investigação acerca da possibilidade de uma estética em karl marx
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INVESTIGAO ACERCA DA
POSSIBILIDADE DE UMA
ESTTICA EM KARL MARX
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Ricardo Luis Reiter
INVESTIGAO ACERCA DA
POSSIBILIDADE DE UMA
ESTTICA EM KARL MARX
Este livro um trabalho de concluso de
curso de graduao apresentado Faculdade de
Filosofia e Cincias Humanas da Pontifcia
Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), como requisito parcial para obteno
do grau de Bacharel em Filosofia. Aprovado
pela banca examinadora, composta pelos
professores Dr. Ronel Alberti da Rosa, Dr.
Norman Roland Madarasz e Ms. Eduardo Silva
Ribeiro no segundo semestre de 2013.
Porto Alegre
2013
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Direo editorial e diagramao: Lucas Fontella Margoni
www.editorafi.com
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
REITER, Ricardo Luis
Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
[recurso eletrnico] / Ricardo Luis Reiter. -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2013.
134 p.
ISBN - 978-85-66923-17-9
Disponvel em:
http://www.editorafi.com/2013/12/investigacao-acerca-da-possibilidade-de.html
1. Esttica. 2. Karl Marx 3. Alienao 4. Arte. 5. Trabalho. I.
Ttulo.
CDD-193
ndices para catlogo sistemtico:
1. Filosofia Alem 193
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Investigao acerca da possibilidade
de uma Esttica em Karl Marx
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Dedico esse trabalho aos meus pais Dlson Luis
Reiter e Marlize Schorr Reiter, e a minha irm Vanessa
Cristine Reiter. Em todos os momentos sempre pude
encontrar conforto na minha famlia.
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AGRADECIMENTOS
Durante todo processo de formao acadmica, tive
grandes amigos que me apoiaram. Nesse momento desejo
agradecer aqueles que sempre estiveram presentes.
Agradeo, em primeiro lugar a Deus, pois sem ele
impossvel concluir com xito qualquer projeto.
Agradeo minha famlia, pelo apoio, incentivo e
respeito pela minha deciso de cursar filosofia. O amparo da
famlia sempre foi essencial na minha vida.
Agradeo a minha esposa, Letcia, por ter
permanecido ao meu lado nas madrugadas em que digitava
este trabalho. Tambm cabe a ela parte dos crditos pela
escolha do autor que aqui foi explorado neste trabalho.
Muito obrigado.
Agradeo ao Dr. Ronel por ter me orientado to
bem nesse projeto. Suas observaes foram extremamente
pontuais e claras, o facilitou a percepo do que deveria ser
melhorado no presente trabalho. Mas ao mesmo tempo, a
suas orientaes sempre me permitiram toda a liberdade
como escritor, deixando ao meu critrio escolher os aspectos
a serem contemplados e apresentados. Foi um prazer
trabalhar com o senhor.
Agradeo tambm ao Dr. Srgio Sardi pela
disponibilidade em conduzir as cadeiras da monografia.
Acredito que toda a turma concordar comigo quando digo
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que sua pacincia e seu incentivo foram fundamentais no
processo de elaborao e escrita durante esse ano que
dedicamos-nos aos nossos trabalhos. Estou grato pela sua
ajuda.
Agradeo a coordenadora do Projeto Ao Rua do
qual fao parte, Ana Paula, e no nome dela agradeo a toda a
equipe. A pacincia e a alegria de vocs foram de extrema
importncia para que eu pudesse suportar toda a teno que
surge na hora da elaborao de um trabalho como esse.
Estou grato por ter colegas to especiais como vocs.
Agradeo tambm a duas pessoas que considero
especiais: Elenice e Juliana. A convivncia e parceria com
vocs tornou esses dias mais animados. Fico grato por ter
pessoas como vocs comigo.
Agradeo ao Dr. Norman Roland Madarasz que
prontificou-se a participar da banca de aprovao desse
trabalho e que foi um dos melhores professores com que
pude conviver durante o perodo acadmico. Nossas
conversas sobre Marx foram de grande valia na elaborao
desse projeto e para a formao acadmica. Estou grato por
ter tido o senhor como professor.
Por fim, e no menos importante, agradeo ao Me.
Eduardo Ribeiro, que alm de ser um grande amigo aceitou
participar da banca de defesa desse trabalho. Com um
simples gesto de desapegar-se de um livro, ele conseguiu dar
novos rumos este trabalho. fantstico ter amigos que
preocupam-se conosco. Muito Obrigado.
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"A arte comea onde a imitao acaba." (Oscar Wilde)
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SUMRIO
1 INTRODUO .................................................. 15
2 DEFININDO CONCEITOS ............................. 18
2.1 O CONCEITO DE HOMEM ...................................20
2.1.1 A influncia de Hegel para o pensamento de Marx ...24
2.1.2 A influncia de Feuerbach no pensamento de Marx ...26
2.1.3 O homem para Marx ...............................................31
2.2 O CONCEITO DE ALIENAO ..........................33
2.3 O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE EM MARX .....................................................................................40
3 O ASPECTO ESTTICO DA ALIENAO .... 47
3.1 ARTE E REALISMO ..................................................49
3.1.1 Os falsos Realismos ..................................................54
3.1.2 O Realismo de Marx e suas Implicaes ...................57
3.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DO TRABALHO ..58
3.2.1 O trabalho e o desejo de criao do homem .................63
3.3 O ARTISTA ..................................................................69
3.3.1 O sentidos humanos ..................................................72
3.4 ARTE E ALIENAO ..............................................76
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3.4.1 Produo material X Produo artstica ....................77
4 A PRODUO ESTTICA E A SOCIEDADE CAPITALISTA ........................................................... 88
4.1.1 A atividade artstica e o trabalho assalariado ............99
4.2 A PRODUO NO CAPITALISMO E A LIBERDADE DE CRIAO ......................................... 105
4.2.1 O desenvolvimento da arte nas condies hostis do Capitalismo ........................................................................ 114
5 PRODUO ARTSTICA E CONSUMO HUMANO ................................................................ 119
5.1 CRIAO, GOZO ESTTICO E APROPRIAO HUMANA .......................................... 126
6 CONSIDERAES FINAIS ........................... 130
REFERNCIAS ....................................................... 131
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15 Ricardo Luis Reiter
1 INTRODUO
Todo trabalho que tem como assunto algum ponto
especfico do projeto filosfico apresentado por Karl Marx
se depara com o mesmo problema: onde comear? Sendo
assim, este trabalho no poderia ser diferente. Desde o
momento em que foi definido que a monografia se
debruaria sobre a investigao acerca da possibilidade de
esttica em Marx e como ela se apresenta, surgiu a mesma
dvida fundamental: por onde comear?
Marx no escreveu um tratado sobre esttica. Todo
o projeto filosfico de Marx, porm, apresenta aspectos
relevantes ao seu pensamento esttico. Isso fez com que
suas principais obras estivessem recheadas de passagens
sobre o seu pensamento esttico. Desde seus Manuscritos
Econmico-Filosficos at sua obra mais madura, O
Capital, encontram-se proposies, ideias e aspectos que
fundamentam claramente que existe, em Marx, uma
concepo prpria de esttica. A recente publicao dos
Grundrisse vem acrescentar ainda mais material literrio
grande bagagem deixada por Marx.
Marx, ao iniciar seus estudos nos Manuscritos
Econmico-Filosficos, no buscava nada relacionado
esttica. Ao contrrio, seu projeto era encontrar a
humanidade do homem. Humanidade essa que se teria
perdido no momento em que o homem foi forado a se
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16 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
alienar pela sua sobrevivncia. Conforme Vzquez,
Era o homem, ou, mais exatamente, o homem social,
concreto, que - nas condies econmicas e histricas
prprias da sociedade capitalista - se desfaz, se mutila ou
nega a si prprio. Essa mutilao do homem, ou perda
do humano, se d precisamente no trabalho, na
produo material, isto , na esfera na qual o homem
deveria se afirmar como tal e que tornou possvel
prpria criao esttica. E, buscando o humano, o
humano perdido, Marx encontra o esttico como um
reduto da verdadeira existncia humana; no apenas
como um seu reduto, mas como esfera essencial.
(VZQUEZ, 2011, p. 45)
Assim, era o homem o objeto especfico da arte,
apesar de nem sempre ser o objeto a ser representado. A
arte devolvia ao homem algo de essencial que ele perdeu. A
esttica passaria a ser o ltimo reduto do humano ao qual o
homem tem acesso. Assim, a arte seria uma forma de
conhecimento; no de conhecimento cientfico, mas sim de
um conhecimento humano sobre objetos humanizados1.
Diante desse contexto, percebe-se que o aspecto
esttico seria muito mais relevante em Marx do que poderia
1 Para Fischer, a arte a unio do homem com o todo, ou seja, meio de satisfazer o desejo do homem de pertencer ao todo: (...) o desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele mais do que um individuo. Sente que s pode atingir a plenitude se se apoderar das experincias alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu inclui aquilo de que a humanidade, como um todo, capaz. A arte o meio indispensvel para essa unio do indivduo como o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associao, para a circulao de experincias e ideias. (FISCHER, 1976, p. 13)
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17 Ricardo Luis Reiter
sugerir uma leitura rpida e descuidada de suas obras.
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18 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
2 DEFININDO CONCEITOS
A filosofia de Marx apresenta muitos conceitos que
j esto presentes dentro da filosofia clssica. A novidade
desses conceitos, entretanto, est na nova leitura deles
apresentada pelo autor de O Capital. Assim, conceitos
como homem, alienao e espiritualidade, que sero
apresentados a seguir, recebem uma nova roupagem
prpria da filosofia marxista.
Marx foi um filsofo que estava em contato com as
vrias correntes vigentes em sua poca. Assim, sua filosofia
acabou sendo influenciada principalmente por Hegel,
Feuerbach, Schiller e os economistas, principalmente
Ricardo e Mill. A filosofia de Marx recebe essa influncia,
mas ao mesmo tempo apresenta crticas, observaes e
novas interpretaes aos conceitos adotados.
