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ISSN: 1414-3917
Número XVII
Volume I
Agosto de 2014
Revista do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Juiz de Fora
A filosofia britânica produzida nos séculos XVII e XVIII abrange temas que passam por
quase todas as áreas da filosofia, definindo contornos decisivos para futuras abordagens no
campo da filosofia política, da ética, da teoria do conhecimento e da estética.
Filosofia Britânica dos séculos XVII e XVIII
RevistaÉtica eFilosofia Política
É:
www.ufjf.br/eticaefilosofia
Júlio Maria Fonseca Chebli – Reitor
Marcos Vinício Chein Feres – Vice-Reitor
Instituto de Ciências Humanas
Altemir José Gonçalves Barbosa – Diretor
Ricardo Tavares Zaidan – Vice-diretor
Departamento de Filosofia
Juarez Gomes Sofiste – Chefe de Departamento
Mário José dos Santos – Coordenador do Curso
Antônio Henrique Campolina Martins – Diretor da Revista
Faculdade de Direito
Aline Araújo Passos – Diretora
Raquel Bellini de Oliveira Salles – Vice-diretora
Denis Franco Silva – Coordenador do PPG em Direito e Inovação
Vicente Riccio Neto – Vice-coordenador do PPG em Direito e Inovação
Comissão executiva
ISSN: 1414-3917
Antonio Henrique Campolina Martins – Editor
Marcos Vinicio Chein Feres – Co-Editor
Clinger Cleir Silva Bernardes – Editoração Eletrônica
Camila Fonseca de Oliveira Calderano – Secretária
Conselho Editorial
Antonio Cota Marçal (UFMG)
Bruno Amaro Lacerda (UFJF)
Gustavo Arja Castañon (UFJF)
José Henrique Santos (UFMG)
Luciano Caldas Camerino (UFJF)
Luciano Donizetti da Silva (UFJF)
Manoela Roland Carneiro (UFJF)
Nathalie Barbosa de La Cadena (UFJF)
Pedro Henrique Barros Geraldo (Universidade de Montpellier)
Paulo Afonso Araújo (UFJF)
Ricardo Vélez Rodríguez (UFJF)
Roberto Markenson (UFPB)
Ronaldo Duarte da Silva (UFJF)
Thereza Calvet de Magalhães (UFMG)
Wolfram Hogrebe (Universidade de Bonn)
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Sumário
Editorial
Andrea Cachel
1
Artigos
Razão e conflito no estado de natureza Hobbesiano
Clóvis Brondani
6
Bernard Mandeville e as Escolas de Caridade
Ari Brito
24
Beleza e Moralidade em Shaftesbury e Hutcheson
Andrea Cachel
34
Berkeley e o critério de inteligibilidade na aritmética e na álgebra
Alex Calazans
47
O projeto newtoniano de matematização da natureza: uma resposta às
explicações qualitativas de Descartes?
Veronica Ferreira Bahr Calazans
76
Os antecessores de Hume no problema da identidade pessoal
Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann
102
Hume e o “eu” como um teatro das percepções
André Luiz Olivier da Silva
121
A existência de crenças morais torna Hume em um cognitivista moral?
Franco Nero Antunes Soares
139
A herança de Hume ao pensamento teórico de Kant
Rômulo Martins Pereira
156
A humanização da experiência no auge da Filosofia Clássica Alemã
Humberto Schubert Coelho
165
Número XVII – Volume I – agosto de 2014
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1
Editorial A filosofia britânica produzida nos séculos XVII e XVIII
abrange temas que passam por quase todas as áreas da filosofia,
definindo contornos decisivos para futuras abordagens no campo da
filosofia política, da ética, da teoria do conhecimento e da estética.
Nesse contexto, destacam-se autores distintos que em conjunto
estabelecem uma unidade não necessariamente pautada na
concordância das suas teses, mas, sobretudo, a partir de elementos
conceituais que dialogam entre si e reconfiguram, em grande medida,
aspectos importantes do debate filosófico. Este volume especial da
Revista de Ética e Filosofia Política da UFJF é dedicado a essa tradição
filosófica, reunindo artigos que visam representar a amplitude e
importância dos assuntos por ela abordados.
Em Hobbes, Mandeville, Shaftesbury e Hutcheson, por
exemplo, encontram-se discussões fundamentais acerca da natureza
humana e sua relação com a moralidade, das quais podem decorrer
modos distintos de se compreender a organização política da sociedade.
Em Razão e Conflito no Estado de Natureza Hobbesiano, Clóvis
Brondani procura mostrar em que medida não apenas a paixão contribui
para a instauração do conflito no estado natural, mas também a razão, a
qual, portanto, não aparece apenas como passagem para o Estado.
Nesse sentido, permite-nos vislumbrar a vitalidade da discussão
hobbesiana, a qual influencia grande parte da filosofia política do
período. Em Bernard Mandeville e as Escolas de caridade, Ari Brito
discute os argumentos do autor que rejeitam a tese de que a educação
das classes trabalhadoras seja favorável ao desenvolvimento da
sociedade e que estabelece que a boa sociedade é constituída pela união
das buscas egoístas. Assim, permite-nos constatar a influência dos
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temas hobbesianos na obra A Fábula das Abelhas, do médico holandês
Mandeville, que viveu grande parte da sua vida na Inglaterra e nela
produziu toda sua obra intelectual. É no horizonte da tese de que a ação
humana é movida pelo desejo, ou seja, é sempre auto-interessada, que
se move o texto desse autor integrado à filosofia britânica.
Em contraposição a essa interpretação acerca dos motivos que
regem a ação humana, presente em Hobbes e Mandeville, uma outra
gama de filósofos britânicos, sobretudo do século XVIII, procura
legitimar a ação voltada ao interesse público a partir da noção de
sentimento moral. Shaftesbury e Hutcheson fazem parte desse contexto,
a partir do qual, ademais, pauta-se a aproximação entre ética e estética
nesse período, assunto objeto do artigo Beleza e Moralidade em
Shaftesbury e Hutcheson. A discussão sobre a beleza volta-se nesse
percurso para a análise da experiência subjetiva da apreciação estética,
análise essa presente numa série de autores dentre os quais, além de
Shaftesbury e Hutcheson, Addison e Burke. Ainda que Hume não
retome simplesmente ou sem ressalvas os autores que cunharam a ideia
de sentimento moral, revela-se na sua filosofia moral e estética a
influência dessa tradição e dos temas por ela debatidos. Haja ou não
uma ação desinteressada e represente o juízo moral uma referência a
uma motivação que transcende o auto-interesse é uma investigação que
se estende por todo o período aqui destacado, incorporando no seu
percurso novas configurações. Isso se torna bastante evidente no artigo
A existência de crenças morais torna Hume em um cognitivista moral?,
em que Franco Soares procura defender em que medida aprovar ou não
uma ação, na filosofia humeana, não é algo decorrente de uma crença
com valor cognitivo, assentando-se no sentimento moral.
No campo da teoria do conhecimento e da filosofia da
natureza, deve-se observar que a física moderna, que rompera com a
física qualitativa aristotélica, tem influências decisivas na forma como
os filósofos ingleses justificam a produção do conhecimento pelo
entendimento humano. A distinção, presente já em Galileu, entre
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qualidades primárias e secundárias, por exemplo, integra a tentativa de
se estabelecer uma correlação entre a produção científica da época e a
teoria do conhecimento. Como sabemos, a filosofia newtoniana é
decisiva nesse contexto e o seu projeto de consolidar a matematização
da física é o ataque decisivo a qualquer resquício da remissão a
elementos qualitativos dos corpos para se explicar as leis gerais da
matéria. O artigo O projeto newtoniano de matematização da natureza:
uma resposta às explicações qualitativas de Descartes?, de autoria de
Veronica Ferreira Bahr Calazans, mostra como a filosofia cartesiana já
apresentava um projeto de matematização da natureza, a qual, contudo,
não inseria a matemática na natureza intrínseca dos corpos, mas tão
somente às relações entre os objetos matemáticos e suas propriedades.
Em Newton, destaca o artigo, a matematização da física não apenas é
uma metodologia da apreensão do mundo físico pelo sujeito que
instaura as relações entre os objetos, sendo a matemática aplicada ao
próprio mundo físico, como expressão das leis da mecânica.
Em grande medida o empirismo, tradição que em geral nos
vem à mente quando nos reportamos à filosofia britânica, tem por base
a pretensão de ter como ponto de partida do conhecimento aquilo que
pode ser fornecido pela experiência interna e externa. Entre o conteúdo
mental que é formado a partir da experiência e por meio de uma série
de mecanismos da mente (como a associação, por exemplo) e o mundo
externo, Locke estabelece uma ponte sobretudo a partir das qualidades
primárias. A matematização do mundo físico e a distinção entre
qualidades primárias e secundárias permitem um salto ontológico, em
Locke, da análise da formação de ideias pelo entendimento para a
realidade do mundo exterior. Nesse contexto, a teoria das ideias
abstratas é essencial porquanto a formação das qualidades primárias é
dela dependente, conforme argumenta Berkeley. O artigo Berkeley e o
critério de inteligibilidade na aritmética e na álgebra tem como pano
de fundo essa questão. Nele, o autor Alex Calazans discute a forma
como o número é concebido por Berkeley de forma a rejeitar o
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entendimento de que ele seja compreendido como pertencente à
natureza intrínseca dos corpos (ou seja, como qualidade primárias) e
como uma ideia abstrata. Que o número seja apenas um nome e que sua
significação seja universal a partir de uma relação com “todas as
coleções possíveis de serem constituídas em uma unidade
estabelecida”, como visa mostrar o artigo, é algo decisivo tanto para
uma discussão quanto à natureza e o método das ciências quanto para
uma crítica do idealismo berkeleyano ao realismo lockeano.
Hume propõe sua análise da Natureza Humana como uma
forma de estender o método newtoniano para as ciências morais.
Bastante conhecido pela sua teoria sobre a relação de causa e efeito, ele
é um filósofo que se dedica a vários temas que marcaram a filosofia
britânica. De modo geral, todo esse percurso aqui exposto e que compõe
o amálgama constituído pelos artigos que incorporam este volume
especial está presente em sua filosofia. Já destacamos que ela incorpora
a temática do sentimento moral e o leitor desta edição especial poderá
também ter contato com outro assunto a que se dedica a filosofia
humeana e que também é configurado ao longo de uma série de análises
que se auto-referem. Nessa perspectiva, Flávio Zimmermann, no artigo
Os antecessores de Hume no problema da identidade pessoal, retoma
toda a tradição de ponderações sobre o tema da Identidade Pessoal –
composta por filósofos como Joseph Butler, Collins, Shaftesbury,
Locke, Berkeley e Bayle – abordando a influência da mesma na obra de
Hume. A redefinição humeana do conceito de mente poderá ser melhor
compreendida pelo leitor também a partir do artigo de André Olivier,
Hume e o “eu” como um teatro das percepções, no qual é exposta a
argumentação do filósofo quanto à impossibilidade de se apresentar
uma impressão original para a ideia de identidade pessoal, bem como
sua estratégia de fundar essa ficção em uma série de princípios da
imaginação.
Filósofo inserido na tradição empirista, Hume é ao mesmo
tempo aquele cuja obra revela a crise desse mesmo empirismo, a qual
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acaba por influenciar o advento da filosofia crítica kantiana, conforme
analisa Rômulo Martins Pereira, no artigo A herança de Hume ao
pensamento teórico de Kant. Humberto S. Coelho argumenta em A
humanização da experiência no auge da Filosofia Clássica Alemã que
para “superar” o que qualificam como o dualismo kantiano,
especialmente Goethe e Hegel teriam dialogado com essa mesma
tradição do empirismo cujos limites coube a Hume precisar. A
superação do dualismo kantiano exigiria não propriamente uma volta
ao empirismo britânico, mas sim uma ligação entre a percepção
sensorial e a experiência noética, e esta última com a vida no ambiente
da cultura, que, em realidade, reinterpretaria o sentido de experiência,
eliminando a abstração do empirismo e da filosofia kantiana e
reinserindo-a “dentro do quadro da totalidade do desenvolvimento
espiritual do homem”. Assim, do apontamento de uma incompletude
na resposta de Kant à tradição empirista emergem também alguns temas
da filosofia clássica alemã, o que mostra que o empirismo britânico de
alguma forma dialoga também com o século XIX.
Nesse sentido, fica evidente como as reflexões produzidas
pelos filósofos britânicos dos séculos XVII e XVIII encontram ecos no
percurso que se seguirá na história da filosofia, sendo a produção dos
filósofos brasileiros dedicados a essa tradição uma oportunidade não
apenas para a conhecermos melhor, mas também para compreendermos
de forma mais aprofundada a reflexão filosófica de modo geral. Este
volume da Revista de Ética e Filosofia Política da UFJF pretende
oferecer ao público leitor essa oportunidade.
Andrea Cachel
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RAZÃO E CONFLITO NO ESTADO DE NATUREZA HOBBESIANO
REASON AND CONFLICT IN THE HOBBESIAN STATE OF NATURE
Clóvis Brondani1
RESUMO: Este texto se propõe a analisar o papel da razão no âmbito do conflito no estado
de natureza hobbesiano. Há uma tendência bastante comum de interpretar o estado de
natureza de Hobbes como uma espécie de conflito entre as paixões e a razão, sendo as paixões
causas da guerra e a razão o meio para a saída da condição natural. Pretendemos argumentar
que, contrariamente a esta intepretação, a razão também pode ser compreendida entre os
fatores causais da guerra. Entretanto, essa circunstância não ameaça a coerência do argumento
de Hobbes em defesa da Soberania. Ao contrário, trata-se de um argumento que fortalece a
defesa do Estado, na medida em que ele nos mostra que na ausência do poder soberano, tanto
as paixões quanto a razão fazem o homem tender ao conflito.
Palavras-chave: Razão, conflito, estado de natureza, Estado, política.
ABSTRACT: This text proposes to analyze the role of the reason within the scope of the
conflict in the Hobbesian state of nature. There is a fairly common tendency of interpret the
Hobbes’ state of nature as a kind of conflict between the passions and the reason, being the
passions the cause of war and the reason the way to the solution of the natural condition. We
intend to argue that contrarily to this interpretation; the reason also can be understood among
the causal factors of the war. However, this circumstance does not threaten the coherence of
the Hobbes’ argument in defense of the sovereignty. On the contrary, it is an argument that
strengthens the defense of the State, to the extent that it shows us that in the absence of the
sovereign power, both the passions as the reason makes the men to tend the conflict.
Key-words: Reason, conflict, state of nature, State, politics.
Introdução
Um dos argumentos fundamentais de Hobbes em defesa da soberania consiste na
demonstração da sua indispensabilidade para a vida social, condição sem a qual o convívio
humano torna-se uma guerra de todos contra todos. Hobbes afirma também, no final do
capítulo XIII do Leviathan, que a razão indica as normas para a paz. Desse modo, a razão
desempenha uma tarefa essencial na instituição da soberania, e os argumentos de Hobbes
1 Professor do Curso de Filosofia da Universidade Federal da Fronteira Sul.
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apontam para uma defesa racional da submissão ao Estado. Em geral, os textos do filósofo
permitem uma interpretação no sentido de compreender a razão como desempenhando um
papel central na sociabilidade e na solução do conflito no estado de natureza; no entanto, há
algumas passagens que parecem indicar uma direção contrária, apontando a própria razão
humana entre as causas da guerra.
Tem sido comum interpretar os argumentos de Hobbes sobre a guerra exclusivamente
a partir da perspectiva de sua teoria sobre a natureza humana, mais especificamente de sua
teoria as paixões2. Tradicionalmente, o argumento de Hobbes tende a ser resumido da
seguinte forma: as paixões irracionais conduzem o homem à violência e à guerra, sendo
necessária a razão para conduzir o homem à saída desse estado mediante a instituição da
soberania. Essa leitura encontra evidência textual no De Cive, mas pode ser questionada a
partir de um exame mais detalhado do Leviathan. O objetivo deste texto é analisar os
argumentos de Hobbes sobre as causas da guerra e apresentar uma interpretação segundo a
qual a razão também pode ser considerada como causa do conflito. Contudo, buscamos
argumentar que isso não ameaça a coerência do argumento de Hobbes em defesa da
submissão ao estado.
As causas da guerra no De Cive
As passagens do De Cive sobre a guerra tendem a nos fazer pensar que apenas as
paixões são causas do conflito, permitindo uma leitura na qual a causa última dessa condição
pode ser retirada diretamente de uma consideração pessimista da natureza humana, segundo a
qual há uma tendência natural para a violência.
O De Cive parece nitidamente afirmar que há uma paixão que conduz os homens à
violência: “Todos os homens no estado de natureza têm desejo (desire) e vontade (will) de
ferir” (HOBBES, 1991, p. 114). Esse impulso à violência é originado a partir de duas causas:
a igualdade e a vaidade ou vã glória. Os homens atacam os outros basicamente por dois
motivos: ou se sentem iguais e, por isso, exigem para si o mesmo que os outros, ou se sentem
superiores e exigem dos outros tanto respeito quanto pensam ter direito:
1 Strauss, por exemplo, afirma que a paixão da vaidade é determinante para a geração do conflito, enquanto
outra paixão, o medo, é responsável pela possibilidade de solução (1963, p. 11 et seq.). Em sentido bastante
próximo, está o argumento de Oakeshott (1975, p. 86 et seq.).
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A vontade (will) de ferir deste homem [o vaidoso] nasce da vã glória, e da falsa
estima que ele tem de sua própria força; o do outro [daquele que ataca por causa da
igualdade], provém da necessidade de defender a si mesmo, sua liberdade e seus
bens, contra essa violência dos homens (HOBBES, 1991, p. 114).
A vontade de causar dano, portanto, nasce das paixões, parece ser o que Hobbes quer
dizer. Nesse sentido, ele está sendo coerente com sua teoria da vontade, mais tarde descrita no
Leviathan como “o último apetite na deliberação”. No caso da vaidade, essa origem passional
da vontade de ferir é bastante clara. Com relação à igualdade, a questão torna-se um pouco
mais complexa. A igualdade não é uma paixão, mas uma condição externa que os homens
reconhecem em relação aos demais. Não há em Hobbes uma paixão natural por igualdade,
mas, ao contrário, o que há é a vaidade, uma paixão que conduz os homens a se considerarem
superiores aos demais. Logo a igualdade não é em si a paixão que conduz à vontade de causar
dano, mas ela é origem, como condição externa, para o surgimento de outra paixão, da qual
Hobbes não trata nesse parágrafo, mas que podemos subentender como o desejo de possuir
qualquer bem necessário à sobrevivência. Ao reconhecer os outros como iguais, surge o
desejo de possuir o que eles possuem, que se traduz em competição. Esse desejo, quando
escolhido mediante um processo de deliberação, também dá origem à vontade de causar dano.
Competição e vã glória, portanto, são reconhecidas por Hobbes como as causas da guerra. E,
sem dúvida, a ênfase incide sobre a segunda. Os combates mais ferozes, afirma Hobbes,
ocorrem por causa da vaidade:
Pois não aprovar o que um homem diz, nada mais é do que acusá-lo tacitamente de
um erro sobre aquilo que está falando [...] Isso transparece no fato de que não há
guerras mais ferozmente travadas do que aquelas entre seitas da mesma religião e
facções do mesmo estado (HOBBES, 1991, p. 114).
A desconfiança, princípio central para o argumento da guerra no Leviathan, aqui
aparece de modo secundário e indireto. Antes, Hobbes descreve o direito natural, que também
está implicado na origem da guerra. O raciocínio do filósofo inglês consiste, no De Cive, em
definir o direito como liberdade para utilização das faculdades em conformidade com a reta
razão, cujo fundamento último é a defesa da vida (HOBBES, 1991), em seguida, argumenta
que o direito aos fins também concede o direito aos meios e que, por consequência, todos têm
direito a todas as coisas e, finalmente, que esse direito é nulo, tendo em vista que todos
possuindo tudo, não possuem efetivamente nada (HOBBES, 1991). O direito a todas as
coisas, no De Cive, é introduzido antes da guerra, procedimento inverso ao utilizado mais
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tarde no Leviathan, em que Hobbes primeiro descreve a guerra e dela deduz o direito a todas
as coisas. O direito a todas as coisas não é, pois, consequência da guerra, mas está entre suas
causas3, segundo a argumentação do De Cive.
A desconfiança, no De Cive, somente aparece depois da explicação sobre as causas da
guerra, e é concebida mais como uma característica dessa condição do que propriamente
como uma de suas causas. A passagem na qual ela aparece é a seguinte:
Se agora, para essa tendência natural dos homens a se ferirem uns aos outros, que
eles derivam de suas paixões, mas principalmente de uma vã estima de si mesmos,
somarmos, o direito de todos a tudo, por meio do qual alguém, com direito, invade, e
o outro, com direito, resiste, surgem então contínuos zelos e suspeitas por todos os
lados (HOBBES, 1991, p. 117).
A desconfiança, portanto, não opera como um princípio causador, conforme o que irá
ocorrer no Leviathan, mas, ao contrário, é uma constatação da condição resultante das paixões
e do direito natural. Essa condição de constante desconfiança é uma das características da
condição de guerra de todos contra todos e, em relação a isso, não difere muito do Leviathan.
A guerra é descrita, imediatamente depois dessa passagem, do seguinte modo: “Pois o que é a
guerra, senão aquele tempo em que a vontade de contestar o outro pela força está plenamente
declarada, seja por palavras, seja por atos?” (HOBBES, 1991, p. 117).
A análise da descrição do estado de natureza e da guerra no De Cive pode autorizar
uma leitura que entende o problema do estado de natureza como o da dicotomia paixão/razão.
Teríamos, de um lado, as paixões como exclusivas causas da guerra e, de outro, a razão, como
possibilidade para sua superação. Desse modo, teríamos então uma ênfase nos aspectos da
natureza humana como fatores desencadeadores do conflito. Existe, considerando as
passagens descritas, uma propensão da natureza humana à violência mútua, que somente pode
ser amenizada a partir do uso da razão4.
2 Nos livros anteriores, Hobbes introduz o direito a todas as coisas antes de sua explicação das causas do conflito
e, consequentemente, inclina sobre ele, mais fortemente do que no Leviatã, a causa da guerra (HAMPTON,
1986, p. 60). 3 Segundo Hampton, encontramos no De Cive passagens que embasam tanto uma explicação do conflito tendo
como base as paixões quanto uma explicação com base na racionalidade. No entanto, “a ênfase clara é na
busca por glória como causa” (HAMPTON, 1986, p. 67).
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As causas da guerra no Leviathan
Essa leitura, entretanto, não se ajusta de modo tão preciso aos argumentos do
Leviathan. Nessa obra, Hobbes modifica o argumento, descrevendo a guerra antes do direito a
todas as coisas, e essa modificação tem consequências importantes para o seu argumento,
pois, nesse caso, o direito natural somente se torna direito a todas as coisas numa condição de
guerra. Outra modificação substancial para a compreensão da origem da guerra está na
introdução de uma terceira causa: a desconfiança. Como vimos, no De Cive, a desconfiança
não aparece como causa, mas apenas como uma característica da condição de guerra. A
introdução da desconfiança entre as causas da guerra tem levado alguns comentadores a
apontar que não somente as paixões, mas também a razão tem um papel na origem do
conflito5. A explicação para essa tese é uma compreensão da desconfiança como uma forma
de raciocínio e não apenas como uma paixão.
É nesse sentido que argumentam os autores que interpretam a filosofia de Hobbes
recorrendo à teoria dos jogos, compreendendo o estado de natureza como um típico caso de
raciocínio probabilístico6. Se efetivamente o estado de natureza é um caso de raciocínio
estratégico, então, torna-se mais clara a participação da razão na consecução da guerra, ou,
pelo menos, a possibilidade do uso da razão no estado de natureza. Desse modo, não é
possível compreender a filosofia política como a mera luta da razão contra as paixões, mas
como uma simulação do comportamento dos indivíduos sem o Estado, no qual há vários
fatores agindo, entre os quais a racionalidade. Segundo Kavka, o estado de natureza é um
argumento no qual a sociedade é dissolvida para observar o resultado da interação entre os
indivíduos sem a presença do Estado, no qual “os indivíduos, cujo comportamento e modelos
de interação são o conteúdo da teoria, não são pessoas reais, mas pessoas idealizadas que se
4 McNeilly (1968) afirma que é a racionalidade da antecipação que gera a guerra de todos contra todos. Kavka (
1986) também aponta o papel da racionalidade na causa da guerra, porém, contrariamente à tese de
McNeilly, afirma que, dependendo das condições, a razão pode conduzir à cooperação e não ao ataque.
Sadler ( 2009, p. 1100) afirma que a razão não somente propõe a saída para a guerra, mas também aumenta o
perigo de sua deflagração. 5 Os mais conhecidos comentadores a se utilizarem dos modelos da teoria dos jogos para interpretar o estado de
natureza hobbesiano são Kavka, Hampton e Gauthier. Há outros, no entanto, que também recorreram ao
dilema do prisioneiro para interpretar os argumentos de Hobbes, entre eles: Taylor em Anarchy and
Cooperation, 1976; Pasquino em Hobbes, Religion and Rational Choice: Hobbes’s two Leviathans and the
Fool, 2001; Kraus em The limits of Hobbesian contractarianism,1993 . É importante salientar que não há
consenso entre esses autores sobre o papel da razão como causa da guerra. O que nos importa nessa
abordagem é que ela aponta para o fato de que é possível conceber os indivíduos naturais hobbesianos como
potencialmente racionais.
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supõe possuírem certas propriedades – racionalidade, certas crenças básicas, modos de
raciocinar, entre outras” (KAVKA, 1986, p. 85). O mais importante, segundo o autor, é que
nessa situação, os indivíduos, ao agirem, sempre levam em consideração a ação dos demais, o
que caracteriza o uso da racionalidade nas interações7. É esse cálculo sobre o comportamento
dos demais que conduz ao ataque premeditado, segundo Kavka. Entretanto, para este
comentador, do fato de a racionalidade determinar as ações dos indivíduos em suas interações
no estado de natureza, não podemos concluir que as ações racionais conduzem
necessariamente à guerra. Ao contrário, Kavka desenvolve um argumento bastante extenso,
utilizando a matriz do dilema do prisioneiro repetido (iterated prisioner’s dilema)8, sobretudo
ao analisar a resposta ao tolo, para mostrar que a cooperação seria possível entre indivíduos
racionais agindo no estado natural (KAVKA, 1986).
Um autor que apresenta uma tese mais clara e direta sobre o papel da razão na
deflagração da guerra de todos contra todos é McNeilly em seu Anatomy of Leviathan.
Segundo ele, em uma condição sem uma autoridade central que possa punir os indivíduos
cujo comportamento fere o direito dos demais, não pode haver nenhuma garantia quanto à
segurança individual (MCNEILLY, 1968). Nesse caso, a ação mais racional seria o ataque
antecipado, como única forma de proteção contra os possíveis agressores. O problema é que,
na medida em que todos optam pela mesma estratégia e que todos supostamente são racionais,
o conflito é deflagrado, e a situação torna-se uma guerra de todos contra todos. O importante
do argumento de McNeilly é que ele concebe a existência de uma necessidade lógica ligando
a premissa da falta de um poder comum com a conclusão de que atacar é a melhor estratégia.
Assim, segundo ele, o argumento de Hobbes para demonstrar a necessidade do poder absoluto
do soberano repousa sobre a necessidade lógica. De todo modo, o argumento de McNeilly
encontra um suporte textual muito forte na primeira lei de natureza que indica a guerra como
alternativa para a sobrevivência em uma condição na qual a paz é impossível (MCNEILLY,
1968).
Uma leitura da origem do conflito no estado de natureza a partir da racionalidade
encontra suficiente embasamento textual no Leviathan. Não somente podemos efetuar uma
leitura do princípio de desconfiança no capítulo XIII a fim de encontrar um tipo de raciocínio
6 Os indivíduos do estado de natureza são essencialmente planejadores (KAVKA, 1986, p. 85). 7 Significa que o estado de natureza pode ser pensado como uma condição na qual as situações de dilema do
prisioneiro não ocorrem uma única vez, mas tendem a se repetir. Essa condição caracteriza a importância da
boa reputação para a participação em futuras cooperações (KAVKA, 1986)
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estratégico que conduz ao surgimento do conflito, como também é possível encontrar
passagens em outros capítulos que apontam para essa direção.
O fato é que Hobbes, algumas vezes, dá a entender que o uso da razão também é causa
da discórdia entre os homens. Encontramos um exemplo desse tipo de afirmação no capítulo
XVII do Leviathan, no qual Hobbes procura combater a tese aristotélica da sociabilidade
natural, apontando uma série de motivos pelos quais não há um acordo natural entre os
homens. Ao observar a diferença entre homens e animais no tocante aos fatores relativos à
associação, Hobbes afirma: “Estas criaturas, não tendo (como o homem) o uso da razão, não
veem, nem pensam ver qualquer falha na administração de seus negócios comuns; enquanto
que entre os homens, são muitos os que pensam serem mais sábios e hábeis para governar o
público” (HOBBES, 1996, p.119).
Esse argumento de Hobbes parece ser o inverso do De Cive, dando a entender que é
justamente por causa da irracionalidade que os animais vivem numa condição harmônica.
Pelo menos é o que sugere a seguinte passagem:
As criaturas irracionais não podem distinguir entre injúria (injury) e dano
(dammage), e consequentemente enquanto estiverem satisfeitas não ofendem os seus
semelhantes. Enquanto que o homem é mais importuno quando está mais satisfeito,
pois é aí que gosta de mostrar sua sabedoria, e controlar as ações daqueles que
governam o Estado (Comon-Wealth) (HOBBES, 1996 p. 120).
Nessa passagem, é, pois, a incapacidade de usar a razão que torna os animais aptos a
viver numa condição de tranquilidade e não de guerra de todos contra todos como é o caso
dos homens. Mais interessante é que o foco de Hobbes nessa passagem está na capacidade
racional de distinção entre injúria e dano. Isso significa que é em virtude da sua inconsciência
em relação aos motivos das ações dos demais que tais animais gregários são naturalmente
aptos a viver juntos em condições pacíficas.
É possível argumentar que nessas passagens do capítulo XVII Hobbes não esteja
necessariamente se referindo à origem do conflito num hipotético estado de natureza, mas
apenas falando de como homens já civilizados e vivendo no interior do estado civil não têm
uma tendência natural à sociabilidade precisamente porque usam a razão com a finalidade de
sempre julgar de modo negativo a administração da vida comum. Dessa maneira, não se
poderia confundir essas afirmações de Hobbes a respeito dos homens já vivendo sob um
Estado com as prováveis causas da guerra no estado de natureza.
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Embora esse argumento pareça viável, não pensamos que seja possível operar uma
distinção tão clara entre os argumentos do capítulo XIII e aqueles do capítulo XVII, como se
o último tratasse apenas de causas de uma guerra civil e, por isso, não tivesse relação
nenhuma com as causas do conflito no estado de natureza. Ao contrário, no capítulo XVII,
Hobbes está tratando de modo generalizado da insociabilidade natural humana, um argumento
que pode muito bem ser utilizado para pensar o aparecimento do conflito no estado de
natureza, ou seja, dado que os homens são naturalmente insociáveis, podemos concluir que
uma condição na qual falta um poder comum torne-se uma condição de guerra. De fato,
podemos pensar que as causas da guerra no estado natural e as causas de uma guerra civil
sejam diferentes, pois as condições supostas nestas são bem diferentes. Apesar de toda a
argumentação de Hobbes ocorrer no sentido de convencer os homens de evitar a guerra civil,
as causas da guerra civil não são exatamente as mesmas da guerra no estado de natureza. A
guerra no estado de natureza é um argumento pensado com vistas a convencer-nos a respeito
da irracionalidade da guerra civil, pois, na medida em que esta dissolve o Estado, voltar-se-ia
a uma condição de pobreza e precariedade gerada pela guerra natural. No entanto, as causas
da guerra civil são descritas detalhadamente no capítulo XXIX, e não são as mesmas causas
da guerra de todos contra todos no estado de natureza. Os argumentos do capítulo XVII,
portanto, podem ser aplicados tanto para pensar a guerra natural quanto a guerra civil. Se for
assim, parece que Hobbes admite algum papel para a razão na deflagração da guerra no estado
de natureza.
Se observarmos a descrição das causas da guerra no estado de natureza no capítulo
XIII, também é possível notar que há algum tipo de cálculo envolvido na origem do conflito.
Das três causas da guerra apontadas nesse capítulo, duas são paixões, a glória e a
desconfiança. A competição, como já apontamos, não é uma paixão, mas um tipo de
comportamento resultante das paixões originado a partir de uma condição de igualdade na
qual há a ausência de um poder comum, ou seja, tendo em vista que as paixões impulsionam
os homens em direção a certos objetos, quando estes são desejados por indivíduos diferentes,
numa condição de ausência de qualquer regra de propriedade, é natural que eles venham a
competir de modo violento pelo mesmo objeto.
Contudo, é em relação à desconfiança que o tema da racionalidade aparece. A
desconfiança é a suposição de que o outro possa nos atacar e, apenas nesse sentido, é possível
considerá-la uma paixão, uma vez que as paixões, para Hobbes, consistem em opiniões sobre
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os objetos. Todavia, é quando Hobbes infere a antecipação a partir da desconfiança que algum
tipo de cálculo mais sofisticado torna-se necessário. Não parece possível inferir a antecipação
como melhor estratégia de defesa unicamente em vista da desconfiança, isso porque, da
desconfiança, outro tipo de estratégia poderia parecer razoável – esconder-se, por exemplo.
Entretanto, o argumento de Hobbes é que, da desconfiança, os indivíduos concluem que a
melhor estratégia nessa condição é a antecipação: “E dessa desconfiança em relação aos
outros, não há outro modo para o homem de garantir sua segurança que seja tão razoável
quanto a antecipação; isto é, pela força ou astúcia, dominar as pessoas de todos os homens
que ele puder” (HOBBES, 1997, p. 87-88). Essa passagem revela a existência de algum tipo
de cálculo estratégico que permite a passagem da desconfiança para a conclusão de que o
ataque é a melhor maneira de se proteger.
É discutível, com certeza, que esse seja aquele cálculo com palavras que Hobbes
entende como sendo a razão propriamente dita. É possível que a conclusão pela antecipação
como melhor estratégia seja simplesmente fruto do cálculo mental, ou seja, da prudência, e
que, nesse sentido, não haveria participação da razão nas causas da guerra. Visto que a
prudência não é um cálculo que atinge a necessidade e a universalidade, os indivíduos
calculariam de forma errônea a respeito da antecipação como melhor estratégia para a
sobrevivência. Se calculassem corretamente, isto é, se usassem a razão, perceberiam que a
melhor estratégia para a sobrevivência é a busca da paz e não a deflagração da guerra, como
aponta a lei de natureza.
No entanto, há uma observação importante a fazer em relação a esse argumento. Ele
parece coerente ao apontar que indivíduos que não usam a razão, mas apenas um cálculo
mental, isto é, a prudência, concluiriam pela antecipação como melhor estratégia nessas
condições. Ele não impede, contudo, que, mesmo um indivíduo usando a razão no sentido
estrito que Hobbes a concebe, como cálculo com palavras, chegasse também à mesma
conclusão a respeito da antecipação. Nesse sentido a própria lei de natureza, fruto da razão,
aponta a racionalidade da antecipação numa condição natural, na qual ninguém respeita tais
leis. A primeira lei de natureza sugere a busca da paz como estratégia inicial para a
autopreservação, mas apenas de modo condicional, pois, caso a paz não seja possível,
devemos buscar “todas as ajudas e vantagens da guerra” (HOBBES, 1996, p. 92).
É irracional, - portanto contra as leis de natureza - que um indivíduo respeite essas
mesmas leis numa condição em que ninguém mais as cumpre. Tal atitude fere a própria
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definição geral de lei de natureza como uma regra que proíbe ao homem fazer qualquer coisa
que ameace sua vida. Cumprir a lei natural numa condição em que ninguém respeita essa
mesma lei é, para Hobbes, tornar-se “uma presa para os outros, e obter (procure) sua própria
ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a
preservação da natureza” (HOBBES, p. 110, 1996). Essa consideração de Hobbes, é
importante ressaltar, diz respeito também a todas as demais leis de natureza. Cumprir
qualquer uma das leis de natureza – manter contratos, por exemplo – é irracional numa
condição em que ninguém mais as cumpre.
A conclusão dessa leitura parece ser, então, que a própria racionalidade está implicada
na deflagração da guerra, na medida em que tanto os indivíduos chegam a tal conclusão por
intermédio de um cálculo racional estratégico9 quanto as próprias leis de natureza sugerem
que, em certas condições, o ataque é mais racional. A guerra em si mesma não tem, pois, nada
de irracional. Ela é irracional apenas se considerada pela perspectiva do Estado, no interior do
qual, cumprir todas as leis de natureza – e, portanto, buscar a paz –, é a ação mais racional
possível.
Problemas Interpretativos
Essa interpretação, entretanto, também apresenta alguns problemas para a teoria de
Hobbes. Ela parece comprometer toda a insistência de Hobbes na racionalidade como
faculdade que aponta o caminho para a saída do estado de natureza. Ora, se é o próprio uso da
razão que nos conduz ao conflito, como podemos, então, entender que os homens possam, por
intermédio dessa mesma razão, sair dessa condição? Não haveria, pois, possibilidade
nenhuma de passagem do estado de natureza para o Estado Civil e, dessa forma, o argumento
Hobbes parece ficar comprometido.
De acordo com Hampton (1986), os textos hobbesianos permitem derivar a origem do
conflito tanto da razão quanto das paixões. Essa condição, segundo a autora, originou duas
interpretações fundamentais: a tese da racionalidade como causa do conflito e a tese das
paixões como causas do conflito. Contudo, a autora destaca que as duas interpretações são
incompatíveis, tendo em vista que enquanto a primeira interpretação concebe a razão como
8 Refiro-me aqui a estratégico como aquele tipo de cálculo verbal e não meramente mental, no qual devemos
necessariamente considerar, ou tentar prever, as ações dos outros.
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fator impeditivo à cooperação, a segunda concebe a razão como o único instrumento que
permite a solução do conflito. Diante dessa constatação, Hampton argumenta no sentido de
diagnosticar os pontos fracos de cada uma das interpretações, propondo outra explicação para
a origem do conflito que, em sua opinião, seria mais coerente.
O problema com a tese que pretende encontrar unicamente nas paixões a causa do
conflito, conforme Hampton (1986), é que ela não é suficiente para explicar a efetivação da
guerra no estado de natureza, isso porque, se cumprir as leis de natureza, e especialmente
manter contratos, for racional no estado de natureza, então poderíamos pensar tal estado como
um sistema de cooperação frequente muito mais próximo da concepção de Locke do que das
condições descritas no Leviathan.
A interpretação da racionalidade como causa do conflito é, por sua vez, mais eficaz
porque consegue tornar o argumento de Hobbes coerente ao explicar de modo propício o
aparecimento da guerra de todos contra todos, todavia os problemas dessa interpretação são
ainda maiores, segundo a autora, para o argumento contratual de Hobbes (HAMPTON, 1986).
Aceitar essa interpretação significaria “abandonar a ideia de que as leis de natureza têm
qualquer validade. A posição do tolo teria de ser a do próprio Hobbes” (HAMPTON, 1986, p.
75). Há, de acordo com ela, dois motivos suficientes para abandonar essa interpretação, os
quais dizem respeito à sua própria coerência interna.
O primeiro é que essa interpretação não parece ser verdadeira. Utilizando uma matriz
do dilema do prisioneiro repetido, Hampton procura mostrar como o argumento de Hobbes
não conduziria à conclusão de que a antecipação seria a melhor estratégia. Essa conclusão
somente seria possível se concebêssemos as relações do estado de natureza como jogos
únicos, ou seja, se as interações no estado de natureza somente ocorressem uma única vez,
então atacar, ou não cumprir acordos, seria realmente a melhor estratégia. Contudo, se
considerarmos uma matriz de dilema do prisioneiro repetido, com jogos múltiplos ocorrendo
no estado de natureza, o resultado da matriz mostra que a cooperação é a melhor estratégia,
isto é, se consideramos que as interações ocorrerão muitas vezes ainda no futuro, então, as
consequências de cooperação no estado de natureza seriam mais racionais do que a
antecipação, porque aumentariam as chances de benefícios obtidos por novos contratos
possíveis no futuro (HAMPTON, 1986). Dessa forma, a quebra de um contrato, numa
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simulação de jogos múltiplos, desencadearia um processo de desconfiança que impediria o
agente de ser aceito em novos contratos e obter benefícios deles10.
O segundo motivo é o mesmo que apontamos acima. Se a racionalidade realmente
fosse a causa do conflito, ela o tornaria tão forte e enraizado no estado de natureza que seria
impossível a saída dessa condição. Se os indivíduos não conseguem manter contratos no
estado de natureza, então, seria impossível manter um contrato para instituir a soberania.
A solução proposta por Hampton é uma explicação alternativa para o conflito que,
segundo ela evitaria os inconvenientes das anteriores. A causa do conflito seria o que a autora
chama de shortsightedness, que pode ser entendida como a impossibilidade de compreender
os benefícios em longo prazo das ações; portanto, se entendermos o estado de natureza como
uma condição em que muitas interações acontecem, ou seja, como uma situação de jogos
múltiplos, o que faz com que os indivíduos não cooperem é justamente a sua incapacidade de
entender os ganhos futuros com a cooperação. Isso conduziria, inclusive, aqueles que são
racionais, ou seja, que conseguem compreender o benefício em longo prazo da cooperação, a
não cooperarem, tendo em vista que calculam que os demais apenas pensem no benefício em
curto prazo e que, portanto, não cumpririam os acordos, tornando a cooperação também para
eles irracional. Nesse sentido, a falta de visão de longo prazo da maioria faria mesmo os
racionais concluírem que cooperar não é a ação mais racional (HAMPTON, 1986, p. 84).
A solução de Hampton não deixa de ser interessante, pois evita as consequências
indesejáveis de compreendermos a racionalidade como causa da guerra, contudo, ela acaba
nos levando a uma conclusão muito parecida daquela que chegamos ao aceitarmos a hipótese
da racionalidade. Sua solução conduz à conclusão de que mesmo indivíduos racionais
calculariam que o ataque ou a não cooperação é a melhor estratégia, dado que a maioria dos
indivíduos, em virtude da falta de compreensão dos benefícios das ações em longo prazo,
nunca cooperaria. Logo, não supera o problema de que a racionalidade por si mesma seria
insuficiente para erigir o Estado, problema este que a própria autora aponta na tese segundo a
qual a racionalidade é a causa do conflito. De todo modo, seu argumento acaba por chegar
exatamente na mesma conclusão: dada a existência de muitos indivíduos que não buscam
benefícios de longo prazo, portanto indivíduos não racionais, os racionais passam a atacar e
9 Se nós tivéssemos certeza que um jogo contratual fosse jogado por duas partes uma única vez, não cumprir
seria a melhor estratégia; mas, todos sabem que terão de fazer muitos outros contratos no futuro e, apesar dos
dois lados saberem que a quebra é a ação racional em curto prazo, essa ação seria prejudicial em longo prazo,
pois impediria o benefício de futuros contratos por criar desconfiança (HAMPTON, 1986, p. 75).
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não cooperar, pois percebem que essa é a melhor estratégia. De qualquer modo, a razão
parece continuar, em última instância, a indicar o não cumprimento das leis, e, portanto, a
guerra, como melhor alternativa de ação no estado de natureza.
Analisemos, contudo, dois argumentos centrais da interpretação de Hampton.
Primeiro, ela afirma que a tese da racionalidade é falsa. Segundo, afirma que se a razão fosse
também motivadora do conflito, isso comprometeria o argumento de Hobbes em defesa da
racionalidade do Estado.
Em relação ao primeiro argumento, Hampton se apoia na utilização de uma matriz do
dilema do prisioneiro repetido. Desse modo, consegue mostrar, a partir desse modelo, que
num cenário de jogos múltiplos, a cooperação é a ação mais racional. Portanto, se os
indivíduos hobbesianos realmente usassem a razão no estado de natureza, não haveria guerra
de todos contra todos.
Contudo, é difícil aceitar que seja realmente isso que ocorra na argumentação
hobbesiana. Por mais que o modelo do dilema do prisioneiro possa mostrar que indivíduos
idealizados, numa condição de jogos múltiplos, concluiriam racionalmente pela cooperação,
isso não significa que seja este o argumento de Hobbes. Seria exigir demais que o argumento
de Hobbes se conformasse a um modelo que só veio a existir muito tempo depois. E o que
ocorre efetivamente na argumentação de Hobbes é muito diferente. Hobbes é bastante
enfático: “E dessa desconfiança em relação aos outros, não há outro modo para o homem de
garantir sua segurança que seja tão razoável quanto a antecipação” (HOBBES, 1986, p. 87-
88). Portanto, o fato do modelo PD mostrar a cooperação como a alternativa mais razoável
não implica que a tese da racionalidade como causa do conflito esteja errada.
O segundo argumento de Hampton insiste que a tese da racionalidade como causa da
guerra compromete o argumento de Hobbes. Segundo a comentadora, se a razão desempenha
um papel preponderante na causa da guerra, então não haveria saída para o estado de natureza,
comprometendo assim o argumento hobbesiano, e invalidando os argumentos a respeito do
contrato e da lei natural e a defesa da submissão ao Estado (HAMPTON, 1986). Contudo,
podemos questionar se de fato o argumento de Hobbes ficaria comprometido em sua
coerência diante da admissão dessa tese. É preciso questionar se o argumento da submissão ao
Estado exigiria, por exemplo, que fosse necessariamente possível sair da condição natural.
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Conclusão
Diante dessa discussão, torna-se necessário observar a questão de outro ponto de vista
para encontrar uma solução que não ameace a coerência do argumento de Hobbes. Qualquer
que seja nossa leitura do problema, o que parece bastante claro é que a questão do papel da
razão como causa inicial da guerra é secundário em relação à tese hobbesiana segundo a qual,
numa condição sem governo, sem uma autoridade que garanta o respeito às leis de natureza,
mesmo a razão indica a não cooperação e a guerra como a melhor alternativa de ação.
Podemos tomar o raciocínio inicial que os homens fariam partindo da desconfiança em
relação aos outros e concluindo sobre a antecipação como melhor estratégia, como sendo
apenas um raciocínio sem palavras, isto é, pura prudência. Ainda assim, teríamos a razão
apontando que, num mundo de indivíduos que apenas usam a prudência, o ataque é a melhor
estratégia, uma vez que os outros não usam a razão e não podem concluir a respeito da busca
da paz como ação mais razoável. Nesse caso, os indivíduos racionais, ao perceberem que os
demais são apenas prudentes e não racionais11, concluiriam que eles o atacariam primeiro
porque, por meio da prudência, somente poderiam chegar à conclusão sobre a antecipação e,
portanto, não antecipar seria uma ação irracional no seu caso.
Podemos também simular uma situação na qual todos seriam racionais. Nesse caso,
ainda que a razão de todos aponte a busca da paz e a cooperação como estratégia inicial, tendo
em vista que todos estão no estado de natureza e não há garantia sobre o cumprimento da lei e
dos acordos pelos demais, a conclusão de todos os indivíduos racionais seria a mesma: em
uma condição sem autoridade, cumprir a lei e buscar a paz não seria racional. Logo, mesmo
que concebêssemos todos os indivíduos como racionais, ou pelo menos como capacitados
para fazer cálculos verbais, ainda assim, numa condição natural, a antecipação continuaria
sendo uma ação mais racional do que as outras, e a guerra persistiria. De fato, parece que não
importa que tipo de calculadores sejam os homens no estado de natureza, mentais ou verbais,
o resultado de seus cálculos sempre apontaria a antecipação como estratégia dominante.
Ainda que possamos conceber os homens no estado de natureza como capacitados
para usar a razão, é necessário sempre considerar o papel das paixões na origem da guerra,
pois, mesmo que os homens pudessem ser concebidos como capacitados para fazer cálculos
11 Seguimos aqui a distinção estabelecida por Hobbes entre prudência e razão.
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verbais, isso não indica que eles teriam superado completamente seu comportamento movido
pelas paixões, ou seja, não podemos conceber dois tipos de indivíduos, alguns totalmente
racionais e outros puramente irracionais, porque mesmo aqueles racionais têm seu
comportamento influenciado pelas paixões, que não silenciam jamais. Mais do que isso,
Hobbes repetidamente declara que as paixões são contrárias à lei de natureza e, muitas vezes,
impedem o bom uso da razão:
Pois as leis de natureza (como a justiça, equidade, modéstia, piedade, ou, em
resumo, fazer aos outros aquilo que queremos que nos façam) por si mesmas, sem o
terror de algum poder que as faça ser observadas, são contrárias a nossas paixões
naturais, e nos conduzem à parcialidade, orgulho, vingança e coisas semelhantes
(HOBBES, 1996, p. 117).
Essa conclusão nos conduz para o centro da argumentação hobbesiana a respeito da
ética e da política: a tese da necessidade do Estado para regular o comportamento e instituir
relações de direito que possam substituir as puras relações de poder no estado de natureza.
Numa condição na qual as relações são de puro poder, mesmo indivíduos racionais
resolveriam suas divergências apelando para a força, o que dá origem a um conflito
desenfreado. Nessa condição, as leis de natureza são inoperantes, visto que o princípio da
desconfiança impera em todos os indivíduos. Dessa forma, já nos aparece toda a força da
argumentação hobbesiana em relação ao papel fundamental desempenhado pelo Estado. Ao
eliminar a desconfiança e garantir a racionalidade do cumprimento das leis de natureza,
instaura-se uma condição na qual o comportamento racional é cooperar e cumprir as leis,
contrariamente ao que acontece no estado de natureza. O comportamento moral dos
indivíduos somente passa a ser possível na medida em que o estado elimina a desconfiança.
Se nós podemos vislumbrar em toda a argumentação hobbesiana traços de um problema em
relação à razão e à linguagem na consecução da guerra, é porque há todo um regime de razão
e linguagem que o Estado deve doravante regular. A solução do problema está, portanto, em
abandonar uma visão tradicional que dá ênfase aos aspectos positivos da origem da guerra –
sejam as paixões, seja a razão –, para adotar uma abordagem que concentre a ênfase no
aspecto negativo da origem da guerra, ou seja, justamente a falta do Estado como instituição
reguladora das relações entre os indivíduos.
O Estado supera a impossibilidade de se manter contratos no estado de natureza. O
contrato que funda o Estado pode ser mantido porque é um contrato diferente de todos os
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outros, tendo em vista que institui uma autoridade soberana com o poder de garantir o
cumprimento desse contrato instituidor e de todos os demais que se realizarem doravante.
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BERNARD MANDEVILLE E AS ESCOLAS DE CARIDADE1
Ari Brito2
RESUMO: Bernard Mandeville é conhecido por uma única obra, e talvez mesmo por uma única frase: ‘Vícios Privados, Benefícios Públicos’, justamente o subtítulo da obra A Fábula das Abelhas. Este artigo tem como objetivo discutir apenas algumas das propostas de Mandeville, expostas numa das várias partes em que se divide A Fábula das Abelhas, a saber: a crítica extremada de Mandeville à educação das classes trabalhadoras de sua época. Foi esse ensaio que primeiro chamou a atenção do público e começou a fazer do médico holandês, transformado em escritor britânico, uma figura mal quista. Trata-se, no final, de tentar relacionar as ideias de Mandeville sobre a educação para os pobres com sua teoria principal sobre o social.
Palavras-chaves: Liberalismo, Educação, Mandeville, Escolas de Caridade
ABSTRACT: Bernard Mandeville is known for a single work, and perhaps even a single sentence: 'Private Vices, Public Benefits', just the subtitle of the book The Fable of the Bees. This article aims to discuss one of the ideas proposed by Mandeville, namely the extreme rejection of the working classes free education by Mandeville. It was on the essay about the Charity Schools, one of the parts of The Fable of Bees, that Mandeville put in words his abhorrence against a process occurring in his age, the foundation of schools for the poor working people. This essay caught the public's attention and began to turn the Dutch physician, turned a British writer, into an evil figure. Trying to relate the ideas of Mandeville on education for the poor with his main theory about the social can help to illuminate some aspects of the former
Key-words: Liberalism, Education, Mandeville, Charity Schools
Bernard Mandeville (Holanda, 1670/Grã Bretanha, 1733) foi um escritor controverso
em sua época, e durante o resto do século XVIII. O motivo do escândalo causado por
suasideias pode ser encontrado já no seu poema The GrumblingHive,
1 Neste artigo foram utilizados, com mudanças, trechos da tese de doutoramento As Abelhas Egoístas: Vício e Virtude em Bernard Mandeville (2007), do mesmo autor. A tradução de trechos da obra de Bernard Mandeville The Fable of Bees (A Fábula das Abelhas) foram feitas pelo autor. 2 Professor da Universidade Federal do Mato Grosso.
