futuro da tecnologia ou tecnologia do futuro? … · para vieira pinto, a técnica é um...
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FUTURO DA TECNOLOGIA OU TECNOLOGIA DO FUTURO? CRÍTICAS DE ÁLVARO VIEIRA PINTO À “FUTUROLOGIA”
RODRIGO FREESE GONZATTO1
LUIZ ERNESTO MERKLE2
Resumo: Neste artigo partimos da compreensão crítica da tecnologia de Álvaro Vieira Pinto
para elencar considerações sobre especulações sobre as tecnologias do futuro, denominadas
como “futurologias”. Para Vieira Pinto, a técnica é um existencial humano, voltada à
possibilidade deste projetar a si mesmo e seus modos de vida, e o debate sobre o futuro ocorre
sempre em função de interesses correntes, historicamente circunstanciados. Entretanto, em
futurologias produzidas recentemente, como os vídeos de “visão do futuro” da Microsoft
Office Labs, temos a tecnologia ingenuamente posicionada como principal resolução de
conflitos sociais, e o futuro, posto interessadamente, como uma continuidade das estruturas
sociais vigentes, que aparentemente serão as mesmas do presente/passado. De um ponto de
vista dos estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), pela obra de Vieira Pinto,
problematizamos esta apresentação da sociedade como passiva, “aguardando” artefatos de um
futuro porvir. Apesar de se apresentar, aparentemente, como especulação descompromissada,
as “futurologias” também podem operar em um viés colonizador dos esforços de projeção que
visam transformações da sociedade. Elas ocultam significados das tecnologias, como o de esta
ser densamente vinculada às realidades em que emergem, e abstraem o papel ativo das
sociedades na construção de seus próprios futuros.
Palavras-chave: Álvaro Vieira Pinto; Tecnologia; Futuro; Futurologia; Ficções projetuais.
APRESENTAÇÃO
A exibição pública de artefatos tecnológicos como uma busca de mostrar a capacidade
de invenção das nações não é um acontecimento recente, tampouco é um aspecto secundário
da compreensão da tecnologia. As “Exposições Universais” são um exemplo. Surgiram em
1851 como feiras para exibição e comércio de produtos industriais, e se instituíram como
representação de uma ideia de “progresso mundial”. Além de produtos, vendiam
[…] a ideia da sociedade industrial, do progresso material como caminho da felicidade, no
qual todos se deveriam congraçar, em harmonia universal […] O que se vendia era — sim
1 Doutorando na linha de Mediações e Culturas do Programa de Pos-Graduacao em Tecnologia
(PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. Professor da Escola de
Arquitetura e Design da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, Brasil. E-mail:
rodrigo@gonzatto.com. 2 Professor Ph.D. no Programa de Pos-Graduacao em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. Professor no Departamento de Informática da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. E-mail: merkle@utfpr.edu.br.
2
— um gênero de vida, uma construção política e ideológica, e visões de uma sociedade
futura idealizada (BARBUY, 1999:40)
Na exposição realizada no Crystal Palace de Londres, em 1851, o sentimento dos
contemporâneos era de que a humanidade atingira uma etapa onde tudo era possível por meio
do progresso técnico. Em virtude da ocasião, um príncipe ressaltou que a humanidade
vivenciava, naquele momento, um período de transformações maravilhosas e que “as criações
da arte e da indústria não eram privilégio de uma nação, mas pertenciam ao mundo inteiro.”
(PESAVENTO, 1997:73) Apesar da promessa de futuro com caráter universalizante, as
criações e ideais expostos nas feiras seguem até hoje indisponíveis para todos.
