gilvan fogel - valor e verdade
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8/13/2019 Gilvan Fogel - Valor e Verdade
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VALOR E VERDADE
Gilvan Fogel
Universidade Federal do Rio de Janeiro
I
1.Deixando de lado o rigor das datas ou a preciso do calendrio historiogrfico,
mais ou menos a partir da segunda metade do sculo dezenove, entrando pelo vinte adentro
e afora, valor passa a frequentar a histria da filosofia e a nos solicitar a toda hora. H at
quem faa remontar a noo de valor a Plato idaseria valor. Comea, ento, a surgir
uma axiologia, uma teoria ou filosofia dos valores, em certos meios, tambm denominada
estimativa, em cujo horizonte ser, ser verdadeiro,dizem, de modo geral, passa a ser equiparado
a valor. Equiparado, equi-valente, isto , passa a corresponder a valor ou valerigual a valor!
Ainda de modo geral,grosso modo, as diversas teorias ou concepes de valor (Lotze,
Brentano, Meinong, Rickert, tambm N. Hartman e mesmo a fenomenologia de M.
Scheler) crescem e se fazem sob o fundo, explcito ou no, da metafsica moderna da
subjetividade ou da autonomia da conscincia. Assim sendo, explicitamente ou no, taisteorias ou tais concepes de valor trazem tona esta fundao, a saber, a subjetividade
autnoma, e ento, por esta via, tais teorias de valor assumem perfis subjetivistas
(transcendentais ou no), psicologicistas, antropocntricos ou antropomrficos.
Caricaturando: de um lado, do lado de c, tem-se o sujeito que valoriza, ou seja, o valor; do
outro lado, do lado de l, a coisa, o objeto valorizado, o real, ao qual o valor adere, isto , se
cola, se acrescenta, se soma. Da vem, vir o direito de se falar, por um lado, dejuzo de valor
e, por outro, dejuzo de existnciaou de realidade. Ou seja, valor , seria coisacriada, posta
e proposta pelo homem, pela subjetividade humana, ou alguma outra entidade, natural ou
supranatural (a cultura, p.ex.), que ento anexada s coisas, ao real, o qual visto,
subentendido como um algo em si, objetivo, como uma objetividade ou uma coisidade
paralela autonomia do sujeito. Ou seria o contrrio, quer dizer, teriam os valores uma
realidade (um valor!) em si e as coisas, isso que se chama, s vezes, ser das coisas, do real, se
fundaria nestes valores em si?! O fato que, de qualquer modo, continuaria a
predominao de dois planos, de dois estratos o do valor ou valores e o da coisa, das
coisas ou do real, da realidade em si, objetiva. Tudo se faria, se daria como uma relao
binria ou biunvoca entre real, coisa, objeto e (+) valor. Em ltima instncia, prevalece,
prevaleceria sempre a pr-compreenso que hoje, a toda hora, nos instilada, no grito ou
no sussurro, pela boca de nossos empresrios, homens de negcio, de propaganda, de venda
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e de marketing, que, quando querem nos enfiar alguma bugiganga goela abaixo, nos falam
doce e candidamente de valor agregado. Isso a pedra de toque do tempo e da hora, com a
qual se quer dourar toda plula, tornar palatvel toda e qualquer pedra ou osso indigesto.
Valor , seria coisa agregada, isto , somada, acrescentada s coisas, ao real. Anexada, aderida
um encosto!? De modo geral, habitualmente, com pequenas nuances, variaes e sutilezaslgico-dialticas ou intelectuais enfim, habitualmente entende-se e subentende-se valor
de acordo com o esquema acima caricaturado. Bem, mas encosto coisa para se tirar...Oxe!
Sarav!!
2. Neste contexto de segunda metade do sculo dezenove, considerando porm a
ndole de seu pensamento como um todo, principalmente em relao prpria poca
moderna, cartesio-kantiana, querer-se-, agora e aqui, destacar o pensamento de Nietzsche
e, a partir dele, esboar uma compreenso de valor, isto , de realidade, toda e qualquer, apartir de valor. Melhor: como valor. Dito de maneira contundente e paradoxal: coisa, real,
toda ou todo e qualquer, valor. Dito de um modo mais consequente: coisa, real, todo e
qualquer, no , mas vale. assim que Nietzsche, de modo claro, direto e incisivo, formula
sua compreenso: ... o isso vale propriamente o isso , o nico isso 1.
A formulao de Nietzsche , sim, contundente, porm nada clara. Mas justamente
esta formulao ser nosso ponto de partida e precisamos esclarecer a compreenso, antes,
a pr-compreenso ou, melhor ainda, a sub-posio contida nesta afirmao. Para comear,
perguntemos: o que valor? Comose determina e se caracteriza valor? Claro, perguntandoo que valor? parece que ns mais nos desorientamos da questo do que propriamente
para ela nos voltamos, pois valor no , mas vale, quer dizer, ao se dizer vale, est-se a dizer
que no se trata de um que apontaria para um algoobjetivo, dado, maneira de uma
ocorrncia do mundo externo, fctico (ou seria interno, subjetivo, de constituio subjetivo-
transcendental, mas no axiolgica?!). No entanto, assim perguntando (a saber, o que
valor?), que, inicialmente, tomaremos nosso rumo, pois, afinal, este (ser) nos guia e nos
determina por toda parte, a toda hora, em tudo que somos e fazemos.
Diz-se, por exemplo: um homem de valor; uma ao de valor; um poltico (!), ou umcientista, ou um soldado de valor; uma obra (de arte) de valor. No caso da arte (do
poltico?!), de imediato, tende-se at a se pensar na bolsa, no leilo de arte de Londres, e se
entende sob valor o preo da obra, que seria como o preo/valor de uma mercadoria
qualquer e coincide com o que o comrcio chama valor (ou poder)de troca. Mas quando
digo um homem, um poltico (sejamos homens de boa vontade!), um cientista, um soldado,
uma ao ou uma obra de valor, em geral, de imediato, no se pensa em preo, em valor
1Cf. Nietzsche, F., KGW VIII-1, 2[150], p. 138 ouA Vontade de Poder, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008,
nr. 556, p. 291, trad. Marcos Sinsio Pereira Fernandes/Francisco Jos Dias de Moraes.
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(ou poder)comercial de troca. Em questo est algo como honradez, importncia, mestria,
talento, dignidade, valentia, coragem, excelncia.
Se formos exigidos, desafiados a esclarecer, em cada caso referido, o que se entende
sob valor ou sob o fundo de todas as conotaes mencionadas, ver-se- que valor, em cada
caso, quer dizer algo como fora, uma fora. Um homem (um poltico, um cientista, uma
ao, uma obra) de valor, isto , dotado(?! ento mesmo encosto!?) de umaforaou de um
podertal que o faz ser, quer dizer, aparecer e mostrar-se, como tal homem (poltico, cientista,
ao, obra) que . O valor, isto , a fora, o poder, o destaca, o evidencia, o singulariza, no
sentido que o mostra, o revela ou o faz aparecer e ser tal como , tal como se mostra ou
aparece. Valor se determina como fora, como poder de mostrao, de revelao, quer
dizer, de revelar, de mostrar e, assim, fazer ser e aparecer o que e h tal comoh e . Isso
vale.
3. Valor fora. Valor vale(!) fora. Co-responde? Equi-vale? Valor , seria algo, uma
medida, que se atribui, ou seja, que se acrescenta s coisas? No. Valor fora e coisa, toda
e qualquer, no coisa, mas fora. Formulado de outro jeito: coisa (real), toda e qualquer,
(aparece como tal) medida que fora fazendo-se, tornando-se fora, quer dizer,
valorando-secomo estafora que faz ser isso que tal como . Coisa, toda e qualquer, o
irromper e assim o pr-se e impor-se de fora-valor ou de valor-fora se fazendo, se
realizando, se concretizando. Mas como isso propriamente? E: o que fora?
Para se esclarecer esta formulao meio hermtica e para se evidenciar o alcance e a
intensidade da fala o isso vale o autntico, o real, o nico isso para tanto, preciso
colocar-se a velha pergunta que orienta, que pontua toda a filosofia, toda a metafsica
ocidental-europia, a saber, o que o real? T t n? Aqui est a coisa Hic Rohdus hic
salta!
Tomando Nietzsche como nosso ponto de partida e como nosso fio condutor,
preciso dizer: a realidade primordial, i-mediata, vida. Realidade primordial, imediata, quer
dizer: a realidade que, primeira e i-mediatamente (sem mediao, sem intermediao), se
realiza em todo e qualquer possvel realizao de realidade, em todo e qualquer movimentode alterao e de transformao de todo real (coisa) tal realidade vida. Vida, assim,
relendo um dito de Herclito, o mesmo que se altera ou se diferencia no jogo de toda
multiplicidade, de tudo quanto h e . Vida o mesmo, mas de outrojeito, de outra maneira,
no jogo do devir, im Spiel des Werdens, diz Nietzsche.
Assim, vida o jogo (isto , repetio ou retomada na diferenciao, na alterao)
de superficializao (aparecer) e concretizao-diferenciao do devir, da multiplicidade,
enfim, como se disse, de tudo quanto h e . Mas e vida o que isso? Pelo que se disse,
ento, vida , seria valor? Um supervalor, o valor dos valores, a fora das foras? Vida,tomada em si e por si, no valor algum, no vale nada, mas ela, no entanto, s se mostra,
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s se concretiza ou se realiza spodemostrar-se, aparecer, concretizar-se ou realizar-se
desde e comovalor, isto , desde e como fora ou poder. Um breve esclarecimento, como
limpeza de terreno e como balizamento, definio de rumo: vida, da qual aqui se fala, no
nada que se identifique sob o olhar acurado de um microscpio eletrnico e que se
quantifique e se antecipe matematicamente (numericamente, em dgito) em algum modernolaboratrio de biotecnologia. Vida, aqui, no nada biolgico, mas um fenmeno, um
acontecimento muito mais simples, primrio, elementar e que o fundo, o ponto de
partida ou o pr-suposto de toda e qualquer pesquisa biolgica, de toda e qualquer moderna
investigao biotecnolgica: o fenmeno, o acontecimento elementar do irromper,
aparecer, fazer-se luz, tornar-se visvel. Este, sim, o dado primrio, i-mediato, elementar.
Este acontecimento inaugural, fundador, arcaico (arch), sbito, imediato, isto
, sem mediao ou intermediao. Salto. Ursprung, arch, origem como o arqui-salto,
o proto-salto (Ur-sprung). To s salto. Pura e simplesmente: salto.
Porque e d-se como salto, quem est na determinao e no sentido (envio) deste
salto, deste acontecimento o homem e s o homem , ao dar-se conta j est, j se
v sempre dentro, isto , sempre j nae sob a determinao deste salto, deste acontecimento.
E isso, a saber, esta situao de sempre j dentroou de insero isso que pretende dizer
e mostrar crculo, comeo (arch) circular. O termo, a expresso crculo, pois, a tentativa
de espessar,de imagificar, ou seja, de tornar denso, espesso e imagem, algo, um acontecimento,
a saber, o sbito e o ab-rupto de vida como comeo, que, na verdade, no tem e no
imagem alguma, nada palpvel, coisa alguma, algo nenhum. Mas s e to s um
acontecimento que um modo de ser, omodo de ser do homem, do vivente por excelncia,
a saber, vidaaparecendo e dando-se ou mostrando-se como tal. E, por isso ainda, ou seja,
por ser sbito, imediato, da constituio de crculo ou de insero por isso,
igualmente pthos, afeto ou afeco. pthos,afeto, pois por tal acontecimento, o homem,
que por excelncia o vivente afetvel, tocvel enfim, por tal acontecer ou dar-se, o
homemj est sempretocado ou tomado. Esta estrutura, esta forma (=gnese ontolgica),
define vida, psych, que, na sua irrupo ou no seu fazer-se visvel como tal, revela-se como o
dar-se ou o mostrar-se do movimento que, desde si mesmo (salto, sbito, imediato, crculo,
insero, afeto), move a si mesmo. Um automvel...!