Dessa forma, surge a necessidade de uma breve
apresentao de alguns conceitos que esto presentes tanto
na filosofia tradicional como na esttica marxista, contudo
sob prismas diferentes. Quando Marx afirma que o
trabalho humaniza o homem, por exemplo, preciso ter
presente o que Marx entende por homem. O projeto
esttico de Marx, como a prpria filosofia marxista, uma
filosofia que se prope a reconstruir toda a filosofia a partir
de um novo fundamento, a saber: o homem.
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19 Ricardo Luis Reiter
Eagleton escreve que a filosofia, principalmente a
esttica, at Marx, havia sido reduzido a uma anesttica.
Seria preciso reconstruir tudo, partindo de um novo
pressuposto.
O materialismo implcito da esttica poder ainda ser
redimido, mas para descarreg-lo do peso do idealismo
que o verga, necessria uma revoluo do pensamento
que faa de sua base o prprio corpo, e no um tipo de
razo que luta por um espao prprio. (EAGLETON,
1990, p. 146)
O primeiro filsofo que se encarregou de
apresentar uma nova filosofia que partisse da materialidade,
do corpo, foi Marx. O materialismo de Marx no se limita a
apresentar uma nova esttica; at porque a esttica apenas
um dos temas da filosofia. Assim, ao reescrever a esttica a
partir do corpo, Marx acaba por reescrever toda a filosofia,
ou pelo menos toda a histria da filosofia.
A histria que o marxismo tem para contar um relato
classicamente hubrstico de como o corpo humano,
atravs de suas extenses que ns chamamos de
sociedade e tecnologia, chega a superar a si mesmo e a
levar a si mesmo at o nada, reduzindo sua prpria
riqueza sensvel a uma cifra no ato de converter o
mundo em um rgo de seu corpo. (EAGLETON,
1990, p. 147)
Nas palavras de Marx, "a histria de todas as
sociedades que j existiram a histria de lutas de classe"
(MARX; ENGELS, 1998, p. 9). Essa a histria que Marx
apresenta. Ela vai, entretanto, muito alm das lutas de
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20 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
classe. dentro desse processo histrico que o homem se
desenvolve e se conhece. A histria das lutas de classe
acaba sendo a prpria histria do homem no mundo
2.1 O CONCEITO DE HOMEM
Dentro da filosofia de Marx, um dos conceitos
fundamentais, e com significado prprio, o conceito de
homem. O homem marxista bem diferente do homem
clssico e do homem estudado pela tradio filosfica.
Marx adota um conceito de homem social, presente no
mundo dentro de um processo histrico. Nas palavras de
Fromm,
Marx no acreditava, como o fazem muitos socilogos e
psiclogos contemporneos, que houvesse algo assim
como uma natureza do homem, que este ao nascer seja
como uma folha de papel branco na qual a cultura
escreve seu texto. Bem ao contrrio desse relativismo
sociolgico, Marx partiu da ideia de que o homem como
homem uma entidade identificvel e verificvel,
podendo der definido como homem no apenas
biolgica, anatmica e fisiologicamente, mas tambm
psicologicamente. (FROMM, 1962, p. 34)
Para Erich Fromm, Marx no concebia o homem a
partir das mesmas premissas daqueles que o antecederam,
pois criticava tanto o Idealismo quanto o Materialismo, por
ambos serem abstratos demais. De fato, nem o
Materialismo tradicional e nem o Idealismo consideraram o
ser humano como ser histrico-social.
Marx combateu o materialismo mecnico, burgus, o
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21 Ricardo Luis Reiter
materialismo abstrato da cincia natural, que exclua a
Histria e seus processos, e para seu lugar advogou o
que denominou, em Manuscritos Econmicos e
Filosficos, naturalismo ou humanismo [que]
diferente tanto do Idealismo quanto do materialismo e,
ao mesmo tempo, constitui a verdade que os unifica.
De fato, Marx nunca empregou as expresses
materialismo histrico ou materialismo dialtico; ele
falou isso sim, de seu prprio mtodo dialtico, em
contraste como de Hegel, e de sua base materialista,
pelo que se referia simplesmente s condies
fundamentais da vida humana. (FROMM, 1962, p. 20)
Marx trouxe para sua filosofia o aspecto histrico-
social, que havia sido ignorado por Hegel e, depois, por
Feuerbach. Ele, Marx, apresentava, assim, uma nova
concepo de Materialismo, um materialismo com razes
histricas. Essa nova interpretao do Materialismo,
contudo, trazia valores que j haviam sido introduzidos por
Feuerbach, principalmente a valorizao do homem sobre a
Ideia.
A diferena do Materialismo histrico para o
Materialismo que Marx se propusera assumir pode ser
encontrada nas Teses sobre Feuerbach, escritas pelo
prprio Marx:
O principal defeito de todo o materialismo existente at
agora - o de Feuerbach includo - que o objeto
[Gegenstand], a realidade, o sensvel, s apreendido
sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplao;
mas no como atividade humana sensvel, como prtica,
no subjetivamente. Da decorre que o lado ativo, em
oposio ao materialismo, foi desenvolvido pelo
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22 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
Idealismo - mas apenas de modo abstrato, pois
naturalmente o Idealismo no conhece a atividade real,
sensvel, como tal. Feuerbach quer objetos sensveis
[sinnliche Objekte] efetivamente diferenciados dos
objetos do pensamento; mas ele no apreende a prpria
atividade humana como atividade objetiva
[gegenstndliche Ttigkeit]. Razo pela qual ele enxerga,
na Essncia do cristianismo, apenas o comportamento
terico como autenticamente humano, enquanto a
prtica aprendida e fixada apenas em sua forma de
manifestao judaica-suja. Ele no entende, por isso, o
significado da atividade revolucionria, prtico-
crtica. (MARX; ENGELS, 2007, p. 537)
Em outra passagem, Marx faz uma crtica direta a
Hegel e filosofia alem, por ter adotado o sistema
hegeliano. Sua crtica refere-se falta do aspecto material
na filosofia alem.
Totalmente ao contrrio da filosofia alem, que desce do
cu a terra, aqui se eleva da terra ao cu. Quer dizer, no
se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam tampouco dos homens pensados,
imaginados e representados para, a partir da, chegar aos
homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente
ativos e, a partir de seu processo de vida real, expe-se
tambm o desenvolvimento dos reflexos ideolgicos e
dos ecos desse processo de vida. Tambm as formaes
nebulosas na cabea dos homens so sublimaes
necessrias de seu processo de vida material, processo
empiricamente constatvel e ligado a pressupostos
materiais. A moral, a religio, a metafsica e qualquer
outra ideologia, bem como as formas de conscincia a
elas correspondentes, so privadas, aqui, da aparncia de
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23 Ricardo Luis Reiter
autonomia que at ento possuam. No tem histria,
nem desenvolvimento; mas os homens, ao
desenvolverem sua produo e seu intercmbio
materiais, transformam tambm, com esta sua realidade,
seu pensar e os produtos de seu pensar. No a
conscincia que determina a vida, mas a vida que
determina a conscincia. No primeiro modo de
considerar as coisas, parte-se da conscincia como
indivduo vivo; no segundo, que corresponde vida real,
parte-se dos prprios indivduos reais, vivos, e se
considera a conscincia apenas como sua conscincia.
(MARX; ENGELS, 2007, p. 94)
Uma das principais diferenas entre Marx e
Feuerbach (isto ser retomado novamente adiante) o fato
de Marx ir alm de Feuerbach na crtica a Hegel e
filosofia alem. A novidade apresentada por Marx estava
justamente nessa associao do aspecto histrico social ao
conceito de homem.
Nogare, em um de seus estudos sobre antropologia
filosfica, afirma que os filsofos que mais influenciaram o
pensamento de Marx foram Hegel e Feurbach. Cada um
dos autores forneceu aspectos relevantes para a formulao
de conceitos centrais dentro da filosofia de Marx.
Engels e Marx reconheceram essa influncia
recebida dos dois filsofos. Mas, ao mesmo tempo
ressaltam o quanto acabaram por se distanciar deles. Esse
distanciamento deu-se muito por causa da apropriao
prpria e do amadurecimento do pensamento de Marx.
Apesar de aceitar aspectos da filosofia, tanto de Hegel
quanto de Feurbach, Marx acaba por transcend-la e
resignificar tais aspectos, acrescentando aquilo que ele traz
de novo.
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24 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
2.1.1 A influncia de Hegel para o pensamento de
Marx
De Hegel, Marx recebe principalmente o conceito
de dialtica. Marx adota esse conceito, mas o adapta
conforme sua filosofia.
Nogare apresenta o significado histrico de dialtica
como um termo que significa conversar, dialogar, dizer um
para o outro. Esse sentido de dialtica perdurou desde a
filosofia grega, vale lembrar os dilogos de Scrates nos
livros de Plato, at a Idade Mdia, onde ela acabou tendo
seu sentido ampliado, abrangendo a lgica, e passando a
significar um dilogo, segundo certas normas. Na filosofia
moderna, Hegel apresenta a dialtica como sendo o
movimento de uma tese que criticada por uma anttese,
gerando uma sntese. Essa, por sua vez ser uma nova tese
que repetir todo o movimento2. (NOGARE, 1990).
Marx no aceita a formulao hegeliana de dialtica,
apesar de ter adotado o conceito dele. No Posfcio da
segunda edio de O Capital, ele apresenta sua prpria
2 Nogare apresenta a sntese do conceito hegeliano de dialtica como um eterno dilogo entre tese, anttese e sntese: A dialtica hegeliana mantm da dialtica antiga o sentido de contradio, que est implcito no dilogo. Hegel, porem, v essa contradio, no somente nas palavras dos interlocutores, mas na realidade universal e consequentemente nas ideias, que constituem para ele a realidade (todo o real racional, todo racional real). A realidade - e a ideia que a constitui - pelo fato de resultar de elementos contraditrios um eterno dilogo entre: Tese (afirmao), Anttese (negao), donde se passa necessariamente a Sntese (negao da negao). A sntese por sua vez torna-se tese de uma sucessiva trade. Esta perene colocao da contradio e sua resoluo chama Hegel de dialtica. Exemplo: a trade fundamental em Hegel : tese: ser, anttese: no-ser, sntese: devir. Outro exemplo: tese: alma, anttese: corpo, sntese: o homem, esprito encarnado. (NOGARE, 1990, p. 84)
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25 Ricardo Luis Reiter
definio de dialtica, apontando as principais diferenas,
ou crticas definio hegeliana.