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orKnavesturn´dHonest (A Colmeia Murmurante, ou Canalhas tornados Honestos),
publicado anonimamente e sem nenhum sucesso público em 1705, no qual se encontra a
proposição de que vícios como a vaidade, a luxúria, a inveja, a avareza e o orgulho é que
seriam as bases reais do desenvolvimento econômico e social, e não as tão decantadas
virtudes da humildade, economia, abstinência etc. Essas virtudes, aliás, praticamente
inexistem, só podendo ser encontradas nos discursos proferidos por aqueles que procuram
enganar aos outros, ocultando os vícios que os levam a agir. O resultado final das ações das
pessoas, que buscam, sobretudo, satisfazer seus apetites dentro de um mundo corrupto é bom:
as amenidades da vida advêm apenas e tão somente desta busca, que é de todos. O escândalo
não está em Mandeville ter escrito que todos procuram o que lhes apetece, mas sim que a boa
sociedade seria constituída pela união dessas buscas egoístas. Cada parcela da população,
cada grupo social, cada profissão da colmeia, contribuía com seus truques, pois“Assim cada
parte estava plena de vícios/ Mas a massa completa era um paraíso” (A Colmeia
Murmurante, versos 155- 156).
Apesar do fracasso de seu poema, Mandeville não desistiu dele. Pelo contrário,
tornou-o o ponto central de uma extensa obra, grande parte da qual nada mais é do que
comentários a trechos específicos do poema. O poema, mais os comentários, mais diálogos e
alguns ensaios acabaram formando uma obra notória, A Fábula das Abelhas, editada em dois
volumes em 1723. Nesta edição foi incluídao Ensaio Sobre a Caridade e as Escolas de
Caridade, cujo principal objetivo era o de “provar que há necessidade de uma certa porção
de ignorância numa sociedade bem ordenada” (Mandeville, 1997, p. 130) que rapidamente
fez surgir uma tempestade de críticas específicas ao que neleera defendido, críticas essas que,
deve-se notar, tiveram um caráter religioso e moral, e não especificamente político. O ensaio
ia contra toda a tendência da época de apoiar com fervor o que era chamada então de Reforma
dos Costumes, uma série de tentativas de se melhorar o padrão moral da população,
principalmente a parte mais pobre dessa, através de obras de caridade públicas, como escolas,
hospitais e asilos. Mandeville vai contra essa corrente, afirmando que não que é perda de
tempo tentar dar educação aos pobres, mas sim que é perigoso, pois esses, se educados para
além das necessidades de seu nível de vida, tornar-se-iam insatisfeitos com o quetêm e
conseguem, e quereriam mais.Tentariam sair de sua “classe”, por assim dizer. Essa ideia
levantou uma tempestade de polêmicas porque no justamente momento em que foi expressa
ocorria todo um movimento, de cima para baixo, que tinha como intenção melhorar o nível
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moral das classes pobres. Ocorre, porém, que para melhorar o nível moral dessas, havia a
necessidade de educá-las, o que significava o aprendizado de leitura e escrita. Ora,
Mandeville se preocupou com a desestabilização que esse tipo de educação, por mínima que
fosse, poderia trazer. Para ele, o consumo e a produção de bens na sociedade dependem do
trabalho pois quanto mais uma sociedade se desenvolve mais precisará, para que se viva bem
nela, de uma divisão maior do trabalho. Apenas, a base dessa sociedade sempre estará
naqueles trabalhadores “que, em primeiro lugar, são durões e robustos, nunca estando
acostumados nem às coisas fáceis nem àsvagabundagens e, em segundo, rapidamente
satisfeitos com as facilidades da vida como as que podem obter com os tecidos mais
grosseiros em todas as roupas que usam, e que na sua dieta não tem outro objetivo senão o
alimentar seus corpos quando seus estômagos assim o exigem...” (Mandeville, 1997, p. 121).
Por mais que uma determinada sociedade melhore o seu nível de vida, a base dela sempre
deve ser mantida: trabalhadores brutos e sem nenhuma tendência a almejar coisas melhores
dos que a que já têm. Não se pode afirmar que Mandeville diz muito mais além do que muitos
outros pensavam, mas a reação contrária ajuda a mostrar como a visão de progresso deste
escritor era limitada, e que a necessidade de se manter todo um enorme grupo de pessoas nas
mais abjetas condições não era tida como necessária certa, seja de um ponto de vista moral ou
econômico.
Não se pode esquecer, porém, que a discussão toda de Mandeville - e contra
Mandeville - se fez, como era comum então, em termos de moralidade. Não é por acaso que
ele inicia o seu Ensaio Sobre a Caridade e as Escolas de Caridade inquirindo sobre a
natureza justamente da Caridade. Sem esse primeiro passo, o resto não teria importância. Pois
é com a passagem essencial, dos vícios aos benefícios, em volta da qual gira todo o escândalo
filosófico causado pelAFábula das Abelhas, está ligada a questão da virtude: Mandeville
expõe que toda volição, todo desejo, todo querer que venha de um apetiteé, por definição,
vicioso. E trata de demonstrá-lo através da apresentação de casos que, vistos de outra forma,
seriam exemplos de virtude. Nãoo são, pois o que está atrás dos chamados atos virtuosos é
sempre, para Mandeville, um agir e um querer em causa própria. Ser bem visto pelos outros,
ou até apenas se sentir melhor sabendo-se virtuoso é o que leva o ser humano a agir de uma
forma aparentemente não egoísta. A virtude, claro, sendo o oposto do vício, só pode ser uma
ação (ou disposição para agir) que não tem origem em nenhum apetite, em nenhuma paixão.
Ninguém está imune às artes do elogio insincero, e todos querem ser bem considerados,
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mesmo que não haja razão verdadeira para tal. Mas não haveria virtudes exercidas em
silêncio, isto é, que não se traduzissem em vantagens materiais ou sociais, este sendo o
critério de Mandeville para uma ação virtuosa? A resposta é negativa, e mesmo a compaixão,
a mais gentil e a menos maliciosa de nossas paixões, é tanto uma fragilidade de nossa
natureza como o são a ira, o orgulho e o medo. A recompensa para uma ação vista como boa
é, no mínimo, o orgulho em tê-larealizado, isto é, a autocontemplação do próprio ato, e a
autovalorização daí resultante, que é tão sinal de orgulho como a palidez e o tremor são sinais
de medo.
Ora, no ensaio em questão, Ensaio Sobre a Caridade e as Escolas de Caridadefeitas
para os pobres, e pagas por quem as fundou,se faz com a virtude da caridade o mesmo que
Mandeville fez com a virtude em geral, a saber, só existe Caridade quando o “sincero amor
que temos por nós mesmos é transferido puro e sem nenhuma mistura para outros que não tem
conosco relação nenhuma de parentesco ou amizade, e mesmo para completos estranhos, para
os quais não temos nenhuma obrigação nem possibilidades de obter qualquer coisa deles. Se
diminuirmos o rigor dessa definição, parte da virtude está perdida” (Mandeville, 1997 p.109) .
Uma definição clara e estrita como essa traz vantagens inúmeras para quem a defende. Uma
visão mais pragmática poderia aceitar sem problemas o abrandamento da virtude Caridade,
mas Mandeville escreve para cristãos que de forma alguma poderiam aceitar que fazer o bem
para quem se conhece ou, se não for este o caso, para quem do qual quer algo em troca fosse
de algum modo uma diminuição do espírito cristão. Não foi difícil para Mandeville mostrar
que se faz caridades por motivos pessoais, sempre querendo algo em troca, tendo essa virtude,
na prática, outras intenções do que meramente fazer o bem (não se vendo a quem). Aparentar
ser melhor do que se é não deixa de ser algo comum, mas a acusação de Mandeville é mesmo
de hipocrisia. Já quanto à paixão da piedade ou compaixão, Mandeville afirma que essa
paixão é uma imitação da Caridade, sendo causada pela visão ou conhecimento dos
sofrimentos de outrem, uma tendência humana que afeta de maneira menor ou maior a todos.
Mas, como a compaixão se dá porque toda pessoa pode se colocar no lugar que quem sofre, e
ter medo de sofrer o mesmo destino, não é uma virtude, e sentir pena não é algo virtuoso. Já
quanto às escolas para os pobres, que estavam sendo feitas por toda a parte na Grã-Bretanha,
as intenções de ajudar (sem ter nenhuma recompensa) sequer podem ser a sério levantadas,
pois a intenção dessas escolas era justamente a de ajudar a formar bons cristãos, educados o
suficiente para trabalhar melhor, ganhar um pouco mais e obviamente respeitar seus
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superiores. Aí estaria o engano, segundo Mandeville. Pobres mais bem educados não se
contentariam em ficar numa situação tão baixa, mas passariam a querer o que só não querem
ainda por pura ignorância, uma vida melhor, melhores roupas, comidas mais saborosas e, o
ponto crucial, certamente se recusariam a continuar a trabalhar arduamente. Quem então
realizaria as tarefas tão necessárias para a sociedade?
Mandeville está indo contra a corrente. Mas, essa visão negativista e, mesmo para os
tempos dele, reacionáriateria alguma base no essencial de suas propostas? Responder a essa
questão de forma cabal exigiria uma revisão completa do que é apresentado nAFábula das
Abelhas. O que se pode fazer aqui émostrar como se poderia apontar para os sinais de uma
resposta, mas nunca respondendo-a completamente. Os “vícios privados” levam a benefícios
públicos, mas não de forma direta. Para que essa junção seja feita, Mandeville apelou para
uma esquisita figura, a do “político sagaz”. Esse político hábil e seus pares são aqueles que
controlam as sociedades desde as mais priscas eras, conseguindo fazer com que do arraial de
vícios privados surja algo no qual se possa viver. Os ’políticos sagazes ’enganam o povo,
simplesmente, fazendo-os pensar que eles, políticos, não possuem os mesmos vícios que as
pessoas do povo. Eles dividiram de forma mentirosa os seres humanos em dois grupos muito
diferentes: “um contendo as pessoas abjetas, de baixo nível intelectual, que correm atrás do
usufruto imediato dos prazeres, o outro consistindo de uma classe formada por criaturas de
alto espírito que, se dizendo livres do sórdido egoísmo, consideravam a melhoria da mente
como sendo a sua maior propriedade e, desprezando o que tinham em comum com o outro
grupo, opuseram-se, com o auxílio da razão, às suas mais violentas inclinações e que,lutando
numa guerra interminável contra si mesmo para promover o bem comum, eles tinham por
objetivo nada menosque o bem comum e a conquista de suas próprias paixões”. (Mandeville,
1997, p. 38) Ora, esses interesses são tão egoístas quanto qualquer ação realizada por aqueles
que não fazem parte dessa camada superior, nos explica Mandeville. E as qualidades humanas
consideradas como sendo as melhores, não por acaso, são justamente aquelas que tornam mais
fácil o domínio dessa camada. A pretensão desta funda-se sobre um engano, sobre uma
mentira: pois na verdade os que estão embaixo e os que estão em cima são fundamentalmente
iguais, as diferenças sendo afirmadas devido à vergonha que traria a admissão da igualdade
real e, não se pode esquecer, pelo receio da perda de poder que resultaria dessa admissão.
Mas, uma vez afirmada essa diferença entre cultos e incultos, entre sofisticados e
grosseiros, entre castos e libertinos, isto é, “lançadas as bases da política, é impossível que o
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homem possa permanecer por muito mais tempo incivilizado.” (Mandeville, 1997, p. 39)
Todas as pessoas passam a querer imitar aqueles que são vistos e proclamados como sendo os
melhores. Essa emulação não deve ser confundida com uma tentativa de aperfeiçoamento
moral das pessoas, pois elas não tentariam ser de fato melhores, mas sim tentariam parecer
melhores, para ganhar o respeito dos outros. Como se sabe que os piores dentre os “bons”
teriam o maior interesse em valorizar “o espírito público, de forma que eles possam colher os
frutos do trabalho e da abnegação dos outros, ao mesmo tempo satisfazendo seus apetites sem
serem perturbados em excesso”. (Mandeville, 1997, p.39). Ao invés de tentar retirar à força o
que se quer dos outros, algo sempre sujeito a azares, trata-se de convencê-los a entregar o que
se quer deles, fazendo-os imaginar que outras pessoas lhes sejam superiores, e portanto
merecedoras do melhor. A socialização baseia-se nessa troca entre enganados e farsantes.
Apenas, ela tem funcionado muito bem, como Mandeville nunca se esquece nem deixa o
leitor esquecer. Não são só os de cima que vivem melhor nesse mundo hipócrita. Se esses têm
acesso a regalias, os outros, acreditando em fantasias, se abstêm de procurar as mesmas
regalias para si próprios, o que não é ruim, já que não há como todos usufruírem dos mesmos
privilégios e riquezas. O grande perigo não é um aumento da hipocrisia, sequer da exploração,
mas sim uma tentativa mal pensada em reformar esse estado de coisas. Está bom como está,
até porque os vícios principalmente, mas não exclusivamente, dos membros das classes
endinheiradas, levam ao aumento da circulação de riquezas, criando empregos, e fazendo,
como está descrito na Colmeia Murmurante, que o pobre hoje viva melhor que o rico ontem.
Para que tal sistema exista e floresça, explica Mandeville no Inquérito sobre a Origem da
Virtude Moral, uma das partes dA Fábula das Abelhas, é necessário que ocorra uma hábil
manipulação do orgulho e da vergonha dos homens por políticos habilidosos, pois “mais
fundo nós adentramos na natureza humana, mais nos convencemos que as virtudes morais são
a progênie política que a adulação gerou com o orgulho.”.(Mandeville, 1997, p. 41).
O sistema montado na adulação e lisonja não leva necessariamente a um soberano
todo-poderoso, ou a governantes tirânicos. Ele é compatível com qualquer sistema político e
qualquer governo, aparentemente. Poder-se-ia pensar que funciona quase ao deus dará, ou
dirigido por uma mão invisível. Mas não é bem assim, a metáfora que Mandeville usa é a do
relógio: a sociedade pode ser comparada a um relógio, instrumento que demorou a ser
planejado, construído e aperfeiçoado mas que, depois de montado e posto a funcionar, não
precisa mais de intervenção externa. Tentar melhorar o relógio enquanto este estiver
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funcionando levaria com certeza à sua parada. E, para Mandeville, com toda a certeza a Grã-
Bretanha de sua época estava funcionando a contento, o perigo não sendo nem a corrupção
nem a riqueza diferentemente distribuída, mas sim as tentativas tolas de reformar a moral e os
costumes. Para outros lugares e tempos, tentar segurar as paixões humanas pode ser a única
saídamas para o lugar e época de Mandeville seria um erro enorme, advindo não da intenção
tantas vezes expressa de melhorar a vida das pessoas aqui e no mundo que virá, mas sim do
orgulho, que leva a se querer mandar e a querer que todos vivam como lhes for ordenado. E,
como sempre há aqueles para os quais o desejo de mandar, exigir e controlar supera quaisquer
inconvenientes, é necessário que se esteja alerta, para que orgulhosos candidatos a líderes não
criem situações em que possam causar muitos problemas. E para Mandeville educar as classes
mais baixas seria plantar e depois colher problemas. Mas porque teria de ser assim, já que em
outros momentos Mandeville, como bom iluminista, explica que o tempo de enganar a
população já passou, e que agora a verdade já pode ser revelada?
Já que, como quer Mandeville,a honra e a vergonha de cada um depende da opinião
das outras pessoas, ninguém quer parecer ser o que é, mas todos querem parecer melhores do
que são, daí a hipócrita (ou não, para Mandeville isso não importa) insistência de todas as
pessoas em serem vistas como honradas, honestas e pias. As aparências são, no caso, a
realidade, mesmo que pareça haver prova em contrário. Ora, como cada um quer apenas o que
é bom para si, os mais espertos, os políticos sagazes, hábeis, encontraram no passado uma
forma de dividir o bolo a seu favor, ensinando os menos favorecidos a acreditar em fábulas,
isso é, a se contentarem com o seu parco quinhão, na espera de tempos melhores, enquanto os
que mandam usufruem no aqui e agora os prazeres possíveis, o mais das vezes sob uma capa
de sobriedade e contenção. Só que esse engodo não é mais necessário: na atual situação
(início do século XVIII) as riquezas geradas, o grau avançado de desenvolvimento já
alcançado torna não só desnecessário, mas positivamente danoso que se continue a negar às
pessoas o usufruto dessas riquezas, sob quaisquer pretextos. Que os vícios corram soltos, e os
benefícios públicos aumentarão. Mas não para aqueles que estão lá embaixo. Porque a
diferença? Porque mesmo na sociedade tida por Mandeville como avançada e pronta para
abandonar as desculpas anteriores que a justificavam, há toda uma camada da população que
não pode ser iluminada? Para Mandeville, o próprio funcionamento dessa sociedade
dependeria disso.
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Pois a Fábula das Abelhas toda pode ser entendida como uma defesa de uma
sociedade comercial, onde o dinheiro imperaria, dinheiro este que, não custa observar, não
seria igualmente distribuído, assim como não os seriam os benefícios do comércio cada vez
mais abrangente. Mandeville, como sempre, nega a satisfação da boa consciência, ao negar
que há, naturalmente, um lugar para cada coisa, e cada pessoa. À satisfação dos desejos
satisfeitos não deve ser acrescentada a satisfação de que se está no melhor dos mundos
possíveis, e que tudo caminha como deve ser. Não por nenhuma imposição moral, longe
disso, mas sim porque essa satisfação é tola e perigosa. Uma sociedade de comércio não deve
se pensar como natural, e a salvo de riscos, um dos quais está nas camadas mais baixas dessa
sociedade. Mandeville alerta contra os riscos de se tratar os pobres bem demais, deixando-os
ainda mais insatisfeitos com sua situação. Essa tomada de posição podendo ser explicada de
mais de uma maneira, mas o que cabe aqui ressaltar é que Mandeville, assim como outros
pensadores do século XVIII, não possuía um conceito de progresso que permitisse a
esperança de uma melhora gradual e permanente das condições sociais. Que se tinha chegado
a um bom estágio no nível de vida, nunca antes visto na história da civilização, era admitido,
mas que esse alto estágio iria se manter, ou se ampliar, isso estava longe de ser dado como
certo. Pelo contrário, a ameaça de que tudo derruísse era vista como premente. Ao invés de se
pensar nas ideias de Mandeville como argumentos pró-capitalistas antes da vitória do
capitalismo, deve-se pensar que os argumentos eram a favor da sociedade vigente, e não de
uma futura, e impensável, sociedade baseada na industrialização, que na época de Mandeville
não era sequer incipiente. Há que se notar que a ênfase toda da visão econômica deMandeville
está no consumo, e não na produção, (nunca no reinvestimento do capital adquirido em mais
produção). Sem uma noção mais elaborada de progresso, ou melhor, de desenvolvimento
contínuo, haveria que existir um limite para as classes baixas da população, pois não havia
como defender a posição de que a visívelmelhoria de vida chegaria um dia a elas. Uma noção
de progresso nA Fábula, e existe uma, mesmo que não totalmente desenvolvida, tem que
necessariamente estar em conflito com outra noção, a dos “políticos sagazes”. Um longo
período de desenvolvimento, como Mandeville descreve na segunda parte dAFábula das
Abelhas, de mais de uma maneira não parece se coadunar com a ênfase dada na primeira
parte da mesma obra à ação dos “políticos sagazes”. Não se deve esquecer, no entanto, que
quando Mandeville vivia, nem tudo estava colocado como hoje em dia, havendo um mal-estar
patente, se não sobre o dinheiro, pelo menos sobre a predominância social do comércio e do
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comerciante. Na sua época, a Inglaterra e Gales se uniram à Escócia, formando a Grã-
Bretanha, já a ponto de ser uma potência dominante na Europa. Economicamente, depois de
derrotar o país natal de Mandeville, a Holanda, em guerras navais, o Reino Unido já era o
suficientemente rico e próspero para despertar inveja e medo. E essa riqueza, antes de se
tornar industrial, décadas depois, era comercial e financeira. O que parece atualmente uma
situação banal, o do predomínio da economia na vida política e social, muda de figura quando
se percebe que a predominância do dinheiro vindo do comércio, e as mudanças que esse
mesmo comércio acarretava na vida social, eram grande fonte de preocupação, não
econômica, mas moral.Uma delas era a possível perda de vigor marcial, trazida pelo usufruto
de bens luxuosos. Outra era justamente a preocupação expressa por Mandeville e também
pelos defensores das Escolas de Caridade: como fazer para as classes subalternas não se
rebelarem com seu destino? Para Mandeville, a solução seria simplesmente não fazer nada,
deixá-las onde estavam. Para outros, a solução seria educá-las. E essa foi a
alternativarealmente aplicada com muito sucesso.
Pelo exposto acima, pode-se encontrar razões econômicas para Mandeville ser contra a
Caridade e a educação dos pobres, à custa de deixar parte da população fora da área do
consumo cada vez maior de todos os tipos de produto. Mas como encaixar essas pretensas
razões econômicas com o que se pode chamar de psicologia d A Fábula das Abelhas? Isto é,
como se pode pensar que seria factível manter, dentro de uma sociedade já voltada para o
consumo e para o prazer, uma parte da população sem acesso aos produtos que circulavam em
maior quantidade a todo novo dia? Isso, como Mandeville explica, foi possível enquanto os
que comandavam fingiam não viver melhor que os outros, mas como continuar essa farsa num
outro momento histórico, no qual o incentivo à satisfação dos desejos e a consciência de que
os seres humanos são iguais na questão de pensarem primeiro e acima de tudo cada qual em si
mesmo? Inadvertidamente, Mandeville acaba defendendo algo que, para ser feito, diminuiria
as riquezas da sociedade comercial que tanto prezava, fazendo com que esta voltasse no
tempo. A solução mais óbvia, um aprendizado para o consumo, aumentando a satisfação dos
desejos, foi dada por aqueles que não concordavam com Mandeville, mas que agiram como
políticos sagazes, dando respostas boas e controladoras à uma nova situação social. Algo que
não deixa, afinal, de ser irônico. .
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REFERÊNCIAS
Mandeville, Bernard (1997) – The Fable of the Bees and Other Writings Hackett Publishing Company Co. Indianapolis/Cambridge
Gellner, Ernest (1996) Condições da Liberdade, A Sociedade Civil e seus RivaisJorge Zahar Editor, Rio de Janeiro
Gianetti, Eduardo-(2007) – Vícios Privados, Benefícios Públicos? A ética na riqueza das naçõesCompanhia das Letras, São Paulo
Goldsmith, M. M.(1985)- Private Vices, Public Benefits, Bernard Mandeville's social and political thought Cambridge University Press, Cambridge
Ribeiro,Renato Janine (2005)O Afeto Autoritário - Ateliê Editorial, São Paulo
Schneewind, J. B. (2001)- A Invenção da Autonomia Editora Unisinos, São Leopoldo
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BELEZA E MORALIDADE EM SHAFTESBURY E HUTCHESON
Andrea Cachel1
RESUMO: Neste texto pretendemos abordar o vínculo entre moralidade e beleza em
Shaftesbury e Hutcheson, tendo em vista sustentar em que medida a noção de prazer
desinteressado passa a ser o centro dessa conexão. Também estará em jogo mostrar a
construção paulatina, nesses autores, da noção de sentimento ou senso moral, a qual visa
compatibilizar o prazer individual e o interesse coletivo e revelar a destinação humana para a
virtude. O privilégio da noção de experiência estética e da condição de espectador de quem
julga moralmente são também temas a que se dedica o artigo, a fim de permitir que o leitor
perceba como Shaftesbury e Hutcheson representam uma etapa importante quanto ao
deslocamento da identidade entre o belo e o bom para o campo do juízo, ainda que em suas
filosofias subsistam pressupostos metafísicos determinantes.
Palavras-chave: juízo de gosto; sentimento moral; Shaftesbury; Hutcheson
ABSTRACT: In this paper we intend to present the link between morality and beauty in
Shaftesbury and Hutcheson, in order to sustain in which extent the notion of disinterested
pleasure becomes the center of this connection. Also at stake it is to show the gradual
construction of the notion of feeling or moral sense in these authors, which aims to harmonize
the individual pleasure and the collective interest and the reveal of human disposition to
virtue. The privilege of the notion of aesthetic experience and the condition of the spectator
who judges morally are also themes that engaged the article in order to allow the reader
realize that Shaftesbury and Hutcheson represent an important step considering the
displacement of identity between the beautiful and good for the field of judgment, even if in
their philosophies remain determinants metaphysical presuppositions.
Key-words: judgment of taste; moral sentiment; Shaftesbury; Hutcheson
A correlação entre beleza e moralidade encontra-se presente em quase todos os
momentos de análise filosófica sobre a arte. E, sem dúvida, a tradição representada pelo
século XVIII inglês representa um capítulo bastante importante nesse contexto. Alguns
deslocamentos nos debates concernentes a esse tema são iniciados por essa tradição e, seja
como continuação desses deslocamentos, seja como crítica ou reorientação, muito do que se
seguirá na filosofia tem em vista o século XVIII inglês. Assim, sobretudo o aprofundamento
da noção de juízo de gosto, do foco na experiência estética, da centralidade adquirida pelo
prazer, são marcas de filósofos como Shaftesbury, Addison, Hutcheson, Burke e Hume. O
1 Doutora em Filosofia pela USP. Professora Adjunta de Filosofia na UFJF.
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vínculo entre moralidade e beleza, nessa perspectiva, assumirá novos contornos, contornos
esses que também estabelecem um horizonte de problemas a serem enfrentados pelos
filósofos posteriores.
Shaftesbury, sem dúvida, é um dos autores centrais para a inserção na modernidade
de uma rediscussão sobre a estética e representa uma passagem importante para o século
XVIII inglês. Sua obra é um amálgama de neoplatonismo e estoicismo, mas é, sobretudo, o
contexto do qual partirá a tentativa de se adaptar determinados compromissos de uma teoria
sobre o belo com uma metafísica peculiar à nova filosofia da representação, especialmente, no
caso dos autores ingleses do século XVIII, do empirismo lockeano. Shaftesbury é o autor que
faz a ponte entre o platonismo de Cambridge e o sentimentalismo inglês, de Hutcheson, Hume
e Adam Smith. Uma discussão sobre o belo, no seu caso, é indissociável de uma discussão
sobre teleologia e deísmo, estando a ética também totalmente vinculada a esses temas, do que
decorre que um vínculo entre gosto e estética se encontra também justificado por contexto
teológico. Uma análise mais detalhada do vínculo metafísico que suporta essas asserções,
embora extremamente relevante, não poderá ser realizada nesse artigo. Cabe-nos indicar
inicialmente, contudo, que em Shaftesbury o vínculo entre beleza e moralidade será apoiado
em argumentos que supõem haver uma teleologia na natureza, segundo a qual classificar um
ser como bom ou mal se dá inerentemente por sua relação com um sistema:
Portanto, se algum ser é total e realmente mau, deve sê-lo em relação ao
sistema universal e, nesse caso, o sistema do universo é mau ou imperfeito.
Mas se o mal de um sistema particular é o bem de outros, se ele ainda
contribui para o bem do sistema geral (como acontece quando uma criatura
vive à custa da destruição de uma outra, quando uma coisa é gerada pela
corrupção de uma outra, ou um sistema ou vórtice planetário pode tragar um
outro), então o mal desse sistema particular não é, na realidade, um mal em
si mesmo, como tampouco o é a dor causada pelo romper dos dentes num
sistema ou corpo constituído de tal modo que, sem essa ocasião de
padecimento, sofreria muito mais por ser imperfeito ou defeituoso. (...). Se,
entretanto, existisse no mundo alguma espécie de animais que fosse toda ela
perniciosa para todas as outras, poder-se-ia corretamente chamar-lhe uma
espécie má, por sê-lo para o conjunto do sistema animal. E se em alguma
espécie de animais (como no homem, por exemplo), um deles é de natureza
perniciosa para os demais, esse homem será, nesse aspecto, corretamente
qualificado como mau (SHAFTESBURY, 1996, p. 16).
A posição de Shaftesbury sobre a beleza ainda deve ser qualificada como realismo,
numa perspectiva que a insere no âmbito do neoplatonismo. Nesse sentido, por um lado,
Shaftesbury está diretamente ligado ao classicismo, tendo em vista que para ele a beleza está
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vinculada à noção de harmonia enquanto marca de uma correlação entre o mundo exterior, a
alma humana e a mente divina. Shaftesbury institui uma hierarquia entre os objetos belos e
uma ligação direta entre beleza e virtude. O belo exterior expressa o belo interior e o último,
belo direto em contraposição ao belo indireto, é superior. A mente que contempla deve ser
bela, tendo em vista que não se pode reconhecer aquilo do que não se participa. Há uma lei
natural da harmonia e o ajuizamento correto acerca do belo mostra a conformação da mente
com essa lei natural, uma adequação objetiva e necessária2.
Porém, embora falemos de qualidades atribuíveis aos objetos, tais como a proporção,
e da harmonia da Natureza, e de um contexto teleológico mais amplo, Shaftesbury representa
um primeiro passo na direção da mudança, em estética, do padrão clássico para a ideia
moderna de experiência estética. Isso porque, tanto na apreciação do belo como no campo da
moral, destaca a centralidade do sentimento gerado na mente a partir da observação do mundo
exterior e das ações humanas:
A mente, a qual é espectadora ou ouvinte de outras mentes, não pode existir
sem seus olhos e ouvidos, a fim de discernir proporções, distinguir sons e
perscrutar cada sentimento ou pensamento que se lhe apresente. Ela não
pode permitir que algo escape à sua censura. Sente o macio e áspero, o
agradável e o desagradável nas afecções, e descobre tanto o que é sórdido
quanto o que é belo, o harmonioso tanto quanto o dissonante, de um modo
tão real e verdadeiro neste caso como no de uma obra musical ou das formas
exteriores ou representações de coisas sensíveis. E em ambos os casos a
mente não pode conter sua admiração e êxtase ou sua aversão e desprezo.
De modo que negar o sentido comum e natural de sublime e de belo nas
coisas parecerá mera atitude de afetação aos olhos de quem considera
adequadamente esta questão (SHAFTESBURY, 1996, p. 18).
A passagem acima citada aproxima o juízo moral e o juízo estético, justamente pelo
fato de que tanto o belo como o bom não são afecções dos sentidos, mas objetos de uma
2 Sobre esse tema, observa ARREGUI (1995, p. 21): “En cuanto que la armonía es una propriedad de lo real antes que un critério ético y estético, el juicio de gusto está fundado em la naturaleza em un doble sentido: tanto porque es percepción de cualidades naturales de los objetos (armonía, proporción, etc) como porque tal percepción es función de un principio natural, y no adquirido, en el hombre. el fundamento del juicio de gusto es para él tanto la naturaleza de las cosas, de un cosmos que es en sí mismo armónico, como la naturaleza del hombre, la estructura psicológica del sujeto. Pero lo que resulta maś interesante en un planteamiento finalista como el de Shaftesbury, es la adecuación entre la ley objetiva de la naturaleza y la ley subjetiva de la constitución psicológica humana porque la adecuación o, para ser más exactos la armonía entre ambas leyes, aparece en Shaftesbury no como contingente sino como necesaria. El que el mundo nos resulte bello, o sea, que haya un acuerdo entre la naturaleza subjetiva o constitución psicológica del sujeto y la naturaleza objetiva o constitución ontológica del cosmos y, por consiguiente, la teleología de la naturaleza y el acuerdo entre las facultades; es decir, que al final lo captado como bello en la actitud desinteresada termine por resultarnos útil, aparece aquí no como un como si, more kantiano, ni como un acuerdo contingente fruto de una especial bondad divina, como sucederá después en Hutcheson, sino como algo necesario”.
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mente que é espectadora do mundo e dos outros seres humanos e que tem admiração ou
aversão, êxtase ou desprezo. A posição que o sujeito assume como espectador e os
sentimentos gerados a partir da experiência de contemplação daquilo que será ajuizado como
belo ou feio, bom ou mal, é tão essencial como as qualidades objetivas ajuizadas. Uma
adequação do sentimento à realidade, portanto, revela a virtude daquele que ajuíza, na medida
em que representa a integração do indivíduo com a natureza. Mais do que isso, perceber
adequadamente aquilo que é belo é, nesse contexto, ter uma mente conformada à natureza e a
sociabilidade como lei natural. A concepção teleológica da natureza, conforme expusemos, é
aqui central, porquanto explica a necessidade de adequação da mente humana à beleza dos
objetos externos, bem como o caráter moral expressado nessa adequação e no prazer por ela
gerado. Porém, o juízo, sua formação e natureza, ganha também relevância e, mesmo que
pautado no inatismo peculiar da filosofia de Shaftesbury, revela em que medida a vivência
subjetiva já é indicada por esse autor como tema privilegiado no debate estético e ético,
conforme será consolidado no século XVIII inglês.
Outro aspecto central da aproximação de Shaftesbury com o percurso que será
traçado pelo século XVIII é a proximidade que o autor estabelece entre beleza e moralidade a
partir da noção de desinteresse. Shaftesbury prioriza a ideia de juízo estético, o diferencia
radicalmente do juízo sensível com base na noção de desinteresse e qualifica o desinteresse
como uma prova da insustentabilidade do “egoísmo irrestrito” sustentado por Hobbes (com
sua rejeição à ideia de que se possa falar em bom e mal naturais) e como a possibilidade de se
sustentar uma moral “universal” a ser potencializada pela contemplação do belo. Uma
concepção teleológica da natureza suporta uma interpretação segundo a qual a sociabilidade é
natural, porquanto relaciona o indivíduo, como dito anteriormente, ao que chama de natureza
universal.
Nesse contexto, ademais, conciliará o interesse público e o interesse próprio,
chamando as afecções que contribuem para o primeiro de naturais e as que favorecem o
segundo como auto-afecções particulares e afirmando que estas só são incompatíveis quando
os graus das primeiras são demasiado fracas e das segundas elevados. Um estado “sadio e
robusto” dos afetos moderaria esses graus, opinião que também depende de uma visão
teleológica da natureza, segundo a qual a natureza individual tende para o bem do todo. Disso
decorreria que haveria um interesse do indivíduo em ser virtuoso e, portanto, regular as auto-
afecções particulares e eliminar as afecções não naturais, as quais seriam as que não visam
manter nem o sistema público nem o privado:
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“Mas tendo mostrado o que se entende por um grau excessivamente elevado
ou excessivamente baixo de paixão, e que “ter alguma afecção natural alta
demais ou qualquer auto-afecção demasiada baixa”, embora seja
frequentemente aprovada como virtude, ainda é, falando rigorosamente, uma
perversidade e imperfeição; chegamos agora à parte mais clara e mais
essencial do vício, a única que merece ser considerada como tal, ou seja: 1. quando as afecções públicas são fracas ou deficientes; 2. ou as afecções privadas ou auto-afecções são demasiado fortes; 3. ou surgem afecções que não são nenhuma dessas nem tendem,
em qualquer grau, para manter o sistema público ou o privado”
(SHAFTESBURY, 1996, p. 27).
A beleza, nesse contexto, terá a função de evidenciar que prazer não implica
necessariamente o desejo de posse. A noção de prazer desinteressado é, portanto, central para
Shaftesbury, na medida em que esse autor determina uma diferença radical entre o desejo e o
gosto, destacando que o prazer existente no belo não envolve a ideia de posse do mesmo. Sua
filosofia observa que se o prazer no belo envolvesse desejo de posse não seria juízo de gosto.
E sendo assim, que o belo exemplificaria a existência de uma contemplação totalmente
desinteressada, um prazer gerado sem que haja a intenção de usufruir do objeto, e que o juízo
de gosto possui uma relação com a moralidade justamente por evidenciar a possibilidade de
um prazer que não implica necessariamente apenas a contemplação das auto-afecções
privadas. Auto-afecções gerariam um bem ao indivíduo. Afecções naturais gerariam um bem
comum. Se as últimas não seriam contrárias às primeiras, a defesa de uma naturalidade apenas
da primeira, segundo Shaftesbury, aniquilaria a sociabilidade. Ter prazer em algo sem
pretender ter um domínio privado sobre o mesmo, por outro lado, representaria uma
capacidade que revela a nossa “destinação” moral, a naturalidade das afecções que favorecem
o interesse público.
Por isso, Shaftesbury é bastante sensível ao tema da regulação dos juízos estéticos e
morais e vê nisso, inclusive, uma tarefa de desenvolvimento individual, tendo em vista que
ajuizar adequadamente nestes âmbitos é também expor a beleza da própria mente que ajuíza e
a capacidade moral do indivíduo. Assim, mesmo postulando um padrão objetivo para o belo
na Natureza, esse autor argumenta que há nos indivíduos diferenças no juízo, as quais
revelam, ademais, diferenças quanto à virtude do sujeito e à sua formação. O tema da
formação e da regulação do juízo estético e ético, nesse contexto, torna-se central e revela em
que medida Shaftesbury, mesmo se referindo a ideias inatas e, como dito, sustentando um
suporte objetivo para as ideias de belo e bom, insere-se num contexto de debate no qual a
experiência estética é priorizada. Esta, ou, mais especificamente, a possibilidade de se formar
um olhar capaz de reconhecer o objeto belo, indica também, pelo vínculo entre a beleza e a
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virtude, a tarefa de formação moral existente na prática da experiência artística
(SHAFTESBURY. 1999. v1, p. 118-128).
A filosofia de Shaftesbury, portanto, ainda que seja comprometida com uma série de
pressupostos metafísicos que não poderão ser recepcionados pela tradição inglesa, aponta a
direção de vários temas a serem explorados mais adiantes por outros filósofos. O modo como
qualifica o belo o vincula diretamente com o bom, sobretudo tendo em vista a concepção de
que a beleza exterioriza a virtude. Dessa forma, estabelece uma conexão nas próprias ideias,
compreendidas como inatas, do belo e do bom. Além disso, o prazer desinteressado que
vincula uma e outra é entendido por Shaftesbury num contexto indissociável da teleologia da
natureza. Porém, por outro lado, esse mesmo elemento, o prazer desinteressado, revela o
início da centralidade a ser adquirida pela noção de experiência estética. A regulação dos
juízos, nessa perspectiva, torna isso bastante evidente, porquanto é para a adequação subjetiva
a uma ordem natural objetiva que se voltará a temática da conexão entre beleza e moralidade.
Hutcheson é o autor que de certo modo adapta a filosofia de Shaftesbury para o
contexto do empirismo inglês, sobretudo na tentativa de refutar as críticas feitas por
Mandeville e de eliminar os pressupostos metafísicos que tornavam essa filosofia
incompatível com a nova filosofia da representação. Ao inatismo de Shaftesbury, Hutcheson
oferece uma alternativa suportada principalmente no vocabulário lockeano das qualidades
secundárias, portanto, numa relação entre qualidades (em analogia às qualidades primárias)
dadas nos objetos e qualidades percebidas apenas pela mente (tais quais as qualidades
secundárias), a partir de um sentido voltado a elas. Em substituição à teleologia de
Shaftesbury, que cria uma correlação entre as formas na mente de Deus ao belo direto da
mente humana e posteriormente ao belo indireto do mundo sensível, enquanto identificação
de formas, Hutcheson sustenta haver faculdades especificamente voltadas para o belo e o
bom, a partir das quais se constituirão ideais originadas pela experiência.
Tendo a filosofia de Shaftesbury como mediadora, Hutcheson recupera alguns temas
do platonismo de Cambridge, como dissemos, especialmente a ideia de que o homem carrega
na sua alma a possibilidade da virtude, o que se expressará sobretudo a partir da sua defesa da
noção de senso moral e de uma posição segundo a qual a beleza é um meio de revelar a
inteligência e bondade de Deus, na sua concessão ao homem de acesso ao bem 3 . Em
3 Como observa GILL (2010, p. 15-18). Esse autor mostra em que medida Shaftesbury faz a passagem do platonismo de Camdridge para a tradição do século XVIII inglês, a partir de sua influência em Hutcheson. Segundo GILL, Platonistas de Cambridge e Hutcheson negariam a visão calvinista de que haja uma ponte intransponível entre a natureza humana e a divina.
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Hutcheson, contudo, não há uma fundamentação direta de uma ligação entre o belo e o bom,
tampouco uma unidade suposta entre o objeto belo, a mente bela que a contempla e a beleza
da mente de Deus. Ele sustentará a existência de um senso para a percepção do belo, o senso
interno, bem como de um sentido específico para a percepção do bem, o senso moral. A
analogia entre o belo e o bom passa a ser, então, a semelhança entre as características do juízo
de gosto e juízo moral e não o fato de que o belo expresse o bom4. Como em Shaftesbury, e
sem o apoio direto da metafísica que dava sentido à sua filosofia, a noção de prazer
desinteressado será o elemento comum que aproxima ética e estética, só que agora sobretudo
como marca do juízo formado concernente a essas ideias.
As ideias estéticas, como as morais, são, para Hutcheson, ideias simples oriundas de
qualidades existentes no próprio objeto, recebidas passivamente por um sentido especial,
distinto dos sentidos pertinentes à percepção das qualidades sensíveis. Como dito, Hutcheson
reinterpreta a filosofia de Shaftesbury a partir do vocabulário lockeano, recusando o
embasamento da ideia de belo num suporte inato e também rejeitando a visão racionalista da
beleza, que entende a harmonia já como um juízo de conhecimento. O prazer do belo seria
um prazer existente apenas no juízo, porquanto a beleza é uma qualidade na mente, originada
por qualidades no objeto. Porém, não se trataria de algo decorrente de um juízo cognitivo,
tendo o seu fundamento, portanto, na própria experiência e na existência prévia de um senso
interno estabelecido na natureza humana. Entre beleza absoluta e relativa a diferença estaria
apenas no fato de haver ou não um outro objeto como padrão de comparação de uma
imitação, sendo, por outro lado, qualquer ideia de beleza decorrente da experiência, ou seja,
da sensação ou da reflexão:
“A Beleza é Original ou Comparativa, ou, caso se prefira termos melhores,
Absoluta ou Relativa. Cabe observar apenas que por Beleza Absoluta ou
Original não é entendida alguma qualidade supostamente existente no objeto,
belo em si mesma, sem alguma relação com uma mente que a perceba. Isso
porque ‘Beleza’ denota propriamente, assim como outros nomes de ideias
sensíveis, a percepção na mente. Dessa forma, ‘frio’, ‘quente’, doce, amargo,
denotam as sensações nas nossas mentes, para as quais talvez não haja
semelhança nos objetos que excitam essas ideias em nós, ainda que
normalmente imaginemos que há algo no objeto exatamente igual nossa
percepção. (...). Assim, por Beleza Absoluta entendemos apenas aquela Beleza
que percebemos nos objetos sem comparação com alguma coisa externa, do
qual os objetos seriam supostamente uma imitação ou cópia, tais como a beleza
das obras da natureza, formas artificiais, formatos, ‘teoremas’. A Beleza
Comparativa ou Relativa é aquela que percebemos nos objetos, normalmente
considerados cópias ou imitações de algo”. (HUTCHESON, 2004, p. 27).
4 Conforme analisa JAFFRO (2011).
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A experiência mostraria um acordo universal entre os homens e tal acordo, segundo
Hutcheson seria prova de que não é a razão a origem do prazer estético, mas sim um sentido
especificamente voltado para a percepção de formas regulares, as quais, unanimemente geram
prazer (HUTCHESON, 2004, p. 63). Entendida como harmonia, como regularidade na diversidade,
unidade na multiplicidade, a beleza também passa a ser propriedade da mente que cria um
mundo com formas e leis regularidades. Hutcheson afirma que não pode ser excluída
demonstrativamente a possibilidade de que a regularidade na natureza seja obra apenas de
causas mecânicas, porém a considera completamente improvável. A regularidade na natureza
e uniformidade nas formas dos objetos e animais nos faz pressupor a causa intencional e a
existência de um criador, tendo em vista a improbabilidade da hipótese contrária,
caracterizada como peculiar à filosofia cartesiana e epicurista. Não seria a beleza
propriamente que provaria o desígnio, mas sim a regularidade observada na natureza. Porém,
o prazer na observação dessa regularidade estaria ligada à benevolência divina, pela qual a
felicidade nos seria concedida:
“A Beleza que percebemos na Natureza não é em si mesma prova da
inteligência da causa, a não ser que suponhamos que essa causa, ou o autor
da Natureza, seja benevolente. Nesse caso, a felicidade da humanidade é, de
fato, desejável e boa para a causa suprema. E a forma que nos agrada é um
argumento para a sua inteligência. A força desse argumento sempre aumenta
proporcionalmente ao grau de Beleza produzido na Natureza e exposto ao
olhar de qualquer agente racional, tendo em vista que, supondo-se a
benevolência divina, essa Beleza é uma evidência da ação de um designer
benevolente, que concede a esse agente racional o prazer da beleza”.
(HUTCHESON, 2004, p. 57).
No campo da moral, Hutcheson estabelece uma diferença entre bondade moral e
natural e afasta da primeira a noção de vantagem. A bondade moral seria uma qualidade
aprendida em ações, a qual obtém aprovação e o desejo de felicidade para o agente. Na
bondade natural não haveria essa aprovação. Também a bondade moral envolve o prazer,
contudo, o autor destaca a distinção entre prazer e interesse, afirmando que no sentido moral
aprovamos as ações dos outros sem qualquer relação com o nosso interesse, com o desejo de
posse. Trata-se também no caso da moral de sustentar a aprovação ou desaprovação como
decorrente de um senso, o qual não pressuporia ideias inatas ou conhecimentos e proposições
práticas, ou seja, não seria objeto da razão. O sentido moral seria uma determinação de nossa
mente de receber as simples ideias de aprovação ou condenação das ações observadas:
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“Há poucos objetos com os quais a nossa mente se ocupa que não geram
necessariamente prazer ou dor. Somos tomados pelo prazer diante de uma
forma regular, uma obra de arquitetura ou pintura, uma composição, um
teorema, uma ação, um afeto, um caráter. E sabemos que esse prazer decorre
necessariamente da contemplação da ideia, que na ocasião está presente à
nossa mente com todas as suas circunstâncias, mesmo que algumas dessas
ideias não tenham nada pertinente ao que chamamos de “percepção sensível”
(HUTCHESON, 2004, p.8).
A aprovação ou desaprovação das ações não envolve, segundo Hutcheson, a vontade,
tampouco pode ser decorrente do costume ou da educação. Seria um favor de Deus, pelo qual
enquanto favorecemos nosso próprio bem, favorecemos também o bem de outros. A
razoabilidade não poderia nos orientar a escolha ou aprovação da ação. Sendo assim, Deus
teria previsto que a nossa tendência para aprovar o que faz o melhor aos outros nos encaminha
para a felicidade. Haveria uma inclinação para o bem público, um desejo. A razão aprova o
que os sentidos nos apresentam como agradável e a virtude se mostraria prazerosa, a partir do
sentimento moral. Este seria um privilégio dado apenas ao ser humano. Que Deus seja bom
não é algo que possa ser deduzido a priori. Mas há uma probabilidade evidenciada pelo fato
de que as coisas tendem para o bem no todo, o mal no imediato pode ser visto como um bem
numa perspectiva mais geral. Portanto, assim como a regularidade nas formas naturais
conferiria probabilidade à hipótese de haver aí o resultado de um desígnio do criador, o
sentido moral seria uma das mais fortes provas da bondade de Deus. Assim, uma
intencionalidade na natureza, pela qual o evento individual só pode ser avaliado a partir da
perspectiva do todo e que envolveria uma tendência para o bem do sistema encontra-se em
alguma medida na relação estabelecido entre indivíduo e totalidade no prazer desinteressado
do juízo moral.
O prazer decorrente da aprovação implica a posição do juízo moral enquanto
constituído na perspectiva da observação do ato, de forma que à naturalidade da aprovação se
junta a relação entre indivíduo e todo. O espectador julgaria que o agente tem prazer ao
executar a ação e teria prazer na possibilidade de se colocar no lugar do autor do ato. Nesse
sentido, o prazer envolvido no juízo moral seria totalmente desinteressado e já criaria uma
relação entre o autor da ação e aquele que é seu espectador. Nesse contexto, trata-se de um
sentimento que se opõe ao juízo auto-interessado. Numa ação, aquilo que é avaliado é a
intenção do autor e não propriamente a ação e, sendo assim, a distinção entre a ação virtuosa e
a ação viciosa implicaria diretamente na análise da afecção que dá base à ação. Tanto o amor
a si mesmo como a benevolência são afecções que podem incitar o homem à ação. Ás vezes
elas se combinariam, às vezes se oporiam, de forma que a virtude envolveria a capacidade de
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se agir em vistas ao bem comum ou de forma a não tornar o auto-interesse excludente do
interesse público. Como Shaftesbury, Hutcheson não considera haver uma oposição
necessária entre auto-interesse e interesse público, sendo uma questão do grau empregado
nessas afecções o elemento que as compatibiliza ou não. Quando há vício, quando a ação
viola a relação com o outro, é porque o auto-interesse se impôs de forma a tornar
incompatível a felicidade individual e a coletiva. Num estado normal, contudo, não há essa
incompatibilidade e o prazer decorrente da avaliação da ação virtuosa prova esse aspecto. É
nesse sentido que Hutcheson observa que o mal só é praticado com vistas ao privilégio
excessivo do interesse próprio. Imaginar que o ser humano deseja simplesmente o mal do
outro, sem ter a perspectiva de ter benefício próprio na ação viciosa, representaria supor na
natureza humana uma perversidade excessiva.
Tanto o juízo estético como o ético, portanto, possuem uma mesma dinâmica e a
peculiaridade de evidenciarem a existência do prazer desinteressado. Hutcheson irá remeter a
universalidade do juízo estético, especialmente, moral ao funcionamento usual dos sentidos
pertinentes a esses juízos. O sentido interno e comum a todos aqui possibilita que a diferença
nos juízos concernentes ao belo e bom não sejam marcas da relatividade dos juízos, mas sim
do que qualifica como um defeito, uma operação irregular. Assim, sustenta, qualidades
secundárias não são imagens diretas da sensibilidade e, desse modo, são mais suscetíveis ao
erro (em distúrbios orgânicos, por exemplo). Mas, observa, tomamos em consideração as
imagens que habitualmente temos, distinguimos os momentos de distúrbios dos momentos
regulares. E, embora essa distinção envolva a razão, não se pode afirmar que as qualidades
sensíveis decorrem da razão, porquanto são provenientes da sensação, têm sua base em
poderes das qualidades primárias. De forma análoga, o bem e o belo ainda são qualidades
sensíveis, em um determinado sentido, e o juízo comporta uma universalidade potencial dada
no aparato da sensação, embora haja momentos de distúrbios, a serem simplesmente
corrigidos.
O problema da universalidade do juízo estético e ético é, assim, supostamente eliminado,
tomando-se como base a imersão do belo e do bom no aparato da percepção. Um sentido voltado
a cada uma dessas ideias garantiria um suporte objetivo para o juízo, cuja correção não eliminaria
o fato de que o mesmo se encontra no espaço do sentimento e não da razão. Não só o suporte
objetivo se refere ao fato de que haja qualidades nos objetos que geram o prazer desinteressado,
mas, especialmente seria garantido pela própria configuração da natureza humana, uma
benevolência divina. Ainda que também entrem em jogo alguns elementos referentes a um modo
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teleológico de se compreender a natureza, em Hutcheson há uma certa independência entre os
argumentos, por um lado, que sustentam uma analogia entre o belo e o bom, e, por outro,
compreendem isso como o apontamento da bondade do criador e da destinação humana para a
moralidade. Ao que parece, o vínculo entre beleza e moralidade passa a ter que ser descrito nos
limites de uma filosofia da representação, portanto, da subjetividade.
Justamente nessa perspectiva, todo esse contexto de análises e os temas que emergem na
tentativa de Hutcheson de adaptar a filosofia de Shaftesbury para o empirismo lockeano são
decisivos para o que se seguirá no século XVIII no campo da ética e da estética. Hume recepciona
alguns desses temas no ensaio Do Padrão do Gosto, bem como na sua filosofia moral. Embora
sua filosofia não referende todas as opiniões de Hutcheson5, é inegável que ela se move no
interior de um terreno forjado por esse autor. Ademais, no ensaio Do Padrão do Gosto Hume
retoma a questão da regulação do juízo de gosto, típica de Shaftesbury, a partir já de uma visão
segundo a qual o belo decorre de qualidades existentes no objeto. Da mesma forma, ainda que
Kant seja bastante crítico dessa tradição, a correlação estabelecida entre beleza e moralidade e os
limites encontrados pela tradição do século XVIII para justificar a universalidade do juízo sobre o
belo e o bem, são decisivos para a reordenação promovida pela filosofia kantiana. Mesmo que
paulatinamente se recuse a ideia de um sentido moral e de um sentido voltado à percepção da
beleza, assim como se rejeite que o juízo teleológico possa ser considerado equivalente do ponto
de vista epistêmico à causalidade mecânica, que determinadas formas naturais possam representar
um convite à contemplação desinteressada – a qual favorece o conhecimento, e que, nesse
sentido, ela possa indicar algo quanto ao substrato supra-sensível dos objetos – é uma noção que
permanece na filosofia kantiana. Ainda que reconfigurados, os termos da conexão entre beleza e
moralidade, tal qual expressos por Shaftesbury e Hutcheson, ressoam para além dessas filosofias.