E a isso, a este acontecimento, estrutura ou forma (=gnese ontolgica), Nietzsche,
em certa hora de sua reflexo, denominou vontade de poder, vontade para (zur) o poder.
E: por que vontade de poder? Como, por que vontade? E poder por que, como?
Entendamos vontade como a espontaneidade, a disposio ou a pr-disposio
espontnea, isto , gratuita, desde ou a partir de nada, de coisa ou de algo algum e, portanto,
tambm sem nenhuma inteno, sem nenhum propsito enfim, vontade como o
movimento espontneo para (zur, zu der) o aparecer, mostrar-se, fazer-se luz ou
iluminar-se. Dizemos, traduzimos: vontade de poder. Pode-se dizer: do poder. Nietzscheescreve: Wille zur Macht. Este zur (zu der) diz: para, em direo a. Portanto, para, em
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direo a o poder. Poder?! Como? O que ? Poder o prprio e o s aparecer, vir luz,
mostrar-se ou fazer-se visvel e, assim, como tal, pr-se, impor-se, imperar. Em puro, gratuito
transbordamento, superabundncia. O movimento que a vida quer (tende, propende
gratuita ou espontaneamente para) isso, quer dizer,gosta (mgt, de mgen, querer, amar,
gostar) disso e da vem, provem Macht, poder. Macht, poder, a cumulao, a per-feiode mgen, de amar, gostar, querer, enquanto, no caso, movimento para aparecer, para a
luz. Isso aparece na nossa fala cotidiana, descuidada e desavisada, quando para dizer eu
gosto de voc, eute amo, se diz eu te quero. Tambm em alemo: Ich mge Dich.
Aqui impe-se uma observao importante: o homem no o autor, a causa, o
sujeito ou o donodeste movimento (desta vontade, da vida), mas a instncia, quer dizer,
como que o lugar e a hora, em que ela (a vontade, a vida), como tal, aparece, se d, faz-se.
Tal acontecimento ou evento vem sobreo homem, portanto, lhe sobre-vem. E isso muito
oportunamente, num feliz acaso, pois sobre o homem ele (o acontecimento, a vontade, avida) podevir, sobrevir, e tom-lo e dele apoderar-se, pois ele, o homem, o modo de ser
que o apodervel, isto , o tocvel, o tomvel, o afetvel e, ento, pode ser e estar na
necessidade de um tal evento, de um tal acontecimento, a saber, a vida. Foi dito: pode ser e
estar na necessidade, isto , na determinao deste acontecimento, destefatum. Este pode,
esta possibilidade, se refere a uma dimenso ontolgica, vital -existencial do homem, da vida
humana, e, ento, uma necessidade, constitui-se numa necessidade. No homem, na vida
humana, tudo que possibilidade ontolgica, vital-existencial necessidade, faz-se como
necessidade. Aqui no se trata de lgica e de contingncia lgica pode ser ou no! No.
Aqui, realidade no est acima de possibilidade. Aqui, possibilidade necessidade,incontornvel necessidade.
Antes e fora disso, deste aparecer e impor-se como tal, no h, no pode haver nada
isto , nenhum acontecimento, nenhum outro propsito, inteno, sentido, fim ou
finalidade. falsa, inoportuna a fala de antese fora, pois, no caso, no h antes, no h
fora.Tudo, todo real possvel, j , j se d ou acontece desde, a partir deste fato oufatum
e, por isso, assim, j sempre dentro entenda-se, j no mbito, na circunscrio de
crculo, quer dizer, de salto, insero, pthosou afeto, que abre, instaura ofatum homem-
real. a partir de tal acontecimento ab-rupto, s a partir dele que se falar, que se poderfalar de dentro e fora, de antes e depois. Este proto-fato ou arqui-acontecimento, a vida,
denominado vontade de poder, aparecer e saparecer, vir luz desde nada, para
nada. Pura doao, gratuidade. O puro,de pura doao, dizgratuito, ou seja, sem porqu e
sem para qu.Sem causa (autor), sem fim (finalidade). Aqui no entra nem arqueologia e
nem teleologia.
guisa de rpida observao, diga-se que h umaou algumavontade, um certo tipo
ou modo de vida ser e se fazer, j mediada ou intermediada pelo homem, desde certas
idiossincrasias humanas, demasiado humanas, que precisadominar, que precisasubmeter
ou subjugar. Este tipo, este modo de ser quer domnio, dominao, subjugao paragozar
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de seu poder (algo narcsico e onanstico) e assim assegurar-se, auto-assegurar-se de sua
prpria vontade, de sua prpria fora, de seu prprio poder. Mas este tipo de vontade, de
vida, vontade fraca, servil, escrava. a vontade rebelada, marcada, pois, por revolta,
ressentimento e vingana o esprito de vingana. No entanto, a vontade, a vida, que
forte, que nobre que superabundncia, satisfao e suficincia de si mesma para simesma esta pura irrupo, puro aparecer e expor-se para, no mesmo ato ou instante,
perder-se, largar-se, abandonar-se, esquecer-se, deixar de ser (abrir mo, despedir-se, morrer
cf. Zaratustra, I, Da morte livre), para, assim e ento, poder voltar a ser ou aparecer em
transbordamento, em doao e fartura. Re-ser.
Aqui e agora, porm, no tempo, no hora, para se esclarecer esta dinmica de
vida, de vontade, a saber, por um lado, a escrava, a servil e, por outro, a nobre, a
aristocrtica, a excelente.
Referimo-nos, acima, vida, vontade de poder, como o acontecimento sbito,imediato irrompido, eclodido em salto, como salto e, por isso, sempre j como crculo,
circularidade e pthos, afeco. Agora, inventariamos rapidamente alguns testemunhos de
Nietzsche, busca, por sua parte, de formulao desta viso, desta intuio, melhor, desta
experinciade origem, de fundamento de origem, que no e no tem comeo; de
fundamento sem fundo, a-byssal. Referindo-se vida como vontade de poder e buscando
melhor formular este proto-acontecimento ou este acontecimento arcaico, Nietzsche fala
de vontade de poder como o ltimo Fatumao qual descemos, recuamos ou retrocedemos
(...das letzte Fatum zu dem wir hinunterkommmen)2. O ltimo Fatum, isto , o
primeiro, o primordial, no sentido de arcaico, de elementarou originrio (i., sem data, sem
ordenamento cronolgico ou cronomtrico, para trs ou para frente). Primeiro ou
fundador, no sentido da condio (incondicionada, pois salto, imediatidade) a partir da
qual qualquer enumerao ou ordenamento se faz possvel. E fatum, isto ,feito, efetuado,
realizado (por nada, nenhum, ningum), uma vez que irrompido em salto e, assim, como j
visto e dito, se pondo e se impondocomo o que irremediavelmente se d, faz-se, acontece. Por
isso ainda, Nietzsche refere-se a este acontecimento, a este fatum, como das Urgesetzt3,
isto , a lei arcaica, originria, fundadora. Mas lei, em alemo Gesetzt, soa como o posto
(particpio passado de setzen, pr, colocar), ento o postoou dado i-mediato, de cara (Ur-).
Ainda em uma anotao do comeo do ano de 1888, Nietzsche escreve: A vontade de
poder (i., a vida) no um ser, no um devir ou um vir a ser, mas um pthos o fato
(Tatsache) mais elementar, a partir do qual d -se um devir, um atuar ou fazer-se4.
Vida, vontade de poder, caracteriza-se como um pthos, isto , como um afeto ou
uma afeco e, por isso,graas a isso, d-se como o fato, o acontecimento mais elementar.
preciso entender, preciso ouvir em pthos (afeto, afeco) experincia, a qual abre,
2
Cf. Nietzsche, F., KGW, VII-3, 40[61], p. 393.3Cf. Nietzsche, F., KGW V-2, 11[157] p. 400.4Cf. Nietzsche, F., KGW, VIII-3, 14[79], p. 51 ouA Vontade de poder,op. Cit.,nr. 635, p. 325.
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inaugura um movimento e sustenta-o medida que o acompanhaao longo de, atravessando-
o, perpassando-o e, assim, de algum modo, movendo-o e promovendo-o. Assim, experincia
(pthos) abre, inaugura uma viagem isso que diz o alemo Erfahrung (de fahren,
que viajar). O nome desta viagem(movimento, ao, atividade de pthos) , ser histria
a vida, a fora (essncia, gnese) do real. Nisso, a saber, abertura de um movimento einaugurao de uma viagem, que se faz histria, est propriamente a experincia de
experincia contida em Erfahrung.
E isso, tal experincia ou pthos, constitui-se no fato, no acontecimento mais
elementar die elementarste Tatsache. Este mais elementarse refere ao fato deste
fato (!) ser, dar-se i-mediatamente, subitamente, ab-bruptamente e, ento, enquanto e como
arch, origem, o mais elementar uma vez que, assim e por isso, ele, em sendo o
primeiro, o primrio e o inaugural, constitui-se no elemento, isto , no medium (crculo,
insero),que , que
j sempreo lugar e a hora, que
sempre jse abriram e se fizeram edesde os quais (lugar e hora), a partir dos quais, o homem , faz, age, v, vive, existe, . E,
ainda por ser tal pthos, tal fato mais elementar, oelemento ou medium em razo desta
insero radical ou elementar, vida, vontade de poder, ou seja, este saltar e irromper no e como
aparecer, mostrar-se ou fazer-se visvel por isso, graas a isso, tal modo de ser constitui-
se em crculo (insero, elemento, medium), crculo ou circularidade. Crculo,
circularidade, ratifiquemos o j dito, uma imagem, atravs da qual se procura concretizar,
espessar, dar textura e visibilidade a algo, a um acontecimento, a saber, o irromper de vida,
designada vontade de poder enfim, um modo de ser (a vida, a existncia) que no e
no tem imagem alguma, ou seja, a prpria vida, a vontade de poder, o acontecimento arcaicoe abissal. Isso nada, coisanenhuma, algoalgum.
vida ou vontade de poder, segundo a estrutura ou a forma que caracterizamos
(salto, sbito, crculo, insero, pthos), Nietzsche denominar ainda mundo. Isso mundo.
Mundo?! Estranho, mas... Bem, Nietzsche escreve: A nova concepo de mundo o mundo
persiste; ele no nada que se torne, nada que passa. Ou antes: ele torna-se, passa, mas
nunca comeou a tornar-se e nunca cessou de passar ele mantm-seem ambos... Vive de
si mesmo: seus excrementos so seus alimentos5. E em uma outra anotao6, ele pergunta:
...Sabeis vs o que para mim o mundo? Devo mostr-lo em meu espelho? A, ento, ele
descrevemundo e conclui: ...Quereis um nomepara este mundo?.. Este mundo a vontade de
poder e nada alm disso!E tambm vs mesmos sois esta vontade de poder e nada
alm disso!
