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Fotografia: a imagem que ultrapassa o testemunhoMaria Ogécia Drigo1
Matheus Mazini Ramos2
Resumo
Propõe-se uma reflexão sobre o potencial da fotografia como técnica de coleta de dados em
investigações científicas envolvendo processos comunicacionais, bem como sobre
fundamentação teórica para análises, de modo que incorporem novos significados aos
resultados dessas investigações, além dos obtidos por meio de outras técnicas de pesquisa.
Para atingir tal objetivo, retoma-se resultados de uma pesquisa de iniciação científica sobre
mídias e os “modos de vida” do habitante da zona rural de Sorocaba (SP); explicitam-se
idéias de Barthes (1984) sobre a fotografia e, em seguida, apresenta-se uma aplicação
dessas idéias.
Palavras chave: comunicação; fotografia; imagem
Abstract
We intend to think about the potential of the photography as a technique of collect of data
in scientific investigations that treat of communicatives processes, as theoretical support for
analyses, bringing new meanings at results of this investigations, besides that meanings got
through others techniques. To reach this purpose, we retake result of scientific investigation
about media and the habits of the people that live in countryside of the Sorocaba city; to
explain ideas of Barthes about photography, after that, we present one application of this
ideas.
Keywords: communication; photography; image
1 Professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba/SP. Dra. em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Endereço: Av. Dr. Eugênio Salerno, 100/140, Cep 18035-430. Email: maria.drigo@uniso.br 2 Matheus Mazini Ramos. Pesquisador de Iniciação Científica/Universidade de Sorocaba, SP e orientando da Prof. Dra. Maria Ogécia Drigo. Email: mmazini@gmail.com.
1
1.Introdução
Propõe-se refletir sobre a utilização da fotografia como técnica para coleta de dados
em investigações científicas que envolvam processos comunicacionais, bem como refletir
sobre referenciais teóricos de leitura que incorporem novos significados aos resultados
dessas investigações, de modo geral. Para atingir este propósito valer-se-á de resultados de
uma investigação científica já realizada; em seguida, apresentam-se as idéias de Barthes
sobre fotografia, principalmente as noções de studium e punctum e, por fim, apresenta-se
uma fotografia, inicialmente sem título, depois com título e, em seguida, comentários
elaborados a partir de depoimento do fotografado e observações do pesquisador. Conjetura-
se que, com esta técnica de apresentar resultados, a imagem não permanece somente como
testemunha de algo que aconteceu.
A investigação empreendida sobre a influência das mídias no “modo de vida” do
habitante da zona rural de Sorocaba, via fotografias, partiu dos seguintes pressupostos: o
primeiro deles se refere à cultura; o segundo, às mídias. Considera-se a cultura como um
fenômeno regional, ou seja, os elementos culturais, em qualquer tempo, apresentam uma
distribuição geográfica e esse caráter geográfico define certos costumes, artes, religiões,
etc. como próprios das regiões em que eles existem. Por outro lado, os elementos culturais
se cruzam, se entrelaçam e se misturam.
Quanto às mídias, discute-se muito, atualmente, o seu papel no cotidiano das
pessoas, notadamente sobre as possibilidades de que elas promovam mudanças
significativas nos seus modos de pensar e de agir. Entende-se por mídia os meios de
comunicação enquanto suportes de notícias, publicidade e, atualmente, devido ao
surgimento de equipamentos técnicos propiciadores de novos processos de comunicação de
massa, tais como a multiplicação de canais de televisão a cabo, o videocassete, jogos
eletrônicos etc., e, finalmente, com a emergência da comunicação planetária, mídias se
referem também aos processos de comunicação mediados pelo computador.
Os meios de comunicação – desde o aparelho fonador até as redes digitais atuais –
são canais de transmissão, mas as mensagens que veiculam e os processos comunicacionais
que possibilitam são capazes de moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos,
propiciando o surgimento de novos ambientes socioculturais. A nova formação
2
comunicativa e cultural se integra às FORMAS que permeiam o meio, se reajustam, e
transformam as existentes. As mídias intensificam e modificam esses (re)cruzamentos.
E qual é o cenário que as mídias constroem e (re)constroem em torno do “modo de
vida’’ do caipira e que, de certo modo, interfere nas nossas concepções sobre o caipira e seu
“modo de vida”? A seguir, alguns detalhes deste cenário.
2. O cenário do caipira
O caipira na literatura, no cinema, nas histórias em quadrinhos, na pintura...