5 Como destaca JAFFRO (2011, p. 132): “Dans le premier appendice de son Enquête sur les principes de la morale (1751), Hume n’hésite pas à parler d’une « ressemblance très étroite sur plusieurs points » entre la « beauté naturelle » et la « beauté morale », selon un vocabulaire qui est manifestement emprunté à Hutcheson. Il s’agit, pour Hume, de démontrer que le bien moral n’est pas plus une propriété de la situation pratique que la beauté n’est une propriété de telle figure géométrique ; l’un comme l’autre sont des effets dans l’esprit du témoin et consistent dans les sentiments d’approbation ou de désapprobation qui l’affectent à l’occasion d’un certain spectacle. À cette fin, Hume reprend l’analogie hutchesonienne entre les dispositifs subjectifs à l’œuvre dans la perception du beau et dans la perception du bien, mais l’ampute du réalisme indirect qui, tout compte fait, est superflu : à quoi bon affirmer la réalité d’une qualité qui intervient seulement en tant que cause et non pas en tant que contenu épistémique du jugement éthique ou esthétique ? Désormais, l’affinité du beau et du bien est maintenue sur les ruines de l’idée antique d’une connaissance morale ou d’une identité du bien et du beau ; elle ne signifie rien de plus que la similitude partielle de la psychologie du jugement de beauté et de la psychologie du jugement moral”.
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BERKELEY E O CRITÉRIO DE INTELIGIBILIDADE NA ARITMÉTICA E NA ÁLGEBRA1
BERKELEY ET LE CRITÈRE D'INTELLIGIBILITÉ DANS L'ARITHMÉTIQUE ET L'ALGÈBRE
Alex Calazans2
Resumo: O objetivo desse artigo é estabelecer uma análise do objeto matemático, segundo
Berkeley, presente especificamente na aritmética e na álgebra. Em especial, interessa
compreender qual é o critério adotado por esse filósofo para avaliar a inteligibilidade de tais
objetos. Para isso, será levado em consideração até que ponto o conceito de “ideia percebida”,
algo central para sua filosofia do ser é ser percebido (esse est percipi), deve ser um elemento
constituinte do critério de inteligibilidade adotado em tais disciplinas matemáticas.
Palavras-chave: ideia; inteligibilidade; signo; aritmética; álgebra.
Résumé : Le but de cet article est d'établir une analyse de l'objet mathématique, selon
Berkeley, présente précisément dans l'arithmétique et l'algèbre. Particulièrement, nous
sommes intéressés à comprendre quel est le critère adopté par ce philosophe pour évaluer
l'intelligibilité de ces objets. Pour ce lá, il sera prise en compte dans quelle mesure le concept
«d’idée perçue», une chose central à sa philosophie de l’être c'est être perçu (esse est percipi),
doit être un élément constitutif du critère d'intelligibilité adoptée dans ces disciplines
mathématiques.
Mots-clés: idée; intelligibilité; signe; arithmétique; algèbre.
1 Uma versão preliminar deste texto encontra-se em: Cf. Calazans, 2014. 2 Doutor em filosofia (IFCH-Unicamp). Professor de filosofia da FAVI (Faculdade Vicentina – Curitiba-PR)
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Introdução
Não é difícil encontrar entre historiadores da matemática uma divisão disciplinar da
própria matemática.3 Consolidada principalmente após o trabalho de Euclides, em seus
Elementos, tal divisão comumente é compreendida a partir da bipartição que têm os objetos
matemáticos a serem tratados como foco central. Tais objetos são as quantidades matemáticas
das quais os estudos matemáticos partiriam. Nesse sentido, de um lado, localiza-se a
geometria que tem como objeto de estudo as quantidades contínuas (ou extensas), tais como
os segmentos, ângulos, polígonos e poliedros. E na outra mão encontra-se a aritmética,
destinada ao estudo das quantidades discretas, isto é, as quantidades numéricas. Após isso,
matemáticos de língua árabe teriam se concentrado na tarefa de elaborar uma “linguagem”,
comum aos dois âmbitos. Disso surgiria a álgebra.4
Independentemente do debate sobre a pertinência dos fundamentos desses
historiadores a respeito de tal classificação das matemáticas, é possível dizer que, quando
Berkeley realizou seus estudos sobre a matemática, a discussão de como dividi-la em seus
vários ramos ainda estava presente. O surgimento da álgebra ainda representava um estímulo
para essa discussão. Desse modo, além de Berkeley, é possível ser encontrado o tema da
classificação da matemática na querela travada entre outros pensadores modernos tais como:
Wallis, Hobbes e Barrow. Estava em disputa a utilização de símbolos nos raciocínios
algébricos. Enquanto Wallis defendeu o simbolismo, considerando a aritmética como base
para fundamentar a geometria e a álgebra, Hobbes por outro lado rejeitou tal concepção.
Barrow, por sua vez, foi o personagem da discussão que assumiu a geometria como a fonte
para o fundamento das ciências dos números.5
3 Dentre eles, por exemplo, encontram-se: Jesseph, 1993, p.89; Berlioz, 2000, p 145; Panza, 2003, p. 35-36. 4 Cf: Panza, 2005, p. 19. 5 Uma interessante discussão sobre esse tema da classificação das disciplinas matemáticas, no período da
modernidade, pode ser encontrada em: Mancosu, 1996. Esse texto busca não somente analisar, por exemplo, o
embate entre Barrow e Wallis sobre a classificação (e hierarquia) das disciplinas matemáticas. Há a preocupação,
por parte de Mancuso, de sustentar que esse embate fez parte de uma discussão que teria ocupado o pensamento
matemático do século XVII, com um todo. Essa discussão ficou conhecida como Quaestio de Certitudine
Mathematicarum. Dentre outros, um dos principais problemas tratados estava o da justificativa da certeza da
matemática clássica, principalmente em termos do conceito de ciência demonstrativa como Aristóteles teria
apresentado em seu texto Segundos analíticos. Quanto a Berkeley, não é difícil de dizer que ele, em um
momento mais tardio, ao voltar a atenção para a classificação dessas disciplinas, está também participando dessa
discussão. O próprio Mancuso (ibidem, p. 9 e 150-177) inclui Berkeley nisso. Por outro lado, Jesseph (1993, p.
9-21) contrasta a discussão de Berkeley, sobre a natureza abstrata dos objetos matemáticos, com esse cenário
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Berkeley não ignorou esse debate. Sua inquietação manifesta-se já em suas primeiras
anotações, presentes em seu texto de juventude Comentários filosóficos.6 Ali e em vários
outros textos seus, pode-se assumir a existência de uma tomada de posição por parte de
Berkeley quanto a muitos aspectos dessas disciplinas matemáticas.
Todavia, a admissão de símbolos nos raciocínios matemáticos está carregada de
inúmeras questões de difícil abordagem. Interessa abordar uma delas aqui. Em especial,
interessa investigar qual é o critério de inteligibilidade a ser aplicado aos objetos da aritmética
e da álgebra. A colocação dessa questão pode receber inicialmente duas justificativas. A
primeira diz respeito ao fato de que, de um modo geral, na filosofia de Berkeley, o
conhecimento está condicionado à percepção de ideias. Além disso, Berkeley adota a
aritmética e a álgebra como disciplinas que possuem o signo como seus objetos imediatos. Tal
atitude parece dispensar a percepção de ideias com um critério para avaliar a inteligibilidade
de tais objetos. Então cabe investigar qual é critério que se aplica no caso dessas duas
disciplinas.
Outra justificativa para se questionar sobre inteligibilidade encontra-se na
interpretação que os comentadores fazem da filosofia berkeleyana da matemática. Eles têm a
tendência de interpretar o pensamento de Berkeley quanto à matemática não como um bloco
único. Por exemplo, Pycior argumenta que Berkeley reconheceu uma tripartite divisão da
matemática:
(1) geometria (a mais alta ciência matemática que foi baseada em percepções
sensoriais), (2) a aritmética e a álgebra (ciências formais envolvendo raciocínio em
meros sinais), e (3) análise [cálculo infinitesimal] (um método aplicado à
geometria). (Pycior, 1987, 266).
Jesseph (1993, p. 113-114) também assume que haveria independência entre tais disciplinas,
ou seja, a aritmética e a álgebra são disciplinas que se estruturam enquanto disciplina
matemática sem depender daquilo que faz a geometria ser uma disciplina matemática. Porém,
gerado pela Quaestio de Certitudine. Assim, isso permite dizer que é a partir da discussão sobre a própria
natureza dos objetos matemáticos que se formula um dos modos de participação de Berkeley nas questões que
incomodaram o século XVII sobre a certeza das matemáticas. 6 Todas as obras de Berkeley consideradas aqui se encontram em: Berkeley, 1979. Utilizarei as seguintes
abreviaturas para me referir às suas obras: PC: Philosophical Commentaries (Comentários filosóficos) PHK: A
Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge (Tratado sobre os princípios do conhecimento
humano); ALC: Alciphron, or the minute philosopher (Alciphron, ou o filósofo diminuto).
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diferentemente de Pycior, ele considera que, para Berkeley, a geometria não está acima da
aritmética e da álgebra do ponto de vista da cientificidade. Ora, como é possível avaliar a
inteligibilidade dos objetos da aritmética e da álgebra sem usar o mesmo critério utilizado na
geometria?
Ideia como objeto do conhecimento
Uma primeira tarefa a ser feita é investigar como Berkeley concebe, de um modo
geral, em sua filosofia, o conceito de inteligibilidade. No entanto, para isso, entra em cena a
necessidade de se fazer uma pequena discussão sobre o que é ideia. Uma das apresentações
mais canônicas sobre tal conceito aparece quando Berkeley trata, no início de seu texto
Tratado sobre os princípios do conhecimento humano (1710), do que é o objeto do
conhecimento. Ali o filósofo britânico assume uma posição que mistura as concepções
empirista e idealista quanto ao conhecimento das coisas.
Primeiramente, Berkeley concebe que ideia é aquilo que deve ser assumido como
objeto do conhecimento. E haveria somente três possíveis origens para ela. Isto é, tudo o que é
possível de ser conhecido diz respeito, somente, ao conteúdo fornecido por estas três
maneiras.7 A primeira é receber ideias impressas de forma atual nos sentidos (como: cor,
cheiro, sabor, forma e vários sons). A segunda trata-se das ideias que sentimos a partir das
paixões e operações do espírito (são excitações como amor, alegria, repugnância e tristeza,
sentidas quando as sensações da primeira maneira atingem o espírito). A terceira, e última,
origem para as ideias é aquela que ocorre com o auxílio da memória e da imaginação ao
compor, dividir ou representar as ideais surgidas pelas outras maneiras. Desse modo, são
somente esses três tipos de origem das ideias que Berkeley aceita, havendo entre elas, todavia,
uma ordem para que as ideias atinjam o espírito, cujo ponto inicial são os sentidos. O que é
importante focar aqui é que essa descrição é claramente uma atitude empirista. Sem as
percepções empíricas iniciais não haverá qualquer outro tipo de ideia ou objeto para se
conhecer.
7 Cf. Berkeley, PHK, §1.
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Por consequência, argumenta-se, nos Princípios, contra a possibilidade de existir um
mundo independente do que seja percebido por algum dos três modos enunciados acima: “E
que percebemos nós além das nossas próprias ideias ou sensações? E não repugna admitir
que alguma, ou um conjunto delas, possa existir impercebido?” (Berkeley, PHK, §4). Ao
apontar essa impossibilidade, Berkeley, necessariamente, reforça a interpretação de que ideia
é o genuíno objeto do conhecimento, ou seja, mostra-se evidente no texto de Berkeley que,
apesar de haver essas três fontes distintas da origem do objeto do conhecimento, tudo o que
vem por meio delas são necessariamente ideias. Todo o conteúdo que pode ser conhecido
(conteúdo cognitivo) depende das percepções ou das ideias adquiridas pelos três modos acima
citados. Nada surge na mente sem que tenha uma relação com a percepção obtida por algum
dos órgãos dos sentidos. O significado disso é que o conteúdo que está à disposição daquele
que irá conhecer são nada mais do que percepções ou manifestações mentais. Desse modo,
Berkeley não faz a separação entre a representação mental do mundo e o próprio mundo
como algo independente da mente. Para ele, aquilo que se manifesta na mente enquanto ideia
é a única realidade existente. Eis o significado de idealista aqui utilizado.8
O problema da inteligibilidade se manifesta imerso na discussão sobre o conceito de
ideia. Berkeley concebe que a compreensão de alguma coisa deve ter respaldo em ser
percebido enquanto ideia. Eis um exemplo de como ele usa o conceito de inteligível: “O que
se tem dito da existência absoluta de coisas impensáveis sem alguma relação com o seu ser-
percebidas parece perfeitamente ininteligível (unintelligible)” (Berkeley, PHK, §3). Como só
ideias são percebidas, ser inteligível para a própria mente depende de um vínculo com a
percepção de ideias. É a própria percepção da ideia que permitirá julgar se aquilo que é
afirmado sobre ela é inteligível ou não. O que evita o vínculo com tal percepção torna-se
incompreensível, ou melhor, ininteligível, para a mente. Adicionalmente, essa orientação está
presente na doutrina contida na famosa expressão latina de Berkeley: esse est percipi (ser é
ser percebido).9 Isso indica que não se pode haver comprometimento com a compreensão ou
inteligibilidade das coisas que se encontram fora do âmbito das coisas percebidas. Ainda que
8 Torna-se manifesto que isso não significa dizer que Berkeley não seja antes de tudo empirista. Pois a fonte
do conhecimento depende dos sentidos. O idealismo aqui deve ser utilizado para descrever a natureza do objeto
do conhecimento (que é ideia), e não o modo como adquirimos ou justificamos o conhecimento. A respeito desse
conceito de idealismo: Cf. AYERS, 2007, p. 15-16. 9 Cf. Berkeley, PHK, §3.
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o esse est percipi se manifeste como um princípio para avaliar os objetos do ponto de vista
ontológico (via ontológica), ele também surge como um princípio para estabelecer a avaliação
da inteligibilidade a respeito do objeto do conhecimento: o que se afirma sobre tal objeto é
inteligível para a mente, na medida, em que há o vínculo com uma ideia percebida. Essa é a
base para a construção de uma argumentação contra várias teses filosóficas de seu tempo
como é o caso do materialismo, aquela doutrina que assume a existência de um mundo
material independente das percepções mentais.10
A questão que se levanta após identificar a relação existente entre inteligibilidade e
percepção de ideias é se tal critério vale inevitavelmente também para a aritmética e para
álgebra. Isso não parece ser o caso, pois já nos Comentários filosóficos Berkeley manifesta
uma interpretação de um modo a livrar tais disciplinas do comprometimento com a percepção
de ideias:
Remova os signos da aritmética e da álgebra, e pergunto: o que permanece? [itálico
meu] (Berkeley, PC, §767).
Estas são ciências puramente verbais e completamente inúteis, a não ser para a
prática nas sociedades dos homens. Não há nenhum conhecimento especulativo
nelas, nenhuma comparação de ideias. [ênfase minha] (Ibidem, §768).
Está manifesto que Berkeley usa termos que evocam o tema do simbolismo na matemática.
Enquanto que, de um lado, aparece a palavra “signos”, de outro, menciona-se a aritmética e a
álgebra como sendo ciências “puramente verbais”. Nesse contexto, destaca-se o
questionamento feito na entrada 767. Embora não pareça de imediato, pode-se dizer que a
entrada 768 fornece elementos para sugerir uma resposta à pergunta de Berkeley: já que não
há “nenhuma comparação de ideias”, ao se retirar os signos dessas matemáticas, o que
sobraria é “nada”. Só é possível afirmar que a aritmética e álgebra são “puramente verbais”
caso os signos não estejam necessariamente relacionados a ideias.
Essas afirmações dos Comentários filosóficos, apesar de ilustrarem parte de como a
aritmética e a álgebra devem ser interpretadas, não fornecem o porquê de elas serem
“puramente verbais”. Mas onde repousa a justificativa de tal interpretação? Uma resposta
parece passar pela própria natureza dos objetos dessas duas disciplinas matemáticas. Desse
10 Berkeley, ainda nos Princípios, parágrafo 6, novamente se apoia na noção de inteligibilidade para criticar a
interpretação que assume a matéria como algo independente da mente. Nesse parágrafo, ele também critica a
doutrina das ideias abstratas como sendo a causa desse erro.
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modo, a reflexão sobre a inteligibilidade deve ser conduzida tendo como ponto de partida a
elucidação da natureza desses objetos matemáticos. Assim, como estratégia, cabe agora
compreender como o número (objeto da aritmética) vem a ser simplesmente um signo e, além
disso, faz-se necessário saber como a álgebra compartilha do mesmo tipo de reflexão quanto
aos seus objetos do conhecimento.
Objeto da aritmética: o que são números
Os Comentários filosóficos são um texto que Berkeley produziu em sua juventude sem
a finalidade de publicá-lo. Ali ele somente anotou questões, conceitos ou pequenos
comentários para serem desenvolvidos futuramente em outros textos. É por isso que o texto
não apresenta uma organização interna com o intento de fornecer uma sequência contínua
entre as várias anotações. Muitas delas contêm uma ligação somente quando analisadas a
partir de seu conteúdo interno. Na entrada 759, Berkeley faz menção à natureza linguística
dos números: “Duas coroas (crowns) são chamadas (called) dez xelins (shillings), daí pode
surgir a natureza dos números” (Berkeley, PC, §759). Está claro que a atenção de Berkeley
volta-se para o problema da denominação, algo que é pertinente para o próprio esclarecimento
das outras entradas 767 e 768, acima citadas. A acepção assumida agora é sobre a
possibilidade de nomear certa quantidade de dinheiro de duas maneiras distintas: de coroa ou
de xelim. Todavia, a novidade é a relação existente entre o problema da nomeação e a
natureza dos números. Compreender o que permite chamar “duas coroas” por “dez xelins”
forneceria, ao mesmo tempo, a possibilidade de saber o que é o número. Nesse sentido, se o
objeto da aritmética são os números, ao evocar um problema especificamente linguístico para
as reflexões a respeito desse objeto, só parece confirmar que Berkeley deu grande importância
ao caráter verbal dessa disciplina. São as próprias palavras de Berkeley, na entrada 766, que
confirmam:
“Nos problemas aritméticos os homens não buscam nenhuma ideia de número. Eles
somente buscam uma denominação. Isso é tudo o que pode ser útil a eles” [ênfase
minha] (Berkeley, PC, §766).
Aqui se apresenta explicitamente a articulação entre aritmética e denominação. Além disso, o
que Berkeley chama de “ideia de número” entra como um dos elementos centrais da
discussão, mesmo que seja para negá-la como objeto dos problemas aritméticos. Mas qual a
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diferença entre conceber o número enquanto “ideia” ou enquanto “denominação”? Além de
responder isso, é indispensável saber por que Berkeley aceita um e não o outro.
Já foi dito que o texto dos Comentários filosóficos trata de anotações que o jovem
Berkeley realizou para futuras investigações. Um exemplo é o seu Tratado sobre os
princípios do conhecimento humano (1710), onde novamente tematiza-se a aritmética,
relacionando a outros grandes temas filosóficos. Conceituar o que é o número entra como uma
de suas principais tarefas. Pode-se afirmar que essa discussão acontece a partir de duas teses:
(t.1) concepção materialista de número; e (t.2) concepção abstrata de número.11 Para
compreendê-las, é conveniente esclarecer que Berkeley considera Locke como sendo um dos
principais adversários quanto ao conceito de número.
Concepção materialista de número
Quanto à primeira tese, o que está em questão é uma divisão adotada entre qualidades
primárias e secundárias. Tal divisão se compromete com uma concepção materialista, isto é,
de que existe fora da mente uma a substância material não pensante.12 Assumindo isso,
enquanto as qualidades primárias residem na matéria, as qualidades secundárias seriam
qualidades presentes somente na mente, ainda que suas origens sejam a própria matéria.13 As
palavras de Locke, presentes em seu An essay concerning human understanding (1690),
defendem essa interpretação:
Primeiro, o volume, a figura, o número, a situação e o movimento ou o repouso de
suas partes sólidas. Essas [qualidades] estão neles [nos corpos], se percebamos ou
não; e quando [os corpos] tem um tamanho que possamos percebê-los, temos por
meio delas uma ideia da coisa com é em si mesma, como acontece com as coisas
artificiais. Chamo essas [qualidades] de qualidades primárias.
Segundo, o poder que, em razão de suas qualidades primárias insensíveis, está em
qualquer corpo para operar conforme uma maneira peculiar sobre qualquer um de
nossos sentidos, e, por isso, produzir em nós as diferentes ideias de diversas cores,
sons, odores, sabores, etc. Essas [qualidades] são usualmente chamadas se
qualidades sensíveis. (Locke, Essay, II, vii, §23).
11 Vários comentadores discutem o conceito de número na filosofia de Berkeley. No entanto, nenhum tem
tematizado tal conceito a partir da divisão feita aqui. Robles, por exemplo, mesmo se referindo ao problema do
materialismo e do abstracionismo acerca da discussão sobre o que é o número, utiliza o termo descritivismo para
tratar de tal assunto. Sua tese é que Berkeley tem uma posição antidescritivista de número, isto é, o número não
pretende dar uma descrição do que é o mundo. Cf. Robles, 1993, p. 102-109. 12 Cf. Berkeley, PHK, §9. 13 Cf. Berkeley, PHK, §10.
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Algumas linhas a diante, Locke ainda afirma:
As primeiras dessas qualidades [as qualidades primárias], como tem sido dito, penso
que podem ser chamadas de qualidades reais, originais ou primárias, porque elas
estão nas coisas mesmas, sejam elas percebidas ou não. E é sobre suas diferentes
modificações que depende as qualidades secundárias. (Ibidem).
Destaca-se, nas palavras de Locke, a classificação do número como uma qualidade dos
corpos, independentemente dos sentidos, isto é, como sendo qualidade primária. A tese
expressa em (t.1), portanto, resulta em conceber a matéria como fonte para a mente daquilo
que ela concebe como número. Em outros termos, esse conteúdo mental nada mais seria do
que a ideia de número. Nesse sentido, a mente é submissa, pois recebe da matéria aquilo que
ela assume como número. Porém, tal concepção materialista de número é imediatamente
rejeitada por Berkeley:
Que o número é inteiramente uma criação da mente, ainda que as demais qualidades
sejam admitidas existir fora dela, será evidente a qualquer um que considere que
uma mesma coisa pode comportar uma diferente denominação numérica, conforme a
mente a contemple de diferentes aspectos. Assim, a mesma extensão pode ser um,
três ou trinta e seis, segundo a mente a considere com referência a uma jarda, a um
pé ou a uma polegada. [ênfase minha] (Berkeley, PHK, §12).
O que é central no argumento é a possibilidade de estabelecer as várias denominações de
unidade de medida, ou seja, o número não é constante, absoluto. Um valor numérico pode ser
estabelecido a partir de vários outros tipos de unidades numéricas. Assim, 1 jarda é ao mesmo
tempo 3 pés e 36 polegadas. Esse é exatamente o mesmo problema identificado na entrada
759, dos Comentários filosóficos. Ao invés de dinheiro (seja coroa, seja xelim), agora
explicitamente Berkeley, nos Princípios, utiliza denominações numéricas. É possível dizer
que Berkeley manifesta a mesma interpretação nos dois textos. O número deve ser uma
criação da mente, pois, se existe a possibilidade de variar o que deve ser considerado como
unidade e, por sua vez, variando a própria denominação numérica, então isso significa que o
número é resultado de uma ação da própria mente. Ela não é passiva, ela não recebe de fora a
ideia de número. Pelo contrário, ela tem liberdade para determinar a unidade a ser considerada
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para construir aquilo que será considerado como número.14 Há, portanto, a presença de uma
arbitrariedade, por parte da mente, para determinar o que é o número. Isso vai contra a
interpretação materialista de número. Caso o número fosse uma ideia que teve origem na
matéria, não existiria a possibilidade de variação e, da mesma maneira, de estabelecer as
múltiplas denominações numéricas. Assim, a fonte do que é o número só pode repousar na
própria mente. É isso que está dito, na continuação do parágrafo 12, dos Princípios, quando
Berkeley concebe o número como algo relativo:
O número é tão visivelmente relativo, e dependente do entendimento humano, que é
estranho pensar como alguém lhe daria uma existência absoluta sem a mente. Nós
dizemos: um livro, uma página, uma linha. Todas essas são igualmente unidades,
embora algumas contenham várias outras. E em cada instância está claro que a
unidade relata alguma particular combinação de ideias arbitrariamente juntadas pela
mente. [ênfase minha] (Ibidem).
Portanto, a concepção materialista de número implica a impossibilidade da mente ser ativa, de
ter a liberdade para indicar como quiser a unidade de medida a ser utilizada. É a mente que
“arbitra”, ou seja, ela que sempre decide o que se usará como unidade para estabelecer as
medidas. Nesse sentido a unidade depende de uma ação da mente.
A rejeição de Berkeley de que o número seja uma qualidade primária (como sendo
algo existente fora da mente) impede de imediato que as denominações numéricas contenham
uma dependência de algo que extrapola o domínio mental. Porém, a pergunta que cabe agora
é a seguinte: recusar a tese materialista de número (t.1) leva à recusa da tese abstrata de
número (t.2)? Essa é uma questão facilmente respondida caso se assuma a seguinte
interpretação: a concepção materialista é a fonte da concepção abstrata. Isso significa que a
concepção abstrata seria somente uma maneira de descrever como a mente recebe e trata o
que está fora dela. Nessa interpretação haveria uma dependência completa da mente com o
que é externo. Assim, como a tese (t.1) é rejeitada, então a tese (t.2) deveria também ser
rejeitada.
Contudo, a situação parece ser um pouco mais complicada. Pois, caso existisse essa
correlação direta entre (t.1) e (t.2), não haveria a necessidade de assumir aqui a própria
14 Vale acrescentar ainda outra afirmação de Berkeley, dos Comentários filosóficos, para se observar a
semelhança de tese dos dois textos: “O número não se encontra em nenhuma coisa exterior à mente, porque é a
mente, ao considerar as coisas como uma, que forma ideias complexas delas. É a mente que as combina em uma
e que, por considerar suas ideias de outra maneira, pode fazer uma vintena (score) do que em um momento era
apenas um” (Berkeley, PC, §104).
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divisão entre as duas teses. Em outras palavras, (t.2) seria parte-dependente de (t.1). De tal
modo, bastaria rejeitar somente essa última tese. Mas o que se vê no texto de Berkeley é uma
tentativa de ir muito além. Há ali a preocupação em recusar uma concepção intelectual
errônea de número: aquela que aceita a existência de algo interno à mente associado às
denominações numéricas e que permitiria compreender a natureza do número. Isso estaria
associado à concepção de “ideia abstrata de número”:
Tem sido pensado que a aritmética tem as ideias abstratas de número como seu
objeto. Da qual, para compreender as propriedades e as relações mutuas, supôs-se
não fazer parte do conhecimento especulativo. A opinião de uma natureza pura e
intelectual dos números em abstrato tem fornecido a esses estima entre os filósofos,
que parecem ter afetado uma incomum sutileza e elevação do pensamento. Essa
opinião tem emprestado valor às mais insignificantes especulações numéricas que na
prática não servem para nada senão para divertimento, e, por essa razão, tem
contagiado tanto a mente de alguns que eles imaginaram profundos mistérios
envoltos nos números, e tentaram explicar coisas naturais por meio deles. [ênfase
minha] (Berkeley, PHK, §119).
Nesse trecho, ao mencionar a opinião de uma “natureza pura e intelectual” do número, torna-
se evidente que Berkeley assume a possibilidade do número ser interpretado, pelo seu
oponente na discussão, como algo resultante somente da mente. Não há, nesse caso, a direta
necessidade de admitir que a origem do conteúdo “puro” e “intelectual” do número esteja fora
da mente, pois, caso tivesse, ele não seria “puro” e “intelectual”. É por isso que aqui se faz a
distinção das teses (t.1) e (t.2).
Por outro lado, é claro que, ao refutar a tese (t.1), Berkeley enfatiza a total
dependência do número em relação à mente. De certa forma há um comprometimento com a
natureza intelectual do número. No entanto, agora, existe algo diferente na sua investigação.
Sua atenção volta-se para (t.2) no sentido de realizar uma análise de algo equivocado na
perspectiva “pura e intelectual”. A saber: que o número seja resultado de uma concepção
equivocada de abstração, algo que resultaria na pretensa “ideia abstrata de número”. Isso teria
se tornado um dos empecilhos para o desenvolvimento da aritmética. Está manifesto que
Berkeley se contrapõe a uma concepção comumente aceita em seus dias, tanto por
matemáticos como por filósofos, de que a aritmética é uma ciência da abstração.15
15 Entre os matemáticos, é interessante citar a opinião de Barrow. Para ele a matemática estava dividida entre
pura e mista. O que a diferenciava era o grau de abstração que a mente realiza quanto à matéria, à circunstância
material e aos acidentes. Assim, aritmética poderia ser pura e aplicada. A aritmética pura trata dos números
abstratos; e a aplicada das propriedades dos objetos finitos, particulares. Cf. Jesseph, 1993, p. 100.
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Concepção abstrata de número
Nos Princípios, é no contexto de uma crítica acerca da linguagem que Berkeley trata
pela primeira vez da teoria da abstração. É ainda em sua introdução que há a preocupação em
compreender se a linguagem não está sendo prejudicada ao se assumir nela a existência de
pretensas ideias abstratas naquilo que a estrutura. Em especial, Berkeley avalia se a palavras
tornar-se-iam significativas por possuírem como referência as ideias abstratas. Esse, por
exemplo, seria o caso a ser investigado quanto aos termos gerais.
Entretanto, qual é conceito de ideia abstrata criticada? É bem conhecida a exposição
que Berkeley faz, na introdução, aos Princípios, sobre a doutrina da abstração. Ali ele recusa
duas interpretações de ideias como sendo resultado de um processo de abstração. A primeira é
aquela que pretende assumir que qualidades percebidas sempre juntas em um objeto poderiam
ser separadas entre si pelo espírito e ser analisadas uma independentemente da outra. Nesse
sentido, a ideia abstrata é definida como resultado de um processo de separação (realizado
pela razão) de algo que os sentidos nunca encontrarão separado de outras coisas. O outro
modo de separação ocorre não somente a partir da simples divisão do que é percebido
conjuntamente. Acrescenta-se agora uma nova tarefa: encontrar o que é comum a todos os
particulares analisados de um modo a formar a noção geral das coisas, ou ainda, uma ideia
geral abstrata. Seria essa espécie de ideia que, supostamente por atuarem como referência
direta, tornaria as palavras, ou termos gerais, significativas. No entanto, Berkeley não demora
a rejeitar qualquer uma dessas concepções de ideias abstratas, relacionadas ao problema da
linguagem. A fonte para o argumento contra elas reside em seu “empirismo”, cristalizado em
sua filosofia do esse est percipi: a mente separa unicamente aquilo que seja possível de ser
percebido separadamente in re.
Ao voltar-se para aritmética, uma das principais teses que Berkeley tenta sustentar, a
respeito dos números, é a de que eles não são ideias abstratas. Em especial, nega-se que os
números sejam de natureza abstrata por resultarem de uma coleção de unidades em abstrato.
Tal concepção de número partiria da tese de que a própria unidade seria algo obtido por
abstração. Isso, por sua vez, conduz à reflexão sobre a suposta utilização da ideia abstrata de
número com o que acontece com a própria linguagem. A seguinte passagem do texto parece
indicar isso:
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Já consideramos antes, no parágrafo 13, a unidade em abstrato, e, a partir do que foi
dito na Introdução, segue-se claramente que não existe tal ideia. Mas, definindo-se
número como uma coleção de unidades, podemos concluir que, se não existe tal
coisa como unidade ou unidade em abstrato, não existem ideias de número em
abstrato denotadas pelos nomes e algarismos (figures) numéricos. (Berkeley, PHK,
§120).
São quatro os aspectos que ali se destacam:
(i) Não existe unidade ou unidade em abstrato (tese do §13, dos
Princípios);
(ii) Número é uma coleção de unidades;
(iii) Não existe número em abstrato;
(iv) Nomes e algarismos numéricos não denotam ideias abstratas.
Para acompanhar a argumentação de Berkeley, vale a pena analisar cada um desses pontos
identificados aqui.
Considerando inicialmente o ponto (iv), a primeira coisa que é possível explicar não se
relaciona ainda com o problema da abstração, mesmo que ainda diga respeito ao aspecto
linguístico. Trata-se do porquê de Berkeley, na citação, fazer uma distinção dos seguintes
termos: “nomes” e “algarismos”. Observa-se que com eles pretende-se indicar elementos
distintos. Uma coisa são os nomes dos números, outra são as marcas que designam os nomes;
e, mesmo havendo distinção entre eles, um pode designar o outro. Assim, os nomes dos
números (como um, dois, três...) podem ser designados por caracteres ou algarismos
específicos (como 1, 2, 3...). Porém, o que importa a ser destacado com isso é que não se
estabelece a existência de uma relação necessária entre nomes e tais caracteres. Para
Berkeley, há uma arbitrariedade para se constituir tal relação, pois, mesmo que os nomes
permaneçam os mesmo, os caracteres podem se modificar. Portanto, nome numérico e seu
respectivo caractere, além de serem distintos um do outro, têm sua relação determinada
arbitrariamente. Há a possibilidade do nome de um número qualquer ser designado não
exclusivamente por um determinado caractere.16
16 Essa perspectiva se confirma com uma análise do que está expresso no parágrafo 121, dos Princípios. Ali
Berkeley considera a origem da notação numérica criada pelos “árabes ou hindus”. Ele exalta a eficácia da nova
notação em detrimento de outros tipos de notações até então criadas. Sua exaltação tem foco no que diz respeito
somente aos “caracteres ou algarismos” e não quanto aos nomes. A superioridade da nova notação reside no fato
de apresentar uma nova relação entre tais marcas. Os nomes dos números teriam permanecido os mesmos, mas
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Outro elemento que deve ser esclarecido, quanto ao ponto (iv), está agora mais
relacionado ao problema da abstração. Especificamente, trata-se do fato de Berkeley usar um
conceito de significado. Em especial, o filósofo avalia se os signos da aritmética (nomes e
algarismos) possuiriam significado unicamente por denotarem (designarem) ideias abstratas.
Desse modo, acontece ali um julgamento de qual seria a referência dos signos da aritmética.
Berkeley recusa que os signos aritméticos possam denotar ideia abstrata, pois não existiria a
própria ideia abstrata pretendida de número. É exatamente em (iii) que se expressa a recusa da
existência desse tipo de ideia.
Por sua vez, outro conceito importante reaparece nessa discussão sobre a natureza
abstrata do número. O que se afirma em (iii) é fruto das outras duas afirmações (i) e (ii), cujo
objeto principal é o conceito de unidade. Cabe, assim, aprofundar o que é, para Berkeley, a
unidade numérica. Entra agora em questão o mencionado parágrafo 13, dos Princípios, como
indicado no ponto (i). Eis o que se afirma ali:
Sei que alguns sustentam que a unidade é uma ideia simples e não composta, que
acompanha todas as demais ideias na mente, mas não encontro em mim nenhuma
ideia que corresponda à palavra unidade, e, se a tivesse, creio que não poderia deixar
de encontra-la. Pelo contrário, deveria ser a mais familiar ao meu entendimento, uma
vez que se diz que ela companha todas as demais ideias e que é percebida por meio
de todos os caminhos da sensação e reflexão. Para não me alongar, trata-se de uma
ideia abstrata. (Berkeley, PHK, § 13).17
No que é dito aparecem duas características importantes que estariam associadas àquilo que
muitos compreenderiam ser a unidade. Para eles, a unidade seria: (a) uma ideia simples; e (b)
é uma ideia que acompanha todas as outras ideias. A característica (a) consiste na
simplicidade, ou seja, é algo que não pode ser reduzido a partes menores. A característica (b)
é a apresentação de uma universalidade. Isso quer diz que a unidade não é algo exclusivo de
uma ideia particular. Não se trataria, por exemplo, de uma página, um capítulo, de um livro.
as marcas que designam os nomes dos números se alteraram, facilitando os cálculos que poderiam ser feitos por
outros tipos de caracteres até então existentes. 17 Provavelmente Berkeley escreveu esse parágrafo pensando novamente em refutar o que Locke escreve a
respeito da unidade no Essay: “Como entre todas as ideias que temos não há nenhuma que seja sugerida à mente
por mais vias do que a de unidade ou de uno, não há, portanto, ideia que seja mais simples. (...) É, por
conseguinte, a mais íntima aos nossos pensamentos, do mesmo modo que, pela sua combinação com todas as
demais coisas, é a ideia mais universal que temos” (Locke, Essay, II, xvi, §1). Para detalhes dessa interpretação
lockeana do conceito de número em relação à réplica de Berkeley: Cf. Jesseph, 1993, p. 102.
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Em outras palavras, ainda que possa ser aplicada ao que é particular, assume-se que a unidade
é uma ideia que possui independência de quaisquer que sejam os particulares.
Não obstante, torna-se claro que a argumentação contra essa concepção de unidade
parte de uma espécie de exame das ideias, pois Berkeley desafia a procurar na mente algo que
contenha simultaneamente as propriedades (a) e (b). Como elas estão associadas entre si e
apontam para uma independência do que é particular, em sua concepção, a descrição da
unidade em tais termos faz lembrar a pretensa formulação de uma ideia abstrata. É por isso
que Berkeley não demora em concluir negativamente quanto à possiblidade de encontrar essa
espécie de unidade.
É possível compreender ainda mais a recusa da unidade como sendo “ideia simples”.
Basta lembrar o que foi analisado do parágrafo 12, dos Princípios, na discussão acima de
(t.1). Observou-se que Berkeley concebe o número como criação da mente. De maneira
arbitrária, a mente pode escolher qualquer coisa como unidade de medida. Logo, isso se
torna incompatível com a concepção de simplicidade, algo expresso pelo conteúdo de (a).
Almejar uma unidade em seu estado mais simples é tentar delimitar a existência da unidade.
Desse modo, existiria somente uma unidade. Visto que a unidade é sempre relativa, resultado
de uma escolha, portanto, não existirá a unidade em estado mais simples e, por conseguinte,
somente uma unidade. O que é em um momento tomado como unidade pode se tornar
agregado em outro e vice-versa. Nem todo processo de mensuração utiliza a mesma unidade.
Assim, a arbitrariedade é incompatível com a ideia de unidade em seu estado mais puro de
simplicidade.
Mas, para Berkeley, isso resulta na eliminação de qualquer conceito de unidade? Na
afirmação (i), foi apresentado que Berkeley nega a existência de “unidade ou unidade em
abstrato”. A disjunção não pretende assegurar que Berkeley recusa todo e qualquer tipo de
unidade. Ela relaciona algo que alguns chamam de unidade, mas que, para Berkeley, deve ser
chamada de “unidade em abstrato”. A palavra “unidade” sozinha indica o conceito errôneo
pretendido; e as palavras “unidade em abstrato” revelam a visão de Berkeley do que na
verdade é tal conceito errôneo. É possível observar que Berkeley aceita um conceito de
unidade, ou seja, é nesse sentido relativo, como sendo sempre o resultado de uma escolha. Tal
definição de unidade não impede que o conceito de número seja formulado, como dito em (ii):
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enquanto “coleção de unidades”. Porém, o número também deve ser visto como resultado da
arbitrariedade, como resultado de uma escolha.18
A recusa da unidade e do número em abstrato deixa em aberto uma questão
importante: qual é a universalidade que Berkeley aceita na aritmética? De um modo geral,
pode-se dizer que ele estava ciente do papel desempenhado pela universalidade na
constituição do conhecimento.19 Como esclarecido em (b), há no conceito rejeitado de
unidade a pretensão pela universalidade. Se Berkeley não aceita uma concepção de
universalidade que aponta para uma perspectiva abstracionista de unidade e de número, mas
por outro lado manifesta a demanda pela universalidade, falta esclarecer como se salva a
universalidade naquilo que ele concebe como unidade e, por sua vez, como número. Porém,
na aritmética, o problema que se põe surge da própria concepção de unidade e número como
resultado da arbitrariedade: para haver universalidade é necessário já ter escolhido a unidade
de medida?
No plano da linguagem, resumidamente a solução de Berkeley a respeito da
universalidade repousa sobre dois aspectos. De um lado está a ideia geral e de outro, o termo
geral. Isso acontece quando uma ideia torna-se representante de outra por possuir nela uma
característica comum a outras. A mente seleciona essa característica e generaliza a outras
ideias, buscando a percepção da mesma característica. É na relação entre particulares,
estabelecida por essa característica selecionada, que a ideia torna-se geral. Por outro lado, o
termo geral surge quando ele é signo da própria ideia geral. É muito conhecida a passagem
onde Berkeley apresenta esse conceito de universalidade, nos Princípios:
18 Essas concepções parecem não contrariar as definições apresentas no Livro VII, dos Elementos de
Euclides: 1 – Unidade é aquilo segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita uma; 2 – E número é a
quantidade [] composta de unidade (Euclides, 2009, p. 269). Número enquanto “coleção de unidades”
ou como “quantidade composta de unidade” tem diferença? Segundo Heath (Euclides, 1968, v.2, p. 280),
contemporâneos de Euclides utilizaram termos diferentes para definir número. Em alguns momentos, número foi
concebido como “coleção de unidades” (). Em outros momentos, ele foi concebido como
“quantidade determinada” (). No entanto, Heath trata esses termos como sinônimos. Da
mesma maneira, é possível defender que, do ponto de vista de Berkeley, nesse contexto da definição de número,
“coleção” é sinônimo de “quantidade”. Acredita-se que a definição de Euclides foi fonte da concepção de
número como coleção de unidades, partilhada entre vários matemáticos no período de Berkeley. Entre esses
matemáticos estaria André Tacquet: Cf. Jesseph, 1993, p. 101. 19 Eis a passagem que indica o consentimento dessa necessidade: “Sei que se insiste muito no fato de todo
conhecimento e toda demonstração se referirem a noções universais, com o que estou plenamente de acordo.
Mas nesse caso não me parece que essas noções sejam formadas por meio da abstração segundo a maneira antes
mencionada”. (Berkeley, Intro, PHK, §15).
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A universalidade, até onde posso compreendê-la, não consiste na natureza ou na
concepção positiva e absoluta de alguma coisa, mas na relação que ela tem com as
coisas particulares significadas ou representadas (signified or represented) por ela.
É em virtude disso que as coisas, os nomes ou as noções, sendo em sua própria
natureza particulares, tornam-se universais. [ênfase minha] (Ibidem, §15).
Portanto, Berkeley está supondo que a universalidade só é possível quando uma ideia possui
relação com uma classe de particulares, estabelecida quando a mente seleciona determinadas
características comuns presentes nos particulares. As palavras tornar-se-iam gerais ao serem
representantes dessas ideias gerais.20
Porém, no caso do número, isso parece indicar duas possibilidades de interpretação da
universalidade, cuja escolha da unidade é o que diferenciará uma da outra. A primeira
hipótese de interpretação é aquela em que se concebe o número como universal, pois ele seria
resultado da presença de uma ideia que se torna geral na relação com outras ideias. Isso está
de acordo com o que Berkeley defende na Introdução aos Princípios. Porém, essa hipótese
parece levar a uma demanda que deve ser satisfeita antes da própria manipulação dos
números: escolher arbitrariamente a unidade de medida. A ideia que se torna geral é a própria
unidade de medida. Mesmo escolhendo uma ideia percebida e tratando-a como unidade, algo
importantíssimo para universalidade não é eliminado, ou seja, tal escolha não impede que a
relação entre particulares se estabeleça. Por exemplo, escolhe-se uma ideia percebida que
pode receber qualquer nome. A unidade de medida “polegada” é um exemplo dessa
nomeação. Tal ideia pode tornar-se universal quando se estabelece a relação com outras ideias
que contenham as suas mesmas propriedades. Isso não impede que “1 polegada” seja tomada
no sentido universal. O que entra em jogo não é esta ou aquela ideia percebida isoladamente e
denominada “1 polegada” presente em uma dada régua, mas todas as ideias que podem ser
representadas pela ideia referida por “1 polegada”. Isso permite pensar a régua (em
polegadas) no sentido universal. Caso contrário existiria somente uma régua e, nesse caso, a
palavra “polegada” funcionaria somente como um nome próprio de uma ideia particular.
A outra hipótese de interpretação é aquela que contém a escolha da unidade como uma
ação não concretizada. A escolha arbitrária existiria enquanto possibilidade, sem ainda ser
levada a cabo. Em seu universo encontra-se a possibilidade de escolha de qualquer unidade,
20 Para mais detalhes sobre o conceito de ideias gerais em Berkeley: Cachel, 2003; Winkler, 2005, p. 125-
165.
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seja ela uma polegada, uma jarda, um pé, ou ainda, um livro, uma página, uma linha – para
citar somente alguns dos exemplos de unidade que aparecem nos textos de Berkeley.21 Dessa
maneira, agora a marca numérica “1” indicaria o conjunto de todas as possíveis unidades que
arbitrariamente poderão ser escolhidas, diferenciando-se da hipótese anterior onde “1
polegada” é universal somente no caso da unidade de medida “polegada”.
Contudo, qual das duas hipóteses Berkeley concebe para a aritmética? É possível ter
universalidade sem escolher efetivamente a unidade de medida? Uma afirmação de Berkeley,
que aparece ao final dos Princípios, no parágrafo 122, pode fornecer elementos para
formulação de respostas. Ali existe uma menção ao que ele havia discutido na Introdução aos
Princípios acerca das palavras.22 Trata-se da concepção de que elas teriam significado devido
às ideias abstratas, algo que, como visto, é em sua opinião insustentável. Agora a tarefa do
parágrafo é outra. Há um contraponto com o conceito de número, ou seja, o objetivo é o de
negar a tese de que: “...ideias abstratas são significadas por nomes numerais ou caracteres,
enquanto eles não sugerem ideias de coisas particulares para nossas mentes” (Berkeley, PHK,
§122).23 Adota-se, nesse parágrafo, um modo “econômico” de escrita, ou seja, Berkeley
afirma ainda que não entrará em uma “dissertação mais minuciosa sobre o assunto”.
Realmente ali não são desenvolvidas as situações em que “nomes numerais ou caracteres” não
sugeririam coisas particulares. Por outro lado, Berkeley limita-se a uma atitude positiva:
indicar quais são os elementos presentes na correta interpretação a respeito dos numerais e de
caracteres na aritmética:
...é evidente, a partir do que foi visto, que estas coisas que passam por verdades e
teoremas abstratos concernentes a números não estão relacionadas (conversant
about), na realidade, a nenhum objeto distinto de coisas particulares numeráveis,
exceto somente nomes e caracteres, que originalmente não foram considerados
senão como signos, ou capazes de representar apropriadamente quaisquer (whatever)
coisas particulares que os homens tenham necessidade de computar. (Berkeley,
PHK, §122).
Ao utilizar as palavras “verdades e teoremas abstratos”, Berkeley pretende indicar o que
muitos pensadores de sua época aceitavam como conhecimento matemático a respeito de
21 Cf. Berkeley, PHK, §12, p. 106. 22 Berkeley precisamente menciona o parágrafo 19 da Introdução, dos Princípios. 23 “…abstract ideas are thought to be signified by numeral names or characters, while they do not suggest
ideas of particular things to our minds”.
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números. Porém, a finalidade é corrigir esses pensadores. Isso é feito quando ele classifica os
objetos particulares (passíveis de serem numerados) e os nomes e caracteres numéricos como
sendo os únicos objetos que se relacionam com o que é conhecimento relativo aos números. É
importante notar que, nesse caso, Berkeley não está indicando quando os nomes e caracteres
são aplicados aos objetos particulares. Contudo, sua afirmação tem um caráter mais geral, isto
é, o de apresentar de modo amplo todos os elementos que podem em alguma ocasião estar
presentes naquilo que é tido como conhecimento a respeito de números. Evidentemente, em
sua perspectiva, a ideia abstrata de número nunca surgirá como um desses elementos.
Por sua vez, ao listar tais objetos, Berkeley concebe “nomes e caracteres” como sendo
“signos”. Isso não é mais um simples detalhe, pois Berkeley utiliza signo para designar uma
classe geral de termos, onde a relação entre particulares desempenha papel central. É
exatamente a mesma interpretação que se manifesta quanto aos signos da aritmética. Para
confirmar, vale observar o peso que o termo “representar” tem na citação acima. Com ele,
Berkeley não somente evidencia a capacidade que o signo tem de ser substituto, isto é, de ser
representante de coisas nos raciocínios matemáticos, mas, também, manifesta em qual
amplitude isso acontece. A saber: em seu sentido mais geral. Prova disso é o fato de Berkeley
considerar indiscriminadamente a possibilidade de aplicação dos signos. A aplicabilidade diz
respeito a quaisquer coisas particulares que se necessite contar. Independentemente do
aspecto prático dado aos signos, isto é, o de suprir uma necessidade dos homens, Berkeley
não delimita quais objetos particulares deverão ser contatos. Isso indica que qualquer
particular pode vir a ser representado pelos signos à medida que apareça a demanda por contá-
los. Assim, é possível dizer que Berkeley, na citação, trata do signo matemático no plano mais
universal possível. É exatamente isso que permitirá esclarecer em qual sentido ele concebe a
universalidade na aritmética: tal interpretação é mais compatível com uma universalidade
onde a unidade ainda não foi escolhida. É somente nesse caso que existe a possibilidade de se
conceber uma indiscriminada aplicabilidade do signo aos objetos particulares, não importando
quais sejam. Há várias unidades, mas interessa, nesse momento, a unidade enquanto signo de
um grupo onde estão todas as coisas que podem vir a ser escolhidas como unidade. Efetivar a
escolha da unidade, antes de tudo, resulta na eliminação de tal grupo. Isso permite dizer que a
universalidade, como descrita na primeira hipótese, manifesta-se muito mais como sendo um
caso especial da segunda hipótese, uma vez que esta última, além do grupo das possíveis
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unidades, contém em seu âmbito de aplicabilidade todos os possíveis casos a que a primeira
hipótese se aplicaria.24
Com essa apresentação já é possível vislumbrar como Berkeley concebeu o conceito
de número: eles funcionam como nomes comuns para as coisas. E, além disso, em um sentido
geral (universal), eles significam por referência múltipla uma vez que tais nomes (ou marcas)
podem designar indiferentemente todas as possíveis unidades de serem determinadas ou todas
as coleções possíveis de serem constituídas em uma unidade estabelecida. Assim, número é
algo dependente da ação mental. Ele não existe em absoluto, enquanto uma espécie de ideia
abstrata. Há sempre a necessidade de arbitrariamente escolher o modo como se abordará
aquilo que será computado. Isso inclui a necessidade de escolher arbitrariamente não somente
o tipo de signo. Escolhe-se também a unidade a que esse signo deve se referir. Dessa maneira,
o que interessa à atividade do matemático, em relação à aritmética, é o signo em si e o modo
como ele será aplicado, considerando regras estabelecidas:
“Na aritmética, portanto, nós não consideramos as coisas mas os signos, que,
todavia, não são considerados por si mesmos, mas por que nos dirigem como agir
em relação às coisa e dispor adequadamente delas” (Berkeley, PHK, §122).
É aqui que entra em questão a importância das regras, pois são elas que estipulam (“nos
dirigem”) como os signos serão aplicados. O número é um signo regrado, ou seja, as regras
são criadas arbitrariamente para manipular tal signo:
...foram inventados métodos para encontrar, a partir algarismos (figure) dados ou
marcas (marks) das partes, quais algarismos e que posição são próprios para denotar
o todo ou vice-versa. E, encontrando-se os algarismos procurados e observando-se
sempre a mesma regra ou analogia, é fácil traduzi-los em palavras. (Berkeley, PHK,
§121).
A eficiência da regra é avaliada pela facilidade em conduzir o raciocínio com signos
aritméticos de um modo a descobrir outros signos. Isso faz com que o próprio objeto
aritmético esteja vinculado necessariamente à sua regra de utilização.
Desse conceito de número é possível retirar duas consequências importantes. Uma
ainda a respeito da noção de significado dos signos utilizados na aritmética e outra a respeito
do problema da inteligibilidade de tal objeto.
24 Talvez seja esse o motivo de Berkeley não realizar de fato uma menção em seus textos à possibilidade de
fazer a divisão nas duas hipóteses. Se a universalidade é algo importante para constituir o que é aceito como
conhecimento, bastaria, para a aritmética, considerar o caso quando a universalidade se manifesta plenamente.