Nietzsche fala de nova concepo de mundo. Na verdade, ela velha. Muito velha.
Velhssima. O que se l nestes fragmentos, nestas anotaes de Nietzsche , com uma
extraordinria coincidncia (!) quanto forma de pensamento, da compreenso, da viso
ou intuio, o mesmo que se l-v, p.ex., nos fragmentos de nr. 16, 30, 64, de Herclito ou,
5Cf. Nietzsche, F., KGW, VIII-3, p. 166 ouA Vontade de Poder, op. Cit., nr. 1066, p. 510.6Cf. Nietzsche, F., KGW, VII-3, S.338 ouA Vontade de Poder, op. Cit., nr. 1067, p. 512.
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p.ex., o fragmento 8, de Parmnides, quando este fala do comeo sem comeo, do ser
ingnito,imperecvel, sem comeo e sem fim... Mas, deixemos isso de lado. No se trata
de uma outra musa. No, uma e a mesma, mas deixemos de lado...
A nova-velha, velhssima7, concepo de mundo s nova em relao ao que, em
tempos de Nietzsche (e ainda hoje, agora!) imperava como compreenso/determinao de
mundo, a saber, fsica, cientificista, mecanicista, naturalista, quando muito csmica,
cosmolgica. O que Nietzsche, porm, nas passagens citadas, chama de mundo nada tem
a ver com qualquer destas concepes ou compreenses que, no fundo, so uma s, ou
seja, a naturalista ou cientfico-mecanicista. Igualmente nada a ver com astronomia ou o
que hoje denominaramos concepo astro-fsica. Mas mundo, enquanto vida, enquanto
vontade de poder, determinar-se- como sentido (logos, linguagem)8que, enquanto e como
pthos, se articular ainda, na fervura do pensamento de Nietzsche, como horizonte,
perspectiva, interesse9 enfim, como valor. Tudo isso pensado, compreendido, digamos,
ontolgico-vitalmente, existencialmente.
Nietzsche diz: O mundo persiste (besteht),quer dizer, o mundo existe, est a, d-
se, faz-se, acontece, h, isso que diz o be-steht, be-stehen. E isso, a saber, este
acontecimento ou esta irrupo sbita, este pthos isto d-se, faz-se antes efora de todo
e qualquer vir a ser ou tornar-se; antes eforade todo e qualquer passar, perecer, ou seja,
antes eforade toda e qualquer determinao, medida ou critrio de comeo e de fim, de
dentro e defora, pois a partir da, sa partir da, quer dizer, de tal acontecimento ou ab-
rupta irrupo (a redundncia nfase), que pode dar-se, instaurar-se toda e qualquer
medida ou critrio de comeo e de fim, de dentro e de fora. Por isso, dito ainda que, em
relao a comeo e fim, vir a ser e perecer, ele, tal acontecimento sbito, imediato, mantm-
se, sustm-se em ambos [sie (die Welt, o mundo) e r h l t sich in beiden]. Quer dizer,
ambos, a saber, comeo e fim, vir a ser e perecer, dentro e fora, antes e depois enfim,
ambos esto includos10, ou j se do desde e a partir desta irrupo sbita, deste salto, desta
abissalidade, instaurando assim crculo, circularidade, isto , insero, afeto, pthos, arch.
E, diz ainda a passagem: ele, o mundo, vive de si mesmo viver de si mesmo, ser e
mover-se desde ou a partir de si prprio, sem nenhum antes ou atrs, sem autor, causa,
sujeito ou responsvel, ou seja, assim em jovial salto, como puradoao ougratuidade, enfim
e por fim, isso, tal experincia e evidncia, pois experincia evidncia, a extraordinria
definio, intuio, sacada da natureza de vida, do modo de ser de psych, nos gregos, de
Homero a Plato11. No verisso, no acolherisso, mesmo insurgir-se, rebelar-se contra isso
7Tudo que arcaico, originrio novo-velho, recm-antiqussimo, eterno enquanto dura... E sdura...8Cf. Nietzsche, F., KGW, VIII-1, 2[149], p. 138 ou A Vontade de Poder, op. Cit., nr. 556,p. 290/1.9Cf. Nietzsche, F., p. ex., A Gaia Cincia, livro V, nr. 374, Nosso novo infinito.10 Nietzsche diz no interior do anel. L-se: Guardemo-nos de pensar a lei deste crculo como algo
tornado, que veio a ser, segundo a falsa analogia deste movimento circular no interior (innerhalb) do
anel... KGW, V-2, 11[157], p. 400.11Cf. Rohde, E., Psych Le culte de lme chez les grecs et leur croyance a limmortalit , Payot, Paris,
1928. Tambm Otto, W., Dionisos Mythos und Kultus, Vittorio Klostermann, Frankfurt, 1960.
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(o pensamento substancialista, causal) isto coisa de bpede ingrato, diz
laconicamente, incisivamente e com grande desprezo Dostoievski. Bpede ingrato ou
lhomme rvolt.Ou puerilidade. a mesma coisa.
4. Nisso tudo, com toda esta arenga, como fica, onde entra valor? Na verdade, com
esta lenga-lenga, o tempo todo, j estamos falando de valor.
Dissemos que vida, formulada como movimento de vontade de poder, s pode dar-
se, aparecer ou concretizar-se como fora uma fora. Este , agora, nosso ponto de
partida, lembrando que, tambm j dissemos, fora e valor dizem o mesmo. Fora vontade
de poder (vida) se realizando, se concretizando, ou seja, vontade de poder (vida) vindo
tona, fazendo-se visvel e, assim, pondo-se e impondo-se. Em suma, vida que vem ao poder
entra em voga, est valendo, vera. valor. Vale. Fora realizada, concretizada, isto ,poder, o mesmo que valor valendo, fora em vigncia, em voga. E isso, este valor valendo,
a fora em voga, feita poder, a prpria coisa, o prprio real. Isso, o valor, a voga, o .
Portanto, no vale. vigncia (de sentido, de mundo, de fora), voga. Fora feita
poder.
Mais uma vez: vida, vontade de poder, aparece, s pode aparecer sempre como a
realizao de umafora, emumafora, comoumafora como um verbo, em um verbo.
E isso porque vida em si, vontade em si, como pura vida ou pura vontade isso no
existe, no h12. Vontade s pode ser, s pode aparecer ou realizar-se como quero. Na
verdade, vontade quero. Ou seja, s h quero, isto , s h, s se d vontade (vida) no quero
e como quero. Quer dizer, s vida ou vontade realizada, concretizada vigendo, valendo,
em voga, no e como poder. A vida em si, a vontade como, em si, um poder, umafaculdade
ou uma propriedadeda prpria vida ou de um sujeito, de um homem, de um euou de uma
subjetividade isso uma falsa coisificao, substancializao. Falsa, quer dizer, tardia,
epgona, decadente, pois hipstase. E, neste sentido, no h, no existe vontade.
Por fora, uma fora, cabe entender cada modo possvelde vida ou de vontade de
poder aparecer, mostrar-se. Isto , concretizar-se, realizar-se. Por exemplo, pintar, escrever,
jogar, guerrear, arar, vagar... Portanto, cada modo possvel de realidade realizar-se. Nestesentido, fora, cada (toda!) fora constitui-se num verbopossvel do/no viver, do/no existir
e, ento, do real. a ao, a atividade de vida que, de acordo com sua constituio ou modo
prprio, mais prprio de ser, ao, atividade a ao, a atividade de vir a ser o que ,
a saber, vida enquanto e como o modo de ser (fora) que, aqui e agora, se realiza, se
12L-se em Nietzsche: Vontade uma falsa coisificao (eine falsche Verdinglichung) Cf. KGW VIII-1,
1[62], p. 22. E ainda, para desconcerto de nossas idiossincrasias: ... mas no h nenhuma vontade - ...
aber es gibt keinen Willen Cf.A Vontade de Poder, op.cit. nr. 488, p. 262. Note-se que esta passagem-
anotao de Nietzsche, no seu todo, um importante, muito importante texto (um dos...) para ainterpretao e compreenso da crtica s noes de substncia ou sujeito, causalidade e ao ou
atividade como consequncia de umaou da nossavontade.
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concretiza, aparece ou se faz. Uma fora um verbo, quer dizer, um lgos. Quer dizer, um
mundo. Quer dizer, uma perspectiva (per-spicere), um horizonteou um interesse (inter-esse),
ou seja, ser sempre j desde dentro (inter) de um modo de ser (esse), ou seja, de uma
fora, de um verbo. Neste atravs (o per de per -spectiva e mesmo o inter de inter-
esse), que elemento ou medium, faz-se o real (o objeto, a coisa, tudo quanto h ou ), assimcomo tambm o sujeito (o expectador, o intrprete) e igualmente a prpria perspectiva ou
interesse, quer dizer, aqui e assim realiza-se a forma ou a estrutura interpretao, onde no
h, no se tem o direito de se perguntar pelo queminterpreta (pelo sujeito, pois), no se
pode, no se tem o direito de pro-por ou sub-por um tal sujeito, um tal intrprete. Tal
pergunta, pro- ou sub-posio (hiptese) coisa atrasada, que chega atrasada. Dissemos: a
forma ou a estrutura da interpretao e isto quer dizer: a forma ou a estrutura do real,
de toda e qualquer realidade possvel, que , que s pode ser interpretao, uma vez que
no h, que no pode haver fato em si, real em si, coisa em si. A estrutura, a forma de salto,
sbito, imediato, crculo, pthos,veta, inibe, inviabiliza isso.
Portanto, coisa, toda e qualquer real, realidade, toda e qualquer, s h, s pode
haver ou dar-se se uma fora (um verbo, um sentido, um mundo, uma perspectiva ou um
interesse) j aconteceu, j se deu. Assim, no h, no pode haver coisa em si, objetiva,
desinteressada, desperspectivada, aptica, sem mundo. Uma coisa em si, objetiva, seria uma coisa
fora de toda e qualquer condio de ser ou poder ser a coisa, o algo que , a saber, na sua
constituio mais prpria, insero, afeto(pthos).Seria uma coisa ou um algo antes e fora
de toda e qualquer relao, que, desde salto, crculo, sempre j se fez, se deu, se instaurou.
Coisa, algo, s pode ser relao (isto , interpretao), esta relao. Mas e relao comose d, como se faz ou realmente relao? Expliquemos isso melhor, ainda que
rapidamente, no galope.
Nietzsche escreve: Uma coisa em si algo to absurdo quanto um sentido em si, uma
significao em si. No h nenhumfato em si, mas, para que possa haver um fato, um sentido
precisa ter sido sempre j introduzido13. Portanto, quando algo, alguma coisa, o que quer que
seja ou haja, se d, se mostra ou aparece d-se, mostra-se ou aparece, enfim, , porque
(graas a) um sentido (fora, verbo, perspectiva, interesse, mundo)jse deu,j se introduziu
ou se intro-meteu ein Sinn muss immer erst hineingelegt werden. O erst
(primeiramente ou por primeiro), que estamos traduzindo por sempre j enfim,
esta partcula, esta particulazinha que, aqui, diz tudo, uma vez que ela fala o salto, isto ,
ela fala da abertura ou da instaurao sbita de crculo, de insero (pthos), que se faz
elemento ou medium. Um sentidosempre j se deu com isso, assim,graas a isso (i., por
doao disso), algo pode dar-se, aparecer, mostrar-se como isso ou algo. Um sentido sempre
j se introduziu, sempre j se interps, isto , um lgos, um mundo. Ainda na linguagem de
Nietzsche, uma fora, um horizonte, uma perspectiva ou um interesse.
