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ÍndiceIntrodução: a cidade reurbanizada e o “cidadão em abstracto”.........................................11. Fundamentação teórica..................................................................................................4
1.1 Espaço (de uso) público, igualdade e diversidade....................................41.2 Contextos e regionalização de contextos................................................111.3 Inclusão e exclusão.................................................................................151.4 Mobilidade, competitividade e lazer.......................................................17
1.4.1 Mobilidade e motilidade.............................................................171.4.2 Competição pela massa cambiante.............................................191.4.3 Territórios lúdicos.......................................................................21
2. Método.........................................................................................................................242.1 Investigar o investigador.........................................................................242.2 Interesses e objetivos..............................................................................272.3 Estruturando uma abordagem qualitativa...............................................282.4 Análise: busca de estruturas....................................................................352.5 Objeto.....................................................................................................372.6 Validação.................................................................................................39
3. O processo de produção de cidade..............................................................................413.1 Da indústria ao lazer, dos fundos para a frente.......................................413.2 Expo'98: marketing e heranças urbanas..................................................453.3 Nova centralidade...................................................................................523.4 Inclusão do “cidadão em abstracto” pela “qualidade”............................553.5 Motilidade e ressensibilização................................................................59
4. A organização no cotidiano..........................................................................................654.1 Deslocamentos........................................................................................65
4.1.1 Pedestrialização..........................................................................664.1.2 Tolerância automóvel.................................................................70
4.2 Exercícios e brincadeiras........................................................................724.2.1 Jogging ......................................................................................734.2.2 Brinquedos e improviso..............................................................74
4.3 Comer e deitar.........................................................................................784.3.1 Comer.........................................................................................784.3.2 Deitar..........................................................................................85
4.4 Explorações do recurso social.................................................................884.5 Dois contextos: gare e skate park...........................................................98
4.5.1 Gare............................................................................................994.5.2 Skate park.................................................................................108
5. Participação................................................................................................................1186. Conclusão..................................................................................................................123Bibliografia....................................................................................................................127
Livros e artigos...........................................................................................127Outras publicações......................................................................................130
Anexo 1 – Propostas do Ideia para um Orçamento.......................................................133
Introdução: a cidade reurbanizada e o “cidadão em abstracto”
Em 1948, o plano diretor de Lisboa definiu a criação, na região oriental da
cidade, de uma zona industrial associada ao porto. Ao longo do século XX, essa mesma
região foi também sendo utilizada como abrigo de políticas habitacionais destinadas à
população de baixa renda (Gato, 1997:50 e seguintes). Com a desativação e
obsolescência de parte das indústrias e a crescente viragem da economia portuguesa
para o setor terciário/quaternário (Matias Ferreira e outros, 1997), a região oriental foi
se consolidando como uma periferia social, para além de geográfica, desintegrada da
malha urbana.
Tais condições justificaram que a zona fosse escolhida para abrigar a Exposição
Mundial de 1998 (Expo'98), dada como trunfo para fazer de Lisboa mais competitiva.
Para além do evento, a consecução desse objetivo dependia também do sucesso de um
projeto de reurbanização que visava constituir o que foi apresentado como um nova
centralidade, tirando a zona oriental dos fundos e trazendo-a para a frente da malha
urbana. Para isso, definiu-se um perímetro de 3,3 km2 à margem do Rio Tejo no qual
todas as ocupações anteriores, essencialmente industriais mas também alguma
habitação, foram extintas. Substituíram-nas um parque habitacional destinado sobretudo
aos jovens (Ferreira, 2006:458) e uma oferta de comércios, serviços e espaços públicos
de lazer que, em conjunto com uma expressiva rede de transportes e de malha viária,
permitem que a administração divulgue hoje que o perímetro seja visitado por 20
milhões de pessoas por ano ante uma população residente de 25 mil (PESA, 2010).
Ao nível de governança, o território, entretanto batizado de Parque das Nações,
não está submetido à estrutura comum de administração urbana em Portugal, composta
por autarquias municipais e (com um poder muito mais reduzido) freguesias. Todo o
projeto Expo, como a gestão ainda hoje, é mais proximamente ligado ao Governo
Central Português, acionista majoritário da empresa constituída para realizar a
intervenção e fazer a gestão urbana temporariamente – uma nova versão do centralismo
característico das cidades europeias (Les Galès, 2005).
É a produção dos espaços públicos nesse território que nos propusemos
investigar. Como se organiza aí a vida social? – foi a questão inicial que nos colocamos,
ainda na fase exploratória da pesquisa de terreno, quando formulamos a hipótese,
entretanto confirmada parcialmente, de que haveria um controle rígido dessa vida
social. Que formas de ocupação são promovidas, toleradas, desestimuladas, interditas? –
foi o que nos perguntamos quando já a recolha de dados ia avançada e o princípio
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organizativo que buscávamos parecia se delinear nessas quatro categorias. Como as
estruturas sociais de ação ou interpretação (mais resistentes ou mais flexíveis, mais
permanentes ou mais fugididas) identificáveis na vida cotidiana dos espaços públicos do
Parque se relacionam com estruturas sociais mais abrangentes e duradouras? –
questionamo-nos nas fases finais da análise. A observação direta da vida cotidiana e
conversas sem guião foram centrais à investigação. São os dados recolhidos com essas
ferramentas que constituem a base das reflexões desenvolvidas, para as quais
recorremos também a entrevistas orientadas por guiões temáticos e à análise de
documentos. Apostamos, em linha com José Machado Pais (2002), na densidade do
cotidiano como janela para a estruturação da vida social e, em linha com Anthony
Giddens (1986), na contextualidade da ação.
Partindo dessa abordagem, investigamos em três perspectivas: como a produção
de espaços públicos envolve a organização da vida cotidiana desenvolvida nesses
espaços; a função deles como instrumento para a promoção da competitividade urbana;
e como essa produção envolve a criação de um sistema de participação indireta na
própria produção.
Percebemos que o urbanismo adotado no Parque das Nações chamanos
indivíduos a ocupar os espaços públicos e influi no estabelecimento ou no evitamento
de coexistências e interações. Isso envolve exclusão de algumas formas de ocupação, e
por aí da presença de alguns papéis desempenhados pelos indivíduos no meio urbano,
mas também pela própria inclusão, ainda que condicionada, de outras. Há uma
expressiva negação da exclusão de qualquer papel, o que é condizente com a ideia de
que o espaço, quando público, deve ser acessível e, assim, pensado para o “cidadão em
abstracto” citado no título, como o responsável pela gestão urbana do Parque define o
público-alvo da empresa que administra. Uma ideia, por sua vez, que condiz com a
ficção moderna de que os indivíduos, por assim o serem, partilham de uma e a mesma
igualdade (Martucelli, 2002).
A competitividade se traduz em uma política urbanística voltada a captar e
promover um fluxo permanente de população cambiante com vistas ao consumo lúdico
dos espaços de uso público. O favorecimento à circulação, uma característica da
modernidade segundo Michel Foucault (2007), é combinado com a valorização do lazer,
uma característica do urbanismo contemporâneo apontada por Luís Baptista (2004) e
que serve como estratégia para ancorar temporariamente o indivíduo nos espaços
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públicos.
A participação desse indivíduo na produção do espaço público ocupa, em outras
bases e ao menos em parte, o vazio de participação pública nas políticas urbanísticas
que foi aberto quando o Governo Português optou por atribuir a responsabilidade pela
reurbanização a uma empresa de estrutura privada e de capitais públicos, com
competências excepcionais para intervir no tecido urbano de uma forma que pudesse
prescindir dos processos de debate político convencionais a que, é o comum em
Portugal, estão sujeitos os instrumentos de produção de cidades.
***
A dissertação está dividida em duas partes: na primeira, apresentamos a
fundamentação teórica (capítulo 1) e o percurso metodológico (capítulo 2). O nosso
objetivo é, com ambos, justificar e permitir a validação do trabalho investigativo, da
construção do objeto às conclusões a que chegamos, passando pela análise desenvolvida
nesse processo. A segunda parte apresenta as três perspectivas a partir das quais
olhamos para a produção dos espaços públicos no Parque das Nações avançadas acima:
a da política urbanística de competitividade (capítulo 3), a da organização da ocupação
dos espaços de uso público (capítulo 4) e a da promoção da participação indireta do
indivíduo (morador, trabalhador ou turista) na produção desse espaço (capítulo 5).
Uma breve nota sobre a língua utilizada no texto: está escrito em português
brasileiro sob as regras do Novo Acordo Ortográfico. Entretanto, quando pareceu
necessário e nos foi possível, utilizamos termos e construções frásicas do português
europeu como forma de torná-lo mais adequado ao contexto de produção da dissertação:
assim, ônibus (brasileiro) virou autocarro (europeu). O português europeu também foi
utilizado nas citações em português europeu e nas transcrições de trechos das entrevistas
com falantes de português europeu.
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1. Fundamentação teórica
Pretendemos esclarecer em qual quadro teórico a presente investigação se
produziu. A apresentação dele em primeiro lugar em um estudo de abordagem
metodológica indutiva se deve ao fato de acreditarmos que a teoria, como a entende
José Machado Pais (1991:9) serve de legitimação do processo de investigação e,
principalmente, funciona como quadro de referência de construção desse processo.
Assim, a teoria teve aqui um papel para além de legitimador da seleção do objeto, da
escolha da metodologia e da validação das análises: funcionou como material para
construção do objeto, da metodologia e das análises. Por isso, algum dado empírico será
utilizado, uma vez que não se trata de algo pertencente a um domínio separado dos
outros.
1.1 Espaço (de uso) público, igualdade e diversidade
Nessa primeira parte, nosso objetivo é mostrar como o conceito de espaço
público é entendido como um lugar da cidade onde igualdade e diversidade devem ser
possíveis. Para isso, é necessário separar o que são espaços públicos no plural do espaço
público em sentido amplo, no singular.
O conceito de espaço público costuma invocar, ao menos, duas dimensões
(Sennett, 1974; Fortuna, Ferreira e Abreu, 1998/1999; Urry e Sheller, 2003; Innerarity,
2006; Leite, 2008; Tonnelat, 2010): a de espaço de acesso físico virtualmente irrestrito
(ruas, praças), quase que exclusivamente urbano e de propriedade pública, em oposição
aos espaços privados (lar, local de trabalho); e a de esfera pública domínio de
constituição da ação política e cívica e do debate.
As características físicas que permitem que um espaço físico seja chamado de
espaço público em sentido amplo (no singular) são ligadas normalmente ao seu estatuto
jurídico de propriedade e à sua acessibilidade (Urry e Sheller, 2003; Leite, 2008;
Tonnelat, 2010). Nesse sentido, são considerados espaços públicos (ou possivelmente
públicos) a) os detidos pelo Poder Público; b) e os que não impõem limitações ao seu
acesso. Esse é um ponto de vista mais comum no urbanismo, como identifica Stéphane
Tonnelat (2010).
A aproximação entre o Poder Público e a iniciativa privada no que toca à gestão
do território, oferecendo a um e outro novos recursos e constrangimentos para
intervenção, torna o primeiro critério, de certa forma, insuficiente. Os Business
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Improvement Districts (Tonnelat, 2001), as concessões urbanísticas e a criação de
empresas de estrutura privada e capital público para a gestão urbanística de territórios
urbanos, como é o caso no Parque das Nações, coloca-os, ainda que mantida a
propriedade pública, sob controle em alguns casos quase absolutamente privado1. A
aproximação então constitui um equilíbrio de poder muito diferente entre os indivíduos
e instituições envolvidos com o território em relação àquele equilíbrio existente quando
titularidade e administração obedecem à estrutura pública convencional.
As apropriações dos espaços pelos indivíduos também contribuem para tornar o
critério da propriedade pouco preciso. Demonstram essa imprecisão os interstícios
criados entre o espaço privativo do lar e o espaço da rua (Bouchanine, 1991); as
fronteiras que permitem a urbanitas criarem ambientes privados em espaços de
titularidade pública como as praças (Arantes, 1997); a circulação automóvel que permite
estar em espaços privados mesmo estando em espaços de titularidade pública (Urry e
Sheller, 2003); e a reprodução de características da vida privada (segurança, higiene,
separação das funções habitacionais como estacionamento, alimentação, vestuário) nos
centros comerciais (Fortuna, Ferreira e Abreu, 1998/1999), que são espaços privados
mas de acessibilidade física ampla.
A acessibilidade também se mostra insuficiente como critério se levarmos em
conta o que Fortuna, Ferreira e Abreu chamam de lógica própria de ordenamento e de
poder interno.
“Ora, a ideia de um espaço público de acesso e expressão livres, individual e grupal, como a sustentada por Lefebvre – o «espaço da representação» – parece exagerar na suspensão dos constrangimentos sociais e simbólicos que os configuram. O nosso argumento vai no sentido de sustentar que tanto os espaços especializados da produção e consumo culturais, como os espaços auto referenciados da cidade (como a rua ou a praça pública), por onde todos passam sem que ninguém aí permaneça, ou os espaços onde se permanece sem que ninguém ou poucos por aí passem (por exemplo, os espaços psicotrópicos das cidades) para nada dizer dos espaços de prolongamento do quotidiano de trabalho (por exemplo, os espaços de lazer ou de consumo massificado), todos eles, dizíamos, têm uma lógica própria, material ou simbólica, de ordenamento e de poder interno” (1998/1999:91)
Essas lógicas de ordenamento e de poder, a nosso ver, estabelecem limites
sociais que permitem que espaços completamente acessíveis do ponto de vista físico
sejam refratários e mesmo impeditivos a algumas ocupações e atrativos ou mesmo
1 Concessão urbanística é um instrumento jurídico que concede à iniciativa privada a gestão do territórios de titularidade pública
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exclusivos para outras. Há aqui uma preocupação com o efeito causado por
constrangimentos ao espaço público (em sentido amplo) no singular – ou seja, uma
evolução da análise da dimensão puramente física para a dimensão política do espaço
público.
Essa reflexão permite que passemos à análise da relação entre esse conceito
quando aplicado ao meio urbano e as ideias de igualdade e diversidade.
A igualdade é uma ideia e uma imposição essencialmente modernas segundo
Danilo Martucelli (2002), embora não seja exclusividade desse período histórico.
Expressa-se nas emergências da democracia como sistema político institucional, da
figura do cidadão dotado de direitos universais e da necessidade de traduzir todas as
diversidades e desigualdades em uma linguagem universal. No campo das interações
sociais, emerge o regime político igualitário (o conceito de regime político entendido
como a estrutura política das relações sociais entre os indivíduos no sentido amplo, não
apenas no institucional), que coloca o indivíduo na obrigação de ser tratado como um
igual e de exigir que os outros também se sintam assim, iguais. O regime igualitário
emerge em oposição ao que o autor classifica como o regime hierárquico (2002:247)
bem representado na sociedade de corte, no qual as diferenças são “reconhecidas em
sua radical singularidade” e assim servem como recurso legítimo para definir a posição
do indivíduo na escala social2. Essa posição social, por sua vez, dita a posição do
indivíduo em uma escala de humanidade – e, portanto, natural.
O regime igualitário irá contrapor a essa ficção hierárquica de uma hierarquia
natural dos seres (Martucelli, 2002:248), a ficção de uma igualdade pela qual as
diferenças existem mas devem ser, de certa forma, ignoradas – para o que as regras da
interação em público descritas por Erving Goffman são ferramentas para lá de úteis,
necessárias3. O indivíduo é constrangido a exigir ser tratado como um igual e de exigir
que os outros também se sintam assim, iguais.
“L'égalité, axée sur des droits universalisables, suppose d' ignorer, d'une manière ou d'une autre, les différences entre les individus dans un but particulier et de considérer des personnes différentes comme équivalentes (mais non forcément identiques) pour un propos déterminé. Les demandes d'égalité visent à faire reconnaître la légitimité de certaines diférences non reconnues, mais, pour ce faire, elles exigent l'existence d'un langage commum.” (Martucelli, 2002:250-251)
2 “dans sa radicale singularité” no original (tradução nossa)3 Cf., por exemplo, Stigma (1963)
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A igualdade irá se materializar também na ideia de público, como aponta
Richard Sennett na obra de Alexis de Tocqueville. Aí, o termo público remete ao que é
composto de “outros como cada um” (1974:31), separado do domínio privado4. Por ser
público, o espaço público em sentido amplo (seja ele um espaço físico ou virtual)
carrega esse ideal moderno da igualdade também por que, na senda de Martucelli
(2002), é a vigilância exercida pela esfera pública que garante a manutenção da ficção
igualitária.
Olhando para como se constitui o espaço público no espaço físico urbano
retalhado em condomínios fechados, Teresa Caldeira aponta justamente para o risco de
igualdade, abertura e acessibilidade – valores modernos – deixarem de ser
determinantes,
“In its modern version, today’s destruction of modern public space is leading not to the end of public space altogether but to the creation of another kind. Privatization, enclosure, and distancing devices offer means not only of withdrawing from and undermining a certain public space (modern) but also of creating another public sphere: one that is fragmented, articulated, and secured by separation and high-tech devices, and in which equality, openness, and accessibility are not organizing values.” (2000:331)
Igualidade e acessibilidade, portanto, surgem em conjunto na constituição do
espaço público urbano moderno, como indica também a crítica de Sennett (1974:13) à
morte do mesmo. Para Sennett, a existência de barreiras físicas à entrada ou à
permanência dos indivíduos nesses espaços físicos urbanos é um dos elementos a fazer
com que o espaço público urbano amplo (no singular) possa ser considerado morto.
Juntamente com a igualdade e a acessibilidade, porém, há o entendimento de que
o espaço para ser público em sentido amplo tem de permitir que a diferença aí conviva
ou pelo menos que possa aí conviver a fim de que possa ser constituída uma esfera
pública. E é por isso que uma rua ou uma praça não podem, nem mesmo elas, ser
consideradas espaços público a priori, como afirma Leite (2008:50). A rua, assim como
uma praça, pode ser considerada um espaço público em potencial, pois carece da
dimensão de esfera pública para se se efetivar como tal. E para que a esfera pública
possa emergir, é preciso que o espaço possa ser mais do que vivido: é preciso que esse
espaço possa ser traduzido como espaço do discurso, da ação política e da diferenciação
(idem, 2008:51). Assim, igualdade e diversidade (ou assimetrias e discordâncias)
surgem ambas como condições necessárias para que um espaço qualquer possa ser
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chamado de espaço público5.
“Para se tornar locus da igualdade de direitos e da liberdade política, o espaço público deve suportar também as assimetrias de fala e participação, que refletem muitas vezes as desiguais formas de inserção social dos agentes envolvidos. Ao contrário de perder sua prerrogativa política com o litígio, o espaço público pode se constituir exatamente no ponto onde as discordâncias afloram.”(Leite, 2008:51)
Para Leite, a existência dessas assimetrias decorre da afirmação pública das
diferenças dos indivíduos, que se expressa na apropriação dos espaços físicos,
apropriação essa que os tornam lugares. Esses lugares – espaços físicos apropriados –
dependem não só de uma convergência interna, mas também de uma existência externa.
Dependem, assim, do reconhecimento público, mesmo que pelo conflito, de sua
existência. É importante ressaltar que, para Leite, esses conflitos não têm,
obrigatoriamente, de se apresentar como protestos ou como uma forma mais
institucionalizada de expressão para que a existência externa dos lugares venha a
ocorrer (e, em consequência, para que o espaço público possa emergir). Basta mesmo
que haja afirmação de estilos de vida diferentes, já que a esfera pública não se resume à
participação cívica ou política, muito menos apenas à participação cívica ou política
institucionalizada.
Valorizar o reconhecimento público das diferenças, como o faz Leite (2008), é
característico de um terceiro regime da interação que Martucelli (2002) irá definir como
o da diferença. O indivíduo, nesse novo regime, quer que suas diferenças sejam
reconhecidas socialmente e não mais ignoradas em favor de uma ficção igualitária. É o
modo pelo qual ele consegue se singularizar, um novo princípio que, pese a aparência
contraditória, também é universalista: todos são iguais e, por isso, todos têm o direito e
a obrigação de terem suas diferenças reconhecidas quando assim o querem. Por isso, o
regime da diferença é não uma ruptura, mas uma "inflexão vis-à-vis" (2002:292) o
regime igualitário: a afirmação pública de si faz parte do mesmo processo moderno de
individuação que contrapõe à rigidez apriorística do regime hierárquico a liberdade de
ser sujeito de si garantida pelo regime igualitário6.
O melhor contexto para a afirmação pública da diferença, não podia deixar de
ser, é a cidade. A diversidade remonta ao urbanismo como modo de vida descrito por
5 Ao apontarem para as lógicas de poder e ordenamento interno, Fortuna, Ferreira e Abreu (1998/1999) parecem ter a mesma preocupação como pano de fundo: a de que haja limites à diversidade em razão dessas lógicas e ordenamento
6 “une inflexion vis-à-vis de l'égalité” (t.n.)
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Louis Wirth (1997), para quem a cidade atrai e recompensa as diferenças individuais
justamente em razão da diferença. Na cidade, o urbanita circula entre diversas redes e
estruturas de grupo sociais, elas mesmo constantemente em alteração pela contínua
troca de integrantes. Essa mobilidade entre redes e a convivência com o outro é que
conferem ao indivíduo as características de "cosmopolitismo e sofisticação" (1997:57)
próprio do urbanita7. Hannerz (1983:278-280) relaciona a convivência com a
diversidade a um aumento da reflexividade do indivíduo e a um aumento da empatia ou
mesmo da curiosidade pelo outro. A diversidade parece tão natural ao meio urbano que,
segundo Innerarity (2006), no campo nós nos surpreendemos quando encontramos os
estranhos. Na cidade, quando encontramos os conhecidos.
Para além da diversidade de indivíduos e de redes, é na cidade que o indivíduo,
projeto e problema da modernidade (Wagner, 1996; Martucelli, 2002; Tilley, 2006),
encontra melhores condições para cumprir o desiderato moderno de ser sujeito de si,
agora se diferenciando. Quando se apagam as "identidades naturais" (Wagner,
1996:280) e se criam comunidades com fundamentos diferentes, não transferidas
historicamente mas "escolhidas pelas pessoas diretamente em sua ação" (idem,
1996:280), é na cidade que o indivíduo pode ser o homo goffmani (Hannerz,
1983:290), que devido à miríade de públicos, aí encontra um expressivo inventário de
papéis a desempenhar e, devido à miríade de contextos mais ou menos confinados, aí
encontra a segregação necessária para poder incluir vários deles em seu repertório,
mesmo que contraditórios – ou simplesmente incumpri-los como forma de se
singularizar (Hannerz, 1983; Martucelli, 2002)8.
A cidade é onde o indivíduo consegue deixar de ser submetido aos papéis e à
hierarquia deles, adere à obrigação da igualdade e, em seguida, encontra o público
necessário para afirmar suas diferenças e assim, completar seu projeto de ser um
indivíduo. Nos termos dos regimes políticos da interação, passa-se de uma primazia da
ficção hierárquica à primazia da ficção igualitária e, ao se questionar essa última pela
normalidade normativa que estabelece, à necessidade de diferenciação publicamente
reconhecida.
Parece, então, compreensível o entendimento de Leite de que os espaços
públicos (de uso público) só possam se tornar espaço público no sentido amplo (no
singular) se houver possibilidade de convivência de diferenças. Também parece
7 Para a mobilidade social dos indivíduos, cf. 1.4.1 Mobilidade e Motilidade8 “identités quasi naturelles” e “choisis par les gens eux-mêmes dans leur action” (t.n.)
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compreensível que a tolerância seja incluída como um dos indicadores das cidades
criativas – e assim, economicamente competitivas – por Richard Florida (2005:91) e
que seja difícil discordar de iniciativas formuladas na linguagem da diversidade. Como
afima Loretta Lees sobre o uso da ideia da diversidade no discurso de planejadores de
uma revitalização em Portland (EUA),
"While this wide range of uses [previstos para a área de reabilitação] threatens to make the term incoherent, it is also key to the appeal and power of diversity in planning discourse. Like motherhood and apple pie, diversity is difficult to disagree with. Janus-like, it promises different things to different people" (2003:621)
Em resumo, é sobretudo nessa viragem do regime igualitário para o de diferença
que, julgamos, enquadra-se o clamor por um espaço de uso público que permita não só
o acesso, mas também a possibilidade de existência e mesmo afirmação pública de
diferentes; e que a diversidade e a tolerância surgem como palavras de ordem
influcenciando o modo como as cidades e os espaços de uso público são entendidos,
apropriados, geridos e analisados.
***Antes de concluir, cabem apenas alguns esclarecimentos sobre como os termos
“espaços de uso público”, “espaços públicos” e “espaço público” são utilizados nesta
dissertação.
Parece-nos mais adequado utilizar “espaço de uso público” e “espaços públicos”
para designar os espaços físicos de propriedade pública ou privada de acesso físico
virtualmente irrestrito e livres de um controle de entradas e saídas formalizado e/ou
ostensivo – como as ruas, praças e alguns equipamentos de transporte e lazer, em
oposição aos espaços físicos de acesso restrito (mesmo que de uso público) como um
Centro Comercial que fecha durante noite ou uma sala de concertos que, via de regra,
cobra entradas, ou uma residência. Essa escolha tem algumas justificativas.
Em primeiro lugar, é o entendimento mais próximo do que encontramos no
campo, entre os indivíduos responsáveis pela gestão dos espaços analisados. Em
segundo lugar, foram espaços desse tipo que, à partida, consideramos como aqueles que
seriam analisados. Em terceiro, porque embora a acessibilidade física não seja condição
suficiente para constituir um espaço público, ela parece ser uma condição necessária,
transversal que é às conceitualizações acima apresentadas.
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1.2 Contextos e regionalização de contextos
Contexto é um conceito central para a presente investigação. Julgamos – na
senda de Giddens (1986) – que ao menos parte dos recursos e constrangimentos para a
ação dos agentes pode ser encontrada no contexto em que essa ação se desenvolve e que
ela, por sua vez, também constitui o contexto. É nos contextos, portanto, que o
investigador pode buscar discernir, compreender e elaborar as estruturas nas quais se
pode falar em organizações da vida social, quer seja ao nível da interação face a face,
quer seja em maiores intervalos espaçotemporais, quer sejam estruturas permanentes,
quer sejam absolutamente instáveis. Posto de outra forma, a estruturação da vida social,
entendemos, pode ser explicada por meio dos contextos, alguns maiores, alguns mais
permanentes, outros menores, outros mais fugidios.
Além disso, a ideia de regular contextos parece relevante ao urbanismo. Michel
Foucault vai identificar como as políticas urbanas evoluem da correta distribuição do
território para a regulação do meio na cidade. O meio, um conceito muito próximo de
contexto, será objeto de interesse de arquitetos e urbanistas a partir do século XVIII9.
“What is the milieu? It is what is needed to account for action at a distance of one body on another. It is therefore the medium of an action and the element in which it circulates. It is therefore the problem of circulation and causality that is at stake in this notion of milieu. (...) The milieu is a certain number of combined, overall effects bearing on all who live in it. It is an element in which a circular link is produced between effects and causes (2007:36)
A noção de meio é empregada por Foucault em sua análise dos mecanismos de
poder intrínsecos ao ordenamento do urbano como uma tecnologia de segurança. O
autor recorre a três exemplos de cidades, que representam as três modulações da
segurança: a) a soberana, em que as intervenções sobre o espaço têm por objetivo fazer
da cidade a capital de um território e colocar o Rei no centro dessa capital, garantindo a
boa circulação de seu poder; b) a disciplinar, em que as ocupações do espaço são
estabelecidas a priori e de acordo com o tipo (o comércio em quadras menores, mais
próximas ao eixo central; as residências, em quadras maiores mais distantes do eixo
central) e que tem por objetivo garantir o bom funcionamento e a mobilidade
9 A noção de contexto guarda grande proximidade com a de meio de Michel Foucault, não sendo entretanto idêntica. Destacamos duas proximidades: a) em ambos os conceitos, características espaçotemporais funcionam como recurso e constrangimento para a ação; b) em ambas, a ação afeta, e deste modo constitui, o contexto/o meio. A diferença parece residir sobretudo na escala: no texto citado, Foucault utiliza a noção de meio para uma dimensão espaçotemporal ampla – a cidade como um todo, ou pelo menos para territórios largos da cidade – e não também para a interação face a face, à qual a noção de contexto também é aplicada por Giddens (1986).
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endógenos, sobretudo10; c) e a de segurança, onde a mobilidade interna e externa são
potencializadas e o objetivo passa a ser a regulação do meio – que engloba, como visto,
tanto o espaço da cidade como o uso que a ele dá uma população11. Essas três
modulações, podendo ser vistas como um processo evolutivo do urbanismo, são
abordagens diferentes que entretanto se sobrepõem em diferentes momentos históricos.
Assim, mais uma vez, o conceito de contexto nos parece útil para fazer a
investigação sobre a organização da vida social nos espaços públicos da cidade
reurbanizada. A sua abrangência, entretanto, permite que se abriguem sob ele as mais
diversas características de uma ocupação desses espaços. Foi-nos preciso fazer um
recorte e aqui, mais uma vez, a posição teórica foi determinante. Como tratamos de
espaços de uso público e de ocupações que neles se dão, as características escolhidas
para análise são o espaço-tempo e os papéis desenvolvidos pelos indivíduos12. A
necessidade de fazer esse recorte decorre do diálogo entre os dados empíricos e a teoria.
Cabe aqui uma breve justificativa de por que escolhemos essas características.
Ainda que as relações sociais na cidades não se resumam à competição pelo
espaço, como Hannerz (1983:82) critica na Escola de Chicago, as formas que se
constituem na organização desses espaços são formas sociais que influem na
estruturação da vida social. Isso desde a definição dos usos e ocupações do solo em
planos diretores, passando pela formatação de populações por meio de políticas de
habitação (Mitchell, 1993; Mommaas, 1993; Baptista, 1996; Silva Nunes, 2003) até o
desenho e a disponibilização de mobiliário urbano no espaço de uso público (Thörn, no
prelo). Como refere Fran Tonkiss,
“(...) urban spaces can be seen as structuring social relations and processes, and in turn as shaped by social action and meanings. 'Spatial relations', as Simmel (2004:73) asserted, 'are only the condition, on one hand, and the symbol, on the other, of human relations.' The organization of space both provides the basis for social relations, and offers a reflection of them” (2005:2)
O fato de algumas representações, como afirma Erving Goffman, só poderem se
dar em determinadas regiões, também indica a importância do espaço para a
10 Ordenando também as populações hierarquicamente, colocando as casas maiores voltadas para o eixo central e as casas menores nas perpendiculares, numa demonstração da organização social do espaço
11 Cf. “Ordonance, discipline and regulation” (Rabinow, 2003) para uma análise sobre o poder nessas três modulações
12 Tem clara influência nessa decisão, assim como teve ao longo de todo o processo de investigação a abordagem dramatúrgica de Erving Goffman (1973;1986), por permitir revelar o caráter fugidio dos contextos de interação, a possibilidade de identificar neles estruturas de conduta e significação e, ao mesmo tempo, a fragilidade dessas estruturas
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organização da vida social na escala da interação face a face. O conceito de decoração é
criado pelo autor para englobar as características físicas do espaço onde essa interação
ocorre, sendo constituintes do seu significado e adquirindo significado (reiterado ou
novo) por meio dela13. As características temporais do contexto, por sua vez, vão ser
quase que indissociáveis das espaciais. Como afirma Goffman,
“(...) dans la société anglo-américaine, qui est relativement fermée, il est d'usage de ne donner une représentation que dans une région strictement délimitée, à laquelle s'ajoutent le plus souvent des limites temporelles. L'impression produite par la représentation et sa signification tendent à saturer la région et le temps qui lui sont consacrés, de sorte que toutes les personnes situées aux différents endroits de ce espace-temps sont à même d'observer la représentation et d'être guidées par la définition de la situation qu'elle fournit.” (1973:105)
Jaber Gubrium, que lê o social a partir da ideia de estruturas de interpretação e
formas sociais, afirma que14
“Social forms have their presumed experiential locations, places believed to present their ultimate realities. For example, while we consider domestic relations in diverse places, from the household to the office, it is commonly taken for granted that, in the final analysis, the familial experience is to be found in the home. Household is the location of last resort when it comes to searching for an answer to the question of what 'really' goes on in family life.” (1988:61)
Os papéis desenvolvidos em um contexto, e a distribuição deles pelos contextos,
oferecem outra possibilidade de identificar estabilidades da vida social. Hannerz
(1983:136) chama de inventário ao conjunto de papéis disponíveis em um determinado
contexto. Longe de considerá-los como, exclusivamente, os únicos papéis disponíveis,
trata-se de identificar quais são aqueles que encontram maiores ou menores recursos ou
constrangimentos para serem desenvolvidos em determinado contexto, seja em relação a
interlocutores, a decorações ou a fachadas pessoais.
Tendo em vista esses dois elementos, entenderemos então o Parque das Nações
como um contexto, dentro do qual contextos menores – que poderíamos chamar de
subcontextos – se constituem. Dentro dos quais contextos ainda menores se constituem
– subsubcontextos, se quisermos – e assim sucessivamente até o nível da interação face
a face. A nossa análise será empreendida sobretudo sobre as características espaço-
temporais e sobre os papéis envolvidos nos contextos das ocupações dos espaços de uso
13 “décor” (t.n.)14 Cf. 2.4 Análise: busca de estruturas
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público analisadas.
As intervenções no contexto e o próprio contexto, como visto acima, funcionam
como maneiras de organizar a vida social. Os próprios contextos podem ser distribuios
espaçotemporalmente. A essa organização dos contextos Giddens (1986) chama de
regionalização. O conceito é aqui mobilizado, e nossa interpretação dele brevemente
explicada, por nos permitir analisar como a distribuição espaçotemporal de ocupações
está relacionada à organização dessas ocupações em estruturas sociais mais abrangentes,
como por exemplo a definição do que cabe às frentes e aos fundos da cidade.
O conceito de regionalização permite interpretar a) o que são as regiões frontais
e posteriores de um contexto; e b) a organização de diversos (sub)contextos em regiões
frontais ou posteriores. Assim, as regiões frontais dos contextos, e os subcontextos
contidos em um contexto frontal estão ligados a uma maior visibilidade: as regiões
frontais são, na linguagem dramatúrgica de Goffman, o proscênio da representação. Na
interação face a face, é a região onde é possível ao analista ver o que o ator (individual
ou coletivo) apresenta ao seu interlocutor. A região posterior, ou as coxias, é onde ficam
escondidos os elementos não apresentados ao interlocutor (deliberadamente ou não) e
onde a visibilidade é, portanto, menor. A postura corporal, nas interações face a face, é
uma ferramenta imediata para a regionalização.
Essa dualidade, Giddens mostra, pode ser aplicada a contextos espaçotemporais
mais amplos. Giddens (1986:130) indica como, no passado, em algumas cidades do
Norte da Inglaterra, as regiões industriais eram orgulhosamente a região frontal das
cidades e hoje, não o são mais.
Uma segunda característica do conceito de regionalização o torna útil aqui. Na
formulação feita por Giddens, a distribuição de contextos por regiões amarra esses
contextos a estruturas dos sistemas sociais mais abrangentes espaçotemporalmente. É o
que o autor chama de caráter da regionalização, que organiza os locales – conceito que
tenta apreender o espaço físico em conjunto com as características sociais, à semelhança
do conceito de lugar utilizado por Leite (2008).
“By the 'character' of regionalization I refer to the modes in which the time-space organization of locales is ordered within more embracing social systems. Thus in many societies the 'home', the dwelling, has been the physical focus of family relationships and also of production, carried on either in parts of the dwelling itself or in closely adjoining gardens or plots of land. The development of modern capitalism, however, brings about a differentiation between the home and the workplace, this differentiation
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having considerable implications for the overall organizations of production systems and other major institutional features of contemporary societies.” (1986:122)
O conceito de regionalizaçào, portanto, vai ser utilizado aqui de duas formas e
em duas escalas. Na escala interna ao Parque da Nações, será utilizado para demonstrar
como ações, papéis e (sub)contextos são regionalizados frontalmente ou posteriormente,
e como a vigilância garante que virtualmente todos os contextos espaçotemporais sejam
frontais aos olhos da administração; e para demonstrar como essa distribuição define o
caráter lúdico do espaço de uso público do Parque – a que chamaremos de ambientação
lúdica. Na escala externa, será utilizado para analisar como o lazer passa a ser
regionalizado como a frente da cidade e o uso industrial e habitacional para baixa renda,
como os fundos.
1.3 Inclusão e exclusão
Para apreender esse processo dialógico, pareceu-nos útil criar a ideia de
processos de inclusão e exclusão como conceito analítico (Wieviorka, 1994) para
analisar a organização da ocupação dos espaços de uso público do Parque das Nações.
Cabe mostrar alguns conceitos já estabelecidos na teoria social dos quais o nosso
conceito analítico se aproximam e que foram utilizados para desenvolve-lo.
A inclusão encontra proximidade com o conceito de “formalização” que Monica
Degen (2003) utiliza para classificar as estratégias do que chama de “formalização da
vida pública” em Castlefield (Manchester/Inglaterra) – uma frente ribeirinha
revitalizada assim como o Parque das Nações15. A autora desenvolve o conceito a partir
da observação de como a administração do território, a cargo de uma agência do
governo central destinada a atrair capital privado, decide regular os eventos,
essencialmente lúdicos, desenvolvidos nos espaços de uso público do território.
A nossa ideia de inclusão tem uma abrangência maior. Primeiro, por aplicarmos
o conceito de formalização (que chamamos institucionalização) também a outros tipos
de atividades desenvolvidas nos espaços públicos que não necessariamente são lúdicas,
como a distribuição de folhetos (e outros materiais, como jornais). Além disso, enquanto
Degen aplica o conceito a eventos que passam a ser organizados e de certa forma
promovidos pela própria administração, nós classificamos como inclusão outras ações
desenvolvidas quer pela administração, quer por outros atores institucionais
15 “formalization” e “formalizing public life”, (t.n.)
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intervenientes no perímetro, que acabam por solidificar uma ocupação em um
determinado contexto espaçotemporal do território – como por exemplo, a tolerância
com a permanência de sem-abrigo em um corredor da Gare do Oriente, principal
interface de transportes do Parque. Ou seja, a inclusão não pressupõe apenas
institucionalização (ou formalização, como prefere Degen).
A ideia de exclusão, por sua vez, aproxima-se do conceito de políticas suaves de
exclusão de Catharina Thörn (no prelo), que a autora forja para explicar como a
administração do centro de Gotemburgo (Suécia) age para retirar do centro da cidade
quem dorme na rua16. Esse conceito mostra como um mesmo objetivo, o de tirar de
vista os sem-abrigo materializa-se de uma maneira mais suave na Suécia em
comparação com o revanchismo das leis anti sem-abrigo adotadas em cidades dos
Estados Unidos da América e que impedem diretamente essas ocupações17.
As políticas suave de exclusão retiram os sem-abrigo de zonas centrais e os
empurram para as franjas da cidade sem diretamente proibir a sua presença. Essas
medidas podem ser divididas em três grupos (a autora o faz em 2): a) sanitizantes, que
alteram o espaço de forma a reduzir os recursos físicos que permitem a permanência dos
sem-abrigo, como bancos ou moitas; b) o estabelecimento de códigos civis que
"disfarçam a dura realidade da vida nas ruas dos sem-abrigo" (no prelo:27); e c)
constituição de um “imaginário” que transforma o espaço público de "bem comum" (no
prelo:16) em "sala de estar comum" (no prelo:16)18.
Essa tentativa de esconder os sem-abrigo é uma ferramenta de fabricação de
paisagem sensória, um conceito de Degen (2008), para o que a formalização de usos
também é uma ferramenta decisiva19. Essa própria paisagem sensória funciona como
uma ferramenta de afastamento de ocupações indesejadas, funciona como um poder
ambiental (Allen, 2006). Dito de outra forma: com o conceito de políticas suaves de
exclusão, Thörn permite observar que o poder de afastamento dos sem-abrigo se faz
presente não só nas ações desenvolvidas na gestão do espaço de uso público ao intervir
nos elementos dos contextos, mas também se faz presente no próprio contexto
decorrente dessas intervenções. O contexto torna-se, mais do que um objetivo, uma
ferramenta de gestão do espaço de uso público. A constituição desse poder ambiental de
16 “soft policies of exclusion”, (t.n.)17 O suave não quer dizer formas de poder mais gentis, mas mais elásticas e fluidas18 “disguise the harsh realities of life on the streets for homeless people”, “common living room”,
“imagineering” e “common good” (t.n.)19 “sensescape” (t.n.)
