antecedente o
Media Laboratory do MIT58, fundado por Nicholas Negroponte, em 1985. Alguns anos mais
tarde (1993), o laboratório PARC59 de pesquisas da Xerox abriu um programa de residências
artísticas dentro de suas instalações, o PAIR (Parc Artist in Residence) que contava com
artistas que trocavam experiências diretamente com os cientistas dentro dos laboratórios da
companhia.
Segundo o pesquisador Stephen Wilson (2005, p. 238), da Universidade do Estado de
São Francisco60 (EUA), "[...] as artes podem funcionar como uma zona de pesquisa
independente. [...] Elas poderiam muito bem valorizar a pesquisa segundo critérios bem
diferentes dos mundos comercial e científico". O pesquisador acrescenta que,
57 “Our prejudices are fruitful: it is precisely the fusion of prejudices which opens towards truth.” Tradução nossa. 58 “Massachusetts Institute of Technology”. Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Tradução nossa. 59 “Palo Alto Research Center”. Centro de Pesquisa de Palo Alto. Tradução nossa. 60 “San Francisco State University”. Tradução nossa.
47
Os artistas podem ampliar o processo de pesquisa de muitas maneiras. Eles podem definir novos tipos de questões de pesquisa, fornecer interpretações não-ortodoxas dos resultados, assinalar oportunidades de desenvolvimento perdidas, explorar e articular implicações de amplo alcance da pesquisa, representar perspectivas de usuários potenciais e ajudar a comunicar as descobertas das pesquisas de maneiras eficazes e provocantes (WILSON, 2005, p. 239).
Atualmente, os hacklabs, os medialabs e os makerspaces são alguns exemplos de
espaços nos quais tais encontros entre arte, ciência e tecnologia acontecem. Veremos a seguir,
mais detalhes sobre estes.
2.2 Hacklabs, Medialabs e Makerspaces: espaços de colaboração
Os Hacklabs, os Medialabs e os Makerspaces são algumas denominações de espaços
de trabalho coletivo, que facilitam a colaboração entre os frequentadores na realização de
projetos, sejam eles individuais ou coletivos. Embora todos dialoguem com as ideias de
compartilhamento de conhecimento, existem algumas diferenças entre cada prática. A seguir,
veremos detalhes de cada um acompanhados de exemplos.
2.2.1 Hacklabs – laboratórios hacker
Os hacklabs podem ser traduzidos como “laboratórios hacker”. Para compreendermos
tais laboratórios, precisamos aproximar alguns pontos relevantes da evolução da computação
e de sua relação com os desenvolvedores e a sociedade, partindo dos laboratórios acadêmicos
até o contexto atual.
O termo hacker, de acordo com a Wikipedia, denomina aquele indivíduo que “acessa a
um sistema de computadores passando por seu sistema de segurança”61 ou “alguém que cria
customizações inovadoras ou combinações entre eletrônicos e equipamentos de
computação”62 ou, ainda, “alguém que combina excelência, brincadeira, inteligência e
exploração na realização de suas atividades.”63 A palavra também é utilizada como verbo:
“hackear” significa encontrar uma saída rápida para um problema, fazer uma “gambiarra”
para que algo funcione, nem sempre de forma elegante, mas não menos eficiente. O que se
61 “[...] someone who accesses a computer system by circumventing its security system.” Tradução nossa. (Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Hacker>. Acesso em: 20 fev. 2013). 62 “[…] who makes innovative customizations or combinations of retail electronic and computer equipment.” Tradução nossa. Ibidem. 63 “[…] who combines excellence, playfulness, cleverness and exploration in performed activities. “Tradução nossa. Ibidem.
48
torna relevante aqui é a chamada “ética hacker”, na qual constam elementos fundantes para
aquilo que hoje conhecemos como cultura livre.
Segundo o jornalista Steven Levy, em seu livro Hackers – Heroes of the Computer
Revolution64 (1984), o embrião da cultura hacker teve início no final da década de 1950, nos
laboratórios do MIT, quando a organização de estudantes Tech Model Railroad Club65
(TMRC) fazia experimentos com automação de cruzamentos de maquetes de linhas de trem,
usando uma série de relés de telefonia, entre outros equipamentos. Posteriormente, este grupo
passou a programar o TX-0, um dos primeiros computadores transistorizados do mundo,
localizado no Research Laboratory of Electronics66 (RLE) do instituto, usando,
principalmente, os horários noturnos disponíveis para desenvolver suas pesquisas. As
jornadas de trabalho eram muito longas e existia um clima de devoção em torno das
atividades. Conforme aponta Levy (1984), não houve um momento específico em que os
participantes desse movimento redigiram um manifesto, ou tentaram atrair novos membros. A
ética hacker reunia a “filosofia do compartilhamento, abertura, descentralização e ‘mão na
massa’ de qualquer modo para evoluir as máquinas e melhorar o mundo”67 (LEVY, 1984, p.
4).
Os softwares desenvolvidos pelos hackers eram compartilhados entre a comunidade
de usuários (naquele momento, a maioria vinculados a instituições de ensino superior), afinal,
segundo a ética hacker, a informação deveria ser livre. Portanto, quando uma equipe de
desenvolvedores do MIT portou o código assembler68 do TX-0 para o PDP-1 (uma migração
de uma ferramenta de uma plataforma para outra), a Digital Equipment Corporation (DEC),
fabricante do PDP-1, pediu aos desenvolvedores uma cópia do programa para que este
pudesse ser distribuído aos outros usuários do sistema. Para os programadores, isto foi uma
honra e a questão de royalties nunca foi trazida à tona: “quando você escrevia um bom
programa você estava construindo uma comunidade, não produzindo um produto” (LEVY,
1984, p. 47).
Com o desenvolvimento de suas atividades concentradas, principalmente, nos
laboratórios de pesquisa das universidades e com recursos vindos do ministério de defesa
64 Hackers – Heróis da revolução dos computadores. Tradução nossa. 65 Clube de Ferromodelismo Tecnológico. Tradução nossa. 66 Laboratório de Pesquisa em Eletrônica. Tradução nossa. 67 “[…] philosophy of sharing, openness, decentralization, and getting your hands on machines at any cost to improve machines, and to improve the world.” Tradução nossa. 68 O “assembler” é o programa que transforma o código fonte de um programa para os opcodes, que são as instruções em linguagem de máquina para a operação do processador.
49
norte-americano, como o departamento ARPA69, algumas organizações antiguerra
acreditavam que o movimento hacker estava sendo manipulado pelo governo para construir
tecnologias para novos armamentos. No final dos anos 1960, muitos jovens associavam os
computadores às máquinas de controle que seriam usadas contra os pobres e indefesos. Levy
(1984) traz um exemplo clássico no qual um consumidor reclama do erro no valor de uma
conta para pagar e o funcionário responde prontamente que foi “o computador que fez”, e
somente um esforço “muito grande” conseguiria corrigir aquele engano; algo que vemos,
ainda hoje, quando operamos máquinas em nossos empreendimentos e em alguns casos nos
tornamos reféns de seu funcionamento.
Além disso, tal devoção dos hackers por suas atividades os envolvia em um mundo
paralelo, no qual seus habitantes conviviam entre si, conversando em uma linguagem própria
e fria. Levy (1984) cita o professor Joseph Weizenbaum, que comenta em seu livro Computer
Power and Human Reason – From Judgment to Calculation (1976), sobre a forma de trabalho
dos “programadores compulsivos”: Eles trabalham até quase cair, vinte, trinta horas de cada vez. Sua comida, se eles providenciam, é trazida até eles: café, Coca-Cola, sanduíches. Se possível, eles dormem em camas próximo às impressoras. Suas roupas amarrotadas, suas faces não lavadas e não barbeadas, e seus cabelos despenteados comprovam que estão abstraídos de seus corpos e do mundo onde se movem (WEIZENBAUM apud LEVY, 1984, p. 113)70.
Weizenbaum traça, dessa forma, um contraponto sobre o envolvimento extremo dos
seres humanos com a tecnologia computacional. Entre 1964 e 1966, o professor desenvolveu
o software de inteligência artificial “ELIZA”, que dialogava com o usuário, interpretando o
papel de um terapeuta. O envolvimento emocional de certos “pacientes” com o software levou
o cientista a escrever o livro, no qual trata das diferenças entre as máquinas e os humanos,
decisões e escolhas. Segundo o autor, somente os humanos têm a capacidade de escolher:
uma ação que leva em conta julgamento, emoções, parâmetros os quais não são calculáveis
pelos computadores71.
Na década de 1970, surgiram iniciativas de popularizar o uso dos computadores na
sociedade, tal como o People’s Computer Company (PCC), idealizado por Robert Albrecht, 69 “Advanced Research Projects Agency”, ou Agência de Projetos de Pesquisa Avançados. Tradução nossa. 70 “They work until they nearly drop, twenty, thirty hours at a time. Their food, if they arrange it, is brought to them: coffee, Cokes, sandwiches. If possible, they sleep on cots near the printouts. Their rumpled clothes, their unwashed and unshaven faces, and their uncombed hair all testify that they are oblivious to their bodies and to the world in which they move.” Tradução nossa. 71 Fonte: Computer Power and Human Reason. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Computer_Power_and_Human_Reason>. Acesso em: 21 fev. 2013.
50
que editava um periódico de mesmo nome e que tratava sobre o poder dos computadores e seu
uso de forma pessoal, individual e criativa. O projeto também levava as máquinas às escolas
americanas, aproximando as crianças ao mundo da computação: Albrecht havia fechado um
acordo com a DEC, que lhe ofereceu um minicomputador PDP-8 e um par de terminais em
troca da redação do livro My Computer Likes Me72 para a empresa.
Figura 10 – Capa e sexta página do primeiro número do People’s Computer Company, (out. 1972)
Disponível em: <http://www.digibarn.com/collections/newsletters/peoples-computer/peoples-1972-
oct/index.html>. Acesso em: 26 fev. 2013.
Já o projeto Community Memory, criado por Lee Falsenstein, Efrem Lipkin e Mark
Szpakowski, em 1973, foi o primeiro BBS73 público, localizado diante da loja de discos
Leopold’s Records, em Berkeley (EUA), na qual as pessoas adicionavam mensagens sobre
diversos temas que podiam ser buscadas posteriormente pelos usuários. Esta iniciativa
possibilitou o primeiro contato com os computadores para muitas pessoas e estava em
sintonia com o movimento de contracultura da época: antiguerra, ecológico, de baixo custo,
decentralizado e de tecnologia amigável74. Segundo Falsenstein, houve uma aceitação acima
72 Meu Computador Gosta de Mim. Tradução nossa. 73 “Bulleting Board System” é um sistema em rede para exibição de mensagens, onde os usuários podem adicionar, ler e editar as informações a partir de um terminal remoto. 74 Fonte: Community Memory. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Community_Memory>. Acesso em: 25 fev. 2013.