Da literatura, por meio do personagem “Jeca-tatu” de José Bento Monteiro Lobato,
veio a concepção de que caboclo era incapaz de cuidar da terra, a ponto de quando ela se
exauria, ele se mudava e deixava lá apenas a sua moradia – a tapera e o sapezeiro – que se
apagava como que por encanto. Por outro lado, tal personagem também refletia a
indignação de Lobato para com os colonos da sua fazenda. Eles rejeitavam mudanças e
viviam a desaconselhar o patrão de querer tantas coisas diferentes na fazenda. Com esses
obstáculos, perdeu muito dinheiro e desistiu de ser fazendeiro. A frustração fez com que ele
transferisse para o caipira - que era sugado por dentro pelas lombrigas e via acocorado na
beira da estrada sempre pitando um palheiro -, segundo o autor, a culpa pelo seu fracasso.
Para Junqueira (2004, p. 90), “ao se engajar no movimento sanitarista, sob a
influência de Carlos Chagas, Artur Neiva e Osvaldo Cruz, Lobato reconhece no caboclo um
ente essencialmente íntegro, mas mitigado pela doença”. Ele se declara ignorante e pede
desculpas. A partir daí, passou a escrever novas histórias e o personagem, então, conseguia
se curar de suas doenças, adquirir terras e ficar rico.
No entanto, segundo Junqueira (ibid., p. 90), o pedido de desculpa de Lobato tornou
público novamente o seu caráter preconceituoso, pois admitia que o perfil de inoperância
do homem do campo era devido às doenças tremendas e que, de modo latente, ele era um
homem como o italiano, o português, o espanhol. Assim, pregava a supremacia étnica
européia.
Mas “Jeca Tatu” era também uma metáfora do marasmo, da estagnação da
economia brasileira. O personagem da literatura acabou por trazer à tona a situação de
3
subdesenvolvimento, da pobreza da sociedade, especialmente, a do Vale do Paraíba.
Quando Lobato nasceu, em 1822, a sociedade agrária estava em ascensão. Nesta época, o
Vale do Paraíba alcançava o mais significativo período de progresso e riqueza de seu
percurso histórico, graças à monocultura cafeeira. Alguns anos depois, a cafeicultura entrou
em decadência na região, que passou da opulência à agonia.
Do envolvimento de Monteiro Lobato3 com o grupo de sanitaristas criou-se uma
espécie de cartilha denominada “Jeca Tatuzinho”, cujo propósito principal era disseminar
hábitos saudáveis, como andar calçado e lavar as mãos antes das refeições. O personagem
“Jeca Tatuzinho” é adaptado para transformar-se em personagem do almanaque do
Laboratório Fontoura & Serpe. O Almanaque descrevia a transformação do caboclo “Jeca
Tatu” e sua família de uma condição de magreza, palidez e tristeza em uma de saúde por
tomar regularmente o Biotônico Fontoura.
Da obra literária e das histórias em quadrinhos, o “Jeca Tatu” migra para o cinema,
encarnado por Mazzaropi. Em seu primeiro filme, o “Jeca Tatu”4, Mazzaropi demonstra
visualmente a trajetória de Lobato com os colonos da fazendo Buquira. Os traços de Lobato
apareciam no personagem que representava o maior inimigo do “Jeca Tatu”, o fazendeiro
italiano Giovanni, que vê o Jeca como um obstáculo ao progresso de sua fazenda. Tenta, de
todas as maneiras, comprar a propriedade de seu vizinho Jeca, chamado pelo italiano de
“amarelo”, por causa da doença popularmente conhecida como “amarelão”. No final do
filme, o progressista Giovanni se torna amigo do ingênuo, mas não mais preguiçoso, “Jeca
Tatu”.
Mazzaropi conseguiu perpetuar no imaginário coletivo um estereótipo de caipira
com toques de irreverência, astúcia e uma ingenuidade que levou o público a rir e se
emocionar com suas histórias. Os críticos, entretanto, classificavam seus filmes como
retrocesso do cinema brasileiro e o seu caipira, estilizado.
O “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato, sem dúvida, contribui para a formação da nossa
concepção de “caipira”, para as nossas idéias sobre o morador da zona rural do Estado de
São Paulo. Aspectos desse personagem ainda permeiam o imaginário do brasileiro, em
geral. O programa “Big Brother Brasil 7”, exibido na Rede Globo (janeiro/fevereiro de
2007) trouxe esta problemática à tona. Constataram-se na fala da participante a pronúncia 3 Revista Pharmacia Brasileira, mar/abr 2001.4 Mazzaropi, Amácio. Filme Jeca Tatu. PAM – Produções Amácio Mazzaropi.