13Cf. KGW, VIII-1, 2[149], p. 138 e Vontade de Poder, op.cit., nr.556, p. 290.
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O sentido ou a fora sempre j introduzido(a) , pois, a abertura ou a dimenso
(horizonte) a partir da qual algo pode-precisa ser visto, visualizado (perspectivado), quer
dizer, pode-precisa aparecer, ser. Ou seja, algo, o que quer que seja, sempre j visto (aparecido,
dado) atravs, no (em o, dentro, insero) ou desde o medium, no e desde o elemento de um sentido
(lgos, mundo, fora). isso, justamente isso, esta estrutura ou modo de ser (= forma, gneseontolgica) que diz perspectiva, perspicere.
Aqui, decisivo ver, entender perspectiva desde e como salto, isto , desde e como
insero, quer dizer, j desde elemento ou mediume no como obra, como produto, criao
ou projeode um sujeito, de um eu, de um homem ou de alguma vontade livre e autnoma.
Ao contrrio, algum imaginvel sujeito, eu(homem, vontade prpria) j resultado, obra
da perspectiva (fora, mundo, modo possvel de ser de vida), fez-se ou deu-se j desde a
perspectiva-salto-insero-elemento. Por isso, nada subjetivo, assim como tambm nada
objetivo. Isso, a saber, subjetivo e/ou objetivo, coisa, viso ou considerao tardia,decadente algo que chega, chegou sempre j atrasado14.
Assim, seguindo a mesma forma ou estrutura de perspectiva (desde e como insero,
crculo, elemento, pthos) preciso entender interesse, inter-esse. No h nada, no podehaver
nada des-interessado, quer dizer, nada a-ptico, em si, objetivo, mas sempre j desde dentro
(inter) de um determinado modo de ser (esse), ou seja, sempre j desde dentro ou a
partirde um sentido (lgos, mundo, fora).
Agora podemos, mais assentadamente, indicar o modo prprio de ser de relao,
pelo qual pedimos acima. porque toda e qualquer coisa j sempre insero ou elemento(medium), que igualmente diz crculo e pthos por isso,graas a isso ou seja, por doao
ou graa, deste modo de ser arcaico ou imediato enfim, por isso, graas a isso, toda e
qualquer coisa o que e aparece ou se d tal como , aparece ou se d porque relao.
Portanto, toda e qualquer coisa s possvel desde e como relao. Mas vejamos: saltoabre
o mbito de relao. Melhor: salto peo espaode relao ou de relacionamento. este
espao, este abertoou mbito, que possibilita que o qu quer que seja o seja para algum,
para o homem. E decisivo: este espao, abertura ou mbito, que constitui propriamente
a relao, antes de toda e qualquer referncia, seja ela de natureza bi- ou multi-polar. Ou seja,
relao, em sentido prprio, arcaico-originrio, nada tem a ver com termos, polos, relata.No deve e no pode ser entendida a partir de polos, termos ou relata. Isso j platonismo,
14 Ocorre-nos uma observao: parece que usamos indistinta e indiscriminadamente, para no dizer
impensada e irresponsavelmente, como sinnimas as noes de sentido, lgos, mundo, fora, perspectiva,
interesse. Parece que uma noite escura, na qual todos os gatos so pardos. Parece que tudo igual, tudo a
mesma coisa, num caldeiro, numa beberagem Mefistfeles, onde tudo, todas as mulheres viram Helena.
Tudo igual ou tudo a mesma coisa num indiferente, aptico nivelamento, achatamento de tudo. No. Estasnoes, nomeaes/designaes, talvez conceitos apontam para diferentes momentos, diferentes
articulaes ou modulaes de uma mesma experincia arcaico-originria, fundadora, de um mesmo e
nico fenmeno elementar (um Urphnomen), a saber, vida, determinada tambm como vontade de
poder. Trata-se de modos como se articula e se expe, isto , se realiza e ento se mostra, esta mesmaexperincia arcaico-originria, este mesmo proto- ou arqui-fenmeno (o Urphnomen), qual seja, a vida,a existncia humana.
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isto , desateno, incria, afrouxamento do arco. Ao contrrio, relao, no sentido arcaico-
originrio, tem tudo a ver com uma espcie de tenso, promovedora e sustendadora de
diferena na identidade e de identidade na diferena. Termos, polos ou relata, pois, algo
que se d, acontece ou se instaura quando tal tenso, ou ateno, que o mbito ou o espao
da relao como tal, j se desfez, quando o arco j afrouxou, e, assim, torna-se coisa de vesgo,coisade quem chega atrasado... Enfim, coisa decadente. De-cadente e de-generada fala de
sujeito e (+) objeto, de subjetivo e (+) objetivo, dentro e (+) fora, interno e/ou externo. O
fato que tudo isso (sujeito-objeto, subjetivo-objetivo, dentro-fora) h, existe, faz-se ou d-
se, claro, mas tardio, epgono, como dito, de-cadente e de-generado (i., apartado do
ritmo prprio, da fonte geradora prpria) e, ento, por isso, sob pena de irremedivel erro,
no pode jamais,jamais tem o direito de ser reivindicadocomo coisa ou dimenso,modo de
ser primeiro ou primrio, fundador e fundamental. Sujeito e (+) objeto, subjetivo e (+)
objetivo, dentro e (+) fora, interior e (+)/ou exterior tudo isso, aqui, s funda, s
esclarece decadncia, degenerao, perverso ontolgica.
Valor, em sendo da textura, da tmpera e do tutano de fora, no nada desta
ordem, a saber, subjetivo e/ou objetivo, etc. Isso, esta disjuno/separao, no cabe sua
compreenso e determinao. Valor subjetivo ou objetivo?! A pergunta, a dvida ou
o dilema - isso tudo coisa que chega atrasada. dvida, pergunta ou dilemafora do tempo
prprio da coisa, do fenmeno.
5. Vida, entendida desde e como vontade de poder, s pode aparecer ou mostrar-sedesde uma fora, como uma fora. Fora oumodo possvel de vida ser, fazer-se vida, quer
dizer, aparecer, mostrar-se. Um modo possvel de vida ser vida pode tambm denominar-se
um verbo.Todo e qualquer modo possvel de ser de vida, cada um ou cada qual ou seja,
todo e qualquer sentido, mundo, perspectiva, interesse constitui-se em um verbo, um
verbo. Verbo a ao de vida fazer-se vida, a atividade de concretizao ou de exposiode
vida. Vida ex-posio, auto-exposio, isto , movimento de, desde si mesmo, expor-se a
si mesmo aparecer. Sim, auto-exposio, a dinmica de concretizao-apario de vida,
enquanto e como verbos possveis, horizontes, modos possveis de ser sentidos,
mundos, perspectivas, interesses.
E tal fora ou verbo valor; constitui-se, faz-se como valor. Isso, a saber, tal fora ou
valor, propriamente o , o isso . O isso vale o nico autntico, real, verdadeiro isso .
O valor, o vale, constitui-se em toda e qualquer possvel realidade do real. Fora-ser-aparecer-
valor isso um nico e mesmo acontecimento, um nico e mesmo instante. Melhor:
um nico e mesmoato. Por isso, assim sendo, uma vez que acontecendo e sendo desde e como
crculo-insero-afeto, valor (fora, sentido, mundo, perspectiva, interesse) no nada que,
quer subjetiva, quer objetivamente, venha a somar-se, a acrescentar-se ou aderir-se s coisas.
No h coisaantes e fora de valor, de fora, de sentido, de mundo. Portanto, j foi dito,valor no nada agregado, nenhum encosto. O real, as coisas, o mundo(o domnio das coisas
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objetivas, dadas), no se constitui num plano, num estrato, e a isso se soma ou se acrescenta
o plano, a esfera ou o estrato do valor, dos valores. Juzo de valor e juzo de existncia ou
de realidade, como dizem os idiotas da objetividade no, da subjetividade!
Nietzsche escreve: Valor a mais elevada quantidade de poder que o homem pode
se incorporar15. Uma quantidade, um quantum de poder (assim diz o texto), uma
quantidade, um quantumde vida, isto , de vontade de poder, isto , de fora realizada,
concretizada. Estranha esta fala de quantum, de quantidade para vida, para vontade de
poder, que no coisa nenhuma, algoalgum. Em questo no est tamanho, isto , no
se tem o direito de falar de quilos ou de metros de vida. Antes, at se falaria de qualidade,
de qualidades. Mas com isso, com quantum,quer ser dito, de modo mais intenso e mais
espesso, a realizao, a concretizao, a efetivao ou, ainda, a singularizao da prpria
fora, da vontade. Valor, fora poder, quer dizer, fora, sentido, mundoconcretizado e,
assim, singularizado, realizado como issoou como aquilo. E s como issoou como aquilovida
pode ser, aparecer. S como queropode a vontade para o poder ser vontade para o poder. A
vontade como tal, em si e por si s, uma abstrao ou, como diz Nietzsche, uma falsa
coisificao. Falsa quer dizer: tardia, epgona, decadente.Avontade (em si e por si como
puravontade, faculdade ou propriedade de um sujeito, de um eu, p.ex.) isso no h.
Valor , pois, a consumao, a cumulao, a per-feiode uma possibilidade de ser,
quer dizer, de uma fora de um mundo, de uma perspectiva, de um interesse. Na
consumao, na cumulao, que diz perfeio, no sentido de per-fazimento (a entelcheia),
faz-se concretizao, realizao, e, assim, o mais elevado, o hchste, de fora. isso
mesmo poder, o poder, como o ato de ser, isto , de aparecer. Mas, e aqui levanta-se um
outro problema, diz Nietzsche, o mais elevado quantumde poder que o homem pode se
incorporar sich einverleiben vermag. Incorporar, em-corpar, talvez, sich einverleiben,
diz Nieztsche. Quer dizer: tornar-se, fazer-se corpo. E o homem (no a humanidade, dir
Nietzsche, ainda na passagem citada, que outra abstrao), pois o homem o nico lugar
e a nica hora em que isso, em que o que quer que seja, todo e qualquer real possvel, pode
(precisa!) dar-se, acontecer, tornar-se. E o homem corpo. Portanto, corpo (homem) o lugar
e a hora em que vida (vontade de poder, fora) aparece como tal, pode aparecer e fazer-se
como tal. Corpo o homem corpo. Corpo e no alma, ou esprito, ou conscincia, ou
fsico, ou biolgico, ou matria. Tudo isso tardio, posterior. Corpo, Leib, enquanto o
homem (estranho!), o acontecimento sbito, i-mediato de asthesis e nous, melhor, o ato
asthesis-nous. Quando homem acontece, irrompe, salta (e o homem, a vida ou a existncia
humana este salto, esta irrupo) este acontecimento ou irrupo o mesmo ato que
o acontecer, irromper, saltar de asthesis-nous, de sentir-ver-perceber. Quer dizer: no mesmo
ato e como o mesmo ato, a simultaneidade ou o mesmo de sentir-ver-perceber o
acontecer ou o irromper de vida, de homem, de existncia humana. Sentir (asthesis),
todo sentir, ver j sempre ver, perceber (noein) como isso ou como aquilo, uma vez
15Cf. Nietzsche, F., KGW VIII-3, 14[8], p. 13 ouA Vontade de Poder,op.cit., nr. 713, p.360.