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Quanto à primeira consequência, pergunta-se: se o número é um signo que não é
significativo por denotar uma ideia abstrata, então como ele adquire significado? A resposta
inicial, que pode ser formulada, considera a própria aplicabilidade dos números. Quando
aplicados, cada número se refere aos objetos particulares que são considerados para serem
contados. Assim isso permitiria dizer que eles são significativos por denotarem tais objetos
particulares.25 Por outro lado, como visto acima, considerando o aspecto da universalidade, o
signo torna-se significativo quando ele denota uma ideia geral, constituída na relação entre
particulares e estabelecida na seleção de uma característica comum percebida entre esses
particulares. Aplicada essa interpretação ao conceito de número, ele também passa a ser
concebido como um signo que adquire significado na relação entre particulares e, novamente,
não por designar uma ideia abstrata de número. A conclusão importante, a que se chega aqui,
é que, mesmo do ponto de vista da universalidade, o signo aritmético, para ser significativo,
parece depender da presença de ideais particulares. A relação entre os particulares é
fundamental ainda que esteja presente ali. Nesse sentido, considerando o que foi apresentado
acima quanto aos Comentários filosóficos, surge um desconforto a respeito da inicial
caracterização feita a respeito da aritmética: por que a aritmética se incluiria no conceito de
ciência “puramente verbal” uma vez que ela parece depender ainda de ideia percebidas?
Quanto ao problema da inteligibilidade dos objetos, problema central proposto para
este artigo, parece manifestar-se o mesmo tipo de desconforto. A inteligibilidade do signo
poderia ser descrita nesses mesmos termos, ou seja, o signo tornar-se-ia inteligível à mente na
medida em que a relação entre particulares, ou melhor, a relação entre ideias particulares se
apresentaria associada ao signo. O critério de inteligibilidade baseado em ideias percebidas
parece que estaria sendo aplicado ainda aqui. E, novamente considerando o que está exposto
nos Comentários filosóficos, o problema está em conceber a inteligibilidade quando se
assume o signo puramente. Ou melhor, o que é essa “ciência puramente verbal”? Como a
inteligibilidade pode se aplicar nela uma vez que a presença de ideias percebidas parece ainda
se fazer necessária? A solução do impasse exige uma expansão da noção de significado para
Berkeley e, por sua vez, conduz para um caminho que necessita evitar a noção de
25 Por exemplo, pode-se, arbitrariamente, escolher que “1” se refira a uma laranja. Desse modo, “2” se
referirá a um grupo de duas laranjas, e assim por diante. Os objetos concebidos como laranjas seriam as
referências de tais símbolos aritméticos.
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inteligibilidade baseada na avaliação de ideias percebidas. O diálogo Alciphron poderá
contribuir para mais esclarecimentos. Isso agora também permite incluir na reflexão uma
reflexão sobre a álgebra.
Aritmética e álgebra: da pura manipulação de signos
No Alciphron, texto de 1732, Berkeley retoma a análise não somente da aritmética.
Agora a álgebra também é objeto de estudo. A justificativa para ele generalizar encontra-se no
fato dele perceber que tanto a aritmética como a álgebra “tratam de signos”.26 Com o que foi
visto nos Princípios, é muito fácil assumir que a aritmética trata de signos, posto que os
símbolos numérico, tidos como seus objetos, são considerados signos. No entanto, agora
Berkeley almeja algo mais amplo no Alciphron. Isso permite incluir a álgebra no contexto.
O que está em questão poderá ser compreendido a partir de algo retirado da própria
álgebra. Trata-se do exemplo da raiz quadrada de um número negativo, isto é, raízes
imaginárias. Utilizando o personagem Euphranor, Berkeley afirma o seguinte:
Pode-se às vezes atingir esta meta [a de encontra um bem determinado] mesmo se as
ideias designadas não se apresentam ao espírito e mesmo se ela fosse impossível de
apresentar ou de mostrar tal ideia ao espírito. Por exemplo, o símbolo algébrico que
denota a raiz de um quadrado negativo tem sua utilização dentro da operação do
cálculo ainda mesmo que seja impossível de se fazer uma ideia de tal quantidade.
(Berkeley, ALC, VII, §14).
Observa-se que Berkeley não mais concebe o signo como representante de alguma ideia, pois
a raiz imaginária é assumida como algo que “não se apresenta” ou “impossível de se
apresentar” ao espírito. Isso parece só dificultar a compreensão do conceito de universalidade
dos signos aritméticos e algébricos, porque dispensa o signo da necessidade de designar uma
ideia percebida ou possivelmente percebida. Se √−1 denota uma impossibilidade enquanto
ideia, elimina-se a construção da relação entre particulares, algo necessário para
universalidade, uma vez que o signo universal (seja ele uma ideia ou uma palavra), com já foi
afirmado, é construído a partir da relação entre tais particulares. A passagem não só mostra
que Berkeley aceita a raiz imaginária como um símbolo legítimo para os cálculos algébricos.
Também ela revela que Berkeley estava consciente da impossibilidade do signo da raiz
imaginária designar aquilo de que ela seria representante, isto é, a de determinar algo sensível,
perceptível, para ser generalizado a outros particulares percebidos ou que possivelmente serão
26 Cf. Berkeley, ALC, VII, §12.
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percebidos. Desse modo, surge a demanda por saber em que aspecto, para Berkeley, essa
espécie de símbolo torna-se legítima no cálculo algébrico a ponto de possuir significado e ser
inteligível, sem deixar de ser universal.
A partir do Alciphron, a solução surge com a observação de que Berkeley manifesta
várias outras possibilidades de relações entre signo e ideia. É o que está presente em outro
exemplo dado por ele: as “fichas de jogos”. Por intermédio dos personagens Euphranor e
Alciphron, Berkeley faz uma analogia entre palavras e as fichas de apostas, utilizadas nos
jogos de cartas:
Euphranor: (...) As palavras, como é admitido, são signos; é conveniente, pois,
examinar o uso de outros signos para conhecer o das palavras. Por exemplo, as
fichas (counters) que são usadas em uma mesa de jogo. Elas são utilizadas não por si
mesmas, mas somente como signos substitutos do dinheiro, assim como são as
palavras para o dinheiro. Diga-me Alciphron, é necessário formar, cada vez que
essas fichas são usadas, no decorrer do jogo, uma ideia da distinta soma ou do valor
que cada uma representa?
Alciphron: De modo nenhum. É suficiente que os jogadores em princípio se
ponham de acordo sobre seus respectivos valores e, ao final, substituam as fichas
por esses valores.
Euphranor: E calculando uma soma, as figuras que representam libras, xelins e
centavos (pounds, shillings, and pence), você pensa que é necessário, ao longo de
toda a operação, a cada passo formar as ideias de libras, xelins e centavos?
Alciphron: Não. Será suficiente se, na conclusão, essas figuras dirijam nossas ações
com respeito às coisas. (Berkeley, ALC, VII, §5).
Defende-se aqui uma manipulação de signos sem a obrigação de dar atenção às ideias
denotadas por eles. Está evidente que isso revela outra perspectiva de como interpretar a
relação entre signo e ideia. Essa concepção não é uma exclusividade do texto Alciphron. É a
mesma interpretação que Berkeley defende já na introdução aos Princípios, contudo,
utilizando uma comparação com a álgebra:
Nas leituras e raciocínios, os nomes são quase sempre utilizados como letras são
utilizadas na álgebra, ou seja, embora cada letra represente uma quantidade
particular, não é necessário, para calcular corretamente, que em cada passo cada
letra sugira ao nosso pensamento a quantidade particular cuja representação lhe foi
designada. (Berkeley, Intro, PHK, §19).
Nota-se que, em ambos os textos, o signo é assumido como representante, mesmo que o
representado não se apresente à mente em todo momento que o signo é utilizado. A inovação
que surge é que tanto palavras, ficha de jogo ou, ainda, as letras na álgebra, adquirem o que
será chamando aqui de autonomia operatória do signo. Isso merece uma melhor explicação.
Da mesma maneira como um jogador não precisa, sempre que utiliza uma ficha de
jogo, ter em mente o dinheiro que ela representa, uma palavra ou as letras na álgebra não
necessitam (por também serem signos) trazer à mente, no decorrer de sua utilização, a ideia
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que representam. Segundo Berkeley, bastaria indicar no início da ação o que o signo irá
representar. Após tal situação o signo adquire uma autonomia, importando ali somente a
manipulação do signo na relação com outros signos e as regras dessa manipulação. Ainda que
tenha adquirido a autonomia, o signo não impossibilita o retorno à ideia inicialmente
associada a ele. É o que acontece no caso do jogo, pois as fichas, ao final de uma partida,
podem ser trocadas pelo dinheiro que elas representam durante a partida.
Voltando ao caso da raiz imaginária, o signo √−1 indica uma impossibilidade de
concebê-lo como representante de algo, porque há a impossibilidade da ideia correspondente
se apresentar ao espírito. Esse é um caso que exige uma avaliação tanto do conceito de
significado bem como o de inteligibilidade. Se existe o nível operatório onde se consegue
proceder precisamente com o signo, desconsiderando a ideia representada, isso quer dizer que
em tal nível nada impede a introdução de outros signos. É suficiente que o novo signo se
adeque às regras que estabelecem as relações entre os signos e que, ao final das operações,
seja possível indicar coisas no mundo.27
Os conceitos de significado e de inteligibilidade agora apontam para relação operatória
entre os signos. Tais signos em particular não necessitam ter significado e muito menos ser
inteligíveis. Porém, no conjunto dos signos (constituído pela relação regrada), tais signos
adquirem significado, por um lado, porque, ao final da operação, signos poderiam indicar
coisas. Desse modo, do ponto de vista denotativo, o signo √−1 individualmente falha em
possuir significado, porém no conjunto da operação ele pode manifestar significado, já que a
operação pode conduzir a coisas no mundo.
Por outro lado, quanto ao problema da inteligibilidade, o signo tem sua inteligibilidade
avaliada no conjunto operatório. Ou melhor, no contexto do raciocínio matemático, o signo
torna-se inteligível à mente na medida em que ela percebe como operar com ele. Por
exemplo, o signo √−1 torna-se inteligível não porque ele denota uma ideia perceptível à
mente. Individualmente, a partir desse critério, ele também falha para se manifestar como
inteligível. Tal signo torna-se inteligível porque a mente, ao considerar as regras, sabe o que
fazer com ele quando o introduz em uma operação. A importância das regras (que inclui a
27 É necessário ressaltar que, no jargão berkeleyano, as coisas no mundo são ideias percebidas ou
possivelmente percebidas.
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própria definição desse signo), assim, torna-se fundamental, porque são elas que estipulam
precisamente como os signos devem se comportar na relação com outros símbolos. Para
Berkeley, a mente consegue capturar essa operacionalidade do signo a partir das regras. O
surpreendente disso é que o critério de inteligibilidade agora passa a ser aquele que avalia o
signo não na sua individualidade, mas no conjunto com outros signos, na sua utilidade ao
permitir, dentro da operação, que se chegue a outros signos.28
Portanto, de um modo amplo, a noção de significado e inteligibilidade presente entre
os signos, tanto na aritmética quanto na álgebra, diz respeito não ao signo em si, mas ao nível
operatório. Ali o que está em jogo é a relação entre signos, determinada pelas regras
operatórias, e que no conjunto podem denotar coisas.
Com tais esclarecimentos, surgem os elementos necessários que permitem
compreender mais o que Berkeley afirma nas entradas 767 e 768, dos Comentários
filosóficos. Para caracterizar a aritmética e a álgebra como “puramente verbais”, sugeriu-se
que a resposta para a pergunta de Berkeley, na entrada 767, deveria ser: “nada”. Desse modo,
isso só tem sentido caso se interprete tal afirmação considerando o nível operatório da
aritmética e álgebra. Em tal nível há somente signos e suas respectivas regras de operação.
Assim, ao retirá-los, o que resta é um vazio, pois os particulares supostamente representados
por eles não estão em questão. Eis o porquê de Berkeley negar que tais ciências sejam
especulativas. Não há especulação onde não existe comparação entre ideias. No nível
operatório a aritmética e álgebra tratam puramente de signos. É nesse sentido que, no
Alciphron, Berkeley declara que a aritmética é uma ciência que “trata, sobre tudo – em sua
28 Se a inteligibilidade depende das regras, qual a natureza dessas regras? Berkeley percebe que as regras são
fruto de uma ação da mente ao estipular relações e que, todavia, não dependem necessariamente de ideias. As
relações podem ser feitas sem que se pense necessariamente naquilo que os signos podem ou não denotar. Esse é
um problema, por exemplo, no caso dos números grandes. Em uma carta a Samuel Molynoeux, em dezembro de
1709, é possível observar que Berkeley separa a compreensão da regra, que determina a relação entre os
números, da compreensão do número que denotaria uma ideia perceptível à mente: “Não podemos formular
nenhuma noção de número além de certo grau. Ainda assim podemos raciocinar tão bem tanto com mil quanto
cinco. A verdade sobre isso é que números não são nada mais do que nomes” (Berkeley, 1979, v. 8, p. 25). No
entanto, não se deve interpretar esse raciocínio sem ideias como sinônimo de um puro intelecto. A relação, para
Berkeley, é uma ação da mente que pressupõe ideias para serem relacionadas. Não há relação “em si” sem algo
que seja relacionado pela mente. Nesse contexto, da álgebra Berkeley não está assumindo a relação como algo
puro, mesmo que os signos não necessitem denotar ideias. O que está em jogo é que o próprio signo é algo que
está sendo relacionado. Não há possibilidade de apreender a relação sem os signos.
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origem, em suas operações, regras e teoremas – do uso artificial de signos, de nomes e
caracteres” [ênfase minha] (Berkeley, ALC, VII, § 12).29
Além do mais, é possível compreender por que Berkeley, em outra entrada, a de
numeração 766, como citada acima, concebe o próprio número como uma “denominação”. Os
números são nomes que podem ser encontrados a partir de um raciocínio regrado. Eles são
puras denominações quando considerados a partir desse aspecto operatório, artificial. Basta
que o número seja um signo manipulável a partir de regras, não há a necessidade de conter
ideia alguma (muito menos a ideias abstratas) relacionada ao signo para saber operar com ele.
Mais uma prova para assumir o número como “denominação”, além do que está presente no
caso da raiz imaginária, nasce da discussão que Berkeley faz sobre os números grandes30:
Qu: se temos ideias claras de números grandes por eles mesmos ou só de suas
relações. (Berkeley, PC, §77).31
Parece-nos que as ideias claras e distintas de números grandes, p.ex. 1000, não as
temos de outro modo a não ser considerando-as como formadas pela multiplicação
de números pequenos. (Berkeley, PC, §217).
Essas anotações revelam, ainda em um “tom” investigativo, como os números grandes podem
ser considerados. Contudo, é central ali o fato de que Berkeley assume a existência de uma
dificuldade para a mente formular tais números enquanto ideia. A solução é conceber que o
número seja um simples signo que contém regras para ser manipulado. A mente sabe muito
bem proceder com números grandes a partir das regras estabelecidas, mesmo que não esteja
associada ideia nenhuma a esse signo.
Conclusão
Considerando o nível operatório presente na aritmética e na álgebra, resultam duas
conclusões importantes. Uma a respeito do conceito de significado dos signos e outra a
respeito do critério de inteligibilidade adotado nessas disciplinas. Foi possível observar que
ambos os conceitos emergem ao mesmo tempo quando se considera tal nível operatório.
Desse modo, quanto ao significado, observou-se que os signos da aritmética e da álgebra,
29 Para uma avaliação da existência de uma postura formalista na filosofia de Berkeley sobre a aritmética e a
álgebra: Cf. Jesseph, 1993, p. 106-114. E para uma crítica à interpretação de Jesseph: Schwartz, 2010a, p. 43-56. 30 As seguintes afirmações de Berkeley revelam o mesmo caso apresentado na carta a Samuel Molynoeux,
como citada na nota anterior, ou seja, a possibilidade de haver raciocínios sem ideias. 31 “Qu”, possivelmente, é a abreviação para “Query”, “Question”, “Quaere” ou “Quaestio”.
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ainda que não necessitem ter significado intrínseco, podem possuir significado no conjunto da
operação, pois eles podem ser úteis para se referir a coisas.
Quanto à inteligibilidade, chega-se a uma tese surpreendente: não é possível adotar o
critério das ideias percebidas como sendo o único que vigoraria na filosofia de Berkeley. O
caso dos objetos da aritmética e da álgebra exige outro critério. Se o signo é o objeto imediato
dessas disciplinas, ele torna-se inteligível somente dentro de uma operação regida por regra. A
mente, ao perceber como operar com o signo (o que subentende a relação com outros signos),
está ao mesmo tempo percebendo quão inteligível ele é. Se aqui há um critério de
inteligibilidade, portanto deve ser aquele que exige que o signo se manifeste compreensível
quanto à operacionalidade no conjunto com outros signos. Se a mente sabe operar com o
signo para se chegar a outro signo, desse modo ele é inteligível.
Como um último comentário quanto ao tema da inteligibilidade, em Berkeley, é
possível afirmar que a constatação da presença desse outro critério em sua filosofia parece
contribuir para um tipo de desconforto que tem se manifestado nas análises feitas por
comentadores, considerando outros aspectos do pensamento matemático desse filósofo. Por
exemplo, esse é o caso do conceito de verdade matemática. Schwartz (2010b) argumenta a
favor de uma dificuldade de estabelecer uma norma, uma regra geral para o pensamento
matemático a respeito da verdade. Haveria duas possibilidades distintas. O mesmo acontece
com a análise de Sherry (1987, p. 465). Para ele, quanto ao problema da verdade matemática,
há duas maneiras diferentes de Berkeley tratá-la. Uma é a partir de uma teoria referencial da
verdade. Esse seria o caso adotado em uma filosofia da geometria (onde há ideias percebidas
para funcionarem como referência). A outra é a partir de uma teoria pragmática de verdade.
Essa teoria conduziria a uma avaliação da utilidade dos termos matemáticos, trata-se da noção
de “verdadeiro por utilidade”. Nesse caso, não se perguntaria se eles têm referencia, mas se
eles permitem produzir resultados corretos. Portanto, para uma futura investigação, cabe
pesquisar mais a fundo a questão de até que ponto Berkeley estava consciente dessa dupla
linha de frente da abordagem matemática e se realmente não havia em seu pensamento um
projeto para estabelecer uma relação conciliatória. Isso exige incluir uma reflexão sobre
outros aspectos do pensamento matemático de Berkeley, como é o caso da geometria e do
cálculo diferencial, presentes, por exemplo, em seu texto de maturidade: O analista (1734).
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O PROJETO NEWTONIANO DE MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA: UMA RESPOSTA ÀS EXPLICAÇÕES
QUALITATIVAS DE DESCARTES?
LE PROJETNEWTONIEN DE MATHÉMATISATION DE LA NATURE: UNERÉPONSE AUX EXPLICATIONS QUALITATIVES DE DESCARTES?
Veronica Ferreira Bahr Calazans1
Resumo: O projeto de matematizar a natureza exerceu, na ciência da modernidade, um
papel fundamental. Isaac Newton ficou conhecido por conceber um sistema de explicação de
mundo essencialmente matemático, contrapondo-se a explicações mecânicas qualitativas,
como as de René Descartes. Entretanto, a mecânica cartesiana não estava desvinculada de um
projeto de matematização do mundo físico. O que difere um projeto do outro e, por
conseguinte, seus respectivos resultados são as diferentes concepções da matemática e do
modo como ela deve ser aplicada no conhecimento da natureza. Este texto propõe-se a
investigar as diferenças entre os dois projetos de matematização da natureza, estabelecendo
um paralelo entre as duas concepções de matemática que fundamentam os respectivos
projetos.
Palavras-chave: Newton, Descartes, Matematização, Natureza e Mecânica
Résumé: Le projet de mathématiserlanature a exercé, danslascience de lamodernité,
unrôlefondamental. Isaac Newton a étéréputépourconcevoirunsystème d'explicationdu monde
essentiellementmathématique, ens'opposentauxexplicationsmécaniquesqualitatives,
commecelles de René Descartes. Cependant, lamécaniquecartésienne n'étaitpasdétaché
d'unprojet de mathématisationdu monde physique. Cequidiffèreunprojet de l'autre et, ainsi,
leursrésultats, sontlesdifférentsconceptions de lamathématique e de lafaçon de
l'appliquerdanslaspéculation de lanature. Cetextepropose une enquête à proposdesdifférences
entre ledeuxprojets de mathématisation de lanature, enétablissantunétudecomparatif entre
lesdeuxconceptions de mathématiquequijustifientleursprojets.
Mots-Clés: Newton, Descartes, Mathématisation, Nature et Mécanique
1 Professora Substituta na Universidade Federal do Paraná – Departamento de Filosofia
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A história da ciência, tomada em suas afirmações mais superficiais, é hábil em
caracterizar Isaac Newton como o primeiro a oferecer um sistema de explicações mecânicas
pautadas por um consistente projeto de matematização da natureza. Com um pouco mais de
esforço, não é difícil encontrar quem afirme que também Descartes, anteriormente, se propôs
a fundar um projeto semelhante, mas que, no entanto, acabou recaindo em explicações
qualitativas da natureza. Entretanto, um estudo mais aprofundado mostra que se trata de dois
projetos diferentes de matematização do mundo físico. Avaliar os frutos de um pelos
propósitos de outro seria, evidentemente, pecar por anacronismo. Assim, faz-se necessário
distinguir os propósitos desses projetos, a fim de que cada um seja avaliado com relação à sua
própria concepção de matemática e, por conseguinte, de aplicabilidade da matemática à
natureza.
Descrita desse modo, essa tarefa parece não apenas necessária, mas evidente. Porém,
embora ela possa ser cumprida no que diz respeito ao projeto cartesiano, Newton, por sua vez,
não nos oferece uma descrição completa e detalhada de seu projeto. Nesse caso, é preciso
filtrar os pronunciamentos dispersos em sua obra e, ainda mais importante, interrogar sua
prática matemática, recolhendo os elementos que fornecerão a coerência necessária para
caracterizar o que ele entende por matematização da natureza. Nessa perspectiva, o projeto de
Descartes torna-se um parâmetro a partir do qual se pode fazer uma comparação, na medida
em que Newton extrai, da crítica ao projeto cartesiano, as características mais relevantes de
seu próprio projeto.
A matemática cartesiana como modelo metodológico
Descrever o papel da matemática no pensamento cartesiano é uma tarefa que possui,
inegavelmente, duas vias. A consagrada afirmação de que a matemática se oferece como
modelo metodológico para as demais disciplinas do conhecimento humano não exclui a
necessidade de que, ela própria, seja considerada uma entre essas disciplinas. Nesse contexto,
o conceito de mathesisuniversalis desempenha um papel fundamental. Definida como a
“ciência geral que explica tudo quanto se pode procurar referente à ordem e à medida, sem as
aplicar a uma matéria especial” (Descartes. 1999.[1628], p. 27), ela é caracterizada como uma
ciência das relações quantitativas sem que seja aplicada a este ou aquele objeto
especificamente, como ocorre nas ciências das quantidades particulares. Ou seja, ela
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distingue-se do que Descartes chama de matemáticas comuns por ser a fonte de todas as
ciências matemáticas e, por isso, ser anterior e mais fundamental em relação às demais. Ao
expor essa relação entre a mathesisuniversalis e as matemáticas comuns, pretendo tornar mais
compreensível em que sentido a matemática se oferece como modelo metodológico para as
demais ciências e, por outro lado, como ela própria se caracteriza como disciplina.
As Regras para a Orientação do Espírito (1628) concentram o que se pode chamar de
uma “teoria do método”, cujo objetivo é exposto logo na primeira regra: “Os estudos devem
ter por meta dar ao espírito uma direção que lhe permita formular juízos sólidos e verdadeiros
sobre tudo que se lhe apresenta” (Descartes, 1999, p. 1). Desse modo, o método é a direção
que possibilita à razão atingir sua pretensão. Essa direção é una como a própria razão;
enquanto que os objetos que se apresentam a ela guardam sua multiplicidade. Segundo
Descartes, os homens fazem uma aproximação errônea entre as ciências (que dependem
apenas de conhecimento intelectual) e as artes (que exigem algum esforço do corpo). No caso
das últimas, é preferível dedicar-se a uma delas de cada vez, pois o desenvolvimento de uma
segunda arte pode implicar a necessidade de habilidades que atrapalhem a primeira. Seguindo
o exemplo do texto, o cultivo da terra e o aprendizado da cítara exigem habilidades manuais
incompatíveis. Entretanto, não é este o caso das ciências. Já que todas elas fazem parte da
sabedoria humana, o estudo de uma contribui para o aprendizado das outras, não obstante a
multiplicidade dos seus objetos. Descartes apresenta assim seu argumento: se todas as
ciências nada mais são do que sabedoria humana; se a sabedoria humana permanece uma e a
mesma, seja qual for a diferença dos assuntos aos quais ela é aplicada; e, se ela não confere
mais distinções aos assuntos aos quais ela é aplicada do que a luz do sol confere às coisas que
ilumina; então, “não é necessário impor ao espírito nenhum limite” (Descartes, 1999, p. 2) .
Com isso, ficam estabelecidos dois elementos básicos necessariamente interligados: a unidade
da razão e sua ausência de limites. Pelo que foi dito, a fim de procurar seriamente a verdade,
não se deve escolher uma ciência em particular; todas elas estão ligadas e dependem umas das
outras. Assim, a possibilidade de se estabelecer um método único aplicável a todas as ciências
constitui o fruto metodológico mais importante desse percurso.
Entretanto, se a razão, como apresentada nas Regulae, é desprovida de limites, os
objetos do conhecimento, por outro lado, devem ter seu escopo cuidadosamente delimitado, o
que Descartes faz através da definição de ciência. Na Regra II, a ciência é definida como “um
conhecimento certo e evidente” (Descartes, 1999, p. 5). Essa definição limita o domínio dos
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objetos a serem tomados na investigação da verdade; eles devem ser apenas “aqueles que os
nossos espíritos parecem ser suficientes para conhecer de uma maneira certa e indubitável”
(idem). Então, a razão ilumina seus objetos segundo critérios que ela própria estabelece, dos
quais o primeiro é justamente este: desprezar os objetos que não podem ser conhecidos com
clareza e distinção2.
É exatamente no que se refere à clareza e distinção que a matemática se coloca à frente
como exemplo de conhecimento certo e seguro. “A aritmética e a geometria são as únicas
[disciplinas conhecidas] isentas de qualquer defeito de falsidade ou de incerteza” (Descartes,
1999, p. 8), ou seja, são as únicas que cumprem o requisito aqui estabelecido. Nas demais
ciências, por outro lado, vê-se que seus estudiosos não conseguem entrar em acordo mesmo
quando se trata de questões corriqueiras. O motivo para isso está nos objetos das matemáticas;
eles são puros e simples, isto é, dispensam suposições da experiência sendo, então, suas
consequências deduzidas racionalmente. Isso não quer dizer que a razão não possa atingir os
objetos cujo conhecimento depende da via da experiência, mas que, mesmo nesse caso, “não
se deve ocupar-se com nenhum objeto sobre o qual não se possa ter uma certeza tão grande
quanto aquela das demonstrações da aritmética e da geometria” (Descartes, 1999, p. 10).
Assim, essa regra confere ao método a possibilidade de se ampliar o domínio do
conhecimento para além das disciplinas matemáticas, contanto que se respeite o critério
exposto pela regra. Em outras palavras, para lograr esse êxito, o método deve excluir do
campo da ciência aquilo que é apenas provável e o que não é certo e evidente.
Além disso, é preciso traçar a diferença entre aprender a história de uma ciência e
aprender a própria ciência. Segundo Descartes, há vantagens em se dedicar à leitura das obras
dos antigos, pois nelas se podem conhecer as invenções já feitas com sucesso e descobrir o
que ainda falta para ser encontrado nas disciplinas. Entretanto, pode-se contrair o que ele
chama de “manchas de erro”. Os escritores utilizam argumentos para atrair seus leitores e
fazê-los acreditar naquilo que eles mesmos acreditam sem que tenham passado por uma
reflexão consistente. Mesmo quando mostram algo que é certo e evidente, fazem-no em meio
a rodeios desnecessários. Adquirir o ensinamento dessa forma (por meio das obras dos
antigos), ainda que estivesse correto, não é adquirir ciência, mas apenas história.
2Esse é um tema tratado à exaustão pelos comentadores das Regulae: a inversão do foco do conhecimento. O
foco deixa de ser a multiplicidade dos objetos a serem conhecidos e converte-se na razão una que os conhece.
Para mais detalhes ver Marion (1997 [1975]).
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Então, prossegue Descartes, se queremos fazer algum juízo sobre a verdade das coisas,
não devemos mesclar absolutamente nenhuma conjectura. Há somente dois atos do
entendimento que nos permitem alcançar o conhecimento das coisas sem engano: a intuição e
a dedução. Esta última é definida como “toda conclusão necessária tirada de outras coisas
conhecidas com certeza” (Descartes, 1999, p. 15). Todavia, cabe ainda expor o que Descartes
entende por intuição:
Por intuição entendo não a confiança instável dada pelos sentidos ou o juízo
enganador de uma imaginação com más construções, mas o conceito que a
inteligência pura e atenta forma, sem dúvida possível, conceito que nasce
apenas da luz da razão e cuja certeza é maior, por causa de sua maior
simplicidade, do que a da própria dedução (...) (Descartes, 1999, p. 13-14).
A intuição é, portanto, uma evidência atual que fornece os primeiros princípios numa
cadeia de conhecimento. As conclusões que são retiradas desses princípios são fruto de um
movimento, de uma sucessão: a dedução. O método, entendido assim, não é uma composição
dessas duas operações intelectuais. Visto que elas são as primeiras e mais simples operações,
elas precedem o método, pois nem os preceitos desse método poderiam ser compreendidos
sem que o entendimento fizesse uso delas. O papel do método é fornecer as regras de
utilização dessas operações. Se a intuição e a dedução forem executadas corretamente,
produzirão exclusivamente aquele ”conhecimento certo e indubitável” requerido na Regra II.
Isso quer dizer que, ao definir a intuição e a dedução como as operações do conhecimento,
Descartes está redefinindo o domínio do conhecimento não mais do ponto de vista dos
objetos, mas do ponto de vista do sujeito.
Finalmente, a Regra IV encerra esse conjunto de regras preliminares, afirmando a
necessidade do método: “O método é necessário para a busca da verdade” (Descartes, 1999, p.
11). Descartes afirma que a maior parte dos estudiosos, nas mais diversas áreas, procura a
verdade às cegas, de modo aleatório, como quem quer encontrar um tesouro e vagueia sem
rumo procurando. Às vezes alguns deles têm sucesso, não por possuírem uma habilidade
especial, mas por pura sorte. Assim agindo, eles obscurecem a luz da razão, pois se
acostumam a estudar sem ordem e produzir “meditações confusas”. Por isso, seria preferível
não buscar o conhecimento a buscá-lo sem método.
Porém, até esse ponto, Descartes não apresentou nenhuma definição do que seja esse
método cuja importância e necessidade são tão categoricamente afirmadas. É o que ele faz a
seguir, caracterizando o método como um conjunto de regras que devem ser certas e fáceis.
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Qualquer um que observe essas regras com exatidão deve ser capaz de colher dois proveitos:
jamais tomar algo que é falso por verdadeiro e alcançar o “verdadeiro conhecimento de tudo
quanto for capaz de conhecer” através de um processo gradual e contínuo e sem “despender
inutilmente nenhum esforço de inteligência” (Descartes, 1999, p. 20). A primeira parte (não
tomar o falso por verdadeiro) é garantida pela intuição e a segunda (alcançar o conhecimento
verdadeiro de tudo) pela dedução.
Tendo definido o que ele entende por método, Descartes passa a considerar os
antecedentes históricos desse método. Tais antecedentes, porém, não devem ser tomados
como um reconhecimento de que outros, antes dele, tivessem desenvolvido os princípios de
um método que Descartes levou a termo. Muito longe disso, Descartes toma para si a autoria
do método e afirma que, durante a história que o precedeu, alguns perceberam a utilidade
desse método como um fruto espontâneo da inteligência humana: “Isso porque a inteligência
humana tem não sei quê de divino, onde as primeiras sementes de pensamentos úteis foram
lançadas de tal modo que, em geral, por mais desprezadas e por mais sufocadas que sejam por
estudos mal feitos, produzem um fruto espontâneo” (Descartes, 1999, p. 21).
O exemplo que Descartes utiliza para apoiar sua tese é de suma importância para a
compreensão dos fundamentos matemáticos desse método, pois é retirado das “mais fáceis
das ciências, a aritmética e a geometria” (Descartes, 1999, p. 21). Os geômetras antigos
dominavam uma “espécie de análise” que podia ser estendida à solução de todos os
problemas. Entretanto, não deixaram que a posteridade a ela tivesse acesso. O procedimento
analítico dos antigos figura, então, entre aquelas “primeiras sementes de pensamentos úteis”
que foram sufocadas. Outro exemplo, este mais recente, é a álgebra, que permite que “se faça
com os números o que os antigos faziam com as figuras”. Os dois exemplos são retirados das
matemáticas pois, sendo seus objetos mais simples, seus estudiosos teriam alcançado maior
êxito. O propósito de Descartes, no entanto, que começa a tomar forma no texto, é o de dar
consistência a estas conquistas e estendê-las a assuntos mais complexos:
(...) e não me espanto que seja nessas artes, cujos objetos são muito simples,
que eles cresceram até agora com mais felicidade do que nas outras, em que
maiores obstáculos comumente os sufocam, mas em que, não obstante,
tomando um cuidado extremo em cultivá-los, nós os faremos infalivelmente
alcançar uma perfeita maturidade (Descartes, 1999, p. 22).
Alcançar a maturidade no que diz respeito àquelas ciências cujos objetos são mais
complexos que os objetos matemáticos (a mecânica, entre elas)é, de certo modo, o projeto das
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Regulae. A aritmética e a geometria servem de modelo para essa empreita que poderia ser
resumida na tarefa de conferir inteligibilidade e revelar o significado epistemológico daquelas
conquistas alcançadas pelas matemáticas e estendê-las às demais ciências. É preciso ainda
discutir de que modo as matemáticas devem exercer esse papel de padrão epistêmico para as
demais e, como consequência disso, expor as razões da opção de Descartes pelo método de
análise, em detrimento do método sintético.
Lê-se na Regra II que “a Aritmética e a Geometria são as únicas disciplinas isentas de
qualquer defeito de falsidade ou de incerteza”. Essa afirmação pode parecer, a uma primeira
leitura, a corroboração da tese, anunciada acima, de que a matemática fornece o modelo
metodológico para as ciências. De certa forma é assim, mas são necessárias algumas
distinções. Descartes opta por admitir entre os objetos da ciência apenas aqueles que possam
ser conhecidos de modo certo e indubitável. O objeto da matemática cumpre esse requisito
por ser tão puro e simples a ponto de dispensar as suposições cuja certeza é abalada pela
experiência. Por isso, não há como se enganar na Aritmética e na Geometria: elas são
inteiramente compostas de consequências deduzidas racionalmente, sem qualquer
interferência da experiência. Assim, se o objeto de uma pretensa ciência não fornece a
possibilidade de uma certeza tão grande quanto a daqueles cujas propriedades e relações são
suscetíveis de demonstrações matemáticas, não se deve ocupar-se dele.
Entretanto, adiante Descartes observa:
Alguns deles (mortais possuídos por uma curiosidade cega) são como um
homem que arderia de um desejo tão estúpido de encontrar um tesouro que
ficaria incessantemente vagueando por praças públicas para procurar se, por
acaso, não encontrasse algum perdido por um viajante. É assim que estudam
quase todos os Químicos, a maior parte dos Geômetras e grande número dos
filósofos (Descartes, 1999, p. 19).
Como pode que o geômetra, dedicando-se a uma ciência cujo objeto possibilita
tamanha clareza, vagueie sem método em seus estudos? É possível porque, embora a
Aritmética e a Geometria sejam modelos de certeza, nem sempre a clareza e a exatidão de
uma demonstração trazem consigo um bom método. Descartes desvincula esses dois aspectos.
Portanto, não será qualquer uso das matemáticas que poderá servir como instancia
exemplar do padrão metodológico visado por Descartes, ainda que todos os casos sejam
igualmente isentos da falsidade e da incerteza. É preciso considerar, aqui, a distinção entre as
matemáticas comuns e a verdadeira matemática, chamada de mathesisuniversalis. Ela fica
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ainda mais clara na afirmação de que as Regras não têm como propósito “resolver os vãos
problemas que servem normalmente de jogo para os Calculadores ou para os Geômetras em
seus lazeres” (Descartes, 1999, p. 22). O que se diz dos problemas é que eles são vãos; não se
põe em cheque a certeza dos seus resultados ou a clareza dos seus objetos. Descartes, em
seguida, acrescenta que tratará de figuras e números “porque não se pode pedir a nenhuma das
outras disciplinas exemplos tão evidentes e tão certos” (Descartes, 1999, p. 22). Ainda assim,
tudo isso se refere às matemáticas comuns. Elas são as vestes, e não as partes, da
mathesisuniversalis. As matemáticas comuns são as vestes porque seus objetos são simples e
fazem com que amathesisuniversalis apresente-se de modo mais adaptado ao espírito humano.
Porém, elas não podem ser partes dessa disciplina porque deixaram que se perdesse
justamente o procedimento que faz damathesisuniversalis o modelo metodológico: a análise.
“Essa disciplina deve, de fato, conter os primeiros rudimentos da razão humana e estender sua
ação até fazer jorrar as verdades de qualquer assunto que seja” (Descartes, 1999, p. 23).
Estender sua ação é o mesmo que emprestar o método. Ela é a fonte das demais disciplinas, na
medida em que, nela, todas encontram o modelo segundo o qual devem proceder.
Quanto às matemáticas comuns, visto que são as “mais fáceis das ciências”, sua
história mostra que alguns antigos já haviam percebido a utilidade desse método, o que se
deixa transparecer na espécie de análise que os geômetras utilizaram, de modo a estendê-la à
solução de todos os problemas. Todavia, segundo Descartes, essa análise não foi preservada.
Por outro lado, embora as matemáticas comuns estejam plenas de sequências que evidenciam
consequências rigorosas, a demonstração da solução de um problema, por mais certeza que
carregue, não mostra, necessariamente, porque é assim e como se chega a ela. O estudo dessas
disciplinas, feito desse modo, é fútil, pois não ensina o entendimento a resolver outros
problemas e, em alguma medida, faz com que se perca o hábito de utilizar a razão. A
mathesisuniversalis é analítica – condição para que possa servir como modelo metodológico.
Já as matemáticas comuns, embora sejam exemplos de verdade e clareza, são incapazes de
converterem-se em qualquer tipo de orientação metodológica, visto que são sintéticas, isto é,
por limitam-se às demonstrações ou provas das descobertas feitas anteriormente na análise.
Descartes reconhece, não propriamente as fontes, mas traços da mathesisuniversalis,
ou melhor, do método que a define, entre os antigos geômetras gregos ou inseridos na tradição
dos gregos.
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E, por certo, parece-me que alguns traços dessa verdadeira matemática ainda
aparecem em Pappus e em Diofanto, que, sem serem dos primeiros anos,
viveram, porém, numerosos séculos antes do nosso tempo. Quanto a ela, eu
acreditaria de bom grado que, mais tarde, os próprios autores a fizeram
desaparecer com uma espécie de ardil censurável. (...) e preferiram, para
fazer-se admirar, apresentar-nos, em seu lugar, algumas verdades estéreis
demonstradas com um sutil rigor lógico como efeitos de sua arte (...) Houve,
por fim, alguns homens muito engenhosos que se esforçaram em nosso
século para ressuscitar a mesma arte, pois aquela que é designada pelo nome
bárbaro de álgebra não parece ser outra coisa (...) (Descartes, 1999, p. 26)
Em linhas gerais, diz-se que a análise distingue-se por ser um método que procede “de
trás para frente” ou “contra a corrente”, pois parte da solução do problema, considerado
inicialmente como resolvido, para chegar ao que já era conhecido (ver introdução a este
capítulo). Geralmente, a análise vem acompanhada de uma etapa complementar: a síntese, que
faz o caminho inverso, ou seja, é posterior à etapa inventivo-resolutiva (análise). A síntese é,
portanto, um procedimento de prova – que serve para mostrar que o elemento encontrado pela
análise efetivamente soluciona o problema – e não um procedimento propriamente de
descoberta.
Entre os geômetras antigos, o procedimento de análise era amplamente utilizado como
uma das etapas da resolução de problemas de ordem geométrica. Entretanto, a grande maioria
deles não faz constar essa etapa na redação final dos seus escritos. Apolônio e até mesmo
Euclides – cuja obra (Elementos) é tida como o grande modelo de exposição sintética –
assumem a existência de uma etapa analítica que precede a exposição sintética, mas que, no
entanto, é suprimida. Progressivamente, a síntese passa a ser considerada isoladamente como
o sistema axiomático de uma disciplina, sem qualquer dependência ou relação explícita com
uma etapa analítica prévia. Pappus, ao contrário, não apenas preserva a parte analítica da
resolução dos problemas, como fornece a descrição mais completa do método de análise a que
os matemáticos do séc. XVII tiveram acesso. Por essa razão, ele é citado por Descartes como
representante da análise dos antigos, no que diz respeito ao seu alcance geométrico. Diofanto,
igualmente citado por Descartes, utiliza o procedimento de análise aplicado, porém, às
quantidades algébricas. Por isso, ele pode ser considerado um “pré-algebrista” ou um
precursor da álgebra dos modernos. Sua contribuição mais significativa para os fundamentos
da álgebra está na introdução das noções de “quantidade desconhecida” e de “equações”
tomadas como uma relação entre o que é dado e o que é preciso determinar.
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No entanto, ao mencionar os homens do “nosso século”, Descartes refere-se aos
algebristas modernos, responsáveis pelo desenvolvimento dessa ciência cujos primeiros
fundamentos aparecem em Diofanto. Destaca-se, entre eles, Viète, considerado o fundador da
álgebra e que se autodeclara continuador da tradição dos praticantes do método de análise.
Viète escreveu um breve texto intitulado In artemanalyticamisagoge (1591),em que ele
apresenta como objetivo estabelecer uma relação entre o método de análise apresentado por
Pappus (relativo às grandezas geométricas) e o método de Diofanto (que trata das grandezas
algébricas). Essa “arte analítica” possui duas características principais: a formulação de uma
noção mais clara de equação e a recuperação e reavaliação da estrutura do método de análise
dos geômetras antigos. Parece haver um consenso, levando-se em conta as posições tanto de
Viète quanto de Descartes, sobre o papel do procedimento analítico dos geômetras antigos na
gênese metodológica da álgebra dos modernos. Com efeito, a álgebra não acrescenta nada ao
método de análise propriamente dito; porém, amplia-lhe o escopo, permitindo que ele seja
aplicável aos cálculos algébricos.
Via de regra, o passo inicial de qualquer procedimento analítico de resolução de
problemas é supor o problema resolvido. Com efeito, não se trata de um simples expediente
de ordem retórica, pois esse passo permite que a análise utilize o elemento pedido (no
enunciado do problema) no exame das relações que integram a complexidade do problema. O
propósito da análise é o de estabelecer relações entre todos os possíveis elementos do
problema, sejam eles fornecidos ou procurados, até que se encontre uma relação que não
dependa da suposição inicial (de que o problema já está resolvido) para, então, determinar o
desconhecido em função do conhecido (ver a solução de Descartes ao problema de Pappus, a
seguir). A novidade que o método cartesiano de análise pretende trazer é a de fornecer um
procedimento que permita, a qualquer um que o siga corretamente, desmembrar a
complexidade do problema e ordenar sistematicamente as relações entre seus elementos, a fim
de encontrar o que é procurado. Pode-se resumir assim o propósito da mathesisuniversalis
exposta por Descartes nas Regras como uma ciência que se caracteriza, principalmente, por
seu método analítico.
Para fornecer uma definição mais precisa da mathesisuniversalis, Descartes utiliza-se
da seguinte questão: o que precisamente se entende por matemática? Em outras palavras, por
que a astronomia, a música, a óptica, a mecânica e tantas outras se dizem partes das
matemáticas? O que há em comum entre todas elas e as faz reconhecidamente matemáticas é
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o fato de que, nelas, se examinam a ordem e a medida de seus objetos. Esse ponto em comum
é que deve ser a base de uma ciência que se pretende geral a ponto de abarcar todas as demais.
Daí a definição da mathesisuniversaliscomo aquela “ciência geral que explica tudo quanto se
pode procurar referente à ordem e a medida, sem as aplicar a uma matéria especial”
(Descartes, 1999, p. 27).
O cerne da mathesisuniversalis, a ordem e a medida, não é tomado de empréstimo,
segundo o que pudemos ver acima, das matemáticas comuns (pois elas não constituem um
modelo metodológico, mas apenas de certeza e precisão). Ele vem, isto sim, da constatação do
elemento mais geral e comum a todas as disciplinas que se pretendem matemáticas. Por isso, a
mathesisuniversalis estende-se a todas elas contanto que se dominem as regras de sua
operacionalização. Não por acaso, a Regra V apresenta a seguinte definição para o método:
“O método todo consiste na ordem e na organização dos objetos sobre os quais se deve fazer
incidir a penetração da inteligência para descobrir alguma verdade” (Descartes. 1999. p.29).
Vê-se, então, que a mathesisuniversalis é definida por seu método, e não poderia ser diferente,
pois ela nada mais é que um conjunto de procedimentos metodológicos inspirados no
potencial heurístico sui generis típico das matemáticas. É justamente a partir da Regra V que
Descartes passa a fornecer uma “teoria do método” propriamente dita. O comentário que se
segue ao enunciado da regra é curto, porém enfático ao destacar o caráter absoluto do método
e a extrema importância que lhe deve ser atribuída:
Nós lhe ficaremos ciosamente fieis [ao método], se reduzirmos gradualmente
as proposições complicadas e obscuras a proposições mais simples, e, em
seguida, se, partindo da intuição daquelas que são as mais simples de todas,
procurarmos elevar-nos pelas mesmas etapas ao conhecimento de todas as
outras. (Descartes, 1999, p. 29).
Para descobrir algo de verdadeiro, é preciso ordenar e dispor os objetos: eis o resumo
do método. Ordenar significa operar uma redução das proposições complicadas às mais
simples e, em seguida, proceder uma elevação das mais simples, percorrendo os mesmos
passos, até as mais complexas. A nova complexidade que surge daí está, então, reconstituída e
totalmente compreendida. Esse procedimento, portanto, não está restrito ao caráter analítico,
pois contempla uma parte sintética: aquela que vai do simples ao complexo. Diante disso,
como se pode conciliar a parte sintética assumida pela Regra V e aquela crítica ao
procedimento sintético exposta anteriormente? Descartes não nega ao procedimento sintético
suas características de clareza e precisão. Entretanto, tal procedimento não acrescenta nada
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àquilo que já é conhecido, apenas serve como prova do que já se sabe. Nesse sentido, é a
etapa analítica do método que se presta propriamente à solução do problema considerado, pois
tem como finalidade encontrar os elementos desconhecidos mais simples desse problema. A
etapa sintética retorna à complexidade já conhecida, a fim de ordená-la, mas com isso não
produz nenhum conhecimento novo.
A Regra VI acrescenta à descrição dessas duas etapas do método a noção de
disposição dos objetos em forma de séries, fornecendo os meios para que se possam submeter
ao método ordens mais complexas, nos termos do texto, ordens obscuras e intrincadas. Isso
porque nem sempre o problema possui um grau de facilidade tal que sua ordem seja por si
evidente. Segundo Descartes, a disposição dos objetos em séries é, ao mesmo tempo, a grande
utilidade e o segredo do método.
O método, considerado assim, não nos autoriza o acesso direto à natureza de cada
coisa a fim de encerrá-las em categorias ou, nas palavras de Descartes, “gêneros de ser”, pois
ele é relação entre coisas. Ao deduzir um objeto desconhecido de outro já conhecido, não se
chega a um novo gênero de ser, pois, para que haja qualquer tipo de comparação, um objeto
deve participar de algum modo da natureza do outro. Mas, a fim de melhor caracterizar o
conhecimento como um processo de comparação, é necessário estabelecer uma diferença
entre as comparações simples e as outras (complexas). As primeiras são aquelas em que o que
se procura e o que é fornecido participam de modo idêntico de uma certa natureza. Nesse
caso, praticamente não resta ao espírito nenhuma operação. Porém, pode ocorrer que a
natureza comum, requisito para a comparação entre os objetos, não se encontre de maneira
idêntica em ambos, mas seguindo relações ou proporções. A tarefa do espírito, então, é
transformar essas proporções de maneira a evidenciar o que há em comum entre o que se
procura e o conhecido. “Quase toda a indústria da razão humana consiste em preparar essa
operação” (Regra XIV).
As regras iniciais, ao fornecerem as bases epistemológicas para a metodologia,
garantem a possibilidade de se estabelecer um método único aplicável a todas as ciências.
Nisto se resume o grande projeto da mathesisuniversalis, uma ciência geral que pretende
investigar a ordem e a medida qualquer que seja o objeto considerado. A realização desse
projeto no campo das matemáticas é tida como certa e imediata, já que seus objetos são os
mais simples de todos. Entretanto, como vimos, Descartes confere ao método a possibilidade
de se ampliar o domínio do conhecimento para além das disciplinas matemáticas.
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Portanto, o projeto da mathesisuniversalis, de certo modo, antecipa o que será a prática
matemática de Descartes em sua maturidade. O caráter metodológico dessa ciência não deixa
dúvidas quanto à sua opção pelo método analítico; uma opção que, no que se refere às
ciências matemáticas, será consolidada por Descartes em sua obra Geometria. Ou seja, pode-
se dizer que o primeiro passo da aplicação do método ou, em outras palavras, da realização do
projeto da mathesisuniversalis, é dado no âmbito das matemáticas3. A Geometria (1637) tem
como objetivo traduzir propriedades geométricas em operações algébricas. A realização desse
programa promove uma unificação ordenada dos domínios matemáticos, ou seja, promove
entre as matemáticas, cujos objetos são os mais simples, aquilo que a mathesisuniversalis
pretende estender para todas as ciências.
A ontologia cartesiana dos objetos matemáticos
Ao considerarmos a diferença entre o que Descartes chama de verdadeiras
matemáticas, ou seja, a matemática que serve como modelo metodológico e as matemáticas
comuns, algumas questões se impõem quando o que se quer investigar é o projeto de
matematização da natureza em questão. A primeira delas diz respeito à relação que se
estabelece entre a mathesisuniversalis e a Geometria. Será que podemos afirmar que ambas
constituem o mesmo programa? Segundo Jullien (1996, p. 35-51), a resposta é não. A
primeira pretende, como vimos, estabelecer uma ciência universal, através de um método
universal. A segunda unifica dois domínios até então distintos das matemáticas. Entretanto,
essa resposta negativa parece assinalar não uma contradição entre esses dois projetos, mas,
isso sim, uma diferença de escopo. Pois, se por um lado, como diria Vuillemin (1987, p. 10),
“a invenção da geometria analítica parece secundária em comparação com a invenção de um
método universal de pensamento”, essa geometria compartilha com o método em questão um
núcleo comum e essencial: a teoria das proporções.
A mathesisuniversalis, conforme vimos anteriormente, como ciência das relações
quantitativas, pretende unificar todas as ciências das quantidades particulares. Das
matemáticas, ela toma certos “tesouros metodológicos”4: são inúmeros os exemplos tomados
3Segundo Jullien (1996, p.36), “A constituição de um domínio unificado e ordenado dos diversos ramos das
matemáticas é, todavia, um objetivo intermediário importante ou mesmo necessário do projeto geral” [unificação
das ciências]. 4Tomo de empréstimo o vocabulário de Jullien (1996).
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da matemática pelas Regulae e integrados à mathesisuniversalis, como parte constitutiva de
seu método. Tais exemplos evidenciam a centralidade da teoria das proporções para o método
universal. O princípio desse método se resume a percorrer as coisas que se pode conhecer,
segundo a ordem das relações que elas mantêm entre si. Esse mesmo princípio conduz a
Geometria, mas, nesse caso, formalizado pela teoria das proporções dos geômetras antigos.
Aliás, como veremos adiante, tal característica permite-nos afirmar que Descartes jamais saiu
do âmbito da geometria, ainda que tenha acrescentado inúmeras novidades ao uso da teoria
das proporções. Assim, as matemáticas fornecem um conteúdo metodológico à
mathesisuniversalis. Por outro lado, possuem, elas próprias, um conteúdo enquanto
disciplinas.