4
de certas palavras com o “r” forçado e o uso de conjugação verbal incorreta, o que foi
suficiente para que a chamassem de caipira. Alguns duvidavam da “caipirisse” da
participante por ela rebolar exageradamente os quadris ao dançar. Assim, entre os
participantes predominava a noção de que essas falhas na pronúncia, bem como atitudes de
recato identificam o caipira.
Da pintura, via obras de José Ferraz de Almeida Júnior5(1850-99), encontra-se mais
elementos para caracterizar o habitante da roça do interior paulista. “Caipira picando fumo”
(figura 1) é o título da pintura de Almeida Júnior que se propõe analisar. Há outras obras,
como “Amolação interrompida” (1894); “Nhá Chica” (1895), que retrata a mulher do
campo que pitava, cuspia no chão e tinha valores diferentes da feminilidade urbana;
“Cozinha caipira” (1895) e “Violeiro” (1899), entre outras. Os personagens do pintor são
gente de carne e osso, que ele conheceu pessoalmente, gente que tinha nome, se alimentava,
vivia, amava. Assim, o modelo para o caipira picando fumo era um tipo popular de Itu, cujo
cognome era “Quatro Paus”.
A pintura exibe vários tons de amarelo e a luminosidade é incisiva, o que se constata
pela sombra, provavelmente de folhagens, nas paredes da casa e no chão de terra batida. A
linha da base da casa de taipa delimita um jogo de planos, um de fundo onde está a casa e o
outro que nos traz o picador de fumo. Não há uma ruptura brusca entre o chão, as paredes
da casa e os aspectos do caipira. Os diversos tons de amarelo e de cinza caminham de um
para outro, sem choques. Ainda no limite dos planos há alguns bancos de madeira (pedaços
de troncos de árvore, ancorados por estacas de madeira). As paredes deixam as ripas à
mostra e a porta está entreaberta.
Os ombros do picador de fumo estão soltos, caindo suavemente e em parte
ancorados na perna. Pés descalços, cabelos negros e revoltos, despenteados mesmo como
quem esteve com um chapéu de palha o dia todo; barba negra e rala, calças arregaçadas de
qualquer modo e a camisa entreaberta, é de um branco amarelado. Segura o facão e pica o
fumo que será envolto na palha, que descansa sobre a orelha. O olhar do picador de fumo
parece absorvido pelo movimento do facão e seu corpo descansa no mesmo ritmo dos seus
gestos, que parecem lentos.
5 CD Rom - “500 anos de pintura brasileira”.
5
“Caipira picando fumo” figura 1
As dimensões do quadro permitem que o observador se sinta diante do picador de
fumo, em tamanho real. Não há ambigüidade referencial. A imagem retratada é de um
caipira picando fumo, o que é reforçado pelo título da obra.
Devido os aspectos qualitativos da pintura, a mistura de tons amarelados e a
ausência de rupturas de um plano para o outro, o chão que se mistura com a linha da base
da casa de taipa, que se mistura com a parede semi-descoberta, bem como a porta semi-
aberta, ela sugere lentidão, marasmo, entrega ao cansaço e à natureza. Constata-se a ação de
picar fumo e o modo como o caipira a realiza. O seu olhar para o facão e para o fumo
acentua que só existe a ação e não há outros pensamentos, outros devaneios.
Assim como o sol arde teimosamente, independente de explicações e
questionamentos, porque a natureza assim se faz, ele pica o seu fumo para fazer o seu
cigarro de palha. Ele se senta no seu banco tosco e pica o fumo. A porta entreaberta exibe a
sua relação com o meio. Há uma comunhão entre eles, com portas semi-abertas, que se dá
pacificamente, sem rupturas, sem choques.
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Pode-se conjeturar que o morador da zona rural daquela época – da região de Itu -,
era um sujeito que não se preocupava com a sua moradia, com a sua aparência. Sugere
também que tudo flui assim como o sol vem, ilumina e se vai. O desleixo, a lentidão, a
despreocupação e até um certo marasmo seriam aspectos do modo de vida do caipira
daquela época.
A seguir, busca-se em Antonio Cândido, aspectos do modo de vida do caipira.
