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WALBER DE MOURA AGRA
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Diretrizes para o Incremento de sua Legitimidade
Realização da tese de doutorado sob a orientação do Professor Dr. João Maurício Leitão Adeodato e co-orientação do Professor Dr. Danilo Zolo.
RECIFE/ FIRENZE, 2003.
2
Banca Examinadora:
Francisco Ivo Dantas Cavalcanti
José Luiz Bolsan de Morais
Paulo Lopo Saraiva
Gustavo Ferreira Santos
Raymundo Juliano Rego Feitosa
3
Abstract:
The aim of the present thesis has, as central mark, to analyze the legitimation of the
Brazilian constitutional adjudication exercised by Federal Supreme court. Before the
increase of the social demands generated by the Social Democratic State of Right there is an
increment consequently in the space of incidence of the decisions of the constitutional
adjudication to guarantee the materialization mainly of the fundamental rights. That increase
in the performance of the prerogatives of the organ that exercises the constitutional
adjudication many times extrapolates the defined limits for the beginning of the separation
of the powers, what evidences the need of a reinforce of the legitimacy of the constitutional
adjudication. This raise is accomplished by the following factors: increase of the normative
force of the Constitution; transformation of Federal Supreme Court in a constitutional
tribunal; democratization of the choice of their ministers; guarantee of the materialization of
the fundamental rights, reaffirming the normative character even of the programmatics
norms; opening of the decisions of STF for them can be discussed by the society, supplying
larger subsidies for the decision. For better analysis of the main object the constitutional
adjudication and the judicial review will also be analyzed systematized with the purpose to
potentiate the effectiveness of the fundamental rights.
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Resumo:
A presente tese tem como escopo central analisar a legitimação da jurisdição
constitucional brasileira exercida pelo Supremo Tribunal Federal. Diante do aumento das
demandas sociais geradas pelo Estado Democrático Social de Direito há conseqüentemente
um incremento no espaço de incidência das decisões da jurisdição constitucional para
garantir a concretização principalmente dos direitos fundamentais. Esse aumento na atuação
das prerrogativas do órgão que exerce a jurisdição constitucional muitas vezes extrapola os
limites definidos pelo princípio da separação dos poderes, o que evidencia a necessidade de
uma densificação da legitimidade da jurisdição constitucional. Essa densificação é realizada
pelos seguintes fatores: aumento da força normativa da Constituição; transformação do
Supremo Tribunal Federal em um tribunal Constitucional; democratização da escolha de
seus ministros; garantia da concretização dos direitos fundamentais, reafirmando o caráter
normativo até mesmo das normas programáticas; abertura das decisões do STF para elas
possam ser discutidas pela sociedade, fornecendo maiores subsídios para a decisão. Para
melhor análise do objeto principal também serão analisados a jurisdição constitucional e o
controle de constitucionalidade sistematizados com o propósito de potencializar a eficácia
dos direitos fundamentais.
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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Delimitação do Objeto
PARTE I: Jurisdição Constitucional
1.) Constituição
1.1) A Supremacia da Constituição como a Principal de suas Características
2.) Jurisdição Constitucional
2.1) Conceito de Jurisdição 2.2) Definição de Jurisdição Constitucional 2.2.1) Diferença entre Jurisdição Constitucional e Controle de Constitucionalidade 2.3) Natureza da Jurisdição Constitucional 2.4) Fundamento da Jurisdição Constitucional 2.5) Função da Jurisdição Constitucional 2.6) A Independência como Condição Inexorável para a Concretização da Jurisdição Constitucional
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2.7) A Jurisdição Constitucional do Sistema Norte-Americano e do Sistema Europeu 2.8) O Exercício da Jurisdição Constitucional pelo Sistema Difuso e pelo Sistema Concentrado no Brasil
2.9) O Supremo Tribunal Federal como Órgão Jurídico de Exercício da Jurisdição Constitucional
3.) Tribunais Constitucionais
3.1) Diferenciação entre a Jurisdição do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Constitucionais
PARTE II: Aspectos Gerais do Controle de Constitucionalidade Brasileiro
4.) Aspectos Históricos e Taxionomia
4.1) Fundamentação do Controle de Constitucionalidade
4.2) O Defensor da Constituição 5.) Teoria da Inconstitucionalidade
5.1) Natureza da Norma Declarada Inconstitucional
5.2) Momentos de Incidência do Controle de Constitucionalidade
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5.3) Controle das Normas Constitucionais no Tempo
5.4) Tipos de Inconstitucionalidades 5.4.1) Tipos de Inconstitucionalidades Formais
5.5) Extensão da Inconstitucionalidade
6.) Controle Difuso
6.1) Controle Difuso ou por Via de Exceção 6.2) Reserva de Plenário ou Cláusula Full Bench 6.3) Controle de Constitucionalidade em Nível Estadual e Municipal
7.) Controle Concentrado
7.1) Ação Direta Interventiva
7.2) Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.2.1) Legitimidade para a Propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.2.2) A Atuação do Advogado-Geral da União
7.3) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
7.4) Ação Declaratória de Constitucionalidade
7.4.1) Do Efeito Vinculante da Ação Declaratória de Constitucionalidade 7.4.2) Discussão Acerca da Incongruência da Ação Declaratória de Constitucionalidade para a Densificação da Legitimidade da Jurisdição Constitucional
7.5) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
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7.5.1) Legitimidade e Competência 7.5.2) Procedimento 7.5.3) Princípio da Subsidiariedade 7.5.4) Inovações 7.5.5) A Inconstitucionalidade do Incidente de Constitucionalidade
8.) Procedimento do Sistema Concentrado de Controle de Constitucionalidade. Lei n.º 9.868/99 (Ação Direta de Constitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade)
8.1) Petição Inicial 8.2) Procedimento 8.3) Amicus Curiae 8.4) Medida Cautelar 8.5) Efeito Dúplice 8.6) Extensão dos Efeitos das Decisões do STF 8.7) Efeito vinculante
9.) Técnicas de Decisão do Controle de Constitucionalidade
9.1) Interpretação conforme a Constituição e Inconstitucionalidade Parcial sem Redução de Texto
9.2) Declaração de Inconstitucionalidade por Omissão Parcial
9.3) Bloco de Constitucionalidade
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PARTE III: A Legitimidade das Decisões Judiciais da Jurisdição Constitucional
10.) A Crise do Direito Legislado
10.1) A Crise do Estado Democrático Social de Direito
10.2) Crise Constitucional
10.3) A Crise de Legitimação da Jurisdição Constitucional 10.3.1) O Aumento da Atuação da Jurisdição Constitucional e do Poder Judiciário 10.3.2) O Papel do Judiciário na Concepção Tradicional dos Três Poderes
11.) Legitimidade da Jurisdição Constitucional
11.1) Conceito de Legitimidade
11.2) A Legitimação pela Soberania Popular
11.3) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Texto da Constituição
12.) Influências sobre a Legitimação da Jurisdição Constitucional
12.1) A Influência da Suprema Corte Norte-Americana sobre a Jurisdição Constitucional
12.2) A Influência do Tribunal Constitucional Alemão sobre a Jurisdição Constitucional
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13.) Legitimação pelo Procedimento da Jurisdição Constitucional
13.1) A Questão da Legitimidade em Jürgen Habermas 13.1.1) A Concepção de Direito em Habermas 13.1.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional em Habermas
13.2.) A Questão da Legitimidade em Luhmann
13.2.1) O Procedimento como SubSistema Social 13.2.2) A Autonomia do Procedimento Judicial
13.3) A Legitimação pelos Procedimentos Assecuratórios do Regime Democrático
13.3.1) A Igualdade de Participação Política dos Cidadãos 13.3.2) A Democracia Política
13.4) Críticas as Teses Procedimentais de Legitimação da Jurisdição Constitucional
14.) Legitimação Substancialista da Jurisdição Constitucional
14.1) A Legitimação da Jurisdição Constitucional pelos Direitos Fundamentais
14.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Dualismo Constitucional
14.3) Argumentação Principiológica
14.4) Elementos Constitucionais Essenciais
15.) Jurisdição Constitucional versus Regime Democrático
15.1) A Tensão entre o Político e o Jurídico
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15.2) A Apropriação da Moral pelos Tribunais Constitucionais como Forma de Imunização de suas Decisões 15.3) A Jurisprudencialização da Jurisdição Constitucional – A Jurisprudência das Cortes Constitucionais como Auto-Referencia de suas Decisões 15.4) A Teoria da Neutralidade das decisões da Jurisdição Constitucional 15.5) Mitigação da Atuação do Poder Legislativo 15.6) Especificação da Atuação Legislativa da Jurisdição Constitucional 15.7) Limites à Atuação da Jurisdição Constitucional
16.) Novo Esboço da Jurisdição Constitucional Brasileira
16.1) A Constituição como Fonte de Legitimidade da Jurisdição Constitucional 16.2) A Transformação do Supremo Tribunal Federal em Tribunal Constitucional como Fator Determinante da Legitimação da Jurisdição Constitucional
16.3) Uma Nova Composição do Supremo Tribunal Federal como Forma de Legitimação da Jurisdição Constitucional
16.4) A Decisão da Jurisdição Constitucional Baseada no Entrenchment dos Valores Constitucionais
16.5) Densificação da Legitimação da Jurisdição Constitucional Brasileira
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Delimitação do Objeto
Este trabalho tem por objetivo fazer uma análise da jurisdição constitucional
brasileira, procurando diretrizes para densificar a sua legitimidade. Esse fortalecimento da
legitimidade da jurisdição constitucional permitirá que o Supremo Tribunal Federal tenha
uma maior atuação, assegurando de forma mais eficaz a concretização dos direitos
fundamentais.
A Constituição de 1988 foi considerada à época de sua promulgação um dos textos
constitucionais mais avançados e modernos. Além da sua prodigalidade em direitos
fundamentais, disciplinou vários conteúdos que não tinham até então proteção da Lei Maior.
Mesmo trazendo importantes institutos de natureza processual constitucional, a principal
mácula que paira sobre o Texto de 1988 é a falta de eficácia de parte substancial de suas
normas.
A jurisdição constitucional, entendida no seu sentido amplo, que não se resume
apenas ao controle de constitucionalidade, é composta por mecanismos aptos a propiciarem
eficácia às normas da Carta Magna, além de protegerem de lesão ou ameaça de lesão os
direitos constitucionais. Aumentar a concretude normativa da jurisdição constitucional
implica de forma direta em tentar arrefecer a falta de eficácia de grande parte dos
mandamentos constitucionais.
A tese está dividida em três partes: a primeira parte enfocará a teoria geral da
jurisdição constitucional, a segunda desenvolverá a temática do controle de
constitucionalidade e a terceira à legitimação das decisões jurisdicionais, que é a tese
propriamente dita.
O estudo da jurisdição constitucional se revela imprescindível, mormente para
aqueles países que não têm uma prática de autonomia dos seus ordenamentos jurídicos, ou
seja, àqueles em que composições sócio-político-econômicas transitórias servem para
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mutilar as disposições normativas, principalmente as contidas na Constituição Federal,
entendida como a norma normarum da sociedade. Considerando a Constituição como a
norma jurídica fundamental do ordenamento, a jurisdição constitucional é o instrumento
indissociável para a sua concretização.
Dentro desse diapasão buscar-se-á, quando a simetria entre os institutos permitir,
uma análise da jurisdição constitucional sob a ótica da doutrina alienígena, no sentido de
forjar uma contribuição para o seu aprimoramento. Ressalta-se, contudo, que a tese não é um
estudo de direito comparado, uma vez que o objeto de pesquisa é a doutrina brasileira, sem
olvidar da contribuição da literatura estrangeira.
A problematização deste trabalho é analisar os fatores que possam densificar a
legitimação da jurisdição constitucional brasileira, com o intento de compreender como se
constrói o processo legitimante das decisões do Supremo Tribunal Federal. A sua
importância é tentar contribuir para uma melhor análise da jurisdição constitucional
brasileira, dissecando os mecanismos de legitimação das decisões do Supremo Tribunal
Federal para que os seus julgamentos possam cumprir as funções do Estado Democrático
Social de Direito e que a Carta Magna de 1988 deixe de ser uma Constituição semântica e
torne-se um texto normativo efetivo.1
A hipótese adotada posiciona-se no sentido de que uma maior justificação da
jurisdição constitucional pode ser obtida pelos seguintes fatores: a transformação do
Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com um mandato fixo para os seus
magistrados; a fragmentação da indicação dos membros do órgão que exerce a jurisdição
constitucional, com a participação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; uma
firme atuação para garantir os direitos fundamentais, mormente o conteúdo estipulado nas
normas programáticas; a determinação de uma “ densidade suficiente” ou “conteúdo
mínimo” dos direito fundamentais que devem ser defendidos pelo entrenchment dessas
prerrogativas; que as regras procedimentais que regulamentam as decisões judiciais
1 LOEWESNSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. Trad. Alfredo Ballego Anabitarte. Barcelona: Ariel, 1970. p. 217.
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proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ensejem uma abertura da discussão jurídica,
incorporando vários setores da sociedade no debate, para que os magistrados possam auferir
todos os subsídios necessários para a sentença e que as decisões ostentem um maior nível de
legitimidade pela ampla participação do operadores jurídicos.
Na primeira parte da tese será analisada a doutrina geral sobre a jurisdição
constitucional. Nessa parte, serão analisadas a doutrina nacional e a estrangeira a respeito da
matéria. O seu objetivo é o estudo minucioso, possibilitando os conhecimentos necessários
para a compreensão da problematização e das hipóteses adotadas. Nessa parte inicial serão
observados os seguintes tópicos: a Constituição; o conceito de jurisdição constitucional; a
sua função; os tribunais constitucionais.
A segunda parte incidirá sobre o sistema de controle de constitucionalidade
brasileiro. Tanto os mecanismos do sistema difuso quanto os do sistema concentrado serão
estudados. A importância de se analisar uma temática aparentemente já tantas vezes
abordada deve-se ao fato de tentar moldá-la sob um novo prisma: a defesa dos direitos
fundamentais. O controle de constitucionalidade deixará de ser analisado apenas na
perspectiva de tutela negativa dos mandamentos da Lei Maior para ser igualmente analisado
sob uma perspectiva ativa, em que a concretização dos direitos fundamentais é o escopo
primordial. O início do trabalho incidirá sobre questões propedêuticas, tais como a
fundamentação do controle de constitucionalidade, o caso Marbury versus Madison etc.;
depois, o enfoque consistirá em cada um dos mecanismos do controle difuso e nas cinco
ações do controle direto, bem como na Lei 9.868/99, que regulamentou o procedimento da
ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade.
O sistema constitucional brasileiro adota tanto o controle difuso, criado com a
Constituição de 1891, como o controle concentrado, que apareceu de forma tímida pela
primeira vez em 1934, com a ação interventiva e desenvolveu-se com maior impulso depois
da implementação da ação direta de inconstitucionalidade, pela emenda 16/65. Nos últimos
anos, o controle constitucional brasileiro tem apresentado algumas inovações; a Lei Maior
de 1988 criou alguns novos institutos e mais recentemente as Leis 9.868/99 e 9.882/99
promoveram importantes alterações no sistema, o que exige um estudo mais acurado.
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A terceira parte se deterá no núcleo essencial da tese: a legitimação das decisões da
jurisdição constitucional. Como essa finalidade, serão estudados os seguintes tópicos: a crise
do direito legislado; a jurisdição constitucional x o regime democrático; a legitimidade da
jurisdição constitucional; a legitimidade pelo procedimento; a legitimação substancialista; as
influências sobre a legitimação da jurisdição constitucional ; novo esboço da jurisdição
constitucional brasileira.
Com esse desiderato serão estudados alguns autores que contribuem com a doutrina a
cerca da matéria, como: Dworkin, Habermas, Ackerman, Ely, Rawls, Sunstein, Woldron,
Tribe, Luhmann, Scalia etc. Nesses autores, pela finalidade do trabalho, apenas serão
estudados as suas concepções sobre a jurisdição constitucional ou temas conexos. De forma
alguma, e é preciso deixar bem claro, configura-se como objetivo dissecar a doutrina desses
estudiosos em sua integralidade.
A discussão acerca da legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal não
pode ser obnubilada porque muitas de suas decisões resvalam em nítidos conteúdos
políticos, que influenciam o exercício dos demais poderes. A teoria da soberania popular não
pode legitimar as decisões do STF, que muitas vezes ultrapassam o campo normativo dos
mandamentos constitucionais. Contudo, dentro do corte epistemológico implementado, não
será vislumbrado o processo de hermenêutica constitucional, mesmo que entendido como
espaço de elaboração normativa do Poder Judiciário. Nessa parte da tese, o objeto enfocado
se restringirá ao processo de legitimação das decisões judiciais.
Também não será objeto de análise da tese a legitimação de qualquer decisão judicial
do Supremo Tribunal Federal, mas apenas aquelas pertinentes à jurisdição constitucional
serão objeto de análise. O motivo para essa restrição é porque a jurisdição ordinária exercida
pelo STF não traz grandes influências para o ordenamento jurídico de forma sistêmica. Além
disso, as decisões da jurisdição constitucional põem em relevo de forma crucial a
diferenciação entre a legitimação do Poder Judiciário, baseada no procedimento, e a
legitimação dos Poderes Executivo e Legislativo, baseada no sufrágio universal.
16
O objetivo geral reside na análise do sistema de jurisdição constitucional vigente no
Brasil e no fornecimento de uma visão geral sobre o desenvolvimento de suas atividades,
sempre com o referencial na justificação da jurisdição constitucional.
Os objetivos específicos analisados são os seguintes: a) o conceito, funções e
natureza da jurisdição constitucional; b) a importância da jurisdição constitucional como
instrumento de concretização dos direitos fundamentais; c) o funcionamento dos tribunais
constitucionais; d) a legitimidade da jurisdição constitucional; f) a legitimação
substancialista como núcleo de justificação da jurisdição constitucional; g) a legitimação das
decisões judiciais; h) reestruturação do controle de constitucionalidade brasileiro para
justificar uma maior atuação do Supremo Tribunal Federal.
A metodologia utilizada será preponderantemente a pesquisa bibliográfica, haurindo
recursos doutrinários que possibilitem analisar o objeto proposto.2 Como será estudado uma
temática que tem importância primordial em todos os países ocidentais, optou-se por uma
pesquisa realizada em mares outros, especificamente na Itália, na Faculta Degli Studi di
Firenze, sob a orientação do Professor João Maurício Adeodato, que juntamente com o
Professor Danilo Zolo, foram essenciais para o término do presente trabalho.
Todas as traduções contidas no texto são de inteira responsabilidade do autor, sendo
por ele próprio livremente realizadas. A jurisprudência, pátria e estrangeira, terá grande
valor durante a pesquisa porque permitirá alicerçar as premissas do trabalho e impedir a
dicotomia entre a teoria e a prática. Também será dada atenção especial à legislação
nacional e estrangeira, o que permitirá mostrar o funcionamento dos sistemas de
constitucionalidade e vislumbrar o seu aperfeiçoamento.
2 ADEODATO, João Maurício. “Bases para uma Metodologia da Pesquisa em Direito”. In: Revista do Instituto dos Advogados de Pernambuco. V. 1, n. 2. P. 13-39.
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PARTE I: Jurisdição Constitucional.
1.) Constituição
A Constituição, com a conceituação que concebemos atualmente, provém do
racionalismo do século XVIII. Textos anteriores, como a Magna Charta Libertatum e os
pactos medievais, que muitos autores afirmam terem sido formas rudimentares de leis
fundamentais, não podem ser considerados como Constituições.3 Já no século XVII
aparecem textos, como o Mayflower Pact (1639) e o Agreement of People (1647), que se
aproximam do conceito atual de Constituição.4 Todavia, esses textos não tinham a intenção
de estruturar de forma ampla a vida política do Estado, faltando-lhes uma visão de conjunto,
uma vez que eram mais produtos de força para regulamentar interesses específicos.
Esclarece Gustavo Zagrebelsky: “ Os ordenamentos jurídicos pré-revolucionários
não conheciam, dotadas de valor proeminente o sentido de Constituição no conceito
3 Esclarece o Professor Nelson Saldanha: “Das discussões inglesas dos séculos XVI e XVII resultaram temas tornados essenciais para o debate político, tais como a competência do Parlamento e do Judiciário, a validade das leis e da autoridade obtida através do consentimento do povo, a constituição como um sistema de poderes em equilíbrio. Das discussões francesas, basicamente as do século XVIII, tomaram corpo outros temas, como sejam, a Constituição como um sistema de poderes divididos, o poder Constituinte como atributo do povo, a soberania nacional como alicerce de todos os poderes. Certamente todas estas questões estavam alimentadas por idéias fundamentais, uma delas a do contrato social”. SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. 2º ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000. P. 115. 4 “A primeira efectiva aproximação do Constitucionalismo moderno é representada por quatro textos, bem diferentes entre si quanto à forma de elaboração, valor jurídico e conteúdo, mas que parece comungarem da mais antiga radicação do movimento: a faceta religiosa. São eles, com efeito, o Mayflower Pact (1620), as Fundamental Orders of connecticut (1636), o Agreement of People (1647) e o Instrument of Government (1653). Não sendo nenhum deles uma autêntica constituição liberal, aí se deverá procurar a mais antiga das suas genuínas raízes, que só desabrochariam efectivamente no século seguinte, na América do Norte, com a Declaration of Rights de Vírginia (1776), a partir da qual mais de mil flores floriram. E isto porque, além da não suficiente mas necessária forma escrita, se trata de textos eivados do desejo da re-fundação, da aspiração a uma nova ordem, sob o impacto simultâneo da idéia do retorno à pureza dos princípios (corrompidos entretanto) do cristianismo (tal como cada qual os entendia) e do já crescente mito da ordem e da racionalidade como varinha mágica da organização social”. FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Mito e Constitucionalismo. Perspectiva Conceitual e Histórica.Porto: Gráfica de Coimbra, 1990. P. 135.
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moderno. Não eram fruto de um corpo sistemático e completo de normas intencionalmente
produzidas e prescritas de forma escrita em uma Carta Constitucional”.5
O constitucionalismo, no seu nascedouro, é uma decorrência direta do liberalismo,
servindo como um instrumento para a incipiente burguesia garantir o seu predomínio sócio-
político-econômico. Enquanto os reis tinham o seu poder legitimado por argumentos
teocráticos, a argumentação do poder da burguesia se baseou na Constituição, alicerçada
filosoficamente no racionalismo, e politicamente na teoria da soberania da nação, seguida da
soberania popular.6
Antes desse movimento, o poder ainda não tinha sido unificado nas mãos do Estado,
por isso não se pode falar em Estado de Direito, estruturado através de leis vigentes para
toda a população. O surgimento da Constituição marcou o apogeu do domínio da burguesia
e o declínio da nobreza, a supremacia da vontade da lei, em detrimento da vontade dos
homens, o racionalismo predominando sobre os preceitos da teocracia.
O movimento constitucionalista nasce depois do surgimento do Estado Moderno,
quando toda a soberania é concentrada nas mãos do aparelho estatal. Macllwain afirma que
esse movimento tem uma qualidade essencial: configura-se como uma limitação legal ao
governo e significa uma antítese ao governo arbitrário; o oposto a um Estado regido por uma
Constituição é o governo despótico, em que prepondera a vontade do soberano em
detrimento da lei.7 A principal característica jurídica do Estado Moderno foi à centralização
da produção normativa nas mãos de um governante.8 Ele nasce como Estado Absoluto, que
partindo de uma concepção hobbesmasiana, considera o soberano como sustentáculo da
ordem e os súditos com a obrigação de obediência para garantir a tranqüilidade social,
através do pactum subiectionis.9
5 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988. P. 14. 6 ANCARANI, Giovanni. Dal Costituzionalismo alle Costituzioni. Milano: Università Cattolica Del Sacro Cuore, 1979. P.168. 7 MCLLWAIN, Charles H. Costituzionalismo antico e moderno. Bologna: Mulino, 1990. P. 44. 8 CAENEGEM, Raoul C. Van. Il Diritto Costituzionale Occidentale. Un’Introduzione Storica. Trad. Federico Qualia. Roma: Carocci, 2003. P. 93-94. 9 CATANIA, Alfonso. Lo Stato Moderno. Sovranità e Giuridicità. Torino: Giappichelli, 1996. P.19.
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O constitucionalismo significa que as condutas sociais devem ser determinadas por
normas e o ápice da escala normativa reside nos dispositivos constitucionais. A lei
fundamental foi tomada como dogma, o que levou alguns governantes, como Napoleão
Bonaparte, a ver nela um texto imutável, sacralizado, que deveria ser distribuído
gratuitamente para que toda a população conhecesse os seus direitos e deveres e pudesse
fiscalizar o cumprimento das suas prerrogativas.
As primeiras Constituições foram consideradas liberais, abrangendo direitos civis e
políticos, devido a sua concretização ser apenas formal, sem oferecer nenhum mecanismo
para a real efetivação dos preceitos constitucionais. Eram Constituições burguesas porque os
direitos ofertados apenas poderiam ser usufruídos pela burguesia, que tinham os meios
materiais para realizá-los. As demais classes sociais não tinha acesso a tais prerrogativas
porque o Estado não garantia a sua eficácia. Como explicar a um camponês que trabalhava
dezoito horas por dia e vivia em condições de miséria absoluta que ele tinha direito a
dignidade da pessoa humana? Dignidade tinha o burguês, que podia comprar tudo que
pudesse propiciar o seu bem-estar e conforto.
Historicamente, a Lex Mater funcionou como a ferramenta para sepultar o
absolutismo reinante na Idade Média. Foi o instrumento jurídico para a construção de uma
nova ordem, ordem esta que tinha na burguesia sua principal classe social. Ela estabeleceu a
separação das funções estatais que impediria definitivamente a concentração de poder em
um único órgão, além de colocar freio ao arbítrio estatal, com a proteção jurídica aos direitos
fundamentais.
Nesse sentido é bem claro o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, quando afirma que a Carta Magna que não dividisse o poder, nem outorgasse
direitos não poderia ser concebida como tal.
Hodiernamente, as Constituições são concebidas por sua propriedade finalistíca:
concretizar os direitos fundamentais e servir de instrumento para a realização do Welfare
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State. Esses podem ser considerados os objetivos indeclináveis de qualquer Carta Magna,
produzida para regulamentar qualquer sociedade, constituindo-se na sua essência fucral.10
Entretanto, o vocábulo Constituição (do latim constituere, constitutio), em seu
significado de ordenamento político do Estado, existiu desde os primórdios. Aristóteles, no
seu livro Athenaton Politéia, distinguiu as leis ordinárias do Estado – nómos – daquelas que
estabeleciam os seus alicerces e fundamentos – psefísma.11 Cícero e Maquiavel também
faziam a distinção entre normas fundamentais, aquelas que estruturam o núcleo de poder, e
as demais normas, concebidas hierarquicamente como forma inferior.
Para Marcel Prélot, foi o Abade Sièyes o formulador da moderna conceituação de
Constituição que conhecemos.12 A importância de Sieyès se deve ao deslocamento do eixo
de legitimidade do poder político, que antes era calcado em fundamentos teocráticos,
sustentados pela revelação divina, para um substrato de legitimidade alicerçado na soberania
da nação, ou seja, a justificativa de poder que fora imputada a fatos transcendentais, à
vontade de Deus, a partir de Sieyès passou a se basear na vontade humana, personificada na
soberania da nação.
Para Rudolf Smend, a Lei Maior seria um objeto unitário, conectando sua parte
formal e material através da integração pessoal, funcional e material. Doutrina Smend: “Para
a doutrina dominante a Constituição é antes de tudo um ordenamento da formação da
vontade de um grupo social e da situação jurídica de seus membros”.13 O jurista
pernambucano, Pinto Ferreira, prefere enfocá-la como um edifício de quatro andares, no
qual cada um é ocupado, respectivamente, pela economia, sociologia, filosofia e direito,
mostrando como é complexo o universo constitucional.
10 “O Direito Constitucional atual não seria mais do que os direitos fundamentais. As normas que delineiam o estatuto dos direitos fundamentais, junto àquelas que consagram a forma de Estado e àquelas que estabelecem o sistema econômico, são as normas decisivas para definir o modelo constitucional da sociedade”. Perez Luño, Antonio E. Los Derechos Fundamentales. 7 ed., Madrid: Tecnos, 1998. P. 19. 11 ARISTÓTELES. A Constituição de Atenas. Trad. Francisco Murari Pires. São Paulo: Hucitec, 1995. P. 25. 12 “ Sièyes s’est donné pour l’inventeur de l’idée de constitution, dans son discours de l’una III sur le projet de constitution et sur la jurie constitutionnaire”. PRÉLOT, Marcel e LESCUYER, Georges. Histoires des Idées politiques. 12ª ed., Paris: Dalloz, 1990. p. 522. 13 SMEND, Rudolf. Constitucion y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985. P. 129.
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A Constituição também pode ser analisada como uma ideologia constitucional,
exprimindo uma carga axiológica que fora aceita pelos representantes constituintes na sua
realização. Toda Carta Magna expressa valores e é com base nessa dimensão valorativa que
as estruturas normativas serão delineadas. A percepção de mundo adotada pela Constituição
não pode ser considerada como monolítica. Na verdade, ela agasalha um amplo leque de
concepções que são organizadas pelo caráter sistêmico da Lei Maior.14
Outra concepção da Constituição que não pode ser descurada é a sua finalidade de
regulamentação das relações políticas existentes na sociedade, o que leva a afirmar que ela
representa a juridicização do fenômeno político. Os setores sociais que detiverem
proeminência na feitura da Constituição, inexoravelmente, obterão maior parcela de poder
na sociedade.15
Por esse motivo, o seu conteúdo semântico se revela tão cheio de significados, a
despeito de que se configura como requisito imperioso na construção de uma ciência ter uma
metodologia peculiar e um objeto próprio. García-Pelayo explica a aparente contradição:
“por se referir a substância da existência política de um povo está particularmente próximo a
converte-se em um dos conceitos simbólicos e combativos, que tem sua razão não na
voluntariedade do conhecimento, ou em sua adequação instrumental para a controvérsia com
o adversário. Sem dúvidas que o conhecimento contrapõe a sua adequação instrumental para
a controvérsia com o adversário”.16
14 Müller explica o conceito sistêmico de Constituição: “Esse princípio ordena interpretar normas constitucionais de modo a evitar contradições com outras normas constitucionais e especialmente com decisões sobre princípios de direito constitucional. A unidade da Constituição, enquanto visão orientadora da metódica do direito constitucional, deve antepor aos olhos do intérprete, enquanto ponto de partida, bem como, sobretudo, enquanto representação do objetivo, a totalidade da Constituição como um arcabouço de normas”. MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 84. 15 Disserta acerca do conceito de sociedade Hermann Heller: “A sociedade, enquanto conceito histórico do Estado, é um fenômeno muito recente na história da Europa. Sua aparição está intrinsecamente conectada com o desenvolvimento da forma econômica capitalista, com a definitiva liquidação da ordem estamental e com o nascimento da sociedade civil. Quem tratar de esclarecer o significado cabal da palavra sociedade, com tantas equívocas acepções, terá que ter em conta essas realidades históricas”. HELLER, Hermann. Teoria Del Estado. 2 ed., Trad. Luis Tobio. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. P. 146 16 PELAYO, Manuel García. Derecho Constitucional Comparado. 3ª ed., Madrid: Alianza Universidad, 1991. P. 33.
22
À medida que as demandas sociais aumentam, há uma paulatina incorporação dos
direitos humanos pelos textos constitucionais com o objetivo de reforçar a sua
normatividade. Essa racionalização dos direitos fundamentais assinala um fortalecimento
nos mecanismos que asseguram a sua concretização, fazendo com que eles sejam
considerados a parte mais relevante da constituição. A modificação de parâmetros, em que a
estruturação dos órgãos públicos perde primazia para as prerrogativas dos cidadãos,
reformula o critério para se classificar o que se define como uma boa Constituição, que
passa a ser classificada de acordo com a extensão e a eficácia dos direitos fundamentais
esculpidos pelas suas normas.
A Constituição brasileira de 1988 representa o paradigma inconteste da jurisdição
constitucional, ao amenizar as incertezas provocadas pela modernidade, estabelecendo
parâmetros de atuação da tutela constitucional. Como a Constituição Cidadã foi pródiga em
direitos fundamentais, ela ainda facilita a fundamentação da jurisdição constitucional,
estimulando o entrenchment da “densidade suficiente” dessas prerrogativas.
1.1) A Supremacia da Constituição como a Principal de suas Características
A Constituição apresenta diversas concepções, como as teorias elaboradas por
Kelsen, Lassalle, Schmitt etc, e em cada um desses prismas podem ser apontadas
características inerentes a cada um deles. Não obstante essa pluralidade de características,
que variam de acordo com a concepção empregada, pode-se resumi-las a três que
condensam as demais, devido a sua preponderância para a análise do Texto Constitucional:
supremacia, supralegalidade e imutabilidade relativa. Dessas características, a supremacia
ocupa função preponderante, fazendo com que as normas constitucionais se tornem Lei
Fundamental, alicerce do ordenamento jurídico. O interesse maior pela análise da
supremacia reside no fato de ela ser a essência para o entendimento do papel ocupado pela
Constituição. Outrossim, as outras características advêm dessa prerrogativa.
23
A Constituição é considerada a norma suprema porque traduz a soberania estatal,
justificada pelo Poder Constituinte que consegue condensar-lhe o maior grau de legitimidade
dentro do ordenamento jurídico. Sob uma perspectiva kelseniana ela é a norma primeira,
decorrente do grundnorm, sendo a supremacia uma conseqüência dessa gênese cronológica.
Ela funciona como “norma-origem”, a primeira cronologicamente instituída.17 Hauriou a
considera suprema, porque goza da soberania estatal.18
Várias são as teses que explicam a teoria da supremacia constitucional como norma
ápice do ponto de vista hierárquico do ordenamento jurídico, do qual duas são
imprescindíveis porque foram agasalhadas para defender a supremacia da Constituição norte
americana, famosa dentre outros motivos porque foi o texto constitucional que primeiro
instituiu o judicial review: Locke, com a sua concepção de pacto social para assegurar a
liberdade, e a idéia de um higher law, um direito proeminente, calcado nas raízes do Direito
Natural, capaz de prevalecer sobre as normas infraconstitucionais, tornando-se o pressuposto
de sua própria validade.19
A doutrina do higher law surge da preponderância exercida pelo direito
consuetudinário no commow law. A idéia da Constituição como uma higher law remonta ao
famoso Bonham’s case, em que o Lord Coke advogou a tese da supremacia da Lei Maior
com base nos costumes sedimentados nos comportamentos sociais.20
17 Cronologicamente não foi a Constituição a norma primeira, antes existiam normas morais, religiosas e ate jurídicas. Este pressuposto tem a finalidade de fornecer uma estrutura lógica concatenada para a estruturação normativa. 18 HAURIOU, Maurice. Principes de Droit Public. 12ª ed., Paris: Librairie Recueil Sirey, 1916. p. 678. 19 ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia y Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999. P. 41. 20 Esclarece o proeminente papel do Juiz Coke Wilson Accioli: “ Não seria possível versar-se o tema do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis omitindo-se a figura exponencial de Lord Coke (Jurista inglês. Presidente do King′s Bench). Realmente, o erudito e brilhante autor das Institutes of the Laws of England opunha séria resistência ao poder ilimitado do Parlamento, entendendo nulas as suas deliberações frontalmente antagônicas à common law (direito costumeiro). Segundo Coke, o Estado britânico era composto principalmente por tribunais (sendo o parlamento um deles) devendo seus atos submeter-se ao exame da common law. Como decorrência desse pensamento, estabeleceu-se que o rei não poderia julgar senão por intermédio dos juízes, “de acordo com o direito e o costume da Inglaterra” (Case of Prohibitions, 1607) e de que lhe carecia poder para modificar o direito do país, e, especialmente, criar novos delitos (Case of Proclamations)”. ACCIOLI, Wilson. Instituições de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1978. P. 50.
24
A função da supremacia constitucional é tão imprescindível para a afirmação da
Constituição como base do ordenamento jurídico que foi agasalhado no texto norte-
americano, no seu art. 6, seção 2°: “Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos ditadas em
virtude dela e todos os tratados celebrados ou que se celebrarem sob a autoridade dos
Estados Unidos constituirão a lei suprema do país; e os juízes em cada Estado estarão
sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição e nas leis
de qualquer dos Estados”.
Segundo a Escola de Viena, a supremacia constitucional, dentro da sua concepção de
ordenamento jurídico unitário, composta por um conjunto hierarquizado de leis, ocupa o
ápice da pirâmide normativa, configurando-se como a norma de auto-referência, que dentro
do formalismo jurídico desempenha o papel de fundar o sistema jurídico e legitimar as
demais normas. Devido à Carta Magna constituir-se como a norma primária por excelência,
referenciando as normas secundárias, Schmitt a denomina de “último princípio
sistematizador da unidade política e do conjunto do ordenamento”.21
A supremacia da Constituição, sob uma ótica formalista, advém da referência
normativa que ela desempenha no ordenamento jurídico, pois como se situa no apogeu da
escala normativa, tem a incumbência de validar as normas situadas em escala inferior,
classificando-as, assim, em normas primárias e secundárias, de acordo com o seu
posicionamento na escala hierárquica. Primárias seriam aquelas que ocupariam os maiores
degraus do sistema jurídico e secundárias aquelas ocupantes dos níveis inferiores. Por isto, o
processo Constituinte se encontra em posição superior em relação ao processo legislativo.22
Analisando a supremacia constitucional por outro prisma, sob o ponto de vista das
teorias sociológicas e daquelas que transcendem o direito positivo, a Lei Maior exerce a
função de validar as demais normas do ordenamento, não porque se situe no apogeu de um
escalonamento normativo, mas porque possui um maior substrato de legitimidade ou por
21 SCHMITT, Karl. Teoría de la Constitución. 2ª ed., Madrid: Alianza, 1992. p. 63. 22 Heras definia dessa forma a diferenciação: “Esta teoria gradual do direito oferece a base para distinguir as normas primárias ou fundamentais, das normas secundárias ou derivadas. As primeiras são aquelas que ocupam o lugar mais alto na pirâmide jurídica; as secundárias são as que ocupam os postos inferiores e derivam das primeiras sua validade e conteúdo. HERAS, Jorge Xifra. Curso de Derecho Constitucional. Tomo I. Barcelona: Bosch, 1957. P. 58.
25
causa de sua função de refletir as diretrizes de natureza superior aos dispositivos jurídicos.
É, por outro lado, a norma que goza de maior referência no imaginário popular; suas
disposições atuam como invariáveis axiológicas, alçadas ao patamar de dogmas, que
validam as restantes por uma filtragem ideológica.23 Por outro lado, pelo seu caráter de alta
densidade de abstração e de generalidade, possibilita a conexão e sincronia com preceitos
metajurídicos dos matizes os mais variados.
O Texto Constitucional condiciona, na sua função de norma primeira, a produção das
estruturas normativas restantes, constituindo-se na norma normarum, preceituando a forma
para a feitura das normas secundárias. Nesta sua tarefa, a Constituição, devido à supremacia,
goza de auto-garantia, que na realidade é uma supralegalidade material. Declarada a
inconstitucionalidade das normas que infligirem o preceituado por ela, deve-se expurgá-las
do ordenamento.24
A soberania atribui à Constituição a distribuição de poder entre os órgãos estatais, já
que apenas um órgão superior pode dimensioná-los e estabelecer a sua repartição de
competência.25 Para Recasens Siches, o Poder Constituinte pode distribuir a competência
entre os poderes instituídos porque é um poder superior e originário da soberania, prévio aos
atos normativos ordinários, delegando para eles competência.
O desenvolvimento da atuação da jurisdição constitucional apenas foi possível
devido à densificação do princípio da supremacia das normas constitucionais, significando a
submissão de todos os poderes estatais ao conteúdo estipulado pela Carta Magna. A
Constituição deixa de ser concebida como apenas um texto de conteúdo retórico, que
legitima a atuação das classes dominantes, para se constituir em um texto de eficácia
concretiva plena, contando, para tal desiderato, com o empenho de todos os poderes
estabelecidos.
A supralegalidade é a característica da Norma Normarum que se configura como a
essência do controle de constitucionalidade, evitando que normas infraconstitucionais
23 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem Constitucional. Construindo uma Nova Dogmática Jurídica. Porto Alegre: saFE, 1999. P. 104. 24 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Constituição e constitucionalidade. Belo Horizonte: Jurídicos Lê, 1991. p. 53. 25 No texto constitucional brasileiro de 1988, a repartição de competência se encontra nos arts. 21 usque 32.
26
possam infringir o conteúdo dos dispositivos constitucionais. Caso haja essa afronta, as
normas infraconstitucionais devem ser expulsas do ordenamento com a declaração da sua
invalidade. Ela pode ser dividida em supralegalidade material e formal. A primeira é
originária do judicial review norte-americano, estabelecido no leading case Marbury versus
Madison.26 A segunda é definida como o processo legislativo, a normogénese das normas
infraconstitucionais, que atua na produção da legislação ordinária do ordenamento jurídico.
Essa característica é uma sanção para as normas infraconstitucionais que afrontam a
Carta Magna, tornando-as inconstitucionais e declarando-as nulas. A supralegalidade
significa um importante instrumento para a manutenção da supremacia constitucional,
garantindo a obediência dos seus postulados.
Ainda em decorrência do princípio da supremacia, a Constituição não pode ser
modificada pelos mesmos procedimentos necessários para a alteração das normas
infraconstitucionais. Caso isto ocorresse haveria um ferimento de morte na supremacia das
normas constitucionais. Portanto, a maioria das Constituições ocidentais possui a
característica de imutabilidade relativa, o que significa que os mandamentos da Lex Mater
apenas podem ser modificados por um procedimento mais agravado do que aquele
necessário para a realização de normas infraconstitucionais. Enquanto que o quórum
utilizado para alterar uma lei ordinária é de maioria simples, para modificar a Constituição o
quórum exigido é de 3/5 de votos, em duas sessões, em cada uma das casas. Essa maior
dificuldade para se reformar a Lex Excelsa tem a finalidade de evitar a banalização
constitucional, com a conseqüente perda de sua concretude normativa.
Como qualquer espécie normativa, a Constituição também pode ser modificada.
Apenas o que se exige é um maior quórum para a sua realização. Se a Lei Maior pudesse ser
modificada pelos mesmos procedimentos exigidos para a modificação das leis
infraconstitucionais, a supremacia constitucional estaria estremecida. Com um procedimento
mais dificultoso para a sua realização, necessita-se de um consenso mais substancial para
26 AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um Atentado ao Poder Reformador. Fabris: Porto Alegre, 2000. P. 54.
27
alterar as normas constitucionais, o que dificulta as modificações esporádicas da
Constituição.
A classificação de uma Constituição como rígida, de acordo com uma perspectiva de
natureza jurídica, tem amparo nos procedimentos mais complexos para a sua modificação.
Em uma perspectiva de natureza sociológica, uma Constituição apenas pode ser considerada
como rígida se o impedimento para a sua modificação provier de elementos sócio-político-
econômicos. Nesse diapasão, a Constituição brasileira de 1988, apesar de ser classificada
juridicamente como um texto rígido, sociologicamente é classificada como um texto flexível
porque poucas Cartas Magnas, em sua época, sofreram tamanhas mudanças substanciais na
sua estrutura. O que não significa que ela tenha deixado de ser classificada juridicamente
como uma Constituição rígida. Ela foi modificada de forma tão intensa porque o seu texto
original não mais atendeu aos “fatores reais de poder”, que passaram a ter primazia na
sociedade.
O princípio da soberania popular é a pedra angular do regime democrático e um dos
seus sub-princípios mais importantes configurando-se no princípio majoritário que respalda
a vontade da maioria. Assim, a supremacia da Constituição não pode ser concebida como
uma contradição ao princípio majoritário, essencial ao funcionamento de um regime
democrático. Não obstante a Carta Magna representar uma limitação ao mencionado
princípio no sentido de que as leis têm que se adequar aos mandamentos constitucionais,
quanto maior for a extensão dos seus dispositivos maiores serão essas limitações. O vínculo
entre os dois princípios é pavimentado pela teoria da soberania popular, que em diferentes
proporções embasa tanto o conteúdo da supremacia constitucional, quanto o conteúdo do
princípio majoritário.27
27 “A relação do princípio da maioria com o princípio da constitucionalidade é essencialmente ambivalente. Por um lado, o princípio da inconstitucionalidade é, obviamente, um limite do princípio da maioria, isto é da maioria legiferante ordinária; por outro lado, porém, o princípio da constitucionalidade também é ele mesmo expressão do princípio da maioria, ou seja, da maioria fundante e constituinte da comunidade política. Daí que a função da jurisdição constitucional de fazer prevalecer a Constituição contra a maioria legiferante arranca essencialmente da consideração de que a justiça constitucional visa adjudicar o conflito entre duas legitimidades, de um lado, a legitimidade prioritária da lei fundamental e, do outro lado, a legitimidade derivada do legislador ordinário”. VITAL MOREIRA. “Princípio da Maioria e Princípio da Constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 192-193.
28
Tocqueville concorda que o princípio majoritário deve ser a origem dos poderes
estabelecidos, que depois passam a ser regulamentados por normas previamente
estabelecidas, sob pena de se criar uma tirania da maioria. Contudo, ele se encontra limitado
pelos preceitos de justiça, estando esses dispositivos inseridos nas normas constitucionais.28
Stuart Mill, por sua vez, defende que a maioria não pode anular as possibilidades de
diferença, já que são essas diferenças que proporcionam o progresso. Para ele, a falta de uma
proteção às minorias é um dos fatores que provocam a decadência de um Estado.29
Ao lado de um crescente fortalecimento do princípio da supremacia constitucional,
há uma relativização do princípio majoritário. Alguns fatores podem ser apontados como
causadores desse arrefecimento, como: a) a concepção de lei como originária de uma
vontade geral é substituída pela concepção de que ela pertence à vontade de uma minoria
parlamentar transitória ou de algum segmento social organizado; b) a reformulação da teoria
da separação dos poderes, em que o limite de atuação de cada um deles é cada vez mais
tênue; c) a descentralização da produção normativa, abrangendo os entes estatais
componentes do Estado e alguns órgãos de natureza privada como as agências reguladoras.
A supremacia das normas constitucionais é a característica mais importante da
Constituição, permitindo que esta seja o alicerce para a expansão da jurisdição
constitucional. Em virtude desse fato, o grau de concretização de suas normas é mais
intenso, facilitando a realização do seu conteúdo. A supremacia das normas constitucionais
igualmente proporciona uma relação mais próxima com o regime democrático, à medida que
suas normas possuem um maior consenso na sociedade.
28 “Eu considero vazia e detestável esta máxima: que em matéria de governo a maioria de um povo há o direito de fazer tudo; todavia considero a vontade da maioria da população como a origem de todos os poderes. Estou talvez com contradição a mim mesmo? Existe uma lei geral que foi feita, ou pelo menos adotada, não apenas pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens. Esta lei é a justiça. A justiça é logo o limite do direito de cada povo”. TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 257. 29 “Mas, se a maioria consegue o seu propósito, cada possibilidade de diferença cancela os pressupostos de progresso e inaugura a decadência. [...] O progresso apenas se verifica quando há espaço para o conflito entre uma força e outra de oposta tendência, entre uma autoridade espiritual e outra temporal, entre o poder militar-territorial e o poder industrial, entre o rei e o povo, entre a ortodoxia religiosa e a reformista. Existe sempre a estagnação e o declínio quando a luta é conclusa com o sucesso completo de um dos lados e não surge nenhuma outra contenda para ocupar a cena [...] A falta de proteção às minorias determina na sociedade antiga e na sociedade moderna um estado de desregramento ou de inércia, marcado por um processo lento de decadência”. MILL, Stuart. Considerazione Sul Governo Rappresentativo. La Crisi Del Vecchio Regime e la nascita della Democrazia Moderna. Trad. Michele Prospero. Roma: Riuniti, 1997. P. 118.
29
2.) Jurisdição Constitucional
A jurisdição constitucional é um instrumento indelével para a realização das
finalidades do Estado Democrático Social de Direito. Em todos os continentes, em maior ou
menor grau, há um elastecimento das decisões judiciais para atender às demandas sociais.
Não se pode mais pensar na divisão de poder nos moldes clássicos, pois para atender às
cominações da Carta Magna, a jurisdição constitucional tem que ter um posicionamento
mais atuante, muitas vezes entrando em searas que secularmente eram de competência de
outros poderes. Daí a necessidade imperiosa do seu estudo.
O objetivo deste capítulo é esquadrinhar a jurisdição, dentro de uma perspectiva
integral, e não de forma restrita englobando apenas a jurisdição constitucional. O que não
elide o objetivo fundamental delineado no seu frontispício. Todos os assuntos aqui
abordados têm uma forte analogia com a jurisdição constitucional e servem para explicar de
melhor forma o seu conceito.
2.1) Conceito de Jurisdição
O conceito de jurisdição provém da soberania estatal, traduzindo-se na prerrogativa
de concretizar o direito substantivo.30 A função da jurisdição é densificar o princípio da
soberania, que indiscutivelmente se configura como um apanágio inerente ao Estado. A
soberania representa a mais alta autoridade, o poder supremo dos entes estatais que é
30 Ensina Pontes de Miranda: “Anteriormente, nos comentários ao início do Código de Processo Civil, ao tratarmos do princípio da pretensão processual dirigida ao Estado, frisamos que a expressão “jurisdição”, no sentido de todo o poder público, seja legislativa, seja judiciária, seja executiva, revela conteúdo medieval. O sentido exato é o de poder dizer o direito ( dicere jus),razão por que se há de exigir o pressuposto conceptual de julgamento, de “dizer” (dictio) qual a regra jurídica, o ius, que incidiu”. MIRANDA, Pontes de . Comentários ao Código de Processo Civil.. 5º ed., Tomo I, Atualização legislativa de Sergio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1997. P. 78.
30
personificado nos dispositivos legais, constituindo-se na “verdade específica” do Estado.31
Explica o Professor Pinto Ferreira que a soberania é a propriedade de ser de uma ordem
suprema e, em razão dessa supremacia, se configura como independente nas suas relações
com as pessoas de existência exterior.32 Ao ser incumbido de garantir a efetividade de um
ordenamento jurídico através da jurisdição, o Estado está manifestando a soberania que lhe é
inerente.33
Ao dirimir os litígios de acordo com os paradigmas legais pré-estabelecidos, além de
reafirmar a coercitividade do ordenamento jurídico, a jurisdição exerce a atividade de
pacificar as relações sociais, fornecendo as condições imprescindíveis para o
desenvolvimento social. Desde que o Estado suprimiu a possibilidade de composição dos
litígios por intermédio da autotutela, os órgãos estatais têm o dever de solucionar as questões
consonante o modelo legal estabelecido. Tal prerrogativa não pode ser considerada apenas
como um poder, já que o Estado tem a obrigação de compor os conflitos, situação
comprometedora da paz social, configurando-se como uma função imprescindível, ligada à
própria razão de sua existência.
Giuseppe Chiovenda define a jurisdição como uma função decorrente da soberania
estatal: “Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por escopo a atuação
da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da
atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade
da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”.34
Calamandrei sustenta que não se pode dar uma definição de jurisdição absoluta e
válida para todos os tempos e para todos os povos porque as contingências fáticas
influenciam sobremaneira a sua estruturação. As formas externas, através das quais se
desenvolvem a administração da justiça, bem como os métodos lógicos de julgar, têm um
31 PAUPERIO, Machado A. Teoria Geral do Direito do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1979. P. 136. 32 FERREIRA, Pinto. Novos Rumos do Direito Público. 2 ed., Recife: Sopece, 1998. P.122. 33 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 75. 34 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituição de Direito Processual Civil. Trad. Paolo Capitanio. V. II. Campinas: Bookseller, 1998. P. 8.
31
valor contingente, que não pode ser determinado senão em relação a um certo momento
histórico, o que ele denomina de “relatividade histórica do conceito de jurisdição”.35
Eduardo Couture assevera que o conceito de jurisdição, ao menos nos países latino-
americanos, ainda não foi definido de forma precisa porque se apresenta com distintos
significados. Ele elenca ao menos quatro definições para a sua conceituação: a) como âmbito
territorial, que traz a idéia de vinculação da jurisdição atrelada a um determinado âmbito
territorial, sem adentrar na essência de sua conceituação; b) como competência, confundindo
o seu conceito com o de jurisdição. Esse é um equívoco porque a competência é uma
demarcação da jurisdição e a sua delimitação de atuação, uma relação da parte com o todo;
c) como poder para sinalizar a prerrogativa de autoridade que é conferida ao Judiciário.
Entretanto, a jurisdição não é apenas um poder, configurando-se como um poder-dever,
inclusive considerado como um direito outorgado à cidadania; d) como função, concepção
defendida por Couture, porque é uma obrigação prestada por um órgão designado pelo
Estado para solucionar uma demanda trazida em juízo 36.
Para o mencionado professor a definição de jurisdição como poder não é suficiente,
devendo ser concebida como uma função. Ele distingue a função jurisdicional das demais
funções, notadamente pela irrevogabilidade de suas decisões através da coisa julgada. Assim
ele a define: “Função pública realizada por órgãos competentes do Estado, de acordo com as
formas requeridas por lei, em virtude da qual, por ato judicial, se determina o direito das
partes, com o objetivo de dirimir seus conflitos e as suas controvérsias de relevância
jurídica, mediante decisões com autoridade de coisa julgada, eventualmente factível de
execução”37.
O Direito não se resume apenas à elaboração de leis, pois mais premente do que essa
tarefa é a missão de torná-las efetivas, fazendo com que elas virem realidade. A defesa do
ordenamento jurídico não é incumbência dos cidadãos, tal encargo foi deferido de forma
proeminente ao Poder Judiciário. Aos cidadãos, de forma individual, restaram pouquíssimos
35 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. I, Trad. Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. P. 96. 36 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1958. P.27-31. 37 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Depalma, 1958. P. 40.
32
casos de atuação para assegurar a aplicação dos seus direitos, como nos casos de legítima
defesa, desforço in continenti na defesa da posse, casos de auto-composição etc.
Dentro da tripartição de poderes, coube ao Judiciário, como regra geral, a
incumbência de exercer a jurisdição, o que representou um avanço na formação do Estado
de Direito, em que os cidadãos podem recorrer a um órgão especializado para a defesa de
seus interesses. Na Idade Média e no Estado Absolutista, quando o parâmetro de conduta
não eram os dispositivos legais, vários órgãos tinham a prerrogativa de exercer a jurisdição,
como a Igreja, as corporações, os senhores feudais, os reis etc. A unificação da jurisdição, na
maioria dos casos, no Judiciário representou uma garantia para a concretização dos
mandamentos legais.
A universalidade de jurisdição conferida ao Poder Judiciário, afora as exceções
previstas na Constituição Federal, foi determinada como forma de melhor estruturar o
Estado Democrático Social de Direito, garantindo que os comportamentos sociais sejam
regidos por lei e não por arbítrios voluntários. Se não existissem parâmetros racionais para
direcionar a conduta humana, preponderaria o axioma do mais forte, degenerando o tecido
social.
Toda sociedade necessita de um certo grau de previsibilidade, que é garantido pela
regulamentação normativa. Nicolas Luhmann afirma que a vida social deve ser regida por
estruturas seletivas de expectativas, com o objetivo de reduzir a complexidade e a
contingência da vida social.38
Uma das primeiras características da jurisdição é o fato de ela depender de uma
estrutura normativa, que de forma implícita ou explícita, é uma complementação desta. Não
se pode falar em jurisdição se inexiste uma estrutura normativa que necessite ser
concretizada, uma vez que ela nasce com o fator teleológico de realizar a subsunção
normativa, zelando pela eficácia do sistema jurídico. A menos que se entenda que a
jurisdição, mormente a constitucional, também tem a função de concretizar princípios
metajurídicos, que transcendem a estrutura normativa positivada.
38 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. P. 66.
33
Como segunda característica, pode ser apresentado o fato de que ela subsume a
norma abstrata a um fato concreto, individualizando a lei na aplicação em um caso
específico. A jurisdição tem a função de fazer a ligação entre a esfera abstrata e a seara
factual, adequando a norma abstrata ao fato concreto.
A terceira característica ressalvada é que as decisões proferidas pela jurisdição são
imodificáveis quando adquirem a auctoritas de coisa julgada, possuindo assim
coercitividade. Uma vez proferida, esgotados todos os recursos ou passado o prazo sem a
sua impetração, a decisão não pode se mais modificada, a não ser, dentro do prazo devido,
por uma ação rescisória.
Outra característica é a inércia da jurisdição, exteriorizada pelo brocardo latino nemo
iudex sine actore. Para a realização de sua atuação, é imprescindível a provocação da parte.
Apenas em questões em que o interesse público se revela premente é que o princípio da
inércia da jurisdição pode ser flexibilizado. Nesses casos não há necessidade de se esperar
que haja uma provocação para a atuação dos órgãos jurisdicionais, pois diante da relevância
do interesse público, o princípio da inércia da jurisdição pode ser flexibilizado.
Como quinto apanágio pode-se aludir o seu caráter substitutivo, em que a decisão
judicial substitui a vontade das partes e tem a prerrogativa de auto-execução, de forma
coercitiva, caso haja resistência de algum dos envolvidos. Como os cidadãos não podem
exercer a justiça por sua própria vontade, pois todos têm que obedecer às leis vigorantes, os
órgão estatais que assumem a jurisdição é que passam a exercê-la. Esse apanágio é uma
decorrência do Estado de Direito.
Dentre esses atributos se sobressaem a coercitividade de suas decisões e a coisa
julgada. O primeiro é a característica que tem a jurisdição de impor o cumprimento de suas
decisões, o jus imperium, fazendo com que elas, caso sejam descumpridas, possam ser
executáveis, substituindo a vontade das partes. O segundo é a impossibilidade de
modificação da decisão judicial, seja no próprio processo, seja por intermédio de outras
ações. A sua importância é tamanha que, inclusive se considera como uma cláusula pétrea,
constituindo-se uma prerrogativa específica apenas do Poder Judiciário, não existindo esse
atributo em nenhum outro órgão estatal.
34
Precisa o conceito de coisa julgada Giuseppe Chiovenda: “O bem da vida que o autor
deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta
de lei o garante a seu favor ou nega ao réu, depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu
com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda, converte-se em coisa julgada [...]
Para os romanos, como para nós, salvo as raras exceções em que uma norma expressa de lei
dispõe diversamente”.39
Os elementos principais da jurisdição são a forma, o conteúdo e a função. Como
estes dois últimos denotam a sua essência, enquanto que aquele se configura como o seu
invólucro, o conteúdo e a função serão estudados de forma conjunta mais detalhadamente,
no tópico referente à função da jurisdição constitucional.
A forma da jurisdição é aquela designada pelos dispositivos normativos específicos,
compreendendo os seus atos exteriores. Esses elementos externos são as partes, o órgão
judicial e o procedimento estabelecido para o seu encaminhamento. É de valia frisar que a
formalidade da jurisdição não pode tolher o seu caráter substancial, prevalecendo a máxima
francesa de pas di nullite, sans grief. A forma adotada pela jurisdição significa o modo como
ela se desenvolve para atingir os seus objetivos.
2.2) Definição de Jurisdição Constitucional
O conceito de jurisdição constitucional, na acepção brasileira, ou giustizia
costituzionale como preferem os italianos, ou constitution adjudication como a denominam
os norte-americanos, ou jurisdiccion de la constitución como denominam os espanhóis, ou
verfassungsgerichtsbarkeit, como denominam os alemães, configura-se de difícil definição,
haja vista que já na sua formação abriga dois conteúdos semânticos de difícil precisão:
jurisdição e Constituição. No seu sentido objetivo a dificuldade é estabelecer o que é uma
39 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução: Paolo Capitanio. V. I, São Paulo: Bookseller, 1998. P. 446-447.
35
matéria constitucional, pois essa é ampliada por uma Lei Mater de extensão analítica como a
brasileira, por motivo de se tentar garantir uma determinada estabilidade jurídica. Do ponto
de vista subjetivo, a dificuldade consiste em delimitar a extensão de quem pode exercê-la,
com a finalidade de evitar choques entre as instâncias diversas, em virtude de que o
ordenamento brasileiro permite o seu exercício, tanto através do Supremo Tribunal Federal,
quanto das instâncias judiciárias inferiores.
Biscaretti di Ruffia, que foi professor na Universidade de Milão, afirma que em
senso objetivo a jurisdição constitucional abrange as funções constitucionais que têm a
finalidade tutelar os direitos e interesses pertinentes à matéria constitucional; em senso
subjetivo, está a indicar um órgão diverso da magistratura ordinária, para exercer essa
função, geralmente com um procedimento diferente do utilizado pela jurisdição comum
(afirmação válida apenas para os países que instituíram um tribunal constitucional).40
Segundo Pedro Cruz Villalón, a jurisdição constitucional passou por um processo de
desenvolvimento para assumir a sua atual feição. A derivação mais antiga da jurisdição
constitucional é aquela política, denominada de jurisdição política, encontrada nos países
europeus, que tem um nascimento anterior à jurisdição jurídica. Ela tinha a finalidade de
pacificar as relações entre os sujeitos políticos, representantes de uma estruturação de poder,
através do arbitramento das suas litigâncias por uma câmara ou uma assembléia. Em um
segundo momento, ela se encontra preocupada em sedimentar a sua supralegalidade,
estabelecendo que as leis infraconstitucionais devem se subordinar aos parâmetros da
Constituição, firmando o controle de constitucionalidade. E em um terceiro momento, ela é
associada à jurisdição dos direitos fundamentais, configurando-se como um instrumento
para a sua concretização, realizando o reforço da tutela de determinados direitos.41
O conceito de jurisdição constitucional, algumas vezes, é estabelecido com a mesma
definição de garantias constitucionais, refletindo que o seu escopo maior é assegurar os
direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a extensão do conceito de jurisdição constitucional
40 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P. 556. 41 VILLALÓN, Pedro Curz. La Curiosidad Del Jurista Persa, y otros estudios sobre la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999. P. 489-491.
36
se resume a garantias constitucionais, para simbolizar a importância que os direitos
fundamentais assumem no ordenamento jurídico. Essa perspectiva, ao restringir a amplitude
do conceito de jurisdição constitucional, descura importantes esferas de sua atuação, o que
não contribui para a sua integral percepção.42
A jurisdição constitucional é a função estatal que tem a missão de concretizar os
mandamentos contidos na Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas
possam normatizar a realidade fática. Esta exprime a intenção de estabilizar as relações
sociais, de acordo com os parâmetros da Carta Magna, evitando o risco do arrefecimento de
sua força normativa.
Esse conceito, como a terminologia já esclarece, tem como finalidade a
concretização das normas contidas na Constituição Federal, impossibilitando a sua atuação
na concretização de normas infraconstitucionais. Esta última função pode ser implementada
pelas instâncias ordinárias do Poder Judiciário.
Destarte, seu alcance abrange toda a prestação jurídica compreendida nos
dispositivos constitucionais, garantindo o princípio da universalidade de jurisdição e,
conseqüentemente, resguardando o Estado Democrático Social de Direito. Se a jurisdição
constitucional não for realizada segundo os parâmetros do regime democrático e dos direitos
fundamentais ela deixa de ser um esteio do Estado Democrático Social de Direito e passa a
ser uma chancela da arbitrariedade.
Com o advento do Estado Social o conceito de jurisdição constitucional tem sofrido
substanciais modificações, apartando-se de sua definição tradicional de jurisdictio, fundada
no direito positivo, formatada dentro da distinção entre produção normativa e aplicação
judicial. A jurisdição constitucional ganha novo relevo com as demandas sociais de um
Estado cada vez mais complexo, que exige um direito principiológico, decretando a falência
42 A classificação da jurisdição adotada no decorrer do trabalho é a realizada pelo Prof. Alfredo Baracho, que a divide em: jurisdição ordinária – realizada pelos juízes de direito; jurisdição especial – realizada por outros órgãos como o Senado Federal ou o Tribunal de Contas; jurisdição administrativa – que não é realizada no Brasil, mas que abrange o contencioso administrativo, adotado, por exemplo, na França e na Itália; e por fim, a jurisdição constitucional – com o escopo de concretizar os mandamentos da Lei Maior.
37
da exclusividade do Direito legislado, levando em conta princípios que mantêm a sincronia
do ordenamento com a sociedade. Há um maior espaço de elaboração para as decisões
judiciais, sendo os juízes levados muitas vezes a colmatar uma lacuna jurídica, para manter a
eficácia da Constituição e a completude do ordenamento jurídico.
Apesar de a jurisdição constitucional ganhar mais força nos países que instituíram
um Tribunal Constitucional específico, na sistemática adotada pelo Brasil, em que o
Supremo Tribunal Federal tanto exerce a jurisdição constitucional, quanto funciona como
última instância da jurisdição ordinária, ela também exerce uma importante função, no
sentido de assegurar proteção para os dispositivos constitucionais, velando pela sua
concretização.
A jurisdição constitucional compreende, além do controle de constitucionalidade, a
regulamentação do processo de impeachment; os conflitos de atribuições; as garantias
processuais contidas na Constituição; a tutela dos direitos fundamentais; a estruturação do
Poder Judiciário; o delineamento do sistema federativo de Estado; a criação de partidos
políticos; as normas do regime político etc. Dentre todas essas atividades, uma das mais
relevante, de forma clara, é o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, com
a finalidade de garantir a supralegalidade das normas constitucionais.