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que fala Thörn assenta em uma proximidade entre o poder público e o poder privado
que permite o planeamento exaustivo do espaço urbano de modo a permitir a
constituição da paisagem sensória.
O nosso conceito de exclusão, portanto, vai ser muito próximo do de Thörn. As
diferenças residem no fato de que, no nosso caso, ele será utilizado para outros tipos de
papéis encontrados no espaço de uso público para além dos sem-abrigo e para além dos
tipos de medidas que a autora considera como suaves. A exclusão aqui é utilizada para
identificar como características do contexto desestimulam ou proíbem diretamente uma
ocupação.
1.4 Mobilidade, competitividade e lazer
Pretendemos aqui apresentar três conceitos que tentam apreender estruturas
sociais (e, assim, recursos e constrangimentos) identificáveis hoje nos processos de
produção de cidades nos quais o Parque das Nações, aparentemente, encaixa-se:
mobilidade, competitividade e lazer.
1.4.1 Mobilidade e motilidade
Na reconstrução do urbanismo como ferramenta de controle feita por Foucault
(2007), é possível perceber como a circulação está na raiz das três modulações
analisadas. Na soberana, encontra-se na preocupação em garantir a acessibilidade do
poder do Rei a todos os pontos da cidade e do reino, bem como com a possibilidade de a
cidade ser o destino dos produtos produzidos no campo e em outros reinos. Na cidade
disciplinar, o correto ordenamento do território tinha a circulação também como
determinante: a preferência por uma quadrícula de quadras menores junto ao centro da
cidade, onde deveria se localizar o comércio, com a função residencial nos fundos,
materializa a atenção com a possibilidade de que esse centro fosse acessível.
No modelo da segurança, que Foucault identifica em um plano de reurbanização
de Nantes (França) do século XVIII, o desenvolvimento do comércio divide a carteira
de funções da mobilidade com outras duas: higiene e vigilância, essa última decorente
mesmo do aumento das condições de circulação
“It [o plano] involved cutting routes through the town, and streets wide enough to ensure four functions. First hygiene, ventilation, opening up all kinds of pockets were morbid miasmas accumulated in crowded quarters, where dwellings were too densely packed. So, there was a hygienic function. Second, ensuring trade within the town. Third, connecting up this
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network of streets to external roads in such a way that goods from outside can arrive or be dispatched, but without giving up the requirements of customs control. And finally, an important problem for towns in the eighteenth century was allowing for surveillance, since the suppression of city walls made necessary by economic development meant that one could no longer close towns in the evening or closely supervise daily comings and goings, so that the insecurity of the towns was increased by the influx of the floating population of beggars, vagrants, delinquents, criminals, thieves, murderers, and so on, who might come, as everyone knows, from the country. (2007:33-34)
Assim, a estruturação espacial da cidade como forma de garantir mobilidade de
bens, pessoas e serviços vai pressupor um controle já mais suave do que o decidir quem
entra ou não nela. Passa a ser uma questão de regular o fluxo e não de fechar a porta.
Como referido acima, de simples ordenamento do território, o controle evolui para algo
mais próximo da regulação de um meio20.
Estando na raiz das estratégias modernas de produção de cidades, a mobilidade
está também na raiz da diversidade e da heterogeneidade de indivíduos na cidade e do
modo de vida urbano como um todo. No urbanita ideal de Wirth (1997), a divesidade e a
mobilidade (física e social) são duas facetas de um mesmo indivídiuo cosmopolita, ele
próprio capaz de se mover entre diversas redes e grupos e ocupar diferentes papéis.
John Urry (2002) formula mais diretamente o papel da mobilidade física para a
constituição do que ele chama de capital social. Urry, que entende a necessidade de
interação face a face (ou face a lugar, entendida como a experiência de um lugar, e face
a evento, como o testemunho de um acontecimento) como a necessidade primeira para o
indivíduo se deslocar, entende o capital social como algo decorrente dessa capacidade
de o indivíduo praticar a interação. Ou seja, a mobilidade do indivíduo é como que um
recurso para a produção do capital social produzido nas interações. Assim, regular a
mobilidade física torna-se uma das principais formas de poder.
“The power to determine the corporeal mobility of oneself or of others is an important form of power in mobile societies, indeed it may well have become the most significant form of power with the emergence of awesomely mobile elites.” (Urry, 2002:262)
Todavia, o (flexível) conceito de motilidade nos parece o mais adequado a
apreender o fenômeno da mobilidade, quer ao nível do indivíduo, quer ao nível da
estruturação espacial (e temporal) da cidade21. A motilidade, à diferença do conceito de
20 Cf. 1.2 Contextos e regionalização de contextos21 “motility” (t.n.)
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capital social de Urry, é em si própria, de imediato, um capital social. O conceito de
motilidade, assim, permite condensar a mobilidade social e física, já que os autores do
conceito propõem-no para identificar a ligação entre uma e outra
“(...) we propose a theoretical concept that conceives of spatial and social mobility as indicants of a more comprehensive form of mobility that is not limited to actual or past displacements. The name of this construct shall be 'motility'. Motility can be defined as the capacity of entities (e.g. goods, information or persons) to be mobile in social and geographic space, or as the way in which entities access and appropriate the capacity for socio-spatial mobility according to their circumstances.”(Kauffmann, Bergman e Joye 2004:749-50)
O conceito de motilidade nos parece, então, interessante por tratar esse capital de
uma maneira mais contexto-dependente. Os autores dividem a motilidade em três
elementos inter-relacionados. Um dele é “acesso”, que se refere às possibilidades de
mobilidade de acordo com lugar, tempo e outros constrangimentos contextuais
incluindo a posição socioeconômica do indivíduo; outro é a “competência”, que reúne
as habilidades que o indivíduo deve deter para poder operar a sua mobilidade (física e
social) em um meio. A necessidade de conhecer os códigos de circulação de onde se
circula mostram que também essa habilidade é contexto-dependente; o terceiro é a
“apropriação”, que de algum modo tentar apreender as motivações ou necessidades do
indivíduo para se mover, tendo em conta as condições de acesso e competência. O
urbanismo, julgamos, permite influir na motilidade dos indivíduos sobretudo por meio
das condições de acesso e das demandas de competências que estabelece22.
As características da mobilidade (física ou social, dependendo da perspectiva
que se olhe) dos contextos existentes nos espaços de uso público, julgamos, têm
influência no rol de possibilidades de mobilidade (novamente, física ou social) que
constituem o capital social móvel – a motilidade – dos indivíduos. Assim, os contextos
em espaços de uso público também funcionam como constituintes de estratificação
social e, ao mesmo tempo, são afetados pelo nível de motilidade dos indivíduos que dele
participam.
1.4.2 Competição pela massa cambiante
Guido Martinotti (2005) elabora uma galeria de populações urbanas que
poderíamos chamar de ideais-tipo e que permite, desde que atentemos para a
insuficiência de qualquer ideal-tipo, ler como a mobilidade evoluiu enquanto capital
22 “access”, “competence” e “appropriation (t.n.)
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social dos urbanitas. Na Idade Média e mesmo após a revolução industrial, a população
urbana era essencialmente constituída de habitantes da cidade. O ideal-tipo era o
habitante e os limites físicos da cidade definiam em boa medida a sua identidade. A
cidade caracterizada pela modulação soberana do urbanismo como descrita por Foucault
(2007:27) parece ser o locale desse ideal-tipo: destinada apenas à nobreza e à população
estritamente necessária para a manutenção dessa nobreza, com a comunicação externa
sendo feita através de muros, e controlada à entrada. A população mais capitalizada em
termos de mobilidade, composta de comerciantes, peregrinos, fornecedores, visitadores,
“embora não irrelevante numericamente ou funcionalmente, não afetava profundamente
a estrutura social e ecológica da cidade” (Martinotti, 2005:94. Itálico nosso)23.
Destacamos em itálico o final da citação tendo em vista que ele indica como a
mobilidade espacial está entremeada com a social, reafirmando a utilidade do conceito
de motilidade: não só a motilidade da população da cidade era baixa no que toca à
dimensão física, mas também na social se pensada em conjunto.
Em seguida à população de habitantes, emerge a população de utilizadores
pendulares24. O esbatimento da caracterização da casa como contexto do trabalho e o
fortalecimento da caracterização como locale da família é um sintoma da mudança. Na
verdade, na visão de Martinotti, é justamente a razão da mudança. Essa alteração
começa a se acelerar no início do século XX, e o meio urbano então passa a abrigar uma
população de utilizadores pendulares, para a qual a motilidade (a nosso ver) já tem uma
maior relevância na relação que o urbanita estabelece com a cidade e com o espaço de
uso público mais especialmente. Em seguida, ao longo do século XX, emerge o ideal
tipo dos utilizadores de cidade – do qual a imagem do turista urbano é exemplar – e, em
seguida, o das pessoas de negócios metropolitanas, que grosso modo são uma
diferenciação dos utilizadores de cidade e não necessariamete um novo ideal-tipo25.
Uilizadores de cidade e gente de negócios são, diz Martinotti, – e passe o
determinismo embebido na afirmação – produtos da indústria de serviços que demanda
uma população cambiante. É assim que surgem cidades inteiras com um número baixo
de habitantes e um número altíssimo de utilizadores
“(...) the increased mobility of individuals, combined with higher income levels and greater leisure, allowed the differentiation of a third population: the population of city users – a population composed of persons going to a
23 “The additional population of market-goers, visitors, pilgrims or suppliers, while not irrelevant numerically or functionally, did not affect the social and ecological structure of the city” (t.n.)
24 “commuters” (t.n.)25 “city users” e “metropolitan businesspeople” (t.n.)
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city mainly to use its private and public services, from shopping, to movies, to museums, to restaurants, to health and educational services. This is a swelling population that is having radical effects on the structure of cities and actually uses localities in a rather uncontrolled way. “ (2005:96)
Agarrar essa população cambiante, de alta motilidade a nosso ver, gerada por e
geradora da indústria de serviços, é um dos fatores a impulsionar a competitividade
urbana que é buscada pela reurbanização aqui em estudo. Importa mencionar algumas
outras características desse fenômeno dos processos de produção de cidades.
Patrick Les Galès (2005) relaciona a revitalização das frentes de água europeias
a uma tentativa por parte dos governos locais de atraírem investimentos. Os governos
locais e centrais se aproximam da iniciativa privada que, é comum, tem participação
ativa em processos de reurbanização, como fazem ver os casos de Manchester (Degen,
2003; O'Connor e Wynne, 1997); Barcelona (Degen, 2003); Gotemburgo (Thörn, no
prelo); e Lisboa (Ferreira, 2006; Matias Ferreira e outros, 1997; Gato, 1997). A
emergência da atenção, por parte dos gestores urbanos, para a importância da população
de utilizadores urbanos está na raiz da disputa entre as cidades para abrigar grandes
eventos como os Jogos Olímpicos (Martinotti, 2005:97).
Os espaços de uso público, que é o que nos interessa sobretudo aqui, vão
funcionar como uma ferramenta para a produção dessa competitividade, integrando a
oferta de serviços e lazer quer em apoio aos equipamentos privados quer como uma
oferta em si mesmo. A disputa por investimentos nos espaços de uso público, metaforiza
Monica Degen, coloca as cidades em uma “passarela global” que embasa as estratégias
de formalização de eventos e exclusão de ocupações consideradas idesejadas26 27.
“Capital cities but also 'second' or 'third' cities fight on what I describe as the 'global catwalk' to secure investment in the public realm. Similar to the fashion catwalk, cities compete with each other by parading made-up images of different areas of the city which advertise these spaces as favourable and attractive to business and leisure. Hence, not surprisingly both regeneration strategies [a autora analisou o El Raval em Barcelona e Castlefield em Manchester] were marked by a conscious focus on environmental improvement of public space that sought to change the perception or image of the place and attract new socio-spatial practices.” (2003:867-868)
1.4.3 Territórios lúdicos
Luis Baptista, ao analisar a emergência de territórios lúdicos e consumíveis,
26 “global catwalk”( t.n.)27 Cf. 1.3 Inclusão e exclusão
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identifica nas sociedades contemporâneas ocidentais a existência de uma ideologia das
férias “pressupondo a disponibilidade temporal e emocional de todos para se recrearem,
se divertirem” (2004:93). Ter tempo livre para investir nessas atividades é um
imperativo e o capital lúdico, como outros recursos passíveis de serem lidos como
capitais, possibilita perceber aí a emergência de uma nova forma de estratificação
social.
“A festa, a diversão, o prazer, a descontracção são sinónimos de realização pessoal, de sucesso na vida e funcionam como estímulos a difundir globalmente. Sabemos contudo que a distribuição não é igualitária e que a desigualdade no acesso a essa possibilidade de vida em festa permanente está reservada aos privilegiados que são alvo da gula mediática de outros, sobretudo, dos despojados desse bem universalizado – o capital lúdico.” (2004:93)
Ao identificar o nada fazer como um dos signos geracionais da juventude e
como um elemento da transição para morte entre os idosos, José Machado Pais (1991)
permite observar uma estratificação etária do tempo livre (a matéria-prima, a nosso ver,
do nada fazer). Ou seja, não ter tempo livre, ou tê-lo com uma centralidade menor na
organização da vida cotidiana, parece algo que ajuda a caracterizar a faixa etária adulta.
O que Pais e Baptista permitem observar, entretanto, são sinais do esbatimento dessas
fronteiras etárias. Pais, pelo prolongamento da juventude que observa ocorrendo entre
jovens portugueses (em estudo elaborado no fim do século passado), esse
prolongamento sendo uma forma de atrasar a entrada na vida adulta ou, no caso de
jovens de classes baixas, como uma forma de estabelecer um corte entre a infância e a
adultez inexistente em gerações anteriores. Baptista, pela identificação do imperativo de
libertação do tempo de trabalho para o investimento do tempo no capital lúdico.
O investimento de tempo no lazer, assim como propõe um corte na organização
dos tempos cotidianos, propõe um corte nos espaços cotidianos28. É por aí que é
possível observar um efeito de retroalimentação entre a motilidade e o capital lúdico. A
prática do lazer envolve o deslocamento, decorrente da necessidade de experimentar
outros que não são o do trabalho ou da vida doméstica. É aí que o indivíduo vive o anti-
cotidiano, como afirma (Mendes, 2001/2002:96).
“Those places where the body comes to life will typically be geographically distant – indeed ‘other’ – to sites of work and domestic routine. These are places of ‘adventure’, islands of life involving bodily arousal, from bodies
28 Não necessariamente obriga, como apontam as práticas de lazer domésticas e mesmo a ludificação de atividades profissionais. Ferreira, Fortuna e Abreu (1998/1999:95) identificam a importância das atividades de cariz doméstico nas práticas de lazer em Portugal
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that are in motion, natural and rejuvenated as people corporeally experience environments of adventure.” (Urry, 2002:262)
Assim, capitalizar-se ludicamente envolve estar capitalizado (e se capitalizar)
motilicamente, mover-se, pass(e)ar em outros territórios, não exclusivamente na
condição de utilizador pendular. Em língua portuguesa, passear pressupõe justamente
um investimento em nada fazer se deslocando. A palavra passeio, de forma semelhante à
que acontece com a promenade francesa e a walk inglesa, pode ser utilizada para
apreender diversas ações e contextos: ir olhar as montras em um shopping, dar uma
volta ao bairro, dar uma volta à cidade, viajar para outra cidade, ir a um parque de
diversões. Em Portugal, ao menos nos fins do século passado, os espaços de uso público
como centros de cidade, praias, parques, zonas de diversão e centros comerciais,
configuravam-se como destinos privilegiados de quem sai de casa para se divertir. E sair
de casa para se divertir se configurava como uma das principais práticas de lazer
(Fortuna, Ferreira e Abreu, 1998/1999).
Essa estruturação social se transpõe, no urbanismo, em processos de conversão
de cidades e territórios em cidades e territórios consumíveis e lúdicos, como os define
Baptista, que oferecem recurso para o desenvolvimento dos capitais lúdico e móvel.
“Os lugares da cidade e os lugares dos campos são revistos pelos decisores locais, pelos investidores (com ou sem localização precisa), pelos próprios habitantes-consumidores do território, no pressuposto da competitividade entre os lugares autênticos. A fascinação que todos parecem nutrir pelas atracções locais – paisagísticas, gastronómicas, edificacionais – reinventam os lugares vistos sob o ponto de vista lúdico. Há a pretensão de os conceber como objectos lúdicos, atraentes e únicos na medida em que têm algo a revelar de particular quanto à sua história, à sua fisiologia, à sua actualidade.” (Baptista, 2004:95)
É nesse contexto que importa pensar os espaços de uso público e os recursos e
constrangimentos que nele estão colocados e que permitem ou não a sua configuração
em locales de lazer, mas também em espaço público em sentido amplo (no singular). E
importa que a dualidade não seja pensada, a priori pelo menos, em termos de ou uma
coisa ou outra, e sim das intersticialidades que se podem aí constituir.
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2. Método
Hannerz (1983:381) coloca vida urbana como um objeto de estudo que
demanda, por sua complexidade, flexibilidade metodológica, tanto pelo objeto em si
como pelas condições que se colocam para o investigador que adota a pesquisa de
terreno como ferramenta. Desconsiderando qualquer carga valorativa que busque
colocar a vida urbana como um objeto mais complexo do que outros e a pesquisa de
terreno como uma ferramenta, de per se, melhor que as outras, foi tentando submeter as
nossas decisões metodológicas a como o nosso objeto de estudo se nos ia apresentando
que fomos construindo o nosso percurso metodológico.
Ao apresentarmos aqui esse processo de produção, temos por objetivo, para além
de mostrarmos quais foram as ferramentas a que recorremos, permitir que os resultados
apresentados abaixo possam ser escrutinados da maneira mais completa possível. Trata-
se de uma das formas pelas quais tentamos validá-los (Maxwell, 1999), a eles e ao
percurso metodológico.
Antes, porém, julgamos necessário justificar nosso posicionamento
epistemológico.
2.1 Investigar o investigador
António Firmino da Costa define o investigador como o principal instrumento da
pesquisa de terreno. As influências do observador no campo, e a maneira como esse
responde aos estímulos ainda que inintencionais que sua presença causa, são parte
valorosa da pesquisa. Ao ponto de, como afirma o autor, as perguntas que fazem ao
investigador serem algumas vezes mais significativas do que as perguntas que o
investigador mesmo formula. Essa imagem é importante por colocar o investigador
dentro do objeto de estudo. Por isso, Costa defende que o investigador seja ele próprio
pensado como um elemento estruturante da pesquisa.
"Quer dizer que, desde o momento da planificação, a metodologia da pesquisa – e em particular a preparação dos instrumentos e dos procedimentos da investigação de campo – precisa ser pensada em correlação com uma teoria do objecto, com uma teoria do investigador enquanto sujeito social e com uma teoria das relações entre ambos no decurso do processo de pesquisa." (1990:137-8. Itálico nosso)
Nesse sentido, Costa pretende que na observação o investigador permaneça
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tempo suficiente no campo para que o tecido social se recomponha em torno dele. É
uma forma, entende o autor, de reduzir o efeito do “silêncio do observador” (1990:135),
para o que a observação participante é mais útil do que uma observação direta.
Julgamos porém que, observação direta ou participante, de curta ou longa permanência,
todas pressupõem participação ativa do investigador na constituição do objeto.
Além disso, a discussão entre observação direta ou participante se encontra já na
esfera da operacionalização da pesquisa. A influência do investigador remonta ao
processo inicial em que os interesses pessoais e públicos, os objetivos de pesquisa e os
objetivos práticos da investigação (Maxwell, 1999) influem na decisão de iniciá-la, em
conjunto com os recursos e constrangimentos em jogo. É nesse ambiente que se constrói
inicialmente boa parte do que Antonio Piaser (1976:25) define como intencionalidade
sistematizante29. Esse ambiente continua presente, com as mesmas ou com outras
características, também ao longo do desenvolvimento da pesquisa.
O caso de Howard S. Becker, conforme relatado por Jean-Michel Chapoulie
(1985) na introdução à edição francesa de “Ousiders” é exemplar tanto dos interesses do
investigador como das condições de investigação. Becker, um músico, foi encorajado
por Everett Hughes – então especialista em sociologia do trabalho da Universidade de
Chicago – a pesquisar os músicos de jazz. Becker chegou a Hughes por sugestão de
Ernest Burgess, com quem o autor de Outsiders trabalhava sobre idosos ao mesmo
tempo que tomava notas de observação sobre os músicos de jazz, o que acabou de ser
um dos temas do livro. Interrogando as condições de produção de “The City:
suggestions for the investigation of humanbehavior in the city environment" (1905) –
considerado fundador da sociologia urbana norte-americana e da Escola de Chicago em
particular, e de autoria de Robert Ezra Park – Pierre Lannoy (2004) identifica no texto o
objetivo de Park não de apresentar um programa de investigação da cidade, como o
nome faz supor, mas de criticar a dominância da social survey como método de
pesquisa. Lannoy extrai do texto também uma clara tentaiva de Park, um jornalista, de
inserir nas investigações sociológicas apesquisa de campo, um método que valoriza
observação e a entrevista pouco estruturadas, fundamentais ao jornalismo.
No que toca à fase da operacionalização da investigação, Georges Devereux,
olhando para as ciências do comportamento, dedica-se a demonstrar como aí também a
essência da investigação está no investigador, uma vez que ele recolherá dados
29 “Intentionalité sistematisante” (t.n.)
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construídos por si, mais do que apenas influenciados por si. Os métodos podem servir
de filtros para esse papel de sujeito que o investigador desempenha, mas não devem ser
interpretados como algo que reduza e muito menos elimine esse papel. Por isso, a
metodologia não deve servir como esconderijo
“Par malheur, même la meilleure méthodologie peut être inconsciemment et abusivement utilisée d'abord comme un ataraxique, un artifice atténuant l'angoisse; elle donne alors des 'résultats scientifiques' (?) qui sentent la morgue et n'ont pratiquement plus de pertinence en termes de la réalité vivante; l'important n'est donc pas de savoir si on utilise la méthodologie aussi comme un moyen de réduire l'angoisse, mais de savoir si on le fait en connaissance de cause, de manière sublimatoire ou, de façon inconsciente, seulement de manière défensive. (Devereux, 1980:147-8. Itálicos no original)
No campo da pesquisa social, Herbert Blumer também irá obrigar o investigador
a observar como a realidade é, sobretudo nos momentos iniciais da observação, um
espelho. Isso, sendo verdade para o leigo, ganha um complicador no caso do
investigador, já que para além das imagens preconcebidas, ele provavelmente verá
reflexos das teorias que lhe motivam. Nenhum observador cuidadoso, afirma Blumer
(1986), poderá negar isso. Assim como Devereux, entretanto, o autor não vai defender a
terra arrasada contra a metodologia,
“If one is going to respect the social world, one's problems, guiding conceptions, data, schemes of relationships, and ideas of interpretation have to be faithful to that empirical world” (1986:38)
É nessas condições que, julgamos, uma estruturação metodológica não se faz
inútil e que é falsa a percepção de que inexiste método em uma investigação que não
recorra (ao menos declaradamente) de maneira disciplinada a um ou outro modelo de
investigação de desenho duro. Muito pelo contrário, o método existe, e torná-lo visível
pode ser uma importante ferramenta para ajudar o investigador perceber, no processo de
construção do seu objeto, o que é que está colocando no centro de sua atenção e em
quais condições, mas também o que, nesse processo, como afirma Pais (2002:29),
escamoteia – e novamente, em quais condições. Para além disso, a metodologia, do
modo como aqui a entendemos, também serve a forçar o investigador a manter ao longo
de todo o processo uma postura reflexiva sobre as decisões que toma ao organizar a
realidade para apresentá-la em forma de ciência. Ou seja, sobre a construção do método
de investigação que realizou.
Tendo em vista, como Jean Ladrière, que a construção do objeto é transversal ao
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percurso da investigação como um todo, é importante que um esforço metodológico se
desenvolva ao longo de toda a investigação.
“Não existe um momento no qual se poderia dizer que a construção do objeto está acabada e que a fase de análise começa; na realidade, a construção prossegue de um extremo a outro do procedimento no qual se desenvolve a pesquisa” (Ladrière, 1977:19)
Por esse motivo, o que desenvolvemos abaixo é não a explicitação apenas das
ferramentas analíticas a que lançamos mão, mas também do percurso que
desenvolvemos na construção do objeto e, portanto, na construção do próprio método
que permitiu que esse objeto – os espaços de uso público do Parque das Nações –
surgisse.
2.2 Interesses e objetivos
O objetivo de pesquisa da presente investigação é identificar recursos e
constrangimentos que a cidade coloca para a vida social e, por aí, ao indivíduo.
Consciente da amplitude e do generalismo desse objetivo, julgamos pertinente reduzir o
escopo para como esses recursos e constrangimentos estão postos nos espaços de uso
público (como definidos acima, aqueles de acesso físico virtualmente irrestrito).
Julgamos que o urbanismo materializa estruturas sociais (sejam elas entendidas
como modos de vida, hierarquizações, segregações, ambições pessoais e coletivas,
modos de produção) e assim, as propõe. É inquietante, mas ao mesmo tempo
confortável, pensar que essas estruturas possam ser, invariavelmente, impositivas e
alheias à ação do indivíduo, sobretudo em sua vida cotidiana. Julgamos, entretanto, que
pode ser mais útil olhar essas materializações como sugestivas, maleáveis à, e
dependentes da, ação individual. Assim, olhá-las como ao menos como possivelmente
instáveis.
O objetivo de pesquisa, então, pode ser ainda mais afinado. O que buscamos
aqui é identificar no espaço de uso público materializações de estruturas sociais e
algumas de suas características, e pensá-las de acordo com alguns dos temas
contemporâneos da pesquisa social sobre o urbanismo e a cidade, como a
competitividade urbana, a mobilidade e a importância do lazer nos processos de
reurbanização de territórios; e da pesquisa social de modo alargado, como as
assimetrias sociais e as formas de normalização e controle da vida social. Esses são os
domínios nos quais a nossa pesquisa pode ser de interesse.
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Em relação aos nossos interesses pessoais, importa referir que o meio urbano foi
nosso objeto de trabalho em jornalismo, período durante o qual a gestão urbana,
sobretudo municipal, e as formas de apropriação do espaço de uso público foram focos
de especial atenção. Essa experiência também foi determinante para a escolha do
ferramental metodológico ancorado em pesquisa de terreno.
2.3 Estruturando uma abordagem qualitativa
A ferramenta metodológica utilizada para a investigação é a pesquisa de terreno
(Burgess, 1997; Costa, 1990) com ênfase na observação direta (Peretz, 2004). Ela é
adequada tanto aos alicerces teóricos, que privilegiam o cotidiano e as interações nele
ocorridas, como ao objeto para o qual eles foram acionados. A ferramenta, por ser
flexível, traz um potencial que é buscado também por meio da adoção de uma
abordagem qualitativa em vez de quantitativa (a ambas das quais, aliás, serve). Esse
potencial é o de complexificar unidades maiores usadas para categorizar ações e atores,
como por exemplo os conceitos de lazer e desviantes.
Para além da observação, recorremos, sobretudo em uma segunda fase da
pesquisa, a entrevistas não estruturadas e a uma restrita análise de documentos. As
entrevistas funcionaram como auxiliares aos dados obtidos por meio de observação
direta, e não para a constituição de um corpus analítico separado ao qual seria aplicado
um método de análise estruturado (por exemplo, a análise temática ou a análise de
conteúdo). Os objetivos da mobilização da entrevista e da análise de documentos foram:
a) complementar os dados da observação com informações sobre fenômenos não
presenciados pelo investigador; b) identificar como alguns fenômenos identificados pela
observação se representavam nos discursos de indivíduos chave para esses fenômenos
(como os sem-abrigo para o caso da gare; os skaters para o caso do skate park; os
representantes da administração urbana para quase todos os fenômenos); c) permitir a
validação de dados obtidos pela observação por meio de uma triangulação com os dados
obtidos na entrevista (Maxwell, 1999).
Uma abordagem qualitativa, como adotamos aqui, permite uma maior
flexibilidade frente à diversidade e à fluidez de usos que podem caracterizar um espaço
urbano. Maxwell (1999) aponta a abordagem como adequada justamente para
compreender o contexto das ações. Essa fluidez envolve poder atentar para eventos que
são sociologicamente relevantes sem que sejam também estatisticamente relevantes
(Elias e Scotson, 1994:11). Como estávamos em busca de uma análise mais em extensão
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do que em profundidade de um ou dois aspectos, uma tentativa de quantificar seria,
como afirma Devereux (1980:27 e seguintes), apenas uma confusão das leis da física
com as leis científicas, levando à ilusão de que a quantificação tornaria um dado não
científico em científico. Por isso é que preferimos em diversas ocasiões classificar
elementos (um papel ou uma ocupação, por exemplo) como expressivo e não como
majoritário, tendo em vista não aplicar uma ideia de precisão numérica a algo que não é
fruto de uma contagem disciplinada.
Como consequência negativa, a abordagem qualitativa coloca problemas para a
generalização externa (Maxwell, 1999) dos resultados. Contudo, como Donald
Campbell tenta mostrar, mesmo estudos de forte cariz etnográfico no qual a abordagem
qualitativa é dominante e a influência do senso comum do investigador se torna mais
clara, possam ser utilizados em análises comparativas.
“After all, man is, in his ordinary way, a very competent knower, and qualitative common-sense knowing is not replaced by quantitative knowing. Rather, quantitative knowing has to trust and build on the qualitative, including ordinary perception (Campbell, 1974).” (Campbell, 1975:191)
Optamos por uma baixa estruturação inicial, sobretudo na primeira fase do
trabalho de campo. Essa combinação, embora pouco recomendada (Miles e Huberman,
1994), já que faz com que, de início, qualquer informação seja considerada relevante,
pareceu-nos favorável, entretanto, à adoção da indução analítica (Becker, 1985, 1994;
Burgess, 1997), permitindo reduzir o uso de deduções a partir da teorização inicial e de
cegadores teóricos (Ragin, 1994).
Essa baixa estruturação teórica e metodológica foi sendo substituída ao longo do
trabalho de campo por uma recolha mais disciplinada dos dados, informada por eles e
pelo quadro teórico que foi construído em conjunto com a recolha. Tratou-se, então, de
uma das primeiras fases mais estruturadas da constituição do objeto.
Foram feitas ao todo 46 visitas ao campo, divididas em três fases: uma
exploratória, com quatro visitas, realizadas em abril de 2010; uma primeira fase de
recolha extensiva, com 34 visitas entre agosto e novembro de 2010; e uma segunda fase,
com 8 visitas, nos meses de março, abril, junho, agosto e setembro de 2011. A maioria
das visitas (38) foi feita em dias de semana, sobretudo entre terça-feira e quinta-feira, e
ocorreu nos meses de agosto e setembro de 2010 (23). Foram privilegiados os períodos
da tarde (34 visitas foram feitas durante esse período) e da manhã (23), nessa ordem, em
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relação ao noturno (14)30.
Julgamos que nesse caso o recurso ao quantitativo é mais eficaz, por melhor
ajudar a a compreender qual é o nosso objeto de estudo, uma vez que a estruturação
temporal da vida social, como visto, tem relevância como a estruturação espacial.
Houve um privilégio dos dias úteis, compensado em parte pelo fato de cerca ¼ das
visitas ter ocorrido em agosto, que é um mês de férias (escolares, mas também
profissionais em alguns setores como os serviços de restauração) em Portugal e em
outros países europeus.
Nas primeiras quatro visitas, ainda de viés mais exploratório, o que nos
orientava eram sobretudo: a) o questionamento surgido do senso comum – de que a
paisagem diferenciada do Parque das Nações demandava controle rígido e expressivo
sobre as ocupações dos espaços de uso público; b) a sugestão retirada da reflexão de
Wagner (1996) sobre liberdade e disciplina de que, no histórico da modernidade, os
controles foram afrouxando em favor da subjetividade do indivíduo; c) algumas
informações sobre o histórico do território e das razões para a sua construção, retiradas
sobretudo da dissertação de doutoramento de Maria Assunção Gato (1997).
Essa orientação foi formulada e reformulada algumas vezes em perguntas de
partida e hipóteses que giravam em torno da formalização da vida social em meio
urbano e da existência de uma pressão social (Goffman, 1973) própria do Parque das
Nações. A formulação final da hipótese (já depois de algum trabalho de campo inclusive
30 A soma do número de visitas por período é maior tendo em vista que em algumas visitas permanecemos no campo por mais de um período. Definimos manhã como sendo das 5h (horário mais cedo em que realizamos pesquisa de terreno) às 12h, tarde das 12h às 19h, e noite das 19h à 0h (horário mais tarde em que realizamos pesquisa de terreno). Os horários são aproximados e a definição dos períodos segue o senso comum em Portugal
30
Tabela 1: distribuição das visitas
Dia da semana Visitas Mês VisitasSegunda-feira 5 Janeiro 3Terça-feira 9 Fevereiro 0Quarta-feira 8 Março 1Quinta-feira 11 Abril 7Sexta-feira 5 Maio 0Sábado 4 Junho 1Domingo 4 Julho 0
Agosto 11Período do dia visitas Setembro 12Manhã 23 Outubro 6Tarde 34 Novembro 5Noite 14 Dezembro 0
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para além da fase exploratória) acabou por ser a de que, para além do desenho urbano
resultante da reurbanização, haveria um controle rígido, embora pouco perceptível, das
maneiras pelas quais esse desenho é utilizado, quer por indivíduos, quer por grupos,
quer por instituições. Daí decorreria também a percepção nossa, também identificada
por Luís Mendes (2001/2002), de que o parque está desintegrado da cidade de Lisboa,
ao contrário do que prevê o seu projeto original.
Após a referida fase exploratória, em que a indefinição do objeto nos levou a
visitar também a envolvente (nas áreas das Freguesias de Marvila e Moscavide,
sobretudo), começamos a fazer uma amostragem de contextos, ações e papéis que
seriam alvo de maior atenção, com vistas à hipótese principal e às perguntas de partida
que vinham sendo formuladas. Privilegiamos então os dados que contestavam hipóteses
iniciais (e conflitos com o senso comum); os conflitos reais; os sinais claros de
segregação espacial de contextos, ações e papéis; e as intervenções de atores
institucionais (principalmente da Geurbana).
A maneira como chegamos à escolha da Gare do Oriente como um contexto
privilegiado para análise seguiu esse caminho e serve aqui de exemplo. Tínhamos a
hipótese inicial de que os sem-abrigo inexistiriam no Parque das Nações. A hipótese
mostrou-se falsa logo ao início do trabalho de campo, ao descobrirmos a presença de
alguns indivíduos nesse papel em diversos contextos, em regiões frontais (como o
Oceanário) e posteriores (o corredor da Gare). Tal levou-nos tanto a reformular a
hipótese inicial (que depois seria sucessivamente reformulada até chegarmos às
conclusões abaixo apresentadas) e a selecionar esses dois contextos para uma melhor
observação31. A observação da gare, por sua vez, levou-nos a presenciar a reiterada
intervenção da vigilância (de policiais e da equipe privada de segurança) junto a alguns
grupos específicos de viajantes quando estes se sentavam no chão ou nas escadas, por
exemplo. O mesmo ocorreu com o contexto do Terreiro dos Radicais, nome dado à pista
de skate localizada na áera periférica Norte do Parque, ao qual a presença expressiva de
graffiti em contraste com o restante perímetro nos levou a dedicar mais atenção. Na
observação desse contexto, passamos a investigar a instalação de corrimões e outros
obstáculos para a prática do skate, outro tipo de intervenção no espaço de uso público
que nos pareceu importante analisar.
Juntamente com essas escolhas mais orientadas pelos conflitos sobretudo com o
31 Cf. 4.5.1 Gare
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senso comum e com hipóteses secundárias, a seleção das ocupações, contextos e papéis
para recolha de dados obedeceu às análises, estruturadas e não estruturadas, que foram
desenvolvida ao longo do trabalho de campo, na lógica da descoberta (Soulet, 2006).
Foi assim que constituímos os subcasos do nosso caso inicial (Ragin, 1994) que
era o espaço de uso público do Parque das Nações, em busca de estabelecer padrões de
correlação entre as características dos processos que representam. A amostragem,
julgamos, pode ser classificada como intencional e causuística, de acordo com a
tipologia elaborada por Burgess (1997). Intencional, pois em busca de ações, contextos
e papéis sociologicamente relevantes à luz da hipótese inicial e da teoria que
informavam o olhar do investigador; causuística, pois muitas das hipóteses secundárias
– como a de que não haveria sem-abrigo ou mendigos no Parque – provaram-se falsas e
precisaram ser reformuladas.
Privilegiamos, agora já na fase da redação é possível dizê-lo, os (sub)casos que
permitem perceber o espaço de uso público, em seu desenho e gestão, funcionando mais
claramente como recurso e constrangimento à vida social. Foi a forma que encontramos
de tentar fazer um estudo pela perspectiva de como os fenômenos sociais do espaço de
uso público se constituem e articulam e não um estudo pela perspectiva de como os
fenômenos sociais se constituem e se relacionam no espaço de uso público. É apenas
uma diferença de ponto de vista. Disso decorre também que, mesmo no estudo de um
objeto identificado (por nós e por outros) com o lúdico e a mobilidade, o turista, que
está para esse território lúdico como o mineiro para a cidade mineira e o operário para a
cidade industrial (Hannerz, 1983), foi preterido em favor do sem-abrigo.
Na primeira fase do campo, em 32 dos 34 dias realizamos entrevistas não-
estruturadas, muito mais próximas de conversas informais, com informantes aleatórios,
encontrados nos espaços de uso público. Esse material não foi gravado.
Durante as 8 visitas da segunda fase, fizemos 44 entrevistas gravadas, mais uma
não gravada a pedido, sendo 36 desse total realizadas com informantes encontrados
aleatoriamente no campo e 9 com informantes de instituições (6 com representantes da
da Geurbana, 2 com representantes da Gare Intermodal de Lisboa e 1 com
representantes da Comunidade Vida e Paz) as quais solicitamos entrevistas. A maioria
das entrevistas (36) foi realizada dentro do perímetro do Parque das Nações. Oito delas,
entretanto, fizemos em dois contextos do centro histórico de Lisboa: na Rua Augusta,
onde entrevistamos artistas de rua; e na Praça da Figueira, um local usado para a prática
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de skate. À diferença da primeira fase, entretanto, nessa segunda elaboramos guiões
temáticos e algumas perguntas previamente à realização das entrevistas32.
A seleção dos informantes obedeceu a dois critérios. No caso das entrevistas no
campo, obedecemos ao critério de eles fazerem parte, quer fortuitamente, quer de
maneira mais permanente, dos contextos que elegemos como os subcasos de nosso caso
principal, estivessem eles desenvolvendo os papéis que nos interessavam
prioritariamente (como os sem-abrigo, os skaters e os praticantes de bmx), quer não
(como um casal de namorados, um dançarino de hip hop e os adultos que
acompanhavam crianças enquanto essas utilizavam a pista de skate). Estando nesse
contexto, obedecemos à amostragem aleatória que tão útil e válida nos parece ser para o
estudo dos espaços de uso público. Nas instituições, a seleção dos informantes foi feita
em conjunto com as mesmas. Em alguns casos, as solicitações feitas para entrevista de
um representante foram atendidas por outras33. A Polícia de Segurança Pública e a
Empresa Municipal de Estacionamentos de Lisboa (Emel) não aceitaram as solicitações.
Para além da utilização da entrevista, realizamos observação e análise de
documentos. Tivemos dois objetivos nessa segunda fase: ampliar o volume de dados e
aprofundar alguns temas em contextos que pela observação já nos pareciam relevantes;
testar hipóteses negativas.
Essa segunda fase foi desenvolvida em conjunto com a constituição de um
primeiro quadro conceitual, como apresentado na figura 1. Miles e Huberman (1994),
sugerem a aplicação do quadro conceitual ainda antes do início do campo, com base
apenas nas teorias e temas a serem estudados. No nosso caso – em que a estruturação
inicial era muito baixa –, pareceu-nos mais útil produzi-lo já tendo em conta a maior
parte dos dados recolhidos.