O caipira e o seu “modo de vida”
Relata-se, em linhas gerais, resultados da pesquisa empreendida por Antonio
Cândido e que consta no livro “Os parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o caipira paulista
e a transformação dos seus modos de vida”, com o propósito de esclarecer em que sentido
se toma o termo caipira, bem como para incorporar dados históricos, para se compreender o
“modo de vida” do caipira tradicional.
O autor buscou informações em documentos e viajantes do século XVIII e início do
século XIX, referências e indícios do homem da roça e também durante um período de 6
anos – de 1948 a 1954 – na região de Bofete, interrogou caipiras de lugares isolados, para
esclarecer com a ajuda deles como eram o “tempo dos antigos”.
O termo “caipira” designa, nesse artigo e também na investigação empreendida – o
mesmo sentido adotado por Cândido (1979, p. 22), um modo-de-ser, um tipo de vida e não
um tipo racial como “caboclo”, que designa o mestiço próximo ou remoto de branco e
índio. A cultura caipira indica o universo das culturas tradicionais do homem do campo ou
da zona rural restrita à área de influência histórica paulista.
A sociedade que se formou no século XVI ao XVIII, segundo Cândido (1979, p.
37), na área de expansão paulista pode ser entendida a partir de reflexões que envolvem o
colonizador, diante dos confrontos advindos de sua intensa mobilidade.A vida social do caipira assimilou e conservou os elementos condicionados pelas
suas origens nômades. A combinação dos traços culturais indígenas e portugueses
obedeceu ao ritmo nômade do bandeirante e do povoador, conservando as
características de uma economia largamente permeada pelas práticas de presa e
coleta, cuja estrutura instável dependia da mobilidade dos indivíduos e dos grupos,.
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Por isso, na habitação, na dieta, no caráter do caipira, gravou-se para sempre o
provisório da aventura. (CÂNDIDO, ibid., p. 37)
De acordo com relatos de historiadores e viajantes, que datam de 1717 e 1808, para
o mesmo autor (ibid.,p. 37-8), as casas do caipira – denominadas rancho – eram choupanas
de um andar, com o chão não pavimentado e com compartimentos formados de vigas
trançadas, emplastadas de barro. Havia boas construções de pedra e cal, ou terra socada em
taipa – nos edifícios públicos e religiosos-, e depois do século XVIII, nas casas de moradia
de gente de prol. No entanto, o caipira conservou até, pelo menos a metade do século XX, a
habitação primitiva, tal como consta nos documentos antigos. Esses relatos podem ser
confrontados com o que se escreveu sobre “Jeca Tatu”, que resgata o caipira da região de
Taubaté.
Os habitantes da área investigada, na esteira do mesmo autor (ibid., p.41-3), eram
homens rudes, irascíveis e valentes, matavam-se uns aos outros com certa freqüência, o que
era atestado pela quantidade de cruzes e “capelinhas” votivas espalhadas pela região; eles
desconfiavam de estranhos, mas passavam a ser hospitaleiros desde que não surgissem
dúvidas. Sobre os costumes, o autor adverte que eles eram ligados à atividade agrícola
seminômade e ao povoamento esparso, que não favoreciam o tratamento ameno, cortês ao
visitante ou ao estranho e davam lugar a modos arredios, próprios do homem segregado. O
caipira vivia e viveu, pelo menos até meados do século XX, na cabana solitária, ou
vagamente integrado nos grupos ralos e mais ou menos isolados da vizinhança. O caipira
era “coisa feia de ver”, pois vivia de camisolão (camisa por fora da calça e comprida) e
barbudo.
Para o caipira, a agricultura extensiva, itinerante, foi um recurso para ajustar as
necessidades de sobrevivência à falta de técnicas capazes de proporcionar rendimento da
terra. O solo tropical, difícil de ser explorado, propiciou o uso de queimadas, uma técnica
que reflete também o mau uso deste. Por outro lado, a agricultura itinerante era
possibilitada pelas reservas de terra nova e fértil, imensas para uma população esparsa,
como também pelo sistema de sesmarias e posses.