51
da esperada por parte dos usuários, quando se davam conta de que não existia nenhum
intermediário entre eles e a máquina75.
Figura 11 – Terminal do Community Memory do lado de fora da Leopold’s Records, Berkeley, Califórnia, 1975
Lee Felsenstein. Disponível em: <http://www.computerhistory.org/revolution/the-web/20/377/2046>. Acesso em
25 fev. 2013.
O uso da linguagem de programação BASIC76 foi responsável por disseminar o uso
dos computadores a não-cientistas, por se tratar de um conjunto de instruções que se
aproximavam à língua inglesa, tornando-a mais compreensível para o público geral. É
importante lembrar que, nesta época, os computadores não tinham uma interface gráfica77 e
precisavam ser programados para serem utilizados. Portanto, existiam revistas especializadas
que traziam listagens de programas que deviam ser escritos em BASIC, para então serem
executados pela máquina. Alguns hackers mais ortodoxos, da “primeira geração” do final da
década de 1950, não aceitavam o uso de tais linguagens, porque sua “estrutura limitada não
encorajava o acesso máximo à máquina e diminuía o poder dos programadores”78 (LEVY,
1984, p. 139).
As iniciativas trazidas anteriormente deram início a um movimento de aproximação
amistosa entre os computadores e o público geral. Com o surgimento dos microprocessadores,
alguns engenheiros passaram a projetar os primeiros microcomputadores, que utilizariam
aqueles componentes como unidade central de processamento (CPU), com um preço muito
75 Lee Falsenstein: The First Community Memory. Disponível em: <http://www.computerhistory.org/revolution/the-web/20/377/2328>. Acesso em: 26 fev. 2013. 76 “Beginner’s All-purpose Symbolic Instruction Code”, ou Códigos de Instrução Simbólicos de Propósito Geral para Iniciantes. Tradução nossa. (Fonte: BASIC. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/BASIC>. Acesso em: 25 fev. 2013). 77 Comentado no capítulo 1.2 deste trabalho. 78 “its limited structure did not encourage maximum access to the machine and decreased a programmer's power”. Tradução nossa.
52
inferior ao dos computadores da época. Foram iniciativas de pequenas empresas como a
MITS79, localizada na cidade de Albuquerque, no Novo México (EUA), que produziu o
ALTAIR 8800 (1975), o qual funcionava com o chip 8080 da Intel. O lançamento deste
microcomputador abriu o mercado para outras empresas que passaram a produzir expansões
de hardware para esta plataforma, como placas de memória e dispositivos entrada e saída.
Estas ações foram impulsionadas pelo surgimento do Homebrew Computer Club (HCC), um
grupo de amadores que se encontravam periodicamente e estavam desenvolvendo seus
próprios computadores e periféricos os quais tinham interesse em trocar informações sobre o
tema entre pessoas com interesses semelhantes. A primeira reunião aconteceu em março de
1975 (LEVY, 1984). Estes encontros ainda não haviam sido chamados de hacklabs, porém
envolviam a ética hacker de compartilhamento de informação, de colaboração e “mão na
massa”80. Os membros do grupo compartilhavam o entusiasmo pela tecnologia, com um certo
caráter libertário, de trazer a tecnologia ao alcance de todos81.
Os primeiros hacklabs surgiram junto ao movimento mídia ativista e de squatters82 na
Europa, dando suporte às atividades destes centros, criando infraestrutura e usando a
tecnologia como meio de expressão. O Chaos Computer Club (CCC), por exemplo, fundado
em 1981, é um exemplo vinculado ao Komumne I, um centro ocupado autônomo de Berlim.
Em 1984, a agência de telecomunicações alemã Deutsche Bundenpost detinha o
monopólio da telefonia do país e cobrava preços altíssimos por um modem83. Além disso,
conectar um modem sem o selo oficial da companhia à rede telefônica tornou-se um crime
que poderia levar a até cinco anos de prisão. Os hackers do CCC resolveram criar um modem
próprio para acessar o serviço BTX (um aparelho que combinava o telefone a um televisor e
um teclado, criando uma rede básica de computadores). Tal sistema oferecia a possibilidade
de realizar a transferência de pequenas quantias de dinheiro, para efetuar doações ou contratar
alguns serviços com o valor máximo de 9,99 Marcos alemães. Os membros do CCC foram
capazes de descobrir a senha do banco de Hamburgo e realizaram várias doações do banco 79 “Model Instrumentation Telemetry Systems”, ou Sistemas Telemétricos de Instrumentação Modelo. Tradução nossa. O MITS começou suas atividades criando luzes “traçantes” para hobbistas que criavam foguetes caseiros, que permitiam que a trajetória dos foguetes fossem fotografadas, passando para a produção de calculadoras digitais posteriormente. 80 “Hands-on”. Tradução nossa. 81 Este tom político era muito enfatizado por Fred Moore, um dos idealizadores do HCC, embora o grupo tivesse uma forte tendência focar-se nos desafios técnicos (LEVY, 1984). 82 Os squatters são denominados aqueles indivíduos que ocupam áreas ou alguma edificação abandonada ou desocupada. No Brasil, podemos identificar as favelas ou o movimento sem-terra como um movimento de squatters, por exemplo. (Squatting. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Squatting >. Acesso em: 22 fev. 2013). 83 Modem (MOdulador-DEmodulador) é um equipamento usado para modular e demodular um sinal analógico para codificar informação digital em um tráfego de informações entre dois pontos. Quando o acesso à Internet era predominantemente feito através de conexão discada, os computadores obrigatoriamente efetuavam a conexão, utilizando um Modem.(Fonte: Modem. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Modem >. Acesso em: 23 fev. 2013).
53
para a conta do clube no valor de 9,99 cada uma, somando 134 mil Marcos. No dia seguinte, o
grupo devolveu o dinheiro diante da imprensa, alertando sobre os problemas de segurança do
sistema. Tal feito chamou a atenção do público para a palavra “hacker”, que não carregou
nenhum tom negativo, uma vez que serviu para mostrar a vulnerabilidade do sistema84.
Figura 122 - Wau Holland, cofundador do CCC, operando um modem de acoplador acústico em uma cabine telefônica
Tim Pritlove. Disponível em: < http://www.nycresistor.com/index.php?s=ccc%20history > Acesso em: 23 fev. 2013
Atualmente, os termos hacklabs e hackerspaces são utilizados como sinônimos; no
entanto, os últimos são espaços que funcionam, geralmente, dentro de alguma instituição, ou
na configuração de um clube onde os membros arcam com uma taxa para custear seus gastos
mensais, o que acaba dando um sentido diferente àquela “liberdade” relacionada à gênese dos
hacklabs, que tinha um viés mais político e anárquico, constantemente, localizados em
centros sociais ocupados, autônomos, mantidos por voluntários e provendo acesso livre aos
computadores e à internet (YUILL, 2008).
Sabemos que atualmente o acesso à tecnologia computacional ainda é deficiente em
nosso país e que precisamos dar condições para que a informação seja distribuída mais
uniformemente entre todos. Porém, também, é sabido que encontramos com cada vez mais
frequência pontos de acesso a computadores conectados à internet, as chamadas lan-houses
ou cybercafés, onde podem-se realizar as mais diversas operações, desde o pagamento de
contas e consulta de informações legais até votações online incentivadas pela mídia de massa,
gerando ainda mais tráfego ao redor das mesmas opiniões, porém, desta vez, com um tom de
84 Disponível em: <http://hackerspaces.org/static/The_Beginning.zip>. Acesso em: 23 fev. 2013.
54
“liberdade” pois, ao invés de escolher o conteúdo com o controle remoto, agora, a ação pode
ser feita também com o teclado do computador. Portanto, talvez o foco da questão já não seja
mais o acesso, mas sim o "conteúdo". Não podemos desperdiçar o potencial de uma mídia
interativa, um instrumento que pode “tocar muitas notas”, mas que insiste em um único estilo,
tendo um comportamento de mídia de massa, com um emissor e muitos receptores.
A “ética hacker”, comentada ao longo das últimas páginas, pode muito bem ser
aplicada no dia a dia, mesmo longe dos computadores: na colaboração interpessoal, no
compartilhamento de informação que, muitas vezes, fica “criptografada” para uma certa fatia
da população, na forma de burocracia intrincada no espírito “mão na massa” de buscar
soluções e atacar as dificuldades da forma que for possível, além da devoção por algo que
acreditamos, buscando criar um mundo melhor.
Ao traçar uma evolução do movimento hacker, identificamos alguns padrões que
parecem acontecer ciclicamente. Inicialmente, existiu o desafio técnico de ampliar as funções
de uma máquina que teria uso estritamente científico e militar a outras frentes, tornando-a
mais acessível e compartilhando as conquistas com o restante da comunidade. Logo após,
houve uma busca por aproximar tais máquinas ao público geral, através de terminais
disponibilizados em lugares “comuns”, dotados de aplicações sociais, como trocas e consultas
de mensagens. A seguir, houve um movimento pela distribuição massiva dos terminais e a
simplificação de sua linguagem, ou seja, notamos a existência de fluxos de disseminação de
tecnologia e abertura de conhecimento promovidos pelo movimento hacker.
Atualmente, o movimento é o de "conscientização" e de "empoderamento", uma vez
que os computadores já são realidade para uma grande fatia da população e atingimos um
nível de uso passivo da ferramenta, quando somos cada vez mais usuários, consumidores de
tecnologia, incentivados a comprar para poder usufruir dos recursos mais modernos. A
artemídia contribui para questionar esta prática, ao fazer uso destas ferramentas técnicas de
forma criativa, exercitando o diálogo entre desenvolvedores de áreas diferentes, buscando
uma compreensão que deve envolver, sobretudo, respeito. Vejamos a seguir o caso dos
medialabs.
2.2.2 Medialabs – laboratórios de mídia
Os Medialabs, em sua tradução literal, significa “laboratórios de mídia”. Estes
laboratórios são espaços de investigação que tratam das formas de comunicação relacionadas
com as novas mídias, abertos a experimentações relacionadas à cultura livre, à arte, aos
55
espaço urbano, à cultura digital, à multimídia, entre outros. Geralmente, são espaços que
praticam a autogestão, podendo estar vinculados a órgãos públicos (como o caso do Medialab
Prado, de Madri, que funciona com investimento do setor das artes da prefeitura da cidade85),
ou instituições de ensino (como o MIT Media Lab, citado anteriormente, que opera,
atualmente, com cifras anuais de aproximadamente 35 milhões de dólares, patrocinados por
diversas empresas de alta tecnologia, compondo um cenário de pesquisa singular e, deve-se
dizer, com um viés notoriamente comercial86). Tais ambientes são caracterizados pela forma
de trabalho distribuído, que prioriza a "prática" sobre a teoria e pelo fluxo de informação
entre os participantes que misturam, constantemente, as posições de aluno X professor, a
ponto de dissolver estas barreiras.