De forma esquemática, podemos dizer que a jurisdição constitucional compreende as
seguintes atividades: a) proteção e garantia de concretização dos direitos fundamentais; b)
controle de constitucionalidade das normas e atos normativos; c) controle e fiscalização do
sistema eleitoral, englobando os institutos da democracia participativa, como o plebiscito e o
referendo, com o escopo de velar pela lisura das eleições; d) funcionamento como instância
judiciária, para assegurar o equilíbrio federativo, solucionando os litígios entre os entes
componentes do Estado; e) demarcação dos limites de incidência das competências dos entes
federativos; f) controle dos poderes públicos para que eles possam atuar com eficiência e
atender ao bem comum da sociedade.
A implantação de um órgão incumbido de exercer a jurisdição constitucional, seja
por intermédio de um tribunal constitucional, seja por meio de uma Suprema Corte, apenas
foi possível com o preenchimento de algumas condições consideradas imprescindíveis. A
38
mais importante condição preenchida foi o desenvolvimento dos regimes democráticos,
onde há o predomínio da vontade popular na feitura normativa. A jurisdição constitucional
não pode forcejar em meio a um regime ditatorial, em que não há o respeito pelas normas
constitucionais.
Outro fator importante foi a reformulação da teoria da separação dos poderes, em que
a autonomia das atividades de cada um dos poderes estabelecidos serve, não apenas para
incrementar a eficiência dos órgãos estatais ou para impedir a formação de regimes
autoritários, atuando, de forma imprescindível, mas para concretizar as prerrogativas
contidas no Texto Constitucional, evitando que os dispositivos constitucionais tenham um
valor meramente simbólico.A jurisdição constitucional deixa de ocupar um papel passivo na
defesa da Constituição e passa a atuar de forma ativa, assegurando-lhe concretude
normativa, principalmente para as normas constitucionais programáticas.
O mais importante dos requisitos foi a afirmação absoluta dos direitos fundamentais,
que se configura como um dos escopos da jurisdição constitucional; se eles não fossem
alçados como parte mais importante do ordenamento jurídico, o desenvolvimento da
jurisdição constitucional irremediavelmente estaria comprometido.
Pela importância que assume a jurisdição constitucional nas sociedades atuais, em
que o tribunal constitucional ou a suprema corte exercem a função de intérpretes últimos da
Constituição, há a necessidade de se conferir ao Supremo Tribunal Federal um maior teor de
legitimidade, fazendo com que seus julgados possam ser amplamente aceitos pela sociedade,
aumentando a intensidade normativa da Constituição.
2.2.1) Diferença entre Jurisdição Constitucional e Controle de
Constitucionalidade
39
A concepção de jurisdição constitucional não pode ser confundida com a
conceituação do controle de constitucionalidade. Esta é uma espécie daquela, uma das várias
possibilidades de atuação da força normativa da Constituição.43 O controle de
constitucionalidade, ou judicial review, terminologia adotada na doutrina norte-americana,
tem a função de assegurar a supremacia dos mandamentos constitucionais, adequando as
normas infraconstitucionais aos mandamentos contidos na Constituição. A doutrina da
supremacia constitucional é a essência do judicial review.44
Alguns autores confundem a jurisdição constitucional com o controle de
constitucionalidade, afirmando que ambos representam um mesmo processo, apenas com
diferenciação na sua terminologia. O controle de constitucionalidade não abrange todos os
aspectos importantes da jurisdição constitucional, que é muito mais abrangente do que
aquele.45 Entretanto, não pode ser negado que o controle de constitucionalidade foi uma das
primeiras prerrogativas da jurisdição constitucional, originado do caso Marbury versus
Madison, em 1803, na Suprema Corte norte-americana.
Podem ser aventadas diferenças entre a jurisdição constitucional e o controle de
constitucionalidade. A primeira diferença é a funcional, em que a jurisdição constitucional
tem a função de levar a jurisdição prevista nas normas constitucionais para a sociedade, ou
seja, garantir que os dispositivos constitucionais tenham eficácia concretiva e possam
normatizar a seara fática, enquanto o controle de constitucionalidade tem a finalidade
exclusiva de adequar os mandamentos infraconstitucionais ao que fora estabelecido pela
43 Explica Hesse o sentido semântico da expressão “força normativa da Constituição”: “A Constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais a serem exercidas. Ela regula procedimentos de vencimentos de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal” HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Fabris, 1998. P. 37. 44 Mas da doutrina de Coke permaneceram todavia os frutos, pelo menos na América; e pretendo obviamente aludir àqueles frutos que se chamam hoje de judicial review e supremacia do Poder Judiciário, supremacy of the judiciary”. CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario di Costituzionalità delle Leggi nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 45. 45 Cappelletti defende a diferenciação entre jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade. CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario Di Costituzionalitá Delle Leggi Nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 3. Em igual sentido: “[...]Atualmente, têm-se entendido que a jurisdição constitucional não se circunscreve apenas ao denominado controle da Constitucionalidade das leis e atos normativos controle da constitucionalidade das leis e atos normativos de um Estado, muito menos por um único órgão”. TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional . São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. P. 106.
40
Constituição Federal. As demais espécies da jurisdição constitucional não buscam retirar
normas inconstitucionais do ordenamento jurídico, mas estabelecer o modelo de prestação
constitucional, previsto na Constituição, de acordo com os moldes determinados pelo
legislador constituinte, enquanto que o controle de constitucionalidade tem o objetivo de
oferecer diretrizes que devem guiar o trabalho dos legisladores infraconstitucionais.
A segunda diferença é estrutural. As normas componentes do controle de
constitucionalidade são procedimentais, com uma finalidade acessória de concretizar os
demais dispositivos constitucionais, sem terem uma existência “bastante em si”, mas sendo
justificadas como garantia dos mandamentos constitucionais. Elas apenas atuam quando
outras normas do texto constitucional são infringidas, ressaltando-se, dessa forma, o seu
caráter de acessoriedade. Como as normas pertencentes ao controle de constitucionalidade
têm uma finalidade peculiar, conseqüentemente a sua estrutura também devem se adequar
para o cumprimento dessa finalidade.
Portanto, as normas que compõem o controle de constitucionalidade têm uma
estrutura diferente, de matriz procedimental, pois constituem instrumento indelével para
garantir a supremacia da Lei Maior. Sua finalidade é retirar do ordenamento jurídico as
normas que infrinjam os dispositivos constitucionais, tornando-os sem eficácia, suprir
omissões ou garantir o cumprimento dos preceitos fundamentais. Para o cumprimento dessa
função há uma nítida fiscalização a um outro Poder, o Legislativo, caracterizando-se como
sistema de freios e contrapesos, check and balances, em que um Poder fiscaliza o outro para
evitar exacerbações nos limites postos pelo Estado de Direito.
O controle de constitucionalidade mitiga os excessos cometidos principalmente pelo
Poder Legislativo, que também podem ocorrer em atos do Poder Executivo, quando os
legisladores infraconstitucionais não se atêm aos limites estipulados e tentam suplantar a
supralegalidade dos mandamentos constitucionais. Destarte, para efetuar esse trabalho, deve
haver um maior grau de legitimidade do que o existente nas demais espécies da jurisdição
constitucional, que, na maioria das vezes, oferece diretrizes para os legisladores
infraconstitucionais. A estrutura do controle de constitucionalidade é muito mais complexa
41
que outras estruturas delineadas pela Constituição, exigindo uma inter-relação mais intensa
com áreas metadogmáticas, como a política e a legitimidade social.
Assevera Cappelletti que a complexidade da estrutura do controle de
constitucionalidade ocorre porque há o encontro entre dois poderes e duas funções: o
encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e a jurisdição, entre o legislador e o juiz.46
2.3) Natureza da Jurisdição Constitucional
A jurisdição constitucional tem uma taxionomia jurídica, cuja estruturação e
funcionamento foram estabelecidos pela Constituição, tornando-se parte da seara do direito
público.47 Como órgão cujo delineamento é regido pela Ciência do Direito, tem a função de
garantir a supralegalidade da Constituição, guiando-se por dispositivos previamente fixados
para evitar acintes contra o Estado Democrático Social de Direito. Ela tem natureza jurídica,
apesar da grande repercussão política de suas medidas, porque o seu vetor balizante são as
normas constitucionais, o que não obscurece a discricionariedade das decisões proferidas,
desde que elas se insiram nos dispositivos da Lei Maior.
Apesar de o Poder Constituinte, criador da Constituição, ter uma natureza política, já
que as circunstâncias político-econômico-sociais que circundam o momento histórico da sua
formação são o que ditam o conteúdo das normas constitucionais, a Carta Magna tem uma
natureza essencialmente jurídica. Não obstante ter nascido de uma decisão política, todo o
46 CAPPELLETTI, Mauro. Il Controllo Giudiziario Di Costituzionalitá Delle Leggi Nel Diritto Comparato. Milano: Giuffrè, 1972. P. 5. 47 “Para uns, a maioria dos autores, estamos, designadamente no caso do Tribunal Constitucional, perante actuação jurídica, porque ocupada prevalecentemente com a determinação do Direito mediante critérios de racionalidade jurídica, vinculada na sua essência; sem caráter genericamente oficioso; arrancando da independência e imparcialidade orgânica e dos titulares; recorrendo a procedimento também ele juridificado” REBELO DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 214.
42
seu funcionamento se insere em uma perspectiva jurídica, assim devendo ser analisada
(obviamente que dentro de um caráter dialógico).
O Poder Constituinte nasce fruto de injunções políticas, mas o seu produto, a
Constituição, é a “pedra angular” do ordenamento jurídico, relegando a absoluta
discricionariedade das decisões políticas pela segurança do que fora preceituado nos seus
dispositivos. Na verdade, a Carta Magna se configura como o demarcador entre o mundo
normativo e o mundo fático, com o escopo de normatizar as escolhas políticas realizadas
pelos legisladores constituintes. Como a Constituição é a norma que regulamenta as decisões
sociais mais importantes, claro que é em torno da sua concretização há fortes pressões
extradogmáticas, o que de modo algum retira a sua taxionomia jurídica.
Como a jurisdição constitucional é delineada pela Constituição, sua natureza
inexoravelmente configura-se como jurídica, cujo espaço de atuação fica condicionado ao
conteúdo dos mandamentos contidos no seu texto, livre de amarras impostas por leis
infraconstitucionais. Sua taxionomia está condicionada a vetores legais, postos pela Lei
Maior, que é a norma jurídica basilar do ordenamento. Portanto, como ela é uma decorrência
da Constituição, a sua natureza não poderia ser diferente.
Biscaretti di Ruffia defende que a natureza do Tribunal Constitucional italiano é um
órgão de natureza jurídico-política.48 Francisco Tomás y Valiente igualmente defende que o
Tribunal Constitucional espanhol exerce suas competências por métodos jurisdicionais.49
A jurisdição constitucional é uma função jurídica, mas como tem o escopo de
garantir a supralegalidade da Constituição, ela atua com uma discricionariedade maior que
os demais órgãos jurídicos.
Os autores que defendem que a jurisdição constitucional tem uma natureza política
partem do princípio de que a sua atuação, apesar dos limites impostos pelo texto
48 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P. 564. 49 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 37.
43
constitucional, é guiada por interesses políticos, que são sempre os alicerces das decisões
judiciais, bem como político é o critério de indicação dos seus juízes.
Foi bastante feliz Zaffaroni ao afirmar que a natureza da jurisdição constitucional
dependerá do conteúdo da conceituação do que venha a ser uma decisão política e também
das injunções sócio-político-econômicas, que modulam a estruturação da jurisdição
constitucional em diversos países.50
2.4) Fundamentação da Jurisdição Constitucional
A jurisdição constitucional tem a sua fundamentação calcada na supremacia haurida
da Carta Magna, juntamente com os congêneres da relevância hierárquica das normas
constitucionais que são a supralegalidade e a imutabilidade relativa. Ela somente é
concebida porque a Constituição é considerada a lei preponderante do ordenamento jurídico,
aquela que possui o maior grau de legitimidade social, sob um ponto de vista sociológico; ou
aquela que funciona como o ápice de validade do ordenamento jurídico, segundo o
postulado kelseniano.
A idéia da supremacia da Constituição se apresenta em oposição à idéia da
supremacia do parlamento, mas ambas as doutrinas possuem um ponto em comum: são
concepções modernas com relação à idéia de poder prevalente no Estado Absolutista, de
verniz teocrático, e ambas são calcadas, embora em níveis diferentes, na soberania popular.
A supremacia da Carta Magna faz com que os dispositivos constitucionais sejam as
normas mais relevantes do ordenamento jurídico. Se são as normas mais relevantes do
ordenamento jurídico, para que eles possam realizar a segurança jurídica da sociedade,
funcionando de forma condizente com as expectativas sociais, as normas constitucionais
50 Na verdade Zaffaroni refere-se a taxionomia dos tribunais constitucionais, que pela sua conexão pode ser aplicado à natureza da jurisdição constitucional. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciario. Crise, Acertos e Desacertos. Trad. Juárez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1995. P. 73.
44
devem possuir o maior coeficiente de concretude normativa do arcabouço jurídico. A
ineficácia da Constituição gera uma dissociação entre os princípios constitucionais e os fatos
sociais, entre a Constituição formal e a Constituição material, no que contribui para a perda
da sua supremacia.51 Destarte, a jurisdição constitucional tem como fundamento a força que
exala a Constituição no ordenamento jurídico porque ela busca a concretização de seus
dispositivos.
Relevante elemento para a fundamentação da jurisdição constitucional é o intenso
teor de legitimidade que embasa as normas constitucionais. Criação do Poder Constituinte, a
Constituição é a norma do ordenamento jurídico que apresenta maior grau de legitimidade,
necessitando de complexas condições sócio-político-econômicas para o seu surgimento. Pelo
seu alto teor de legitimidade, nenhuma norma constitucional pode ficar destituída de
eficácia, nem pode haver óbices constitucionais ao seu conteúdo. Assim, a jurisdição
constitucional é uma garantia para a efetivação da Constituição.
A necessidade de um intenso grau de legitimidade na jurisdição constitucional
assenta no fato de que a Constituição funciona como o alicerce normativo que preserva as
regras sociais de convivência, limitando os poderes estatais, check and balances, e impondo
a realização dos direitos e garantias fundamentais. A jurisdição constitucional funciona
como um elo entre o povo e os legisladores, tornando a jurisdição constitucional um
instrumento para adequar a vontade do povo e dos legisladores aos ditames da Lei Maior.52
Em decorrência da legitimidade da jurisdição constitucional, ela pode atuar como
legislador negativo, declarando inconstitucional uma lei advinda do Poder Legislativo que
afronte os mandamentos constitucionais. Este poder adquire também sua legitimidade da
Constituição, podendo-se pensar que a jurisdição constitucional é mais imperiosa do que a
produção normativa, pois é amparada na representação popular. Na realidade, a assertiva 51 PARK, John James. Los Dogmas de la Constitución. Trad. Ignacio Fernández Sarasola. Madrid: Istmo, 1999. P.31. 52 Sintetiza Muller o conceito de povo: “O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em “desrealizar” a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – notre bon peuple”. MÜLLER, Friedrich. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo. A questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 67.
45
anterior não é correta porque a jurisdição constitucional atuou na proteção da Lei Maior,
fazendo com que seus preceitos fossem respeitados. O Poder Legislativo agiu exorbitando
suas prerrogativas e será tolhido só na extensão do seu excesso. Dentro da atuação das suas
prerrogativas constitucionais, não poderá haver qualquer tipo de admoestação nas suas
funções, assegurado que estar pela independência da separação dos poderes.
Outro fundamento da jurisdição constitucional é a tutela de interesses e de direitos
dos cidadãos, evitando-se a ameaça de lesão ou a própria lesão. Para o seu ensejo não é
necessária à ocorrência ou iminência de ocorrência de um ilícito a um cidadão de forma
direta, ela pode ser exercitada quando um dispositivo constitucional for deixado sem
eficácia. De uma forma concisa, pode-se dizer que seu escopo é densificar a concretização
dos direitos fundamentais, o núcleo ontológico mais importante da Carta Magna.
Essa forma de fundamentação encontra respaldo tanto na esfera dogmática, cuja
fundamentação reside na maioria das Constituições, como na esfera metadogmática, calcada
em direitos imemoriais dos homens, que pertencem aos cidadãos, mesmo que os
ordenamentos jurídicos não os prevejam e até mesmo contrariem o seu conteúdo. Sua
concretização ocorre mediante embates sociais que galvanizam o apoio de amplas parcelas
da população, solidificando a formação de um consenso na sociedade.
2.5) Função da Jurisdição Constitucional
A função imperiosa da jurisdição constitucional é servir como instrumento de defesa
da Constituição, garantindo que todas as suas normas possam ter eficácia concretiva e que
não haja ameaça de lesão ou lesão a direitos fundamentais, assegurando os valores
agasalhados pelos dispositivos constitucionais.53 Além disso, tem a missão de garantir o
respeito da Lei Maior pelos entes estatais, pelo legislador e pela sociedade. Em última
53 JAYME, Fernando G. Tribunal Constitucional: Exigência Democrática.. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, P. 93.
46
instância, a finalidade da jurisdição constitucional é aumentar a densidade normativa das
normas contidas na Constituição, realizando o que Calamandrei intitula de velar pela
obediência prática do direito objetivo.54
Na sua formulação inicial, tanto nos Estados Unidos como na Constituição austríaca
de 1920, a função da jurisdição constitucional apresentava três características essenciais: a
defesa dos direitos e garantias fundamentais; a separação de poderes, zelando pelo
funcionamento do check and balances e a definição da atuação entre os órgãos federais e os
Estados-membros das unidades federativas. Com o decorrer do tempo, essas funções foram
sendo aprimoradas e desenvolvidas.
Essa função de defesa não se resume apenas aos mandamentos constitucionais,
tomados sob o prisma da literalidade do seu texto. Ela envolve uma ampla gama de
princípios implícitos que foram pactuados pela sociedade no momento da elaboração da
Constituição e até mesmo outros princípios que não guardam uma relação direta com a seara
normativa. Portanto, a defesa dos mandamentos constitucionais ultrapassa a literalidade de
seu texto, alcançando a defesa também de princípios que estão ausentes da Constituição,
mas que têm a função de densificar os princípios explícitos e de princípios outros que
apresentam forte legitimidade na sociedade.
O princípio que norteia a função da jurisdição constitucional é o da subsidiariedade, no
sentido de que ela não pode ser considerada como uma finalidade em si porque o seu escopo
reside em assegurar o conteúdo das normas constitucionais e garantir a concretização de
seus dispositivos. A Constituição além de ser a referência que especifica a sua atuação,
configura-se como uma limitação para o exercício da jurisdição constitucional.
Cronologicamente falando, umas das primeiras funções da jurisdição constitucional,
e nem por isto de somenos importância, é garantir a integralidade dos mandamentos insertos
na Constituição. Se o paradigma de respeito aos parâmetros legais tem significativa
importância na seara infraconstitucional, maior deve ser o seu relevo na seara constitucional,
em virtude de que as normas mencionadas possuem um conteúdo mais densificado de
54 CALAMANDREI, Pietro. Opere Giuridiche. Tomo I, Napoli: Morano, 1965. P. 72.
47
legitimidade. Se houvesse um escalonamento do grau de acinte ao Direito, o acinte aos
mandamentos constitucionais seria muito mais danoso que o perpetrado pelo acinte aos
mandamentos infraconstitucionais, embora essas duas infrações ao ordenamento jurídico
devam ter sua validade tolhida.
Portanto, uma das mais importantes tarefas da jurisdição constitucional,
indubitavelmente, é o controle de constitucionalidade. Fiscalizar se as normas
infraconstitucionais se adequam aos parâmetros ofertados pela Carta Magna, evitando a
concretização dos vários tipos de inconstitucionalidade, solidifica a sua supremacia e
potencializa a eficácia do sistema jurídico.
Sem o alcance dessa missão não teria sentido a concretização dos mandamentos
constitucionais uma vez que eles não mais existiriam. A supralegalidade da Constituição,
uma decorrência da densidade de legitimidade que goza o Poder Constituinte, pode ser
considerada com a função mediata da jurisdição constitucional, sendo sua função imediata a
concretização dos preceitos contidos na Carta Magna.
Entretanto, a jurisdição constitucional não se esgota no controle de
constitucionalidade, havendo ainda outras funções de igual relevância. Ela exerce a
imprescindível função de garantir a unidade política da federação, impedindo que entes
políticos entrem em litígio, gerando instabilidades entre as esferas de poder. Na defesa da
Constituição, avulta a função de órgão responsável pela cooperação entre as entidades
políticas, solucionando os eventuais litígios ocasionados.
Outro dos seus predicados é garantir a independência dos poderes. Esta função não
apresenta um gravame contra o sistema de freios e contra-pesos – check and balances – pois
muito pelo contrário, busca definir a área de atuação de cada um dos poderes componentes
do Estado, para que os seus atritos e conflitos de atribuições não prejudiquem a eficiência
dos serviços públicos. O conflito de atribuições entre os poderes do Estado ou entre os seus
órgãos componentes é uma função da jurisdição constitucional devido à importância que
apresenta para a própria existência do Estado Social Democrático de Direito.
48
A proteção dos direitos e garantias fundamentais também é uma das funções da
jurisdição constitucional. Eles são o núcleo substancial que serve como norteador da atuação
da jurisdição constitucional, assegurando uma atuação garantista. De igual forma, a proteção
dos direitos fundamentais se configura em um dos alicerces de legitimidade para a jurisdição
constitucional. Essa é a sua principal função e em virtude da sua relevância, as decisões
nesse sentido devem ter força vinculante para todos os órgãos estatais.
Defender as bases do regime democrático, propiciando o seu desenvolvimento e
garantindo a construção de uma democracia participativa no seu sentido material, é
igualmente uma das tarefas da jurisdição constitucional. A democracia participativa é um
avanço em relação ao conceito empregado por Montesquieu, de natureza formal, quando ela
se caracterizava pelo fato de que a soberania popular residia nos representantes populares,
por permitir uma participação efetiva da população em vários âmbitos de decisões
públicas.55
Ela representa uma democratização do sistema político, desde que essa seja feita
seguindo os parâmetros do regime democrático e dos direitos fundamentais. Se a jurisdição
constitucional for implementada sob um regime autoritário ela não visará à defesa dos
direitos da cidadania, mas sim manter o status quo do sistema, legitimando o arbítrio e a
prepotência. Já a defesa dos direitos fundamentais significa assegurar prerrogativas
inalienáveis e imprescritíveis aos cidadãos, que não podem ser descuradas sob forma
alguma.
A jurisdição constitucional exerce um importante papel na defesa dos direitos das
minorias. A essência do regime democrático é a vontade da maioria, o que não quer dizer
que essa vontade seja valorada de forma absoluta, evitando que as decisões políticas sejam
decididas pela força avassaladora de uma maioria arrogante e interesseira, conforme
definição de James Madison.56 O princípio majoritário, majoritarian principle, de forma
55 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. Lo Spirito delle Leggi. Trad. Beatrice Boffito Serra. 5 ed., V. I. Milano: Universale Rizzoli. 1999. P.155. 56 “Ouvem-se em toda parte queixas apresentadas por nossos mais dignos e virtuosos cidadãos, igualmente defensores da fé pública e privada e da liberdade pessoal e coletiva, julgando nossos governos por demais instáveis, o bem público ignorado nos conflitos entre partidos rivais e as providências muitas vezes decididas, não de acordo com as normas da justiça e os direitos do partido minoritário, mas pela força avassaladora de
49
alguma pode tolher direitos fundamentais das minorias que foram instituídos pela Carta
Magna. As minorias devem acatar as decisões políticas tomadas pela maioria, desde que elas
não atinjam aqueles direitos considerados essenciais pela Constituição.
Dispondo de direitos e garantias fundamentais, no caso brasileiro protegido como
cláusulas pétreas, a jurisdição constitucional impede a tirania da maioria, fazendo com que
minorias sociais tenham os seus direitos preservados. Obviamente, o padrão democrático
planteia que o governo pertença à maioria, contudo, esta maioria não pode suprimir direitos
e garantias fundamentais das minorias.57 A legitimidade haurida pela Constituição é muito
mais significativa do que a legitimidade estabelecida por uma maioria que é episódica e
transitória.
Quando a jurisdição constitucional declara a inconstitucionalidade de uma norma, ela
não está cometendo um acinte ao princípio democrático porque a sua função é resguardar a
supralegalidade da Constituição, oriunda do Poder Constituinte que apresenta um teor de
legitimidade muito mais denso do que o princípio majoritário, que arrima a atuação do Pode
Legislativo. Não há nenhum contra-senso ao regime democrático, ao contrário, há o
resguardo de suas prerrogativas.
Em razão do desenvolvimento das dimensões dos direitos fundamentais, a jurisdição
constitucional sentiu a necessidade de começar a atuar protegendo a heterogeneidade sócio-
cultural e o pluralismo. Um dos princípios basilares do pluralismo, ligado umbilicalmente
ao regime democrático, é a tolerância, em que os vários interesses sociais devem coexistir
sob parâmetros mínimos que são ofertados pelos dispositivos constitucionais. Quando a
vontade da maioria suprimir os direitos mínimos das minorias, a jurisdição constitucional
atuará como instrumento de garantia dessas prerrogativas, suprimindo os abusos de uma
maioria parlamentar.
uma maioria arrogante e interesseira. Por mais ansiosamente que possamos desejar que tais queixas seja infundadas, a evidência de fatos conhecidos não nos permitirá negar que elas são em grande parte procedentes”. HAMÍLTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Campinas: Russel, 2003. P. 77. 57 Francesch, Juan Luis Perez. El Gobierno. 2 ed., Madrid: Tecnos, 1996. P. 73.
50
A jurisdição constitucional é considerada a intérprete máxima da Constituição, sendo
essa uma importante função. Cabe ao órgão que a exerce tomar a última ou única decisão
acerca do tema proposto, dependendo do modelo adotado. Ao determinar o sentido e o
alcance das normas constitucionais, a jurisdição constitucional está esclarecendo o conteúdo
da Constituição, o que contribui para a eficácia de suas normas. Portanto, exerce a função de
chisura do ordenamento.
Os juízes singulares também podem interpretar a Carta Magna, sem conferir, a priori,
a essa atividade um caráter de imutabilidade. Nos países que adotam o modelo concentrado
de jurisdição constitucional vigora o princípio da exclusividade de sua interpretação, em que
apenas os tribunais constitucionais podem decidir acerca da lide que verse sobre a
Constituição.O Poder Legislativo interpreta constantemente, da mesma forma, a Carta
Magna, quando realiza as leis que cumprem os desígnios estabelecidos pelos legisladores
constituintes. Não obstante, nenhum deles dispõe das prerrogativas inerentes à jurisdição
constitucional, que é a última ou a única instância de apreciação jurídica, conferindo as suas
decisões efeitos vinculantes.
Como é o conteúdo da jurisdição o que caracteriza a sua função, é de melhor alvitre o
seu estudo de forma conjunta. Ele não pode ser entendido na acepção clássica de jurisdição,
ou seja, na perspectiva de um conflito com relevância jurídica, entre duas partes antagônicas,
que deve ser solucionado mediante procedimento previamente estabelecido, adquirindo
depois autoridade de coisa julgada, tendo como requisito a necessidade da existência de uma
controvérsia jurídica, conceituada como uma pretensão insatisfeita ou resistida. Na ação
declaratória de constitucionalidade, configura-se ponto pacífico na jurisprudência que
inexiste partes antagônicas. O seu conteúdo são as normas constitucionais, com o objetivo
de concretizá-las, sem a necessidade de adequação a modelos processuais que padecem da
ausência de supralegalidade.
Ao defender o conteúdo e a efetividade dos dispositivos constitucionais, a jurisdição
constitucional está preservando as estipulações do Poder Constituinte. Ele é um órgão
normalmente criado por esse poder para, em última instância, defender as suas estipulações,
zelando pela vontade constituinte. Como a formação do Poder Constituinte nos regimes
51
democráticos é o momento de maior efervescência da vontade popular, a proeminência da
função da jurisdição constitucional está em assegurar que as normas advindas da vontade
popular restem imaculadas.
A definição do conteúdo da jurisdição constitucional apenas pode ser especificada
diante da realidade de cada país, pois é uma determinação do Poder Constituinte, atendo-se
às condições sócio-política-econômicas de um dado contexto histórico. O conteúdo varia de
acordo com as necessidades sociais, evitando-se a errônea afirmação de que exista um
conteúdo padrão, ou que uma Constituição não possa ter essa ou aquela matéria fazendo
parte da sua função.
2.6) A Independência como Condição Inexorável para a Concretização da
Jurisdição Constitucional
A independência não pode ser vista como uma qualidade intrínseca à jurisdição
constitucional, antes se configura como um requisito inexorável para a sua concretização.
Ausente essa premissa, a jurisdição constitucional não pode funcionar a contento,
representando muito mais um argumento retórico para legitimar o status quo, do que um
meio eficiente para resguardar a eficácia da Constituição. Ela se bifurca em independência
externa, relativa ao modo como é estruturada, permitindo que a jurisdição constitucional
possa ser exercida de forma livre, sem sofrer restrições por parte de outros poderes, e em
independência interna que permite aos seus magistrados poder tomarem decisões sem
padecer de injunções que contrariem a sua livre convicção.
A prerrogativa de independência da jurisdição constitucional é imprescindível não
apenas à jurisdição constitucional, mas a todos os poderes componentes do Estado, servindo
também como condição para a consolidação do regime democrático. Se um poder pudesse
intervir na competência de outro, o sistema de freios e contrapesos restaria arrefecido,
52
incentivando a produção de arbitrariedades. A democracia se fortalece na medida em que os
poderes são independentes e harmônicos, mormente a jurisdição constitucional que tem a
finalidade de proteger a eficácia da Constituição.
O requisito imprescindível para a realização da independência externa, por parte da
jurisdição constitucional, é o autogoverno do órgão que a exerce, traduzindo-se na
autonomia administrativa e na autonomia financeira.
A autonomia administrativa é a prerrogativa que se concede a um determinado órgão
para que ele tenha as condições necessárias de exercer o autogoverno, dotando-o das
competências devidas para gerir os seus próprios interesses. O órgão que exerce a jurisdição
constitucional deve ter autonomia administrativa para que possa desenvolver as atividades
inerentes à jurisdição constitucional, cumprindo satisfatoriamente suas funções.
A autonomia financeira permite que a instituição organize e administre o seu quadro
de pessoal ativo e inativo, confeccione sua folha de pagamentos, adquira bens e serviços,
estipule a fixação e o reajuste dos vencimentos de seus membros etc. O instrumento para a
concretização da autonomia financeira é o duodécimo que, de acordo com o limite máximo
estipulado em lei, repassa um doze avos do montante devido, mensalmente, que no caso do
Brasil é direcionado ao Poder Judiciário.
Quando se menciona a independência da jurisdição constitucional, imediatamente se
vislumbra a externa, configurando-se na relação com os outros poderes. Com relação à
independência interna, pelas peculiaridades da mencionada jurisdição, tanto no controle
difuso como no controle concentrado, ela é um apanágio de sua própria estrutura, pois
inexiste um órgão que possa retratar ou avocar suas decisões. Ela atua como última instância
jurídica de apreciação. Ensina Pizzorusso que os membros da magistratura em geral, o que
inclui aqueles que exercitam a jurisdição constitucional, não se subordinam à relação do tipo
hierárquico que caracteriza a estrutura da administração pública, já que cada um dos seus
membros é ao mesmo tempo independente e igualmente sujeito aos dispositivos legais.58
58 PIZZORUSSO, Alessandro. “La Magistratura come parte dei Conflitti di Attribuizione” In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Italia. Bologna: Il Mulino, 1982. P. 202.
53
A independência da jurisdição constitucional é, inexoravelmente, a independência
dos seus juízes, com relevância ao seu sentido externo, sendo uma decorrência direta da
separação dos poderes e constituindo-se em sua própria garantia.59 O princípio da
independência da magistratura encontra inspiração na concepção iluminista e garantista da
separação dos poderes no Estado Liberal oitocentista.60 Francisco Tomás y Valiente, que foi
juiz do Tribunal Constitucional espanhol desde a sua fundação, em 1980, até 1992, sustenta
que a independência judicial antes de tudo é um imperativo moral, que possibilita aos juízes
julgar independente de todos as outras influências que não sejam o império da lei, aplicando
e interpretando o Direito tomando como referência o primado da sua consciência e sempre
justificando suas decisões de modo explícito e racional.61
Para Peter Häberle a garantia de independência dos juízes somente é tolerável porque
as outras funções estatais e as entidades pluralistas da sociedade civil contribuem na
estruturação e no funcionamento do Poder judiciário. A independência dos juízes não os
torna órgãos enclausurados porque as influências, as expectativas e as obrigações sociais a
que estão submetidos influem de forma direta na tomada de suas decisões.62
Nos países que adotaram o modelo de controle de constitucionalidade concentrado, a
independência dos tribunais constitucionais é muito mais nítida, pois são organizados
hierarquicamente com as mesmas prerrogativas que os três poderes e que têm a escolha de
seus membros feita por todos os poderes instituídos. Nesses países, o Tribunal
Constitucional pode ser comparado a um “quarto poder”. No Brasil, a jurisdição
constitucional é exercida pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal
Federal, sendo impossível concebê-lo como um quarto poder. A forma de indicação de seus
membros é realizada por indicação do Presidente da República, depois da homologação pelo
Senado Federal, fato que pode levar a uma fragilização da independência de seus membros.
59 “É necessário que os juízes sejam independentes porque isto é uma garantia própria da separação dos poderes”. ALDER, John. Constitutional and Administrative Law. 3 ed., Hampshire: Macmillan, 1999. P. 61. 60 O maior defensor do princípio da separação dos poderes durante os trabalhos constituintes da atual constituição italiana foi Piero Calamandrei. MADONA, Guido Neppi. Cultura Costituzionale. Principi, Regole, Equilibri. Le ragioni della storia, i compiti di oggi. Milano: Il Saggiatore. 1998. P. 379. 61 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. A Orillas del Estado. Madrid: Taurus, 1996. P. 121. 62 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997. P. 31-32.
54
Não obstante as diferenças na estruturação dos diversos modelos, em todos eles a jurisdição
constitucional deve ser estruturada com absoluta independência e igualmente os seus
membros devem ser livres para decidir de acordo com a Constituição.63
No mesmo sentido, André Ramos Tavares assevera a respeito da imprescindibilidade
da independência da jurisdição constitucional: “É essencialmente a independência que, aqui,
cumprirá aquele papel legitimador que faltava. Para que essa independência seja real, e não
uma mera ficção jurídica, ao lado de outras tantas, parece que se faz necessário, ao menos,
afastar a possibilidade de que a designação seja pessoal, por exemplo, do Presidente da
República, ou do Presidente do Parlamento, ou de ambos conjuntamente. É que essa forma
de escolha pode gerar vínculos afetivos, quer dizer, pode acarretar, na prática, uma
verdadeira dependência do designado à pessoa que o designou. Nesse sentido, a aprovação
de um nome por um parlamento, mediante votação na qual se exija alguma sorte de maioria,
cumpre papel de afastar uma tal dependência”.64
Contudo, para que o exercício da jurisdição constitucional possa ser exercido de
forma independente, os juízes que o exercem devem ter algumas garantias específicas, afora
a independência, para que possam atuar sem sofrer pressões de caráter metajurídico. O
princípio da independência da jurisdição constitucional não pode ser apenas abstrato, tem
que se materializar em algumas salvaguardas. As principais garantias outorgadas aos
magistrados componentes do Supremo Tribunal Federal são a vitaliciedade e a
irredutibilidade salarial (que também são extensíveis a todos os magistrados brasileiros).
A vitaliciedade pode ser definida como a prerrogativa de que gozam os magistrados,
de uma forma geral, de poderem permanecer no exercício de suas funções até setenta anos
(idade da aposentadoria compulsória). Depois de sua aquisição, os magistrados apenas
podem perder os seus cargos por sentença judicial transitada em julgado.
Ela é uma das salva-guardas que tem o escopo de garantir a independência dos
juízes. A vitaliciedade assegura a liberdade necessária para que os magistrados possam
63 HAMILTON, Alexandre. Il Federalismo. Trad. Biancamaria Tedeschini Lalli. Milano: Edizioni Olivares, 1980. P. 220. 64 TAVARES, André Ramos. Tribunal e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1988. P. 37.
55
prolatar as suas decisões judiciais sem medo de perderem os seus cargos, em conseqüência
de uma sanção, por terem contrariado poderosos interesses em suas sentenças.
Apesar de os membros do Supremo Tribunal Federal gozarem de vitaliciedade, ela
não se mostra benéfica como prerrogativa para os membros do órgão que exercem a
jurisdição constitucional, sendo imprescindível também para os magistrados das demais
instâncias judiciais. De melhor alvitre seria o estabelecimento de um mandato previamente
determinado que além de proporcionar todos os benefícios da vitaliciedade, ainda
possibilitasse uma renovação periódica dos seus membros, o que ajudaria a densificar a
legitimidade da jurisdição constitucional.
A vitaliciedade dos membros que compõem a jurisdição constitucional dificulta o
aprimoramento da jurisprudência, o que pode ensejar gaps com a realidade social e diminuir
o grau de sua legitimidade. Como as decisões da jurisdição constitucional têm uma grande
repercussão política, a legitimidade de seus membros deve ser constantemente densificada
pelas forças sociais, o que ocorre quando a escolha dos seus juízes é realizada pelos poderes
estabelecidos, e de forma periódica.
A irredutibilidade salarial assegura que os vencimentos dos membros que compõem
o órgão que exerce a jurisdição constitucional não poderão sofrer redução.65 Desta forma
impede-se que os seus vencimentos possam servir de chantagem para o direcionamento das
decisões. A única diminuição permitida é aquela que ocorre por intermédio de aumento na
carga tributária.
A doutrina costuma exigir outros pré-requisitos para a concretização da
independência dos membros que exercem a jurisdição constitucional, que são os princípios
da idoneidade e o da imparcialidade.66 O princípio da idoneidade realmente se revela
65 Explica Eduardo Couture a definição de independência econômica dos juízes: “Mas todas essas garantias seriam ilusórias se uma vida privada excessivamente humilde colocasse o juiz em uma condição social inferior a de seus concidadãos, se o bem-estar moral e a placidez de espírito não estivessem equilibrados por um certo bem estar de caráter material, que permitam que as garantias inerentes à magistratura sejam concomitantes com a satisfação de um mínimo de aspirações de ordem material, que todo homem coloca na mesma base da sua vida privada e familiar”. COUTURE, Eduardo J. Estúdios de Derecho Procesal Civil.La Constitución y el Proceso Civil. Tomo I. Buenos Aires: EDIAR, 1948. P. 151. 66 ONIDA, Valério. “Giurisdizione e Giudici nella Giurisprudenza della Corte Costituzionale” In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Italia. Bologna: Il Mulino, 1982. P.189.
56
imprescindível, tanto no seu aspecto moral, quanto no seu aspecto técnico. Na Constituição
brasileira de 1988, esse requisito foi positivado quando se exigiu dos membros indicados
para o STF notável saber jurídico e idoneidade moral. Com relação ao princípio da
imparcialidade, ele se refere à distância que o magistrado deve tomar das partes
componentes do litígio. Tomada como cânone do positivismo jurídico, como corte
axiológico, tal princípio se mostra de difícil concretização. Se a sua realização na jurisdição
ordinária já enfrenta críticas contundentes, na jurisdição constitucional ele se mostra
irrealizável, em virtude dos interesses que são postos sob sua apreciação, que, em sua
maioria, são matérias de grande repercussão para toda a sociedade. Todavia, as decisões
judiciais devem seguir os parâmetros traçados pelos dispositivos constitucionais não
podendo ser tomadas de forma arbitrárias, sem apresentar lastro, mesmo que de forma
mediata na Constituição.
A independência da jurisdição constitucional é traduzida tanto na sua independência
externa, na sua estrutura, como na independência dos seus membros. Quanto a estes, a
finalidade é permitir que os juízes que exercem essa função possam tomar suas decisões de
forma livre e soberana, tendo como pontos referenciais apenas o Texto Constitucional e as
suas consciências.
2.7) A Jurisdição Constitucional do Sistema Norte-Americano e do Sistema
Europeu
Os dois modelos que têm exercido uma maior influência na jurisdição constitucional
em todo o mundo são o modelo norte-americano, de natureza difusa, e o modelo europeu, de
natureza concentrada, que centraliza as suas decisões em um tribunal constitucional.
O modelo europeu, inspirado no Tribunal Constitucional austríaco de 1920, começa a
apresentar uma maior influência sobre outros países, principalmente após a Segunda Guerra
Mundial, intensificando-se no final do Século XX.
57
A influência do sistema norte-americano reside no fato de que ele foi o primeiro a
estabelecer a prerrogativa de anular os dispositivos infraconstitucionais que violassem os
mandamentos constitucionais (null and avoid), construindo a partir dessa decisão um
arcabouço jurisprudencial que reafirma o papel da Suprema Corte como guardiã da
Constituição. Mesmo em países que implantaram a jurisdição constitucional, por intermédio
dos Tribunais Constitucionais, a sua influência é sentida de forma paralela, quando há a
permissão para que os juízes de primeira instância possam, argüido a existência de uma
inconstitucionalidade, remeter a matéria para decisão do Tribunal Constitucional. O maior
exemplo desse fato ocorre em alguns países da América.67
Nos Estados Unidos, o controle de constitucionalidade foi o resultado normal e
espontâneo da ação do Poder Judiciário. Antes da famosa decisão do caso Marbury v.
Madison, prolatada em 1803 por Marshall, não faltam na história norte-americana
posicionamentos favoráveis à supremacia constitucional. Na Europa, por motivos históricos,
a idéia de se criar um órgão que concentrasse o exercício da jurisdição constitucional, antes
da Segunda Guerra, não prosperou. Afora o Tribunal Constitucional austríaco, criado por
Kelsen, e que não logrou maior desenvolvimento, o surgimento dos tribunais constitucionais
veio a ocorrer depois da Segunda Grande Guerra, com o surgimento do Tribunal
Constitucional Alemão, em 1951.
Como causas principais para não se criar mais cedo tribunais constitucionais na
Europa, podem ser mencionadas a teoria da supremacia do parlamento e a tendência à
flexibilização da Constituição. A primeira causa, que impedia a sua criação, era a idéia de
supremacia do parlamento, considerado como a expressão da sociedade civil, em que a
imposição de um limite a sua autoridade do parlamento seria considerada como uma ofensa
à soberania popular. Pode ser mencionado ainda, o fato de que historicamente o poder
judiciário foi ligado à nobreza, consistindo em um longa manus do poder real. O segundo
fator é que, como inexistia a generalização do sufrágio democrático, apenas pequena parcela
da população votava e, conseqüentemente, participava da vida política, por iss não ser
conveniente a formação de um órgão que reduzisse a margem de manobra dos autores 67 SEGADO, Francisco Fernández. La Jurisdicción Constitucional en América Latina. Evolución y Problematica desde la Independencia Hasta 1979. In: Revista do Curso de Direito. Recife: SOPECE, 2002. P. 36.
58
políticos, já que eram esses os agentes que criavam a Constituição e, portanto, podiam
modificá-la ao seu alvedrio. As normas constitucionais eram vistas de forma flexível,
elaboradas para atender aos interesses da classe dominante. Nessa época, o Estado de
Direito ainda não era Estado Democrático Social de Direito.
Em comum, os dois sistemas concordam com a finalidade da existência da jurisdição
constitucional, que representa um instrumento para o desenvolvimento do regime
democrático, aprimorando o check and balances e aperfeiçoando a defesa dos direitos
fundamentais.
Os tribunais constitucionais, peculiaridade do sistema concentrado, não pertencem ao
Poder Judiciário, nem muito menos ao Poder Executivo, é um órgão que foge da
conceituação típica dos três poderes. Seus magistrados não fazem parte do Poder Judiciário,
nem sua regulamentação constitucional é realizada conjuntamente com esse poder. 68 O que
não quer dizer que os seus membros não possuam todas as prerrogativas que detêm os outros
poderes e que os seus juízes não tenham o mesmo status, imunidade e privilégios dos
membros do parlamento.69
Defende o professor Alessandro Pizzorusso que nas últimas décadas a diferença entre
o sistema norte-americano e o europeu tem se reduzido bastante porque os dois sistemas
estão apresentando características semelhantes. No sistema europeu, principalmente na
Alemanha, Espanha e Itália, há uma proximidade com o sistema difuso, através do juízo de
prejudicialidade, em que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, assume, em via
reflexa, o caráter de nulidade de um ato normativo ou decisão judicial. Outro ponto de
similitude é que nos recursos do sistema concentrado, como o recurso de amparo e o
verfassungsbeschwerde, somente se pode recorrer ao tribunal constitucional depois da
68 “A Corte Constitucional não é formada pela magistratura considerada como ordinária e seu funcionamento não se refere ao conteúdo da Constituição que regulamentar o Poder Judiciário”. PALLIERI, G. Ballaadore. Diritto Costituzionale. 4 ed., Milano: Giuffrè, 1955. P. 290. 69 “Pode-se dizer que o Tribunal Constitucional Italiano tem as prerrogativas de garantia de outros poderes e seus juízes têm o status, a imunidade e os privilégios dos membros do parlamento”. BARILE, Paolo. Scritti di Diritto Costituzionale. Padova: Antonio Milani, 1964. P. 139.
59
impetração de recurso na última instância, procedimento necessário e igual para que um
recurso possa ser decidido pela Suprema Corte norte-americana.70
Apesar de a Espanha e de a Alemanha adotarem o sistema concentrado de controle
de constitucionalidade, através de tribunais constitucionais, o recurso de amparo e o
verfassungsbeschwerde apresentam similitude com o controle difuso, na medida em que a
legitimidade para a sua interposição pode ser feita por qualquer cidadão que tenha os seus
direitos cerceados, devido à importância apresentada pelos direitos fundamentais. O
requisito exigido é que se esgotem todas as instâncias da jurisdição ordinária.
Para Pizzorusso, em virtude dessa evolução, a diferenciação não seria mais entre o
sistema europeu e o sistema norte-americano, mas entre um sistema concreto e outro
abstrato de controle de constitucionalidade das normas.71
No mesmo sentido, afirmando que a diferenciação entre os dois sistemas tende a
desaparecer, é a afirmação de Alessandro Pace: “[...]em concreto a diferença entre os dois
sistemas tende a desaparecer de maneira clara, quando se tem presente, de um lado, que a
Suprema Corte dos Estados Unidos adota, na sua própria atividade jurisdicional, critérios de
oportunidade considerados políticos, certamente não inferiores aos quais adotam a nossa
Corte – Tribunal Constitucional italiano – e, de outra forma, a sensibilidade que os valores
constitucionais estão impregnados nos vários níveis da nossa magistratura, os quais, na
solução das controvérsias, sempre fazem referências às normas constitucionais com a
finalidade de dar uma interpretação adequada às leis ordinárias”72.
O vetor preponderante do sistema europeu são os direitos fundamentais, mormente
os que caracterizam o Welfare State, resumidos no princípio do human dignity. Mesmo as
diferenças existentes entre o sistema italiano, português, espanhol e alemão, por exemplo,
não são suficientes para obnubilar a proteção aos direitos fundamentais, como o substrato de
conexão e característica fundante desses sistemas. O sistema norte-americano tem como
vetor primordial os direitos fundamentais que asseguram o funcionamento do regime
70 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 248-249. 71 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 249. 72 PACE, Alessandro. “Corte Costituzionale e Altri Giudici: Un Diverso Garantismo”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 240.
60
democrático, podendo ser simbolizados pelo direito do free speech, sem a extensa lista
protegida pelo sistema europeu. Uma segunda diferenciação é a relevância que apresentam
os direitos sociais para o sistema concentrado e a pouca importância que ostentam no
sistema difuso. Afora a época do “Warren Court” a jurisdição constitucional dos EUA não
se caracteriza pelo primado da defesa dos direitos sociais, como entendem os europeus,
preferindo privilegiar os direitos da privacy. Uma outra distinção defendida, por Jörg Luther,
é que a jurisdição constitucional dos EUA é unilateralista, baseada nas tradições históricas
do constitucionalismo norte-americano, enquanto que a européia é multilateralista, pois sofre
a influência de várias realidades históricas, sendo por esse motivo mais aberta e, portanto,
passível de modificações.73
Assim, de uma forma simplista, e por isto mesmo superficial, pode-se dizer que o
sistema europeu tem como objetivo fundamental a proteção do princípio da igualdade
enquanto que o sistema norte-americano tem como escopo a proteção do princípio da
liberdade, havendo, nos dois modelos, uma constante tensão entre esses dois princípios. Não
que eles sejam excludentes, podem ser colmatados para densificar os direitos fundamentais.
O primeiro modelo tem a incumbência de proteger os valores democrático-sociais, enquanto
que o segundo tem a incumbência de defender os valores liberais. Valores esses que são a
alma desses dois sistemas respectivamente.
A raiz dessas diferenças mencionadas reside em fatos históricos, sedimentados ao
longo da história constitucional dos dois modelos, não podendo ser encontrada apenas em
uma opção teórica. Os contornos atuais desses dois sistemas provêem de desafios
verificados ao longo de acontecimentos empíricos, adquirindo grande importância para o
sistema europeu na formação de regimes autoritários, que contavam com o respaldo popular
e ensejaram todas as hecatombes da Segunda Guerra Mundial; para o sistema norte-
americano os direitos ligados ao liberalismo político, solidificados ao longo do processo de
independência, formam a essência da cultura dos Estados Unidos.
73 LUTHER, Jörg. Costituzionalismo europeo e costituzionalismo americano:scontro o incontro. In: www.germanlawjournal.com/current_issue.php. Capturado em 24/06/2003.
61
2.8) O Exercício da Jurisdição Constitucional pelo Sistema Concentrado e
pelo Sistema Difuso no Brasil
No Brasil, a primeira estruturação da jurisdição constitucional foi feita por
intermédio da forma difusa, com uma longa tradição na defesa dos direitos fundamentais,
apresentando, por esse fato, significativa importância para o ordenamento jurídico pátrio.
Mesmo nos países que adotam o sistema concentrado de jurisdição constitucional, os juízes
ordinários têm a prerrogativa de não aplicar as leis que julguem inconstitucionais, remetendo
a decisão para o tribunal constitucional.74
A tutela jurídica oferecida pelo controle difuso, incidindo em uma situação jurídica
subjetiva, tem como principal finalidade salvaguardar os direitos fundamentais expostos no
texto constitucional. Essa finalidade ganha uma maior evidência na prerrogativa do cidadão
possuir legitimidade para diretamente impetrar uma ação cabível para a defesa dos seus
direitos, ao passo que no controle concentrado essa legitimidade é conferida apenas aos
órgãos elencados na Constituição. Outro motivo para a sua relevância é que ele pode ser
exercido por qualquer juiz de direito, que esteja presente nos mais distantes rincões,
propiciando um contato mais próximo entre o cidadão e a tutela de seus direitos.
Já o sistema concentrado de jurisdição constitucional tutela de forma mais adequada
a integridade sistêmica do ordenamento, no que permite uma uniformização de suas
decisões, inclusive com efeito vinculante. Como sua apreciação é feita de forma exclusiva
pelo Supremo Tribunal Federal, o tempo de decisão tende a ser mais rápido, sem a
necessidade de passar por outras instâncias, fato que ameniza a insegurança jurídica,
provocada pela demora na prolatação da sentença.
74 Explica Luis Lopez Guerra: “O juiz ordinário atua como colaborador da jurisdição constitucional mediante o posicionamento da questão de inconstitucionalidade. O juiz tem que realizar (explicita ou implicitamente) um juízo prévio de inconstitucionalidade a respeito das normas legais implantadas ao caso concreto, e adotar a decisão conseqüente de aplicar a lei que considere ajustada a Constituição ou levar a questão de inconstitucionalidade ao tribunal Constitucional”. LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 30.
62
Como similitude entre o exercício da jurisdição constitucional no Brasil pelo sistema
concentrado ou pelo sistema difuso pode ser apontado o fato de que ambos têm a finalidade
de garantir a aplicação e a defesa da Constituição, compartilhando a mesma função. As
diferenciações, na estruturação do controle concentrado e do controle difuso, não
obstaculam essa finalidade, antes se completam para assegurar uma maior concretude
normativa da jurisdição constitucional.
A crítica que se faz ao controle difuso de jurisdição constitucional de que ela
prejudica o caráter sistêmico da Constituição, é segundo Francisco Fernández Segado
destituída de veracidade. Muito pelo contrário, a unidade do sistema norte-americano, por
exemplo, encontra-se na teoria de que qualquer juiz tem o poder e o dever de aplicar as
normas constitucionais por cima de qualquer outra regra, com a obrigação de considerar nula
e sem nenhum valor qualquer norma jurídica contrária à Constituição.75
Por outro lado, a principal crítica que se faz, com relação ao controle concentrado
da jurisdição constitucional, é que ele veda a postulação por parte dos cidadãos na defesa
dos seus direitos. Ao concentrar a legitimidade de postulação apenas a poucos órgãos
descritos na Constituição, ele retira da sociedade um grande instrumento de proteção. Como
vantagem pode ser mencionado o fato que ele retira a norma eivada de inconstitucionalidade
do ordenamento jurídico, com eficácia erga omnes.
A existência dos dois sistemas de jurisdição constitucional, atuando
concomitantemente no Brasil, não pode ser vista como uma fragilidade, muito pelo
contrário, configura-se como uma vantagem, desde que o funcionamento desses dois
sistemas possa ser realizado de forma sincrônica, em que um não cerceie a atuação do outro.
Atuando os sistemas de forma conexa e cooperativa, pode haver uma potencialização no
resguardo dos direitos fundamentais que são considerados como o núcleo ontológico da
Carta Magna.
75 SEGADO, Francisco Fernández. La Jurisdicción Constitucional en América Latina. Evolución y Problematica desde la Independencia Hasta 1979. In: Revista do Curso de Direito. Recife: SOPECE, 2002. P. 33-100.
63
2.9) O Supremo Tribunal Federal como Órgão Jurídico de Exercício da
Jurisdição Constitucional
A doutrina considera que a taxionomia do Supremo Tribunal Federal e as suas
decisões têm natureza jurídica, não havendo discordâncias relevantes acerca desse fato. Ele,
ao contrário dos tribunais constitucionais europeus, não pode ser considerado como um
poder distinto dos demais, pois faz parte do Poder Judiciário, configurando-se como o seu
órgão de cúpula. Fazendo parte desse poder, em que seus órgãos têm uma natureza
nitidamente jurídica, sua taxionomia não poderia ser diferente, apesar da maior
discricionariedade de suas decisões e da forma peculiar de sua composição.
Mesmo que as indicações para a composição do Supremo Tribunal Federal sejam
realizadas pelo Presidente da República, não há obscurecimento da sua natureza jurídica.
Esse fato representa uma menor densidade de legitimação na composição dos membros do
Tribunal. Mas, o fato de que os magistrados escolhidos gozem de vitaliciedade, podendo
permanecer nos seus cargos até os setenta anos, diminui a possibilidade de partidarização de
seus membros o que, por outro lado, traz como conseqüência uma lenta renovação dos seus
membros e uma dificuldade de sincronia de suas decisões com as necessidades sociais,
configurando-se de melhor alvitre a instituição de um mandato fixo.
As injunções sócio-políco-econômicas que cercam as decisões da Egrégia Corte
brasileira não retiram a essência de sua natureza jurídica, porque suas decisões são
construídas a partir de uma racionalidade peculiar à Ciência do Direito. As influências que
circundam o sistema jurídico, para serem por este absolvidas, são transformadas em
linguagem própria do sistema, funcionando de acordo com as estruturas que regem o
Direito.
O que não pode ser negado é que os ministros do Supremo Tribunal Federal atuam
em normas jurídicas que apresentam um alto teor de sentido político, que são os
mandamentos constitucionais. Um dos fatores teleológicos da Lei Mater configura-se em
64
juridicizar as principais decisões políticas da sociedade, como a forma de Estado, a forma de
governo etc. Portanto, os ministros atuam em normas jurídicas que apresentam maior
abstração, o que lhes possibilita amplo espaço para aplicá-las na realidade social. O seu
campo de atuação, no mais das vezes, envolve matérias políticas o que não desnatura a
natureza jurídica de suas decisões, haja vista elas serem emanadas dentro dos parâmetros do
Direito.
A motivação das decisões do Supremo Tribunal Federal envolve, mesmo que de
forma extrínseca, apenas argumentos jurídicos, que são recolhidos ao longo do processo. A
motivação das decisões judiciais é a mais segura garantia de que elas serão proferidas nos
moldes jurídicos, mesmo que diante de matérias que tragam notórias conseqüências
jurídicas e dentro de um amplo campo de discricionariedade. Outrossim, ao expor os
argumentos que amparam as decisões proferidas, devido ao princípio da publicidade, há a
possibilidade de que esses argumentos possam ser conhecidos pela sociedade, podendo
sofrer censura da coletividade.76
É indiscutível que alguns de seus julgados se projetam atrás de escolhas efetuadas
pelo legislador, que têm caráter próprio de decisão política, ultrapassando o normal dos
julgados dos demais tribunais. Não obstante a margem de discricionariedade que gozam os
ministros, eles devem se ater aos ditames da Constituição, dentro da fundamentação lógico-
jurídica, própria da Ciência Jurídica. O que não se pode negar é que algumas decisões do
Supremo Tribunal Federal têm efeitos políticos.77
O procedimento seguido pela Máxima Corte na jurisdição constitucional não destoa
daqueles das demais instâncias e tribunais, que se guiam por vetores jurídicos, tendo como
parâmetro os dispositivos normativos. Todos os argumentos encontram guarida no direito
objetivo, seguindo um devido processo legal, previamente estabelecido na lei. No que diz
respeito ao funcionamento e à estruturação do Supremo, ele segue o mesmo modelo
estabelecido para os demais tribunais, não dispondo, a não ser nas peculiaridades que lhe são
inerentes, de diferenciações com relação às outras instâncias judiciais. Um exemplo de
76 ANDRIOLI, Virgilio. Studi Sulla Giustizia Costituzionale. Milano: Giuffrè , 1992. P.30 77 Pode-se afirmar que uma norma jurídica tem efeitos político quando ela afeta diretamente a estruturação da ordem social estabelecida.
65
diferenciação entre o STF e os demais tribunais é que as competências desses podem ser
estabelecidas por meio de leis infraconstitucionais, enquanto que as competências daquele
apenas podem ser estabelecidas por meio de normas constitucionais.
3.) Tribunais Constitucionais
Antes de qualquer desenvolvimento da temática proposta, mostra-se imperioso
precisar bem o conteúdo semântico da expressão tribunal constitucional. Ele significa o
órgão incumbido, nos sistemas constitucionais de jurisdição concentrada, de realizar a
jurisdição constitucional, sem que se possa, de sólito, exercê-la nas instâncias da jurisdição
ordinária. É o sistema de jurisdição constitucional o que foi adotado pela maioria dos países
europeus.
A implantação dos tribunais constitucionais ocorreu de forma preponderante após a
Segunda Guerra Mundial, naqueles países que haviam estado debaixo de regimes ditatoriais,
com o escopo de que o órgão que exercesse a jurisdição constitucional fosse dotado de
grande autonomia, para que assim pudesse impedir que as decisões políticas ultrapassassem
os limites estabelecidos na Constituição. Foi uma tentativa de regulamentar a esfera política
para que ela jamais pudesse voltar a cometer as atrocidades vivenciadas pelos regimes
fascistas e nazistas. Houve uma revitalização do direito natural, que estava esquecido,
firmando-se a crença na existência de alguns direitos que são inerentes ao gênero humano,
tendo como núcleo substancial o princípio da dignidade da pessoa humana.
Segundo Javier Perez Royo, na maior parte dos países com maior tradição
democrática da Europa, como Inglaterra, Suíça e países nórdicos em geral, não existe um
sistema de controle da constitucionalidade. A razão é que esses países, com uma longa
tradição histórica de desenvolvimento do regime democrático, confiam em deixar ao Poder
Legislativo a função de interpretar a Constituição. Enquanto que os países, onde o
parlamento, em menor ou maior extensão, legitimou a formação de regimes ditatoriais,
66
resolveram outorgar a prerrogativa de interpretar a Constituição, de forma suprema, a um
órgão diferente dos demais poderes constituídos, surgindo assim os tribunais
constitucionais.78
Os tribunais constitucionais surgem com a finalidade maior de impedir que maiorias
políticas, formadas por um deficiente sistema de representação popular, possam tolher
direitos fundamentais das minorias ou até mesmo abolir o Estado Democrático Social de
Direito, em nome do princípio majoritário. Constitui-se no instrumento de fiscalização da
vontade da maioria da população, para que ela se enquadre dentro do lineamento disposto
pelas normas constitucionais.
Os tribunais constitucionais têm uma função de equilíbrio na dinâmica institucional
dos três poderes. Como são estruturados com as mesmas prerrogativas do Legislativo,
Executivo e Judiciário, sem todavia fazer parte de nenhum deles, podem definir o limite de
atuação de cada um desses poderes, da forma que melhor possa resultar na eficácia da
concretização constitucional.79 Eles são estruturados como órgão constitucional,
independente dos demais poderes estabelecidos.80
A independência é a sua principal característica, manifestando-se na separação dos
demais poderes estabelecidos, até mesmo dos órgãos do Judiciário, o que lhes garante
liberdade de exercício, sem se ater a qualquer tipo de pressão ou de subordinação.81 Em
decorrência dessa prerrogativa, de que goza o tribunal constitucional, advém a sua
neutralidade, apanágio intrínseco de sua taxionomia, que além de ser um dos seus substratos
78 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 23. 79 FAVOREAU, Louis at Alli. Droit Constitutionnel. Paris: Dalloz, 1998. P. 264. 80 O predicativo de independência dos tribunais está contido no art. 1.1 tanto do Tribunal Constitucional espanhol como o alemão. Art. 1. LOTC: 1. “O Tribunal Constitucional, como intérprete supremo da Constituição, é independente dos demais órgãos constitucionais e está somente submetido à Constituição e a presente Lei Orgânica. 2. É o único órgão deste gênero e estende sua jurisdição a todo o território nacional” (Tribunal Constitucional espanhol). Art.1. LOTC: 1. “O Tribunal Constitucional Federal é um órgão da federação, autônomo e independente com relação a todos os demais órgãos constitucionais” (Tribunal Constitucional alemão). 81 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 11.
67
de legitimidade, permite que ele possa atuar dirimindo conflitos entre os órgãos estatais, já
que não pertencem a nenhum dos poderes estabelecidos.
Os tribunais constitucionais não fazem parte do Poder Judiciário, o que evidencia a
dicotomia entre a jurisdição ordinária e a jurisdição constitucional. Tanto o tribunal
constitucional quanto o Poder Judiciário são regulamentados na Constituição em partes
distintas, o que reforça essa diferenciação. A forma de seleção dos juízes, que exercem a
jurisdição constitucional, em um mandato previamente determinado, é feita por indicação
dos poderes estabelecidos, desde que sejam preenchidas algumas condições fixadas pela
Constituição. Enquanto que a escolha dos juízes ordinários é feita por concurso de provas e
títulos, sendo a inamovibilidade uma das suas principais garantias.
A forma de composição dos juízes que atuam na jurisdição constitucional é diferente
da forma de composição dos magistrados, que exercem a jurisdição ordinária pelas
peculiaridades que são inerentes à função de concretizar os mandamentos da Carta Magna.
A forma de escolha dos membros do tribunal constitucional é um dos elementos
densificadores da sua legitimidade, devendo preencher os requisitos de representatividade e
de pluralidade.
O requisito da representatividade se configura como o requisito de que os indicados
para o tribunal constitucional devem ser aprovados por uma maioria qualificada do Poder
Legislativo, como forma de aumentar a legitimidade de seus membros e permitir que as
minorias possam atuar de forma mais incisiva, impedindo que o alto quorum exigido possa
ser concretizado, tornando-se um veto da minoria àquela escolha que não conte com o seu
respaldo. No Tribunal Constitucional alemão e no português há necessidade das indicações
serem aprovadas por dois terços dos membros do parlamento, no Tribunal Constitucional
italiano o quorum é de três quintos.82
82 “Existindo designação parlamentar, ela supõe maiorias qualificadas, por exemplo, de 2/3 na RFA, em Portugal e na Bélgica e de 2/3 e depois de 3/5 na Itália, como em Espanha, travando abusos de maiorias absolutas e impondo acordos interpartidários com escolhas em nível extra-parlamentar, de decisão nacional dos partidos intervenientes, como acontece com o acordo bipartidário austríaco, sucedeu com a convenção pluripartidária italiana estabilizada desde de 1952 (não poucas vezes acidentada na sua concretização – que o digam Basso, Elia e Mancini); e ainda o acordo tripartido alemão e o acordo de blocos português”. REBELO
68
A pluralidade significa que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deve ser
composto por representantes dos mais diversos segmentos da sociedade, com a finalidade de
legitimar suas decisões judiciais, e a sua escolha deve contar com a participação de todos os
poderes instituídos. Ela também se manifesta na exigência de que os seus membros
pertençam a diferentes profissões jurídicas, como advogados, juízes, promotores etc,
enriquecendo o debate jurídico e também impedindo a formação de sentimentos
corporativos.