Quanto à dieta, segundo Cândido (1979, p. 50-6), pode-se dizer que a do
bandeirante passou a ser a do lavrador e a da maioria dos paulistas. O feijão, o milho e a
mandioca, plantas indígenas, constituíam o triângulo básico da alimentação, alterado com a
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substituição da última pelo arroz. Em torno deles, de modo não freqüentes, eram
incorporados: abóbora, batata-doce, cará e alguns legumes (couve, chicória e serralha). O
toicinho imperou de modo absoluto até meados do século XX. O sal, que era escasso, foi
um dos fatores responsáveis da sociabilidade intergrupal – o caipira ia ao povoado mais
próximo ou para a vila para buscar sal. O leite, o trigo e a carne de vaca eram excepcionais
na dieta do caipira, pois tais alimentos constituíam índice de urbanização ou situação social
privilegiada. A variação desta dieta dependia da caça, da pesca e da coleta de frutos do
mato e do campo.
A estrutura fundamental da sociabilidade caipira, segundo Cândido (ibid., p. 62),
consistia no agrupamento de algumas ou muitas famílias, vinculadas pelo sentimento de
localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo (mutirão, prática muito
comum) e pelas atividades lúdico-religiosas. Esses grupos rurais de vizinhança, na área
paulista, denominaram-se bairro. Mas além de determinado território, o bairro se caracteriza por um segundo
elemento, o sentimento de localidade existente nos seus moradores, e cuja
formação depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio
entre as famílias e as pessoas, vestindo por assim dizer o esqueleto topográfico.
----- O que é bairro? ---- perguntei certa vez a um velho caipira, cuja resposta
pronta exprime numa frase o que se vem expondo aqui: ---- Bairro é uma
naçãozinha.----- Entenda-se: a porção de terra a que os moradores, têm consciência
de pertencer, formando uma certa unidade diferente das outras.(CÂNDIDO,
ibid., p. 64-5)
O mutirão, para o mesmo autor (ibid., p. 67-8), uma forma de solidariedade,
solucionava problemas de mão-de-obra em grupos de uma vizinhança, ao suprir as
limitações da atividade individual ou familiar. E o aspecto festivo de que se reveste,
constitui um dos pontos importantes da vida cultural do caipira. Era não uma obrigação
para com as pessoas, mas uma obrigação para com Deus, logo, o pedido de ajuda não era
passível de recusa. A necessidade de ajuda imposta pela técnica agrícola e a sua retribuição
automática, determinava a formação duma rede ampla de relações, ligando uns aos outros
os habitantes do grupo de vizinhança e contribuindo para a sua unidade estrutural e
funcional.
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Mas os traços fundamentais da cultura caipira – que começou a se esboçar desde o
início da civilização –, no século XVIII passa por momentos críticos, quando a
sedentarização se impôs, demandando mudança de hábitos e redefinindo valores sociais em
formação. As camadas de maior nível socioeconômico afazendaram-se graças à cana-de-
açúcar e à mão-de-obra do negro. Desocupados e aventureiros formaram a massa de
agregados, posseiros, desbravadores que se estabilizaram como sitiantes, mas formaram
também os valentões, autônomos ou a soldo. Assim, “ficaram no caipira não apenas certo
pendor para a violência, como marcas nítidas de inadaptação ao esforço intenso e contínuo”
(CÂNDIDO, 1979, p. 85).
Assim, a questão da vadiagem ou da fuga ao trabalho não pode ser interpretada
apenas à luz das raízes históricas – na colonização, vinculada ao aventureiro e à
escravização do indígena – como também as determinantes econômicas e culturais.
“Resumindo, podemos dizer que o desamor ao trabalho estava ligado à desnecessidade de
trabalhar, condicionada pela falta de estímulos presentes, à técnica sumária e, em muitos
casos, à espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão. ”(CÂNDIDO, ibid., p.
86).
Resta abordar as questões decorrentes do contato com a cultura urbana. Na história
da sociedade rural de São Paulo, para Cândido (ibid., p. 215-7), há deslocamento constante
de indivíduos e famílias, não só no espaço geográfico como nos níveis socioeconômicos. O
caipira pode passar da vida no bairro para fazendeiro, ascendendo socialmente, como
aumentando a quantidade de desqualificados, descendendo socialmente. Assim, o caipira
oscilava entre a casa isolada e o grupo da vizinhança, entre a condição de agregado e a de
sitiante, entre a instabilidade e uma instabilidade relativa. Mas o aumento da densidade
demográfica, a preponderância da vida econômica e social das fazendas, a diminuição das
terras disponíveis são agravantes para o caipira. Ao romper-se, na paisagem social e
econômica, a alternância entre o bairro e a moradia segregada, entre o sitiante e o agregado
ou aventureiro surgem desajustes que se resolvem, em parte, com a migração urbana, com o
abandono das atividades agrícolas e passagem a outro universo de cultura.