Além disso, o movimento DIY87 (faça você mesmo) aliado às possibilidades de
intercâmbio das redes sociais online especializadas88 permite o aprendizado e a troca de
informação entre seus membros. A lógica do software livre é empregada em grande parte dos
projetos, através da prática do compartilhamento de resultados e publicação de documentação
detalhada do processo de criação de cada caso. Ao realimentar esta rede, outras ideias são
desenvolvidas, baseando-se naqueles resultados obtidos anteriormente, num espírito de
evolução do que já foi feito e que pode ser conduzido a outros níveis de desenvolvimento.
Diversos centros e instituições de ensino de artemídia adotam essas metodologias em
suas atividades. O espaço Eyebeam – Art + Technology Center, localizado na cidade de Nova
Iorque, é uma instituição sem fins lucrativos, que oferece residências artísticas e laboratórios
com ferramentas para a pesquisa e experimentação no campo das novas mídias e das
chamadas “novas tecnologias”. Conforme mencionado em sua página oficial, o centro
Eyebeam,
[...] desafia a convenção, celebra o hack, educa a próxima geração, encoraja a colaboração, oferece gratuitamente suas contribuições para a comunidade e convida
85 Qué es – Medialab-Prado Madrid. Disponível em: <http://medialab-prado.es/article/que_es>. Acesso em 21 jan. 2013. 86 Fonte: Quick Facts | MIT Media Lab. Disponível em: <http://www.media.mit.edu/about>. Acesso em: 21 jan. 2013. 87 “Do-it-Yourself”. Tradução nossa. O termo está relacionado ao movimento punk de contracultura nascido no final da década de 1960, quando os grupos musicais produziam suas próprias gravações, distribuíam seus discos e editavam fanzines para divulgação de seus trabalhos independentemente do ecossistema musical existente. 88 No Brasil, existe a comunidade online “Laboratório de Garagem” (Disponível em: <http://labdegaragem.com>. Acesso em 21 jan. 2013), uma das maiores do ramo no país, onde os usuários trocam informações gratuitamente nos fóruns de discussões e são convidados a adquirir os componentes e kits de desenvolvimento necessários para seus projetos na loja online do grupo. É uma prática comum adotada por outros empreendimentos online, tais como os norte-americanos Sparkfun (Disponível em: <https://www.sparkfun.com>. Acesso em 21 jan. 2013) e Adafruit Industries (Disponível em: <http://www.adafruit.com>. Acesso em 21 jan. 2013).
56
o público a compartilhar em um espírito de abertura: código aberto, conteúdo aberto e distribuição aberta (EYEBEAM, 1997, s\p).89
Já o programa ITP90, da Universidade de Nova Iorque91, começou em 1971, a partir da
criação do Alternate Media Center92 (AMC), por George Stoney e Red Burns, com o intuito
de explorar novas formas de comunicação e expressão. Atualmente, o curso conta com
professores de diversas formações, com especial ênfase no desenvolvimento de interfaces
físicas, linguagens de programação, animação e vídeo. Em muitas disciplinas, os estudantes
devem publicar relatórios em seus websites pessoais ou nas páginas dos cursos, que
transformam-se em repositórios de referência93 para a comunidade de pesquisadores da área.
Podemos citar como exemplo a página do Sensor Workshop94 do ITP, na qual a turma atual
(em andamento) é responsável pela manutenção das informações existentes, que são
revisitadas e incrementadas pelos próprios alunos. É um método interessante, pois reúne a
informação em um único lugar, proporcionando a interconexão entre os alunos de diferentes
períodos, seguindo a “fórmula” da produção de conhecimento em regime de colaboração
praticada em rede na atualidade. Além disso, a possibilidade de revisar o trabalho realizado
por colegas numa plataforma aberta, distribui a função de correção, num sistema que busca a
homeostase – algo que pode-se comprovar em sistemas globais como a Wikipedia95.
A figura a seguir mostra um exemplo de uma das páginas editadas por um dos alunos
que, nesse caso, traz dados sobre o funcionamento e os usos de sensores de gás. As
informações podem ser editadas por todos, criando um histórico evolutivo de atualizações.
89 “[…] challenges convention, celebrates the hack, educates the next generation, encourages collaboration, freely offers its contributions to the community, and invites the public to share in a spirit of openness: open source, open content and open distribution.” Tradução nossa. (Fonte: About | devbeam.org. Disponível em: <http://www.eyebeam.org/about>. Acesso em 26 jan. 2013). 90 “Interactive Telecommunications Program”, ou Programa de Telecomunicações Interativas. Tradução nossa. (Fonte: <http://itp.nyu.edu/sigs/program/history/>. Acesso em 29 jan. 2013). 91 “NYU”, ou “New York University”. Tradução nossa. 92 Centro de Mídia Alternativo. Tradução nossa. 93 Podemos considerar a Internet como o grande repositório agregador de informações da contemporaneidade, quando as ferramentas de busca (como Google, ou Yahoo!) são capazes de retornar praticamente qualquer conteúdo presente em suas páginas em frações de segundo. Além disso, existem serviços que facilitam a organização de informação e que são mantidos por comunidades, como o caso das páginas Wiki, com o maior exemplo da Wikipedia (Disponível em: <http://www.wikipedia.org>. Acesso em: 29 jan. 2013), ou ainda, no campo do desenvolvimento de software livre, a comunidade Github (Disponível em: <https://github.com>. Acesso em: 29 jan. 2013), no qual vários programadores mantêm o código-fonte de seus trabalhos disponíveis para serem consultados, analisados e alterados pela comunidade. 94 Workshop de Sensores. Tradução nossa. (Disponível em: <http://itp.nyu.edu/physcomp/sensors/>. Acesso em: 30 jan. 2013). 95 Disponível em: <http://www.wikipedia.org>. Acesso em: 31 jan. 2013.
57
Figura 13 - Referência de um sensor de gás, gerada por um aluno do workshop
. Disponível em: < http://itp.nyu.edu/physcomp/sensors/Reports/GasSensors>. Acesso: 30 jan. 2013.
No Brasil, existem grupos voltados para a investigação e ensino de artemídia, que
atuam tanto na esfera acadêmica, quanto através de coletivos independentes ou com
investimento de setores públicos. O grupo LabOCA (Laboratório de Computação e Artes),
por exemplo, “é um projeto de laboratórios nômades com o objetivo de ensinar e pesquisar
sobre o uso da ciência da computação para fins artísticos”96 criado por Jarbas Jácome,
Ricardo Brasileiro e Jerônimo Júnior, no ano de 2010. Esta iniciativa independente possibilita
que os integrantes produzam obras coletivamente a cada encontro, priorizando a prática sobre
a teoria em um espírito de "apropriação tecnológica". Os participantes dos workshops
mantêm-se em contato, posteriormente, através de um grupo de discussões, no qual diversos
tópicos seguem em debate após os encontros presenciais.
Figura 14 – Oficina do grupo LabOCA e Jorge Crowe durante o FILE 2010, São
Paulo
Disponível em: < http://flic.kr/p/8oZ6MU >. Acesso em: 6 mar. 2013.
96 Disponível em: <http://olaboca.wordpress.com>. Acesso em: 29 jan. 2013.
58
Dentro da esfera pública, podemos citar o laboratório LABMIS, vinculado ao Museu
da Imagem e do Som da cidade de São Paulo e que promove a “colaboração coletiva,
compartilhando o espírito de criação e distribuição livres da cultura digital”97, além de lançar
editais públicos convocando artistas para desenvolver seus trabalhos na estrutura do
laboratório, em um programa de residência artística. Os artistas residentes contam com
acompanhamento teórico e prático durante o desenvolvimento de suas obras.
Na academia, podemos apontar o grupo NANO (Núcleo de Arte e Novos
Organismos), que atua no âmbito da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ, produzindo pesquisas na intersecção entre arte,
tecnologia e ciências, buscando “consolidar um espaço transdisciplinar para a reflexão e
fomento de novos modelos cognitivos com base na prática e trocas dialógicas com foco nas
artes assistidas pelas tecnologias da comunicação/informação”98.
Tais pesquisas fazem uso de metodologias de diversas disciplinas, de acordo com a
demanda de cada trabalho artístico em criação. Um dos projetos desenvolvidos se chama
“Telebiosfera. Experimento entre arte, natureza e telemática”99, no qual o grupo propõe a
conexão telemática entre dois pequenos terrários em que as plantas devem transmitir
informações de seu microecossistema entre si. Entre os pontos metodológicos listados no
projeto constam “encontros transdisciplinares”, nos quais artistas e pesquisadores são
convidados a trocar experiências em debates abertos ao público, buscando dar visibilidade às
práticas experimentais que conduzem à produção de conhecimento científico e o
entrecruzamento de áreas do saber. O processo de pesquisa é documentado e colocado à
disposição da comunidade para consulta.
97 LABMIS | MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Disponível em: <http://www.mis-sp.org.br/labmis>. Acesso em :31 jan. 2013. 98 Fonte: Sobre | NANO. Disponível em: <http://www.nano.eba.ufrj.br/nano/>. Acesso em: 31 jan. 2013. 99 Telebiosfera. Experimento entre arte, natureza e telemática. Disponível em: <http://www.nano.eba.ufrj.br/2013/01/telebiosfera-experimento-entre-arte-natureza-e-telematica/>. Acesso em: 19 fev. 2013.
59
Figura 15 – Telemediações Open Lab: experimentações com medidas elétricas em organismos vivos
Disponível em: <http://www.nano.eba.ufrj.br/2011/04/telemediacoes-open-lab/>. Acesso em: 20 mar. 2013.
Os exemplos trazidos anteriormente ilustram exemplos de laboratórios de mídia
independentes, laboratórios vinculados a órgãos públicos e laboratórios baseados em
estruturas acadêmicas, dentro de universidades. Os makerspaces também constituem espaços
de trabalho coletivo e associativo; vejamos a seguir suas características.
2.2.3 Makerspaces – espaços de criação
Os makerspaces100, ou fablabs101, como também são chamados, são espaços de
trabalho coletivo que funcionam, geralmente, através do pagamento de uma taxa, mensal ou
diária, onde os membros compartilham ferramentas, tecnologias e conhecimento para
produção de protótipos de ideias e produtos. O termo também é usado como sinônimo dos
hackerspaces e de fato coloca em prática a ética hacker de compartilhamento de informação,
conhecimento livre e “mão na massa”, porém com uma maior ênfase na criação de objetos
físicos, do que software.