Meu mtodo dialtico, por seu fundamento, difere do
mtodo hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para
Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma
em sujeito autnomo sob o nome de ideia - o criador
do real, e o real apenas uma manifestao externa. Para
mim, ao contrrio, o ideal no mais do que o material
transposto para a cabea do ser humano e por ela
interpretado.
(...) A mistificao por que passa a dialtica nas mos de
Hegel no o impediu de ser o primeiro a apresentar suas
formas gerais de movimento, de maneira ampla e
consciente. Em Hegel, a dialtica est de cabea para
baixo. necessrio p-la de cabea para cima, a fim de
descobrir a substncia racional dentro do invlucro
mstico. (MARX, 2006, p. 29)
Surge aqui a grande diferena, segundo Nogare,
entre Hegel e Marx no que diz respeito dialtica: para
Hegel, a realidade originria e, portanto, fundamental, o
esprito (ideia). A dialtica, em Hegel, a prpria vida e
desenvolvimento da ideia, e mtodo para a compreenso
dessa vida e desenvolvimento. J em Marx, a realidade
originria e fundamental no a ideia e sim a matria. Por
isso, ele afirma que seu processo oposto ao de Hegel. Em
Marx, a dialtica o modo de desenvolvimento dessa
realidade que origina da matria e tambm o mtodo para a
compreenso de todo esse processo, que no fundo um
processo histrico.
Vale citar a definio de homem em Hegel
elaborada por Lima Vaz:
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26 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
A concepo hegeliana do homem articula-se, assim,
segundo um ritmo dialtico ternrio que Poe em
evidncia o carter subjetivo do Esprito, ou seja, sua
negatividade essencial que lhe permite realizar-se como
sujeito efetivamente real, ou seja, em sua individualidade
efetiva. , pois, o homem efetivo (der wirkliche
Mensch) que se constitui por meio desse movimento
dialtico que, em seu ritmo tridico, pode ser
considerado uma tentativa de superao do dualismo
corpo-alma. A resposta questo kantiana O que o
homem? , pois, ao mesmo tempo uma exposio
(Darstellung) dos momentos constitutivos do ser do
homem e do movimento dialtico de seu tornar-se
homem (das Werden des konkreten Menschen) segundo
os nveis de sua realidade, ou seja, segundo a matria ou
o ser do homem, objeto da Antropologia, segundo a
forma ou o operar do homem, objeto da
Fenomenologia, e segundo a figura ou realizao do
homem, objeto da Psicologia. (VAZ, 2001, p. 124)
2.1.2 A influncia de Feuerbach no pensamento de
Marx
Segundo Nogare, Feuerbach legou a Marx
preocupao para com a prioridade da matria sobre o
esprito e a antropologia da religio. Apesar de esses
conceitos serem fundamentais em Marx, eles passaram por
uma correo e receberam novas propriedades (NOGARE,
1990).
Lima Vaz ao escrever sobre o papel de Feuerbach
na histria da filosofia apresenta que
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27 Ricardo Luis Reiter
A posio de L. Feuerbach, na histria da filosofia ,
tipicamente, uma posio intermediria ou de transio
entre os grandes sistemas do Idealismo Alemo (...) de
uma parte e, de outra, o materialismo histrico de Marx
e o materialismo cientificista da segunda metade do
sculo XIX. Essa posio intermediria de Feuerbach j
fora realada por F. Engels, e ela se caracteriza
justamente pela inflexo antropolgica que Feuerbach
imprime a algumas categorias herdadas por Hegel.
(VAZ, 2001, p. 125-126)
Segundo Nogare, o grande mrito de Feuerbach foi
desafiar Hegel num cenrio em que a filosofia hegeliana
havia se tornado a filosofia oficial da Alemanha, quase
como uma religio do Estado. De fato, aps a morte de
Hegel, a sua filosofia passou a ter prestigio a ponto de ou o
filsofo ter de ser hegeliano ou, caso contrrio, ser
considerado um brbaro idiota. Hegel era como o sol em
torno do qual giravam dependentes todas as outras teorias.
E em meio a esse contexto que surge Feuerbach, aluno de
Hegel, dizendo que seu mestre estava sem razo
(NOGARE, 1990).
Nogare afirma que, para Marx e Engels, o grande
mrito de Feuerbach foi acabar com a adorao hegeliana e
com seu Idealismo, trazendo de volta o materialismo,
proporcionando uma viso realista do mundo. A inverso
dialtica realizada por Marx, do Idealismo ao Materialismo,
tem suas razes na crtica de Feuerbach a Hegel.
Outro aspecto relevante da filosofia feuerbachiana e
que foi assumido por Marx referente religio
antropolgica apresentada por Feuerbach3.
3 Nogare faz um comentrio sobre a importncia da crtica de
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28 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
A conscincia de Deus e a conscincia que o homem
tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o
conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo
Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem
conheces o seu Deus; ambos so a mesma coisa. O que
Deus para o homem e o seu esprito, a sua alma e o
que e para o homem seu esprito, sua alma, seu corao,
isto e tambm o seu Deus: Deus e a intimidade revelada,
o pronunciamento do Eu do homem; a religio uma
revelao solene das preciosidades ocultas do homem, a
confisso dos seus mais ntimos pensamentos, a
manifestao pblica dos seus segredos de amor.
(FEUERBACH, 2007, p.44)
Essa posio de Feuerbach est muito prxima da
posio de Marx. Em ambos, a religio vista como forma
de alienao4. A postura de Feuerbach muito clara: Deus
Feuerbach para a religio antropolgica. Esse mesmo conceito adotado depois por Marx e fundamenta a critica marxista da religio: Coerentemente com seu materialismo, Feuerbach em A essncia do Cristianismo ensina que no foi Deus quem criou o homem, mas o homem criou Deus, segundo seu retrato. Deus no mais que o conjunto de propriedades do homem, projetadas para fora sob a forma de tipo ideal. Deus uma criatura do homem, a exteriorizao e objetivizao de seus prprios traos e caractersticas. Quando Feuerbach fala de Deus como projeo do homem, entende no o homem indivduo, mas o homem espcie, o homem genrico, o homem que idealizamos e que no conseguimos realizar por ns prprios. (NOGARE, 1990, p. 90) 4 Em sua obra Essncia do Cristianismo, Feuerbach coloca que toda a religio , no fundo, mera antropologia. O homem projeta em Deus sua prpria natureza: Mas estou longe de atribuir antropologia uma importncia insignificante ou apenas subordinada, uma importncia que Ihe seja devida enquanto uma teologia estiver acima dela e contra ela - ao reduzir a teologia antropologia na verdade elevo a antropologia para a teologia assim como o cristianismo que, ao reduzir Deus ao
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29 Ricardo Luis Reiter
seria uma projeo humana: no momento que o homem
parar de procurar fora de si aquilo que ele j carrega dentro
de si, ento ele, o homem, ter foras para mudar sua
realidade. No fundo, o homem seu prprio Deus.
Apesar de toda a influncia recebida de Feuerbach,
Marx elabora uma srie de crticas ao seu mentor. Um dos
textos mais clebres so suas Teses sobre Feuerbach, onde
ele elabora 11 teses que apresentam de forma sucinta as
divergncias de Marx com o pensamento de Feuerbach. As
teses 5, 6 e 7 apresentam a principal crtica de Marx
filosofia de Feuerbach:
5: Feuerbach, no satisfeito com o pensamento abstrato,
quer a contemplao [Anschauung]; mas ele no
compreende o sensvel [die Sinnlichkeit] como atividade
prtica, humano sensvel.
6: Feuerbach dissolve a essncia religiosa na essncia
humana. Mas a essncia humana no uma abstrao
intrnseca do indivduo isolado. Em sua realidade, ela o
homem, fez do homem um Deus, certamente um Deus afastado do homem, transcendente e fantstico - assim como tambm a palavra antropologia, o que e autotico, no no sentido da filosofia hegeliana ou de ate agora em geral, mas num sentido infinitamente mais eleva do e geral. A religio o sonho do esprito humano. Mas tambm no sonho no nos encontramos no nada ou no cu, mas sobre a terra - no reino da realidade, apenas no enxergamos os objetos reais a luz da realidade e da necessidade, mas no brilho arrebatador da imaginao e da arbitrariedade. Por isso nada mais fao a religio - tambm a teologia ou filosofia especulativa - do que abrir os seus olhos, ou melhor, voltar para fora os seus olhos que esto voltados para dentro, i.e., apenas transformo o objeto da fantasia no objeto da realidade. Mas certamente para esta poca que prefere a imagem a coisa, a cpia ao original, a fantasia a realidade, a aparncia, a essncia, e esta transformao, exatamente por ser lima desiluso, uma destruio absoluta ou uma prfida profanao, porque sagrada e somente a iluso, mas profana a verdade. (FEUERBACH, 2007, p.24-25)
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30 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
conjunto das relaes sociais.
Feuerbach, que no penetra na crtica dessa essncia real,
forado, por isso:
1. A fazer abstraes do curso da histria, fixando o
sentimento religioso para si mesmo, e a pressupor um
indivduo humano abstrato - isolado.
2. Por isso, a essncia s pode ser apreendida como
gnero, como generalidade interna, muda, que une
muitos indivduos de modo natural.
7: Feuerbach no v, por isso, que o prprio
sentimento religioso um produto social e que o
indivduo abstrato que ele analisa pertence a uma
determinada forma de sociedade. (MARX; ENGELS,
2007, p. 534)
Fica claro que a principal crtica de Marx filosofia
da religio de Feuerbach justamente essa abstrao do
homem. Alis, esse um assunto que volta tona quando
Marx critica a viso de Feuerbach sobre o Materialismo. Na
Ideologia Alem, l-se:
[...] na realidade, e para o materialismo prtico, isto ,
para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo, de
enfrentar e de transformar praticamente o Estado de
coisas por ele encontrado. Se, em certos momentos,
encontra-se em Feuerbach pontos de vista desse tipo,
eles no vo alm de intuies isoladas e tem sobre sua
intuio geral muita pouca influncia para que se possa
consider-los como algo mais do que embries capazes
de desenvolvimento. A concepo feuerbachiana do
mundo sensvel limita-se, por um lado, mera
contemplao deste ltimo e, por outro lado, mera
sensao; ele diz o homem em vez de os homens
histricos reais. (MARX; ENGELS, 2007, p. 30)
-
31 Ricardo Luis Reiter
2.1.3 O homem para Marx
Tanto a filosofia de Hegel quanto a de Feuerbach
receberam crticas da parte de Marx por terem ignorado o
aspecto histrico do homem5. Fica claro, portanto, que,
para Marx, o aspecto histrico um dos elementos
fundamentais no homem.