Característica dos tribunais constitucionais é a fixação de um mandato para o
exercício das funções por parte dos seus membros, o que permite uma regularidade na
renovação de sua composição, mantendo-se dessa forma uma sincronia mais estreita com os
anseios sociais. Como a escolha dos seus membros é realizada de forma plural, pelos órgãos
componentes do Estado, acrescenta-se mais um fator para a sua legitimidade. Nos Tribunais
Constitucionais da Itália, Portugal e Espanha o tempo de duração dos mandatos é de nove
anos, no Tribunal Constitucional alemão é de doze anos.83
Outra importante característica dos tribunais constitucionais é o impedimento à
reeleição dos seus membros, vedação esta existente, dentre outros, nos tribunais da
Alemanha, Itália, Portugal e Espanha. Esse impedimento permite que os juízes não tenham
que se sujeitar a vontades políticas para terem os seus mandatos renovados, podendo atuar
livremente no exercício de suas funções, sem pairar nenhuma ameaça às suas atividades. A
única possibilidade jurídica de interrupção de seu mandato antes do prazo determinado é se
DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 218. 83 O Tribunal Constitucional espanhol é formado por 12 membros, com mandatos de 9 anos, assim indicados: 4 pelo Congresso, 4 pelo Senado, 2 pelo governo e 2 pelo conselho geral do Poder Judiciário. O Tribunal Constitucional português é composto por 13 juízes, divididos em duas seções, presididas pelo Presidente do Tribunal que é eleito pelos respectivos juízes. Seis dentre os juízes designados pela Assembléia da República são obrigatoriamente escolhidos dentre juízes dos tribunais de jurisdição ordinária. O mandato para a Corte Jurisdicional portuguesa é de nove anos. Dez dos seus membros são escolhidos pela Assembléia da República e três pelo próprio Tribunal. O Tribunal Constitucional italiano é composto por quinze juízes, indicados para cumprir um mandato de novo anos. Um terço é indicado pelo Presidente da República, um terço é eleito pelo Parlamento, em sessão conjunta, e um terço pela Suprema Magistratura Ordinária e Administrativa. O Tribunal Constitucional alemão é formado por dezesseis juízes, com mandato de 12 anos, eleitos metade pelo Conselho Federal e metade pelo Parlamento Federal. Dos dezesseis juízes, seis devem pertencer aos tribunais superiores; os demais podem ser livremente escolhidos, desde que atendam aos requisitos legais.
69
eles incorrerem em crime de responsabilidade. A atuação dos membros dos tribunais
constitucionais é realizada sob o princípio da independência funcional.
Em razão de os tribunais constitucionais desempenharem um relevante papel
institucional, constituindo-se em intérpretes máximo da Constituição, a independência
funcional que caracteriza a sua atuação não pode ser considerada absoluta. Uma das formas
de se impedir a formação de uma casta que se torne alheia aos problemas sociais é
democratizar a escolha dos seus membros, de forma que os poderes estabelecidos possam
participar da escolha, o que legitima a sua composição. Portanto, a independência referida é
funcional, já que na formação de sua composição vigora o princípio da coordenação, em que
os outros órgãos escolhem os membros do tribunal constitucional, inter-relacionando esse
órgão com os demais componentes da seara estatal. Ele é dependente no momento de sua
composição, mas independente no momento de sua atuação, podendo anular as normas que
afrontem a Carta Magna.84
A competência da jurisdição constitucional é estabelecida por dispositivos
constitucionais, representando uma diferença já que a competência da jurisdição ordinária é
delineada por meio de dispositivos infraconstitucionais. Outro traço distintivo entre as duas
jurisdições é que os juizes ordinários não podem declarar a inconstitucionalidade de leis ou
atos normativos inconstitucionais (o ordenamento jurídico espanhol permite que as normas
pré-constitucionais possam ser retiradas do ordenamento sem a necessidade de decisão do
tribunal constitucional), nem controlar a constitucionalidade que é exercida pelos juizes do
tribunal constitucional.85
Requisito insuprimível para a criação de um tribunal constitucional, que exerça suas
prerrogativas, é a existência de um Estado Democrático Social de Direito, de natureza
substancial. Inexistindo um Estado dessa matriz, o tribunal constitucional não poderá
exercer as suas prerrogativas de forma efetiva, representando tão somente um instrumento
retórico para legitimar o exercício do poder. Em virtude desse indelével requisito é que não
84 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 38. 85 LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 32-33.
70
existe nenhum tribunal constitucional que desenvolva a plenitude de suas funções nos países
periféricos.
Mesmo com várias características em comum – todos nascem do modelo austríaco –
os tribunais constitucionais europeus apresentam peculiaridades em diversos aspectos que os
diferenciam, tanto na sua forma de composição e atuação, quanto na relevância que ocupam
no ordenamento jurídico. Essa diversidade de estruturação e atuação permitiu que Marcelo
Rebelo de Souza os classificasse em jurisdições ativas, médias e fracas de acordo com a
extensão de sua atuação. Assim, jurisdição ativa é a realizada pelo Tribunal Constitucional
alemão, jurisdição média a exercida pelos Tribunais italiano, português e espanhol e
jurisdição fraca a praticada pelo Conselho Constitucional francês.86
Indubitavelmente, pelas características que lhe são inerentes, os tribunais
constitucionais representam o mais aperfeiçoado modelo de jurisdição constitucional. Como
é um órgão que não está inserido na estrutura dos poderes estabelecidos, o tribunal
constitucional goza de todos os requisitos que lhe permite o exercício de suas atividades de
forma autônoma, podendo realizar a proteção dos mandamentos constitucionais da melhor
forma possível. Não obstante, como sua composição ocorre pela participação dos poderes
estabelecidos e o mandato de seus membros é predeterminado, não existe o problema de ele
se configurar como um superpoder, cerceando a autonomia dos outros órgãos estatais.
86 REBELO DE SOUZA, Marcelo. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Composição dos Tribunais Constitucionais”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 218.
71
3.1) A Diferenciação entre a Jurisdição do Supremo Tribunal Federal e a
dos Tribunais Constitucionais
A estruturação do Supremo Tribunal Federal segue o modelo da Suprema Corte
norte-americana, de controle difuso, enquanto os tribunais constitucionais são típicos de
países europeus, de controle concentrado. O Supremo Tribunal Federal, de uma forma
precisa, não se configura como um tribunal constitucional porque faz parte do Poder
Judiciário, representando o seu órgão de cúpula, com a prerrogativa de exercer
concomitantemente a jurisdição constitucional concentrada e difusa.
A Suprema Corte norte-americana começou a ter um papel mais atuante em 1803, a
partir do caso Marbury versus Madison, em que ficou estabelecido a sua competência para
realizar o judicial review. Os Tribunais Constitucionais, como órgãos que exercem a
jurisdição constitucional, surgem a partir de 1920, quando Kelsen cria o Tribunal
Constitucional da Áustria.
A jurisdição exercida pelo Supremo Tribunal Federal e a exercida pelos tribunais
constitucionais apresentam algumas diferenças significativas. A raiz dessas diferenças reside
na forma como foram estruturadas, já que a finalidade que direciona suas atividades é a
mesma. Todavia, deve-se ressaltar que o STF funciona tanto como uma corte constitucional
quanto como última instância para os demais tribunais, com a existência de encargos da
jurisdição constitucional compartilhados entre os juízes ordinários e os que atuam na
jurisdição constitucional. Por outro lado, a jurisdição constitucional exercida pelos tribunais
constitucionais é concentrada, cabendo a eles, de forma exclusiva, decidir acerca da
jurisdição constitucional. Esse é o motivo motriz que produzirá as diferenciações entre esses
dois modelos de exercício da jurisdição constitucional.
O Prof. José Afonso da Silva aponta as diferenças entre o STF e as cortes
constitucionais: “ A outra novidade está em ter reduzido a competência do Supremo
Tribunal Federal à matéria constitucional. Isso não o converte em Corte Constitucional.
72
Primeiro porque não é o único órgão jurisdicional competente para o exercício da jurisdição
constitucional, já que o sistema perdura fundado no critério difuso, que autoriza qualquer
tribunal e juiz a conhecer da prejudicial de inconstitucionalidade, por via de exceção.
Segundo, porque a forma de recrutamento de seus membros denuncia que continuará a ser
um tribunal que examinará a questão constitucional com critério puramente técnico-jurídico,
mormente porque, como tribunal, que ainda será, do recurso extraordinário, o modo de levar
a seu conhecimento e julgamento as questões constitucionais nos casos concretos, sua
preocupação, como é regra no sistema difuso, será dar primazia à solução do caso e, se
possível, sem declarar a inconstitucionalidade”.87
Importante diferença é que as cortes constitucionais não fazem parte do Poder
Judiciário, sendo um órgão que foge do enquadramento a qualquer um dos três poderes
convencionais, detendo, contudo, as mesmas garantias e independência para o normal
exercício de suas funções, o que o professor Biscaretti di Ruffia denomina de função
judiciária materialmente constitucional, exercida por órgão diverso da que exerce a
jurisdição comum.88 Na Europa, os tribunais constitucionais são estruturados como “um
quarto poder”, gozando de total independência para a concretização de sua função.
No sistema brasileiro adotado, o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do
Judiciário, exercendo uma jurisdição especial, a constitucional, ao mesmo tempo em que
exerce uma jurisdição ordinária, servindo como última instância judicial. Com esse acúmulo
de funções, o Supremo Tribunal Federal é impossibilitado de exercer bem qualquer um dos
seus encargos. A especialização de suas funções serviria até para um melhor aprimoramento
técnico, em decorrência da redução da temática posta sob sua apreciação. Outro problema
gerado por essa acumulação de funções é que interesses corporativos, pelo fato de está
inserido como órgão do Poder Judiciário, podem interferir na sua atuação.
Como os tribunais constitucionais não estão vinculados a nenhum dos poderes
estabelecidos, gozando de uma densa autonomia e legitimidade, em decorrência das
87 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 1999. P. 556. 88 RUFFIA, Paolo Biscaretti di. Diritto Costituzionale. 7 ed., Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1965. P.559.
73
prerrogativas que lhe são inerentes, sua atuação tem um amplo campo de incidência,
garantindo a eficácia dos direitos fundamentais, mediante a imposição do cumprimento das
normas constitucionais programáticas. Nesse contexto, a atuação da jurisdição constitucional
se mostra muito mais eficaz, densificando a força normativa da Constituição para impedir
que ela seja transformada em mero texto retórico. Pela forma de composição do Supremo
Tribunal Federal, em que a representatividade de seus membros apresenta um pequeno grau
de legitimidade, e pela sua própria estrutura, o grau de sua atuação não é intenso, deixando
muitos dispositivos constitucionais sem eficácia, o que não aumenta o grau de eficácia da
Carta Magna.
A abrangência de suas competências também é diferente. Os tribunais constitucionais
exercem uma jurisdição especializada, específica no uso exclusivo da jurisdição
constitucional. Elas não exercem a função de instância recursal de casos concretos,
concentrando suas atividades nas matérias constitucionais. O Supremo Tribunal Federal
exerce uma jurisdição generalista, que não é pertinente apenas à jurisdição constitucional,
mas atua igualmente como uma última instância, para apreciar várias outras questões fora do
parâmetro constitucional.
Como exemplo, pode ser citado o Tribunal Constitucional italiano, criado em 1956,
que, dentre as atribuições que lhes são conferidas pela Constituição italiana de 1947, não há
nenhuma competência que seja da jurisdição ordinária. São estas as atribuições do Tribunal
italiano: competência de julgar a adequação das leis e atos com força de lei com a
Constituição; dirimir os conflitos de atribuição entre os Poderes do Estado, entre o Estado e
as Regiões ou entre as Regiões; julgar os crimes de responsabilidade que acarretem
atentados contra a Constituição, o que a doutrina italiana denomina de justiça política,
entendendo-se como as acusações formuladas pelas duas Casas reunidas contra o Presidente
da República e os seus ministros.89
Um defeito do sistema de cortes constitucionais, com relação aos tribunais
constitucionais, é que o mandato de seus membros é vitalício, o que não contribui para a
modernização do seu pensamento. A exclusividade de escolha de seus membros, no Brasil e
89 Art. 134 da Constituição italiana de 1947.
74
nos Estados Unidos, por parte do Chefe do Executivo, impede a democratização de sua
composição, dificultando o incremento de sua legitimidade. A relevância da atuação da
Suprema Corte dos Estados Unidos verifica-se em virtude de o sistema jurídico do common
law e de um contexto histórico específico, que não pode ser deslocado para outros países.
Por outro lado, o desempenho da atuação do Supremo Tribunal Federal fica muito aquém do
esperado, especialmente levando em conta que a sua missão proeminente deveria ser a
consubstancialização dos direitos fundamentais.
75
PARTE II: Aspectos Gerais do Controle de
Constitucionalidade.
4.) Aspectos Históricos e Taxionomia
A necessidade de se estudar os aspectos gerais do controle de constitucionalidade é
uma decorrência da releitura da jurisdição constitucional e do seu fundamento de
legitimidade. O novo prisma da supralegalidade das normas constitucionais suplanta os
padrões tradicionais, que restringem sua função à retirada da norma declarada
inconstitucional do ordenamento jurídico, para agasalhar como escopo principal a
concretização da Constituição, de forma premente os direitos fundamentais. Dentro desse
diapasão, o controle de constitucionalidade se transforma em um instrumento de
enquadramento das normas infraconstitucionais e, o que é mais importante, em um elemento
imperioso para a concretude dos mandamentos constitucionais, preservando e tornando
efetivo o conteúdo previsto na Constituição.
4.1) Fundamentação do Controle de Constitucionalidade
O controle de constitucionalidade se alicerça, de modo determinante, na supremacia
de que goza a Constituição e em decorrência da sua supralegalidade.90 Acarretou grande
impulso para a sua fundamentação a teoria da separação dos poderes, o check and balances
90 COLAUTTI, Carlos E. Derecho Constitucional. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1998. P. 54.
76
da doutrina norte-americana, em que o Poder Judiciário deve fiscalizar se o Poder
Legislativo está obedecendo aos limites impostos pela Carta Magna.91 Para Schmitt, a lei
fundamental é uma norma absolutamente inviolável e suas regulamentações não podem ser
desobedecidas pelo legislador infraconstitucional.92
Tal controle tem como escopo precípuo a defesa da constituição, e como
conseqüência a estabilização das normas que indicam uma determinada estrutura da
sociedade, uma visão ideológica consentânea com as forças políticas que obtiveram
legitimidade para elaborar o Texto Maior. É uma tentativa de estabilizar as relações sociais
sob padrões normativos que apresentem um certa constância, essencial para o
aprimoramento da força normativa dos mandamentos constitucionais.
Dentro da releitura que se propõe neste trabalho, colocando o controle de
constitucionalidade a serviço da concretização dos direitos fundamentais e tornando ambos
os sistemas um locus para a concretização do caráter dialógico, o eficaz funcionamento do
controle de constitucionalidade afigura-se imprescindível. Jorge Miranda ensina que a
jurisdição constitucional é também uma norma que expressa uma função constitucional, a
função de garantia. A defesa dos direitos fundamentais abrange a proteção contra
inconstitucionalidades por ação, material ou formal, por omissão e por descumprimento de
preceito fundamental.93
Com o crescente aumento da demanda da sociedade, também cresce a necessidade de
aprimoramento do controle de constitucionalidade para enfrentar os novos desafios
impostos. A estrutura implantada quando do caso Marbury versus Madison se mostra
anacrônica e obsoleta, havendo a necessidade de implantação de novos institutos para
melhor garantir a força concretiva da Constituição.
Há uma evolução na abrangência do controle de constitucionalidade. Nos primórdios
ela apenas atingia as leis ou atos normativos que afrontavam a Constituição, seja do ponto de
vista material seja do ponto de vista formal. Hodiernamente, o controle se alargou para
91 MUSSO, Spagna Enrico. Diritto Costituzionale. 4 ed., Padova: Cedam, 1992. P.61. 92 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992. P. 63. 93 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. P. 225.
77
garantir eficácia aos mandamentos constitucionais que não foram regulamentados pelo
legislador infraconstitucional (inconstitucionalidade por omissão), e com a argüição de
descumprimento de preceito fundamental foi reassegurado o cumprimento de importante
núcleo da Lei Maior, impondo aos entes estatais a obrigatoriedade de realizar determinadas
ações para concretizar o preceito fundamental disposto no texto constitucional.
Para Zagrebelsky, o controle de constitucionalidade possui duas características: uma
de natureza jurídico-formal, ressaltando a Constituição como norma jurídica, dentro de um
sistema estruturado de forma lógica; e outra de natureza política, enfatizando o pluralismo
político como força social, em que há uma interseção entre o mundo jurídico e mundo fático.
A primeira é a condição teórica da justiça constitucional e a segunda, a condição prática.94
Isto indica que a estrutura do controle de constitucionalidade deve ser formalizada através de
moldes jurídicos, atendendo aos requisitos da ciência jurídica, além do que, como condição
para potencializar a sua efetividade, há necessidade de que o controle seja consentâneo com
as forças sociais imperantes na sociedade.
Sob uma percepção sociológica, como a idealizada por Lassalle, que coloca o
fenômeno constitucional como um ancilla da seara fática, o fundamento de validade da
Constituição são fatores extradogmáticos, originados da legitimidade haurida na sociedade.
Sob uma percepção normativista, o fundamento de validade da Constituição é haurida do
escalonamento vertical, em que a norma superior valida a norma inferior do ordenamento
jurídico, dentro do corte epistemológico realizado por Kelsen.95
O controle da constitucionalidade toma maior vulto nas Constituições rígidas, em
que há uma diferenciação jurídica entre normas constitucionais e normas
infraconstitucionais.96 Nas Constituições flexíveis, em que a norma infraconstitucional
revoga a constitucional, se com ela entrar em contradição, não existe possibilidade de se 94 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1996. P. 14 95 Sobre o assunto expõe Kelsen “ Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4.ed., Trad. Dr. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976. P. 269. 96 “O problema da jurisdição constitucional surgem prevalentemente nas Constituições rígidas, para garantir a rigidez dessas Constituições”. CUOCOLO, Fausto. Principi di DirittoCostituzionale. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1999. P. 773.
78
falar em controle material de constitucionalidade. Contudo, a Constituição ainda é a norma
de referência do ordenamento, mesmo sendo flexível. A sua supremacia refoge do âmbito
jurídico para encontrar guarida no campo social, em que diversas vezes ganha um status de
imutabilidade maior que a de certos textos denominados rígidos.
Naquelas Cartas Magnas classificadas quanto à estabilidade como flexíveis, mesmo
que não haja uma supremacia haurida de fatores sociais, pode-se falar em controle de
constitucionalidade, mas apenas do tipo formal, objetivo ou subjetivo, incidindo em
qualquer uma etapa do processo normogenético. Normalmente pode ocorrer uma
inconstitucionalidade por omissão ou argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Quanto ao controle material, ele apenas pode existir quando versar sobre a
inconstitucionalidade de um ato normativo.
Nos casos mencionados, em que pode haver o controle de constitucionalidade nas
Constituições flexíveis, a supremacia da Constituição flexível ganha densidade, devendo a
jurisdição constitucional ser exercida. Se não fosse assim, não teria sentido falar-se em
Constituição, voltando-se aos ordenamentos jurídicos Pré-Modernos. Não há supremacia nos
Textos Constitucionais flexíveis em relação às normas infraconstitucionais, desde que
obedecido o procedimento de criação legislativa e não abandonado ao ostracismo um
comando constitucional ou um direito fundamental.
O controle de constitucionalidade pode ocorrer na lei ou no ato normativo,
modificando sua estrutura legal, ou na interpretação da lei ou ato normativo, mantendo-se a
literalidade do texto, mas operando uma redução na sua incidência. No primeiro caso, há a
necessidade de modificações na estrutura do comando normativo que afronta a Constituição,
retirando a inconstitucionalidade do mundo jurídico. No segundo caso, não há necessidade
de modificações na estrutura do comando normativo, pois o acinte à Carta Magna pode ser
elidido por meio de restrições ao alcance da norma.
A fiscalização de constitucionalidade das normas abrange as leis em sentido formal,
os atos normativos e os atos jurídicos privados. Lei em sentido formal são aquelas que são
oriundas do Poder Legislativo, a exemplo das emendas constitucionais, leis complementares,
leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Atos
79
normativos são as espécies produzidas na esfera administrativa e que, por contrariarem as
disposições constitucionais, podem ser passíveis de controle de constitucionalidade. Planteia
Michel Temer sobre o assunto: “Por ato normativo entende-se: a) decretos do Poder
Executivo; b) normas regimentais dos tribunais federais e estaduais e suas resoluções”.97
Entretanto, apenas os atos normativos autônomos, que não regulamentam leis, podem
ser passíveis de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal
não conheceu da ação direta de inconstitucionalidade que impugnava alguns artigos de uma
portaria do Ministério da Educação e Desporto porque eles não eram considerados atos
normativos autônomos, mas sim atos normativos infralegais, que regulamentam dispositivos
de lei.98
Ato jurídico privado é aquele firmado pelas partes contratantes, mas que produz
efeitos jurídicos. Qualquer ato particular que afronte a Constituição Federal pode ser
passível de controle de constitucionalidade. Todavia, por não ter caráter geral, operando
efeito apenas inter partes, só é cabível o controle por via do sistema difuso.
Em resumo, pode-se afirma que a declaração de inconstitucionalidade pode ser com
ou sem redução de texto. Essas duas abrangências de controle de constitucionalidade pode
ocorrer tanto no sistema concentrado, quanto no sistema difuso.
Pelo princípio da presunção de constitucionalidade das normas jurídicas, as leis e os
atos genéricos são considerados como constitucionais até que sejam declarados
inconstitucionais, levando estabilidade e segurança às relações por eles regidas.99 O
mencionado princípio tem o escopo de assegurar imperatividade às normas jurídicas,
garantindo ao Poder Público sua auto-executoriedade.
97 TEMER, Michel. Os Elementos de Direito Constitucional. 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1994. P. 48. 98 ADIn 1670-DF, rel. Min. Ellen Grecie. 99 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. P. 232.
80
4.2) O Defensor da Constituição
Muitas discussões foram travadas para saber qual seria o órgão que teria a
incumbência de zelar pela Constituição. Schmitt e Kelsen tiveram acirrado debates a
respeito do tema. O órgão defensor da Constituição tem a função de fortalecer a supremacia
dos mandamentos constitucionais, possibilitando sua maior concretização.
Para Schmitt, autor da teoria da ordem concreta, quem tem legitimidade para a
jurisdição constitucional é o Chefe de Estado, já que como as normas constitucionais são
fruto de uma vontade política, quem deve exercer o controle é um órgão político.100 Caso
contrário, haveria um veto do Poder Judiciário. Ele sustenta que o Chefe de Estado, por ser
eleito diretamente pelo povo, não estaria sujeito à ingerência dos partidos políticos na sua
atuação de guardião constitucional, por isto poderia agir com independência, configurando-
se como uma instância suprema e neutra.101
Para Schmitt se a fiscalização constitucional fosse incumbida a um Tribunal
Constitucional, de natureza jurídica, poderia haver a “jurisdicização da política” e a
“politização da justiça”. Ele não acredita na natureza jurídica do fenômeno da subsunção,
quando a norma genérica e abstrata se adequa ao caso concreto porque como o ordenamento
jurídico não é um sistema completo, a atividade do juiz não pode ser apenas judicial.
Quando há a determinação do conteúdo de uma lei constitucional que seja dúbia, o que se
está realizando é legislação constitucional e não jurisdição constitucional.
Esclarece Schmitt: “Agora é portanto jurisdição e normatização se alguém diz que
um cavalo é um burro. Também em uma decisão de dúvida e de divergência de opinião
sobre a existência de uma contradição entre duas normas, não vem prefixado a aplicação de
100 Critica François Rigaux a tese de Schmitt: “A identificação carismática da vontade do povo e da do Führer furta-se a qualquer análise jurídica séria[...].Para que fazer leis, qual é a função dos tribunais se a vontade de um único homem pode fazer a lei, isentar dela, supri-la? O problema é que não se poderia governar uma grande nação, que conservou instituições complexas, em virtude apenas das palavras saídas da boca do ditador”. REGAUX, François. A Lei dos Juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 113. 101 SCHMITT, Carl. La defensa de la Constitución. Prólogo de Pedro Veja. Madrid: Tecnos, 1998. P. 20.
81
uma norma a outra –porque as dúvidas e as divergências de opinião necessitam somente do
conteúdo da lei constitucional – na verdade é posto fora de dúvida e declarado autêntico o
conteúdo de uma norma. Isto é em efeito uma remoção de uma obscuridade do conteúdo da
lei, assim, um ato de legislação, absolutamente “legislação constitucional” , e não
jurisdição”.102
Foi alicerçado na construção doutrinária schmittiana que Hitler defendeu com
sucesso a tese de que o Chefe do Reich alemão é quem tinha competência de realizar a
fiscalização das normas constitucionais. Por intermédio desse fundamento ele pode alterar
toda a Constituição de Weimar sem necessitar criar uma nova Carta Magna.
Chegou-se a conclusão do imperioso papel exercido pelo Chefe do Executivo através
de uma interpretação praeter legem do art. 48 da Constituição de Weimar, no seguinte
diapasão: “Quando um território não cumpre com os deveres que lhe impõem a Constituição
ou as leis do Reich, o Presidente pode obrigar-lhe ao cumprimento com a ajuda das Forças
Armadas. Quando no Reich alemão a ordem e a segurança pública estiverem
consideravelmente alteradas ou ameaçadas, o Presidente do Reich pode adotar as medidas
necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, inclusive com a ajuda
das Forças Armadas quando for necessário. Em conseqüência desse fato, pode suspender
temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais consignados nos artigos
114, 115, 117, 118, 123, 124 y 153”.
Realizando uma análise literal do dispositivo, o que ele permite é o enquadramento
daquelas partes da federação alemã que estão descumprindo os mandamentos
constitucionais, inclusive com o emprego das forças armadas. E depois permite a suspensão
de algumas garantias constitucionais quando a normalidade pública estiver ameaçada. Em
momento algum, há a permissão para que o chefe de governo exerça a função de tutela das
normas constitucionais.
A teoria de Schmitt deve ser analisada com uma acuidade sociológica. Devido às
agitações sociais da Alemanha weimariana, que culminou com a ascensão de Hitler ao poder
102 SCHMITT, Carl. Il Custode della Costituzione. Milano: Giuffrè, 1981. P. 73 – 74.
82
em 1933, o mencionado autor considerava que um tribunal constitucional somente iria
aumentar a fragmentação de poder, que segundo ele era um dos elementos que estava
levando a Alemanha ao caos.103 A finalidade da entrega da custódia da Constituição ao
Chefe de Governo era aumentar o respaldo da população a suas decisões, amparando a
legitimidade da jurisdição constitucional a legitimidade hauferida pelo Chanceler, haja vista
ele ser o representante da maioria da população.
Para Kelsen o controle deve ser jurídico, pois o fenômeno do “dever ser”,
essencialmente normativo, tem que ser analisado sob o prisma jurídico. Por isto, defendia a
criação de uma corte constitucional, com a finalidade de manter o ordenamento livre de
injunções políticas, assegurando o caráter neutro das normas jurídicas. A teoria kelseniana
concebe o controle de constitucionalidade como um contrarius actus, ou seja, sem
desenvolver uma função criativa de direito, apenas retirando o ato eivado de
inconstitucionalidade do ordenamento jurídico.
Como criador do Tribunal austríaco Kelsen defende que a jurisdição constitucional
deve ser exercida por um órgão diverso do Poder Judiciário, do Executivo e do Legislativo.
Se o mesmo órgão que exercesse a jurisdição ordinária tivesse a prerrogativa de exercer a
jurisdição constitucional haveria uma transgressão evidente do princípio da separação de
poderes.104
O controle realizado por intermédio de um tribunal constitucional faz uma
interpretação jurídica, guiados por standards fixados previamente, no que contribui para a
estabilidade do sistema. Além do que o tribunal constitucional não é parte envolvida nem na
criação da lei, nem na sua aplicação, tendo, dessa forma, imparcialidade para solucionar a
controvérsia acerca da constitucionalidade das leis.
Kelsen discordava de forma frontal da tese de Schmitt. Para ele a teoria de concentrar
o poder nas mãos do Chefe do Reich tinha grande semelhança coma a técnica ultrapassada
103 PEUKERT, Detlev J. K. La Repubblica di Weimar. Trad. Enzo Grillo. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. P. 47. 104 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 385.
83
adotada pelas monarquias que delegava ao monarca a competência de fiscalizar a jurisdição
constitucional. Dessa forma fundamenta o seu pensamento: “Que o chefe de Estado, no
âmbito de uma Constituição do tipo da de Weimar, não seja exatamente o órgão mais
indicado para a função de controle constitucional; que particularmente quanto à
independência e neutralidade, ele não possua qualquer vantagem diante de um tribunal
constitucional, é antes confirmado do que desmentido pelo escrito de Schmitt”.105
5) Teoria da Inconstitucionalidade
A presença de leis ou atos normativos inconstitucionais é uma constante em todas as
estruturas jurídicas e isso se configura como um fato bastante grave para a eficácia das
normas e para a integridade sistêmica do ordenamento. Para Jorge Miranda, a
inconstitucionalidade da norma ou do ato inconstitucional traz reflexos para toda a extensão
normativa e, portanto, deve ser destruída, porque se comporta como um elemento estranho à
ordem jurídica. O problema da inconstitucionalidade deve ser solucionado da forma mais
eficaz possível, seja através da expulsão do vício, seja através do cumprimento do
mandamento constitucional que estava negligenciado.106
Neste capítulo, o objetivo é o estudo da inconstitucionalidade da lei ou do ato
normativo nos seus aspectos mais importantes, como a sua natureza, tipos, extensão etc. A
formulação de uma teoria geral da inconstitucionalidade, por intermédio da formulação de
tipos abstratos e gerais, permite uma percepção plural do objeto e, por esta razão, configura-
se imprescindível para este trabalho, que tem como cerne principal a análise das
inconstitucionalidades que tolhem o cumprimento dos direitos fundamentais.
105 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Trad. Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003. P. 286. 106 MIRANDA, Jorge. Contributo Para uma Teoria da Inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora,
1996. P. 237.
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5.1) Natureza do Norma Declarada Inconstitucional
A natureza da norma declarada inconstitucional influenciará na natureza da decisão
judicial que determina a sua inconstitucionalidade, que por sua vez decorre do grau de
mácula do ato que infringiu a Constituição, que pode ser considerado nulo, anulável ou
inexistente. Ou seja, para se saber a natureza da decisão judicial, é necessário empreender
um estudo acerca da natureza da norma que foi declarada como inconstitucional.
O Supremo Tribunal Federal, sorvendo os ensinamentos de Rui Barbosa, que se
inspirou na doutrina dos constitucionalistas norte-americanos, mantém o posicionamento de
que a norma declarada inconstitucional é nula, sendo sua sentença declaratória, tendo em
vista que nenhum novo aspecto é acrescentado à norma ou ato normativo, decidindo que ele
destoa dos parâmetros de constitucionalidade. Parte-se do paradigma de que lei
inconstitucional não é lei.
Para Francisco Campos, o ato inconstitucional é inexistente.107 Ele considera que a
lei inconstitucional nunca existiu, não podendo criar direitos, obrigações ou modificar
relações jurídicas, apesar de produzir efeitos na seara fática, existência de fato, ela não teria
uma existência de direito. Rui Barbosa e Alfredo Buzaid se posicionam pela sua nulidade.108
Em ambos os casos, a decisão não acrescenta nada à essência da norma ou ato, apenas
afirma sua inconstitucionalidade
107 “Da inconstitucionalidade da lei por omissão de formalidades prescritas na Constituição Federal ao seu processo legislativo, segue-se, inevitavelmente, a de outorgada aos tribunais de lhe recusarem aplicação aos casos ocorrentes”. CAMPOS, Francisco. Direito Constitucional.. Vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956.P. 399. 108 Doutrina Rui Barbosa acerca da nulidade dos atos declarados como inconstitucionais: “Essa conseqüência resulta evidentemente da própria essência do sistema. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale a cair em nulidade. Nullus est major defectus quam defectus potestatis” E depois arremata: “Toda medida, legislativa, ou executiva, que desrespeitar preceitos constitucionais, é, de sua essência, nula. Atos nulos da legislatura não podem conferir poderes válidos ao Executivo”. BARBOSA, Rui. Atos Inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003. P. 40-43.
85
A diferença entre essas duas teses é de que se o ato inconstitucional for considerado
inexistente, ele nem mesmo entra no ordenamento jurídico, não preenchendo as condições
para adquirir validade. Se o ato for considerado nulo, ele entra no ordenamento jurídico
porque houve o preenchimento dos requisitos formais do processo legislativo, mas os efeitos
produzidos serão extintos desde o seu nascedouro.
Por isso, os autores que defendem que a norma inconstitucional é nula ou inexistente
afirmam que a decisão sempre será declaratória, não podendo ser de forma alguma
constitutiva, em razão de que não subsiste nenhum efeito da norma eivada do vício de
inconstitucionalidade. Para que a decisão fosse constitutiva seria necessário que a
manutenção de alguns dos efeitos produzidos pela norma, acarretando modificação na
relação jurídica.
Hans Kelsen entende que a norma inconstitucional é anulável. Ela entrou no
ordenamento jurídico, adquirindo validade, tem vigência e eficácia, produzindo efeitos nas
relações jurídicas. Entretanto, por afrontar os dispositivos constitucionais, quando assim for
declarado, deixará de ter eficácia, mantendo-se todos os efeitos produzidos até então.
De acordo com a natureza da lei ou ato normativo e a conseqüente tipificação da
decisão judicial que atestou a sua inconstitucionalidade, haverá a determinação da extensão
dos efeitos produzidos. Se a lei for considerada nula ou inexistente, a decisão judicial será
declaratória e a abrangência dos efeitos ex tunc, retrooperantes, cerceando os efeitos
produzidos pela norma desde a sua origem. Se o ato for considerado anulável, a decisão
judicial será constitutivo-negativa e a abrangência dos efeitos ex nunc, cerceando os efeitos
produzidos apenas da declaração de sua inconstitucionalidade em diante.
Como foi mencionado, a natureza da lei ou do ato normativo declarado
inconstitucional liga-se, umbilicalmente, à natureza da decisão judicial, podendo ser
considerado inexistente, nulo ou anulável. Se a lei ou ato normativo for considerado
anulável, a decisão judicial inexoravelmente será constitutivo-negativa, produzindo efeitos
até a decretação de sua nulidade. É constitutiva porque os efeitos produzidos são mantidos e
negativa em razão de suprimir os efeitos posteriores à decisão de inconstitucionalidade.
86
Se o ato for considerado nulo, a decisão judicial terá natureza declaratória, em que
todos os efeitos produzidos pela lei ou ato normativo serão cerceados do ordenamento
jurídico. Nulo é o ato que traz vício substancial que o impede de produzir efeitos; inexistente
é aquele que padece de vício inexorável, impedindo-o de, ao menos, entrar no ordenamento
jurídico.
A ação de inconstitucionalidade interventiva, pelas peculiaridades de sua própria
taxionomia, não apresenta uma natureza declaratória, pois os seus efeitos são constitutivos,
representando uma das excepcionalidades da autonomia federativa. Sintetiza o assunto José
Afonso da Silva: “Visa não apenas obter a declaração de inconstitucionalidade, mas também
restabelecer a ordem constitucional no Estado, ou município, mediante a intervenção. A
sentença já não será meramente declaratória, pois, então, já não cabe ao Senado a suspensão
da execução do ato inconstitucional. No caso, a Constituição declara que o decreto (do
Presidente da República ou do Governador do Estado, conforme o caso) se limitará a
suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da
normalidade. Daí se vê que a decisão, além de decretar a inconstitucionalidade do ato, tem
um efeito condenatório, que fundamenta o decreto de intervenção”.109
Destarte, a natureza da norma ou ato declarado inconstitucional influenciará
cogentemente a natureza da decisão judicial: se for nulo, a decisão será declaratória e os
efeitos ex tunc; se for anulável, a decisão será constitutivo-negativa e os efeitos ex nunc.
José Afonso da Silva, seguindo linha adotada por Themistócles Cavalcanti, defende
que no sistema brasileiro não é possível uma analogia com a distinção norte-americana de
ato inexistente, nulo ou anulável, de matriz eminentemente privatística. No sistema
brasileiro não podemos traçar uma distinção tão nítida entre esses atos, como no controle
difuso, onde o ato declarado inconstitucional deixa de produzir efeitos para as partes, mas
continua a produzir efeitos para os demais casos.110
Para Ignacio de Otto, diante da complexidade das sociedades contemporâneas, para
garantir atendimento às demandas sociais, o Poder Judiciário deve dispor de uma maior
109 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros. 1999. P. 57. 110 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ªed., São Pa ulo: Malheiros, 1999. P. 55.
87
variedade de procedimentos. A clássica repartição de funções entre os três poderes está
superada, começando a haver o rompimento da barreira que impedia os juízes de
participarem da função de criação normativa. Quando as normas se converteram em objetos
passíveis de apreciação judicial, devido ao princípio da universalidade de jurisdição, foi
outorgado ao Poder Judiciário a prerrogativa de atuar como legislador negativo, podendo
determinar a extensão da declaração de inconstitucionalidade da norma para garantir a
supremacia dos mandamentos constitucionais.111
Essa maior amplitude para que o Supremo Tribunal Federal possa determinar de
forma discricionária a natureza da norma declarada inconstitucional e, conseqüentemente, a
sua extensão parte do pressuposto de um novo arranjo na estruturação das funções dos três
poderes. A restrição da atuação do Poder Judiciário apenas à esfera de julgar os litígios
apegados ferreamente a letra da lei foi ultrapassada, com a finalidade de garantir a segurança
jurídica e incrementar a legitimidade da jurisdição constitucional, pode o STF considerar o
ato nulo ou anulável de acordo com as conveniências fáticas.
Todavia, a despeito do Supremo Tribunal Federal entender que a lei ou ato
normativo declarado inconstitucional é nulo, ele vem flexibilizando esse posicionamento,
não mais considerando-o de forma absoluta, podendo a norma ser considerada anulável de
acordo com circunstâncias fáticas, por intermédio de uma sentença constitutivo-negativa,
dimensionando o STF como um órgão legislativo negativo.
Mesmo em sede de controle direito, os efeitos da decisão poderão ser ex nunc, de
acordo com a Lei n.º 9.868/99, que permite ao Supremo, se houver um quórum de 2/3 dos
seus membros, e mediante razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social,
modificar os efeitos de ex tunc para ex nunc, ou até mesmo, impor que a decisão somente
produza efeitos a partir de uma determinada data. 111 “[...].A crescente complexidade do Estado e de suas relações com a sociedade requerem uma maior diferenciação interna de procedimentos, e, portanto, uma separação nítida das funções no mesmo sentido do que fora elaborado pela doutrina revolucionária. Essa mesma diferenciação internas tem levado que em um dos pontos concretos se rompa a barreira firme que a teoria revolucionária impedia que os juízes participassem da função de criação normativa. Em primeiro lugar a prerrogativa de que as normas mesmas se convertam em objeto passível de jurisdição – as leis pela jurisdição constitucional, os regulamentos pela jurisdição ordinária – convertem os juízes em legisladores negativos, entendido o termo legislador como alusivo a lei e a regulamento, por permiti-lhes eliminar do ordenamento a lei inconstitucional e o regulamento ilegal[...]”. OTTO, Ignacio de. Derecho Constitucional. Sistema de Fuentes. Barcelona: Ariel, 1998. P. 285.
88
5.2) Momentos de Incidência do Controle de Constitucionalidade
A lei ou ato normativo inconstitucional pela sua conseqüência de enfraquecer a
concretude normativa, deve ser o mais rapidamente expurgado do ordenamento jurídico. A
elaboração de um sistema de jurisdição constitucional mais eficiente para a concretização
dos direitos fundamentais não pode ser complacente com os atos inconstitucionais, quanto
maior tempo permanecer a inconstitucionalidade em vigor no ordenamento jurídico, maior
será o acinte a supremacia dos dispositivos constitucionais.
Não há uma prescrição temporal para se argüir uma inconstitucionalidade, podendo
ela ocorrer a qualquer momento. Entretanto, para efeitos didáticos, de forma genérica,
divide-se em duas etapas o momento de incidência do controle de constitucionalidade,
tomando-se como parâmetro a data da promulgação, que marca a entrada da norma no
ordenamento. De acordo com essa classificação, a incidência do controle de
constitucionalidade pode ocorrer antes da promulgação, de forma preventiva – controle
preventivo – ou depois da promulgação, de forma repressiva – controle repressivo.112
A atuação do controle preventivo incide em um projeto de lei, não se podendo falar
que o controle de constitucionalidade foi realizado em um norma porque ela ainda não foi
incorporada ao ordenamento jurídico. Nesse tipo de controle, ainda não existe propriamente
uma norma, mas um projeto em trâmite no Congresso Nacional. O controle preventivo pode
ser realizado pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. É exercido pelo Executivo
quando houver um veto a um projeto de lei sob o fundamento de sua inconstitucionalidade.
Atua o Poder Legislativo quando a Comissão de Constituição e Justiça declara a
inconstitucionalidade de um projeto normativo. Exerce o Poder Judiciário quando obsta a
tramitação de projeto de lei cujo conteúdo tem a finalidade de abolir cláusula pétrea.
O veto, prerrogativa exclusiva do chefe do Poder Executivo, pode ser realizado sob a
alegação de inconstitucionalidade ou contrariedade a interesse público. É considerado uma
112 MORAES, Germana de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade do Processo Legislativo. São Paulo: Dialética, 1998. P. 39.
89
modalidade de controle preventivo apenas o veto sob a alegação de inconstitucionalidade,
fundamentando que o projeto de lei destoa dos parâmetros constitucionais. Quando ele é
realizado sob a alegação de que o projeto de lei é contrário ao interesse público não existe
um controle de constitucionalidade porque essa decisão representa uma simples decisão
política, baseada no poder de discricionariedade e na prerrogativa de defesa da ordem
pública.
Esse tipo de controle preventivo realizado pelo Chefe do Executivo é considerado de
natureza política porque o parâmetro que pauta a sua atuação embasa-se na
discricionariedade. O seu juízo de adequação das normas infraconstitucionais aos
dispositivos constitucionais será tomado de acordo com valorações ideológicas, sem que os
comandos constitucionais exerçam um papel determinante. Nesse caso, não se pode exigir
do Presidente da República subsídios doutrinários que possam alicerçar sua decisão sob
perfil estritamente jurídico – seus interesses de conveniência e oportunidade preponderam
em relação aos seus fundamentos jurídicos. A característica que mais diferencia o controle
político do controle jurídico é que este tem como referência inexorável os dispositivos
constitucionais, enquanto aquele tem como referência às injunções extradogmáticas.113
Dentro do rito do processo legislativo brasileiro, até a promulgação da norma, só
cabe o controle preventivo; depois, repressivo. De forma preventiva atua o Poder Legislativo
na Comissão de Constituição e Justiça, comissão permanente existente tanto no Senado
quanto na Câmara dos Deputados, formada pela composição das forças partidárias existentes
no Congresso Nacional, com a finalidade de analisar os projetos normativos e impedir o
trâmite daqueles que são considerados inconstitucionais. A apreciação pela Comissão de
Constituição e Justiça, tanto na Câmara como no Senado, é uma etapa obrigatória dentro do
processo de normogénese, configurando-se em uma oportunidade para que os parlamentares
possam também funcionar como garante da supralegalidade. A sua avaliação não é jurídica,
decidindo o controle de constitucionalidade dos projetos legislativos de acordo com
preceitos políticos, atuando com primazia o critério de conveniência e oportunidade.
113 Carl Schmitt afirma que o grande mal do controle jurídico é que ele coloca o juiz com uma certa superioridade em relação à lei e ao legislador. SCHMITT, Carl. Il Custode della Costituzione. Milano: Giuffré, 1981. P. 38.
90
Por ter adotado o ordenamento jurídico brasileiro o princípio da universalidade da
jurisdição, o Poder Judiciário, em regra, não pode exercer o controle preventivo. Ele atua de
forma preponderante no controle repressivo, de forma a preservar o check and balances. No
controle preventivo atuam de forma mais intensa o Executivo e o Legislativo. Os projetos
legislativos são discutidos nas duas Casas do Congresso, não podendo o Supremo Tribunal
Federal imiscuir-se em assuntos internos de competência do Legislativo, a não ser que haja
afronta à Constituição ou a direitos fundamentais. Preservou-se assim a incolumidade dos
atos interna corporis, requisito importante para a independência dos três poderes.
A hipótese de atuação do Poder Judiciário no controle preventivo, a única aliás de
taxionomia jurídica, ocorre quando há o trâmite de um projeto de emenda constitucional
(PEC) que flagrantemente tente abolir as cláusulas pétreas (art. 60, caput da CF), ou seja,
quando haja uma afronta ao segmento constitucional que mais legitimidade detém no
ordenamento jurídico. O motivo dessa exceção é garantir o “núcleo inalterável da
Constituição”, as cláusulas pétreas. O projeto de emenda que afronte o art. 60 § 4º da Carta
Magna não pode sequer ser recebido pelo Congresso Nacional, devendo ser imediatamente
indeferido.
Quem detém legitimidade ad causa para impugnar esse acinte ao texto constitucional
são os parlamentares, os Deputados e Senadores que têm o poder-dever de assegurar o
cumprimento do devido processo legal no Poder Legislativo. O remédio processual
adequado é o mandado de segurança, haja vista a configuração de direito líquido e certo
respaldado pelo mandamento constitucional. O Supremo Tribunal Federal reconhece como
direito subjetivo público dos Parlamentares o direito à ação para garantir a observação das
cominações constitucionais.114
Sendo protocolada uma proposta de emenda constitucional com esse conteúdo, em
que funcione a Câmara dos Deputados como casa inicial, o Presidente da Câmara dos
Deputados deve impedir o prosseguimento de projeto de emenda que seja evidentemente
inconstitucional (art. 137, II, b do Regimento Interno da Câmara dos Deputados). Se assim
114 MS 24.041-DF, rel. Min. Nelson Jobim.
91
não o fizer, o órgão competente do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal, após
devidamente demandado, poderá exercer o controle preventivo.
Destarte, é permitida a impetração de mandado de segurança por parlamentares com
a finalidade de assegurar o devido processo legal na formação das leis, constituindo-se em
direito subjetivo público a correta formação dos mandamentos normativos. Os
parlamentares, tanto do Senado como da Câmara dos Deputados, tem legitimidade ativa para
ajuizar no Poder Judiciário as medidas cabíveis para que as espécies normativas sigam o
procedimento delineado nos arts. 59 a 69 da Constituição Federal.115
A força normativa da constituição deve se preservada com grande acuidade no
concernente ao processo legislativo, por representar a sua estrutura normogenética, o
disciplinamento do processo de criação normativa. O desvirtuamento desse processo deve
ensejar o controle de constitucionalidade formal. O processo legislativo é de suma
importância para o funcionamento sistêmico do ordenamento jurídico, impedindo
antinomias e velando pela eficácia de seus dispositivos, reforçando a supremacia
constitucional através da supralegalidade formal.
Entretanto, caso essa espécie normativa se converta em lei, há o cerceamento da
legitimidade ativa, com a prejudicialidade da ação impetrada, em decorrência de fato
superveniente que impede o prosseguimento da ação judicial. Uma vez convertida em lei à
proposta normativa, entende o Pretório Excelso que a norma apenas pode ser retirada do
ordenamento jurídico pelo controle direto de constitucionalidade. Os instrumentos do
controle difuso não podem se transformar em sucedâneos do controle direto.
Pela natureza dos sistemas de controle de constitucionalidade utilizados no Brasil,
apenas o controle difuso, incidental, pode ser utilizado, e apenas pelos parlamentares, para
defender um direito público subjetivo que lhes assiste, qual seja, o de ver o devido processo
115 “O processo de formação das leis ou de elaboração de emendas à Constituição revela-se suscetível de controle incidental ou difuso pelo Poder Judiciário, sempre que, havendo possibilidade de lesão à ordem jurídico-constitucional, a impugnação vier a ser suscitada por membro do próprio Congresso Nacional, pois, nesse domínio, somente ao parlamentar – que dispõe do direito público subjetivo à correta observância das cláusulas que compõem o devido processo legislativo – assiste legitimidade ativa ad causam para provocar a fiscalização constitucional”. MS 22487, rel. Min. Celso de Mello.
92
legal legislativo e o conteúdo das cláusulas pétreas respeitados. O controle direto, com efeito
erga omnes, retirando normas da seara jurídica, apenas pode ser impetrado pelas pessoas
descritas no art. 103 da Constituição Federal. Quando a norma entra no ordenamento
jurídico através da promulgação, apenas se torna cabível o controle concentrado de
constitucionalidade.
Resumindo, pode-se afirmar que o controle preventivo por parte do Poder Judiciário
tanto pode ser realizado em decorrência de proposta normativa que intente abolir as
cláusulas pétreas, como de qualquer propositura normativa que não obedeça ao que fora
regulamentado na Carta Magna. Uma vez convertida em lei a propositura, há uma perda
superveniente da legitimidade ativa por parte dos parlamentares, sendo possível apenas à
instalação do controle direto de constitucionalidade.
Cidadãos que não são membros do Congresso Nacional, não têm legitimidade ativa
para impetrar medida judicial a fim de resguardar o procedimento constitucional de criação
normativa, mesmo com a alegação de que eles seriam os destinatários do comando
normativo, porque admitida essa possibilidade estar-se-ia instaurando o controle preventivo
abstrato de inconstitucionalidade.
Como já foi mencionado anteriormente, o controle repressivo de constitucionalidade
é realizado de forma preponderante pelo Poder Judiciário. Pelas peculiaridades que
estruturam esse poder, ele é o mais eficiente para garantir os direitos fundamentais de forma
inter partes e proporcionar uma oxigenação das decisões da jurisdição constitucional,
possibilitando a construção de um processo dialógico por parte do órgão que exerce a tutela
da Constituição. Contudo, para uma maior eficiência do controle de constitucionalidade,
outros órgãos podem realizar o controle repressivo, com o escopo de acolmatar uma
determinada lacuna que não pode ficar ao relento.
O Supremo Tribunal Federal, na Súmula 347, permite que o controle de
constitucionalidade seja realizado pelo Tribunal de Contas da União e pelos seus congêneres
estaduais, desde que para assuntos afeitos a sua área de competência. Nesta hipótese, o
Tribunal de Contas da União não pode retirar a norma do ordenamento, ou declarar sua
93
inconstitucionalidade com efeitos vinculantes, pois estas são funções exclusivas do Poder
Judiciário. Ele apenas deixa de aplicar a norma em decorrência da sua inconstitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento no sentido de que o Poder
Executivo tem a prerrogativa de não cumprir uma determinada norma ou ato normativo sob
a alegação de sua inconstitucionalidade. O fundamento jurídico que respalda essa faculdade,
segundo o Egrégio Tribunal, é o art. 23, inc. I da Constituição Federal, dispondo que
compete à União, aos Estados-Membros, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência
de zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o
patrimônio público. Não obstante as discussões doutrinárias a respeito do assunto, o STF
entende que o Poder Executivo, em qualquer uma das suas três esferas governamentais, pode
não cumprir um preceito normativo alegando a sua inconstitucionalidade.
Essa prerrogativa por parte do Executivo encontra limites e essa restrição é no
momento da prolatação de uma decisão judicial. Uma vez prolatada uma decisão judicial
afirmando a constitucionalidade da norma, não pode mais o Poder Executivo se furtar a sua
execução, principalmente se a decisão for em sede de controle direto cujo efeito é vinculante
e erga omnes, o que impede que o Chefe do Executivo venha a se posicionar em sentido
contrário.
Apesar das posições predominantes serem em sentido contrário, defendemos a tese
de que o Poder Executivo não pode deixar de aplicar a norma por considerá-la
inconstitucional.116 Primeiro, por causa da presunção de legitimidade: uma norma é
constitucional até decisão judicial em contrário; segundo porque a unicidade de jurisdição,
afora algumas exceções, impede que outros órgãos possam exercer o controle de
constitucionalidade repressivo, e, por último, para garantir a segurança do ordenamento. Em
um país onde existem mais de cinco mil municípios, permitir ao Poder Executivo aferir a
constitucionalidade ou não das normas, seria admitir interferências políticas na jurisdição
constitucional e gerar insegurança.
116 Em sentido contrário ver: MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 3ª ed ., São Paulo: Atlas, 1998. P. 488.
94
Portanto, em decorrência da jurisprudência dominante, o Poder Executivo pode
deixar de cumprir uma lei alegando sua inconstitucionalidade até que haja decisão do Poder
Judiciário no sentido de cumprimento do comando normativo. Em sede de controle de
constitucionalidade difuso, a obrigatoriedade ocorre na circunscrição de competência do
órgão que prolatou a decisão, e de forma erga omnes se a decisão for em sede de controle
direto, que, por seus efeitos específicos, abrange todos os entes federativos.
O controle repressivo também pode ser exercido pelo Poder Legislativo quando nega
conversão de uma medida provisória em lei sob a alegação de sua inconstitucionalidade, que
pode ser tanto porque houve descumprimento dos requisitos de relevância e urgência, como
por causa de um acinte a um determinado conteúdo constitucional. A não conversão de uma
medida provisória pode ocorrer por motivos políticos ou por inconstitucionalidade. A
jurisdição constitucional apenas será exercida quando houver a imputação de
inconstitucionalidade, haja vista que o critério político se vincula à conveniência e
oportunidade.
A oportunidade do Poder Legislativo declarar a inconstitucionalidade de uma medida
provisória pode ocorrer na Comissão Mista, que é formada com o objetivo de apreciar a
medida enviada pelo Chefe do Executivo, ou em plenário, com a participação de todos os
parlamentares.
A medida provisória para ser convertida em lei necessita se adequar a todos os
parâmetros estabelecidos pela Constituição, como a obediência ao critério de relevância e
urgência e a proibição de regulamentar determinadas matérias. Se o Congresso Nacional
entende que um dos requisitos exigidos não foi cumprido, deve se negar a converte a medida
provisória em lei, sob a alegação de sua inconstitucionalidade, exercendo assim um controle
repressivo.
Em realidade, quando o Congresso Nacional não converte uma medida provisória em
lei, alegando sua inconstitucionalidade, não está exercendo uma função típica do
Legislativo, mas executando uma forma repressiva de controle. Em idêntico
posicionamento, Clève Clemerson: “Lamentavelmente, porém, o Congresso Nacional tem
relegado a segundo plano o exercício do controle jurídico das providências normativas de
95
urgência. Conseqüências: medidas provisórias flagrantemente inconstitucionais têm sido, às
dezenas, convertidas em lei. Na prática, o controle duplo vem sendo simplificado até sua
redução àquele de natureza exclusivamente política”.117
Será considerada prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade impetrada contra
medida provisória em decorrência de sua conversão em lei com modificações que
desnaturem a causa petendi da referida ação. Perdendo eficácia a medida provisória por não
ter sido convertida no prazo legal, de sessenta dias – podendo ser automaticamente reeditada
por mais sessenta dias – a ação direta intentada contra ela será prejudicada por perda do
objeto.
Quando o Poder Legislativo susta os atos normativos do Poder Executivo porque eles
excedem o seu poder de regulamentar (adequação ao princípio da legalidade), não se trata de
hipótese de controle de constitucionalidade, mas de controle de legalidade, embora alguns
doutrinadores afirmem que o caso mencionado se trata de controle repressivo de
constitucionalidade. O Poder Legislativo editará um decreto legislativo para que o
dispositivo legal venha a ser respeitado.
O mesmo raciocínio se aplica quando o Legislativo transfere ao Presidente da
República competência para promulgar uma lei delegada e este extrapola os limites
definidos pela resolução que foi elaborada pelo Congresso Nacional. Nesse caso não há a
tipificação de um controle de constitucionalidade e sim de um controle de legalidade, porque
a afronta direta não foi à Constituição, e sim ao conteúdo da resolução, que é uma norma
infraconstitucional, fixando os limites para a atuação do Chefe do Executivo na elaboração
da lei delegada.
5.3) Controle das Normas Constitucionais no Tempo
117 CLÈVE, Clemerson Merlin. Medidas Provisórias.2º ed., São Paulo: Max Limonad, 1999. P. 118.
96
O brocardo tempus regit actum (o tempo rege o ato) tem significativa importância na
análise do controle das normas constitucionais no tempo.118 As normas contidas na
Constituição hodierna servem de parâmetro para a apreciação das normas jurídicas vigentes,
não servindo para aferir a constitucionalidade de leis anteriores que já foram revogadas.119
As normas jurídicas vigentes ao tempo da entrada em vigor da Constituição permanecerão
com esta qualidade se não afrontarem o conteúdo da nova Carta Magna.
De igual forma acontece com a inconstitucionalidade formal de leis que entraram em
vigor sob os moldes do ordenamento jurídico pretérito: a nova Constituição não pode servir
de parâmetro para a aferição da constitucionalidade formal de leis anteriores.120 O que leva a
conclusão de que não se pode argüir uma inconstitucionalidade formal com base no processo
legislativo da nova Carta Magna.
São denominadas de pré-constitucionais as normas infraconstitucionais que
auferiram validade por intermédio da Constituição pretérita. Essas normas são uma
decorrência da superveniência das normas constitucionais.121 De acordo com a teoria da
recepção, se elas forem compatíveis com o novo ordenamento, serão recepcionadas, com a
118 Ensina Vital Moreira e Canotilho: “A inconstitucionalidade superveniente só pode dizer respeito à inconstitucionalidade material, pois a inconstitucionalidade orgânica ou formal – que necessariamente diz respeito à formação do acto – só pode ser aferida pelas normas constitucionais vigentes à data dessa formação. Por outro lado, pela sua própria natureza, ela só pode afectar a legitimidade da norma a partir do momento em que a norma se tornou inconstitucional”. CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. P. 268. 119 “O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada leis ordinárias”. QO-ADIn 512-MT, rel. Min. Paulo Brossard. 120 “Julgado o mérito de ação direta ajuizada pelo Partido Social Trabalhista – PST contra a Emenda 11/98 à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que limita a remuneração de prefeitos e vereadores e determina a adequação imediata aos limites máximos nela impostos. O tribunal julgou prejudicada a ação na parte alusiva ao subsídio dos vereadores porquanto já em vigor a Emenda à Constituição Federal n.° 25/2000, que modificou a norma constitucional que serviria de parâmetro para a aferição da alegada inconstitucionalidade”. ADIn 2.112-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 121 “Os fenómenos jurídicos decorrentes da superveniência de normas constitucionais podem sintetizar-se do seguinte modo: - Acção da Constituição nova sobre a Constituição anterior – revogação global e, em certos, caducidade; - Acção de normas constitucionais novas (provenientes de modificação constitucional) sobre normas constitucionais anteriores – revogação; - Acção de Constituição nova sobre normas ordinárias anteriores não desconformes com ela – novação; Acção de normas constitucionais novas (provenientes de Constituição nova ou de modificação constitucional) sobre normas ordinárias anteriores desconforme – caducidade por inconstitucionalidade superveniente”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo: II, 4 ed., Coimbra: Coimbra editores, 2000. P. 275
97
translação de sua vigência para a Lei Maior vigorante. Sendo incompatíveis com a nova
ordem constitucional, serão revogadas automaticamente, ou com melhor precisão técnica,
não-recepcionadas, faltando-lhes um fundamento de validade para continuar no
ordenamento jurídico.122 Não se pode dizer que foram revogadas porque uma norma apenas
pode ser revogada por outra, o que não foi o caso, porque elas perderam o seu substrato de
validade.
Com relação às normas pré-constitucionais, não há necessidade de declaração por
parte do Poder Judiciário para que estas sejam expulsas do ordenamento. Entrando em
vigência a nova Constituição, imediatamente, as normas do ordenamento jurídico anterior,
que forem incompatíveis com o atual perderão sua eficácia, não sendo recepcionadas.
Entretanto, essa indefinição contribui para uma certa insegurança jurídica que vai sendo
debelada à medida que o Poder Judiciário reafirma a sua inconstitucionalidade.
Haverá a concretização de uma convalidação normativa se uma norma era
inconstitucional sob o ordenamento jurídico anterior, mas ainda não tinha sido declarada
pelo Poder Judiciário, e, com a nova Constituição, adequou-se aos parâmetros do
ordenamento vigente, no que produzirá efeitos ex tunc, convalidando os atos produzidos
desde o início. Exemplo: determinada lei “x” era inconstitucional sob o ordenamento
jurídico da Constituição de 1967/69 e passou a ser considerada constitucional sob a vigência
da Constituição de 1988. Se ela não foi declarada inconstitucional na vigência da
Constituição de 1967/69, ela será convalidada pelo novo ordenamento, permanecendo os
efeitos produzidos desde a Constituição anterior até a atual.
As ações do controle direto de constitucionalidade só podem ser impetradas contras
as normas que continuam em vigor no ordenamento, porque foram recepcionadas pela nova
ordem jurídica. A única exceção é a ação de argüição de descumprimento de preceito
fundamental, que pode ser impetrada contra normas que já foram revogadas ou que
exauriram seus efeitos. Em regra, as normas pré-constitucionais que não forem compatíveis
com o novo ordenamento jurídico não podem sofrer controle direto de constitucionalidade.
122 Paulo Barile defende a tese que cada sistema de controle de constitucionalidade tenham mecanismos de impugnar as normas pré-constitucionais. BARILE, Paolo. Scritti di Diritto Costituzionale. Padova: Antonio Milani, 1964. P. 40.
98
O controle propício é o controle incidental, em que cada cidadão detém legitimidade para
garantir os seus direitos.
A maioria da doutrina se posiciona nesse sentido devido à forte influência
kelseniana, ao conceber a Constituição como a norma hipotética fundamental, a grundnorm,
o núcleo irradiador de validade para as demais normas jurídicas. Se uma Constituição é
modificada, todo o alicerce jurídico do sistema também o será, não podendo uma norma que
não possui mais validade ser mantida no ordenamento. O controle de constitucionalidade
apenas pode ser aferido no momento de formação da norma, de acordo com a Constituição
vigente. Ao perder seu núcleo de validade, imediatamente a norma deixa de existir, salvo se
houver sua convalidação pelo novo ordenamento. Então, se uma norma não mais existe,
como é que ela pode ser passível de controle de constitucionalidade?
Com relação às normas pré-constitucionais o que pode ser discutido é se elas
acarretaram prejuízos durante o tempo de sua vigência. Exemplo: uma lei inconstitucional,
pelos parâmetros da Constituição de 1967/69, aboliu determinadas gratificações dos
funcionários públicos federais. Com o Texto de 1988, dita lei não é recepcionada,
reinstaurando-se as gratificações perdidas. Na vigência da Constituição cidadã, os lesados
pela perda das gratificações à época da Constituição de 1967/69, querendo reavê-las, terão
que acionar o controle difuso, ajuizando as ações competentes, baseando-se nos argumentos
jurídicos da Carta autoritária.
Assim, para recuperar os danos advindos de uma lei considerada inconstitucional
pelo ordenamento anterior, o único mecanismo que pode ser usado é o controle difuso de
constitucionalidade. Os meios de controle de constitucionalidade concentrado não podem ser
aplicados em relação às normas pré-constitucionais, com exceção da argüição de
descumprimento de preceito fundamental pela relevância do objeto protegido.
Os mecanismos do sistema concentrado não podem ser utilizados com relação às
normas pré-constitucionais porque elas não mais têm sua vigência asseguradas e a finalidade
deste controle é manter a coerência do ordenamento jurídico. Os mecanismos do sistema
99
difuso podem ser utilizados devido ao mandamento constitucional que dispõe que nenhuma
lesão ou ameaça a direito pode ser excluído da apreciação do Poder Judiciário.
Foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal que cabe controle de
constitucionalidade com relação às emendas constitucionais. Quanto à possibilidade de
existência de inconstitucionalidade de normas provenientes do Poder Constituinte, a tese
esposada por Otto Bachof da existência das normas constitucionais inconstitucionais, não se
mostra factível, sendo repelida tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência nacional e
comparada.123 O mencionado autor postula que existe normas oriundas do Poder
Constituinte, que foram positivadas originalmente na Carta Magna, e que mesmo assim são
inconstitucionais porque afrontam os princípios fundamentais da Constituição.124
5.4) Tipos de Inconstitucionalidade
As demandas inerentes a um Estado Democrático Social de Direito exigem uma
maior atuação da jurisdição constitucional e essa maior área de incidência tem o escopo de
incrementar a eficácia das normas constitucionais. Esse aumento das demandas sociais,
infelizmente, estimula o aparecimento de tipos de inconstitucionalidade que necessitam ser
expurgados do ordenamento. Perante a Constituição de 1988, pode-se mencionar três tipos
de inconstitucionalidades: por ação, por omissão e em razão de descumprimento de preceito
fundamental.