Na atualidade, a ideia de divulgar a capacidade de desenvolvimento de novas
tecnologias, apesar de ainda partir de regiões consideradas “centrais” — pelas relações de
poder que instituíram e instituem — ocorre não só em nações como a Inglaterra, mas também
em outras áreas geográficas. A partir de meios de comunicação transnacionais, como a
televisão e a internet, a idealização do “progresso tecnológico” se manifesta não apenas pela
exposição concreta de maquinários funcionais, mas também pela exibição de mídias
audiovisuais com narrativas ficcionais sobre as tecnologias que poderiam vir a existir.
Multinacionais de diversos setores, que vão de sistemas de informação e comunicação
até empresas de vidro e cerâmica, tem criado e divulgado vídeos apresentando o que chamam
de “visões do futuro3”. Empresas como Microsoft, Nokia, Corning e TAT, investiram
recursos para criar vídeos, buscando mostrar suas especulações sobre que aparelhos e
máquinas imaginam desenvolver nas próximas décadas. A multinacional Microsoft, por
exemplo, afirma que o objetivo de suas “visões do futuro”4 é:
Dar um passo dentro do futuro e vislumbrar como a tecnologia pode transformar o modo
como vivemos e trabalhamos nos próximos anos. Explorar alguns de nossos conceitos de
como tecnologias de última geração devem ser usadas no mundo real – como saúde,
indústria, atividades bancárias e varejo – nos próximos 5-10 anos.5
3 Tradução nossa para o termo em inglês, “future vision”.
4 De acordo com as informações disponíveis no site da Microsoft Office Labs, disponível em
<www.officelabs.com>. Acesso em 2013. O Office Labs se apresenta como “uma equipe inovadora ajudando
a dar forma ao jeito com que vivemos, trabalhamos, e fazer as coisas dentro e fora do ambiente de trabalho,
procurando por “estrelas” criativas e altamente colaborativas para ajudar a nos levar ao futuro”.
5 Tradução nossa, para descrição disponível em <http://www.officelabs.com/Pages/Envisioning.aspx>. Acesso
em 2013.
3
Enquanto produções audiovisuais, as “visões de futuro” estão próximas da ideia de
vídeo-conceito6, por se tratarem de narrativas ficcionais (sobre um futuro porvir), expressas
por montagens visuais e efeitos especiais que procuram dar um aspecto “realístico” ao vídeo e
às produções tecnológicas que especula – tal como um filme de ficção científica, onde um
mundo diferente é apresentado, mas em um tom mais próximo da literatura do realismo
fantástico, na qual realidade e imaginação se misturam. Entretanto, diferente da ficção
científica, são apresentados cenários cotidianos com pessoas utilizando as “tecnologias do
futuro” em atividades do dia-a-dia. Neste sentido, “visões do futuro” podem ser consideradas
como dissidentes das ficções projetuais7, apesar de se distinguirem por seu acabamento visual
e seu caráter publicitário, funcionando como uma peça audiovisual que, ao atrair interesse
público, trabalha como uma ferramenta de marketing para a empresa que o produz.
“VISÕES DO FUTURO” DA MICROSOFT LABS
O Microsoft Office Labs disponibilizou cinco vídeos de “visão de futuro”, em abril de
2009, cada um abordando um assunto específico: produtividade, saúde, indústria, atividades
bancárias e varejo. Como exemplo de ficção que utiliza a ideia de futuro em suas narrativas,
descrevemos e analisamos o primeiro vídeo8 da série “visões do futuro para 2019”.
A estória contada no vídeo (Figura 1) começa em uma sala de aula, onde crianças de
diferentes culturas, e em diferentes lugares, interagem mediadas por uma parede com uma
interface que simula um vidro transparente. As crianças utilizam essa interface para
transformar desenhos em animações, e tem suas conversas traduzidas em tempo real. Na cena
seguinte temos uma pessoa, passageira em uma viagem de avião. Ela parece ser responsável
por uma das crianças que está na sala de aula, e utiliza uma interface digital para acessar as
mesmas imagens que estavam perante as crianças na escola, assim como informações sobre as
demais aulas e sobre seu próprio voo. Desta cena, segue para um pessoa trabalhando em um
escritório, verificando diversas informações em múltiplas interfaces, do vidro da sua janela
6 Formato de vídeo, no qual são explorados narrativas a partir de cenários baseados em conceitos, geralmente
de base experimental ou especulativa.