Há, portanto, trocas culturais e elas podem ser divididas em duas modalidades: os
fatores de permanência que contribuem para a manutenção dos modos tradicionais de vida;
e de transformação, que possibilitam a incorporação aos novos padrões. Os fatores
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tradicionais exercem ação reguladora, não raro envolvendo os outros, combinando-se a
eles, integrando-os de certo modo no seu sistema. Não há substituição mecânica dos
padrões, mas ajustamento dos velhos padrões ao novo contexto social.
O processo de urbanização, segundo Cândido (1979, p. 218), impõe ou propõe novo
movimento de trocas culturais; propõe a racionalização do orçamento, o abandono das
crenças tradicionais, a individualização do trabalho, a passagem à vida urbana, o que levou
o caipira a reações distintas: a aceitação dos traços impostos e propostos; a aceitação dos
traços impostos ou a rejeição de ambos.
Neste cenário, segundo Cândido (ibid., p. 223), o caipira não vive mais no equilíbrio
propiciado pela procura de recursos imediatos em uma sociedade de grupos segregados,
mas em desequilíbrio econômico, devido aos recursos que a técnica moderna possibilita. O
atraso técnico e a economia de subsistência que reinavam no interior paulista não
possibilitavam o aparecimento de discrepâncias entre o campo e a cidade. Mas o
desenvolvimento da economia baseada na exportação de gêneros tropicais acarretou
diferenças no nível socioeconômico e, como conseqüência, o caipira ficou separado do
homem da cidade. A situação se modifica e se agrava com a industrialização, a
diferenciação agrícola, a extensão de crédito e a abertura do mercado interno.Graças aos recursos modernos de comunicação, ao aumento da densidade
demográfica e à generalização das necessidades complementares, acham-se
agora frente a frente homens do campo e da cidade, sitiantes e fazendeiros,
assalariados agrícolas e operários – bruscamente reaproximados no espaço
geográfico e social, participando de um universo que desvenda dolorosamente as
discrepâncias econômicas e culturais. Nesse diálogo, em que se empenham todas
as vozes, a mais fraca e menos ouvida é certamente a do caipira que permanece
no seu torrão.(CÂNDIDO, ibid., p. 223).
Há um intervalo de cinco décadas entre o período de realização da pesquisa de
Antônio Cândido e os dias atuais, do qual não se ocupou de modo investigativo. A seguir,
explicita-se o olhar que se lançou para a fotografia.
3. O olhar para a fotografia
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Relata-se as idéias de Barthes (1984) sobre fotografia, as quais se almeja incorporar
ao olhar que se lançou sobre fotografia na investigação e que neste artigo se resgata.
Barthes (ibid., p. 12-3), ao tomar a fotografia como objeto de estudo com o
propósito de especificar o que a distinguia da comunidade das imagens, contatou que ela se
esquivava. Mas é possível classificá-la, muito embora, valendo-se de relações exteriores ao
objeto e que seriam pertinentes para qualquer tipo de representação. Assim, as divisões
possíveis são: empíricas (profissionais/amadores), retóricas (paisagens, objetos, retratos) ou
estéticas (realismo, pictorialismo).
A fotografia repete infinitamente o que ocorreu uma vez, mas faz com que esse
mesmo acontecimento permaneça. Ela é o prolongamento não contínuo da contingência.
Ela também não se distingue do seu referente, ou seja, do que ela representa. Um
observador diante de uma fotografia de um homem com chapéu branco, mesmo que ele a
observe por longo tempo ou a observe repetidas vezes, com interrupções... lá está o homem
de chapéu branco! Segundo Barthes (ibid,, p. 123), a fotografia não nos leva a rememorar o
passado, mas atesta que o que se vê de fato existiu.
Há algo diferenciado no ato de fotografar, pois o fotógrafo escolhe um certo objeto,
num certo instante. Assim a fotografia é inclassificável por perdurar um momento único
sem alarmes, surda e espantosamente.A Fotografia é inclassificável porque não há qualquer razão para marcar tal ou tal
de suas ocorrências; (...) são signos que não prosperam bem, que coalham como
leite. Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é
sempre invisível: não é ela que vemos. (BARTHES, ibid., p. 16)
No caso da fotografia do homem de chapéu branco constata-se que o prevalece é o
homem de chapéu branco, ou seja, o referente. A Fotografia não fala (forçosamente) daquilo que não é mais, mas apenas e com
certeza daquilo que foi. Essa sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência
não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança (quando fotografias estão
fora do tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a
via da certeza; a essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela representa.