Segundo Chris Anderson, autor do livro Makers: The New Industrial Revolution102
(2012), somos todos makers desde a infância: “Se você gosta de cozinhar, você é um maker
de cozinha e seu fogão é sua bancada [...]. Se você gosta de plantar, você é um maker de
jardins.”103 (ANDERSON, 2012, p. 13). Com a prática do compartilhamento da era web,
100 Espaços de criação. Tradução nossa. 101 Laboratórios de fabricação. Tradução nossa. 102 Makers: A Nova Revolução Industrial. Tradução nossa. “Makers” significa “fabricantes” ou “criadores”. 103 “If you love to cook, you’re a kitchen Maker and your stove is your workbench […]. If you love to plant, you’re a garden Maker.” Tradução nossa.
60
muitos criadores passaram a publicar seus avanços na forma de “receitas passo a passo”104
textuais ou através de vídeos explicativos. Dessa forma, muitos projetos passaram a ser
desenvolvidos coletivamente, aprimorados, conectando seus criadores virtualmente. Os
makerspaces aproximaram os criadores “fisicamente” em um mesmo local.
Nestes espaços, os frequentadores podem utilizar ferramentas de desenho assistido por
computador (CAD105), máquina de corte laser ou as impressoras 3D, por exemplo. Os objetos
devem ser previamente projetados em um software específico para, então, serem enviados
para fabricação. No entanto, o principal elemento dos makerspaces é o componente humano:
sem a possibilidade de aprendizado coletivo, estes projetos não passariam unicamente de
ideias e é justamente no contato interpessoal que a inovação acontece.
Os makerspaces contam com atividades de formação para capacitar seus membros a
usar as ferramentas que o espaço dispõe, mas, também, mantêm sua programação aberta a
propostas sugeridas pelos próprios usuários, que oferecem oficinas e encontros acessíveis
àqueles que estiverem interessados em aprender determinado tema. O Artisan’s Asylum106,
por exemplo, é um dos maiores makerspaces da costa leste dos Estados Unidos, uma
organização sem fins lucrativos que “promove o ensino, aprendizado e prática de artesanato
de todas variedades”107 e pretende, conforme cita em sua página na web, ajudar as pessoas a
se sustentarem, a partir de suas criações108 (os workshops que acontecem no espaço podem ser
gratuitos ou pagos e funcionam mediante a inscrição antecipada em um sistema online até
esgotar o limite de vagas).
104Também, conhecidos como “how-to’s”. 105 “Computer Aided Design”. Tradução nossa. 106 Asilo do Artesão. Tradução nossa. O espaço fica localizado na cidade de Somerville, no estado de Massachusetts, EUA. 107 “[…] promote the teaching, learning and practicing of craft of all varieties.” Tradução nossa. (Fonte: About Artisan’s Asylum Inc. Disponível em: <http://artisansasylum.com/?page_id=215>. Acesso em: 1 mar. 2013.) 108 Fonte: <http://artisansasylum.com/?page_id=677>. Acesso em: 2 mar. 2013.
61
Figura 16 – Etapa de testes do Projeto Hexapod, no makerspace Artisan’s Asylum
Chris Devers. Disponível em: < http://flic.kr/p/bYsz3b >. Acesso em: 6 mar. 2013.
Quando falamos do componente social dos makerspaces, queremos salientar a
importância das trocas de informação, dos encontros interculturais, da possibilidade de
aprendizado coletivo e de choques de ideias que não aconteceriam em outras circunstâncias.
Quando um mesmo espaço engloba ferramentas que podem ser aplicadas em áreas tão
diversas quanto o desenvolvimento de circuitos eletrônicos, projetos de joias, móveis, roupas
ou peças para bicicletas, eventualmente, surgirão colaborações entre pessoas de áreas
diversas, com resultados únicos e imprevisíveis. Além disso, os projetos que seguem a
cartilha do compartilhamento de informações, de “código aberto”, tendem a ter um
crescimento acelerado pela contribuição coletiva da comunidade. Chris Anderson (2012)
afirma que vivemos, atualmente, a terceira revolução industrial, quando conseguimos
combinar a produção de manufatura digital com a manufatura pessoal, quando os produtos
são desenhados digitalmente e podemos escolher sua saída entre “local” (imprimir na
impressora 3D caseira) ou “global” (quando enviamos a um centro com capacidade de
imprimir o produto em grande escala).
A revolução do movimento maker e das ferramentas de prototipagem disponibilizadas
em centros coletivos como os makerspaces é comparável ao desenvolvimento dos
microcomputadores na metade da década de 1980, quando a tecnologia passou a ser acessível
mais amplamente ao cidadão comum. A ética hacker de conhecimento livre permanece
latente no movimento de software livre e agora também com o conceito de hardware livre.
Dessa forma, novos modelos de negócio vêm sendo colocados em prática, sendo que a
propriedade intelectual não é cobrada e é permitido o compartilhamento da informação,
gerando outras fontes de ingresso, como o oferecimento de treinamento, suporte e mão de
obra especializada, dentre outros.
62
A empresa de software norte-americana Red Hat, por exemplo, está fundada na venda
de assinaturas de distribuições do sistema operacional de código-aberto LINUX, oferecendo
suporte técnico ilimitado e atualizações contínuas do sistema, enquanto conta com uma
grande comunidade de desenvolvedores voluntários que constantemente aportam melhorias
ao seu produto: uma inversão curiosa no modelo de negócios. Outro exemplo é a plataforma
de prototipagem de circuitos eletrônicos Arduino (mais detalhes no Anexo 2 deste trabalho)
produzida oficialmente na Itália. A companhia mantém o código-fonte de seu produto aberto
para que os usuários estudem, façam alterações e compartilhem os resultados com a
comunidade. Além disso, a licença permite a exploração comercial do hardware, que será
compatível com a plataforma, porém deve utilizar outro nome.
A possibilidade de consultar bibliotecas de conhecimento coletivo, representadas não
somente pelos verbetes da Wikipedia, mas também por repositórios de código-fonte de
software livre (como o Github109 ou o SourceForge110), de hardware livre (como o Open
Hardware Repository111), ou ainda, de “objetos livres” (como o Thingiverse112), estimula o
processo de criação dos desenvolvedores e realimenta a comunidade. Dessa forma, uma nova
economia se desvela com um forte vínculo social entre os usuários, que agora integram-se
mais intimamente às ferramentas que utilizam, podendo personalizá-las para que funcionem
da maneira que desejarem.
109 O Github funciona como uma rede social para desenvolvimento de software. Os usuários podem criar comunidades de desenvolvedores, trabalhando simultaneamente em um mesmo projeto, com o controle de diferentes versões do mesmo documento. Dessa forma, é possível voltar a estágios anteriores do desenvolvimento (fazer uma navegação na linha do tempo) para estudar o código ou criar algo diferente a partir daquela ideia. Disponível em: <https://github.com>. Acesso em: 5 mar. 2013. 110 Disponível em: <http://sourceforge.net>. Acesso em: 5 mar. 2013. 111 O site lista vários esquemáticos de projetos avançados de dispositivos eletrônicos. Disponível em: <http://www.ohwr.org>. Acesso em: 5 mar. 2013. 112 O sistema possibilita o compartilhamento de objetos que podem ser impressos nas impressoras 3D. O serviço é vinculado à empresa americana Makerbot, que produz uma das impressoras 3D mais utilizadas, atualmente. Disponível em: < http://www.thingiverse.com/>. Acesso em: 5 mar. 2013.
63
3. PRÁTICAS TRANSDISCIPLINARES EM ARTEMÍDIA
Este capítulo traz a descrição e a análise de cinco experiências de trabalho coletivo
relacionado à artemídia desenvolvida ao longo dos últimos três anos. Foram atividades
práticas de ensino e produção colaborativa, utilizando tanto software quanto hardware livre,
no formato de oficinas, hacklabs, projeto de instalações interativas e interfaces físicas, dentre
outros. Tais eventos foram selecionados por compor uma amostragem abrangente de
experiências em artemídia, em circunstâncias variadas.
O projeto Narrativas Digitais foi escolhido por empregar uma equipe numerosa de
pesquisadores, com formações e nacionalidades diversas aplicadas a um grupo de jovens de
uma comunidade de pescadores da Bahia. O “Laboratório de arte interativa: arte e interfaces”
foi selecionado por ser uma atividade vinculada a uma estrutura oficial de um curso inovador
no contexto do ensino superior brasileiro (os Bacharelados Interdisciplinares da UFBA),
reunindo estudantes cursando ênfases diversas como Artes, Humanidades, Saúde e Ciência e
Tecnologia. Já o Workshop Introdução à Computação Física com Arduino e Pure Data foi
abordado por trazer uma experiência de ensino de artemídia, através de uma iniciativa
independente em um espaço de coworking – que se relaciona com a forma de trabalho dos
makerspaces (abordados no item 2.2.3 deste trabalho). A experiência “Instalações interativas
da mostra Toque para Mover Sentidos” foi incluída na análise por se tratar de uma
experiência em artemídia com um fôlego maior, contando com oficinas e desenvolvimento de
cinco instalações interativas com grupos de alunos de dezesseis a dezenove anos de idade,
alunos de escolas públicas. Finalmente, a experiência “Hacklab Interfaces Físicas e
controladores DIY aplicados a performances sonoras e audiovisuais, utilizando ferramentas
livres” foi abordada por trazer uma experiência de hacklab (abordados no item 2.2.1 deste
trabalho), utilizando ferramentas de software e hardware livre vinculada a um festival de
cultura digital na cidade de Salvador.
Quando consideramos tais práticas como atividades transdisciplinares, levamos em
conta os axiomas propostos por Nicolescu (abordados no item 2.1.3 deste trabalho) nos quais
o físico cita a existência de diferentes níveis de realidade, da inexistência de hierarquia e da
lógica do “terceiro incluído”. Acredito que quando existem encontros interculturais entre
pessoas com históricos diferentes, é necessário estabelecer um “protocolo de comunicação”
(tomando a expressão emprestada das telecomunicações) que garanta a transmissão de
informação, usando as analogias necessárias, que possibilitem um diálogo livre de
preconceitos e que permitam a “emigração de teorias” (SANTOS, 1987, p.18), de uma área do
64
saber para outra. Segundo Paulo Freire, “educar-se é impregnar de sentido cada ato
cotidiano”, portanto, se não tivermos a sensatez de transformar nosso conhecimento em algo
que faça alguma conexão com o universo de nosso interlocutor, não estaremos comunicando-
nos com sucesso.
As atividades de trabalho coletivo em torno da artemídia possibilitam trocas entre
indivíduos com backgrounds diferentes e, quando as ferramentas de desenvolvimento se
tornam acessíveis a mais pessoas, as possibilidades de criação se ampliam e novas percepções
são lançadas sobre lugares já visitados. Sabemos que se, por exemplo, fizermos a experiência
de uma saída fotográfica em grupo a um espaço comum, ainda, que tenhamos o mesmo
equipamento, teremos imagens diferentes, maneiras individuais de contar histórias e
enquadrar percepções. Acredito que com a artemídia acontece algo parecido e aí reside o
grande crescimento: quando, a partir do diálogo entre pessoas com especialidades diferentes,
é possível rever seus conceitos com outros olhos, podendo chegar a conclusões que antes não
eram trazidas a primeiro plano. Vimos relatos, neste sentido, quando houve colaboração entre
Billy Klüver e Robert Rauschenberg, quando começaram a trabalhar juntos no E.A.T., na
metade da década de 1960 (visto no item 1.1.1 deste trabalho).