7 Ficções projetuais (“Design fictions”, em inglês) são um formato utilizado em narrativas que apresentam
cenários cotidianos sobre o futuro, nos quais a tecnologia possui um papel crucial. (GONZATTO et al, 2013)
8 Denominado “Productivity Future Vision”, o vídeo está disponível para visualização em
<https://www.youtube.com/watch?v=t5X2PxtvMsU>.
4
até as projeções em sua mesa de trabalho. Ele realiza operações e arrasta dados para um
dispositivo móvel. Em seguida, temos o caminho de uma pessoa em um aeroporto: enquanto
ele está em uma esteira, sendo conduzida ao seu destino, utiliza seu celular para conversar e
combinar um encontro. Ao sair da esteira, projeta no chão a indicação do caminho que deve
seguir. Na próxima cena, um grupo se reúne para ver uma apresentação. Voltamos ao
encontro no aeroporto, que conversam sobre os documentos exibidos em uma mesa. Uma
caneca indica se a pessoa está desperta (ou não) baseada na quantidade de café consumida.
Perto do fim do vídeo, em um local diferente, uma pessoa lê um jornal digital, e com o
movimento dos dedos, muda as notícias apresentadas. Uma tela em sua parede exibe
informações sobre o monitoramento do consumo de energia na casa. Ela verifica as tarefas do
dia nesta tela e usa um dispositivo para fotografar uma imagem da tarefa e depois transfere
esta imagem para o jornal que lia anteriormente. Sai do local onde está e, em meio de uma
grande área verde, continua trabalhando. O vídeo finaliza com a pessoa que fez a viagem de
avião, no topo de um prédio, com jardins verdes, neste, e nos prédios vizinhos.
Figura 1: Cenas do vídeo de visão de futuro para a produtividade
da Microsoft Office Labs.
Fonte: Site do Microsoft Office Labs (2013)
5
Este vídeo, com seis minutos, aborda o tema “produtividade”. Inicia sua narrativa com
a questão da educação, mas logo em seguida apresenta situações de trabalho, como
planejamento, reunião, negócios, conversas e distribuição de tarefas. Ao longo das sequências
de efeitos especiais, não fica clara qual a produtividade que estes dispositivos vão oferecer
frente às técnicas já existentes. Os cenários indicam um ambiente de trabalho baseado em
tarefas preparadas anteriormente, e diz pouco sobre necessidades de produção a partir de
situações emergentes. As pessoas aparecem principalmente consumindo dados, e não
produzindo estes. Pela naturalidade com que os personagens utilizam com os dispositivos
fictícios, a narrativa também sugere que as pessoas dominam comandos e interações
complexas, utilizando toque e gestos para controlar interfaces digitais. Entende-se que estes
usos foram aprendidos, mas não deixa claro a produtividade destas novas tecnologias, visto
que seus benefícios não estão explícitos. Que expectativas deve-se ter com um futuro no qual
o ser humano tem que dominar a complexidade de máquinas que já não parecem acessíveis
desde agora, para realizar um trabalho que aparentemente produzem os mesmos resultados?
Ao longo do vídeo, vemos pessoas utilizando ferramentas cujo aspecto visual difere
das ferramentas cotidianas utilizadas hoje. Entretanto, a maioria dos comportamentos e
interações entre pessoas são semelhantes aos que já são encontrados correntemente. No caso
da educação, a relação entre professora e estudantes continua vertical na organização do
espaço de sala de aula. A maior parte das crianças não está interagindo com a interface, mas
sentadas, realizando alguma outra atividade, tornando difícil de compreender o contexto de
aplicação em aula da parede interativa. Nos cenários de trabalho, a ideia de produtividade do
trabalho é posta como atividade daqueles que gerem, classificam e apresentam informações,
por reuniões majoritariamente presenciais, ainda que com eventuais teleconferências.