123 “Com efeito, a doutrina de Bachof sobre normas constitucionais inconstitucionais, em que se estribam os promotores da ação, não vingou no direito constitucional, muito menos na jurisprudência dos tribunais, e aparece primeiro num aresto obscuro e solitário da Corte estadual da Baviera, de 10.6.49, e, a seguir, de maneira tíbia e vacilante, com alcance sobremodo limitado, em raros acórdãos do Tribunal de Karlsruhe na Alemanha. Com base na monografia de Bachof e em decisões frágeis de duas Cortes alemãs, que jamais firmaram jurisprudência, desenvolvem os autores da ação argumentos diante da evidência de objeções assentadas sobre a verdade da jurisdição, da doutrina e das leis”. BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. Temas Políticos e Constitucionais da Atualidade, com ênfase no Federalismo das Regiões. 2 ed., São Paulo: Malheiros, 1996. P. 215. 124 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais inconstitucionais? Almedina: Coimbra, 1994. P. 68.
100
As inconstitucionalidades podem ser perpetradas por normas ou atos normativos. Os
dispositivos legais podem ser qualquer um dos contidos no art. 59 da Constituição,
constituindo-se em leis formais. Os atos normativos são espécies administrativas passíveis
de controle, desde que tenham caráter normativo e que sejam genéricos, abstratos e
impessoais.
A inconstitucionalidade por ação ocorre com a produção de uma lei ou ato
normativo, exigindo como pressuposto o aparecimento de um dispositivo normativo que
colida com os comandos constitucionais. Ela pode ser de dois tipos: material ou formal. A
primeira ocorre quando a norma infraconstitucional contraria o caráter deontológico de um
dispositivo constitucional, ou seja, o teor expresso de sua determinação.
A doutrina igualmente denomina a inconstitucionalidade material de intrínseca e a
formal de extrínseca. Intrínseca, porque o vício está no conteúdo da norma, no seu
disciplinamento normativo. Extrínseca, porque o vício está no processo de produção
legislativo, em um processo exterior ao seu conteúdo.
A segunda incide apenas nas normas procedimentais que estruturam o processo de
normogénese, enquanto que a inconstitucionalidade material engloba as demais hipóteses. A
inconstitucionalidade material não versa sobre a forma, não analisando se o procedimento
para a criação normativa foi obedecido; ela infringe a matéria disposta na norma
constitucional, ou seja, o seu conteúdo. Toda inconstitucionalidade produz sérias
conseqüências para o ordenamento jurídico, entretanto, se houvesse possibilidade de se
estabelecer uma gradação entre elas, a inconstitucionalidade material seria mais gravosa do
que a formal, porque afronta a supremacia da Lei Maior, debilitando o texto constitucional e,
de forma indireta, a força normativa de suas normas.
A inconstitucionalidade formal tem uma abrangência bem menor do que a
inconstitucionalidade material, o que não quer dizer que esse tipo de inconstitucionalidade
apresente um menor significado. Ela ocorre quando as normas ou atos normativos
infraconstitucionais não obedecem o procedimento estabelecido na Lei Maior para a criação
normativa, ou seja, o processo legislativo previsto nos arts. 59 a 69 da Constituição. Há
nítida afronta ao devido processo legal procedimental, ferindo de forma implícita o princípio
101
da soberania popular, cuja personificação primordial são os mandamentos contidos na
Constituição.
A inconstitucionalidade formal pode ser dividida em duas espécies, que não
apresentam relevante diferença de natureza entre si. A inconstitucionalidade formal
subjetiva configura-se quando o órgão que propõe a norma não tem legitimidade para fazê-
lo. Ela surge quando há um vício na propositura da norma, por ter sido encaminhada por um
órgão que invadiu a competência de outro. Seria o caso, por exemplo, de um projeto de lei
que, tendo sido proposto por um parlamentar, versasse sobre aumento de salário dos
servidores públicos, pois a Constituição estabelece a legitimidade privativa do Presidente da
República para a iniciativa de projeto de lei sobre esta matéria.125 A inconstitucionalidade
formal objetiva, por sua vez, engloba os demais casos, isto é, todos aqueles que não versem
sobre vício de iniciativa, residindo a mácula em outro ponto do procedimento legislativo. É
o caso, por exemplo, de uma lei ordinária que não foi aprovada pelo Senado Federal. A
inconstitucionalidade formal subjetiva126
A inconstitucionalidade material permite a sua convalidação, isto é, o seu
saneamento, com o expurgo do vício que a maculava. Como esse tipo de
inconstitucionalidade afeta apenas a parte da norma que colide com a Carta Magna, as
demais partes, se forem autônomas e se a sua finalidade for mantida incólume, são
preservadas pelo controle de constitucionalidade.
Já a inconstitucionalidade formal, atinge a integralidade da norma ou ato normativo,
pois ocorre no seu processo de formação, não admitindo nenhum tipo de convalidação. A
mácula reside no processo legislativo e, portanto, espraia-se por todo o teor do dispositivo
normativo.
A única possibilidade de convalidação da inconstitucionalidade formal admitida pelo
ordenamento jurídico estava prevista na Súmula n.º 5 do Supremo Tribunal Federal que 125 Exemplo de inconstitucionalidade formal subjetiva se configura quando um projeto de lei, proposto por um Parlamentar, se refere sobre a remuneração de servidores públicos, ferindo o mandamento constitucional que planteia a exclusividade de iniciativa de leis que versem sobre a remuneração de servidores públicos. 126 Exemplo de inconstitucionalidade formal subjetiva se configura quando um projeto de lei, proposto por um Parlamentar, se refere sobre a remuneração de servidores públicos, ferindo o mandamento constitucional que planteia a exclusividade de iniciativa de leis que versem sobre a remuneração de servidores públicos.
102
entendia que a sanção expressa do Presidente da República supriria o vício formal da falta
de iniciativa do Poder Executivo. Contudo, a mencionada súmula foi revogada,
prevalecendo o entendimento de que a sanção, seja expressa ou tácita, não convalida a
inconstitucionalidade formal.127 Atualmente, pelos motivos expostos, não há nenhuma
possibilidade de convalidação de inconstitucionalidade formal.
Uma das grandes inovações da Constituição de 1988 foi a criação da
inconstitucionalidade por omissão, ultrapassando o exclusivo conceito de
inconstitucionalidade por ação. Sua origem liga-se à falta de eficácia dos mandamentos
constitucionais, mormente aqueles ligados à concretização de direitos fundamentais. Ela
ocorre quando o legislador infraconstitucional, os poderes estabelecidos ou o Poder
Executivo deixa sem efetividade um comando normativo. A omissão desses órgãos impede
que a norma constitucional adquira completa eficácia, descumprindo a finalidade teleológica
que fora prevista pelo legislador constituinte, e fragilizando a concretude normativa da Carta
Magna.
Assim, em virtude do desenvolvimento das demandas sociais, configura-se uma
inconstitucionalidade quando se faz o que o dispositivo constitucional proíbe ou quando se
deixa de fazer o que ela determina.128
A inconstitucionalidade por omissão nasce da obrigação do Estado Democrático
Social de Direito assegurar condições mínimas de bem-estar a sociedade, através de
prestações materiais de direitos de segunda, terceira e quarta dimensões dos direitos
fundamentais. Planteia Canotilho: “A força dirigente e determinante dos direitos a
prestações (econômicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objeto clássico da
pretensão de omissão dos poderes públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de
interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão
127 Conforme decisões inseridas em: Rp 890-GB; ADInMC 1.070-MS; ADInMC 1.963-PR, etc. 128 ROBERTO BARROSO, Luís. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas. 4 ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000. P. 157.
103
(direito a exigir que o Estado intervenha ativamente no sentido de assegurar prestações aos
cidadãos)”.129
A Constituição Cidadã de 1988 previu, de forma inovadora, a inconstitucionalidade
por descumprimento de preceito fundamental, no seu art. 102, § 1º, que apenas foi
regulamentado em 1999, pela Lei 9.868/99. Esse tipo de inconstitucionalidade apresenta a
peculiaridade de incidir sobre o descumprimento de preceito fundamental, cuja definição
ainda está ao talante do Supremo Tribunal Federal. Ela pode ocorrer tanto de forma
comissiva, como de forma omissiva, sendo essa peculiaridade um surplus para a defesa dos
preceitos fundamentais. Seu nascimento dar-se sob o signo da defesa dos direitos
fundamentais mais imperiosos, fornecendo à jurisdição constitucional um maior manancial
de instrumentos aptos a tornar eficazes os dispositivos contidos na Carta Magna.
5.4.1) Tipos de Inconstitucionalidades Materiais
As inconstitucionalidades materiais são aquelas que aparecem com maior freqüência
no ordenamento jurídico. Sua origem reside de forma mais premente na seara
jurisprudencial e por essa razão estão em constante evolução. Diante da multiplicidade de
casos e do seu constante desenvolvimento é que serão estudadas de forma separada.
Inconstitucionalidade valorativa é aquela que incide em princípios constitucionais.
Por estes ostentarem uma intensa gama axiológica, podendo a sua extensão ser elastecida ou
restringida por mecanismos interpretativos, a aferição da inconstitucionalidade encontra-se
na dimensão do valor que está imbuído na norma. Dessa forma, uma interpretação extensiva
do princípio da gratuidade do ensino público impediria a cobrança de qualquer tipo de taxa
para o ingresso no sistema educacional. Nesse tipo de inconstitucionalidade a variação do
129 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra, 1994. P. 365.
104
conteúdo interpretativo da norma constitucional definirá o padrão de aferição do controle de
constitucionalidade.
Inconstitucionalidade superveniente significa que a norma deixou de ser
constitucional pelo surgimento de uma emenda que modificou a Carta Magna. Até a atuação
do Poder Reformador, a norma se adequava totalmente aos dispositivos da Carta Magna; a
inconstitucionalidade ocorreu em virtude da alteração constitucional. Os efeitos produzidos
ate a alteração são considerados atos jurídicos perfeitos, não podendo ser atingidos pela
decisão declaratória da inconstitucionalidade.
Nesse caso, ao contrário do que acontece com as normas pré-constitucionais, a
norma infraconstitucional que passou a ser contrária à Constituição por causa de uma
emenda, para ser expurgada do ordenamento, deve ser declarada inconstitucional. Como não
há o surgimento de um novo ordenamento, vigora na sua plenitude o princípio da presunção
de constitucionalidade das normas. As normas infraconstitucionais que forem contrárias à
modificação efetuada na Constituição não são revogadas imediatamente; precisam ser
declaradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário para serem expulsas do ordenamento
jurídico. O efeito dessa declaração é retrooperante, cerceando todos os efeitos produzidos
após a data da vigência da emenda. Sendo declarado a inconstitucionalidade da lei ou do ato
normativo, os efeitos por ele produzido serão ceifados com efeito ex tunc, tomando-se como
marco temporal à data de promulgação da emenda.
Leciona Pedro Cruz Villalon que a formação da doutrina sistemática do controle de
constitucionalidade deve começar por quais normas devem ser passíveis do controle de
constitucionalidade, no que se denomina de parâmetro de constitucionalidade.130 Para a
doutrina constitucional brasileira o parâmetro de constitucionalidade formal resume-se às
normas da Constituição em vigor.
Denomina-se de parâmetro constitucional alterado quando, após o ajuizamento da
ação direta ou do controle difuso, há alteração do parâmetro constitucional que compunha
130 VILLALÓN, Pedro Cruz. La Formacion Del Sistema Europeo de Control de Constitucionalidad (1918-1939). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. 1987. P.39.
105
necessariamente o padrão de aferição da inconstitucionalidade.131 Nesse caso, não se admite
o controle de constitucionalidade, pois houve a revogação da norma que estava sendo
argüida como inconstitucional. A norma posterior revogou o padrão de
constitucionalidade.132
Denomina-se de parâmetro constitucional derrogado, quando após o ajuizamento da
ação, há modificações parciais do parâmetro constitucional, que compunha necessariamente
o padrão de aferição da inconstitucionalidade.133 Não se admite, igualmente, nesse caso o
controle de constitucionalidade. A norma posterior derrogou parte do padrão
constitucional.134
De forma consistente tem reiterado o Supremo Tribunal Federal a não aceitação da
inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua porque não seria o caso de controle de
constitucionalidade, mas de controle de legalidade. Ela acontece quando uma norma que
deveria regulamentar outra ultrapassa dos seus limites e termina, ao invés de regulamentá-la,
por acrescer-lhe um novo conteúdo. Com isso a norma regulamentadora ultrapassa o limite
definido pela norma regulamentada, gerando um controle de legalidade, e não de
constitucionalidade, mesmo que o excesso possa contrariar indiretamente a Constituição.
Como exemplo, pode ser mencionado a ADIn que não foi conhecida pelo STF porque teria o
escopo de expurgar do ordenamento jurídico portarias do Ministro da Previdência e
Assistência Social. Entendeu o Supremo Tribunal Federal que não é cabível, em sede de
controle direto, a tutela de atos normativos de hierarquia inferior destinados à
131 “Julgado o mérito de ação direta ajuizada pelo Partido Social Trabalhista – PST contra a Emenda 11/98 à Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que limita a remuneração de prefeitos e vereadores e determina a adequação imediata aos limites máximos nela impostos. O tribunal julgou prejudicada a ação na parte alusiva ao subsídio dos vereadores porquanto já em vigor a Emenda à Constituição Federal n.° 25/2000, que modificou a norma constitucional que serviria de parâmetro para a aferição da alegada inconstitucionalidade”. ADIn 2.112-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 132 Não se admite o controle concentrado de constitucionalidade de norma quando, após sua edição, há alteração do parâmetro constitucional invocado ou não pelo requerente, que compunha necessariamente o parâmetro de aferição da inconstitucionalidade. Não pode ser ajuizada ação direta de inconstitucionalidade pela circunstância de ter sido proposta em face de outros dispositivos constitucionais, os quais foram alterados posteriormente. ADIn 2475-BA, rel. Min. Maurício Correa.. 133 Reconheceu-se a impossibilidade jurídica do pedido porquanto a norma constitucional invocada como padrão de aferição da alegada inconstitucionalidade, inovações da Emenda 19/1998, é posterior aos dispositivos atacados, de maneira que, em tais casos, a alegada inconstitucionalidade superveniente se traduz em revogação. ADIMC 2.501-MG, rel. Min. Moreira Alves. 134 ADIMC 2.501-MG, rel. Min. Moreira Alves.
106
regulamentação de lei, cujos eventuais excessos não revelam inconstitucionalidade, mas sim
eventual ilegalidade frente à lei ordinária regulamentada, sendo indireta, ou reflexa, a
alegada ofensa à Constituição Federal.135
A jurisprudência predominante no Supremo Tribunal Federal manifestou-se pelo não
conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade quando é necessário o prévio
confronto entre a norma infraconstitucional e o ato administrativo impugnado, de modo a
evidenciar sua inconstitucionalidade, verificando-se o caráter reflexo de violação da
Constituição.136 Portanto, não cabe ação direta contra norma que, ao regulamentar a lei,
ultrapassa os limites por ela definidos, haja vista que se está diante de questão de
ilegalidade, e não de inconstitucionalidade.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a inconstitucionalidade
conseqüente, que ocorre quando a norma que sofre regulamentação é declarada
inconstitucional e, dessa forma, aquelas normas ou atos normativos que exerciam a sua
regulamentação também serão atingidos por essa declaração de inconstitucionalidade. Ela
acontece em um segundo momento, sendo derivada de uma inconstitucionalidade anterior.
Exemplo: quando uma norma for declarada inconstitucional, também o será a outra que a
regulamentava.
Lei ainda constitucional ou situação constitucional imperfeita representa um estágio
intermediário entre a inconstitucionalidade e a constitucionalidade. Verifica-se quando o
legislador ordinário é omisso na regulamentação de determinadas disposições
constitucionais, então, transitoriamente, o STF concorda com a manutenção de norma
infraconstitucional, mesmo que colidindo com o mandamento constitucional, para que a
situação possa ser normalizada, como é o caso da lei que concedia prazo em dobro para a
Defensoria Pública, que deveria ser considerada constitucional enquanto esse órgão não
estivesse devidamente habilitado ou estruturado.137 Portanto, dá-se um tempo razoável ao
135 ADIn n.º 2.024-DF. 136 Os atos administrativos tem como características a sua auto-executoriedade e a sua presunção de legitimidade. O primeiro significa que o ato administrativo tem execução imediata, sem depender da atividade de nenhum outro poder. O segundo pode ser traduzido como a sua legalidade; o ato administrativo é considerado válido ate que se prove o contrário. 137 HC n. 70.514.
107
Poder Público, contado da edição de lei definidora do dever de integral obediência ao que
fora preceituado na Constituição, sob pena de progressiva inconstitucionalidade do ato
estatal, que, embora existente, revela-se insuficiente e incompleto.138
Se depois de um prazo razoável, não houver a adequação integral ao preceito
constitucional, o dispositivo infraconstitucional deve ser retirado do ordenamento jurídico,
com a sua declaração de inconstitucionalidade.
Exemplo desse tipo de decisão pode ser encontrada no recurso extraordinário
proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence: “Ministério Público: legitimação para promoção,
no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à
reparação: art. 68 do CPP, norma ainda constitucional: processo de inconstitucionalização
das leis. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa, entre a
constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade da lei com fulminante
eficácia ex tunc, faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem
constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de
realização da norma da Constituição – ainda quando teoricamente não se cuide de preceito
de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a
viabilizem. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao
Ministério Público pelo art. 68 do CPP – constituindo modalidade de assistência judiciária –
deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porem para esse fim, só se pode
considerar existente onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134
da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada. Até que – na União ou em
cada Estado considerado – se implemente essa condição de viabilização da cogitada
transferência constitucional de atribuições, o art. 68 do CPP será considerado ainda vigente:
é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o Plenário no RE n. 135.328”. 139
138 RTJ 136/439-440, rel. Min. Celso de Mello. 139 RE 147.776-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
108
5.5) Extensão da Inconstitucionalidade
No controle de Constitucionalidade, admite-se o princípio da divisibilidade da lei.
Sendo a norma composta de partes autônomas, ela pode ser dividida, desde que a sua
essência não fique prejudicada, isto é, desde que ela possa atender à finalidade para a qual
foi criada. Portanto, havendo uma inconstitucionalidade, apenas a parte eivada de vício será
retirada; as demais partes da lei permanecem no ordenamento, a não ser que percam sua
autonomia, não podendo mais subsistir de forma isolada.140
Haverá uma maior extensão da inconstitucionalidade quando houver uma
dependência entre as partes da lei, de modo que um fragmento legal não possa subsistir de
forma autônoma, porque o núcleo principal da norma foi considerado inconstitucional. Os
fragmentos legais subsidiários não subsistem quando for declarado a inconstitucionalidade
do núcleo principal. Não existindo interdependência, as partes normativas não afetadas pela
inconstitucionalidade permanecem em vigor.
Assim, será concretizada uma inconstitucionalidade total quando houver um vício de
ordem formal, quando não houver possibilidade de divisibilidade da lei ou quando a
declaração de inconstitucionalidade implicar em uma desfiguração do conteúdo da norma. O
vício de ordem formal não admite convalidação. Uma vez constatado o não cumprimento do
dispositivo do processo legislativo, a lei como um todo deve ser declarada inconstitucional,
não podendo ser mantido a validade de nenhuma de suas partes.
A indivisibilidade pode decorrer do fato que a parte da lei considerada
inconstitucional é imprescindível para a sua aplicação, não podendo haver a manutenção da
validade da norma com a exclusão da mencionada parte. Há uma dependência da totalidade
da lei com relação a sua parte imprescindível.
140 O Min. Sepúlveda Pertence, relator, proferiu voto no sentido de não conhecer da ação por entender ser inviável a pleiteada declaração parcial de inconstitucionalidade do ato atacado – em face do dogma de que a impugnação parcial de norma só é admissível no controle abstrato quando se pode presumir que o restante do dispositivo, que não foi impugnado, teria sido editado independentemente da parte supostamente inconstitucional. Informativo do STF n.º 273. ADIn 2645, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
109
A nulidade parcial ocorre quando os vários dispositivos da norma mantêm uma certa
divisibilidade, não prejudicando sua validade nem muito menos a sua finalidade teológica o
fato de uma dessas partes ser considerada inconstitucional.
A desfiguração da norma ocorre quando o seu dispositivo é declarado
inconstitucional e, em conseqüência, o seu conteúdo sofre uma modificação substancial que
destoa da mens legis para a qual foi criada, havendo uma alteração na vontade do legislador.
6.) Controle Difuso
Com a realização da proposição de se transformar o Supremo Tribunal Federal em
um tribunal constitucional, haverá profundas modificações no controle difuso de
constitucionalidade. O sistema preponderante de controle de constitucionalidade será
indubitavelmente o controle concentrado. Todavia, as peculiaridades do controle difuso,
principalmente na defesa dos direitos fundamentais, não devem ser negligenciadas. O corte
metodológico realizado nesta análise impede maiores deambulações acerca de como
funcionará o controle difuso, limitando-se, por esse motivo, aos contornos atuais do
mencionado sistema. Portanto, a característica do controle difuso de dispor à cidadania de
uma garantia constitucional imediata para a defesa dos direitos fundamentais não pode ser
relegada; o necessário é aprimorar os instrumentos que atuam nesse tipo de controle para
torná-los mais eficientes.
110
6.1) Controle Difuso ou por Via de Exceção
O controle difuso foi instituído no Brasil pelo texto constitucional de 1891 devido à
influência direta da Constituição norte-americana. Ele foi regulamentado na Carta Cidadã de
forma implícita quando o art. 5º, XXXV afirma que lei não poderá excluir da apreciação do
Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito e no art. 102, III que planteia que caberá ao
Supremo Tribunal Federal julgar as causas decididas em única ou última instância quando a
decisão proferida contrariar dispositivo constitucional.
No Brasil, ele é um controle que pode ser utilizado contra as três esferas
normogenéticas – União, Estados e Municípios – e pode se opor a qualquer tipo de lei
infraconstitucional ou ato normativo que afronte a Constituição.
O controle difuso igualmente pode ser chamado de via de exceção, via incidental ou
de controle de norma de efeito concreto.141 Todas essas terminologias designam o mesmo
objeto analisado sob prismas diversos. Difuso porque toda instância judiciária pode decidir
acerca da constitucionalidade; controle de norma de efeito concreto porque somente pode ser
suscitado por aqueles cidadãos atingidos diretamente pela norma inconstitucional; e controle
por exceção ou por via incidental porque surge no decorrer de uma lide que versa sobre
matéria infraconstitucional. Canotilho explica que a terminologia via de exceção se deve ao
fato de que a inconstitucionalidade não se deduz como alvo da ação, mas como subsídio para
a justificação de um direito, cuja reivindicação se discute.142
Os atos em tese apenas podem ser passíveis de controle de constitucionalidade por
via de controle concentrado, enquanto os atos de efeito concreto podem ser passíveis de
141 Zagrebelsky doutrina acerca do controle difuso: “Dado que, nos juízos comuns se trata de uma questão pertinente ao direito das partes, a não aplicação da norma declarada inconstitucional assume o significado da defesa de um direito individual; o procedimento assume as características de um juízo subjetivo; a constituição é chamada a assumir uma eficácia direta, com força normativa de lei, nas relações (horizontais) entre o sujeito e o direito. A lei inconstitucional será declarada nula e em seu lugar o juiz fará a aplicação direta da Constituição”. ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1996. P. 167. 142 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. P. 792.
111
controle pelo sistema difuso. Atos em tese são aqueles dotados de generalidade,
impessoalidade e teor abstrato, em que situações específicas, concretas, não foram a priori
previstas. O seu grau de teor abstrato é tão intenso que os casos a serem regulamentados são
definidos de modo bastante abrangente, sem especificações que possam determiná-los a
priori, o que não acarreta prejuízo a órgão ou agente de forma específica. Atos de efeitos
concretos são aqueles dotados de caráter pessoal, grau de precisão e definição que
possibilitam seu enquadramento em situações pré-determinadas, incidindo contra
determinado cidadão, munindo-o de legitimidade ad causam para proteger-se contra a lesão
ou ameaça de lesão.
A importância do controle difuso não decorre de reminiscências históricas. Ele se
constitui na garantia constitucional de acesso mais fácil à cidadania e no meio mais eficaz de
concretização dos direitos fundamentais. De forma alguma se pode pensar em suprimi-lo,
mas remodelá-lo para se adequar às novas exigências da jurisdição constitucional.
Pela maior participação das partes no controle difuso, a sua legitimidade
procedimental sofre um forte incremento, acrescido do fato de que como qualquer instância
pode decidir a respeito, o seu caráter dialógico é muito maior. Por outro lado, como todo
cidadão que sofre uma lesão tem competência para impetrar esse tipo de controle, ele se
configura como um instrumento imprescindível para a concretização dos direitos
fundamentais, estimulando igualmente a legitimidade substancialista.
A legitimidade passiva para julgar os institutos jurídicos inerentes ao controle difuso
pertence a qualquer instância do Poder Judiciário, podendo chegar ao Supremo Tribunal
Federal por meio da sua competência originária, recurso ordinário e recurso extraordinário.
A legitimidade passiva pertence a qualquer cidadão que tenha um direito seu ameaçado ou
violado por afronta à Carta Magna. Em regra, os seus efeitos subjetivos são inter partes,
atingindo somente as partes componentes da lide, e os efeitos temporais são ex tunc,
retroagindo até a data em que foi perpetrada a inconstitucionalidade.
Em um incidente de constitucionalidade, o controle difuso se configura como uma
prejudicial ao mérito, tomando forma por intermédio de muitas maneiras, como por meio de
medida cautelar ou por meio de uma preliminar em qualquer ação principal. O sistema de
112
controle difuso ainda pode ser concretizado através de recurso extraordinário e recurso
ordinário.
Em instância monocrática, a decisão do controle difuso pode ser tomada por juiz
singular. Em instância colegiada deve ser obedecido o princípio constitucional da reserva de
plenário ou full bench, em que a decisão que declarar a inconstitucionalidade apenas pode
ser tomada pela maioria absoluta dos membros pertencente ao plenário ou órgão especial do
tribunal.
Na decisão do controle de constitucionalidade, o Poder Judiciário deve se ater ao
thema decidendum, ou seja, ele não poderá julgar citra, extra ou ultra petita, atendo-se ao
que fora estipulado no pedido. Vigora o princípio da correspondência entre o pedido e o
julgado, com a obrigação do órgão do Judiciário decidir de acordo com a causa petendi e o
objeto devido formalizados no processo. Nenhuma instância judiciária pode ampliar o
âmbito do pedido formalizado no controle difuso além dos limites que foram propostos, não
podendo de forma alguma alargar o thema decidendum.
A legitimidade passiva para julgar o controle difuso pertence a toda instância do
Poder Judiciário, como planteado anteriormente. O Supremo Tribunal Federal tem
competência para atuar nos casos de recurso ordinário, extraordinário ou quando for o caso
de uma ação originária, excepcionando, obviamente, o controle abstrato. Ou seja,
normalmente o STF tem competência para atuar no controle difuso de forma recursal.
Exercendo a Egrégia Corte a sua competência recursal, quando a lei ou ato
normativo for declarado inconstitucional, será dado ciência ao Senado Federal para que
discricionariamente ele possa manifestar-se no sentido de suspender ou não a sua eficácia.
Assim, a lei incidentalmente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
poderá ser suspensa do ordenamento pelo Senado, cuja decisão terá efeitos ex nunc e erga
omnes, atingindo, a partir de então, todos que se encontrem na mesma situação, a despeito
de não terem entrado com as ações específicas perante o Judiciário.
113
A comunicação da declaração de inconstitucionalidade ao Senado será feita pelo
Supremo Tribunal Federal. Na Constituição de 1934, a comunicação era feita pelo
Procurador-Geral da República.143
A atuação do Senado no controle difuso de constitucionalidade começou com a
Constituição de 1934, com a finalidade de propiciar a esse controle um mecanismo de
homogeneização de suas decisões. Com a implantação do controle incidental pela
Constituição de 1891, não foi criado nenhum mecanismo que pudesse unificar as decisões
do Supremo Tribunal Federal, como existe no modelo norte-americano, que é o stare
decisis, o que contribuía para criar um clima de insegurança jurídica diante da diversidade
de sentenças judiciais acerca de uma mesma matéria.144
Outra fundamentação para a atuação do Senado Federal no controle de
constitucionalidade difuso, retirando as normas do ordenamento jurídico com eficácia erga
omnes, é que essa função não acarretaria um desequilíbrio na separação dos poderes, nem
superdimencionaria o Poder Judiciário, cabendo tal função ao órgão coordenador dos
poderes, denominação da Constituição de 1934, o Senado Federal.145
Explica a professora Regina Maria Macedo Nery Ferrari : “Assim, o Senado só pode
manifestar-se suspendendo a execução de uma lei ou decreto em decorrência de sua
invalidade, havendo decisão do Supremo neste sentido, observando os limites impostos por
ela, não podendo alterá-la, restringi-la ou ampliá-la. Contudo, não há tempo determinado
para tal pronunciamento. Este é o fato capital que leva à grande polêmica, de difícil solução,
porque imaginar que o Senado pode desprestigiar a decisão do Supremo seria absurdo,
acontecendo o mesmo se transformássemos o Senado em simples cartório de registros de
143 Art. 96 da Constituição de 1934: “Quando a Corte Suprema declarar inconstitucional qualquer dispositivo de lei ou ato governamental, o Procurador-Geral da República comunicará a decisão ao Senado Federal para fins do art. 91, n. IV, e bem assim à autoridade legislativa ou executiva de quem tenha emanado a lei ou ato”. 144 O Black’s Law Dictionary explica da seguinte forma o instituto do stare decisis: “ Significa a doutrina do precedente judicial, em que as demais instâncias judiciais são obrigadas a seguir a recente decisão quando houver as mesmas circunstâncias que foram apreciadas do processo originário”. GARNER, Bryan A. Black’s Law Dictionary. 70. ed. St. Paul: West Group, 2000. P. 1137. 145 “Não era, ademais, a Corte Suprema do Poder Judiciário quem suspendia a execução da lei, mas o Órgão de Coordenação dos Poderes, garantida, portanto, a tese da independência e harmonia dos Poderes da União, sem falar no especial efeito político de suspender a execução de uma lei regularmente aprovada pelo Poder Legislativo”. MOREIRA REIS, Palhares. Estudos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. V. IV, Recife: Editora Universitária – UFPE, 2003. P. 170.
114
acórdãos da Suprema Corte, o que poderia ser resolvido por tratamento legislativo. Na
verdade, após a suspensão da execução pelo Senado, a lei perde sua eficácia em relação a
todos os cidadãos, isto é, erga omnes, não podendo ser mais aplicada”.146
Remetendo essa decisão de unificação do controle difuso a um órgão político como o
Senado Federal, o critério de homogeneização das decisões é feito com base na conveniência
e oportunidade, isto é, mediante fatores políticos, alheio ao dogmatismo jurídico.
Os efeitos da resolução suspensiva da decisão do Senado começam a produzir efeitos
da data da publicação da resolução. Tal prerrogativa fora prevista no art. 52, X, da
Constituição, declarando que o Senado pode suspender, no todo ou em parte, a lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A extensão da
suspensão por parte do Senado Federal não é arbitrária, mas consonante com a decisão
prolatada pelo Supremo Tribunal Federal. Não se pode falar em atuação do Senado Federal
em sede de controle direto de constitucionalidade.
A decisão do Senado Federal modifica os efeitos do controle difuso, aumentando a
sua abrangência. Seus efeitos deixam de ser inter partes e ex tunc para se tornarem erga
omnes e ex nunc. Portanto, mesmo aqueles cidadãos que não pleitearam seus direitos pelo
controle difuso, serão atingidos pela decisão do Senado, com efeitos erga omnes e ex nunc.
Em decorrência da transmutação dos efeitos produzidos pela resolução do Senado,
modificando-os de ex tunc para ex nunc, os cidadãos que não participaram da lide e
quiserem obter o efeito retroativo, garantindo a integralidade do seu direito, terão que
recorrer ao controle difuso.
Em princípio é o Supremo Tribunal Federal que deve avisar ao Senado sobre a
declaração incidental de inconstitucionalidade, através de um ofício endereçado à Mesa
Diretora do Senado Federal. Esta comunicação também poderá ser feita pelo Procurador-
Geral da República e pela Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania do Senado
146 NERRY FERREIRA, Regina Maria. Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade. 3 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. P..115-116.
115
Federal, através de um projeto de resolução suspensiva. Não existe prazo para o
posicionamento do Senado.
A atuação do Senado Federal, elastecendo os efeitos do controle difuso, apenas tem
sentido se o objeto impugnado tiver caráter genérico porque, se o objeto tiver um caráter
singular, descabe atuação do Senado, dada a inexistência de casos similares.
O efeito da decisão do Senado Federal, por meio de uma resolução suspensiva, é
suspender a eficácia da lei, permanecendo ela no ordenamento jurídico, mas sem eficácia.
Ele não pode revogar a lei, retirando-a do ordenamento, porque quem revoga uma lei é o
Poder Legislativo, composto por suas duas casas. A atuação do Senado, de forma pacífica na
doutrina e na jurisprudência, faz-se necessária apenas no controle difuso, descabendo sua
atuação no controle concentrado.
Se o Supremo Tribunal Federal receber ao mesmo tempo um recurso extraordinário e
uma ação direta de inconstitucionalidade como o mesmo objeto e a mesma fundamentação, a
primazia da decisão cabe a ação direta pela extensão de seus efeitos.147
A ação civil pública pode ser um dos instrumentos processuais do controle difuso,
produzindo efeitos na extensão da proteção do objeto litigado.148 Ela é utilizada em um
incidente de constitucionalidade como uma questão prejudicial.
O Ministro Celso de Mello diferencia a ação civil pública da ação direta de
inconstitucionalidade: “Ação direta de inconstitucionalidade é instrumento do controle
concentrado da constitucionalidade; por outro lado, a ação civil pública, como todas as ações
individuais ou coletivas, mesmo sendo um instrumento de processo objetivo para a defesa de
interesse público, é instrumento de controle difuso da constitucionalidade. Observe-se,
ainda, que, na ação civil pública, a eficácia erga omnes da coisa julgada material alcança a
questão prejudicial da inconstitucionalidade, é de âmbito nacional, regional ou local,
conforme a extensão e a indivisibilidade do dano ou ameaça de dano. Na ação direta, a
147 QO-AgRg 2.066-SP. rel. Min. Carlos Velloso. 148 “O controle difuso de constitucionalidade das leis pode ser exercido em sede de ação civil pública, no juízo de primeiro grau, quando for necessário para a decisão da hipótese concreta, sendo legitimado para a propositura da ação o Ministério Público”. RE 227.159-GO, rel. Min. Néri da Silveira.
116
declaração de inconstitucionalidade faz coisa julgada material erga omnes no âmbito de
vigência espacial da lei ou ato normativo impugnado (nacional ou estadual). Ademais, as
ações civis públicas estão sujeitas a toda cadeia recursal prevista nas leis processuais, onde
se inclui o recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, enquanto que as ações
diretas são julgadas em grau único de jurisdição. Portanto, a decisão proferida na ação civil
pública no que se refere ao controle de constitucionalidade, como qualquer ação, se submete,
sempre, ao crivo do egrégio Supremo Tribunal, guardião final da Constituição Federal”.149
Entretanto, uma forma de controle difuso não pode ser sucedâneo de uma forma de
controle abstrato, mormente de uma ação direta de inconstitucionalidade.150 A competência
para impetrar uma ação desse tipo apenas pode ser realizada pelos elencados de forma
explícita no art. 103 da Constituição Federal.
O Min. Carlos Velloso entende que o controle difuso de constitucionalidade de lei
pode ser exercido em sede de ação civil pública, no juízo de primeiro grau, quando for
necessário para a decisão da hipótese concreta, consubstanciando a declaração de
inconstitucionalidade pleiteada como causa de pedir e não como pedido da ação civil
pública.151
São questões prejudiciais aquelas que devem ser decididas antes do mérito, por
influenciarem no seu julgamento, e, se forem acatadas, impendem o julgamento do pedido
da ação. Eis a lição de Calamandrei: “Para poder aplicar a lei na causa pendente, ele, o juiz,
deve saber, acima de tudo, se esta lei é constitucionalmente legítima; a questão de
legitimidade constitucional deve ser resolvida, então, com precedência, como etapa
necessária no iter lógico ao qual o juiz deve recorrer para chegar à conclusão”.152
149 RCL 1.733-SP (medida liminar), rel. Min. Celso de Mello: “O Supremo Tribunal Federal tem reconhecida a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal”. 150 Ag 1089.601-GO, rel. Min. Carlos Velloso. 151 RCL 1.503-DF, rel. Min. Carlos Velloso. 152 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. 3, Campinas: Bookseller, 1999. P. 59.
117
O mandado de segurança é também um instrumento de controle difuso de
constitucionalidade, desde que seja para situações específicas e concretas, não podendo ser
utilizado como instrumento do controle concentrado, abrangendo casos gerais, impessoais e
abstratos, segundo a Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal.153 Dispõe a mencionada
súmula do Supremo: “O mandado de segurança não se qualifica como sucedâneo da ação
direta de inconstitucionalidade, não podendo ser utilizado, em conseqüência, como
instrumento de controle abstrato de validade constitucional das leis e dos atos normativos
em geral, ainda que se cuide de hipótese alegadamente configuradora de
inconstitucionalidade, por omissão parcial, resultante de ofensa ao princípio da isonomia,
provocada por exclusão discriminatória de benefício”.
Os instrumentos do controle difuso não se mostram eficazes para garantir a
concretização do princípio da isonomia, quando determinado comando normativo institui
benefício com a exclusão de alguns membros da categoria, como é o caso de uma lei que
estabelece uma gratificação para os servidores públicos ativos e se omite com relação aos
servidores públicos inativos. Em casos desse tipo, tem declarado o Supremo Tribunal
Federal que o Poder Judiciário não pode atuar como se fora legislador, quebrando o
princípio da separação dos poderes.154
Quando houver uma afronta ao princípio constitucional da isonomia, constituindo-se
uma inconstitucionalidade por omissão parcial, o ordenamento jurídico brasileiro permite
três saídas jurídicas: a) extensão dos benefícios ou vantagens às categorias ou grupos
excluídos; b) a supressão dos benefícios ou vantagens que foram concedidas; c)
reconhecimento de uma situação ainda constitucional, situação constitucional imperfeita, em
que um prazo é dado ao Poder Público para que possa regulamentar a situação para garantir
a todos que preencham os requisitos dos direitos ofertados.
Eis a lição do Ministro Celso de Mello: “O mandado de segurança não se qualifica
como instrumento processualmente adequado à argüição de inconstitucionalidade de lei, por
153 O Mandado de Segurança não pode ser sucedâneo de ADIn, RTJ 132/1136, rel. Min. Celso de Mello. 154 “O que não se revela impossível, contudo, em face de nosso sistema de direito positivo, é admitir-se, em sede mandamental, por omissão parcial, de ato normativo, para, a partir do reconhecimento do caráter eventualmente discriminatório da norma estatal, postular-se a extensão, por via jurisdicional, do benefício pecuniário não outorgado à parte impetrante”. MS 21.400-SP, rel. Min. Octavio Galotti.
118
omissão parcial, quando, resultando esta da exclusão discriminatória de benefício de
natureza pecuniária, vem o ato normativo estatal a ofender o princípio da isonomia. A
extensão jurisdicional, em favor dos servidores preteridos, do benefício pecuniário que lhes
foi indevidamente negado pelo legislador encontra obstáculo no princípio da separação dos
poderes. A disciplina jurídica da remuneração devida aos agentes públicos em geral está
sujeita ao princípio da reserva legal absoluta. Esse postulado constitucional submete ao
domínio normativo da lei formal a veiculação das regras pertinentes ao instituto do
estipêndio funcional. O princípio da divisão funcional do poder impede que, estando em
plena vigência o ato legislativo, venham os Tribunais a ampliar-lhe o conteúdo normativo e
a estender a sua eficácia jurídica a situações subjetivas nele não previstas, ainda que a
pretexto de tornar efetiva a cláusula isonômica inscrita na Constituição”.155
6.2) Reserva de Plenário ou Cláusula Full Bench
Quando a apreciação do controle difuso couber a um juízo colegiado, a não ser que o
mérito já tenha sido decidido pelo STF, a matéria à qual se argüiu a inconstitucionalidade
não poderá ser julgada pelas câmaras ou turmas do tribunal, devendo ser remetida ao Pleno
ou ao órgão especial com competência para o seu julgamento, em respeito ao princípio da
reserva de plenário (art. 97 da CF). Nos juízos monocráticos não há possibilidade de
vigência do mencionado princípio, podendo a matéria ser decidida pelo juiz monocrático.
O disciplinamento da reserva de plenário ou cláusula do full bench foi regulamentada
no art. 97 da Constituição, com o seguinte teor: “Somente pelo voto da maioria absoluta de
seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público”.
Gilmar Ferreira Mendes a denomina de cisão funcional de competência, permitindo
que no julgamento da inconstitucionalidade de norma perante tribunais, o plenário ou o
155 RMS 21.662-DF, rel. Min. Celso de Mello.
119
órgão especial julgue a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma. Dessa
forma, o órgão fracionário fica vinculado a julgar a questão de acordo como o que foi
firmado no julgamento da questão constitucional.156
A natureza da reserva de plenário tem a taxionomia de requisito objetivo para a
eficácia da decisão judicial. Sem o preenchimento desse requisito, a decisão proferida não
pode produzir efeitos, configurando-se como uma inconstitucionalidade formal que não
pode ser convalidada.157
A iniciativa de suscitar o incidente de inconstitucionalidade dentro do poder difuso
cabe a qualquer das partes participantes da lide, ao Ministério Público ou aos componentes
do colegiado julgador. Como o Ministério Público é o órgão que tem a função de defesa da
ordem jurídica, se requerer, poderá manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade. Da
mesma forma, as pessoas jurídicas de direito público, responsáveis pela edição dos atos
questionados, se manifestarem interesse, poderão se pronunciar no incidente de
inconstitucionalidade. Em ambos os casos deverão ser observados os prazos e condições
fixados no regime interno do tribunal.
Os órgãos ou autoridade legitimados para impetrar ação direta de controle de
constitucionalidade, de acordo com o art. 103 da Constituição Federal, havendo interesse,
poderão se manifestar, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo
órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no prazo fixado em regimento, sendo-lhes
assegurado o direito de representar memoriais ou de pedir juntada de documentos.
Em analogia com o firmado pela Lei n. 9.868/99, o relator poderá, em caso de
relevância da matéria, e considerando ainda a representatividade dos postulantes, admitir,
por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades. Entidades como a
156 MENDES, Gilmar Ferreira. Mudanças no Controle de Constitucionalidade. http: // www. neofito. com. br/ artigos/ art 01/ const 42. Htm Capturado em 25/11/2002. 157 “não tem outro efeito senão o de condicionar a eficácia jurídica da decisão declaratória da inconstitucionalidade ao voto – nem mesmo à presença, mas ao voto, pronunciado pela forma que a lei ordinária estabelecer – da maioria dos membros do tribunal. O referido preceito não é, em si mesmo, nem uma regra de funcionamento, nem uma norma de competência: estabelece apenas uma condição de eficácia”. BITTENCOURT, Lúcio. O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 1968. P. 45-46.
120
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), MST (Movimento dos Sem Terras), FIESP
(Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) etc, podem intervir no processo como
amicus curiae fornecendo ao processo subsídios e possibilitando uma maior legitimidade
das decisões judiciais.
A amplitude da análise pelo plenário ou órgão especial não engloba a inteireza da
lide debatida no processo; restringe-se à imputação de inconstitucionalidade, não sendo a
esfera adequada para a apreciação de questões fáticas ou outras questões de direito. Como
peculiar espécie recursal apresenta dois efeitos que lhe é inerente: os efeitos devolutivo e o
suspensivo. Suspensivo porque a decisão meritória apenas pode ser proferida quando houver
a decisão relativa à questão de inconstitucionalidade, sobrestando o feito até a mencionada
decisão. Devolutivo porque não é o órgão fracionário o competente para julgar, mas o
plenário ou órgão especial, limitando a sua apreciação à questão impugnada como
inconstitucional.
Todas as vezes que uma instância judiciária de segundo grau receber um processo
sob o qual paire a alegação de inconstitucionalidade, terá duas atitudes a realizar: declarar a
constitucionalidade do ato, rejeitando a alegação de inconstitucionalidade, no que passa a
decidir a questão meritória; ou concordar com a imputação de que a lei ou ato normativo
pode ser inconstitucional, sobrestar o andamento do processo e remetê-lo à apreciação do
plenário ou órgão especial. Se a solução encontrada for essa segunda alternativa, a câmara
ou turma lavrará o respectivo acórdão.158
Tendo havido decisão anterior do Pleno do Supremo Tribunal Federal ou do plenário
ou órgão especial do respectivo tribunal, com relação ao mesmo objeto e a mesma causa
petendi, as turmas dos Tribunais podem julgar as questões sem a necessidade de remeter a
matéria para o Pleno ou órgão competente. Todavia, havendo variação na causa petendi, a
decisão, inexoravelmente, não poderá ser decidida pelas turmas, obedecendo ao que foi
estabelecido pelo o art. 97 da Constituição, de acordo com o princípio da reserva de
plenário.
158 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Incidente de Argüição de Inconstitucionalidade. Comentários ao art. 97 da Constituição e aos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 57.
121
Depois de decidida a questão pelo plenário ou órgão especial, a matéria volta para a
apreciação do órgão fracionário, claro, se não houver prejudicial ao mérito, que irá proferir a
decisão meritória, atendo-se ao que fora decidido no incidente de constitucionalidade.
Há de ressaltar-se que no controle difuso de constitucionalidade, o pedido se
restringe apenas à declaração, por parte do órgão do Poder Judiciário, da
inconstitucionalidade da lei ou ato normativo para o caso concreto. Não há o que se falar em
efeito erga ommes, nem muito menos a norma é retirada do ordenamento jurídico. Ela
apenas deixa de ser aplicada ao caso posto sob apreciação judicial, continuando a ter eficácia
nos demais casos.
6.3) Controle de Constitucionalidade em Nível Estadual e Municipal
O Brasil é um estado federativo formado por diversos entes que possuem autonomia,
capacidade de autogoverno, que foi outorgada pela Carta Magna. Dotados de capacidade
para gerir os seus interesses dentro dos vetores dos mandamentos constitucionais, os entes
federativos possuem autonomia legislativa e essa prerrogativa tem que se adequar aos
mandamentos da lei orgânica, constituição estadual e Constituição Federal.159
Em uma forma de estado federativa, a jurisdição constitucional tem o dever de ser
mais eficiente para se contrapor à multiplicidade de ordenamentos jurídicos que pode
propiciar um maior número de inconstitucionalidades. O parâmetro de supralegalidade passa
a ser estabelecido pelas normas constitucionais federais, pelas normas constitucionais
estaduais e pelas normas da lei orgânica, cujo texto não é considerado como uma
Constituição, mas detém supralegalidade.
159 NAVARRO COÊLHO, Sacha Calmon. O Controle de Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de 1988. 3 ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1999. P. 199.
122
A Constituição Federal de 1988 somente previu competência para o Supremo
Tribunal Federal decidir acerca da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais
e estaduais, tomando como parâmetro a Constituição Federal. As normas municipais
imputadas como inconstitucionais foram impedidas de ser apreciadas pelo STF em sede de
controle abstrato, à exceção da argüição de descumprimento de preceito fundamental, para
prevenir uma enxurrada de processos ao Egrégio Tribunal.160
Então, é incabível ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo
municipal perante o Supremo Tribunal Federal. Admite-se, porém, a ação direta de
inconstitucionalidade proposta perante o Tribunal de Justiça, contra lei municipal,
utilizando-se como parâmetro normativo a Constituição Estadual.161 A supremacia da
Constituição Estadual tem que ser preservada tanto das inconstitucionalidades municipais
quanto das estaduais, devendo o poder decorrente estruturar a forma como ocorrerá o
controle de constitucionalidade.
Não há restrição alguma para a atuação do controle difuso em qualquer uma das
esferas de produção normativa. Os instrumentos jurídicos inerentes a esse sistema de
controle podem ser utilizados contra inconstitucionalidades perpetradas contra a
Constituição Federal ou Estadual e até mesmo contra ilegalidades contra a lei orgânica.
Explica o Ministro Paulo Brossard: “O nosso sistema constitucional não admite o
controle concentrado de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da
Constituição Federal; nem mesmo perante o Supremo Tribunal Federal que tem, como
competência precípua, a sua guarda, art. 102. O único controle de constitucionalidade de lei
e de ato normativo municipal em face da Constituição Federal que se admite é o difuso,
160 “No entanto, tratando-se de violação da Constituição do Estado-membro por lei ou ato normativo municipal, as decisões proferidas por órgãos judiciais inferiores serão revistas tão-somente pelo Tribunal de Justiça, não cabendo o apelo extremo, à míngua de previsão constitucional [...]” XIMENES ROCHA, Fernando Luiz. Controle de Constitucionalidade das Leis Municipais. São Paulo: Atlas, 2002. P. 95. 161 Eis o teor do informativo n.º 193 do STF, no RE 176.484-SP, rel. Min. Marcos Aurélio: “Admite-se o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante tribunal de justiça estadual contra lei municipal frente a dispositivos da Constituição local, ainda que estes dispositivos sejam de reprodução obrigatória de normas da Constituição Federal”.
123
exercido “incidenter tantu”, por todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento
de cada caso concreto”.162
A Constituição Federal outorgou competência aos Tribunais de Justiça dos Estados
para exercer a tutela constitucional das leis ou atos normativos estaduais e municipais, tendo
como parâmetro normativo a Constituição Estadual. Por previsão constitucional, os Estados-
membros poderão instituir representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos
estaduais ou municipais, em face da Constituição Estadual, desde que não seja conferida a
um único órgão a legitimação para impetrar as ações, como por exemplo ao governador do
Estado ou ao procurador-geral de justiça ou ao procurador-geral do Estado.
De forma cristalina disserta sobre o controle de constitucionalidade estadual Regina
Maria Macedo Nery Ferrari: “O controle da constitucionalidade das leis estaduais e
municipais frente à Constituição Estadual representa o modo mais característico de
asseguramento da autonomia estadual. Sendo a criação de uma Constituição forma de
exercício dessa autonomia, o mecanismo de controle do respeito à sua Lei Fundamental é,
também, afirmação desta”.163
Como já mencionado, a competência passiva pertence ao Tribunal de Justiça, e a
competência ativa pertence àqueles órgãos expressamente elencados na Lei Maior
Estadual.164
Via de regra, por força da simetria ou do princípio estabelecido, os textos
constitucionais estaduais repetem muitas das disposições dos mandamentos constitucionais,
engendrando uma sintonia normativa que aglutina os elementos da forma federativa de
Estado. Por esse motivo é bastante freqüente que uma norma ou ato normativo afronte ao
mesmo tempo a Constituição Federal e a Estadual, com o mesmo objeto e pedido. Quando
162 RJT 164/832, rel. Min. Paulo Brossard. 163 NERRY FERREIRA, Regina Maria Macedo. Controle da Constitucionalidade das Leis Municipais. 3 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. P..96. 164 O art. 60 da Constituição Estadual de Pernambuco outorga legitimação aos seguintes órgãos: Governador do Estado; Mesa da Assembléia Legislativa; Procurador-Geral de Justiça; os Prefeitos e as Mesas das Câmaras de Vereadores, ou entidades de classe de âmbito municipal, quando se tratar de leio ou ato normativo do respectivo município; os Conselhos Regionais das profissões reconhecidas, sediadas em Pernambuco; Partido Político com representação nas Câmaras Municipais, na Assembléia Legislativa ou no Congresso Nacional e Federação Sindical, sindicato ou entidade de classe de âmbito estadual.
124
esse tipo de inconstitucionalidade ocorrer, e sendo propostas duas ações diretas, uma para o
STF e outra para o Tribunal de Justiça, deve-se suspender a ação proposta perante a justiça
estadual até a decisão final do Supremo.165
Esse procedimento será utilizado se o objeto e o fundamento do pedido forem
idênticos. Se o objeto ou o fundamento do pedido for diverso, as ações serão julgadas pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal de Justiça.
No controle abstrato de constitucionalidade, seja em que nível for, a eficácia
temporal dos efeitos é ex nunc e a eficácia subjetiva erga omnes, com a conseqüente retirada
da norma do ordenamento jurídico. A abrangência dos efeitos prolatados pelo Tribunal de
Justiça situa-se dentro da sua esfera de competência. Haverá uma redução na extensão
subjetiva dos efeitos erga omnes se o objeto e o fundamento jurídico forem diversos. 166
Ocorrendo a afronta de uma lei municipal à Lei Orgânica Municipal (LOM), ter-se-á
uma ilegalidade, e não uma “inconstitucionalidade municipal”, apesar da LOM gozar de
supremacia em relação às demais normas do ordenamento jurídico municipal.
A Lei Orgânica se configura como a lei mais importante do ordenamento jurídico
municipal, a norma que ostenta maior grau de legitimidade dentre as normas locais. Ela é
elaborada mediante um procedimento mais difícil, que lhe garante supremacia,
imutabilidade relativa e supralegalidade. Para sua concretização, são necessários dois turnos
de votação, num prazo entre uma votação e outra de dez dias, com o quórum de dois terços
de seus membros, devendo ser promulgada pela Câmara Municipal. Destarte, pela forma
como ela foi elaborada, exigindo um procedimento mais difícil, a Lei Orgânica possui uma
maior legitimidade que as demais normas municipais.
165 Preliminarmente, o tribunal rejeitou o alegado prejuízo da ADIn pelo ajuizamento concomitante de representação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará – contra a mesma norma em face do preceito da Constituição Estadual que reproduziu dispositivo da Constituição Federal, - e determinou a suspensão da representação perante o Tribunal de Justiça ate o julgamento da ADIn pelo STF. ADInMC 2. 361-CE, rel. Min. Maurício Corrêa. 166 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. Conceitos, Sistemas e Efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 184.
125
Apenas no sentido figurado podemos afirmar que a Lei Orgânica representa uma
“Constituição Municipal”. Esta não foi a denominação escolhida pelo legislador constituinte
porque sua esfera de abrangência já foi bastante cerceada pela Constituição Federal e
Estadual. Depois da obediência dos princípios simétricos ou centrais e da preponderância do
interesse local, sobra muito pouco para a estipulação normativa dos Municípios. Ocorrendo
uma afronta aos seus dispositivos, é mais apropriado se falar em ilegalidade e não em
inconstitucionalidade.167
Qualquer afronta contra a Lei Orgânica, por parte de lei ou ato normativo municipal,
é um controle de legalidade, descabendo a terminologia de inconstitucionalidade, podendo
ser impugnado nas esferas judiciais devidas. O que se modifica é a terminologia, mas o
sentido de preservar a jurisdição da LOM é o mesmo; a norma municipal, que afrontar a Lei
Orgânica, deve ser declarada pelos órgãos judiciários como ilegal. Inclusive, se a afronta
atingir também a Constituição Federal, o litígio poderá chegar ao STF, através de recurso
extraordinário.
Portanto, não existe controle de constitucionalidade da LOM perante o Tribunal de
Justiça, devendo a norma ser retirada do ordenamento pelos meios ordinários existentes. O
prefeito municipal tem legitimidade para impetrar ação direta de inconstitucionalidade
perante o Tribunal de Justiça somente contra normas municipais que violem a Constituição
Estadual, e não contra normas municipais que violem a Lei Orgânica.168 Quando houver a
violação da LOM, podem ser ajuizados, de forma exemplificativa, um mandado de
segurança ou uma ação anulatória.
167 Preceitua o professor Roque Carrazza: “Parece-nos evidente que a Lei Orgânica do Município é dotada de maior positividade que as simples leis ordinárias municipais. Estas só serão válidas se e enquanto se adequarem àquela. Em termos mais precisos, as leis ordinárias municipais haurem a validade e a legitimidade na Lei Orgânica do respectivo Município. Estão em patamar inferior da chamada “pirâmide jurídica”. Havendo, pois, um descompasso entre elas, prevalecerá a de maior hierarquia jurídica: a Lei Orgânica municipal”. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 1993. P. 103. 168 Considerando que o controle abstrato de lei ou ato normativo municipal somente é admitido em face da Constituição estadual, perante o tribunal de justiça, a turma manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que julgara prefeito carecedor da ação direta de inconstitucionalidade interposta contra lei municipal em face da lei orgânica do mesmo município. RE 175.087-SP, rel. Min. Néri da Silveira.
126
7.) Controle Concentrado
O sistema concentrado de controle de constitucionalidade no Brasil, nos últimos
anos, vem evoluindo de forma bastante intensa.Sua função principal é velar pela integridade
sistêmica do ordenamento jurídico, expurgando antinomias que poderiam diminuir a força
concretiva dos mandamentos constitucionais. Apesar de o s cidadãos não terem legitimidade
ativa para exercer esse tipo de controle, sua relevância para a salvaguarda dos direitos
fundamentais e o aperfeiçoamento da jurisdição constitucional se configuram como
primordiais.
A restrição para a sua impetração não diminui a sua magnitude como instrumento da
sociedade civil para o aprimoramento da tutela dos direitos fundamentais. As demandas
sociais podem ser impetradas pelos elencados na tipificação restritiva do art. 103 da
Constituição Federal devido à pressão da sociedade. Órgão mais vulnerável ao sentimento
popular como os partidos políticos , confederação sindical, entidade de classe, Procurador-
Geral da República freqüentemente encampam as reivindicações e oferecem a respectiva
ação cabível.
Em uma releitura do sistema concentrado de controle de constitucionalidade, o
elemento essencial é a democratização do processo de decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, permitindo uma maior intervenção dos setores organizados da sociedade,
dentro da perspectiva de um relacionamento dialógico, que é um dos fatores densificadores
da legitimação da jurisdição constitucional.
127
7.1) Ação Direta Interventiva
A ação direta interventiva, surgida no Brasil pela Constituição de 1934, até a Emenda
Constitucional 16/65 que instituiu a representação de inconstitucionalidade, foi o instituto
jurídico mais próximo do controle abstrato que conhecemos atualmente. Ela se configura
como um tertium genus, uma ação híbrida que não pode ser classificada como controle
abstrato ou como controle incidental.169
Suas características destoam das ações pertinentes ao controle abstrato porque se
aplica a um caso concreto específico. Seu objetivo não é apenas retirar uma norma do
ordenamento jurídico, mas incidir em uma realidade concreta e reparar a afronta contra
princípio sensível. A decisão de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo configura-se
como pressuposto para a decretação da intervenção. Diferentemente de um processo abstrato
em que inexistem partes, a ação direta interventiva tem duas partes nítidas: o Procurador-
Geral da República, que representa os interesses da União, e o ente político, que descumpriu
os princípios sensíveis. Igualmente difere dos remédios pertinentes ao controle incidental
porque a sua titularidade é restrita ao Procurador-Geral da República, os seus efeitos são
erga omnes e suspende a norma do ordenamento jurídico.
A ação direta interventiva tem o escopo de decretar a intervenção no ente federativo
que descumpriu os chamados princípios sensíveis.170 A intervenção é o remédio peculiar das
formas de estado federativas que permite a coexistência da pluralidade de ordenamentos
jurídicos, constituindo-se na principal sanção política existente no ordenamento para os
entes políticos que descumpriram os mandamentos constitucionais essenciais para o
169 “A Constituição de 1934 institui uma ação direta que, conquanto não inaugure um mecanismo abstrato de fiscalização de constitucionalidade (julgamento da ação constitui pressuposto da decretação da intervenção federal), não se reconduz à configuração da fiscalização incidental. Cuida-se de procedimento fincado a meio caminho entre a fiscalização da lei in thesi e aquela realizada in casu. Trata-se, pois, de uma variante da fiscalização concreta realizada por meio de ação direta”. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. P. 125. 170 SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Acadêmica, 1995. P. 1995.
128
equilíbrio federativo.171 A ação interventiva é um instrumento jurídico que busca retirar do
ordenamento determinadas estruturas normativas que atentem contra princípios considerados
essenciais para o Estado Democrático Social de Direito, os princípios sensíveis. Por
intermédio desse instituto, a União pode intervir nos Estados-Membros, e estes podem
intervir nos Municípios, quando houver infringência a preceitos considerados
imprescindíveis à Carta Magna.
A ação direta interventiva não pode ser enquadrada perfeitamente como uma ação do
controle abstrato porque sua finalidade não é apenas jurídica, existindo ainda contornos
políticos. Sua finalidade é jurídica no sentido que ela contribui para assegurar a supremacia
das normas constitucionais, expurgando do ordenamento as normas declaradas
inconstitucionais. Sua finalidade igualmente é política porque ela visa resguardar a forma de
estado federativa, realizando a intervenção no ente que descumpriu os princípios sensíveis.
A legitimidade para impetrar uma ação direta interventiva não é conferida a todos os
legitimados do art. 103 da Constituição. Por ter como finalidade precípua a guarda do
modelo federativo, a legitimidade para propor a ação interventiva é do Procurador-Geral da
República, em âmbito federal, e do Procurador-Geral de Justiça, em âmbito estadual. O
Procurador-Geral da República não atua representando interesses da União de forma
específica, exerce as suas funções resguardando os princípios sensíveis que são do interesse
de todos os entes políticos e da própria cidadania. Não há atuação do Advogado-Geral da
União.
Por causa de um crasso erro terminológico, os constituintes de 1988 denominaram de
representação a peça processual elaborada pelo Procurador-Geral da República. Não se trata
de representação porque inexiste a formulação de um consulta; trata-se de uma verdadeira
ação, uma ação interventiva dirigida ao Supremo Tribunal Federal.
171 Leciona Sampaio Doria: “A autonomia dos Estados, embora não extensa, entre nós, como a dos Estados na União Americana, ainda assim consiste no exercício de poderes imperativos de grande importância. Podem ser classificados em quatro categorias: 1º) atribuições políticas; 2º) legislação privativa ou cooperativa com a da União; 3º) decretação de tributos; e 4º) organização de serviços sociais” DORIA, A. de Sampaio. Direito constitucional. Teoria geral do estado. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, s/d. v. 1. P. 518.
129
Quando chegar ao Pretório Excelso será nomeado um relator que ouvirá no prazo de
trinta dias (art. 352 do RISTF) o órgão que haja elaborado o ato que está sendo impugnado.
Apresentada, as informações, serão abertas vistas para que o Procurador-Geral da República
possa elaborar o seu parecer. Após, é marcada a sessão de julgamento em que o Procurador-
Geral da República e o representante do órgão impugnado poderão usar da palavra. A
decisão apenas poderá ser proferida pela maioria absoluta dos ministros do STF, presentes
dois terços deles.
Se o Supremo Tribunal Federal entender pelo deferimento da ação direta
interventiva, será lavrado um provimento que é enviado ao Presidente da República. Inexiste
caráter discricionário para a apreciação por parte do Chefe do Executivo. Ele,
obrigatoriamente, terá que decretar a intervenção, sob pena de imputação em crime de
responsabilidade. O decreto que estabelecer a intervenção estipulará as medidas a serem
tomadas, o prazo de sua duração e a sua amplitude.
Realizada a intervenção, o princípio sensível que fora afrontado será preservado. O
efeito da ação interventiva é fazer com que o ente que descumpriu o preceito sensível corrija
seu gravame. Na maioria dos casos, a exclusão da norma infratora do ordenamento jurídico
restabelece a normalidade constitucional. Caso seja necessário, pode-se nomear um
interventor para o exercício de funções administrativas. A autoridade que sofreu a
intervenção poderá voltar ao seu cargo, após o cumprimento das medidas, se não houver
concorrido para a perda da autonomia.
O procedimento da ação direta interventiva configura-se como um ato complexo, em
que atuam órgãos diversos para a feitura da sua concretização. O Procurador-Geral da
República dispõem de liberdade para aferir se há condições jurídicas para se impetrar a
mencionada ação direta; o Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa de verificar o
mérito do pedido; o Presidente da República fica vinculado ao provimento, mas a
intervenção somente se concretiza com a feitura do decreto presidencial.
Justamente por ser um ato complexo, o pedido de ação direta interventiva não
comporta medida cautelar. A decisão do Supremo Tribunal Federal por si só não acarreta a
intervenção, somente com o decreto presidencial é que ela se perfaz. Então, impossível
130
conjecturar que uma antecipação da decisão meritória pudesse adiantar algo que nem a
decisão final tem condições jurídicas de realizar. Outrossim, a intervenção federal, por
representar uma exceção ao princípio federativo, inclusive protegido como cláusula pétrea,
não pode ser realizado por uma medida cautelar que tem a transitoriedade como uma de suas
características.
A ação direta interventiva, como fora mencionado anteriormente, tem a finalidade de
assegurar a observância dos princípios sensíveis, tidos como imprescindíveis ao
ordenamento jurídico. O § 3º do art. 36 da Constituição Federal menciona que o acinte aos
princípios sensíveis é provocado por um “ato impugnado”, considerando-o como qualquer
ação ou omissão, praticada por ente público ou privado, seja lei ou ato normativo, que atente
contra os princípios sensíveis.