No projeto geral, das Regulae, de uma ciência que reúne todas as ciências das
quantidades, unificar e ordenar o domínio das matemáticas parece consistir em um objetivo
intermediário. Isso porque, por serem claras e distintas, as noções das matemáticas constituem
um campo mais fácil de aplicação do método universal. Por essa razão, o sucesso conseguido
nesse primeiro passo em direção à ciência geral e unificada consiste em um forte argumento
em favor da possibilidade de alcançar o objetivo mais geral. Entretanto, o que queremos e
precisamos garantir, aqui, não é exatamente o sucesso desse passo intermediário, mas a sua
inserção no projeto das Regulae. Afirmar que a matemática cartesiana, entendida como
disciplina e desenvolvida na Geometria, está em consonância com o projeto da
mathesisuniversalis, ainda que como um passo inicial e intermediário, significa afirmar que a
ontologia dos objetos do conhecimento em geral que opera nas Regualae é aplicada aos
objetos matemáticos.
No que diz respeito às demais ciências do mundo físico, a noção de matematização da
natureza que se pode retirar das Regulae não deve ser entendida como uma simples
duplicação matemática dos objetos físicos ou de suas propriedades. A inspiração matemática
do método de Descartes exige que os objetos sejam organizados em certas séries e conhecidos
uns pelos outros. O que se pode disso depreender pouco tem a ver com a natureza intrínseca
de cada um dos membros da série tomados individualmente ou como espécies. Um modo
alternativo de compreender o ideal mecanicista segundo o qual todos os mecanismos da
natureza devem ser explicados em função do movimento e das qualidades geométricas da
matéria é tomá-lo como um desdobramento da ontologia relacional das Regulae. A aplicação
dos métodos matemáticos ao mundo físico não resultaria senão na explicitação das relações
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entre os seus objetos e suas propriedades. Se tais relações são reais ou não, pouco ou nada
pode se decidir a esse respeito com base apenas no método ou na matemática – a esse tipo de
questões se dedica virtualmente a metafísica. O decisivo, entretanto, é que não se possa fazer
de outro modo, se desejamos nos conduzir pelo método.
Diante da pluralidade de abordagens relativas à ontologia das Regulae, escolhemos
uma alternativa que, embora distante de consistir em unanimidade entre oscomentadores,
fornecerá um excelente parâmetro para o desenvolvimento da nossa questão principal, a saber,
a da ontologia dos objetos matemáticos extraída dos textos de Isaac Newton. Trata-se da
abordagem de Jean-Luc Marion, mais especificamente aquela desenvolvida em seu livro
intitulado Surl’ontologie grise de Descartes. Tratamos anteriormente do deslocamento do
centro de gravidade do conhecimento, que deixa o objeto para se instaurar no sujeito que
conhece, ou seja, na razão. Esse deslocamento, operado pelas Regulae, gera consequências
ontológicas importantes, tratadas exaustivamente por Marion. Segundo ele, as Regulae se
desenvolvem em torno de um diálogo não declarado com a filosofia de Aristóteles, no qual
Descartes teria abandonado a ousía (substância) aristotélica, substituindo-a pela relação
estabelecida pela razão entre os objetos do conhecimento:
Aristóteles constitui uma tal ciência por referência à ousia, Descartes, por
referência à humana universalisSapientia. O que indica, talvez, que
doravante o ego substitui a ousia enquanto termo último de referência e de
constituição do corpo das ciências. E é sem dúvida por isso que se pressente
desde agora que o estatuto do ego epistemológico só pode, nas Regulae,
conquistar-se à custa da destruição total e sistemática do primado aristotélico
da ousia, tanto como fundamento da coisa, como princípio da ciência.
(Marion, 1975, p. 44)
A tese de Marion sustenta que a anterioridade atribuída por Aristóteles ao objeto, com
relação ao saber do objeto – e, portanto, do particular com relação ao universal – é substituída,
em Descartes, por uma anterioridade do universal: a primazia da sabedoria humana
estabelecida pela Regra I. Por ser anterior às particularidades, essa sabedoria humana só pode
dedicar-se a uma ciência universal que abarca a todas as outras e cujas características e
critérios são aplicados indistintamente. O sujeito cognoscente torna-se, então, o princípio do
saber e a instância capaz de decidir sobre o escopo e o método dessa ciência universal.
Quanto ao escopo, dado que o princípio foi transferido do objeto para o sujeito, o
único critério possível é epistemológico. A certeza vai desempenhar esse papel como critério
interno à própria ciência universal, ou seja, como critério que não pertence ao objeto. Diz a
Regra II que “Toda ciência é um conhecimento certo e evidente” (Descartes, 1999, p. 5).
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Assim, não pode haver uma modalidade epistemológica que contemple o incerto ou, até
mesmo, o provável. Sendo o fundamento desse critério estabelecido no interior da ciência,
qualquer falha, por minimamente duvidosa que seja, representa uma ameaça, pois, sendo que
todos os objetos são externos ao critério, nenhum deles pode fornecer correção à ciência.
Aquilo que não se apresenta ao espírito de maneira certa e evidente está definitivamente fora
do escopo da ciência universal. Trata-se de um critério que exclui da ciência o que ela não
pode conhecer com certeza, ignorando ou tomando como inexistente o que escapa ao critério
de certeza.
Já quanto ao método, Descartes o resume na Regra VI:
Todas as coisas podem ser distribuídas em certas séries, não por certo na
medida em que as reportamos a algum gênero de ser, segundo a divisão que
deles fizeram os Filósofos em suas categorias, mas na medida em que podem
ser conhecidas umas pelas outras, de tal maneira que, cada vez que
encontramos uma dificuldade, possamos de imediato perceber se é útil
passar antes em revista algumas outras e quais delas e em que ordem. Para
que se possa fazer isso como se deve, temos de notar em primeiro lugar que
todas as coisas – do ponto de vista que pode torná-las úteis ao nosso
desígnio, em que não consideramos suas naturezas isoladas, mas em que as
comparamos entre si a fim de conhecê-las umas pelas outras – podem ser
denominadas absolutas ou relativas (Descartes, 1999, p. 31).
Conhecer, portanto, é organizar as coisas em séries segundo a ordem e a medida, de
modo que só é possível aplicar o método da ciência universal às coisas que se submetem a
essa ordem e medida. Todo o resto pode ser ignorado. Ou seja, mesmo o método funciona
como critério que, ao invés de acrescentar evidências à ciência, determina tudo o que deve
sair de seu escopo: é um método restritivo. Pode-se perceber o diálogo inconfesso com
Aristóteles, a que se refere Marion, quando Descartes afirma que as séries não consistem em
gêneros de ser ou nas categorias dos Filósofos (substância, atributo, etc). Trata-se de
considerar a relação que as coisas mantêm entre si e conhecê-las através dessa relação. Não é
a própria natureza das coisas que se oferece para a comparação, mas a sua inteligibilidade,
pois, para serem comparadas, o único elemento, externo ao sujeito cognoscente, que elas
precisam ter em comum é a extensão. Sendo assim, a relação que se estabelece é estritamente
de quantificação, visto que nenhuma outra particularidade essencial das coisas é considerada
na relação. Por essa razão, a teoria das proporções exerce um papel importantíssimo na
mathesisuniversalis, como dito acima. A questão que se põe, então, é a de saber de que modo
a matemática cartesiana – cujo núcleo é, igualmente, a teoria das proporções – corresponde às
exigências dessa ciência universal e organiza seus objetos segundo tais critérios.
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Ao considerar a afirmação de Jullien de que a Geometrie, embora não realize
completamente o projeto das Regulae, constitui um passo intermediário e, portanto, uma parte
desse programa, aquilo que afirmamos a respeito dos objetos do conhecimento em geral será
licitamente aplicado aos objetos da matemática cartesiana. Isso significa que, ainda que
estejamos no âmbito dos objetos considerados pela geometria euclidiana, não há um
comprometimento com a natureza de tais objetos. Na medida em que eles são devidamente
submetidos à teoria das proporções, os objetos matemáticos são admitidos no escopo da
ciência que deve, por sua vez, estabelecer as relações que eles mantêm entre si, não estando
obrigada a afirmar nada a respeito da natureza desses objetos. Essa característica, própria de
um critério epistemológico de admissão dos objetos, permite a Descartes uma grande
liberdade na utilização do formalismo (Viète) presente na resolução dos problemas, como no
exemplo do problema de Pappus, desenvolvido acima.
Desse modo, dada uma curva qualquer, a análise da equação atribuída a essa curva
permitirá encontrar os elementos característicos da curva como a tangente, por exemplo. Em
muitos casos, a construção da curva torna-se dispensável, ou ao menos secundária. Isso não
descaracteriza a matemática da Geometrie como geométrica, no sentido estrito, pois os
objetos permanecem geométricos. Entretanto, aquilo que o conhecimento matemático
pretende atingir é a relação entre tais objetos, o que está totalmente preservado pela equação.
É importante destacar que não se trata, aqui, de um instrumentalismo, strictu sensu. Embora o
critério para a admissão de objetos ao conhecimento não esteja fundamentado nos próprios
objetos, ele não é, tampouco, arbitrário. O critério de certeza não é universal apenas na
medida em que se aplica a todas as ciências. Ele guarda, da mesma maneira, um caráter
intersubjetivo, pois, contanto que o método seja seguido sem desvios, todo e qualquer ser
dotado de razão alcançará o mesmo grau de certeza para as mesmas coisas consideradas.
Com os elementos reunidos até aqui, têm-se construído um parâmetro a partir do qual
pode-se pensar a ontologia dos objetos matemáticos newtonianos, comparando a prática
matemática de Newton com a de Descartes, com o propósito de extrair os elementos que
caracterizam o modo como Newton entende a aplicabilidade da matemática ao mundo físico.
A matemática e a natureza nos Principia de Newton
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O título dos Principia5 nos indica uma referência explícita a Descartes ao categorizar
como “matemáticos” os princípios da filosofia natural. Newton o faz com vistas a distinguir
seu projeto da mecânica excessivamente qualitativa de Descartes. Do mesmo modo que a
matemática cartesiana, entendida como disciplina, é construída na tentativa de guardar a
coerência com o método, o sistema de mundo erguido por Descartes pretende-se coerentes
com os princípios metafísicos estabelecidos por esse mesmo método. Se existe a exigência de
que esse sistema seja matemático, tal exigência se refere à matemática como método e não
como disciplina. Assim, a mecânica cartesiana não persegue o objetivo de ser quantitativa,
demonstrativa, ou seja, sintética. Ao contrário, ela espelha-se no método da matemática – não
no método de demonstração (sintético), mas no de descoberta (analítico) – e retira dos seus
próprios princípios as leis do movimento e todas as demais explicações. Esses princípios,
como dissemos acima, são metafísicos e não matemáticos.
Como exemplo, tomamos problemas relativos à determinação de forças centrípetas,
abordados no Livro I dosPrincipia, em queNewton vai considerar termos diretamente
relacionados à natureza, como “velocidade”, “força” e “atração”; abstraindo-os, no entanto, de
seus aspectos qualitativos e tratando-os quantitativamente. Tal tratamento é, obviamente, um
tratamento matemático. Esse projeto opõe-se àquele pretendido por Descartes na medida em
que Newton não precisa se comprometer com explicações metafísicas de tais termos6.
A seção II do Livro I trata da determinação de forças centrípetas, considerando corpos
que giram, descrevendo curvas que estão no mesmo plano de seus respectivos centros de força
(imóveis). Newton começa tratando de curvas em geral, em seguida considera o movimento
em circunferências para, finalmente, tratar da elipse. A seção III, desta forma, começa
situando o centro de força em um dos focos da elipse descrita pelo movimento do corpo.
Nesse ponto, então, Newton tem seus fundamentos matemáticos assentados para dedicar-se à
questão das órbitas dos planetas.
A Proposição I, Teorema I, afirma que as áreas percorridas pelos raios (que ligam o
corpo ao seu centro de força) são proporcionais aos tempos nos quais elas são descritas. Nas
proposições seguintes, Newton trata da força centrípeta, em geral, sem considerar, ainda, a
gravidade. É estabelecida, inclusive, a relação entre a força centrípeta e o quadrado da
5Princípios Matemáticos da Filosofia Natural 6Porém, o Livro III não vai se beneficiar de tal isenção. Nele, Newton estabelece seu “sistema de mundo” e,
portanto, se depara com a necessidade de explicar fisicamente (qualitativamente) os termos envolvidos.
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distância a partir do centro7. Entretanto, trataremos não dos teoremas, mas dos problemas que
se encontram a partir da Proposição V, visto que estes evidenciam melhor as opções
matemáticas do autor.
O Problema I (Proposição V) é enunciado do seguinte modo:
Tendo sido dada, em qualquer lugar, a velocidade com a qual um corpo
descreve uma dada curva, quando está sob a ação de forças que tendem a
algum centro comum, pede-se que seja encontrado esse centro. (Newton,
1999, p. 453).
A solução se desenvolve através de dois elementos principais: a associação de certos
segmentos geométricos às velocidades e a construção geométrica a partir dos dados.
Primeiramente, embora a solução seja aplicável a todas as cônicas, pois o problema supõe
uma curva qualquer, Newton constrói essa solução utilizando-se de uma elipse, como
exemplo. Tomando-se três pontos da curva (P, Q e R), são traçadas três linhas retas
(tangentes) que tocam a figura nesses pontos: PT, TQV e VR, que se encontram em T e V. Em
seguida, PA, QB e RC são traçadas perpendicularmente às tangentes e inversamente
proporcionais às velocidades nos respectivos pontos. Dessa forma:
PA: QB :: velocidade em Q: velocidade em P,
Igualmente,
QB: RC:: velocidade em R: velocidade em Q.
Partindo das extremidades A, B e C das perpendiculares, devem ser traçadas AD, DBE e EC,
em ângulos retos, encontrando-se em D e E. Tendo definido esses dois pontos, traçam-se duas
retas (TD e VE) que se encontrarão no ponto S. Justamente esse ponto será o centro requerido.
Como vemos, trata-se de uma solução estritamente conduzida pela construção
geométrica. O que a separa da geometria dos antigos é apenas, e tão somente, a proporção que
se estabelece entre os segmentos e as velocidades do corpo nos pontos em questão.
Entretanto, afirmar que Newton realizou um “retorno à geometria dos antigos” não significa
supor que esse será o padrão de solução presente ao longo de toda a obra. A própria
extrapolação da geometria para os casos de movimentos nascentes e evanescentes,
7 Essa relação já havia sido enunciada por Halley e Hooke, anteriormente, no que diz respeito às órbitas dos
planetas. Porém, antes de tratar das órbitas elípticas, Newton estabelece uma relação mais geral, aplicável às
demais cônicas.
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exemplificada no capítulo anterior, mostra que esse suposto retorno amplia o alcance do
método, ainda que prescindindo dos recursos alcançados na etapa analítica. Assim, embora o
que se chama de “retorno” não seja sinônimo de retrocesso, houve uma mudança significativa
de abordagem que se evidencia pelas opções matemáticas de Newton. Com a finalidade de
explicitar essa nova abordagem, consideremos os problemas que se seguem.
Figura 1 – Proposição VII, Problema II
O Problema II (Proposição VII) é o problema de encontrar a força centrípeta dirigida
para um ponto qualquer, quando o corpo gira na circunferência de um círculo. Newton inicia
assumindo que os triângulos ZQR, ZTP e VPA são semelhantes. A fim de tornar mais evidente
o desenvolvimento, chamaremos de os ângulos agudos desses triângulos. Traçando uma
reta paralela ao segmento QT e partindo de R, marcamos o ponto T’ no segmento TP.
Teremos, então, um novo triângulo RPT’, semelhante aos demais, cuja hipotenusa é
RP, o cateto oposto a é PT’ e o cateto adjacente a é RT’. Vale notar que RT’=QT. É
estabelecida uma relação de proporcionalidade entre os triângulos RPT’ e VPA, levando-se em
conta suas hipotenusas e catetos:
𝑅𝑃2: 𝑄𝑇2(= 𝑅𝑇′2) ∷ 𝐴𝑉2: 𝑃𝑉2 (1)
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Da mesma forma, outra relação de proporção é estabelecida, resultando em:
𝑅𝑃2 = 𝑅𝐿 × 𝑄𝑅 (2)
A fim de refazer a proporcionalidade que resultou em (2), supomos que o produto dos meios
foi igualado ao produto dos extremos, e que RP figurava em ambos os lados da igualdade já
que a operação resulta em 𝑅𝑃2. Assim, teríamos:
𝑅𝐿: 𝑅𝑃 ∷ 𝑅𝑃: 𝑄𝑅 (2a)
Ou, o que leva ao mesmo resultado,
sen’ = sen”
CO’/HIP’ = CO”/HIP”
RL/RP = RP/QR(2b)
Porém, quais os triângulos considerados em 2a e 2b?
Projetando-se o segmento LR em PV (partindo de P), obtemos PL’=RL e o triângulo
PRL’, cuja hipotenusa é L’P (=RL) e o cateto oposto (sempre ao ângulo ) é RP. O segundo
triângulo é RPT’. Podemos ver que RQ=PT’ traçando-se uma corda que passe por Q e T’ e
que seja paralela à tangente no ponto P. Se RP é paralela a PT’, então,
PT’=RQ
Assim, considerando o triângulo RPT’, seu cateto oposto é PT’ (=RQ) e sua hipotenusa é RP.
Se PRL’ e RPT’ são semelhantes, os seus ângulos são iguais:
’ = ”
sen’ = sen”
CO’/HIP’ = CO”/HIP”
RP/RL=PQ/PR
𝑅𝑃2 = 𝑅𝐿. 𝑅𝑄 (2)
O valor de 𝑅𝑃2, encontrado em (2), pode ser substituído em (1), gerando:
𝑅𝐿 × 𝑄𝑅: 𝑄𝑇2 = 𝐴𝑉2: 𝑃𝑉2
𝑄𝑇2 × 𝐴𝑉2 = 𝑅𝐿 × 𝑄𝑅 × 𝑃𝑉2
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𝑸𝑻𝟐 = 𝑹𝑳 × 𝑸𝑹 × 𝑷𝑽𝟐 𝑨𝑽𝟐⁄ (3)
Quando P e Q coincidem, PV=RL. Substituindo RL por PV:
𝑄𝑇2 = 𝑃𝑉 × 𝑄𝑅 × 𝑃𝑉2 𝐴𝑉2⁄
Multiplicando ambos os lados por 𝑆𝑃2 𝑄𝑅⁄ :
𝑄𝑇2 × 𝑆𝑃2 𝑄𝑅 = 𝑃𝑉 × 𝑄𝑅 × 𝑃𝑉2⁄ × 𝑆𝑃2 𝐴𝑉2 × 𝑄𝑅⁄
𝑷𝑽𝟑 × 𝑺𝑷𝟐 𝑨𝑽𝟐 = 𝑸𝑻𝟐⁄ × 𝑺𝑷𝟐 𝑸𝑹⁄ (4)
Pela Proposição VI, Corolários I e V, a força é inversamente como 𝑄𝑇2 × 𝑆𝑃2 𝑄𝑅⁄ . Então,
ela será também inversamente como𝑃𝑉3 × 𝑆𝑃2 𝐴𝑉2⁄ . Porém, como 𝐴𝑉2 é dado, a força será
inversamente como 𝑆𝑃2 × 𝑃𝑉3.
Newton apresenta, ainda, uma segunda maneira de resolver o mesmo problema.
Traçando-se SY perpendicular à tangente, obtêm-se os triângulos semelhantes SYP e VPA.
Assim,
𝐴𝑉: 𝑃𝑉 ∷ 𝑆𝑃: 𝑆𝑌
Portanto,
𝐴𝑉 × 𝑆𝑌 = 𝑃𝑉 × 𝑆𝑃
𝑺𝒀 = 𝑺𝑷 × 𝑷𝑽 𝑨𝑽⁄ (5)
Elevando todos os membros de (5) ao quadrado e multiplicando os dois lados da igualdade
por PV, teremos:
𝑆𝑃2 × 𝑃𝑉2 × 𝑃𝑉 𝐴𝑉2⁄ = 𝑆𝑌2 × 𝑃𝑉
𝑆𝑃2 × 𝑃𝑉3 𝐴𝑉2⁄ = 𝑆𝑌2 × 𝑃𝑉
Pela Proposição VI, a força será inversamente como 𝑆𝑃2 × 𝑃𝑉3, já que AV é dado.
O problema seguinte – Proposição VIII, Problema III – é semelhante ao anterior,
diferindo-se apenas por considerar um centro de força remoto, de modo que a linha que une o
ponto da posição inicial do corpo ao centro de força pode ser considerada, para efeitos de
cálculo, paralela à linha que une o ponto da posição final do corpo ao centro de força.
Newton parte da semelhança entre os triângulos retângulos CPM, PZT e RZQ, cujos
ângulos agudos nomearemos por . Então, estabelece a seguinte proporção:
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𝐶𝑃2: 𝑃𝑀2 ∷ 𝑃𝑅2: 𝑄𝑇2 (6)
No caso do triângulo CPM, está claro que a proporção tomada é entre a hipotenusa e o cateto
adjacente a . Entretanto, para mostrar a segunda proporção, é preciso marcar um outro ponto
que chamaremos de T’, encontrando o triângulo PRT’. Já que RT’ é igual aQT, então
RP(hipotenusa) é proporcional a RT’ (cateto adjacente), de onde se conclui (6). A igualdade
𝑃𝑅2 = 𝑄𝑅(𝑅𝑁 + 𝑄𝑁) foi retirada de uma proporção semelhante.
Traçando uma corda paralela à tangente e que passa pelo ponto Q, ela marcará a linha
PM em T’. Retomando o triângulo PRT’, podemos afirmar que 𝑃𝑇′ = 𝑅𝑄, visto que são retas
paralelas (assim como as duas retas que complementariam o paralelogramo QRPT’). Portanto,
o cateto oposto a (PT’), no triângulo PRT’ é igual aQR e proporcional à hipotenusa PR.
O segundo triângulo é menos óbvio, mas sabemos que será uma proporção entre a
hipotenusa e o cateto oposto, assim como o primeiro. Sabemos, ainda, que o segmento PR
será repetido na segunda proporção, já que aparece ao quadrado na igualdade. Por hora,
supomos que se no primeiro triângulo QR é o cateto oposto e PR é a hipotenusa, então, PR
deve ser o cateto oposto do segundo triângulo e a hipotenusa permanece desconhecida. A
proporção poderia ser assim representada:
𝑄𝑅: 𝑃𝑅 ∷ 𝑃𝑅: ℎ𝑖𝑝.
Considerando que o raio CP forma com a tangente um ângulo reto no ponto P, ao ligarmos os
pontos C e R, obteremos o triângulo PCR, semelhante aos demais. Nesse triângulo, o cateto
oposto é igual ao segmento RF. Notemos, porém, que FN=QN e, portanto,
𝑅𝐹 = 𝐹𝑁 + 𝑁𝑄 + 𝑄𝑅
ou,
𝑅𝐹 = 𝑅𝑁 + 𝑄𝑁.
Completando a proporção, teremos:
𝑄𝑅: 𝑃𝑅 ∷ 𝑃𝑅: (𝑅𝑁 + 𝑄𝑁)
Multiplicando os meios e igualando ao produto dos extremos, chegamos a:
𝑃𝑅2 = 𝑄𝑅(𝑅𝑁 + 𝑄𝑁) (7)
Quando os pontos P e Q coincidirem, RN+QN será igual a 2PM, já que desaparecerá o
segmento QR. Nesse caso, têm-se:
𝑃𝑅2 = 𝑄𝑅 × 2𝑃𝑀 (8)
Substituindo em (6) o valor encontrado para 𝑃𝑅2 em (8), obteremos:
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𝐶𝑃2: 𝑃𝑀2 ∷ 𝑄𝑅 × 2𝑃𝑀: 𝑄𝑇2,
o que resulta em:
𝑄𝑇2 𝑄𝑅⁄ = 2𝑃𝑀3 𝐶𝑃2⁄ (9).
Por fim, multiplicando-se os dois lados da igualdade de (9) por 𝑆𝑃2,
𝑄𝑇2 × 𝑆𝑃2 𝑄𝑅⁄ = 2𝑃𝑀3 × 𝑆𝑃2 𝐶𝑃2⁄ (10)
Pelos Corolários I e V da Proposição VI, sabemos que a força centrípeta é
inversamente como 𝑄𝑇2 × 𝑆𝑃2 𝑄𝑅⁄ . Portanto, por (10), ela será inversamente como 2𝑃𝑀3 ×
𝑆𝑃2 𝐶𝑃2⁄ . Já que SP e CP são, respectivamente, as distâncias entre o centro de força e o corpo
e o centro da circunferência e o corpo, ou seja, são valores dados, Newton despreza a razão
2𝑆𝑃2 𝐶𝑃2⁄ . Assim, a força será inversamente como 𝑃𝑀3, solucionando o problema.
No Escólio a essa Proposição, Newton afirma que essa solução é válida não apenas
para a circunferência, mas, igualmente, para a hipérbole, a parábola e a elipse.
Matemáticas diferentes, projetos diferentes de aplicabilidade à natureza
A consideração pormenorizada dos passos demonstrativos, utilizados por Newton na
solução dos problemas que selecionamos como exemplo, nos permite observar o processo de
abstração dos termos originalmente situados no âmbito da natureza. Ao identificar, por
exemplo, a velocidade a um segmento, a fim de colocá-la em proporção com outros termos,
Newton não está se comprometendo com a descrição qualitativa da velocidade em termos
físicos. Notemos que, no caso dos problemas de determinar a força centrípeta, Newton
estabelece como resposta final uma sentença que afirma: “a força centrípeta é inversamente
como...”. Ou seja, a força centrípeta estabelece com esse valor – que, na realidade, é uma
combinação de segmentos ou outros elementos da curva – uma relação inversa de
proporcionalidade. O percurso que conduz a essa relação inclui, necessariamente, a
construção da figura que descreve o movimento e seus elementos característicos, como
tangente da curva, corda, segmentos paralelos aos primeiros e, frequentemente, a construção
de triângulos semelhantes que comportem tais elementos característicos. A novidade, com
relação à geometria dos antigos, é que os segmentos e elementos característicos estão
associados a quantidades físicas e, através da relação geométrica que eles mantém entre si,
relacionam também essas quantidades físicas.
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Ainda que tratadas matematicamente, as grandezas consideradas nos problemas são
grandezas físicas. Trata-se de analisar os casos particulares dos fenômenos a serem
demonstrados, o que permite abrir mão da generalidade alcançada pela análise8, em proveito
de um desenvolvimento fundamentado na construção geométrica que descreve o movimento
considerado. Esses problemas, no caso dos exemplos do Livro I, caminham na direção de um
objetivo comum, a saber, o de demostrar as leis que regem o movimento dos planetas em suas
órbitas. Algumas dessas leis, como a do quadrado das distâncias, já haviam sido enunciadas
anteriormente. Então, o que está em jogo é a prova, a demonstração dessas leis e, para tanto,
recorre-se, naturalmente, à abordagem sintética.
Desse modo, são estabelecidos dois projetos diferentes de aplicabilidade da
matemática à natureza. Enquanto que o projeto cartesiano é, essencialmente, metodológico,
Newton utiliza a matemática como recurso para demonstrar as relações que as grandezas
físicas guardam entre si. Por isso mesmo, o que se exige no projeto cartesiano é apenas que o
estudo da natureza, assim como qualquer outra área do conhecimento, espelhe-se no
“verdadeiro método matemático” (a análise, como entendida por Descartes) e, aplicando
fielmente o método, extraia as relações que seus objetos guardam entre si. Tais relações são
fundamentadas pelos procedimentos da razão, como vimos anteriormente. Newton, por outro
lado, não está em busca de um método matemático de descoberta, mas pressupõe que a
matemática pode ser aplicada ao mundo físico, com o objetivo de provar as leis da mecânica
que, direta ou indiretamente, são formuladas a partir da experiência. Não há, ao menos no
texto dos Principia, uma tentativa de justificar a correspondência entre a matemática e os
fenômenos da mecânica. Entretanto, o encaminhamento dado aos problemas evidencia a
confiança de que tal correspondência é válida. Então, a diferença estabelecida por Descartes
entre a matemática como modelo metodológico e a matemática como disciplina acaba sendo
extremamente útil para diferenciar esses dois modelos de aplicabilidade da matemática à
natureza.
8Refere-se, aqui, à matemática que deriva do método cartesiano. Essa matemática é prioritariamente analítica, na
medida em que está relacionada a um método de descoberta. Ao contrário, a matemática utilizada nos Principia
de Newton pretende provar certas relações entre grandezas físicas e, por se destinar à prova, é uma matemática
sintética.
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REFERÊNCIAS
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New York: Dover Publications. 1954 [1637].
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102
OS ANTECESSORES DE HUME NO PROBLEMA DA IDENTIDADE PESSOAL
HUME'S PREDECESSORS ON THE PROBLEM OF PERSONAL IDENTITY
Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann1
Resumo: O problema da identidade pessoal tornou-se muito conhecido e debatido no meio
acadêmico a partir da formulação dada por David Hume no livro I do “Tratado da Natureza
Humana”. No entanto, o mesmo problema foi formulado de forma semelhante a Hume por
outros autores do período moderno, muitos dos quais o autor cita ou comenta. Neste artigo
vou apresentar algumas concepções sobre o problema da identidade pessoal tratadas por
filósofos modernos anteriores ou contemporâneos a Hume e mostrar que, apesar de muitas
concepções apresentarem grande semelhança com relação à formulação humeana, foi Hume
quem conseguiu torná-lo explicitamente problemático e anexá-lo aos princípios de sua
filosofia, dando a ele coesão e extraindo dele inferências compatíveis com a sua teoria do
conhecimento.
Palavras-chave: Hume, identidade pessoal, eu, filosofia moderna
Abstract: The problem of personal identity became widely known and debated in academic
circle from the formulation given by David Hume in Book I of “A Treatise of Human
Nature”. However, the same problem was formulated by other authors of the modern period
in a similar way to Hume, many of them Hume quotes or comments. In this article I will
present some conceptions on the problem of personal identity proposed by modern
philosophers prior or contemporaneous to Hume and show that, in spite of many conceptions
express much similarity with the Humean conception, was Hume who managed to make this
issue explicitly problematic and attach it to the principles of his philosophy, giving it cohesion
and drawing out inferences consistent with his theory of knowledge.
Keywords: Hume, personal identity, self, modern philosophy.
1 Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul.
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O problema da identidade pessoal, tal como é conhecido atualmente, é essencialmente
moderno. A filosofia da subjetividade, pensada a partir do “eu” foi originalmente
desenvolvida por Descartes e foi a partir dele que surgiram críticas e reflexões profundas
sobre a identidade pessoal. Alguns casos dispersos, no entanto, podem ser encontrados na
tradição filosófica antes de Descartes comentando ou se reportando a questões relacionadas à
primeira pessoa. Agostinho parece ter sido o primeiro a redigir pelo menos uma obra
completa em primeira pessoa, como se pode constatar nas “Confissões” e nos “Solilóquios”.
Ele chegou a explicitar um argumento semelhante ao cogito cartesiano2, mas não extraiu
consequências dele nem problematizou profundamente a noção do “eu”. Na filosofia cristã,
desenvolveu-se o debate acerca do que vem a ser “pessoa” enquanto substância, a fim de
esclarecer o dogma da Santíssima Trindade. Disputas teológicas sobre identidade pessoal
também tiveram como motivação os dogmas da transubstanciação do corpo e do sangue na
Eucaristia, da Ressurreição do Corpo e da imortalidade da alma, além de questões
relacionadas à responsabilidade individual e da punição e recompensa eternas (THIEL 2011, p.
19). Fora do contexto religioso, Montaigne inaugura o estilo de escrita por meio de ensaios,
nos quais ele retrata o “eu” de modo totalmente livre e involuntário, fazendo de si mesmo o
objeto de seu estudo, conforme explica no prefácio dos “Ensaios” de 1580.
Nenhum dos pensadores anteriores a Descartes, porém, por mais que tenha iniciado o
debate sobre o conceito de pessoa ou refletido sobre si mesmo em seu sistema filosófico,
chegou a anunciar explicitamente aquele que ficou conhecido atualmente como o problema da
identidade pessoal. A primeira formulação parece ter vindo somente com John Locke (LOWE
1999, p. 102) e, depois dele, grandes contribuições vieram principalmente dos empiristas
britânicos: Butler, Clarke e, especialmente, Hume.
É no mínimo muito provável que os filósofos britânicos tenham influenciado Hume na
formulação do seu problema sobre a identidade pessoal, como se verá a seguir. Há outros
autores, naturalmente, que trataram do problema e que podem também ter influenciado Hume,
uma vez que são citados ou discutidos por ele. Citamos, por exemplo, Pierre Bayle e
Malebranche. O propósito deste artigo a seguir é o de apresentar os momentos e situações em
que cada um desses autores apresenta a sua problemática sobre a questão da identidade
2 Em muitas ocasiões. A mais explícita está na “Cidade de Deus”, I, 11, 26.
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pessoal e confrontá-los com Hume. Mas, antes disso, oferecerei uma breve explicação do
problema tal como elaborado por Hume.
Hume compreendeu a questão da identidade pessoal em consonância com o seu
empirismo. Assim como o problema da causalidade (que tem por objeto a análise a partir do
que se reduz ao que percebemos enquanto causa e efeito), das projeções para o futuro (que
chama a atenção para o fato de que nós só temos experiência do passado), a sua crítica à
noção de substância (que questiona o que restaria à mente após a extração de todas as
qualidades sensíveis) e assim por diante, o problema da identidade pessoal é analisado a partir
da experiência sensível, redutível às ideias e impressões. A tese de que as ideias nos chegam à
mente a partir das impressões particulares que temos do mundo sensível e das sensações
internas é utilizada por Hume como ponto de partida para a reflexão do que vem a ser o “eu”.
De fato, um dos princípios da filosofia humeana encontra-se explicitamente enunciado na
seção VI da parte IV do livro I do “Tratado da Natureza Humana” que trata especificamente
da identidade pessoal: “[...] every distinct perception, which enters into the composition of
the mind, is a distinct existence, and is different, and distinguishable, and separable from
every other perception, either contemporary or successive” (1978, p. 259).
A partir desse preceito fundamental, a pergunta de Hume torna-se mais compreensível
na seção “Da identidade pessoal”, que começa com: de que impressão deriva a ideia do eu? Se
houver alguma, ela deve ser distinta e distinguível das demais, além de necessariamente
continuar a mesma ao longo de nossas vidas. Mas, quando penetro em meu ser, sempre me
deparo com uma ou outra percepção, observa Hume, como dor ou prazer, tristeza ou alegria,
calor ou frio, amor ou ódio, e assim por diante. Não há nada em mim mesmo que possa ser
indicado para representar o meu eu, pois tudo o que encontramos são percepções, e
percepções são sempre variáveis. A noção do eu, portanto, seria apenas um feixe de diferentes
percepções sem a correspondência exata de simplicidade e identidade no pensamento. É a
quase imperceptível transição de um objeto a outro que faz com que pensemos contemplar um
único objeto contínuo e imaginar que existe um princípio unificador destas percepções,
atribuindo a ele a noção fictícia de alma e substância.
O ataque de Hume diz respeito em grande medida à noção de mente ou alma enquanto
substância, especialmente a da escola de Descartes. Na seção anterior, “Da Imaterialidade da
Alma”, ele discute a respeito da suposta impressão que teríamos de substância, perguntando:
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seria ela de sensação ou de reflexão? seria agradável ou dolorosa? Para o empirista, se
tivéssemos uma ideia de substância deveríamos ter, antes disso, uma impressão
correspondente a ela. É neste sentido que não podemos definir qual seria a nossa substância
mental. Na “Síntese do Tratado”, Hume considera ininteligível a tese cartesiana de que o
pensamento seja a essência da mente, invertendo a lógica deste raciocínio: a mente não é uma
substância a que nossas percepções seriam inerentes, mas são as nossas diversas percepções
particulares que compõem aquilo que chamamos mente (1978, p. 658). A mente, assim, seria
uma espécie de teatro, continua Hume, na qual as percepções passam e repassam por ela3.
A essa confusão ou ficção da mente que tende a atribuir identidade pessoal a nós
mesmos, Hume oferece uma explicação. Na falta, portanto, de algo que vincule nossas mais
variadas, distinguíveis e distintas percepções, como formamos na mente a ideia de identidade
pessoal? Se nem os sentidos podem apreender tal ideia e nem o entendimento pode formá-la
por meio da razão, Hume atribui à imaginação a função de atribuir identidade a nós mesmos
por meio do relacionamento entre ideias na mente. Conforme ele expõe no livro I, parte I,
seção IV, existe um “laço de união” (bond of union) ou uma espécie de associação entre as
ideias na imaginação que nos leva a atribuir semelhança, contiguidade no espaço e tempo e
causa e efeito entre os objetos. Este seria um recurso da nossa natureza para que possamos nos
relacionar com o mundo externo. Caso não houvessem tais princípios, as ideias seriam todas
soltas e desconexas na mente e somente o acaso poderia ligar umas às outras (1978, pp. 10-1).
A questão de Hume na seção “Da identidade pessoal”, portanto, seria: qual dos três
princípios acima colocados seria o responsável pela nossa concepção de identidade pessoal?
O de contiguidade é logo descartado, visto que esse faz com que a mente apenas transite de
um objeto a outro apresentado na imaginação, tornando-os contíguos entre si e, dessa forma,
não poderia nos trazer a ideia de identidade. O princípio de semelhança parece desempenhar
3 Há uma crítica de Thomas Reid contra a noção de mente enquanto teatro de Hume: o que seria essa
“entrada” de percepções, uma vez que tudo o que há na mente são apenas percepções? Uma série não pode
ter consciência de si mesma enquanto série. Mas Hume parece ter percebido que o seu exemplo poderia
gerar tais problemas e, na própria seção, logo após apresentar a comparação do teatro, ele adverte: “The
comparison of the theatre must not mislead us. They are the successive perceptions only, that constitute the
mind; nor have we the most distant notion of the place where these scenes are represented, or of the
materials of which it is composed” (1978, p. 252). Hume, ao que parece, pretende aqui apenas esclarecer o
problema, e usa o exemplo do teatro para deixá-lo claro ao leitor, e não sugerir uma definição da mente neste
momento nem supor que a mente se constitua apenas de percepções já que, como indica o trecho acima, ele
permanece cético com relação a uma definição da mente.
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uma função importante aqui, pois a mente é levada a atribuir identidade a partir da
semelhança que encontra entre uma percepção e outra na imaginação. Aqui o pensamento
acaba confundindo sensações sucessivas com identidade. E, mais do que isso, é a causalidade
que nos faz observar a mente como um sistema de diferentes percepções encadeadas entre si
pela relação de causa e efeito. A causalidade, conclui Hume, é ainda mais importante para que
possamos formar a noção de identidade pessoal.
É, portanto, a memória que torna possível formarmos a noção de identidade, por meio
da semelhança e, principalmente, da causalidade. É a memória que desperta imagens de
percepções passadas e, graças a isso, podemos comparar tais imagens com as atuais, seja
percebendo as semelhanças entre elas, fazendo-as parecer uma mesma imagem, seja por
conectar uma imagem à outra por meio da noção de causa e efeito.
Ainda nesta mesma seção, Hume afirma que o método para analisar a origem da nossa
noção de identidade pessoal é o mesmo que ele utilizou (no livro I, parte IV, seção II) para
realizar a análise da ideia de identidade dos objetos (1978, p. 259). E, um pouco antes, ele cita
exemplos para esclarecer tal ideia. O primeiro é o de uma massa de matéria: ainda que
aconteçam certas mudanças de lugar ou movimento entre suas partes ou adição ou subtração
de outras partes não muito significativas, continuamos a atribuir identidade a essa massa,
considerando-a como um todo unificado. Logo em seguida, comenta sobre o exemplo do
navio que, mesmo tendo sido submetido a determinados consertos e sofrido alterações de suas
partes, continua sendo para nós o mesmo navio. O mesmo acontece com o homem e os
animais, enquanto objetos de percepção: mudamos nossos corpos, deixamos de ser crianças e
passamos, com o passar do tempo, a ter uma fisionomia diferente da que tínhamos e, mesmo
assim, somos consideradas as mesmas pessoas. No mundo natural e vegetal as conclusões não
são diferentes. Embora o rio consista apenas de movimento e mudança de suas partes e suas
águas sejam apenas passageiras, tendemos a atribuir identidade a ele e, se analisarmos o
crescimento de uma árvore, devemos admitir que tudo o que percebemos dela é a mudança e
transição de uma pequena plantinha até chegar a uma grande árvore, como se pode observar
no caso de um carvalho.
Os exemplos de Hume são muito significativos aqui, pois eles podem nos auxiliar na
discussão sobre as fontes literárias de Hume na sua formulação sobre o problema da
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identidade pessoal. O exemplo do rio é famoso na tradição filosófica e remonta a Heráclito4,
mas possivelmente o propósito de Hume ao utilizar o exemplo teria sido o de fazer frente a
Hobbes, que utilizou o mesmo exemplo. De fato, na seção sobre a identidade pessoal, Hume
indica claramente estar preocupado com esse problema tal como ele vinha sendo estudado na
sua época na Inglaterra: “We now proceed to explain the nature of personal identity, which
has become so great a question in philosophy, especially of late years, in England, where all
the abstruser sciences are study'd with a peculiar ardour and application” (1978, p. 259).
Assim, não foi apenas o exemplo do rio que ele teria utilizado para poder se inserir no debate
sobre a identidade pessoal em seu tempo. Em Hobbes, aparece também o exemplo da criança
que se torna homem e do navio, que sofre reparações sem deixar de ser o mesmo navio5, em
“Do Corpo”, parte II, cap. XI (pp. 135-8). Em Locke, temos os exemplos da massa de matéria,
do carvalho, dos animais e do homem (“Ensaio sobre o entendimento humano”, livro II, cap.
27, par. 3 a 6).
Locke e Hobbes são empiristas, de modo que a pergunta sobre a identidade dos objetos
tomando como base o que se restringe ao observável pela experiência sensível parece estar de
acordo com os seus sistemas filosóficos. A problematização em Hobbes, no entanto, toma
poucas páginas de sua obra e não se aprofunda na questão da identidade pessoal. Em Locke,
ela é mais detalhada e argumentativa. Quando trata da questão da identidade e diversidade,
Locke atribui participação na mesma vida contínua para caracterizar o homem. Mas tal
conceito seria problemático para caracterizar uma pessoa se caso o mesmo espírito possa
mudar de corpo, como supõem alguns filósofos a respeito da transmigração das almas. Para
qualificar uma pessoa, portanto, para além da noção de partilha da mesma vida, que diria
4 Conforme consta, por exemplo, no “Crátilo”, de Platão (fragm. Diels-Kranz 22 A 6): “Heráclito diz em
alguma passagem que todas as coisas se movem e nada permanece imóvel. E, ao comparar os seres com a
corrente de um rio, afirma que não poderia entrar duas vezes num mesmo rio”. 5 Trata-se da discussão sobre o “barco de Teseu”, que aparece em Plutarco (em “Vida de Teseu”): se
todas as peças de um barco forem trocadas, ele continua sendo o mesmo barco? E se destas mesmas peças
fizerem outro barco, este seria numericamente o mesmo que o anterior? Mas, nesse caso, teríamos dois
barcos como sendo numericamente o mesmo, o que é absurdo. Hume foi leitor de Hobbes tanto quanto de
Plutarco (o primeiro ele cita no livro I do “Tratado”, o segundo, em obras posteriores) e, portanto, teve
acesso a esse exemplo antes de usá-lo em seus escritos. Leibniz, de quem Hume também era leitor, volta a
citar o caso do barco de Teseu (Novos Ensaios, livro II, cap. 27, par. 4). Em Clarke, voltam a aparecer os
exemplos do rio e do homem/criança (apud DUCHARME 1986). E Claude Buffier, o qual não encontramos
qualquer indício de que Hume tenha consultado, comenta sobre o caso do barco, além do rio e do mesmo
corpo humano, no “Traité des premières véritez”, de 1724 – vinte e três anos antes do “Tratado” (apud
THIEL 2011, p. 393).
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respeito ao conceito de homem, plantas e animais enquanto seres viventes, Locke afirma que
é na consciência que consiste a identidade pessoal, é ela que garante a identidade de um ser
racional (1979, par. 6 e 9). Mais adiante, ele acrescenta que o eu é esta coisa pensante,
sensível e consciente de prazer, dor, capaz de felicidade e miséria até onde a consciência pode
alcançar (1979, par. 17). O alcance desta consciência se dá, naturalmente, pela memória.
De acordo com Bettcher (2009), Hume estaria se referindo a Locke já no início da seção
sobre a identidade pessoal, quando afirma:
There are some philosophers who imagine we are every moment intimately
conscious of what we call our SELF; that we feel its existence and its continuance in
existence; and are certain, beyond the evidence of a demonstration, both of its
perfect identity and simplicity. The strongest sensation, the most violent passion, say
they, instead of distracting us from this view, only fix it the more intensely, and
make us consider their influence on self either by their pain or pleasure. (1978, p.
251). grifos nossos.
Bettcher acrescenta que, para Locke, dor e prazer são a base das paixões (cfme “Ensaios” II,
20, 3) e isso justificaria a observação de Hume acima acerca da “mais violenta paixão”. Outra
passagem relevante é a do “Apêndice”, em que Hume diz que a “Most philosophers seem
inclin'd to think, that personal identity arises from consciousness; and consciousness is
nothing but a reflected thought or perception” (1978, p. 635. grifo do autor).
Outra relação importante entre os dois autores vem de Udo Thiel (2011, pp. 396-7). Ele
julga que Hume estaria seguindo Locke quando estabelece no início da seção que “[...] we
must distinguish betwixt personal identity, as it regards our thought or imagination, and as it
regards our passions or the concern we take in ourselves. The first is our present subject [...]”
(1978, p. 253). De fato, a distinção entre identidade pessoal com relação à imaginação e com
relação aos aspectos legais e interesses pessoais aparece também em Locke, especialmente
após o parágrafo 17 da seção sobre a identidade e diversidade. Hume, porém, não trata da
identidade pessoal relacionada às paixões e interesses pessoais, como fez Locke.
Além dessas passagens, Hume parece estar criticando Locke um pouco adiante, quando
levanta a questão: se eu não me lembro do que fiz numa determinada data passada, então não
sou eu a mesma pessoa que aquela? E conclui que não é a memória que “produz” a identidade
pessoal (tal como supõe Locke), mas é ela que a “revela”, ao nos mostrar a relação de causa e
efeito entre as ideias da consciência. Com a noção de causalidade, além disso, podemos
estender essa cadeia de causas para além da memória e abarcar ao nosso eu fatos e ações de
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que nos esquecemos totalmente6 (1978, pp. 261-2).
Locke é frequentemente citado por Hume, inclusive no livro I do “Tratado”. Já na
introdução, ele é elogiado por ter colocado a ciência humana em “um novo patamar”,
juntamente com outros filósofos britânicos tais como Lord Shaftesbury, Hutcheson e Butler.
Esses também podem ser relacionados com Hume aqui, conforme veremos. Na época em que
escreveu o “Tratado”, Hume chegou a enviar cópias da sua primeira obra para o bispo Butler,
ao seu primo Henry Home (Lord Kames), entre outros (MOSSNER 2001, pp. 118-9). Ainda
conforme Mossner, Hume adquiriu as “Características dos Homens, Costumes, Opiniões,
Épocas” de Shaftesbury em 1726 (2001, p. 31). Portanto, estava bem relacionado e
familiarizado com os grandes escritores britânicos do seu tempo. Além desses, Clarke é citado
em nota do livro I, parte III, seção III do “Tratado”, e o correspondente desse, Anthony
Collins, nos ensaio “Da independência do parlamento”, de 1742. Haviam dúvidas entre alguns
comentadores de Hume sobre a sua familiaridade com as obras de Berkeley, mas tais dúvidas
foram cessadas com a descoberta de uma carta de Hume a Michael Ramsay, antes da
publicação do “Tratado” na qual ele recomenda ao amigo a leitura de vários autores, incluindo
os “Princípios do Conhecimento Humano” de Berkeley7.
Tais informações sobre a leitura de Hume, especialmente na época da escrita do seu
primeiro livro, o “Tratado”, são fundamentais para o debate sobre a originalidade de Hume na
questão da identidade pessoal, pois todos os autores acima mencionados trataram, de um
modo ou outro, da questão. Butler, o bispo de Bristol, publicou uma pequena dissertação
sobre a identidade pessoal em 1736, na qual ele ataca as posições de Locke e de seus
seguidores, referindo-se àquele que respondeu as objeções de Clarke sobre o assunto, isto é,
Anthony Collins. Na sua dissertação, Butler mostra que os lockeanos levantam o problema
sobre a percepção da memória. Mas, como podemos estar sendo enganados com relação à
nossa memória, trata-se então de uma questão sobre a verdade da percepção da memória. No
6 Locke, no parágrafo 10 da sua seção sobre identidade e diversidade, considera a objeção do
esquecimento e afirma que a objeção diz respeito à noção de homem e substância, mas não de pessoa, uma
vez que ele considera que uma pessoa pode transmigrar para outros corpos. Com relação à identidade
pessoal, “the question is about what makes the same person, and not whether the same identical substance
always thinks in the same person”. Assim, se eu não tenho consciência de determinadas ações do passado,
posso dizer que não sou aquela pessoa, até porque punir uma pessoa por uma ação da qual ela não se lembra
é injusto; as leis civis inclusive preveem isso (1979, par. 20). 7 Sobre isso, ver o artigo “Did Hume ever read Berkeley?” e “So, Hume did Read Berkeley”, de Richard
Popkin.
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entanto, seria “ridículo” querer provar a verdade destas percepções por outras percepções do
mesmo tipo que elas (1860, p. 328). Para Butler, portanto, identidade pessoal deve estar
baseada em uma substância ou alma imaterial dada previamente.
Segundo Udo Thiel, a seção sobre a identidade pessoal de Hume é destinada a atacar
Joseph Butler, antes do que Locke (2011, p. 386). Pois Butler diz, entre outras coisas, que
“upon comparing the consciousnesses of one’s self, or one’s own existence, in any two
moments, there as immediately arises to the mind the idea of personal identity” e, um pouco
adiante, fala de “certain conviction, which necessarily and every moment rises within us,
when we turn our thoughts upon ourselves” (1860, p. 323 e 327). De fato, os termos e ideias
destas passagens se aproximam do vocabulário de Hume quando, no início da seção sobre a
identidade pessoal – já citado acima, explica qual o seu alvo nesta parte: “There are some
philosophers who imagine we are every moment intimately conscious of what we call our
SELF; that we feel its existence and its continuance in existence; and are certain, beyond the
evidence of a demonstration, both of its perfect identity and simplicity” (1978, p. 251). A
passagem do “Apêndice”, também citada acima, parece igualmente ser direcionada a Butler,
tendo em vista a grande semelhança entre os termos escolhidos pelos dois autores: “Most
philosophers seem inclin'd to think, that personal identity arises from consciousness; and
consciousness is nothing but a reflected thought or perception” (1978, p. 635. grifo do autor).
Mas, quem seria realmente o alvo de Hume não passam de conjecturas, pois toda evidência
que temos até então são tais aproximações de ideias entre os filósofos.
A dissertação de Butler entra numa grande controvérsia sobre o tema da identidade
pessoal que ocorria entre Clarke e Collins por meio de correspondência entre 1707 e 1708.
Clarke, assim como Butler, pensa na identidade da alma como a priori devido a sua natureza
imaterial. A identidade pessoal existe antes de qualquer ato da consciência, ele diz contra as
concepções de Locke e de Collins. Collins pende mais para o materialismo do que Locke,
chegando a conceber que a consciência é um modo de algum poder da matéria, tal como o
movimento de um relógio representa as suas funções. E, com relação à identidade da “pessoa”,
ele concorda com Locke, de que é a consciência que a determina8 (THIEL 2011, pp. 144-6 e
8 Voltaire é outro seguidor de Locke nesta questão, como nota Udo Thiel, especialmente no seu “Tratado
de Metafísica”, de 1734, mas que foi publicado somente em suas “Obras Completas”, de 1784-89 (2011, p.
146), depois, portanto, da elaboração das ideias de Hume sobre o problema da identidade pessoal. Citações
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229-34). Collins, portanto, também pode ser um dos alvos de Hume.
Na seção sobre a identidade pessoal, Hume não menciona qualquer um dos autores
acima nem promove uma crítica extensa aos materialistas ou imaterialistas, mas na seção
anterior, “Da imaterialidade da alma”, ele ataca a noção de alma tanto imaterial quanto
material, atribuindo uma noção fictícia à alma, ao eu ou à substância. Os únicos filósofos a
serem atacados diretamente aqui, porém, são Espinosa e Malebranche. Na “Síntese” a crítica à
noção da alma enquanto espírito continua, mas lá ele a remete a Descartes e aos cartesianos. E
finalmente em escritos posteriores, como no ensaio “Da Imortalidade da Alma” de 1755, o
ataque continua, mas sem nomear diretamente os seus adversários.