Dessa forma, vejamos, a seguir, como se deram tais experiências, dando início pelas
oficinas de Narrativas Digitais.
3.1 Narrativas Digitais / Cairu (BA)
O projeto “Narrativas digitais para a participação comunitária na gestão de
ecossistemas costeiros” foi uma atividade de extensão executada em colaboração entre a
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Coruña (UDC, Espanha),
realizada na vila de Garapuá, no município de Cairu (Bahia, Brasil) e, posteriormente, na
cidade de Aguiño (Galícia, Espanha), coordenada pelos professores Juan Freire (UDC /
Espanha) e Karla Brunet (UFBA / Brasil), durante o ano de 2010.
O objetivo da atividade foi proporcionar experiências de desenvolvimento de suas
próprias narrativas através dos meios digitais, buscando o fortalecimento de sua “identidade
individual e coletiva da comunidade, gerando mecanismos de coesão comunitária e
"empoderamento" de grupos de usuários para uma participação mais ativa nos processos de
65
cogestão”113. Para isso, foram desenvolvidas oficinas de mapeamento com GPS114, fotografia,
vídeo e áudio com alunos da Casa Familiar do Mar115, trazendo aspectos teóricos de cada
tema, desde a lembrança da existência dos satélites orbitando ao redor da Terra, passando por
linguagem de câmera e enquadramento até o funcionamento do áudio digital, sua conversão e
possibilidades de edição e tratamento. Todas as atividades geraram relatórios detalhados
listando o material utilizado, o desenvolvimento do trabalho de campo e a metodologia
empregada que foram publicados no website do projeto, juntamente com os slides das
apresentações das oficinas116.
A atividade desenvolvida em Garapuá contou com uma equipe de professores e alunos
das duas universidades, compondo um grupo com formações diversas, entre engenheiros,
oceanógrafos, zoólogos e jornalistas. Durante os três dias de ações, acompanhamos os jovens
no mapeamento dos espaços da comunidade, lugares de trabalho e lazer, conversando com os
moradores e documentando histórias que sobrevivem ao tempo, principalmente, através da
oralidade. O grupo total de alunos foi separado em quatro frentes de trabalho, cada uma
abordando uma das linguagens, sendo que as saídas de campo eram mistas (com um
integrante de cada linguagem) para que o material produzido fosse completo: incluindo
fotografias, vídeos, áudios e a trajetória criada pelo GPS.
Figura 17 – Detalhes sobre conversão analógico/digital, Oficina de áudio digital,
Garapuá, abr. 2010
.
113 Fonte: Sobre Narrativas Digitais – BR. Disponível em: <http://ecoarte.info/narrativas/sobre-narrativas-br/>. Acesso em: 9 mar. 2013. 114 “Global Positioning System”, ou “Sistema de Posicionamento Global”, tradução nossa. 115 Iniciativa patrocinada pela Fundação Odebrecht, beneficia jovens de 15 a 25 anos de idade, mesclando períodos de uma semana de aulas teóricas e práticas, em regime integral dentro do projeto, com duas semanas de aplicação de conhecimentos na propriedade familiar. Disponível em: <http://www.fundacaoodebrecht.org.br/Sala-de-Imprensa/Noticia/145/Casa-Familiar-do-Mar-inaugura-Infocentro#.UTv2laVcC6E>. Acesso em: 9 mar. 2013. 116 As apresentações estão disponíveis em postagens no website do projeto: Apresentação da oficina de áudio <http://ecoarte.info/narrativas/2010/05/apresentacao-da-oficina-de-audio/>, Apresentação das oficinas de imagem digital <http://ecoarte.info/narrativas/2010/05/apresentacao-das-oficinas-de-imagem-digital-fotografia-e-video/> e Apresentação da oficina de GPS e Geolocalização <http://ecoarte.info/narrativas/2010/05/apresentacao-oficina-gps-geolocalizacao/>. Acesso em: 9 mar. 2013.
66
Figura 18 – Trabalho em grupo, discutindo os lugares a serem visitados, Garapuá, abr. 2010.
Considero esta experiência como uma prática transdisciplinar em artemídia, pois
durante o processo de desenvolvimento do trabalho, houve diversas trocas entre os
facilitadores das atividades e os alunos. Segundo os relatos de alguns jovens, gravados em
vídeo, A equipe, apesar de estar ensinando, também se entrosou com a gente. [...] Você troca experiência. Vocês aprenderam com a gente, a gente aprendeu com vocês [...] Foi uma coisa participativa, porque todos participaram, trocaram opiniões, nos ajudaram no que a gente não sabia e a gente ajudou eles também da mesma forma. [...] A gente foi as primeiras pessoas que fizeram mapas aqui da nossa comunidade. Isso foi muito marcante pra mim.117
O conhecimento que estava sendo criado ali, não teria sentido algum se não pudesse
ser aplicado às nossas realidades e, neste ponto, as oficinas aceleram o processo, pois o tempo
de transformar a teoria em prática tende a ser bastante curto, quando comparado a outros
casos. Como aponta Duarte Fernández118, antropólogo espanhol que participou das atividades
em Garapuá,
À medida que os jovens iniciaram o trabalho de campo in situ, começaram a perceber em melhor grau aquilo que se pretendia e como deveria se desenvolver. A comunicação e informação se tornaram mais fluidas, e com isso gerou-se uma maior transparência, participação e interação social (FERNÁNDEZ, 2011, s\p).119
117 Trecho transcrito do vídeo “nd garapua569”, [4’50”-6’10”]. Disponível em: <https://vimeo.com/11159402>. Acesso em: 28 mar. 2013. 118 Antropólogo da Universidade de Coruña (Disponível em: <http://www.udc.es>. Acesso em 28 mar. 2013). 119 “A medida que los jóvenes iniciaron el trabajo de campo “in situ”, comenzaron a percibir en mayor grado aquello qué se pretendía y cómo se debería desarrollar. La comunicación e información se tornaron más fluidas, y con ello se generó una mayor transparencia, participación e interacción social”. Tradução nossa. Disponível em: <http://ecoarte.info/narrativas/2011/01/evaluacion-del-taller-de-narrativas-digitales-de-garapua/>. Acesso em: 29 mar. 2013.
67
Houve uma experiência especialmente marcante durante os dias de trabalho, quando
acompanhamos um grupo de pescadores até o mangue onde é feita a coleta de mariscos. Nesta
ocasião, atravessamos um longo trecho com a água acima do nível da cintura, para
compreender o funcionamento de um ecossistema vivo, usando a interface do corpo e seus
cinco sentidos.
Figura 19 – Mapeamento GPS da rota de coleta de marisco, Garapuá, abr. 2010.
Através do projeto de artemídia Narrativas Digitais, foi possível reunir profissionais
de áreas diferentes em torno de um tema comum: a criação de um relato de seu entorno,
produzido e narrado pelos próprios moradores daquela região. Pôde-se observar o êxito da
experiência ao manter as atividades conectadas à realidade local, com uma abordagem prática.
O encontro entre "níveis de realidades" distintos permitiu o compartilhamento de vivências e
metodologias de trabalho durante o andamento do projeto.
Verificou-se um certo desinteresse por parte dos participantes quando houve uma
apresentação expositiva inicial, provocado, provavelmente, pelos jovens que não conseguiram
relacionar a teoria com o que seria realizado posteriormente. No momento em que foi dado
início às saídas de campo, o grupo se mostrou mais motivado. Esta falta de atenção inicial
poderia ser minimizada, adotando uma dinâmica de grupo, para desinibir os presentes.
3.2 Laboratório de arte interativa: arte e interfaces / UFBA, Salvador (BA)
Durante o primeiro semestre de 2011, participei de atividades desenvolvidas na
disciplina “HACB12 – Laboratório de arte interativa: artes e interfaces” junto ao professor
Cristiano Figueiró do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos
68
(IHAC) da UFBA. O curso abordou o estudo das técnicas e dispositivos para o
desenvolvimento de interfaces físicas no contexto da arte interativa, utilizando a plataforma
de prototipagem eletrônica de código aberto Arduino120 e o ambiente gráfico de programação
em tempo real Pure Data121, também, software livre. A disciplina é ofertada como um crédito
optativo dentro do currículo dos Bacharelados Interdisciplinares122 (BIs) da universidade, com
ênfases em Artes, Humanidades, Saúde e Ciência e Tecnologia, constituindo, portanto, um
grupo bastante diverso de alunos.
Ao longo das 68 horas-aula, foram abordados conceitos básicos de eletrônica,
apresentando diferentes tipos de sensores e exemplos de obras interativas que fazem uso
destes componentes em seu funcionamento. Os encontros sempre aconteceram envolvendo a
teoria e a prática, com o acompanhamento dos alunos utilizando os computadores portáteis
cedidos pelo instituto. Como forma de avaliação, os alunos formaram grupos para produzir
uma instalação interativa ou uma performance, usando os conhecimentos abordados em sala
de aula, com temática de livre escolha. O desenvolvimento de tais trabalhos foi realizado a
partir da metade do curso em diante, ocupando o período das aulas para a pesquisa e produção
das peças.
Dentre os projetos apresentados, destacou-se um protótipo idealizado por um dos
grupos (composto por uma aluna cursando a ênfase em Saúde e um aluno cursando a ênfase
em Artes), no qual foi usado um aparelho terapêutico de eletroestimulação controlado por um
sistema projetado para coletar moedas. O projeto XOX – The Vending Body Machine
relacionou as máquinas de venda automatizadas ao corpo humano, criando uma conexão de
submissão e ironia do corpo ao capital. A instalação permite uma “conexão elétrica” entre o
público e o corpo do performer, que recebe uma descarga elétrica que contrai seus músculos,
provocando um movimento involuntário, no momento em que o visitante alimenta a máquina
com uma moeda de um real. A ideia surgiu unindo os interesses dos dois integrantes do
grupo, que foram garimpando soluções no decorrer dos encontros semanais. A seguir,
algumas imagens do desenvolvimento do trabalho.
120 Disponível em: <http://arduino.cc>. Acesso em: 10 mar. 2013. 121 Disponível em: <http://puredata.info>. Acesso em: 10 mar. 2013. 122 O Bacharelado Interdisciplinar é um curso novo oferecido pela UFBA desde o ano de 2009, com duração de três anos e uma formação inter, multi e transdisciplinar, que busca a integração dos conhecimentos tradicionalmente agrupados por matérias isoladas. O curso foi criado como uma primeira etapa de estudos universitários, em que após sua conclusão, o aluno pode optar pelo ingresso em um curso de progressão linear (o aluno conta com uma reserva de 20% das vagas anuais de cada curso) ou uma pós-graduação, desde que atenda aos requisitos de seleção. (O que é Bacharelado Interdisciplinar? Disponível em: <http://www.ihac.ufba.br/portugues/?page_id=5626>. Acesso em 17 mar. 2013.)