Segundo Fromm, existem em Marx duas formas de
natureza humana. A primeira a forma mais primordial,
mais substancial. Essa natureza seria a essncia do
homem. A segunda forma seria a expresso especfica da
natureza humana em cada cultura6, ou em cada momento
histrico. Existe no homem um potencial humano. Esse
permanente. Contudo ele quem transforma o ser humano
no processo histrico.
O potencial do homem, para Marx, um potencial dado;
o homem , por assim dizer, a matria-prima humana
5 (...) para Hegel o homem essencialmente Esprito e o Esprito Deus. Diz: Conquanto considerado finito por si mesmo, o homem tambm imagem de Deus e fonte da infinidade em si mesmo, pois o fim de si mesmo e tem em si mesmo o valor infinito e a destinao para a eternidade (Philosophie der Geschichte, ed. Gloekner, p. 427). Hegel define cristianismo como a posio de unidade do homem e de Deus (ibid., p. 416). Nessas definies de homem, a relao do homem com Deus vista como positiva. Mas essa relao pode ser vista de modo negativo ou invertido, permanecendo substancialmente a mesma. Feuerbach, por exemplo, diz que o homem se revela e se define no seu conceito de Deus. O ser absoluto, o Deus do homem, o ser do homem, diz ele (Wesen des Christentum, 1). Aquilo que o homem pensa de Deus a definio de homem: Pensas o infinito? Ento pensas e afirmas a infinitude do poder do pensamento. Sentes o infinito? Sentes e afirmas a infinitude do sentimento. (Ibid.). (...) (ABBAGNANO, 2000, p. 513) 6 FROMM, Erich. O conceito marxista do homem. 2.ed.. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES, 1962, p. 35
-
32 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
que, como tal, no pode ser modificada, tal como a
estrutura do crebro tem permanecido a mesma desde a
aurora da histria. Contudo, o homem de fato muda no
decurso da histria; ele se desenvolve, se transforma, o
produto da histria; assim como ele faz a histria, ele
seu prprio produto. A Histria a histria da auto
realizao do homem; ela nada mais que a autocriao
do homem por intermdio de seu prprio trabalho e
produo: o conjunto daquilo a que se denomina
historia do mundo no passa de criao do homem pelo
trabalho humano, e o aparecimento da natureza para o
homem; por conseguinte, ele tem a prova evidente e
irrefutvel de sua autocriao, de suas prprias origens.
(FROMM, 1962, p. 35-36)
Em Marx, encontra-se um homem que se afirma na
natureza ao transform-la. A grande capacidade do homem
estaria em sua essncia: a capacidade de transformar o
homem histrico durante o processo histrico. Em outras
palavras, ao transformar o mundo, o homem acabaria por
transformar-se a si mesmo7.
7 Para compreender com mais clareza essa capacidade que o homem tem de transformar-se no processo histrico, cita-se a passagem a seguir: Para Marx a especificidade do homem se destaca sobre o fundo das caractersticas que ele tem em comum com os animais. Seja o homem, seja o animal se definem pelo tipo de relao que os une natureza, isto , pela forma como vivem sua vida. Ora, enquanto o animal sua prpria vida, ao homem cabe produzir a sua. Essa produo da prpria vida ir implicar, no homem, os predicados especificamente humanos da conscincia de si, da intencionalidade, da linguagem, da fabricao e uso de instrumentos e da cooperao com seus semelhantes. Conquanto algumas dessas caractersticas, como a intencionalidade, a fabricao e uso de instrumentos e o comportamento gregrio, possam encontrar-se igualmente nos animais, pelo menos sob uma forma anloga, a conscincia de si e a linguagem so predicados exclusivos do homem e, como capacidades cognitivas,
-
33 Ricardo Luis Reiter
2.2 O CONCEITO DE ALIENAO
Um dos aspectos centrais dentro da filosofia de
Marx o conceito de alienao. A alienao est presente
tanto na religio, quanto na arte, e nos demais campos da
atuao do homem. na economia, entretanto, que a
alienao se manifesta de forma mais clara e gritante. Toda
a filosofia de Marx se esfora em combater a alienao do
homem, buscando devolver a ele seu aspecto humano.
Nogare apresenta o sentido etimolgico da palavra
alienao8. Alienar tornar alheio. Ou seja, um termo
so capazes de imprimir uma feio especificamente humana s outras caractersticas. (LIMA VAZ, 2001, p. 119) 8 (...) Esse termo, que na linguagem comum significa perda de posse, de um afeto ou dos poderes mentais, foi empregado pelos filsofos com certos significados especficos. (...) Esse termo foi utilizado por Rousseau para indicar a cesso dos direitos naturais comunidade, efetuada com o contrato social. As clusulas deste contrato reduzem-se a uma s: a alienao total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade (Contrato Social, I ,6). Hegel empregou o termo para indicar o alhear-se a conscincia de si mesma, pelo qual ela se considera como uma coisa. A alienao da autoconscincia, diz Hegel,coloca, ela mesma, a coisalidade, pelo que essa alienao tem significado no s negativo, mas tambm positivo, e isto no s para ns, ou em si, mas tambm para a auto conscincia. Para esta, o negativo do objeto ou a auto-subtrao deste ltimo tem significado positivo, isto , ela mesma;de fato, nessa alienao ela coloca-se a si mesma como objeto ou, por fora da inscindvel unidade do ser-para-si, coloca o objeto como si mesma, enquanto, por outro lado, nesse ato est contido o outro momento do qual ela tirou e retornou em si mesma essa alienao e objetividade, estando, portanto, no seu ser outra coisa como tal, junto a si mesma. Este o movimento da conscincia que nesse movimento a totalidade dos prprios momentos (Phnomen. des Geistes, VIII, 1). Esse conceito puramente especulativo foi retomado por Marx nos seus textos juvenis, para descrever a situao do operrio no regime capitalista. segundo Marx, Hegel cometeu o erro de confundir objetivao, que o processo pelo qual o homem se coisifica, isto , exprime-se ou exterioriza-se na natureza atravs do trabalho,
-
34 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
muito vago que apenas tem sentido completo ao ser
com a alienao, que o processo pelo qual o homem se torna alheio a si, a ponto de no se reconhecer. Enquanto a objetivao no um mal ou uma condenao, por ser o nico caminho pelo qual o homem pode realizar sua unidade com a natureza, a alienao o dano ou a condenao maior da sociedade capitalista. A propriedade privada produz a alienao do operrio tanto porque cinde a relao deste com o produto de seu trabalho (que pertence ao capitalista), quanto porque o trabalho permanece exterior ao operrio, no pertence sua personalidade, logo, no seu trabalho, ele no se afirma, mas se nega, no se sente satisfeito, mas infeliz... E somente fora do trabalho sente-se junto de si mesmo, e sente-se fora de si no trabalho. Na sociedade capitalista, o trabalho no voluntrio, mas obrigatrio, pois no satisfao de uma necessidade, mas s um meio de satisfazer outras necessidades. O trabalho exterior, o trabalho em que o homem se aliena, um trabalho de sacrifcio de si mesmo, de mortificao (Manuscritos econmico-filosficos, 1844, I, 22) (...) (ABBAGNANO, 2000, p. 27-28). Ernest Fischer faz um pequeno esboo sobre a aplicao do termo alienao dentro da filosofia de Hegel e, mais tarde, de Marx: Hegel e o jovem Marx desenvolveram filosoficamente o conceito de alienao. A alienao do homem comea quando ele se separa da natureza atravs do trabalho e da produo. (...) na medida em que o homem vai se tornando cada vez mais capaz de dominar e transformar a natureza e todo o mundo circundante, tambm vai-se vendo em face de si mesmo e do seu trabalho como um estranho e acaba rodeado de objetos que, embora produzidos pela sua atividade, tendem a crescer fora do seu controle e a impor cada vez mais fortemente ao homem as suas leis de objetos. Essa alienao, necessria ao desenvolvimento humano, precisa ser constantemente superada, a fim de que o homem ganhe conscincia de si mesmo no processo de trabalho, se reencontre no produto da sua atividade, crie novas condies e se torne senhor (e no escravo) da produo. O arteso, que era um criador, ainda se podia sentir vontade em seu trabalho e ainda podia ter um sentimento pessoal em relao ao seu produto. Com a diviso do trabalho, porm, na produo industrial, isso se tornou impossvel. O operrio submetido a parcelarizao do trabalho na produo industrial capitalista no pode ter em relao ao seu trabalho um sentido de unidade e no se pode defender contra tal alienao. Sua atitude ante o produto do seu trabalho a atitude a ser tomada em face de um objeto estranho que tem poder sobre ele. Aliena-se das coisas por ele mesmo feitas e aliena-se de si prprio, perdendo-se no ato da produo. (FISCHER, 1976, p.95).
-
35 Ricardo Luis Reiter
apresentado o segundo termo, referente ao qual alguma
coisa alienada. Apesar de estar fortemente presente na
filosofia marxista, alienao um termo que foi utilizado
por Hegel para significar a objetivao da Ideia na
natureza e do prprio homem pelo trabalho (NOGARE,
1990, p. 93).
Em Fromm, l-se a seguinte definio sobre a
alienao marxista:
A alienao (ou alheamento) significa, para Marx, que
o homem no se vivencia como agente ativo de seu
controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza,
os outros, e ele mesmo) permanecem alheios e estranhos
a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos,
malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados.
Alienar-se , em ltima anlise, vivenciar o mundo e a si
mesmo passivamente, receptivamente, como sujeito
separado do objeto. (FROMM, 1962, p. 51)
Fromm acrescenta que os sentidos de alienao em
Hegel e Marx esto muito prximos. Em Hegel, a histria
, na verdade, a histria da alienao humana. Conforme o
prprio Hegel escreve, o Esprito realmente se esfora por
atingir seu prprio ideal, mas o esconde de si mesmo e se
orgulha e tem prazer nesta alienao de si mesmo
(HEGEL, 2001, p. 106).