32 Seguimos aqui, com boa dose de adaptação, o método apresentado por James Spradley (1979)33 Na Geurbana, fizemos 4 solicitações específicas, das quais 3 foram atendidas. Na CVP, uma
instituição que distribui comida para sem-abrigo na gare, a entrevista iniciou-se com um membro indicado para falar, mas foi complementada por outro. Na Gare Intermodal de Lisboa, os informantes nos foram indicados
33
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Para essa elaboração, recorremos a duas fontes de dados: a) uma catalogação de
reflexões iniciais sobre os dados até então obtidos. Nessas reflexões, fizemos as
primeiras costuras entre os dados do campo e das teorias que foram sendo recolhidos ao
mesmo tempo; b) uma catalogação das reflexões a partir das teorias e metodologias de
pesquisa que haviam sido consultadas até então. Essas fontes foram pensadas tendo em
vista a hipótese inicial e as questões de partida. É o primeiro passo do conceito analítico
(Wieviorka, 1994) de processos de inclusão e exclusão que elaboramos.
A leitura do quadro é: a diferenciação pela organização, questionamento inicial
que motivou a investigação, decorre do fato de haver, no Parque das Nações, contextos
específicos para cada ação ou conjunto de ações, alguns colocados no centro e outros
nas periferias do Parque34. A criação desses contextos mais ou menos específicos
decorre do que chamamos de processos de inclusão e exclusão. Esses processos, por sua
vez, são operados pelos utilizadores mas principalmente pela empresa responsável pela
34 Embora não tenha havido um estudo comparativo sistemático, a própria ideia de que o Parque se diferencia por uma aparente maior organização dos espaços públicos recorre, invariavelmente, ao confronto desse espaço com o conhecimento de senso comum do investigador. Conforme afirma Gubrium (1988:19), os sociólogos vão recorrer à sua cultura comum (no sentido de não elaborada cientificamente) para atribuir sentido às observações
34
Figura 1: quadro conceitual inicial
PROCESSOS DE INCLUSÃOE EXCLUSÃO
ADMINISTRAÇÃODO PARQUE
UTILIZADORES
CONHECIMENTO
CENTRO/PERIFERIA
CONHECIMENTO
CONTEXTOS
DIFERENCIAÇÃOPELA ORGANIZAÇÃO
FRONTEIRAS
DESENHO URBANOGESTÃO
Li gação descritiva
Ligação causal
ILUSÃO DE ESPONTANEIDADE
1065
1070
administração dos espaços de uso público em conjunto com outros atores institucionais
que agem no território (como a Polícia de Segurança Pública, os empresários que
oferecem serviços de restauração etc.). O desenho físico e os serviços de gestão
(manutenção, limpeza, vigilância, promoção de usos etc.) são as ferramentas da
administração para tanto. Tanto entre os utilizadores como na administração é possível
encontrar um conhecimento que informa o modo como esses processos serão
constituídos. Dessa organização decorreria também a ilusão de espontaneidade (Pais,
2002:169-170) que parecia banhar alguns fenômenos sociais observados no Parque.
2.4 Análise: busca de estruturas
O conceito de estruturas vem sendo usado ao longo desta dissertação e cabe,
agora, mostrar sua origem, funcionalidade para a nossa investigação, e o que
entendemos por ele. O etnógrafo Jaber Gubrium (1988) propõe a análise dos dados do
campo por meio da ideia de estrutura. Com esse conceito, Gubrium apreende a maneira
como os indivíduos interpretam a sua experiência e as maneiras disponíveis em
determinado contexto para essa interpretação. As formas sociais como a família, por
exemplo, são estruturas em potencial para serem aplicadas a uma rede de indivíduos
interligados por laços sociais35.
Julgamos que entender estruturas enquanto recursos e constrangimentos
disponíveis não só à interpretação, mas à ação do indivíduo em cada contexto,
discerníveis quer por meio da observação, análise de documentos ou da entrevista, é
uma abordagem adequada para apreender o que acima denominamos materializações.
Usamos ocupações e estruturas de ação de uma forma intercambiável.
Ao mesmo tempo em que executávamos a segunda fase de recolha de dados,
iniciamos um trabalho de sistematização de 39 das 44 entrevistas gravadas. Sem
transcrevê-las completamente, dividimos os conteúdos em grelhas, nas quais
descrevemos trecho a trecho o teor dos mesmos e fizemos transcrições exatas de
excertos que consideramos mais significativos para transcrição exata mantendo ao
máximo possível a literaridade36 . A cada trecho, atribuímos códigos descritivos (Miles e
Huberman, 1994). O mesmo procedimento foi aplicado aos conteúdos dos cadernos de
terreno, do qual constavam informações obtidas sobretudo pela observação direta, mas
também por entrevistas não-gravadas. O conteúdo do caderno foi transcrito para uma
35 Para a elasticidade da ideia de família, cf. Martucelli (2002:195) 36 Exceto quando o entrevistado se distanciava muito do tema, como aconteceu com alguns sem-abrigo
e artistas de rua
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grelha, separando-se o que era dado de entrevista e dado de observação, e também foi
codificado descritivamente.
Parece-nos importante esclarecer que, quando afirmamos usar códigos
descritivos, não pretendemos dizer que eles possam ser livres de quaisquer
interpretação. Em linha com a posição metodológica apresentada acima, todo dado é
uma construção – e logo, uma interpretação – do investigador. O que pode variar é o
grau de interpretação atribuído a esse dado. Nesse sentido, os códigos descritivos são
aqueles que, como sugerem Miles e Huberman (1994:57), envolvem pouca
interpretação. Assim, no trabalho de codificação, tentamos manter os códigos o mais
próximo possível do senso comum. Ainda assim, a codificação mesmo descritiva
pressupõe um trabalho de redução, seleção e organização. Por exemplo, ao utilizar o
código “jogging” para descrever uma ação desenvolvida por um indivíduo em um
contexto, uma série de outras ações que o indivíduo desenvolve ao mesmo tempo (como
falar ao telemóvel ou deslocar-se para o trabalho) acabam por ser absorvidas ou
desconsideradas. Assim, ao ser um trabalho de redução, seleção e organização de
informação, os códigos constituíram a primeira fase estruturada da análise final dos
dados.
Embora tenhamos realizado também uma codificação interpretativa juntamente
com a descritiva, esses códigos não foram utilizados nos passos seguintes de análise
estruturada, como é o caminho sugerido por Miles e Huberman (1994). Diferentemente,
nós realizamos o trabalho de codificação para poder garantir que todos os dados que nos
parecessem atinentes a um contexto, papel ou ação fossem considerados no momento da
análise deles. Com o auxílio de um computador, pudemos extrair da base geral de
dados, sempre que buscássemos, todos os extratos codificados com um (ou mais de um)
código. Pretendemos assim tornar visíveis todos os dados, inclusive aqueles que
pudessem contradizer a hipótese interpretativa ou a conclusão a que chegávamos. Com
isso, tentamos otimizar o trabalho de indução analítica que, como visto, obriga à
reformulação das hipóteses quando um dado contraditório surge e não ao seu abandono.
Para além disso, a codificação permitiu que reobservássemos, de certa maneira
descontextualizando, ações, contextos e papéis que haviam sido observados (ou
ouvidos) contextualmente. Esse trabalho de descontextualização sendo necessário para
que pudéssemos fazer com que a investigação se constituísse como não como um relato
em que a interpretação se esconde sob uma descrição exaustiva, mas em uma análise
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sociológica em que essa interpretação é trazida à tona e passa por uma complexificação
teoricamente informada e de acordo com um método.
O segundo passo estruturado da análise foi a apresentação dos dados. As ideias
de Miles e Huberman (1994) novamente aqui foram úteis. Recorremos à construção de
mapas a partir de ações e, em menor escala, contextos e papéis que à luz da experiência
no campo e das teorias acima apresentadas nos pareceram sociologicamente
relevantes37. Foi nesse momento que recorremos a códigos, embora ainda descritivos,
com uma carga interpretativa maior. Um exemplo é “exploração de recursos”, que
agrega todas as ações, contextos e papéis que envolvem a exploração do fluxo de
indivíduos no espaço de uso público como pedir, vender comida, distribuir folhetos.
A partir desses mapas, aplicamos novos códigos, que dessa vez podemos
considerar como interpretativos. São os que nos permitiram estruturar e confrontar mais
uma vez elementos do quadro conceitual elaborado acima com os dados do terreno38.
Foram então apontados, quando cabiam, os processos de inclusão e/ou exclusão que nos
pareceram existir em cada caso, e as condições contextuais em que eles ocorrem.
Esse confronto levou à necessidade de complexificar a ideia de processos de
inclusão e exclusão, que passou a ser dividida em quatro categorias, como se verá mais
à frente. Alguns outros elementos do quadro conceitual foram abandonados. A ideia de
centro/periferia foi agregada à de processos de inclusão e exclusão, tendo sido
mobilizada quando foi relevante. A ideia de fronteira também foi abandonada, por
demandar um novo investimento em recolha de dados que não se mostrou viável para
que se pudesse afirmar, com alguma certeza, que o conjunto de limites sociais e físicos
possam ser unificados em uma ideia de fronteira. A ilusão de espontaneidade também
não nos pareceu merecer um investimento analítico para a presente investigação. O
conhecimento, por sua vez, também ficou prejudicado por não termos dados suficientes
para o extrair do que já havíamos feito e, além disso, as condicionantes de tempo e do
formato da investigação se tornaram impeditivas.
2.5 Objeto
Com a descrição do percurso metodológico, estamos em condições de delinear
37 Foram elaborados os seguintes mapas: a) ações: brincadeira, exercício, deslocamento, graffiti, impedimento, interação, deitar, comer, comércio de rua, pedir, sentar, lazer b) contextos: Terreiro dos Radicais, Gare do Oriente, equipamentos/desenho físico; c) papéis: sem-abrigo/viajantes, jovem
38 Dizemos mais uma vez pois identificamos três momentos em que esse quadro foi confrontado: durante a segunda fase de recolha de dados, na elaboração das codificações e na aplicação dos códigos interpretativos
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melhor o nosso objeto de estudo e a forma como ele foi construído. É o que tentamos
fazer neste ponto.
A escolha do Parque das Nações é o primeiro recorte na vida social que
decidimos por fazer. O Parque foi escolhido pois, sendo resultado de um processo de
produção de cidades incomum, continha um enigma que despertou nossa atenção (a
diferenciação pela organização). Após algumas incursões, em que foi possível perceber
como os limites físicos eram insuficientes para estabelecer uma separação absoluta entre
o Parque e a malha urbana em que se insere, julgamos adequado privilegiar os espaços
de uso público internos ao perímetro, mas levando em conta fenômenos ocorrendo na
envolvente mais imediata.
A justificativa para a escolha dos espaços de uso público como aqueles que
seriam observados já foi adiantada de alguma forma acima, quando definimos o
conceito que aqui seria utilizado e quando afirmamos supor que esses espaços têm
potencial expressivo de refletir o que acontece na vida social em outros espaços
(fenômenos que têm outros locales, portanto)39. Cabe apresentar mais algumas. Em
primeiro lugar, e em linha com uma abordagem de baixa estruturação inicial como a que
nos propusemos adotar, os espaços de uso público foram desde o princípio privilegiados
em nosso trabalho no campo, em detrimento dos espaços privados (incluindo os de uso
público mas de acesso restrito, como um centro comercial).
Em segundo lugar, a busca do arcabouço teórico que seria utilizado para a
análise foi revelando elementos que apontavam para a relevância dos espaços de uso
público enquanto locale do modo de vida urbano – e portanto, como janela adequada e
importante para o estudo da estruturação da vida social em um contexto de alta
motilidade dos indivíduos. Ao mesmo tempo, a revisão de literatura sobre o objeto em
conjunto com a análise de documentos demonstrou que esses espaços detinham uma
função própria e importante na reurbanização aqui analisada, como discutimos acima40.
Dentre os espaços de uso público de dentro do perímetro, demos pouca atenção
aos internos às zonas residenciais, como pátios cercados por condomínios residenciais,
sendo uma das razões para tal decisão uma menor ocorrência de ocupações nos períodos
em que permanecemos no campo (como visto, sobretudo manhãs e tardes de dias de
semana). Por outro lado, valorizamos os perímetros mais frontais (junto à margem
ribeirinha do Rio Tejo), fossem eles centrais (em termos geográficos e simbólicos) ou 39 Cf 1.1 Espaço (de uso) público, igualdade e diversidade40 Cf. 1.4.2 Competição pela massa cambiante
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periféricos, as longitudinais Norte-Sul (Avenida Dom João II, Alameda dos Oceanos e
conjunto de passeios que margeiam o Rio Tejo), e as áreas limítrofes do Parque com a
envolvente, como mencionamos. Alguns espaços foram objeto de estudo mais detido e
as justificativas para a escolha deles se encontram nas análises desenvolvidas abaixo.
Embora possamos considerar o nosso objeto de estudo como os espaços de uso
público do Parque das Nações, como viemos definindo anteriormente, tais são os limites
e perdas de informação a restringir o nosso escopo dentro desse universo.
2.6 Validação
Julgamos que a validação de uma pesquisa qualitativa, como aponta Maxwell
(1990), reside em boa medida em permitir que outros investigadores conheçam o trajeto
da investigação realizada. Assim, poderão atestar a validade da pesquisa não
necessariamente numa reedição dos passos para testar se chegam ao mesmo resultado;
mas sim tomando conhecimento, da maneira mais pormenorizada quanto possível, do
percurso investigavo adotado, podendo julgar cada uma das decisões tomadas pelo
investigador para construir os seus resultados e testá-los frente ao campo. Por esse
motivo, nesta parte da metodologia, visamos expor esse caminho da investigação e
submetê-lo, juntamente com os resultados, ao escrutínio público.
Para além disso, ao longo da coleta de dados, as ferramentas de validação
adotadas utilizadas para reduzir a perda de informação foram a gravação das entrevistas
e a realização de uma descrição o mais detalhada possível. No que toca à perda de
informação na análise, elaboramos o sistema de codificação acima apresentado, que nos
obrigou a olhar, sempre, para o conjunto de dados recolhidos sobre uma ação, contexto
ou papel quando fôssemos elaborar uma análise.
Tentamos eliminar evidências anedóticas por meio de nova observação, quando
possível, das ocorrências que pudessem se configurar como tal. Esse trabalho, aliás,
mostrou-se extremamente frutífero para o percurso da indução analítica.
Uma grande fonte de invalidação da investigação, a nosso ver, seria a
comparação, mesmo que interna, funcionar como base para análises mais alargadas. Por
exemplo, fazer uma comparação entre o tratamento dado pela vigilância a um grupo
observado mais detidamente contra outro grupo observado de maneira menos
expressiva. Tentamos reduzir as comparações apenas para casos em que a recolha de
dados se mostrasse suficientemente adequada sobre cada uma das partes.
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Por fim, do ponto de vista da hipótese inicial e das perguntas de partida,
julgamos que a investigação mostra-se como validada. A hipótese de que haveria um
controle para garantir a organização nos espaços de uso público do Parque se confirmou
parcialmente. O controle existe, mas não é rígido. Tal responde à questão de partida: o
Parque das Nações parece mais organizado em razão de um controle, em grande medida
suave e exercido por meio da inclusão e não só da exclusão de usos – que, em alguns
casos, são suaves. Há consoância entre as ocupações previstas pela administração e as
praticadas pelos indivíduos, e quando essa consoância não ocorre, há tolerância, com
algumas exceções.
Julgamos, porém, que não é da resposta a esses questionamentos iniciais que
resulta a principal contribuição da investigação. Essa está na maneira como
conseguimos atingir o objetivo de identificar estruturas sociais da vida social cotidiana
em meio urbano e mostrar como elas se relacionam aos fenômenos de alcance
espaçotemporal mais amplo – ou macroestruturas sociais, se quisermos – que hoje
parecem ser transversais às cidades, aos processos de produção de cidades e à vida
social mais alargada.
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3. O processo de produção de cidade
Em linha com Jackie Katz (2010), que defende uma ampliação dos recursos da
etnografia urbana para além da estratégia “mosca na parede”, julgamos que uma
investigação sociológica ancorada na pesquisa de terreno deve possuir também um
recurso a outras fontes de informação fora do campo. É com este objetivo que
desenvolvemos este capítulo, em que são costurados dados do terreno com uma revisão
de literatura sobre o Parque das Nações e uma análise de documentos. Damos assim
início à análise do objeto.
3.1 Da indústria ao lazer, dos fundos para a frente
O Parque das Nações é um território de 3,3 km2 distribuído entre as os concelhos
de Lisboa e de Loures, na Área Metropolitana de Lisboa. Caso excepcional em Portugal,
o espaço é administrado por uma empresa e não diretamente pelas autarquias às quais
está afeto. Até 2008, o papel cabia à Parque Expo 98, S.A. (PESA), constituída em 1993
pelo Governo Central Português, sociedade anônima com estrutura privada mas de
capital público – 99,78% pertencentes ao Estado português e 0,22% à Câmara
Municipal de Lisboa. Em 2008, sucedeu-a a Parque Expo – Gestão Urbana do Parque
das Nações, S.A. (Geurbana), que segue regime jurídico e financeiro idêntico e é uma
integrante do grupo constituído pela PESA. Segundo o relatório de gestão e contas da
mesma relativo a 2010 (PESA, 2010), o perímetro abrigava estimados 8.000 fogos, 20
mil habitantes, recebia 20 milhões de visitantes por ano e, segundo o relatório de gestão
e contas de 2009, abrigava estimados 10 mil empregos, uma diferença expressiva em
relação aos 22,5 mil previstos e 300 empresas.41
A construção do Parque das Nações serviu como uma das justificativas para a
realização da Exposição Mundial de 1998 (Expo'98). A intervenção urbanística, por sua
vez, foi justificada como uma maneira de reabilitar a área onde o Parque se insere,
localizada na zona oriental da Área Metropolitana de Lisboa (DL 87/93), reintegrando-
a ao tecido urbano e, dessa maneira, obtendo uma mais valia permanente do
investimento público no evento. É sobre esse ponto que pretendemos nos debruçar
agora, pois ele revela uma estrutura de interpretação sobre o que são as regiões
posteriores e frontais da cidade.
De acordo com a reconstrução histórica feita por Maria Assunção Gato (1997), a
41 Site PESA. Seção História/“Parque das Nações”.
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zona oriental de Lisboa, após servir de espaço para quintas privadas e produção
agrícola, foi sendo ao longo do século XX destinada à indústria e à habitação de baixa
renda. Entre os motivadores para essa ocupação estão a legislação de uso e ocupação do
solo - o Plano de Groër, de 1948, plano diretor da cidade, destinou a área ao uso
industrial (CMLx, 2011) – e a promoção de programa de habitação social por parte do
Estado, acompanhado do desenvolvimento de vilas operárias patrocinadas por
empresários (Gato, 1997:65)42. No início da década de 90, 54,5% da população da zona
oriental ocupava bairros de habitação social, 13,3% barracas e 7% bairros municipais de
construção precária (Gato, 1997). Segundo a autora,
"Assim se passou de uma zona periférica, de vocação agrícola e de lazer, para uma área urbana densamente povoada, de maquinaria e operários, acolhendo tudo o que a restante cidade rejeitava, desde o lixo à indústria poluente, passando pelos grupos sociais segregados devido à sua condição generalizada de pobreza, contribuindo todo este cenário para dificultar a sua integração no território lisboeta. Mas é no sentido de contrariar parte desta realidade que surgem as propostas do Plano de Urbanização da Zona de Intervenção da Expo'98" (Gato, 1997:70)
A motivação de recuperar uma zona “socialmente desqualificada” identificada
com a indústria e com a habitação de baixa renda é referida também por Vítor Matias
Ferreira e outros (1997:114-15). Já Claudino Ferreira (2006:427) mostra como o
executivo da Câmara Municipal de Lisboa, na pessoa de seu então presidente Jorge
Sampaio, via a Expo'98 como oportunidade de resolver o “risco de abandono e
degradação, tanto do ponto de vista urbanístico, como social (2006:427)”. Assim,
segundo membros da autarquia
“Na avaliação da autarquia, esse risco resultava da conjugação de vários aspectos: do processo de desindustrialização; da permanência de actividades industriais poluentes e perigosas; da degeneração do edificado, com “edifícios fabris em ruínas” e “bairros operários antigos e de habitação social recente muito degradada”; das “acessibilidades deficientes”; da “predominância dos estratos sociais mais baixos”” (Ferreira, 2006:427. As aspas, constantes do original, servem a assinalar os termos mencionados literalmente pelos entrevistados)
A reurbanização da zona oriental integra-se em um período de “recomposição
social e territorial” da Área Metropolitana de Lisboa, que teve início no início da década
de 80, segundo Vitor Matias Ferreira e outros (1997:117). Enquanto as áreas históricas
centrais passaram a ser alvo de políticas de reabilitação, a área afetada pela Expo'98 é 42 Para uma discussão sobre o uso de vilas industriais como forma de controle dos operários, ver
Mitchell, Don (1993) “Public housing in single-industry towns - changing landscapes of paternalism” em Duncan, James e Lay, David (1993)
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resultante de “uma pressão cada vez maior no investimento no mercado imobiliário”
(1997:111) que Portugal passou a sentir nesse período em favor de projetos
habitacionais e de serviços, para a qual a integração europeia foi um impulsionador43.
Do ponto de vista da estrutura do mercado de trabalho, ainda segundo esses autores, o
final do século XX marcava na Área Metropolitana de Lisboa a retração expressiva da
ocupação nas atividades primárias e o crescimento dos grupos sócio-profissionais dos
setor terciário.
O Parque congrega hoje uma série de equipamentos privados de lazer da cidade,
como o Casino de Lisboa, o Oceanário de Lisboa, o Pavilhão Atlântico (que abriga
concertos, espetáculos e outros eventos culturais), o Pavilhão do Conhecimento, um
teleférico, o Teatro Camões. Além dos equipamentos lúdicos, abriga outros tipos de
serviços e funções públicas como o Campus de Justiça, a Gare Intermodal de Lisboa, o
Hospital CUF Descobertas, cinco creches e cinco escolas (3 privadas e 2 públicas), 3
cartórios, uma igreja, correios, 2 esquadras policiais, associações e um clube e a Feira
Internacional de Lisboa (centro de congressos que antes se localizava em outra área da
cidade). O Centro Comercial Vasco da Gama, integrado à gare intermodal, é o principal
equipamento de comércio e serviços – de lazer ou não. Há também um conjunto
expressivo de restaurantes, cinco hotéis, um serviço de aluguel de bicicletas, de karts a
pedal e de bicicletas com cestos, talheres e toalha para pic-nic44.
Para além da expressividade dos equipamentos de lazer privados, os espaços de
uso público também abrigam esse tipo de equipamento. Há 2 parques infantis, uma pista
para prática de desportos radicais (Terreiro dos Radicais), cinco jardins, jogos de água
ao longo de parte do eixo Norte-Sul, brinquedos públicos e 5 km de frente ribeirinha do
Rio Tejo – o rio sendo divulgado em conjunto com o Oceanário e com os demais
equipamentos privados como uma das atrações do Parque – , ao longo da qual se
distribuem bancos e algumas estacadas45 46.
Houve ainda um direcionamento aos jovens. Segundo Ferreira (2006), essa faixa
etária foi privilegiada de duas maneiras: o plano de reurbanização previa que o parque
habitacional fosse ser destinado à população jovem que procura habitação fora de
Lisboa; e o discurso publicitário construía o Parque como “uma nova centralidade e um
43 Portugal entrou para a Comunidade Econômica Europeia em 1986, sendo integrante da União Europeia desde a fundação do bloco (1992) e da união monetária também desde a fundação da ,es,a (1999)
44 Site Geurbana (www.portaldasnacoes.pt) e observação45 Site Geurbana e observação46 Site PESA
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centro de negócios de excelência para investidores; uma área de qualidade excepcional
para residência e diversão dos jovens da classe média” (2006:461). O fato de, como
divulga a Geurbana (2009), esse ser o perfil médio entre os utilizadores do Parque das
Nações, é dado como uma consequência inintencional (Giddens, 1986), numa
resistência à ideia de que o Parque seja destinado a um público específico47.
A ideia de ter a juventude como público-alvo das estratégias de reurbanização
encontra semelhantes tanto dentro como fora de Lisboa. Em 2010, a Câmara Municipal
de Lisboa aprovou o Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, que
destina benefícios fiscais aos empreendedores que privilegiem a habitação para jovens
(CMLx, 2010). Em Barcelona e em Manchester, aponta Degen (2003:876, 878), a oferta
de um espaço de uso público consumível teve por cliente imaginado os jovens.
A reurbanização, assim, visou transformar um excerto da zona oriental de Lisboa
de uma região industrial e de habitação de baixa renda em uma região devotada à
habitação de classe média jovem e aos comércios e serviços, com expressiva dimensão
lúdica. Para tanto, nesse primeiro momento, julgamos importante destacar a vilificação
do passado (Degen, 2003:871) que colocou a indústria, a habitação social, os “estratos
sociais mais baixos” e a baixa acessibilidade como elementos constituintes de uma
região posterior, dos fundos da cidade. É contra esse pano de fundo, em uma região
periférica, que hoje se fala do Parque das Nações como “nova centralidade” de Lisboa,
em que o lazer, como aqui indicamos e como exploramos ao longo da dissertação,
torna-se algo digno das regiões frontais da cidade.
Essa vilificação encontra eco entre os indivíduos que utilizam hoje o Parque. É
transversal a diversos papéis desempenhados pelos entrevistados, sendo que a imagem
de que não havia moradores no Parque é dominante – exceto entre quem tenha
trabalhado nas obras da reurbanização – embora os houvesse e o fato seja referido no
discurso publicitário48
“{entrevistador} Estou tentando reconstruir a história do Parque. Sabem me dizer o que havia antes?
{entrevistado} Não havia nada. No passado não havia nada. Não havia casas, não havia construção, jardim. Era aterro” (SKATE1: praticante de skate, aproximadamente 30 anos, entrevistado no Terreiro dos Radicais)
–
47 Cf. 3.4 Inclusão do “cidadão abstracto” pela “qualidade”48 Site PESA
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“{entrevistador} Não vivia ninguém aqui?
{entrevistado} Não existia nada. Eram fábricas” (pescador, aproximadamente 60 anos, entrevistado no limite Sul do Parque)
–
“{entrevistador} antes de existir aqui a Expo [o termo Expo é usado ainda hoje para se referir ao Parque], o que existia?
{entrevistado} Era Moscavide
{entrevistador} Havia casas?
{entrevistado} [sim, com a cabeça] agora é tudo prédio de alta escala” (sem-abrigo M, aproximadamente 40 anos, entrevistado na Alameda dos Oceanos)
Nos espaços de uso público, é possível observar o apagamento desse passado. As
referências históricas na toponímia remetem para o período dos grandes descobrimentos
portugueses, sem fazer referências à ocupação industrial ou de habitação de baixa renda
que houve no território ao longo do século XX. A única referência é a torre da refinaria
mantida à guisa de atração que não integra, entretanto, o catálogo de arte urbana.
Oposta aos fundos assim constituídos está uma região frontal que inclui, para
além do comércio e dos serviços, o lazer em equipamentos privados e nos espaços
públicos. Essa estrutura de interpretação é articulada para justificar a intervenção, como
se observa em um discurso recolhido por Claudino Ferreira
““330 hectares da zona oriental de Lisboa degradados, porcos, sujos, arruinados, desmazelados vão transformar-se numa zona bela, urbanizada pelos mais modernos processos, com edifícios de bela arquitectura, alindada a preceito com uma ponte também muito bonita a surgir quase às suas portas, portanto num contexto extremamente favorável. Só pode satisfazer e dar alegria aos cidadãos, não é?[…] Ter isto limpo e embelezado, que é para atrair mais o turista, ah, mas também é uma questão de educação, de cultura. […]”” (Representante da Câmara Municipal de Lisboa no Conselho de Administração da Parque Expo. Citado em Ferreira, 2006:455)
3.2 Expo'98: marketing e heranças urbanas
A intervenção, inserida na tendência de utilização da cultura como forma de
promoção da competitividade das cidades, que em Portugal vinha desde a década de 80
(Ferreira, 2006), utilizou como tecnologia uma exposição mundial, repetindo um
histórico e contemporâneo processo de produção de cidades por meio de grandes
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eventos. Interessa-nos aqui apontar as relações entre a estratégia e a competitividade
urbana; e algumas heranças que o evento deixou para o espaço de uso público.
Em uma Lisboa na qual os fatores de competitividade urbana, segundo Matias
Ferreira e outros (1997), são identificados com as possibilidades de ser uma cidade
consumível (Baptista, 2004) e não com a de ser uma cidade produtiva, a Expo'98
deveria funcionar como uma ferramenta de marketing urbano desses fatores
consumíveis – a frente ribeirinha sendo um dos objetos urbanos de consumo, como
demonstra a colocação do Tejo como uma das atrações do Parque das Nações. É
importante ressaltar, porém, a dimensão que o projeto urbano aliado à exposição adquire
nessa tentativa de publicitar Lisboa na passarela global (Degen, 2003) de cidades.
Tentamos aqui identificar uma estrutura de interpretação na argumentação a que tivemos
acesso pela revisão de literatura e pelos dados do terreno. Para isso, é preciso olhar para
o contexto regional em que essa estratégia de marketing é mobilizada.
A excelência do projeto urbano que acompanharia a Expo'98 serviu de
justificativa de um investimento público no evento. Para além disso, conseguir que ao
evento se seguisse um sucesso urbanístico constituiria uma mais valia portuguesa no
contexto ibérico. Vítor Matias Ferreira e outros (1997:236) colocam a publicidade que
seria alcançada com a Expo'98 na Península Ibérica como o fato novo no uso de uma
exposição mundial como ferramenta de marketing. Esse uso dependia o resultado do
projeto urbanístico. À época em que Portugal se preparava para abrigar a Expo'98, a
vizinha Espanha vinha de realizar a Expo Sevilha'92, que assim como na experiência
portuguesa foi ancorada em uma proposta arrojada de renovação urbanística, mas que
entretanto foi considerada fracassada justamente no projeto urbanístico, por causa da
baixa utilização posterior do território. Desconsiderando aqui o efeito que Sevilha'92
teve no evento, o programa da Expo'98 teve uma dimensão de resposta ao programa do
vizinho49. Importa-nos como a experiência espanhola é usada como elemento
impulsionador e justificativo mesmo da necessidade de se fazer não só da Expo, mas da
cidade pós-Expo, um sucesso. Como refere Ferreira,
“Ao lado da Barcelona olímpica, um outro caso exemplar sustenta sistematicamente o discurso programático e justificativo dos planeadores do evento – Sevilha 1992. Este é no entanto equacionado como modelo negativo. Sevilha aparece como exemplo do que se pretende que não aconteça na Expo’98: a “excessiva sujeição” do urbanismo da Expo às
49 “Tal como a Espanha fazia com a Expo’92 de Sevilha no quadro das celebrações colombinas, e quase em jeito de resposta (Catroga, 1996), através da Expo'98 procurava-se reafirmar perante o país e o mundo o legado humanista e universalista da expansão portuguesa” (Ferreira, 2006:249)
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“funções efémeras”; a “deficiente” ponderação da “reutilização posterior” de grande parte das edificações; a desvinculação entre os objectivos do projecto urbano (o parque tecnológico, por exemplo) e as reais condições e dinâmicas da economia local; a “debilidade” das estratégias de dinamização posterior do espaço legado pelo evento e da sua “integração” no tecido sócio-cultural da cidade. Em suma, o “falhanço” do projecto urbano.” (2006:450. Aspas no original)
Além de no discurso de atores relacionados diretamente com o projeto Expo
(ouvidos por Ferreira), a representação da imagem do fracasso de Sevilha é recorrente
nas entrevistas que fizemos. RF, responsável pelo Departamento de Qualidade do
Espaço Público da Geurbana (DQEP, Geurbana), usa-a como justificativa para a
manutenção (já descontinuada) da responsabilidade da administração pela animação dos
espaços de uso público.
“{entrevistador} Alguns skaters referem que usavam o bowling...
“{entrevistado} Depois da Expo tivemos cuidado de manter muita atividade para que esse espaço fique vivo. Organizamos feiras, feiras de artesanato móveis antigos, livros. Havia todos os fins de semana actividades, animação de rua. A nossa preocupação depois da Expo é não deixar morrer como aconteceu em Sevilha” (RF, DQEP, Geurbana)
–
“{entrevistador} (…) o que havia antes?
{entrevistado} Começou com a Expo. Para não acontecer o mesmo de Sevilha, quiseram dar continuidade pós-Expo. Mesmo depois da Expo mantiveram pavilhões, aproveitar o resto do espaço, jardim (..)” (mãe de crianças que praticavam skate, aproximadamente 35 anos, entrevistada no Terreiro do Radicais)
Evitar o fracasso urbanístico, então, foi uma preocupação em si mesma, mas que
em termos de competitividade urbana acionou também a ideia do fracasso espanhol, e
não só do sucesso. A fim de evitar esse falhanço, preencheu-se o território com
comércio e serviços e com o parque habitacional.
Assim, para além da permanência dessa estrutura de interpretação que revela
como um elemento-chave da estratégia de marketing e competitividade urbana foi
apropriado pela atual administração e pelos utilizadores, há outras quatro heranças da
Expo'98 importantes aqui. A primeira diz respeito aos equipamentos de lazer de acesso
privativo que fizeram parte da Exposição, como o Oceanário de Lisboa, o Pavilhão
Atlântico, o Teatro Camões – três das “âncoras” do projeto urbanístico – e o Pavilhão
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de Portugal50. É aparentemente graças a esses e outros equipamentos lúdicos – para
além dos de usos mistos, como o Centro Comercial –, que há sustentação da população
cambiante necessária para manter a ocupação desse tipo de cidade.
A segunda herança se trata da influência do evento no planeamento dos espaços
de uso público. A arquitetura desses espaços, tanto para o evento como para o período
pós-Expo, ficou a cargo de um mesmo responsável. Isso se refletiu na submissão do
desenho urbano à temática da exposição. Segundo Ferreira (2006), o arquiteto
responsável pelos espaços públicos descrevia a tarefa como tendo combinado
“nas palavras do seu responsável, três critérios principais: “os projectos de urbanização de longo prazo para a zona da exposição”; “a criação de um ambiente alusivo ao tema” e de “condições práticas de circulação na exposição»; e a «preservação da memória do lugar”” (Ferreira, 2006:538. Aspas no original)
A terceira herança da Expo'98 é ideia de que a promoção da ocupação dos
espaços de uso público é uma responsabilidade da administração. Tendo sido uma das
incumbências dos promotores culturais da Expo'98 durante o evento (Santos e Costa,
1999), esse tipo de intervenção na ocupação dos espaços públicos continuou a ser
desenvolvido depois do evento, tendo cessado em 2008, quando a Geurbana foi criada.
Todavia, o abandono dessas funções encontra ainda alguma resistência dentro da
administração, segundo AJA, ténico do Departametno de Qualidade do Espaço
Público/Monitorização Urbana da Geurbana.
Essa promoção da ocupação hoje é referida por MSC, que atende pelo
Departamento de Comunicação e Relações com o Cidadão (DCRC), como
responsabilidade exclusivamente da iniciativa terceiros, cabendo à Geurbana
unicamente a sua autorização. Nesse trabalho, o ideal de manter o espaço de uso público
vivo, e vivo ludicamente, parece estar na base, também, da interpretação de
representantes da Geurbana sobre os artistas de rua: a prática é vista com bons olhos,
mas a interferência indesejada causada aos utilizadores de cidade pelo barulho e pelo
ato de pedir dinheiro os impactos que a atividade pode causar aos espaços públicos
levantam restrições51.
Por fim, a quarta herança. O projeto de marketing de Lisboa e de Portugal por
meio da Expo'98 e da reurbanização serviu de justificativa para a inovação
administrativa que os colocou a sob responsabilidade de uma empresa privada de 50 Site PESA51 Cf. 4.4 Explorações do recurso social
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captiais públicos. A inovação era necessária, segundo o decreto de fundação da Parque
Expo, S.A., devido “[à] dimensão e [à] complexidade da concepção e execução do
projeto de reconversão urbanística da zona de intervenção da EXPO 98, bem como a
gestão dos meios de financiamento das atividades necessárias à realização da
Exposição” (DL 88/93). Exposição que, por sua vez, foi entendida como uma
oportunidade que “responsabilizará particularmente Portugal perante a comunidade
internacional” (DL 87/93).
Embora as câmaras municipais de Loures e Lisboa devessem ter assumido a
gestão dos espaços públicos logo após o fim da Expo, em 1998, essa estrutura
prolongou-se até ao menos 2011, quando o governo Português determinou a sua
extinção (Público, 2011) e se previu a transferência52. Entretanto, cabe-nos analisar
alguns aspectos da gestão urbana que essa inovação administrativa decorrente de uma
estratégia de competitividade e marketing urbanos gerou.
Entre os representantes da Geurbana entrevistados, por um lado, é identificável
uma desvalorização do formato de gestão camarária, que remete a ineficiência e
morosidade. A necessidade de recorrer às câmaras municipais para executar alguns tipos
de intervenções de maior dimensão (a lentidão dos concursos públicos é um dos
exemplos apontados), ou para exercer a fiscalização sobre o uso dos espaços públicos,
são sempre referidos negativamente – assim como a vantagem de não ser necessário
fazer isso em outras ocasiões nas quais a Geurbana detém a competência absoluta.
A mesma desconsideração já havia sido expressa anteriormente por Luís Viana
Baptista (2004), então diretor de planeamento e desenho urbano na PESA, em relação à
estrutura estatal convencional. Ao se referir às críticas de que a constituição de uma
sociedade de capitais públicos e a concessão, a essa sociedade, de poderes
extraordinários para a reurbanização do território eram medidas antidemocráticas, o
então diretor afirma que o processo político serve apenas para “agitação mediática”
(2004:198).
Essa lógica repete, na gestão urbanística, a “retórica da eficiência” e de relações
custo-benefício que caracterizam uma viragem da gestão dos apoios sociais a partir dos
fins a década de 1970 na Europa, quando configura-se um processo de ganho de
autonomia, por parte das cidades, no desenho das políticas desses apoios, conforme
identifica Yuri Kazepov (2005:26)53. Nessa mesma época, segundo Patrick Les Galès, as 52 MSC, DCRC/Geurbana (comunicação por e-mail)53 “rhetoric of efficiency” (t.n.)
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políticas urbanísticas voltadas à resolução de necessidades sociais (das quais a habitação
é o exemplo mais óbvio) começam a conviver com as emergentes políticas urbanísticas
que colocam a cidade como mecanismo de desenvolvimento econômico,
“Social redistribution in favor of the rising tide of the poor populations within cities appeared central. However, rapidly the issue of urban regeneration and economic development was also brought forward, wether because it was ideologically driven by the neoliberal Thatcherite revolution in the UK case, or because cities came to be seen as crucial engines of economic development in the new post-industrial economies. (…) British urban policy aimed to promote market disciplines, competition and private-sector investiments in most cities at the expense of the professions, local authorities, planning rules, and social redistribution, sometimes mimicking US urban initiatives in terms of flagship projects, privatee developers' investments in quays and harbors, and business-led partnerships.” (Les Galès, 2005:239)
Inserida nessa segunda lógica de políticas urbanas, a reurbanização do Parque
das Nações é voltada à manutenção das condições de consumo dos espaços urbanos de
acordo com os padrões julgados adequados pela administração. A ideia de eficiência no
cumprimento desse objetivo se configura como a principal vantagem do modelo de
gestão do Parque na opinião dos representantes da Geurbana.
É uma interpretação que enquadra-se na lógica dos territórios e cidades
competitivos e lúdicos identificados por Baptista.