69
Figura 20 – Processo de desenvolvimento da instalação XOX – The Vending Body Machine. Salvador, jun. 2011.
A experiência de ensino em artemídia dentro do contexto acadêmico dos Bacharelados
Interdisciplinares foi desafiadora, pois encontramos alunos com interesses diversificados (pela
própria estrutura mista do curso), assim como diferentes níveis de conhecimento prévio,
portanto, os primeiros encontros foram mais expositivos, incorporando, gradualmente,
atividades mais práticas. Quando os encontros passaram a tratar, principalmente, do
desenvolvimento dos projetos em sala de aula, o trabalho configurou-se de forma mais
dinâmica, com atendimentos específicos para cada projeto. Os grupos puderam trocar
informações entre si, solucionando problemas semelhantes.
O maior obstáculo encontrado nesta atividade foi manter a atenção e a motivação do
grupo inteiro durante todo o andamento das atividades expositivas, visto que alguns alunos
estavam vendo certas partes do trabalho pela segunda vez, enquanto que outros não
demonstravam interesse em certos pontos do conteúdo. No momento em que passou-se à
parte prática de desenvolvimento das obras, com a separação da turma em grupos menores,
houve divisões de tarefas internas em cada grupo e o trabalho funcionou de forma mais
orgânica.
70
3.3 Workshop Introdução à Computação Física com Arduino e Pure Data / Nós
Coworking, Porto Alegre (RS)
O workshop Introdução à Computação Física com Arduino e Pure Data123 foi uma
iniciativa de ensino de artemídia organizada em parceria com o professor Tiago R. C. Lopes,
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e com patrocínio da mesma
universidade. As atividades foram realizadas nos dias 19 e 20 de dezembro de 2011 no Nós
Coworking124 de Porto Alegre (RS), um espaço que oferece estrutura física, tecnológica e de
serviços para profissionais que queiram usar suas dependências para desenvolver suas
atividades – um modelo muito parecido com o dos makerspaces, debatidos no item 2.2.3
deste trabalho. O workshop contou com seis horas totais, divididas em dois encontros de três
horas cada e houve uma chamada aberta aos interessados que, mediante o pagamento da
inscrição, receberam um kit básico com a placa de desenvolvimento Arduino, componentes
eletrônicos, cabos de conexão e uma matriz de contato para montagem dos protótipos durante
o andamento das atividades.
O grupo contou com 21 participantes no total, dentre eles, vários professores do curso
de Jogos Digitais da UNISINOS, assim como estudantes de Comunicação, Engenharia
Elétrica, Ciência da Computação, programadores e analistas de sistemas. O grupo
acompanhou a montagem dos experimentos propostos e trouxe contribuições em tópicos que
não estavam previstos como, por exemplo, um protótipo com um protocolo próprio para
transmissão de dados sem fio entre duas placas Arduino, desenvolvido por um dos alunos.
Portanto, a lógica dos hacklabs ocorreu em parte nesta experiência, quando alguns
envolvidos na atividade compartilharam seus conhecimentos, possibilitando diferentes
infiltrações no aprendizado dos demais. Notamos que a estrutura dos workshops tem um
caráter mais unilateral, quando o condutor da atividade deve conduzir os demais, através dos
tópicos propostos pela oficina. No entanto, a própria disposição do grupo no espaço (a forma
com que as mesas cadeiras são arranjadas no ambiente) contribui para maior interação entre
os participantes. No caso desta atividade, houve contribuições dos colegas entre si, embora a
duração total não tenha sido muito extensa, contando com dois encontros de quatro horas.
123 Disponível em: <http://ferkrum.com/arduino-poa/>. Acesso em: 18 mar. 2013. 124 Disponível em: <http://www.noscoworking.com.br>. Acesso em: 18 mar. 2013.
71
Figura 21 – Trabalho em equipe durante os experimentos do workshop, Porto Alegre, dez. 2011.
3.4 Instalações interativas da mostra Toque para Mover Sentidos / Oikabum! Escola de
Arte e Tecnologia, Salvador (BA)
A Oikabum! Escola de Arte e Tecnologia de Salvador é um programa do instituto Oi
Futuro, em parceria com a Cipó Comunicação Interativa125, voltado para jovens de
comunidades populares de dezesseis a dezenove anos de idade, estudantes de escolas
públicas. Cada turma de oitenta jovens participa de um ciclo de dezoito meses no qual recebe
formação em linguagens multimídia, com cursos gratuitos de Vídeo, Design Gráfico,
Computação Gráfica e Fotografia, assim como “conteúdos transversais importantes para o
aprendizado do jovem: Ser e Conviver, Oficina da Palavra, Arte e Tecnologia, Design Sonoro
e Comunicação Digital” (CIPÓ COMUNICAÇÃO INTERATIVA)126.
No início de junho de 2011, a escola lançou um edital interno voltado à arte interativa.
Os alunos participaram de uma série de atividades as quais deram embasamento ao edital
125 Disponível em: <http://cipo.org.br/>. Acesso em: 18 mar. 2013. 126 Disponível em: <http://cipo.org.br/portal/#>. Acesso em: 18 mar. 2013.
72
iniciado por um seminário de arte e tecnologia127, quando os jovens tiveram um primeiro
contato com vários tópicos relacionados à arte e à tecnologia, como instalações interativas,
vídeo-arte, performance e tecnologia, web art, intervenções urbanas, dentre outros. Após esta
etapa, os jovens participaram de uma oficina de redação de projetos para, então, submeter o
documento à avaliação e posterior divulgação dos selecionados. Os cinco projetos escolhidos
receberam uma quantia em dinheiro para produção das obras, envolvendo contratação de
serviços, transporte e alimentação que foram totalmente gerenciados por cada equipe.
Participei da fase de desenvolvimento dos projetos junto à colega Silvana Rezende128,
acompanhando os jovens no planejamento da interatividade, passando, posteriormente, a uma
oficina prática de programação com Pure Data (totalizando quarenta horas divididas em duas
semanas de aula). Decidimos construir ao longo destes encontros um módulo de programação
que seria comum a todos os projetos: um player de áudio e vídeo, o nosso “videocassete
digital caseiro”. Foi uma escolha estratégica, já que os alunos estão familiarizados com
programas que trabalham com imagens, sejam elas na forma de fotografias, vídeos,
ilustrações ou animações. Assim, quando partimos de uma tela em branco e passamos a
conectar os blocos de funções uns aos outros129, produzindo resultados imediatos, os alunos
puderam ter noção do funcionamento dos softwares que utilizam diariamente e das
possibilidades que residem na "desconstrução" de ferramentas para o uso personalizado, de
acordo com suas necessidades.
Os projetos propostos pelos alunos envolveram naturalmente questões político-sociais
como meio ambiente (projeto Sucata), acessibilidade (projeto Sem Limites), valorização da
cultura local (projeto Na linha do Subúrbio), artistas invisíveis (projeto Interart) e questões
pessoais dos jovens, num formato misto de poesia e música (projeto Po-Imagem).
Participamos ativamente do processo de desenvolvimento e montagem das obras as quais
foram expostas na mostra Toque para Mover Sentidos130, inaugurada no dia três de maio de
2012. A seguir, algumas imagens das cinco instalações interativas.
127 Apresentei a palestra “Mobilidade, Arte e Celular” durante o seminário. O conteúdo está disponível em: < http://ferkrum.com/blog/2011/06/03/mobilidade-arte-e-celular-no-seminario-de-arte-e-tecnologia-oi-kabum-salvador/>. Acesso em: 18 mar. 2013. 128 Artista, videasta e aluna do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA. Disponível em: <http://silvanarezende.wordpress.com/about/>. Acesso em: 18 mar. 2013. 129 O Pure Data é um ambiente de programação gráfica, no qual blocos de funções são conectados entre si, seguindo um fluxo de dados. Cada bloco possui entradas (inputs) e saídas (outputs), o que torna a lógica de trabalho visualmente mais atrativa do que linguagens de programação de linhas de código (escritas). 130 Mais detalhes sobre o processo de desenvolvimento de cada obra está disponível em: <http://ferkrum.com/blog/2012/06/16/toque-para-mover-sentidos-obras-e-processo-de-trabalho/>. Acesso em: 18 mar. 2013.
73
Figura 22 – Projeto Interart: montagem da estrutura e em funcionamento na mostra. Os visitantes desenham em um tablet e as ilustrações são publicadas na página do projeto.
Figura 23 –Projeto Po-Imagem: filmagens e montagem da instalação. O público fica rodeado por quatro projeções simultâneas com histórias que se complementam.
Figura 24 –Projeto Sucata: filmagens de entrevistas e game em funcionamento na mostra. O objetivo dos visitantes é descartar os objetos nas lixeiras certas usando uma luva.
74
Figura 25 – Projeto Na linha do Subúrbio: filmagem de conteúdo, adaptação de uma máquina de fliperama, desenvolvimento do mapa e totem em funcionamento. O usuário navega no
mapa do subúrbio ferroviário, vendo fotografias e vídeos de cada local.
75
Figura 26 – Projeto Sem Limites: filmagem de conteúdo nas calçadas da cidade, montagem dos sensores na cadeira de rodas, ajustes finais e jogo em funcionamento. O usuário deve sentar na cadeira de rodas para controlar o jogo, enfrentando os obstáculos da cidade até
chegar em casa com segurança.
Durante o desenvolvimento da oficina de programação, naturalmente, alguns jovens se
identificaram mais com a linguagem do que outros. Segundo a aluna Marina Lima,
coidealizadora do projeto Po-Imagem,
Essa parte de lidar com a programação foi muito complicada para mim, pela minha impaciência de ver tantos códigos na minha frente, aos quais não sou nem um pouco chegada. Mas todo o processo da oficina me fez compreender que a arte e a tecnologia estão muito interligadas. Ter idéias, capturar imagens, editá-las, pensar as formas de projeção e imaginar as pessoas interagindo com a obra, como quase parte do cenário, tudo isto é arte e tecnologia (LIMA, 2012, p. 24).131
Para os jovens Jadilson Oliveira e Isabela Cristina, da obra Sem Limites,
Tivemos algumas oficinas, uma delas a de programação, que foi bem instrutiva. No começo, parecia ser algo estressante, mas foi muito legal trabalhar com uma área vasta como esta, sem contar o resultado final de ver aquelas conexões chegarem a um resultado. Foi bem incrível, porém, a grande questão e ter paciência e fazer uma seqüência de testes ate dar tudo certo. No final, não foi difícil lidar com esta nova
131 Relato da aluna no Catálogo da exposição Toque para Mover Sentidos (2012, p. 24, Disponível em: <http://issuu.com/cipo.comunicacaointerativa/docs/toqueparamoversentidos>. Acesso em: 20 mar. 2013).