(BARTHES, 1984, p. 127)
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Daí a dificuldade em acomodar a vista à fotografia. Em um primeiro tempo a
fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma inversão conhecida, ela
decreta notável aquilo que ela fotografa. O “não importa o quê” se torna o ponto mais
sofisticado do valor, ou seja, o que importa é o que ela representa.
Deste modo, como se anunciou no início, é essa especificidade que se pretende
destacar. O observador deverá olhar, de modo sagital, para o referente, perseguindo-o,
demorando-se nele. Seria possível atingir este objetivo, aglutinando-se à fotografia uma
palavra...uma frase? O olhar do observador deve caminhar da palavra ou da frase para a
fotografia e também ao contrário, no entanto, sem abandonar o referente. Isto é o que se
pretende comprovar.
Para Barthes (ibid., p. 20), uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três
intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o fotografo. O Spectator somos
todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos,
coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente,
espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado
eu chamaria de Spectrum da Fotografia, por essa palavra mantém, através de sua
raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco
terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.
Por outro lado, tecnicamente, a fotografia se dá no cruzamento de dois processos
inteiramente distintos: um de ordem química, o da ação da luz em certas substâncias; outro,
de ordem física, o da formação da imagem através de um dispositivo óptico.
Para Barthes (ibid., p. 44-9), há dois elementos co-presentes na fotografia: o
studium e o punctum. O primeiro corresponde a uma espécie de afeto médio que o
espectador experimenta e que o conduz a se interessar pela fotografia. Assim, o studium
não quer dizer “estudo”, mas a aplicação a alguma coisa, o gosto por alguém, uma espécie
de investimento geral, ardoroso e sem acuidade particular. O punctum, o segundo elemento
e que rompe com o studium, parte da cena como uma flecha e transpassa o espectador; na
fotografia, ele é o acaso que punge, mortifica, fere.
Segundo Barthes (1984, p. 48), a fotografia é necessária para a sociedade e suas
funções – álibis, para o fotógrafo -, são: informar, representar, fazer significar, dar vontade.
Por outro lado, a fotografia, melhor que os retratos, na esteira do mesmo autor
(ibid., p. 49), pode fornecer detalhes que constituem material do saber etnológico; ela
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possibilita o acesso a um infra-saber, ou seja, fornece uma coleção de objetos parciais que
cria no espectador, um certo fetichismo, uma vez que há nele um “eu” que gosta do saber.
A seguir, fotografias, antes sem título e, em seguida, com título (algumas palavras
ou frases), que mostram moradores da zona rural de Sorocaba. Os registros fotográficos
foram realizados no primeiro semestre de 2007.
4. Moradores da zona rural de Sorocaba
Compõem os resultados da investigação sobre o “modo de vida” do habitante da
zona rural de Sorocaba, 30 registros fotográficos. Neste artigo, exibe-se uma dessas
fotografias, pois o propósito é desencadear reflexões sobre um modo de se valer de
imagens, enquanto na investigação original importava também destacar aspectos do “modo
de vida” das pessoas que vivem na zona rural de Sorocaba. Exibe-se a fotografia, depois a
mesma fotografia com um título (que pode ser uma palavra, um conjunto de palavras ou
uma frase) e, por fim, acrescenta-se comentários elaborados a partir dos depoimentos dos
fotografados e da observação, pelo pesquisador, do fotografado e do local em que ele vive.
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Conversa ao pé-do-ouvido
Um pouco mais sobre “Conversa ao pé-do-ouvido”
O morador da zona rural de Sorocaba, fotografado conversando ao celular, tem 58
anos de idade. Ele administra o sítio de 17 alqueires e recebe um salário mínimo por esse
trabalho. Mora lá, há 28 anos. É livre para cultivar. Já fez várias lavouras, mas só teve
prejuízos. Afirmou que “(...) até teve que vender o carro para pagar dívidas. E explica: “a
cana tá chegando...não vejo a hora, assim o dinheiro vem... a terra estraga, mas a gente fica
tranqüilo e recebe. Mas não tem jeito... eu achava que com o Lula ia ser melhor pra
lavoura...”. Ele cria porcos, galinhas e gansos e gado. É casado e a esposa trabalha na
cidade. Os filhos moram em chácaras dos loteamentos vizinhos (há vários loteamentos de
chácaras de recreio nos arredores); cuidam dessas chácaras e trabalham na cidade. Na sua
residência (de alvenaria) há geladeira, fogão a gás, cafeteira, freezer, máquina de lavar
roupa, micro-ondas, rádio, TV, DVD, aparelho de som e máquina de costura. Na porteira
do sítio há uma placa com o anúncio: “Vende-se (sic) leitões”.