“É nesta versão de "pensar a cidade" que a programação é mais eficaz e o planeamento estratégico mais exequível já que a rentabilidade de um empreendimento tem que jogar com o tempo de execução e a discussão pública perturba de forma significativa tal dinâmica” (Baptista, 2004:94)
Essa eficiência no que toca aos espaços públicos se prende com a capacidade de
manter o controle quase absoluto sobre o que acontece no Parque. Para além dos
serviços de vigilância humanos e eletrônicos e do desenho aberto (com um mínimo,
portanto, de odd corners), a vigilância é garantida pelo que os entrevistados classificam
como “flexibilidade” ou proatividade dos funcionários da Geurbana. Como refere AJA,
do Departamento de Qualidade do Espaço Público/Monitorização Urbana, é essa
flexibilidade que faz com que um funcionário comunique à empresa uma anomalia
mesmo que não seja de sua competência. Assim, a competência laboral da flexibilidade
é entendida como um recurso para potencializar o controle sobre o Parque.
A preocupação com o pleno controle sobre o que acontece no território é
identificada por Foucault como um dos objetivos da abertura de vias para potencializar
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a circulação (2007:33-34). É uma característica, então, da modulação de segurança do
urbanismo, do entendimento desse como uma ferramenta para regulação de um meio,
da qual o urbanismo do Parque partilha algumas características. Para que a modulação
de segurança tenha sucesso, há necessidade de vigilância ostensiva, o que faz com que,
para além dos serviços dedicados à exercer esse papel (seguranças e sistemas
eletrônicos) e do desenho aberto, o caráter de vigilância dos funcionários seja colocado
como a principal mais valia do modelo de gestão urbana (AJA, DQEP/MU, Geurbana).
Desse modo, o espaço urbano do Parque, praticamente como um todo, adquire
uma característica das regiões frontais, que é a visibilidade. Muito embora possamos
falar, como será explorado mais adiante, em regiões posteriores dentro do Parque, esse
posterior deve ser pensado do ponto de vista do indivíduo que utiliza os espaços de uso
público e não da administração54. A vigilância como uma característica central para essa
administração faz com que, ao menos em possibilidade, toda e qualquer ocupação dos
espaços públicos se dê em uma região frontal do ponto de vista da administração,
mesmo que em uma região posterior do ponto de vista de quem usa a cidade.
A segunda forma pela qual a relação com o modelo de gestão camarária se dá é a
negativa de que a administração seja privada. O argumento é que a Geurbana é detida
por uma empresa que é, por sua vez, detida quase que exclusivamente pelo Estado.
“{entrevistador} (…) Qual a principal vantagem [do modelo de gestão privada] e a principal desvantagem em relação ao modelo de gestão corrente, que é o modelo de gestão das câmaras (...)
{entrevistado} Primeiro deixe-me fazer só uma correção. Não há aqui modelo de gestão privada. A Parque Expo Gestão Urbana é uma empresa totalmente pública (...). Não há aqui envolvimento de qualquer privado. Não é que eu tenha [algo] contra isso, só para clarificar qual é que é o modelo.” (LRo, administrador da Geurbana)
A principal desvantagem vai, entretanto, prender-se justamente com a falta de
legitimidade para poder avançar nos poderes regulatórios que decorre de a Geurbana,
apesar de detida pelo Estado, não ser investida da capacidade fiscalizatória de uma
câmara municipal, a que LRo se refere como “capacidade pública”. Com isso, a
empresa se encontra impedida de exercer ações fiscalizatórias de incumprimento de
posturas que estabelece como as corretas e de, assim, deter um maior controle sobre a
forma como os espaços de uso público são apropriados. A solução da situação passaria
pela assunção, pelas Câmaras de Lisboa e Loures, das competências da Geurbana como
54 Cf. 4 A organização no cotidiano
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competências municipais, mas mantendo a estrutura da empresa. Como refere LRo,
“{entrevistador} [mesma pergunta da citação anterior]
“{entrevistado} É um inconveniente que resulta das circunstâncias atuais [da não assunção] e não propriamente do facto de haver uma empresa única para a gestão (...). [E]mbora sejamos nós a fazer a gestão do espaço público, sejamos nós a conceder autorizações para utilização do espaço público etc., em termos legais o legítimo responsável pelos espaços públicos são os municípios. (...) E, portanto há algumas ações que exigem uma posição, um pouco mais de força, uma atitude diria coerciva para determinadas situações menos corretas que nós vemos aqui no Parque das Nações em que a Parque Expo Gestão Urbana não tem legitimidade para o fazer. E portanto nessa medida isso limita também um pouco a nossa atuação e não nos permite ser tão eficazes como nós gostaríamos de ser (...) Essa falta de autoridade limita um pouco nossas ações. Felizmente temos uma boa relação com os municípios, mas poderíamos ser muito mais interventivos se nós próprios tivéssemos esta capacidade pública que não temos. (LRo, administrador da Geurbana. Itálico nosso)
O posicionamento é compartilhado pelos responsáveis pelas direções de
Qualidade e Conceção Urbana, LRa, e de Obras e Infraestruturas Urbanas, JRP, que
relacionam essa deficiência com o fato de, à diferença do que acontecem com as
câmaras, os quadros da Geurbana não serem eleitos.
3.3 Nova centralidade
Um dos objetivos da reurbanização é descrito como a criação, na Área
Metropolitana de Lisboa, de uma nova “centralidade”, um conceito aplicado pela PESA
na promoção de outros projetos urbanísticos que desenvolveu e desenvolve para além
do Parque das Nações. No caso do Parque, nos materiais da PESA, encontramos a ideia
de centralidade ligada à plurifuncionalidade (PESA, 1999:70), à necessidade de
integração com a malha urbana e de integração a redes de transporte e tráfego (PESA,
1999:76), à recuperação do ambiente e da paisagem e à reconversão da função a que até
então era destinado o território (PESA, 2011b).
A interpretação do Parque enquanto nova centralidade também é dominante em
análises que consultamos na revisão de literatura. Segundo Matias Ferreira e outros
(1997) a expectativa de que a reurbanização criasse uma “nova centralidade” era um dos
pontos sublinhados por atores centrais do processo e por observadores privilegiados55.
55 Os observadores privilegiados são indivíduos considerados como os que têm influência na opinião pública, como jornalistas e urbanistas; os actores centrais são indivíduos considerados como directamente relacionados ou mesmo com poder decisório sobre os processos de intervenção nas frentes ribeirinhas, como o administrador da Parque Expo, membros do governo, das autarquias e do mundo sindical
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Em Ferreira, é possível ver como conceito é mobilizado pela organização do evento e
pelas autoridades públicas tutelares para referendar potencial do Parque de dinamizar o
desenvolvimento urbano (2006:424), servindo mesmo à justificação do projeto como
um todo (2006:444), e como se expressa no Plano de Urbanização da Zona de
Intervenção (PUZI, projeto urbanístico mestre da reurbanização) ligado também à
plurifuncionalidade. Gato (1997:89) aponta como, nesse mesmo Plano, a ideia de
centralidade é relacionada à melhoria do acesso ao território, uma característica
relacionada ao conceito também por Serdoura (2008) e Serdoura e Nunes da Silva
(2006).
A noção de centro está embebida em poder. Como Foucault (2007) mostra, a
modulação soberana do urbanismo coloca o Rei no centro da cidade, que para ser
capital, estaria no centro do reino56. Essa boa disposição do território garantiria a boa
circulação do poder real por todo o perímetro da cidade e do reino. Na modulação
disciplinar, o que passou a ocupar o centro geográfico das cidades foi o comércio,
dotado de boa acessibilidade, consolidando-se aí a ideia de centro funcional. Essa
parece-nos ser uma formulação dominante ainda hoje (Giddens, 1997). O fato de o
centro das cidades, como em Lisboa é o caso do centro histórico, consolidarem-se fora
do centro geográfico (Serdoura, 2008) e continuarem a ser referidos como centro por
suas características simbólicas, de mobilidade e funcionais, é testemunho do poder que
por meio da ideia de “nova centralidade” se tenta conceder ao Parque das Nações e à
reurbanização. Os movimentos de retomada dos centros degradados (cf., por exemplo,
O'Connor Wynne, 1997 para Manchester), são, para além de uma necessidade prática,
uma necessidade simbólica. São uma maneira de (re)colocar o centro como a região
mais frontal da cidade, redefinindo-o.
Medindo a centralidade a partir dos critérios de acessibilidade do território a
partir de outras regiões de Lisboa por meio da malha viária (ruas, avenidas etc.) e da
concentração de funções centrais, identificadas como comércio e serviços (incluindo
públicos), Francisco Manuel Serdoura identifica a consecução desse objetivo no Parque.
Segundo o autor, Lisboa tem três centralidades: o centro histórico (a Baixa Pombalina),
a região das Avenidas Novas (expansão para Norte desenvolvida sobretudo na segunda
metade do século XX e que mais se aproxima do centro geográfico); e o Parque.
“A nova expansão urbana de Lisboa – Parque das Nações – constitui-se, assim, em nova centralidade na cidade, facto que é demonstrado pela
56 C.f. 1.2 Contextos e regionalização de contextos
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importância da sua estrutura urbana no centro funcional e na cidade e que fez desviar o crescimento do centro para a zona Oriental, em direcção à periferia” (2008:194)
Para Matias Ferreira (citado em Ferreira, 2006:474), entretanto, a centralidade
do Parque ficou prejudicada e foi mesmo o “rotundo falhanço” pelo fato de o Parque
das Nações ter sido construído “de costas” (idem) para a cidade. Luis Mendes
(2001/2002) referenda a ideia de que o Parque é, de fato, uma nova centralidade.
Entretanto, denuncia o caráter eminentemente lúdico que ela assume, e a fragmentação
que causa ao promover um tecido urbano policêntrico para a cidade de Lisboa.
A ideia de nova centralidade surge espontaneamente no discurso de LRo,
administrador da Geurbana, quando perguntado sobre o que é o Parque das Nações. No
seu entendimento do conceito,
“{entrevistador} e o que é centralidade?
{entrevistado} No fundo esta é uma nova centralidade porque tem aqui uma série de equipamentos, alguns de escala metropolitana e de diversas funções desde a área dos transportes ao lazer etc., que no fundo são equipamentos polarizadores e funcionam como elementos âncora de atração das pessoas (…) a Gare Intermodal de Lisboa, (…) temos aqui equipamentos de lazer de referência como por exemplo o Oceanário, o Pavilhão Atlântico, o Teatro Camões, Pavilhão de Portugal. Temos equipamentos, usos da área comercial que também são grandes atrações como o Centro Comercial Vasco da Gama e portanto tudo isso (...) conferem a esta zona determinadas características que no fundo são altamente polarizadoras e atractivas para a população, quer para residir, quer para trabalhar (…) quer pessoas que vêm aqui pura e simplesmente para visitar e para o lazer. [Isto] faz com que toda esta zona seja um receptor de fluxos de pessoas de várias naturezas que faz com que este equipamento tenha uma ocupação constante ao longo das 24 horas por dia. (…) uma grande vivência em pleno ao longo de todo o ano, todo dia, todas as pessoas de diversas origens e naturezas.” (LRo, administrador Geurbana)
A ideia de centralidade no discurso do administrador é a de um território que a)
mais do que servir a demanda causada pela população circundante ou exercer controle
político sobre ela deve atraí-la para utilização; b) essa atração se dá pela oferta de
transporte e comércio, mas também de lazer, sendo a habitação uma função menor; c) o
centro tem funcionamento ininterrupto, o que parece contribuir para d) a diversidade de
pessoas que ali se encontram. Em resumo, pensada sobre o pano de fundo teórico, essa
estrutura de interpretação é: a função de um centro de cidade é atrair população
(competitividade) para consumo sobretudo de lazer (constituição de um território
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lúdico) e que ela seja constituída de um público diverso (diversidade).
Assim, por um lado o centro cumpre a tarefa de ser ferramenta de promoção da
competitividade urbana se constituindo em um território no qual o lazer é uma função
equiparável ao transporte e ao comércio. Por outro lado, o centro deve ser diverso, no
que conseguimos identificar em vigor o regime igualitário que Martucelli (2002)
conceitua, havendo entretanto um claro direcionamento ao cidadão que está em
movimento, utiliza comércio e busca lazer.
3.4 Inclusão do “cidadão em abstracto” pela “qualidade”
Recorremos, como se verá na seção seguinte, à ideia de inclusão e não só à de
exclusão para explicar os processos que organizam a vida social no Parque57. As
inclusões constituem-se como uma importante ferramenta de organização dos espaços
de uso público do Parque. Mesmo atividades consideradas na sociologia urbana, no
senso comum e nos próprios discursos da administração como desviantes encontram seu
lugar no Parque, seja pela institucionalização como acontece com o skate e o
graffitismo, seja pela tolerância como acontece com os sem abrigo58. Trata-se não de
impedi-los de uma vez, mas de permiti-los estar desde que em contextos específicos e
segregados, evitando assim a convivência e os eventuais conflitos entre diferentes. A
segregação, ou o “empacotamento espaçotemporal” de que fala Giddens (1986), garante
a melhor supervisão de cada um desses papéis e das atividades que desenvolvem,
empoderando-os de maneira limitada nos contextos espaçotemporais em que se
localizam, e desempoderando-os no conjunto59.
As exclusões, por sua vez, são garantidas não só pelas proibições – e essas,
sendo expressivas no quadro que identificamos, mais deslocam para os fundos do que
propriamente excluem ocupações –, mas também pela supressão de recursos que evitam
que a própria ocupação ocorra, sendo uma exclusão mais suave, portanto. Evita-se, ao
mesmo tempo que o ambiente de descontração, de transgressão das regras de convívio,
de liberdade (Mendes, 2001/2002), próprio de um território destinado sobretudo ao
lazer, seja desfeito por uma “floresta de sinais”, como diz RF, Responsável pelo
Departamento de Qualidade do Espaço Público
“De resto não pretendemos criar aqui uma floresta de sinais, tem a ver com a estética, tem a ver com.... há muitas coisas que as pessoas sabem que não
57 Cf. 4 A organização no cotidiano58 Cf. 4.5.2 Skate park, para a inclusão do skate e 4.5.1 Gare, para a dos sem-abrigo59 “time-space packaging” (t.n.)
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podem fazer. E achamos que fica um bocadinho feio de proibir, proibir, proibir. Algumas coisas decorrem do bom senso das pessoas e outas são da lei geral (...) Há uma ou outra atividade que temos que avisar as pessoas, para não usarem pitons nos relvados mas não proibimos os jogos no relvado. É saudável que as pessoas saiam à rua no fim do dia e façam alguma atividade com seus amigos, tem o espaço público, isto também serve para utilizar. Mas queremos que não destruam o espaço público usando equipamento que cria estragos e para não haver confusões nós dizemos 'olha aqui é melhor e outro espaço está reservado para uma outra atividade', para não criar conflitos, para evitar conflitos à partida. Não somos muito de proibir.” (RF, Geurbana, entrevista, data)
A ideia de que todos podem estar incluídos no Parque, ou seja, de que não há
exclusão, é central nos discursos, assim como a ideia de que o Parque das Nações seria
destinado a um ou alguns públicos específicos encontra resistência. O fato de inquéritos
encomendados pela Geurbana apontarem que a faixa etária média da população
cambiante presente no perímetro gire em torno dos 30 anos e que isso seja condizente
com o expectável para uma “zona nova” é tratado como uma consequência inintencional
(Giddens, 1986). Como refere MSC, do Departamento de Comunicação e Relações com
o Cidadão, o Parque é feito para as pessoas que queiram viver nele
“{entrevistador} Não houve alteração no perfil entre os dois inquéritos [sobre o perfil do público, realizados em 2007 e 2009].
{entrevistada} Não. Manteve-se exatamente a mesma coisa. Agora vamos ver 2011, mas acreditamos que se mantém. O que é engraçado porque a idade continua a ser entre os 30, talvez 30 e qualquer coisa. Portanto é uma faixa muito novinha. Em 2007 era essa faixa, em 2009 continua a ser essa faixa, o que quer dizer que vieram muitos dessa idade porque senão essa faixa seria um bocadinho superior
{entrevistador} Pois. Normalmente o país está a envelhecer, normalmente teria que envelhecer...
{entrevistada} Exatamente. Portanto acaba por ser engraçado porque continuamos a ver... normalmente é uma faixa jovem que procura o Parque das Nações, essencialmente uma faixa jovem.
{entrevistador} É interessante porque é bem isso. Há um envelhecimento do país natural, só aqui se mantém
{entrevistada} Aqui é uma zona nova e portanto as pessoas novas, os espaços verdes tudo isso chama um bocadinho talvez as pessoas mais novas.
(...)
{entrevistador} Esse perfil (…) que foi identificado, jovem, principalmente
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jovem, é um perfil que condiz com aquilo para o qual o Parque imaginava que estava a ser construído ou é um perfil um pouco diferente...?
{entrevistada} Eu acho que não se fez essa previsão, mas é natural que uma zona nova acolha pessoas novas. Tenho a dizer-lhe que temos pessoas de faixas bem superiores, muitos reformados (...) Portanto, naturalmente que temos todas as faixas. Há um predomínio daquela faixa mais nova, não é? (...) Vêm das zonas novas, então são portanto tendencialmente pessoas novas também. Mas agora não se fez uma previsão de pessoas.
{entrevistador} Não se traçou 'queremos fazer o Parque para este tipo de pessoas'
{entrevistada} Não, queremos fazer o parque para as pessoas que queiram viver cá, gostem de viver cá. (MSC, DCRC/Geurbana)
Assim, a permanência de uma população jovem apesar do envelhecimento da
população em geral60 é vista uma consequência natural decorrente do fato de o Parque
das Nações ser uma zona nova e arborizada e não, pelo sentido inverso, como uma
consequência intencional da forma como o Parque é concebido. Essa mesma estrutura
de interpretação se encontra expressa no discurso de LRo, administrador da Geurbana.
“{entrevistador} Há um tipo de utente ou alguns tipos de utente, visitante e residente, que o Parque tenha em mente, que o senhor tenha em mente quando pensa as expectativas que deve atingir?
{entrevistado} Não, não. Deixe-me dizer, (…) o nosso objetivo é que o Parque seja o mais possível utilizado por todas as classes, por todos os segmentos e por toda a população. Portanto, quando pensamos nas iniciativas que desenvolvemos, por assim dizer, é para o cidadão em abstracto, portanto não é dirigido a pessoas com determinado segmento quer econômico, quer social, quer o que seja. Nós aqui procuramos que abranja, isso sim, o maior número possível de pessoas e satisfaça o maior número possível de pessoas independentemente do seu enquadramento. Agora, como se costuma dizer, é impossível agradar a gregos e troianos. Há sempre pessoas que acolhem muito bem uma ideia e outras por exemplo não têm esse entendimento, mas de fato nós não privilegiamos nem fazemos qualquer discriminação, quer positiva quer negativas das pessoas que aqui nos procuram” (LRo, administrador Geurbana)
A ideia de “cidadão em abstracto”, que também parece subjazer a ideia de uma
das características da centralidade ser a diversidade populacional expressa por LRo,
parece-nos uma formulação que apaga a existência de uma normalidade normativa, de
um “normal run” (Tonkiss, 2005), de um “cidadão comum” (Fernandes, 2006) que as
políticas urbanística ajudam a construir pelos recursos e constrangimentos que dispõem
60 Ressaltamos que aqui não estamos a atentar para a validade ou não da avaliação da pesquisa apresentada, ou para a qualidade da mesma pesquisa
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nos espaços urbanos.
Portanto, julgamos que a existência dessa estrutura de interpretação de que não
há público-alvo do Parque das Nações assenta sobre uma necessidade de garantir a
ficção democrática de que há uma igualdade de recursos e constrangimentos, apesar da
evidência de que esses recursos e constrangimentos privilegiam (“atraem” ou
“agradam”) uma determinada fasquia populacional. E isso mesmo quando se reconhece
a existência dessas evidências, como quando MSC aponta a manutenção de um público
“jovem” apesar do envelhecimento da população em geral, e LRo afirma não conseguir
agradar “gregos” e “troianos”.
Essa estrutura de interpretação torna-se ainda mais importante pois é utilizada
como justificativa para o próprio trabalho de gestão urbana desempenhado pela
Geurbana. Dito de outra forma: é para garantir que todos possam usar os espaços de uso
público, já que aí é o lugar onde as pessoas “socializam” e da “democracia”, que existe
uma preocupação em manter a “qualidade” desses espaços que justificam, como se verá,
exclusões61. Como refere LRo,
{entrevistador} Para que é usado o espaço público aqui? Qual a função do espaço público do Parque das Nações?
{entrevistado} (…) O espaço público é por excelência o espaço da cidade onde as pessoas socializam. (…) O espaço público como sabemos é aberto, com pessoas com maior ou menor capacidade econômica, com maior ou menor literacia, com umas com maior ou menor condicionantes em termos de mobilidade. Portanto o espaço público é um espaço que deve ser amplamente utilizado e eu diria democratizado. É o espaço onde vai toda a gente e nessa medida (…) tem que ser adequado e ter qualidade também para todas essas pessoas que aí se deslocam. E nessa medida nós (...) tentamos que de facto este fosse um espaço público diferenciado pela qualidade. Por esse motivo nós (...) tivemos um grande cuidado ao nível do de tudo o que é mobiliário urbano, arte urbana que no fundo eu diria que o PdN é quase um museu a céu aberto (...), os próprios espaços verdes há um grande cuidado quer na sua concepção quer na sua manutenção, ao nível dos pavimentos há pavimentos belíssimos (...). Ou seja, houve todo um cuidado para que o espaço urbano e público fosse de grande qualidade e permitisse e fosse acima de tudo confortável para as pessoas que aqui visitam e que no fundo propiciasse essa socialização e essa visitação por parte de todas as pessoas. Portanto, no nosso entender o espaço público é por entender o espaço da cidade, um espaço nobre, quase a sala de visitas da cidade. (…) Nós procuramos que essa qualidade que esteve implícita na concepção que se mantenha e perdure (...)
Essa “qualidade”, entretanto, é normativa. Na citação acima, a qualidade do
61 Cf. 4 A organização no quotidiano
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espaço urbano é relacionada a ocupações lúdicas e é possível perceber algumas das
características dessa ocupação: a que pressupõe o lazer como a apreciação de obras de
arte, a visitação de áreas verdes para socialização e que não interfira no espaço físico.
Essas são incluídas, assim como o são outras que analisamos mais à frente. Excluídos
do espaço de uso público sob a justificativa da qualidade estão, por exemplo, a venda
ambulante de comidas fora de eventos lúdicos, a mendicância, a música alta, o graffiti
fora do skate park mesmo que em locais privados se não forem bonitos62. A qualidade é,
na definição de LRa, responsável pela Direção de Qualidade e Conceção Urbana,
{entrevistador} A direção é uma direção de qualidade... O que é esse conceito de qualidade no entender do arquiteto [LRa] . O que é a qualidade do espaço público... qualidade?
{entrevistado} O que nós procuramos garantir, o conceito de qualidade... no cumprimento de qualidade no que a própria palavra indica. Antes de mais nada do ponto de vista do cidadão, das pessoas que usufruem e fruem este espaço. E a qualidade do espaço público se reflete na qualidade de vida das pessoas. Agora essa qualidade passa por uma intervenção direcionada que tem em conta uma série de pressupostos inclusive a sustentabilidade do próprio território. Nessa medida nós procuramos intervir tendo em conta esses padrões de qualidade, quer ao nível da construção, quer ao nível da manutenção, quer ao nível da existência de grande superfícies de espaços verdes e procuramos que os cidadãos disponham de um espaço com essas valências todas e que contém também equipamentos lúdicos, ciclovias enfim. E todos os serviços que podem garantir de fato esses pressupostos” (LRa, DQCU/Geurbana)
Assim, o conceito de qualidade serve como justificativa para que o espaço de
uso público seja utilizado como um aparelho prescritivo (Pais, 1991) de formas de estar
nele.
3.5 Motilidade e ressensibilização
Para além de promover uma relação lúdica com o Rio Tejo, o Parque das Nações
teve como característica integrar, em termos de acessibilidade, uma região da Área
Metropolitana de Lisboa que, como visto, era considerada fechada e estagnada
territorial e socialmente. Tratou-se, assim, de um processo de potencialização dos
aspectos contextuais que constituem a motilidade dos indivíduos.
Analisamos duas vertentes nesse processo: a) a dotação do território de
acessibilidades a partir do exterior, desde a envolvente até perímetros mais alargados,
por meio da integração a redes de transporte e tráfego, que é uma necessidade para que
62 Cf. 4.4 Explorações do recurso social para as primeiras e 4.5.2 Skate park para o graffitismo
59
1870
1875
1880
1885
1890
1895
1900
o Parque se possa constituir enquanto nova centralidade; b) a modulação da mobilidade
dentro Parque com valorização da circulação suave, sobretudo pedestre. A conjunção
dessas duas vertentes, como ocorre no Parque, consolida a estratégia de mobilidade do
Plano Diretor Municipal de Lisboa de 1994, integrante de uma série de instrumentos
urbanísticos que visavam suprir “a necessidade de “devolução do rio à cidade, a bem da
qualidade de vida dos cidadãos, a bem da afirmação e da projecção internacional desta
Capital Atlântica da Europa”.”(Matias Ferreira e outros, 1997:153-154. Aspas no
original)63.
Essa estratégia vem na esteira de um incremento do debate sobre o futuro das
frentes ribeirinhas iniciado na década de 1980 que visava inserir essa faixa territorial no
que Matias Ferreira e outros vão chamar de “modernidade «tardia»” na qual “lazeres e
tempo livre; cultura e recreio; turismo e impactes ambientais; serviços e tecnologias
avançadas” (1997:151. Aspas no original) surgem como funções urbanas e
preocupações centrais. Essa “modernidade «tardia»” é colocada em oposição à marcada
pela ocupação industrial/habitação social, até então prioritária na zona oriental.
A reurbanização assentou na constituição de importantes infraestruturas de
transporte e tráfego. Junto ao centro geográfico e simbólico do Parque está a Gare do
Oriente, planejada para ser um eixo estruturante do sistema de transportes públicos na
área metropolitana de Lisboa, congregando metropolitano, transporte rodoviário (14
companhias) e ferroviário (local, regional, nacional e internacional) e oferta de parques
de estacionamento. No passado, a gare esteve integrada ao transporte fluvial, enquanto
funcionou junto ao Parque um ponto de ancoragem, já desativado. A distância da gare
em relação ao Rio e a inexistência de meios motorizados de transporte para fazer a
conexão são apontados como as razões para o insucesso por CCa, administrador Gare
Intermodal de Lisboa (GIL), empresa que gere o terminal. Em 2001, um estudo apontou
um movimento diário de 132 mil pessoas (para usar ou não transportes) e as projeções
iniciais (anteriores à Expo'98) apontavam para um fluxo de 239,5 mil pessoas/dia em
2012 (86 milhões/ano) (GIL, 2011). Os planos para o futuro são tornar a Gare o terminal
do Trem de Grande Velocidade (TGV) em Portugal e um shuttle de conexão com o
Novo Aeroporto de Lisboa, ambos em fase de projeto.
A PESA detém 49% do capital social da GIL, sendo a Rede Ferroviária Nacional
(REFER, empresa pública) e o Metropolitano de Lisboa (também empresa pública) os
63 O Plano Estratégico de Lisboa, um desses outros instrumentos mencionados, tinha por lema central “Lisboa, a Capital Atlântica da Europa”, segundo Ferreira (2008:467)
60
1905
1910
1915
1920
1925
1930
1935
dois outros acionistas. Essa participação de capitais públicos também faz o
administrador da CCa negar a ideia de que a administração seja privada, à semelhança
do que acontece na Geurbana64.
Além dessa interface, o projeto Expo também significou a concretização de um
projeto longamente adiado que é a segunda travessia do Tejo, constituída pela Ponte
Vasco da Gama (PVG), junto ao limite Norte. O Parque das Nações tem, ainda,
acessibilidades à Autoestrada do Norte (que liga Lisboa ao Porto, a segunda área
metropolitana mais importante de Portugal) e à Circular Regional Interior de Lisboa,
construída para retirar o tráfego de atravessamento das áreas centrais da cidade.
Internamente, as condições estabelecidas pelo modelo urbanístico continuam a
potencializar a motilidade. A distribuição das principais “âncoras urbanísticas” com
alguma distância entre si, a disponibilização de transportes públicos coletivos
(autocarros, simulacro de comboio, teleférico) e individuais (aluguel de bicicletas e
karts a pedal), e o estabelecimento de condições para circulação pedestre, em bicicleta e
em automóvel, são alguns dos recursos e constrangimentos que propõem a circulação
permanente. Esses elementos serão explorados mais detidamente abaixo, de acordo com
os contextos em que ocorrem65.
O que diferencia as condições contextuais internas à motilidade dos indivíduos é
o favorecimento da mobilidade suave. A característica mais expressia nesse sentido é o
estabelecimento de uma Zona de Acesso Condicionado (ZAC) que cobre toda a faixa
ribeirinha e as zonas mais centrais do Parque, geográfica, funcional e simbolicamente.
Além de garantir a segurança dos peões, a ZAC tem o objetivo de reduzir o “efeito
negativo que a imagem dos veículos transmite na paisagem e ambiente” (Geurbana,
2011:1), sendo as autorizações para que se possa circular na zona (para carga e
descarga, por exemplo) concedidas de modo a manter essa imagem. A maneira como
AJA, do Departamento de Qualidade do Espaço Público/Monitorização Urbana, refere-
se a essas autorizações, destacando como apesar do número expressivo de autorizações
concedidas a percepção da circulação automóvel é baixa, reflete essa preocupação com
a imagem, que por sua vez está relacionada, a nosso ver, àquela estrutura de
interpretação enunciada acima que coloca o movimento pedestre como integrante do
fluido conceito de qualidade de vida.
A valorização da mobilidade pedestre é justificada por Vassalo Rosa, arquiteto 64 Cf. 3.2 Expo'98: marketing e heranças urbanas65 Cf 4 Organização no cotidiano
61
1940
1945
1950
1955
1960
1965
da Parque Expo, como estratégia para “humanizar” o espaço de uso público em
oposição ao tráfego automóvel (Ferreira, 2006:453). Tal estratégia parece querer
reverter o que Urry e Sheller (2003) identificam como o efeito negativo do automóvel
no espaço público em termos de participação no mundo público. O automóvel, afirmam
os autores, é um dos elementos que têm efeitos ambivalentes nas culturas de democracia
(juntamente com as tecnologia da informação). Isso porque os carros por um lado têm
um efeito democratizante ao aumentarem as opções de mobilidade (aumentar, então, a
motilidade) dos indivíduos; mas por outro erodem o espaço público (na perspectiva
ampla) pela redução da participação do indivíduo no mundo público. A necessidade de
estar em constante movimento e o encapsulamento dentro do veículo impedem o
indivíduo de viver o espaço público, as particularidades desse espaço, de encontrar
estranhos66. Assim, o espaço de uso público é substituído rodovias de uso público e o
indivíduo, dentro do carro, roda privado em espaço público (Urry e Sheller, 2003:115).
O privilégio da circulação pedestre no Parque das Nações de certo modo
contraria essa segunda consequência da automobilização: constrói espaço de uso
público e evita que ele se torne rodovia pública, em suas áreas mais centrais geográfica
e simbolicamente. Estabelece recursos e constrangimentos para que o indivíduo saia de
sua “gaiola de ferro” (Urry e Sheller, 2003), colocando-o assim em potencial contato
com o outro e com as particularidades do espaço de uso público onde ele está. Assim, a
pedestrialização dos espaços de uso público favorece aquilo que Urry (2002) identifica
como sendo a necessidade basilar de qualquer deslocamento: a necessidade de
copresença, seja para encontrar o outro, estar em um lugar ou testemunhar um evento.
A cidade entretanto coloca estranhos em interação em ambientes não-neutros
(Hannerz, 1983:133). O aumento da sensibilidade ao outro, ao estranho, no Parque das
Nações, tem duas características que merecem ser exploradas. Em primeiro lugar, a
própria ludicização dessa experiência por meio do espaço físico. Para além da
distribuição de equipamentos de lazer nos espaços de uso público (como brinquedos e a
pista de skate), a aposta em uma ressensibilização lúdica da experiência do indivíduo
nesse espaço foi buscada por meio da distribuição pelo território da maior parte de um
conjunto de 54 obras de arte urbanas. Juntamente com a pestrialização, essas obras de
arte deveriam ajudar a humanizar o território na visão do arquiteto Vassalo Rosa
(Ferreira, 2006:.453) e na do responsável máximo pelo projeto Expo e posterior
66 Como afirma Antoine S. Bailly (1978:131) “(...) las imágenes forjadas por el hombre de su entorno lo son, y en no poca medida, a trave´s del parabrisas o de los vidrios de las ventanas laterales.”
62
1970
1975
1980
1985
1990
1995
presidente do Conselho de Administração da PESA, António Mega Ferreira
“Esse investimento [na arte urbana] foi retoricamente sustentado numa filosofia urbanística centrada na ideia de revitalização do uso do espaço público e da interacção entre a comunidade de cidadãos e a componente física do território. Nas palavras de A. Mega Ferreira, a arte urbana representava uma soma de elementos de “construção da paisagem”, “não como figuras decorativas […] mas como topoi de uma estratégia de desconstrução e reconstrução do espaço urbano” (Ferreira, A. M., 1998: 9). (...) A cada artista caberia apresentar propostas que assumissem “um carácter de reacção contra a indiferença generalizada, sugerindo ao indivíduo um objecto paradoxal e de descontinuidade dentro da malha urbana” (Pinto, 1998: 13).” (Ferreira, 2006:453)
Em segundo lugar, o encontro com o outro vai ser seletivo, essa seleção sendo
efetuada pelos processos de inclusão e exclusão que serão desenvolvidos abaixo e
envolvendo uma modulação da sensibilidade67. Nos espaços de uso público da Zona de
Acesso Condicionado existe um controle mais estrito das ocupações, justificado por
representantes da Geurbana recorrendo a duas razões: o indivíduo na ZAC está em um
momento de lazer e assim deve ser resguardado de algumas interações; há ocupações
consideradas não qualificadoras (carros, barulho, comércio ambulante, publicidade
expressiva ou funcionários comendo “à mesa posta”) que denigrem o que é definido
genericamente como qualidade. Há, assim, dentro da ZAC, uma tentativa de
restabelecer uma privacidade perdida quando o indivíduo sai de seu automóvel.
Em conclusão, o modelo urbanístico do qual resulta o Parque das Nações
potencializa a motilidade dos indivíduos, o que parece ser decisivo para manter a
permanente massa de população cambiante – necessária que esta é para que o Parque
possa funcionar como um catalizador da competitividade urbana de Lisboa. A presença
dessa massa cambiante fora dos carros contribui tanto para a viabilidade dos
equipamentos privados instalados no perímetro como para a ocupação dos espaços de
uso público, constituídos eles próprios como um instrumento de competitividade
urbana. Por outro lado, a potencialização da sensibilidade do indivíduo daí decorrente
irá ser modulada por meio da ambientação lúdica que é dada ao espaço de uso público
por meio do desenho físico e pela gestão. A preocupação em garantir a não interferência
nos territórios do eu do indivíduo (Goffman, 1973) em seu momento de lazer, oferece
recurso para que o urbanita possa recuperar, no espaço de uso público, parte da
privacidade perdida por sair do automóvel.
67 Cf. 4 A organização no cotidiano
63
2000
2005
2010
2015
2020
2025
2030
Essas duas características da estruturação da vida social proposta no Parque –
potencialização da motilidade e ambientação lúdica – decorrem da materialização dos
projetos urbanísticos que visam “devolver o rio à cidade” e transformar Lisboa na
“Capital Atlântica da Europa” e trazer a faixa ribeirinha da modernidade industrial para
a “modernidade tardia”. Cabe entretanto analisar como, nessas condições contextuais
mais amplas, outros contextos menores são aí estruturados. Passamos assim à análise
mais detalhada da organização da vida social no cotidiano dos espaços públicos.
64
2035
2040
4. A organização no cotidiano
A análise mais detida da vida social no cotidiano dos espaços públicos do Parque
está dividida em 5 seções. Como apontam as justificativas para cada uma delas, tratam-
se dos recortes que permitem ver, de maneira mais clara, como funcionam o que
designamos por processos de inclusão e exclusão, que é o conceito analítico aqui
desenvolvido para explicar a organização da vida social nos espaços de uso público.
Os processos de inclusão e exclusão devem ser entendidos como
complementares. Fazem parte de um contínuo no qual enquadramos ações, contextos e
papéis de acordo com os recursos e constrangimentos dispostos em um contexto. Assim,
nos referimos à exclusão de uma ocupação por a) ser proibida ou b) por ter recursos à
sua execução suprimidos; e nos referimos a ocupações submetidas a processos de
inclusão c) pela tolerância, por existirem apesar de haver um impedimento formal ou
uma resistência informal, ou d) pela institucionalização, em que a administração do
Parque toma papel ativo na formalização e gestão desses fenômenos, diretamente ou
indiretamente. O quadro conceitual, que se trata de uma reformulação do apresentado na
figura 1, está expresso na figura 3, e foi elaborado a partir do confronto do quadro
conceitual inicial com os dados do terreno após a sistematização dos mesmos.
4.1 Deslocamentos
O primeiro domínio que desejamos analisar para demonstrar o funcionamento
dos processos de inclusão e exclusão é o deslocamento, aqui entendido como o ato de se
mover no espaço físico. Julgamos ser possível observar como os recursos e
constrangimentos oferecidos ao deslocamento no Parque incluem algumas ocupações,
excluem outras e por aí ajudam a constituir a ambientação lúdica que marca o Parque. A
escolha do deslocamento como a primeira ação a ser analisada se faz pela importância
da mobilidade para o tipo de reurbanização em estudo. É, em última análise, o ato do
deslocamento que constitui a materialização física da motilidade.
65
Figura 2: Processos de inclusão e exclusão; quadro conceitual reformulado
2045
2050
2055
2060
2065
4.1.1 Pedestrialização
Estar a pé é uma condição a ser privilegiada nas zonas ribeirinhas de Lisboa68.
No Parque das Nações, isso se faz gradualmente, a partir de seu limite oeste (definido
pelos caminhos de ferro), conforme a figura 3, constituindo um processo de inclusão e
exclusão que inclui progressivamente o pedestre e exclui progressivamente o tráfego
automóvel quanto mais próximo se está do Rio Tejo. Esse processo também inclui
outras formas de deslocamento essencialmente não-motorizadas, como a bicicleta, os
patins e os karts a pedal, e formas de deslocamento essencialmente motorizadas, como o
simulacro de comboio turístico. Tanto em um caso como no outro, identificamos
também uma ludicização do deslocamento. Tentamos demonstrar agora a) o processo de
inclusão e exclusão mencionado e b) a ludicização nele envolvida.
A Avenida Dom João II, que se constitui como a principal via longitudinal
(Norte-Sul) para transporte motorizado, possui passeios largos e segundo Serdoura e
Nunes da Silva (2006), abriga circulação pedestre ao longo de todo o dia. É nela que se
encontram a Gare do Oriente, principal infraestrutura de transportes do Parque, e o
Centro Comercial Vasco da Gama, a principal interface de comércio e serviços do
Parque. Ao longo da Avenida estão localizados ainda equipamentos como o Campus de
Justiça (a Norte), empresas, hotéis, restaurantes e uma escola de enfermagem.
A segunda longitudinal é a Alameda dos Oceanos, considerada o eixo
longitudinal do Parque, sua principal ligação Norte-Sul. O desenho físico das pistas de
rodagem obriga ao desenvolvimento de uma menor velocidade, o que penaliza o tráfego
automóvel de atravessamento. Essa longitudinal possui passeios amplos nas laterais
como a Avenida Dom João II e, na parte de sua extensão mais próxima à área central,
também entre as pistas de rodagem. Nesse passeio entre as pistas de rodagem há jogos
de água (uma das artes urbanas), bancos e árvores. Para além disso, a Alameda possui
ciclovia de ambos os lados, a partir da Avenida da Boa Esperança, limite Norte da área
central, até o limite Sul do Parque, marcado pela Rotunda da Expo.
A terceira longitudinal é constituída, de Norte a Sul, por uma sequência de
passeios exclusivamente pedestres margeando o Rio Tejo que ligam o Parque do Tejo,
uma área de jardins e relvados que ocupa quase toda a área periférica Norte junto ao rio,
à Marina e ao Parque Infantil do Passeio de Neptuno, no limite da área periférica Sul.
Ao longo dessa longitudinal distribuem-se bancos, esplanadas de restaurantes, alguns
68 Cf. 3.5 Motilidade e ressensibilização
66
2070
2075
2080
2085
2090
2095
brinquedos públicos e obras de arte urbana.