76
linguagem, apesar de o tempo sempre nos atropelar e gerar pressão psicológica, o que geralmente faz o trabalho empacar (OLIVEIRA; CRISTINA, 2012, p. 27).132
Já para o aluno José Roberto Brito, idealizador do projeto Sucata, "De tudo, o que
mais me instigou foi compreender que o computador precisa de comandos para elaborar uma
ação: que a idéia é sempre mais importante que as ferramentas!" (BRITO, 2012, p. 27)133
A possibilidade de participar de um projeto com um fôlego maior permitiu o
acompanhamento da evolução do desenvolvimento de cada instalação, desde a geração da
ideia, passando pelo desenho de interatividade, até o produto final. Durante o processo, ficou
claro que o desenvolvimento de tais obras não segue uma linha pré-estabelecida, quando cada
detalhe deve ser tomado individualmente e solucionado, de acordo com suas exigências
específicas. A experiência, como um todo, trouxe um aprendizado muito grande à equipe, por
ser uma linguagem (a da interatividade) ainda não trabalhada dentro da escola. A experiência
de optar pelo uso de software livre nas instalações também trouxe questões como apropriação
tecnológica, busca por soluções criativas para as dificuldades encontradas e livre
disseminação do conhecimento para debate durante o período em que a exposição esteve
aberta ao público, possibilitando a estes alunos agregar experiências, conhecimentos novos ao
currículo escolar.
3.5 Hacklab: Interfaces Físicas e controladores DIY aplicados à performances sonoras e audiovisuais, utilizando ferramentas livres / Festival Digitalia, Salvador (BA)
Durante a segunda edição do Digitalia - Congresso e Festival Internacional de Música
e Cultura Digital134, realizado de 1o a 5 de fevereiro de 2013, em Salvador, participei da
atividade “Hacklab Interfaces Físicas e controladores DIY aplicados à performances sonoras e
audiovisuais, utilizando ferramentas livres”, juntamente aos colegas Cristiano Figueiró e
Bruno Rohde. Ao longo das oito horas, divididas em dois encontros, apresentamos os
conceitos básicos de trabalho com a plataforma de prototipagem Arduino, partindo do
conceito de hardware livre, suas possibilidades e restrições de uso, passando pela conexão de
componentes eletrônicos simples para criação de interfaces físicas, trabalhando em conjunto
com o software Pure Data para manipulação dos dados em tempo-real.
132 Relato dos alunos (Ibidem, p. 27). 133 Relato do aluno (Ibidem, p. 39). 134 Disponível em: <http://digitalia.com.br>. Acesso em: 18 mar. 2013.
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A atividade teve chamada aberta e contou com cinco participantes, a maior parte deles
com experiência prévia com programas de performance audiovisual, porém sem haver
trabalhado com as ferramentas abordadas no encontro. Com estas características, foi possível
imprimir um bom ritmo de trabalho para o tempo reduzido que dispúnhamos. Consideramos a
atividade como um hacklab por contarmos com uma metodologia aberta, de apropriação
tecnológica, por ser uma experiência prioritariamente hands-on, mão na massa, trazendo a
ideia de compartilhamento de informação.
Foi desenvolvido um protótipo usando como suporte uma lata metálica na qual os
componentes eletrônicos foram afixados, respeitando certo grau135 de ergonomia para o
usuário. Como não dispúnhamos de muito tempo, a ideia foi produzir uma interface simples
que pudesse operar com variações graduais (analógicas, possibilitam uma variação “linear”
entre mínimo, desligado e máximo, ligado) e de interrupção (digitais, ligadas ou desligadas).
Para tanto, utilizamos as seis entradas analógicas do Arduino conectadas aos resistores
variáveis: dois potenciômetros (variam a resistência quando rotacionados, como um botão de
volume, por exemplo) e 4 LDR’s136 (resistores que variam com a luminosidade); e uma
entrada digital: utilizando um botão tipo switch.
O instrumento desenvolvido, quando conectado ao Pure Data, pode controlar os
parâmetros que desejarmos, sejam eles de imagem (como saturação, contraste e ganho) ou de
áudio (como valores de frequências responsáveis por sínteses sonoras ou amplitudes de
onda)137. A oficina cobriu uma ampla gama de objetos e funcionalidades das ferramentas
livres trazidas para trabalho (Arduino e Pure Data) e o número enxuto de participantes
possibilitou espaço suficiente para todos se expressarem, trazendo experiências pessoais para
debate entre os presentes.
135 Não houve nenhum tipo de medida de dimensões físicas nesta etapa. A abordagem foi intuitiva, de acordo com os gestos idealizados pelo grupo na etapa de projeto. 136 “Light dependent resistors”. Tradução nossa. 137 O funcionamento do protótipo está disponível em: <http://youtu.be/7l0EWorDknQ> e <http://youtu.be/w-ib_iI1sTI>. Mais detalhes sobre o desenvolvimento da oficina está disponível em: <http://ferkrum.com/blog/2013/02/03/hacklab-no-digitalia-2013/>. Acesso em: 18 mar. 2013.
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Figura 27 – Protótipo do instrumento desenvolvido durante o encontro. Detalhe dos dois potenciômetros e botão tipo switch localizados na tampa da lata, Salvador, fev. 2013.
Figura 28 – Detalhe dos quatro LDR’s localizados no corpo da lata, Salvador, fev. 2013.
Figura 29 – Testes do protótipo do instrumento, Salvador, fev. 2013.
A artemídia proporcionou um entrelaçamento de conhecimentos em torno de um tema
comum, no caso, as performances sonoras e audiovisuais. Quando trabalhamos com softwares
que envolvem a programação para o desenvolvimento de tais atividades, passamos a operar
79
com uma gama muito mais ampla de controle sobre o processo e sobre a própria estética do
que é produzido. No momento em que a ferramenta passa a ser reconfigurável, ela pode criar
objetos únicos, com comportamentos singulares, removendo a existência de amarras impostas
por uma arquitetura fechada. É como se, por exemplo, um violonista se tornasse luthier138,
podendo reconstruir seu instrumento a cada música, não se restringindo a uma única escala ou
a uma única técnica para expressar-se.
Além disso, deve-se salientar que os hacklabs, em geral, têm uma função ativadora
muito importante, pois o estudo e as descobertas em cada uma das linguagens se dão através
das (inúmeras) consultas às comunidades de usuários, na forma de listas de discussão ou,
principalmente, em páginas de projetos individuais documentados por seus desenvolvedores.
O usuário se torna “desenvolvedor”, não somente quando realiza alterações no software, mas
também quando descreve suas produções, publica seus avanços em um blog pessoal, fazendo
circular a informação, realimentando o sistema.
138 Profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos de corda com caixa de ressonância. Luthier. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Luthier>. Acesso em: 24 mar. 2013.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou promover reflexões sobre as práticas de artemídia na
contemporaneidade, no momento em que as capacidades se combinam para produzir sentido e
o processo de desenvolvimento das obras se torna tão valioso quanto o resultado. Comentou-
se também sobre o entrelaçamento de disciplinas e o trânsito em seus limites, suas fronteiras.
Além disso, ao incorporar o uso das mídias técnicas de forma criativa, a artemídia possibilita
uma visão crítica da realidade em que estamos inseridos, cadenciada pelo ritmo da evolução
tecnológica e com um forte apelo comercial.
Conforme visto ao longo deste trabalho, o nascimento da informática esteve
intimamente relacionado à corrida armamentista, recebendo elevados investimentos
governamentais em equipamentos e aplicações de segurança. Aos poucos, estas tecnologias
foram sendo experimentadas em outros setores, através de iniciativas como, por exemplo, o
projeto Community Memory (1973) o qual levava terminais a espaços públicos para o uso da
população, ou, posteriormente, o movimento de organizações de hobbistas como o Homebrew
Computer Club que impulsionou o desenvolvimento dos microcomputadores na metade dos
anos 1970. Por outro lado, ainda nos anos 1960, artistas e engenheiros estavam produzindo as
primeiras obras em regime de colaboração, criando experimentos híbridos que envolviam
elementos eletrônicos em sua produção, como aqueles presentes na exposição 9 Evenings:
Theatre and Engineering (1966), que atraiu cerca de dez mil visitantes durante seu período de
exibição, em Nova Iorque.
O desenvolvimento da computação pessoal incorporou uma série de avanços que
facilitaram o acesso à máquina, simplificando sua operação, passando de uma tecnologia de
uso restrito a especialistas a algo acessível a uma fatia cada vez maior da população. Neste
percurso, houve um período em que a restrição de memória dos terminais obrigava os
usuários a digitarem as linhas de código dos programas para, finalmente, serem executados
pela máquina, ou seja, quando o usuário queria executar um programa de controle de estoque,
por exemplo, ele precisava alimentar a máquina com as instruções de funcionamento da
aplicação antes de realizar qualquer outra operação.
O código-fonte, portanto, era um código-aberto e, muitas vezes, intercambiado através
de revistas especializadas que traziam centenas de aplicações listadas em suas páginas, como
um livro de receitas. O usuário, como um chefe de cozinha, seguia os passos listados no
código-aberto e, combinando os ingredientes certos, era capaz de produzir os “pratos” listados
no livro de receitas. Assim, o usuário mais curioso tinha a liberdade de produzir seus
81
“banquetes” personalizados, tomando um tempero emprestado de cada receita que havia
aprendido durante o uso do equipamento. Era um processo trabalhoso, mas que aproximava
os usuários das rotinas necessárias para execução daquelas aplicações, através de uma
linguagem considerada simples, o BASIC. A evolução do hardware finalmente possibilitou o
armazenamento e a recuperação daquelas rotinas, economizando ao usuário a ocupação da
digitação do código-fonte, empregando seu tempo, principalmente, com o uso dos softwares.
A partir deste momento, mais camadas de abstração foram criadas entre o usuário e o
código, que passou a ser empacotado no formato de softwares proprietários e vendidos da
mesma forma que os periféricos de extensão dos microcomputadores (como as placas de
vídeo, memórias etc.). A seguir, o avanço das interfaces gráficas de usuário, com o emprego
das metáforas do “escritório” e das janelas de programas, trouxe uma maior imersão do
usuário no sistema, que agora passa a utilizar os recursos já delineados pelos inúmeros
programas desenvolvidos pelas empresas produtoras de software.