Entendemos, assim, que as novas tecnologias deste futuro servirão para a manutenção de
paradigmas: educação em sala de aula, trabalho em escritório; divisão de espaço de trabalho
entre equipes e especialistas; esfera da produção separada dos seus espaços de uso e consumo,
etc. A visão de futuro não se propõe imaginar que todo o potencial técnico por vir poderá
servir também para novas formas de trabalho ou educação, tal como uma educação horizontal,
com outras estruturas de ensino-aprendizagem, mais integradas com a sociedade; ou
mudanças nas relações sociais entre trabalhadores, como cooperação entre quem utiliza dados,
mídias e informações, com aqueles que a produzem, por exemplo.
Durante o vídeo, as relações sociais não representam conflitos, e, nos poucos casos
onde poderiam se revelar, as máquinas o contornam. Um exemplo é a cena da sala de aula em
que uma das crianças, ao conversar em inglês com uma criança indiana, fala sobre gatos, e o
6
sistema a alerta que gatos são considerados má sorte na India. As diferenças interculturais são
mediadas por um sistema, como se este fosse neutro no contato entre as crianças, apesar de
também ser um produto cultural, que, está conectado aos valores e ideais visados pelos
interesses de quem produziu o vídeo.
CRÍTICA À “FUTUROLOGIA” POR ÁLVARO VIEIRA PINTO
A missão empresarial que a Microsoft assume para si mesma é a de “Ajudar pessoas,
empresas e parceiros a atingirem todo o seu potencial”, noção complementada pelo seu
slogan: "A gente inova, você transforma". Segundo o site institucional da Microsoft, “a força
da nossa tecnologia e, principalmente, a nossa capacidade de inovar constantemente podem
mudar não apenas os indivíduos, mas a sociedade em que vivemos”9. Não está evidente qual é
exatamente a mudança que esperam realizar nos indivíduos e qual transformação espera deles.
Pelo seu primeiro vídeo de “visão do futuro”, entretanto, entende-se que esperam o uso de
dispositivos diferentes, deixando implícita a intenção de se colocar como produtora da
tecnologia que será o principal vetor da mudança e transformação possível e desejada.
Proposições como estas sugerem a transformação social como resultado de um uso da
tecnologia desvinculado da criação técnica, como se a tecnologia fosse uma força neutra em
relação a sociedade: uma compreensão determinista da tecnologia. O determinismo
tecnológico concebe a tecnologia como força autônoma e descontextualizada da realidade
social e histórica do ser humano, colocando a tecnologia como principal força dominante na
sociedade (SMITH & MARX, 1994). O discurso determinista pressupõe a possibilidade de
previsão do futuro, e apresenta o futuro como uma dimensão dependente de um conjunto
determinado de novas tecnologias a serem disponibilizadas. Esta abordagem retira da noção
de tecnologia o seu vínculo à existência do ser humano, abrindo espaço para que se projetam
visões fantásticas do futuro, baseadas em uma concepção de técnica substancializada e um ser
humano desligado do seu contexto social.
Álvaro Vieira Pinto (2005) critica esta compreensão da tecnologia, declarando-a
ingênua. Para o filósofo, a técnica deve ser entendida como existencial de todo ser humano, e
definida como o meio que o ser humano encontra para solucionar as contradições com que se
9 Texto completo disponível em <http://www.microsoft.com/about/pt/br/default.aspx>.
7
defronta, uma mediação na obtenção de finalidades humanas. As tecnologias são construções
sócio-históricas, e se desenvolvem em uma relação dialética com as sociedades que as criam e
utilizam. Deste modo, a tecnologia se forma em função da cultura da humanidade de cada
tempo, engendrando a sucessora no movimento da solução das contradições objetivas
enfrentadas pelo ser humano.