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que no h o puro e mero sentir, como pura e simples impresso ou sensao (estmulo)
nervosa(o). Todo e qualquer sentirj desde ou a partir de um sentido(lgos, mundo, interesse,
perspectiva) spor isso, s graas a issopode ser sentir. Sem isso, a saber, sem este prvio
ou preliminar sentido (lgos, mundo, interesse, perspectiva), seria s, o caos dos data,
Chaosder Data, para usar uma expresso de Kant!16
. Ento, por isso, sentir, todo sentir,j sempre um ver-perceber isso ou aquilo como isso ou aquilo, sempre j um algo
determinado desde um mundo (sentido, lgos) e como um mundo (sentido, lgos) e jamais
uma pura, abstrata e tardiaimpresso sensorial, estmulo, coisa de sinapses e de reaes eletro-
qumicas, que s acontecem, que s podem acontecer num laboratrio de psico-fsica, de
neurologia ou de neurocincia cognitiva enfim, coisa do Imetroou de algum outro
qualquer instituto de pesos e medidas, onde se faz contabilidade, balanos e inventrios,
mas no se pensa. Quer dizer, onde no h real empenho por real compreenso de um
fenmeno, de uma experincia.
A separao, o corte (o chorisms)e a oposio asthesis-nous, junto com a consequente
instaurao dos planos, dos estratos corpo (sentir) e (+) esprito (ver, perceber), etc,
etc...(p.ex., ser e (+) pensar, valor e (+) coisa, juzo de valor e (+) juzo de existncia) isso,
tal separao-oposio, constitui propriamente o platonismo.
Valor a cumulao de fora que o homem pode incorporar, isto , a concretizao-
realizao de fora que pode-precisa dar-se ou fazer-se no homem, pois este, enquanto e
como corpo (Leib), a nica instnciapossvel de vida ser-aparecer como tal, como vida.
No homem, como homem, a partir do homem, fora cresce, quer dizer, se intensifica, se
concentra, se agrava (portanto, nada quantitativo, somativo), fica ou torna-se mais ntido,
mais evidente e, assim, o homem igualmente faz-se, torna-se ou vem a ser homem, mais
homem, isto , mais destino de corpo, em vida ascendente.
Dizendo de outro modo: no homem, como homem, fora-valor incorpora-se,
encorpa-se, faz-se corpo, ou seja, ganhaforma, faz-se gnese ontolgica (princpio de real, vida)
e, por esta via, vai se concentrando, vai se intensificando e, ento, por isso, graas a isso,
ganhando clareza no seu modo e necessidade de ser, mais evidncia e, neste sentido, mais
necessidade e destino, medida que cresce. Crescer o crescimento de fora, o
crescimento de poder, que marca a vida enquanto e como vontade de/para poder enfim, assim, crescer no nada somativo, aglutinante, de agigantamento. No. Crescer diz
intensificar, agravar-se (no sentido de se tornar mais grave, mais srio, mais intenso e
16Isso, o turbilho dos data, a moderna pesquisafisiolgica, neuro-cientfica a fsica do crebro.Para escamotear o turbilho, para tomar p no caos, introduzido nesta pesquisa o dgito, o nmero acondio para o clculo, para o controle matemtico, isto , a antecipao numrico-quantitativa. A
expresso (e a compreenso) caos dos data, Chaos der data, ou ainda Gewhl der Empfindungen (aconfuso, o turbilho das sensaes, das impresses sensveis ou sensoriais) encontra-se em Kant, KrV.,
A 147, B 187 e est relacionada genial sacada de Kant, segundo a qual a forma, a estrutura da
sensibilidade (sem a qual nada se sente, mas tem-se to s o turbilho ou o caos dos data), no caso, tempo
e espao, no nada sensvel (sensorial, corporal,fsico), mas transcendental, isto , a priori, antecipativo,prvio ou preliminar (neste sentido metafsico) . Quer dizer, para ns, aqui, isso o sentido (i., lgos,
mundo, interesse, perspectiva, fora) que sempre j se deu, sempre j se introduziu ou se intrometeu.
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necessrio) e, assim, apurar-se. Coisa de boa cepa. Por esta via, por este caminho, quer dizer,
segundo este mtodo, torna-se mais intenso, mais grave e, ao mesmo tempo, mais simples,
mais conciso. Mais sbrio e mais grave. Isso j grande estilo, ogrande estilo, quer dizer, a
forma (=estilo) radical, essencial (= grande).
6. As palavras do valor so bandeiras plantadas l onde foi inventada uma nova
bem-aventurana um novo sentimento17.
Assim reza, em traduo fiel, uma anotao de Nietzsche, feita entre novembro de
l882 e fevereiro de 1883, em plena efervescncia do Zaratustra. Numa traduo mais livre,
mais solta e j bastante explicativa e interpretativa, pode-se dizer: A fala de valor ou o
discurso sobre/a partir de valor uma bandeira fincada, isto , uma conquista, l onde e
quando j se revelou (se inventou), j se evidenciou uma nova vitalidade (Seligkeit, bem-aventurana), melhor, uma nova alegria, mesmo uma nova e grande jovialidade enfim,
l onde e quando se revelou, irrompeu, um novo pthos (Gefhl, sentimento), uma nova
sensibilidade, a partir do(a) qual e como o(a) qual todo e qualquer possvel real visto,
visualizado, entendido, dito.
Onde dissemos vitalidade (uma nova vitalidade), Nietzsche escreve Seligkeit.
Seligkeit, ao p da letra, em traduo correta, diz bem -aventurana e se refere a uma
espcie de, aps a morte, possvel harmonia e unidade com Deus, com o divino. Uma
participao na graa e na iluminao divinas. Coisa para justos e santos. Ora, nem
Nietzsche e nem ns somos santos ou justos. Na citao, para esclarecer Seligkeit,
Nietzsche fala tambm de sentimento, Gefhl. Portanto, aquela Seligkeit, bem-
aventurana, precisa ser vista como um novo sentimento e este sentimento o que, por
extenso, se v e se compreende em Seligkeit e que glria, felicidade, alegria. Assim sendo,
digamos, a fala de valor fala da conquistade uma nova alegria, de uma nova satisfao, de
um novo e bom humor, uma nova e boa jovialidade (Heiterkeit), na e para a viso-
compreenso e fala ou discurso de todo e qualquer real, que, ento, no , mas vale. Um
novo pthos, um novo afeto, um novo princpio (arch) moduladordo real, das coisas. E
isso, dito, uma grande alegria, quer dizer, uma grande leveza. Mas novo?! Ou seriavelho, muito velho, como aquele velho, velhssimo e grosso, e encorpado vinho da
sabedoria, que Zaratustra quer beber de novo, re-petir, re-tomar? Sim, este novo novo,
assim parece e se revela, por ser, na verdade, s e to s a repetio, a retomada daquilo que
, do que sempre foi e, porm, em alguma hora, por alguma distrao, algum cochilo ou
algum afrouxamento do arco-vida, que Bose Bis(Herclito, frag. 48) tais cochilos
costumam ser mesmo mortais! enfim, algo, um modo de ser que se retraiu, que se
17Cf. Nietzsche, F., KGW, VII-1, 4[233], p. 179 ouA Vontade de Poder, op.cit., nr. 714, p.360
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afastou ou se transviou, tal como tambm a criana de Herclito18e que Nietzsche ainda
entende e formula como o recuo, o retraimento do puro e simples eu sou, prprio dos
deuses gregos e, sim, da criana. E isso, este novo-velho modo de ser, este novo-velho pthos,
, sim, uma nova-velha vitalidade, um novo-velho thyms, um novo-velho Gemt.Um
novo-velho corao, uma nova-velha cordialidade. Por fim, uma nova-velha bandeira(conquista) fincada no pico, no cume da vida.
Nova alegria, nova vitalidade. Alegria, talvez, venha de aliger o que tem e traz
asas, o alado. , sim, leve, leveza. Quase difano. Assim, valor como uma nova vitalidade,
uma nova alegria, uma leveza, um modo gaio e algero, lpido, como critrio, como
medida do real. O alegre, o gaio, a gaia cincia ou o saber jovial, como medida, como
consistncia-essnciaou gnese leve, algera, lpida e gaiado real. Ou seja, assim, por esta via,
o real perde, esquece ou desaprende o peso pesado, lerdo da coisa coisi-ficada, das coisas
hipostasiadas, do real substancializado na sedimentao do hirto coisista, do duro coisal. Um
real, um modo de ser que no dana. Um real, um modo de ser (sujeito!) ruim da cabea
edoente do p. E, como que num golpe de mgica, isto , num salto valor-fora, viu-
se, salto ganha de novo alegria, leveza. Jovialidade, a boa gaiatice. Essa olhada, este
novo olhar, o valor, o real desde e como valor, como que a resposta pergunta, melhor,
advertncia inquietante que Nietzsche, a certa altura, nos dirige como vai, o que se
passa com, a quantas anda nossa jovialidade, nosso lado alegre, gaio e gaiato, nossa
Heiterkeit19.
Estranho, estranho! Esta pergunta, esta advertncia consegue realmente nos
inquietar ou nem sequer...?! Bem, de qualquer modo, desde o salto, desde a viradaou amudana de registro, posta e imposta pela medida do valor, esta conquista pe, impe uma
grande alegria, um grande jbilo. Bom humor, jovialidade, Heiterkeitcontaminando esse
nosso vale de lgrimas, essa nossa Vida Severina. A irrupo da vida, sempre severina, isto ,
sempre pobre, pouca, finita, sempre to belo como um simnuma sala negativa. Pois
presente, graa, doao, gratuidade. Sem porqu, sem para qu.
E um real assim visto, assim entendido, reclama tambm uma nova fala, uma outra
fala, um outro discurso a respeito de verdade, sobre a verdade.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.20
Alevanta-se, acorda, desperta a fora, o valor do prprio valor, isto , o valor mesmo
como medida, como critrio melhor e mais precisamente: como forma ou gnese
18Cf. Herclito, frag. 52, segundo referncia de Nietzsche em KGW VIII-1,2[130], p. 127;A Vontade de
Poder, op.cit., nr.797, p. 397 e tambm KGW, VII-2, 25[351], p. 101; A Vontade de Poder, op. Cit., nr.
940, p. 463. A respeito de criana e eu sou, verZaratustra, I,Das trs transformaes do esprito.19Cf. Nietzsche, F.,A Gaia Cinciam nr. 343 - Was es mit unser Heiterkeit auf sich hat.20Cf. Cames, L., Os Lusadas, I, 3, Vs. 8-9
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ontolgica (= a prpria coisa) e no como agregado, como encosto.Este o mais elevado,
das Hchste esta a nova musa. E vamos a isso, pois isso a boa, a oportuna passagem
para a segunda etapa do nosso tema, que Valor e Verdade. Vamos, pois, verdadee,
como no jogo da bolinha de gude, vera est valendo! de verdade! que valor
verdade. Verdade valor.
II
1.Para a contemporaneidade, foi decisiva a interveno de Heidegger na discusso
do tema verdade. A questo enorme, gravssima e, aqui, agora, vamos apenas tentar
esboar alguns esclarecimentos quanto a alguns aspectos, que acreditamos serem
importantes para o encaminhamento e a compreenso do problema. Esboar alguns
esclarecimentos quanto a alguns aspectos, isto , anunci-los, enumer-los e buscar
esclarec-los.