O único autor citado na seção sobre a identidade pessoal é Shaftesbury. Numa discussão
em que ele ataca a noção fictícia de alma, eu ou substância, ele insere um nota de rodapé com
a seguinte observação:
If the reader is desirous to see how a great genius may be influenc'd by these
seemingly trivial principles of the imagination, as well as the mere vulgar, let him
read my Lord Shaftesbury's reasonings concerning the uniting principle of the
universe, and the identity of plants and animals. See his Moralists: or Philosophical
rhapsody. (1978, p. 254). grifos do autor.
Essa passagem pode indicar que Hume tenha tomado os exemplos da identidade de
plantas e animais de Shaftesbury, embora Locke, de quem Hume também era grande leitor,
tenha usado os exemplos anteriormente. Outra controvérsia aqui diz respeito à suposta
recomendação de Hume. Para John Laird, Hume estaria criticando, em vez de recomendando,
Shaftesbury aqui, pois este estaria sendo influenciado pelos “princípios triviais da imaginação”
(MIJUSKOVIC 1971, p. 330). Mijuskovic, porém, aposta na recomendação, tendo em vista
principalmente o fato de Hume ser um seguidor de Shaftesbury aqui. Udo Thiel, por outro
lado, defende que Hume não estaria nem criticando nem recomendando o autor, mas apenas
ilustrando o seu próprio pensamento com a nota (2011, p. 391). Seja qual tenha sido a
intenção do autor, o fato importante para o nosso propósito aqui é o de que Hume estava
atento ao que disse Shaftesbury a respeito da identidade dos animais e plantas e o considerou
digno de nota neste assunto. Para Mijuskovic, contudo, Hume de fato segue Shaftesbury nesta
questão, mais do que Hutcheson, como defende Norman Kemp-Smith. Pois Hume, assim
de Hume sobre Voltaire aparecerão somente no ensaio “Da estação média da vida”, que saiu na sua edição
dos “Ensaios Morais e Políticos”, Vol. II, de 1742 e em cartas a partir do ano de 1754.
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como Shaftesbury, (a) nega a influência racionalista na discussão do eu; (b) formula uma
descrição positiva do eu a partir do mesmo método utilizado para explicar a identidade de
plantas e animais; (c) insiste que essa explicação naturalista é consistente com a consciência
reflexiva e constante do eu (1971, p. 334). Por outro lado, Hutcheson, no seu “Sistema de
Filosofia Moral” de 1755, rejeita a teoria do “feixe de ideias” tal como defendida pelos
materialistas do seu tempo, pois ela aniquilaria a mente e a possibilidade de vida futura
(THIEL 2011, pp. 410-1). A visão de Hutcheson, portanto, é a que Hume rejeita e ataca no
“Tratado”.
Outro autor que pode ter influenciado Hume aqui é George Berkeley. Berkeley também
considera uma espécie de teoria do “feixe de ideias” nos seus “Comentários Filosóficos”,
como mostra Thiel (2011, p. 412). Na nota 580 da edição de Luce, ele diz que a “mind is a
congeries of perceptions. Take away perceptions and you take away the mind, put the
perceptions and you put the mind”. Já nos “Três Diálogos entre Hilas e Filonous”, Filonous
responde a Hilas que, embora não possa representar a ideia do eu, ele sabe que é um espírito e
que existe com certeza; não por meio dos sentidos, mas pela reflexão e raciocínio (1837, pp.
68-9).
Como observa Thiel, parece improvável que Hume tenha se inspirado em Berkeley aqui,
pois Berkeley levanta a teoria do “feixe das ideias” mas, logo em seguida, a rejeita. Além
disso, a discussão de Berkeley encontra-se inserida na crítica ao materialismo e à noção de
substância enquanto ente material. No entanto, é possível que a passagem tenha lhe causado
algum impacto. Outros autores que podem ter gerado algum impacto sobre a noção do eu em
Hume são Malebranche e Pierre Bayle.
Malebranche, embora sustente com Descartes a existência de uma substância pensante,
afirma que a noção do eu é incompreensível a nós, como mostra Doxsee no artigo “Hume’s
Relation to Malebranche” (1916). Embora saibamos que a alma existe, diz ele, não podemos
conhecer todas as modificações de que ela é capaz. Para Malebranche, Deus tem as idéias de
todos os seres que criou. Logo, Ele deve estar estreitamente unido às nossas almas, ocupando
o lugar dos espíritos, assim como o espaço ocupa o lugar dos corpos. Sendo assim, o nosso
espírito pode ver em Deus as suas obras e conhecer as coisas que se encontram foram de nós9.
9 No capítulo VI (“Que nous voyons toutes choses en Dieu”), livro III, parte II da “Procura da Verdade”,
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Mas o mesmo não acontece com a alma, pois ela não se encontra fora de nós (“A Procura da
Verdade”, livro III, parte II, cap. VII, par. IV do Vol. I).
Il n'en pas de même de l'ame, nous ne la connoissons point par son idée: nous ne la
voyons point en Dieu: nous ne la connoissons que par conscience; & c'est pour cela
que la connoissance que nous en avons est imparfaite. Nous ne sçavions de nôtre
ame, que ce que nous sentons se passer en nous. Si nous n'avions jamais sonti de
douleur, de chaleur, de lumiére, etc. nous ne pourrions sçavoir si nôtre ame seroit
capable, parce que nous ne la connoissons point par son idée. [...] Il est vrai que
nous connoissons assez par nôtre conscience, ou par le sentiment intérieur que nous
avons de nous-mêmes, que nôtre ame est quelque chose de grand: Mais il se peut
faire que se que nous en connoissous ne soit presque rien de ce qu'elle est en elle-
même. (1688, p. 352). grifo do autor.
É importante observar que Malebranche aqui, embora não seja cético como Hume,
levanta dúvidas sobre o conhecimento que podemos ter de nossa própria alma, visto que só
podemos ter conhecimento das ideias por meio de Deus. Mas nós temos a consciência da
nossa alma, por um “sentiment intérieur que nous avons de nous-mêmes”, embora esse
conhecimento possa não representar o que seja a alma em si mesma. Enfim, tudo o que temos
são as sensações do que se passa em nós, tais como as sensações de dor, de calor, de luz.
Doxsee observa o quanto essa passagem lembra a de Hume: “For my part, when I enter most
intimately into what I call myself, I always stumble on some particular perception or other, of
heat or cold, light or shade, love or hatred, pain or pleasure” (1978, p.252. grifo do autor).
Pierre Bayle, outro autor que Hume leu na juventude10, também elaborou uma crítica
questionando a noção de ser enquanto substância, ou melhor, como uma compilação ou
amontoado (amas ou monceau) de substâncias no seu “Dicionário Histórico e Crítico”, artigo
“Rorarius, Jerôme”, nota L, sétima crítica a Leibniz.
On comprendroit quelque chose là-dedans [do sistema de Leibniz], si l'on supposoit
que l'ame de l'homme n'est pas un esprit; mais plutôt une légion d'esprits dont
chacun a ses fonctions, qui commencent & finissent précisément comme le
demandent les changements qui se sont au corps humain. En conséquence de cela il
vol. I. Essa obra de Malebranche é a que Hume cita em alguns dos seus escritos, incluindo o livro I do
“Tratado”. Recomenda também a Ramsay na carta mencionada acima, escrita antes da publicação do
“Tratado”. Não há evidências, porém, de que Hume tenha consultado outras obras de Malebranche, como os
“Diálogos sobre a Metafísica”, na qual encontram-se também passagens significativas sobre a identidade
pessoal, como mostra Doxsee (1916).
10 Hume menciona Bayle nas suas obras filosóficas mais importantes e em algumas cartas, incluindo
àquela a Ramsay. Além disso, no seu caderno de memórias com anotações compreendidas entre 1729 e 1740,
Mossner encontrou 16 notas sobre Bayle, evidenciando que ele utilizou o “Dicionário Histórico e Crítico” do
cético francês na juventude (1948).
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faudroit dire, que quelque chose d'analogue à un grand attirail de rouës & de ressorts,
ou de matieres qui se fermentent, disposé selon les vicissitudes de notre machine,
reveille ou endort pour un tel & pour un tel tems l'action de chacun de ces esprits;
mais alors l'ame de l'homme ne seroit plus une substance, ce seroit un ens per
aggregationem, un amas & un monceau de substances tout comme les êtres
matériels. Nous cherchons ici un être unique qui forme tantôt la joie, tantôt la
douleur, etc, nous ne cherchons pas plusieurs êtres dont l'un produise l'espérance,
l'autre le desespoir, etc. (1972, tomo IV, p. 86). grifo do autor.
É preciso observar que, com a ideia de um “ser agregado” (ens per aggregationem),
Bayle está mostrando que, se o sistema de Leibniz for levado a sério, terminaria desta forma,
como os seres materiais. Bayle não está, como Hume, tomando como hipótese o “feixe de
percepções”, embora a discussão seja muito semelhante. Como mostra Thiel, Bayle está
comentando sobre a possibilidade de multiplicidade de sujeitos percipientes e não das
percepções em um único sujeito (2011, p. 411-2).
Como observa Kemp-Smith, há também passagens relevantes sobre a identidade no
artigo “Spinoza” do “Dicionário”, um dos artigos que Hume recomenda a Ramsay em sua
carta de juventude. Na nota P do artigo, por exemplo, Bayle fala da identidade de coisas como
nações, rios e corpos dos homens (1964, p. 510). Os dois últimos exemplos são os mesmos
que Hume utiliza na seção sobre a identidade pessoal; quanto ao primeiro, povos ou “nações”
(peuples, no francês), em Hume não encontramos exatamente o mesmo mas, mais adiante da
seção, ele compara a alma com uma república ou comunidade (republic or commonwealth, no
inglês), que também está sujeita à transformação incessante.
Outros autores, alguns consultados por Hume, também fizeram reflexões isoladas sobre
o tópico da identidade pessoal. Farei rápidas menções, primeiramente a Régis, que não temos
qualquer evidência de que Hume tenha-o consultado e depois ao Conde de Boulainvilliers, La
Rochefoucauld, Pascal e Montaigne, que Hume comprovadamente leu11.
11 Há duas citações de Hume a respeito do Conde de Boulainvilliers no seu caderno de memórias, escrito
antes do “Tratado” (MOSSNER 1948), além de passagens posteriores. La Rochefoucauld é citado no
segundo livro do “Tratado” (parte III, seção IV) e também em passagens posteriores. Hume cita Montaigne
no ensaio “O Cético” de 1742, mas Mossner suspeita que Hume tenha conhecido Montaigne ainda antes de
ter escrito o Tratado em 1740 (2001, p. 79). Acreditamos que as suspeitas de Mossner possam ser
confirmadas pois, embora Hume não o cite pelo nome, na parte III do “Tratado” ele recorre a um “exemplo
familiar” encontrado no ensaio “Apologia de Raimundo de Sabunde” de Montaigne (1978, p. 148). Pascal
repete o exemplo nos “Pensamentos”, fragmento 82, da edição de Brunschvicg (1913, p. 38). Discuti
pormenores destas hipóteses na minha tese de doutorado, pp. 69-70, disponível em
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-10122010-105833/es.php. Por fim, Hume fala do
“famoso” Pascal numa nota de rodapé do ensaio sobre os “Milagres”, e em obras posteriores. Sabe-se que
Hume escreveu o ensaio dos “Milagres” na época do “Tratado”, mas não sabemos se na época ele já havia
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Thomas Lennon (apud THIEL 2011, p. 413) argumenta que o cartesiano Pierre-Sylvain
Régis, em sua obra “Sistema de Filosofia” de 1690, antecipa a teoria do feixe de ideias de
Hume. Segundo Régis, as mentes individuais são “feixes ou qualidades” na substância mental
universal, mas, como nota Thiel, essa antecipação é bastante questionável. Pois, para Régis, a
alma está ligada a um corpo orgânico e denota um indivíduo em particular. E esta alma se
constitui por meio da relação com o espírito, que seria a substância pensante em geral. Assim,
conclui Thiel, Régis não estaria tratando das ideias num ser em particular, mas da relação da
sua alma individual com a mente universal, de modo bastante diferente de Hume. Outro
francês comentado por Thiel e que poderia ter antecipado Hume é Léger-Marie Deschamps
mas, embora a sua obra “A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema” tenha sido escrita
anteriormente, foi publicada somente em 1762, depois do “Tratado”. Além disso, Deschamps,
assim como Régis, está mais preocupado em relacionar seres sensíveis individuais à totalidade
do ser ou a um todo universal do que com as ideias do eu individual, como mostra Thiel
(2011, pp. 416-7).
Henry de Boulainviller, mais conhecido como o Conde de Boulainvilliers, completou o
seu “Ensaio de Metafísica”, que trata em alguns momentos do eu, em 1712, mas publicou-o
somente em 1731. Hume cita-o em algumas ocasiões, mas sempre no plano político e indica
apenas a sua obra “Estado da França”, por isso é difícil saber se houve influência dele sobre
os escritos de Hume acerca da identidade pessoal. No “Ensaio de Metafísica”, Boulainviller
fala de “... l’assemblage des modalités de pensée et d’étendue qui constitue le moi présent”,
de que “... l’âme humaine ... n’a d’autre réalité que celle qu’elle tire des idées”, e de que “...
l’esprit n’existant que par la suite et l’enchaînement des ses idées et de ses perceptions” (apud
THIEL 2011, p. 414).
Tais passagens inegavelmente apresentam semelhanças com o vocabulário de Hume.
No entanto, Thiel observa que elas não fornecem evidências para a teoria das ideias de Hume,
pois, assim como Régis e Deschamps, Boulainviller está antes interessado em mostrar, na
linha de Espinosa, a caracterização dos seres individuais diante de uma substância absoluta.
Thiel comenta também sobre a contribuição para o tema da identidade pessoal de alguns
ensaístas, tais como Montaigne, Pascal e La Rochefoucauld. A contribuição deles seria a de
citado ou conhecido Pascal.
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retratar a pessoa como objeto de investigação psicológica, alternativamente à definição
metafísica e abstrata que predominava na modernidade (2011, p. 60). Thiel não apresenta
citações diretas de Montaigne e de La Rochefoucauld para nos ajudar com a comparação
deste tema com o pensamento de Hume. A mais próxima que encontramos em La
Rochefoucauld está no aforismo 175, de suas “Máximas e Reflexões Morais”:
La constance en amour est une insconstance perpétuelle, qui fait que notre coeur
s'attache successivement à toutes les qualités de la personne que nous aimons,
donnant tantôt la préférence à l'une, tantôt à l'autre: de sorte que cette constance n'est
qu'une inconstance arretée & renfermée dans un même sujet. (1785, pp. 67-8).
Trata-se, naturalmente, de uma reflexão profunda sobre o amor, mas dizendo respeito à
constância e inconstância das preferências passionais do ser humano enquanto sujeito.
Passagem semelhante a esta está em Pascal. Pascal nos deixou um aforisma intitulado
“Qu’est-ce que le moi?”, e nele pergunta-se como alguém poderia efetivamente amar outra
pessoa senão pelas suas qualidades pessoais, que são passageiras e mutáveis. Se alguém me
ama por causa dos meus juízos ou memória, posso dizer que me ama?
Non, car je puis perdre ces qualités sans me perdre moi-même. Où est donc ce moi,
s’il n’est ni dans le corps, ni dans l’âme? et comment aimer le corps ou l’âme, sinon
pour ces qualités, qui ne sont point ce qui fait le moi, puisqu’elles sont périssables?
car aimerait-on la substance de l’âme d’une personne abstraitement, et quelques
qualités qui y fussent? Cela ne se peut, et serait injuste. On n’aime donc jamais
personne, mais seulement des qualités. (1913, p. 138, fr. 323) grifo do autor.
Pascal parece estar à procura da substância do eu, mas sem colocar em questão a sua
existência. Montaigne, que escreveu seus ensaios em primeira pessoa, retratando-se de acordo
com as mudanças a que estava sujeito, assinala, no final da sua “Apologia” que nada, nem
mesmo os seus próprios pensamentos, são imutáveis.
Comment est-ce que nous aimons choses contraires ou les haïssons, nous les louons
ou nous les blâmons? Comment avons-nous différentes affections, ne retenant plus le
même sentiment en la même pensée? Car il n’est pas vraisemblable que sans mutation
nous prenions autres passions, et ce qui souffre mutation ne demeure pas un même, et,
s’il n’est pas un même, il n’est donc pas aussi. Ains, quant et l’être tout un, change
aussi l’être simplement, devenant tousjours autre d’un autre (1965, vol. II, p 350).
Essa variação natural do ser humano, que após uma hora já não é o mesmo, também já
havia sido percebida por Francisco Sanches em seu “Que nada se sabe”, escrito em 1581
(1991, p. 107), mas estas observações isoladas, longe de levantarem sério questionamento
com relação à substância da alma, podem ter sido apenas uma extensão do argumento de
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Heráclito, ou curtas reflexões relacionadas à inconstância da identidade ou personalidade do
homem através do tempo.
Como diz Thiel, não parece haver nenhum filósofo antes de Hume que tenha sustentado
que a natureza da mente seja composta apenas de um feixe de percepções (2011, p. 417).
Weinberg, no artigo “The Novelty of Hume’s Philosophy”, também não encontrou nenhuma
indicação de ceticismo sobre auto-conhecimento relevante na filosofia antes de Hume (1964-5,
p. 33). As linhas de discussão sobre a identidade pessoal, ele continua, ou afirmavam que o eu
era conhecido diretamente por nós, seguindo os neoplatônicos e agostinianos, ou tendiam a
atribuir ao eu um conhecimento indireto, por meio dos atos da alma, seguindo Aristóteles.
Conforme vimos, a motivação maior dos escritos era o de resolver o problema trinitário e o de
esclarecer questões relacionadas à imortalidade da alma.
Com os filósofos nominalistas e empiristas modernos (Hobbes, Locke, Boyle),
intensifica-se a busca do eu por meio de uma impressão distinta, individual e que perpassa o
tempo. Hume segue esta tradição e diz que formamos as nossas noções relativas ao espaço e
tempo partindo da sucessão de nossas ideias e impressões, no “Tratado” (livro I, parte II,
seção III). Mas ele não é herdeiro apenas dessa escola filosófica. Ele pode ter encontrado
elementos importantes para os seus questionamentos sobre o eu nos moralistas e ensaístas dos
séculos XVI e XVII. É bem mais provável, porém, que as suas principais reflexões sobre o
tema tenham surgido após as leituras dos seus autores mais citados e comentados da
modernidade, e que estiveram em sua biblioteca de juventude: Malebranche, Bayle e
principalmente os empiristas britânicos. Em vista destes fatos, acreditamos que o problema de
Hume não pode ser visto como um caso isolado da tradição, pois ele torna-se mais claro e
compreensível quando o comparamos com o pensamento predominante do seu tempo.
Por outro lado, esta busca por concepções próximas a de Hume na questão da identidade
pessoal não tem como propósito diminuir a sua suposta descoberta. Muito pelo contrário, ela
só tende a enaltecer a sua originalidade, uma vez que não encontramos na tradição nenhum
outro autor que tenha procurado responder ao problema da mesma maneira que Hume.
As suas críticas, em primeiro lugar, estão vinculadas a uma teoria geral do entendimento
humano, e não se encontram dispersas, como em muitos outros autores. É certo que Locke,
Butler e Clarke, por exemplo, não se limitaram a redigir algumas notas nem pensaram no
problema a partir de princípios alheios às suas filosofias. Mas, dentro da filosofia empirista,
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Hume parece ter sido o que levou a discussão mais profundamente, chegando a analisar
rigorosamente os elementos capazes de análise e observação em nossa alma, sem propor
qualquer solução a ele com princípios auto-evidentes na própria alma ou suposições de cunho
“metafísico”, como ele sempre diz. Além disso, apesar de oferecer uma explicação ao
problema, as observações humeanas terminam de forma cética12, e isso é o que parece ter
levado os filósofos do período moderno e contemporâneo a se debruçarem sobre o caso, a fim
de solucioná-lo. Como diz Bertrand Russell, foi Hume quem tornou o empirismo de Locke e
Berkeley coerente consigo mesmo, isto é, cético (1957, p. 206). Ou, seguindo Milton, o que
parece ter capacitado Hume a ir além de seus predecessores foi a sua habilidade de seguir uma
determinada linha de argumento até a sua conclusão final, um entusiasmo para edificar uma
filosofia sistemática e uma libertação significativa de muitos dogmas filosóficos e teológicos,
que guiou a maioria dos seus predecessores (1987, p. 69).
12 Pelo menos é assim que Hume julga terminar a questão no Apêndice do “Tratado” (1978, pp. 633-6).
Aqui ele se diz “envolvido em um labirinto” e que não consegue tornar suas opiniões sobre o assunto
consistentes. Tais declarações levaram muitos comentadores a acreditarem que Hume teria abandonado a sua
teoria sobre a identidade pessoal, e por isso, não a tratou na “Investigação sobre o Entendimento Humano”,
que seria a versão final de suas ideias. Há uma carta sua direcionada a Henry Home (de maio ou junho de
1776) na qual ele reconhece que os avanços do amigo nesta área foram mais satisfatórios que os dele. No
entanto, concluir a partir disso que Hume teria abandonado a sua teoria em favor da de Lord Kames parece
ser muito apressado. Pois isso implicaria que Hume consentisse nos princípios filosóficos dele, abrindo mão
de alguns dos seus. Como explica Tsugawa (1961), para Kames, se não houvesse uma consciência para o eu,
a nossa vida seria uma quimera. Por isso, ele apela para um sentimento original de consciência do eu e de
nossa existência, ideias que Hume já havia rejeitado em outros autores.
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REFERÊNCIAS
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Spinoza.
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Berkeley. London: Thomas Tegg and son, 1837.
BETTCHER, Talia Mac. Berkeley and Hume on Self and Self-Consciousness, In: MILLER, J.
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HUME E O “EU” COMO UM TEATRO DAS PERCEPÇÕES
HUME AND THE “SELF” AS A THEATRE OF PERCEPTIONS
André Luiz Olivier da Silva1
RESUMO: Ao investigar o problema da identidade pessoal, Hume indagou se haveria uma
impressão sensível que correspondesse diretamente às ideias que se referem a um “eu”
pensante – como as ideias de alma, consciência e substância. O presente trabalho aborda a
resposta empirista de Hume a esse problema, segundo a qual não podemos apontar uma
impressão adequada a essas ideias e o máximo que podemos fazer em uma investigação
filosófica é descrever o modo como essas ideias são geradas na natureza humana. Tais ideias
não passam de ficções da imaginação e surgem como um equívoco da mente humana sobre a
continuidade dos objetos físicos percebidos ao longo da sucessão temporal, pois a mente
imagina objetos e pessoas com existências contínuas e invariáveis, como se a descontinuidade
percebida por nossa natureza fosse descartada no processo de observação dos corpos e outras
mentes. Para Hume, as ficções da imaginação, juntamente com as lembranças da memória,
fomentam a produção de crenças na ideia de que certos corpos físicos possuem consciência e
constituem, mesmo com o movimento do tempo, uma identidade pessoal.
Palavras-chave: Hume; ideia; crença; identidade pessoal; eu.
ABSTRACT: Inquiring the problem of personal identity, Hume wondered if there was a
sensory impression that would correspond directly to the ideas that refer to a “self” thinking -
how the ideas of soul, consciousness and substance. This paper discusses the empiricist
answer given by Hume, according to which a proper impression of these ideas can not be
pointed and the most we can do in a philosophical investigation is to describe how these ideas
are generated in human nature. Such ideas are fictions of imagination and emerge as a
misunderstanding of the human mind on the continuity of physical objects perceived along
the temporal succession, once the mind imagines objects and people with continuous and
invariable existence, as if the discontinuity perceived by our nature was not relevant to the
observation of bodies and other minds. For Hume, the fictions of the imagination, along with
reminiscences from memory, promote the production of beliefs on the idea that certain
physical bodies have consciousness and are, even with the movement of time, a personal
identity.
Key-words: Hume; idea; belief; personal identity, self.
1 Doutor em Filosofia e Professor dos Cursos de Graduação em Direito e em Relações Internacionais da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Atualmente, é
Coordenador do Curso de Graduação em Direito da Unisinos. Endereço eletrônico:
aolivierdasilva@yahoo.com.br
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Introdução
A metodologia empirista de David Hume toma como ponto de partida de sua
investigação sobre o processo associativo de ideias o princípio segundo o qual toda ideia
deriva de impressões. O crivo empirista imporia que qualquer ideia apresentada (a ideia de
mesa ou cadeira, por exemplo, ou mesmo a ideia de homem) devesse surgir a partir de
impressões sensíveis e, quando uma ideia não correspondesse a nenhuma impressão, essa
deveria ser rejeitada pela natureza humana. O problema é que as ideias que produzem a
crença na existência de outras mentes não conduzem a uma impressão autêntica, de modo que
não podemos mais do que descrever como é possível a crença na existência de uma
consciência dentro do ser humano que está na minha frente (por exemplo, quando converso
com um amigo, peço uma informação para alguém etc. – como saber se essas pessoas
existem?).
Na tentativa de encontrar uma solução a esse problema, Hume aponta as contradições
encontradas no âmbito dos mais variados sistemas populares e filosóficos, que não se
restringem apenas às concepções acerca da existência exterior dos corpos. Tais contradições
são ainda mais visíveis e latentes no que tange à existência do “eu”, como afirma Hume. “(...)
é natural esperarmos encontrar dificuldades e contradições ainda maiores nas hipóteses acerca
de nossas percepções internas e da natureza da mente, que tendemos a imaginar muito mais
obscuras e incertas.” (HUME, 2001, p. 264)2. Quando Hume mergulha nas percepções
internas do ser humano, a ideia de identidade ganha uma imagem muito semelhante às ideias
do mundo extenso, e a existência desses corpos conscientes passa a ser explicada a partir das
ficções da imaginação, que associam ideias na mente humana a ponto de embaralhá-las na
montagem de ideias complexas. A imaginação leva a natureza humana a atribuir continuidade
a objetos que são percebidos como se fossem descontínuos e variáveis, passa a enxergar
identidade nas coisas e nas pessoas.
2 (...) we shall naturally expect still greater difficulties and contradictions in every hypothesis concerning our
internal perceptions, and the nature of the mind, which we are apt to imagine so much more obscure, and
uncertain. (HUME, 1992, p. 232)
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A origem da ideia de “eu”
O problema da identidade pessoal constitui um tema amplamente discutido na filosofia
moderna, a começar por Descartes, que travou um longo debate acerca da substância
pensante3. No entanto, Hume não concorda com a visão cartesiana do “eu”, descrevendo o
“eu” pensante como uma ideia falaciosa ao mesmo tempo em que arrola severas críticas ao
racionalismo dogmático de Descartes. “Há filósofos que imaginam estarmos, em todos os
momentos, intimamente conscientes daquilo que denominamos nosso EU [our SELF] (...)”
(HUME, 2001, p. 283)4. O problema apontado por Hume em torno da identidade pessoal será
encontrar uma impressão que corresponda a essa ideia. Porém, mesmo sem uma impressão
correspondente e adequada, os filósofos teimam em afirmar a existência do “eu” substancial.
Como, então, podemos compreender a ideia de identidade pessoal?
A ideia complexa de uma substância – seja ela o “eu” ou qualquer outra coisa do
mundo – constitui um dos importantes efeitos provocados pela associação de ideias na mente.
A mente humana, ao comparar objetos que supostamente são os mesmos, objetos idênticos a
si próprios, atribui a eles identidade, creditando realidade a eles. Como Hume não encontra
uma impressão sensível à ideia de “eu” ou substância, terá que perguntar aos cartesianos de
que lugar tal ideia foi extraída. Indaga Hume:
Eu gostaria de perguntar àqueles filósofos que fundamentam tanto de seus
raciocínios na distinção entre substância e acidente, e imaginam que temos idéias
claras de ambas, se a idéia de substância é derivada das impressões de sensação ou
de reflexão. Se ela nos é transmitida pelos sentidos, pergunto: por qual deles? e de
3 Antes de adentrar no problema da identidade, Hume aborda o problema da imaterialidade da alma, que, neste
artigo, será omitido. Cabe apenas a lembrança de que na Seção V, Parte IV, do Livro I do Tratado, Hume expõe
o argumento sobre a imaterialidade da alma, contrapondo teses teológicas ao ateísmo monista de Spinoza. Tais
argumentos, como os argumentos provenientes dos sistemas filosóficos acerca da existência corpórea, defendem
a divisão entre coisas materiais e entes imateriais, sustentando que a alma é imaterial e não existente no mundo
físico. A alma é uma substância inerente ao corpo, que não é exatamente um corpo. Mas, de onde provém tal
ideia? De uma percepção certamente, diz Hume, e não de um mundo extraterreno, como afirmam os argumentos
a favor da imaterialidade da alma. Os argumentos a favor desse sistema são esdrúxulos e nos levam à seguinte
conclusão: “um objeto pode existir, sem entretanto estar em nenhum lugar; (...)” (HUME, 2001, p. 268,
grifos do autor). [(...) an object may exist, and yet be no where: (...) (HUME, 1992, p. 235, grifos do autor).]
Portanto, a crença na imaterialidade da alma é um absurdo, pois nenhuma impressão justifica tal ideia: “(...) a
questão acerca da substância da alma é absolutamente ininteligível.” (HUME, 2001, p. 282) [(...) the question
concerning the substance of the soul is absolutely unintelligible: (...) (HUME, 1992, p. 250).]. Mesmo assim,
essa crença é produzida pela mente e isso deve-se ao erro provocado pelo hábito, que reforça a mente, por meio
da imaginação, a acreditar na alma e na pressuposição de que existe uma divisão entre alma e corpo. 4 There are some philosophers. who imagine we are every moment intimately conscious of what we call our
SELF (...) (HUME, 1992, p. 251)
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que maneiras? Se é percebida pelos olhos, deve ser uma cor; se pelos ouvidos, um
som; se pelo paladar, um sabor; e assim por diante, para os demais sentidos.
Acredito, porém, que ninguém afirmará que a substância é uma cor, ou um som, ou
um sabor. Portanto, a idéia de substância, se é que ela existe realmente, deve ser
derivada de uma impressão de reflexão. Mas as impressões de reflexão se reduzem
às nossas paixões e emoções, nenhuma das quais poderia representar uma
substância. Assim sendo, não temos nenhuma idéia de substância que seja distinta da
idéia de uma coleção de qualidades particulares, e tampouco temos em mente
qualquer outro significado quando falamos ou quando raciocinamos a seu respeito.
(HUME, 2001, p. 39 – 40, grifo do autor)5
Descartes afirma que o “primeiro princípio da Filosofia” (DESCARTES, 1973a, p. 54)
resume-se à proposição “(...) eu penso, logo existo” (DESCARTES, 1973a, p. 54) ou à “eu
sou, eu existo” (DESCARTES, 1973b, p. 100), na qual o homem é dividido em dois tipos de
substâncias (a pensante e a corpórea), o que Hume considera um equívoco, o mesmo equívoco
que cometem os filósofos quando raciocinam acerca da existência dos objetos físicos6. A
ficção ou a ilusão da imaginação, como Hume classifica o equívoco cartesiano, reside na
substancialização do pensamento, como se fosse plausível dizer sobre o “eu” “que sentimos
sua existência e a continuidade de sua existência; e que estamos certos de sua perfeita
identidade e simplicidade, com uma evidência que ultrapassa a de uma demonstração.”
(HUME, 2001, p. 283)7. Maior absurdo ainda é dizer que as sensações já bastam para fixar a
mente na ideia de identidade pessoal, como fazem os referidos filósofos ao alegarem que:
“(...) por meio da dor ou do prazer que produzem, levam-nos a considerar a influência que
exercem sobre o eu.” (HUME, 2001, p. 283, grifo do autor)8. Para Hume, não só Descartes,
5 I wou'd fain ask those philosophers, who found so much of their reasonings on the distinction of substance and
accident, and imagine we have clear ideas of each., whether the idea of substance be deriv'd from the
impressions of sensation or of reflection? If it be convey'd to us by our senses, I ask, which of them; and after
what manner? If it be perceiv'd by the eyes, it must be a colour; if by the ears, a sound; if by the palate, a taste;
and so of the other senses. But I believe none will assert, that substance is either a colour, or sound, or a taste.
The idea, of substance must therefore be deriv'd from an impression of reflection, if it really exist. But the
impressions of reflection resolve themselves into our passions and emotions: none of which can possibly
represent a substance. We have therefore no idea of substance, distinct from that of a collection of particular
qualities, nor have we any other meaning when we either talk or reason concerning it. (HUME, 1992, p. 15 – 16,
grifo do autor) 6 O argumento do Cogito, ergo sum mostra como Descartes, no Discurso do método, funda as bases da
substância pensante do “eu”. Iniciando sua metodologia num ceticismo antecedente, que primeiramente duvida
de todas as coisas, julga Descartes encontrar um fundamento racional para ideias como “eu” e existência
corpórea. Nas Meditações, Descartes define a “coisa pensante” como “(...) uma coisa que duvida, que concebe,
que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que duvida.” (DESCARTES, 1973b, 103). 7 (...) that we feel its existence and its continuance in existence; and are certain, beyond the evidence of a
demonstration, both o its perfect identity and simplicity. (HUME, 1992, p. 251) 8 (...) and make us consider their influence on self either by their pain or pleasure. (HUME, 1992, p. 251, grifo
do autor)
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mas os filósofos modernos em geral, foram atraídos para a armadilha da natureza humana,
caindo nas garras das ficções da imaginação.
Para solucionar a pendenga sobre a ideia de identidade pessoal, basta indagar a sua
origem, questionando o seguinte, como faz usualmente Hume: de que impressão deriva a ideia
de “eu” (self)?9 Logo veremos que a ideia de eu não pode ser extraída de nenhuma impressão.
As impressões não são constantes e invariáveis a ponto de imprimir na mente a ideia de que
existe uma pessoa em si mesma. Por causa disso, a concepção do “eu” cartesiana precisa ser
rejeitada:
(...) não possuímos nenhuma idéia de eu da maneira aqui descrita. Pois de que
impressão poderia ser derivada essa idéia? É impossível responder a essa pergunta
sem produzir uma contradição e um absurdo manifestos; e entretanto, se queremos
que a idéia de eu seja clara e inteligível, precisamos necessariamente encontrar uma
resposta para ela. (...) Dor e prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-
se umas às outras, e nunca existem todas ao mesmo tempo. Portanto, a idéia de eu
não pode ser derivada de nenhuma dessas impressões, ou de nenhuma outra.
Conseqüentemente, não existe tal idéia. (HUME, 2001, p. 284, grifo do autor)10
As conclusões a que Hume chega ao investigar as percepções internas, mais
precisamente a continuidade do eu, seguem os mesmos trilhos da sua argumentação sobre a
existência dos corpos. “O eu, considerado como algo dotado de uma identidade contínua ao
longo do tempo, também é vítima do estilo bidentado de ataque característico de Hume.”
(QUINTON, 1999, p. 34). Embora não se tenha uma impressão que fundamente a ideia de
“eu”, não se pode negar que as pessoas crêem na sua existência, acreditando na existência de
“eus” que vivem no mundo. A crença na existência do “eu” tem a sua origem nas percepções,
como propõe Hume:
De minha parte, quando penetro mais intimamente naquilo que denomino meu eu,
sempre deparo com uma ou outra percepção particular, de calor ou frio, luz ou
sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca apreendo a mim mesmo, em momento
algum, sem uma percepção, e nunca consigo observar nada que não seja uma
percepção. Quando minhas percepções são suprimidas por algum tempo, como
ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo fico insensível a mim mesmo, e
pode-se dizer verdadeiramente que não existo. E se a morte suprimisse todas minhas
percepções; e se, após a dissolução do meu corpo, eu não pudesse mais pensar,
9 Na Seção VI, da Parte IV, do livro I, do Tratado, Hume indaga a origem da ideia de identidade pessoal. 10 (...) nor have we any idea of self, after the manner it is here explain'd. For from what impression cou'd this
idea be deriv'd? This question 'tis impossible to answer without a manifest contradiction and absurdity; and yet
'tis a question, which must necessarily be answer'd, if we wou'd have the idea of self pass for clear and
intelligible, (...) Pain and pleasure, grief and joy, passions and sensations succeed each other, and never all exist
at the same time. It cannot, therefore., be from any of these impressions, or from any other, that the idea of self is
deriv'd; and consequently there is no such idea. (HUME, 1992, p. 251, grifo do autor)
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sentir, ver, amar ou odiar, eu estaria inteiramente aniquilado – pois não posso
conceder o que mais seria preciso para fazer de mim um perfeito nada. Se, após uma
reflexão séria e livre de preconceitos, ainda houver alguém que pense possuir uma
noção diferente de si mesmo, confesso que não posso mais raciocinar com ele.
Posso apenas conceder-lhe que talvez esteja certo tanto quanto eu, e que somos
essencialmente diferentes quanto a esse aspecto particular. Talvez ele perceba
alguma coisa simples e contínua, que denomina seu eu; mas estou certo de que não
existe tal princípio em mim. (HUME, 2001, p. 284 – 285, grifos do autor)11
São as percepções particulares, como a dor e o prazer, que provocam o ser humano a
elaborar a ideia de uma consciência pura de si mesmo, não que essa ideia provenha
diretamente de uma impressão. A ideia do “eu”, assim como a ideia da existência corpórea, é
fruto de uma ficção da imaginação, que nasce quando essa faculdade embaralha as ideias que
estava a associar. Com isso, Hume recusa a noção substancialista do eu cartesiano ao mesmo
tempo em que propõe a sua teoria do eu como um feixe de percepções. “(...) o ceticismo
moderno, o ceticismo humeano em particular, rejeitou o Cogito, associando-se a uma filosofia
mentalista que identificou o eu como uma mente concebida como o feixe de nossas
representações” (PEREIRA, 2007, p. 130, grifo do autor). É justamente através das
representações que a natureza humana formula a crença no eu.
Um teatro de percepções
A definição do “eu” surge na investigação humeana a partir da comparação entre a
mente humana e o palco de um teatro, no qual são apresentados inúmeros espetáculos, com os
mais variados tipos de personagens. Tais espetáculos são como as percepções da natureza
humana: ora são tristes, ora são alegres; ora doem, ora são agradáveis e dão prazer. No palco
desse teatro aparecem sucessivas percepções que constituem a estrutura do “eu” e daquilo que
se denomina um ser humano. A ideia de “eu” consiste num feixe ou coleção de diferentes
11 For my part, when I enter most intimately into what I call myself, I always stumble on some particular
perception or other, of heat or cold, light or shade, love or hatred, pain or pleasure. I never can catch myself at
any time without a perception, and never can observe any thing but the perception. When my perceptions are
remov'd for any time, as by sound sleep; so long am I insensible of myself, and may truly be said not to exist.
And were all my perceptions remov'd by death, and cou'd I neither think, nor feel, nor see, nor love, nor hate
after the dissolution of my body, I shou'd be entirely annihilated, nor do I conceive what is farther requisite to
make me a perfect non-entity. If any one, upon serious and unprejudic'd reflection thinks he has a different
notion of himself, I must confess I call reason no longer with him. All I can allow him is, that he may be in the
right as well as I, and that we are essentially different in this particular. He may, perhaps, perceive something
simple and continu'd, which he calls himself; tho' I am certain there is no such principle in me. (HUME, 1992,
p. 252, grifos do autor)
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percepções, como afirma Hume, ao ironizar os filósofos metafísicos que crêem num “eu”
substancial: “À parte alguns metafísicos dessa espécie, arrisco-me, porém, a afirmar que os
demais homens não são senão um feixe ou uma coleção de diferentes percepções (...)”
(HUME, 2001, p. 285)12. Essas percepções “se sucedem umas às outras com uma rapidez
inconcebível, e estão em perpétuo fluxo e movimento.” (HUME, 2001, p. 285)13. Prossegue
Hume:
A mente é uma espécie de teatro, onde diversas percepções fazem sucessivamente
sua aparição; passam, repassam, esvaem-se, e se misturam em uma infinita
variedade de posições e situações. Nela não existe, propriamente falando, nem
simplicidade em um momento, nem identidade ao longo de momentos diferentes,
embora possamos ter uma propensão natural a imaginar essa simplicidade e
identidade. Mas a comparação com o teatro não nos deve enganar. A mente é
constituída unicamente pelas percepções sucessivas; e não temos a menor noção do
lugar em que essas cenas são representadas ou do material de que esse lugar é
composto. (HUME, 2001, p. 285, grifos do autor)14
A mente é similar a um teatro, onde aparecem, sucessivamente, diversas percepções,
sendo que a ausência de tais percepções faz com que o ser humano não consiga obter uma
ideia sobre si mesmo. Uma sucessão de percepções ilude a mente a crer que exista uma
consciência dentro dos homens. Tais percepções passam tão rapidamente pelo palco da
natureza humana que a enganam, sobrepondo e associando, equivocadamente, uma ideia
sobre a outra, até gerar a errônea crença na identidade pessoal. Essa crença surge da mesma
maneira que a crença na existência dos objetos corpóreos. Isto é, o homem crê nas coisas
materiais do mundo do mesmo modo que crê no “eu” e nas outras mentes.
Para tornar mais fácil a compreensão da ideia de “eu”, Hume sugere uma explicação
sobre “(...) aquela identidade que atribuímos às plantas e animais – pois há uma grande
analogia entre esta e a identidade de um eu ou pessoa.” (HUME, 2001, p. 286)15. No âmbito
do senso comum, é ainda mais visível estabelecer relações entre os seres humanos e os
12 But setting aside some metaphysicians of this kind, I may venture to affirm of the rest of mankind, that they are
nothing but a bundle or collection of different perceptions (...) (HUME, 1992, p. 252) 13 which succeed each other with an inconceivable rapidity, and are in a perpetual flux and movement. (HUME,
1992, p. 252) 14 The mind is a kind of theatre, where several perceptions successively make their appearance; pass, re-pass,
glide away, and mingle in an infinite variety of postures and situations. There is properly no simplicity in it at
one time, nor identity in different; whatever natural propension we may have to imagine that simplicity and
identity. The comparison of the theatre must not mislead us. They are the successive perceptions only, that
constitute the mind; nor have we the most distant notion of the place, where these scenes are represented, or of
the materials, of which it is compos'd. (HUME, 1992, p. 253, grifos do autor) 15 (...) which we attribute to plants and animals; there being a great analogy betwixt it, and the identity of a self
or person. (HUME, 1992, p. 253)
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animais, tendo em vista que o homem comum raciocina e pensa a identidade de modo similar
ao dos animais. “Casos como o da convicção da identidade pessoal poderiam ser considerados
específicos do homem (embora esta questão não seja simples); mas a maior parte do senso
comum seria vista como partilhada pelo homem com numerosas outras espécies animais”
(MONTEIRO, 1984, p. 229, grifo do autor). Nada difere a existência de um chimpanzé da
existência do homem. Ambos são percebidos pela mente (seja a mente de um ser humano ou a
de um macaco), e não são mais do que percepções descontínuas e variáveis.
Neste ponto, o exemplo da identidade do gato de Russell pode ser elucidativo. Quando
se observa um objeto animado, como um animal ou uma pessoa, ora esse corpo encontra-se
num lugar, ora em outro. Porém, mesmo sem perceber constantemente esta criatura, o
observador não tem dúvidas de que ela existe e teve que se movimentar no mundo, indo de
um lado a outro. No caso do gato, o seu dono poderá observar que, de um momento a outro
(momentos que não foram percebidos), o gato passa a ter fome e a reclamar por alimento, o
que, por si só, já seria uma comprovação da existência da matéria. Diz Russell:
E se o gato consiste apenas em dados dos sentidos, não pode ter fome, dado que
nenhuma fome excepto a minha pode ser um dado dos sentidos para mim. Assim, o
comportamento dos dados dos sentidos que representam o gato para mim, apesar de
parecer perfeitamente natural quando é encarado como uma expressão de fome,
torna-se totalmente inexplicável quando é encarado como meros movimentos e
mudanças de manchas de cor, que são tão incapazes de ter fome, como um triângulo
é incapaz de jogar futebol. (RUSSELL, 2008, p. 85, grifo do autor).
Por certo, nossas percepções nunca poderão recomendar a existência distinta e
contínua dos corpos, como a de um felino. Se um observador confiar apenas nos objetos da
percepção, só poderá chamar de objeto aquilo que estiver presente à sua frente naquele
determinado instante. Em relação à introspecção, ou à autoconsciência, Russell analisa o
conhecimento por contato entre os dados dos sentidos e os objetos. Analisa até que ponto os
dados dos sentidos tocam-se com os objetos em si mesmos. “(...) consciência do nosso eu: é
consciência de pensamentos e sentires particulares. (...) Quando tentamos olhar para nós
mesmos parece que encontramos sempre um pensamento ou sentir particular, e não o “eu”
que tem o pensamento ou o sentir.” (RUSSELL, 2008, p. 110 – 111, grifos do autor)
Ao perceber corpos e pessoas, sejam eles animais, plantas ou homens, a natureza
humana estabelece, naturalmente, relações, fixando contrapontos e comparações, cotejando
uma percepção com outra. Ao fazer isso, a natureza humana confunde os objetos relacionados
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com a noção de identidade. Tal confusão provém da repetição dos fenômenos. Novas
percepções aparecem em situações diversas e repetem-se sucessivamente, provocando uma
ficção na imaginação, no sentido de que geram na mente a crença de que o objeto percebido é
sempre o mesmo. As experiências passam, então, a ser unidas a partir de relações, sendo a de
semelhança a mais importante delas. Diz Hume: “Tal semelhança é a causa de nossa confusão
e erro, fazendo-nos trocar a noção de objetos relacionados pela de identidade.” (HUME, 2001,
p. 286)16. A causalidade, mais do que a contiguidade, também desempenha importante função
na produção das ficções da imaginação, mas a relação de semelhança é incisiva na
determinação desse erro da natureza humana em atribuir continuidade a percepções
descontínuas.
A constatação de que os objetos estão relacionados entre si induz a mente a elaborar
ideias que expressam a identidade pessoal: “É assim que criamos a ficção da existência
contínua das percepções de nossos sentidos, com o propósito de eliminar a descontinuidade; e
chegamos à noção de uma alma, um eu e uma substância, para encobrir a variação.”
(HUME, 2001, p. 287, grifos do autor)17. Não há um expediente ontológico para a noção de
“substância”. Diz Vergez: “Hume substitui a afirmação ontológica por uma simples
explicação psicológica da nossa crença nas substâncias.” (VERGEZ, 1984, p. 25). E
prossegue: “O sustentáculo de todos esses fenômenos, essa “substância” a que se chama alma
ou o eu, não é literalmente senão uma invenção da nossa imaginação” (VERGEZ, 1984, p. 25,
grifo do autor). Os filósofos geralmente caem nessa ficção, pois não preservam a mesma
ingenuidade do homem comum, que consegue viver num mundo exclusivamente de objetos.
Os filósofos inventam a noção de substância, como ressalta Fogelin:
Para Hume, seres humanos comuns (o vulgar, em seu vocabulário do século
dezoito) vivem com felicidade inocente sobre o fato de que grande parte de suas
crenças é falsa e infundada. São os filósofos que, tendo perdido sua inocência, têm
necessidade da noção de substância, ou de matéria original ou inicial. Eles precisam
dessa noção precisamente porque não podem reprimir completamente sua inclinação
natural de crer que mudando os objetos isso preserva sua identidade no tempo,
enquanto ainda considerando que somos apenas cientes de nossas fugazes
16 This resemblance is the cause of the confusion and mistake, and makes us substitute the notion of identity,
instead of that of related objects. (HUME, 1992, p. 254) 17 Thus we feign the continu'd existence of the perceptions of our senses, to remove the interruption: and run into
the notion of a soul, and self, and substance, to disguise the variation. (HUME, 1992, p. 254, grifos do autor)
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percepções internas. A noção de substância é um substituto para essas crenças
perdidas do vulgar. (FOGELIN, 1998, p. 110, grifo do autor, tradução nossa)18
A ideia de identidade pessoal é infudada, e não pode ser justificada racionalmente, de
sorte que não passa de um erro da imaginação. Na verdade, a ideia de identidade do “eu”
provém da relação entre percepções diversas: “(...) todos os objetos a que atribuímos
identidade sem ter observado sua invariabilidade e ininterruptibilidade são constituídos por
uma sucessão de objetos relacionados.” (HUME, 2001, p. 288)19. Mais do que isso, as
relações estabelecidas pela mente ao tecer percepções não são tão precisas a ponto de gerar
ideias e crenças sóbrias acerca da outras mentes. As relações são confusas e embaralhadas,
vindo a ocasionar ideias e crenças mais confusas ainda, tal como a crença na ideia de eu.
O experimento da massa de matéria
Para explicar o mecanismo da imaginação ao provocar o erro e a ilusão, bem como a
crença na ideia de “eu”, Hume arrola vários exemplos ilustrativos. Entre eles, o exemplo da
massa de matéria pode elucidar com clareza o nascimento das ficções da imaginação. Basta
concebermos uma massa que constitui um corpo idêntico a si mesmo. Por exemplo, uma
pedra. À medida que se subtrai ou se adiciona uma parcela de massa a esse corpo, sua
identidade modifica-se. Com efeito, quando a diminuição ou o aumento da massa é mínimo e
insignificante, a tendência da mente é continuar a considerar o referido corpo ainda como o
mesmo objeto, preservando a identidade dessa massa de matéria. Uma pedra que rola na beira
de um rio, por exemplo, tem o seu corpo estilhaçado e, consequentemente, diminuído. Mesmo
assim, a mente diria se tratar da mesma pedra. Afirma Hume: “A rigor, isso destrói por
completo à identidade do todo; entretanto, como nunca pensamos de maneira tão precisa,
sempre que encontramos uma alteração tão insignificante não hesitamos em afirmar que a
18 For Hume, ordinary human beings (the vulgar, in his eighteenth-century vocabulary) live blissfuly innocent of
the fact that the greater part of their beliefs is either false or unfounded. It is the philosophers who, having lost
their innocence, stand in need of the notion of substance, or original and first matter. They need this notion
precisely because they cannot fully stifle their natural inclination to suppose that changing objects preserve their
identity over time, while yet holding that we are only aware of fleeting internal perceptions. The notion of
substance is a surrogate for those lost beliefs of the vulgar. (FOGELIN, 1998, p. 110, grifo do autor) 19 Our chief business, then, must be to prove, that all objects, to which we ascribe identity, without observing
their invariableness and uninterruptedness, are such as consist of a succession of related objects. (HUME, 1992,
p. 255)
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massa de matéria é a mesma.” (HUME, 2001, p. 288)20. Pequenas alterações num corpo não
servem para a mente dizer que se trata de outro corpo. Mesmo o corpo sendo diferente, a
tendência natural da mente é dizer que se trata sempre do mesmo objeto.
A natureza humana se ilude quanto à medição da grandeza da massa porque a
mudança, em muitas ocasiões, é sutil, sentida aos poucos pela mente. A mudança nas partes
do corpo, por menor que seja, extingue a sua identidade, pois fabrica um novo corpo,
diferente do anterior. Porém, quando a mudança é proporcional, a tendência da mente é
ignorá-la, como se não houvesse nenhuma variação nas partes do corpo. “(...) embora a
alteração de uma parte considerável de uma massa de matéria destrua a identidade do todo,
devemos medir a grandeza da parte, não de maneira absoluta, mas proporcionalmente ao
todo.” (HUME, 2001, p. 288, grifo do autor)21. A imaginação engana a mente porque, a partir
da mudança gradual e progressiva da massa de matéria, dá a sensação de que o corpo
observado ainda é o mesmo. “A alteração de uma parte considerável de um corpo destrói sua
identidade; mas é de se notar que, quando a alteração se produz de forma gradual e
insensível, nossa tendência a atribuir a ela esse mesmo efeito é menor.” (HUME, 2001, p.
289, grifos do autor)22. Isso explica porque consideramos uma pessoa sempre como a mesma
pessoa, embora ela já tenha mudado muitas vezes ao longo de sua vida, tendo sido criança e
depois adulta. A sensação de que ocorre um progresso ininterrupto do pensamento na
percepção dos objetos produz a ideia de identidade.
Outro modo de explicar a atribuição de identidade às coisas que mudam durante a
sucessão temporal diz respeito ao fim ou ao propósito comum entre as partes de um
composto: “(...) produzir uma referência das partes umas às outras, e uma combinação tendo
vista algum fim ou propósito comum. (HUME, 2001, p. 289, grifos do autor)23. Os exemplos
fornecidos por Hume continuam muito instrutivos nesse ponto, no sentido de que, por maiores
20 (...) tho' this absolutely destroys the identity of the whole, strictly speaking; yet as we seldom think so
accurately, we scruple not to pronounce a mass of matter the same, where we find so trivial an alteration.