Tanto em Marx quanto em Hegel, o conceito de
alienao est forjado na distino entre essncia e
existncia. De fato, o termo alienao traz em si essa
concepo do homem que fica alheado de sua essncia. O
homem, na realidade, no aquilo que o qual tem potncia
de ser. Ou ainda, ele no o que poderia ou deveria ser
-
36 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
(FROMM, 1962).
Fromm aplica o conceito de alienao dentro da
filosofia de Marx:
Para Marx, o processo de alienao manifesta-se no
trabalho e na diviso do trabalho. O trabalho , para ele,
o relacionamento ativo do homem com a natureza, a
criao de um mundo novo, incluindo a criao do
prprio homem. (A atividade intelectual, est claro, para
Marx sempre trabalho, como atividade manual ou
artstica.) com a expanso da propriedade privada e da
diviso do trabalho, todavia, o trabalho perde sua
caracterstica de expresso do poder do homem; o
trabalho e seus produtos assumem uma existncia
parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento.
(...) O trabalho humano alienado porque trabalhar
deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e
consequentemente, ele no se realiza em seu trabalho,
mas nega-se a si mesmo, tem um a impresso de
sofrimento em vez de bem estar, no desenvolve
livremente suas energias mentais e fsicas, mas fica
fisicamente exaurido e mentalmente aviltado. (FROMM,
1962, p. 54-55)
Dessa forma, o homem acaba por alienar-se em
relao a si mesmo, pois, na produo capitalista, ele acaba
afastando-se das suas faculdades criadoras. De fato, o
homem, que antes concebia racionalmente o objeto e
depois o criava, j no existe mais. Nas fbricas, onde se
adota a produo em srie, cada um executa apenas uma
parte do todo. Assim, tanto quem monta o objeto como
quem o concebe racionalmente acabam por alienar-se. O
primeiro porque produziu algo que lhe foi imposto, no
-
37 Ricardo Luis Reiter
podendo acrescentar nada de prprio no objeto; o segundo,
apesar de ter criado mentalmente o objeto, no o produziu
materialmente. Para ambos acabou faltando o que sobrou
no outro.
E tambm o objeto de seu trabalho acaba por se
tornar um objeto estranho ao trabalhador. Muito disso se
d pela relao j explicitada no pargrafo anterior: a
produo em srie (e no s ela) tira do trabalhador a
liberdade de acrescentar algo de seu no objeto. Assim, sem
ser humanizado, o objeto, fruto de trabalho humano, acaba
por tornar-se algo estranho ao seu criador, seja este o
trabalhador ou o idealizador.
Nogare relaciona em seu livro Humanismos e Anti
humanismos as principais formas de alienao denunciadas
por Marx. A primeira forma de alienao reconhecida por
Marx foi a alienao religiosa. Esse reconhecimento fruto
da bagagem que Marx recebeu de Feuerbach. Em suma,
seria preciso destruir a religio, qualquer tipo de religio,
para que o homem recupere sua dignidade e liberdade. A
segunda forma a alienao ideolgica. As ideologias so
criadas para servirem de farol aos homens. Entretanto, as
mesmas, muitas vezes, acabam por tornarem-se
instrumentos de tirania e opresso. O prprio socialismo
real sovitico comprova essa tese. Outra forma de alienao
referente poltica. Os homens criam grupos e
sociedades, que acabam fundando o Estado. O objetivo
garantir que seus direitos e bens no sejam violados.
Entretanto, comum acontecer que os grupos e o prprio
Estado se voltem contra os homens, privando-os e
mutilando seus direitos. Para Marx, a existncia do Estado
corre sempre o risco de ser utilizada como ferramenta de
opresso pela burguesia (FROMM, 1962).
-
38 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
Quando, no curso do desenvolvimento, as diferenas de
classe tiverem desaparecido e toda a populao tiver sido
concentrada nas mos de indivduos associados, o poder
pblico perder seu carter poltico. O poder poltico,
propriamente chamado, , meramente, o poder
organizado de uma classe para oprimir outra. Se o
proletariado se eleva necessariamente condio de
classe dominante em sua luta contra a burguesia e, na
condio de classe dominante, tira de cena as antigas
relaes de produo, ento, com isso, ele tira tambm
de cena a condio para a existncia da oposio entre as
classes e para a prpria existncia de classes. E acaba por
abolir seu papel de classe dominante. (MARX;
ENGELS, 1998, p. 45)
Por fim, resta ainda a alienao econmica, que,
para Marx, a mais grave delas e a base para as demais9.
Ela funda-se na propriedade privada dos meios de
produo, ou seja, seria preciso abolir a propriedade
privada para extinguir todas as formas de alienao. Sem
alienao econmica, no haveria mais classes. Portanto,
9 Em seu terceiro volume sobre a histria da filosofia, Reale escreve que o trabalho perdeu seu carter essencial no momento em que o homem teve todo seu processo de criao alienado: Se olharmos para a histria e a sociedade, veremos que o trabalho no mais feito, juntamente com os outros homens, pela necessidade de apropriao da natureza externa, veremos que no mais realizado pela necessidade de objetivar a prpria humanidade, as prprias ideias e projetos, na matria-prima. O que vemos que o homem trabalha pela sua pura subsistncia. Baseada na diviso do trabalho, a propriedade privada torna o trabalho constritivo. O operrio tem alienada a matria-prima; so alienados os seus instrumentos de trabalho; o produto do trabalho lhe arrancado; com a diviso do trabalho, ele mutilado em sua criatividade e humanidade. (REALE; ANTISERI, 1991, p. 193)
-
39 Ricardo Luis Reiter
no existiria mais a necessidade de ideologias e grupos
polticos. Enfim, o homem ser livre para guiar sua prpria
vida, criando de fato uma religio do homem, onde o
prprio homem ser seu deus (NOGARE, 1990).
O fruto da alienao, de qualquer tipo de alienao,
roubar do homem sua humanidade. Ao alienar do
homem tudo aquilo que ele precisa para produzir, o
capitalista acaba tambm por retirar dele sua humanidade,
fazendo do trabalhador mero objeto de consumo. O
operrio torna-se mercadoria nas mos do capital10. Essa
a definio de Reale para alienao. Transformar o homem
em mero objeto o que o capital busca. Todo processo de
alienao busca mostrar ao trabalhador que ele no tem
nenhuma outra natureza a no ser aquela de servir ao
capitalista. A nica necessidade do trabalhador a
necessidade de produzir para sobreviver.
Por fim, a noo de alienao est encorpada na
concepo de homem de Marx. a manifestao dessa
relao do homem com as suas alienaes d-se no decurso
da historia, o que j havia sido apresentado por Hegel. A
diferena que Marx apresenta uma definio do homem
como ser que produz. Dessa forma, o modo de produo
de cada poca, segundo Lima Vaz, que permite a diviso da
histria em quatro grandes partes, que seriam o mtodo de
produo asitico, o escravismo antigo, o feudalismo e o
capitalismo. Dentro dessa evoluo histrica o socialismo
seria a grande fase de transio para o comunismo, que
dentro da viso de Marx, a ltima etapa da histria. Por
isso ele afirma que o advento de uma ordem socialista
10REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Histria da filosofia: do romantismo at nossos dias. 2.ed.. Vol. III. So Paulo: PAULUS, 1991, p. 193.
-
40 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
inevitvel.
2.3 O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE EM
MARX
Encontra-se em Vzquez e em Mszros a ideia de
que o esttico em Marx venha satisfazer uma necessidade
espiritual do homem. Os chamados valores espirituais do
homem so, na verdade, aspectos da plena realizao de sua
personalidade como um ser natural (MSZROS, 2006,
p. 174-175). Contudo, espiritual aqui no remete a um
dualismo que implique na existncia de um mundo das
ideias em Marx, at porque o prprio Marx deixa claro que
rejeita qualquer possibilidade de Idealismo. Na Ideologia
Alem, em uma passagem na qual critica Feuerbach, pode-
se ler:
(...) ele [Feuerbach] diz o o homem em vez de os
homens histricos reais (...) certo que Feuerbach tem
em relao aos materialistas puros a grande vantagem
de que ele compreende que o homem tambm objeto
sensvel; mas, fora o fato de que ele apreende o homem
apenas como objeto sensvel e no como atividade
sensvel - pois se detm ainda no plano da teoria -, e
no concebe os homens em sua conexo social dada, em
suas condies de vida existentes, que fizeram deles o
que so ele no chega nunca at os homens ativos,
realmente existentes, mas permanece na abstrao o
homem e no vai alm de reconhecer no plano
sentimental o homem real, individual, corporal, isto ,
no reconhece quaisquer outras relaes humanas do
homem com o homem que no sejam as do amor e da
amizade, e ainda assim, idealizadas. No nos d
-
41 Ricardo Luis Reiter
nenhuma critica das condies de vida atuais. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 31-32)
Marx no se contenta com proposies abstratas.
preciso, para ele, que as ideias tenham respaldo no
cotidiano das pessoas. E no das pessoas de modo geral,
mas naquela pessoa histrica, que vive nas aes do seu
dia-a-dia. Marx resgata a individualidade do homem e
sobre essa individualidade que ele trabalha, evitando
generalizaes precipitadas.
Da mesma forma, o termo espiritual no serve para
designar um reino abstrato, pelo contrrio, refere-se a uma
esfera da vida cotidiana do homem. E ainda mais, espiritual
equivale, nesse caso, a uma necessidade primordial, que j
estava presente no momento em que o homem
desenvolveu o trabalho, mas que se perdeu com a alienao
humana.
nessa perspectiva que a esttica consegue
responder o anseio espiritual que o homem tem de querer
transformar o mundo. Existiria no homem um desejo inato
de moldar o mundo, de humanizar o mundo. Por isso, o
homem seria um eterno insatisfeito. Seria impossvel
satisfazer essa necessidade espiritual, a no ser pela criao
esttica. O homem j no consegue mais satisfazer suas
necessidades espirituais, pois desaprendeu a criar. Por fim,
o homem passou a conviver com um conflito interno, entre
o material e espiritual.