São princípios sensíveis:
a) a forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático. Por preservar a
república, o Professor Pinto Ferreira afirma que essa forma de governo é cláusula pétrea, não
obstante o plebiscito que foi previsto no art. 2º do ADCT.172 Revela a importância do
princípio republicano Geraldo Ataliba: “Como princípio fundamental e básico, informador
de todo o nosso sistema jurídico, a idéia de república domina não só a legislação, como o
próprio Texto Magno, inteiramente, de modo inexorável, penetrando todos os seus institutos
e esparramando seus efeitos sobre seus mais modestos escaninhos ou recônditos
meandros”173
b) direitos da pessoa humana, que são todas as prerrogativas referentes ao cidadão contidas
na Constituição, especialmente as relacionadas nos arts. 5º ao 17;
172 Art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “No dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (Parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no país”.
173 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1988. p. 32.
131
c) autonomia municipal. Os Municípios, que a partir da Constituição de 1988 fazem parte da
Federação, têm assegurado as suas prerrogativas de autogoverno, traduzidas na garantia de
autonomia; 174
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta;
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos, compreendida a
proveniente de transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino, e nas ações e
serviços públicos de saúde. O mínimo exigido na manutenção e desenvolvimento do ensino
é de vinte e cinco por cento da receita proveniente de impostos para os Municípios e para os
Estados-Membros.
Para o aprimoramento da jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal
Federal, no sentido de aumentar a legitimação de sua atuação e densificar a concretude dos
direitos fundamentais, a ação direta interventiva configura-se como um instrumento
imprescindível. Ela será de suma importância para garantir o entrenchement dos direitos
fundamentais, principalmente nos Estados e Municípios, o que permite que a trincheira dos
direitos possa evoluir consonante as demandas sociais.
A sua atuação ultrapassa o aspecto positivo para abranger os acintes por omissão aos
direitos fundamentais. Os entes federativos que não cumprirem os seus deveres, assegurados
pela determinação do seu conteúdo mínimo, devem ser compelidos a sua execução, sob pena
de ser decretada a intervenção, mormente se houver descumprimento de normas
programáticas que delineiam o Estado Democrático Social de Direito brasileiro. De nada
valem as leis se elas não são implementadas na realidade fática. De melhor forma sintetiza
Pontes de Miranda: “que mesmo existindo Constituição ou lei perfeitamente acorde com os
princípios enumerados como sensíveis, se não esteja a realizar, como fora de mister, a vida
174 Com base na jurisprudência do STF, o Tribunal declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da Lei 6.570/88, do Município de Goiânia, que estabelecia o reajuste automático de servidores municipais pela variação do IPC, por ofensa ao princípio da autonomia municipal. RE 247. 387-GO, rel. Min. Néri da Silveira.
132
das instituições estaduais. Um inciso atende à letra; outro, à prática da Constituição estadual
e das leis estaduais”.175
7.2) Ação Direta de Inconstitucionalidade
A ação direta de controle de constitucionalidade originou-se da Emenda n.º 16 à
Constituição de 1946, em 26.11. 65. A mencionada emenda deveu-se aos estudos realizados
por uma comissão composta pelos seguintes juristas: Orozimbo Nonato, Prado Kelly
(relator), Daria de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza.
Como nas ações diretas de controle de constitucionalidade não se pode propriamente
falar em partes porque a legitimidade independe de qualquer interesse específico a ser
protegido, sua finalidade é assegurar integridade ao ordenamento jurídico, expurgando as
leis e atos inconstitucionais. Sua natureza é de uma verdadeira ação, descabendo a
terminologia de representação de inconstitucionalidade como era tratada pela Constituição
de 1967/69.
Uma vez impetrada qualquer tipo de ação de controle direto de constitucionalidade
não cabe desistência do pedido, em virtude do objeto litigado ser um bem de ordem pública.
Essa vedação é decorrente do princípio da indisponibilidade dos interesses públicos que
garante a tutela do ordenamento jurídico, em que descabe decisão volitiva com relação ao
seu prosseguimento. 176 Não cabe desistência porque não há interesse subjetivo a ser
tutelado; existe um interesse difuso, com o objetivo de manter a rigidez do sistema
constitucional.
Não há prazo decadencial para a propositura de ações diretas que visem a resguardar
a supremacia da Constituição porque não se trata de processo subjetivo, em que o lapso 175 PONTES DE MIRANDA, Francisco de Paula. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. P. 219. 176 Decisão do STF na ADIn 2.188-RJ, rel. Min. Néry da Silveira.
133
temporal pode acarretar a decadência de direitos. Enquanto a norma permanecer com
vigência no ordenamento jurídico, podem ser impetradas ações diretas para a sua expulsão.
A suspeição revela-se incabível nas ações abstratas porque qualquer interesse
subjetivo manifesta-se incabível com o desiderato da ação. Contudo, ela é compatível com o
impedimento que pode ocorrer quando o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral
da República que antes atuaram em uma determinada ação devem atuar no seu julgamento
na qualidade de ministro do STF.
O sistema direto atinge a lei em tese, que é abstrata, genérica e impessoal.177 A
norma declarada inconstitucional por via direta é imediatamente expulsa do ordenamento
jurídico. Os seus efeitos são erga omnes e ex tunc, ceifando todos os resultados produzidos
pela norma jurídica, com efeitos retrooperantes.178 Uma exceção aos efeitos ex tunc foi
implementada pela Lei 9.868/99 que abre a possibilidade desses efeitos serem ex tunc ou pro
futuro, desde que se atinja o quórum de dois terços dos ministros do STF e que seja
motivado por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.
Na sua extensão temporal, a norma ou ato normativo declarado inconstitucional é ex
tunc, sendo, portanto, nulo, com a sua retirada do ordenamento jurídico, sem a necessidade
de atuação de nenhum outro órgão ou poder. Na sua extensão subjetiva, ela é erga omnes,
atingindo a todos que se encontrem na mesma situação. A abrangência dos efeitos da
decisão do Supremo Tribunal Federal são retrooperantes, isto é, retroagem até o nascimento
da lei ou ato que afronte a Constituição.
A declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo opera efeitos de
forma imediata, sem necessitar de apreciação pelo Senado Federal como a que pode ocorrer
no caso do controle difuso, quando o Supremo Tribunal Federal declarar a lei
inconstitucional e o Senado, por ato discricionário, estender os seus efeitos, tornando-os
erga omnes.179 Caso haja qualquer aplicação de lei inconstitucional, após a sua declaração
177 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 154. 178 Já houve pacificação na doutrina de que a norma declarada inconstitucional por via direta é imediatamente retirada do ordenamento jurídico, sem necessitar de uma resolução do Senado. 179 “Na hipótese de controle por via de ação direta, por serem erga omnes os efeitos do julgamento, desnecessária será a intervenção do Poder Legislativo (leia-se Senado), como, aliás, observava o Min.
134
pelo STF, o ato resultante será tido como juridicamente inexistente, não necessitando de
decisão do Poder Judiciário para a sua não obediência.180
Como toda sentença, as decisões das ações diretas de inconstitucionalidade são
formadas por três partes: relatório, fundamentação e dispositivo. O efeito erga omnes reside
apenas na parte dispositiva da sentença judicial, sem a abrangência desses efeitos para o
relatório e a fundamentação.
A decisão da ação direta de inconstitucionalidade, que é proferida de forma colegiada
pelo Supremo Tribunal Federal, pelas relevantes conseqüências que provoca no meio
jurídico apenas pode ser prolatada depois de ser alcançado um determinado quórum que se
denomina de reserva de plenário. Este quórum é formado pela maioria absoluta dos
membros do órgão competente para a decisão, estando presentes no mínimo dois terços dos
seus membros. No controle difuso, que se realiza em juízos monocráticos, a decisão do juiz
singular é suficiente para declarar a sua inconstitucionalidade.
Frise-se que no controle concentrado de constitucionalidade, o pedido se direciona
no sentido de declarar, por parte do órgão do Poder Judiciário, a inconstitucionalidade da lei
ou ato normativo em abstrato, retirando-a do ordenamento jurídico, sem a indagação de sua
incidência em fatos concretos ou de efeitos em qualquer eventual relação jurídica. Assim,
não há necessidade de instrução probatória ou cotejamento dos fatos, não influenciando a
seara fática no teor da decisão da ação proposta.
Thompson Flores (18.4.77), à época Presidente do STF e, mais recentemente, o Min. Carlos Mário da Silva Velloso na conferência O Controle da Constitucionalidade das Leis na Constituição Brasileira de 1988”. DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição. Do Controle de Constitucionalidade como Garantia da Supralegalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. P. 117. 180 Em sentido contrário há no direito europeu alguns autores que se posicionam no sentido de que a jurisdição constitucional não pode retirar uma norma do ordenamento jurídico: “A pronúncia de inconstitucionalidade de uma lei ou de um ato administrativo por parte da Corte Suprema não pode, devido ao princípio da separação dos poderes, ter eficácia imediata de caráter geral; tal decisão, em fato, conduz a solução do caso concreto, mas não provoca de forma imediata a nulidade da lei ou sua ineficácia. A lei ou ato continua plenamente em vigor. Mas a decisão da Corte praticamente anula a lei inquinada de inconstitucionalidade, pela eventualidade da mesma declaração nas sucessivas controvérsias a esse respeito”. NEGRI, Guglielmo. Il Sistema Político degli Stati Uniti d’America. Le Istituzioni Costituzionali. 3 ed., Pisa: Nistri-Lischi, 1969. P. 265.
135
Embora a matéria das ações do controle direto de constitucionalidade seja
eminentemente de direito, há alguns casos em que a seara fática assume relevância, quando,
por exemplo, houver a imputação de inconstitucionalidade formal por ausência do devido
processo legal legislativo, apresentando-se a necessidade de se provar a existência do vício.
É considerado pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que não cabe ação
direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato de efeito concreto, ainda que seja uma lei
que fora promulgada com objetivo determinado e sujeitos específicos, porque não regula
situações abstratas, faltando-lhes densidade normativa.
Em princípio, não pode haver cumulação objetiva em sede de ação direta de
inconstitucionalidade, isto é, como regra, configura-se inadmissível impetrar uma mesma
ação direta de inconstitucionalidade para que seja declarada a inconstitucionalidade de uma
lei federal e de outra estadual.181 Todavia, ela é necessária para argüir a
inconstitucionalidade de leis ou atos normativos de entes diversos da federação quando entre
os dois dispositivos legais há um liame inexorável. Ela deve ocorrer nos seguintes casos: a)
quando existir uma relação substancial entre a norma federal e a estadual, em decorrência de
que a cumulação objetiva é requisito para garantir viabilizar a eficácia do provimento
judicial; b) quando houver uma relação material entre dois dispositivos legais, de diversos
órgãos federativos, que a inconstitucionalidade de um possa tornar-se questão prejudicial do
outro.
Exemplo do primeiro caso ocorre na área de competência concorrente da União e dos
Estados quando a lei federal de normas gerais e a lei estadual específica contiverem
conteúdos normativos idênticos ou similares, necessitando, assim, da cumulação objetiva
para assegurar a eficácia do provimento judicial. O segundo caso pode ser exemplificado
quando a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo normativo federal acarretar
a prejudicialidade de uma norma estadual.
181 Em princípio, não é de se admitir, no mesmo processo de ação direta, a cumulação de argüições de inconstitucionalidade de atos normativos emanados de diferentes entes da Federação, ainda quando lhes seja comum o fundamento jurídico invocado. ADI (QO) N. 2.844-PR.
136
A ação direta de inconstitucionalidade, pela previsibilidade do seu procedimento e
pelo seu caráter dialógico, representa uma forma de legitimação procedimental que acrescida
às demais formas de legitimações preconizadas neste trabalho, alicerçará a expansão da
atuação do Supremo Tribunal Federal.
7.2.1) Legitimidade para a Propositura da Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Como a ação direta de inconstitucionalidade é um processo objetivo, com a
finalidade de expulsar a norma do ordenamento jurídico, não se pode falar na existência de
partes em conflito, de lide, ou de disputa pela posse de um objeto jurídico. Embora não haja
partes formais, a existência de pólos processuais ativo e passivos resta evidente. Por isso,
configura-se possível falar em legitimidade ativa e passiva. A legitimidade ativa pertence a
um dos órgãos elencados na Lei Maior. A legitimidade passiva pertence à autoridade ou
órgão legislativo responsável pela promulgação do ato impugnado.
A Constituição Federal, de forma exaustiva, catalogou no art. 103 da Carta Magna os
órgãos que podem exercer a ação direta de inconstitucionalidade, que são os mesmos
legitimados para propor a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a ação
declaratória de constitucionalidade. São eles: o Presidente da República; a Mesa do Senado
Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembléia Legislativa; o
Governador de Estado e do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no
Congresso Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.182
182 Foi negado competência para a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente propor ação direta de inconstitucionalidade, alegando o STF falta de legitimidade por não se caracterizar como uma entidade de classe de âmbito nacional para efeitos do art. 103 da Constituição Federal.
137
É o que a doutrina denomina de legitimatio ad causa, ou seja, legitimidade para
propor as ações diretas do controle concentrado em juízo, que é restrita aos entes delineados
supra. Ela se configura como um dado neutro, que não se constitui como objeto de interesse
nem público, nem privado, atuando como limite para a proteção dos dois.183 Funciona como
um pré-requisito para a atuação da jurisdição constitucional, que somente pode atuar quando
houver o impulsionamento por parte desses órgãos.
A legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade pode ser classificada
em legitimidade universal, sem qualquer impedimento quanto ao objeto, ou legitimidade
especial, restrita quanto ao objeto apreciado, configurando-se como um requisito objetivo.
A competência especial ocorre quando há necessidade de se demonstrar a pertinência
temática, ou seja, tem que ficar claro que o impetrante tem interesse direto na lei que está
sendo objeto de impugnação. Possuem competência especial a Mesa da Assembléia
Legislativa, o Governador de Estado ou do Distrito Federal e a confederação sindical ou
entidade de classe de âmbito nacional que, para impetrar ADIn, devem provar a existência
da pertinência temática.
Nelson Nery Jr. considera como incongruência do STF a necessidade de se exigir
pertinência temática para a associação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Explica: “Incoerência porque de um lado afirma, de forma correta e precisa, que se trata de
processo objetivo, no qual não há lugar para dedução de interesse ou direito subjetivo de
quem quer que seja. De outro lado, exige que o co-legitimado da CF 103 IX e LADIn 2º, IX
demonstre seu interesse em ajuizar a ação direta. O STF fala na ilegitimidade de parte, mas
na essência não se trata de discutir a legitimidade para propor a ação direta, que essas
entidades, preenchido o requisito constitucional (CF 103 IX), efetivamente têm. Trata-se,
isto sim, de discutir a razão pela qual aquela entidade quer ver o controle abstrato da norma
183 LUCA CONTI, Gian. L’Interesse al Processo Nella Giustizia Costituzionale. Torino: Giappichelli, 2000. P.104.
138
efetivado pelo STF. A questão é, portanto, de interesse processual e não da legitimidade da
parte.184
Os demais legitimados têm a denominada legitimidade universal, podendo propor
ação de inconstitucionalidade acerca de qualquer tema, havendo ou não pertinência temática.
Têm competência universal: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa
da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional.185
Se o Presidente da República participa do processo legislativo e deve aplicar as
normas formuladas, nada mais justo do que ele participe da fiscalização abstrata do
ordenamento jurídico. Ele tem competência para impetrar uma ADIn, mesmo que tenha
sancionado a norma anteriormente.186 O fato do Chefe do Executivo poder exercer o veto,
nos termos do art. 66 da CF, não retira a sua legitimidade para ajuizar uma ação direta de
controle de constitucionalidade. Por circunstâncias diversas, pode ocorrer que a evidência da
inconstitucionalidade apenas se verifique na aplicação da norma ou do ato normativo, o que
respalda tal prerrogativa do Presidente da República.
Uma vez realizada a sanção, o Presidente não pode voltar, o que denota o seu caráter
de irretratabilidade. Contudo, uma vez realizada a sanção, não há impedimento para o
ajuizamento de uma ação direta por parte do Chefe do Executivo, pois a eiva de
inconstitucionalidade pode não ter sido percebida nesse momento ou restar clarividente a
posteriori. Sancionado a lei por equívoco, não pode o Presidente da República ser obrigado
a persistir no erro, sob pena de se incentivar anacronismos à Constituição.
184 NERY, Nelson Jr. Recursos na ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade – Apontamentos sobre os recursos na LADIn (L 9.868/99). In: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 499. 185 Outro exemplo de falta de pertinência temática pode ser encontrado quando o STF não reconheceu ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Mesa da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, contra o art. 93, VI, que traça os parâmetros para aposentadoria dos magistrados, por carecer a Mesa citada de interesse para tratar do assunto. (ADIn, 2.242-PR) 186 O Min. Celso de Mello firmou jurisprudência no sentido de que, no âmbito das ações diretas, pela qual os co-legitimados têm capacidade postulatória especial, não há necessidade de as petições serem assinadas por advogados. ADIn 127-2/AL, 04/12/92.
139
A legitimidade para impetrar ações diretas de controle de constitucionalidade por
parte da Mesa do Senado Federal, da Mesa da Câmara dos Deputados e da Mesa das
Assembléias Legislativas confere uma importante prerrogativa ao Poder Legislativo, tanto
em nível federal como em nível estadual, possibilitando que esse Poder possa exercer uma
vigilância da constitucionalidade das leis e atos normativos. É de ressaltar que como a
composição das respectivas Mesas é realizada proporcionalmente de acordo com as forças
partidárias existentes no parlamento, apenas as maiores forças compõem o órgão de direção
legislativo, relegando às minorias partidárias o direito de ajuizar ações diretas. Por esse
motivo, a missão de proteger a representação das minorias foi outorgado aos partidos
políticos que tenham ao menos um representante no Congresso Nacional.
Os partidos políticos passaram a ter legitimidade para impetrar ações diretas de
controle de constitucionalidade para assegurar as minorias parlamentares o direito de zelar
pela supremacia constitucional e para incentivar o desenvolvimento da cidadania ativa na
coletividade. Devido à multiplicidade de partidos políticos existentes no Brasil, muitos dos
quais sem nenhum tipo de representação social, exige-se que o partido político disponha ao
menos de um representante no Congresso Nacional, seja na Câmara dos Deputados, seja no
Senado Federal.
Como requisito para que os partidos políticos possam impetrar ações do controle
abstrato de constitucionalidade, é necessário que não somente no momento da impetração
mas também durante a tramitação processual da ação eles mantenham a sua representação
no Congresso Nacional, seja no Senado Federal, seja na Câmara dos Deputados.187
Se houver a perda superveniente da bancada parlamentar no Congresso Nacional, o
partido político fica desqualificado na sua legitimidade ativa para prosseguir na ação direta
187 Preliminarmente, quanto à legitimidade para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, tem-se que o constituinte de 1988 ao conceder aos partidos políticos a legitimação ativa universal, exigiu que os mesmos tivessem representação no Congresso Nacional. Todavia, observa-se, no presente caso, que a ação foi proposta em junho de 2000, sendo que, após as eleições de 2002, o Partido Social Liberal – PSL, conforme certidão em anexo, não mais possui representação no Senado Federal nem tampouco na Câmara dos Deputados. Assim sendo, a perda superveniente da bancada parlamentar no Congresso Nacional desqualifica a legitimidade ativa do partido político para prosseguir no processo de controle abstrato, devendo a presente ação ser extinta sem julgamento do mérito ADI 2.070-DF, rel. Min. Maurício Corrêa.
140
de inconstitucionalidade.188 A legitimidade das partes é uma condição de ação e como tal
deve estar presente durante todo o trâmite do processo. Se por acaso esta condição deixar de
existir, caracterizando uma carência superveniente, o processo deve ser extinto sem
julgamento do mérito.
O órgão do partido político que pode decidir acerca da feitura da referida ação é
exclusivamente o diretório nacional ou um órgão que tenha as suas funções, não podendo
essa decisão ser tomada por órgãos regionais.
Outra importante inovação da Constituição de 1988 foi o de outorgar legitimidade às
confederações sindicais e às entidades de classe de âmbito nacional. Ao possibilitar que as
referidas entidades sindicais e classistas possam exercer o controle de constitucionalidade,
democratiza-se a fiscalização da Lei Maior, mormente porque possibilita-se a órgãos
representantes da classe trabalhadora a fiscalização constitucional.
Esclareça-se que a Carta Magna apenas permitiu a legitimidade ativa por parte das
confederações sindicais e não por parte das federações sindicais. As confederações e as
federações são entidades sindicais de grau superior.Confederação sindical é a organização de
uma mesma categoria econômica ou profissional, com âmbito e representação nacional. As
federações são constituídas nos Estados, reunindo no mínimo cinco sindicatos de uma
mesma categoria profissional ou econômica. A regra é que apenas existam federações
estaduais, podendo, como exceção, existir federações interestaduais.
O conceito de entidade de classe pode ser definido como uma associação de pessoas
que em essência representa o interesse comum de uma determinada categoria, não podendo
ser formada por associados pertencentes a categorias diversas. Para fazer jus a legitimidade
conferida pelo art. 103 da Constituição Federal, deve ser estruturada em âmbito nacional.
Igualmente deve ser constituída atendendo a todos os requisitos legais e não pode ser
formada de forma casuística.189
188 ADIn 2.060-RJ, rel. Min. Celso de Mello. 189 ADIn n.º 1599-DF, cujo relator foi Maurício Corrêa, em que foi negado legitimidade ad causam para a Associação Nacional de Professores Universitários e para a Federação Nacional dos Professores Universitários.
141
O Supremo sedimentou entendimento no sentido de que as “associações de
associações”, como por exemplo, a Associação Regional dos Juízes Classistas do Trabalho,
carece de competência para impetrar ADIn porque não é uma entidade de classe de âmbito
nacional. Neste caso, as ações não são conhecidas por ilegitimidade ativa ad causam do
requerente.190
A única entidade autárquica de representação profissional que tem competência para
impetrar ação direta de inconstitucionalidade é a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB,
tendo já o Supremo Tribunal Federal pacificado a matéria.191 Essa prerrogativa deferida à
OAB deveu-se ao múnus público que os advogados têm na defesa da legalidade e do Estado
Democrático Social de Direito, devendo ser vista como um encargo e nunca como um
privilégio.
Como o Distrito Federal tem as mesmas competências dos Estados-Membros e dos
Municípios, até porque o princípio isonômico é uma constância na estrutura federal
brasileira, mesmo com a omissão no art. 103 da Constituição, a doutrina e a jurisprudência
consideram que o Governador do Distrito Federal tem competência para impetrar ação direta
de inconstitucionalidade. Essa omissão foi suprida pela Lei n.º 9.868/99, que asseverou que
o Governador do Distrito Federal tem competência para impetrar ação direta de
inconstitucionalidade, dirimindo qualquer dúvida a respeito de sua legitimidade.
Uma das mais importantes inovações no controle de constitucionalidade brasileiro
foi o aumento no número de legitimados que podem propor as ações do controle abstrato,
com exceção da ação direta interventiva, por causa de suas peculiaridades próprias, e da
ação declaratória de constitucionalidade, por uma teratologia jurídica. Anteriormente, a
competência era restrita ao Procurador-Geral da República, tradição histórica que começou
com a ação direta interventiva, no Texto de 1934, e continuou sendo seguida, inclusive na
Constituição de 1967/69. O Procurador-Geral da República além de ser o chefe do
190 O Min. Neri da Silveira decidiu que a ABIA, Associação Brasileira de Indústrias de Alimentação, não tem legitimidade ativa para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade por não se caracterizar como uma entidade de classe de âmbito nacional, mas sim como uma “associação de associações” que representa pessoas jurídicas e não pessoas físicas, para efeito do art. 103. Com esse entendimento, o Tribunal negou provimento a agravo regimental em ação direta de inconstitucionalidade. 191 ADIn 1463-RS, rel. Min. Ilmar Galvão.
142
Ministério Público, cumulava ainda as funções de assessoria e representação do Poder
Executivo, função que foi extinta com a Constituição de 1988 que instituiu a Advocacia-
Geral da União.
A exclusividade de ação por parte do Procurador-Geral da República era um traço
autoritário das Constituições anteriores. Como o Presidente da República o indica e pode
destituí-lo, mesmo necessitando da autorização por parte do Senado Federal, a sua
independência na aferição do controle de constitucionalidade fica bastante comprometida.
Diante desse vínculo inexorável do Procurador-Geral da República como o Chefe do
Executivo, concentrar a legitimidade das ações diretas em suas mãos fragilizava a jurisdição
constitucional e deixava de sedimentar a sua legitimidade.
Seguindo o disposto no art. 103, § 1º da Constituição Federal, o Procurador-Geral da
República tem que se manifestar em todos os feitos de competência do Supremo Tribunal
Federal, o que abrange as ações do controle abstrato de constitucionalidade. Todavia,
quando o Procurador-Geral da República impetrar uma ação direta de inconstitucionalidade,
ele não pode ser ouvido posteriormente como custos legis, fiscal da lei, haja vista ter perdido
a imparcialidade por pugnar pela declaração de inconstitucionalidade da norma.
O grande erro do legislador constituinte de 1988 foi o de não ter criado uma actio
popularis para a defesa da supremacia constitucional e que ao mesmo tempo pudesse ajudar
a sedimentar a legitimidade da jurisdição popular. Essa actio popularis poderia ter o mesmo
formato que uma iniciativa popular, exigindo uma determinada representação popular para
ser impetrada. Por outro lado, ela ajudaria a formar, mediante os debates públicos, um certo
consenso que juntamente com o caráter dialógico da legitimação procedimental
aumentariam a justificativa das decisões do Supremo Tribunal Federal.
143
7.2.2.) A Atuação do Advogado-Geral da União
A figura do Advogado-Geral da União foi criada na Constituição de 1988 com o
propósito de exercer a representação e consultoria do Poder Executivo que até então era
realizada pelo Procurador-Geral da República. Sua atuação foi regulamentada no art. 103 §
3º da Carta Magna que dispõe que, quando o STF apreciar a inconstitucionalidade de uma
lei em tese, previamente, citará o Advogado-Geral da União que defenderá o texto
impugnado.
O fator teleológico que levou a sua atuação no controle abstrato de
constitucionalidade foi o de intensificar o contraditório na ação direta de
inconstitucionalidade. Ele funciona como um amicus curiae, assumindo a posição de
curador da norma impugnada, com o dever de pugnar pela sua constitucionalidade. Mesmo
que o órgão ou autoridade responsável pela norma deixe de se pronunciar na defesa do ato
impugnado, sempre cabe ao Advogado-Geral da União garantir a sua defesa. A função de
curador da constitucionalidade das normas foi originariamente criada por Kelsen, na
Constituição austríaca de 1920.
O Advogado-Geral da União deve ser ouvido em todas as ações diretas de
inconstitucionalidade, dentro do prazo de quinze dias. Na ação direta de constitucionalidade
não tem sentido a sua manifestação porque o pedido já é para a declaração de
constitucionalidade da lei ou ato normativo. Na ação de descumprimento de preceito
fundamental, ele pode ser ouvido como amicus curiae.
Em regra, a atuação do Advogado-Geral da União será sempre pautado pela defesa
da inconstitucionalidade do ato impugnado. Todavia, em consonância com a finalidade de
sua criação, representação e consulta do Chefe do Executivo, ele poderá omitir-se,eximindo-
se de atuar quando o ato impugnado contrariar aos interesses do Poder Executivo. Portanto,
o Advogado-Geral da União não poderá impugnar o ato tachado de inconstitucional, mas
poderá se manter silente. Pensar de outra forma não faz sentido porque o agente que tem a
144
prerrogativa de defender os interesses jurídicos do Executivo não pode defender uma norma
impugnada como inconstitucional quando é o próprio presidente quem está impugnando esta
norma.
Exemplifica, sobre o tema, Oswaldo Palu: “ Na ação direta de inconstitucionalidade
nada impede que o Advogado-Geral da União deixe de responder, defendendo o ato
impugnado. Basta imaginar lei tributária estadual que extravase a competência local e
invada a competência tributária da União, diminuindo-lhe receitas e ferindo preceitos da
Constituição da República. Proposta a ação direta, há que se supor não deva o Advogado-
Geral da União defender o ato estadual acoimado de inconstitucionalidade e prejudicial à
própria União”.192
O Advogado-Geral da União não tem legitimidade para propor embargos
declaratórios a acórdão prolatado em ação direta de inconstitucionalidade, por se tratar de
processo objetivo de controle de constitucionalidade, em que não há partes litigando na lide
e não pode haver intervenção de terceiros. Em conseqüência, a União não pode ser
considerada como parte e não pode ser admitido embargos declaratórios.193
7.3) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
O texto originário da Constituição Cidadã de 1988 poderia ser classificado como o de
uma Constituição dirigente, em que o Estado intervém em vários setores da sociedade para
garantir condições mínimas aos hipossuficientes. O maior problema que atinge esse tipo de
texto constitucional é a baixa eficácia dos seus dispositivos normativos, o que acarreta um
descrédito com relação a sua força normativa e, conseqüentemente, enfraquece o sistema
constitucional. Grande parte dos mandamentos constitucionais da Carta de 1988 encontra-se,
192 PALU, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. Conceitos, Sistemas e Efeitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. P. 85. 193 ADI 2323, rel. Min. Ilmar Galvão.
145
ainda hoje, destituída de eficácia, servindo apenas como valor retórico para garantir o poder
do status quo.
Na tentativa de aumentar a força normativa da Constituição, o legislador constituinte
criou a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, inerente ao controle concentrado, e
o mandado de injunção, inerente ao controle difuso. Esses institutos, que representaram uma
grande inovação na tutela constitucional brasileira, foram inspirados na ação de
inconstitucionalidade por omissão do direito português e no mandado de injunção do direito
iugoslavo.194 Criados respectivamente pela Constituição de 1976 e a Constituição de
1979.195 O seu fator teleológico é garantir concretude normativa a todos os dispositivos
constitucionais, impedindo que determinados artigos fiquem relegados porque não são do
interesse das classes políticas dominantes.
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão surgiu no direito português para
tentar assegurar eficácia aos mandamentos constitucionais. 196 Tanto é assim que a
Constituição portuguesa de 1979, expõe no art. 283: “ O Tribunal Constitucional aprecia e
verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas
necessárias para tornar exeqüíveis as normas constitucionais”.
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão não incide contra uma
inconstitucionalidade material, em que a sua expulsão do ordenamento representa a solução
do problema. A sua finalidade é regulamentar determinada situação jurídica para que os
cidadãos possam exercer os direitos contidos na Constituição. A norma não é expulsa do
194 “Estabelecido no direito anglo-americano o conceito de injunção como ordem que emana de uma corte de equidade determinando a alguém fazer ou deixar de fazer algo que possa prejudicar outrem pela violação de direitos pessoais ou de propriedade, resta distinguir as seguintes modalidades desse remédio processual: a injunção mandatória e a injunção preventiva; a injunção preliminar ou interlocutória e a injunção permanente”. BONAVIDES, Paulo & ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3 ed., São Paulo: Paz e Terra, 1991. P.503. 195 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Processual Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. P. 43. 196 “[...] já que o efeito da verificação da omissão é apenas o de reconhecimento da necessidade de legislação, não tendo sequer hoje o valor jurídico de uma recomendação concreta – o que revela a incapacidade do próprio Tribunal Constitucional para remediar a inconstitucionalidade (substituindo-se o legislador na emissão da norma ou dirigindo-lhe injunções nesse sentido) e, desse modo, reconhece-se e fortalece ate a autonomia do legislativo”. VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 78.
146
ordenamento; muito pelo contrário, há a exigência de uma regulamentação do comando
normativo.
Esse novel instituto tem a feição de um instrumento típico do Estado Democrático
Social de Direito, em que os órgãos públicos cada vez mais recebem um maior número de
incumbências para oferecer a coletividade. A inércia que caracterizava o Estado Liberal dá
lugar a uma atuação decidida em favor dos hipossuficientes, em que a população cada vez
mais é chamada para participar ativamente das decisões políticas. A importância da ação
direta de inconstitucionalidade por omissão refere-se principalmente com relação às normas
programáticas que ganham um aliado para a sua concretização.
A ação de inconstitucionalidade por omissão serve para dar concretude a
mandamentos constitucionais que estejam destituídos de eficácia por falta de normas que as
complementem. Ela incide principalmente nas denominadas normas de eficácia limitada,
que apenas possuem eficácia positiva quando são regulamentadas, caso típico das normas
programáticas.
Como a ação de inconstitucionalidade por omissão é uma forma de controle
concentrado, os seus efeitos temporais são ex tunc, retroagindo até a data de nascimento da
inconstitucionalidade, e os efeitos subjetivos são erga omnes, servindo para regulamentar o
dispositivo constitucional para que ele possa ter eficácia para todos os cidadãos.
A evolução apresentada por esse novo tipo de mácula à Carta Magna foi que o
ordenamento jurídico não mais consideraria inconstitucional apenas uma norma que
afrontasse a constituição de forma comissiva, formal ou material, mas também aquelas que
resultassem de uma inércia do legislador ordinário em sua tarefa de regulamentar os
dispositivos constitucionais. O simples expurgo da norma do ordenamento não mais serviria
para restabelecer a integridade do sistema jurídico. Seria necessárias medidas no sentido de
acolmatar a omissão produzida pelo legislador, no sentido de complementar os
mandamentos constitucionais.
Todas as vezes que fosse constatado que um direito constitucional não pudesse ser
exercido por causa da ausência de uma regulamentação por parte do legislador
147
infraconstitucional, o Supremo Tribunal Federal, em sede de ação de inconstitucionalidade
por omissão, tem a obrigação de garantir a regulamentação do comando constitucional para
possibilitar o gozo do direito.
A inércia que o legislador constituinte teve o objetivo de repelir do ordenamento
jurídico é a omissão em relação a uma norma que impõe a obrigação de agir, e não em
virtude de motivos naturalísticos. A omissão não nasce da seara fática, mas em virtude de
motivos normativos: o descumprimento de um preceito disposto pela norma constitucional.
Dessa forma se posiciona Canotilho: “A omissão legislativa inconstitucional
significa que o legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição.
Não se trata, pois, apenas de um simples negativo “não fazer”; trata-se, sim, de não fazer
aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado. Já por esta
definição restritiva de omissão se pode verificar que a inconstitucionalidade por omissão, no
seu estrito e rigoroso sentido, deve conexionar-se com uma exigência concreta
constitucional de ação. O simples dever geral de emanação de leis não fundamenta uma
omissão constitucional”.197
A omissão que enseja a propositura de uma ação de inconstitucionalidade por
omissão serve apenas para indicar a inércia dos poderes públicos para regulamentar
dispositivos constitucionais através de leis, no sentido formal, ou atos normativos. Ela não é
o instrumento cabível para suprir a ausência de celeridade do ato judicial, cuja solução se
encontra no ordenamento infraconstitucional, ou omissões de cunho político.
A ausência de regulamentação que pode ensejar a ação de inconstitucionalidade por
omissão não se resume à ausência da produção legislativa necessária. Também pode ser
motivo para a sua impetração a regulamentação do dispositivo constitucional de forma
imperfeita, não atendendo as condições estabelecidas para garantir eficácia normativa ao
dispositivo. Destarte, a omissão pode ser total ou parcial. Total quando não houver a
elaboração do instrumento legislativo adequado e parcial quando houve a sua elaboração,
197 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. P.332.
148
porém, ocorreu de forma inconclusa, sem a completa regulamentação do seu espaço de
incidência.
Não é apenas o Poder Legislativo que pode realizar uma inconstitucionalidade por
omissão, o Poder Executivo também pode realizá-la quando deixa de regulamentar
determinados comandos normativo que complementam a Lei Maior por meio de decreto. Se
um mandamento constitucional foi completado por lei ordinária, e esta lei depende para ter
eficácia de um decreto regulamentador, é cabível uma ação de inconstitucionalidade por
omissão contra o Poder Executivo. Mas, na maioria dos casos, a ação de
inconstitucionalidade por omissão é proposta contra o Poder Legislativo.
Para que seja configurada a inércia, é necessário conceder um tempo razoável para
que os poderes públicos respectivos possam regulamentar o dispositivo constitucional. Sabe-
se que os procedimentos do Congresso Nacional, em parte por causa de sua composição
bicameral, demora um determinado tempo para a sua concretização, devendo dar-se um
determinado lapso temporal para a regulamentação dos mandamentos constitucionais.
Anna Cândida da Cunha Ferraz afirma que os principais tipos de
inconstitucionalidades por omissão são os seguintes: a) omissão legislativa por parte do
órgão que tem como função realizar a complementação dos dispositivos normativos; b)
omissão por parte dos poderes estabelecidos; c) omissão por parte do Poder Executivo
quando ele tem a obrigação de realizar a regulamentação de leis.198
Todavia, uma das mais importantes inovações do legislador constituinte de 1988 teve
seus efeitos esvaídos, transformado em uma “folha de papel”. O Supremo Tribunal Federal
estiolou a eficácia da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, curvando-se às
pressões do Executivo Federal. Partindo de uma concepção não-concretista, decidiu a
Egrégia Corte que a mencionada ação não tem força mandamental, possuindo apenas
eficácia declaratória. O resultado concreto da concessão da ação é o aviso ao Poder
Legislativo de que ele está inerte diante da obrigação constitucional.
198 CUNHA FERRAZ, Anna Cândida. “Inconstitucionalidade por Omissão: uma proposta para a Constituinte”. In: Revista de Informação Legislativa. N. 89, 1986. P. 54.
149
A força mandamental da ação, teoria concretista, é verificada quando o dever de
regulamentação for de competência de órgão administrativo, que então terá trinta dias para
executá-lo, sob pena de descumprimento de ordem judicial. 199 Outra eventualidade de efeito
concreto para a omissão constitucional é a imputação de responsabilidade do ente
governamental por perdas e danos, devido à ocorrência de prejuízo em virtude da ausência
de regulamentação da norma constitucional.
A fundamentação da decisão do Supremo Tribunal Federal foi com base em uma
visão ultrapassa do princípio da separação de poderes, que argumenta que as decisões do
Poder Judiciário não podem interferir nas atividades do Poder Legislativo. Essa visão
retrógrada choca-se com as exigências da pós-modernidade e não dá ensejo a um excesso
porque houve o descumprimento de uma obrigação constitucional e a atuação da jurisdição
constitucional tem o escopo de cumprir a Carta Magna. Esse posicionamento deixa os
direitos fundamentais sem um importante instrumento de proteção e não contribui para o
reforço da legitimação das decisões do STF.
Com essa interpretação, praticamente se exaurem as diferenças entre a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Fazendo com que dois
institutos jurídicos fiquem sem utilidade alguma, chocando com os ensinamentos
ministrados por Pontes de Miranda, para quem na Constituição não haveria disposições
inócuas.
Enquanto o mandado de injunção destina-se à proteção de direitos subjetivos dos
cidadãos, pressupondo um interesse jurídico de seu autor, a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão, por não ter como pressuposto a necessidade de garantir
um direito subjetivo, configurando-se como controle abstrato, prescinde da existência de um
interesse jurídico específico. 199 O STF foi influenciado pelo Tribunal Constitucional Português que igualmente concede os mesmos efeitos para a inconstitucionalidade por omissão em Portugal. Eis as palavras de Canotilho e Vital Moreira: “Todavia, o mecanismo constitucional de controlo da inconstitucionalidade por omissão (art. 283) está longe de ser eficaz, por limitações constitucionais e por outras decorrentes da própria natureza peculiar da inconstitucionalidade por omissão. O TC só pode ser chamado a verificar a omissão de medidas legislativas e não de outras, e não pode fazer mais do que verificar e declarar que a omissão existe, não podendo nem pronunciar-se sobre o modo de suprir a deficiência nem muito menos substituir-se aos órgãos legislativos componentes”. CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra, 1991. P. 263.
150
Para se efetivar um sistema de jurisdição constitucional mais condizente com a
necessidade de densificar a legitimidade da jurisdição constitucional, a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção precisam de que os seus efeitos
assumam natureza mandamental, consonante com a sua própria finalidade. Seria estipulado
um determinado lapso temporal para que o poder ou órgão omisso regulamentasse a
situação. Findo esse prazo, provisoriamente, deveria o Supremo Tribunal Federal
regulamentar a situação para permitir o exercício do direito contido na Constituição.
Para se precisar um conteúdo mínimo aos direitos fundamentais, fazendo com que a
sua evolução ocorresse por meio do entrechment, a ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, na esfera normativa, e a argüição de descumprimento de preceito fundamental, na
esfera fática, exercem fundamental importância para a consolidação da legitimação
substancialista da jurisdição constitucional.
7.4) Ação Declaratória de Constitucionalidade
A ação declaratória de constitucionalidade não fez parte do texto originário da
Constituição cidadã de 1988. Ela foi incorporada através da Emenda Constitucional n. 3 de
17/03/1993. Apesar de ser uma espécie de controle abstrato de constitucionalidade, por suas
peculiaridades específicas, ela destoa do procedimento das demais ações diretas.
A instituição da ação declaratória de constitucionalidade fortaleceu as competências
do Supremo Tribunal Federal e o seu papel no exercício da jurisdição constitucional, pois
este órgão tem a prerrogativa de evitar a proliferação de relevantes divergências
jurisdicionais, uniformizando a jurisprudência.
No seu fator teleológico, ela difere da ADIn porque não visa retirar a norma do
ordenamento jurídico declarando a sua inconstitucionalidade. Muito pelo contrário, a ADC
151
decide se a lei ou ato normativo é constitucional ou não, impedindo que discussões sobre
esse objeto possam proliferar em outras instâncias do Poder Judiciário.
A grande inovação da ADC, em 1993, foi a instituição, por mandamento
constitucional, do efeito vinculante, o que gerou grande celeuma.200 Por causa desse efeito, o
único em sede constitucional, todos os órgãos ou agentes judiciais ou administrativos, seja
de que instância ou esfera federativa for, têm que se adequar ao conteúdo da decisão
proferida pelo STF. Uma vez proferida a decisão meritória, pacificando a questão, há o
impedimento da propositura de ação direta de inconstitucionalidade e, pela forte extensão
dos seus efeitos, as ações que estiverem tramitando no controle difuso, com o mesmo objeto
e igual fundamentação jurídica, devem ser extintas.
O efeito vinculante obriga o legislador ao cumprimento restrito da interpretação
realizada pelo STF. Contudo, não impede a repetição do mesmo conteúdo em outro diploma
legal. Explica Gilmar Ferreira Mendes: “Ao contrário do estabelecido na proposta original,
que se referia à vinculação dos órgãos e agentes públicos, o efeito vinculante consagrado na
Emenda n.º 3, de 1993, ficou reduzido, no plano subjetivo, aos órgãos do Poder Judiciário e
do Poder Executivo”.201
Clara é a definição do Min. Moreira Alves “a eficácia contra todos ou erga omnes já
significa que todos os juízes e tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal, devem
obedecer às decisões do controle concentrado. A inovação residiria apenas em que a EC n.º
3, de 1993, ao dar nova redação ao parágrafo 2º do art. 102 da Constituição, além de atribuir
eficácia contra todos, aludiu também o efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do
Poder Judiciário e ao Poder Executivo”.202
A legitimidade ativa para impetrar a ADC não é tão abrangente quanto a legitimidade
da ADIn, o que se configura como um retrocesso porque não existe motivo dogmático que
possa amparar essa restrição. Os quatro legitimados a impetrar a ADC possuem ligação
200 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997. P. 410. 201 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 343. 202 Apud Dantas, Ivo. O valor da Constituição. Do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. P. 144.
152
direta com o Chefe do Executivo, o que restringe a sua amplitude, mormente porque as
confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional foram excluídas dessa
prerrogativa. São os seguintes os órgãos que podem impetrar a ação declaratória de
constitucionalidade: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da
Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.
A legitimidade para impetrar a ADC por parte dos órgãos ou autoridades
mencionadas anteriormente é universal, sem a necessidade da concretização do requisito
objetivo existente na competência particular: a pertinência temática. A competência, como
não poderia ser diferente, pela própria taxionomia do controle abstrato, pertence ao Supremo
Tribunal Federal.
Não é inconstitucional a legitimidade atribuída ao Presidente da República pelo art.
103 da Constituição Federal, porque já no art. 84, XXVII, disciplinando as funções do Chefe
do Executivo Federal, há a previsão de que ele pode exercer outras atribuições designadas
pela Lei Maior. Dessa forma foi previsto que outras atribuições poderiam ser estabelecidas
para o Presidente desde que haja disposição constitucional.
Na ação declaratória de constitucionalidade há um requisito indispensável à
propositura da ação que não pode ser transposto para a ação direta de inconstitucionalidade.
O preenchimento desse requisito configura-se como uma decorrência da própria finalidade
da ADC, que exige a comprovação, que deve estar configurada na petição inicial, da
existência de controvérsia judicial relevante sobre o objeto impugnado da lei ou ato
normativo, cujos reflexos prejudiquem o funcionamento harmonioso do ordenamento
jurídico.
O preenchimento desse requisito apresenta um liame com a finalidade do instituto,
que assegura o caráter sistêmico das normas constitucionais, impedindo que uma relevante
divergência jurisprudencial possa proporcionar insegurança jurídica e diminuir a eficácia
concretiva da Constituição. Ao suprimir aparentes lacunas e sopesar princípios
constitucionais, o ordenamento jurídico ganha maior coerência e potencializa a eficácia de
suas normas.
153
A existência de controvérsia judicial relevante não deve se limitar a controvérsias
doutrinárias que não têm a prerrogativa de acarretar suficiente estado de incerteza para
legitimar a propositura da ação. É necessária a existência de pronunciamentos contraditórios
de órgãos jurisdicionais diversos. Se a discussão se resumir apenas à controvérsia
doutrinária, sem ensejar posicionamentos judiciais, não pode ser aventada a propositura da
ação declaratória de constitucionalidade.
Uma peculiaridade da ação declaratória de constitucionalidade é a restrição de sua
incidência, vez que apenas pode ser impetrada quando a relevante controvérsia judicial
versar sobre a aplicação de lei ou ato normativo federal, não cabendo esse tipo de ação
quando a controvérsia for de lei estadual ou municipal.
A decisão em ação declaratória de constitucionalidade poderá ser tomada pelo voto
de maioria absoluta de ministros do Supremo Tribunal Federal, presentes dois terços dos
seus membros. Os efeitos subjetivos são erga omnes e os efeitos temporais são ex tunc. Em
regra, o termo a quo para a produção de seus efeitos não é o da data da decisão proferida,
mas da data do nascimento da norma ou ato normativo.
As normas paralelas, isto é, aquelas normas estaduais ou municipais que tenham o
mesmo conteúdo das normas federais que foram impugnadas pela ação declaratória de
constitucionalidade, com a procedência dessa ação, também são declaradas constitucionais,
produzindo os mesmos efeitos do controle abstrato. Portanto, declarada a
constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo federal, as leis estaduais ou
municipais que tenham o mesmo conteúdo também serão consideradas constitucionais.
7.4.1) Do Efeito Vinculante da Ação Declaratória de Constitucionalidade
O conceito de efeito vinculante foi introduzido no Brasil a partir da Emenda
Constitucional n.º 3, que criou a ação declaratória de constitucionalidade. Ele tem o escopo
154
de aumentar a intensidade normativa das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal, obrigando que órgãos e agentes públicos acatem o que fora decidido pelo tribunal.
O efeito vinculante abrange os Poderes Executivo e Judiciário. O Supremo Tribunal
Federal não está adstrito ao efeito vinculante, podendo modificar os seus julgados desde que
haja uma modificação na composição de membros do Tribunal ou que surjam fatos novos
que sinalizem a necessidade de um novo julgamento - modificação qualitativa.
O efeito vinculante da ação declaratória de constitucionalidade não torna imutáveis
as decisões do STF. A Egrégia Corte pode rever as suas próprias decisões. Pensar de forma
contrária seria engessar tais decisões, impedindo a evolução da jurisprudência e acarretando,
de forma descabida, uma petrificação constitucional. Obviamente, que as decisões
transitadas em julgado nas demais instâncias judiciais não podem ser atingidas pela mudança
de posicionamento do Supremo Tribunal, devendo ser respeitadas.
Todavia, para que o STF possa reapreciar a questão decidida, tem de haver uma
modificação na composição dos membros do Tribunal ou uma mudança qualitativa na
situação jurídica, apresentando novos componentes. A mudança qualitativa tem que
apresentar novos fatos, que possam suscitar uma questão não analisada anteriormente.
O Poder Legislativo pode, a qualquer momento, revogar ou modificar a norma
declarada constitucional. Do mesmo modo, nada impede que o Legislativo elabore uma nova
norma, com idêntico teor daquela que fora anteriormente declarada inconstitucional. O
Supremo Tribunal Federal tem entendimento de que o Legislativo pode promulgar
novamente uma lei com o mesmo conteúdo daquela que anteriormente fora considerada
como inconstitucional.203
Diante do efeito vinculante, não pode o Poder Executivo descumprir a decisão do
STF alegando o permissivo do art. 23, I da Constituição Federal, recusando o cumprimento
de uma lei ou ato normativo em razão da sua inconstitucionalidade. Quando a norma for
declarada constitucional pelo Supremo, no controle abstrato de constitucionalidade, não cabe
203 ADIn n.º 907, rel. Min. Ilmar Galvão e ADIn n.º 864, rel. Min. Moreira Alves.
155
mais discussão por parte do Executivo, restando-lhe somente a alternativa do seu inteiro
cumprimento.
Questão bastante importante é diferenciar o efeito vinculante do efeito erga omnes. O
primeiro refere-se à intensidade dos efeitos produzidos; o segundo, refere-se à extensão
subjetiva.
A principal diferença é a intensidade dos efeitos, porque o erga omnes não vincula
todos os órgãos da administração pública, prevalecendo apenas para os órgãos judiciais,
enquanto o efeito vinculante gera obrigação não apenas para o Judiciário. O efeito
vinculante é um plus em relação ao efeito erga omnes, pois este atinge todos os órgãos do
Poder Judiciário e aquele, todos os órgãos do Poder Judiciário e do Executivo, com efeito
vinculante, obrigatório.
Com relação à extensão do efeito vinculante, tem-se que esta não abrange apenas a
parte dispositiva da decisão, mas alcança ainda a sua fundamentação204, o que o difere do
efeito erga omnes, cuja extensão abrange somente a parte dispositiva do acórdão.
A conseqüência de que o efeito vinculante abrange a fundamentação e o dispositivo
da decisão proferida no caso concreto não é exclusivamente impossibilitar a sua afronta, mas
obrigar todos os órgãos e agentes públicos a adequar sua conduta à orientação promanada da
decisão, para os casos futuros. A fundamentação da decisão erga omnes não obriga os
órgãos e agentes públicos nas suas condutas futuras.
204 Se posiciona Gilmar Ferreira Mendes: “Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros”. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Habeas Data, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Atualizado por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes. 24ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002.
156
7.4.2) Discussão Acerca da Incongruência da Ação Declaratória de
Constitucionalidade para a Densificação da Legitimidade da Jurisdição
Constitucional
O objetivo do presente item, por força das reiteradas decisões do Supremo Tribunal
Federal que consideraram a ação declaratória de constitucionalidade compatível com os
mandamentos constitucionais, não é mais averiguar a sua inconstitucionalidade. A finalidade
reside em mostrar como a ADC se mostra incongruente com os principais fundamentos para
o fortalecimento da jurisdição constitucional.
Para entender a gênese da ação declaratória de constitucionalidade e toda a discussão
acerca da sua constitucionalidade, faz-se necessária uma percuciente análise dos fatores
sócio-político-econômicos que cercaram o seu surgimento. A ADC surge na década de
noventa como uma tentativa do establishment de mitigar o controle difuso de
constitucionalidade, que restringia o alcance das medidas neoliberais que estavam sendo
implementadas. A sua finalidade inicial não foi o aperfeiçoamento da jurisdição
constitucional, mas cercear a defesa dos direitos fundamentais pela via difusa.
Para alcançar essa finalidade, houve uma restrição do seu caráter dialógico, que
depois foi corroborado pela Lei n. 9.868/99, o que provoca um esvaziamento da sua
legitimidade, do ponto de vista procedimental e do ponto de vista substantivo.
A discussão acerca da constitucionalidade da ação declaratória de
constitucionalidade começa pela sua origem e finalidade insólitas. Os principais argumentos
utilizados à época para asseverar a sua inconstitucionalidade eram os seguintes: que ela
enfraquece o princípio do contraditório e da ampla defesa porque não há participação
obrigatória do Advogado-Geral da União, nem do órgão ou autoridade da qual emanou o
ato; que restringe o princípio da universalidade de jurisdição, porque veda o acesso ao
judiciário no que tange ao objeto das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal;
que o seu efeito vinculante incide contra a independência e harmonia dos três poderes; que
157
fragiliza a autonomia dos juízes e gera uma hierarquia entre as instâncias judiciárias,
obrigando as instâncias inferiores a respeitar as superiores; obsta o controle de
constitucionalidade pela via difusa, superdimensionando o controle concentrado; deixa ao
relento a garantia dos direitos fundamentais, e em muitos casos, ela própria representa um
dos instrumentos de mitigação desses direitos.205
Para posicionamentos mais extremados, como o de Edvaldo Brito, a ADC não pode
ser considerada nem mesmo como uma ação. Assim discorre: “Diante do exposto, a
chamada ação declaratória de constitucionalidade não participa da natureza jurídica de ação,
porque a formulação da legitimidade ativa ad causam, no § 4º que foi introduzido na
Constituição, ao seu art. 103, não enseja qual é a parte contrária. Logo não pode haver ação
sem partes, a inovação não pode prevalecer, sob pena de infirmar toda a pragmática da
comunicação normativa processual”.206
Depois de uma certa discussão, o Supremo Tribunal Federal considerou que a ação
declaratória de constitucionalidade era plenamente constitucional, abortando todos os
argumentos em sentido contrário.
No julgamento da primeira ação declaratória de constitucionalidade, o relator,
Ministro Moreira Alves, repeliu as alegações de inconstitucionalidade baseadas na afronta à
separação dos poderes e na quebra dos direitos individuais referentes ao acesso ao judiciário,
ao devido processo legal, ao princípio do contraditório e à ampla defesa, explicitando o
seguinte: “em um processo objetivo de controle de constitucionalidade não se aplicam os
preceitos constitucionais que dizem respeito exclusivamente a processos subjetivos
(processos inter partes) para a defesa concreta de interesses de alguém juridicamente
protegido [...] se o acesso ao Judiciário sofresse qualquer arranhão, esse arranhão decorria da
205 Foi no julgamento do ADC n.º 01-1/DF, que teve como rel. o Min. Moreira Alves, ficou livre a ação declaratória de constitucionalidade da imputação de inconstitucionalidade. Ficaram afastadas as alegações de quebra da separação dos poderes, do acesso ao Judiciário, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 206 BRITO, Edvaldo. “Aspectos Inconstitucionais da Ação Declaratória de Constitucionalidade de Lei ou de Ato Normativo Federal”. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 48.
158
adoção do próprio controle concentrado, o qual se fez pelo Poder Constituinte, e não
exclusivamente da instituição de um de seus instrumentos [...]”207
A discussão hodierna é a incompatibilidade da ação declaratória de
constitucionalidade para incrementar a legitimidade da jurisdição constitucional porque,
além de não garantir uma proteção eficaz contra os acintes aos direitos fundamentais -
legitimidade substantiva, ela não reforça o caráter dialógico da sua decisão - legitimidade
procedimental.
A restrição ao caráter dialógico por parte da ação declaratória de constitucionalidade
afigura-se a sua principal insuficiência, restringindo de forma brutal qualquer tipo de debate
sobre o fundamento da ação. Ao permitir-se apenas a manifestação do Procurador-Geral da
República, impede-se que o maior influxo de debates possa tornar a decisão judicial mais
consonante com os direitos fundamentais e que os Ministros do STF possam dispor de
maiores subsídios para amparar as suas decisões.208 Devido à limitação dos órgãos ou
autoridades competentes para impetrar a ação, houve um retrocesso na democratização da
sua legitimidade, com a conseqüente concentração da aferição do momento devido para a
sua impetração, seguindo os passos anacrônicos da disposição em vigor na Constituição de
1967/69. 209
Outra grave insuficiência foi a fragilização do controle difuso de constitucionalidade,
que restou bastante mitigado, obrigando todos os juízes pertencentes às mais variadas
instâncias judiciárias a obedecerem ao que fora preceituado na decisão da ADC pelo
Supremo Tribunal Federal. Até mesmo as decisões cautelares têm o condão de sobrestar
qualquer tipo de decisão do controle difuso, excetuando, obviamente as decisões transitadas
em julgado. Com o entrave ao controle difuso, os direitos fundamentais perdem um
importante sistema de garantia, até mesmo pela maior proximidade do cidadão comum com
a instância judiciária mais próxima, diminuindo-se a densidade da jurisdição constitucional.
207 ADC n.º 01-1/DF, rel. Min. Moreira Alves. 208 CRUZ E TUCCI, José Rogério. “Aspectos Processuais da Denominada Ação Declaratória de Constitucionalidade. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 150. 209 FIGUEIREDO, Marcelo. “Ação Declaratória de Constitucionalidade – Inovação Infeliz e Inconstitucional”. In: Ação Declaratória de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 180.
159
Portanto, ultrapassada a discussão sobre a constitucionalidade da ação declaratória de
constitucionalidade, resta evidenciada a sua incongruência com os princípios norteadores da
democratização das decisões da jurisdição constitucional, com a defesa dos direitos
fundamentais e com a construção de um novo modelo de legitimação para o Supremo
Tribunal Federal.
A solução seria a remodelação da ADC, para permitir que ela também possa
fundamentar a maior incidência da jurisdição constitucional, devendo sua reestruturação
obedecer aos seguintes vetores: os órgãos ou autoridades legitimadas deveriam ser os
mesmos do art. 103 da Constituição Federal; o procedimento deveria ser o utilizado para as
ações diretas de inconstitucionalidade, com a obrigatoriedade de manifestação do
Advogado-Geral da União e da autoridade ou órgão que prolatou a norma impugnada;
possibilidade de manifestação do amicus curiae, quando houvesse relevante fundamento
jurídico e representatividade dos postulantes; quando ela versasse sobre direito fundamental,
a sua decisão apenas poderia ser tomada pelo quórum de dois terços de seus membros, como
forma de densificá-los e não de servir de instrumento para o seu esvaziamento.
7.5 ) Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
O nascimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental assinala um
novo marco do constitucionalismo brasileiro na defesa dos direitos fundamentais, de forma
mais intensa nos direitos que têm uma natureza prestacional, em que o poder público deve
concretizar de forma material esses direitos para os hipossuficientes sociais.
Por uma série de motivos que fogem aos limites do trabalho desenvolvido, a
regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental tardou mais de
onze anos. Durante esse lapso temporal, todas as ações ajuizadas perante o Supremo
Tribunal Federal foram rejeitadas pela ausência de regulamentação. A mens legis do
160
legislador constituinte foi criar um instrumento jurídico que pudesse reforçar a eficácia
concretiva dos preceitos fundamentais.
Preceito, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa
“determinação, ordem, prescrição”.210 Portanto, preceito significa ordem, comando,
prescrição, o que abrange o conceito de norma como gênero do qual defluem duas espécies:
as regras e os princípios constitucionais.211 O segundo designativo indica a
fundamentalidade do preceito, a sua imprescindibilidade para o conjunto de normas que
formam a Carta Magna. Não são todas as normas que são passíveis de proteção por parte da
ADPF, resguardando-se apenas as consideradas fundamentais para a estrutura das normas
constitucionais.
O real conceito de preceito fundamental não está claro nem na doutrina, nem na
jurisprudência. Todavia, ele não deve ficar restrito a uma concepção de direitos
fundamentais de primeira dimensão ou sob um corte topográfico dos dispositivos
constitucionais, abrangendo os artigos 5º ao 17 da Constituição. Qualquer direito
fundamental defendido pela Constituição, esteja contido na Ordem Econômica ou na
Organização dos Poderes, deve ser definido como preceito fundamental e resguardado por
intermédio da ADPF.
Das posições doutrinárias expostas, assume importância basilar, pela sua
clarividência, a adotada por José Afonso da Silva, que se posiciona no sentido de que
preceito fundamental não é a mesma coisa que princípio fundamental, obtendo um alcance
mais amplo para abranger todas as prescrições que dão o sentido básico do regime
constitucional, sintetizando as estruturas principais da Constituição e os alicerces
precursores dos direitos fundamentais.212
210 HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 2280. 211 “Nos quadrantes do Direito, portanto, a noção de preceito ancora-se na idéia de “ordem”, “comando”, identificando-se, uma vez mais, com o sentido que se encontra tanto em regras quanto em princípios. Parece, pois, que “preceito” engloba tanto as regras quanto os princípios. Assim, torna-se sinônimo de “norma”, no sentido empregado acima, insista-se, designativo das regras e princípios jurídicos”. TAVARES, André Ramos. Tratado de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 117. 212 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16º ed., São Paulo: Malheiros. P. 559.
161
Não havendo lei definidora do conceito de preceito fundamental, nem mesmo o
posicionamento de uma firme doutrina nesse sentido, a sua conceituação deve ser precisada
por intermédio da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal.213 Dependendo da
extensão dada ao mencionado instituto jurídico, ele pode se tornar um relevante instrumento
para a garantia dos direitos fundamentais da sociedade, mormente quando não há nenhum
sentido para uma interpretação restritiva do seu alcance, que abrangeria apenas os princípios
fundamentais.
Mesmo diante da indefinição quanto à extensão do conceito, parece não pairar
dúvidas de que cabe argüição de descumprimento de preceito fundamental contra afrontas
aos direitos e garantias fundamentais (arts. 5º ao 17 da CF) e outros direitos contidos nas
demais partes da Constituição, contra as cláusulas pétreas (art. 60, I ao IV da CF) e contra os
princípios sensíveis (art. 34 I a VII da CF).
Deve-se ter o cuidado para não transformar a ADPF em um instrumento para garantir
a concretização de todos os dispositivos constitucionais, de forma irrestrita, pois este não é
entendimento mais consentâneo com a essência do instituto, que deve ser utilizado apenas
quando não houver uma solução jurídica mais adequada para garantir preceito fundamental.
O teor literal do § 1º do art. 103 limita o alcance da ADPF, ao asseverar que ela é
decorrente dos preceitos contidos na Constituição. Nesse diapasão devem ser entendidos não
apenas os explícitos, mas também os implícitos, que aumentam a eficácia daqueles previstos
na Constituição. Se não fosse assim, a tutela dos direitos fundamentais restaria incompleta e
a jurisdição constitucional deixaria de auferir um importante elemento de legitimidade. Os
213 Thomas Bustamante traça um panorama de diversos autores acerca da definição do que seja preceito fundamental: “Vicente Grego Filho, por exemplo, chegou a equiparar a argüição de descumprimento de preceito fundamental à ação direta de inconstitucionalidade por omissão e ao mandado de injunção. Paulo Napoleão Nogueira da Silva, diferentemente, procurou conceituar como “preceitos fundamentais” os constantes do Título I da Carta Política (à exceção do princípio Republicano, que não seria imutável); as cláusulas pétreas (artigo 60, § 4º); e, finalmente, o caput do artigo 60, ressaltando que seria necessária a edição de lei definindo a legitimação, o rito, e os efeitos da decisão. José Afonso da Silva, por sua vez, entendeu como preceitos fundamentais os “princípios fundamentais” (título I), além de todas prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são , por exemplo, as que apontam para a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais. Sustenta ainda este autor que o instituto teria, na verdade, natureza semelhante ao recurso constitucional alemão ( Verfassungsbeschverde )”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. “A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e sua Regulamentação pela Lei n.º 9882, de 3 de Dezembro de 1999. Incidente de Inconstitucionalidade?” In: Inforjus, Janeiro de 2000.
162
preceitos dispostos através de normas infraconstitucionais não possibilitam a impetração da
ADPF e tal conclusão deve-se à própria origem do instituto jurídico, que tem o afã de
reforçar a supremacia das normas constitucionais e aprimorar o controle de
constitucionalidade brasileiro.
Seguindo a amplitude da tutela judicial, disposta pelo princípio da universalidade da
jurisdição, a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode ser preventiva ou
repressiva, tomando como marco temporal a realização do gravame. Será preventiva quando
a lesão ainda não se concretizou, mas há elementos idôneos que permitem acreditar que ela
pode efetivamente se realizar. A modalidade repressiva ocorre depois da perpetração da
lesão, visando à sua expulsão do ordenamento ou à concretização de direito fundamental.
Uma outra classificação dada pela Lei n. 9.882/99 diz respeito à argüição de
descumprimento de preceito fundamental própria e a por equiparação, também denominada
pela doutrina de incidente de inconstitucionalidade, que, como será demonstrado mais
adiante, é um instituto jurídico crassamente inconstitucional.
Pelas peculiaridades da ADPF, ela não pode ser confundida com nenhuma forma de
controle difuso ou concentrado. Com a ação de inconstitucionalidade por omissão, ela
guarda a semelhança de tutelar as omissões dos mandamentos constitucionais. A ação de
inconstitucionalidade por omissão tem o escopo de regulamentar qualquer norma
constitucional que ainda não tenha eficácia por causa de uma omissão legislativa, sendo a
sua concretização assegurada com a simples regulamentação do dispositivo normativo,
enquanto a ADPF visa a concretizar os preceitos fundamentais, que não são usufruídos pelos
cidadãos, seja porque sofreram uma inconstitucionalidade material ou uma
inconstitucionalidade omissiva. Esta representa um plus em relação àquela porque incide em
um caso concreto e se resolve não apenas na seara normativa, mas também na seara fática.