(HUME, 1992, p. 256) 21 (...)which is, that tho' the change of any considerable part in a mass of matter destroys the identity of the
whole, let we must measure the greatness of the part, not absolutely, but by its proportion to the whole. (HUME,
1992, p. 256, grifo do autor) 22 A change in any considerable part of a body destroys its identity; but 'tis remarkable, that where the change is
produc'd gradually and insensibly we are less apt to ascribe to it the same effect. (HUME, 1992, p. 256, grifos
do autor) 23 (...) by producing a reference of the parts to each other, and a combination to some common end or purpose.
(HUME, 1992, p. 257, grifos do autor)
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que sejam as mudanças e as alterações sofridas por um corpo, quando a finalidade de suas
partes é mantida, estamos autorizados a dizer que observamos o mesmo e único corpo de
antes. “Um navio que teve uma parte considerável alterada por sucessivos concertos ainda é
considerado o mesmo; a diferença do material não nos impede de atribuir a ele uma
identidade.” (HUME, 2001, p. 289)24. Além disso, Hume ainda adiciona à finalidade das
partes a noção natural de simpatia, mostrando que esta contribui para a manutenção da
identidade dos corpos: “(...) a esse fim comum, acrescentamos uma simpatia entre as partes,
e supomos que elas mantêm entre si a relação recíproca de causa e efeito em todas as suas
ações e operações.” (HUME, 2001, p. 289, grifos do autor)25. Com isso, verifica-se que não
somente as variações proporcionais e gradativas auxiliam na conservação da identidade, mas
também a finalidade dos componentes do corpo, o seu propósito comum e a simpatia de suas
partes, justificam a atribuição de identidade às coisas por parte da natureza humana.
Os exemplos dados por Hume não param por aí. Embora ele esteja falando da massa
de um corpo físico qualquer, como um navio ou uma pedra, o seu principal interesse é
enfatizar a existência do “eu”. Vários são os exemplos que comparam a identidade dos seres
humanos não somente à identidade dos seres corpóreos inanimados, mas também à identidade
dos animais e dos vegetais. O homem, assim como os bichos, cresce e se desenvolve. Quando
nasce não passa de um bebê desamparado, que logo cresce e vira uma criança. Em seguida, a
mesma pessoa transforma-se num indivíduo adulto, tendo o seu corpo já completamente
alterado e crescido. O mesmo ocorre com as plantas e os animais. Uma semente que, quando
plantada na terra, cresce até transformar-se numa árvore, é sempre considerada a mesma
planta, mesmo após mudanças significativas na estrutura física das suas folhas e dos seus
galhos. Diz Hume:
Um carvalho que, de uma pequena planta, cresce até se transformar em uma grande
árvore, é sempre o mesmo carvalho, embora nenhuma de suas partículas materiais
nem a forma de suas partes continuem as mesmas. Uma criança se torna um homem,
24 A ship, of which a considerable part has been chang'd by frequent reparations, is still considered as the same;
nor does the difference of the materials hinder us from ascribing an identity to it. (HUME, 1992, p. 257) 25 (...) when we add a sympathy of parts to their common end, and suppose that they bear to each other, the
reciprocal relation of cause and effect in all their actions and operations. (HUME, 1992, p. 257, grifos do autor)
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e ora engorda, ora emagrece, sem sofrer nenhuma mudança em sua identidade.
(HUME, 2001, p. 290)26
A explicação fornecida por Hume em relação à identidade pessoal não se distancia da
explicação dada à identidade corpórea. A analogia com os animais e os vegetais mostra
exatamente isso, no sentido de que, assim como se percebe a existência de uma coisa, seja ela
um navio, uma árvore ou um animal, percebe-se, do mesmo modo, a existência de um ser
humano. “A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um tipo
semelhante à que atribuímos a vegetais e corpos animais.” (HUME, 2001, p. 291)27. A
identidade pessoal também é uma consequência da faculdade da imaginação, que produz uma
ilusão na mente, enganando-a acerca da existência das percepções internas e de outras mentes.
A memória das impressões como a fonte da identidade
Na gênese das crenças sobre outras mentes, encontra-se, de acordo com o princípio
empirista, mesmo que de modo implícito e indireto, uma impressão sensível. As ideias que
brotam na mente humana são impulsionadas por impressões sensíveis que geram uma longa
cadeia associativa de ideias até produzir ideias complexas, como a de identidade. No caso da
ideia de identidade pessoal, não seria diferente, pois a imaginação associa ideias na mente por
meio das relações de semelhança, contiguidade e causa e efeito, até produzir a crença na ideia
de eu. Com efeito, a faculdade da memória parece aliar-se à imaginação, fornecendo a esta
faculdade ideias que ficaram retidas como lembranças, o que significa dizer ideias mais
vívidas e intensas, mais próximas da experiência.
As relações de ideias mais próximas às impressões facilitam o processo associativo,
conectando uma ideia à outra, encaixando as que são parecidas entre si, criando vínculos entre
elas, vindo, por fim, a formar a ideia de identidade pessoal, como afirma Hume: “(...) a
essência mesma dessas relações é produzir uma transição fácil entre as idéias (...)” (HUME,
26 An oak, that grows from a small plant to a large tree, is still the same oak; tho' there be not one particle of
matter, or figure of its parts the same. An infant becomes a man-, and is sometimes fat, sometimes lean, without
any change in his identity. (HUME, 1992, p. 257) 27 The identity, which we ascribe to the mind of man, is only a fictitious one, and of a like kind with that which
we ascribe to vegetables and animal bodies. (HUME, 1992, p. 259)
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2001, p. 292)28. Somente uma transição tranquila e agradável à natureza humana pode gerar a
ideia de identidade, como sustenta Hume: “(...) nossas noções de identidade pessoal decorrem
integralmente do progresso suave e ininterrupto do pensamento ao longo de uma cadeia de
idéias conectadas (...)” (HUME, 2001, p. 292)29. Por meio de algumas relações mentais
(causalidade, semelhança e contiguidade), a imaginação produz a noção de identidade,
fazendo com que alguém aponte para as suas percepções e diga que isto ou aquilo é mais do
que um corpo – é um corpo com consciência. As relações entre as ideias produzem o
progresso ininterrupto do pensamento até formar a ideia de identidade pessoal, permitindo a
alguém afirmar e acreditar que está diante de uma pessoa, de um ser humano, enfim, de um
“eu”.
No entanto, nem todas as três relações desempenham a mesma atividade no processo
associativo de ideias. A relação de contiguidade, por sua vez, não é tão importante quanto às
relações de semelhança e causalidade. Estas últimas facilitam a conexão entre as ideias da
imaginação ao ponto de ocasionar ideias complexas. Além disso, estas duas últimas relações
não desempenham uma atividade essencial apenas na faculdade da imaginação, que, como
vimos, é fundamental para a atribuição da identidade. Anterior ao processo imaginativo, a
faculdade da memória guarda ideias, que serão processadas posteriormente na imaginação, e,
por sua vez, também é fundamental para a formação da ideia de identidade pessoal.
A memória é tão importante que Hume a classifica como “(...) a fonte da identidade”
(HUME, 2001, p. 294)30, tendo em vista que percepções passadas recordadas pela mente
servem para dizer que se trata das mesmas percepções sentidas no momento presente. A
lembrança de percepções sentidas anteriormente fica retida na mente, mais precisamente na
faculdade da memória, e, quando uma impressão sensível é novamente apresentada à natureza
humana, tal lembrança é reavivada, trazendo à tona as mesmas sensações do passado. Afirma
Stroud: “(...) pensamos nós mesmos como algo duradouro, em parte, porque lembramos”
28 (...) the very essence of these relations consists in their producing an easy transition of ideas (...) (HUME,
1992, p. 260) 29 (...) our notions of personal identity, proceed entirely from the smooth and uninterrupted progress of the
thought along a train of connected ideas (...) (HUME, 1992, p. 260) 30 (...) the source of personal identity. (HUME, 1992, p. 261)
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(STROUD, 2005, p. 123, grifo do autor, tradução nossa)31. A memória guarda as percepções
de uma pessoa qualquer, vindo a formular a ideia de uma pessoa singular.
Na geração da ideia dessa pessoa específica, a semelhança é chamada para exercer
uma função primordial, vindo a fomentar a lembrança, por meio de imagens, deste
determinado indivíduo. A ideia de uma pessoa singular “(...) é efetivamente a semelhança em
nossas experiências originadas por nossas lembranças que nos levam a pensá-las como
constituintes de uma mente.” (STROUD, 2005, p. 124, grifo do autor, tradução nossa)32. A
ideia de um antigo amigo, por exemplo, fica retida na memória, como lembrança, e, quando o
mesmo amigo reaparece no campo perceptivo da natureza humana, esta recorda-se das
percepções do passado e pode dizer, com confiança, que se trata da antiga pessoa com quem
estabeleceu vínculos de amizade.
Na formulação dessa ideia, seja um amigo, sejamos nós mesmos, está a memória, visto
que as percepções da natureza humana “ocorrem na memória de uma pessoa antes que
comecemos a pensá-las como constituintes de uma mente.” (STROUD, 2005, p. 124, grifos
do autor, tradução nossa)33. Nessa faculdade, as relações de semelhança e causalidade
continuam a exercer a conexão entre as ideias, lubrificando essa conexão de uma ideia à outra
e, assim, estabelecendo uma transição mais confortável à natureza humana. Sobre a relação de
semelhança na memória, Hume diz o seguinte: “(...) a memória não apenas revela a
identidade, mas também contribui para sua produção, ao produzir a relação de semelhança
entre as percepções. Isso ocorre quer consideremos a nós mesmos, quer aos outros.” (HUME,
2001, p. 293)34. Isto porque só se pode dizer que uma percepção é semelhante à outra quando
se resguardam na memória as características de percepções presenciadas no passado.
Por outro lado, a causação também está presente na formação das ideias complexas,
concatenando as parecidas e similares: “Por mais mudanças que sofra, suas diversas partes
31 (...) we think of ourselves as one enduring thing also partly because we remember. (STROUD, 2005, p. 123,
grifo do autor) 32 (...) is really the resemblance among our experience caused by our remembering that leads us to think of them
as constituting one mind. (STROUD, 2005, p. 124, grifo do autor) 33 occur in one person’s memory before we come to think of them as constituing one mind. (STROUD, 2005, p.
124, grifos do autor) 34 (...) the memory not only discovers the identity, but also contributes to its production, by producing -the
relation of resemblance among the perceptions. The case is the same whether we consider ourselves or others.
(HUME, 1992, p. 261)
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estarão sempre conectadas pela relação de causalidade.” (HUME, 2001, p. 294)35. Memória e
causalidade são, então, contrapostas por Hume na tentativa de mostrar como as percepções
são unidas na mente. Afirma Biro: “O que, acima de tudo, une percepções que coletivamente
constituem a mente ou eu é a memória, e a relação natural de causação pela qual a
memória é inextricavelmente ligada” (BIRO, 1998, p. 49, grifos do autor, tradução nossa)36.
Aqui, novamente, a memória opera com maestria, recordando os efeitos ocasionados por
causas passadas e prioritárias, e extraindo inferências acerca de eventos futuros. Após
contrapor percepções sentidas no passado – percepções essas que estavam guardadas no
compartimento da memória, como lembranças –, a natureza humana infere que a percepção
sentida no presente é igual a percepções sentidas num momento anterior. “Desse ponto de
vista, portanto, a memória não tanto produz, mas revela a identidade pessoal, ao nos mostrar
a relação de causa e efeito existente entre nossas diferentes percepções.” (HUME, 2001, p.
294, grifos do autor)37. A memória revela a identidade porque, através de lembranças e
recordações, ressuscita ideias adormecidas, dando uma nova moldura às impressões presentes.
Dessa maneira, Hume está a defender a opinião de que a memória é a responsável pela
descoberta da identidade pessoal. Não que ela produza a identidade, pois esta é a tarefa da
imaginação. Ocorre que a memória revela a impressão correlata à determinada ideia, ao
contrário da imaginação, que impulsiona o processo associativo de ideias para além da
experiência. A memória retoma impressões, porém, a questão oriunda do princípio empirista
tende a aparecer: de que impressão provém a ideia de “eu”? Se a memória possui as ideias
mais voltadas às impressões, temos motivos para descobrir que impressões são essas. Porém,
quando indagamos a origem do “eu”, não encontramos nenhuma impressão presente, mas
uma coleção de ideias que correspondem a impressões distantes e diversas. Aliás, quando a
natureza humana concebe a ideia de “eu”, nada mais faz do que errar, ou iludir-se acerca de
uma existência a qual nunca poderá ter certeza.
35 Whatever changes he endures, his several parts are still connected by the relation of causation. (HUME,
1992, p. 261) 36 What, above all, unites the perceptions that collectively constitute a mind or self is memory, and the natural
relation of causation with which memory is enextricably bound up. (BIRO, 1998, p. 49, grifos do autor) 37 In this view, therefore, memory does not so much produce as discover personal identity, by shewing us the
relation of cause and effect among our different perceptions. (HUME, 1992, p. 262, grifos do autor)
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Considerações Finais
Quando Hume enfatiza e retorna à impressão sensível, ele não está ressaltando que
devemos analisar somente impressões, pois o processo de conhecimento não restringe a mente
às impressões, mas vai além, ultrapassando a experiência sensível, adentrando o campo das
ideias, ou das imagens. As ideias também são maneiras de se conceber algo, ou modos de se
experimentar. Por causa do dogma empirista segundo o qual toda ideia deriva de uma
impressão, poderíamos até pensar que a investigação humeana adota explicitamente esse
princípio, mas a interpretação em torno dele precisa ser revisitada, no sentido de que Hume
não rejeita as ideias que não derivam (ao menos diretamente) das impressões. Hume admite
ideias ilegítimas, não derivadas das impressões, tais como as ideias de identidade no mundo e
no “eu”. Tais ideias não provêm diretamente das impressões sensíveis, mas surgem após um
longo processo associativo de ideias. Nesse processo, operado pela faculdade da imaginação,
as ideias são emaranhadas e sobrepostas umas às outras, não sendo possível colher uma
impressão correspondente. A imaginação embaralha as imagens, sobrepondo-as, confundindo-
as, criando novas imagens, até gerar as denominadas ficções ou ilusões da imaginação.
A causalidade e a semelhança impõem ritmo ao processo associativo de ideias, às
questões de fato, dando vazão ao movimento das ideias, induzindo a faculdade da imaginação
a produzir ideias e a gerar crenças. Embora não exista uma impressão correlata à ideia de
identidade, existe um conjunto de percepções (impressões variadas e ideias) dando forma às
ideias de corpos e de “eu”. Mesmo sem uma impressão, a mente formula a ideia de
identidade, cria a ideia de mundo e de mente, formando, inclusive, crenças em relação a essas
entidades. Isso se deve ao hábito de perceber sempre as mesmas impressões e ideias,
reproduzindo o processo associativo de ideias sempre da mesma maneira. Isso se deve à
disposição natural do homem em destacar as percepções, dando-lhes vivacidade, fomentando
as crenças no mundo e no “eu”.
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REFERÊNCIAS
BIRO, John. Hume’s new science of the mind. In: NORTON, David Fate (editor). The
Cambridge Companion to Hume. Cambridge: Cambridge University, 1998. p. 33 – 63.
(Cambridge companions)
DESCARTES, René. Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a
verdade nas ciências. São Paulo: Abril Cultural, 1973a. p. 33 – 80. (Os Pensadores)
________. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973b. p. 33 – 80. (Os Pensadores)
FOGELIN, Robert J.. Hume’s scepticism. In: NORTON, David Fate (editor). The
Cambridge Companion to Hume. Cambridge: Cambridge University, 1998. p. 90 – 116.
(Cambridge companions)
HUME, David. A treatise of human nature: An Attempt to Introduce the Experimental
Method of Reasoning. L.A. Selby-Bigge and P.H. Nidditch. Oxford: Clarendon Press, 1992.
743 p.
________. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. Traduzido por Débora Danowski. São Paulo:
Unesp, 2001. 711 p.
MONTEIRO, João Paulo. Hume e a epistemologia. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1984. 251 p.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Rumo ao ceticismo. São Paulo: Unesp, 2007. 349 p.
QUINTON, Anthony. Hume. Traduzido por José Oscar de Almeida Marques. São Paulo:
Unesp, 1999. 63 p. (Coleção Grandes Filósofos).
RUSSELL, Bertrand. Os problemas da filosofia. Lisboa: edições 70, 2008. 230 p.
STROUD, Barry. Hume. Londres: Routledge & Kegan Paul, 2005. 280 p.
VERGEZ, A.. David Hume. Lisboa: Edições 70, 1984. 79 p.
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139
A EXISTÊNCIA DE CRENÇAS MORAIS TORNA HUME EM UM COGNITIVISTA MORAL?
THE EXISTENCE OF MORAL BELIEFS TURNS HUME INTO A MORAL COGNITIVIST?
Franco Nero Antunes Soares1
RESUMO: Algumas interpretações recentes da filosofia de David Hume atribuem-lhe uma
teoria cognitivista do juízo moral. Uma das teses fundamentais dessas interpretações é que
nossos juízos morais não expressariam sentimentos morais para Hume, mas crenças morais
produzidas por meio desses sentimentos de aprovação ou reprovação de um caráter. Radcliffe
chega a afirmar que “perguntar se Hume tem uma teoria cognitivista do juízo moral é,
obviamente, perguntar se existem crenças morais em sua teoria”. O problema em identificar
crenças e juízos morais é que Hume afirma que “não inferimos que um caráter é virtuoso
porque nos agrada; mas, ao sentirmos que ele agrada por esse modo particular, nós, de fato,
sentimos que ele é virtuoso”. Meu objetivo é defender que o reconhecimento da existência de
estados mentais representacionais tais como as crenças morais não implica que os sentimentos
que constituem as distinções morais não sejam concebidos por Hume como juízos. Desse
modo, uma interpretação cognitivista da filosofia de Hume deve excluir a possibilidade de
que sentimentos morais ocupem a função de juízos morais.
Palavras-chave: Hume. Cognitivismo moral. Crença moral. Sentimento moral. Juízo moral.
ABSTRACT: Some recent readers of Hume’s philosophy consider that he holds a cognitive
theory of moral judgment. One fundamental tenet of these interpretations is that our moral
judgments do not express moral sentiments to Hume, but moral beliefs produced through
these feelings of approval or disapproval of a character. Radcliffe even states that “to ask
whether Hume has a cognitivist theory of moral judgment is obviously to ask whether there
are moral beliefs, on his theory.” The problem in identifying beliefs and moral judgments is
that Hume says that “we do not infer a character to be virtuous, because it pleases: But in
feeling that it pleases after such a particular manner, we in effect feel that it is virtuous.” My
goal is to advocate that the recognition of representational mental states such as moral beliefs
does not mean that the feelings which constitute moral distinctions are not conceived by
Hume as judgments. Thus, a cognitive interpretation of Hume's philosophy must exclude the
possibility that moral sentiments occupy the function of moral judgments.
Key-words: Hume. Moral cognitivim. Moral belief. Moral sentiment. Moral judgment.
1 Doutorando PPG-Fil/UFRGS
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140
O tema deste artigo é a natureza dos juízos morais para David Hume.2 Meu
objetivo principal é combater a tese cognitivista de que (TC) se Hume admite a existência de
crenças morais, então tal tipo de percepção constitui nossos juízos morais. Supondo-se a
veracidade da disjunção humeana de que juízos morais podem ser ou ideias ou impressões, o
corolário mais importante de TC é que impressões morais não são juízos morais. Agora, se
pudermos mostrar que impressões são a percepção que constituem nossos juízos morais, então
Hume está comprometido com a tese de que crenças morais não são juízos morais.
É preciso ter em mente aqui que “juízo moral” não é o mesmo que “sentença
moral”. Sentenças morais são entidades linguísticas. Juízos morais são os estados
psicológicos a partir dos quais atribuímos valor moral a ações. Se quisermos relacionar
sentenças e juízos morais, podemos pensar em tais juízos como o significado de nossas
sentenças morais. Esse é um modo neutro de caracterizar os juízos morais e deve agradar
tanto a cognitivistas quanto a não-cognitivistas. A neutralidade dessa caracterização depende,
entretanto, de não identificarmos “significado” com “proposição”, o que poderia fazer a
balança pender para o lado cognitivista (e definir que juízos morais são entidades
proposicionais nada mais é do que begging the question). Se assumirmos que essa
caracterização é razoável, então a explicação da natureza dos juízos morais está condicionada
à investigação do significado de nossas sentenças morais, e, para Hume, à determinação do
estado mental que fundamenta nossa atribuição de valor moral.
Pode-se identificar uma tendência recente entre os comentadores de se atribuir um
cognitivismo moral a Hume.3 Mostrarei que uma das teses fundamentais nas quais algumas
dessas interpretações se baseiam é a tese — que já apresentei acima como TC — segundo a
qual se há crenças morais na teoria humeana, então crenças são juízos morais. Sustentarei que
há um problema com as interpretações cognitivistas de Hume que dependem de TC na medida
em que o reconhecimento da existência de estados mentais representacionais tais como as
crenças morais não implica que os sentimentos que constituem as distinções morais não sejam
concebidos como juízos. Quando Hume afirma que “não inferimos que um caráter é virtuoso
porque nos agrada” (T 3.1.2.3), ele parece querer dizer com isso que a atribuição de valor
moral a um caráter não é o produto de uma inferência. Como as crenças são o único produto
2 As traduções de todas as citações presentes neste texto são de minha autoria. As citações do Tratado da
Natureza Humana seguirão a seguinte ordem: (T livro.parte.seção.parágrafo).
3 Cf. Radcliffe (2006), Cohon (2008) e Sayre-McCord (2008).
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de inferências para Hume, se a percepção que fundamenta a atribuição de valor moral não é
produzida por uma inferência, então ela não pode ser uma crença. Uma interpretação
cognitivista da filosofia de Hume deve excluir a possibilidade de que sentimentos morais
ocupem a função de juízos morais. Não defenderei aqui uma interpretação não-cognitivista
moral de Hume, mas indicarei que os sentimentos morais são o abacaxi que o cognivista tem
o dever de descascar.
1
A distinção metaética entre cognitivismo e não-cognitivismo moral é algo recente
na história das posições filosóficas. Considera-se, em geral, que a imposição dessa distinção
na discussão filosófica sobre os juízos morais ocorreu após a publicação de Language, Truth
and Logic (1936), do filósofo A. J. Ayer, uma obra fortemente inspirada pelos filósofos do
Círculo de Viena. Ayer aplicou seu empirismo radical na análise das sentenças morais e
chegou à conclusão de que tais sentenças expressam emoções de aprovação ou reprovação,
estados mentais não-cognitivos. Para Ayer, nossas sentenças morais não expressam
proposições (possivelmente) verificáveis e, por isso, não podem ser verdadeiras ou falsas:
O teísta, assim como o moralista, pode acreditar que suas experiências são
experiências cognitivas, mas, a menos que ele possa formular seu ‘conhecimento’
em proposições que sejam empiricamente verificáveis, podemos estar certos que ele
está enganando a si próprio. (AYER, 1936, p. 126).
Um cognitivista moral, por outro lado, acredita que sentenças ou pronunciamentos
morais expressam crenças, estados psicológicos cognitivos. Assim, para um cognitivista,
nossos juízos morais são crenças, o tipo de estado mental que é considerado apto a ser
verdadeiro ou falso. Um não-cognitivista recusa o cognitivismo porque acredita que juízos
morais são estados psicológicos não-cognitivos, tais como desejos e intenções, não aptos a
serem verdadeiros ou falsos.
Como Ayer ensinou, precisamos estar atentos às diferenças entre uma concepção
estritamente não-cognitivista do juízo moral e o tipo subjetivista de cognitivismo. As posições
cognitivistas são, em geral, classificadas em três tipos: objetivismo, projetivismo e
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subjetivismo. Basicamente, a distinção é a seguinte. Para um cognitivista objetivista, aquilo
que torna alguns de nossos juízos morais verdadeiros são entidades objetivas, independentes
do sujeito. Para um projetivista, nossos juízos morais são representações falsas de uma
realidade objetiva. Para um cognitivista subjetivista, aquilo que torna alguns de nossos juízos
morais verdadeiros são, ao menos, em parte, sentimentos de aprovação ou reprovação. Como
vimos, a posição não-cognitivista considera que juízos morais são sentimentos e, por isso, não
podem ser verdadeiros ou falsos.
2
A posição de Hume sobre a natureza dos juízos morais — isto é, se ele é um
cognitivista ou um não-cognitivista — é algo controverso entre os intérpretes. Há
interpretações claramente não-cognitivistas, como as de Blackburn (1984, 1993) e Bricke
(1996), mas as leituras parecem variar entre considerá-lo um cognitivista do tipo subjetivista,
ou alguém cuja posição sobre a natureza do juízo moral é inconsistente em virtude de
apresentar elementos de ambas posições, cognitivista e não-cognitivista.
Mesmo que Cohon (2008, Cap. 1) afirme que o não-cognitivismo faz parte da
leitura tradicional que se faz da metaética humeana, uma pesquisa pela bibliografia disponível
parece mostrar que isso não é caso. Segundo Sturgeon (2008, p. 515), a identificação de
passagens não-cognitivistas na filosofia de Hume começou a ocorrer a partir da década de 60,
após o estabelecimento das posições de Ayer, Stevenson e Hare. O curioso, aponta Sturgeon,
é que nem mesmo esses pioneiros do não-cognitivismo apontaram Hume como um de seus
predecessores diretos.
Além de Blackburn, Cohon (ibidem, p. 11) indica as interpretações de Flew
(1963) e Snare (1991) como leituras que atribuem um não-cognitivismo sobre o juízo moral a
Hume. Há razões, entretanto, para questionarmos a interpretação que Cohon faz da posição
desses dois autores.
Uma leitura atenta de Flew (1963, p. 182), por exemplo, mostra que ele não
considera Hume um não-cognitivista. Flew atribui a Hume o que chama de “subjetivismo
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naturalista” (ibidem, p. 180), um tipo reconhecido de cognitivismo.4 Flew (ibidem, p. 181)
chega ao ponto de contrastar o cognitivismo de Hume com “os movimentos elegantes e
sofisticados” do não-cognitivismo de F. P. Ramsey, Ayer, Stevenson e Hare, movimentos que
só seriam desenvolvidos após “anos de trabalho e engenhosidade”. Flew (ibidem, p. 182) não
nega que Hume possa ter sido a inspiração do movimento não-cognitivista da primeira metade
do século XX, mas defende que é a “brilhante aspereza” de Hume o que “faz com se queira
descrever o Tratado como o Linguagem, Verdade e Lógica de Hume”.
O tipo de interpretação de Snare (1991) é mais difícil de determinar, pois não é
claro se ele pretende que sua leitura “sentimentalista” de Hume seja realmente compreendida
como uma forma de não-cognitivismo. Snare (ibidem, p. 17) afirma que “há certamente
evidência textual para suportar a opinião de que Hume [...] [apresenta] uma proto-versão de
cognitivismo”. Entretanto, na conclusão do capítulo em que discute os princípios da metaética
de Hume ele declara o seguinte: “estou a sugerir que Hume era um não-cognitivista, ou, se
não um não-cognitivista, então alguém com um tipo de cognitivismo subjetivista tão extremo
que poderia muito bem ter sido um não-cognitivista”. (ibidem, p. 24, itálico meu). Snare não
explica o que quer dizer com “proto-versão” de cognitivismo, mas o problema em considerá-
lo como alguém que defende uma leitura não-cognitivista de Hume, como defende Cohon, é
que um cognitivismo que “poderia ter sido” um não-cognitivismo ainda é um cognitivismo.
Cohon estaria equivocada, portanto, em atribuir uma interpretação não-cognitivista de Hume
tanto a Flew quanto a Snare.
Assim como Cohon, Radcliffe (2006) também se equivoca quando atribui leituras
não-cognitivistas a certos comentadores de Hume. Radcliffe (ibidem, p. 354) afirma que Foot
(1963) sustenta que Hume teria sido um não-cognitivsta, mas essa também é uma opinião
equivocada. Foot não afirma que Hume identifica juízo moral e o sentimento moral de
aprovação ou reprovação (ou mesmo considere que uma sentença moral expresse apenas tal
sentimento). Ao contrário, Foot (ibidem, p. 76) afirma claramente que a teoria de Hume sobre
o sentimento moral produz uma “teoria subjetivista da ética”. Por exemplo, Foot sustenta que
a teoria de Hume do juízo moral é implausível porque
4 Flew (1963, p. 180) expõe sua interpretação cognitivista de Hume de modo direto quando afirma que “a
preocupação primeira de Hume não era com a ideia de que juízos morais reportam [report] algum tipo de fato
sobre nós, mas, ao contrário, de que eles não podem ser analisados simplesmente em termos de algum tipo de
afirmação sobre alguma realidade objetiva completamente independente dos sentimentos e desejos humanos”.
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não estamos inclinados a pensar que quando um homem diz que uma ação é
virtuosa, ou viciosa, ele está a falar sobre seus próprios sentimentos ao invés de
falar sobre uma qualidade que ele deve mostrar pertencer realmente àquilo que é
feito. (FOOT, 1963, p. 77, itálico meu).
Assim, o subjetivismo que Foot observa em Hume é na verdade uma forma de
cognitivismo. A posição cognitivista aparece também naqueles que atribuem uma concepção
projetivista do tipo error theory a Hume, como Stroud (1977, p. 180–186). Shaw (1993, p. 37,
50–51), por sua vez, defende um cognitivismo a partir de uma versão disposicional do que
chama “sentimentalismo” de Hume em relação aos juízos morais, contra o projetivismo de
Stroud e as interpretações emotivistas.5
Além das interpretações cognitivistas e não-cognitivistas, alguns autores
sustentam que Hume oferece munição para ambos os lados da disputa. Sturgeon (2008), por
exemplo, sustenta que Hume parece ser inconsistente na medida em que pode ser lido tanto
como um não-cognitivista como um subjetivista, dependendo da ênfase que se dê a certas
passagens de seus textos, em oposição a outras.6 Irvin (2008) também afirma que Hume é
inconsistente sobre a natureza do juízo moral, pois teria tanto suposto um não-cognitivismo,
por exemplo, no argumento sobre a impossibilidade razão sozinha produzir distinções morais,
quanto um subjetivismo, no argumento sobre o dever-ser.7 Radcliffe afirma que Mackie
(1980) teria considerado Hume como um não-cognitivista. Entretanto, Mackie parece não ter
uma posição definida sobre essa questão, exceto que o texto de Hume em T 3.1.1 não é
“nítido nem conclusivo” (ibidem, p. 63). Para os autores que defendem uma inconsistência
por parte de Hume, a tarefa hermenêutica parece ser avaliar a orientação de cada argumento
em particular, isoladamente.
5 É surpreendente, contudo, que Shaw (ibidem, p. 50–51) chegue a seguinte conclusão: “o emotivismo pode ser
visto como um desenvolvimento natural (ao invés de uma interpretação) do sentimentalismo de Hume: tivesse
Hume escrito no século XX, ele poderia muito bem ter tomado o caminho emotivista [...], afastando-se de
elementos cognitivistas”.
6 É preciso reconhecer que Sturgeon (ibidem, p. 528) afirma, contudo, que um estudo profundo dessas questões
no texto humeano pode mostrar que a inconsistência pode ser aparente.
7 A conclusão de Irvin (2008, p. 618) pode ser observada no seguinte parágrafo de seu texto: “É razoável, então,
para os não-cognitivistas, argumentar que Hume os teria antecipado, e esses argumentos não devem ser
recusados como anacrônicos. Eles não devem afirmar que Hume é um não-cognitivista, pois alguns de seus
argumentos parecem suportar um descritivismo subjetivista do juízo moral. Eles estão certos, contudo, em
afirmar que Hume oferece argumentos que suportam uma conclusão não-cognitivista.”
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3
Entre aqueles que atribuem uma orientação cognitivista à teoria humeana dos
juízos morais, podemos selecionar Radcliffe (2006), Cohon (2008) e Sayre-McCord (2008)
como exemplos de comentadores que apresentam uma defesa detalhada de suas posições. A
principal conclusão desses autores é que Hume teria considerado que nossos juízos morais são
crenças morais. Radcliffe (ibidem, p. 354) afirma, por exemplo, que “a descrição de Hume
dos juízos morais e de nosso uso deles é melhor lida como uma versão do cognitivismo
moral”. Para Sayre-McCord (ibidem, p. 304), a explicação “cuidadosa e elaborada de Hume
sobre o juízo moral sugere que ele pensa que os juízos morais [...] expressam crenças [...], o
que é incompatível com ele a sustentar um não-cognitivismo”. Por sua vez, Cohon (ibidem, p.
2) sustenta que, para Hume, nossas “reações morais são sentimentos ocorrentes, mas nossos
juízos morais são crenças: ideias vividas copiadas de sentimentos sentidos”. Portanto, Hume
não é
um não-cognitivista; ele considera os próprios sentimentos morais como a carecer de
verdade e falsidade, mas, para ele, as ideias morais podem ser verdadeiras ou falsas,
e são frequentemente verdadeiras [...]. A evidência mostra, contudo, que Hume não
é um realista moral [...]; e isso é consistente com seu cognitivismo. (COHON, 2008,
p. 6).
Não é minha intenção aqui analisar os detalhes das posições desses três
comentadores, mas defender que, basicamente, de um modo ou de outro, eles parecem
fundamentar suas interpretações em TC. Por economia, apresentarei apenas a versão de
Radcliffe.
O objetivo geral do artigo de Radcliffe em questão é combater a opinião de
Michael Smith (1994) de que se nós assumirmos que é correta a teoria humeana da
motivação, então não podemos combinar internalismo moral com cognitivismo moral.
Segundo a teoria humeana da motivação, há uma distinção lógica entre estados mentais
cognitivos e conativos. Smith (ibidem, p. 7) afirma que estados mentais cognitivos são
estados psicológicos que “pretendem representar o modo como o mundo é” e, por essa razão,
eles podem ser verdadeiros ou falsos. Estados mentais conativos são estados “que representam
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como o mundo é para ser” e possuem o objetivo intrínseco de adequar o mundo a sua
representação. Tais estados não podem ser avaliados em termos de verdade e falsidade, mas,
como diz John Searle (1983, p. 7–8), em termos de realização [fulfillment] ou não realização.
Na teoria humeana da motivação, crenças são os estados psicológicos cognitivos e desejos, os
conativos. Assim, dada essa distinção entre crença e desejo, se juízos morais são
intrinsecamente motivacionais, então eles não podem ser crenças. A incompatibilidade dessas
três posições (a teoria humeana da motivação, o internalismo moral e o cognitivismo moral) é
o que Smith (ibidem, p. 4–13) chama de “o problema moral”. A solução do problema,
segundo Smith, seria o principal trabalho da metaética e consistiria em abrir mão de uma
dessas posições. Em seu artigo, Radcliffe argumenta que esses três pontos de vistas
metaéticos não são incompatíveis. Para mostrar que não há incompatibilidade entre essas três
posições, Radcliffe sustenta que Hume é um filósofo que teria assumido-as conjuntamente.
Particularmente importante para nós aqui é a defesa que Radcliffe faz da
conclusão (ou premissa) segundo a qual Hume é um cognitivista moral. Seu argumento para
sustentar que Hume é um cognitivista moral é simples e (como era de se esperar) depende de
uma teoria do juízo em Hume. A conclusão do argumento de Radcliffe é que juízos morais
são crenças para Hume. Ele não é apresentado explicitamente, mas pode ser reconstruído do
seguinte modo. Devemos distinguir o processo de julgar e o juízo, o produto desse processo.
Para Hume, o processo de julgar é uma experiência “afetiva”, pois envolve uma “mudança
mental não-cognitiva”: a “intensificação da força e vivacidade de uma ideia”. Por outro lado,
o produto de todo processo de julgar, o juízo, é uma representação (cognição). Como
impressões não são representações, e crenças (ideias) são representações, se há juízos
(morais), então eles só podem ser crenças. Ora, nós temos representações de um caráter
associado à representação da virtude ou do vício. Portanto, a percepção pela qual atribuímos
virtude ou vício a um traço de caráter é uma ideia. Essa ideia, quando produzida por um
sentimento moral, recebe força e vivacidades adicionais, tornando-se uma crença.
Consequentemente, juízos morais são crenças para Hume. Se há crenças morais, Hume é um
cognitivista moral. Segundo Radcliffe (ibidem, p. 353), o cognitivismo moral “é a opinião de
que juízos morais dão [impart] informação de algum tipo — sobre seus objetos, seus sujeitos
ou suas causas — e, por isso, são verdadeiros ou falsos”.
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Como pudemos observar nesse argumento, Radcliffe fundamenta sua
interpretação no que se pode considerar uma teoria humeana da natureza do juízo. Em
primeiro lugar, segundo essa teoria, juízos são o produto de um processo de julgar, no qual
estados mentais representacionais, ou cognitivos (os juízos), são produzidos ou tem sua
“intensidade” aumentada por meio da transferência de força e vivacidade. A segunda parte de
seu argumento é mostrar que há de fato percepções morais que se encaixam na categoria
“juízo”. Assim, segundo Radcliffe, se há juízos morais em Hume, eles só podem ser
cognitivos, dada a suposta teoria humeana dos mesmos. Como existem crenças morais,
conclui-se que tais crenças são nossos juízos morais. As impressões não são cognições,
portanto não podem ser consideradas juízos.
Como Radcliffe justifica essa posição? A primeira coisa que a autora nos pede
para considerar é a ambiguidade ato-objeto e, com isso, reconhecer a distinção entre o ato de
julgar [judging] e o produto do julgar, o juízo [judgment]. Hume teria considerado que “o
processo de julgar em geral é inevitavelmente não-cognitivo” porque o resultado desse
processo é sempre a “intensificação da força e vivacidade de uma ideia” (ibidem, p. 361). O
processo de julgar tem como resultado um crença, uma ideia concebida de “maneira
diferente”, com mais “força e vivacidade” (T 1.3.5.7; Ab 21). A análise de Hume indicaria,
portanto, que em todo processo de julgar há a “experiência de um sentimento” que é
transferido para uma ideia. É essa transferência fenomenológica que caracteriza o processo de
julgar para Hume como um processo não-cognitivo.
Agora, ainda que todo processo de julgar para Hume seja não-cognitivo, temos
que notar, afirma Radcliffe, que o resultado desse processo, o juízo, é uma entidade cognitiva
ou representacional: uma ideia vivida. A alteração da qualidade fenomenológica de uma
representação pode ser observada tanto em juízos causais como em juízos sobre existência
externa.8 Radcliffe afirma que não temos porque não considerar que juízos morais não tenham
8 Essa posição é claramente formulada por Radcliffe (ibidem, p. 361) no seguinte parágrafo. “Na formação de
juízos causais, por exemplo, nós somos dominados por um sentimento de expectativa de que um evento ocorrerá
após outro porque fomos condicionados por uma conjunção constante dos dois tipos de eventos em nossa
experiência passada. Sem o sentimento de expectativa que intensifica nossa ideia da conexão, não teríamos
aceitado o juízo da conexão causal entre tais eventos. Como notei anteriormente, Hume reconhece que julgar que
um objeto existe no mundo externo não é atribuição de uma qualidade, mas uma modificação na maneira de
conceber o objeto. Não há uma modificação na ideia, uma modificação cognitiva, mas uma modificação na
atitude, que altera a qualidade da ideia e a intensidade com a qual ela é sentida. Tanto no julgamento causal
quanto no julgamento sobre a existência de objetos, começamos com ideia e terminamos com ideias mais
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a mesma natureza dos juízos de outros tipos, tais como o juízo causal e o juízo sobre
existência externa. A ideia de que há uma oposição entre juízos morais e juízos “factuais”
(baseada no fato de que distinções morais são antes impressões de reflexão do que impressões
de sensação) é o que conduziria certos intérpretes de sua filosofia a atribuir um não-
cognitivismo moral a Hume, ou mesmo um cognitivismo do tipo teoria do erro.
Assim, afirma Radcliffe, Hume aceitaria que
nada há no processo de julgamento moral que impeça seu resultado de ser
igualmente uma ideia (e, portanto, algo cognitivo), dado que os outros tipos de
julgamentos envolvem uma modificação mental não-cognitiva que conduz a um
resultado cognitivo. (RADCLIFFE, 2006, p. 361).
Mas o que caracteriza um juízo moral em oposição a outros tipos de juízos?
Basicamente, a explicação de Radcliffe é a seguinte:
Quando julgamos moralmente, começamos com ideias, a saber, com ideias dos
traços de caráter de uma pessoa. Nós não terminamos, entretanto, com ideias mais
vividas e intensas desses traços. Em vez disso, nós terminamos com um juízo de seu
valor [...] via sentimentos motivacionais [distinções morais]. (RADCLIFFE, 2006, p.
365).
Portanto, segundo Radcliffe, no caso de um juízo moral que resulta da aprovação
de uma determinada ação, não tenho como resultado a ideia mais intensa desse traço de
caráter, mas a ideia dessa qualidade associada com a ideia da aprovação produzida pela
distinção moral, o que constitui a ideia complexa do traço de caráter como virtude. A ideia do
traço de caráter avaliado está lá, mas em companhia agora da ideia de aprovação.
Consequentemente, quando “pronunciamos como virtuoso ou vicioso um traço de caráter” o
que temos em mente é uma crença, um juízo. Além disso, afirma Radcliffe (ibidem, p. 365),
se “eu tenho uma crença (a saber, uma ideia da virtude ou vício de um caráter) que foi
causada por uma impressão de aprovação moral, então tal crença é um juízo moral”.9
vividas. No caso da causalidade, há também uma mudança de conteúdo, na medida em que a ideia de
necessidade foi adicionada ao complexo de ideias em que acreditamos.”
9 O fato de que o resultado de juízos morais são, antes de mais nada, crenças morais, é o que conduz Radcliffe
(ibidem, p. 358) à conclusão de que Hume pensava “em juízos morais como representações — isto é, como
cognitivos”. Mas não é só isso. Radcliffe (ibidem, p. 367) complementa a descrição do juízo moral com a
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4
Acredito que a principal objeção que se pode fazer a esse tipo de argumento
apresentado por Radcliffe, que depende de TC (se há crenças morais, então crenças são juízos
morais), é mostrar que sentimentos morais podem muito bem ocupar a função de juízos
morais para Hume. Se impressões realmente são juízos morais, então a interpretação
cognitivista de Radcliffe cai por terra, pois impressões são antes “existências originais” do
que representações. Em suporte à objeção não-cognitivista pode se oferecer ainda a tese de
que Hume não compreende todo juízo como uma percepção representacional. Se é verdade
que Hume não identifica “juízos” com “ideias”, então a hipótese não-cognitivista que
identifica juízos morais com as distinções morais, isto é, com impressões de reflexão (no caso
do discurso moral) e não com ideias, torna-se ainda mais razoável.
Sobre a natureza de nossos juízos morais, é plausível a consideração de que as
duas primeiras seções do terceiro livro do Tratado contêm traços fundamentais para essa
questão. É evidente que um dos objetivos de Hume em T 3.1.1 e T 3.1.2 é investigar a
natureza de nossas percepções morais. Para Hume, percepções morais são os estados mentais
que dão origem ao fenômeno da moralidade em geral ou, em outras palavras, ao discurso
moral significativo. Distinções morais são, para Hume, as percepções que fundamentam o
discurso moral. Em T 3.1.1.2, por exemplo, ele afirma que distinções morais são as
percepções ou “juízos pelos quais nós distinguimos o bem e o mal morais” e “aprovamos ou
condenamos um caráter". Além disso, é por meio delas que “distinguimos o vício da virtude, e
declaramos [pronounce] que uma ação é condenável ou louvável” (T 3.1.1.3). Parece
aceitável, portanto, que descrevamos as distinções morais, ainda que Hume não o faça, como
percepções morais.
Ao revelar a natureza das distinções morais, Hume afirma que as impressões
particulares, pelas quais “o bem e o mal morais são conhecidos [by which moral good or evil
is known], nada são além de dores e prazeres particulares” (T 3.1.2.3, itálico meu). Ele afirma
afirmação de que a “utilidade [ou] agradabilidade” de certos traços de um caráter é “aprovada por nós segundo
um ponto de vista moral, ou geral, através da simpatia”.
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também que “nossas decisões sobre a retidão e a depravação moral”, isto é, nossas distinções
morais, “são evidentemente percepções” (T 3.1.2.1). As distinções morais são, basicamente,
portanto, as percepções pelas quais temos consciência do valor moral.
Hume caracteriza as percepções como aquilo que está imediatamente presente à
consciência.10 Como sua investigação diz respeito às percepções morais, e como ele distingue
as percepções em ideias e impressões, é compreensível que a discussão sobre os assuntos
morais em T 3 inicie pela pergunta sob se nossas distinções morais são ideias ou impressões.11
O resultado é conhecido por nós: distinções morais são um tipo particular de impressão de
reflexão. Hume tentará mostrar, em T 3.1.1‒2, que distinções morais são, na verdade,
impressões e não, idéias. Mais especificamente, ele sustentará que distinções morais são
impressões prazerosas ou dolorosas dirigidas a ações:12
o vício te escapará completamente enquanto observares o objeto. Nunca o
encontrarás, até tornares tua reflexão para o próprio peito e encontrares um
sentimento de reprovação, que surge em ti, em direção a essa ação. (T 3.1.1.26).
A opinião de que distinções morais são impressões de reflexão parece estar
intimamente conectada com a tese de que tais impressões são o estado mental responsável
pelo caráter significativo do discurso moral. Nesse caso, elas são o tipo de entidade necessária
para constituir aquilo que podemos chamar de juízo moral. Não há um estado posterior,
causado por esse sentimento, que precise existir para que a atribuição de valor moral a uma
ação faça sentido:
Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque sua visão
causa um prazer ou desprazer de um de um tipo particular. [...] Ter o senso de
virtude nada mais é do que sentir uma satisfação de determinado tipo pela
contemplação de um caráter. O próprio sentimento constitui nosso elogio ou
admiração. Não vamos além disso, nem investigamos a causa da satisfação. Não
inferimos que um caráter é virtuoso porque nos agrada; mas, ao sentirmos que ele
agrada por esse modo particular, nós, de fato, sentimos que ele é virtuoso. (T
3.1.2.3).
10 Cf. (T 1.4.2.47).
11 Cf. (T 3.1.1.3).
12 Na verdade, Hume afirma que a ação em questão é considerada apenas “como signo” do “caráter pessoal” (T
3.3.1.5), pois "o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu" (T 3.2.1.2). Além disso,
as distinções surgem à mente quando essas ações são consideradas de um ponto de vista que não leva em conta o
interesse próprio (T 3.1.1.26, 3.1.2.3).
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Hume é claro quando afirma que distinções morais não são ideias. Um de seus
objetivos em T 3.1.1 é utilizar a tese de que a razão sozinha não pode produzir distinções
morais para defender essa afirmação. Podemos observar que Hume apresenta o seguinte
raciocínio em T 3.1.1–2: se mostrarmos que nossas distinções morais não podem ser
derivadas somente da razão, então mostraremos também que elas não são idéias e,
consequentemente, por disjunção exclusiva, que são impressões:
O curso de nossa argumentação nos leva a concluir que, uma vez que o vício e a
virtude não podem ser descobertos unicamente pela razão ou comparação de ideias,
deve ser por meio de alguma impressão ou sentimento por eles ocasionados que
somos capazes de estabelecer a diferença entre os dois. Nossas decisões a respeito
da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções; e, como todas as
percepções são ou impressões ou ideias, a exclusão de umas é um argumento
convincente em favor das outras. (T 3.1.2.1).
Nesse sentido, dizer que a razão não pode produzir distinções morais é dizer que
a razão não pode dar origem ou derivar as percepções a partir das quais reconhecemos ou
temos acesso ao valor moral.13 A razão produz apenas ideias mais fortes e vívidas, ou crenças,
por meio de inferências demonstrativas ou prováveis.
Mostrei que Hume admite que distinções morais são impressões e que distinções
morais são juízos. Agora, entramos na segunda parte da objeção não-cognitivista, a saber,
sustentar que Hume não identifica juízos com ideias. Nos Livros 1 e 2 do Tratado e,
fundamentalmente, em algumas passagens de T 3.1.1, Hume usa muitas vezes o termo “juízo”
para se referir a estados da parte cognitiva da natureza da mente, isto é, a raciocínios e atos
mentais que empregam crenças ou ideias.14 Portanto, não é improvável que alguém venha a
apontar aqui certo descuido de Hume ao caracterizar, no início da seção, as distinções morais
13 O alcance empirista da investigação moral que Hume leva a cabo, pode ser observado, por exemplo, na
afirmação segundo a qual ele diz esperar que sua investigação sobre a origem e a natureza de nossas percepções
morais torne possível "dar fim imediatamente a todos os discursos vagos e grandiloquentes, atendo-nos a uma
abordagem exata e precisa sobre o assunto" (T 3.1.1.3).
14 O uso do termo “juízo” relacionado à parte cognitiva das operações mentais pode ser observado
especialmente, no Livro 1, em 1.3.7.5n, onde Hume considera o juízo como “um ato do entendimento”, e, no
Livro 2, em 2.3.3.6. Conferir também o uso de “juízo” em T 1.4.1.1, 5, 1.4.6.23, 2.1.5.11, 2.1.11.2, 9, 2.2.8.6 e
2.3.1.17. Em algumas passagens, Hume até opõe juízos a sensações (T 1.3.9.1) e a paixões (T 1.3.10.8). Observe-
se, por exemplo, o que Hume diz em T 3.1.1.5: “a moralidade […] é suposta influenciar nossas paixões e ações,
e ir além dos calmos e indolentes juízos do entendimento” (grifo meu). A identificação de juízo e ideia, ou
crença, poderia ser pressionada também pela leitura de T 3.1.1.11‒16, os trechos posteriores a afirmação em
questão, nos quais Hume investiga se o valor de verdade dos “juízos” (ou raciocínios) que acompanham as
paixões na produção de ações podem ser a origem das distinções morais.
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como “juízos pelos quais distinguimos o bem e o mal morais” (T 3.1.1:2, itálico meu). Se
juízos são ideias, então distinções morais também o são. O fato de Hume usar a expressão
“juízo” em T 3.1.1.2 para caracterizar as distinções morais requer, portanto, alguns
esclarecimentos.
Vamos pensar que o termo “juízos”, nessa passagem, é utilizado por Hume de
modo neutro, ou geral, para se referir a nossos estados mentais, com o mesmo sentido de, por
exemplo, “percepções”. Esse uso neutro se justifica, a meu ver, por duas razões básicas.15 Em
primeiro lugar, porque se conforma à ordem de apresentação do argumento no transcorrer de
T 3.1.1‒2. É exatamente a natureza das distinções morais o que Hume propõe-se a investigar.
Determiná-la inadvertidamente antes da investigação (e, na verdade, contradizendo o
resultado final) seria um erro grosseiro. Em segundo lugar, não há de fato um uso técnico do
termo “juízo” no Tratado, ou mesmo uma passagem, que o associe formalmente a estados
mentais cognitivos – ainda que se possa defender que, na maioria das vezes, é a tais estados
que ele Hume se refere com essa expressão – e que inviabilize um uso geral do termo em uma
ocasião determinada, tal como a sentença sobre a qual estamos discutindo. A inexistência de
uma definição cognitivista de juízo no Tratado fica evidente se lembrarmos que, em alguns
trechos, Hume refere-se a sensações e sentimentos como “juízos dos sentidos”.16 Portanto,
parece correto considerar que, quando Hume afirma em T 3.1.1 que distinções morais são
juízos, ele apenas chama a atenção do leitor para o fato de elas serem, antes de tudo,
percepções — ou ainda, como afirmei acima, percepções morais.17 Na verdade, não há um
“descuido” por parte de Hume quanto afirma em T 3.1.1.2 que nossas distinções morais são
juízos.
Defendi que não basta apontar a existência de crenças morais para se atribuir um
cognitivismo moral a Hume. A existência de representações de traços de caráter associados à
ideia de aprovação ou reprovação é compatível com a tese não-cognitivista de que os
15 É possível também imaginar que Hume estaria se referindo aqui não a distinções morais, mas a “juízos
morais”. Juízos morais seriam entidades mentais complexas que, ao contrário das distinções morais, seriam
estados compostos de ideias produzidas pela “reflexão” necessária para o surgimento do sentimento
genuinamente moral. Essa hipótese me parece implausível se levarmos em conta o andamento do argumento
presente em T 3.1.1.
16 Cf. (T 1.2.4.23‒24, 1.3.1.4, 6, 3.1.2.3).
17 O mesmo raciocínio se aplica também, a meu ver, aos termos “pronunciar” e “opinião de injustiça”, utilizados
por Hume em T 3.1.1.3, 5, respectivamente, para se referir a distinções morais, e que poderiam conduzir a
mesma ambiguidade.