O Capitalismo impede o homem de poder satisfazer
suas necessidades espirituais. O homem acaba sendo levado
a acreditar que no possui nenhuma necessidade alm
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42 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
daquelas que dizem respeito a sua sobrevivncia11.
Assim, o capitalista assume o controle sobre as
necessidades que o proletrio deve satisfazer. No interessa
ao capitalista que o proletrio satisfaa suas necessidades
primordiais, ou espirituais, porque o proletrio no precisa
tomar conscincia de si. Ao capitalista interessa muito mais
que o proletrio siga uma vida regrada e controlada, focada
apenas na sua sobrevivncia e na satisfao de seus
instintos.
Marx reconhece essa dinmica nos Manuscritos
Econmico-filosficos quando ele escreve que
Em parte, este estranhamento se mostra a medida em
que produz, por um lado, o refinamento das carncias e
dos meios; por outro, a degradao brutal, a completa
simplicidade rude abstrata da carncia; ou melhor,
apenas produziu-se novamente a si na sua significao
contrria. Mesmo a carncia de ar livre deixa de ser, para
o trabalhador, carncia; o homem retorna caverna, que
est agora, porm, infectada pelo meftico [ar] pestilento
da civilizao, e que ele apenas habita muito
precariamente, como um poder estranho que
diariamente se lhe subtrai, do qual ele pode ser
diariamente expulso se no pagar. (...) A imundice, esta
corrupo, apodrecimento do homem, o fluxo de esgoto
11 Sobre esse aspecto, Eagleton escreve que: O Capitalismo reduz a plenitude corprea de homens e mulheres simplicidade crua e abstrata da necessidade - abstrata, porque quando a mera sobrevivncia material est em jogo, as qualidades sensveis dos objetos intencionados por essas necessidades no se tematizam. Em fala freudiana, pode-se dizer que a sociedade capitalista transforma os impulsos, pelos quais o corpo humano transcende suas prprias fronteiras, em instintos - aquelas exigncias fixas monotonamente repetitivas, que encarceram o corpo dentro de suas fronteiras. (EAGLETON, 1990, p. 148-149)
-
43 Ricardo Luis Reiter
(isto compreendido a risca) da civilizao torna-se para
ele um elemento vital. Nenhum de seus sentidos existe
mais, no apenas em seu modo humano, mas tambm
no num modo no humano, por isto mesmo nem
sequer num modo animal. (...) [Isto quer dizer] no
apenas que o homem deixa de ter quaisquer carncias
humanas, [mas que] mesmo as carncias animais
desaparecem.(MARX, 2011, p. 140)
Nota-se que, para Marx, a estrutura imposta pelo
Capitalismo priva o homem de suas necessidades
primordiais e reduz sua existncia a um estado inanimado.
De fato, at mesmo as carncias animais so negadas ao
homem. O capitalista consegue reduzir o homem a um
estado em que ele, homem trabalhador, no possui mais
nenhuma necessidade a no ser aquela de trabalhar para
pagar esta casa morturia12 na qual ele habita. Ainda
sobre as consequncias do processo que o capitalista usa
para reduzir o homem a um ser sem necessidades e
carncias, Marx escreve que
Na medida em que ele [o capitalista] reduz a carncia do
trabalhador mais necessria e mais miservel
subsistncia de vida fsica e sua atividade ao movimento
mecnico mais abstrato; ele diz, portanto: o homem no
tem nenhuma outra carncia, nem de atividade, nem de
fruio, pois ele proclama tambm esta vida como vida e
existncia humanas; na medida em que ele calcula a vida
(existncia) mais escassa possvel como norma e,
precisamente como norma universal: universal porque
vigente para a massa dos homens, ele faz do trabalhador
12 MARX, Karl. Grundrisse. 1.ed.. So Paulo: BOITEMPO EDITORIAL, 2011, p. 140
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44 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
um ser insensvel e sem carncias, assim como faz da sua
atividade uma pura abstrao de toda atividade, cada
luxo do trabalhador aparece a ele, portanto, como
reprovvel e tudo o que ultrapassa a mais abstrata de
todas as carncias - seja como fruio ou externao de
atividade - aparece a ele como luxo.(MARX, 2011, p.
141)
Fica claro que, ao capitalista, interessa apenas que o
homem tenha necessidade de trabalhar para sua
sobrevivncia. Aquilo que visto como luxo aos olhos do
capitalista, e, portanto, desprezado, justamente o
necessrio a todo homem para satisfazer essas suas
necessidades primordiais ou espirituais. O Capitalismo
acaba por substituir, tanto para o capitalista como para o
trabalhador, as suas necessidades pelo capital. Ambos so
roubados de seus sentidos e passam a satisfazer apenas uma
necessidade: a necessidade de acumular capital. Escreve
Marx que
Quanto menos comeres, beberes, comprares livros,
fores ao teatro, ao baile, ao restaurante, pensares,
amares, teorizares, cantares, pintares, esgrimires, etc.,
tanto mais tu poupas, tanto maior se tornar o teu
tesouro, que nem as traas nem o roubo podem corroer,
teu capital. Quanto menos tu fores, quanto menos
externares tua vida, tanto mais tens, tanto maior tua vida
externada, tanto mais acumulas da tua essncia
estranhada. Tudo o que o economista nacional te
arranca de vida e de humanidade, ele te supre em
dinheiro e riqueza. E tudo aquilo que tu no podes, pode
o teu dinheiro: ele pode comer, beber, ir ao baile, o
teatro, saber de arte, de erudio, de raridades histricas,
-
45 Ricardo Luis Reiter
de poder poltico, pode viajar, pode apropriar-se disso
tudo para ti; pode comprar tudo isso; ele a verdadeira
capacidade. Mas ele, que tudo isso, no deseja seno
criar-se a si prprio, comprar a si prprio, pois tudo o
mais , sim, seu servo, e, se eu tenho o senhor, tenho o
servo e no necessito mais de seu servo. Todas as
paixes e toda a atividade tm, portanto, de naufragar na
cobia. Ao trabalhador s permitido ter tanto que
queira viver, e s permitido querer viver para
ter.(MARX, 2011, p. 141-142)
Dentro dessa dinmica imposta pelo sistema
capitalista, somente aquele que possui capital pode atender
suas necessidades espirituais. Contudo, no ser ele quem
as satisfar e sim seu capital, que no possui nenhuma
necessidade a no ser aquela de multiplicar-se. Ao
proletrio somente permitido ter capital suficiente para
que ele queira viver. J o capitalista tem capital, mas deixa
de atender suas necessidades para acumular mais capital13.
Por fim, para que a esttica consiga responder as
necessidades espirituais do homem, preciso que o homem
seja liberto da situao de alienao em que ele vive. Para
Marx, a libertao do homem est vinculada ao combate
alienao econmica, da qual as demais alienaes so
frutos.
13 Sobre essa relao entre o capitalista e o capital, Eagleton escreve que: o capital um corpo fantasma, um monstruoso Doppelgnger que sai para caar enquanto seu mestre dorme, consumindo mecanicamente os prazeres de que ele austeramente abstm-se. Quanto mais o capitalista renuncia ao seu prazer, devotando seus esforo, em seu lugar, modelao deste alter-ego zumbi, mais satisfao de segunda mo ele capaz de colher. Tanto o capitalista quanto o capital so imagens de mortos-vivos, um animado, apesar de anestesiado; o outro inanimado, mas ativo. (EAGLETON, 1990, p. 149)
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46 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
Uma vez que o homem esteja livre da alienao que
o impele a produzir e a acumular capital, ele poder ir a
busca daquilo que satisfaa suas necessidades espirituais.
dentro desse quadro que a esttica se apresenta. Ela vem
para satisfazer essas necessidades espirituais e para indicar
ao homem aquilo que o est aprisionando.
-
47 Ricardo Luis Reiter
3 O ASPECTO ESTTICO DA
ALIENAO
No captulo anterior, foi feita uma breve
apresentao de alguns conceitos importantes em Marx,
assim como da forma como esses conceitos recebem um
significado novo dentro da filosofia marxista. Na esttica
proposta por Marx, o conceito de homem est muito
presente, principalmente porque toda a filosofia de Marx
construda sobre o homem histrico-social. E esse
homem que possui necessidades espirituais que precisam
ser satisfeitas, para que ele, enquanto homem, possa firmar-
se no mundo e libertar-se da alienao. A alienao o
processo que impede o homem de assumir o controle sobre
sua vida e suas aes.
Segundo Mszros, Marx foi quem primeiramente
percebeu que a arte est constantemente sofrendo com o
mal da alienao. Ao contrrio daqueles que o antecederam,
principalmente Schiller e Hegel, ele percebeu que o
problema da alienao esttica deveria ser combatido
diretamente na sua raiz. Ou seja, a crtica de Marx
alienao esttica , novamente, uma crtica contra o
capitalismo, para ele, fonte de toda alienao
(MSZROS, 2006).
Em outra passagem de Mszros pode-se ler que
as consideraes estticas ocupam um lugar muito
importante na teoria de Marx. Esto to intimamente
ligadas a outros aspectos de seu pensamento que
impossvel compreender adequadamente at mesmo sua
concepo econmica sem entender suas ligaes
-
48 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
estticas. Isso pode parecer estranho a ouvidos refinados
com o utilitarismo. Para Marx, porm, a arte no o tipo
de coisa que pode ser atribudo esfera ociosa do
lazer e, portanto, de pouca ou nenhuma importncia
filosfica, mas algo da maior significao humana e,
portanto, tambm terica. (MSZROS, 2006, p. 174)
Assim, um estudo sobre a concepo esttica de
Marx, segundo Mszros, faz-se necessrio para uma
completa compreenso do pensamento marxista. Tanto a
esttica quanto a economia, por exemplo, esto fundadas
sobre o mesmo pilar: o homem. Aquilo que diz respeito,
portanto, esttica acaba dizendo respeito tambm s
demais reas do pensamento filosfico de Marx.
Se no campo econmico, religioso, poltico etc. o
grande mal a ser combatido a alienao, no campo
esttico no poder ser diferente. A libertao do homem
passa pelo combate s formas de alienao que o prendem.
A esttica, portanto, como as demais reas do pensamento
de Marx, vem para combater sua forma de alienao, que ,
em suma, tornar-se mercadoria.