Vieira Pinto pontua severas críticas às especulações ingênuas sobre o futuro,
denominadas pelo autor como “futurologias”, por tentarem “relacionar a técnica,
erroneamente substantivada, com o homem, também desligado do contexto social” (VIEIRA
PINTO, 2005 [I]:50). O filósofo indica que futurologias não são geradas em um vácuo social:
estão conectada com intenções, ideias, expectativas e ideologias. Suas narrativas estão
condicionadas às possibilidades de projeção das pessoas, e das possibilidades de
materialização destas pelos meios (conceituais e ferramentais) disponíveis no seu tempo.
A condição, própria da consciência, de estar centralizada no presente, mas ter por essência
do seu modo de ser o expandir-se, o projetar-se na reminiscência do passado e na predição
do futuro, obriga toda futurologia a assumir necessariamente o caráter de ideologia social.
(VIEIRA PINTO, 2005 [II]:90)
Futurologias, apesar de discursarem sobre um cenário futurístico, se apresentam
concretamente — como vídeo, texto, foto, site, etc. — no tempo presente, refletindo e
refratando valores e ideologias (GONZATTO et al, 2013). As tecnologias apresentados pela
Microsoft, em seu vídeo sobre produtividade, não eram passíveis de serem postas em
funcionamento, mas a criação da produção audiovisual foi possível, e para tal foram utilizadas
as tecnologias do presente. Entretanto, apesar de seus belos cenários e interfaces, em suas
preocupações com o futuro não se especulam transformação de questões, urgentes hoje, como
a miséria, a distribuição de renda, as condições de vida e as transformações das relações
étnico-raciais, de gênero ou de classe, entre outras. Afinal, para quem se destinam estas visões
de futuro? Assim como a tecnologia “de ponta” atual está disponível como privilégio de
pequenos grupos, como esperar que a tecnologia do “futuro” esteja ao alcance de todos?
Todo projeto sobre o futuro é feito em seu tempo, a partir deste, e sua intervenção se
dá no próprio tempo corrente. Tal como o que é hoje proposto como futuro, futuramente será
um dado sobre o passado. As imaginativas promessas de futuro que hoje compõe a história
das ficções do passado, como o próprio vídeo citado anteriormente (criado em 2009 sobre o
ano de 2019), se tornam, com o passar dos anos, um dado sobre como uma empresa buscou
influenciar o imaginário de seu tempo:
8
Nada parecerá sem dúvida mais ridículo aos olhos dos homens ainda por nascer do que as
"ousadas" alucinações escritas e filmadas hoje a propósito daquele tempo. Serão
seguramente incorporadas à literatura utópica, como fazemos agora com obras de
visionários do passado. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:695-696)
Vieira Pinto questiona as propostas futurológicas que discursam sobre um futuro
distante, sem fornecerem elementos que possam ser reconhecidos na condição presente, de
modo que estas futurologias "não podem ser refutadas pelo mesmo motivo pelo qual também
não podem ser confirmadas" (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:86). Em outros casos, incluem o
futuro no exame de problemas atuais, ato de quem "procede como se já estivesse situado no
instante futuro, o conhecesse perfeitamente, numa estranha inversão imaginativa, porque em
vez de falar do presente para o futuro, faz o oposto, fala do tempo vindouro para o dia de
hoje." (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:86) Vieira Pinto preocupa-se com estas estratégias pois:
O futuro perde então o caráter dialético existencial que efetivamente tem, no sentido de ser
intervalo de tempo dado ao homem para viver, no exercício da capacidade criadora
impossível de prever-se senão em traços gerais desde já, para se converter no eco do
presente, no estribilho da atualidade. Com isso fica assegurada a solidez da presente
dominação, e ainda dissipam-se os temores de vir algum dia a desmoronar. (VIEIRA
PINTO, 2005 [II]:684-685)
Uma das abordagens centrais do pensamento sobre tecnologia de Vieira Pinto é a
relação entre centro (desenvolvido) e periferia (subdesenvolvida). O centro, por dominar
econômica e culturalmente a periferia, captura para si apenas um dos significados de
tecnologia e ideologicamente o proclama como universal, reservando à realidade
subdesenvolvida da periferia a condição de "receptora" das inovações técnicas. Tornando
evidente a desigualdade da divisão internacional do trabalho, Vieira Pinto alerta para a
utilização de futurologias como um modo do centro dominante tentar imobilizar o
pensamento para si dos países subdesenvolvidos:
Compreende-se assim que o trabalho dos "futurólogos" comprometidos com a dominação
dos países hegemônicos resume-se na verdade em prever um futuro que não se diferencie
qualitativamente do presente. […] Tudo quanto almejam reduz-se a fazer deslizar pelo
caminho da história um presente imóvel, o atual, aquele que lhes interessa seja preservado.