Heidegger contesta, inicialmente, duas afirmaes consolidadas pela tradio. Uma,
segundo a qual o juzo, o enunciado o lugar da verdade e, outra, a definio tradicional
de verdade como adequao ou correspondncia seja do intelecto coisa, seja da coisaao intelecto.
A discusso do problema do juzo ou do enunciado como lugar da verdade supe,
principalmente, uma compreenso de linguagem, da essncia, isto , da gnese, da
linguagem, e ento a caracterizao do juzo, do enunciado, como algo posterior, tardio, isto
, coisaderivada e no primria, imediata.
Quanto questo da correspondncia ou adequao, o ponto de partida o fato
que tal correspondncia ou adequao comea sendo uma relao (pois o enunciado no a coisa e a coisa, por sua vez, no o enunciado) e, para que a definio ou determinao
de verdade como correspondncia se sustente, preciso, antes, esclarecer a natureza e a
possibilidade de uma tal relao p.ex., como que o ente, o real, vem a dar-se, a oferecer-
se ou a aparecer para um possvel enunciado ou juzo? Sem um tal esclarecimento prvio,
a definio tradicional de verdade permanece obscura e dogmtica. Portanto, no se trata,
de imediato, de negar, de recusar pura e simplesmente correspondncia (ou adequao),
mas de esclarec-la, de fund-la, ou seja, remet-la a seu prprio e necessrio fundamento
ou condio de possibilidade.
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Uma outra considerao inicial a se fazer que Heidegger a, sim! de cara
exclui do horizonte de discusso do tema verdade a suposio ou a pr-compreenso de que
esta se configure como um dado, como um algo objetivo(ou subjetivo,ou intersubjetivo), como
uma ocorrncia ou algo ftico no e do mundo real, externo, objetivoe, ento, tratar-se-ia de se
veri-ficar, isto , confirmar, constatar objetivamentee, por esta via, conseguir algum tipo decontrole e de asseguramento do possvel fato, dado ou ocorrncia. Isso, a saber, dado,
ocorrncia, fato, verificao, controle, (auto)asseguramento enfim, isso no coisade
verdade, quer dizer, no prprio ou constitutivo do tema, do problema. Um tal
encaminhamento do problema ou uma tal suposio (pr-compreenso) j um desvio,
uma falsificao. Aqui tambm dir-se-ia: no comeo de tudo h um erro. Mas como? Por
qu?
Por um lado, o desdobramento de Ser e Tempo, partindo da ideiade homem e de
realidade desde e como ser-no-mundo, inviabiliza toda e qualquer compreenso deste tipo,
desta natureza, ou seja, coisista, objetivista ou subjetivista. Mas o que quer dizer ser-no-
mundo? Vejamos isso rapidamente.
2. De modo geral, ao se ouvir a afirmao, segundo a qual o homem, a vida ou a
existncia humana , se faz ou se d imediatamente como ser-no-mundo, achamos isso
simples, evidente, mesmo bvio. E isso um ou mesmo o perigo. Consideramos assim: sim,
claro, o homem no mundo, em um mundo ou como ser-no-mundo medida que,
vivendo e convivendo, existindo e coexistindo cercado de pessoas e de coisas, materiais eespirituais, de pedras, mesas, bolas, assim como de obras de arte, de crenas e de convices
religiosas, de ideias e princpios polticos e sociais, enfim de coisas e de valores assim
vivendo e sendo envolvido e solicitado por todas estas coisas, pelo mundo, o homem se volta,
se abre para todas estas coisas e valores, sentidos, significaes naturais e culturais ou
espirituais, que passam a constitu-lo e determin-lo. Coisas da natureza e do esprito, que,
juntadas e somadas, constituem o mundo em torno ou em volta, para o qual o homem se
volta, se relaciona, se abre, como que direta e espontaneamente, ou seja, imediatamente. E
tudo isso, claro, passa a formar, a constituir e a determinar o homem no seu mago, na sua
essncia.
Ao assim entendermos ainda estamos inteiramente fora e distantes da compreenso
prpria, ontolgico-existencial, do homem, da vida humana (Dasein, presena) como ser-
no-mundo.
Ao entendermos, tal como acima descrito, o homem voltando-se, abrindo-senatural
ou espontaneamente para as coisas, para o em volta ou o entorno (o contorno, a
circunstncia) ao assim fazermos, sempre j sub-pomos e pr-compreendemos o homem
como pr- ou sub-existindo como um algo j dado, j constitudo, ento j um sujeito, seja
como um (vago, impreciso) eu (que se abre), ou uma pessoa, ou uma conscincia, ou umavontade, ou uma alma, ou um esprito ou, por outro lado e contra tudo isso, como matria,
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orgnica ou inorgnica; energia fsica, eletroqumica, biofisiolgica, etc, etc. Seria este
algum homem assim j, vaga e nevoenta ou imprecisamente concebido ou mesmo
incisivamente desde algum enrgico discurso cientfico, constitudo e mesmo pr-
constitudo (o dado), que se voltaria, que se abririapara as coisas, materiais ou imateriais,
para o mundo, e com elas ou com ele se relacionaria e, a partir de ento, atravs de um sutile arguto exerccio intelectual, dialtico, procurar-se-ia caracterizar como se d, como se daria
ou se faria esta relao, este inter-relacionamento talvez coisa de intersubjetividade, ou
dialgica, ou... Mas com certeza intelectual, dialtica! Como dito, isso, esta sub- ou pr-
compreenso (tcita, vaga, mas determinante), no entanto, no o sentido da afirmao,
da tese, e da compreenso do homem, da vida ou da existncia humana (o Dasein) como
ser-no-mundo. Mas como , ento?
A compreenso, a viso ou a sacada desconcertante que o homem,
originariamente
21
, no coisa
nenhuma oualgo
nenhum dado ou constitudo, sejaespiritual, seja material ou imaterial. Quer dizer, originariamente, preciso ver, preciso
poder ver e pensar ou compreender o homem como no sendo nem um eu, nem uma
conscincia, nem uma alma ou esprito, ou pessoa, ou vontade e nem nenhuma base fsica,
material, orgnica ou inorgnica (biologia, neurologia,fsica do crebro). Nada disso dado
primrio, imediato, mas coisa tardia, epgona por mais ingnuo e paradoxal que isso
possa soar. Mas, ento, afinal, o que , como o homem? S e to s um modo de ser(e coisa
nenhuma, e algoalgum), que se caracteriza como poder ser(possibilidade) tocado ou tomado
(afetado) por um poder ser (uma possibilidade). assim, enquanto s e to s este estranho
e inslito modo de ser, que o homem se caracteriza, originariamente, como possibilidade dee para possibilidade e coisa nenhuma, e algo nenhum. Este poder ser assim tocado ou
tomado (afetado) por possibilidade de ser que esclarece a abertura-, o ek-stase-homem ou
Dasein, presena (isso , na analtica existencial, o Da do Da-sein, o ek de ek-sitncia). O
homem a possibilidade (a aptido, a propensoou a pr-disposio) para ser afetado (tomado,
tocado) por (uma) possibilidade, isto , por um sentido, por um lgos enfim, por um
mundo. Quando algo, quando o que quer que seja acontece ou se d, inclusive e sobretudo o
prprio homem, um sentido (lgos, mundo)j se deu ouj aconteceu,j se ps, se interps ou
introduziu. graas, por obra e graadeste sentido que sempre j veio e sobreveio (tomou,
afetou), que tanto coisas como o prprio homem se do, podem dar-se. graas a estesentido j acontecido e que j sobreveio (isso define transcendncia) que se d ou acontece
tudo quanto acontece ou se d, tudo quanto podedar-se ou acontecer, aparecer, fazer-se
visvel. Este sentido ou lgos sempre j posto e interposto, possibilitador e reunidor,
compactador ou integrador de tudo que e h isso mundo, o mundono sentido
ontolgico-originrio ou existencial.
21
Originariamente, isto , tal como ele, de fato, jamais , jamais pode ser encontrado ou verificado, poisde fato ele sempre j constitudo ou realizado em um mundo, em uma situao histrica ou ftica. No h
o primeiro homem.
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guisa de rpida observao, faa-se constar que a anlise, a explicitao dessa
estrutura ou forma, a saber, a abertura ou ekstase (homem, Dasein) que possibilidade de e
para possibilidade tal explicitao vai revelar ainda salto ou imediatidade e insero ou
circularidade (crculo) como igualmente constitutivos desta forma ou estrutura, de modo tal
que ficar vetada, inviabilizada toda e qualquer fala, em nvel arcaico-originrio, de gnese,pois, de sujeito e/ou/versusobjeto, interior e/ou/versusexterior, ativo e/ou/versus passivo,
etc., etc.
Fechemos aqui este breve parntese, que foi este tpico.
3. Heidegger, ao discutir a questo da verdade, e falando j desde Ser e Tempo,
tambm o faz j falando desde, portanto, j sub- ou pr-supondo, a compreenso de verdade
no horizonte da experincia grega de altheia, ou seja, a experincia e a compreenso de real
dando-se, fazendo-se ou realizando-se enquanto e como desocultamento, desvelamento ou
descoberta. E este o primeiro aspecto que, agora e aqui, se pretende esclarecer um pouco,
pois, ao contrrio do que possa parecer a primeira vista, esta fala de descoberta ou de
desencobrimento de ou do real no to clara, to bvia.
Altheia, desvelamento ou desencobrimento, no um dado objetivo, em si e real,no sentido de algo existente e pertencente s coisas, como se diz, objetivas, fora,
independentes do homem e que seria, ento, constatado, veri-ficado. Descobrir ou
desocultar no destapar algo que estava tapado, coberto com ou por outro algo p.ex.,
o guardanapo tapando ou cobrindo o po por causa das moscas. Tiro o guardanapo e,
ento, encontro, descubro algo que estava atrs, tapado, coberto (o po), pronto, feito e
acabado, real e em si mesmo, como coisa fsica e material, ali sobre a mesa na sua real
realidade externa, objetiva, como uma ocorrncia do e no mundo fsico, externo, objetivo,
etc, etc...
No. Descobrir, desocultar, enquanto e como altheia, um acontecimento prprio,
uma dimenso ou um modo de ser exclusivo do homem, isto , da vida, da existncia
humana, que Heidegger denomina e compreende como Dasein, no sentido de ser uma
presena subitamente (salto) irrompida, saltada, brotada. Sim, uma presena. No mbito, no
espao na abertura deste salto d-se, acontece altheia, isto , desocultao,
desvelamento, descoberta ou revelao. Esta irrupo sbita (salto) no e desde mundo (o
sentido, o lgos, enquanto e como transcendncia, pois ele sobrevm ao homem, o qual marca o
ser-no-mundo), o abrir-se deste mbito ou, melhor, o abrir-se da prpria abertura como
lugar e hora do homem, da vida ou da existncia humana (Dasein) isso, este modode ser, e faz-se, ento, como ser no ver, no aparecer, isto , na desocultao, no
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desencobrimento, no mostrar-se e tambm recolher-se, retrair-se, que, para o grego, se
denomina altheia.
Assim sendo, verdade, enquanto e como altheia(desocultao, descoberta), um
acontecimento, uma dimenso da vida, da existncia humana, enquanto insero, isto , a
irrupo, que o ser-no-mundo. Certamente, o acontecimento, adimenso da/na vida,
do/no homem. S h real, s pode haver ou dar-se real, s pode se dar ou aparecer real
comoreal, isto , como tal, porque h, porque d-se ou faz-se melhor, antes, porque sempre
j se deu ou j se fez homem, vida ou existncia humana. Porque, quer dizer, graasa isso,
como dom ougraa disso, a saber, desta irrupo, deste acontecimento sbito e abissal
doao.