Para Eagleton, existem na sociedade muitos
sintomas que apontam aspectos da vida humana que esto
em constante alienao, como se essa fosse uma doena a
ser combatida. A prpria percepo sensvel cria sintomas a
partir do momento em que ela cai no processo de
alienao. Eagleton escreve que:
a percepo sensvel, para Marx, , em primeiro lugar, a
estrutura constitutiva na prtica humana, mais que um
conjunto de rgos contemplativos; na verdade, ela s se
torna este ltimo na medida em que j , previamente a
primeira, a propriedade privada a expresso sensvel
-
49 Ricardo Luis Reiter
da alienao do homem em relao ao seu prprio
corpo, o deslocamento sombrio de nossa plenitude
sensvel em direo ao impulso nico de possuir: todos
os sentidos fsicos e intelectuais foram substitudos pela
simples alienao de todos - no sentido de ter. Para dar
luz sua riqueza interior, a natureza humana foi
reduzida sua absoluta pobreza. (EAGLETON, 1990,
p. 148)
A alienao esttica traz malefcios ao homem. Ela
afeta no somente o artista, mas o prprio gozo esttico.
Aqui, no somente o artista que sofre com a alienao,
mas tambm a obra de arte e o espectador. E
principalmente esse ltimo, por no encontrar, na arte
alienada, algo que responda sua necessidade espiritual de
afirmar-se no mundo como humano. J o artista acaba
agindo contra a sua natureza, por no poder criar aquilo
que realmente deseja, mas sim aquilo que o sistema o fora
a reproduzir.
O ser humano um ser que cria. Cria no apenas
objetos para satisfazer suas necessidades imediatas. Ele cria
para firmar-se humanamente no mundo. Essas criaes so
estticas, artsticas. Elas visam responder s necessidades
espirituais do homem.
3.1 ARTE E REALISMO
Para Aristteles, todos os homens tm, por
natureza, desejo de conhecer14. Por isso, eles seriam
eternos insatisfeitos. Em toda sua vida sobre a terra, o
14ARISTTELES. tica e Nicmaco. 1.ed. So Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleo os Pensadores; v.2), p. 11.
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50 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
homem busca, cria e desenvolve tecnologias que so
resultado de sua busca por conhecimento. No campo
filosfico, sempre houve um grande debate sobre a forma
mais segura de se conhecer algo. Duas so as grandes
vertentes do conhecimento: o empirismo e o racionalismo.
A partir de Descartes, o racionalismo recebeu certa
credibilidade como fonte segura de conhecimento. Afinal
de contas, o conhecimento cientfico guia-se por mtodos
racionais. Alguns filsofos, entretanto, alertaram que a
razo no seria uma instncia plenamente confivel.
Rousseau j afirmava que a razo frequentemente engana.
Este um debate aberto at os dias de hoje, por mais que a
cincia apresente seus mtodos como infalveis. Marx, em
seus Manuscritos Econmico-Filosficos j adverte que os
sentidos so histricos. Ou seja, o homem sempre aprende
a ouvir, cheirar, ver etc. algo novo. Sendo assim, os
sentidos agregam conhecimentos aos quais a razo no tem
acesso (KONDER, 2005).
o que acontece com a arte. A arte uma forma de
conhecimento. No um conhecimento sobre o mundo
abstrato e universal; mas sobre o mundo concreto,
experimentado. Ou seja, a arte revela conhecimento sobre
o homem atravs da representao do mundo humanizado.
Porm, os filsofos racionalistas tm levantado objees ao
conhecimento transmitido pelas manifestaes artsticas,
conforme escrito por Konder:
Ao longo de sculos, contudo, em vez de reconhecer
essa complementaridade, os racionalistas, confrontados
com a arte, tm as vezes reagido de modo
preconceituoso; nem sempre tm reconhecido o desafio
que a arte lhes apresenta, um desafio que exige
-
51 Ricardo Luis Reiter
ampliaes, aprofundamentos e revises permanentes da
razo.
De fato, os representantes das perspectivas racionalistas
tradicionais tm, com frequncia, manifestado na
histria do pensamento, desde Plato, certa m vontade
em relao expresso artstica. E a oposio a eles, por
seu turno, tem muitas vezes escorregado para posies
irracionalistas, baseadas na convico da superioridade
intrnseca, permanente, da percepo sensvel da
razo.(KONDER, 2002, p. 213)
O Realismo15, como estilo artstico, vem em
15 O conceito de Realismo, na arte, extremamente vago. Pode ser visto como uma escola ou perodo, ou como uma posio artstica. Marx opta por definir o Realismo como uma posio que o artista tem diante realidade. Sobre o Realismo, Fischer escreve que: o conceito de Realismo em arte , infelizmente, elstico e vago. Por vezes, o Realismo definido como uma atitude, como o reconhecimento de uma realidade objetiva; por vezes, definido como um estilo ou um mtodo. Frequentemente a linha divisria entre as duas conceituaes apagada. Em alguns casos, o termo realista aplicado a Homero, a Fdias, a Sfocles, a Policleto, a Shakespeare, a Miguel ngelo, a Milton e a El Greco; em outros casos, reservado para o mtodo posto em prtica por determinado tipo particular de escritor ou pintor: de Fielding e Smollet a Tolsti e Gorki; de Gericault e Coubert a Manet e Czanne. Se considerarmos o reconhecimento de uma dada realidade objetiva como a natureza do Realismo na arte, precisamos no reduzir tal realidade ao mundo puramente exterior, existente independentemente de nossa conscincia. O que existe independentemente de nossa conscincia a matria. A realidade, porm, abrange toda a imensa variedade de interaes nas quais o homem, com sua capacidade de experimentar e compreender, pode ser envolvido. Um artista que pinta uma paisagem obedece as leis da natureza descobertas pelos fsicos, qumicos e biologistas; mas o que ele est pondo no a natureza independente dele: a paisagem vista atravs das suas sensaes, da sua experincia. O artista no o mero acessrio de um rgo sensorial que apreende o mundo exterior, ele tambm um homem que pertence a uma determinada poca, classe e nao, possui um temperamento e um carter particulares, e todas essas
-
52 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
oposio ao Naturalismo, que uma materializao grfica
de trivialidade desconexa e completa superficialidade. Isso
assim porque a natureza retratada pelos artistas naturalistas,
com frequncia da maneira fiel tediosamente detalhada,
a natureza desumanizada (MSZROS, 2006).
O Realismo, para Marx16, precisa plasmar, na obra
de arte, a realidade como ela percebida pela conscincia
do homem, captando os fundamentos do real, isto , do
material. O objeto dela no a realidade como
apresentada, mas sim como captada pelo homem
humano17.
coisas influem na maneira pela qual ele v, sente e pinta a paisagem. Todas se combinam para criar uma realidade mais ampla do que o dado conjunto de rvores, pedras e nuvens, elementos que podem ser medidos e pesados. A nova e mais ampla realidade determinada, em parte, pelo ponto de vista individual e social do artista. a soma de todas as relaes entre o sujeito e o objeto, envolve no s o passado como o futuro, no s os acontecimentos objetivos como as experincias subjetivas, os sonhos, pressentimentos, emoes, fantasias. A obra de arte une a realidade imaginao. As bruxas de Shakespeare e de Goya so mais reais do que os pintores e operrios idealizados que aparecem em certo gnero de pinturas. A rotina estpida da vida cotidiana, elevada ao nvel de stira fantstica por Gogol ou Kafka, nos revela mais acerca da realidade do que as descries naturalistas. Don Quixote e Sancho Panza so mais reais, ainda hoje, do que as centenas de personagens prosaicas que pupulam em romances tirados da vida real. Se decidirmos definir o Realismo no como um mtodo, mas como uma atitude a atitude que fixa a realidade na arte chegaremos concluso de que quase toda a arte (com exceo da are abstrata, do tachismo, etc.) realista. (FISCHER, 1976, p.122-123) 16 Segundo Vzquez, uma concepo marxista de arte realista pode ser definida como: a arte que, partindo da existncia de uma realidade objetiva, constri com ela uma nova realidade que nos fornece verdades sobre a realidade do homem concreto que vive numa determinada sociedade, em certas relaes humanas histricas e socialmente condicionadas, e que, no marco delas, trabalha, luta, sofre, goza ou sonha. (VZQUEZ, 2011, p. 32) 17 Mszros faz uma bela explicao sobre a concepo de Marx de arte
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53 Ricardo Luis Reiter
O que difere uma obra de arte realista de uma
naturalista a forma como representam o mundo.
Enquanto o Naturalismo representa a natureza como ela se
apresenta, sem focar-se em nenhum aspecto humanizado
da realidade, o Realismo busca representar a realidade
como ela percebida pelo homem. O artista realista capta
particularidades humanamente significativas da realidade e
as transfere para a obra de arte
O que determinar se ele [o artista] realista ou no
aquilo que ele seleciona de uma massa de experimentar a
realidade, histrica e socialmente especfica. Se ele no
for capaz de selecionar particularidades humanamente
especficas, que revelem as tendncias e caractersticas
fundamentais da realidade humana em transformao,
mas - por uma ou outra razo - se contentar com o
retrato da realidade tal como ela lhe aparece de modo
imediato, nenhuma fidelidade de detalhe o elevar
acima do nvel do naturalismo especfico. (MSZROS,
realista ao escrever que: Na obra de arte realista, todo objeto representado, natural ou feito pelo homem, deve se humanizado, isto , a ateno deve ser focalizada sobre sua significao humana, de um ponto de vista histrica e socialmente especfico. (A cadeira de Van Gogh de grande significao artstica precisamente devido poderosa humanizao pelo artista de um objeto do cotidiano, de outro modo insignificante). O Realismo, em relao aos seus meios, mtodos, elementos formais e estilsticos, est necessariamente sujeito mudana, porque reflete uma realidade em constante transformao, e no egosta. O que se mantm inalterado no Realismo, e com isso nos permite aplicar esse termo geral avaliao esttica de obras de diferentes pocas, o seguinte: o Realismo revela, com propriedade artstica, as tendncias fundamentais e conexes necessrias que esto com frequncia profundamente ocultas sob aparncias enganosas, mas que so de importncia vital para um entendimento real das motivaes e aes humanas das vrias situaes histricas. (MSZROS, 2006, p. 177-178)
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54 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
2006, p. 178)
3.1.1 Os falsos Realismos
Para Vzquez a arte realista um divisor de guas,
separando a arte realista daquelas que no querem ou no
cumprem uma funo cognoscitiva. Nesse grupo esto
principalmente os falsos Realismos, que no conseguem
enriquecer o conhecimento do homem justamente por
aterem-se por demasiado na realidade exterior ou interior
do homem. O motivo dessa despreocupao com o
conhecimento do homem pode dar-se por dois motivos
principais: primeiro porque o conhecimento do homem j
no mais o foco do artista; segundo porque o mtodo
empregado no permite ao artista captar e penetrar nos
aspectos fundamentais da realidade humana (VZQUEZ,
2011).