Percebe-se portanto que a suposta "futurologia" desses prestidigitadores da tecnologia
econômica constitui na verdade uma 'passadologia'. Com efeito o que realmente querem é
que o futuro seja o atual presente este que naquela ocasião vindoura será de fato o passado.
(VIEIRA PINTO, 2005 [II]:93)
As futurologias, muitas vezes, se configuram como recurso para conservação da
esperança por um futuro que, graças a tecnologia das nações desenvolvidas, promete ser farto,
bem resolvido e sem conflitos. Fazem crer, também, que todas as pessoas participarão por
9
igual desta “Idade de Ouro”, por vir. Esta manobra é denunciada por Vieira Pinto como uma
forma de evitar o exame da origem dos infortúnios presentes. Propõe ao ser humano
[…] viver na imaginação uma idade vindoura feliz, como se nela se encontrasse e desde
agora soubesse o que vai ser. Na verdade, pretendem que o homem, o trabalhador de hoje,
não se inquiete com as injustiças atuais, porquanto foi convencido de que os defeitos do
mundo presente resultam de imperfeições tecnológicas ainda não corrigidas pela ação da
inteligência. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:689)
Nestas futurologias temos a promessa de que um futuro melhor está sendo preparado,
bastando — enquanto os demais esperam — permitir liberdade de ação a aqueles que
divulgam o “futuro”. Essa domesticação do futuro se dá pela domesticação do presente, pois o
presente é a realidade que interessa aqueles que desejam impor um futuro:
Fazendo crer que a tecnologia fornece o instrumento da revolução pacífica do
desenvolvimento, e ao mesmo tempo insinuando aos povos marginais a impossibilidade de
engendrarem a técnica em quantidade e qualidade requeridas, os ideólogos do mundo alto
convencem as populações atrasadas da prática inviabilidade de saírem por si mesmas da
miserável condição onde vegetam. Chamamos a isso o falso e interesseiro emprego do
conceito de tecnologia, convertido em elixir de bruxas, destinado a adormecer a
consciência da nação dependente exercendo uma influência entorpecente. Segundo essa
presunção, a distância que separa os povos desenvolvidos dos subdesenvolvidos já se
mostra definitivamente infranqueável, tendendo a aumentar continuamente. (VIEIRA
PINTO, 2005 [II]:683)
Tende-se assim a ocultar ou desqualificar a tradição técnica que as nações
subdesenvolvidas já possuem. Para Vieira Pinto, estas não devem renunciar ao
desenvolvimento para si de suas tecnologias, apesar do discurso futurológico hegemônico.
Nesta direção, o filósofo não exclui a possibilidade de uma futurologia legítima, mas
recomenda que esta reconheça a possibilidade de surgimento do novo, do inesperado e do
imprevisível, ou seja, do que irá resultar nas transformações ainda a ocorrer na história.