A principal transversal do Parque é o Rossio dos Olivais, também pedestre, já
dentro da ZAC, que liga a Alameda dos Oceanos aos passeios que margeiam o Rio Tejo.
67
Figura 3: Zona de Acesso Condicionado e longitudinais
2100
O Rossio está localizado no centro geográfico do Parque e constitui a continuação de
um eixo transversal que começa na Gare do Oriente e passa pelo Centro Comercial
Vasco da Gama (dois equipamentos integrados um no outro funcional e
arquitetonicamente) em direção ao Rio Tejo. Ao longo do Rossio se estende um jogo de
água, estão distribuídas as bandeiras dos países e instituições que participaram da
Expo'98, e estão instaladas algumas obras de arte públicas – sendo o próprio piso uma
delas. A intersecção do Rossio e da Alameda – dos dois principais eixos do Parque
(Geurbana, 2011c), portanto – ocorre à entrada do Centro Comercial Vasco da Gama e é
marcada pela obra de arte urbana Homem Sol.
No perímetro da ZAC, onde com algumas exceções as vias são passeios
pedestres, encontra-se boa parte das principais âncoras privadas de atração de
utilizadores do Parque: o Oceanário, a Marina, a Rua da Pimenta – dedicada à
restauração com esplanadas – o Teatro Camões, a Ponte Vasco da Gama, o Pavilhão do
Conhecimento, o Pavilhão de Portugal (ocupado para eventos ocasionais, desenhado por
um arquiteto português vencedor do Prêmio Pritzker), o Pavilhão Atlântico (que abriga
eventos culturais como concertos), a Feira Internacional de Lisboa (centro de
exposições). Nesse perímetro também se distribui a maioria das obras de arte urbanas.
Fora da ZAC há passeios pedestres em praticamente todas as vias, protegidos
por pilaretes de aço que impedem a ocupação dos mesmos por automóveis – um
fenômeno comum em Lisboa e em outras cidades portuguesas69. Os passeios estendem-
se até fora do Parque, promovendo uma conexão pedestre com a envolvente, e a oferta
de transportes públicos permite ao indivíduo chegar até o Rio Tejo a partir das outras
centralidades de Lisboa sem a necessidade de usar automóvel particular.
Além do andar, o deslocar-se em bicicleta também é alvo de expressiva
inclusão70, que ocorre por meio da institucionalização e da tolerância. Para além da já
referida ciclovia na Alameda dos Oceanos, o deslocamento com esse veículo não sofre
virtualmente restrição nos demais espaços de uso público. Há ainda alguns
estacionamentos próprios, como junto ao Centro Comercial Vasco da Gama e à
Vodafone, e um sistema de aluguel de bicicletas. Para chegar até o Parque, os ciclistas
69 A relevância desse fenômeno pode ser medida pela ocorrência de campanhas de conscientização desenvolvidas pela Câmara Municipal de Lisboa (CMLx, 2011b); o surgimento de propostas solicitando a instalação de pilaretes entre as apresentadas no Orçamento Participativo; e pela ocorrência do protesto “passeio livre” (PL, 2011), que promove a colocação de autocoloantes em carros estacionados irregularmente
70 Para a emergência da velomobilidade enquanto modo de deslocamento para mediar a automobilidade por parte das classes médias, c.f. Pesses, 2010; para a inclusão da bicicleta em outras regiões de Lisboa, cf. CMLx, 2005
68
2105
2110
2115
2120
2125
2130
têm à disposição uma ciclovia que liga duas importantes zonas residenciais de Lisboa
(Olivais e Alvalade), além de poderem transportar o veículo no metropolitano (fora do
horário comercial), nos comboios (durante o dia todo) e em algunas carreiras de
autocarros de Lisboa. Dentro do Parque, alguns policiais utilizam o veículo, assim como
o coordenador das equipes de limpeza dos espaços de uso público.
Encontramos duas restrições ao uso de bicicletas nos espaços de uso público do
Parque. A primeira delas se aplica à prática do bmx, coibida nas áreas mais centrais mas
incluída (institucionalizada) em uma pista própria para essa ocupação instalada na área
periférica Norte71. O impedimento limita-se, porém, ao bmx enquanto prática, que
envolve por exemplo utilizar o mobiliário urbano como obstáculo para manobras, e não
ao deslocamento simples com a bicicleta utilizada para o bmx. A segunda restrição é
uma interdição de circulação em uma estacada sobre o Rio Tejo, junto à Marina, onde
foi instalada uma das poucas placas de proibição existentes no Parque para além das de
trânsito. Entretanto, as violações a essa norma são toleradas.
O uso de patins e skates para deslocamento sofre exclusão por meio da supressão
de recursos, já que o piso utilizado na maior parte dos passeios pedestres é pouco
adequado à utilização desses dois equipamentos72. Ambas as práticas entretanto são
institucionalizadas na mesma pista destinada ao bmx. Também é institucionalizado o
uso de karts a pedal, que podem ser utilizados nos passeios pedestres e que são
oferecidos pela mesma empresa que aluga as bicicletas. No que toca a transportes
motorizados, ao longo da Alameda dos Oceanos, na área central, os únicos autocarros
autorizados a circular são os de serviço turístico. Há nos passeios pedestres um
simulacro de comboio sobre pneus que é utilizado tanto por crianças e jovens como por
adultos e idosos. Por fim, há um teleférico que liga o Parque do Tejo ao Oceanário.
Tendo identificado os processos de inclusão e exclusão sobre formas de
deslocamento, seguimos para o destacar, nessas mesmas formas, da maneira como esses
processos contribuem para a ambientação lúdica dessas formas de deslocamento e, em
consequência, dos espaços de uso público do Parque das Nações. Parte delas ocorre em
decorrência de um processo de industrialização de tempos livres (Baptista, 2004), que
transforma o passar em passear.
Seja para ir de um lado para o outro, seja repetindo um mesmo trajeto, parte dos
deslocamentos no Parque das Nações é desenvolvida como uma atividade de lazer ou 71 Cf. 4.5.2 Skate park72 Idem
69
2135
2140
2145
2150
2155
2160
aliada a uma atividade de lazer – como brincadeiras, atividades físicas e a apreciação da
paisagem73. No que tange aos deslocamentos a pé, além da paisagem convidativa à
transformação do andar em um passear, a prática do jogging é beneficiada pelo relevo
do território e promovida por meio de publicidade74. No que tange às demais formas de
deslocamento, parte do veículos oferecidos ou com permissão para circular nas áreas
mais centrais têm um forte cariz lúdico: caso do kart a pedal, dos autocarros turísticos,
do simulacro de comboio, do teleférico e das bicicletas para aluguel, que são batizadas
com nomes de pessoas e têm regras e custo de utilização que as torna um meio de
transporte pouco atrativo para utilizadores pendulares: a bicicleta deve ser devolvida no
lugar em que foi emprestada e o preço para a utilização durante o dia todo é maior do
que o da avença mensal do metropolitano em Lisboa, por exemplo.
Tal oferta de recursos ludicizados de deslocamento é mais expressiva nas áreas
mais centrais do Parque. Essa distinção é importante tendo em vista a importância da
noção de centralidade em todo o processo de constituição do Parque das Nações75.
4.1.2 Tolerância automóvel
Mais do que simplesmente excluído – como poderia sugerir a análise que viemos
de desenvolver – o uso do carro particular encontra recursos dentro do perímetro assim
como os deslocamentos não-motorizados e em transporte público. Como refere o
Relatório da Expo'98
“Privilegiaram-se os percursos pedonais, criando grandes parques de estacionamento e incentivando o uso do transporte público na articulação com a cidade, condições estas que favorecem a fluidez automóvel” (PESA, 1999:64. Itálico nosso)
Para além da oferta expressiva de vagas de estacionamento, o estacionamento
irregular conta com a indulgência dos atores institucionais responsáveis por regulá-lo
(Emel e a Polícia de Segurança Pública). Dois extratos da observação podem ilustrar
essa indulgência.
É comum a presença de policiais junto às portas do Casino de Lisboa a
desempenhar função de seguranças do estabelecimento (um tipo de contratação
73 O método da observação direta dificulta, obviamente, definir exatamente quais o são e quais não o são. Tentamos caracterizar os deslocamentos lúdicos e o perfil lúdico de outros deslocamentos por meio de algumas características que ressaltam a dimensão lúdica, como a repetição ou não do trajeto pelo mesmo ator (por exemplo em atividades físicas), as roupas e apetrechos (apropriados para a prática de um esporte, por exemplo) e o veículo utilizados por ele.
74 Cf. 4.2 Exercícios e brincadeiras75 Cf. 3.3 Nova centralidade
70
2165
2170
2175
2180
2185
2190
autorizada em Portugal). Ao longo da Rua do Mar do Norte, que margeia um dos lados
do Casino, o estacionamento junto ao canteiro central é comum, sobretudo aos fins de
semana, embora a prática seja proibida. A presença policial entretanto apenas impede
essa prática no trecho em que os policiais se encontram – entre a Alameda dos Oceanos
e a rua do Polo Norte. Nas quadras seguintes, ela ocorre livremente. Já na Rua de Pedro
e Inês, no início da área periférica Sul, observamos a ocorrência de carros estacionados
em locais proibidos ao mesmo tempo em que havia carros bloqueados, pelo não
pagamento do parquímetro, nos locais autorizados. Como refere um fiscal de
estacionamento rotativo, o bloqueio e remoção de veículos estacionados irregularment
acontece apenas quando há impedimento da boa circulação.
A conjunção de baixa fiscalização por parte dos outros atores institucionais e de
indulgências, por parte da Geurbana, com a manutenção precária das sinalizações
horizontais junto às paragens de autocarro favorece o tráfego automóvel individual em
detrimento do transporte público. Os carros ocupam as paragens de autocarro para
estacionamento irregular de transporte individual. Nas observações, ficou claro que a
existência de elementos de marcação visual das paragens têm influência na decisão do
motorista em utilizar ou não o recuo como estacionamento particular.
A inclusão do automóvel e dos transportes motorizados também se expressa na
preocupação em evitar interferências na circulação, primeiro tipo de “ocupações
selvagens” mencionado por AJA, técnico Departamento de Qualidade do Espaço
Público/Monitorização Urbana). Segundo ele, há baixa receptividade na Geurbana a
ocupações dos espaços de uso público que demandem cortes de trânsito. Ocupações da
via pública e das vagas de estacionamento para obras, eventos, mudanças e outras
apropriações são sujeitas ao pagamento de uma taxa para desestimulá-las.
***Julgamos ter demonstrado ao longo das reflexões sobre a pedestrialização e a
tolerância automóvel quais são as características contextuais da motilidade da massa
permanente de população cambiante que ocupa os espaços de uso público do Parque das
Nações. Essas caratecterísticas, determinadas pelo desenho físico e pela ação de atores
institucionais, são a) a potencialização da mobilidade no Parque; b) a promoção das
formas de deslocamento não motorizadas quanto mais se está próximo do Rio Tejo, mas
não sem incluir o tráfego automóvel; c) a ludicização de formas de deslocamento, o que
contribui para a criação da ambientação lúdica dos espaços de uso público do Parque.
71
2195
2200
2205
2210
2215
2220
2225
Essas características decorrem de processos de inclusão e exclusão pelos quais
algumas formas de deslocamento são institucionalizadas, toleradas, têm recursos
suprimidos e/ou são proibidas no contexto geral do Parque. Nos contextos mais frontais,
que entendemos como sendo a área central do Parque, os deslocamentos essencialmente
não motorizados, ou motorizados com forte cariz lúdico, são mais incluídos.
É estabelecida assim, a nosso ver, uma estrutura de açãoque empodera os
indivíduos que utilizam o Parque das Nações em deslocamento (seja repetitivo ou não)
não motorizado, sobretudo pela inclusão e de uma maneira lúdica, mas também
empodera quem usa o transporte motorizado – pelo lado da inclusão, oferecendo
estacionamentos e tolerando o estacionamento irregular – e pelo lado da exclusão,
forçando a uma permanência mais curta (por meio dos estacionamentos rotativos).
4.2 Exercícios e brincadeiras
As atividades lúdicas são expressivas no Parque das Nações. A possibilidade do
lazer é identificada por alguns entrevistados em bairros da envolvente como o motivo
para visitarem-no e como influência positiva do mesmo nessa envolvente. Para além dos
equipamentos privados, o lazer é uma caraterística dos espaços de uso público. Aqui
pretendemos analisar os processos de inclusão e exclusão que servem a organizar
ocupações desse tipo, e como elas contribuem para a ambientação lúdica do território.
A título de análise, pareceu-nos interessante dividir as atividades lúdicas entre
exercícios – e estamos aqui assumindo a posição de que os exercícios são uma forma de
lazer – e brincadeiras. A separação de ambos é entretanto difícil tendo em vista que
algumas ações quer caem sob os dois domínios, quer alternam entre um e outro, a
depender da afinação (Goffman, 1974b) dada a essa ação pelo indivíduo. Recorremos a
um exemplo do campo para ilustrar: como classificar a prática de deslocar-se, repetindo
o circuito, de monociclo, mas com roupas de ginástica? Iremos portanto utilizar uma
definição de Giddens (1986) sobre as atividades físicas que nos parece útil para fazer a
separação que pretendemos e que nos serviu para reunir algumas ações sob um ou outro
dos conceitos:
“Exercise is the imposition of regular and graduated physical training of the body, with an end state of fitness in view – 'fitness' referring to the preparedness of the body but also to a generalized capacity to carry out designated tasks.” (1986:151)
72
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4.2.1 Jogging
Dentro das atividades lúdicas aqui analisadas, os exercícios são os mais
transversais. São praticados por adolescentes, jovens, adultos e idosos; ocupam regiões
espaciais mais frontais, como os passeios que margeiam o Rio Tejo, e menos frontais,
como os limites Norte, Sul e Leste, e a envolvente (fazer da ida até o Parque um
deslocamento em forma de jogging ou em bicicleta e vestindo roupas de ginástica é uma
ludicização do deslocamento que é comum); ocorrem desde o princípio da manhã até o
fim da noite (ao menos das 7h às 22h, como observamos); e mesmo no contexto de
eventos extraordinários: um exemplo é o julgamento do processo da Casa Pia, no
Campus de Justiça, quando entre os curiosos encontrava-se um indivíduo com roupas de
ginástica em bicicleta76; outro é a Cimeira da Nato, em Novembro de 2010, às vésperas
da qual, com o isolamento de boa parte da área central, encontramos um indivíduo a
fazer jogging num pequeno intervalo ainda acessível da Alameda dos Oceanos.
Para além da oferta de equipamentos privados para o desenvolvimento de
atividades físicas, a inclusão do exercício na vida cotidiana do Parque das Nações se dá
por meio de recursos dos espaços de uso público, que é sobre o que nos debruçamos.
O jogging, que como aqui definimos inclui tanto a corrida como a caminhada e
os alongamentos relacionados, é um dos exercícios mais comumente desempenhados
nos espaços de uso público. O fazer jogging é um contexto de interação face a face que
surge no Parque, servindo ao bate-papo entre integrantes do mesmo grupo de jogging ou
à interação com outros indivíduos (conhecidos ou não), e é também uma ação agregada
a outras, como passear o cão ou passear com o bebê. Os intervalos antes, durante e
depois do trabalho/escola são ocupados pela prática do jogging – como indica a
distribuição dessa atividade ao longo do dia e seu desempenho por indivíduos a sair de
uma empresa por volta das 12h-13h (um horário utilizado comumente para almoço em
Portugal). Na interseção entre o Rossio dos Olivais (o eixo transversal do Parque) e o
Passeio das Tágides (um dos que margeiam o Rio Tejo), o jogging é dominante nas
primeiras horas da manhã. Adolescentes, jovens, adultos e idosos praticam jogging.
Sintomático do alto grau de inclusão da prática no contexto do Parque é também
a interpretação feita por um skatista de que os joggers são denunciantes de atividades
irregulares. A função de vigilância e controle a que os jovens tentam quando vão para os
76 O Escândalo Casa Pia, como ficou conhecido, decorre de denúncias de abusos sexuais contra crianças em uma instituição de apoio a crianças e adolescentes de Lisboa. Iniciado em 2002 (Público, 2005), teve grande repercussão mediática e ainda não havia sido concluído até a conclusão desta dissertação
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espaços de uso público (Pais, 1991), assim, é atribuída ao papel de jogger.
A imagem de pessoas correndo nos passeios pedestres é promovida por meio da
publicidade de uma escola durante as obras da mesma – onde joggers, juntamente com
alunos, surgem nos passeios pedestres junto ao estabelecimento e mesmo no pátio do
mesmo. Além de institucionalizar a ocupação, essa publicidade propõe os elementos
contituintes da fachada do papel de jogger, como roupas e calçados adequados à prática.
Para além dessa publicidade, e da própria pedestrialização dos espaços de uso
público, identificamos a inclusão das atividades físicas, e do jogging em particular, na
institucionalização da ocupação por meio do Ideias para um Orçamento (IpO), uma
versão interna de orçamento participativo77. Das 18 propostas autorizadas a irem a
votação, 8 envolvem a construção de equipamentos para atividades físicas (ver anexo
1). Dentre essas, uma é a criação de uma pista exclusiva para jogging e outra, a
instalação de equipamentos de alongamento, o que supre uma apropriação criativa por
parte dos joggers de elementos do desenho físico: em algumas estacadas do Parque do
Tejo, encontramos indivíduos a fazer abdominais e alongamentos utilizando-se dos
gradeamentos junto ao Rio.
4.2.2 Brinquedos e improviso
Assim como as atividades físicas, o brincar é uma ocupação transversal
espaçotemporalmente e em relação a faixas etárias, embora aparentemente em menor
escala. A inclusão do brincar se dá por meio da institucionalização (como se esperaria
de um espaço de uso público programado para ser lúdico) mas também pela tolerância,
ambas expressas nos excertos da vida social do Parque analisados a seguir.
Dá-se institucionalização pela distribuição de brinquedos nos espaços de uso
público. Há 2 parques infantis junto à frente ribeirinha nas zonas periféricas, cuja
utilização sobretudo aos finais de semana extravasa para fora deles, ocupando os
passeios pedestres e relvados envolventes. No Parque do Tejo, há relvados destinados à
prática de “jogos informais”, conforme define uma placa instalada no local. Na área
central, há dois brinquedos em jardins da frente ribeirinha – um, no Jardim do Passeio
de Ulisses, junto ao Oceanário e o outro no Jardim de Garcia D'Orta, junto à Rua da
Pimenta. Ambos são usados por crianças, adultos, jovens e idosos. Já mencionada
acima, oferta de kart a pedal é outro recurso de institucionalização instalado na área
central (os postos de aluguel estão colocados junto ao Oceanário e ao Centro Comercial 77 Cf. 5 Participação
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Vasco da Gama), o que faz com que sejam utilizados sobretudo aí, embora o utilizador
possa levá-lo às áreas periféricas78.Algumas obras de arte, como a peça “Horas de
chumbo” instalada na área central, são destinadas ao brincar e não só à contemplação79.
Para além dos equipamentos destinados ao uso em brincadeiras, outros
elementos do espaço físico são utilizados para o mesmo fim. É o caso dos vulcões de
água e canais de água correspondentes (fotos 1 e 2). Há seis deles, distribuídos pelo
trecho da Alameda dos Oceanos que corta a área central. A cada 25 segundos, desde o
meio da manhã até as primeiras horas da noite, cada um deles faz jorrar um jato d' água
que depois escorre pelos canais.
Diferentemente de um conjunto de outras obras de arte urbanas como a
mencionada “Horas de Chumbo”, os vulcões são uma arte urbana apenas para ser
contemplada. Há uma placa proibindo entrar na água, mas o uso para banhos, todavia, é
comum nos períodos de verão, sobretudo nos vulcões que ficam mais próximos ao
Centro Comercial Vasco da Gama. Esse tipo de utilização remonta à época da
Exposição, como referido em Santos e Costa (1999) e alguns entrevistados afirmam-nos
realizá-la há longo tempo. Os vulcões, descritos como “piscina” por uma entrevistada,
são considerados por ela como um dos principais atrativos do Parque. Observamos em
diversas ocasiões essa apropriação criativa e transgressora. A análise dessaws
ocupações, julgamos, ajuda a esclarecer algumas características do processo de
inclusão, por meio da tolerância, do brincar como ocupação do espaço de uso público.
78 Cf. 4.1 Deslocamentos79 Horas de Chumbo é de autoria de Rui Chafes
75
Foto 1: Vulcão de água junto ao Pavilhão de Portugal
Foto 2: Corredor de água usado para banhos
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A utilização dos vulcões como piscina, embora seja uma atividade proibida,
parece-nos fazer parte do cotidiano do Parque. São indícios disso a longevidade dessa
ocupação, a forma como ela acontece, o contexto que cria e o modo como esse contexto
se insere no contexto mais amplo do Parque. Normalmente, a ocupação é feita por mais
de um grupo ao mesmo tempo – identificamos, no campo, até cerca de 20 pessoas – que
permanecem por períodos de horas a se banhar, sentar-se nos bancos em volta dos
vulcões, fazer pic nics, e interagir. Em alguns casos, os utilizadores utilizavam trajes de
banho ou traziam consigo toalhas. Em uma segunda-feira à tarde, essa ocupação foi
desempenhada por três grupos diferentes em um mesmo jogo de água, ao mesmo tempo.
Em uma quinta-feira à tarde, o motorista de um furgão parou o veículo sobre as
passadeiras junto à esquina do Casino – onde, como visto, há policiais em permanência
– banhou-se e voltou a veículo. Sequer nessa situação, em que duas normas foram
quebradas – uma de trânsito e uma de utilização dos equipamentos de uso público do
Parque – houve intervenção. Em uma ocasião, entretanto, um segurança interveio
determinando a saída dos utilizadores da água, referindo que “eles [a administração]
têm câmeras por todo o lado” e que as piscinas públicas, inexistentes no Parque mas
existentes em outras zonas da cidade, não são caras.
Existe portanto uma inclusão dessa ocupação pela tolerância, algo mais sutil que
a institucionalização por meio dos brinquedos e artes urbanas destinadas à brincadeira.
O fato de a ocupação dos vulcões a) ser antiga; b) ser desempenhada em contextos
espaçotemporalmente frontais (próximo ao cruzamento do Rossio dos Olivais com a
Alameda dos Oceano e junto ao Casino), por grupos, por longos período de tempo e ao
alcance da vigilância humana e eletrônica; c) e ser recorrente, indicam que tal ocupação,
expressamente proibida, é tolerada e se configura assim como secretamente desviante, e
não claramente desviante (Becker, 1985). Existindo a norma e quem esteja habilitado a
aplicá-la, inexiste a iniciativa da aplicação (1985:145-6).
Criam-se, assim, contextos lúdicos em torno dos vulcões e dos canais laterais
pelos quais os indivíduos que circulam pelo eixo longitudinal do Parque, ainda que
estejam em atividade não lúdica, passam. Esses contextos se estendem até à pista de
rodagem, como visto no caso do adulto que parou o furgão sobre a passadeira.
Pesquisando os motivos pelos quais os frequentadores buscam o Parque das
Nações, Luís Mendes (2001/2002) identificou a liberdade, o descontrole e a suspensão
de regras como elementos atrativos à visita. Julgamos que a criação de tais contextos
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lúdicos com base na quebra de regras expressas é uma materialização, em ações, do que
o autor identificou nos discursos que recolheu
“A postura de transgressão encontra-se permanentemente estimulada no PN, ora pelos momentos de aglomeração festiva, ora pela recontextualização das sociabilidades, sobretudo nos espaços de apropriação colectiva, ora pela polarização de uma grande diversidade e excelência de serviços que disponibiliza. ”(2001/2002:96-7)
***Em conclusão, a expressividade que exercícios e brincadeiras adquirem
enquanto ocupações do espaço público decorre em parte de uma também expressiva
inclusão dessas ocupações promovida pelo urbanismo adotado no Parque. Ações de um
e de outro tipo são incluídas pela institucionalização e pela tolerância com um desvio
muito claro no caso da brincadeira. Essa tolerância permite ao Parque suprir uma
demanda do utilizador – a piscina – que, formalmente, não supre. A exclusão parece se
restringir a, novamente, bmx e skate que são entretanto institucionalizadas em uma pista
localizada ao fim da área periférica Norte80.
À semelhança dos deslocamentos não-motorizados e motorizados de cariz
lúdico, dá-se inclusão de brincadeiras e exercício em regiões frontais
espaçotemporalmente (na área central e durante o dia), o que contribuiu sobremaneira
para a ambientação lúdica do Parque. Os joggers, assim como os ciclistas (e, no verão,
banhistas), são um outro muito provável com que se encontrar e mesmo interagir no
centro da alegada nova centralidade de Lisboa, e estabelecem uma conexão social entre
essa nova centralidade e a envolvente. Ao mesmo tempo, o indivíduo que circula pelo
eixo longitudinal, ou mesmo em suas periferias, atravessa como visto contextos de
brincadeira/transgressão propositalmente ou não ancorados em equipamentos lúdicos
disponibilizados no território.
A consolidação dessas estruturas de ação que são essencialmente lúdicas (à
diferença de um deslocamento, por exemplo), e dos contextos em que elas se
desenvolvem, constituem uma importante influência em favor da ludicização do espaço
público, aqui entendido em sentido amplo, potencialmente emergente no Parque das
Nações, e não apenas da experiência que cada indivíduo ou grupo tem isoladamente do
espaço de uso público do Parque. A análise dessas estruturas permitiu observar como as
interações entre diferentes, necessárias que são para a constituição desse espaço público
em sentido amplo (Leite, 2008), potencialmente ocorrem em um ambiente ludicizado.
80 Cf. 4.5.2 Skate park
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4.3 Comer e deitar
Hannerz (1983:136) distribui os papéis que os indivíduos desenvolvem na
cidade em cinco domínios (abastecimento, tráfego, lazer, casa e parentalidade e
vizinhança). O urbanita tende a desempenhar papéis em todos esses domínios e mesmo
misturá-los – como o passear com o bebê ao mesmo tempo que se faz jogging – e há
influências do desempenho de papéis que pertencem marcadamente a um domínio sobre
os que pertencem marcadamente a outro.
Ao analisarmos os deslocamentos, olhamos para como os recursos e
constrangimentos estabelecidos a essa ação, uma atividade essencialmente do domínio
do tráfego, pode também pertencer ao domínio do lazer81. Em seguida, desenvolvemos a
análise sobre as brincadeiras e os exercícios, duas atividades que nos parecem
essencialmente do domínio do lazer. Pretendemos voltar entretanto à primeira
perspectiva a fim de analisar duas ações que, assim como o se deslocar, não são
essencialmente lúdicas.
A escolha do comer e do deitar se deve a dois motivos principais. O primeiro é a
relevância que neles adquirem os processos de inclusão e exclusão que, como
argumentamos, permitem discernir como se produz a organização da vida cotidiana nos
espaços de uso público do Parque. O segundo motivo é a amplitude do espectro social
que é abrangido por essas duas atividades: comer e deitar nos espaços de uso público
são mais transversais do que exercícios ou brincadeiras. São desempenhados, por
exemplo, por sem-abrigo, visitantes, trabalhadores e residentes, para além de serem
transversais em termos de faixa etária e contextos espaçotemporais. Além disso,
permitem identificar de que maneira o próprio contexto funciona como algo que inclui e
exclui. Por fim, são – assim como as brincadeiras – formas de ocupação que envolvem
uma maior permanência em um território que é promotor da mobilidade82.
4.3.1 Comer
O comer também assume uma expressiva variabilidade de formas. Come-se em
regiões frontais e exteriores; no intervalo do trabalho para o almoço ou como uma forma
de ocupar o tempo livre do fim de semana com a família; em esplanadas ou no chão.
Restaurantes com esplanadas, prontos-a-comer e mercados fornecem recursos para que
os indivíduos possam adquirir comida e a consumir nos espaços públicos. Também é
81 Cf. 4.1 Deslocamentos82 Embora pudesse ser interessante, o comer em deslocamento não será aqui analisado por falta de
dados fiáveis do terreno
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comum encontrar indivíduos com marmitas e grupos com geleiras a utilizar o espaços
de uso público durante o dia como contexto espaçotemporal para as refeições. A
distribuição gratuita de comida – quer sob a forma de publicidade quer sob a forma de
apoio a sem-abrigo – também é parte da vida cotidiana do Parque. Em um caso, um
casal de jovens turistas alemães foi encontrado a preparar o pequeno almoço com o
auxílio de fogareiro – uma ferramenta de utilização proibida no Parque, mas que surge
constantemente, segundo AJA, técnico do Departamento de Qualidade do Espaço
Público/Monitorização Urbana da Geurbana83.
Essas diversas formas de comer distribuem-se pelas áreas do Parque de maneira
irregular. Selecionamos para análise dois contextos espaçotemporais em que há uma
maior regularidade do comer, de formas diferentes: o corredor aos fundos da Gare do
Oriente – que constitui uma das regiões mais posteriores do Parque, apesar de
localizado na área central em termos geográficos; e o Cais Português, um passeio na
área central que liga o Pavilhão Português ao Oceanário de Lisboa e ao Pavilhão do
Conhecimento, três âncoras urbanísticas do Parque. Assim, tratam-se de dois contextos
de deslocamento intenso, com a diferença de um poder ser considerado, na linguagem
goffmaniana, um proscênio enquanto o outro, uma coxia do Parque. Em seguida,
analisamos a forma pic nic, que se distribui por vários contextos espaçotemporais, mas
tem uma forte característica lúdica e é objeto de inclusão pela institucionalização. Por
fim, olhamos para as exclusões de que o comer é alvo em relação a dois papéis: os
funcionários de limpeza e manutenção e os operários da construção civil.
O Cais Português margeia a Doca dos Olivais, sobre a qual se ergue o
Oceanário, e serve de caminho para quem vai para este a partir do Centro Comercial
Vasco da Gama ou vice-versa, a pé ou no simulacro de comboio sobre pneus. Parte do
piso é constituído pela obra de arte urbana Calçada do Mar Português e um monumento
os que trabalharam durante os 132 dias da Expo'98 se ergue ali84. Em seu desenho
físico, há ainda um conjunto de bancos, alguns voltados para o Rio Tejo, outros de lado
para ele, e muretas que também servem de assento. Não há mesas.
Nesse contexto espacial e simbólico, em um horário que vai das 12h às 14h, é
comum encontrar indivíduos sentados nos bancos a comer. O uso por quem parece ser
funcionário de empresas instaladas nas proximidades ocorre sobretudo por volta das
13h. Nesse horário, observamos regularmente grupos (três a quatro ao mesmo tempo)
83 Em 03/08/201084 “Calçada do Mar Português” é de autoria de Xana
79
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2475
de cerca de 4 a 8 pessoas, não uniformizadas, comendo sobretudo de marmita, mas
também de pronto-a-comer. Alguns chegam após um grupo já estar estabelecido e se
juntam a ele. São indivíduos via de regra brancos e usam roupas casuais (calças de
ganga, camisetas estampadas, óculos escuros, tênis são alguns dos elementos das
indumentárias). Como vantagem, esses indivíduos referem que comer ali permite
apreciar a paisagem. Como desvantagem, a falta de mesas.
É essa a ocupação mais expressiva no Cais Português nesse período, durante o
qual também observamos indivíduos a fazer jogging, outros a tirar fotografias da
paisagem, o simulacro de comboio passar e uma pedinte a pedir dinheiro. Para além dos
trabalhadores, há outros indivíduos que usam o Cais Português para comer, sobretudo
nesse mas também em outros horários, alguns aparentemente turistas. Um sem-abrigo
foi observado uma vez.
O outro contexto, o corredor da Gare, é periférico em relação ao Parque das
Nações e dentro do próprio contexto da gare85. Nele, o comer acontece mais ou menos
durante o dia todo, mas torna-se ocupação mais expressiva à noite – em horários
irregulares, mas quase sempre após as 21h. É a partir de então que é feita a distribuição
de comida aos sem-abrigo por diversas instituições de apoio. De acordo com ClC, o
representante de uma delas (a CVP, que faz a distribuição ali todos os dias do ano), o
horário é definido pela logística da distribuição e não sofre interferência da
administração da gare ou do Parque: a Gare é colocada no fim da escala por estar mais
próximo da sede da instituição.
CCa, administrador da gare, afirma que a administração “facilita a vida” das
associações não impedindo que a distribuição ocorra, uma vez que a atividade é mal
vista sob a justificativa de que atrai mais sem-abrigo – esses, por sua vez, também mal
vistos. Entre eles, a distribuição de comida é de fato vista como um recurso atrativo,
ainda que secundário em relação à função de abrigo que a gare oferece: na hora da fila
da sopa, os sem abrigo se tornam o papel mais expressivo no corredor da gare. Para
ClC, é a presença dos sem-abrigo que atrai a distribuição: “isto é claro para todas as
organizações. A CVP vai onde houver sem abrigo. Doa a quem doer.” (ClC, CVP )86.
Centremo-nos agora sobre o pic nic, que se distribui pelas áreas centrais e
85 Cf. 4.5.1 Gare86 O relato de CC sobre o caso de um parque onde há presença de sem-abrigo referenda isso. No caso,
houve reclamações de vizinhos à CMLx, por causa do barulho e da presença dos sem-abrigo. Isso levou a CVP a alterar o local da distribuição para um pouco mais longe, mas foram poucos os que passaram a se deslocar para buscar comida.
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periféricas, sobretudo em contextos frontais (como junto ao Oceanário ou obras de arte
urbana) mas também em um posterior (o cais de autocarros na Gare do Oriente, apesar
da proibição). Dentre os cerca de 20 contextos em que observamos pic nics, é possível
extrair algumas regularidades: é comum que os indivíduos tragam alguma comida em
geleiras ou em sacolas, desenvolvam uma certa preparação desses alimentos (montar o
sanduíche, cortar o bolo, por exemplo) e ocupem conjuntos de bancos ou áreas no chão
ou nos relvados. Identificamos o pic nic como uma forma de utilização do tempo livre
por parte de família, como uma atividade desenvolvida por grupos de escolares ou de
idosos tutelados por instituições, por viajantes utilizadores da Gare e associado a outras
atividades de lazer no Parque (como visitar o Oceanário ou banhar-se nos vulcões).
A institucionalização do pic nic como uma forma de comer nos espaços de uso
público é identificável na promoção dessa forma pelo restaurante E., localizado no
Parque do Tejo, na área periférica Norte, e de propriedade da empresa que faz o aluguel
de bicicletas e karts a pedal87. O serviço inclui o aluguel da bicicleta, a venda da comida
e o fornecimento de cesta, talheres e toalhas, que são os elementos constantes da
publicidade no site do restaurante e de uma instalação publicitária colocada em frente ao
estabelecimento à época do lançamento do serviço.
De acordo com LRa, responsável pela Direção de Qualidade e Conceção Urbana
da Geurbana, o serviço de pic nic é uma melhoria das “ofertas” aos utilizadores,
considerada uma das competências da Geurbana. A descoberta das “necessidades” é
feita pela observação da vida cotidiana do Parque
“{entrevistador} e como chegou a ideia do E.? Saiu daqui da Parque Expo [Gestão Urbana] ou foi uma proposta (…)?
{entrevistado} Essa oferta surgiu por nossa iniciativa e mas foi também de uma parceria que já existe com uma entidade que explora esse tipo de equipamento no Parque das Nações (...) resultou de uma observação em concreto e também algumas propostas que surgiram nesse sentido. Portanto foi aqui um misto de de propostas e de avaliação das necessidades concretas.” (LRa, DQCU/Geurbana)
Quanto à escolha do local, uma das justificativas é a de o pic nic ser uma
atividade de lazer e, portanto, mais adequada à área de relvados do Parque do Tejo do
que à malha urbana da área central – onde, ressaltamos, também observamos o pic nic,
embora em outras formas (jamais com bicicletas, aliás).
87 Cf. 4.1.1 Pedestrialização e 4.2 Exercícios e brincadeiras
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“{entrevistador} e [o porquê da localização d']o E. (...)?
{entrevistado} (…) porque existe um conjunto de restaurantes, mas esse serviço é um serviço diferente, não é só comida, está associado a uma atividade de lazer, portanto fica ali no início do Parque do Tejo, e no fim da malha urbana. Parece-nos uma boa localização.” (LRa, DQCU/Geurbana)
Entendemos que essa institucionalização de uma forma de comer, e sua
ancoragem em um jardim, é indicial da forma como a ludicização dos espaços de uso
público é elaborada: ela é feita por meio da construção de uma forma que guarda
semelhanças e diferenças com aquelas encontradas no campo. Há aqui, portanto, uma
inclusão pela institucionalização em que, para além de local e ação, algumas
características do papel dos indivíduos (da fachada que ele irá apresentar em sua
representação, na linguagem goffmaniana), são sugeridas: duas pessoas, em bicicleta,
com uma toalha, a comer frutas e pães, em um relvado. Não há geleiras, bancos e
grupos de 20 pessoas, características estáveis desse tipo de ocupação no Parque.
Cabe-nos olhar agora para as exclusões, o que nos permite completar a exibição
do processo de inclusão e exclusão que consolida algumas estruturas de ação que
envolvem o comer em espaços de uso público e dissolve outras. Para além da proibição
de fogareiros já mencionada, um segundo recurso retirado são as mesas enquanto
mobiliário urbano na área central e mesmo nas áreas periféricas mais próximas da área
central. Elas vão existir apenas no Parque das Merendas, no limite da área periféria
Norte, embora seja uma demanda transversal a papéis do centro da nova centralidade:
sem-abrigo, trabalhador e participante de pic nic; e embora seja um mobiliário urbano
comum a outras áreas de lazer de Lisboa. Uma das justificativas para que não haja
mesas nas áreas centrais é a inadequação ao tipo de comer imaginado para o Parque.
{entrevistador} (...) e por que não há mesas (…)?
{entrevistado} Nós na verdade não queremos (...) que o Parque das Nações seja um espaço onde as pessoas se sentam para comer... vamos lá ver, em princípio existe um conjunto de serviços que oferecem um serviço de restauração (...), as pessoas tem espaços para se sentarem, encostarem, nós não entendemos que as pessoas para comer no espaço público precisem de uma mesa (…) a razão é esta. Nós, as pessoas, o que é que as pessoas comem no espaço público? Levam, vão à loja, take away, trazem a comida ou trazem os hambúrgueres no saquinho com as batatas fritas ou trazem aqueles coisinhos de plástico e comem nos tupperwarezitos e tal e é assim que as pessoas comem... é assim que eu como no espaço público, eu não preciso, não uso uma mesa para comer no espaço público, portanto não nos parece que seja uma grande necessidade. (LRa, DQCU/Geurbana)
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2575
Trata-se, aqui, de uma maneira de excluir suavemente determinados tipos de
ocupação do espaço público para comer, e não de proibir diretamente sua prática. A
frase colocada em itálico mostra, julgamos, como o estilo de vida pessoal do indivíduo
atua como definidor de qual é, e por conseguinte, de qual não é a estrutura de ação
“comer no espaço urbano” que é favorecida no Parque das Nações.
A ausência de mesas também exclui dos contextos frontais do Parque o jogar às
cartas, atividade lúdica comum em Lisboa (muito comum entre idosos), e que, no
perímetro analisado, ocorre apenas dentro da Gare do Oriente nas mesas de uma
esplanada de um restaurante. O entendimento na Geurbana é de que essa ocupação não
é o tipo que ocorre no Parque, por ser de permanência e não de passagem. É a lógica
que embasa, como refere Leite (2008:38), a retirada de “utensílios urbanos que
assegura[m] a permanência fortuita de pessoas" Como expressa LRa, da Direção de
Qualidade e Conceção Urbana da Geurbana:
{entrevistador} “(...) e por que não há mesas (...)
{entrevistado} Há situações pontuais em que nós temos mesas em que elas são usadas mais para outro tipo de de coisas. Para as pessoas jogarem às cartas, por exemplo, para este tipo de convívio. Para comer não nos parece que seja uma necessidade.