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Na fala do fotografado constata-se um certo desdém para com a terra. O celular está
presente e propicia novos modos de relacionamento. Observaram-se, também, modos de
organização diferenciados na sua moradia. Os objetos domésticos convivem ainda numa
espécie de superposição, o que revela resistência e desconfiança aos novos modos de fazer
que os objetos mencionados impõem aos seus usuários.
São resquícios de aspectos do “modo de vida” do caipira tradicional, por exemplo,
um certo desdém para com a terra, uma aparente falta de organização na criação das aves e
do gado, descuido com a moradia e com os arredores da casa, bem como uma disposição
atrapalhada de objetos na cozinha, aparelhos eletrodomésticos estão amontoados entre
outros mais antigos e entre gaiolas com pássaros.
Observando a fotografia, com a expressão: “conversa ao pé-do-ouvido”, pode-se
conjeturar sobre a presença do celular. Ele aproxima as pessoas, os integrantes da família,
como exemplo, na medida em que imperativos econômicos leva-os a se separarem. Aquela
porção de terra não garante o sustento da família. Chácaras de recreio ao longe denunciam
um novo modo de ocupação da zona rural da região. Os pés não estão descalços e o chapéu
de palha foi substituído pelo boné.
4.Considerações finais
Segundo Barthes, a fotografia é necessária para a sociedade e entre suas funções
destacam-se a de informar e fazer significar.
A palavra ou a frase acoplada às fotografias, como se exibiu, busca o punctum, sob
o olhar do fotógrafo. O que importa ao investigador é levar o espectador a permanecer no
instante do real captado, fazê-lo permanecer diante da fotografia a contemplá-la... por mais
alguns instantes!
Considera-se pertinente que as palavras ou as frases se acoplem às fotografias, pois
como “punctum induzido”, enfatizam o “informar”.
O “fazer significar” é dado pelo studium. “Reconhecer o studium é fatalmente
encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-
las, discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (com que tem a ver o studium) é um contrato
feito entre os criadores e os consumidores”. (BARTHES, 1984, p. 48)
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Entende-se que o studium possibilita a contemplação e a emissão de juízos
perceptivos pelo leitor. Em seguida, vem a possibilidade de o leitor dialogar com a provável
intenção do fotógrafo, momento oportuno para a ação do texto.
O texto que segue as fotografias, principalmente se este mantiver uma certa
consonância com a imagem, pode funcionar como um complemento ao “studium”. Não
como possibilidade de somente prolongar a contemplação, mas com a possibilidade de
promover o compartilhamento de repertórios e, deste modo, despertar a vontade de “voltar
a ver”, uma espécie de desejo de verificar em que medida a fotografia é testemunho e,
assim, desencadear pensamentos. Neste aspecto está a possibilidade da imagem na
fotografia ir além do testemunho.
Ao demorar o olhar na fotografia, de momentos de contemplação e de constatação,
passa-se a refletir sobre ela. Perverte-se um signo que predomina como indicial, no sentido
em que remete o usuário ou o leitor a algo que existiu. À medida que a imagem ultrapassa o
caráter de testemunho, por estar acompanhada de palavras, frases ou de um contexto
induzido (constituído pelo depoimento do fotografado e pelas observações do pesquisador),
ela suscita novas interpretações, leituras e mais leituras. Deste modo, a fotografia pode
contribuir para enriquecer análises de dados coletados, por meio de entrevistas ou
formulários. A utilização de técnicas diferenciadas pode colaborar para amenizar as
dificuldades de compreensão de processos comunicacionais, notadamente quando tratam de
trocas culturais, que são processos complexos.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland A Câmara Clara: notas sobre fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães, 7ª reimp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus modos de vida. 5ª ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.JUNQUEIRA, V. H. G. “Imaginário Paulista: Um olhar sobre o caipira do Estado de São Paulo”. In Anuário Unesco/UMESP de Comunicação regional. São Bernardo do Campo: UMESP, Vol. 1, n.1., 1997, p. 79-91.
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