Também é fundamental a indicação do que se acha em via de desaparecer, aspecto que
condiciona a possibilidade do novo, tendo que a projeção do futuro só pode ser feita a partir
das técnicas e das expressões que são agora dotadas de sentido para nós, pois toda
“futurologia” se mantém no “cone de projeção imaginativa que nos é lícito conceber no
momento atual.” (VIEIRA PINTO, 2005 [I]:48)
Para ser válida, uma futurologia deve considerar como legítimas as mudanças do
modo de produção em vigor na sociedade, ao assumir que não se sabe precisamente no que irá
consistir o futuro da tecnologia. Tendo que o futuro é uma amostra da capacidade da
sociedade em criar a humanidade do futuro, deve-se atentar que o ato de descrever as futuras
criações técnicas se trata de projetar futuros modos de existência humana. Neste sentido,
vídeos de visões do futuro como os apresentados pela Microsoft se limitam na especulações
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de mudanças de ações técnicas apenas em um um nível operacional. A relação entre ser
humano e tecnologia é resumida a uma sequência de operações sendo aplicadas: tocar,
apertar, arrastar – mas pouco ou nada é apontado no que diz respeito a resolução de
contradições sociais e das relações humanas, e menos ainda do impacto dessas propostas
tecnológicas para a superação da condição de subdesenvolvimento da periferia do mundo.
Uma outra futurologia possível, útil às regiões periféricas, seria a que permite
vislumbrar um futuro diferente do presente, visando a transformação da sua condição de
subdesenvolvimento. Para tal, a perspectiva de futuro deve ser a de transformações sociais e
da realização de criações do pensamento conectadas a novas formas de organização da
sociedade e das mediações tecnológicas. Como pontua Álvaro Vieira Pinto, em última
instância, o ser humano não está interessado em saber com que máquinas irá conviver, mas
com que pessoas. A esperança não é de um futuro com melhores máquinas, mas com
melhores seres humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As “visões do futuro”, como as divulgadas pela Microsoft, são produções audiovisuais
com finalidade de publicidade e marketing que buscam apresentar a capacidade inventiva
desta organização. Utilizam os meios de comunicação – e em especial, a internet – como um
espaço no qual empresas disputam da capacidade de se projetar um futuro impressionante
para seus públicos. São buscados, vistos e divulgados por milhares de pessoas, que procuram
entender o que imaginam para o futuro aqueles que já produzem artefatos centrais da
tecnologia do presente.
Entretanto, a partir da crítica de Álvaro Vieira Pinto, podemos considerar estas “visões
do futuro” como “futurologias”, proposições de cenários futuros que não se confundem com
especulações ingênuas e descompromissadas. As visões de futuro, assim, concentram-se em
apontar apenas a realização técnica mecanicista, evitando atenção sobre as inevitáveis
transformações sociais que hão de vir. Pressupondo que o futuro se passará dentro das
estruturas vigentes, projetam no futuro o seu atual conceito de tecnologia. Não são esperadas
mudanças substanciais no status dos grupos dirigentes (ao qual estas próprias organizações
fazem parte ou estão próximas) tampouco os acontecimentos que irão marcar os rumos do
futuro e alterar o quadro da “era tecnológica” que agora é prevista.
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Vieira Pinto (2005 [II]:692) compreende o futuro como aquilo que há de vir, o
intervalo de tempo dado ao ser humano para viver. O futuro é a possibilidade oferecida ao ser
humano de alcançar uma realização diferente, é a dimensão do tempo sentido por nós como
condição da concretização de sua possibilidade de uma realização superior do seu ser. Neste
sentido, o ser humano é o único ser vivo que busca marcha na direção do futuro. O ser
humano projeta-se: caminha em direção a aquilo que ele mesmo há de ser e, é o objeto de sua
própria busca. Segundo o autor, o conceito de projeto é fundamental para a compreensão do
futuro, pois neste conceito unificam-se os aspectos subjetivos da práxis humana enquanto
ideia concebida pela inteligência, já que “consiste na precipitação da consciência para as
épocas distantes no tempo a desenrolar-se à sua frente” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:697).