O “usuário-cidadão-comum” é, finalmente, convidado a usar o sistema, percorrendo
as estradas (o software) pavimentadas pelos desenvolvedores. Seguindo a metáfora das
rodovias, os usuários, de posse de um meio de transporte (o hardware, o computador ou seus
assemelhados, na forma dos atuais smartphones e tablets), pagam pelo direito de usar as
estradas que os conectam a seus destinos cotidianos. A artemídia, por sua vez, quando faz uso
de tais “meios de transporte” como forma de expressão, questiona tanto o funcionamento de
tais veículos, quanto o destino e o material com que as estradas são construídas.
O teórico de mídia norte-americano Douglas Rushkoff traz uma reflexão interessante
em seu livro “As 10 questões essenciais da era digital: programe seu futuro para não ser
programado por ele” (2012), de uma forma bastante provocadora. Rushkoff comenta que,
historicamente, a cada criação de um novo meio, uma pequena elite tem acesso a este,
deixando o restante da população subordinada ao mero consumo: a invenção do alfabeto não
criou uma sociedade de leitores, mas de ouvintes; posteriormente, a invenção da imprensa não
levou a uma sociedade de escritores, mas de leitores e, finalmente, com a criação dos
computadores e das redes, a sociedade pôde, finalmente, "escrever", alimentando redes
sociais, websites e blogs (RUSHKOFF, 2012). O usuário torna-se “produtor de conteúdo”,
gerando outra espécie de audiência, dessa vez, ainda mais facilmente mensurável139, em troca
139 Aqui me refiro à facilidade de medir o tráfego detalhado de usuários nas páginas web, quando comparado aos medidores de audiência dos meios de massa, como a televisão, por exemplo.
82
da exposição difusa de conteúdo publicitário em sua jornada pelo ciberespaço. O gratuito das
redes é, portanto, pago de outras formas140.
Na atualidade, um dos papéis significativos da artemídia é apontar novos usos para as
mídias contemporâneas, criando diferentes vias de acesso e conexões entre diferentes
pensamentos e disciplinas, atingindo um público mais amplo. Aqueles movimentos que
promoveram a disseminação dos computadores na sociedade, na década de 1970, reverberam
hoje através dos ecossistemas de desenvolvimento de software e hardware livre, com suas
comunidades de desenvolvedores e usuários que compartilham soluções através das redes,
possibilitando avanços significativos em suas diferentes áreas de atuação. Aquelas primeiras
experiências de colaboração entre engenheiros e artistas evoluíram a um panorama mais
integrado, à medida que as ferramentas de trabalho se tornaram mais acessíveis e existe uma
cultura de colaboração mais avançada.
As práticas em artemídia vivenciadas e descritas neste trabalho trouxeram
experiências com um viés, sobretudo, formativo em diferentes contextos, contemplando
atividades desenvolvidas em comunidades de pescadores em parceria com pesquisadores de
outros países; práticas de laboratório de artemídia dentro da academia; iniciativas
independentes de ensino em espaços de coworking; desenvolvimento de oficinas e projetos de
instalações interativas com jovens de comunidades populares e, finalmente, desenvolvimento
de interfaces para controle de performances audiovisuais dentro de um evento de cultura
digital.
Nota-se, através das experiências trabalhadas, que um dos desafios reside na relação
entre os diferentes níveis de conhecimento entre os participantes: nem sempre as pessoas
estão dispostas a trabalhar novamente um conceito que já dominam. Por isso, se torna
importante estabelecer uma relação de trocas e independência no grupo no qual podem existir
aprendizados paralelos, diminuindo o caráter unilateral de passagem de informação. Isto
ocorreu na experiência dos Laboratórios de Arte Interativa (UFBA, cap. 3.3). Além disso,
quando utilizamos ferramentas técnicas, trazendo conceitos de lógica, eletricidade e
programação, aproximamo-nos das ciências exatas, porém com uma abordagem que fomentou
interligações com outras áreas como, por exemplo, o caso do uso combinado de GPSs,
gravadores de áudio e câmeras de vídeo para contar a história de uma comunidade, ou a
criação de uma performance artística, utilizando um equipamento fisioterapêutico de
eletroestimulação, ou ainda, a denúncia dos problemas de acessibilidade de nossas cidades, 140 Comento sobre os serviços gratuitos da Internet na nota de rodapé #52, na página 42 deste trabalho.
83
usando uma cadeira de rodas como joystick em um game educativo. A abertura de um canal
de comunicação entre as partes envolvidas se tornou vital nestas experiências, estimulando a
hibridação entre os conhecimentos, incorporando o erro no processo de aprendizado,
fomentando a participação durante os encontros.
Permanece o desafio de compreendermos a tecnologia como um meio e não como um
fim neste cenário. Em muitos casos, o discurso pode adquirir um teor demasiadamente
tecnicista, carregando uma visão redentora dos novos meios sobre outras técnicas. Nestes
casos, a artemídia pode servir como uma ferramenta para lançarmos um olhar crítico sobre
nosso entorno.
84
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87
ANEXOS
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Anexo 1: Panorama de Pure Data
O software “Pure Data” (Pd) é um ambiente gráfico de programação em tempo-real,
de código aberto e multiplataforma141, desenvolvido pelo americano Miller Smith Puckette,
durante os anos 1990, para criação de música interativa. O programa está baseado na
linguagem “MAX” desenvolvida pelo próprio Puckette, na década de 1980, enquanto
trabalhou no IRCAM de Paris e que foi, posteriormente, licenciada pelo instituto francês à
empresa americana Opcode Systems, com fins comerciais. O software MAX/MSP finalmente
passou a ser comercializado pela empresa Cycling ’74, fundada por David Zicarelli, em 1997,
como um software proprietário142.
O núcleo do projeto Pure Data é escrito e mantido por Miller e inclui o trabalho de
muitos desenvolvedores, tornando o pacote um esforço de uma comunidade inteira. Sua
interface gráfica faz uso da metáfora dos sintetizadores de áudio analógicos nos quais os
diversos cabos de conexão (patch-cords) interligam os módulos de filtros e efeitos
sequencialmente como o que vemos na figura abaixo. Diversas extensões e bibliotecas são
escritas para o programa e são distribuídas no pacote “Pure Data Extended”.
Figura 30 - Detalhe do cabeamento de setup de um sintetizador Moog.
Disponível em: <http://sprott.physics.wisc.edu/Pickover/pc/moogrc1.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2013.
141 O programa funciona nas plataformas Mac, PC e Linux e o código-fonte pode ser compilado para outros sistemas operacionais. Disponível em: <http://puredata.info/downloads/pd-extended>. Acesso em: 20 mar. 2013. 142 Max (software). Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Max_(software)>. Acesso em: 20 mar. 2013.
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Os objetos gráficos que interligam o fluxo de informação dentro do ambiente de
programação do Pure Data trazem entradas e saídas, com pontos que podem ser selecionados
pelo cursor do mouse para criar a conexão apropriada para cada função. A figura abaixo traz
um exemplo que demonstra como se dá o processo de programação com alguns objetos
inseridos em um documento.
Figura 31 – Captura de tela de um programa simples que realiza a função soma para exemplificar as diferenças entre as entradas “quentes” e entradas “frias” do sistema.
O exemplo acima traz o processo de soma de dois números, o qual é, constantemente,
realizado, enquanto o programa estiver aberto. Neste caso, o argumento da “função soma” é
enviado ao bloco que retorna o número imediatamente na saída. A mesma lógica acontece
quando se trabalha com áudio ou vídeo, afinal, o programa processa blocos de informação em
“tempo-real” e imprime o resultado imediatamente, podendo o resultado ser um número, uma
síntese sonora executada na placa de som do computador ou uma sequência de imagens
exibidas no monitor ou em um projetor.
A ideia de conexão de blocos gráficos possibilita uma abordagem visual mais atrativa
ao usuário iniciante, que pode compreender como se dá o funcionamento, ligando os blocos
uns aos outros e verificando os resultados imediatamente. Trata-se de uma ferramenta
interessante e muito poderosa para aproximar a lógica de programação de usuários com pouca
ou nenhuma experiência com computadores143.
143 Mais referências sobre a linguagem, disponíveis em <http://flossmanuals.net/pure-data/>. Acesso em: 20 mar. 2013.
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Anexo 2: Panorama de Arduino
O Arduino é uma plataforma de prototipagem de circuitos eletrônicos criados na
cidade de Ivrea, na Itália, a partir de um trabalho desenvolvido no Interaction Design Institute
Ivrea pelo estudante colombiano Hernando Barragán144, em 2005. A ideia original era
construir uma ferramenta de desenvolvimento de projetos de interatividade que fosse mais
econômica do que as disponíveis naquele momento. O projeto incorporou a mesma sintaxe de
programação da linguagem Processing e foi desenvolvido com código-aberto, para que todos
pudessem contribuir com seu desenvolvimento.
Figura 32 –Vista superior da placa Arduino Uno.
Disponível em: <http://arduino.cc/en/Main/ArduinoBoardUno>. Acesso em 25 mar. 2013.)
A placa foi desenvolvida utilizando o microcontrolador ATmega328 de 8-bits da
fabricante Atmel e contém 14 entradas ou saídas digitais (6 saídas configuráveis como PWM)
e 6 entradas analógicas. Existem diversas extensões145 (ou shields) que podem ser conectadas
à plataforma, agregando outras funcionalidades como conexão com cartão de memória, GPS,
Bluetooth etc. Os protótipos são criados usando um ambiente de desenvolvimento que
funciona em diversos sistemas operacionais e contêm milhares de exemplos documentados no
pacote o qual pode ser descarregado do website146 do projeto.
O projeto Arduino facilitou o acesso de desenvolvimento de interfaces físicas ao criar
uma plataforma que reúne uma comunidade numerosa de desenvolvedores e usuários que 144 Barragán desenvolveu a plataforma Wiring (http://wiring.org.co), que buscava ser o equivalente à linguagem Processing, porém aplicada ao hardware. 145 Disponível em: <http://arduino.cc/en/Main/Products>. Acesso em: 25 mar. 2013. 146 Disponível em: <http://arduino.cc/en/Main/Software>. Acesso em: 25 mar. 2013.
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documentam e compartilham seus projetos. Atualmente, encontram-se diversas aplicações
que utilizam a tecnologia, como instalações interativas, automação residencial ou projetos de
quadricópteros147 de código-aberto. O hardware é distribuído mediante a licença Creative
Commons Share-Alike, que permite compartilhar o esquemático da placa, porém resguarda o
uso do nome “Arduino” para a fabricante italiana. Existem diversas variantes do produto que
são compatíveis entre si e utilizam o mesmo software para programação. Abaixo, um exemplo
de uma placa com duas extensões (shields) conectadas ao Arduino.
Figura 33 – Dois shields de extensão conectados à uma placa Arduino
Disponível em: Disponível em:< http://en.wikipedia.org/wiki/File:Arduino_Protoboard_Shields.jpg>. Acesso em 25 mar. 2013.)
147 Projeto ArduPilot. Disponível em: <http://www.diydrones.com/notes/ArduPilot>. Acesso em 25 mar. 2013.
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