Vzquez apresenta duas formas principais de falsos
Realismos. O primeiro falso Realismo aquele que faz da
representao das coisas um fim e no um meio a servio
da verdade1819 . Essa forma de arte, focar-se-ia em
reproduzir a realidade. A arte acaba por ser como uma
fotografia: apenas representa uma cpia da realidade, sem
adicionar nenhuma carga de valores humanos. Esse falso
Realismo peca justamente por preocupar-se em ser
extremamente fiel natureza, esquecendo-se de captar nela
18 Aqui vale a lei moral j formulada por Kant, admoestando que a humanidade nunca deve ser usada como um meio para obter-se algum fim: age de tal maneira que tu possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca simplesmente como meio (KANT, 2003, p.59) 19 VZQUEZ, Adolfo Snchez. As ideias estticas de Marx. 1 Edio. So Paulo: EXPRESSO POPULAR, 2011, p. 33.
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55 Ricardo Luis Reiter
a realidade subjacente, que influencia o modo de viver e
agir do homem. Por ser meramente uma representao
idealizada da realidade, ela acaba por no agregar nada ao
homem justamente por no humanizar a realidade
representada.
Outra forma de falso Realismo aquela que
mantm a realidade humana como seu objeto, mas acaba
buscando nela no o que , mas o que deve ser. Assim, ela
acaba por transformar os objetos para que esses reflitam
uma realidade humana idealizada, embelezada, caindo-se
assim num Idealismo ou irrealismo (MSZROS, 2006).
Essa foi a grande forma de arte do perodo
socialista (o Realismo Socialista). Buscava apresentar uma
realidade perfeita, onde tudo era harmnico. Contudo,
esquecia-se de seu papel principal: apresentar a realidade de
forma humanizada ao homem20. Dessa forma, alm de no
20 Um bom ensaio sobre desumanizao da arte foi escrito por Ortega e Gasset, sob o ttulo de A desumanizao da arte. Nessa obra, o autor apresenta caractersticas daquilo que ele chama de nova arte, ressaltando o aspecto da desumanizao dela. Ela tem o efeito de dividir a massa popular, sendo a maioria contrria ela: a nova arte tem a massa contra si e sempre ter. impopular por essncia; ainda mais, antipopular. Uma obra qualquer por ela criada produz no pblico, automaticamente, um curioso efeito sociolgico. Divide-o em duas pores: uma, mnima, formada por reduzido nmero de pessoas que lhe so favorveis; outra, majoritria, inumervel, que lhe hostil. (...) A obra de arte atua, pois, como um poder social que cria dois grupos antagnicos, que separa e seleciona no amontoado uniforme da multido duas diferentes castas de homens. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 21-22). Para esclarecer sua teoria, o autor faz uso de uma analogia: um homem ilustre agoniza. Sua mulher est junto ao leito. Um mdico conta as pulsaes do moribundo. No fundo do quarto h outras duas pessoas: um jornalista, que assiste cena obituria por razo de seu ofcio, e um pintor que a sorte conduziu at ali. Esposa, mdico, jornalista e pintor presenciam um mesmo fato. No obstante, esse nico e mesmo fato a agonia do homem se apresenta a cada
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56 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
agregar conhecimento nenhum ao homem, servia de
ferramenta para a manipulao social do pensamento
humano.
Para Vzquez, o Realismo socialista21 teria grande
um deles com aspecto diferente. To diferentes so esses aspectos, que tem apenas um ncleo comum. A diferena entre o que para a mulher aflita de dor e para o pintor que, impassvel, observa a cena, tanta que quase mais exato seria dizer: a esposa e o pintor presenciam dois fatos completamente diferentes. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 33). No decorrer do captulo, o autor apresenta o ponto de vista de cada personagem da cena. Interessa aqui apenas a leitura que o pintor faz: por ltimo, o pintor, indiferente, no faz outra coisa que pr os olhos em coulisse. Descuida-se com quanto se passa ali; est, como se costuma dizer, a cem mil lguas do fato. Sua atitude puramente contemplativa e mesmo se pode dizer que ele no o contempla em sua integra; o doloroso sentido interno do acontecimento fica fora da sua percepo. S atenta ao exterior, s luzes e s sombras, aos valores cromticos. No pintor chegamos ao mximo de distncia e ao mnimo de interveno sentimental. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 36). Por fim, Ortega y Gasset sintetizam a posio do artista afirmando que esse busca a desumanizao da realidade: longe de o pintor ir mais ou menos entorpecidamente realidade, v-se que ele foi contra ela. Props-se decididamente a deform-la, romper seu aspecto humano, desumaniz-la. Com as coisas representadas no quadro tradicional poderamos ilusoriamente conviver. Pela Gioconda se apaixonaram muitos ingleses. Com as coisas representadas no quadro novo impossvel a convivncia: ao extirpar seu aspecto de realidade vivida, o pintor cortou a ponte e queimou as naves que poderiam transportar-nos ao nosso mundo habitual. Deixa-nos encerrados num universo abstruso, fora-nos a tratar com objetos com os quais no cabe tratar humanamente. (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 41-42) 21 Sobre o Realismo Socialista, Vzquez escreve que: O verdadeiro Realismo socialista no tem por que mistificar a realidade. A mentira o mata; ao contrrio, a verdade que pode proporcionar legitima e justifica sua existncia. Por isso, se a arte uma forma de conhecimento que capta a realidade humana em seus aspectos essenciais e rasga assim o vu de suas mistificaes; se a arte - servindo verdade - pode servir ao homem em sua construo de uma nova realidade humana, no h nada que possa impedir - a menos que se caia num dogmatismo de novo tipo - uma concepo de arte - nem exclusiva nem sectria - como a do Realismo socialista. (VZQUEZ, 2011, p. 33)
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57 Ricardo Luis Reiter
potencial. Entretanto, precisaria abandonar a concepo de
realidade idealizada e focar-se na realidade como ela se
apresenta e como deve ser humanizada. O Realismo
Socialista precisaria adotar o papel de arte que denuncia as
mistificaes que levam alienao humana
3.1.2 O Realismo de Marx e suas Implicaes
Em seu captulo sobre o aspecto esttico da
alienao, Mszros apresenta uma breve sntese do que ,
segundo sua perspectiva, a definio de arte realista para
Marx:
Para Marx, o Realismo no apenas uma entre as
inmeras tendncias artsticas, confinadas a um perodo
ou outro (como romantismo, imaginismo etc.), mas
o nico modo de produo da realidade adequado aos
poderes e meios especficos postos disposio do
artista. Os mestres inimitveis da arte grega so grandes
realistas, assim como Balzac. No h nada,
estilisticamente, comum a eles. Mas apesar dos sculos,
das barreiras sociais, culturais, lingusticas, etc. que os
separam, eles podem ser reunidos num denominador
comum porque, de acordo com os traos especficos de
suas situaes histricas, eles alcanam uma descrio
artisticamente adequada das relaes humanas
fundamentais de suas pocas. por isso que podem ser
chamados de grandes realistas. (MSZROS, 2006, p.
180)
Das palavras de Mszros podem ser obtidas
algumas concluses. A primeira diz respeito ao conceito de
Realismo presente em Marx, para quem o Realismo seria a
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58 Investigao acerca da possibilidade de uma esttica em Karl Marx
principal forma de arte desenvolvida pelo homem. Atravs
dela, e somente por ela, que o artista conseguiria
apresentar ao pblico a realidade de forma humanizada.
O artista realista possuiria a capacidade de captar a
humanizao presente no objeto. Ao pintar uma rvore, ele
no o faria da forma que o bilogo ou o botnico o fariam.
O artista realista colocaria suas impresses, sua experincia,
suas emoes na tela. Assim, a obra no seria apenas uma
representao de uma rvore e sim de uma rvore
humanizada que teria por funo levar ao pblico a
humanidade presente na rvore.
A segunda concluso diz respeito ruptura que
Marx cria na tradicional estrutura de escolas artsticas. Para
ele, o Realismo no seria mera tendncia artstica. Com
isso, Marx, de certa forma, cria um divisor de guas na arte,
onde toda forma de arte que busca e apresenta
conhecimento humano ao homem seria arte realista e o
resto nem arte seria. Dessa forma, o Realismo j no seria
mais uma escola, e sim uma categoria. onde se
enquadrariam todos aqueles que, durante a histria da
humanidade, buscaram criar uma arte que representava a
realidade como ela era percebida pelo homem, trazendo a
tona aqueles sentimentos humanos perdidos com a
alienao do homem. Assim, existiria arte realista desde os
primrdios e no poder-se-ia criar uma hierarquia dentro da
arte realista, pois todas realizaram seu objetivo comum, a
saber, levar conhecimento humanizado ao homem.
3.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DO
TRABALHO
Existe em Marx um ponto comum a suas reas de
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59 Ricardo Luis Reiter
pesquisa: o trabalho. Praticamente tudo em Marx
perpassado pela ideia de trabalho. Com a esttica, no
poderia ser diferente. O trabalho e a produo artstica so
atividades que, no incio da humanidade, estavam
intimamente ligadas22.
O Capitalismo, principalmente com a Revoluo
Industrial, rompeu com as formas tradicionais de produo.
Antes, o arteso produzia livremente e produzia o produto
em sua totalidade. Com o surgimento da figura do
capitalista, o processo de produo muda: o capitalista
quem dita as regras do jogo. Primeiro, surgem as
manufaturas e depois as indstrias. Sobre as manufaturas,
Marx escreve que
a manufatura se origina e se forma, a partir do
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