{entrevistador} e [a existência de mesas] para este tipo de convívio também acham que... Por exemplo esses outros tipos de [ocupações] (…)
{entrevistado} Porque não nos parece que nesta zonas onde não existem mesas que exista essa apetência por esse tipo de... normalmente as pessoas aqui têm tendência para se sentar, para estar ali a conversar, para passarem mais rapidamente e para permanecerem menos tempo nos bancos e portanto não é o tipo de utilização que suscite essa permanência de estar ali horas a jogar e a conviver. Portanto é uma coisa mais en passant. É um pouco a leitura que nós temos do espaço. Portanto não nos parece que seja a necessidade.” (LRa, DQCU/Geurbana)
Ações mais claras de exclusão de formas de comer nos espaços de uso público
também existem e foram identificadas quando os indivíduos praticantes são operários de
obras ou funcionários dos serviços de manutenção do Parque.
No caso dos funcionários da limpeza e manutenção, que trabalham por turnos de
6 horas, os horários que em Portugal normalmente são usados para almoço e para jantar
coincidem com o início/final dos turnos, o que reduz a necessidade de comer no Parque,
segundo funcionários entrevistados. Entretanto, os funcionários têm direito a 15
83
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2600
2605
2610
minutos de intervalo durante o qual, conforme observamos, consomem alimentos como
frutas ou lanches, sentados em muretas ou em pé ou nas esplanadas dos cafés. São
formas de comer autorizadas, diferentemente do que acontece com o que JRP,
responsável pela Direção de Obras e Infraestruturas Urbanas, chama de “mesa posta”,
que é proibida. É importante ressaltar que essa interdição não decorre apenas de uma
preocupação com o fato de ser uma oportunidade para matar o tempo do trabalho – que,
como observamos, ocorre independentemente da forma de comer – mas porque não
“contribui para a boa imagem”, como afirma LRa, responsável pela Direção de
Qualidade e Concessão Urbana.
“{entrevistador} (...) existe alguma limitação formal para que eles usem os espaço públicos para comer nos horários previstos?
{entrevistado LRa} Se a pergunta é se é susposto nós vermos um grupo de funcionários fardados sentados a descansar, a dormir ou a comer, não é aceitável
{entrevistador} Mesmo que seja no horário de almoço?
{entrevistado LRa} Não é suposto porque isso não contribui para a boa imagem
{entrevistado JRP} Não quer dizer que se for uma sandes, uma fruta isso não pode acontecer, isso é normal que aconteça. Estamos a falar outra vez da mesa posta, uma mesa tal, isso é que não (JRP, DOIU/Geurbana e LRa, DQCU/Geurbana)”
Os operários de construção civil, por sua vez, permanecem períodos mais longos
que justificam a realização de refeições no Parque. Ao longo do período do trabalho de
campo, decorriam obras em ao menos duas das âncoras privadas de atração: o
Oceanário e a Torre Vasco da Gama. Em ambas, no horário de almoço, os operários
ocupavam o espaço de uso público para sesta, ouvir música no (ou falar ao) telemóvel,
sentar-se ao chão, interagir. Todavia, não faziam para comer. Segundo dois operários da
obra no Oceanário, os patrões proíbem que comam nos espaços públicos em torno de
quaisquer obras em que trabalhem, sejam dentro ou fora do Parque.
Para além disso, entretanto, um dos operários entrevistados refere que operários
a comer nos espaços públicos do Parque é algo que “não fica bem”, pois é um local para
“turistas”. Julgamos encontrar aí aquilo que Degen (2008) chama de poder ambiental e
que Thörn coloca como um dos elementos chave das políticas suaves de exclusão.
Trata-se de uma exclusão dupla: para além da proibição, o contexto de lazer e de lazer
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para “turista” serve para o próprio operário afirmar que a sua forma de comer é
inadequada àqueles espaços públicos.
Em resumo, o processo de inclusão e exclusão que estrutura as formas de comer
nos espaços públicos do Parque configura-se o seguinte: do lado da inclusão, há
institucionalização do pic nic e tolerância com a com a distribuição e o consumo de
comida por sem-abrigo na Gare. Do lado da exclusão, há a ausência de mesas como
uma supressão de um recurso que limita as formas de comer de sem-abrigo,
trabalhadores e visitantes; e a proibição dessa prática, quer pela Geurbana em relação
aos funcionários da limpeza, quer pelos chefes de obras no caso dos operários da
construção civil. No caso desses dois papéis, há ainda um vetor de exclusão decorrente
da supressão de um constrangimento (decorrente do trabalho de turnos) que reduz a
necessidade de os funcionários comerem no Parque, e do poder ambiental constituído
pela identificação do Parque como um lugar de lazer para turistas que desestimula o
operário a fazê-lo.
4.3.2 Deitar
O deitar também é comum nos espaços de uso público e transversal a diversos
contextos, encontrando nisso algumas semelhanças com o comer: sesta após o almoço
para trabalhadores, abrigo durante a noite para sem-abrigo, atividade de lazer incluída
na visita ao Parque.
A análise sobre a ocupação do espaço de uso público para deitar tem por
objetivo esclarecer duas dimensões. A primeira é como os limites sociais dos espaços de
uso público podem ser estabelecidos em relação a não um papel em si, mas à gama de
ações que podem ser executadas pelo indivíduo que desempenha esse papel e ao
contexto em que elas são desempenhadas. A segunda dimensão é como o processo de
inclusão e exclusão regionaliza posteriormente a imagem de um conjunto de sem-abrigo
deitados. Para tanto, analisamos especialmente três contextos espaçotemporais (frente
ribeirinha durante o dia, Alameda dos Oceanos durante o dia e corredor da gare) e dois
papéis (operários e sem-abrigo).
Na frente ribeirinha, e mesmo junto a onde o eixo transversal do Parque (Rossio
dos Olivais) encontra o Rio Tejo, encontramos indivíduos a deitar nos bancos e no chão.
Alguns, pela roupa e outros atributos da fachada pessoal nos permitem considerá-los
como visitantes. Normalmente deitam em horários diurnos, sobretudo em pequenos
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grupos (duas a cinco pessoas), o que torna o deitar aí uma ocupação mais afeta ao
domínio do lazer.
Um outro grupo a usar os espaços de uso público frontais para deitar é o dos
operários das obras do Oceanário de Lisboa já referida88. É a forma mais expressiva que
identificamos do deitar por a) acontecer em maiores grupos; b) para além de acontecer
em uma região espacialmente frontal, acontece em um horário absolutamente frontal
(entre as 12h e as 13h); c) ser praticada por indivíduos uniformizados; d) constituir uma
rotina, inserindo-se portanto na vida cotidiana de forma mais permanente89.
No caso do Oceanário, os operários se deitam para sesta após o almoço pelo
chão; sobre a obra de arte urbana Jardim das Ondas, que constitui um relvado aos
fundos do Oceanário; junto aos brinquedos dos Jardins do Passeio de Ulisses; em
muretas; e nos bancos junto à margem do Tejo90. Também há alguns que ficam sentados,
usam o telemóvel ou o telefone público ali disponível. Essa ocupação dura cerca de 30 a
45 minutos e envolve entre 10 e 20 operários nos dias de semana91.
Essa ocorrência livre do deitar, quando olhada em conjunto com a restrição ao
comer que é aplicada ao mesmo papel de operário e no mesmo contexto, indica a
existência de limites sociais não aos papéis em si, mas à liberdade de ação que o
indivíduo nesse papel tem nos espaços públicos92. A análise de outros dois contextos em
que o deitar ocorre de maneira expressiva permite observar, entretanto, como essa
liberdade de ação pode ser condicionada também pelo contexto.
Outro contexto em que o deitar é comum no Parque se constitui na Alameda dos
Oceanos próximo à FIL, durante o dia. Para além dos bancos, a arborização abundante
cria um ambiente mais fechado em comparação com o desenho aberto que caracteriza o
Parque no geral, tornando aparentemente o escrutínio a que se está sujeito nos espaços
públicos menos perceptível pelo escrutinado. Sobretudo nos dias de calor, indivíduos
em diferentes papéis buscam esse contexto para se deitar. Há aí, ao mesmo tempo
embora guardando alguma distância uns dos outros, sem-abrigo e indivíduos
desempenhando outros papéis (alguns nos parecendo visitantes, outros trabalhadores) 88 Cf. 4.3.1 Comer89 Não queremos por isso dizer que os acontecimentos fortuitos não façam parte da vida cotidiana,
sobretudo do Parque. Entretanto, a rotinização é essencial para a reprodução das estabilidades sociais. Para uma discussão sobre a importância da rotina para a continuidade de instituições e para a manutenção da segurança ontológica pelos indivídiuos, cf. Giddens, 1986:60-87, esp. 83-87
90 De autoria de Fernanda Fragateiro91 Prova da estruturação horária estrita dessa ocupação é a ordem “vá trabalhar”, em tom de brincadeira,
lançada por um funcionário da limpeza do Parque das Nações a um operário que continuava deitado após as 13h
92 Cf. 4.3.1 Comer
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sendo impossível definir qual é o grupo majoritário.
O segundo contexto é o do corredor da Gare do Oriente, onde o papel de sem
abrigo é o mais expressivo tanto de dia como de noite. Aí, o abrigo das intempéries, a
existência de muretas longas que substituem com vantagens os bancos e a “tolerância”
por parte da administração da Gare (como refere CCa, o administrador), funcionam
como recursos ao deitar. Essa ocupação é feita de maneira mais expressiva por sem-
abrigo, mas também por indivíduos que desempenham outros papéis. A tolerância é
restrita ao período noturno: a partir das 6h, todos (independentemente do papel) devem
se levantar, e o deitar fica proibido até próximo ao final da noite.
Fica claro assim o processo de inclusão (pela tolerância durante a noite) e
exclusão (pela proibição durante o dia) do deitar quando ele assume a forma de abrigo,
regionalizando-o posteriormente, quando a utilização da gare é menor. O argumento
avançado pela administração da Gare é justamente evitar a visibilidade dessa prática.
“{entrevistador} porque não se pode dormir durante o dia?
{entrevistado} por causa da imagem que também dá na estação. Tínhamos a estação em que as pessoas passam, vem para os seus trabalhos, então passamos agora por um espaço em que estão as pessoas a dormir? É mais pelo aspecto que dá porque é mais por isso”(JRu, manutenção GIL)
Olhados em conjunto, os contextos do corredor da gare e da Alameda dos
Oceano permitem perceber como os limites sociais para o deitar em espaços de uso
público são definidos também contextualmente. Na Alameda, durante o dia, o papel de
sem-abrigo se mistura com outros papéis e não é o mais expressivo, e todos podem
ocupar o espaço de uso público para deitar. Já no corredor da gare, durante o dia, o
papel de sem abrigo é o mais expressivo e ninguém se pode deitar. A relação parece
estar na base da tolerância, expressa pelo discurso de representantes da Geurbana, com a
presença de um único sem-abrigo junto ao Oceanário (frontal, portanto), que fez de um
dos bancos mais distanciados seu local de permanência tanto de dia como de noite.
***Em suma, a análise em conjunto do comer e do dormir nos mostra uma
interferência do urbanismo sobre o leque de estruturas de ação possíveis para
determinados papéis que não são exatamente os desempenhados pelo utilizador de
cidade, como os de sem-abrigo, operário da construção civil e funcionário da limpeza e
manutenção dessa cidade. O espaço de uso público oferece para eles, à semelhança do
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que oferece para os outros, recursos para que os indivíduos que os desempenham
possam nele deitar e comer. Entretanto, essas ocupações, quando desempenhadas por
esses papéis de determinadas formas, são entendidas como prejudiciais ao contexto dos
espaços de uso público que se quer na cidade renovada: funcionários a comer à mesa
posta “não contribuem para a boa imagem” (LRa, DQCU/Geurbana), operários a comer
“não fica bem” por causa do da presença do “turista” (operário) e pessoas a dormir
durante o dia causam uma “imagem” (JRu, manutenção GIL) indesejada. Por isso, são
alvo de exclusão, quer diretamente – como mostra o impedimento de deitar durante o
dia no corredor da gare e o comer à mesa posta dos funcionários – quer indiretamente –
caso do poder ambiental que se junta ao impedimento direto para excluir o comer nos
espaços de uso público do leque de possibilidade de ocupações do operário.
Assim, nas regiões frontais da cidade reurbanizada são alvo de invisibilização o
operário a comer, o funcionário a comer à mesa posta ou deitar, e o sem-abrigo a deitar.
Como as intervenções restritivas se dão não sobre o papel como um todo, mas sobre
ações contextualizadas, torna-se menos perceptível, embora não menos existente, a
hierarquização proposta nos espaços públicos do Parque. Os desequilíbrios de poder dos
indivíduos aparecem nos desequilíbrios de leques de estruturas de ações possíveis dos
papéis – definidos por limites sociais que, pela especificidade, aparentam ser sutis.
Uma segunda conclusão se impõe e diz respeito à ambientação lúdica. Por um
lado, o comer no espaço de uso público atribui a essa ocupação na visão do indivíduo
uma dimensão lúdica, como referem os trabalhadores que comem no Cais Português.
Por outro lado, o fato de o pic nic ser a forma institucionalizada contribui para a
ambientação lúdica do Parque, à semelhança do que fazem outras ocupações analisadas
até aqui. De certa forma, a própria possibilidade dada ao sem abrigo de dormir durante o
dia, desde que misturado a indivíduos que desempenham papéis mais adequados à ideia
de utilizadores de cidade, também contribui para essa ambientação lúdica. Na Alameda
dos Oceanos, a conjunção de indivíduos a deitar, sentar, a se banhar nos vulcões de água
ou simplesmente a passear dissolve a presença do sem-abrigo e a imagem de que, nas
frentes da cidade reurbanizada, o espaço de uso público também serve de abrigo.
4.4 Explorações do recurso social
Os recursos disponíveis à ação nos espaços de uso público, julgamos, podem ser
divididos analiticamente em dois: a) o desenho físico e b) a população cambiante que
utiliza esse desenho seja para se deslocar entre equipamentos privados, seja para
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desenvolver outras atividades. No Parque das Nações, Serdoura e Nunes da Silva
consideram que o primeiro recurso é determinante para a qualidade do espaço de uso
público e leva os indivíduos a ficar mais tempo nele e aí fazer mais coisas para além de
se deslocar. Conforme referem
“A qualidade do desenho urbano (largura dos passeios, área de espaço público pedonal), a presença de mobiliário urbano na maioria dos espaços públicos (bancos, balizadores, etc. [sic]), a qualidade ambiental do espaço (áreas de sombra, elementos de água), foram factores que permitiram atestar a agradabilidade do espaço e a dinâmica das relações entre o espaço e as pessoas, tendo-se verificado que o primeiro estimulou as segundas a permanecerem na zona durante mais algum tempo” (Serdoura e Nunes da Silva, 2006:15)
Julgamos que ao analisarmos elementos como os passeios pedestres, as obras de
arte urbanas, os brinquedos, os bancos e as mesas, conseguimos demonstrar de quais
modos esses recursos propõem e desestimulam estruturas de ação, por aí contribuindo
para a organização e para a ambientação lúdica dos espaços públicos do Parque.
Passamos agora a uma análise mais detida das ocupações que exploram recurso social
disponível nesse espaço. Ou seja, para uma análise de ocupações que têm como recurso
indispensável os indivíduos que dão vida aos espaços de uso público do Parque.
Antes de continuar, é importante um segundo esclarecimento sobre esta seção.
Os espaços de uso público do Parque das Nações são eles próprios uma forma de
explorar esse recurso social, como discutimos acima: é a capacidade de atrair público
que torna o território um catalizador da competitividade urbana de Lisboa, para o que
esses espaços funcionam como ferramenta assim como os equipamentos privados93. O
nosso interesse aqui, entretanto, é sobre explorações na dimensão em que são
desempenhadas diretamente por outros atores que não a Geurbana.
O comércio de rua e a publicidade são dois exemplos claros de exploração da
forma como entendemos aqui. Entretanto, esses dois conceitos nos parecem restritivos à
abrangência que tentamos estabelecer. Desse modo, julgamos conveniente tratar de
explorações de maneira genérica, o que nos permite abranger ações observadas como o
pedir dinheiro, o doar comida, o pregar uma religião, o estabelecer uma esplanada de
restaurante, o convidar um possível cliente a se sentar nessa esplanada. Todas elas,
julgamos, podem ser entendidas como ações que recorrem à massa permanente e
cambiante de indivíduos que ocupa os espaços de uso público – ao recurso social.
93 Cf. 1.4.2 Competição pela massa cambiante e 3. O processo de produção de cidade
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É conveniente, para a presente análise, que a carga negativa ou comercial que o
termo exploração denota seja desconsiderada.
A divisão mais adequada (embora imperfeita) dessas explorações, tendo em vista
os objetivos da análise, parece-nos ser entre a) reativas, assim classificadas por não
pressuporem uma interação face a face proposta pelo indivíduo que desempenha a
ocupação ao indivíduo que lhe serve de recurso. São os casos de esplanadas de
restaurantes, cartazes, instalações publicitárias, aluguel de bicicleta e kart a pedal,
quiosques de alimentos e outros produtos; e b) propositivas, em que há essa proposição
de uma interação face a face, ainda que a uma distância relativa. Distribuir folhetos,
distribuir comida, pedir, arrumar automóveis, convidar o cliente a se sentar na esplanada
são explorações a que chamamos propositivas94.
As explorações são (ainda que potencialmente) conflitivas com duas
preocupações centrais na gestão urbanística do Parque, já avançadas anteriormente95.
Uma dessas preocupações é a tentativa de permitir ao utilizador de cidade ter seu espaço
privativo, tendo maior controle das interações face a face das quais participa ou que lhes
são sugeridas, mesmo estando em espaços de uso público. A outra é evitar que qualquer
alteração nos espaços físicos seja feita sem consentimento da Geurbana.
Por essa razão, as explorações só podem ocorrer se autorizadas previamente pela
empresa e, para tanto, algumas delas são institucionalizadas segundo formatos
específicos. As explorações reativas que observamos envolvem normalmente alguma
estrutura – como um quiosque ou um carrinho de castanhas – e são, quase que
exclusivamente, institucionalizadas. Entre as propositivas, essa institucionalização
existe, embora tenhamos observado, de maneira mais expressiva do que com as reativas,
casos não institucionalizados e, assim, desviantes no contexto do Parque.
A inclusão ou exclusão de uma exploração do recurso social também depende
em grande medida do contexto. A análise aqui desenvolvida permitirá observar, como
concluiremos na presente seção, que embora potencialmente conflitivas com
preocupações centrais da Geurbana, as explorações são filtradas e não proibidas tout
court. Influi nessa filtragem, sobretudo nas propositivas, o fato de a exploração ter ou
não caráter lúdico.
94 A imperfeição da divisão, importa dizê-lo, fica clara por exemplo no caso dos mendigos de assento: como considerá-los? Reativos quando não pedem e só mostram a pobreza e propositivos quando pedem? E o caso de um amolador que passa na rua a apitar, mas que é abordado pelos utentes?
95 Cf., respectivamente, 3.5 Motilidade e ressensibilização e 3.2 Expo'98 Marketing e herança urbanas
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A ocorrência de explorações parece ser tanto menor quanto mais o próximo se
está do Rio Tejo. Ou seja, é inversamente proporcional à pedestrialização apresentada
acima96. Nas envolventes da Gare do Oriente e do Centro Comercial Vasco da Gama,
onde há uma expressiva circulação de indivíduos em uma diversidade de papéis (turista,
utilizador pendular, comerciante de rua, cliente do Centro Comercial, policial), as
explorações abundam. Há uma menor preocupação com o garantir a privacidade do
indivíduo nos espaços públicos. A praça da gare, pertencente à GIL mas administrada
em conjunto com a Geurbana, é onde a Geurbana autoriza diversas formas de
exploração, como distribuições de folhetos, jornais e alimentos (como campanha
publicitária unicamente), performances artísticas (também como campanha
publicitária), venda de revistas em apoio a instituição de caridade e instalações
publicitárias de grande dimensão. Explorações não autorizadas, como mendicância e
venda de castanhas, também aí acontecem, mas de modo mais fortuio. A arrumação de
automóveis, proibida, ocorre junto ao CCVG, exclusivamente à noite.
Dentro da ZAC, ou seja, no centro da nova centralidade de Lisboa, a exploração
(sobretudo a propositiva) é reduzida, seja ela autorizada ou não. A garantia do lazer é o
argumento para a não-autorização e o impedimento das irregulares. Como argumenta
RF, Responsável pelo Departamento de Qualidade do Espaço Público da Geurbana,
sobre a distribuição de folhetos, esse tipo de ocupação denigre a qualidade.
“{entrevistador} A distribuição de panfleto. Por que ela é autorizada (...)?
{entrevistado} Não é autorizada em todos os espaços (...) Nós temos uma zona central de acesso prioritário pedonal [a ZAC] que consideramos uma zona de lazer, onde as pessoas poderiam descansar sem poderem ser incomodadas ou perturbadas. É uma zona onde não autorizamos publicidade e (...) esse tipo de ação. Entendemos que alguém que quer descansar, andar aqui não devia ser incomodado entre aspas ou interrompido em seu percurso por pessoas que distribuem publicidade ou vendam produto etc. Preservação da qualidade como espaço de lazer (...)
{entrevistador} o mesmo vale para comércio ambulante?
{entrevistado} Sim. (...) manter a zona mais calma possível, um bocadinho fora daquele ambiente de consumo que encontramos em outros sítios. Essa é mesma a qualidade de lazer, descanso, que as pessoas descansem, que o olho descanse.” [RF, DQEP/Geurbana]
Essa estrutura de interpretação das interações, que as colocam como incômodo
“entre aspas” e as exclui pela proibição, serve também justificar a inclusão pela 96 Cf. 4.1 Deslocamentos
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institucionalização de algumas dessas atividades fora da ZAC.
Faremos agora a análise dos processos de inclusão e exclusão de algumas
estruturas de ação (ou ocupações), o que nos permite discernir a importância do caráter
lúdico para que uma exploração possa ser incluída e identificar algumas características
das exclusões. Selecionamos para análise a venda/doação de comida, o pedir
(diretamente dinheiro ou por meio da venda com intuito mais caritativo do que
comercial), e a comunicação (essencialmente, publicidade).
A confecção e comercialização de comida pronta-a-comer é um tipo de
exploração que não é, via de regra, autorizada pela Geurbana, segundo LRa, do
Departamento de Qualidade e Conceção Urbana da Geurbana. Muito embora, é
importante ressaltar, haja expressiva ocupação dos espaços de uso público frontais e
posteriores por esplanadas e quiosques autorizados (na ZAC, de gelados, na Gare do
Oriente, de sanduíches e produtos regionais); e muito embora a expressiva utilização
desses espaços como local de comer de diversas formas e por indivíduos em diversos
papéis97. O argumento de LRa é o do prejuízo que tal exploração traz para a qualidade
dos espaços. Há entretanto, uma brecha para que possam ser autorizados, que é terem
um expressivo caráter lúdico e pertencerem a um contexto de exceção:
“{entrevistador} que tipo de ocupações se autoriza, quais não se pode autorizar (...)?
{entrevistado} uma das coisas que nós não autorizamos por regra a não ser que venham estar em algum evento que tenha alguma componente cultural, que tenha uma componente qualquer que o justifique de todo, uma das coisas que nós não autorizamos é a venda de comida, e a confecção de comida no espaço público. Portanto, farturas [um tipo de doce], por exemplo, esse tipo de coisas nós não... castanhas, vender castanhas, nós não autorizamos. Porque consideramos que isso não é qualificador do espaço público.” (LRa, DQCU/Geurbana)
Ocupação comum durante o inverno em outras áreas de Lisboa, substituída
durante o verão por venda de frutas em equipamento semelhante, a venda de castanhas
assadas em carrinhos embora proibida foi encontrada em dois contextos durante nossas
observações e acontecendo de forma mais reativa (ou seja, sem que os vendedores
forçassem uma interação face a face com os potenciais clientes): na área central na
praça da Gare do Oriente (1 vez) e na área periférica Norte, no Parque do Tejo, junto à
Torre Vasco da Gama (2 vezes)98. Segundo uma vendedora entrevistada nesse último
97 Inclusive com a institucionalização de uma dessas formas que é o pic nic. Cf. 4.3.1 Comer98 A referência às castanhas assadas na canção “Cheira bem, cheira a Lisboa”, de Carlos Dias e César
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local, é apenas aí que é possível fazer a venda, mesmo assim de forma clandestina e sem
tolerância por parte da Geurbana, conforme refere Mesmo aí, entretanto, não há
tolerância com a prática, segundo AJA, Técnico de Monitorização Urbana do
Departamento de Qualidade do Espaço Público da Geurbana.
Em consoância com a necessidade de a venda de prontos-a-comer estar incluída
em um contexto de exceção lúdico para poder ser autorizada, a comercialização de
castanhas assadas nos espaços de uso público ocorre entretanto no contexto de uma
festa religiosa realizada também na área periférica Norte pela Paróquia Nossa Senhora
dos Navegantes/Parque das Nações99.
O fato de a exclusão pela proibição da venda de castanhas, e por conseguinte do
papel de vendedor de castanhas, aplicar-se inclusive a uma área do Parque das Nações
identificada pela própria Geurbana como mais adequada ao lazer, é revelador de que
não é necessário apenas que a ocupação se insira em um contexto lúdico100. É
necessário que ela se insira em um determinado contexto lúdico, alcançado apenas por
meio da institucionalização em uma festa, restringindo a existência da ocupação a um
contexto ainda mais restrito, de exceção na vida cotidiana do Parque das Nações.
Tal restritividade também se expressa numa forma de vender comida que é
incluída pela tolerância. Em um dia de concerto no Pavilhão Atlântico (dentro da ZAC,
portanto), encontramos três grupos de comerciantes ambulantes de comida e água. Eles
chegaram pouco antes do fim do concerto e permaneceram por 40 minutos, a interpelar
os indivíduos que saíam do Pavilhão, configurando-se portanto como uma exploração
propositiva. Os vendedores carregavam carrinhos pequenos e, tão logo o movimento se
reduziu, deixaram com agilidade o Parque. Toda a ocupação foi feita ao alcance da
observação de policiais e seguranças que ocupavam o mesmo contexto e, segundo um
dos comerciantes ambulantes, a prática existe desde que o Parque existe.
Julgamos que a inclusão pela tolerância da venda de comida nesse formato
decorre, ao menos em parte, do contexto de exceção lúdico ocasionado pelo evento,
durante o qual outras normas (como entrar a peito nu no Centro Comercial Vasco da
Gama e desenvolver grandes velocidades com motos na Alameda dos Oceanos),
estavam sendo quebradas.
de Oliveira (Natura, 2011) ajuda a medir a identificação desse tipo de produto – e , indiretamente, da venda dele enquanto ocupação do espaço de uso público – com a cidade de Lisboa: “Lisboa cheira aos cafés do Rossio/E o fado cheira sempre a solidão/Cheira a castanha assada se está frio/Cheira a fruta madura quando é Verão”
99 PNSNPdN, 2008100 Cf. 4.3.1 Comer
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Ainda no que toca às explorações que envolvam comida, identificamos a
distribuição gratuita, em duas formas. No primeiro caso, observamos a distribuição
inserida campanhas publicitárias. Aí, a exploração ocorre em contextos frontais (praça
da gare e na Alameda dos Oceanos, em ambas durante o dia) e executada de forma tanto
propositiva como reativa. Essa forma é autorizada pela Geurbana e, portanto,
institucionalizada. No segundo caso, referimo-nos à distribuição de comida por
instituições de apoio a sem-abrigo no corredor da Gare do Oriente, da qual já
tratamos101. Essa distribuição igualmente se divide entre propositiva e reativa, mas à
diferença da de campanhas publicitárias, é incluída pela tolerância (tendo em vista a
resistência de CCa, administrador da GIL, a esse tipo de ocupação e de não haver
qualquer relação institucional entre a GIL e as associações de distribuição) em contexto
posterior (no corredor da gare, durante à noite, quando a circulação é menor).
Uma segunda ação envolvida na exploração do recurso social oferecido pela
cidade renovada é o pedir, que surge na ZAC e fora dela, de forma autorizada (e assim,
institucionalizada) e não-autorizada (e, assim, desviante no contexto do Parque).
Uma das formas não-institucionalizadas é a de pedir dinheiro em
confraternizações quando da entrada na universidade, em Portugal denominadas
praxess. Uma das atividades desenvolvidas nas praxes, que ocorrem no Parque
independentemente de autorização prévia, é pedir dinheiro parando o trânsito numa
espécie de portagem improvisada chamada peditório. Em uma ocasião, quando um
grupo de aproximadamente 100 jovens confraternizava, observamos essa atividade se
desenvolver livremente na interseção entre a Alameda dos Oceanos e o Rossio dos
Olivais – confluência dos dois eixos principais do Parque e onde se localiza uma das
entradas do Centro Comercial Vasco da Gama. Julgamos, portanto, que também aqui é
possível identificar o contexto de exceção lúdico de um evento – ainda que informal em
comparação aos concertos – permitindo a prática de uma atividade que em outros
contextos é impedida; e que podemos considerar uma inclusão pela tolerância.
Outra forma se aproxima mais da mendicância, proibida no Parque segundo os
representantes da Geurbana. Encontramos a prática em contextos absolutamente frontais
como a Rua da Pimenta, dedicada à restauração com esplanadas, junto ao Oceanário e
na frente ribeirinha, na interseção entre o Rossio dos Olivais (o eixo transversal do
101 Cf. 4.3.1 Comer. O caso também pode se incluir como uma exploração do recurso social disponível no espaço de uso público. O que nos leva a essa decisão é a interpretação, por parte do representante de uma dessas associações de que “vai onde houver sem-abrigo”, citada anteriormente.
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Parque) e o Passeio das Tágides (um dos que margeia a frente ribeirinha). São duas as
maneiras de mendigar observadas: pedindo dinheiro ou comida diretamente, ou
vendendo revistas ou outros objetos (como pensos). Alguns indivíduos nesse papel
fazem-no junto a mesas de esplanadas, sendo expulsos regularmente. O que importa,
porém, é que esses indivíduos jamais permanecem parados em um mesmo local, mas
sim efetuam incursões pelo Parque para, terminada uma ronda, saírem em seguida.
Assim, inexiste no Parque, em regiões frontais ou exteriores, a figura do mendigo de
assento, como a definem Fernandes e Agra (1991) que é uma constante nas
centralidades portuguesas, tampouco a do lavador de vidros de automóveis em
semáforos, que encontramos até a envolvente do Parque. A forma institucionalizada do
pedir de cariz caritativo que observamos é a desempenhada por vendedores de revistas
de uma instituição de apoio a sem-abrigo. Essa exploração – propositiva – foi
encontrada em contextos frontais como na praça e no interior da Gare, de maneira mais
expressiva, e em uma ocasião na frente ribeirinha, na interseção do Rossio dos Olivais
com o Passeios das Tágides.
A arrumação de carros, uma atividade regulamentada pelo governo central em
Portugal, mas que Luís Fernandes vai classificar como “elemento intranquilizador do
cidadão comum” (2006:9), é proibida no Parque. Entretanto ela é incluída por meio da
mesma indulgência que permite o estacionamento irregular, embora fique restrita aos
períodos noturnos – quando talvez a rotatividade de veículos seja maior – , enquanto na
envolvente do Paruqe acontece ao longo do dia todo.
Estatuto diferente têm as performances artísticas praticadas em troca de dinheiro,
virtualmente inexistentes no Parque. Papel comum na Baixa Pombalina, o centro
histórico de Lisboa, os artistas de rua são impedidos de desempenhar sua atividade a
pleno na cidade renovada. Os argumentos contrários são o prejuízo que pode causar ao
espaço físico e, mais uma vez, o incômodo aos indivíduos, dentro do que se enquadra o
pedir dinheiro em troco das performances, para além do barulho. Ou seja, os artistas de
rua podem potencialmente atingir os alvos das duas preocupações centrais na gestão do
Parque referidas acima: o espaço físico e o utilizador de cidade.
Entretanto, como visto, a animação dos espaços de uso público por meio da
promoção de eventos lúdicos foi uma atividade que a gestão urbanística herdou da
Expo'98102. Assim, as performances de rua encontram, ao mesmo tempo que resistência,
102 Cf. 3.2 Expo'98, marketing e heranças urbanas
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3000
boa receptividade dentro da Geurbana, tendo sido mesmo autorizada como forma de
campanha publicitária de um festival que ocorre no Parque. Essa dualidade fica
expressa nos discursos de representantes da empresa, que ligam positivamente tais
performances tanto à época do evento como à mendicância. Nessa condição, de
“interessante” mas de potencial “incômodo” aos indivíduos e de risco para o espaço
físico, existe uma tentativa de institucionalizar a atividade, podendo assim regulá-la.
“{entrevistador} vou citar alguns usos e gostaria de saber se são permitidos, promovidos, proibidos ou regulados (...) Arte de rua?
{entrevistado} Acho interessante, dinamiza o espaço público, pedir é que não pode” (AJA, DQEP-MU/Geurbana)
–
“{entrevistador} (...) No caso de artistas, como eles estavam a prejudicar o bem comum que acabou por necessitar uma intervenção (...)?
{entrevistado} Eu com artistas concretamente não tenho uma ideia mas já aconteceu por exemplo com com os chamados pedintes, que estão a incomodar as pessoas. Nesse caso, quando há uma situação de incomodar as pessoas, nós procuramos atuar, enfim numa primeira fase tentando dissuadir a pessoa, e se a coisa se complicar nós chamados as autoridades” (LRa, DQCU/Geurbana)
–
“{entrevistador} [arte de rua] Não é um tipo de atividade proibida?
{entrevistado} Não é porque não queremos, é porque neste momento não estamos preparados
{entrevistador} é diferente do comércio ambulante de comida [uma atividade que nunca é permitida]
{entrevistado} Completamente diferente e tem outros tipos de impacto. Os artistas de rua também são músicos têm impactos sonoros e uma série de outras questões que também tem que se ver (...) , temos muitos restaurantes, esplanadas (...) a questão da contaminação sonora entre um espaço e outro de qualquer actividade é também uma preocupação porque não podemos ter aqui restaurantes [em que] um faz um tipo de música e ou outro do outro lado faz outro tipo de música e no fim ninguém se entende e perde-se a qualidade de todos. A questão da fiscalização é importante. É uma atividade muito interessante mas há géneros de música que tem grande impacto sonoro no espaço, né?” [RF, DQEP/Geurbana. Itálico nosso]
No campo da comunicação, é possível dividir as explorações em propositivas e
reativas. No primeiro está a distribuição de folhetos, incluída por institucionalização e
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ocorrendo nas áreas centrais (praça da gare e Alameda dos Oceanos), mas fora da ZAC.
A autorização é dada pela Geurbana mediante análise prévia do conteúdo do folheto e
do pagamento de uma tarifa (250 euros/hora/distribuidor) com função mais dissuasora
do que de arrecadação, segundo AJA, Técnico de Monitorização Urbana do
Departamento de Qualidade do Espaço Público/Geurbana.
No segundo campo (reativas) colocamos os cartazes, totens e outras instalações
(com fins comerciais ou não). A praça da gare, mais uma vez, é o espaço privilegiado
para o caso das publicidades autorizadas. Dentre essas, independentemente da área do
Parque, pareceram-nos menos expressivas as de conteúdo político-ideológico. Durante o
trabalho de campo, decorreu em Portugal uma eleição presidencial, que pontuou Lisboa
com painéis dos candidatos, exceto dentro do Parque, embora existissem até às
proximidades da envolvente. Tal não significa que a cidade renovada não seja alvo de
manifestações políticas ou cívicas, classificadas como um contra uso por Leite (2008),
institucionalizadas ou não103.
Também pouco expressivas são as manifestações de protesto em forma de
cartazes, faixas ou graffitis. Mais uma vez, esse tipo de ocupação foi encontrada até as
proximidades do Parque, mas não dentro. Dentro dele, entretanto, encontramos cartazes
de protesto, em forma de folhas A4 colados em postes, contra a exploração sexual de
crianças nos dias que antecederam e sucederam o julgamento de um caso desse tipo no
Campus de Justiça (o mencionado caso da Casa Pia).
***A análise mais detida das explorações do público dos espaços de uso público do
do Parque das Nações, embora não exaustiva, permite-nos tecer algumas análises a
título de conclusão desta seção. A primeira dela diz respeito aos processos de inclusão e
exclusão também nas ações e contextos do espaço urbano. A segunda diz respeito à
ludicização dessa estrutura.
É perceptível a tentativa da Geurbana de manter controle absoluto sobre todas as
explorações do público, reativas ou propositivas, exercido também por processos de
inclusão e exclusão, como indicado caso a caso. Esse controle é justificado pela
103 Alguns exemplos: em agosto e setembro de 2011, camionistas ocuparam a envolvente do Campus de Justiça, na Avenida Dom João II, contra o fecho da empresa em que trabalhavam (RTP, 2011); em junho de 2011, o Pavilhão de Portugal abrigou o comício de encerramento do Partido Socialista na campanha das Eleições Legislativas (PSL, 2011); em outubro de 2007, policiais realizaram uma manifestação por benefícios sociais (Público, 2007). Solicitamos ao Governo Civil de Lisboa, entidade que deve ser comunicada quando de ocupações de espaços públicos para manifestações, a consulta da lista de comunicados relacionadas ao perímetro do Parque das Nações, mas não fomos atendidos
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potencial agressão à privacidade do indivíduo, ao espaço físico e à qualidade dos
espaços de uso público, uma ideia que envolve os dois elementos anteriores e a
concepção dos representantes da Geurbana do que é ou não um ambiente urbano
adequado. Estabelecem-se por aí alguns limites sociais ao espaço de uso público.
Esse controle é feito, à semelhança das ocupações analisadas nas seções
anteriores, por meio de processos de inclusão e exclusão. A diferença reside no fato de
parecer mais rígido do que aquele que identificamos no caso das ocupações para as
quais importa menos o público do que o espaço, ou seja, nas quais o indivíduo se coloca
em papéis de utilizador de cidade, de consumidor da cidade renovada. Parece-nos mais
rígido por causa da tentativa de ser absoluto, como referimos no parágrafo anterior: a
priori, qualquer exploração do público depende de uma autorização, enquanto que a
priori se deslocar, comer, deitar, brincar ou fazer exercícios, não.
Mais uma vez, é possível discernir como esse controle contribui para
transformar a cidade renovada, e as frentes da cidade renovada, em um ambiente lúdico
específico. As explorações são mais incluídas tanto mais adquiram um caráter lúdico e
excepcional, é uma conclusão que tiramos da análise dos processos de inclusão e
exclusão do vender/doar comida e do pedir. Vender comida fica livre de qualquer
controle nas regiões frontais da cidade renovada quando é uma ação inserida em um
contexto lúdico e excepcional, o mesmo acontecendo com o peditório. Os artistas de rua
podem trabalhar desde que não seja para obter dinheiro.
4.5 Dois contextos: gare e skate park
Passamos agora à análise de dois dos contextos que julgamos dos mais
relevantes para a investigação que aqui desenvolvemos: a Gare do Oriente e o Terreiro
dos Radicais. Como é melhor esclarecido na seção metodológica, esses dois contextos
foram determinantes desde o início da análise, quando visitávamos o campo de uma
maneira ainda exploratória104. À Gare, fomos levados a dar maior atenção inicialmente
pela concentração de sem-abrigo. Ao Terreiro dos Radicais, essa maior atenção decorreu
do contraste criado pela existência massiva de graffiti e da localização periférica em
relação à área central do Parque das Nações. No decorrer do trabalho, a atenção dada a
esses contextos levou a complexificar também outros (sub)contextos, ações e papéis
neles encontrados. Pretendemos agora lançar luz a esse e outros elementos que,
julgamos, tornam esses dois contextos importantes para compreender como se dá a
104 Cf. 2 Método
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organização dos espaços de uso público do Parque das Nações.
4.5.1 Gare
A Gare, como visto, está na área central e assenta na confluência da principal via
para transporte motorizado (a Avenida Dom João II) com o eixo transversal do Parque
que leva até o Rio Tejo. Nesse eixo está o Centro Comercial Vasco da Gama, ao qual a
gare está integrada arquitetônica e funcionalmente, uma vez que parte dos
estabelecimentos comerciais existentes dentro do terminal de transporte são
administrados pela mesma empresa responsável pelo centro comercial. Em seguida no
mesmo eixo está o Rossio dos Olivais, de elevada importância simbólica (é onde estão
as bandeiras dos países participantes da Expo'98 e um conjunto de obras de arte
urbanas). Assim, além de uma importante interface de transporte público no contexto da
Área Metropolitana de Lisboa, a gare serve de porta de entrada central ao território que
é considerado, como visto, a nova centralidade de Lisboa105.