A grande inovação da argüição de descumprimento de preceito fundamental é
extrapolar a seara normativa e garantir a concretização fática de um preceito fundamental, de
forma mais intensa naqueles que exigem uma prestação continuada. A ADPF se efetiva com
atividades administrativas para garantir a realização do direito ou para retirar impedimento
163
normativo que restringia o seu gozo, no que necessita de medidas fáticas no sentido de
tornar concreto para a população a fruição de determinadas prerrogativas.
A ADPF pode ser empregada em qualquer modalidade de descumprimento de
preceito fundamental; oriunda de uma omissão normativa que impeça a realização dos
preceitos fundamentais, ou de uma omissão fática que impossibilita o usufruto do preceito
fundamental por parte dos cidadãos.
A extensão das decisões da jurisdição constitucional necessita de uma maior
fundamentação de sua legitimidade, e a argüição de descumprimento de preceito
fundamental representa um dos alicerces de justificação da tutela da Constituição por
intermédio da realização dos preceitos fundamentais.
7.5.1) Legitimidade e Competência
Competência é a possibilidade de realizar determinado ato ou de se omitir de realizá-
lo, por determinação legal. Legitimidade é a possibilidade de postular em juízo em nome
próprio ou de outra pessoa, tanto no pólo ativo quanto no pólo passivo. Como uma espécie
de ação direta, a argüição de descumprimento de preceito fundamental segue as mesmas
linhas gerais desse sistema de controle de constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal, dentro da sua competência originária, por força de
norma constitucional, dispõe de competência privativa para julgar as ações de argüição de
descumprimento de preceito fundamental. Devido ao funcionamento do sistema
concentrado, outro não poderia ser o órgão competente para a apreciação da ADPF, porque
apenas um tribunal que receba autorização da Constituição Federal e que goze de uma densa
legitimidade pode realizar a função de exercer o controle concentrado de constitucionalidade
que traz sérias implicações para o ordenamento jurídico.
164
Os mesmos legitimados para impetrar a ação direta de inconstitucionalidade são
legitimados para impetrar a ADPF, com o preenchimento dos mesmos requisitos. Os
legitimados se dividem em dois grupos: aqueles que têm legitimidade universal e aqueles
que têm legitimidade especial, que apresenta o requisito objetivo inexorável da pertinência
temática. Do primeiro grupo fazem parte os seguintes órgãos ou autoridades: o Presidente da
República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; o Procurador-
Geral da República; o Conselho Federal dos Advogados do Brasil; partido político com
representação no Congresso Nacional. Do segundo grupo fazem parte os seguintes órgãos ou
autoridades: a Mesa da Assembléia Legislativa; o Governador do Estado e as confederações
sindicais com representação de classe de âmbito nacional.214
Na lei que foi aprovada pelo Congresso Nacional houve um veto do Presidente da
República que não foi derrubado posteriormente. O veto, que se fundamentou na
contrariedade ao interesse público, ocorreu no artigo 2 º, inciso II da Lei n. 9.882/99, que
permitia o ajuizamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental por
qualquer pessoa lesada ou ameaçada de lesão por ato do Poder Público, denominada pelo
brocardo latino de quisquis populo.
O motivo que levou ao veto presidencial, tipificando a contrariedade ao interesse
público, foi que a extensão da legitimidade a qualquer cidadão provocaria um grande
aumento na demanda de processos para o Supremo Tribunal Federal, o que prejudicaria
ainda mais a celeridade das decisões.215 Com a atual estruturação do STF, servindo
214 Em sentido contrário pensa André Ramos Tavares: “Se se fosse pretender aplicar, também para a argüição incidental, a legitimidade destinada àquela de natureza autônoma, o certo é que se teria o completo desmantelamento desta modalidade. Isso porque certamente seria hipótese bastante remota que aqueles legitimados a propor a argüição autônoma optassem, surpreendentemente, pela argüição incidental. Se a via principal lhes está franqueada, não se utilizariam da secundária (para a qual teriam de aguardar a abertura de um processo judicial outro) [...] Trata-se de ou admitir que o próprio magistrado e Tribunal da causa apresente a argüição, quando entenda tratar-se do caso de descumprimento de preceito constitucional fundamental relevante, ou, então, admitir que a própria parte poderá fazê-lo, ou, mesmo, que ambas as hipóteses possam ocorrer. Em qualquer dos casos, será necessário verificar como o incidente deve ser encaminhado, processualmente falando”. TAVARES, André Ramos. Tratado de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 400-401 215 Veto presidencial ao art. 2, II, Mensagem n. 1.807, de 3.12.99: “ A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato de Poder Público”. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais –modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer
165
concomitantemente como tribunal constitucional e última instância judiciária, seria inviável
a atribuição do quisquis populo aos cidadãos. Com a transformação do STF em tribunal
constitucional, nos moldes europeus, com a diminuição inequívoca do número de processos
analisados a cada ano, pode-se pensar em novas formas de democratização da legitimatio ad
causam da tutela da Constituição. O conteúdo do citado inciso que sofreu o veto presidencial
não alcançaria o seu desiderato porque, além da atual estrutura do STF, existe o princípio da
subsidiariedade, que impede uma maior extensão da incidência da ADPF.
Existe uma necessidade premente de se democratizar a tutela da jurisdição
constitucional, o que reforça a sua legitimidade e amplifica o seu caráter dialógico. Não há
dados seguros de que a outorga de legitimidade aos cidadãos, de forma individual, reforce a
supremacia das normas constitucionais, de modo que, consoante as novas linhas de evolução
processual. Seria de melhor alvitre outorgar legitimidade às entidades associativas, entidades
de classe, federações sindicais etc. Enfim, aos órgãos que defendessem interesses coletivos.
E não haveria uma maior demanda de processos porque o juízo de admissibilidade poderia
ser exercido de forma mais rígida.
Foi mantida na lei a previsão de que qualquer cidadão poderá apresentar ao
Procurador-Geral da República, devidamente alicerçado em provas, fundamentação jurídica
para que ele possa impetrar a argüição de descumprimento de preceito fundamental. O
Procurador-Geral da República não está vinculado às informações recebidas, podendo
decidir, de forma livre, se há razões para a impetração da ação. Pela experiência do
requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais Poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, suja vetada a disposição em comento”.
166
ordenamento jurídico anterior, esta prerrogativa tem se revelado inócua, tornando-se, na
maioria absoluta das vezes, despicienda, diante da omissão do parquet.
Para conseguir reforçar os preceitos fundamentais, incrementando a legitimidade da
jurisdição constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental pode ser
impetrada contra entidades públicas ou entidades privadas que de alguma forma impeçam a
realização de preceito fundamental. Os entes privados, da mesma forma que os entes
públicos, não podem estorvar a aplicação dos comandos normativos da Constituição, e a
supremacia da Constituição vale para todos, independentemente da natureza de sua
personalidade.
7.5.2) Procedimento
Existe uma simetria entre o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e o
procedimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Pertencendo ambos
ao controle abstrato, as diferenças surgem em razão da peculiaridade singular de cada um
dos institutos.
A petição inicial deverá conter os seguintes requisitos: a) a indicação do preceito
fundamental que se considera violado; b) a indicação do ato questionado; c) a prova da
violação do preceito fundamental; d) o pedido com suas especificações. Com relação ao
incidente de constitucionalidade, além de todos esses requisitos mencionados acrescenta-se a
comprovação da relevante controvérsia judicial.
A indicação do preceito fundamental que se considera violado deve ser feita com
bastante acuidade, já que a ADPF destina-se exclusivamente a amparar ameaças ou afrontas
a preceito fundamental. Portanto, a petição inicial deverá conter, de forma clara e precisa, o
parâmetro de controle judicial, demonstrando o liame entre a ameaça ou lesão e o preceito
fundamental, de forma fundamentada.
167
Por ser uma ação abstrata, em que não há partes, objeto litigioso ou instância
probatória, todos os documentos necessários devem acompanhar a petição inicial, que será
protocolada em duas vias, com as cópias do ato litigado e os documentos necessários para
comprovar a impugnação.
Via de regra, não é necessário juntar instrumento procuratório; pois a outorga da
legitimação pela Carta Magna já supre esse requisito. Ele somente se configura necessário
quando a ação for de iniciativa de partido político com representação no Congresso
Nacional, de confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Protocolada a petição inicial no Supremo Tribunal Federal, será designado um relator
que se incumbirá da apreciação da impugnação. Se os requisitos mencionados não estiverem
contidos na petição inicial, ela será indeferida pelo relator por ser considerada inepta. Se o
relator verificar que o vício pode ser saneado, deverá intimar o autor para que emende a
petição inicial em dez dias, sob pena de seu indeferimento. Do indeferimento, caberá agravo
para o plenário no prazo de cinco dias.
Não há menção expressa na Lei n.º 9.882/99 no sentido de que não poderá haver
intervenção de terceiros na ADPF, mas como se trata de regulamentação de um processo
objetivo, sem interesses subjetivos, esse tipo de intervenção não deve se realizar. De igual
modo, uma vez impetrada a ação, esta se torna indisponível, o que impede que o seu
impetrante venha a desistir do seu prosseguimento.
Em analogia com a Lei n. 9.868/99 é possível, e até desejável, que haja a intervenção
do amicus curiae, a fim de reforçar o caráter dialógico, que é a essência da legitimidade
procedimental, proporcionando uma democratização das decisões da jurisdição
constitucional. Para incrementar as informações colhidas, em caso de necessidade de
esclarecimento de matéria ou circunstância de fato, ou de notória insuficiência de
informações existentes nos autos, o relator poderá requisitar informações adicionais das
partes demandantes, requisitar informações de peritos ou comissões de peritos, para que
emitam um parecer sobre a questão, ou ainda marcar data para audiência pública de pessoas
com experiência e autoridade na matéria.
168
Infelizmente, também não foi previsto pelo procedimento da ADPF, como amicus
curiae, a participação de entidades da sociedade civil, quando houvesse relevância jurídica
do pedido e representatividade dos postulantes.
Inovação incorporada ao procedimento foi a possibilidade, de acordo com a decisão
do relator, de sustentação oral ou juntada de memoriais, a requerimento dos interessados no
processo.
Como não há na ADPF nenhum óbice à concessão de medida liminar, essa
possibilidade foi expressamente prevista em lei, apresentando como requisitos à presença do
periculum in mora e fumus bonis júris. O quórum para a concessão de medida cautelar é o
de maioria absoluta dos votos dos ministros integrantes do Supremo Tribunal Federal.
Em casos de extrema urgência ou de perigo de grave lesão, ou ainda durante o
recesso dos trabalhos forenses, poderá o relator conceder liminar em decisão monocrática,
que deverá ser referendada posteriormente pelo pleno do tribunal. Para melhor legitimar a
sua decisão liminar, o relator poderá, por ato discricionário, ouvir as autoridades
responsáveis pelo ato questionado, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da
República, em um prazo comum de cinco dias, devido à urgência.
A extensão temporal dos efeitos da concessão da medida liminar, em regra, é ex
nunc, sendo a extensão subjetiva erga omnes.O seu conteúdo é no sentido de que os juízes e
tribunais deverão suspender o andamento de processos ou os efeitos de decisões
interlocutórias ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da
argüição. Somente restarão inalteradas as decisões que já estiverem com o trânsito em
julgado.
Apreciado o pedido liminar, o relator solicitará informações às autoridades
responsáveis pela prática do ato questionado, em um prazo de dez dias. Passado o prazo para
a apresentação das informações, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os
Ministros, e pedirá pauta para marcar o dia do julgamento.
169
O Ministério Público, nas argüições em que não for parte demandante, terá vista dos
autos, pelo prazo de cinco dias, para se manifestar. Essa imposição da lei é despicienda,
porque o § 1º do art. 103 da Constituição Federal já obriga a oitiva do Procurador-Geral da
República em todas as ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de
competência do Supremo.
No procedimento da ADPF, não é o caso de atuação obrigatória por parte do
Advogado-Geral da União, que poderá ser ouvido de forma discricionária para a obtenção de
maiores subsídios para a solução da ação. Nessa hipótese, descabe falar de sua atuação como
defensor do vínculo, pois muitas vezes a prestação jurisdicional almejada é a concretização
do preceito fundamental e não a declaração de inconstitucionalidade.
Em todas as decisões de mérito do processo abstrato, inclusive na argüição de
descumprimento de preceito fundamental, o acórdão meritório apenas poderá ser tomado
pelo voto de maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, decidindo pela
procedência ou improcedência do pedido. Deferido o objeto da ação, a autoridade da qual
o ato for emanado será comunicada para o cumprimento imediato da decisão, de acordo com
as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.
A decisão de mérito produz efeitos temporais ex tunc e subjetivos erga omnes, sendo
vinculante para todos os órgãos do Poder Público. Caso não venha a ser cumprida, cabe
reclamação para o Supremo Tribunal Federal.216
Havendo a incidência da ADPF em ato administrativo singular ou medida judicial, a
extensão do efeito erga omnes será bastante restrita porque não se pode gerar uma
cominação geral e abstrata diante de um fato concreto.
Importante inovação da Lei n. 9.868/99, que também foi incorporada à lei
regulamentadora da argüição de descumprimento de preceito fundamental, foi a
216 Foi deferido pedido de medida liminar em ação de reclamação, ajuizada pela União, para garantir a autoridade da decisão proferida pelo STF na ADC 4-DF, que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação a prolação de qualquer decisão sobre pedido de inconstitucionalidade do art. 1 da Lei 9.494/97- por entender que a tutela antecipada fora concedida com desrespeito à referida decisão.
170
possibilidade de decidir com maior discricionariedade os efeitos da decisão meritória.
Havendo necessidade de garantir a segurança jurídica ou o excepcional interesse social, o
Supremo Tribunal Federal, por ato discricionário e desde que haja posicionamento favorável
de dois terços dos seus ministros, pode restringir os efeitos da sua decisão ou estabelecer que
a mesma só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado, ou de outro momento que
venha a ser fixado.217
Com o preenchimento dos requisitos elencados, que são elementos fáticos -
segurança jurídica e excepcional interesse público, e normativos - quórum de dois terços de
votos, a extensão subjetiva dos efeitos pode ser restrita, ou seja, as decisões não mais se
tornam erga omnes, podendo ter a esfera de sua atuação reduzida.218 Por outro lado, a
fixação dos efeitos temporais deixa de ser obrigatoriamente ex tunc, podendo assumir a
forma de ex nunc ou pro futuro, sem que haja uma maior legitimidade das decisões da
jurisdição constitucional brasileira.
A fixação dos efeitos da ADPF ex nunc ou pro futuro representa uma decisão
política, proferida por um órgão jurídico que é o Supremo Tribunal Federal, com o intuito de
adequar o alcance dos seus acórdãos às situações fáticas, deliberando qual seria o momento
mais conveniente para a produção dos seus efeitos, para preservar a concretude do
ordenamento jurídico.
Após a decisão transitada em julgado, no prazo impreterível de dez dias, deve ser
publicada a parte dispositiva da sentença de argüição de descumprimento de preceito
fundamental, na seção especial do Diário Oficial da União. Da formalização da sentença,
através da sua publicação, começa a correr o prazo para a impetração de embargos
217 “Embora o Supremo Tribunal Federal nunca tenha determinado a aplicação do efeito ex nunc de suas decisões de mérito no controle concentrado de constitucionalidade, muitas vezes, Ministros de nossa Corte Constitucional têm admitido essa possibilidade, mesmo antes de previsão legal nesse sentido, nos casos, por exemplo, de ocorrência de uma forte e antiga presunção de constitucionalidade de lei, por fim, julgada inconstitucional, tendo em vista a segurança jurídica, a boa fé do Poder Público e as conseqüências econômicas avassaladoras para o País que a declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc poderia trazer”. SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. In: www. Planalto. Gov. br. 218 O Min. Néri da Silveira afirma que cuidando-se de processo de natureza objetiva, não há norma constitucional que impeça o legislador ordinário autorizar o STF a restringir, em casos excepcionais, por razões de segurança jurídica, os efeitos de suas decisões. ADIMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira.
171
declaratórios. Da argüição de descumprimento de preceito fundamental, não há possibilidade
de rescisória.
Sendo uma lei infraconstitucional, a Lei n.º 9.882/99 poderia atribuir a uma decisão
judicial efeitos erga omnes para todos os três poderes? Se é bastante discutível o efeito
vinculante, estabelecido por emenda constitucional, que dirá através de uma norma
hierarquicamente inferior? Uma lei ordinária não tem força para mitigar a esfera de atuação
do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário.219 As formas de controle de constitucionalidade
apenas podem ser estabelecidas pelo Poder Constituinte ou através do Poder Reformador,
mas nunca pelo legislador ordinário.
A Lei n.º 9.868/99, que regulamenta o procedimento para as ações diretas de
inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade, suprirá as lacunas
existentes para o processamento das argüições de descumprimento de preceito fundamental,
orientando a ação com os ritos nela previstos. Não existe prazo específico para se impetrar a
argüição de descumprimento de preceito fundamental.
7.5.3) Princípio da Subsidiariedade
O controle de constitucionalidade brasileiro é bastante complexo porque combina, de
forma simultânea, o sistema difuso e o concentrado. Nesse contexto, surge a dificuldade
adicional de se estabelecer limites determinados à atuação de cada um dos instrumentos
processuais, evitando a sobreposição de um sobre outro, o que contribuiria para a
ineficiência da tutela constitucional. A adoção do princípio da subsidiariedade tenta evitar a
sobreposição da ação de descumprimento de preceito fundamental em relação a outros
instrumentos processuais inerentes tanto ao sistema incidental quanto ao abstrato.
219 Contudo, o Min. Néri da Silveira entende que o efeito vinculante não precisa necessariamente ser regulamentado em nível constitucional, podendo o legislador ordinário disciplinar a eficácia das decisões judiciais, especialmente porque a Constituição Federal remete expressamente à lei a disciplina da ADPF. ADI-2231, rel. Min. Néri da Silveira.
172
Ao aceitar expressamente o princípio da subsidiariedade como postulado inerente à
ADPF, o legislador infraconstitucional dispõe que a mesma não será intentada quando for
cabível outra ação direta de controle de constitucionalidade, ou quando for possível ajuizar
outra medida judicial, por intermédio do controle difuso. A Lei n.º 9.882/99 comina
expressamente que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será
admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade. (art. 4º, § 1º)
A introdução da argüição de descumprimento de preceito fundamental na seara
jurídica brasileira representou um novo marco na defesa e concretização dos direitos
fundamentais, assegurando o cumprimento do seu conteúdo mínimo, entrenchment. Pelas
suas peculiaridades, por apresentar uma seara específica de atuação, a ADPF não pode ser
sucedâneo das clássicas garantias constitucionais brasileiras, como o mandado de segurança,
o habeas corpus etc, ou de outras ações de controle direto de constitucionalidade, ou até
mesmo das demais ações judiciais. A ADPF somente poderá ser manejada quando não
houver nenhum outro mecanismo adequado para a garantia dos preceitos fundamentais, ou
quando esses mecanismos não produzirem os efeitos desejados.220
Não é possível relegar o princípio da subsidiariedade, pois haveria a subversão do
trâmite processual, criando obstáculos, pelo excesso de trabalho, à celeridade da prestação
jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, sobrepondo ações com idêntico desiderato. Não
teria sentido criar um novo instituto jurídico para realizar uma função que já é própria de
outro instrumento processual.221 A criação desmedida de leis, apanágio intrínseco das
sociedades pós-modernas, provoca o fenômeno que García de Enterría denominou de
“inflação legislativa”, que contribui para aumentar a insegurança e diminuir a concretude
normativa do ordenamento jurídico. 222
220 “A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, no entanto, não basta, só por si, para justificar a inovação do princípio em questão, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar de modo eficaz e real, a situação de lesividade que se busca neutralizar com o ajuizamento da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental”. ADPf 17-AP, rel. Min. Celso de Mello. 221 No ADPF n.º 3-CE, em 18/05/2000, o rel. Min. Sydney Sanches, afirmou ser incabível ADPF quando ainda existe medida eficaz para sanar lesividade. Com esse entendimento, o Tribunal não conheceu o denominado remédio, ajuizada pelo Governador do Estado do Ceará, contra ato do Tribunal de Justiça. 222 ENTERRÍA, Eduardo García de. Justicia y Seguridad Jurídica en un Mundo de Leyes Desbocadas. Madrid: Cuadernos Civitas, 1999. P. 47.
173
Quando inexistir ação do controle abstrato específica ou mesmo remédio jurídico
próprio, não há necessidade de exaurimento das instâncias processuais. Os casos relativos ao
controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da
Constituição Federal e das controvérsias sobre o direito pós-constitucional já revogado ou
cujos direitos já se exauriram são inovações da argüição de descumprimento de preceito
fundamental, permitindo maior extensão para o controle abstrato de constitucionalidade.
Para evitar a sobreposição de instrumentos processuais pertinentes aos dois sistemas
de controle de constitucionalidade, escopo do princípio da subsidiariedade, não será
admitida ADPF quando houver uma omissão por parte do Poder Legislativo para
regulamentar a matéria, pois neste caso é cabível o mandado de injunção ou a ação de
inconstitucionalidade por omissão. Todavia, como o Supremo Tribunal Federal entende que
a decisão da ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção têm efeitos
simplesmente declaratórios, sem nenhum tipo de eficácia concretiva, pode-se impetrar a
argüição de descumprimento de preceito fundamental para, faticamente, realizar os
comandos normativos contidos na Constituição.
A respeito da matéria se posiciona o Min. Celso de Mello: “O ajuizamento da ação
constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo
princípio da subsidiariedade, de tal modo que não será ela admitida, sempre que houver
qualquer outro meio juridicamente idôneo, apto a sanar, com efetividade real, o estado de
lesividade emergente do ato impugnado. A mera possibilidade de utilização de outros meios
processuais, no entanto, não basta, só por si, para justificar a inovação do princípio em
questão, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir, revelar-se-á essencial
que os instrumentos disponíveis mostrem-se aptos a sanar, de modo eficaz e real, a situação
de lesividade que se busca neutralizar com o ajuizamento da ação constitucional de argüição
de descumprimento de preceito fundamental”.223
Ao contrário do que pensa o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, não se pode conceber
uma interpretação mais elástica à ADPF, contrariando o princípio da subsidiariedade e
permitindo que o instituto seja utilizado, de forma concomitante, com outros institutos do
223 ADPF 17-AP, rel. Min. Celso de Mello. DJU de 28.9.2001.
174
controle direto de constitucionalidade, com fundamento em uma interpretação conforme a
“ordem constitucional global”, com o enfoque de proteção da ordem constitucional
objetiva.224 Ou seja, advoga o Ministro que, diante da proeminente missão de resguardar os
preceitos fundamentais, dever-se-ia atribuir uma interpretação extensiva à restrição do
princípio da subsidiariedade, o que na prática serviria para anular o este princípio.
Não serve como parâmetro o argumento segundo o qual o recurso constitucional
alemão e o amparo espanhol, embora guiados pelo princípio da subsidiariedade, permitem,
em casos de grave lesão ou interesse público, a sua implementação sem a necessidade de
exaurimento recursal. A regra geral para o recurso constitucional alemão e o amparo
espanhol é o princípio da subsidiariedade, sendo a sua exceção admitida em pouquíssimos
casos. Em igual sentido se posiciona a doutrina estrangeira de que o recurso de amparo
espanhol e recurso constitucional alemão adotam o princípio da subsidiariedade.225 Segundo
Pizzorusso, o sistema europeu exige o exaurimento das instâncias ordinárias para se impetrar
o amparo ou o verfassungsbeschwerde.226 Na mesma trilha segue Luis Lopes Guerra.227
O recurso constitucional alemão, Verfassungsbeschwerde, apenas pode ser impetrado
após o exaurimento das instâncias ordinárias. Mas de acordo com a Lei Orgânica do
Tribunal, § 90,II, a Corte alemã pode dispensar a exigência do exaurimento recursal,
verificando se tratar de casos de interesse geral ou de controvérsias baseadas no iminente
perigo de grave lesão.
O recurso de amparo, previsto no art. 161, b, da Constituição espanhola, prevê que o
Tribunal Constitucional tem jurisdição em todo o território espanhol e é competente para
224 Expõe Gilmar Ferreira Mendes: “À primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer meio eficaz a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão e no direito espanhol para, respectivamente, o recurso constitucional e o recurso de amparo, acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático”. MENDES, Gilmar Ferreira. “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Demonstração de Inexistência de Outro Meio Eficaz”. In: Revista Jurídica Virtual. 225 “Na Alemanha qualquer um tem o seu próprio direito fundamental garantido[...] mas só após haver exaurido todos os outros remédios legais[...].é imposto, também no Direito espanhol o princípio da subsidiariedade”. LILLO, Pasquale. “Corte Costituzionale ed Esperienza Giuridica”. In: Diritto e Società. N. 4. Ottobre-Dicembre. Padova: CEDAM, 2001. P. 479-481. 226 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P.249. 227 LOPEZ GUERRA, Luis. “Jurisdicción Ordinaria y Jurisdicción Constitucional”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 37.
175
conhecer do recurso de amparo nos casos e formas que a lei estabelecer, sendo este o recurso
cabível quando houver uma ameaça ou lesão a um direito ou garantia constitucional. A Lei
Orgânica do Tribunal Constitucional, no seu art. 44, I, explicita que cabe o recurso de
amparo contra ato judicial desde que sejam esgotados todos os recursos possíveis de
utilização na via recursal. Em idêntico sentido se posiciona Francisco Tomás y Valiente, que
foi Presidente do Tribunal Constitucional espanhol, ao afirmar que o recurso de amparo
apenas é devido quando é esgotada a via judicial previamente estabelecida em cada caso.228
Com relação ao amparo espanhol, a possibilidade de exceção ao exaurimento
recursal é admita pela doutrina e jurisprudência, desde que haja relevante motivo para
justificá-lo, como um interesse geral ou eminente perigo de lesão.
A tese da flexibilização do princípio da subsidiariedade com base em institutos
processuais estrangeiros não pode ser transposta literalmente para a realidade brasileira, em
razão das peculiaridades nacionais. Todas as vezes que essa transposição de institutos
estrangeiros foi realizada, descurando da realidade social pátria, houve o aumento da
ineficácia do ordenamento jurídico, no que reforça o seu caráter retórico, para manter o
status quo dominante e estiolar ainda mais a coercitividade dos dispositivos constitucionais.
Como a tentativa de utilizar analogicamente o amparo espanhol e o recurso
constitucional alemão se afigura estapafúrdia, buscam-se outros meios para fragilizar o
princípio da subsidiariedade. Uma dessas formas é a afirmação de que o referido princípio
apenas tem incidência obrigatória na argüição de descumprimento de preceito fundamental,
não se aplicando à argüição incidental de constitucionalidade. Essa argumentação mais uma
vez se configura destituída de validade. O princípio da subsidiariedade foi previsto para todo
o instituto da argüição. Se assim não o fosse, seria regulamentado especificamente, de forma
clara, para uma das suas modalidades. Ademais, se é bastante claro, hodiernamente, que o
228 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 43.
176
incidente de inconstitucionalidade é inconstitucional, torna-se despicienda a presente
discussão.229
O princípio da subsidiariedade é um dos vetores indissociáveis da argüição de
descumprimento de preceito fundamental. Sua aplicação deve ser feita em consonância com
a mens legis do texto legal, sobre o qual não paira nenhuma névoa de dúvida, vez que
planteia, de forma límpida, que a argüição somente será utilizada quando não houver outro
meio idôneo para solucionar o acinte a preceito fundamental.230 No mesmo sentido se
posiciona Alexandre de Moraes: “Observe-se, porém, que o cabimento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental não exige a inexistência de outro mecanismo
jurídico, mas seu prévio esgotamento sem real efetividade, ou seja, sem que tenha havido
cessão a lesividade a preceito fundamental, pois a lei não previu exclusividade de hipóteses
para a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental, mas sua
subsidiariedade”.231
Lênio Streck explicita o campo de ação da ADPF: “Assim, em face desse processo
hermenêutico, torna-se razoável afirmar que a ação de descumprimento de preceito
fundamental passa a ser remédio supletivo para os casos em que não caiba ação direta de
inconstitucionalidade. Nesse sentido, poderão agora ser questionados atos normativos
(regulamentos, resoluções, por exemplo) que anteriormente não eram passíveis de
enquadramento na via da ação direta de inconstitucionalidade”.232
229 Defende tal argúcia: BERNARDES, Juliano Taveira. “Lei 9882/99: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental”. In: Revista Virtual Jus Navigandi. 230 No mesmo sentido, Thomas Bustamante: “Não se pode negar que, cabendo qualquer recurso para a decisão judicial atacada, há um meio eficaz para se “sanar a lesividade”, o próprio recurso cabível! Qualquer que seja o sentido atribuído pelo legislador à expressão “eficácia” é razoável se presumir que o recurso para um outro órgão julgador, ou mesmo para o Supremo Tribunal Federal, nos casos contemplados pela Carta Magna, é um mecanismo eficiente para a proteção da norma constitucional supostamente violada. A conclusão contrária importaria numa contradição insuperável no sistema jurídico: a inexistência de eficácia da decisão de um Tribunal ao reformar a decisão recorrida”. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. “A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e sua Regulamentação pela Lei n.º 9882, de 3 de Dezembro de 1999. Incidente de Inconstitucionalidade?” In: Inforjus, Janeiro de 2000. 231 MORAES, Alexandre de. Comentários à Lei n.º 9882/99 – Argüição de Descumprimento de Preceito Constitucional. In: Argüição de Descumprimento de Preceito fundamental: Análises à Luz da Lei n.º 9.882/99. São Paulo: Atlas, 2001. P. 27. 232 STRECK, Lenio Luiz. “Os Meios de Acesso do Cidadão à Jurisdição Constitucional, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e a Crise de Efetividade da Constituição”. In: Revista da Esmape. V. 6, n. 13- Janeiro/junho- 2001. P. 275.
177
Como a regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental
constituiu uma grande evolução na proteção dos direitos fundamentais contidos na
Constituição, assegurando-lhes eficácia normativa, dentro de um conteúdo minimamente
estabelecido, principalmente aos direitos sociais, sua aplicação não pode ser ampliada de
modo desmesurado, sob pena de perda de sua eficácia concretiva.
7.5.4) Inovações
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, por si só uma inovação no
controle concentrado de constitucionalidade, trouxe algumas mudanças que destoam das
características peculiares a esse sistema. A nota peculiar dessas inovações é uma ampliação
na esfera da jurisdição constitucional brasileira, que se não for acompanhada da
transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com a supressão
da sua competência recursal, afora a garantia dos direitos fundamentais, servirá apenas para
assoberbar ainda mais o Pretório Excelso..
A primeira das inovações é a possibilidade de argüição de descumprimento de
preceito fundamental contra ato ou lei municipal que de forma direta afrontar a Constituição
Federal, instituindo-se, assim, o controle direto, por parte do STF, com relação às
inconstitucionalidades praticadas pelos municípios. Antes, era permitido apenas ao
constituinte estadual instituir o controle concentrado das normas do direito municipal, ainda
assim em face da Constituição estadual. O controle das normas municipais que afrontassem
a Carta Magna federal somente poderia ser feito pela via difusa.
A possibilidade de apreciação de inconstitucionalidades municipais por parte do
Supremo Tribunal Federal, no que abriu uma exceção no controle concentrado, fundamenta-
se na necessidade de proteger os preceitos fundamentais, assegurando-lhes um entrenchment
para que eles possam aumentar a sua capacidade concretiva e densificar a legitimação da
178
jurisdição constitucional. Anteriormente não era previsto controle direto para as
inconstitucionalidades municipais, a fim de se evitar uma grande demanda para o Supremo.
Hodiernamente, havendo qualquer ameaça ou lesão de preceito fundamental por lei
ou ato normativo, sem nenhuma distinção entre os entes federativos, tem o Supremo
Tribunal Federal o poder-dever de velar pela integridade do ordenamento jurídico e declarar
a inconstitucionalidade, reafirmando a concretude das normas constitucionais.O objetivo
dessa inovação foi impedir que os vários Tribunais de Justiça tivessem um posicionamento
discrepante em relação a uma mesma matéria.
A segunda inovação diz respeito ao controle de constitucionalidade de normas
anteriores à Constituição, pré-constitucionais, ou pós-constitucionais que já foram revogadas
ou que exauriram seus efeitos por intermédio do controle concentrado. Antes da ADPF, o
Supremo Tribunal Federal não reconhecia, em sede de controle direto, a possibilidade de
apreciação desses casos mencionados.
Os dispositivos jurídicos que vigoravam antes da Constituição atual e que não
contrariam os mandamentos constitucionais são recepcionados pela nova ordem jurídica,
como fora explicitamente afirmado pelas Cartas Magnas de 1891, 1934 e 1937, através das
cláusulas de recepção. As normas do ordenamento anterior que se chocaram com o novo
Texto Magno foram imediatamente, sem necessidade de pronunciamento judicial, retiradas
do ordenamento jurídico, não-recepcionadas, baseando-se no princípio lex posterior derogat
priori.
O Supremo não aceita as ações diretas de inconstitucionalidade de leis anteriores à
Constituição, pré-constitucionais, e pós-constitucionais, que são aquelas que não mais
integram o ordenamento jurídico, ou porque foram revogadas ou porque seus efeitos já se
extinguiram. Nesses dois casos mencionados, a única forma de reaver os direitos lesionados
era por intermédio do controle difuso de constitucionalidade, de acesso direto por parte de
qualquer cidadão. Com a regulamentação da ADPF, o controle normativo das normas pré-
constitucionais e pós-constitucionais pode ser realizado por via direta, com ação para o
Supremo Tribunal Federal, desde que incidam contra preceitos fundamentais.
179
Nas duas inovações mencionadas supra, é necessário que haja um relevante
fundamento que ampare controvérsias judiciais, de acordo com o inciso I, do parágrafo
único do art. 1º da Lei n. 9.992/99. Consoante o permissivo legal, as impugnações contra lei
ou ato municipal, incluindo os anteriores à Constituição, exigem que haja, antecipadamente,
uma controvérsia judicial, em qualquer das instâncias do Poder Judiciário, para que possa
justificar a impetração da ADPF.
O aumento da competência do Supremo Tribunal Federal pertinente ao controle de
constitucionalidade das normas municipais e das normas pré-constitucionais não padece de
inconstitucionalidade como sustentam algumas posições doutrinárias.233 A alegação de que
as ações do controle concentrado somente poderiam ser impetradas contra lei ou ato
normativo federal ou estadual, de acordo com o art. 102, inciso I, alínea “a”, não é factível
porque esse dispositivo constitucional limitou-se a disciplinar a ação direta de
inconstitucionalidade, não tendo abrangência para os demais tipos de ações diretas. A ADPF
foi disciplinada na Constituição no § 1º do art. 102, cominando que lei infraconstitucional
iria regulamentar o mencionado instituto. Portanto, a Lei 9.882/99 que o regulamentou
manteve-se dentro dos vetores da Lei Maior sem incorrer em nenhuma
inconstitucionalidade.
A terceira inovação, e essa muito mais profunda porque subverte a estrutura do
controle direto, criando um tertium genus entre o controle direto e o controle difuso, consiste
na possibilidade de se analisar, em sede de controle direto, a constitucionalidade de um caso
concreto. O controle de constitucionalidade concentrado até então existente somente era
utilizado diante da lei em tese, sem necessidade de se especificar um caso concreto (outra
exceção que pode ser mencionada é o caso da ação interventiva, mas de alcance bem mais
restrito por causa da sua finalidade).
233 Nesse sentido é o entendimento de Palhares Moreira Reis: “Daí, o entendimento de que a argüição de descumprimento de preceito fundamental, igualmente ação de inconstitucionalidade, deve se limitar, no âmbito da competência do Supremo Tribunal Federal a discutir leis e atos normativos federais e estaduais, jamais em relação a normas municipais. Quando a questão se relacionar com normas municipais, o controle de constitucionalidade concentrado somente é possível em face da Constituição dos Estados, em exame pelos Tribunais de Justiça correspondentes”. MOREIRA REIS, Palhares. Estudos de Direito Constitucional e de Direito Administrativo. V. IV, Recife: Editora Universitária – UFPE, 2003. P. 237.
180
Preenchidos os requisitos processuais, o controle abstrato, por meio de ADPF, pode
incidir em casos concretos, desde que haja afronta a direito fundamental. Pelas
peculiaridades do caso concreto, os efeitos produzidos, que são os mesmos das ações diretas,
sofrem uma mitigação, o que obriga a uma interpretação mais genérica das decisões da
argüição de descumprimento de preceito fundamental, para que possam ser usadas em outros
casos.
Através dessa inovação, a cidadania ganhou um instrumento jurídico que pode
possibilitar a concretização de vários direitos fundamentais que são delineados em normas
de eficácia programática e que, atualmente, são relegadas de implementação devido a
conveniências políticas.234
7.5.5) A Inconstitucionalidade do Incidente de Constitucionalidade
A argüição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação ou
incidente de constitucionalidade igualmente foi regulamentado pela Lei n. º 9.882/99,
especificamente no seu art. 1º, inciso I. Ocorre que o fator teleológico da lei, com base no
mandamento esculpido na Constituição Federal, não foi criar um instituto jurídico
inteiramente diverso da argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao contrário
desta, crassamente eivada pelo vício de inconstitucionalidade.
O controle de constitucionalidade, em decorrência da supremacia de que gozam as
normas constitucionais, somente pode ser previsto por normas oriundas do Poder
234 “O Poder Público – quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de legislar, imposto em cláusula constitucional, de caráter mandatório – infringe, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”. ADIn – 1484, rel. Min. Celso de Mello.
181
Constituinte ou, no mínimo, por normas do Poder Reformador. Jamais por normas
infraconstitucionais. A Lei n. º 9.882/99 não criou a ADPF, ela foi prevista na Carta Magna,
sua regulamentação é que ocorreu por normas infraconstitucionais e dentro do escopo
delineado pela norma constitucional. Ao exceder a finalidade do mandamento
constitucional, o legislador infraconstitucional cometeu uma inconstitucionalidade porque
uma norma que possui o mesmo nível hierárquico das demais não pode prescrever nenhuma
forma de controle de constitucionalidade.
Ao regulamentar o incidente de constitucionalidade como se fosse argüição de
descumprimento de preceito fundamental, o legislador infraconstitucional ultrapassou os
limites expressos na Constituição, produzindo uma inconstitucionalidade material que não é
passível de convalidação. Além do que os institutos são frontalmente diversos, com
características próprias, não havendo base constitucional que ampare a criação do incidente
de constitucionalidade.
A argüição de descumprimento de preceito fundamental por equiparação ou
incidente de constitucionalidade, como a própria terminologia deixa bem claro, ocorre no
curso de um processo. Esse instrumento jurídico pode ser utilizado quando há um relevante
fundamento de controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou
municipal, inclusive os anteriores à Constituição (Art. 1º, inc. I da lei n.º 9.882/99).
O primeiro requisito é a existência de um relevante fundamento, que em uma fase
posterior gerará uma controvérsia judicial. A relevância configura-se como a magnitude da
questão judicial posta sob apreciação, considerada como imprescindível para a segurança do
ordenamento jurídico e a supremacia das normas constitucionais.
O segundo requisito é a existência de uma divergência judicial que pode ser
localizada em qualquer instância do Poder Judiciário, com relação à lei ou ato normativo,
inclusive anterior à Constituição, seja qual for o ente federativo que o realizou. O grau e a
extensão dessa divergência judicial deve ser de uma certa monta, de sorte a respaldar a
propositura da argüição. A existência de uma controvérsia infraconstitucional não é idônea
para alicerçar a impetração da mencionada ação.
182
Há a permissão para o deferimento de medida cautelar, desde que presentes o fumus
bonis juris e o periculum in mora. Ela poderá determinar que os juízes e tribunais
suspendam o andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer
outra medida que apresente relação com a matéria impugnada, com exceção da coisa
julgada.
O incidente de constitucionalidade seguiu o parâmetro dos modelos de controle
concentrado de constitucionalidade, em que a questão argüida como inconstitucional é
submetida diretamente à Corte Constitucional, toda vez que a norma for relevante para o
julgamento do caso concreto e o juiz ou tribunal considerá-la inconstitucional (Constituição
austríaca, art. 140 (1); Lei Fundamental de Bonn, art. 100, I ). Esclarece Gilmar Ferreira
Mendes: “Ao contrário do que ocorre nos modelos concentrados de controle de
constitucionalidade, nos quais a corte constitucional detém o monopólio da decisão sobre a
constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei, o incidente de inconstitucionalidade
não altera, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle de constitucionalidade,
introduzindo entre nós pela Constituição de 1891. Juízes e tribunais continuam a decidir
também a questão constitucional, tal como faziam anteriormente, cumprindo ao Supremo
Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, a uniformização da interpretação do
texto magno, mediante o julgamento de recursos extraordinários contra decisões de única ou
última instância”.235
O incidente de constitucionalidade é inconstitucional. Se fosse implantado por meio
de emenda constitucional ainda o seria, o que dirá da sua implantação por meio de norma
infraconstitucional. Ele representa um acinte contra os princípios constitucionais pelas
seguintes razões: a) somente através de emenda constitucional pode-se criar uma nova forma
de controle de constitucionalidade, do contrário estar-se-ia perpetrando uma fraude à
constituição porque faltaria supralegalidade às normas que exercem o controle de
constitucionalidade; b) estiola os princípios do juízo natural, do acesso à jurisdição e da
liberdade jurisdicional dos juízes; c) fere flagrantemente o controle difuso e a sua função
profícua que é a de defesa dos direitos dos cidadãos, o que não ajuda a cimentar um
235 MENDES, Gilmar Ferreira. Mudanças no Controle de Constitucionalidade. http: // www. neofito. com. br/ artigos/ art 01/ const 42. Htm Capturado em 25/11/2002.
183
fortalecimento na legitimidade da jurisdição constitucional, d) acrescenta uma nova
competência ao STF sem a utilização do devido instrumento legal, o que agride a
Constituição, que tem competência exclusiva para ampliar o elenco das competências do
Supremo Tribunal Federal. Com a transformação do STF em tribunal constitucional,
robustecendo a sua importância no ordenamento jurídico, suas prerrogativas devem estar
amparadas na Constituição, como requisito de sua validade.236
O aumento das competências do Supremo Tribunal Federal, e ainda mais sem
amparo na Constituição, confronta-se com a proposição de mitigar a sua esfera de
incidência, restringindo-o ao papel de tutela das normas constitucionais, sem se comportar
como uma instância recursal. Elastecer a competência do Supremo, que já convive com uma
demanda insustentável de processos, constitui verdadeiro entrave à celeridade processual e
ao fortalecimento dos direitos fundamentais. Entretanto, a regulamentação da ADPF, nos
moldes previstos na Carta Magna, não representa um elastecimento na competência do STF
porque já fora previsto originalmente, e ainda mais porque o princípio da subsidiariedade
inibe o seu uso de forma extensiva.
O incidente de constitucionalidade não pode ser compatibilizado com o controle
difuso de constitucionalidade, mesmo se levando em conta que a ADPF se configura como
uma ponte entre o controle difuso e o concentrado. Ele representa um sério risco ao pleno
funcionamento do controle difuso, deixando na orfandade a defesa das prerrogativas
constitucionais, pelo acesso mais eficaz à coletividade: o juízo de primeira instância, que
está ao alcance de todo cidadão.
O que se pretendeu foi ressuscitar o instituto da avocatória, típico da ditadura da
cúpula do judiciário e dos regimes autoritários.237 Para se coibir a propalada insegurança
236 No mesmo sentido Alexandre de Moraes: “O legislador ordinário utilizou-se de manobra para ampliar, irregularmente, as competências constitucionais do Supremo Tribunal Federal, que conforme jurisprudência e doutrina pacíficas, somente podem ser fixadas pelo texto magno. Manobra essa eivada de flagrante inconstitucionalidade, pois deveria ser precedida de emenda à Constituição. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Atlas, 2000. P. 615. 237 Define o instituto o professor Sacha Calmon: “A avocatória foi proposta pelo Presidente Collor numa de suas emendas à Constituição de 1988. O simples fato de a proposta ter partido do Executivo já demostra o incômodo que lhe causa um judiciário de 1ª instância decidido e capaz, como é o caso da Justiça Federal. Isto de lado, a avocatória é um mecanismo que permite ao Supremo Tribunal Federal chamar a si a competência para julgar causas que estiverem tramitando nos juízos e tribunais inferiores. Poderá avocar a pedido do
184
jurídica decorrente da divergência jurisprudencial, deve-se propor uma ADIn, a fim de se
obter uma decisão sobre a inconstitucionalidade da norma.
A evolução da discussão acerca da constitucionalidade por equiparação forcejou nos
meios jurídicos a firme convicção da sua inconstitucionalidade. Houve uma grande
repercussão negativa na sua implementação, o que levou os seus próprios idealizadores a
procurar outra alternativa para a sua incorporação ao universo jurídico. Ela afronta diversos
mandamentos constitucionais, não se compadecendo com a normalidade jurídica reinante
em um Estado Democrático Social de Direito, que tenta aumentar a tutela dos direitos
fundamentais e não enfraquecer o acesso da população a sua defesa.
Assim, nos últimos anos do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso,
tentou-se a sua implementação por intermédio de emenda constitucional, o que foi
decididamente arquivado pelo governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. No relatório
sobre a Reforma do Judiciário, foi apresentado pelo deputado Aloysio Nunes Ferreira um
substitutivo à PEC n. 96-A/92 instituindo o incidente de inconstitucionalidade, nos termos
seguintes: “Art.103[...]. Parágrafo 5º - O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e
entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de procurador-geral de justiça, de
procurador-geral ou advogado-geral do Estado, quando for relevante o fundamento de
controvérsia judicial sobre constitucionalidade de lei, ato normativo federal ou de outra
questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de
inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos
em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre
matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-geral da República”.
A referida proposta, apesar de ter sido mantida no Projeto de Reforma do Judiciário
(substitutivo Zulaiê Cobra), em tramitação no Senado Federal, foi rejeitada pelo Plenário da
Câmara dos Deputados.
Presidente da República ou do Procurador-Geral de Justiça ou do Ministro da Justiça, conforme venha a ser a fórmula legislativa idealizada para a iniciativa”. COELHO, Sacha Calmon Navarro. “ Avocatória”. In: Revista Trimestral de Direito Público. 2/1993, São Paulo: Malheiros. P. 191.
185
O Supremo Tribunal Federal ainda não tem uma definição acerca da
inconstitucionalidade do incidente de constitucionalidade ou ADPF por equiparação.
Entretanto, pelo firme posicionamento da doutrina e de alguns de seus ministros, esta
decisão seguramente será pela inconstitucionalidade do referido instituto jurídico.
Alguns dos ministros da Suprema Corte já se manifestaram a respeito da
controvérsia. O Min. Néri da Silveira posicionou-se no sentido de que, em face da
generalidade da formulação do parágrafo único do art. 1º da Lei n.º 9.882/99, a argüição
incidental em processos em curso não poderia ser criada por legislação infraconstitucional,
mas apenas por emenda constitucional, devendo ser realizada uma interpretação conforme a
Constituição com a finalidade de excluir o incidente de constitucionalidade.238
8.) Procedimento do Sistema Concentrado de Controle de
Constitucionalidade. Lei n.º 9.868/99 (Ação Direta de
Constitucionalidade e Ação Declaratória de
Constitucionalidade).
Com o procedimento dado a ação direta de inconstitucionalidade pela Lei n.
9.868/99, houve a garantia do caráter dialógico do procedimento das decisões do Supremo
Tribunal Federal. A possibilidade de órgãos representativos da sociedade civil manifestar a
sua opinião em sede de ação direta de constitucionalidade contribuiu para incrementar a
legitimidade das decisões do Pretório Excelso. Quanto maior for o número de órgãos ou
agentes que possam intervir nas decisões do STF, seja como amicus curiae, curador do
vínculo, custos legis etc, maior será o grau de penetração dos seus julgados na sociedade e,
conseqüentemente, menor o seu grau de rejeição.
238 ADIMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira.
186
8.1) Petição Inicial
Petição inicial é a peça formal, escrita, que inicia um processo judicial, no que deve
atender a uma série de requisitos para não ser declarada inepta. A diferença dessa peça
processual no controle abstrato para os demais procedimentos relaciona-se com as
peculiaridades da tutela da supremacia constitucional.
A petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) precisa indicar: o
dispositivo da lei ou do ato normativo questionado; os fundamentos jurídicos do pedido em
relação a cada uma das impugnações e o pedido com suas especificações.
Já na ação declaratória de constitucionalidade, a petição inicial deve conter: o
dispositivo da lei ou do ato normativo questionado; o pedido com suas fundamentações e
indicar a existência de controvérsia judicial relevante sobre o objeto impugnado.
O autor deve dar a causa petendi os fundamentos fáticos e jurídicos do pedido. A
causa de pedir pode ser próxima ou remota. A primeira são os fundamentos de fato, isto é, os
fundamentos que levaram o autor a imediatamente ajuizar a ação perante o Supremo
Tribunal Federal. A segunda são os fundamentos jurídicos. Quando o objetivo da ação direta
de constitucionalidade for obter uma decisão que declare uma interpretação conforme a
Constituição, deve o impetrante definir qual o sentido que pretende ver a norma interpretada.
Em ambas as ações diretas, se a petição inicial for genérica e abstrata, sem
especificar de forma fundamentada, o pedido de inconstitucionalidade ou o pedido de
declaração de constitucionalidade, será considerada inepta e deve ser liminarmente
indeferida pelo relator.
José da Silva Pacheco aponta os requisitos para a identificação de uma petição
inepta: “a) a que falta o pedido; b) a que falta a indicação do fundamento jurídico do pedido;
c) a que falta a indicação da lei ou do ato jurídico impugnado; d) a que falta a justaposição
de cópias da lei ou ato impugnado; e) a que faltam os documentos necessários à
187
comprovação da impugnação; f) a que não for apresentada em duas vias com os elementos
exigidos pelo art. 3º e respectivo parágrafo único da Lei 9. 868/99”.239
Exemplo de indeferimento da petição inicial, por impossibilidade jurídica do pedido,
ocorre quando o pedido tem o ensejo de concretizar o controle abstrato de lei municipal
contestada com relação à Constituição Federal. O controle abstrato de normas municipais
somente é permitido em face da Constituição estadual, a exceção de descumprimento de
preceito fundamental.
Antes do indeferimento da petição inicial deve o relator verificar se é exeqüível
sanear o vício. Caso seja possível, deve-se intimar o autor para emendar a petição em dez
dias, sob pena de indeferimento.240 O escopo da possibilidade de emendar a petição inicial é
agilizar a prestação jurisdicional, evitando postergações desnecessárias.
O recurso cabível para o indeferimento da petição inicial deve ser o agravo interno.
Não é agravo de instrumento porque não necessita formar o instrumento, haja vista todas as
informações necessárias estarem contidas na ação. Não pode ser retido porque a decisão tem
que ser imediata, sem a possibilidade de verificar seu cabimento na apreciação de um
recurso futuro.241
O órgão competente para o julgamento do agravo é o pleno do Supremo Tribunal
Federal. Como não há especificação do prazo para a sua propositura, conclui-se que o prazo
seja de dez dias, por analogia com o art. 522 do Código de Processo Civil.
A petição inicial tem que ser apresentada em duas vias. Há necessidade de que ela
seja subscrita por advogado, sendo acompanhada de instrumento procuratório, quando a
ação for impetrada por partido político, confederação sindical ou entidade de classe de
239 PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 457. 240 O pedido de aditamento da petição inicial para estender o pedido de declaração de inconstitucionalidade nos autos de ação direta deve ser requerido formalmente, não se admitindo que o mesmo seja feito oralmente pelo advogado, durante a sustentação oral que antecede o julgamento do feito. ADIMC 2159-DF, rel. Min. Néri da Silveira. 241 NERY, Nelson Jr. Recursos na ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade – Apontamentos sobre os recursos na LADIn (L 9.868/99). In: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 503.
188
âmbito nacional. Nos demais casos, conforme jurisprudência uníssona no STF, não há
obrigatoriedade do patrocínio de um advogado.
Na ação direta de inconstitucionalidade precisam ser anexados ao pedido as cópias
da lei ou do ato normativo impugnado e dos documentos necessários para comprovar a
impugnação.242 Na ação declaratória de constitucionalidade são imprescindíveis as cópias do
ato normativo questionado e dos documentos necessários para a comprovação da
procedência do pedido, atestando a existência de controvérsia judicial.
8.2) Procedimento
Chegando a ação ao Supremo Tribunal Federal, designa-se um relator dentre os seus
membros que se incumbe de estudar minuciosamente o processo e elaborar parecer que será
posto em votação. Na ação direta de inconstitucionalidade, o relator solicitará informações
ao órgão ou autoridade que realizou a lei ou o ato normativo impugnado, devendo as
mesmas serem prestadas no prazo de trinta dias contados do recebimento do pedido.243 Nada
impede, apesar de não ser provável, que o órgão ou autoridade da qual emanou o ato se
manifeste pela inconstitucionalidade do ato ou que silencie quanto ao pedido. Inexiste
amparo normativo para fundamentar a exigência de manifestação e que ele seja direcionada
para a constitucionalidade da lei ou do ato normativo.
Decorrido o mencionado prazo de trinta dias, serão ouvidos, sucessivamente, o
Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão se manifestar,
cada qual, no prazo de quinze dias. Depois da manifestação desses órgãos, respeitados os
242 Não se conhece de ação direta de inconstitucionalidade se a inicial deixa de proceder ao exame analítico dos dispositivos do ato impugnado, bem como das leis nele referidas, tendo em vista os preceitos constitucionais invocados ou violados. ADIn 2.190-CE, rel. Min. Maurício Corrêa. 243 Pela ausência de interesse subjetivo, não se aplica, no controle abstrato de constitucionalidade instaurado perante tribunal de justiça, o art. 4º da Lei n.º 8.437/92 (“compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público[...]) AgRg 1.543-SP, rel. Min. Marco Aurélio.
189
prazos legais, o relator formulará o seu relatório e pedirá pauta para o julgamento, enviando-
o a todos os ministros para que possa ser apreciado.
O Procurador-Geral da República sempre funcionará como custos legis da ação.
Quando ele impetrar a ação do controle direto, não precisará ser previamente ouvido pois já
externou anteriormente a sua opinião. Defender a atuação do Procurador-Geral novamente
ou é despicienda porque ele iria repetir o seu posicionamento anterior ou seria uma
teratologia se ele contradissesse a sua primeira manifestação.
O advogado-Geral da União, por força de dispositivo constitucional, na sua função
de curador ao vinculo tem que defender a constitucionalidade da lei ou ato normativo
impugnado, como será exposto mais adiante. Não será necessária sua atuação na ação
interventiva, na ação de inconstitucionalidade por omissão, na argüição de descumprimento
de preceito fundamental e na ação declaratória de constitucionalidade porque nessas
espécies de controle direto não há necessidade de se defender a constitucionalidade das
normas federais.
Pelo insólito procedimento da ação declaratória de constitucionalidade, que restringe
a participação dos operadores jurídicos, não contribuindo para a democratização do
exercício da jurisdição constitucional, há uma redução nos órgãos que se manifestam em
suas decisões. Recebida à ação, o relator abre vistas para o Procurador-Geral da República
que tem o prazo de quinze dias para se pronunciar. Depois do mencionado prazo o relator
formulará o seu relatório e pedirá pauta para o julgamento, enviando-o a todos os ministros
para que possa ser apreciado.
Na ação declaratória não tem sentido a atuação do Advogado-Geral da União como
defensor do vínculo porque esse é o mesmo pedido formulado pelo impetrante ao Supremo
Tribunal Federal. Inusitado é a sua manifestação porque ela se configura como uma mera
repetição do pedido e, portanto, não seria razoável que dois entes efetuassem o mesmo
pedido. Nesse tipo de ação, o Advogado-Geral da União, a pedido do relator, poderá se
manifestar como custos legis.
190
Dentro das premissas do caráter dialógico que passa a nortear o procedimento do
controle de constitucionalidade brasileiro, fundamentando as suas decisões, na audiência de
julgamento é facultada a sustentação oral pelos representantes judiciais. Essa foi uma
inovação da Lei n.º 9.868/99, o que permitiu que os advogados possam fazer sustentação
oral pelo prazo de quinze minutos, de acordo com o Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal.
O requisito para todas as decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do controle
de constitucionalidade é a mesma para todas as ações diretas de controle de
constitucionalidade, o que sofre modificação são os efeitos produzidos por cada uma dessas
ações. A decisão meritória somente poderá ser tomada na presença de, no mínimo, oito
ministros. Destes, pelo menos seis terão que se posicionar declarando a medida
inconstitucional. Caso não haja ministros suficientes, o julgamento será suspenso até que se
atinja o número necessário. Julgada a ação, far-se-á a comunicação à autoridade ou ao órgão
responsável pela expedição do ato.
Em face de que na jurisdição constitucional vigora o princípio da inércia, nemo judex
sine actore, o Supremo Tribunal Federal somente pode se manifestar quando for inquirido
por um dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal. Nas suas decisões ele se
encontra condicionado ao pedido, mas não a causa de pedir.
Devido à conseqüência de ser um processo objetivo, a sentença meritória proferida,
em todas as ações do controle abstrato, é irrecorrível, até mesmo porque o Supremo Tribunal
Federal se configura como a última instância jurídica existente no ordenamento jurídico
brasileiro. O que impossibilita até mesmo a impetração de ação rescisória.244 O único
recurso possível são os embargos de declaração.
Com a finalidade de garantir a imutabilidade das decisões do Supremo Tribunal, que
funciona como instância última da jurisdição constitucional, restringem-se os instrumentos
recursais de suas decisões para apenas permitir a impetração de embargos declaratórios.
244 Descabe ação rescisória das decisões em sede de controle concentrado. AR 1365-BA, rel. Min. Moreira Alves.
191
Assim, existindo erros formais, materiais ou de fatos, eles podem ser sanados através dos
embargos declaratórios.
Para começar o julgamento é necessária a presença de oito ministros no plenário.
Para a formalização da coisa julgada necessita-se do voto de seis membros deferindo a
pedido pleiteado na ação. Se não houver o número mínimo para a instalação da sessão ou
para a formalização da coisa julgada, deve-se suspender a audiência, recomeçando quando
obtiver o quórum exigido.
Como exemplo podemos mencionar o caso de uma sessão em que o quórum para o
deferimento de uma ação declaratória de constitucionalidade ficou em 5 x 3 (cinco votos a
favor da declaração de inconstitucionalidade e três votos contrários). Então, deve-se
suspender o julgamento, para que possa haver o posicionamento de mais ministros para a
concretização dos efeitos da coisa julgada material. (A coisa julgada apenas ocorrerá se seis
ministros se pronunciarem pela inconstitucionalidade da matéria).
As diferenças do procedimento das ações do controle abstrato de constitucionalidade
decorrem da sua taxionomia de processo objetivo, com todas as conseqüências daí advindas,
como fora mencionado anteriormente.
Não se admite intervenção de terceiros no processo, nem desistência em nenhum dos
dois casos. A vedação a intervenção de terceiros não é absoluta, o impedimento é a sua
atuação nos moldes convencionais que foi estabelecido no Código de Processo Civil. Com o
advento da Lei n. º 9.868/99 houve a permissão de participação do amicus curiae, no intuito
de fornecer maiores subsídios para a decisão por parte do órgão que exerce a jurisdição
constitucional.
Não cabe intervenção de terceiros no controle abstrato porque ele é um processo
objetivo, em que não há partes litigantes nem dedução de pretensões próprias, inexistindo
direito ou interesse subjetivo a ser tutela pela decisão do Supremo Tribunal Federal. Não
existe um interesse subjetivo, mas um interesse difuso de toda a sociedade, manifestado pela
integridade sistêmica da Constituição. Todavia, não há impedimento para a intervenção
192
assistencial ou litisconsórcio ativo entre os legitimados pela Constituição para o exercício da
legitimidade ad causam.
Segundo decisão do STF, em ação direta de inconstitucionalidade, é inaplicável o
prazo em dobro para os representantes da Fazenda Pública, por se tratar de processo objetivo
em que não há o envolvimento de interesse subjetivo do Estado.245 Durante o recesso e as
férias do Supremo Tribunal Federal fica suspenso o prazo para a prestação de
informações.246
8.3) Amicus Curiae
A função do Amicus Curiae, figura que nasceu no direito anglo-saxônico, é colaborar
com o órgão que exerce a jurisdição, fornecendo-lhe o maior número possível de
informações para que a decisão possa se dar de forma consciente. A sua atuação é uma
prática difundida nos Estados Unidos configurando-se na oportunidade que uma pessoa que
não está envolvida no processo nem como parte ou como terceiro interveniente tem para
fornecer subsídios com o intento de dirimir eventuais dúvidas que surjam durante o
julgamento.
A atuação do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade
não institui o contraditório, característica peculiar dos processos subjetivos em que existe
uma lide, oposição de interesses, entre duas partes que buscam a tutela do seu direito. O
controle abstrato é um processo unilateral, não-contraditório, no qual não existem partes;
existe um requerente, mas nenhum requerido – o objetivo é garantir a supremacia
constitucional. A participação do amicus curiae assegura o caráter dialógico do processo, em
que a manifestação de operadores jurídicos e órgãos da sociedade civil servem para
245 ADIn 1797-PE, rel. Min. Ilmar Galvão. 246 RTJ 131/966.
193
democratizar as decisões do Supremo Tribunal Federal e, assim, fundamentar a legitimidade
das decisões da jurisdição constitucional.
A lei 9.868/99 inovou no procedimento da ação direta de inconstitucionalidade ao
instituir a figura do amicus curiae, com o objetivo de garantir um caráter dialógico à
jurisdição constitucional, o que representa uma democratização do controle de
constitucionalidade, seguindo as idéias do constitucionalista alemão Peter Haberle.247
Segundo o citado autor, quanto maior for o número de pessoas que puderem se pronunciar
acerca de uma matéria, maiores serão as possibilidades de se democratizar a sua
interpretação, impedindo manuseios casuístas.O elastecimento dos operadores jurídicos
capacitados para participar das decisões da jurisdição constitucional contribui para
incrementar a legitimidade da tutela dos dispositivos constitucionais, configurando-se como
uma justificação do tipo procedimentalista.
A institucionalização do amicus curiae pela lei n. 9.868/99 incide no procedimento
da ação direta de inconstitucionalidade, mas não foi estabelecido de forma ampla no
procedimento da ação declaratória de constitucionalidade. O que foi um grave equívoco.
Desde a sua regulamentação pela Emenda Constitucional n. 3, o procedimento desse tipo
específico de ação direta não permite que se abra um intenso debate que possa arejar as suas
decisões, concretizando o caráter dialógico da jurisdição constitucional, que é um dos
elementos de intensificação de sua legitimidade.
O essencial é o aprimoramento da participação dos operadores jurídicos nos debates
das decisões da jurisdição constitucional e não a mitigação de sua participação. A
regulamentação do amicus curiae deveria ser o mesmo para todas as ações do controle
concentrado, resguardando apenas as peculiaridade que impedissem a sua incidência, o que
não é o caso da ação declaratória de constitucionalidade.
A participação do amicus curiae foi prevista de duas formas na jurisdição
constitucional: através da manifestação de órgãos ou entidades da sociedade civil desde que
247 HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: saFE, 1997. P. 22.
194
se comprove a relevância da matéria e se ateste a representatividade dos postulantes; por
intermédio de requisição de informações, perícias e pareceres, havendo a necessidade de
esclarecimento da matéria analisada ou notória insuficiência de informações. O primeiro
caso somente incide nas ações diretas de inconstitucionalidade, e o segundo caso incide
também nas ações declaratórias de constitucionalidade.
A decisão para a manifestação do amicus curiae pertence ao relator do processo, em
um ato processual que não admite a possibilidade de recurso. Porém, nada impede que
durante o curso da instrução processual o pedido seja reiterado pelo autor ou que ex officio o
relator reveja sua posição. Pela própria finalidade do mencionado instituto, o deferimento da
presença do amicus curiae somente pode ocorrer durante a instrução processual,
impossibilitando o seu deferimento quando em curso o julgamento.248
A primeira hipótese de democratização das decisões da jurisdição constitucional
acontece quando o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos
postulantes, pode ouvir, por despacho irrecorrível, no prazo de 30 dias, a manifestação de
outros órgãos ou entidades, na qualidade de Amicus Curiae, como a OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), o IAB (Instituto dos Advogados do Brasil), a CNBB (Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil), a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo)
etc.249
O objetivo não é apenas democratizar as decisões do Pretório Excelso, ao permitir a
participação de entidades sociais no controle concentrado. Ele tem igualmente a finalidade
de fornecer um maior número de informações para que as decisões do Supremo Tribunal
Federal possam ser mais precisas e condizentes com a prova carreada aos autos.