Entretanto, a capacidade humana de projeção dos fatos históricos é limitada. É
impossível fixar limites ou datas para projeções do futuro (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:696)
pela dificuldade de alcançar objetivamente as relações causais daquilo que está para ser em
uma realidade que ainda não se apresenta. Não há segurança para a previsão do futuro,
tampouco ele é resultado da simples invenção. Vieira Pinto comenta ser impossível “fixar
prazos para a concretização de um projeto ou anunciar os meios materiais de levá-lo a cabo,
pela simples razão de que se dispuséssemos de tais elementos não estaríamos nos referindo ao
futuro mas ao presente”. (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:697) Da mesma maneira, o ser humano
apenas entende por futuro o que lhe interessa no presente.
Tomar um determinado futuro como uma certeza trata-se de uma uma projeção
determinista e linear. Segundo Vieira Pinto, o futuro só adquire significação inteligível
enquanto condição existencial. Este ponto é singular em seu pensamento, cuja filosofia coloca
a realidade como ponto de partida da aquisição de conhecimento. Portanto, o futuro “não pode
consistir no desenrolar dos acontecimentos físicos da natureza, que sabemos só possuírem
história na perspectiva da inteligência humana” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:693). Negar a
visão determinista da tecnologia, assim, é combater uma visão limitada que impõe tecnologia
e futuro como autoridades sobre o ser humano (LIMA FILHO e QUELUZ, 2005).
Embora o projetar seja uma atividade existencial de todo ser humano, a descrição
autêntica do futuro da tecnologia não deve ser realizada de qualquer maneira. Vieira Pinto
alerta para os chamados “especialistas” em futurologias, que quando são incapazes de
analisar, explorar e conceitualizar a totalidade, concebem ingenuamente o futuro tendo por
base um conceito alienante de tecnologia. Não por acaso, é justamente ao esclarecimento da
questão da técnica que Vieira Pinto (2005) dedica sua obra “O Conceito de Tecnologia”. O
autor identifica que, para desmascarar a manobra conceitual alienante, em especial no que
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toca as relações centro e periferia, deve-se “mostrar não serem legítimos os habituais
conceitos de tecnologia proclamado pelos especialistas ingênuos a soldo dos interesses
metropolitanos” (VIEIRA PINTO, 2005 [II]:684).
Para Vieira Pinto, a pergunta pelo “futuro da tecnologia” é uma noção abstrata, visto
que, pois é certo que a tecnologia existiu, existe e existirá. A tecnologia é um fato social, um
existencial do ser humano, e enquanto este se perguntar sobre o mundo, haverá um futuro com
tecnologia. Já a “tecnologia do futuro”, é uma construção sociocultural, que parte da
acumulação dos conhecimentos e técnicas atuais, ou seja, é um prolongamento do passado,
através do presente, para um projeto humano que se pende para o futuro. Por não considerar
as transformações que virão a perturbar o estado existente, a “futurologia” ingênua adota a
estratégia de negar o futuro, tirando seu caráter ameaçador de incógnita e domesticando-o
antecipadamente em detalhes visando apresentá-lo segundo convém a quem o imagina. Uma
“futurologia” autêntica só começa a ser válida com visão história, legitimando as mudanças
do modo de produção em vigor na sociedade.
REFERÊNCIAS
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sociedade industrial. São Paulo: Loyola / História Social USP, 1999.
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GONZATTO, Rodrigo F; AMSTEL, Frederick M. C. van ; MERKLE, Luiz E ;
HARTMANN, Timo . The ideology of the future in design fictions. In. Digital Creativity
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século XIX. São Paulo: HUCITEC, 1997.
SMITH, Merrt Roe; MARX, Leo. Does Technology Drive History? The Dilemma of
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