Dizer, porm, que s h, que s se d real como real, como tal, desde ou a partir do
homem no quer dizer que o homem, subentendido como alguma substancialidade ou
sujeito (alma, conscincia, eu, vontade ou organismo, base ou lastro biofisiolgico) seja acausa, o autor (sujeito), o dono do real, das coisas, de tudo quanto h e pode ser ou haver.
No. Que o real, todo e qualquer, s seja, s possa ser desde ou a partir do homem quer
dizer, sim, que o homem (enquanto insero, ser-no-mundo e ento presena, Dasein) o
lugar e a horado real, de todo e qualquer real, ou seja, do aparecer e mostrar-se como tal,
do revelar-se ou do desencobrir-sede todo e qualquer real, medida que ele se faz o destinatrio
(e no o autor, a causa, o sujeito) desta apario, desta revelao ou desocultao
portanto, de altheia.
Destinatrio como? H algo de extraordinrio nisso. E isso, ser o destinatrio,quer dizer: o homem est, apto a receber, a ser tocado e tomado por um tal envio, a saber,
por uma tal revelao, por um tal desencobrimento, por uma gnesedo real. Mas o real,
todo real, o fazer-se ou o acontecer da possibilidade-mundo, da possibilidade-lgos. Ento,
a o extraordinrio, o homem, antesde ser algum sujeito (eu, conscincia, alma, esprito,
fundo biolgico ou que quer que seja), a possibilidade (aptido, disposio ou pr-
disposio) de ser tocado e tomado por possibilidade, isto , por mundo, sentido, lgos, a
qual perfaz a gnese do real, de todo e qualquer real possvel.
Toda fala, todo discurso sobre ou a respeito de homem, descrevendo-o oucaracterizando-o como alma, esprito, conscincia, eu, pessoa ou crebro, a atual fsica do
crebro, como neuro-biologia, neuro-cincia, gentica, etc, etc, enfim, tudo isso
tardio, posterior, de segunda instncia. Em outros termos, nada disso dado primrio,
imediato. Esforo insensato e desesperado, maneira de Mnchausen, isto , arrancando-
se, puxando-se do pntano pelos prprios cabelos, para descrever e caracterizar o fenmeno
arcaico-originrio, a partir do qual todas estas falas, todos estes discursosjse fazem,jse
do. Em suma, so possveis. sempre querer saltar sobre a prpria sombra.
Tal fenmeno, tal irrupo arcaico-originria ou elementar isto , o elemento ou
medium denomina-se ser-no-mundo e esta estrutura diz o modo de ser (e no coisa, algo)
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Ser-no-mundo, em dizendo esta estruturao de possibilidade para possibilidade,
evidencia que o homem, originariamente, histria, quer dizer, ao, atividade, drama, que,
na verdade, tempo fazendo-se tempo, se temporizando. Da Ser etempo, isto , ser-tempo.
O homem no nada, coisanenhuma, mas s, to s este inslito, este proprissimo ou
ipssssimo modo de ser. E este o elemento, o medium, de tudo que , de tudo quanto h epode haver. E esta estrutura, que abertura e que assim se faz histria, isso ou tal estrutura
medida que antes e igualmente liberdade, pois esta possibilidade de/para diz: aberto, livre
para.
Pois bem, esta estrutura, estaforma (= gnese ontolgica) ser-no-mundo, enquanto
e como liberdade e histria, um e o mesmo com altheia, com o acontecimento que o
movimento (histria-liberdade), a dinmica ou o jogo desvelamento/velamento,
descoberta/retrao, iluminao/ocultao.
4. Todo homem, enquanto homem e porque homem, est mais, na
determinao de verdade como altheia, isto , como desocultao, desvelamento ou
descoberta. Na verdade, isso que caracteriza, que explicita ou esclarece a tradicional fala,
desde os gregos, de ser o homem na determinao do ver. Ver, aqui, quer dizer: ser no
sentido, na determinao do aparecer. Ver ser na determinao, no sentido do aparecer,
mostrar-se ou fazer-se visvel. Ver , pois, ser no e como ver-aparecer. Justamente este modo
de ser perfaz a humanidade do homem sua identidade ou seu prprio. O homem
homem porque isso,graasa isso. E: por qu? Desde onde? Qual a causa? Como? No hpor qu, no h de onde, no h para onde: d-se, faz-se, h, . Por obra e graa de... nada. Por
isso, gratuidade, doao, excesso, transbordamento. Ddiva, presente presena, Dasein.
E ser este e neste ou desde este modo de ser faz do homem, originariamente, no uma coisa
ou um algoqualquer, mas justamente s e to s este modo de ser e coisanenhuma, algo
nenhum. A essncia, isto , a fora geradora ou a gnese de tal modo de ser liberdade.
No liberdade como o ato livrede deliberao de algum (Deus, p. ex.), de alguma vontade
livre, de algum princpio ou de alguma fora (p.ex., natureza, matria, energia), de alguma
faculdade ou propriedade. Mas liberdade como liberao medida que doao e graa. De
graa. Ecloso. Irrupo. Isso, tal ecloso ou irrupo desde nada, por nada e para nada isso liberdade. Gratuidade, no sentido de pura doao. Ser neste modo de ser (verdade,
homem), enquanto e como liberdade (irrupo, graa, doao, gratuidade) isso,
igualmente, constitui, perfaz o ser na e desde a transcendncia.Transcendncia esta pura
ecloso, pura irrupo, que vem sobre, que assim se apropria, se apodera, que sobrevm.
Pura, quer dizer: s, to s. Por nada, desde nada, para nada.
Ein Baum stieg. O reine bersteigung!24
24Cf. Rilke, R.M., Sonetos a Orfeu, I
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Uma rvore irrompeu. pura irrupo, pura transcendncia. Ou a mesma
experincia abissal, alegre e festiva, em Tupiniquim, quando, de repente, algum v um
angelim que atira para cima cinquenta metros de tronco e fronde e, num mpeto, cria
este absurdovocativoe brada: colossalidade!25 Pura irrupo, pura transcendncia.
Gratuidade. Doao. Graa. Transbordamento, superabundncia. Colossalidade!
5. Ser homem ser ou estar irrevogavelmente na determinao, no modo de ser
verdade, enquanto e como altheia, isto , desvelamento, descoberta e, assim e por isso,
apario, iluminao, luz. Mas isso, porm, ainda no ser ou estar na verdade (altheia)
como tal, ou seja, dando-se conta, acolhendo e celebrando, este modo de ser nele mesmo e
como tal. Para tanto preciso despertar pois acordados, esto dormindo . Sem
compreenso: ouvindo, parecem surdos. O dito lhes atesta: presentes, esto ausentes26.
Portanto, para a abertura (o despertar) que ser na verdade (altheia) preciso
igualmente abrir-se, despertar. No se trata somente de ver, mas de ver o ver. Sim, assim, o
homem, a vida, entra no seu prprio elemento e se faz pensamento. O puro elemento do
pensar, disse Hegel27. preciso, pois, despertar (ver!) para o modo prprio de ser que ver,
isto , preciso abrir-se paraou despertar para o ver, para o prprio despertar28como tal e, assim,
ser no modo de ser que ver e ver que v, quer dizer, ver o prprio ver. Puro quixotismo.
Isso, este acontecimento, na Grcia, marca o nascimento da filosofia, quer dizer, o irromper
do lgoscomo lugar e hora do real, de todo real. No , como se costuma dizer, passagem
do mito para o lgos (da i-rrazo para a razo!!), mas o revelar-se que o mito lgos.E: o que, como lgos, quer dizer, a prpria realidade do real? Por esta via, assim, verdade,
enquanto e como altheia, faz-se destino, ou seja, no fatalismo ou fatalidade, mas umou
mesmo oenvio, que marca, que decideo Ocidente, a Europa. O nome deste envio histria,
Geschichte. No histria no sentido de historiografiaou cincia histrica, ou seja, como
catalogao e inventrio de datas, de fatos e dados, de documentos, mas histria como
acontecer, suceder ou o vir-a-ser deste envio, deste modo de ser em se fazendo e se alterando,
e que constitui o drama, a gesta do homem. este o sentido de Geschichte (e no
Historie), de histria, entendida vital, existencial ou ontologicamente. Aqui e assim, ser
no sentido de ser, que ser no sentido, na determinao, no envio de verdade (altheia),faz-se ou torna-se a prpria histria (envio, destino) de verdade (altheia). O Ocidente, a
25Cf. Rosa, J.G., So Marcos, em Sagarana, Jos Olympio, Rio de Janeiro, 1978, p. 23826Cf. Herclito, frag. 34, Diels, trad. E. Carneiro Leo.27 Hegel, em uma de suas Prelees sobre a histria da filosofia, ao comentar Tales de Mileto e o seutudo gua, diz ser esta a primeira frase filosfica e que com esta proposio est aquietada aimaginao selvagem, infinitamente colorida, de Homero (o mito). Inicia-se um pensamento semimagem, sem figurao. Exatamente este o diagnstico de Nietzsche em seu ensaio A filosofia na pocatrgica dos gregos. Igualmente, comentando Tales e o Tudo gua, diz que com isso comea um
pensamento no-mstico e no-alegrico. Isso, este modo de ser, de ver, marca o que Hegel denomina,
em outros lugares, o puro elemento do pensar. Cf. Os Pensadores, Vol. I, Os Pr-socrticos, AbrilCultural, So Paulo, 1973, p. 15 e 17 respectivamente.28Ver ou ouvir vital ou existencialmente, aqui, ver e ouvir dizem o mesmo.
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Europa a assuno, a tomada sobre si deste fardo, deste destino. Um destino, um envio,
sempre um fardo mas leve,pois tarefa e a alegria da e na ao, da e na tarefa possvel e
necessria. Dito mais claramente: o Ocidente, a Europa a tomada sobre si dedestino, de
histria, enquanto e como envio, destino, histria de verdade. O Ocidente, a Europa, no
pode mais no serisso. Ou...?! Barbrie, deserto, niilismo.
6. E destino, dizendo histria, est igualmente dizendo conquista. Mais: auto-
conquista.Estranho, muito estranho isso que pode, e ento precisa, acontecer ao homem:
abrir-se ou despertar para aquilo que ele propriamente , a saber, homem (ser na verdade,
no ver) e ento conquistar, precisar conquistar isso (este modo de ser) que ele . Vir a ser o que
. Este o imperativo maior. Por qu? Para qu? No h isso. Tais perguntas, e as exigncias
ou reivindicaes nelas contidas, j pertencem ao moralismo. Imperativo no est falando
de nenhum prescritivo dever ser moral, mas pura e simplesmente de uma necessidade vital,existencial. A partir deste abrir-se ou deste despertar paraa abertura (modo de ser) que o
marca, que o estigmatiza, a partir da viver ou existir in hoc signo, neste ou desde este
modo de ser, que ser para a verdade (altheia) como tal enfim, a partir da, tudo que
o homem faz , precisa seresforo. Esforo ou empenho. Esforo ou empenho para vir a ser
o que , o que podee, ento, precisa ser. A este esforo ou empenho denomina-se conquista,
auto-conquista. Isso, este esforo, pode ser leve. Ele leve quando se faz necessrio envio,
destino e, ento, liberdade para. Isto , liberdade para a liberao de uma identidade, de um
prprio.