A Gare do Oriente é um dos principais equipamentos destinados a promover a
mobilidade necessária a que os espaços de uso público e de uso privado do Parque das
Nações possam ser ocupados, servindo de instrumento de competitividade de Lisboa.
Essa função é destacada pelo administrador da GIL, CCa, quando perguntado sobre
eventuais influências do Parque sobre a gestão do terminal. No entender de CCa, o
Parque das Nações é um sucesso por causa da existência da Gare do Oriente – "a maior
interface de transporte do país" – e não o contrário.
Entretanto, como Foucault (2007) aponta, a circulação, uma característica da
modernidade, pode ser dividida entre boa e má. A gare, assim, constitui-se como um
ponto privilegiado para passagem e paragem da boa circulação, que segundo o autor é
objeto de promoção, e também má, que é alvo de estratégias de minimização. Por essa
razão, constitui-se como um contexto privilegiado para entender como, na organizçaão
dos espaços de uso públido do Parque, constituem-se esses dois tipos de circulação.
Faremos isso, mais uma vez, pela análise dos processos de inclusão e exclusão.
A atribuição do qualificativo de má circulação deve aqui ser entendido como
uma interpretação do modo como os indivíduos a que lhe aplicamos surgem nas
entrevistas e ações de membros da administração do Parque e de atores não
institucionais. Assim, estamos atentos à não-atribuição apriorística de um rótulo de
desviante a um indivíduo ou grupo. O desvio, assim com o rótulo, são construções 105 Cf. 3.5 Motilidade e ressensibilização
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sociais que devem ser analisadas contextualmente, e não dados sociais, como
demonstrou Howard Becker (1985). Consideramos esses grupos, portanto, como
desviantes tendo em vista que, no contexto da Gare do Oriente e do Parque das Nações
em geral, é possível identificar elementos de uma estrutura de interpretação e de ação
em relação a eles que os colocam como desviantes em relação à concepção normativa
expressa nos conceitos de “civilidade”, “qualidade”, “bom senso”.
Como primeira análise, cabe indicar quais são os recursos oferecidos na Gare do
Oriente – para além, claro esteja, das condições de mobilidade – à ocupação por
indivíduos nos papéis desviantes e, em seguida, apontar quais são os constrangimentos.
Em boa medida, eles nos permitirão traçar quais são os processos de inclusão e exclusão
que fazem com que esses indivíduos ali permaneçam e, assim, estejam numa região
posterior da gare e, em consequência, longe das regiões frontais do Parque das Nações.
Como espaço privado fechado, mas de acessibilidade física irrestrita ao longo de
todo o dia, a gare se configura como um espaço de uso público que oferece aos sem-
abrigo acesso livre e abrigo contra as intempéries. A presença da polícia, que tem uma
esquadra no local onde eles permanecem, e de funcionários da vigilância da gare, menos
do que dissuasores, são estímulos: a falta de segurança é um dos constrangimentos
apontados pelos sem-abrigo entrevistados que os impede de ficar em outros locais do
Parque. A existência de muretas e bancos evita ter de dormir no chão e há casas de
banho gratuitas. A proximidade do Centro Comercial, embora seja um dos motivos para
que não se possam deitar durante o dia, oferece possibilidades de obter lazer gratuito
(ouvir música, jogar jogos eletrônicos e ver vídeos nas lojas que vendem esses artigos) e
comida e bebida relativamente baratas (vendidas no supermercado aí existente).
Outros recursos são oferecidos pela própria ocupação da gare por indivíduos em
outros papéis: há doação de comida, quer por parte de instituições de apoio social, quer
por parte de quiosques presentes na Gare ou por parte de utilizadores pendulares; há a
possibilidade de ficar a observar o fluxo de pessoas, uma atividade mencionada por
alguns sem-abrigo como de lazer; há concentração de restos de cigarro (beatas) junto às
papeleiras; e há os carrinhos do supermercado do Centro Comercial abandonados no
estacionamento da Gare pelos clientes, e que são usados pelos sem-abrigo para
transportarem seus pertences, uma vez que não podem mantê-los consigo durante o dia.
Nas outras áreas do Parque, existem também alguns recursos: a possibilidade de
se deitar durante o dia; a arborização e os jogos de água que ajudam a lidar com o calor
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no verão106; novamente a possibilidade de observar o fluxo de pessoas; a doação de
comida exclusivamente de modo não-institucional; a existência de alguns pontos onde é
possível deitar durante a noite (embora alguns sem-abrigo tenham referido haver
impedimento por parte da polícia e da vigilância privada); a possibilidade de arrumar
automóveis e pedir cigarros e dinheiro durante a noite aos indivíduos que aproveitam a
vida noturna oferecida pelo Parque.
Os sem-abrigo entretanto se concentram, durante o dia e principalmente à noite,
no corredor da gare já mencionado anteriormente107. É nesse corredor subsolo que estão
localizadas as muretas que favorecem o deitar, uma casa de banho, a esquadra policial e
onde a comida é distribuída por associações de apoio. Ao mesmo tempo, esse corredor,
com acesso a todos os meios de transporte público da interface e ao estacionamento,
liga os fundos ao centro da gare, onde tem início a integração funcional com o Centro
Comercial Vasco da Gama (as lojas aí são geridas pela empresa que gere o CCVG) e
onde a GIL explora o fluxo de pessoas por meio de alguns quiosques de comida e outros
produtos. A área central da gare, por sua vez, dá acesso ao Centro Comercial.
Nessa área central da gare, embora não esteja proibida formalmente, a presença
dos sem-abrigo que não estejam ou usando as esplanadas dos restaurantes ou se
deslocando, é excluída suavemente por meio da supressão de recursos, como tentamos
mostrar com a descrição abaixo.
Há duas muretas onde seria possível permanecer (já que sentar ou deitar no chão
é proibido e mesmo inviabilizado pelo fluxo de pessoas), localizadas próximas à entrada
do CCVG. Uma delas, entretanto, é ocupada por um quiosque de cachorro-quente. Na
outra, durante aproximadamente dois meses, permaneceu um sem-abrigo, bebendo
bebidas alcoólicas adquiridas no supermercado, falando sozinho, observando a
passagem e ocasionalmente tentando uma interação face a face com passantes ou
indivíduos que se sentavam nessa mesma mureta, mas não com o intuito de pedir.
Conhecido dos outros sem-abrigo e de comerciantes da gare ao ponto de ser referido por
alcunhas, esse indivíduo recebia doação de comida dos funcionários do quiosque de
cachorro-quente ao fim do dia e não era abordado pela vigilância desde que não
interagisse com os passantes. Em 7/10/2010, entretanto, essa segunda mureta foi
temporariamente ocupada por um quiosque de cosméticos que antes se encontrava em
outra área da gare. O sem-abrigo, então, passou a se sentar em uma escadaria na
106 Cf. Deitar107 Cf 4.3.1 Comer; 4.3.2 Deitar e 4.4 Explorações do recurso social
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proximidade (um tipo de ocupação que pode ser alvo de intervenção da segurança se
estiver a atrapalhar o fluxo de passagem, segundo JRu, da manutenção da GIL) e, mais
tarde, sumiu do Parque108. Após o retorno do quiosque à posição original, a mureta
passou a ser ocupada apenas por indivíduos em oturos papéis – normalmente,
utilizadores do centro comercial ou funcionários das lojas da gare.
Para além desse constrangimento excludente, realizado pela supressão de
recursos, os sem-abrigo encontram três tipos de proibição na gare que contribuem para
serem regionalizados espaçotemporalmente como uma população de fundos, e não das
frentes da cidade reurbanizada. Primeiro, são proibidos de pedir. Segundo, além de
terem de evitar confusões, eles são interditos de deitar durante o dia no corredor, muito
embora indivíduos em outros papéis se deitem mesmo no chão e com cartões e
bagagens em outras áreas da gare, mesmo frontais como a praça109. Terceiro, os sem-
abrigo são interditos de manterem consigo os pertences a que recorrem para dormir,
como cartões ou cobertores, uma necessidade na gare uma vez que, segundo um sem-
abrigo “frio passa-se, chuva é que não” (sem-abrigo Z). Deitar-se sem cobertor torna
mesmo mais flexível a regra de levantar-se às 6h, de acordo com um segundo sem-
abrigo (sem-abrigo C). A justificativa avançada por um representante da GIL a esse
impedimento relativo aos pertences é a mesma dada em relação ao impedimento de
dormir: a imagem que dá.
Há portanto inclusão pela tolerância do papel de sem-abrigo, que empurra esse
papel para regiões espaçotemporalmente posteriores do contexto do Parque como um
todo e da gare em particular. A exclusão tout court, por meio da proibição pura e
simples da permanência, é evitada pelas administrações do Parque e da Gare. Quando,
por algum motivo, essa ocupação suscita algum tipo de ação por parte dos gestores, são
adotadas medidas como “encaminhar” para instituições de acolhimento de sem-abrigo e
de “ajudar” dessa maneira. Como afirma LRa,
“{entrevistador} E em relação aos espaços públicos do parque há algum tipo de trabalho em relação a esse tipo de ocupação, de abrigo?
{entrevistado} Até a data existem casos muito pontuais de sem-abrigo que, enfim, que não têm expressão que não suscitam qualquer tipo de preocupação nem de problema Eu diria que há um caso (…) já identificamos a situação (...) Inclusive já atuamos junto de instituições para tentar ajudar o senhor ou resolver o problema do senhor mas essas coisas
108 Encontramo-lo por acaso em outra região da cidade depois109 Cf. 4.3.2 Deitar, essa proibição, no corredor da gare, estende-se a também aos indivíduos em outros
papéis
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dependem muito da vontade dos próprios. Penso que não foi possível, ele não se mostrou interessado. (...) é evidente, a verificar esses tipos de fenômenos nós tentamos procurar perceber qual é a situação da pessoa e depois tentar na medida do possível dar algum tipo de encaminhamento para alguma instituição ou procurar de alguma forma contribuir ou ajudar (Lra, DQCU/Geurbana)
A resistência ao sem-abrigo surge de maneira mais direta no discurso de CCa,
administrador da GIL, no qual também é possível perceber a tolerância com esse papel
(e com a distribuição de comida por instituições de apoio) como uma imposição social.
A “tolerância”, é mencionada diversas vezes quando perguntado sobre como lida com
os sem abrigo, juntamente com as frases abaixo
“{entrevistado} Se se impede, somos uns malandros”
“{entrevistado} [em tom de brincadeira] Em democracia é mais difícil lidar com essas coisa. Se fosse em ditadura, era mais fácil” (CCa, administrador da GIL)
Voltamo-nos agora aos GVA, um segundo papel que é considerado desviante
pela forma como percebemos a sua interação com outros indivíduos, quer atores
institucionais, quer não institucionais. No campo, encontramos o relacionamento desses
grupos à etnia cigana e à nacionalidade romena. Fazemos essa análise em duas fases:
em primeiro lugar, descrevemos esses grupos, e quais são os processos de inclusão e
exclusão a que são submetidos; em seguida, mostraremos a quem e a quais atividades as
denominações de “romenos” “povo romeno” “mulheres romenas”, “ciganos”, “ciganos-
romenos” se aplicam nos contextos da gare e do Parque como um todo, e como se
relacionam a esses grupos. Essa divisão nos parece importante pois, embora os grupos e
os indivíduos e ações que recebem essas denominações sejam elementos separados,
identificamos no campo o estabelecimento de conexões entre uns e outros que nos
parecem indispensáveis descrever e analisar.
Os GVA se constituem de cerca de 10 à 20 indivíduos estrangeiros (em alguns
casos de nacionalidade romena), entre homens mulheres e crianças, e que se encontram
na gare em trânsito, sobretudo. Passam as horas de espera no cais dos autocarros,
sobretudo nas partes mais ao fundo. Os elementos da fachada pessoal que permitem os
distinguir de outros grupos de viajantes nos contextos em que os encontramos foram: os
números de integrantes mais elevados; as roupas (as mulheres usam, quase
invariavelmente, saias e os homens, em boa parte dos casos, estão descalços); o grande
volume de bagagens que carregam, normalmente acondicionadas em sacolas e caixas de
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cartão, para além de malas.
Os GVA fazem suas refeições sentados ao chão, com comidas que trazem e que
compram ao supermercado. Em um caso, observamos um membro de um desses grupos
a pedir cigarros, um membro de outro grupo a fuçar o lixo, e três membros (crianças) de
um terceiro grupo a furtar em um quiosque de roupas e bijuterias na área comercial da
gare. Outros recursos utilizado pelos indivíduos desses grupos são as casas de banho, os
carrinhos de supermercado para transportar os pertences dentro da gare e os
estabelecimentos de restauração da gare.
A chegada e presença desses grupos, nas ocasiões que observamos, causa um
perceptível aumento da atenção, contribuindo para que a gare se torne um contexto mais
resistente à sua permanência. Os vigilantes privados da gare tende a exercer uma
vigilância de maior proximidade. Além disso, como mostra a seguinte vinheta do
caderno de terreno, a presença faz com que a gare, um contexto em que os papéis de
arrumador de automóvel, policial e sem-abrigo são comumente desempenhados em
oposição, torne-se um contexto em que esses três papéis participam da mesma equipe .
“O menino [de um dos GVA, de aproximadamente 12 anos] de camisa listrada estava a brincar com uma pomba que tinha pego e depois saiu do meu campo de vista. Era por volta das 17h30. De repente, a guardadora de carros 4 [que vive fora do Parque] passa a gritar “vou chamar a polícia para si”. Ela, então, desceu as escadas centrais que vão para o corredor da gare e foi falar com o guardador de carros 1 [que vive no corredor da gare], que estava sentado no último rol Sul (sentido Leste-Oeste) junto com o guardador de carros 2 [que também vive no corredor da gare]. O guardador de carros 1 então se levantou e foi até a polícia [algo que não faz regularmente].” [caderno de tereno, 24/08/2010]
É interdito fazer pic nics na gare, forma da qual o comer dos GVA mais se
aproxima mas que também é praticada por indivíduos em outros papéis, mesmo em
regiões mais frontais da gare. Sentar-se junto às escadas é tolerado, desde que não
atrapalhe o fluxo (JRu, manutenção GIL). Deitar-se durante o dia no chão e nos bancos
é interdito no corredor da gare, sendo tolerado (embora de maneira pouco expressiva)
em outras áreas da gare. Entretanto, quando os indivíduos que praticam essas ações são
dos GVA, as intervenções para garantir o cumprimento das regras são mais imediatas. A
exclusão pela proibição é mais imediata e inexiste a inclusão pela tolerância.
As intervenções contra os GVA estendem-se também para fora dos limites
físicos da gare (e, assim, do Parque) à diferença do que acontece com os arrumadores de
automóveis, outro papel desviante no contexto do Parque. Em agosto de 2010, um
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grupo de 10 viajantes tentou estabelecer acampamento – uma prática interdita em
Portugal fora dos espaços destinados para tanto – em um terreno baldio que se encontra
aos fundo da Gare do Oriente, já fora do Parque das Nações. Dois policiais da esquadra
da gare foram impedi-los. No caminho, cumprimentaram um arrumador de automóveis
que atua fora do Parque e que tem um acampamento estabelecido em um canto do
espaço de uso público próximo a esse terreno baldio.
Chegando ao terreno baldio, os policiais orientaram os viajantes a saírem.
Suscitados a levantar acampamento, os viajantes começaram a se deslocar sentido
Parque das Nações. Ao chegarem sobre os passeios da Gare, foram novamente
abordados, sendo um dos integrantes do grupo agredido por um dos policiais. Em
seguida, o grupo se deslocou para um bairro da envolvente do Parque, onde novamente
estabeleceu acampamento. Tratou-se, a nosso ver, não de proibir a permanência dos
GVA, mas de impedir que ela acontecesse junto ao Parque e de afastá-los.
Segundo ClC, da CVP (uma das instituições de apoios aos sem-abrigo), a
ocupação do referido terreno baldio por indivíduos de nacionalidade romena é
recorrente. Uma segunda informante, vendedora em uma loja da gare, identifica os
grupos que desempenham a mesma ocupação como “romenos-ciganos”, sendo essa uma
das relações possíveis de estabelecer entre os GVA e essas denominações.
É possível mapear em relação a indivíduos a quem são atribuídas as
denomniações de “romeno”, “cigano-romeno”, “povo romeno”, “ciganos” e “mulheres
romenas” uma expressiva resistência por parte de indivíduos em outros papéis, de forma
transversal, no contexto da gare e no contexto do Parque como um todo.
Fora da gare, o termo “ciganos” surge genericamente no discurso de uma
funcionária da limpeza do Parque para identificar os responsáveis por ocupações que
causam maior sujidão no Parque do Tejo, na área periférica Norte. No discurso de AJA,
Técnico de Monitorização Urbana do Departamento de Qualidade do Espaço
Público/Geurbana, as “mulheres romenas” são identificadas com a mendicância.
Observamos entretanto uma mulher que se identificou como cigana a mendigar no
Parque (pedinte 1) e que cuja roupa é semelhante à das mulheres integrantes dos GVA; e
uma mulher (pedinte 2) que se identificou como romena a vender revistas, como forma
de pedir não-autorizada, na frente ribeirinha.
No contexto da gare, JRu (responsável pela manutenção na GIL) estabelece a
mesma relação entre mendicância e indivíduos de nacionalidade romena:
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“{entrevistador} Mendicância também é tolerado na gare?
{entrevistado} Não. Nem dos sem-abrigo nem de qualquer outro. E há N tentativas de pedir e é muito difícil controlar. É muito difícil controlar mesmo com o povo romeno que tanto, que tem muito essa mania de pedir. Depois fogem para um lado, fogem para o outro, fazem vida negra aos seguranças (...)” (JRu, manutenção/GIL)
No discurso do sem-abrigo Z, os “romenos” são a denominação usada para
identificar indivíduos que causam confusão (um dos motivos que tende a desencadear o
impedimento da permanência dos sem-abrigo no contexto da gare) e que praticam
roubo. Em uma ocasião, observamos crianças pertencente a um dos GVA a tentar furtar
objetos de um quiosque e, em seguida, de uma loja da área central da gare. É importante
também a conexão dos “romenos” com o andar em grupos grandes que, como visto, são
também uma característica dos GVA que os distingue no contexto da gare.
Por fim, o termo “ciganos” em uma ocasião foi aplicado por uma utente da gare
diretamente a um GVA, mencionando que “em França correram com eles”, em
referência às expulsões de ciganos daquele país que foram foco de atenção mediática
em Portugal em 2010110.
Em resumo, as denominações “romeno”, “povo romeno” e “mulheres romenas”
são aplicadas à mendicância, ao roubo, à confusão, ao estar e em grupo e ao acampar no
terreno baldio ao fundo da gare; enquanto a denominação “cigano” é aplicada ao fazer
sujeira; e a denominação “romeno-cigano”, ao acampar no terreno baldio ao fundo da
gare e ao furto. Há correspondências entre os papéis e ações a que essas denominações
são aplicadas e os GVA: 1. a pedinte 1 usa roupas semelhantes às das mulheres dos
GVA; 2.uma das características a diferenciar os GVA no contexo da gare é o estarem em
grupos grandes; 3. crianças do GVA tentaram praticar furtos; 4. a pedinte 2 se
identificou como romena, nacionalidade de ao menos um dos GVA que observamos; 5.
os GVA acampam no terreno baldio. A existência dessas correspondências, parece-nos,
contribui para a resistência que identificamos em relação aos GVA, contribuindo para
que eles sejam alvos de processos de exclusão mais imediatos. Esses processos são
potencializados pelo fato de contarem com a participação de uma ampla gama de atores.
***Em conclusão a esta seção: os processos de inclusão e exclusão identificados na
Gare do Oriente estão relacionados à presença de papéis que se configuram como a má
110 (Público, 2010)
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circulação que importa minimizar. Analisamos dois deles: os sem-abrigo e os GVA.
No caso dos sem-abrigo, os constrangimentos remetem à redução da
visibilidade, por meio da exclusão de sua permanência nas frentes, mas a tolerância com
sua permanência nos fundos da cidade renovada. A eliminação da pobreza, uma das
tarefas das políticas urbanas modernas (Foucault, 2007) vai de par no urbanismo do
Parque das Nações com uma eliminação da visão da pobreza que, emprestando a
formulação de Fernandes (2006), surge como intranquilizadora do cidadão comum no
discurso da administração da gare. No caso dos GVA, a tolerância com a permanência,
ainda que temporária, é comparativamente menor, e mesmo os fundos da cidade podem
se tornar hostis à sua presença. Contribui para isso a partilha, pelos GVA, de algumas
ações ou características atribuídas genericamente a uma nacionalidade e/ou a uma etnia.
Há duas características na análise em conjunto desas duas formas de tratar a má
circulação que importa ressaltar. Em primeiro lugar, a imposição de sustentar a ficção
moderna de que os espaços de uso público, por essa condição, são igualmente acessíveis
a todos. Essa imposição fica expressivamente demonstrada nos discursos dos
representantes da gare e da Geurbana quando o tema é os sem-abrigo: em ambos os
casos, é renegada a possibilidade de simplesmente proibir a presença de indivíduos
nesse papel, embora seja um “problema” (como diz LRa, da Geurbana) ou algo que se
tem de tolerar sob a pena de ser considerado “malandro” (como diz CCa, da GIL). As
exclusões então são ou suaves (como a oferta de apoio, no caso da Geurbana, para
resolver o “problema” e da supressão de recursos, no caso da GIL, que retirou o local de
permanência a um sem-abrigo da área central da gare); ou, quando são proibições,
apenas visam os contextos frontais (como o impedimento a deitar aplicado aos sem-
abrigo) ou são endurecimentos de regras que, em tese, são válidas para todos de forma
igual (como o impedimento de fazer pic nic).
Em segundo lugar, essa imposição funciona de forma a contrariar a existência da
hierarquização estabelecida desde que se torna possível discernir entre boa e má
circulação. Há uma clara escala entre os utilizadores da estação (a quem se tenta evitar a
visão da pobreza), os sem-abrigo (a quem se restringe as formas de permanência), e os
GVA (a quem essa restrição é ainda mais expressiva), que permite questionar o grau de
diversidade aceito pelo espaço de uso público da cidade renovada.
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4.5.2 Skate park
O Terreiro dos Radicais (TR), ou skate park como é chamado pelos
entrevistados, funciona como a principal âncorada da juventude nos espaços de uso
público do Parque das Nações. Instalado junto, mas após a Ponte Vasco da Gama, já
próximo ao limite Norte do Parque, fica em uma posição periférica em relação a área
central – ao ponto de um skatista entrevistado nunca ter lá ido apesar de trabalhar no
Centro Comercial Vasco da Gama. Esse distanciamento é compensado pela oferta de
transporte público e pela acessibilidade por meio da malha viária, que permite que,
mesmo se localizando na zona residencial, seja utilizado por residentes do Parque, mas
também de outras áreas de Lisboa, de outras cidades portuguesas de outros países111.
Expliquemos porque é que, embora no Parque das Nações em geral a divisão
etária nos pareça tênue e haja utilização do TR por parte de adultos e crianças, possamos
falar em âncora da juventude quando nos referimos a esse equipamento. Um primeiro
motivo é a reunião, ali, de ações que configuram o tempo livre dispendido nos espaços
de uso públicos pelos jovens de classe média descritas por José Machado Pais (1991). O
skate park serve, para além de espaço para prática de esportes radicais, para os mesmos
tipos de ação que esse autor identifica nas arcadas: namorar, usar drogas leves
(eventualmente pesadas), grafitar, beber, fumar, conversar. Como demonstra o autor, o
tempo livre vai muito além do nada fazer. A forma como os jovens se entregam às
atividades no tempo livre é o que dá mais especificidade aos seus modos de vida. (Pais,
1991:200). Outro motivo é o modo como o TR foi, em 2004, utilizado para gravação de
um episódio de um seriado de TV para jovens (Morangos Com Açúcar)112. No episódio,
os personagens participavam de um campeonato de skate e bmx.
O skate park é destinado, como refere a placa junto a ele, à prática de esportes
radicais, sendo citados diretamente skate, patins e bmx, e há permissão para a prática de
graffiti. Serve portanto como para-raios – passe a metáfora – de ocupações que tendem
a alterar os espaços públicos. Como afirma Fran Tonkiss (2005:145), ocupações que
põem em causa mesmo a propriedade de um território. Em linha com uma das duas
preocupações centrais da Geurbana – impedir alterações no espaço físico – o skate, o
bmx e o graffiti são ações excluídas de praticamente qualquer outro contexto do Parque
(sendo o skate entretanto tolerado na Marina e acontecendo de forma clandestina,
111 Encontramos dois grupos, um de belgas e outro de ingleses, no Parque das Nações com o intuito de conhecer o skate park. Para além disso, foi possível perceber a internacionalização do skate park por meio da menção de um jovem brasileiro que, morando em Espanha, viu uma foto do skate park de um amigo e isso o motivou a visitar o equipamento
112 (CM, 2004)
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eventualmente, em outros locais).
Assim, o skate e o bmx são incluídos pela institucionalização no Terreiro dos
Radicais; o graffiti, por sua vez, é incluído pela tolerância, quase pela
institucionalização, tendo em vista a permissão da prática no skate park ser mencionada
abertamente por um funcionário da limpeza e pelos representantes a Geurbana
entrevistados.
Comecemos a análise do TR pelo graffiti. O graffiti é um tipo de apropriação de
espaços de uso público e de espaços de uso privado que tenham visibilidade a partir dos
espaços de uso público. É também, julgamos, uma forma de exploração reativa do
recurso social constituído pelos indivíduos que ocupam os espaços de uso público: a
população cambiante pode ser entendida como público para o graffiti.
Nas palavras dos administradores da Geurbana, o graffiti é “praga” e
“vandalismo”. A tolerância se restringe ao skate park e tão só a ele: na casa de banho
que serve ao equipamento, os sinais de tentativas de limpar os graffitis são tão
constantes como os próprios graffitis. Além de se encarregar da limpeza dos graffitis
irregulares nos espaços de uso público, a Geurbana intervém junto aos proprietários dos
imóveis privados para que a façam quando as pinturas são visíveis a partir dos espaços
de uso público (JRP, DOIU/Geurbana). O seguinte excerto de entrevista é útil para
mostrar como o graffiti migra de uma estrutura de interpretação para outra no discurso
do responsável pela limpeza na Geurbana, JRP – estrutura de interpretação que é
partilhada pelo responsável pela qualidade e concessão urbana, LRa.
“{entrevistador} (...) ele é permitido ou não é permitido, o graffiti?
{entrevistado JRP} Grafitismo se for feito na própria propriedade ou com autorização do dono e com uma estética devidamente aprovada pelas autoridades eu não tenho nada a opor, mas (...) geralmente o que acontece é digamos uma uma..
{entrevistado LRa} Configura-se como um ato de vandalismo
{entrevistado JRP} Vandalizar a propriedade alheia e criando uma situação que contribui para um mal estar dos outros na medida em que afeta a estética urbana
{entrevistador} Eu perguntei do graffiti porque vejo que ali junto ao Terreiro dos Radicais e nas próprias pilastras...
{entrevistado JRP} Não, aí sim. Aí sim, no Terreiro dos Radicais, sim
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{entrevistado LRa} Faz parte da cultura da coisa
{entrevistado JRP} Da cultura associada àquele recinto. Já nos pilares da ponte digamos nós não, só não intervimos porque não podemos intervir porque a ponte tem uma autoridade própria (...) Em todas as outras situações (...) no espaço público aí intervimos. E no caso dos grafitis serem em propriedade privada o que fazemos é alertamos o proprietário para proceder a limpeza. (JRP, DOIU/Geurbana e LRa, DQCU/Geurbana)
Assim, o graffiti, enquanto uma forma de exploração do público dos espaços de
uso público, assume duas subformas se assim quisermos chamá-las, enquadrando-se em
duas estruturas de interpretação se olharmos para os discursos: a) uma, em que o graffiti
é “vandalismo” por ocorrer fora do local destinado para tanto, e à qual é associada uma
baixa qualidade estética; b) e outra, em que o graffiti “faz parte” por ocorrer em um
local adequado e que também é associado (no caso de locais privados) a uma boa
qualidade estética.
As duas subformas do graffiti e as duas estruturas de interpretação do graffiti
são partilhadas por alguns utentes do skate park. Há algumas discordâncias e, por isso,
incluímos abaixo excertos que mostram tanto proximidades como distanciamentos entre
o entendimento da Geurbana e o dos utentes
“{entrevistador} O que que você acha de haver [graffitis]?
{entrevistado BMX1} Os bem feitos ficam porreiro, agora as aberrações... alguns que estão aí é fatela. Não tá aqui nada muito fixe
(...)
{entrevistador} Na sua opinião acha que deveria haver graffitis em outros locais [do Parque das Nações]?
{entrevistado BMX1} Acho que não. Há outros sítios. Isto é uma zona assim um bocado mais fina e não sei o quê. Para fazer um trabalho bem feito a nível de graffiti tem que ser pessoas contratadas para ficar bem feito. se por aí um gajo qualquer para fazer as porcarias daqui nas ruas fica feio (...)” (BMX1: praticante de bmx, 30 anos aproximadamente, entrevistado no skate park)
–
“{entrevistador} E em relação aos graffitis?
{entrevistado PAI} É arte urbana, combina bem com skate. Desde que sejam bem feitos, sejam feitos com prazer
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{entrevistador} E fora do skate park?
{entrevistado} Acho que há sítios apropriados, aqueles muros, recuperação de casas degradadas, mas prédios novos... se calhar pintar só por pintar não vale a pena” (PAI: pai de criança que andava de skate, 30 a 35 anos, entrevistado no skate park)
–
{entrevistador} O que acha dos graffitis? Concordas?
{entrevistado SKATE1} Muito loucos, acho bem fixe. Aqui sim. Em outros locais, não. Não sou contra, mas acho que aqui sim, tem a ver porque é cultura urbana, é cultura de skate, é cultura nova, cultura de cidades. É concreto, faz parte
{entrevistador} E em outras regiões do Parque?
{entrevistado SKATE1} É vandalismo, acho que não. Aqui tá se bem. (SKATE1: praticante de skate, cerca de 30 anos, entrevistado no skate park)
–
“{entrevistador} O que achas dos graffitis?
{entrevistado SKATE2} Bem, não digo que seja melhor para o skate park. Eu que faço um bocado disso... é um bom sítio para fazer.
(...)
{entrevistador} (...) Mas concordas ou acha que não deveria [haver graffitis em outros locais do Parque]?
{entrevistado SKATE2} Quem gosta faz em qualquer lugar, mas não é o local mais apropriado. pelo menos para as pessoas que moram naquelas urbanizações. Se for só uns rabiscos o pessoal apita mais. Se for uns (...) algo mais complexo, na boa” (SKATE2: praticante de skate e de graffiti, 16 a 18 anos, entrevistado no skate park)
“{entrevistador} (...) Acha que deveria haver graffiti mais para lá?
{entrevistado MARIJUANA} Tem que meter graffiti em tudo o que é lugar, se for uns graffiti di mil [bonitos]” (MARIJUANA: fumante de marijuana, 18 a 25 anos, entrevistado no skate park)
Para além de deverem ocorrer nos locais certos (no que consideramos uma
importante sintonia com o discurso dos representantes da Geurbana), os grafitismos
devem ser “bem feitos”, “di mil”, e não “fatela” ou, como referiu uma mãe que
acompanhava os filhos no skate park, “graffitis baldios”. Julgamos que essa
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interpretação mostra a importância da dimensão estética, antes da de política/protesto,
dada a esse tipo de exploração do público nos espaços de uso público. Dito de outra
forma: entre os ouvidos no Parque, o graffiti remete primeiro a um embelezamento –
como mostra a ideia de que os prédios velhos, e não os novos, são locais adequados a
serem ocupados por esse tipo de ação – do que a uma forma de comunicar uma
mensagem. Queremos deixar claro que remete primeiro, e não exclusivamente à
dimensão estética – posto que um graffiti bem feito também pode conter uma
mensagem política. O graffiti é primeiro entendido como forma de distração em vez de
primeiro uma forma de divergência (Pais, 1991:283).
Skate, bmx e patins, por sua vez, são institucionalizados no skate park ao constar
expressamente da placa que indica a quais ocupações se destina o TR. Para além disso,
a institucionalização é perceptível pela utilização do skate park como cenário – dentro
do qual essas três atividades encontram-se ocorrendo – em uma peça publicitária de
uma grande companhia portuguesa113. Nela, e embora o skate park também tenha uma
utilização por crianças e adultos, percebemos como as atividades mencionadas são
identificadas com a juventude. A institucionalização por meio da placa serve a conferir
mais direito, e assim empoderar um utente em relação ao outro. Como diz um skatista
“{entrevistador} E sentes que o Parque te pertence?
{entrevistado SKATE3} Eu sou praticante de skate isso foi feito para skate e não para outro, como carrinhos telecomandados. Outro dia havia um tipo com carrinho telecomandado. Pisei o carro, estraguei o carro ele me pediu dinheiro. Eu disse que não pagava e ele foi se embora triste. Isto não é para andar de carro, é para fazer skate – andar de patins, andar de bicicleta, desportos radicais. Aquilo é desporto motorizado. Por isso tenho mais direito de que o carro (...)” (SKATE3: praticante de skate e fumante de marijuana, 25 anos aproximadamente, entrevistado no skate park)
É sobre esse pano de fundo que uma outra forma de ação no skate park que
envolve a alteração do espaço físico à revelia da administração do território deve ser
analisada. Ela permite observar o esvaziamento da ideia de os indivíduos se
responsabilizarem pelos espaços que não são privados, que segundo Françoise Navez-
Bouchanine (1991:153) entra na ordem do dia com a crise do Estado Social, e o
fortalecimento da ideia de relegação da responsabilidade por esses espaços
exclusivamente a um ator externo, papel assumido pno Parque pela Geurbana114.
113 Aqui também percebemos como o graffiti, para além de incluído pela tolerância, é incluído pela institucionalização, quase da mesma forma que o skate, o patins em linha e o bmx
114 Navez-Bouchanine analisa essa convivência na relação dos residentes com o espaço entre a casa e a rua em habitações clandestinas no Marrocos
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Considerada uma ótima pista, o skate park recebe como principal crítica a
manutenção deficiente, quando os utentes são perguntados sobre o que há de ruim. Não
é preciso ser um praticante de um dos esportes para identificar essa falha que funciona,
segundo alguns praticantes entrevistados na Baixa Pombalina, como um dissuasor do
uso da pista115. O modelo de administração do Parque, por sua vez, é apontado como um
empecilho a fazer as demandas,.
“{entrevistador} E já chegaram a pedir [para fazerem a manutenção]?
{entrevistado BMX1} Nós não sabemos bem porque isto pertece à Parque Expo e à Câmara de Loures e então é sempre um jogo entre eles e então demora muito para chegar a um consenso.” (BMX1)
–
“{entrevistador} E já tentaste fazer algo para resolver [o problema das rachas]?
{entrevistado SKATE4} (...) Não há Câmara
{entrevistador} Não tem?
{entrevistado} Temos mas é Loures e eles estão-se a lixar para esta zona porque esta zona está quase a tornar-se independente de Loures e tá quase a tornar-se Lisboa. E então nós não temos onde nos deslocar. Quem manda aqui mais ou menos é a Parque Expo. A Parque Expo está-se a lixar
{entrevistador} Já tentaram procurá-la?
{entrevistado SKATE4} Não fazem nada” (SKATE4: praticante de skate e morador do Parque, 16 anos aproximadamente, entrevistado no skate park)
Como forma de compensar essa alegada falta de manutenção, alguns utentes
referem ter realizado, em forma de iniciativa coletiva, obras para reformar a pista. A
prática, entretanto, é interdita pela Geurbana, que afirmou, quando questionada, que
obras de reforma já estavam previstas independentemente dos pedidos (MSC,
DCRC/Geurbana, comunicação por e-mail). O mesmo impedimento existe em relação à
instalação de corrimões e outros obstáculos que permitiriam compensar, em parte, a
falta do mobiliário urbano necessário para a prática do estilo street, deixado de fora
quando o skate park seguiu o estilo de pista. Embora tenhamos encontrado um corrimão
e dois obstáculos instalados na pista, eles são resultados de uma luta permanente, uma
vez que já foram arrancados em outras ocasiões, segundo os utilizadores entrevistados.
115 Entrevistamos skaters na Praça da Figueira -- na Baixa Pombalina -- onde a prática de skate faz parte da vida cotidiana
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“{entrevistador} Tem algo aqui que vocês não gostem?
(...)
{entrevistado SKATE5} Uma vez trouxeram cimento. Só para arranjar e metemos algum cimento. Não temos dinheiro e tentamos por obstáculos, como vês
{entrevistado SKATE6} Esse corrimão foi o pessoal que veio aqui pô-lo. Isso se não tivesse preso ao chão... tinham posto ao lixo (...)
{entrevistado SKATE5} Os seguranças da Parque Expo vêm aqui e tiram isso. Isso já aconteceu (…)
{entrevistador} No mesmo dia?
(...)
{entrevistado SKATE6} Ao menos que nos deixassem improvisar
{entrevistador} Mas não podem [improvisar] em qualquer horário do dia?
{entrevistado SKATE6} Não deixam. O mal é que fizeram de dia. Se fizessem à noite se calhar ainda ali estava. Mas como viemos fazer de manhã (...) havia pessoal a fazer jogging. Foram informar a Parque Expo e eles vieram.” (SKATE5: praticante de skate, aproximadamente 20 anos, entrevistado no skate park; SKATE6: praticante de skate, aproximadamente 20 anos, entrevistado no skate park)
–
“{entrevistador} Já chegou a acontecer isso [de impedirem as obras]?
(...)
{entrevistado SKATE4} Pronto, é uma luta entre nós e eles. Nós só queremos nos divertir, porque isto literalmente está ao abandono, ninguém vem aqui renovar isto e se não formos nós não fazem nada e pronto. A Expo também não tem uma Câmara Municipal onde nós possamos nos deslocar, e pronto, é complicado
{entrevistador} E sentes que essa região lhe pertence? Sentes que esse fato de não poder alterar afeta de alguma maneira esse seu senso de pertencimento?
{entrevistado SKATE4} Não porque eu faço na mesma. (...) Tá aqui as coisas [referindo aos obstáculos], e aquilo tá aqui cimentado ao chão. Se eles quiserem vir aí tirar que venham, mas nós voltamos a pôr. É isso. É um bocado chato, não deveria ser assim. Deveria ser: nós nos deslocaríamos para a Câmara, pedíamos para eles tentarem melhorar, esperaríamos. Mas,
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primeiro não há Câmara” (SKATE4, entrevistado no skate park)
A interdição é justificada por AJA, do Departamento de Qualidade do Espaço
Público/Monitorização Urbana da Geurbana, pela existência de uma entidade
competente para gerir o espaço de uso público e pela maior eficiência que a execução
por essa entidade trará para a intervenção.
{entrevistador} (...) alguns me relataram que 'ah, nós já viemos aqui instalar um corrimão mas vem a P. [nome da empresa de vigilância contratada pela Geurbana] e tira. Nós queríamos tapar as rachas mas também não podemos fazer'. Eles são... o residente (sic), ele tem autorização para fazer [intervenç s no espaço público]...?ẽ
{entrevistado} Não. No espaço público, e todo equipamento urbano, tem que ser mexido portanto a quem compete mexer nesse equipamento. Por exemplo, tapar as rachas, [uma] questão pertinente que está no skate park que apresenta...(..). Mas por exemplo não podemos chegar lá e colocar qualquer produto e chegar e tapar as rachas, ali só como solução provisória. As intervenções têm que ser feitas de forma estrutural ou conjuntural de forma a durarem mais tempo do que apenas remendar uns buracos. Senão qualquer pessoa... deixaria de ser necessário até existirem câmaras municipais e coisas do gênero porque cada um tratava do seu cantinho e de seu espaço à sua maneira e obviamente que não. Espaço público compete exclusivamente à nós, ou à Câmara ou a entidades territoriais portanto intervir nesse espaço. Isso até a simples abertura de um pilarete amovível para acesso ao local. É equipamento urbano, público, que compete às entidades mexerem nesse próprio equipamento. (AJA, DQE-MU/Geurbana)
Há, assim, convivência de uma a) prática de domesticação do território, expressa
na colocação do corrimão e dos obstáculos, no tapar das rachas pelos utilizadores do
skate park e na afirmação do praticante de skate SKATE4 que “se eles quiserem vir aí
tirar que venham, mas nós voltamos a pôr” e na do SKATE6 “ao menos que nos
deixassem improvisar”; b) com uma demanda de que um ator externo, institucional,
assuma responsabilidade pelo território, como fica expresso mais claramente em
“deveria ser: nós nos deslocaríamos para a Câmara, pedíamos para eles tentarem
melhorar, esperaríamos” (SKATE4).