248 “Por maioria, o Tribunal, preliminarmente, deixou de referendar a admissibilidade, no processo, da Associação Paulista dos Magistrados na qualidade de amicus curiae, uma vez que a mesma formulara pedido de admissão no feito depois de já iniciado o julgamento da medida liminar. Considerou-se que a manifestação do amicus curiae é para a instrução, não sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento. Vencidos os Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda pertence.ADIMC 2238-DF, rel. Min. Ilmar Galvão. 249 Por maioria, o Tribunal, preliminarmente, deixou de referendar a admissibilidade, no processo, da Associação Paulista dos Magistrados na qualidade de amicus curiae, uma vez que a mesma formulara pedido de admissão no feito depois de já iniciado o julgamento da medida liminar. Considerou-se que a manifestação do amicus curiae é para a instrução, não sendo possível admiti-la quando em curso o julgamento. Vencidos os Ministros Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence. ADIMC 2238-DF, rel. Min. Ilmar Galvão.
195
A segunda hipótese tem ensejo com a finalidade de melhor instrução da dilação
probatória. Havendo uma maior necessidade de esclarecimento da matéria, por qualquer tipo
de motivo, ou havendo notória insuficiência das informações existentes, pode o relator, por
ato discricionário seu desde que seja fundamentado, determinar a elaboração de informações
adicionais. Essa extensão da dilação probatória pode consistir na designação de perito ou
comissão de peritos para apreciação do quaestio júris, no convite a jurisconsultos para
prestar esclarecimento sobre a temática envolvida no litígio, ou na requisição de
informações adicionais.
Para que a realização desses atos probatórios não paralisem em demasia a celeridade
processual nem transformem o Supremo Tribunal Federal em um órgão de instrução, o que
não é o caso mesmo com a teratológica amplitude de competências que lhe foi atribuída, a
lei determinou o prazo de trinta dias para a realização da requisição das informações,
perícias e audiências. A necessidade de maiores informações justifica a possibilidade de
solicitar maiores subsídios aos Tribunais Superiores, aos Tribunais Federais e aos Tribunais
Estaduais acerca da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição.
8.4) Medida Cautelar
A medida cautelar tem o escopo de garantir o desiderato almejado pelo controle
direto de constitucionalidade, impedido que o interstício temporal necessário para a
prolatação da sentença possa cercear sua tutela. Ela, de forma imediata, antecipa
provisoriamente a decisão definitiva.
A medida cautelar pode ser proferida na ação direta de inconstitucionalidade, na ação
declaratória de constitucionalidade e na argüição de descumprimento de preceito
fundamental.250 Por motivos que são inerentes ao procedimento das ações, não pode ser
250 A possibilidade de cautelar em sede de controle concentrado somente foi concretizada com a Emenda Constitucional n.º 7 de 1977, que acrescentou a alínea P ao art. 119 da Constituição pretérita, conferindo ao
196
proferida ação cautelar na ação direta interventiva e na ação de inconstitucionalidade por
omissão. A primeira porque é uma exceção restrita à autonomia dos entes federativos, não
sendo passível de ser executada sem uma decisão definitiva, protegida pela segurança da
coisa julgada. No segundo caso, em decorrência da concepção exacerbada do princípio da
separação dos poderes, que concebe a decisão da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão como declaratória, sem apresentar possibilidade de concretude normativa. Vários
julgados do Supremo Tribunal Federal firmaram o entendimento de que não se pode
pretender que um simples provimento cautelar possa antecipar efeitos positivos
inalcançáveis pela própria decisão final emanada pelo Pretório Excelso.251
Para que a medida cautelar seja deferida na ação direta de inconstitucionalidade, faz-
se necessário um quórum de maioria absoluta dos votos dos membros do STF, presentes no
mínimo dois terços dos seus membros. 252 Durante o período de recesso, o relator poderá
deferi-la sem a presença dos demais membros, o que é possível diante do caráter de urgência
da medida, adequando-se ao próprio escopo de uma decisão cautelar. A decisão monocrática
do Ministro plantonista está sujeita à confirmação do Tribunal, nas primeiras sessões após o
recesso.
Na ação direta de inconstitucionalidade haverá o pronunciamento dos órgãos ou
autoridades do qual a lei ou o ato normativo tiver emanado, no prazo de cinco dias, antes da
decisão sobre o deferimento da medida cautelar, funcionando esse procedimento de forma
sólita. O Tribunal poderá deferir a medida cautelar sem a audiência dos mencionados órgãos
ou autoridades apenas em caso de excepcional urgência.
Supremo Tribunal Federal competência para decidir o pedido de medida cautelar nas representações oferecidas pelo Procurador-Geral da República. 251 RTJ 133/569, rel. Min. Marco Aurelio, ADIn 267-DF, rel. Min. Celso de Mello. 252 “Esse problema gerou, no Tribunal, há pouco tempo, uma discussão que terminou com uma conclusão unânime: toda vez que a Corte suspende a eficácia de uma norma, (através de medida cautelar) na realidade, o efeito dessa suspensão é um efeito muito mais grave do que à primeira vista parece ser. Ou seja, toda vez em que há suspensão da eficácia de uma norma, todos os processos em que há necessidade da aplicação daquela norma ou, pelo menos, do exame de sua aplicação para saber se a ela se subsume o caso concreto ou não, devem ser suspensos. E devem ser suspensos por uma razão singelíssima: é que esta norma tem a sua eficácia suspensa apenas provisoriamente. Conseqüentemente, é possível que, no julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, a decisão seja contrária à adotada quando da concessão dessa liminar. E, conseqüentemente, aquela norma que fora suspensa, volta a ter sua eficácia plena”. Conferência inaugural do XXIII Simpósio Nacional de Direito Tributário proferida pelo Min. Moreira Alves na Capital Paulista em outubro de 1998.
197
Ao apreciar o pedido cautelar da ADIn, o relator, julgando indispensável, ouvirá o
Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, no prazo de três dias. É uma
faculdade discricionária do relator, que serve para muni-lo de maior quantidade de
informações.
Na ação direta de inconstitucionalidade, havendo pedido de medida cautelar, o
relator, considerando a relevância da matéria e sua importância para a ordem social e a
segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, do órgão
do qual emanou a lei ou ato impugnado, e informações do Advogado-Geral da União e do
Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o
processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.
Dessa forma, pode o relator conceder a tramitação da ação direta de inconstitucionalidade
um procedimento mais rápido, devido a premências da conjuntura fática que exijam uma
decisão meritória mais célere.
É um prerrogativa discricionária do relator, necessitando ser fundamentada, adotar o
procedimento mais célere. Todavia, também é uma prerrogativa do Egrégio Tribunal acerca
da data do julgamento. Esse procedimento mais rápido se justifica diante da necessidade de
uma rápida decisão de mérito, garantindo a segurança do ordenamento, haja vista que o
deferimento da decisão cautelar é provisório, sendo possível a sua modificação na decisão de
mérito. Pode até mesmo a cautelar ser indeferida e o relator, diante da magnitude da matéria,
adotar o procedimento mais célere para a decisão de mérito.
Concedida à medida cautelar, o STF tem o prazo máximo de dez dias para publicar a
decisão, parte dispositiva, no Diário Oficial. A comunicação da decisão também pode ser
feita através de telegrama, ao órgão do qual emanou a norma ou ato normativo, sendo a
publicação feita posteriormente.
A medida cautelar tem eficácia erga omnes e produz efeitos ex nunc, salvo se o
Supremo Tribunal Federal expressamente estipular o contrário, ou seja, conceder-lhe efeitos
ex tunc. Até a edição dessa lei, o efeito da concessão da medida cautelar somente podia ser
198
ex nunc, já que prevaleceu a tese defendida pelo Min. Moreira Alves.253 Atualmente, com a
nova regulamentação, pode o STF decidir de acordo com a conjuntura fática se os efeitos da
concessão da medida cautelar serão ex nunc ou ex tunc, o que aumenta o seu grau de
discricionariedade. Os efeitos ex nunc não são a regra, muito pelo contrário, configuram-se
como exceção, só devendo ser concedidos quando houver fundados motivos, que devem ser
fundamentalmente justificados.
O deferimento da liminar torna aplicável a legislação anteriormente vigente, exceto
se houver disposição em contrário. Não se pode falar neste caso de repristinação porque a lei
que revogou a norma anterior foi declarada inconstitucional e, portanto, expulsa do
ordenamento jurídico. Essa disposição vigente no art. 11, § 2°, da Lei 9. 868/99, traz como
conseqüência que o deferimento de uma liminar, com a transitoriedade do seu provimento
que é uma das suas características, tem o efeito de retirar a vigência de uma norma jurídica.
Assim, uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em caso de recesso tomada de forma
monocrática, pode retirar uma lei do ordenamento, o que mostra a força dessa Egrégia Corte
e a necessidade de se aumentar a sua legitimação.
A conclusão desse dispositivo legal é que o deferimento da medida cautelar tem um
efeito não apenas na eficácia da norma, mas na sua própria validade, aumentando a
incidência da jurisdição constitucional. Devido a essa prerrogativa, a medida cautelar na
jurisdição constitucional tem uma maior intensidade do que quando ela é utilizada nos
procedimentos ordinários.
Repristinação é o fenômeno no qual uma lei volta novamente a vigorar quando a lei
que a revogou perde também sua validade; ou seja, se A é revogado por B e sendo B
suprimido por C, o efeito repristinatório seria o ressurgimento de A. O ordenamento jurídico
brasileiro não admite o fenômeno da repristinação.
253 “Quando suspendemos liminarmente a vigência de uma lei, na realidade, não estamos declarando sua inconstitucionalidade, mas estamos apenas evitando que ela, a partir da concessão da liminar, produza efeitos negativos para o tesouro, tendo em vista o interesse público. Se não fosse assim, com a concessão de liminar, teríamos que obrigar retroativamente à devolução todos os que já tivessem recebido. Por isso, sempre me pareceu que a eficácia da liminar é apenas ex nunc, ou seja, a partir do momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere. Não se trata de suspensão equivalente à do Senado, que é suspensão em decorrência de declaração de inconstitucionalidade, e, portanto, definitiva, razão por que a expressão mais apropriada seria a de retirada de vigência”. Rp n. 1.391/ CE. rel. Min. Moreira Alves.
199
No caso do controle de constitucionalidade não podemos falar desse instituto
jurídico, em decorrência que a norma declarada inconstitucional com efeitos ex tunc, é
considerada como nula, não produzindo efeitos na seara jurídica. Portanto, a norma anterior
é considerada como válida, sem que nunca fosse considerada revogada.
Entretanto, em alguns casos, com a declaração da norma posterior como
inconstitucional, considerando-a nula, por razão de segurança jurídica e de proteção a boa-fé
dos cidadãos, há necessidade de também haver a declaração da anterior como
inconstitucional. Para isso, é necessária a especificação no pedido para que seja declarada a
inconstitucionalidade da norma anterior e da norma posterior.
Na ação declaratória de constitucionalidade, para que a medida cautelar seja tomada,
faz-se necessário uma decisão com o quórum de maioria absoluta de votos dos membros do
STF, presentes na sessão pelo menos oito Ministros. O efeito da cautelar não é retirar a
norma do ordenamento, mas determinar que todos os juízes e tribunais suspendam os
processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação até o seu
julgamento em definitivo. A decisão na liminar não extingue o processo, apenas paralisa o
seu procedimento, a fim de que se aguarde a decisão final de mérito.
Cabe agravo da decisão do relator que indeferir o pedido de medida cautelar. Além
do recurso mencionado, cabe embargos de declaração, para tentar corrigir omissões,
contradições ou obscuridades. Das demais decisões do relator não cabe nenhum tipo de
recurso.
Não há nenhum impedimento para que o relator reveja a sua decisão, seja de ofício
ou por intermédio de requerimento do autor. As questões resolvidas pelo relator não
precluem e podem ser requeridas novamente pelo autor. O relator também tem outras
funções relevantes, como deferir provas, designar perícias e requisitar informações. De igual
forma, é de sua competência decidir acerca do cabimento ou não da petição inicial.
O deferimento da ação declaratória de constitucionalidade produz efeitos diversos
dos efeitos produzidos pela ação direta de inconstitucionalidade em razão da finalidade dos
dois institutos. No primeiro tipo de ação do controle concentrado há como efeito da cautelar
200
a suspensão de qualquer processo que verse sobre a matéria suscitada, esperando decisão
final do mérito, claro que ressalvadas as decisões transitadas em julgado. No segundo tipo de
ação do controle concentrado suspende-se apenas à eficácia da lei ou ato, não afetando
demais processos judiciais que tentem nas instâncias inferiores invalidar os efeitos já
produzidos pela lei impugnada. A ilação que se pode chegar das duas espécies diversas de
provimentos cautelares é que na ação declaratória de constitucionalidade existe um efeito
vinculante que afeta todos os processos que tenham trâmite nas demais instâncias
judiciárias, mas que perfilem o mesmo objeto impugnado na referida ação.
Na ação declaratória a eficácia da medida cautelar é erga omnes e o efeito em regra é
ex nunc. Neste tipo de ação, como apenas o Procurador-Geral da República se pronuncia,
não cabe procedimento mais célere para o julgamento do mérito.
A parte dispositiva da decisão da ação declaratória deve ser publicada no Diário
Oficial no prazo máximo de dez dias. Uma vez concedida a cautelar, o Supremo Tribunal
Federal tem o prazo de cento e oitenta dias para proferir a decisão de mérito, sob pena de
perda da eficácia do provimento cautelar. Passados os cento e oitenta dias sem que o mérito
da ação tenha sido julgado, a medida liminar não mais persistirá, independente de qualquer
posicionamento do Supremo.
8.5) Efeito Dúplice
Efeito dúplice ou ambivalente ou efeito de sinal trocado sinaliza que a decisão da
ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade podem,
ambas, produzir dois efeitos: se a primeira não for admitida, os efeitos decorrentes da
decisão serão no sentido de declarar a constitucionalidade da lei ou do ato normativo; se a
segunda não for admitida, os efeitos decorrentes da decisão serão no sentido de declarar a
inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.
201
Esse efeito advém da concepção de que a ação direta de inconstitucionalidade tem a
mesma taxionomia da ação declaratória de constitucionalidade com sinal trocado. A
conseqüência da decisão seria a mesma, apenas com desiderato inverso.
Portanto, ao julgar que uma determinada lei ou ato normativo não é inconstitucional,
imediatamente o STF declara a sua constitucionalidade e ao julgar que uma determinada lei
não é constitucional, imediatamente ele declara a sua inconstitucionalidade. Em ambos os
casos os efeitos são vinculantes.
8.6) Extensão dos Efeitos das Decisões do STF
A maior parte da doutrina e da jurisprudência brasileira firmou posição de que a lei
ou ato normativo declarado inconstitucional é nulo, sendo a sentença que a proferiu
classificada como declaratória, e, portanto, a extensão dos seus efeitos tipificados com ex
tunc. Com isso, como regra geral, a extensão temporal dos efeitos das ações diretas é ex
tunc.
A mencionada regra geral começou a sofrer exceções com a edição da Lei n.º
9.868/99 que possibilitou ao Supremo Tribunal Federal, declarando a inconstitucionalidade
da lei ou ato normativo, mediante o quórum qualificado de 2/3 dos seus componentes, e
levando em conta razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, modificar
os efeitos ex tunc, tidos como regra geral, para ex nunc ou pro futuro ou restringir ainda os
efeitos daquela declaração.254
254 A ADIn n.º 2.154, impetrada pela Confederação Nacional dos Profissionais Liberais e a ADIn
2.258, impetrada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, impugna algumas disposições implementadas pela Lei n.º 9.688/99. A primeira - ADIn 2154 , da Confederação Nacional dos Profissionais Liberais -, além de imputar ao diploma ilegítima omissão parcial atinente às garantias do contraditório e da ampla defesa no processo da ADC , argüi a inconstitucionalidade dos arts. 026 , in fine - no que veda a ação rescisória das decisões definitivas dos processos de controle direto que disciplina - e do art. 027 - que autoriza ao STF a manipulação da eficácia temporal da declaração de inconstitucionalidade . A segunda - ADIn 2258 , da Ordem dos Advogados do Brasil -, impugna a validade desse mesmo art. 027 e mais a do art. 011 , § 002 º ,
202
Assim, há um maior espaço para decisões discricionárias por parte do Supremo
Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. De acordo com a conveniência do caso
concreto, com a finalidade de atender a segurança jurídica e ao interesse social, a extensão
dos efeitos das decisões pode ser ex tunc, ex nunc ou pro futuro. Ou seja, o citado
dispositivo normativo aumentou a esfera de discricionariedade de atuação do STF, sem,
concomitantemente, incrementar a legitimidade das suas decisões judiciais, o que serviu
para enfraquecer o grau de intensidade da jurisdição constitucional.
Para a modificação dos efeitos para ex nunc ou pro futuro, mesmo com a obtenção
do quórum de dois terços, deve-se observar se os critérios de segurança jurídica ou de
interesse social relevante amparam a decisão. Para isto, uma análise atenta dos fatos mostra-
se imprescindível, verificando se há adequação para a sua aplicação. A declaração de efeitos
ex tunc apenas pode ser modificada se diante do caso concreto forem evidenciadas a situação
de atentado a segurança jurídica ou ao interesse social.
Além da necessidade do preenchimento dos requisitos fáticos, há necessidade do
preenchimento do requisito procedimental que é o quórum de dois terços dos ministros do
Supremo Tribunal Federal, garantindo a decisão um maior consenso dentro do tribunal.
Pelas exigências fáticas e procedimentais a maior discricionariedade do Supremo Tribunal
Federal, conclui-se que a regra do controle direto continua a ser a declaração de nulidade da
norma ou ato normativo eivado como inconstitucional, atribuindo-lhe efeitos ex nunc.
O efeito pro futuro da norma significa que ela pode ser declarada inconstitucional e
ainda assim continuar a produzir efeitos até determinada data no futuro, em razão da
segurança jurídica que deve permear o sistema jurídico.
O Supremo Tribunal Federal poderá ainda declarar a inconstitucionalidade sem a
pronúncia de nulidade, como no caso de lesão ao princípio da isonomia, estipulando um
prazo razoável para que o legislador possa sanear a norma ou ato normativo. Nesses casos é
in fine - que admite possa o Tribunal , ao deferir medida cautelar - a do art. 021 - que admite consista a medida cautelar na ADC na " determinação de que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processo que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação ate seu julgamento definitivo ". Em ambas , há pedido cautelar. As mencionadas ações aguardam julgamentos.
203
de melhor alvitre o STF deixar a norma válida e eficaz no ordenamento jurídico, sob pena de
suprimir uma vantagem ou gerar prejuízos indesejáveis a determinadas categorias.
A argumentação para a introdução de maior discricionariedade nos efeitos da
declaração de inconstitucionalidade foi o de possibilitar ao Supremo Tribunal Federal fazer
frente a determinadas situações que não se adequavam à regra de efeitos ex tunc, fazendo
com que, em alguns casos, o Egrégio Tribunal preferisse declarar a constitucionalidade de
leis flagrantemente inconstitucionais em virtude da segurança jurídica ao invés de declará-
las inconstitucionais e correr o risco de gerar um caos social.
Na seara do direito comparado, a Suprema Corte dos Estados Unidos vem
reiteradamente decidindo que as decisões acerca do controle de constitucionalidade não
podem se ater a padrões rígidos, que não se acomodam com a realidade dos fatos. As
decisões da Suprema Corte podem ser sem eficácia retroativa (propective overruling),
principalmente nos casos que introduzem modificações nas decisões; retroativa, mas
aplicando-se apenas aos casos pendentes (limited prospectivity); e em outros sem a
possibilidade de decretação de eficácia retroativa de forma absoluta (pure proipectivity).255
A Constituição portuguesa de 1976, após a Lei Constitucional de n.º 1/82, de 30 de
setembro, seguiu a mesma direção ao definir no seu art. 282º - 4 : “Quando a segurança
jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser
fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.º
1 e 2”.
Em sentido contrário à inovação de flexibilização da extensão das decisões do
Supremo Tribunal Federal se posiciona Ives Gandra: “Em face desse raciocínio, não entendo
viável em nosso ordenamento – não é a opinião de Gilmar Ferreira Mendes – a adoção de
instituto semelhante ao do direito alemão, de se dar eficácia ex nunc às decisões definitivas,
se oito dos Ministros da Suprema Corte assim decidirem. Tal entendimento pode gerar,
principalmente no campo do direito tributário, a irresponsabilidade impositiva, com a
255 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 24 ed., Atualizada por Arnold Wald e Gilmar Ferreira Mendes. Malheiros: São Paulo, 2002. P. 362.
204
possibilidade de exações inconstitucionais, mesmo após a decisão definitiva da Suprema
Corte, terem seus inconstitucionais efeitos perpetuados, entendendo-se o Estado – que
violentou a Constituição – autorizado a permanecer com o produto de arrecadação ilegítima,
pela eficácia ofertada à decisão definitiva”.256
A extensão subjetiva da eficácia das decisões do controle abstrato de
constitucionalidade, em regra geral, é erga omnes, inclusive na ação de descumprimento de
preceito fundamental, na interpretação conforme a Constituição e na declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto.
8.7) Efeito Vinculante
Efeito vinculante, como a própria terminologia esclarece, é a vinculação dos poderes
estabelecidos as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de jurisdição
constitucional. Ele foi uma inovação bastante discutida da Lei n.º 9.868/99, ao instituir o
efeito vinculante também para as ações diretas de inconstitucionalidade, o que antes era
restrito à ação declaratória pela Emenda Constitucional n.º 3.257 O efeito vinculante incide
em relação aos órgãos do Poder Judiciário e aos órgãos da administração pública, em seus
três níveis.
Expressa o parágrafo único do art. 28 da mencionada lei: “A declaração de
inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito
vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal,
estadual e municipal”.
256 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 206. 257 O STF entendeu caracterizado desrespeito ao efeito vinculante pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, proferido na medida cautelar da ADIn 2049-RJ, que suspendeu a cobrança de contribuição previdenciária sobre servidores estaduais aposentados, pensionistas e beneficiários. Assim, deferiu liminar em ação de reclamação. Rcl (QO) 1507-RJ, rel. Min. Néri da Silveira.
205
A argumentação para defender o efeito vinculante na ação direta de
inconstitucionalidade parte do pressuposto de que esta mencionada ação é uma ação
declaratória de constitucionalidade com sinais trocados, possuindo ambas caráter duplo ou
ambivalentes.258 Se houve explicitamente a concessão do efeito vinculante para a ação
declaratória e se elas têm a mesma natureza, então, inexoravelmente, seguindo esse
raciocínio, terão as mesmas prerrogativas.
Ives Gandra e Gilmar Ferreira Mendes admitem o efeito vinculante das ações diretas:
“A Lei n.º 9.868/99, por sua vez, em seu art. 28, parágrafo único, trouxe afinal um
tratamento uniforme e coerente à matéria, prevendo que as declarações de
constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a
Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm
eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder judiciário e
da Administração Pública federal, estadual e municipal”.259
Apesar de o s argumentos narrados anteriormente, o efeito vinculante introduzido
pela Lei n. 9.868/99 é nulo, no que fere os dispositivos contidos na Constituição,
principalmente devido ao princípio da independência dos poderes. Ainda que se admita que
o efeito vinculante é constitucional, ele somente poderia ser implantado através de emenda à
Constituição e nunca através de uma lei ordinária, ou seja, apenas o Poder Reformador teria
a competência de implementar o efeito vinculante.
Os principais óbices para a concretização do efeito vinculante seriam o acinte ao
princípio da separação dos poderes, ao princípio do acesso à justiça e a independência dos
juízes. Dotando as decisões do controle direto de efeitos vinculantes há uma preponderância
do Supremo Tribunal Federal em detrimento dos demais poderes, principalmente porque há
uma enorme carência de legitimidade de suas decisões. Essa maior amplitude de atuação da
jurisdição constitucional impede ainda o acesso à justiça e estiola a independência dos juízes
porque as instâncias judiciárias inferiores teriam que obedecer ao teor do que fora firmado
258 Rcl (AgR-QO) 1.880-SP, rel. Min. Maurício Corrêa. 259 MARTINS, Ives Gandra da Silva & MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001. P. 338.
206
pelas decisões do STF, limitando a apreciação dos casos postos à sua apreciação e mitigando
o princípio da liberdade racional motivada.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar uma questão de ordem na
Reclamação n.º 1.880, ajuizada pelo município de Turmalina, decidiu, por maioria dos
votos, declarar a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 28 da Lei n.º 9896/99,
admitindo, assim, que todas as ações diretas, bem como a interpretação conforme a
Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm efeito
vinculante.260
A decisão foi tomada pelo voto de oito ministros, posicionando-se em sentido
contrário o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio.
O ministro Sepúlveda Pertence defendeu a possibilidade de efeito vinculante: “Quando
cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá
de ser atribuída á decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”.261 No mesmo
sentido o ministro Gilmar Galvão: “O efeito vinculante decorre do particular papel político-
institucional desempenhado pela Corte, que deve zelar pela observância estrita da
Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas
controvérsias constitucionais”262
Afirmou o ministro Moreira Alves em sentido contrário ao efeito vinculante: “A lei
nesse ponto é inconstitucional, como é inconstitucional o artigo 27 (refere-se a atos
normativos do TST), que vai contra a aquilo que é imanente ao nosso sistema, ou seja, que o
260 Notícias do STF, 06/11/2002: “Na reclamação, o município de Turmalina afirmou que o presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região desrespeitou a decisão do STF na ADIn 1662. No julgamento da ADIn, os ministros declararam inconstitucional atos normativos do TST que previam o seqüestro de recursos financeiros municipais, para pagamento de precatórios oriundos de condenações trabalhistas impostas à Fazenda Municipal. No entanto, o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, não conheceu da Reclamação. De acordo com o ministro, o município não tinha legitimidade para ajuizar a ação. O município, inconformado com a decisão, recorreu. Iniciado o julgamento de uma questão no agravo regimental, em 23 de maio deste ano, o ministro Maurício Corrêa propôs que todos as pessoas que forem atingidas por decisões contrárias à decisão final do STF em ação direta de inconstitucionalidade sejam consideradas como parte legítima para propor reclamação, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 28 da Lei 9868/99. O ministro Moreira Alves havia sugerido que se ouvisse o Procurador-Geral da República que posteriormente deu parecer pela constitucionalidade do dispositivo. Hoje a maioria dos ministros seguiu o relator, abrindo divergência o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio. 261 RCL-1880. 262 RCL-1880.
207
efeito dessas declarações é desconstitutivo, tendo em vista a circunstância de que nós temos
ao lado do controle concentrado, o controle difuso, e não é possível haver um controle com
uma eficácia e outro com outra diferente quando eles visam, em última análise, ao mesmo
objetivo”.263 No mesmo sentido, negando efeito vinculante a todas as ações do controle
direto de constitucionalidade, asseverou o ministro Marco Aurélio: “As decisões do
Supremo Tribunal Federal se impõem, não pelo papel, pelo fato de um dispositivo de lei
ordinária dizer que essas decisões são obrigatórias, mas pela respeitabilidade, pelo conteúdo
dessas mesmas decisões. Devemos fugir de tudo que leve à generalização. A tendência do
homem é se acomodar e a evitar o maior esforço”.264
9.) Técnicas de Decisão do Controle de Constitucionalidade
A sociedade, hodiernamente, desenvolve-se em uma velocidade abissal, o
incremento dos meios de comunicação provocou uma fantástica possibilidade de
conhecimento; as inovações tecnológicas aumentam a cada dia. Todo esse progresso
geométrico provoca da mesma forma infindáveis problemas, que até bem pouco tempo atrás
não eram imagináveis.
Na tentativa de exercer uma prestação jurisdicional que corresponda ao avolumar dos
litígios, o Supremo Tribunal Federal deve igualmente inovar nas suas técnicas de decisões
judiciais. A doutrina que nasceu do caso Marbury versus Madison envelheceu diante das
inovações sociais. O STF não pode mais ficar adstrito a reconhecer a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade das matérias postas à sua apreciação.
O regime democrático brasileiro exige um posicionamento mais enérgico por parte
do Egrégio Tribunal para contribuir no processo de realização dos direitos e garantias
fundamentais. A sua postura não pode ser mais a da inércia, cômoda para a manutenção dos
263 RCL-1880. 264 RCL-1880.
208
privilégios das elites econômicas, o posicionamento exigido é um posicionamento pró-ativo,
no sentido de aprimoramento da jurisdição constitucional.
Por outro lado, há uma necessidade premente de aumento na legitimidade das
decisões da jurisdição constitucional, como forma de incrementar também a força normativa
da Constituição. Essa inovação nas técnicas de decisão judicial visa torna a tutela
constitucional mais eficiente e ao mesmo tempo densificar a sua legitimidade por meio de
uma justificação procedimental que irá se somar com a justificação substancialista.
Dentro desse diapasão, serão analisadas as técnicas de decisões judiciais para fazer
frente à diversidade de problemas apresentados.
9.1) Interpretação Conforme a Constituição e Inconstitucionalidade Parcial
sem Redução de Texto.
A interpretação conforme a Constituição, além de fazer parte de um processo
hermenêutico, é um tipo de controle de constitucionalidade no qual, sem alteração na
literalidade do texto legal, determina-se a sua interpretação para adequação aos dispositivos
da Lei Maior.265 A norma permanece no ordenamento jurídico, realizando-se uma
especificação no seu significado, devendo os operadores jurídicos se ater a essa estipulação.
O seu nascimento pode ser creditado aos Estados Unidos, baseada na tese esculpida
pelo juiz Marshall de que todas as leis devem ser interpretadas em harmonia com a
Constituição, in harmony with the Constitution, sendo esse princípio agasalhado pela
Suprema Corte norte-americana. Posteriormente, o princípio se espraiou para vários outros
países.
265 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 940.
209
O princípio da interpretação conforme a Constituição não se deriva apenas do
princípio da presunção de constitucionalidade das normas, em que as leis devem ser
consideradas constitucionais até posicionamento em contrário do Poder Judiciário. Justifica-
se principalmente na obediência do princípio do aproveitamento máximo dos atos jurídicos,
devendo ser declarados inconstitucionais tão-somente quando não houver possibilidade de
adequação a Lei Maior.
Sobre o assunto, esclarece Gilmar Ferreira Mendes: “Também entre nós utilizam-se
doutrina e jurisprudência de uma fundamentação diferenciada para justificar o uso da
interpretação conforme a Constituição. Ressalta-se, por um lado, que a supremacia da
Constituição impõe que todas as normas jurídicas ordinárias sejam interpretadas em
consonância com seu texto. Em favor da admissibilidade da interpretação conforme a
Constituição milita também a presunção da constitucionalidade da lei, fundada na idéia de
que o legislador não poderia ter pretendido votar lei inconstitucional”.266
Como condição para a interpretação conforme a Constituição, deve existir mais de
uma interpretação cabível para a norma de acordo com os métodos hermenêuticos, devendo
a opção escolhida ser aquela que permita uma maior compatibilidade com o caráter
sistêmico da Lei Maior.267 Outras interpretações que não se adeqüem a Constituição devem
ser relegadas, pois fragilizariam a sua força normativa. Se houver mais de uma interpretação
possível condizente com a Lei Maior, a opção escolhida deve ser aquela que fortaleça mais o
seu caráter sistêmico, em decorrência do princípio da unidade da Carta Magna, em que os
diversos princípios devem ser interpretados de forma coesa e harmônica, com a finalidade de
densificar a sua força normativa.
A sua finalidade é por intermédio de processos hermenêuticos evitar o surgimento de
inconstitucionalidades contra a Constituição Federal, sejam afrontas normativas, sejam
266 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1996. P. 270. 267 “Se uma interpretação, que não contradiz os princípios da Constituição, é possível segundo os demais critérios de interpretação, há de preferir-se a qualquer outra em que a disposição viesse a ser inconstitucional. A disposição é então, nesta interpretação, válida. Disto decorre, então, que dentre várias interpretações possíveis segundo os demais critérios sempre obtém preferência aquela que melhor concorde com os princípios da Constituição. Conformidade à Constituição, é portanto, um critério de interpretação”. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste GulbenKian, 1997, P. 480.
210
afrontas axiológicas. A inconstitucionalidade pode não ocorrer pura e simplesmente na
norma, mas na carga axiológica com a qual ela é interpretada, então, evitam-se
interpretações que podem ir de encontro ao espírito da Lei Maior. A interpretação conforme
a Constituição exige do intérprete uma análise dialógica, entre o ser e o dever ser, entre a
normatividade e a faticidade, operando com os valores que circundam a Lei Maior, de forma
que não haja espaço para o aparecimento de gaps ou hiatos normativos, mantendo a sua
atualidade e eficácia.268
O seu resultado sempre será um juízo de afirmação da constitucionalidade da norma
que está sendo impugnada como inconstitucional, precisando o sentido de sua interpretação.
O limite para esse tipo de controle de constitucionalidade é que a literalidade do
texto da norma não pode ser alterada (na interpretação conforme a Constituição com redução
de texto parte da norma é retirada), impedindo, assim, que o judiciário funcione como se
fosse um órgão legislativo, realizando produções normativas. Portanto, a interpretação
conforme a Constituição deve se limitar a processos hermenêuticos, com a manutenção da
estrutura normativa produzida pelo Poder Legislativo. Se a literalidade do texto
impossibilitar a harmonização com a Lei Maior, não existirá outra solução, inexoravelmente
deverá ser declarado a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.
A interpretação conforme a Constituição é distinta da interpretação constitucional; a
segunda é o gênero do qual a primeira se configura a espécie. Aquela é um dos mecanismos
da jurisdição constitucional, zelando pela supremacia dos mandamentos da Carta Magna;
enquanto esta é uma operação lógica que precede o atuar de qualquer operador jurídico.
Explica a diferença o Prof. Paulo Bonavides: “Interpretar a Constituição e interpretar
conforme a Constituição são, todavia, operações distintas, que o aplicador nem sempre
percebe ou toma em consideração. Sendo ambas indispensáveis ao exame de
constitucionalidade das leis, a segunda tem uma latitude que pode fazê-la inadmissível se
houver abuso em sua aplicação, suspeita de criar direito novo, transgressão de limites, ou
268 DANTAS, Ivo. Constituição Federal. Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. P.18.
211
erro de concretização da norma além de linhas materiais de razoabilidade que o método
concede ao intérprete”.269
Como não há a elaboração de juízo de desvalor contra qualquer incidência da norma,
esse tipo de decisão judicial pode ser utilizado por qualquer órgão jurisdicional, seja juízo
monocrático ou colegiado, sem a necessidade de cumprir a reserva de plenário no controle
difuso de constitucionalidade.
A interpretação conforme a Constituição pode ser sem redução de texto ou com
redução de texto, suprimindo a parte da lei considerada inconstitucional. Ela poderá ser sem
redução de texto e conferir a norma uma interpretação adequada a Carta Magna. E pode ser
também sem redução de texto, mas excluindo da norma determinada interpretação que a
afrontava (nesse último caso específico será uma declaração parcial de inconstitucionalidade
sem redução de texto).
Na interpretação conforme a Constituição como redução de texto, o Supremo
Tribunal Federal além de realizar uma interpretação constitucional, atua suprimindo parte do
texto que não se adequava aos mandamentos constitucionais. Como exemplo: O STF, por
maioria, conheceu em parte medida liminar em ADIn para excluir do texto do dispositivo
legal, (Lei n.º 2.531/99, art. 22: A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos,
empregos e funções públicas da Administração Direta e Indireta do Poder Executivo [...],
incluídas as vantagens pessoais ou outra de qualquer natureza, não poderão exceder a R$
8.000,00) a expressão “vantagens pessoais”, realizando uma interpretação conforme a
Constituição, com redução de texto, para dela subtrair as vantagens relativas à natureza ou
local de trabalho, conforme consta do § 1º, do art. 39, da Constituição na sua redação
primitiva (§ 1º do art. 39: A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia
de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre
269BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Por um Direito Constitucional de luta e resistência. Por uma nova Hermenêutica. Por uma nova repolitização da legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 256.
212
servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de
caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho).270
Pode-se apontar como exemplo de interpretação conforme a Constituição sem
redução de texto, excluindo da norma determinada interpretação que a afrontava (declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto), o seguinte caso: “Deferida em parte
medida cautelar em ação direta proposta pelo Governador do Estado de Minas Gerais contra
alínea “d” do inciso XXIII do art. 62 da Constituição estadual, com a redação dada pela EC
26/97 (Art. 62 – Compete privativamente à Assembléia Legislativa[...].XXIII – Aprova,
previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha: [...] d) dos Presidentes das
entidades da administração pública indireta, dos Presidentes e Diretores do Sistema
Financeiro Estadual;) para, conferindo à norma impugnada interpretação conforme a
Constituição Federal, restringir o citado dispositivo às autarquias e fundações públicas. As
demais possibilidades de incidência do preceito – isto é, aquelas relativas aos empregados
das sociedades de economia mista e das empresas públicas – ofenderiam, à primeira vista, o
art. 52, III, f, da Constituição. (“Compete privativamente ao Senado Federal: [...] III –
aprovar previamente, por voto secreto, após argüição pública, a escolha de: [...] f) titulares
de outros cargos que a lei determinar”.), uma vez que não estão inseridas no conceito de
cargo público.271
A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, igualmente chamada de
declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, é uma forma de controle de
constitucionalidade em que a literalidade do texto da norma não sofre alteração porque a
inconstitucionalidade é restrita, há apenas redução na sua hipótese de incidência. Denomina-
se de inconstitucionalidade parcial porque resta preservado o texto da norma, sendo
declarado inconstitucional os preceitos implícitos do seu texto que se desassociam dos
parâmetros constitucionais. Normalmente ocorrem em comandos normativos que
apresentam amplo campo de atuação, implícitos na literalidade dos seus textos. A declaração
de inconstitucionalidade localiza-se apenas nas disposições implícitas dos comandos
normativos que afrontam a Constituição.
270 Informativo 178 do Supremo Tribunal Federal. ADI 2116-Am, rel. Min. Marco Aurélio. 271 Informativo 136 do Supremo Tribunal Federal. ADInMC 1.642-MG, rel. Min. Nelson Jobim.
213
A principal característica da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução
de texto é que a decisão que a declara produz um juízo de desvalor, estabelecendo que
determinados campos de incidências da norma não podem ser aplicados sob pena de
inconstitucionalidade. Peremptoriamente, a decisão judicial, seja em controle direto seja em
controle difuso, indica determinadas atuações da norma que não podem ser concretizadas
sob pena de serem declaradas como inconstitucionais.
Não obstante, esse tipo de inconstitucionalidade pode servir como um mecanismo
para concretizar a interpretação conforme a Constituição.
Essa forma de inconstitucionalidade tem importância na jurisdição constitucional
brasileira porque é uma forma de evitar lacunas jurídicas em razão da declaração de
inconstitucionalidade, que pode propiciar uma anomia no ordenamento que o fragilizaria
mais que a própria inconstitucionalidade.272
Guarda semelhança com a interpretação conforme a Constituição porque não
apresenta expurgo do texto declarado inconstitucional (interpretação conforme a
Constituição sem redução de texto), ambos atuam na solução da inconstitucionalidade
através da interpretação da norma, mantendo-se intocada a lei produzida pelo legislador. O
limite para a inconstitucionalidade parcial sem pronúncia de nulidade é a literalidade do
texto normativo, que de maneira alguma pode ser modificado, impedindo o Poder Judiciário
de atuar como se legislador fosse.
Esse tipo de controle de constitucionalidade pode ser temporal, quando determinada
extensão de tempo não foi respeitada, ou subjetiva, quando todas as pessoas que se
encontravam na mesma situação não foram contempladas pela norma.
Na inconstitucionalidade parcial sem redução de texto temporal, se o lapso de
eficácia da norma for diferido para o futuro através de decisão judicial, a
inconstitucionalidade desaparece, sem necessitar de alterações no texto legal. Portanto, ela
272 MENDES, Gilmar Ferreira. “Declaração de Inconstitucionalidade sem Pronúncia da Nulidade da Lei, na Jurisprudência da Corte Constitucional Alemã”. In: Revista Trimestal de Direito Público. 9/1995, São Paulo: Malheiros, P.68.
214
implica em uma redução do alcance da norma, declarando que ela é nula na medida que se
aplica a determinado lapso temporal.
Exemplo desse tipo de controle é a cobrança de tributos sem o cumprimento do
princípio da anterioridade, pois o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento que é
inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo
exercício financeiro, Súmula 67. Portanto, a criação de tributos, sem a observância desse
princípio, importará na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, impondo
que a vigência do tributo somente possa produzir efeitos no exercício financeiro posterior.
A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto subjetiva acontece quando não
se atende a todas as situações fáticas exigidas pela norma constitucional ou quando um
comando complexo da Constituição resta descumprido. Um exemplo de descumprimento de
todas as situações fáticas exigidas pela norma pode ser verificado quando há um reajuste
salarial para os funcionários públicos ativos e os inativos deixam de recebê-lo. Dá-se o
descumprimento do art. 40, § 8º da Lei Excelsa, que impõe que sempre que houver reajuste
para os servidores públicos em atividade este deve ser estendido aos inativos. Dessa forma,
baseando-se em um juízo de eqüidade, poderá o Supremo Tribunal Federal congelar a
situação jurídica existente, até decisão do legislador no sentido de superar a
inconstitucionalidade.
De acordo com a Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal, não pode a mencionada
Corte agir como legislador positivo, determinando a extensão da lei para assegurar o
princípio da separação dos poderes. Dispõe a mencionada Súmula: “A inconstitucionalidade
da lei por quebra do princípio da isonomia, não enseja que o judiciário haja como legislador
positivo”.
As normas constitucionais, para terem efetividade, podem exigir um comando
simples ou um comando complexo. Haverá um comando simples quando a Constituição
exige que a norma infraconstitucional realize algo, como normatizar o direito de greve.
Haverá um comando complexo quando a Constituição exigir que a norma
infraconstitucional realize algo de uma determinada forma, como instituir um Estado de
215
bem-estar social que cumpra as funções descritas no art. 3°, construindo uma sociedade
livre, justa e igualitária.
Quando a norma constitucional exigir um comando complexo e a norma
infraconstitucional não o realizar de forma integral, a inconstitucionalidade será parcial sem
redução de texto. Exemplo é a implementação de um salário mínimo que não propicie
moradia, lazer, educação, saúde etc. O salário mínimo é um comando complexo porque não
basta estabelecer o seu valor, pois este tem que ser apropriado para cumprir as funções
elencadas acima.
A interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto têm eficácia contra todos e efeito vinculante em
relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e
municipal.
A diferença entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto é que esta pode ser uma espécie daquela. Ambas
são modalidades de decisão judicial, mas a interpretação conforme a Constituição é
igualmente técnica hermenêutica de controle de constitucionalidade. A primeira tem a
finalidade de precisar o sentido e alcance da norma, expurgando a insegurança resultante de
uma multiplicidade de possibilidades interpretativas; a segunda tem o escopo de evitar
determinadas incidências do texto normativo que afrontem a Constituição.
Outra diferença que não deve ser relegada é que a interpretação, conforme a
Constituição, reafirma a constitucionalidade da lei ou ato normativo, indicando o sentido que
deve ser extraído do seu texto. Enquanto a declaração parcial de inconstitucionalidade sem
redução de texto atesta a existência de uma inconstitucionalidade, tolhendo do texto da
norma incidências que afrontem a Constituição.
Assim, o primeiro tipo de decisão judicial emite uma valoração de que a norma se
coaduna com a Constituição, enquanto o segundo tipo de decisão emite um juízo de
desvalor, ou seja, de que algumas incidências do texto valorativo não podem ser utilizadas
porque representam um acinte aos paradigmas constitucionais. Em suma, na interpretação
216
conforme a Constituição a decisão é no sentido de negar a existência da
inconstitucionalidade, direcionando o sentido de interpretação da norma; na declaração
parcial sem redução de texto a decisão afirma a existência da inconstitucionalidade,
implicando na censura de uma das hipóteses de incidência do texto impugnado.
Uma terceira diferença é que a interpretação conforme a Constituição, por assevera a
constitucionalidade da norma, não necessita cumprir a regra da reserva de plenário em sede
de controle difuso (art. 97 da CF), não sendo necessário o per saltum, ou seja, submeter à
questão incidental de inconstitucionalidade ao tribunal pleno ou a órgão especial. Com
relação à declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, por necessitar da
declaração de inconstitucionalidade da norma ou ato normativo, necessita do preenchimento
do quórum de maioria absoluta exigido, não podendo ser tomada por juízo monocrático, mas
sim pelo tribunal pleno ou por órgão especial.
Gilmar Ferreira Mendes igualmente não confunde os dois institutos: “ A equiparação
pura e simples da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto à interpretação
conforme a Constituição prepara dificuldades significativas. A primeira delas diz respeito à
conversão de uma modalidade de interpretação sistemática, utilizada por todos os tribunais e
juízes, em técnica de declaração de inconstitucionalidade. Isso já exigiria uma especial
qualificação da interpretação conforme a Constituição, para afirmar que somente teria a
característica de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto aquela
interpretação conforme a Constituição desenvolvida pela Corte Constitucional, ou no nosso
caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Até porque, do contrário, também as questões que
envolvessem interpretação conforme a Constituição teriam de ser submetidas ao Pleno dos
Tribunais ou ao seu órgão especial (CF, art. 97)”.273
Todavia, vários julgados do Supremo Tribunal Federal não vislumbram a
diferenciação entre a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de
inconstitucionalidade sem redução de texto, confundindo ambas as técnicas decisórias em
sede de controle de constitucionalidade. Essa é a orientação firmada principalmente pelo
273 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, P. 275.
217
Ministro Moreira Alves que entende que a interpretação conforme a Constituição realizada
no juízo abstrato de normas corresponde a uma pronúncia de nulidade.
Um exemplo em que não houve diferenciação entre os dois institutos foi a decisão
unânime do Supremo Tribunal Federal que deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar
para, sem redução de texto e dando interpretação conforme a Constituição, excluir com
eficácia ex tunc da norma constante no art. 90 da Lei n.º 9099/95, o sentido que impeça a
aplicação de normas de direito penal, com conteúdo mais favorável ao réu, aos processos
penais com instrução já iniciada à época da vigência desse diploma legislativo.274
Outro exemplo ocorreu quando o Supremo Tribunal Federal, por votação majoritária,
deferiu, parcialmente, sem redução de texto, o pedido de medida cautelar, para, em
interpretação conforme a Constituição e até final julgamento da ação direta, afastar qualquer
exegese que divorciando-se dos fundamentos jurídicos do voto do Relator e desconsiderando
o caráter meramente programático das normas da Convenção n.º 158 da OIT, venha a tê-las
como auto-aplicáveis, desrespeitando, desse modo, as regras constitucionais e
infraconstitucionais que especialmente disciplinam, no vigente sistema normativo brasileiro,
a despedida arbitrária ou sem justa causa dos trabalhadores.275
Importante ressalvar que o legislador pátrio já dirimiu a controvérsia, no art. 18,
parágrafo único da Lei n.º 9.868/99, ao diferenciar claramente os institutos da declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto da interpretação conforme a
Constituição.
274 ADIn 1719-9, rel. Min. Moreira Alves. 275 “Ação direta de inconstitucionalidade – convenção n.º 158/OIT - proteção do trabalhador contra a despedida arbitrária ou sem justa causa – argüição de ilegitimidade constitucional dos atos que incorporaram essa convenção internacional ao direito positivo interno do Brasil (decreto legislativo n.º 68/92 e decreto n.º 1.855/96) – possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de tratados ou convenções internacionais em face da Constituição da República – alegada transgressão ao art. 7º, I da Constituição da República e ao art. 10, I, do ADCT/88 – regulamentação normativa da proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, posta sob reserva constitucional de Lei Complementar – conseqüente impossibilidade jurídica de tratado ou convenção internacional atuar como sucedâneo da lei complementar exigida pela Constituição (CF, art. 7º, I) – consagração constitucional da garantia de indenização compensatória como expressão da reação estatal à demissão arbitrária do trabalhador (CF, art. 7º, I, C/C o art. 10, I do ADCT/88) – conteúdo programático da convenção n. º 158/OIT, cuja aplicabilidade depende da ação normativa do legislador interno da cada país – possibilidade de adequação das diretrizes constantes da convenção n. º 158/OIT às exigências formais e materiais do Estatuto Constitucional Brasileiro – pedido de medida cautelar deferido, em parte, mediante interpretação conforme a Constituição. ADIn 1480-3, rel. Min. Celso de Mello.
218
9.2) Declaração de Inconstitucionalidade por Omissão Parcial
A declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial pode ser definida como
uma norma constitucional imperfeita ou como uma norma ainda constitucional,
configurando-se quando um mandamento infraconstitucional afronta uma obrigação imposta
pela Constituição, como o princípio constitucional da isonomia, ou seja, ela é elaborada
discriminando determinadas categorias ou grupos sociais que deveriam ser abrangidos pela
norma.
Há uma omissão na totalidade de casos que deveriam ser atingidos pela norma. O
que ocorre quando uma norma concede vantagens a uma parcela do grupo social e deixa o
restante sem o benefício, apesar de preencher os requisitos que garantiriam a sua aquisição.
Esse tipo de inconstitucionalidade ocorre quando há um caso de omissão legislativa,
havendo um desrespeito a uma obrigação imposta pela Carta Magna. Canotilho sintetiza o
conceito de omissão legislativa: “A omissão legislativa inconstitucional significa que o
legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata,
pois, apenas de um simples negativo não fazer; trata-se, sim de não fazer aquilo a que, de
forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado”.276
Declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial ocorre, por exemplo,
quando há afronta ao § 1º do artigo 39 da Constituição Federal, que visa a resguardar o
princípio da isonomia.277 Como o Poder Judiciário não pode atuar como legislador, e a
declaração de inconstitucionalidade da norma nos moldes tradicionais traria prejuízos para
aquela parte da categoria ou grupo que recebeu o benefício, é mais consentâneo declarar a
276 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. P. 331. 277 Na sua redação original, antes da Emenda Constitucional n. º 20, que tinha o seguinte texto: “ A lei assegurará, aos servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.
219
norma ou ato normativo como situação ainda constitucional, norma constitucional
imperfeita, estabelecendo um prazo para a elaboração normativa por parte do Judiciário.
No caso trazido à baila, o Supremo Tribunal Federal, como mencionado
anteriormente, pode estender o benefício às categorias inconstitucionalmente excluídas; ou
suspender os benefícios que foram indevidamente concedidos a terceiros; ou reconhecer a
existência de uma situação ainda constitucional, norma constitucional imperfeita.
A solução mais plausível é reconhecer a existência de uma norma constitucional
imperfeita estabelecendo ao Poder Público, em tempo razoável, a edição de lei que
restabeleça o dever do cumprimento integral do princípio da isonomia, sob pena de
progressiva inconstitucionalidade do ato estatal, que embora concretizado, revela-se
insuficiente e incompleto.
Reiteradas vezes já se posicionou o Supremo Tribunal Federal que o princípio
isonômico é dirigido ao legislador, a quem compete concretizá-lo, considerando os casos de
atribuições iguais ou assemelhadas, não cabendo ao Poder Judiciário substituir-se ao
legislador. Fundamentou-se o STF no estrito sentido do princípio da separação dos poderes,
em que o Judiciário não pode atuar como se fosse legislador, e no princípio da reserva
absoluta de lei, que regulamenta a remuneração devida aos agentes públicos em geral.
Segundo jurisprudência do Pretório Excelso contra lei que viola o princípio da
isonomia apenas é cabível ação direta de inconstitucionalidade por omissão, na esfera do
controle concentrado, que, sendo deferido o pedido, dar-se-á ciência ao Poder Legislativo
para que aplique, por lei, o citado princípio constitucional.278 Na seara do controle difuso,
esse tipo de inconstitucionalidade pode conduzir à declaração de inconstitucionalidade da
norma que infringiu esse princípio, o que, eliminando o benefício dado a um cargo quando
deveria abranger também outros com atribuições iguais ou assemelhadas, impedindo sua
extensão a estes.
É necessário ressaltar que devido a Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal, o
Poder Judiciário não pode agir como legislador positivo, em decorrência do princípio da 278 AG 273.561-SP, rel. Min. Celso de Mello; AG 319.264-SP, rel. Min. Nelson Jobim.
220
separação dos poderes. Assim, não pode o órgão judicial estender a vantagem ou benefício
àqueles que não foram agraciados por ela. Dispõe a mencionada Súmula: “Não cabe ao
Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores
públicos, sob fundamento de isonomia”.
Para não prejudicar os beneficiados, o STF declara a inconstitucionalidade por
omissão parcial, ressaltando a necessidade de regulamentação, através de instrumento legal,
para cobrir toda a extensão do beneficiados.
Nesse mesmo sentido expõe o Ministro Celso de Mello: “ O Poder Judiciário – que
não dispõe de função legislativa – não pode conceder, a servidores públicos, sob fundamento
de isonomia, mesmo que se trate de hipótese de exclusão de benefício, a extensão, por via
jurisdicional, de vantagens pecuniárias que foram outorgadas, por lei, a determinada
categoria de agentes estatais. A Súmula 339 do Supremo Tribunal Federal – que consagra
específica projeção do princípio da separação dos poderes – foi recebida pela Carta Política
de 1988, revestindo-se, em conseqüência, de plena eficácia e de integral aplicabilidade sob a
vigente ordem constitucional”.279
A ação para a declaração de inconstitucionalidade por omissão parcial é considerada
prejudicada quando há a superveniência da lei reclamada, ou seja, quando posteriormente o
legislador emite um comando normativo suprindo a omissão parcial anteriormente existente.
A inconstitucionalidade por omissão parcial, devido à declaração de existência de
uma situação ainda constitucional ou de uma norma constitucional imperfeita, representa um
plus com relação à inconstitucionalidade parcial sem redução de texto subjetiva. Ambas têm
o mesmo significado, apenas que a inconstitucionalidade por omissão parcial, ao menos
teoricamente, tem a prerrogativa de forçar o Poder Legislativo a exercer uma determinada
conduta, sob pena de expurgar a norma do ordenamento jurídico. Essa maior coercitividade
da inconstitucionalidade por omissão parcial foi o que nos levou a colocá-la em um tópico
específico.
279 AG 313373, rel. Min. Celso de Mello.
221
9.3) Bloco de Constitucionalidade
Bloco de constitucionalidade são princípios, contidos ou não na Carta Magna, que
compartilham a mesma idéia de Constituição material. Os franceses o denominam de bloc de
constitucionnalité, os espanhóis de bloque de la constitucionalidad e os americanos de block
of constitutionality. A concepção de bloco de constitucionalidade foi registrado pela
primeira vez em 16 de junho de 1971, por uma decisão do Conselho Constitucional da
França, que firmou o valor jurídico do Preâmbulo da Constituição de 1958.
Sobre a decisão mencionada, assim se posiciona Miguel Josino Neto: “A decisão
revela a existência não apenas da Constituição de 1958 em si, mas sim, de um “bloco” de
normas e princípios materialmente constitucionais. A partir de 1971, o Conselho
Constitucional, usando do seu poder de interpretação, passou a recriar, incessantemente, a
Constituição. Recriar a Constituição significa ampliar os seus domínios, espargir seus
horizontes, encarando-a como um sistema aberto de regras e princípios permeável a valores
jurídicos suprapositivos, onde a idéia de justiça e de plena concretização dos direitos
fundamentais tem um papel de significativa relevância. A compreensão do que seja o bloco
de constitucionalidade permite um reencontro entre o direito e a ética, a partir da perspectiva
de que a releitura de princípios, e a incorporação de outros dão à Constituição uma nova
dimensão, valorizando a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz, a justiça e a
igualdade”.280
A concepção de bloco de constitucionalidade parte do pressuposto de que existem
princípios que mesmo que não estejam contidos na Constituição são materialmente
constitucionais porque ostentam valores profundamente arraigados na sociedade. O que traz
como ilação que ele perpassa as normas contidas na Carta Magna, acarretando uma extensão
dos seus dispositivos. Fazem parte do seu núcleo princípios que densificam as normas
contidas na Constituição, mantendo com ela um forte vínculo, resguardando o seu caráter
280 NETO, Miguel Josino. “O bloco de Constitucionalidade como fator determinante para a expansão dos direitos fundamentais da pessoa humana”. In: http: // www1. Jus.com.br/ doutrina / texto.asp?id = 3619, extraído em 02/01/03.
222
sistêmico. Como exemplos podem ser mencionados o duplo grau de jurisdição, o direito de
resistência, etc.
O bloco de constitucionalidade assume importância capital no fortalecimento de
direitos e garantidas fundamentais, que mesmo não disciplinados na Constituição assumem
papel relevante no ordenamento jurídico. Ele funciona no sentido de expandir os direitos e
garantias constitucionais, ultrapassando o sentido da constituição formal, para garantir
valores sedimentados na sociedade.
Decorrente dessa concepção, a Lei Maior é tomada como um texto aberto e
incompleto, uma norma dialógica, permitindo o contato da seara fática com a seara
normativa. Como a maior parte das normas constitucionais são abstratas, permitindo
calibrações na sua esfera de incidência, a Constituição sofre uma maior influência de
injunções extradogmáticas, o que resulta na necessidade de se manter fina sincronia com o
desenvolvimento das forças sociais.
Para Lei Maior ter um caráter dialógico, há princípios que, mesmo não estando
contidos no seu texto, apresentam natureza constitucional no seu aspecto material, ou seja,
detêm supremacia, supralegalidade e imutabilidade relativa, não do ponto de vista formal,
mas porque foram absolvidos pela sociedade com um grau deveras intenso de legitimidade.
Qualquer mandamento infraconstitucional que lhes afronte o sentido deve ser retirado do
ordenamento jurídico haja vista serem dotados de supremacia que assegura a
supralegalidade. Portanto, o bloco de constitucionalidade é formado pelos princípios e pelas
regras de valor constitucional.281
Pelo fato da interpretação dos princípios componentes do bloco de
constitucionalidade exigir constante elaboração, a função do Supremo Tribunal Federal
assume maior relevo. A ele cabe definir quais são os princípios que o compõem, bem como
o seu alcance. Por isso, o STF funciona como uma instância de mediação entre os valores
sedimentados na Constituição e o sentido das normas constitucionais, ganhando maior
281 FAVOREAU, Louis. & Llorente, Francisco Rubio. El Bloque de la Constitucionalidad. Madrid: Civitas, 1991. P.19.
223
relevância as suas decisões quando houver maior sincronia entre a norma e os fatos sociais.
O que sinaliza mais uma motivação para o fortalecimento da sua legitimidade.
O alicerce jurídico que ampara o bloco de constitucionalidade na Constituição
brasileira de 1988 é o art. 5º, § 2, que assevera que os direitos e garantias expressos no seu
texto não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que o Brasil for signatário. Quaisquer direitos ou garantias
fundamentais que guardem ligação com o caráter sistêmico da Constituição, por essa
cláusula da exemplificação dos preceitos constitucionais devem ser considerados como parte
da Constituição material.
224
PARTE III: A Legitimidade das Decisões
Judiciais da Jurisdição Constitucional.
10.) A Crise do Direito Legislado
A concepção moderna do Direito, de cunho predominantemente formal,
juspositivista, não preenche mais as expectativas da sociedade, impondo-se pelas novas
necessidades da pós-modernidade uma concepção funcional do Direito, em que as
interpretações jurídicas devem ser feitas com o escopo de assegurar eficácia concretiva aos
comandos normativos. A concepção funcional do Direito marca o superamento da teoria
kelseniana baseada no binômio norma/sanção, sendo substituída pelo binômio
norma/suporte administrativo, em que assume relevância a eficácia normativa.
A pós-modernidade tem como característica a dúvida.282 Heisenberg fala que as
partículas elementares não formam um mundo de coisas e fenômenos, mas um mundo de
tendências ou possibilidades.283Ela começa com a dúvida sobre a possibilidade da exatidão
282 Acerca dos efeitos da Pós-Modernidade expõe David Lyon: “a possibilidade mesma de adquirir conhecimento ou de fazer uma descrição do mundo é posta em dúvida. Enquanto antes se podia ver como a estrutura do conhecimento refletia a estrutura da sociedade que o produzia – pense nos estudos de Weber sobre a racionalidade burocrática na Alemanha em sua fase de modernização - o pós-moderno nega tal estrutura tanto no conhecimento como na sociedade. Adeus ao conhecimento elaborado no passado; em vez disso, boas-vindas aos discursos flexíveis. LYON, David. Pós-Modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. P. 23. 283 Michael Hardt e Antonio Negri, autores do famoso livro Impire, defendem a tese de que o mundo contemporâneo é um mundo pós-moderno, nascido com o exaurimento do Estado Moderno e com a perda definitiva de qualquer tipo de ontologia. Eles afirmam que uma das conseqüências da pós-modernidade é de forma peremptória a privatização do espaço público.A paisagem característica da modernidade com o seu apego pelas praças e pelos locais públicos é suplantada pelas áreas privadas, em que poucos têm acesso. A arquitetura e a estrutura de grandes metrópoles são planejadas para impedir a movimentação e a interação entre grupos sociais diferentes. HARDT, Michael & NEGRI, Antonio. Impere. Trad: Alessandro Pandolfi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 2003. P.178-179.
225
da ciência. Não significa a substituição da razão, mas a antevisão da probabilidade em lugar
da certeza.284
Ela representa a destruição dos postulados que delineavam a ordem social, com a
instalação do “caos” ontológico, isto é, a ausência de postulados valorativos para toda a
sociedade, aumentando a incredulidade com relação às metanarrativas.285 A ordem que
imperava na modernidade é substituída pela ausência de ordem da pós-modernidade.286 Para
Garcia Pelayo, o conceito de ordem é definido como um conjunto constituído por uma
pluralidade de componentes, que cumprem determinadas funções e ocupam certas posições
com base em um sistema de relações relativamente estabelecidas ou pautadas.287 A pós-
modernidade pode ser definida como uma situação fática em que a ordem social vigorante
na modernidade não mais existe.288
Uma das conseqüências negativas da sociedade pós-moderna é que em virtude da
desubstancialização, da quebra dos paradigmas ontológicos, e da fragmentação do seu tecido
social provocada pela diversificação econômica, há uma forte tendência para o afloramento
284 A pós-modernidade é a conseqüência direta do desenvolvimento da infra-estrutura econômica dos países capitalistas desenvolvidos, fruto da revolução tecno-informática. Esse ritmo geométrico de modificações na sociedade, em consonância com as modificações tecnológicas, agravam ainda mais a possibilidade de encontrar princípios que possam ser compartilhados por toda a sociedade, que por sua vez está bastante fragmentada pela diversificação de lugares na cadeia produtiva. 285 A pós-modernidade aponta para um processos de desubstancialização porque a valoração científica passa a ser feita com referência ao cidadão, acumulando ao mesmo tempo as funções de sujeito e de objeto, autor da produção científica e da apropriação do conhecimento. Tomar o homem como referência significa que, como os seus interesses são cambiantes de acordo com as suas relações sócio-político-econômicas, a produção de uma ontologia que contemple todos os interesses se mostra de difícil elaboração. Finda-se a possibilidade de se mensurar uma teoria através de um único parâmetro, que passa a ser avaliada e mensurada sob os mais diversos prismas. O que não deixa de se caracterizar como um retorno a filosofia sofista que defendia que o homem era a medida de todas as coisas. 286 Como conceito de Pós-Modernidade é interessante o delineado pelo professor argentino Carlos Alberto: “ A pós-modernidade é a contradição entre o conhecimento formal dos direitos individuais dos homens e a negação dos direitos fundamentais do ser humano”. GHERSI, Carlos Alberto. “ Posmodernidad Juridica. El análisis Contextual del Derecho como contracorriente a la abstracción jurídica” In: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. V. 15. Porto Alegre: Síntese, 1998. P. 21. 287 GARCIA-PELAYO, Manuel. Idea de la Política y Otros Escritos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. P. 45-46. 288 Assinala o professor João Maurício Adeodato que os seguintes pressupostos marcam a modernização do direito: a) pretensão de monopólio na produção das normas jurídicas por parte do Estado; b) importância das fontes estatais em detrimento das fontes não estatais; c) relativa emancipação da ordem jurídica com relação as demais searas sociais. ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 207-209.
226
dos conflitos sociais nessas sociedades.289 O incremento na potencialidade dos conflitos
sociais ocorre porque não há parâmetros substantivos que possam, ao mesmo tempo,
normatizar as relações sociais e atender às expectativas de toda a variada composição do
tecido social.290 Adicione-se a isto o enfraquecimento dos órgãos estatais, provocado pelo
liberalismo econômico, o que leva a maioria desses conflitos a se resolverem fora do alcance
dos órgãos estatais, contribuindo ainda mais para o seu agravamento.