Aqui e assim cumpre-se a vida, a existncia que se faz como o exerccio, a cada passo,
desta conquista. Exerccio sim, ascese. Tal vida cresce, crescimento. Mas nada
acumulativo, somativo, aglutinante. Quantitativo. Algo do tipo engorda para abate. Nada de
agigantamento evolutivo, teratolgico. Nada chocho, balofo,gordo. Vida cresce, quer dizer,
agrava-se, intensifica-se. Vida torna-se, a cada passo, em conquista e autoconquista (esforo,
empenho), mais intensa, mais grave mais simples.Mais sbria, mais econmica de
gestos, de atos, de afazeres. A intensidade exige conciso, diz limpamente Francis Bacon,
busca daforma, busca de gnese ontolgica29. Este , sim, o caminho da, para a forma.
Vir a ser o que enformar-se, vir a ser forma, a gnese ontolgica que , que o homem .Assim cumpre-se realmente vida, ou seja, o movimento que, desde si mesmo, move a si
mesmo. Assim tem-se vida enquanto e como vida ascendente(que cresce), prpria, autntica.
E isso vida nobre, aristocrtica claro, sem nenhum laivo ou rano de coisa tnica,
social, poltica. tnus, tenso vital, existencial e, por isso, amor prprio. A vida forte, mais
forte, isto , mais grave e mais intensa, mais ntida, mais evidente,limpa e lmpida nisso
e por isso mais destino, mais necessidade de envio, de umenvio. Menos escolha e mais livre
(!), pois mais ao necessria para a liberao de um prprio, de uma identidade o
fardo que leve, pois a medida, a medida necessria. E, por isso, mais nobre, ou seja,
29Cf. Sylvester, D.,Entrevistas com Francis Bacona brutalidade dos fatos, Cosac & Naify, 1995, p. 176.
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desenhando, esculpindo, dando forma a um nome, a uma identidade: o nome Homemno
exerccio de sua humanidade, no cumprimento de seu modo prprio de ser de seu
destino, pois. Ele, assim, esculpe a sua humanidade, a sua identidade ou o seu prprio. E,
na verdade, de fato, este escultor o tempo, o tempo fazendo-se tempo, urdindo-se em sua
temporizao. o tempo, pois tudo isso obra de, da histria, Geschichte. Histria eliberdade. E isso, este modo de ser, verdade, enquanto e como altheia.
Aqui, luz deste sentido, em sussurro, ouvimos uma fala de Hegel, que ganha
corpo, se enche, cresce e se faz evidncia e autoridade: Verdade esta ser sempre uma
grande palavra. E, ao ouvi-la, um corao valente, nobre, pulsar sempre mais forte30.
Um corao nobre, intrpido, valoroso, valente. Tambm Parmnides faz eco por
a. Um corao, uma fora, um valor, que pulsa ao ouvir a fora, o valor da verdade, de
verdade a fora, o valor que a verdade . Estamos de volta a Nietzsche?!
7. Em Nietzsche, para se compreender a questo da verdade, na sua radicalidade ou
essncia, preciso v-la, entend-la desde a arte, como arte. Arte a dimenso ou o modo
de ser de vida na(o) qual, exemplarmente, d-se ou faz-se realidade, ou seja, a realizaode
realidade. E realidade, arcaicamente, verdade, pois verdade passa a ser o nome do
movimento de realizao de realidade, de sua gnese, uma vez que realidade, enquanto
realizao, gnese gnese de realidade. E, enquanto gnese, criao. E como gnese
ou criao que d-se, que faz-se verdade portanto, nada de correspondncia ou
adequao a algum estado de fato, seja objetivo, seja subjetivo. Verdade o nome da ao,
da atividade de vontade de poder (vida) enquanto e como aparecer, mostrar-se ou fazer-se
visvel, que criao, pois diversificao, diferenciao.
E parece que Nietzsche pensa e diz o contrrio de Heidegger a respeito de verdade.
Pois, ver-se-, ele diz textualmente: verdade no descoberta. Est, estaria Nietzsche dizendo:
verdade no , no se faz ou no se d desde e como altheia, isto , desvelamento, descoberta?
Mas, parece, estamos misturando as coisas,forando a barra, uma vez que Nietzsche jamais
fala de altheia. Isso coisa de Heidegger, mesmo de heideggerianos e de heideggerianismo
coisa da escola e da confraria. O fato, porm, que Nietzsche pensando verdade desdee como arte, ento desde e como criao, est falando a partir do mesmofenmeno, a partir
da mesma experincia de verdade e respectivamente de realidade. Para falar do mesmo
fenmeno e da mesma experincia (lembremos: experincia evidncia) no preciso que
um pensador faa uso do mesmo nome, da mesma terminologia, das mesmas expresses ou
designaes. O decisivo justamente o fenmeno, a experincia prpria fundadora e
instauradora do fenmeno. Ou seja, decisivo a experincia e a evidncia que da brota,
irrompe. E aqui a nica coisa que interessa o fenmeno, a experincia prpria fundadora
30 Cf. Hegel, G. W. F., Werke in zwanzig Bnden, Band 18, Vorlesungen ber die Geschichte der
Philosophie, Suhrkamp Verlag, Frankfurt, 1975, S. 33.
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e reveladora do fenmeno. Em suma, no caso, s nos interessa a questo, o problema nele
mesmo. E jamais o Heidegger ou o Nietzsche pelo Heidegger ou pelo Nietzsche. Este tipo
de acribia coisa de pesquisadore de especialista o que no e no quer ser, de modo
algum, nosso caso.
Mas, retomando o problema, a questo. Em uma anotao do outono de 1887,
Nietzsche escreve: Verdadeno algo que estivesse a e, assim, algo que seria encontrado,
descoberto, mas algo por criare que d o nome a um processo... [verdade] um determinar
ativo no um tornar-se consciente (tornar sabido) de algo que j estivesse fixado e
determinado. uma palavra para a vontade de poder31.
Portanto, Nietzsche est dizendo o que j falamos a propsito de verdade enquanto
e como descoberta (altheia): verdade no algo que eu encontre a como dado, como coisa
feita, pronta e acabada a ser constatada, verificada, embrulhada ou embalada para ser usada
ou consumida. Neste sentido, no nada descoberto(fixada e determinada a ser encontradae descoberta) o descoberto, aqui, tem o mesmo sentido de topar-se com algo feito,
pronto e acabado e, assim, encontrado, verificado, constatado e assegurado. Tal como
acima dissemos que verdade, enquanto e como altheia, no destapar o po encoberto,
tapado pelo guardanapo ou pela toalha e encontr-lo, descobri-loali atrs, feito, cristalizado,
sedimentado, espera de uso e de consumao. Portanto, como j se viu, Nietzsche est
igualmente dizendo que, em se falando de verdade, no se trata de nenhuma adequao,
de nenhuma correspondncia a nenhum estado de fato objetivo ou subjetivo.
Nietzsche, ao contrrio, diz: no, verdade no isso e assim, mas algo por criar eque d o nome para um processo, o qual uma palavra para a vontade de poder. Bem, e o
que quer dizer isso? O que criar, como? Como um processo, que outro nome para criar?
E como verdade, i. , criar, uma palavra, quer dizer, um outro nome para vontade de
poder, ou seja, para vida? O que d este direito? preciso encaminhar uma compreenso,
uma elaborao deste problema, o criar, a criao, e ver-se- ento que verdade, criar,
processo e vida (vontade de poder) constituem ou perfazem um nico e mesmo movimento,
uma nica e mesma estrutura ou dinmica. Enfim, um nico e mesmo fenmeno. E
possvel que, por esta via, a saber, criar, cheguemos ao mesmo fenmeno e mesma
experincia (ainda que no nos mova e no nos interesse provarisso. No se trata, aqui, denenhuma tese), qual seja, verdade enquanto e como altheia desvelamento, descoberta,
mostrar-se ou tornar-se visvel. Valor isso: ele mostra, ele evidencia, ele ilumina e, assim,
faz, torna visvel. Melhor e mais claramente: ele isso, ou seja, ele o prprio aparecer, o
prprio mostrar-se, impor-se, fazer-se visvel do real, do que aparece, do que e h do
que vale.
31Cf. Nietzsche, F., KGW VIII-2, 9[91], p. 49 ou A Vontade de poder,op. Cit. nr. 552, pg. 288.
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8/13/2019 Gilvan Fogel - Valor e Verdade
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8. O que criar? Como criar? Habitualmente, de modo explcito ou no,
associamos criar novidade, ao novismo, e isso a reboque de subjetivismo. Fantasia, fico,
dizemos. Explicitamente ou no, associamos esta fantasia e fico, com as quais
identificamos criao, com a atividade de um eu, de um sujeito ou de uma subjetividade e
o criado seria expresso, objetivao desta subjetividade. Isso seria a fantasia ou a ficocomo produo de um sujeito, de uma subjetividade, diz-se. Neste contexto, de modo geral,
criao expresso, isto , pr ou espremer para fora, de um dentro, de um interior o
sujeito (seja l o que for e como venha a se determinar). Est a reproduzida a dinmica do
esquema dentro versus/e/oufora, interior versus/e/ou exterior, sujeito versus/e/ouobjeto,
etc, etc.
No entanto, deve-se entender criar, criao, como a ao ou a atividade de pro-moo
(i., de levar adiante, frente, o que Nietzsche, na citao acima, chamou processo) de uma
fora, de uma possibilidade portanto, de vida, de vontade de poder. Observe-se que
um levar adiante voltando, isto , revigorando-se, pois vida, no sendo jamais progresso
infinito, balofo e inflacionado, sempre volta, retorno, retomada. E, na retomada,
revigoramento ou revitalizao de fora, de possibilidade, ou seja, de vida se fazendo vida.
Sim, insistente revitalizao. E isso para o bem ou para o mal, quer dizer, seja como vida
ascendente, criadora (produtiva, poitica), seja como decadncia, niilismo (esterilidade,
inrcia, tdio, apatia). A questo aqui , seria, o quque volta no insistente voltar, retomar,
quer dizer, que tipo de fora se refortalece, se revitaliza ao voltar, ao ser retomada. Criar ,
pois, pro-mooda dinmica do mostrar-se, aparecer ou fazer-se visvel de vida. Assim, criar
a ao, a atividade de promoo, de impulsionar e fazer vir a ser um sentido, pois fora sentido. Fora, valor, o nome ou um outro nome para dizer o ou os verbos de ou na vida,
de ou na existncia, isto , as dimenses, aberturas, perspectivas ou interesses de realizao
ou concretizao de vida.
Mas como promover, promoo? No isso atividade de eu, de vontade pessoal, de
sujeito, de subjetividade? No. Mas Nietzsche, estranhamente, ao se perguntar pelo como
do criar, da criao, diz: querendo. Mais: mandando. Criar querer e mandar. Melhor, querer
como mandar um querer que mandar. Ora, de novo, no isso o extremo, o estertor
de sujeito, de subjetivismo, de voluntarismo? No o paroxstico da igualao, do
achatamento, do nivelamento de tudo vontade subjetiva, ao querer do eu, ao despotismo,
tirania do individual? No. Trata-se de humildade e doura. Humildade, doura egratido.
Como?!
Perguntemos de fato: o que mandar? Como? E agora precisamos considerar que,
em respondendo pergunta pelo mandar, estaremos esclarecendo querer a vontade
que, j dissemos, s h e s se faz como quero.
Um texto extraordinrio, onde Nietzsche
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