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sentimentos morais são juízos morais genuínos. Se os sentimentos morais de aprovação e
reprovação puderem ocupar a função de juízos morais para Hume, então ele não é um
cognitivista. Uma interpretação cognitivista de Hume, portanto, deve excluir a possibilidade
de que sentimentos morais ocupem a função de juízos morais.
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A HERANÇA DE HUME AO PENSAMENTO TEÓRICO DE KANT
Rômulo Martins Pereira1
RESUMO: O presente trabalho busca apresentar em que sentido nós podemos interpretar que
o caráter sintético que Kant afirma para o pensamento em geral tem determinados pressupostos
na filosofia de Hume e, em específico, na sua crítica a nossa ideia de causalidade, como
implicando a noção de necessidade (sem com isso pôr em questão a originalidade da
argumentação propriamente kantiana).
Palavras-chave: Hume, Kant, causalidade
ABSTRACT: This work seeks to present in what sense we could interpret that the synthetic
character that Kant claims to the thought in general has certain presuppositions in the
philosophy of David Hume and, specifically, in his critic of our idea of causality, as implying
the notion of necessity (without calling into question the originality of Kant’s argument
properly).
Key-words: Hume, Kant, causality
Em sua “Introdução” à Crítica da Razão Pura, Kant formulou o seu problema
fundamental do seguinte modo: Como são possíveis juízos sintéticos a priori? Ora, para chegar
a essa formulação, Kant certamente percorreu os diferentes questionamentos dos distintos
sistemas filosóficos do século XVII e XVIII. Dentre essas muitas heranças, destaca-se a figura
do filósofo escocês David Hume, a quem Kant faz menção em seus Prolegômenos a toda
Metafísica futura como tendo sido o responsável por tê-lo acordado de seu “sono dogmático”
– ou seja, da sua prévia convicção de que a filosofia poderia proceder analiticamente, apenas
por meio de conceitos puros, a fim de estabelecer conhecimentos universais (a priori). Desse
modo, se tivermos também em conta que Kant, na “Doutrina Transcendental do Método”,
apresenta a sua Crítica e, consequentemente, o seu método crítico, como sendo a culminação
dos seus esforços de tentar resolver os questionamentos filosóficos de sua época, não será, de
1 Doutorando em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/ Bolsista CNPQ
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todo modo, vão tentarmos estabelecer em que sentido se pode interpretar essa suposta herança
humeana em seu pensamento. É isso o que buscaremos mapear, em linhas gerais, no presente
trabalho: em que sentido podemos interpretar que o caráter sintético que Kant afirma para o
pensamento em geral tem determinados pressupostos na filosofia de Hume e, em específico, na
sua crítica a nossa noção de causalidade?
Em um primeiro momento, interpretou-se que essa formulação tinha sido articulada a
partir da leitura, por parte do filósofo alemão, da discussão de Hume acerca do problema da
causalidade nas Investigações acerca do entendimento humano, que foram traduzidas para o
alemão em 1755. Acreditava-se que Kant não a tinha articulado pela leitura de sua obra anterior,
o Tratado da natureza humana, porque essa só seria traduzida para o alemão em 1791, ou seja,
um ano depois de Kant já ter finalizado a sua terceira Crítica. Entretanto, essa leitura, em grande
medida, obscurece os reais motivos para o filósofo ter formulado o problema exatamente dessa
maneira. Isso porque não só Kant não faz nenhuma referência direta às Investigações, como
também as passagens nas quais ele considera o ensinamento de Hume parecem antes fazer
alusão ao argumento geral do Tratado.
Para Kemp Smith, intérprete que, em língua inglesa, primeiro colocou essa questão
interpretativa, Kant teria tomado contato, pela primeira vez, com o Tratado, mediante o livro
de James Beattie (Essay on the Nature and Immutability of Truth, in Opposition to Sophistry
and Scepticism), que foi publicado em 1772 e representou uma insensível crítica à filosofia de
Hume – nesse aspecto, Kemp Smith segue as análises de Vainhinger. Coincidentemente, nesse
mesmo ano, Kant havia enviado sua famosa carta a Marcus Herz (de 21 de fevereiro de 1772),
na qual afirma ter descoberto a chave para todo o segredo da metafísica. Cabe sublinhar que
essa carta pode ser considerada como a primeira formulação de Kant do problema fundamental
de sua dedução transcendental, a qual, segundo ele, é representativa do problema de toda a
Crítica. Vejamos um trecho dessa carta: “I asked myself this question: What is the ground of
the relation of that in us which we call "representation" to the object?”. Em outra passagem:
“[...] how a representation that refers to an object without being in any way affected by it can
be possible” (KANT, 1999, 133). Kant havia reconhecido o caráter extremamente misterioso e
problemático do conhecimento a priori – daquele que não nos é dado por intermédio das
representações sensíveis. Ele então se questiona: “[…] if such intellectual representations
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depend on our inner activity, whence comes the agreement that they are supposed to have with
objects - objects that are nevertheless not possibly produced thereby?” (KANT, 1999, 133).
Em 1772, ele ainda não havia concebido o problema de sua dedução transcendental em
toda a sua complexidade, pois ainda não tinha reconhecido o caráter sintético dos princípios a
priori. Mas sabemos que Kant vai tomar contato com o trabalho de Beattie, porque ele o
menciona por duas vezes nos Prolegômenos, inclusive, em defesa de Hume:
Não pode ver-se, sem sentir uma certa pena, como os seus adversários [de Hume]
Reid, Oswald, Beattie, e, finalmente, Priestley, passaram inteiramente por alto o
ponto do problema [...]. A questão não era se o conceito de causa era exato,
prático, indispensável relativamente a todo o conhecimento da natureza, coisa
de que Hume jamais duvidara; mas de se ele era concebido pela razão a priori e
se, deste modo, possuía uma verdade interna independente de toda a experiência
[...]. Tratava-se apenas da origem desse conceito, não da sua utilidade
indispensável: se essa origem estivesse determinada, as condições do seu
emprego e o âmbito da sua validade ter-se-iam espontaneamente apresentado
(Prolegômenos, A 10-11, grifos do autor).
Com efeito, comumente se tem afirmado que as passagens cotejadas por Beattie seriam mais
do que suficientes para revelar toda a amplitude do ensinamento revolucionário de Hume a
respeito do princípio universal da causalidade. No entanto, mais recentemente, intérpretes como
Henry Allison (2008), Paul Guyer (2008) e Patricia Kitcher (2006) têm apontado que Kant teria
sim tido contato em primeira mão com uma parte do Tratado, a saber, com o Livro I, Parte IV,
Seção 7, que se descobriu ter sido traduzida para o alemão por Johann Georg Hamann e
publicado em 1771. Por consequência, para esses intérpretes, Kant não só tomou conhecimento
das críticas de Hume ao conceito de causalidade, mas mesmo do seu argumento conclusivo de
que “a memória, os sentidos e o entendimento são todos [...] fundados na imaginação, ou na
vividez de nossas ideias” (T, 1.4.7.3). Por ora, para fins do presente trabalho, concentremo-nos
no fato de que há um certo consenso entre os intérpretes de língua inglesa (atuais, sobretudo)
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de que Kant conhecia a crítica humeana, presente no Tratado, de que o entendimento não seria
capaz de solucionar os questionamentos céticos acerca de nossa ideia de causalidade.
De uma perspectiva dos problemas que se encontram na Crítica, o Tratado apresenta,
em comparação com as Investigações, um caráter muito mais amplo e radical. As Investigações
não discutem o problema da causalidade de uma maneira geral, mas apenas em relação aos
juízos causais particulares, procurando explicitar os fundamentos não racionais que nos
levariam a apontar que este ou aquele efeito é devido a esta ou àquela causa. A questão mais
ampla acerca do nosso direito de postular a validade do princípio causal universal, segundo o
qual, necessariamente, tudo aquilo cuja existência tem um começo deve ser precedido por uma
causa, Hume apenas desenvolveu no Tratado. Primeiramente, seu questionamento direcionou-
se para o caráter de necessidade exigido na ligação entre o conceito de um evento e o conceito
de uma causa. Em seguida, ele questiona o motivo de porquê afirmamos ser necessário atrelar
uma causa a tudo o que passa a existir no tempo e no espaço – porque não poderíamos, por
exemplo, conceber que um objeto passe a existir sem antecedentes factuais que o explicitem?
Ao fim de sua investigação acerca da origem ou do fundamento de nossa relação causal,
Hume foi levado a admitir que, entre esses dois conceitos, não há nenhuma conexão necessária
que possa ser comprovada pela mente, e que, por isso, o princípio causal “[...] não é nem
intuitiva nem demonstrativamente certo” (T, 1.3.3.8). Ora, para podermos demonstrar a
necessidade de uma causa para toda nova existência ou para toda modificação de existência,
argumenta Hume, deveríamos antes poder demonstrar a impossibilidade de que algo comece a
existir sem ser precedido por uma causa. Como essa última proposição não jamais pode ser
provada, consequentemente a primeira também não poderá. Vejamos a explicitação nos termos
do filósofo:
[...] considerando que, como todas as ideias distintas são separáveis entre si, e
como as ideias de causa e de efeito são evidentemente distintas, é fácil conceber
que um objeto seja não-existente neste momento e existente no momento
seguinte, sem juntar a ele a ideia distinta de uma causa ou princípio produtivo
(T, 1.3.3.3).
Ou seja, a imaginação pode facilmente separar a ideia de uma causa da ideia de um começo na
existência, o que evidencia a inexistência de uma ligação necessária entre elas (necessária para
que o entendimento possa se convencer, contra o argumento cético, acerca de nosso direito de
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nos utilizarmos desse princípio). Poder-se-ia objetar que, com isso, estaríamos nos
comprometendo com uma asserção impossível de que os eventos surgem do nada, mas também
essa objeção, o filósofo nos adverte, já pressuporia a validade do princípio causal. Se se acredita
que é absurda a negação de que algo passe a existir sem uma causa, deve-se prover uma prova
para isso (intuitiva ou dedutiva). Discursos que tão somente apelam para a absurdidade de se
afirmar que algo não tenha uma causa, no fim, nada provam, pois já pressupõem desde sempre
justamente aquilo que Hume põe em questão, isto é, a validade objetiva do princípio causal .
Em termos kantianos, Hume teria estabelecido que o princípio causal, ao contrário do
que considerava a tradição filosófica, não pode ser analítico. Ou seja, não se pode fornecer uma
prova, nem intuitiva nem demonstrativa, acerca da relação de necessidade que se pressupõe
haver entre o conceito de causa e o de efeito – não se pode, consequentemente, por meio de
análise, deduzir do conceito de causa o conceito de efeito (ou vice-e-versa), simplesmente eles
não se pertencem. Nesse horizonte, consideramos então que o que Hume busca mostrar é que
esses conceitos são inteiramente distintos e que, por isso, se se concede que haja uma ligação
entre eles, essa apenas poderia ser sintética – advinda de uma síntese mediante a experiência.
Mas claro que Hume não proferiu sua teoria desse modo, com esses termos, até porque, mesmo
se ele estivesse disposto a aceitar a teoria da síntese empírica, ele jamais concordaria com a
asserção kantiana de que o fundamento da mesma deva residir na razão.
Dessa forma, Hume conclui que tal princípio não pode estar fundado no entendimento
ou na razão, mas sim deve possuir uma outra fonte, a qual, para ele, residiria no sentimento, na
crença: uma vez tendo visto, repetidamente, que dois fenômenos ocorrem sempre conjugados,
dado um deles à nossa percepção sensível, antecipamo-nos e cremos que o outro se seguirá
necessariamente, apesar de não sermos capazes de fornecer um fundamento puramente racional
para essa conexão. Vejamos nas palavras do filósofo:
Assim, não apenas nossa razão nos falha na descoberta da conexão última entre
causas e efeitos, mas, mesmo após a experiência ter-nos informado de sua
conjunção constante, é impossível nos convencermos, pela razão, de que
deveríamos estender essa experiência para além dos casos particulares que
pudemos observar. [...] Portanto, quando a mente passa da ideia ou impressão de
um objeto à ideia de outro objeto, ou seja, à crença neste, ela não está sendo
determinada pela razão, mas por certos princípios que associam as ideias desses
objetos, produzindo sua união na imaginação (T, 1.3.6.10-12).
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A razão é falha para fundamentar a nossa relação causal justamente porque qualquer raciocínio
que a evolva ultrapassa as impressões de nossos sentidos, que são sempre descontínuas e
diversas. Os raciocínios causais sempre buscam afirmar a continuidade: uma vez que tenhamos
experienciado uma conjunção constante de fatos que se supõem ser semelhantes, dada uma
causa parecida, naturalmente esperamos um efeito também semelhante. Mas sob que base está
fundamentada essa suposta asserção de que o futuro se manterá constante e que, dadas causas
semelhantes, pode-se esperar efeitos semelhantes (se, afinal, jamais poderemos ter experiência
alguma acerca dele)? Em termos kantianos, sob que base está fundado o princípio da
uniformidade da natureza, segundo o qual tudo o que passa a ocorrer, necessariamente ocorre
segundo leis constantes e imutáveis?
Ora, para podermos fornecer esse fundamento, ao menos em relação às causas
particulares, Hume argumenta, deveríamos poder mostrar a absoluta contradição e
impossibilidade de se conceber outra causa para um mesmo dado evento. Em suas palavras:
[...] uma vez que todas as ideias distintas são separáveis, é evidente que não pode
haver tal impossibilidade. Quando passamos de uma impressão presente à ideia
de um objeto qualquer, teria sido possível separar a ideia da impressão,
substituindo-a por qualquer ideia (T, 1.3.6.1).
Assim, como não há aqui a possibilidade para uma conexão necessária, o princípio causal se vê
reduzido a uma mera crença alicerçada no hábito, a uma útil ferramenta para a organização da
experiência. Hume certamente pode ter ficado satisfeito com sua solução naturalista, mas
certamente Kant não ficou. Aos seus olhos, a razão jamais se satisfaria com uma tal explicação
cética – a sua demanda por totalidade e unidade seria por demais forte para isso. Para que ela
alcançasse a paz consigo mesma, era necessário que alcançasse o estágio crítico, mediante a
investigação dos limites ou das condições de toda e qualquer experiência possível – tomando-
se agora “experiência” como sendo “[...] uma síntese de percepções, que aumenta o conceito
que já tenho por meio de uma percepção, através de outras percepções que se lhe acrescentam”
(CRP, A 764/ B 792).
Desse modo, parece-me extremamente plausível afirmar que foi a partir de todas essas
considerações que Kant teria acordado de seu sono dogmático e passado a estar consciente do
problema da síntese a priori. Caberia sublinhar que, de modo algum, se intenciona aqui
questionar a originalidade da argumentação propriamente kantiana (sobretudo aquela contida
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na dedução transcendental). Afinal, somos plenamente capazes de distinguir a ideia de uma
herança filosófica da ideia de uma causa que justificaria inteiramente o surgimento de um novo
pensamento, distinto do anterior. O objetivo aqui foi tão somente buscar esclarecer como Kant
pode ter se inspirado na crítica humeana de que o princípio causal não pode ser provado intuitiva
ou demonstrativamente por causa de seu caráter sintético e assim, de maneira espontânea, ter
concebido o problema da síntese a priori (o qual, no final das contas, é um problema
completamente alheio à filosofia humeana). Desde o início da escrita da Crítica, ao longo de
sua “década silenciosa” (1771-1781), Kant buscou delinear o seu método transcendental a partir
da aceitação de que os princípios sintéticos a priori (que fundamentam nossa experiência
possível) não se prestam a um raciocínio indutivo que apele aos dados sensíveis – algo que soa
bem próximo como uma aceitação parcial do argumento humeano.
Portanto, de modo a concluirmos o presente trabalho, podemos afirmar que Kant não só
teria concordado com a conclusão humeana de que o princípio causal não é auto evidente, como,
além disso, concluiu que o que fosse verdadeiro para esse princípio também se aplicaria a todos
os outros princípios fundamentais da ciência e da filosofia. Eis uma passagem dos
Prolegômenos a toda a Metafísica futura, na qual Kant comenta, explicitamente, a respeito
disso:
Confesso francamente: foi a advertência de David Hume que, há muitos anos,
interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas investigações no campo da
filosofia especulativa uma orientação inteiramente diversa. Eu estava muito
longe de admitir as suas conclusões, que resultavam simplesmente de ele não ter
representado o problema em toda a sua amplidão, mas de o ter abordado apenas
por um lado que, se não tiver em conta o conjunto, nada pode explicar. [...]
Tentei, primeiro, ver se a objeção de Hume não poderia representar-se sob
forma geral e depressa descobri que o conceito de conexão de causa e efeito
estava longe de ser o único mediante a qual o entendimento concebe a priori
relações das coisas, antes pelo contrário, a metafísica é totalmente a partir dele
constituída (Prolegômenos, A 13-14, grifo meu).
A partir da rejeição do caráter auto evidente como uma característica do conhecimento a priori
e da consequente aceitação de seu caráter sintético, Kant propunha-se a resolver o problema tal
como colocado por Hume. Nessa empreitada, ele apenas tinha duas alternativas: ou aceitava as
conclusões céticas de Hume, o que, desde o início, nunca foi o seu objetivo, ou articulava uma
teoria cujos critérios não estivessem sujeitos aos defeitos dos métodos da filosofia racionalista
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dogmática, como Hume havia denunciado. Tal é o seu questionamento ao expressar o seu
problema crítico na seguinte fórmula: Como são possíveis juízos sintéticos a priori?
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A HUMANIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NO AUGE DA FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ
Humberto S. Coelho1
RESUMO: A revolução kantiana foi menos intensa do que o esperado para toda a
geração dos românticos e idealistas que queriam completar o percurso da árida ciência
mecanicista para a arte e a religião. Para finalizar a conexão total e reunificar a vida
humana em uma filosofia capaz de devolver-lhe o sentido era preciso superar o
dualismo kantiano, o que consumiu vidas inteiras de um período de mais de trinta anos.
Este trabalho inclui a ligação entre a percepção sensorial e a experiência noética, e desta
com a experiência em sentido existencial, como vida no ambiente da cultura. Não sem
certa arbitrariedade, optamos por um enfoque muito particular dos trabalhos de Goethe
e Hegel sobre esta transição.
Palavras-chave: experiência, natureza, cultura, Goethe, Hegel.
ABSTRACT: The Kantian revolution was less than expected by a generation of
romantics and idealists that strive to complete the bridge from barren mechanic science
to art and religion. To accomplish total connection and reunite human life in a
philosophy up to the task of granting it fundamental sense, Kantian dualism had to be
overcome, a goal that consumed the lives of many during ate least thirty years. This
paper includes the links from sensorial perception to fully noetic experience, and from
that to experience in a broad existential sense, as life in the environment of culture. Not
without a certain personal preference, we choose to focus on a particularity of Goethe’s
and Hegel’s works on this transition.
Keywords: Experience, Nature, Culture, Goethe, Hegel.
Introdução:
Nesta curta apresentação do conceito de experiência da filosofia clássica alemã
trabalharemos com uma das possíveis vias de acesso ao desenvolvimento – quase
inabordável pela sua extensão – de sua filosofia da vida. Seguindo os passos de Dilthey
e da Escola de Baden, tentaremos falar mais do espírito do que da letra morta da
terminologia idealista. Também assumiremos, contra justas ressalvas, que autores
1 Professor do Departamento de Filosofia da UFJF. Doutor em Ciência da Religião pela UFJF.
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comoGoethe oferecem não só uma contribuição capital, como se fazem parceiros do
processo filosófico-cultural que se desdobrava no romantismo e no idealismo.
Na passagem do dualismo kantiano ao naturalismo de Goethe este artigo pode
insinuar-se como de cunho epistemológico, quando na verdade vem tratar, bem ao
contrário, da vitalização da natureza que aos poucos afasta os autores do período da
epistemologia e os aproxima da metafísica na forma de filosofia da natureza.
A segunda transição, da filosofia da natureza ao reino da cultura, é também por
demais brusca e econômica para trazer consigo todos os elementos de sustentação das
teses aqui pressupostas.
Nós o fazemos porque o objetivo deste estudo é o da explicitação de um fio
cultural historicamente discernível, e a erudição sobre os anos de 1792 a 1820
aproximadamente é tamanha que muitas dessas teses são hoje lugar comum.
Kant e o dualismo da experiência:
Kant não definira dogmaticamente a impossibilidade do acesso às essências,
apenas atesta a impossibilidade da sua verificação. De outro modo ele seria um cético
dogmático, o que seria mais promissor do que qualquer outro tipo de dogmático. Da
definição da Estética Transcendental à da Crítica da Faculdade de Julgar, intuição
intelectual permanece sendo o acesso privilegiado da mente à essência das coisas, ou o
reconhecimento de propriedades intrínsecas da natureza. De qualquer maneira,
constituir-se-ia como uma espécie de insight divino.2
Hume causara uma forte impressão em Kant acerca da precocidade com que a
metafísica dogmática executava a passagem da percepção ao conhecimento, e que tal
não poderia ser inferido das próprias condições do ato de perceber. No processo, pôs em
cheque conceitos fundamentais e imprescindíveis da investigação sobre a natureza,
como a causalidade. Numa espécie de introspectivismo, deslocou as bases do
mecanismo causal de fora para dentro da mente, levantando a questão eminentemente
crítica da correspondência.
A fim de permanecer no terreno da sobriedade humeana, Kant acreditou ter
extirpado a especulação metafísica de sua filosofia, sem perceber que esta era apenas
2KANT, I. Kritik der reinenVernunft.Pg. 126 [B 72].KANT, I. Kritik der Urteilskraft.p. 16.
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em seu uso uma revolução epistemológica. Quanto ao seu fundamento a filosofia
transcendental não é mais do que metafísica da subjetividade.3Mas Kant comprara o
erro da filosofia britânica juntamente com suas virtudes, e a sua era uma noção
substancialista da natureza, o que produzia automaticamente um corte entre ela e a
mente que debalde a busca apreender. Como um bom metafísico dogmático, esperava
que a verdade das coisas fosse um estofo de materialidade radicalmente desvinculado da
natureza do pensamento.
Mas, para repetir a conclusão do jovem Schelling, a filosofia kantiana
apresentara os resultados, ignorando seus próprios pressupostos. Mais especificamente,
ele reconhecia o mecanicismo e mesmo o materialismo no reino da natureza, mas, como
Aristóteles, inserira o conceito de automoção no coração do próprio espírito.Enquanto a
ideia de que animais sãoautomoventes pode ser controversa, segundo muitas
interpretações da Física, onde Aristóteles sugere tanto que todo movimento possui
causas externas, quanto que o desejo é uma disposição determinada do animal, há muito
menos razões para crer que o mesmo vale para seres humanos, enquanto seres
pensantes. Sim, parte de nossa alma animal não pode ser bem definida nem como
determinada, nem como espontânea, mas o espírito, nous, é certamente automovente.4
Kant pode ter reconhecido o determinismo para o mundo, mas a parte mais interessante
de seu sistema é certamente aautomoçãonoética que está na base do pensamento, do
qual o conhecimento do mundo é um derivado para a filosofia transcendental. Ao
menos foi isso o que o idealismo buscou enfatizar.
Ainda mais interessante, Aristóteles dissera no De Anima, II 5, que“pensar está
em nosso poder, desde que o queiramos.” Isto marca a primazia da vontade sobre o
pensamento.
Mas pode-se supor que os críticos céticos de Kant estivessem de algum modo
mais corretos que seus aliados ao aproximá-lo tanto de Hume, pois seria também
possível interpretar a semente do transcendentalismo como uma herança escocesa. De
acordo com Richards:
3HENRICH, D. GrundlegungausdemIch: UntersuchungenzurVorgeschichtedesIdealismus, Tübingen –
Jena 1790-1794. Pg. 318-321. 4GILL; LENNOX. Self-Motion from Aristotle to Newton. p. 81.
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Hume explorou o modelo mecânico da mente, defendendo que a manufatura das
ideias era sujeita às mesmas leis de eficiência causal cridas como características
do mundo exterior. O Iluminismo então incensou o mecanismo como modelo de
explicação de todos os fenômenos da matéria, da vida e da mente. Causas
teleológicas foram desveladas, em termos baconianos, como “virgens estéreis”.
Qualquer trabalho que elas supostamente empreendessem poderia ser
convertido em causas eficientes mecânicas. Curiosamente, contudo, a análise de
Hume permitia ao maquinário do mundo escorregar suas engrenagens; a
causalidade de acordo com a qual ele operava perdeu potência necessária.5
Ao menos neste aspecto Kant repete o problema de Hume: conceber uma
natureza pouco ou nada diferente do materialismo mecanicista e, ao mesmo tempo,
fazer a base desse conceito de natureza depender da forma como a mente (não
mecânica, mas livre) a organiza os fatos. Então, o determinismo depende da liberdade?
Relativamente inconscientes deste detalhe, os primeiros pós-kantianos atribuíram
a Kant um ceticismo que não diferia do de Hume, no mau sentido. Schulze chegou a
considerar Kant um humeano embaraçado, incapaz de admitir e suportar as implicações
do ceticismo. Jacobi observou que a própria filosofia deveria recair em naturalismo
mecanicista e ceticismo, já que Kant descrevera bem a estrutura do entendimento,
restando somente a fé como esperança de ligação entre o homem e a verdade.
O ponto nevrálgico da crítica de Schulze eram as dificuldades impostas pelo
dualismo ao problema da ligação entre formas a priori e experiências. Maimon
retomaria este problema exigindo uma solução definitiva: ou devemos diluir este
dualismo em impressão psicológica, e cair no sensualismo, ou intelectualizar
dogmaticamente a natureza. Como temos de escolher entre uma opção e não podemos
aceitar a primeira sem desintegrar os princípios a priori, temos de retornar à metafísica
racionalista.6
Com isto, contudo, o entendimento não se limita mais a dar forma à experiência,
como identifica seu conteúdo. Um talintellectusarquetipus é infinito, não finito como o
pretende a filosofia crítica. A solução para o dualismo, gerado pela própria dedução
5RICHARDS, Robert. The Romantic Conception of Life: Science and Philosophy in the Age of Goethe.p.
308. 6 BEISER, F. The FateofReason. p. 293
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transcendental, é um monismo de origem platônica mediado por Leibniz e Espinosa,
onde Deus se revela presente em nossa atividade cognitiva, conhecendo as coisas
através de nós, de modo que a forma e o conteúdo tem a mesma origem.
A filosofia alemã pós-crítica exige não menos do que a memorização da Ética de
Espinosa, o que inclui frequentes citações no original. Mas, sub-repticiamente, é a
mescla da Monadologia com a Ética que perfaz o “espírito” da noção de egoidade. Não
por acaso esta química era mediada pelo um monismo complexificado do
neoplatonismo renascentista.7 O dualismo da experiência dá lugar ao monismo do
sistema, e ironicamente ambos os movimentos são atribuídos a Kant.
Ao meio-dia da filosofia clássica alemã, então, o mote será: Ordo,
connexioetconcatenatiorerum et idearum.
O cientista e o filósofo da natureza:
Neste complexíssimo contexto que exige de nós uma erudição sobre-humana,
Goethe é apenas um dos numerosos autores que mereceriam um tratamento especial. Ao
decidirmos seguir sua trilha, ao invés de, por exemplo, as de Hölderlin ou Jacobi,
estamos enfatizando a ciência e a filosofia da natureza em detrimento de programas que
apenas “contém” ciência e filosofia da natureza.E tão forte é sua distinção dos filósofos
do sistema que Goethe não deixa de criticar a onda sistemática (dos anos 1790) como
uma compulsão que afasta a mente dos fenômenos. Ao certificar-se de que os sistemas
filosóficos priorizavam a si próprios em detrimento dos fatos, o poeta adotou
integralmente o mote de Shaftesbury: The mostingeniouswayofbecomingfoolishisby a
system; passando então a aplicar esta percepção de diferentes maneiras, e acrescentando
ter ele próprio um pensamento filosófico isento de um correspondente sistema
filosófico. Com isso condenava os filósofos de profissão, inclusive aqueles nos quais
reconhecia grandes méritos, à crítica dos ídolos, de Bacon.8
Goethe considera grandes os filósofos de seu tempo, e não isentos de orgulho patriótico
são seus comentários à muitos deles. Mas ele também critica pioneiramente a
“obtusidade germânica”, e sua falta de percepção (virtude britânica) e finesse emocional
7 Sobre o papel do neoplatonismo renascentista: COELHO, H. Livre-arbítrio e sistema; Conflitos e
conciliações em Böhme e Goethe. 8 Diários de Boisserée, de Outubro de 1815. In: Peter HOFMANN. GoethesTheologie. p. 111.
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(francesa).“Os alemães, embora não somente eles, têm o dom de tornar a ciência
inacessível”,9 o que é altamente indesejável, pois inútil. A educação do sábio germânico
não poderia, então, prescindir da familiaridade com os titãs estrangeiros da sabedoria
antropológica: Shakespeare10 e Rousseau.11
A aplicação da psicologia destes autores ao campo científico exige longo
tratamento histórico-conceitual, ainda que em Rousseau isso já tenha sido fruto de
intensa investigação. Mas Goethe não vê dificuldade em adaptá-los à teologia do
Espinosa recém germanizado. SeCausa sui = omniumrerum causa immanens, o que está
no homem pode ser encontrado na natureza, e vice-versa.
O problema é que o monismo espinosano, para o qual volentinihildifficile, é uma
naturalismo estoico inteiramente assintótico com o monismo da mística protestante,
neoplatônica e agostiniana, que reconhece uma partição fundamental e até certo ponto
irreconciliável na vontade. Em ambos os casos, contudo, a vontade coincide sim com a
essência do ser, seja na forma de sua última redutibilidade, seja na forma da emanação
do objeto a partir do sujeito. Não obstante essa contradição, ou mais provavelmente
graças a ela, a dialética da filosofia clássica alemã acaba por equacionar ambos os
termos em uma nova e bem complexa estrutura; uma que corresponda ao mesmo tempo
à veia neoplatônica e à necessidade ora vista como científica de sintetizar a história, as
ciências, a arte, a religião, e o que mais estivesse disponível.
Mas Goethe tinha também grande apreço pelo empirismo, tanto o antigo quanto
o moderno, e se não considerava seguir exclusivamente um método experimental
baconiano, também relutava em se entregar aos exageros da visão idealista sobre as
ciências.12 Preocupado em elaborar um método que pudesse corresponder à sua filosofia
da natureza, e uma filosofia da natureza que fizesse jus à investigação legitimamente
científica, – o que apesar dos longos tratados sobre fenômenos naturais não era o caso
9 GOETHE, J. MaximenundReflexionen. n. 589, p. 118. 10Em Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister as referências a Shakespeare são bastante óbvias, mas
é sobretudo em Máximas e Reflexões e Poesia e Verdade que se pode avaliar criticamente o juízo de
Goethe sobre o poeta inglês, denotando duas preocupações que Goethe adquire a partir dele, a de
conciliar liberdade e necessidade, e a preocupação pedagógica de moralizar e instruir o povo no
conhecimento dos clássicos. A título de exemplo, leia-se: GOETHE, J.DichtungundWahrheit. p.129. 11 Rousseau é uma influência incontroversa em toda a filosofia clássica alemã, sendo talvez a sua única
unanimidade. Mas o Rousseau pós-kantiano do “evangelho da natureza”, praticamente uma criação de
Herder, teve ainda mais importância do que o Rousseau da introspecção psicológica, adotado por Kant. 12CARO, E. La philosophie de Goethe.p. 111.
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de, por exemplo, Schelling – Goethe rejeita o empirismo baconiano como uma visão
primitiva e insuficiente da vocação científica, limitado a classificar, etiquetar e catalogar
experiências. Um método derivado de uma epistemologia essencialmente fragmentária
era suficiente para a anatomia,13 mas jamais poderia dar a visão de conjunto, revelar a
organicidade e a reciprocidade de fenômenos pertencentes a um sistema complexo. Em
certo sentido, bastava para a anatomia, mas não permitia sequer a existência da
fisiologia, dos estudos ambientais ou comportamentais.
A solução para esta tensão seria uma dialética entre sujeito e objeto, ao invés de
uma relação de simples produção ou captação. Esta dialética, a qual Goethe
desenvolveu em estreito contato com Schelling, pressupunha uma acomodação da
mente ao objeto, sem que este perdesse seu dinamismo e sua capacidade de também
reagir ao Eu cognoscente na forma de novidade, metamorfose no tempo.
De forma um tanto precária, Goethe desenvolve seu naturalismo enfatizando os
processo de intuição participativa (o que recentemente se classificou como uma proto-
fenomenologia) e formulação de hipóteses. A primeira se daria mediante a educação
sensorial, o que constitui a principal crítica de Goethe a Kant.14
A educação sensorial se contrapõe à noção estática de sensorialidade de Kant, o qual
não se preocupou ou sequer considerou seriamente que os sentidos precisariam de uma
crítica tão ou mais séria que o entendimento.15Em uma máxima que o poeta e naturalista
pensava estar de acordo com o próprio espírito kantiano:“O animal é ensinado pelos
seus órgãos; o homem ensina aos seus e os governa.”16
A correção consciente dos sentidos e a percepção de que também eles podem ser
distorcidos pela intencionalidade e preconceitos do investigador abriram novo ângulo de
ataque ao problema da percepção e, com isso, da fundamentação da ciência. A Delicada
Empiria (ZarteEmpirie), contudo, não teria sido cogitada por Kant exatamente por sua
inclinação analítica, condicionamento que o impediu de ver o quão móveis e instáveis
13 A anatomia é literalmente o defeito da visão analítica e fragmentária da natureza. Ela mata para
dissecar, separa as partes para as entender em sua forma “facilitada” e artificialmente isolada. Quem
somente assim procede jamais avançará no estudo dos fenômenos orgânicos, que exige o modo de pensar
sintético-fenomenológico. VerMATUSSEK, P. Goethe und die Verzeitlichung der Natur. 14GLOKCNER, H. Die EuropäischePhilosophie, Pg. 708-712; SHARPE, L. Cambridge Companion to
Goethe.p. 225. 15ECKERMANN, J. Gespräche mit Goethe. 17/02/1829. 16 GOETHE, J. MaximenundReflexionen. n. 1190, p. 240.
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são as relações entre o sujeito e o objeto. Daí partiram as conquistas seminais de Goethe
na ciência,17 bem como alguns de seus mais constrangedores fracassos.18 E o ponto
filosoficamente forte da Delicada Empiria foi a total revolução da compreensão do olhar
humano, o qual passa a ter sentido bem mais fenomenológico do que físico,19 embora
distinções deste tipo já nem sejam mais possíveis; não é possível dizer como um olho
“veria apenas fisicamente”. Ele já está desde sempre biológica e psicologicamente
arranjado. A estrutura do olhar se dá no tempo, nunca de forma extática como propõe os
físicos, porque o olho não é um aparelho, mas um órgão, vivo, sensível, e mesmo
cultural. Goethe foi o primeiro a perceber que a cultura e os mais simples estados de
espírito alteram a percepção sensorial, pois esta é sempre uma parte de um conjunto
maior, a experiência no noética.
As hipóteses, por sua vez, teriam um papel meramente provisório, não
alcançando jamais o status de saber. Aqui, contudo, não se deve concluir, ao menos não
em demasia, que a proposta de Goethe equivalha a um criticismo de tipo popperiano,
pois o termo hipótese não é extravasado para toda e qualquer teoria ou conhecimento
pretendido sobre a natureza, estando antes bem circunscrito a uma das várias etapas do
processo científico. O que Goethe realmente pretende é que, ao lado de um saber
intuitivo (profundo) sobre a natureza, haja também arranjos conceituais provisórios,
cujo objetivo é a satisfação da necessidade sistemática do intelecto enquanto os
experimentos não puderem proporcionar a visão intuitiva do fenômeno. É o caso,
condena Goethe, de algumas conclusões de Newton acerca da cromática.
Em outros momentos ele tem uma atitude legitimamente crítica quanto à relação
entre experimentos e hipóteses, chegando a uma fórmula virtualmente falibilista:
O pesquisador natural busca tocar e reter a particularidade dos fenômenos,
ele não atenta em um único caso apenas para como o fenômeno aparece, mas
também para como deveria aparecer... Há, entretanto, grande diferença se,
como fazem os teóricos, deixa-se escapar pelas frestas um grande número,
17 A descoberta do osso intermaxilar e o conceito de metamorfose, que teria enorme impacto sobre as
teorias evolucionistas a partir de então. 18 Tão mais constrangedores por serem muito mais numerosos que seus sucessos. As limitações da ciência
e do naturalismo goetheano, contudo, demoraram demasiadamente a serem explicitadas, uma vez que os
maiores filósofos de seu tempo a pensarem a natureza, Schelling e Hegel, eram eles mesmos naturalistas
goetheanos e endossavam os erros do mestre. 19SIMMS, E. Goethe, Husserl and the Crisis of European Sciences, Janus Head.
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ou se sacrifica a ideia do fenômeno por uma falha... Quando experimento a
constância e a consequência do fenômeno, até o grau conhecido, então eu
tiro daí uma lei empírica e a prescrevo para as próximas aparições. Se na
sequência a lei e os fenômenos coincidem plenamente, então eu venci, se
não coincidem perfeitamente, então me faço atento para a exceção e
demando as determinações sob as quais aquele caso contrariou a lei, e assim
eu vejo que tenho de por de lado todo o trabalho e buscar uma perspectiva
maior.20
Na dialética entre a intuição participativa viabilizada pela delicada empiria e o
revisionismo crítico das hipóteses o naturalismo atinge um de seus maiores e mais
benéficos resultados, a temporalização do fenômeno como processo orgânico que busca
realizar sua forma: teleologia. Mas, como celebrizou-se pela discussão com Schiller,
Goethe não aceitava que isso fosse uma ideia aplicada a natureza (terceira crítica), mas
antes uma percepção ou um “achado” objetivo viabilizado por sua metodologia. A
ciência favorecia mais a Espinosa do que a Kant. Não só o intelecto, como queria
Fichte, é causa sui. A natureza também dava sinais patentes de produzir a si mesma, ser
o agente e o objeto de um mesmo processo, satisfazendo a definição sintética pela qual
substância e pensamento se equivalem: Per causam sui intelligo id, cujus
essentiainvolvitexistentiam; sive id, cujus natura non potestconcipi, nisiexistens.
Para entender como essa conclusão é alcançada é imprescindível entender a
revolução propiciada por Goethe na biologia através do conceito de metamorfose, o que
nos leva a diferença entre Gestalt (forma) e Bildung (formação). A primeira palavra se
assemelha à nossa “forma”, padrão ou desenho fixo de algo, enquanto a segunda tem
um significado mais dinâmico, ativo e temporal. O verbo bilden significa “chegar a
formar”, aplicável ao trabalho de um artista ou à trajetória de um estudante. Atingida a
forma final (gebildet) têm-se a ideia participial de que algo foi formado, chegou a ser,
não de que algo meramente tem forma.
Se observarmos, no entanto, todas as formas (Gestalten), particularmente as
orgânicas, não encontramos jamais a presença de algo fixo, algo pacífico ou
isolado, mas sim que tudo oscila em um movimento contínuo. Daí que a nossa
20 GOETHE, J. Goethe Werke: Das reine Phänomen. p. 392.
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língua obriga-nos ao uso da palavra Formação (Bildung), tanto em sentido mais
que suficiente para entender as origens quanto o devir de algo.
Se queremos fazer introdução a uma morfologia, então não devemos falar de
forma (Gestalt) [...]
O formado (gebildet) vem a ser nova e prontamente transformado
(umgebildet)21
E como esse processo não conhece pausas ou interrupções, é contínuo e
inevitável, não há como falar em forma senão em sentido puramente didático, como
redução ou simplificação grosseira do que um organismo é: o seu devir, a sua natureza
télica. Dizer que algo se transforma, se metamorfoseia em busca de um fim, é dar o tiro
de misericórdia no mecanicismo e no materialismo, para Goethe resultados artificiais da
limitação puramente didática do entendimento em sua função analítica. Em outras
palavras, trata-se da ressurreição das noções de ideia platônica e enteléquia aristotélica,
da substância como ser espiritual, autopoiético e autossuficiente que busca efetivar-se,
atualizar-se.
É claro, na medida em que tal doutrina da ciência se torna cada vez mais
positiva, e metafisicamente positiva, afasta-se de teorias regulativas da ciência
(epistemologia, filosofia da ciência), passando a ser essencialmente filosofia da
natureza. Ao longo do desenvolvimento da ciência natural de Goethe, por exemplo,
temos a impressão de que as referências a Kant são paulatinamente mais instrumentais e
menos exegéticas. Na virada do século já temos um Kant profundamente “pervertido”
pelo romantismo e pelo idealismo.
Mas Goethe tem seus momentos de pessimismo epistemológico, já que “todo
empirista almeja alcançar a ideia e não a pode descobrir na diversidade; todo teórico
procura-a na diversidade e não a encontra.”22 E à sua maneira, mais antiga do que
moderna, ele abraça um ceticismo elegante que à primeira vista parece contraditório
com sua metafísica naturalista.
Da experiência sensível para a coletiva:
21GOETHE,J.Schriften zur Naturwissenschaft. Zur Morphologie. p. 48. 22 GOETHE, J. MaximenundReflexionen. n. 803, p. 153.
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Propus alhures23 uma interpretação pragmática que pudesse solucionar o impasse
entre naturalismo e ceticismo goetheanos, associando Goethe a William James, mas
aqui basta ressaltar a simpatia de Goethe pelo common sense do iluminismo britânico.
Goethe via na mentalidade alemã uma compulsão pelo abstrato, tão arraigada que os
germânicos a consideravam sua maior virtude. Os britânicos, ao contrário, são “os
mestres em converter a descoberta em utilidade, até que isso conduza a novas
descobertas e ações frutíferas.”24
Em parte, a dificuldade de se reproduzir essa praticidade na Alemanha está
ligada a certo elitismo, fruto de um contexto onde a sociedade civil era reduzida, e um
atraso sócio-político propiciava um degrau brusco entre a massa e a minoria educada e
emancipada. “A cada novo fenômenoso vulgo pergunta pela sua serventia, e ele não está
errado; pois ele só pode se certificar do valor de algo pelo seu uso.”25 A aristocracia, por
outro lado, faz da ciência um esporte, um entretenimento., onde o floreio e a elegância
muitas vezes se sobressai contra o resultado. Embora fosse ele mesmo um aristocrata e
em muitos aspectos um elitista, Goethe via grande virtude nos pensadores vindos da
pobreza, como Kant, Schiller e Fichte, mas observava que também eles, adaptados ao
elitismo da alta cultura germânica, desenvolviam modelos intelectuaispuramente
teóricos. Enquanto a filosofia clássica alemã atingia o zênit da especulação, o Fausto
vinha relembrar que o essencial à vida pode ser antes realizado por um camponês do
que pelo doutor.
De conotação inteiramente diversa, mas intrinsecamente aparentada com a visão
liberal de Goethe sobre a experiência é a ontologia hegeliana madura, com sua lógica
imanente à fenomenologia. Não queremos aqui comparar ou contrapor Goethe e Hegel.
Basta-nos meramente considerar suas teorias de maneira panorâmica, pois nossa
proposta se limita à descrição do contexto histórico mais geral.
“A verdade sobre a certeza de si” é que o idealismo subjetivo apenas postula a
alteridade e deduz pela razão o relacionamento dela com o Eu. A Fenomenologia do
Espírito, contudo, é o diagnóstico do processo que vai da experiência à consciência. A
autoconsciência é “a reflexão a partir do ser do mundo das coisas sensíveis e percebidas, 23 Explicitamente em minha tese. COELHO, H. Livre-arbítrio e sistema; Conflitos e conciliações em
Böhme e Goethe. 24 GOETHE, J. MaximenundReflexionen. n.590, p. 118. 25 GOETHE, J. MaximenundReflexionen. n. 697, p. 136.
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e essencialmente o retorno a partir do ser outro”,26 retorno que naturalmente pressupõe a
ida da consciência ao em si, mas esta ida ao em-si e o retorno para-si precisam ser
ambos trilhados e reconstituídos como autoconsciência antes que se inicie a
fenomenologia, isto é, a ciência do saber. Neste sentido Hegel se diferencia também dos
demais idealistas, na medida em que é, ao menos muito mais do que qualquer deles, um
empirista.
A consciência não tanto produz o outro, como encontra em sua objetividade a
sua negação. O retorno da negatividade pela reflexão a traz para junto da positividade
da consciência, onde o conflito é reconhecido esuprassumido, tanto que em “A
Percepção” (capítulo da Fen.) vimos que todo objeto para a consciência é um medium
entre a pura negatividade do objeto e a positividade da consciência, então revelada
como abertura para as novas experiências e pela capacidade de “refazer” o objeto para a
consciência segundo a comparação entre as experiências sucessivas. A rigor esse
processo é infinito, pois cada nova experiência enseja sempre a revisão da sua
representação para a consciência.
A substância é o sujeito, que tem o seu ser no seu devir, não no seu puro
princípio. “é como um círculo que pressupõe o seu fim como meta e o tem como seu
princípio, e só é real através do percurso e de sua conclusão.”27Na Ciência da Lógica
Hegel observa, como já declarado na Fen., que o absoluto não mereceria o nome se
fosse puramente ideal, abstrato; deve ser concreto, o que por sua vez só é possível após
sua realização. Da Lógica até a Filosofia do Direito observamos que o pensamento
acompanha a construção real do conceito,28 não podendo se limitar (o que seria inútil) à
prescrição. A normatividade é, portanto, completamente subordinada na teoria hegeliana
final, já que a ciência deve falar do real, o potencial é apenas uma abstração, um
indeterminado.
26 HEGEL, G. PhänomenologiedesGeistes. p. 133. 27 HEGEL, G. PhänomenologiedesGeistes. p. 21. 28SANDKAULEN, B. ProblematischeTransformationen. Deutsche ZeitschriftfürPhilosophie50 (2002). p.
375.: “Não surpreende que Fichte se satisfaça com o discurso abstrato acerca dos “indivíduos”, desde que
as relações de reconhecimento se concretizem em casamento, profissão e Estado, ou seja em relações de
direito descritíveis de maneira naturalista, porque institucionalizadas. Hegel segue o mesmo modelo em
sua Fil. do Direito. O espírito que alhures se permitia conceituar a partir de experiências de si e de mundo
como mera substância dessas experiências, é através das instituições um espírito apresentado. [...]
Justamente através delas o reconhecimento mútuo é quintessenciado em relações estruturais, as quais são
o Espírito Absoluto.”
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Assim devemos nos lembrar de que o conceito hegeliano não é referencial
genérico de particulares, senão o núcleo mediador dos particulares possíveis, em
evolução dinâmica com estes. A consequência da aplicação desta noção de conceito ao
Estado vem a fazer deste uma entidade autônoma codependente de suas instituições e
cidadãos. Contradição somente aparente, que é superada pela organicidade dos termos
da lógica.
A lógica do sistema é sempre a cooriginariedade do teórico e do prático, da
lógica e da experiência, da forma e do conteúdo, de modo que toda a genealogia é de
algum modo espúria. Pode-se começar aqui ou ali, o final é o mesmo. “O sistema não é
a forma de apresentação das coisas, é antes a coisa mesma que a partir de uma
exposição correta pode ser fornecida.”29
Embora Hegel concorde que “o Alfa é o Ômega”, ele discorda da atitude de
Schelling de deduzir o segundo do primeiro sem mais.30 É preciso fazer o percurso, dar
lugar a história, que é o realizar-se do ser, para só então saber sobre um e outro. A
imediatidade do Alfa não é saber, pois sequer se viu como ele chega ao Ômega. A
essência que não é manifesta é mera abstração. A forma, manifesta, é o ser.
A abstrusidade do sistema se justifica pela pretensão de trazer a conceito a
totalidade da vida, em todas as suas dimensões (sensível, psicológica, social, ética) de
modo que a isonomia que esclarece está na dependência do mapeamento de toda uma
topografia acidentadíssima do saber em devir. A temporalização da experiência humana,
já não psicológica nem meramente biológica, mas intersubjetiva, radica a espiritualidade
na realidade em sentido forte (efetividade). Como Rickert viria a perceber depois, a
natureza é um produto da cultura.
É claro, extrapolamos o sentido muito específico que Hegel dá a “experiência”,
ao menos a partir da Lógica,31 ainda que não tanto em relação à Fenomenologia, mas o
propósito aqui é justamente captar de Hegel a contribuição para a noção culturalmente
mais difundida de experiência.
29SANDKAULEN, B. System undSystemkritik. KritischesJahrbuch der Philosophie 11(2006). 11-34.p.
24. 30 VETÖ, M. De Kant à Schelling. II, p. 27. 31 E na Enciclopédia ele é o segundo momento da consciência sobre o real, logo após o mero dar-se da
coisa. (Enc. §6) HEGEL, G. Werke.
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Contra as noções iluministas de experiência, sensível ou psicológica, ele observa
que o pensamento humano é intrinsecamente perpassado pela estrutura onto-lógica da
totalidade, o que inclui, principalmente, a autoconsciência mediada pelo jogo
interpessoal. O conceito de experiência do empirismo ou mesmo de Kant é, portanto,
uma abstração da cultura moderna, que só pode ser levada a sério após um retrospecto
de sua formação dentro do quadro da totalidade do desenvolvimento espiritual do
homem. Nossa percepção ou experiências em estado natural, como se estivéssemos
imediatamente conectados à natureza sem estarmos antes ou ao mesmo tempo
conectados à pessoas e instituições, não pode ser senão fruto de uma construção que
envolve abstração de todas estas camadas; possível, mas precário e insuficiente, porque
ao mesmo tempo em que a consciência lida com objetos já está mergulhada no medium
linguístico e cultural de referenciais outros, com os quais os relativos à percepção são
interdepentendes.
Retornando a Goethe, há boas razões para crer que o bardo nacional da
Alemanha tenha se voltado progressivamente para Hegel em busca de uma visão da
totalidade mais compatível com a sua.32 Ainda que ele permaneça no terreno de um
ecletismo pragmático, sem avançar para um programa sintetizador da totalidade do
vivido, ele está igualmente preocupado em dar voz a esta totalidade e navegar pela
trama das infinitas possibilidades de ser.
Por isso o Fausto ao menos soa como um êmulo da Fenomenologia.33 Em
ambos os livros percebemos os contornos de um projeto audacioso de cosmovisão
totalizante. Em ambos o projeto é executado pela dialética, em Goethe a “sístole-
diástole” que não apenas cria uma polaridade, mas cujas contrações e expansões acabam
por forçar os limites da polaridade produzindo mutação. E em ambos essa dialética, que
é de todo o ser, culmina na vida humana através dos grandes dramas da eticidade, do
trabalho, da arte e da salvação.
32BLOCH, E .TübingerEinleitung in die Philosophie. 33BLOCH, E.TübingerEinleitung in die Philosophie. p. 79.:“Sempre está o fáustico na Fenomenologia, o
fenomenológico no Fausto, reciprocamente presentes, a força das disposições gerais do Mundo, tão
misteriosa quanto reveladora, que caminha de dentro para fora. Assim que se pode dizer, ora com
expressão goetheana, ora com a hegeliana: O monólogo de Fausto é o arqui-fenômeno da Fenomenologia,
e a substância que se conhece como sujeito é o Absoluto do Fausto”
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Conclusão:
Viu-se como a experiência sensível em Kant, e toda a arquitetônica a ela
associada, já contém o gérmen de sua transposição ao monismo idealista.34
Dentro desse monismo, vimos como a posição do homem no cosmos é
totalmente reconfigurada em uma visão onde sujeito e objeto são co-participativos,
inserindo um dinamismo ímpar até então na história da filosofia, o que teve impacto
sobre toda a biologia do século XIX, o que não foi tratado, e sobre a criação de novas
noções de relacionamento e reciprocidade que logo seriam assumidas pela metafísica
também em outros níveis.
É comum chegar-se ao conceito de experiência cultural do hegelianismo maduro
por vias do historicismo de Herder, mas também este estava envolvido na Spinoza
Renaissance, cuja preocupação central era a vitalização da substância absoluta em todos
os seus modos; projeto eminentemente teológico que foi mantido em vista por quase
todos os autores do período.
Tentamos mostrar que, embora talvez não tão fácil, a ligação de Goethe com o
idealismo se caracteriza tanto pela profundidade técnica com que ele lida com a
fenomenologia da vida, quanto sua abrangência temática, não esgotável pela sua
associação exclusiva com a filosofia da natureza em, por exemplo, Schelling e Hegel.
Ao contrário, as preocupações estético-pedagógicas e religiosas de Goethe
deixam-no muito próximo do Hegel culturalista, de modo que uma leitura conjunta e
comparativa seria recomendável.
34 Aqui usamos “idealista” no sentido mais largo possível, para abarcar as contribuições de todos os pós-
kantianos, e alguns românticos que, mesmo que das suas fronteiras, pertencem à constelação cultural
mais ampla do movimento.
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