A domesticação entretanto, para além de ser vista pelos próprios utilizadores
como uma alternativa à inatividade do ator externo – é um “improviso” (SKATE6) –
encontra resistência por parte do ator externo, expressa na luta permanente entre
vigilantes e utilizadores e no discurso de AJA, da Geurbana, de que “no espaço público,
e todo equipamento urbano, tem que ser mexido portanto a quem compete mexer nesse
equipamento”; enquanto que, por outro lado, a demanda de assunção da
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responsabilidade pelo ator externo, existente entre os utilizadores, é potencializada por
esse ator externo, que encontra nela uma condição para sua própria existência: “Senão
qualquer pessoa... deixaria de ser necessário até existirem câmaras municipais e coisas
do gênero porque cada um tratava do seu cantinho e de seu espaço à sua maneira”,
como diz AJA, ao mesmo tempo reforçando a equiparação da Geurbana, uma empresa,
ao modelo camarário116.
O enfraquecimento da domesticação ao mesmo tempo evita o apagamento
parcial da vigilância e do controle permitida pelo confinamento ao skate park de um
conjunto de ocupações identificadas com a juventude (skate, bmx, patins, graffitismo).
Dito de outra forma: ancorados que estão em um contexto espacial específico, os
praticantes de esportes radicais se sujeitam e são sujeitos à vigilância e ao control que,
como visto, são pretendidos serem totais nos espaços de uso público do Parque das
Nações. A auto-organização com finalidade produtiva (como seja a instalação de um
corrimão) é potencialmente obstante dessa vigilância e controle. Como afirma Giddens
(1986:157), potencialmente obsta o poder disciplinador obtido pelo empacotamento dos
indivíduos em contextos espaço-temporais.
***As análises aqui desenvolvidas sobre o contexto do skate park nos permitem
identificar algumas características do modelo de urbanismo organizador dos espaços de
uso público do Parque das Nações: a) a existência de um processo de inclusão e
exclusão que, em vez de proibir – visto que são praticadas por um público-alvo da
cidade renovada – ancora estruturas de ação lúdicas potencialmente alteradoras do
desenho físico (e assim questionadoras mesmo da propriedade sobre os espaços de uso
público) em um contexto espacial específico; b) ao mesmo tempo, uma resistência à
alteração do desenho físico por meio de auto-organização dos indivíduos com finalidade
produtiva, garantindo a eficácia supervisória. Mais do que contraditórias, essas duas
características nos parecem complementares.
O desempoderamento dos indivíduos no que toca à participação direta na
constituição – e não apenas alteração inintencional – do desenho físico pela proibição da
domesticação (o tapar rachas e instalar obstáculos), em conjunção com o
empoderamento dos mesmos enquanto utilizadores desse território por meio da
institucionalização de ocupações, propõe um ideal tipo de urbanita próximo ao
consumidor pleno que Baptista (2004) delinea: aquele que consome a cidade e se
116 Cf. 3.2 Expo'98: marketing e herança urbanas
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desresponsabiliza por ela. A inclusão do graffitismo obriga, entretanto, a complexificar
essa interpretação.
A tolerância com o graffitismo se trata, sim, da inclusão de uma participação
ativa e intencional na constituição do desenho físico. Essa inclusão entretanto é
rigidamente condicionada, à semelhança do que acontece com outras ocupações que
exploram o recurso social: tem um local específico para ocorrer nos espaços de uso
público e, quando em espaços privados visíveis a partir de espaços de uso público, o
graffiti tem de ser esteticamente adequado ao que a administração da cidade renovada
julga adequado. Assim, é uma participação que, embora não diretamente
institucionalizada, tem uma forma específica a ser respeitada.
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5. Participação
Nos dois capítulos anteriores, analisamos os espaços de uso público do Parque
das Nações a partir de duas perspectivas: a) a da produção do espaço de uso público
como uma ferramenta de competitividade urbana que justificou um modelo de gestão
urbanística de exceção e que leva esse espaço a adquirir algumas funções e
características específicas; e b) a da organização da vida social desse espaço no
cotidiano, que propõe, incluindo e excluindo, formas de ocupação, para garantir a
qualidade em favor do “cidadão em abstracto”. Em ambos os casos, tentamos identificar
a influência dos atores institucionais promotores da reurbanização na produção do
espaço público (entendido agora em sentido amplo). O presente capítulo adota uma
terceira perspectiva: a da participação dos indivíduos na produção desse espaço.
Indicamos, ao tratarmos do modelo administrativo usado para produzir e gerir o
Parque das Nações, sinais de desvalorização da esfera pública institucionalizada no
debate político convencional (tratada como mero recurso para agitação mediática) e do
Poder Público instituicionalizado na gestão camarária (pela retórica da eficiência). Em
seguida, ao analisar a organização das ocupações dos espaços de uso público,
sinalizamos como a participação direta do indivíduo na alteração do espaço físico é algo
impedido no Parque das Nações117. Há entretanto duas maneiras de participação indireta
que nos foram apresentadas pelos representantes da Geurbana e que julgamos
importante analisar aqui: um sistema de reclamações e sugestões e, mais recentemente,
uma versão adaptada do sistema de orçamento participativo que é adotado em Lisboa e
em outras cidades. A análise dessas duas formas nos permite identificar como o
estabelecimento de uma estrutura institucionalizada de esfera pública no que toca à
gestão desse espaço também faz parte da produção e organização dos espaços de uso
público, mesmo quando esse é produzido sobretudo para uso lúdico.
A ideia de que os indivíduos apresentem sugestões e reclamações sobre os
espaços de uso público da cidade é entendida pelos representantes da Geurbana como
uma forma de participação na produção desse espaço. LRo, administrador da Geurbana,
fala em “cidadania activa” para caracterizar como os indivíduos atualmente “defendem
os seus direitos, fazem sugestões e reclamações”. No entender de LRa, responsável pela
Direção de Qualidade e Conceção Urbana, isso é um dos significados de “cidade viva”.
{entrevistador} "Então gostava de saber o que é cidade vida na concepção
117 Cf. 3.2 Expo'98: marketing e herança urbanas e 4.5.2 Skate park
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do arquiteto"
{entrevistado LRa} "A cidade viva é essencialmente o ato de participação do público na construção da própria cidade. Basicamente é isso. A participação a vários niveis, quer ao nível de vivência em si mesmo, quer depois na participação que nós pretendemos fomentar para... contribuírem com ideias, sugestões, inclusivé com reclamações para quenós possamos melhorar todos os dias o nosso trabalho."
Os indivíduos que se relacionam com o Parque, quer sejam residentes,
trabalhadores ou visitantes, todos referidos pelos representantes da Geurbana como
“clientes”, podem submeter pela internet e pelo telefone propostas de alteração do
espaço de uso público. No ano de 2010, foram apresentadas 471 sugestões e
reclamações. O acesso a elas nos foi negado e uma caracterização mais global, sem
definição precisa do ano e dos números, foi apresentada por MSC, do Departamento de
Comunicações e Relação com o Cidadão/Geurbana. Segundo a entrevistada, a maioria é
apresentada por residentes (sendo feitas também por visitantes e trabalhadores) e refere-
se sobretudo a falta de estacionamento. Algumas se referem a questões que não são da
alçada da Geurbana, como falta de escolas, segurança e equipamentos de saúde, e por
isso são desconsideradas. Questionada sobre reclamações relativas às ocupações do
espaço público, MSC cita as praxes (pela sujeira que geram), os arraiais populares
(festas de cariz religioso promovida no mês de Junho em Lisboa) e, questionada sobre
ocupações não conjunturais, refere o uso de bicicleta sobretudo em alta velocidade nos
passeios pedestres, apesar de haver ciclovia.
MSC divide as sugestões e reclamações em dois tipos: as que se referem a
defeitos (falhas no piso dos passeios, por exemplo) e as sugestões propriamente. Essas,
segundo a entrevistada, são pedidos de alteração do desenho original de elementos que,
embora não estejam ruins, “podem melhorar”. Todas as sugestões e reclamações são
analisadas e, caso sejam consideradas adequadas, resultam em intervenções realizadas
pela Geurbana. Entre os critérios de adequação está a necessidade de que a proposta se
refira a um espaço de uso público (e não a um lote privado) e seja viável financeira e
legalmente (as propostas que exigem autorização camarária dependem da aprovação
pela autarquia competente, CMLx ou CMLr). Inexiste, entretanto, o critério da
demanda: a execução de uma empreitada, mesmo que de competência da Geurbana, não
irá depender do número de solicitações, mas sim, exclusivamente, dos crivos
estabelecidos pelos funcionários da Geurbana. Há mesmo uma desvalorização do
caráter coletivo que uma proposta possa ter:
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“{entrevistador} (…) gostaria de saber quais são as principais, a que temas elas (reclamações de 2010) se referem e principalmente as que envolvam o espaço público.?
(…)
{entrevistada} (…) quando vimos que a pessoa tem razão, alteramos. Todas as reclamações que aqui entram abre-se um processo. E todas elas são analisadas, primeiro por mim e depois, obviamente se eu acho que tem fundamento, pelos arquitetos pelos engenheiros. Se acharmos que de fato é de se fazer, faz-se. Às vezes não se faz logo (…) há obras que às vezes são muito dispendiosas que, implicam projeto, (…) há coisas que implicam alterações mesmo e tem que ir projetos a Câmara e são coisas um bocadinho mais complexas nem sempre se faz tão rápido como gostávamos. Mas todas elas são apreciadas e muitas vezes, quando vimos que a pessoa tem razão, faz-se. Basta um, não precisa de ser 20 assinaturas. Basta uma pessoa chamar a atenção, se virmos que a pessoa tem razão, vamos alterar e fazer
{entrevistador} Não é preciso uma votação, não se faz assim uma votação 'olha, temos 40 reclamações sobre este separador A ( …)'
{entrevistada} Se nós acharmos que não, que as pessoas não têm razão, bem podem gritar e podem vir 40 mais 40 mais 40 mais 40 que nós, 'tudo bem'
{entrevistador} 'Não tem como'
{entrevistada} Exatamente, 'não tem como'. Então isso sucede também. As pessoas podem todas dizerem 'que achamos e queremos e queremos e queremos' e [nós] dizermos: 'Não'
{entrevistador} 'Isso não se faz'
{entrevistada} Nós não vamos fazer porque achamos que não faz sentido fazer. Basta uma pessoa para alterarmos também. Portanto, não é o número que nos assusta ou que nos faz fazer. É, depois de estudarmos essa situação, decidirmos que tem ou não fundamento, avançamos e fazemos.” (MSC, DCR/Geurbana)
A segunda forma de participação é o Ideias para um Orçamento (IpO).
Adaptação do modelo de Orçamento Participativo (OD), o IpO foi lançado em 2011 e
destina 80 mil euros à execução de uma empreitada de melhoria do espaço de uso
público do Parque das Nações. O IpO é mencionado por LRo, administrador da
Geurbana, junto com o sistema de recebimento de sugestões e reclamações da Geurbana
e com o acompanhamento do que é publicado em um jornal local como maneira de
medir o pulso das expectativas de residentes e visitantes do Parque.
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"{entrevistador} (...) há uma menção [no Relatório de Gestão e Contas 2010] a manter o espaço público ao nível das expectativas dos visitantes e dos residentes. Em linhas gerais, é possível saber quais são essas expectativas e como a Parque Expo, vamos dizer, mede o pulso delas?
(...)
“{entrevistado}Gostaria de referir (..) uma iniciativa que agora lançamos a pouco tempo que (...) pega um bocadinho naquilo que é a ideia do orçamento participativo (…) mas nós demos-lhe aqui, adaptamos-lhe aqui ao que é a nossa realidade e no fundo é: temos cativado uma verba de 80 mil euros do orçamento do próximo ano para implementar um projeto que no fundo será selecionado pela população. E quando digo população é não só residente, portanto todas as pessoas que neste momento querem apresentar uma sugestão para um projeto sejam eles residentes, visitantes, turistas quem que que seja (...)
“{entrevistador} Esta, este assunto é um que também eu gostava de tratar. Como que surgiu a ideia do, do... de ideias para o orçamento, de uma ideia para o orçamento, da onde veio?
“{entrevistado} Nós aqui procuramos no fundo implementar aquilo que são as melhores práticas. Nós próprios promovemos as melhores práticas, implementamos as melhores práticas que existem a nivel de cidadania e de gestão urbana e a questão do orçamento participativo é uma coisa que já existe há bastante tempo (...) Isso enquadra-se em outra iniciativa que pretendemos, procuramos tentar desenvolver tem a ver com a própria implementação da Agenda 21 local. Portanto são coisas que estão intimamente ligadas (…) Nós já aqui já as fazemos há muito tempo embora não estando sistematizadas de acordo com aquilo que é definido na Agenda 21 local, mas portanto são todos processos que estão a decorrer e nessa medida achamos que era uma ideia interessante, uma iniciativa que iria nos aproximar ainda mais da população e dos cidadãos (...)” (LRo, administrador Geurbana)
Nesse discurso sobre o IpO, parecem-nos importantes dois elementos. O
primeiro é o enquadramento da iniciativa como uma ferramenta de promoção de
cidadania, pelo que a Geurbana, responsável pelo espaço de uso público, propõe uma
forma institucional de espaço público em sentido amplo. O segundo é o fato de o turista
ser chamado a participar. Trata-se, a nosso ver, do estabelecimento de uma maneira
institucional que permite ao indivíduo motilicamente/ludicamente capitalizado
converter esse capital em capacidade de intervenção no espaço de uso público que
visita, empoderando-o não só como consumidor, mas como interventor.
As propostas puderam ser submetidas pela internet e, após avaliação prévia da
Geurbana, as adequadas seriam submetidas a votação online. Das propostas
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apresentadas, 18 foram selecionadas, das quais 15 envolvendo a construção ou
remodelação de equipamentos utilizados para brincar (parques infantis, por exemplo) ou
para práticas de desporto (campo de basquetebol de rua, por exemplo), 1 para a
instalação de horta comunitária, 1 para a instalação de um circuito para passear o cão
(Dogville) e 1 para instalação de painéis fotovoltaicos118. Importa ver duas algumas
características dessa seleção até o momento em que foi possível o acompanhar119.
Em primeiro lugar, houve direcionamento por parte da Geurbana desde a fase de
apresentação das propostas. A administração apresentou a de instalação de painéis
fotovoltaicos (em linha com a preocupação de sustentabilidade ambiental que é
transveral ao projeto de reurbanização) e a de instalação de um circuito para cães, a ser
instalado em um estacionamento sob a Ponte Vasco da Gama, onde segundo LRo
(responsável pela Direção de Qualidade e Conceção Urbana) há uma inadequação entre
o desenho físico e a ocupação que lhe é dada. Segundo MSC, do Departamento de
Comunicação e Relações com o Cidadão, foram dois os objetivos da apresentação das
propostas pela administração: “não só para exemplificar o conceito das propostas como
para a submeter à apreciação da comunidade” (MSC, DCRC/Geurbana, comunicação
por e-mail). Esse direcionamento se expressa também na seleção prévia, e divulgação,
de uma delas (circuito para cães) e de outras três propostas de outros proponentes
(instalação de equipamentos de exercício, de parque infantil e de horta comunitária)
antes do fim do prazo para a apresentação de ideias120 , em meados de julho (o prazo
final era 15 de Agosto)121.
Em segundo lugar, os critérios que embasaram a rejeição prévia de algumas
propostas foram-nos apresentados de maneira genérica, tornando impossível conhecer
quer as propostas, quer os motivos para a não-aceitação.
“As sugestões que não foram consideradas eram propostas que não reuniam as condições descritas no regulamento, como por exemplo propostas para lotes privados, propostas que já foram projetadas e que serão realizadas em breve ou propostas que técnica ou financeiramente não são exequíveis.” (MSC, DCRC/Geurbana, comunicação por e-mail)
(Essa ausência de publicitação das informações é encontrada também no
encerramento, com a justificativa de que tinha uma baixa procura, do Centro de
118 Ver anexo 1 para lista completa119 Concluímos a escrita a 29/09/2011, antes do fim do prazo de votação, em 31 de Dezembro120 (NP, 2011)121 Sobre a proposta de instalação de equipamentos de ginástica e a institucionalização do jogging, cf.
4.2.1 Jogging
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Consultas, um arquivo em que era possível consultar presencialmente informações
sobre o projeto Expo. A prestação de informações ocorre, agora, sob demanda.
Entretanto, como visto, não são atendidas em pleno122.)
***Em conclusão, na cidade renovada para o “cidadão em abstracto”, a produção de
espaços de uso público envolve também a abertura de canais pelos quais indivíduo,
esteja ele no papel de habitante ou de turista nessa cidade, possa participar
indiretamente. Esses canais assumem duas formas: um sistema de reclamações e
sugestões, onde não importa o quanto reclame ou quantos angarie para reforçar a sua
reclamação, e sim que ela condiga com o entendimento da administração sobre o que é
ou não adequado para a cidade renovada; e um sistema de orçamento participativo no
qual a própria administração sugere quais tipos de projetos são os mais adequados e
estabelece um sistema de seleção semelhante ao utilizado no sistema de sugestões e
reclamações: primeiro a adequação (mais do que puramente técnica e econômico-
financeira, julgamos ter deixado claro), depois a legitimação pela maioria. Participar
nesses sistemas, entende a administração do território, é exercer cidadania.
Para além disso, é importante ressaltar como os canais de participação indireta
empoderam (ou pelo menos prometem empoderar) o indivíduo no papel de turista, papel
mais próximo do ideal-tipo de utilizador de cidade delineado por Martinotti (2005).
Assim como o residente, ele também pode apresentar sugestões e reclamações e
apresentar propostas e votar no Ideias para o Orçamento, podendo converter seu capital
lúdico e sua motilidade em capacidade interventiva no processo de produção de espaços
públicos do Parque.
6. Conclusão
Para concluirmos, é útil retomar a questão inicial: como se organiza a vida social
nos espaços públicos do Parque das Nações?
Essa questão partiu de uma observação, sem intenção sistematizante, da vida
cotidiana. Quando nos propusemos a respondê-la sistematicamnete, decidimos por
seguir a primeira orientação que nos foi dada: empreender uma investigação sociológica
122 Além do acesso às propostas do IpO rejeitadas, uma foram-nos negados acessos às seguintes informações relativas ao ano de 2010 (e a anos anteriores): a) lista das 402 de ações desenvolvidas nos espaços urbanos; b) lista de reclamações, dentre as 471 recebidas em 2010, aquelas referentes ao espaço urbano; c) lista de 4171 intervenções extraordinárias realizadas para corrigir situações anômalas; d) lista de iniciativas promovidas nos espaços públicos do Parque das Nações que contaram com o apoio da Geurbana. Foi nos permitido acesso a dois inquéritos usados para caraterizar o perfil de visitantes, moradores e residentes.
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ancorada em uma re-observação, tão exaustiva quanto possível, dessa mesma vida
cotidiana. A essa orientação, somou-se uma segunda: para responder essa questão,
deveríamos olhar para os processos de produção de cidades que também constituem o
meio urbano em, que o dia a dia que nos interessou acontece. Avançamos então em duas
perspectivas, costurando-as.
Na constituição do nosso objeto, decidimo-nos por centrar nos espaços públicos,
já que foi de onde nossa questão partiu. No percurso investigativo, entretanto, fomos
percebendo mais e mais sinais da relevância desses espaços para a compreensão da
cidade em sua dimensão física e social. Os espaços públicos oferecem aos urbanitas
recurso e constrangimento às suas vidas cotidianas, servem como instrumentos centrais
em políticas urbanísticas e representam, na cidade, um lugar por excelência da
igualdade e da diversidade – ainda que ficcionais e incompletas.
Optamos por usar as ideias de estruturas para tentar identificar formas de
ocupação (e de interpretação) desses espaços, e a articulação entre elas. Julgamos ter
conseguido por aí identificar dinâmicas da organização da vida social no Parque que
passamos agora a recordar brevemente.
Esboçamos um conceito analítico que é o de processos de inclusão e exclusão, a
fim de responder à questão inicial (obviamente sujeito a revisões futuras). Esses
processos, que variam em um contínuo que vai da proibição como forma mais
expressiva de exclusão à institucionalização como forma mais expressiva de inclusão,
são uma maneira pela qual a vida cotidiana dos espaços públicos do Parque é
organizada. Por meio desse conceito analítico identificamos os recursos e
constrangimentos para que uma determinada ocupação surgisse, permanecesse ou fosse
apagada do cotidiano do Parque, ainda que ao menos das partes mais frontais desse
cotidiano.
Olhando para as estruturas de ação que identificamos, é possível perceber como
elas propõem uma permanência transitória e ludicizada no território, sendo essas
características determinantes para que as formas de ocupação dos espaços públicos
sejam incluídas ou excluídas, estejam nas frentes ou nos fundos da cidade reurbanizada.
Favorece-se assim uma ambientação lúdica da vida cotidiana nos espaços públicos do
Parque das Nações. Percebemos como essa estruturação está relacionada a uma
estrutura de interpretação dos objetivos de uma cidade ou de um pedaço dela,
interpretação essa materializada nos objetivos do programa de construção e de gestão do
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Parque das Nações: tornar Lisboa mais competitiva internacionalmente por meio da
criação de um território urbano que atraísse uma massa expressiva de visitantes para
usar a cidade temporariamente e, em grande medida, para se distrair.
Mostramos como a estruturação decorrente desse tipo de urbanismo envolve a
potencialização da motilidade dos indivíduos de duas formas: fazendo-os chegar ao
Parque e, uma vez nele, levando-os a se deslocar a pé. E mostramos como essa
pedestrialização vai de par com uma tentativa de garantir que a privacidade-em-
espaços-públicos (Urry e Sheller, 2003) garantida pelos automóveis continue a existir
fora deles, o que justifica uma série de condicionamentos a outras formas de ocupar os
espaços públicos do centro da nova centralidade criada pela reurbanização. Essa é uma
das maneiras pelas quais a estruturação de espaços públicos para os utilizadores de
cidade oferece recursos e constrangimentos não só a esses urbanitas, mas também ao
cotidiano de outros urbanitas que não estão na cidade a passeio (ao menos
prioritariamente); a outras formas de ocupação dos espaços públicos que não sejam se
deslocar ou se distrair. Identificamos, portanto, que há de fato uma organização da
ocupação dos espaços públicos e de que modo ela se dá, em resposta a nossa pergunta
de partida.
Interrogamo-nos então sobre as características da vida social mais alargada que
pudessem estar na base das inclusões e exclusões – exclusões que, em não pouca
medida, configuram-se suaves e apenas suficientes para deslocar uma ocupação ou um
papel indesejado para as periferias da cidade reurbanizada. Interrogamo-nos por que as
exclusões que ajudam a definir a organização da vida social não são aplicadas via de
regra a indivíduos ou papéis, mas a maneiras de se ocupar os espaços públicos. E
mesmo assim, por que algumas maneiras acabam por ser compensadas por alguma
inclusão, embora à distância. E interrogamo-nos por que o Parque não é feito
exclusivamente para os utilizadores da cidade, mas sim para o “cidadão em abstracto”.
Buscamos assim a resposta à nosso questionamento sobre a baixa perceptividade do
controle que permite a organização da ocupação dos espaços públicos.
Percebemos que os espaços que analisamos, por serem públicos no sentido
físico, estão sujeitos à manutenção do princípio igualitário que o público em sentido
amplo – a esfera pública da vida social – exige que seja mantido na vida social. Daí
decorre a baixa perceptividade do controle. A sujeição a essa norma da igualdade se faz
presente tanto no nível da interação não-institucionalizada, como mostramos na
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organização do cotidiano, como no da institucionalizada, como analisamos nos sistemas
de participação na produçào dos espaços públicos. De alguma forma, o IpO parece
tentar resgatar a reurbanização das críticas antidemocráticas de que o projeto Expo foi
alvo quando o governo central concedeu poderes excepcionais à PESA que a permitiram
prescindir da esfera pública para desenvolver a reurbanização.
Em resumo, a análise do caso do Parque das Nações permitiu ver que a
produção de espaços públicos no urbanismo da competitividade também pressupõe a
produção, de certa forma e em outras bases, do espaço público no singular.
***
À época em que redigíamos o presente texto, o Governo Central Português vinha
de anunciar a extinção da Parque Expo, S.A., e a transferência das competências da
getsão urbanística para as câmaras municipais de lisboa e de Loures. Antes disso, na
entrevista com o administrador da Geurbana, LRo, havia a expectativa de que essas
duas autarquias mantivessem o modelo de gestão por empresa mesmo após assumirem
as responsabilidades totais sobre o território.
Acompanhar o desenvolvimento desse processo e, em seguida, analisar como ele
se reflete na forma que o papel da administração (continue ela a cargo de uma empresa
detida pelas câmaras ou passe a ser feita diretamente pelo modelo convencional) influi
na organização da vida cotididana dos espaços públicos se impõe como um dos
principais caminhos futuros a seguir. Outro é a análise da influência que o projeto
urbano iniciado com a Expo e que agora, de certa forma, deve se concluir, influenciou
as políticas adotadas em outras áreas dos tecidos urbanos: nomeadamente, o uso da
promoção da mobilidade e do lazer como forma de resolver os problemas de um
território urbano. Por fim, cabe investigar as consequências da possibilidade de
conversão de capital lúdico e de motilidade em possibilidade de intervenção na
produção dos espaços públicos.
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Anexo 1 – Propostas do Ideia para um Orçamento
Fonte: Site Portal das Nações (acesso em 30/09/2011)
Proposta 1: Dotar o espaço público com equipamentos de exercício
Os equipamentos podem ser agrupados num determinado local – parque de exercícios –, ou distribuídos pelo território, fronteiros ao rio, por forma a criar um circuito de exercício/manutenção. Os equipamentos aqui propostos, de de-sign escandinavo, com linhas simples, não só se integram de uma forma visual-mente agradável nos espaços verdes, como constituíem um óptimo comple-mento às caminhadas, corridas e outras atividades físicas dos utentes do Par-que das Nações. Estes equipamentos podiam ainda ser completados com a disponibilização de uma pista medicalizada, que assenta no conceito “Avalia-te a ti próprio”. Estas pistas têm um circuito onde é possível monitorizar a condi-ção física de cada pessoa, como medir a pressão arterial, o colesterol, o nível de hidratação, avaliar a visão, peso corporal etc.Localizaão: Parque do TejoCusto estimado: € 40 mil
Proposta 2 - Pista de tartan para prática de jogging
O Parque das Nações foi espontaneamente eleito por inúmeras pessoas para praticarem exercício físico. Estes são moradores, ou mesmo pessoas que se deslocam de outras partes da cidade para virem praticar desporto nesta zona. Em nenhum outro parque da cidade isso acontece com tanta afluência. O des-porto mais praticado no Parque das Nações tem sido o jogging. Contudo, este território não oferece as melhores condições para essa prática, uma vez que o piso é maioritariamente constituído de cimento ou pedra. A pista de tartan seria, por isso, um êxito no Parque das Nações, aliando a qualidade do local à quali -dade das técnicas disponíveis, para que os seus utentes tivessem melhor saú-de futura.Localização: Parque do TejoCusto estimado: € 80 mil
Proposta 3 - Parque infantil no cabeço das rolas
Propõe-se colocar um parque infantil no Jardim do Cabeço das Rolas, pois o da zona sul é só para crianças pequenas e aos finais de semana encontra-se sempre sobrelotado. Junto com o parque poderia existir um café/quiosque e bancas, tipo feira de fim de semana com produtos de artesanato, brinquedos, produtos biologicos etc. Este equipamento ajudaria a uma maior utilização do jardim que actualmente se encontra praticamente deserto.Localização: cabeço das rolasCusto estimado: € 30 mil
Proposta 4 - Grande parque infantil no Parque do Tejo
Propõe-se a criação de um grande parque infantil para crianças de todas as
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idades, o que, certamente, irá ao encontro do desejo de muitos moradores do Parque das Nações. Os equipamentos deverão ser diversificados e apropria-dos para crianças de diferentes idades, promovendo um são convívio entre elas. Este parque infantil poderá ficar localizado no Parque do Tejo, constituin-do uma mais valia para o espaço público e tornando aquele espaço ainda mais aprazível para as famílias que frequentam o Parque das Nações.Localização: Parque do TejoCusto estimado: € 50 mil
Proposta 5 - Reformulação do parque infantil existente no Parque do Tejo
O Parque do Tejo é um destino por excelência de muitas familias lisboetas nos finais-de-semana e necessita de um parque infantil ainda melhor apetrechado com equipamentos adequados às crianças que procuram um parque para se divertirem em segurança. Esta proposta propõe dotar o Parque do Tejo de um conjunto de infra-estruturas que permita servir a comunidade local, bem como quem nos visita, reformulando, eventualmente, o parque infantil existente, do-tando-o de mais equipamentos, mais diversificados.Localização: Parque do Tejocusto estimado: € 30 mil
Proposta 6 - Parque infantil no Passeio dos Jacarandás
No Parque das Nações só conheemos dois parques infantis – na área sul e no Parque do Tejo. Há espaço e crianças para mais alguns. Assim, o que propo-mos é que sejam construídos mais parques infantis que melhorem a qualidade da oferta do espaçoo público para as famílias que usufruem o Parque das Na-ções. Propõe-se como local para colocar um parque infantil, o Passeio dos Ja-carandás.Localização: Passeio dos Jacarandáscusto estimado: 30mil €
Proposta 7 - Instalação de elementos lúdicos no Jardim das Musas
Na zona sul do Parque das Nações, existe um pequeno jardim entre o Passeio das Musas e a Rua dos Argonautas que curiosamente é pouco vivido. Parte do problema associado poderá dever-se ao facto de muitos dos moradores com animais, terem por hábito levar os cães a esta zona para fazerem as suas ne-cessidades. Uma das formas de tentar inverter a situação poderá ser a coloca-ção de elementos lúdicos direcionados para as famílias, potenciando assim uma maior permanência de pessoas neste lugar e desenvolvendo sentimentos de apreço que inibam utilizações menos apropriadas. Alguns destes elementos poderão ser objetos de som, visuais, de descoberta ou até mesmo físicos sem contudo ser necessário recorrer a vedações.Localização: Jardim das MusasCusto estimado: 50mil €
Proposta 8 - Parque lúdico educativo
Recuperar um espaço com dimensões generosas que não se encontra aprovei-
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tado, é a proposta que aqui se apresenta. Trata-se do espaço adjacente ao Es-pelho do Tejo e o objectivo é dotar a zona norte de um parque lúdico-educativo como o existente junto ao oceanário. Este tipo de equipamentos tem um carác-ter lúdico e ao mesmo tempo educativo, consistindo em aparelhos que têm uma função pedagógica, que divertem e aguçam os sentidos e a vontade de aprender, experimentando.Localização: Espelho do TejoCusto estimado: € 60 mil
Proposta 9 - Unir o Parque das Nações – criação de um espaço de lazer
O troço do Passeio dos Heróis do Mar que se situa por baixo da ponte Vasco da Gama constitui um caminho em que tanto o passeio do lado direito como do lado esquerdo são esguios e o ambiente circundante não é nada agradável, o que contrasta com o resto do Parque das Nações. De um lado podemos ver elementos de tratamento da ETAR e do outro muito junto à estrada, uma rede que circunda a DGV. Propõe-se a relocalização dos limites da DGV. Recuar 50 m a rede que se situa quase junto à estrada, do Passeio dos Heróis do Mar, po-dendo o passeio ser alargado e ser erguido um pequeno jardim, direccionado para algumas actividades como, por exemplo, a prática de escalada.Localização: zona norteCusto estimado: € 50 mil
Proposta 10 - Circuitos de desporto, saúde e bem estar
Propomos dois percursos para a prática de exercício físico em contacto pleno com a natureza, autênticos ginásios ao ar livre. Instalados em arejadas zonas verdes onde se respira ar puro, promovendo um estilo de vida activo e saudá-vel, pleno de vitalidade, vigor e energia. A norte, no Parque do Tejo, o maior dos percursos (uma vintena de estações) aproveita as singularidades do perí-metro e o 2º a Sul, no Jardim Cabeço das Rolas (máximo 14 estações), será um foco para atrair novos utentes ao espaço por ora desaproveitado. Os apare-lhos seleccionados, predominantemente em madeira, foram eleitos devido à eficácia na integração em espaços de natureza; a serem produzidos em Portu-gal e com matéria-prima nacional; à garantia do fabricante de durabilidade; ao baixo índice de manutenção; com Pegada Ecológica diminuta e ao seu custo moderado. A flexibilidade, a força, a resistência, a elasticidade, o equilíbrio e a postura são elementos desenvolvidos nestes exercícios, trabalhando os mem-bros superiores e inferiores, as articulações e o sistema vascular.Localização: Parque do Tejo/Cabeço das RolasCusto estimado: € 25 mil
Proposta 11 – Campos de basquetebol/futebol de rua – 1
Propõe-se a criação de vários espaços para a prática de basquetebol / futebol de rua, que permitam aos jovens sair de casa para ir jogar com os amigos, pro-porcionando-lhes um espaço barato para a prática desportiva. O Parque das Nações dispõe de diversas áreas que poderão ser utilizadas para este efeito e constituirão, certamente, uma mais valia para este território. Estes espaços rá-pidamente se tornam populares e têm um efeito muito positivo na comunidade,
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promovendo a prática de uma convivência saudável entre os jovens.Localização: Zona norteCusto estimado: € 20 mil
Proposta 12 - Campos de basquetebol/futebol de rua – 2
Propõe-se a colocação informal de tabelas de basquetebol e balizas de futebol sempre que possível em toda a área do Parque das Nações. Estes espaços rá-pidamente se tornam populares e têm um efeito muito positivo na comunidade, promovendo a prática de uma convivência saudável entre os mais jovens. Uma das sugestões que aqui deixamos é a de localizar um destes equipamentos na área adjacente à Marina.Localização: zona sulCusto estimado: € 15 mil
Proposta 13 - Campos de basquetebol/futebol de rua – 3
Tendo em conta que o espaço destinado à 2.ª fase da obra da Escola Básica do Parque das Nações se encontra por agora expectante, propõe-se que o mesmo possa ser ocupado por equipamentos simples de desporto, recreio e la-zer, tais como tabelas de basquetebol, balizas, bases para skate e bicicletas etc. Antecipando assim aquela que será a ocupação futura de parte deste es-paço, este poderá ser um contributo para que o mesmo se comece a constituir, desde já, como um espaço de convívio aberto à comunidade.Localização: Parque do TejoCusto estimado: € 30 mil
Proposta 14 - Construção de ringue
Considerando que a densidade e conformação urbana da zona sul do Parque das Nações não permite a existência de muitos espaços de descompressão e lazer, como se verifica na zona norte com o parque urbano, parece pertinente procurar para esta zona uma solução utilizada com frequência nos anos 70 do século XX neste tipo de malha urbana, como são os ringues. Este tipo de infra-estruturas, tal como os parques infantis, têm, entre outras vantagens, um papel essencial na consolidação de uma vida de bairro. É nestes lugares de encontro informal que se sedimentam relações de vizinhança e estabelecem amizades, principalmente entre os mais novos. O lugar ideal para este equipamento, pare-ce ser o espaço contíguo ao parque infantil da zona sul, junto à Marina. Este lu-gar, além de ter disponibilidade de espaço, permite conjugar e articular equipa-mentos para faixas etárias distintas.Localização: Junto à MarinaCusto estimado: € 60 mil
Proposta 15 - Dogville – parque para cães (proposta da Geurbana)
As cidades oferecem cada vez menos qualidade de vida aos cães. É possível criar um produto inovador em Portugal e contribuir para a valorização de uma área desqualificada do Parque das Nações. Propõe-se a construção de um “Parque para cães”, primeiro do género em Portugal. “Fique e brinque com o
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seu cão” – este é o lema que se pretende espalhar. Com o intuito de garantir a sustentabilidade do projeto, considera-se importante que, para além de um es-paço vedado de parque de recreio, exista também um conjunto de serviços complementares destinados aos animais e aos seus donos, tais como lojas de animais, veterinário, um Beauty Dog Salon, o Dogville Club, um Dog Design Hotel, um café/bar com esplanada e um espaço de Workshops destinado à for-mação de cães e donos. Na 1ª Fase serão construídos a zona de jardim, mobi-liário urbano e infra-estruturas e na 2ª Fase os edifícios de apoio e áreas envol-ventes aos edifícios.Localização: Parque de estacionamento da ponteCusto estimado: € 80 mil
Proposta 16 - Centro hípico
Criar um Centro Hípico na zona norte do Parque das Nações, proporcionando uma oferta diversificada de atividades relativas à prática equestre, em modelo aberto a todo o público e não limitado a sócios e contribuindo para alargar a oferta de lazer às cidades de Lisboa e Loures, com as seguintes fases de de-senvolvimento:Fase 0 – Construção dos principais serviços comuns, boxes amovíveis, divul-gação, sensibilização para a prática da equitação, seleção de parceiros para as unidades de negócio.Fase 1 – Escola, estabulação de cavalos de particulares, casas de tratadores, bar, loja.Fase 2 – Novos parceiros, novas melhorias, completar o plano geral, picadeiro coberto, parque de atrelados, enfermaria, ferração, guia elétrica, espaço multiu-so.Localização: Parque de estacionamento da ponteCusto estimado: € 70 mil
Proposta 17 - Painéis fotovoltaicos (proposta da Geurbana)
Após a tomada de consciência de que os combustíveis fósseis não são inesgo-táveis, e dos impactes ambientais decorrentes da sua utilização, a procura e aperfeiçoamento da utilização de fontes de energia alternativas tem registado uma evolução assinalável. O Sol é uma fonte de energia inesgotável, de alto potencial, razão pela qual a sua exploração, nomeadamente através de painéis fotovoltaicos, tem assistido, nos anos mais recentes, a um crescimento signifi-cativo. Propõe-se assim a instalação de um sistema de microgeração no Par-que das Nações recorrendo à utilização de painéis fotovoltaicos (a instalar em local a definir) por forma a produzir e fornecer eletricidade a equipamento(s) co-letivo(s) para satisfazer(em) as necessidades próprias e, eventualmente, ven-der algum excedente à rede de energia. Desta forma, pode-se obter uma redu-ção significativa no valor da fatura da eletricidade mas também rentabilizar o in-vestimento com a venda de energia à rede e a um valor bastante mais elevado do que o valor de compra. De facto, estima-se que o investimento para uma produção anual de 5.680 kWh não deverá ultrapassar os cerca de 20.000 €, va-lor este que terá sido totalmente recuperado ao fim de sete a oito anos.Este sistema de microgeração terá, ainda, uma função pedagógica e de demonstra-ção de boas praticas ambientais.
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Localização a definirSem custo estimado
Proposta 18 - Hortas comunitárias no parque das nações
Criação de uma zona com hortas comunitárias para a comunidade, com ta-lhões que podem ser arrendados ao ano. Nesse espaço será necessário forne-cer água e outros materiais a decidir (por exemplo material agrícola para os uti-lizadores usarem), podendo também existir uma zona de lazer nesse espaço com café, espaço para as crianças brincarem e até terem dentro desse espaço uma zona reservada a workshops, cursos e tudo o que tenha a ver com a te-mática do ambiente e horticultura. Esta iniciativa teria muito interesse público e comunitário visto esta ser uma prática que tem aumentado e se verifica um pouco por todo o país, promovida por instituições e Câmaras Municipais. Além disso criará um espaço de lazer, encontro para a comunidade local. É um proje-to sustentável e favorável ao ambiente.Localização: Junto ao Passeio do RódanoCusto estimado: € 75 mil
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