Como influência positiva da sociedade pós-moderna, tem-se a importância que o
conhecimento passou a exercer no processo produtivo, tornando-se insumo imprescindível
para o desenvolvimento econômico devido às constantes modificações tecnológicas e à
necessidade crescente de aperfeiçoamento da mão-de-obra.291 A imperiosidade de um maior
cabedal de conhecimentos, tanto tecnológico como humano em geral, tende a produzir um
ambiente favorável para o desenvolvimento de um cultura de tolerância, em que o outro
deixa de ser visto como estranho para ser considerado como um membro da sociedade e,
portanto, como um sujeito detentor das mesmas obrigações e dos mesmos direitos.292
As conseqüências acarretadas pela pós-modernidade atingiram todas as esferas da
sociedade, com abrangência no campo social, familiar, econômico, cultural, deontológico
etc. O Direito, definido como a ciência que tem a finalidade de regulamentar as relações
sociais, sofre de forma mais intensa essas conseqüências. Como as relações sociais são cada
vez mais complexas, em decorrência da pluralidade do tecido social e da velocidade em que
289No momento em que a possibilidade da construção de dogmas é considerada irrealizável, conseqüentemente, as teorias que se alicerçam em uma verdade universal para os homens entram em declínio. As teorias substancialistas perdem relevo para as teorias procedimentais que não se amparam em verdades absolutas, sendo que estas se estruturam com a regulamentação do seu procedimento.
290 “Esta segunda aporia – a obsessão pelo que não pode ser decidido – é confirmada por uma desconstrução de cada presunção na certeza determinante de uma justiça presente, ela atua a partir de uma idéia de justiça infinita, infinita porque é irredutível, irredutível porque necessita de relação de alteridade – relação de alteridade diante de cada contrato, porque é uma decorrência, uma decorrência da alteridade como singularidade sempre de outro”. DERRIDA, Jacques. “Diritto alla Giustizia”. In: Diritto, Giustizia e Interpretazione. Roma: Laterza, 1998. P. 31. 291 Bruno Romano aponta duas direções para o desenvolvimento da pós-modernidade: a primeira direção é um processo de desubstancialização, e a segunda direção é o descrédito de todas as teorias que tentam construir uma verdade universal para os homens. ROMANO, Bruno. Soggettività Diritto e Postmoderno. Uma interpretazione com Heidegger e Lacan. Roma: Bulzone, 1988. P. 62. 292 ARCHETTI, Marcello. Lo Spazio Ritrovato. Antropologia della Cotemporaneità. Roma: Meltemi, 2002. P.40.
227
as relações sociais são modificadas, a concepção do Direito formal, baseado na sua
positivação e no formalismo exacerbado, entrou em crise, afetando seriamente a eficácia de
suas normas.
A crise da concepção formalista do Direito atinge de forma mais drástica a jurisdição
constitucional que, pela relevância de suas decisões judiciais, muitas vezes oferece limites às
decisões políticas, necessitando, por isto, de um maior grau de legitimidade. O difícil de se
buscar essa legitimidade é que os seus padrões também estão padecendo da mesma crise,
como a concepção de Estado Democrático Social de Direito, o conceito de Constituição, de
separação de poderes, dos limites da atuação do Poder Judiciário etc.
Para densificar a legitimidade da jurisdição constitucional com o objetivo de que ela
possa atender às exigências sociais hodiernas, deve-se realizar uma reavaliação dos seus
paradigmas, fazendo com que os vetores que direcionam sua atuação possam contribuir com
a missão de garantir eficácia para os mandamentos contidos na Constituição, principalmente
os direitos fundamentais.
10.1) Crise do Estado Democrático Social de Direito
A concepção de Estado defendida nesta análise é a de um Estado Democrático Social
de Direito, em sincronia com a recente evolução das dimensões dos direitos fundamentais.
A importância da utilização de uma terminologia adequada, que possa englobar todo o
conteúdo do conceito mencionado, tem o sentido de se evitar imprecisões que dificultem a
realização dos objetivos primordiais do Estado. Segundo Canotilho, o Estado de Direito só
pode ser Estado de Direito se for também um Estado democrático e um Estado social.293
O Estado Social Democrático de Direito é um Estado de Direito porque é regido por
normas pré-fixadas; Democrático porque suas normas devem contar com a participação
293 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. P. 56.
228
ativa da população, concebendo o regime democrático como uma efetiva democracia
participativa, atendendo aos direitos de quarta dimensão; Social porque a sua finalidade é
construir uma forma de organização política que proporcione bem-estar a sua população,
welfare-state, atendendo principalmente as necessidades dos hipossuficientes sociais.
Essa foi à terminologia adotada pela Lei Fundamental alemã de 1949. No Capítulo
II, denominado da Federação e dos Estados regionais, no seu art. 20, secção 1, afirma que a
República Federal Alemã é um Estado Federal (Bundesstaat), democrático e social. No art.
28, secção 1, do mesmo capítulo, assevera que a ordem constitucional dos Estado Regionais
deve obedecer aos princípios do Estado de Direito (Rechtsstaat) republicano, democrático e
social no sentido da Lei Fundamental de 1949. Portanto, atendendo às finalidades
primordiais da organização política, a Constituição alemã preferiu utilizar a denominação de
Estado Democrático Social de Direito.294
Essa também é a terminologia utilizada pela Constituição espanhola, de 1978,
constituindo-se nas primeiras palavras do parágrafo primeiro do artigo 1, que declara que a
Espanha se constitui em um Estado Social e Democrático de Direito. Para Enrico Álvares
Conde, a expressão Estado Democrático Social de Direito assinala três momentos lógicos,
susceptíveis de análise, independentes dentro de uma estrutura sistêmica, mas fortemente
integrados em uma unidade de todos os seus elementos componentes.295
Em contraste com esse tipo de organização política, encontra-se o Estado liberal,
cuja Constituição vislumbra uma intervenção mínima dos órgãos estatais na sociedade,
294 Esclarece Javier Pérez Royo acerca de sua raiz histórica: “A origem dessa terminologia é bastante precisa. Vem do constitucionalismo da Alemanha Ocidental posterior a Segunda Guerra Mundial, sendo utilizada pela primeira vez nas Constituições de alguns Länder (Baden – Württemberg – 23.1 – Baviera – 3.1 –, Bremen – 65 – Hamburgo – 3.1 – ) e foi consolidado com sua incorporação na Lei Fundamental de Bonn, que a emprega em dos momentos singularmente importantes, no artigo 20.1, ao definir a República Federal da Alemanha como um Estado Federal, democrático e social, delimitando assim o que a doutrina daquele país define como princípios estruturais do sistema constitucional, e no artigo 28, que ao precisar um dos princípios básicos do Estado Federal, tipificado na necessária correspondência entre a ordem constitucional e os Estados membros e a Federação, afirma que a ordem constitucional dos Länder deverá corresponder aos princípios do Estado de Direito republicano, democrático e social”. ROYO, Javier Pérez. Curso de Derecho Constitucional. 6 ed., Madrid: Marcial Pons, 1999. P. 190. 295 CONDE, Enrique Alvarez. Curso de Derecho Constitucional. V. I. 3 ed., Madrid: Tecnos, 1999. P. 114.
229
fixando de forma bem nítida a atuação do Estado e da sociedade.296 Os direitos
fundamentais, de primeira dimensão, são apenas para evitar a intervenção do Estado na
autonomia individual, direitos de natureza omissiva, concretizando-se com a omissão do
Estado. Consonante esse prisma, as normas estatais destinam-se ao bem comum, na medida
em que estão subordinadas aos cânones do direito individual.
A jurisdição constitucional no Estado liberal, pela própria esfera de atuação da
Constituição, é bem mais restrita que a do Estado Democrático Social de Direito, podendo se
adequar aos limites da concepção tradicional da separação dos poderes. A feitura do Estado
liberal apenas foi possível graças aos influxos da teoria constitucionalista do século XVIII,
representando um avanço com relação à organização política, representada pelo Estado
Absolutista. A função de uma Carta Magna dentro dos padrões liberais é estabelecer os
modos de ponderação dos poderes, combatendo os excessos freqüentes dos órgãos estatais.
Tomando como paradigma o modelo implementado pelo Estado Liberal, a estrutura
jurídica do Estado Democrático Social de Direito parece uma distorção, levando à
degeneração da arquitetura constitucional clássica.297 A jurisdição constitucional deste tipo
de Estado, devido às suas amplas necessidades de intervenção na sociedade, não se reduz a
declarar uma decisão ao caso concreto, sendo levada a decidir praeter legem, garantindo a
eficácia das normas programáticas e, muitas vezes, tendo que realizar uma elaboração
normativa diante da omissão do Poder Legislativo.
O motivo jurídico que mais contribuiu para a derrocada do Estado Liberal foi ele não
permitir o amplo afloramento dos direitos fundamentais, pois é uma forma de organização
social em que o princípio da autonomia da livre iniciativa prepondera sem entraves à sua
atuação. Advogam os liberais que, quando houver a colisão de um direito fundamental com
a autonomia da livre iniciativa, deve prevalecer esta última. A forma de estado que mais se 296 “O liberalismo trata de limitar o poder político, não de reparti-lo entre todos, ou muito menos em quantidade igual. Para limitar o papel do Estado é adequado reduzir as suas competências e ampliar de modo simultâneo a amplitude de esfera da sociedade. A preocupação dominante no protoliberalismo consiste em afirmar a liberdade política da nação, mas justificando com ênfase o direito de que nem todos os indivíduos podem participar dessa vontade porque nem todos têm os mesmos direitos políticos, e, de outra parte, exaltando uma liberdade natural ou social, no sentido de que a sociedade é um inter privatos”. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Códigos y Constituciones. 1808- 1978. Madrid: Alianza Universidad, 1989. P.154. 297 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva del Diritto e della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizioni Ângelo Guerini e Associati, 1996. P. 286.
230
adequa e permite o desenvolvimento dos direitos fundamentais é o Estado Democrático
Social de Direito, garantindo através de prestações fornecidas por entes estatais a
concretização das demandas essenciais da população.
Apesar de ser uma forma de organização política superior ao Estado Liberal, a crise
pós-moderna também atingiu o Estado Democrático Social. Essa crise é um fenômeno
bastante complexo, porque atinge diversos setores da vida social, fazendo com que suas
conseqüências possam ser sentidas na economia, no direito, no campo ético-moral, na
política, na produção literária etc.298 Pode ser traduzida, em amplo senso, pela
desestruturação de uma estrutura política, regida por normas que contaram com a
participação da maioria da população, com a finalidade de assegurar direitos mínimos para
os hipossuficientes sociais, ou seja, configura-se como uma crise que afeta a essência do
Estado Democrático Social.
Segundo o professor Danilo Zolo, as motivações da crise do Estado Democrático
Social de Direito podem ser creditadas a duas causas distintas: o fenômeno da complexidade
social nas sociedades de economia avançada e o processo de integração em escala global, a
globalização. Em decorrência do primeiro, assume relevo a crise no caráter normativo do
ordenamento jurídico, ou seja, nos obstáculos que impedem a sua concretização,
especialmente os estorvos na proteção dos direitos subjetivos. No segundo, o tema central é
a erosão da soberania dos Estados nacionais, com a prevalência do poder dos sujeitos
transnacionais. Acredita Zolo que todas as crises que assaltam a organização política atual
podem ser resumidas em uma crise do Estado de Direito, atingindo de modo frontal a sua
estrutura de garantia de direitos fundamentais.299
O primeiro fenômeno ocorre primordialmente nas economias capitalistas
desenvolvidas, implementadas pela revolução tecnológico-informática, que devido ao 298 “Falar de crise(s) tornou-se referência ao longo das últimas décadas do Século XX, supostamente frente à desconstrução dos paradigmas que orientaram a construção dos saberes e das instituições da modernidade. De lá para cá, tudo o que havia de sólido – real ou aparentemente – foi-se esboroando ou sendo desconstituído, seja por envelhecimento – precoce muita vezes, induzido outras tantas – , seja por incompatibilidade com as estratégias hegemônicas atuais, seja, ainda, por outros motivos, mais ou menos nobres, os quais não referiremos nominalmente”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 23. 299 ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 58-59.
231
desenvolvimento econômico criam várias cadeias econômicas e, como conseqüência,
possibilitam a existência de uma grande complexidade social, o que obriga o Estado a dispor
de políticas sociais específicas para cada segmento, o que nem sempre é possível, no sentido
de propiciar a satisfação das expectativas sociais.
O segundo fenômeno é o processo de globalização que, principalmente para os países
periféricos, produz um acintoso enfraquecimento do aparato estatal, impedindo a
implementação de políticas públicas para atender aos interesses da população. A esfera
decisória passa a se concentrar nas mãos de organismos internacionais, que não dispõem de
mecanismos de ligação com os interesses locais.
O atual processo de globalização não significa o desaparecimento do Estado, como
entidade de organização social, contudo, ele passa a funcionar em função da lex mercatoria,
em que as necessidades econômicas afetam de forma bastante considerável o quadro
institucional de poder, fazendo com que as relações políticas sejam ditadas em sintonia com
a necessidade dos mercados, relegando os anseios populares a um papel secundário. Quando
se atrela o Direito às exigências econômicas globais, retiram-lhe as suas características
essenciais, a sua segurança e certeza, porque diante da ausência de regulamentação dos
fluxos globais de capital prepondera o risco e a incerteza.300
A deficiência na capacidade regulativa do Estado contribuiu para o agravamento da
crise. Ela se manifesta em dois sentidos: ou na ausência de eficácia das estruturas
normativas ou no impedimento de regulamentação normativa de determinada seara fática.
No primeiro sentido, há um enfraquecimento dos órgãos estatais que deixam de realizar as
suas funções, no segundo, os órgãos estatais deixam de regulamentar determinadas searas
por causa de uma proibição legal, sentido este elaborado a partir de uma concepção de que a
ausência de regulamentação, ou a sua regulamentação por órgãos privados, é mais
conveniente para a sociedade.
A inflação legislativa é outro produto da crise do Estado Democrático Social de
Direito. Para adequar-se à constante evolução social, produzida pelo desenvolvimento da
300 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 14-15.
232
infra-estrutura econômica, o ordenamento jurídico da mesma forma tem que modificar seus
dispositivos para que estes possam acompanhar os fatos sociais sem entrar em contradição
com eles. Essa constante modificação das normas redunda em insegurança, antinomias,
inconstitucionalidades etc.301 Gilissen assevera que o número de leis stricto sensu mais do
que decuplicou em um século porque o Estado se imiscuiu cada vez mais nos diversos
domínios da vida econômica e social.302
Outro elemento que agrava a situação é a crise no regime democrático,
especificamente na concepção da representação política tradicional. Como os assuntos da
pauta política são cada vez mais complexos, discutidos com uma linguagem hermética, a
população fica impossibilitada de compreender a discussão e de demonstrar o seu
posicionamento. A sua única fonte de informação cognoscível são os meios de comunicação,
mas por estarem nas mãos de poderosos grupos econômicos, contribuem mais para alienar a
cidadania do que para informá-la.
Sem a participação dos cidadãos, o jogo político fica restrito à concorrência das elites
políticas que brigam entre si para conseguirem poder, sendo a população um mero
expectador. Nesse quadro, os partidos políticos perdem a sua importância, a estrutura e a
militância partidária ficam relegadas pelo papel desempenhado pela mídia.303 Usando o
301 “O processo de diferenciação dos subsistemas sociais estimula o ordenamento jurídico a seguir a evolução com uma crescente produção de normas, de conteúdo cada vez mais especializado e particular. Mas o Direito é um instrumento rígido e lento com relação à rapidez evolutiva dos outros subsistemas sociais, em particular aqueles tecno-científicos e os econômicos, que são dotados de uma elevada capacidade de auto-programação e auto-correção. Destarte, deriva-se a crise inflacionária do Direito, acarretando sua depreciação, redundância e instabilidade normativa, e, no fim, impotência de realização. Ao multiplicar-se a quantidade de atos legislativos, soma-se a isso o crescente vazio expressivo e a extensão dos textos, sempre mais repletos de referências tecnológicas; a necessidades de utilização de outras normas para sua aplicação; a tendência a programação ao invés de disciplinação, com o agravamento da tendência dessa regulamentação estatal perder o seu requisito de generalidade e abstração, assemelhando-se sempre mais, na sua substância, aos atos administrativos”. ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 59-60. 302 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2 ed., Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986. P. 465. 303“Os novos sujeitos políticos não são mais, propriamente, os partidos políticos: são as elites de empreendedores eleitorais, que dentro de uma concorrência publicitária, derecionam-se diretamente a massa dos cidadãos-consumidores, oferecendo-lhes através dos meios de comunicação e segundo precisas estratégias de marketing, os próprios produtos publicitários. Pode-se dizer que a legitimação da decisão política fundada sobre a estrutura da representação popular é agora substituída por uma legitimação tele-prebiscitária e “sondocrática”, ou seja, substancialmente pós-representativa”. ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n.. 11. 1998. P. 448.
233
neologismo empregado por Giovanni Santori o Homo sapiens se transforma em Homo
videns transformando a democracia em uma videodemocracia.304
A crise do regime democrático é caracterizada tanto por uma ausência de legitimação
popular, como por uma impossibilidade de resposta as demandas da sociedade. Ela é
entendida como uma falência funcional do regime democrático em atender as mais variadas
demandas sociais, haja vista que, em uma sociedade estruturada por uma composição
multipolar e fragmentada, configura-se como impossível realizar uma estrutura normativa
que possa atender a todos os segmentos. A crise do regime democrático significa ainda a
alienação de grande parte da população das decisões políticas, ensejando que as decisões
tomadas pelo governo sejam para atender aos interesses de determinados setores sociais, em
detrimento da maioria dos cidadãos.
Pode-se ainda perceber uma certa “falência do welfare state”, em que os gastos com
o financiamento social são cada vez maiores, sem uma contrapartida imediata de aumento na
produtividade. Há uma multiplicação exponencial das demandas sociais, o que não é
acompanhado por um acelerado ritmo de crescimento nem pela melhora na eficiência dos
entes estatais.305 A “solução” encontrada pelas elites políticas para os problemas que afligem
o welfare state foi a aplicação de um receituário neoliberal de medidas, que fragilizou os
órgãos estatais e agravou mais ainda a crise.
Pela influência desses vetores se pode concordar com duas tendências: de um lado,
um processo de intensa privatização das estruturas normativas, em que o espaço livre para as
decisões particulares é cada vez maior, impedindo que instrumentos públicos possam
regulamentar setores imprescindíveis da sociedade; do outro lado, um aumento na tensão
entre a esfera pública e a esfera privada, provocada pela tendência anterior, em que o espaço
304 “O Homo sapiens é, ou se tornou, um animal que lê, capaz de abstrair, cuja compreensão (inteligência, do latim intelligere) ultrapassa de muito o que ele enxerga, e na verdade não se relaciona com o que ele vê. Mas o Homo sapiens está sendo deslocado e substituído pelo Homo Videns simplesmente vê (videre, em latim, significa “ver”); seu horizonte é limitado pelas imagens que lhe são fornecidas. Assim, enquanto o Homo sapiens tem o direito de dizer, com toda inocência, que ele compreende o que vê, o Homo videns vê sem compreender, porque boa parte do que lhe é mostrado significa pouco e o que é significativo, na melhor das hipóteses das hipóteses, é mal explicado”. SARTORI, Giovanni. Engenharia Constitucional. Como Mudam as Constituições. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 1996. P. 162. 305 GIUSTINIANI, Antonio Zorzi. Stato Costituzionale ed Espansione Della Democracia. Milano: CEDAM, 1999. P.88.
234
público tende a ser arrefecido pelos interesses privados, o que estimula as crises cíclicas do
sistema capitalista, com a ausência de mecanismos adequados para a sua superação.306
O cumprimento das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático Social de Direito,
que foi agasalhado pelos mandamentos constitucionais, é o maior escopo da jurisdição
constitucional.
10.2) Crise Constitucional
A crise do Estado Democrático Social de Direito, como não poderia deixar de ser,
acarreta também um forte impacto sobre o Direito e, principalmente, sobre o papel
desempenhado pelas Constituições, lex mater do ordenamento, com as suas tradicionais
características: supremacia constitucional, supralegalidade e imutabilidade relativa.307 A
discussão centra-se na interrogação para saber se as Constituições nacionais ainda são
imprescindíveis para a construção de um Estado, ou se elas ainda possuem condições de
garantir a sua eficácia, pois nenhuma serventia tem uma Carta Magna destituída de
concretude normativa.
A discussão acerca das dificuldades do direito público, particularmente do direito
constitucional, não se configura como uma discussão nova, pois já no início do século XX,
George Jellinek afirmava que se estava em um momento de crise mundial e seus reflexos
306 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 61-62. 307 Significativas as palavras de Paulo Ferreira da Cunha: “Hoje ao Direito Constitucional se pede muito o que não pode dar. Ainda se vai falando em “crise da Constituição”, em “morte da Constituição”, em Constituição como sobrevivência, mas, para canto do cisne, não há dúvida que se trata de uma sinfonia, talvez desconcertante, mas animada. Por toda a parte – que em toda a parte a Constituição, pelo menos como flautus vocis, se encontra firmada e com balcões abertos – não apenas os teóricos, como mesmo o homem comum, iniciados e leigos dão as mãos numa vozearia confusa”. FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Mito e Constitucionalismo. Perspectiva Conceitual e Histórica.Porto: Gráfica de Coimbra, 1990. P. 88.
235
atingiam inelutavelmente o ordenamento jurídico, e era impossível a construção sistemática
de um novo direito político em que não se advertisse sobre a “crise radical das idéias”.308
A crise do Direito se iniciou nos anos cinqüenta do século passado, quando
personagens como Carnelutti, Biondi, G. Tarello, G. Capograssi se reuniram para discutir a
ambigüidade do Direito.309 Dentre as suas várias características, podemos considerar como
sua essência a necessidade constante de renovação das estruturas jurídicas porque estas não
mais atendem às exigências das demandas sociais.310
Essa crise do Direito não tem uma natureza ontológica, restando imaculado o papel
das estruturas normativas na sociedade, o que está posto em crise é a sua concepção
simplificada e restrita, oriunda do Estado Moderno, que estabelece os dispositivos
normativos em rígidos códigos.311 Esse modelo entra em descrédito em virtude da
complexidade do universo jurídico, da sua irredutibilidade a parâmetros simples, impedindo
que as normas jurídicas contidas nos códigos possam regulamentar as elaborações sociais.312
Os textos constitucionais não servem mais como leis fundamentais estruturantes de
uma realidade social; em sua grande maioria são o que Karl Loewenstein denomina de
Constituição semântica, ou seja, aquelas que têm a finalidade de servir como instrumento
para a perpetuação das classes dominantes no poder.313 Exercendo o papel que o professor
Pinto Ferreira denomina de ilusão Constitucional.314
308 JELLINEK, Georg. Teoría General Del Estado. Trad. Fernando de los Rios. México: Fondo de Cultura Económica. 2000. P. 48. 309 NARVÁEZ HERNÁNDEZ, José Ramón. “La Crisis de la Codificación Y la Historia Del Derecho”. In: Anuario Mexicano de Historia del Derecho. XV, México:UNAM, 2003. P. 208. 310 GALIZIA, Mario. Scienza Giuridica e Diritto Costituzionale. Milano: Giuffrè, 1954. P.9. 311 “Parece inevitável que, como consectário das crises anteriormente referidas, tenhamos a fragilização dos instrumentos que, na modernidade, serviu como locus privilegiado para a instalação dos conteúdos políticos definidos pela sociedade, desde um projeto que se consolida como uma fórmula para a organização do poder político e asseguramento da(s) liberdade(s) e se constitui como estratégia de racionalização do poder e das relações entre Estado e Sociedade Civil, tomando por ora a dicotomia celebrizada pelo pensamento liberal em sua versão clássica”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 46-47. 312 GROSSI, Paolo. Scienza Giuridica Italiana. Un Profilo Storico 1860-1950. Milano: Giuffrè, 2000. P.276. 313 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. Trad.: Alfredo Ballego Anabitarte. Barcelona: Ariel, s.d.. P. 217. 314 FERREIRA, Pinto. Democracia, Globalização e Nacionalismo. Recife: Edição da Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino LTDA, 1999. P..3.
236
A crise constitucional se origina da convulsão que grassa na sociedade, onde a
Constituição deixa de ser parâmetro normativo, resvalando na falta de perspectiva ética,
política, econômica e social. Diante de profundas instabilidades no tecido da sociedade,
produzindo constantes e profundas mudanças, a Constituição perde eficácia e já não pode
mais produzir aquilo que Konrad Hesse denominou de força normativa.315
A conseqüência imediata da crise constitucional é a desordem nas relações sociais.
Sugere o professor Agostino Carrino que para conhecer a desordem propiciada pela crise
constitucional deve-se saber qual o conceito de ordem e esta definição é dada pelos
conceitos de Constituição e soberania nacional.316 Como esses dois conceitos estão em
processo de reestruturação, atualmente, aumenta a intensidade da crise e, conseqüentemente,
o grau de desordem das relações sociais. Santi Romano, em 1950, já alertava que a causa
maior da crise que assola as instituições estatais é tentar conciliar os interesses particulares
dos vários grupos que condicionam as relações sociais, com o interesse geral.317
Um fator que contribui para o arrefecimento da normatividade constitucional é a falta
de legitimação das reformas constitucionais. Devido a vários fatores, uma série de limitações
ao acesso do povo às decisões políticas faz com que o regime democrático sofra um
processo de esvaziamento da participação popular, e, sem a fiscalização da sociedade, as
reformas atendem muito mais aos interesses dos conglomerados internacionais do que aos
interesses dos hipossuficientes sociais. A reforma constitucional, ao invés de ser usada para
a modernização do seu texto, serve para implementar inconstitucionalidades, fragmentando a
concepção de Poder Constituinte e sua supremacia no ordenamento jurídico.318
A crise constitucional se mescla com a crise do Estado Democrático Social de
Direito em suas múltiplas facetas. O Estado de bem-estar social é posto em xeque diante da
ausência de recursos estatais para custear condições mínimas de sobrevivência para a sua 315 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. P. 19. 316 CARRINO, Agostino. Sovranità e Costituzione nella Crisi Dello Stato Moderno. Torino: Giappichelli, 1998. P. 25. 317 SANTI ROMANO. Lo Stato Moderno e la sua Crisi. Milano: Giuffrè, 1969. P. 24. 318 Nesse sentido ensina Carré de Malberg: “es necesario que las revisiones no sean imposibles ni tampouco demasiado difíciles de emprender, importa igualmente que no lleguen a ser demasiado frecuentes y esto, especialmente, a causa de que una revisión facilmente llega a ser de agitación política para el país” MALBERG, R. Carre de. Teoria General del Estado. México: Fondo de Cultura Economica, [ s.d.]. P. 1237.
237
população. O regime democrático é distorcido pelo poder econômico, o povo não tem como
expressar seus interesses e participar ativamente das decisões políticas. A proeminência do
Congresso Nacional em legislar está ameaçada pela avidez com que o Presidente da
República edita medidas provisórias, mesmo diante das modificações produzidas pela
Emenda Constitucional n.º 32.
Paulo Bonavides faz uma distinção entre crise constituinte e crise constitucional. A
primeira seria pertinente ao regime, suas estruturas políticas, ao sistema de governo, cujo
problema residiria enfim na existência da Constituição. A segunda seria incidente em artigos
do texto supremo e se resolveria por uma reforma constitucional, nos moldes por ela
ditados.319 Hodiernamente, na grande maioria dos países, a crise tanto é constituinte como
constitucional, atingindo tanto os alicerces de legitimação da Lei Maior como partes
específicas do seu texto.
A crise constitucional se desenvolve de forma mais aguda nas normas de natureza
programática. Elas não conseguem nem concretizar o objetivo para o qual foram criadas,
nem realizar o conteúdo previsto no texto constitucional através da obrigatoriedade de
execução, por parte dos poderes constituídos, porque ocupam o ápice do ordenamento
jurídico apenas de forma retórica; a legitimidade que ampararia a sua eficácia é esvaída da
sociedade. O modelo constitucional não serve mais para traçar o desenho político da
sociedade, seu papel restringe-se à garantia dos direitos de primeira dimensão, deixando as
demais dimensões ao relento.
A crise constitucional apresenta importância na análise porque produz conseqüências
que atingem a jurisdição constitucional. A dimensão dos conflitos que são postos sob
apreciação da jurisdição constitucional exige que o órgão que a exerce, no caso brasileiro o
Supremo Tribunal Federal, tenha uma maior legitimidade para que as suas decisões possam
conter um maior respaldo na sociedade.
319 Explica Paulo Bonavides: “ uma, de todo superficial, não arranha as instituições, não perturba os mecanismos funcionais do sistema, não excede os limites de conservação da ordem jurídica estabelecida, não faz necessário substituir o regime; cinge-se tão-somente a impetrar-lhe a reforma [...] A outra, ao contrário, mais profunda, corrompe, fere e abala as instituições. De tal sorte que, ao intensificar-se, as destrói ou tende a destruí-las nos seus elementos vitais”. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado Institucional. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 45.
238
Portanto, a essência da crise constitucional reside na ausência de eficácia dos
dispositivos da Constituição. Esse desfalecimento de eficácia da Lei Maior é uma
decorrência do próprio enfraquecimento do papel do Estado como responsável pela
implementação de políticas públicas, que passam a ser realizadas cada vez mais por órgãos
privados. A supremacia dos mandamentos constitucionais resta maculado devido à
pluralidade de instituições com poderes normativos, com esferas de incidência que não são
reguladas pelo poder público, mas a partir de decisões individuais. O processo de
globalização também aprofunda a crise constitucional, em que importantes decisões são
tomadas por órgãos estranhos à soberania estatal, devendo a Constituição se adequar a essas
normas e não essas normas se adequarem ao texto constitucional.320
10.3) A Crise de Legitimação da Jurisdição Constitucional
A teoria tradicional da legitimação da jurisdição constitucional parte do princípio de
que o seu substrato se encontra no ordenamento jurídico. A legitimidade da jurisdição
constitucional depende da legitimidade do Direito vigente, obtida pelo apoio popular às
medidas implementadas pelo parlamento. Por sua vez, as normas jurídicas dependem para
alcançar sua vigência de preencher todos os procedimentos dispostos na Constituição e nos
regimentos internos do Congresso Nacional. O Poder Judiciário, na concepção clássica da
separação dos poderes, deve se restringir a apenas declarar a lei ao caso concreto, utilizando
dispositivos normativos já previamente existentes no ordenamento jurídico.
A crise de legitimação da jurisdição constitucional surge como um reflexo da crise
do direito legislado, quando o programa previamente estabelecido pelas normas jurídicas,
que é cada vez mais cambiante, não mais atende aos anseios dos cidadãos. A multiplicidade
do tecido social e o crescimento geométrico das demandas sociais impedem tal antevisão
normativa. Faz-se necessário uma construção interpretativa das decisões judiciais, haja vista
320 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo delle Istituzioni. Bologna: Mulino, 2002. P.109.
239
que o Direito deve ser estruturado em princípios, com o intento de evitar antinomias entre a
normatividade e a normalidade,321 em que o Judiciário estabelece uma ligação com a seara
fática e com o caráter sistêmico do ordenamento, realizando a concretização dos objetivos
políticos traçados pela Carta Magna, consonante a densidade dos princípios jurídicos.
Como a legitimação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, de um modo
geral, sempre foi amparada em precisos parâmetros legais, baseando-se no primado da lei
formal elaborada pelo Poder Legislativo e da completude do ordenamento jurídico, o debate
acerca da legitimidade da jurisdição constitucional não apresentava relevância. Quando a
primazia da lei formal, oriunda do Legislativo, entra em declínio, propiciando as condições
para o desenvolvimento da atuação judiciária, as contestações com relação a essa expansão
se avolumam porque a sua atividade não estaria mais restrita ao padrão clássico da
subsunção da norma geral ao caso particular, aumentando o arbítrio dos juízes que
compõem o órgão, exercendo a jurisdição constitucional para concretizar os dispositivos
contidos na Constituição.
Essa crise ganha contornos mais agudos quando as decisões da jurisdição
constitucional tomam uma densidade política mais ampla, não apenas declarando a
inconstitucionalidade das normas, mas ao mesmo tempo exigindo determinadas posturas dos
outros poderes. O judiciário passa a trabalhar com uma margem de liberdade maior, atuando
não apenas como um legislador negativo, mas freqüentemente como legislador positivo para
cumprir o conteúdo das normas contidas na Carta Magna, ou até mesmo, criando estruturas
normativas não existentes no ordenamento jurídico.
A questão essencial tem como fundamentação o princípio da soberania popular, base
do regime democrático. Como que uma norma emanada do Poder Legislativo, estabelecida
pelo voto dos cidadãos, pode ser revogada pela jurisdição constitucional que não fora
estabelecida pelo voto universal, mas através de um procedimento legal. Como uma norma
estabelecida por um poder que conta com a representação popular pode ser revogada por um
poder que não dispõe dessa representação. Até que ponto a atuação da jurisdição
321 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 296.
240
constitucional, no sistema do civil law, não se configuraria uma apropriação das atribuições
do Poder Legislativo quando uma decisão sua trouxesse inovações para o ordenamento
jurídico? 322
A crise de legitimação da jurisdição constitucional se evidencia, no caso brasileiro,
quando o Supremo Tribunal Federal toma decisões que extrapolam os limites normativos da
norma, exercendo não apenas um papel de declarar a inconstitucionalidade da lei, mas
igualmente criando estruturas normativas para possibilitar a concretização de prerrogativas
contidas na Constituição, que são relegadas pelo Legislativo e Executivo ou criando
cominações normativas que não existiam na Constituição. Qual a sua legitimidade para atuar
nessas hipóteses e naquelas em que há uma maior discricionariedade para definir os efeitos
da declaração de inconstitucionalidade?
O advento do Estado Democrático Social de Direito não pode ser tomado como
marco para um maior alargamento das funções da jurisdição constitucional e do Poder
Judiciário. De modo geral, esse processo começou muito antes, só que de forma restrita e
pouco perceptível. Quando o Estado de Direito se transforma em Estado Social de Direito já
há uma maior necessidade de atuação do Judiciário para garantir determinados direitos
materiais para a parte da sociedade mais desfavorecida. Apenas quando os entes estatais têm
que atuar de forma incisiva na sociedade, para realizar as prestações esculpidas na
Constituição e desenvolver os direitos da democracia participativa, é que a Jurisdição
constitucional se torna imprescindível para a criação de um Estado Democrático Social de
Direito.
A transformação do Estado de Direito em Estado Social de Direito assinala a
simbiose entre três elementos imprescindíveis à sociedade moderna: regulamentação da
sociedade pelo Direito, democracia e concretização dos direitos fundamentais. Mirkine-
Guetzévitch assevera que a democracia é expressada em língua jurídica através do Estado de
322 Sintetiza a questão José de Sousa e Brito: “A questão pressupõe, portanto, habitualmente, que o poder legislativo do povo através dos seus representantes eleitos é a dimensão essencial da democracia e que a jurisdição constitucional é uma restrição à democracia na medida em que retira, pelo menos em parte, à lei e sua força. Por que razão deveriam os juízes, que não são legisladores eleitos pelo povo, poder afectar (sic) a força duma lei democrática? Não é isto governo dos juízes em vez de governo do povo?” SOUSA E BRITO, José de. “Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 39.
241
Direito.323 É importante assinalar que a regulamentação da sociedade pelo Direito e a
democracia são os dois elementos que garantem a fecundidade do terreno para o
desenvolvimento dos direitos fundamentais.
A jurisdição constitucional não mais se limita a resguardar a tutela individual dos
cidadãos, preocupando-se, de forma redobrada, com a concretização do welfare state e a
criação de uma rede de proteção para os cidadãos, desequilibrando ainda mais a simetria
entre o Poder Legislativo e o órgão que exerce a jurisdição constitucional. Em um Estado de
bem-estar social, as normas programáticas desempenham relevante função, intervindo em
vários setores da sociedade para garantir direitos mínimos aos hipossuficientes.
Essa reestruturação da arquitetura constitucional dentro dos parâmetros do Estado
Democrático Social de Direito, tem de uma forma imediata duas conclusões. Por um lado ela
oferece uma resposta às demandas da população, que, como foi exposto, em uma sociedade
altamente diferenciada como a pós-moderna, exige amplos serviços por parte dos órgãos
estatais. Dentro desse prisma a re-estruturação pode ser considerada como benéfica,
significando a evolução da arquitetura constitucional para cumprir a sua função social. Por
outro lado, inexoravelmente, ela exigirá uma remodelação da teoria de legitimação das
decisões da jurisdição constitucional, que não mais se sustenta com a legitimidade advinda
da separação clássica dos poderes, em que a atividade do Poder Judiciário se resumia à
aplicação da lei ao caso concreto.
A maior incidência das decisões da jurisdição constitucional não é um fato episódico,
mas uma realidade duradoura, atrelando-se de forma umbilical às novas necessidades
sociais. Um retorno ao patamar das decisões anteriores apenas se configura possível com um
retorno ao Estado Liberal, no qual os cidadãos não tenham mais resguardados os seus
direitos fundamentais. Atrás de toda essa discussão, acerca da crise de legitimidade da
jurisdição constitucional, está o medo da transformação de um “governo da lei” em um
323 “A democracia expressa em linguagem jurídica é o Estado de Direito, é a racionalização jurídica da vida, porque o pensamento jurídico conseqüente conduz a democracia, como única forma do Estado de Direito. A democracia pode realizar a supremacia do Direito; eis porque o Direito Constitucional geral é o conjunto das formas jurídicas da Democracia, do Estado de Direito”. MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. As Novas Tendências do Direito Constitucional. Trad. Candido Motta Filho. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1933. P. 45.
242
“governo da magistratura”, porque o Poder Legislativo cria as normas, mas é o Poder
Judiciário quem decide acerca de sua constitucionalidade, dando a palavra final.
O aumento da atividade da jurisdição constitucional tem o escopo indelével de
garantir a concretização dos direitos fundamentais. Quanto maior o desenvolvimento das
dimensões dos direitos fundamentais (hoje se pode falar na quinta geração dos direitos
fundamentais) maior será a necessidade de atuação da jurisdição constitucional para
assegurá-los. Portanto, o desenvolvimento da jurisdição constitucional liga-se de forma
umbilical ao incremento dos direitos fundamentais.
E, conseqüentemente, quanto maior for a extensão da atuação da jurisdição
constitucional para preservar os direitos fundamentais e os preceitos da Lei Maior, avultar-
se-á a crise de sua legitimidade e maior será a necessidade de amparar essas atividades
através de procedimentos democráticos, que possam densificar a legitimidade do órgão que
as exerce. Diante das necessidades hodiernas, cada vez mais as decisões judiciais, para
atender às demandas constitucionais, são obrigadas a realizar interpretações construtivistas,
ultrapassando os limites impostos pela tradicional teoria da repartição dos poderes,
assumindo a jurisdição constitucional um função ativa na concretização dos mandamentos
constitucionais.
Para cumprir as demandas de um Estado Democrático Social de Direito, a jurisdição
constitucional é levada a exercer um alargamento nas suas decisões, quer seja de modo
implícito, quer explícito, e a sustentar essa atuação exclusivamente com base no
cumprimento dos postulados legais, o que sobrecarregaria demasiadamente o princípio da
legalidade indiretamente legitimado pela soberania popular.
Mas, por que as críticas são direcionadas, quase que exclusivamente, com relação às
decisões da jurisdição constitucional se, em cada uma das interpretações realizadas pelo
Poder Judiciário, existe um determinado teor de construção judicial ? Porque as decisões da
jurisdição constitucional são as que mais afetam a estruturação do poder na sociedade,
definindo os limites da atuação de cada um dos poderes instituídos.
243
As maiores críticas com relação à legitimidade da atuação da jurisdição
constitucional não ocorre nem no controle difuso de constitucionalidade, onde a análise se
reduz a um caso concreto, nem no controle abstrato clássico, em que o Judiciário retira do
ordenamento jurídico normas que foram feitas pelo Poder Legislativo, em contradição com
as determinações da Constituição. Ocorrem, de forma preponderante, quando a decisão
judicial incide tanto no controle concentrado como no controle difuso, colmatando as
omissões do Legislativo e do Executivo em realizar as prestações garantidas pela Lei Maior,
dentro de uma função que não lhe é típica, segundo os traços da teoria clássica da repartição
dos poderes.
Por trás dessa questão há uma modificação de paradigmas. Primeiro, a maior parte
das decisões judiciais hodiernas se refere a uma relação jurídica que no mais das vezes
abrange uma pluralidade de sujeitos, afastando-se do vetor liberal em que as contendas, em
regra, tinham duas partes; segundo, as decisões da jurisdição constitucional para realizar as
prerrogativas constitucionais devem ter eficácia concretiva, devendo até mesmo vincular os
outros poderes, no que relega à concepção clássica de jurisdição constitucional, em que
muitas de suas decisões têm efeitos meramente declaratórios.
Um dos pontos de discussão é se essa maior atuação da jurisdição constitucional não
pode resultar em sua auto-regulamentação, em que há uma perda dos referenciais de contato
com a sociedade e suas necessidades, exercendo o Supremo Tribunal Federal as suas
funções, sem nenhum substrato de legitimidade que possa fomentar um canal com as
demandas sociais. O mérito dessa ampliação, na atuação do Judiciário, configura-se
indiscutível, a problemática se direciona para criar formas de controle social que assegurem
a legitimidade de suas decisões.
Esse contexto de crise da jurisdição constitucional não é um caso circunscrito apenas
à realidade brasileira, refletindo-se igualmente em outros países, até mesmo na comunidade
européia.324
324 “A “questão judiciária” se deriva principalmente do fato de que as organizações judiciárias italianas – ou ao menos boa parte destas – não são atualmente preparadas para fazer frente ao que se denomina de “demanda de justiça”, isto é, de pronunciar-se, em tempo razoável e em modo eficiente e juridicamente correto, sobre as
244
10.3.1) O Aumento da Atuação da Jurisdição Constitucional e do Poder
Judiciário
No presente tópico, será estudado o incremento nas funções da jurisdição
constitucional e do Poder Judiciário de forma conjunta porque são temas conexos, seja no
Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal, órgão que exerce a jurisdição constitucional,
representa o ápice da estrutura judiciária, seja nos países europeus que adotam o modelo de
tribunal constitucional, que são órgãos independentes da composição do Judiciário.
A jurisdição constitucional representa um dos pilares básicos para o estabelecimento
do Estado Democrático Social de Direito adquirindo um papel imprescindível para a
concretização dos dispositivos constitucionais, ultrapassando, por causa desse motivo, os
modestos limites de sua atuação atribuída por Montesquieu.325 Devido ao relevante papel
que ocupa no ordenamento jurídico, o aumento das prerrogativas da jurisdição constitucional
representará o incremento nas funções da jurisdição ordinária.
Atualmente, assiste-se a um aumento no exercício das funções judiciárias e da
jurisdição constitucional em quase todos os países ocidentais. Afora os países que seguem o
sistema do common law, pelas peculiaridades que lhes são inerente, essa preponderância de
atuação não encontra um respaldo histórico de longa data, sendo forcejado mais por
contingências fáticas, fruto do desenvolvimento do sistema econômico. A afirmação feita
por Alexandre Hamilton, de que o Judiciário é o mais frágil dos três poderes, pois não
dispõe nem da espada, nem da bolsa para garantir auto-executoriedade de suas decisões, por
isso encontra-se ultrapassado pela evolução da sociedade.326 Tocqueville também não
demandas e os recursos que são apresentados nas instâncias civil, penal, administrativa, tributária e contábil”. PIZZORUSSO, Alessandro. La Costituzione. I Valori da Conservare, Lê Regole da Cambiare. Torino: Einaudi, 1996. P. 149. 325 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 10. 326 “Qualquer um que analisar atentamente os poderes que formam um Estado poderá perceber que em uma Constituição em que eles sejam rigorosamente separados, o poder que apresenta um menor perigo para os direitos políticos sancionados pela Carta Magna será sempre o Judiciário, pela própria natureza das funções que ele desenvolve, haja vista que ele terá sempre as menores prerrogativas para obstacular ou afrontar os outros poderes. O Executivo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da
245
considera que o Poder Judiciário possa ser visto como um superpoder pois lhe faltam as
condições necessárias para sobrepujar os demais poderes, uma vez que deve pautar as suas
decisões pelos mandamentos legais.327
Como a denominação desse tópico é muito abrangente convém especificar o que vem
a ser o aumento da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário. Ele significa que a
atuação desses órgãos passa a incidir em esferas que até então estavam livres do seu
controle, como é o caso da esfera política. Por causa da expansão das decisões de natureza
jurisdicional, os Poderes Legislativo e Executivo têm atrelado as suas atividades em
sincronia com os parâmetros adotados pela jurisdição constitucional e pelo Poder
Judiciário.328
Para Neal Tate e Torbjörn são vários os fatores que contribuem para expandir a
atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário. Em âmbito internacional, os
citados autores elencam os seguintes fatores: a falência do socialismo totalitário do leste
europeu e o desaparecimento da União Soviética, deixando os Estados Unidos como a única
superpotência, e como eles são o centro do judicial activism, a influência desse modelo foi
avassaladora; o processo de democratização da América Latina, Ásia e África que
possibilitou um maior desenvolvimento da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário,
alicerçando-se no princípio da legalidade; a influência da jurisprudência e da ciência política
americana, que assumem grande importância por causa do sistema do common law; o
espada. O Legislativo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. Ele não apenas tem a bolsa, mas, absolutamente, estabelece as normas que delineiam os direitos e os deveres de cada um dos cidadãos. O Judiciário, ao contrário, não pode influenciar nem com a espada nem com a bolsa, não pode administrar nem a força nem a riqueza da sociedade e não pode proferir alguma decisão que seja verdadeiramente auto-executável”. HAMILTON, Alexandre. Il Federalismo. Trad. Biancamaria Tedeschini Lalli. Milano: Edizioni Olivares, 1980. P. 218-219. 327 “Os americanos entregaram aos seus tribunais um imenso poder político; todavia, obrigou-os a atacar a lei apenas com meios jurídicos, dessa forma diminuíram em muito o perigo deste poder. Se os juízes pudessem se pronunciar contra uma lei de maneira teórica e geral; se pudessem tomar a iniciativa de censurar os legisladores, tornando-se partidário do interesse de algum partido, poderiam excitar todas as paixões que dividem o país e poderiam fazer parte dessa luta”. TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 104. 328 After the manner of a judge; with judicial knowledge and skill
246
significativo papel desempenhado pelas cortes internacionais, como a Corte de Direitos
Humanos de Strasburgo.329
O fator que mais força exerce para o alargamento da atuação da jurisdição
constitucional é o fortalecimento dos direitos fundamentais, que ocorre de forma global,
principalmente nas democracias ocidentais. Quanto maior for o recrudescimento dos direitos
fundamentais, maior deverá ser a atuação da jurisdição constitucional para garantir a sua
concretização. Ao mesmo tempo em que esta é uma de suas funções é uma forma de
legitimar a expansão de sua atuação, além de garantir um direcionamento para a sua atuação.
Um maior aumento do âmbito de atuação da jurisdição constitucional também
dependerá do grau de preparo e do teor de reputação que gozam os seus membros. Quanto
mais bem fundamentadas forem suas decisões e maior notoriedade de conhecimentos
tiverem os seus componentes, maior serão a sua aceitabilidade no meio jurídico. De igual
modo, no tocante à honorabilidade dos juízes, esta deve ser impecável, tanto na sua conduta
pessoal como profissional.
As influências internacionais de forma clara se estendem a todos os países, não de
forma homogênea, variando muito a sua intensidade de acordo com as suas realidades sócio-
político-econômicas. Em âmbito nacional, essas causas são muito peculiares a cada um dos
países, podendo-se apontar como elemento unificador dos casos a atuação cada vez mais
presente da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, em todas as esferas da atuação
estatal.
Nos países periféricos, que não têm uma longa tradição de respeito às leis, a
jurisdição constitucional nunca desempenhou o seu papel de forma autônoma. Na maioria
dos países, ela sempre foi atrelada à elite política e econômica, servindo como um órgão que
tem a missão de chancelar as decisões políticas. Todavia, mesmo com essa limitação, em
virtude dos fenômenos anteriormente mencionados, tanto nacionais como internacionais,
assiste-se nos países periféricos, de forma paulatina, ao fortalecimento da jurisdição
329 TATE, C. Neal & VALLINDER, Torbjörn. “The Global Expansion of Judicial Power: The Judicialization of Politics”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 2-4.
247
constitucional como forma de propiciar uma maior proteção às disposições jurídicas,
principalmente às normas constitucionais.
As formas de expansão da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário ocorrem
em escala global, embora não sejam uniformes, variando de acordo com o peso das
influências internacionais e nacionais. Indubitavelmente, a forma mais genérica que ela
ocorre é com o controle de constitucionalidade das normas, que incide tanto em atos do
Poder Legislativo, quanto do Poder Executivo.
A forma de expansão da jurisdição constitucional que mais suscita oposição, tanto do
Poder Executivo como do Poder Legislativo e dos partidos políticos, é quando ela mitiga as
decisões políticas, chegando ao ponto, em alguns casos mais extremos, de as substituir. Esse
tipo de decisões é mais freqüente nos Estados Unidos, mas de igual modo ocorre na Europa
e até mesmo no Brasil, como foi o caso da obrigação de verticalização das coligações na
eleição de 2002.
Ela ocorre quando a jurisdição constitucional, sem o amparo em normas
constitucionais, substitui os atores sociais tradicionais da esfera política e passa a proferir
decisões políticas. Um dos motivos para esse fato acontecer é porque os atores políticos
envolvidos não conseguem chegar a uma solução adequada devido ao grande antagonismo
existente na sociedade. Como nenhum dos lados quer arcar com os custos políticos de uma
decisão controversa, transfere-se a decisão ao órgão que exerce a jurisdição constitucional,
que teoricamente teria um “aspecto técnico e imparcial”.
Essa delegação de função não é feita de forma explícita, pois haveria o risco de
desmoralização do Poder Executivo e do Legislativo. Assim, ela ocorre de forma reflexa, em
que a decisão chega à jurisdição constitucional pelos meios jurídicos convencionais. O
imobilismo que graça nesses poderes é uma das conseqüências do seu distanciamento das
demandas populares, consagrando a ineficiência dos órgãos representativos. O
enfraquecimento dos Poderes Legislativo e Executivo abre caminho para uma maior atuação
da Jurisdição constitucional. Um exemplo do fato mencionado ocorreu nos Estados Unidos,
onde o Poder Legislativo preferiu silenciar a respeito da proibição ou não do aborto, levando
248
a questão a ser resolvida por uma decisão da Suprema Corte norte-americana, no caso Roe
versus Wade.
Grande expansão na sua atuação se registra, de forma substancial nos Estados
Unidos e na Inglaterra, nos mais diversos órgãos administrativos e agências reguladoras,
onde que a jurisdição constitucional e o Poder Judiciário, com preponderante atuação desse
último, ditam a forma que os atos devem conter, e em alguns casos extremos, até mesmo o
seu conteúdo.330 De forma freqüente, vem ocorrendo a intervenção judicial nos atos
administrativos, no sentido não apenas da proteção aos princípios constitucionais, mas com
a finalidade de que esses atos sigam os mesmos procedimentos exigidos para a feitura dos
atos judiciais.
A expansão da atuação do Judiciário não ocorre apenas com relação ao controle de
constitucionalidade, em suas diversas modalidades, em que a jurisdição constitucional,
amparada no escopo de garantir a supraconstitucionalidade da Constituição, exerce suas
atividades de forma ampla. Ela também se desenvolve nos países do common law, onde o
Parlamento tem as suas funções restritas pelas decisões judiciais.
De acordo com Neal Tate, o processo de judicialização abrange também os espaços
não judiciais e aqueles em que são permitidas decisões através da livre negociação das
partes, fazendo com que o processo realizado nessas instâncias tenha uma natureza quase-
judicial, limitando a auto-composição dos litígios. Dessa forma, o princípio da autonomia da
vontade, que é bastante utilizado na esfera privada, estaria sendo mitigado pelo processo de
judicialização. O principal argumento para essa abrangência é a defesa dos direitos
fundamentais, que legitima a incidência em atividades que estavam sob a proteção do pacta
330 “Aqui um exemplo pode ser encontrado nas atividades realizadas pelos tribunais administrativos da Grã-Bretanha. Em parte, seguindo as recomendações do Frank’s Committee de 1957, provocando em grande medida a judicialização dos atos administrativos, através do estímulo realizado pelo Conselho dos Tribunais[...].O que significa mais decisões judiciais e menos espaço para as decisões administrativas. Um exemplo similar pode ser fornecido através da American Administrative Procedure Act, de 1946, e no fato de que as agências administrativas norte-americanas disponham de “juízes administrativos”, que podem ser ouvidos em muitas decisões, freqüentemente em assuntos que não têm natureza judicial”. VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 16.
249
sunt servanda.331 Exceção a esse elastecimento da incidência da jurisdição constitucional
pode ser verificada nos países periféricos, onde, em virtude do processo de
desregulamentação da economia, o espaço de decisão, mormente dos marcos regulatórios, se
encontra nas mãos de órgãos de natureza privada.
A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário vêm expandindo as suas funções de
modo concomitante, com o avanço da crise que permeia o paradigma do direito positivo
tradicional, que tem como sua fonte preponderante o Poder Legislativo. Como os fatos
sociais são cada vez mais dinâmicos para se adequarem a lex mercatoria, as estruturas
normativas não podem mais ser feitas com a pretensão de vigência indefinida. Elas devem
ser cada vez mais flexíveis para se adaptarem às mutações da sociedade. Cabe à jurisdição
constitucional e ao Poder Judiciário redefinirem as leis para aplicar aos casos concretos,
garantindo a completude sistêmica diante de fatos que não podem ser enquadrados em
normas previamente definidas.
Eles mantêm a atualidade do ordenamento jurídico em uma sociedade
constantemente em mutação, multipolar e fluida. A exclusividade da produção normativa
nas mãos do Poder Legislativo sofre um processo de forte arrefecimento, em que o processo
legislativo não pode mais se adequar ao cambiamento das necessidades. O Poder Judiciário
passa também a exercer uma função normogenética, através da jurisprudencialização de suas
decisões, em que o fundamento legal deixa de ter por base a estrutura normativa e passa a se
alicerçar nas próprias decisões do Judiciário. Da mesma forma, é cada vez maior o seu
espaço de atuação, com base na competência suplementar, em que o próprio legislador deixa
um amplo campo normativo para a atuação dos magistrados diante do caso concreto, com a
escusa de garantir a completude do ordenamento jurídico.
É de bom alvitre salientar, que o princípio da exclusividade da produção normativa
nas mãos do Legislativo não foi considerado absoluto nem mesmo nos países que adotaram
o civil law, no auge do positivismo jurídico. A concorrência na produção normativa,
enfrentada pelo Poder Legislativo diante da expansão da jurisdição constitucional, é um fato
331 TATE, C. Neal. “Why The Expansion of Judicial Power”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 28.
250
relativamente recente. Contudo, o dogma da exclusividade da sua produção nunca foi
absoluto. Historicamente, a principal objeção a essa exclusividade por parte do Legislativo
sempre foi oposta pelo jusnaturalismo, que acreditava na existência de leis que seriam
imanentes à natureza humana e, portanto, não precisariam ser criadas por esse poder.
De igual forma, contribui para essa expansão a heterogeneidade de que é formado o
tecido social, em que a diversificação da infra-estrutura econômica origina numerosos postos
na cadeia produtiva, com interesses os mais variados. Além do que, a produção normativa
deixa de ser feita exclusivamente pelo Poder Legislativo e passa a se realizar por uma
multiplicidade de órgãos, propiciando um estado de incerteza e de insegurança normativa.
Esses dois efeitos impedem a criação de uma norma geral, que contemple os mais variados
interesses sociais e que conte com o respaldo das diversas fontes normativas.A jurisdição
constitucional e o Poder Judiciário, então, são os órgãos estatais que têm a missão de fixar o
sentido jurídico das normas e solucionar os litígios sociais.
Diante da multiplicidade e heterogeneidade das fontes normativas, que muitas vezes
produzem antinomias legais, e da heterogeneidade do tecido social, a jurisdição
constitucional e o Judiciário se transformam em uma fonte jurídica preponderante, pois
cabe-lhes sistematizar o ordenamento jurídico e firmar a lei que deve ser aplicada em cada
caso concreto. Eles, devido à prerrogativa de aplicar o jurisdictio, são os órgãos estatais que
podem tanto intermediar os conflitos ocasionados pela heterogeneidade do tecido social e
pela pluralidade normativa, como resolvê-los a contento, tomando como parâmetro os
mandamentos contidos na Constituição.332
A expansão da atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno
restrito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua esfera
ordinária. E não se limita apenas a um país, observando-se em todos os continentes. Nos 332 “Rarefação e onipresença são as duas fases da mesma medalha: o Direito realizado pelo Poder Judiciário é mais leve do que o Direito produzido pelo Poder Legislativo, capaz de se auto-modificar, de assumir uma forma diversa, de seguir a trajetória das necessidades fluídas que se desenvolvem em uma sociedade largamente guiada pelos mecanismos de mercado; inerente ao modelo utilizado pelo mercado para incrementar suas relações, confiando a muitos sujeitos e em situações em perene evolução. O Direito produzido pelo Poder Legislativo se caracteriza com o Direito do presente por excelência, porque, não obstante adequar a norma ao fato passado, é igualmente lugar de reinvenção jurídica, sobretudo, mas não apenas, em matéria de Direito”. FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 201-202.
251
Estados Unidos, a Suprema Corte e a magistratura sempre desempenharam um papel ativo
na sociedade, inclusive construindo a doutrina do judicial activism; na Alemanha, há vários
posicionamentos do Tribunal Constitucional assegurando a concretização dos direitos
fundamentais; na Espanha, além das firmes decisões do seu Tribunal Constitucional, pode
ser mencionado o caso do pedido de extradição de Pinochet; na Itália, a campanha
promovida nos anos noventa contra a corrupção política e a máfia; na França, o combate aos
desmandos políticos etc.
Na esfera penal a atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário tem se
mostrado bastante desenvolvida, principalmente nos países europeus. Nessa função há uma
recuperação de vetores éticos da política, como o princípio da moralidade, do interesse
público etc. A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário nesses casos são chamados a
intervir para assegurar a substancialização da seara política, mediante princípios ético-
morais, ao mesmo tempo em que contribuem para suprir o déficit de legalidade que existe no
gerenciamento da coisa pública.
Essa extensão na atuação da jurisdição constitucional e do próprio Poder Judiciário
tem gerado atrito com os demais poderes, o que motiva o Poder Legislativo a formular
vários projetos legislativos com o desiderato de podar as prerrogativas dos tribunais
constitucionais e da magistratura, em sentido geral. Mas, mesmo que os projetos de lei
sejam concretizados, a amplitude da atuação das Cortes Constitucionais e dos Tribunais não
será arrefecida, em primeiro lugar, porque há uma crise no arcabouço normativo, fruto da
sociedade pós-moderna, que cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque
diante da caótica e abundante produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma
interpretação técnica para saber qual a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso
concreto. Essa produção caótica esquece de uma parêmia clássica do processo legislativo: de
que as leis devem ser simples e claras, construídas de maneira a mais precisa possível, a fim
de evitar problemas na sua interpretação.333
333 CARBASSE, Jean-Marie. Introduction Historique au Droit. 2 ed., Paris: Presses Universitaires de France, 1998. P.293.
252
Como a tendência das disposições normativas é a de ser mais genérica e abstrata para
atender às necessidades da coletividade, o alcance da extensão das decisões da jurisdição
constitucional e do Poder Judiciário, de uma forma geral, não tenderá a diminuir, o que se
leva a buscar uma limitação legal para essa atuação e uma fundamentação de legitimidade,
que possa colocar essas importantes decisões sob o controle da população.
Em alguns países, como a Itália por exemplo, tenta-se uma legitimação não apenas
para a jurisdição constitucional, mas para todo o Poder Judiciário através da mídia, onde os
membros da magistratura aparecem como os defensores dos valores morais, da sociedade,
dos hipossuficientes etc, e esse mecanismo permite uma crescente participação da
magistratura na vida pública de toda a Europa.334 O que leva o professor Danilo Zolo a
chamar esse tipo de democracia de “espertocracia giudiziaria”.335
As decisões dos órgãos incumbidos de exercer a jurisdição constitucional produzem
um grande impacto nas políticas públicas, fazendo com que eles não se comportem apenas
como um legislador negativo, garantindo o caráter sistêmico da Constituição, mas atuem
como um verdadeiro “judicial law-maker”.336 Muitas de suas decisões possuem um grande
impacto nas políticas governamentais, pois são tomadas sob grande influência política, e em
alguns casos sob motivação política. A jurisdição constitucional é acusada de se preocupar
mais com as garantias dos direitos, do que com as garantias do princípio democrático.337
O aumento da atuação do Poder Judiciário, como um todo nas sociedades ocidentais,
tem levado muitos autores a sustentar que está ocorrendo uma involução no Estado
Democrático Social de Direito, transformando-se em um Estado Jurisdicional, em
decorrência de que o Judiciário e os tribunais constitucionais não adquirem sua legitimidade
diretamente do sufrágio universal.
334 O governo italiano de Sílvio Berlusconi acusa setores da magistratura italiana de giacobinismo, devido à autonomia exacerbada de que goza o Poder Judiciário, transformando a sua atuação em instrumento de terror e não na garantia da liberdade. GAMBINO, Sílvio. Magistratura e Potere Político.Extraído do site: http: //www. associazionedeicostituzionalisti.it/ dibattiti/magistratura/gambino.html. Capturado em 20/01/2003. P.9. 335 ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n. 11. 1998. P. 449. 336 SPIROVSKI, Igor. The Role of Constitutional Court in the Building of the Constitutional Democracy. Capturado do site http: //www.eur.nl/frg/iacl/papers/spirovski.html. Capturado em 24/02/2003. P. 1 337 PORTINARO, Pier Paolo. “Oltre lo Stato di Diritto. Tirannia dei Giudici o anarchia degli avvocati?”. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88. P. 391 e 396.
253
Outra conseqüência dessa tendência é uma maior regulamentação da esfera política,
ou seja, uma jurisdicização da política, com o objetivo de atrelá-la ao bem comum e permitir
uma licitude dos pleitos.338 Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se
imiscuir em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em
muitas de suas decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz
política resta clarividente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de
acordo com as suas conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição.
Toda essa desenvoltura no desenvolvimento das atividades da jurisdição
constitucional tem como amparo o papel privilegiado que ela desempenha, como instância
última de interpretação das normas jurídicas. Das decisões em última instância da jurisdição
constitucional não cabe nenhum tipo de apelação, sendo inclusive a coisa julgada
considerada em muitos ordenamentos como direito fundamental, como o objetivo de
consolidar as sentenças judiciais. Como os tribunais constitucionais são a última esfera de
decisão, eles detêm um grande poder que, se não se atrelar aos ditames da Constituição,
pode redundar em decisões que careçam de legitimidade e ocasionem lesões aos interesses
populares.
O incremento na atuação do Poder Judiciário e, principalmente, da jurisdição
constitucional não significa, por si só, em uma vantagem ou desvantagem. Se ele se
transformar em um instrumento de produção normativa, sem o estabelecimento de
parâmetros com a sociedade, através de uma legitimação auto-referencial, baseada em
procedimentos judiciais, será uma atuação danosa, que afetará o regime democrático e os
direitos fundamentais. Entretanto, se essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema
de freios e contrapesos, com o escopo de garantir os direitos fundamentais e o
aperfeiçoamento do regime democrático, será uma atividade benéfica e ensejará a real
concretização de um Estado Democrático Social de Direito.
338 “A transformação da política em direito vem, digamos de forma paulatina, sendo criada não pelo legislador antecipadamente, mas pelos magistrados diante do caso singular, como lex specialis. É um tipo de produção normativa que se denomina de criação jurídica do Direito”. CALAMANDREI, Piero. Opere Giuridiche. Tomo I, Napoli: Morano, 1965. P.642.
254
10.3.2) O Papel do Judiciário na Concepção Tradicional dos Três Poderes
A inspiração para a moderna separação dos poderes provém da Grécia antiga e de
Roma, desenvolvida pela teoria denominada de governo composto (mixed government). Esta
teoria está baseada no reconhecimento dos grupamentos sociais que fazem parte da
sociedade, em que cada um deles participa das decisões estatais. Essa divisão de poder é
realizada com base em departamentos separados, com a finalidade precípua de impedir a
formação de governos ditatoriais, sem o objetivo de buscar uma maior eficiência dos
serviços prestados.
As duas principais diferenças entre a teoria da separação dos poderes e a do governo
composto é que nesta não existe uma divisão de funções, como por exemplo entre cada um
dos três poderes, como a existente na separação de poderes, desempenhando os órgãos do
governo todas as funções existentes no Estado e a segunda é que no governo composto não
existia a estruturação de um Poder Judiciário como o que foi idealizado na teoria da
separação dos poderes.339
John Locke, no seu livro “O Segundo Tratado sobre o Governo”, delineia o Estado
composto por três poderes, fundamentado no estado de natureza: Executivo, Legislativo e
Federativo. Segundo o mencionado autor, a função do Poder Executivo é a execução das leis
civis da sociedade, especificamente dentro do seu espaço territorial. O Poder Legislativo tem
a missão de prescrever a forma como a força do Estado deve ser usada para proteger a
sociedade. Em decorrência da força atribuída por Locke a esse poder, não era necessário que
ele exercesse as suas atividades de forma contínua, evitando que o Legislativo se exonerar-
se do cumprimento das leis, por ele mesmo produzidas. O Poder Federativo tem a função de
zelar pela segurança e pelos interesses da sociedade no estrangeiro, cabendo-lhe as
prerrogativas de decretar a guerra ou celebrar a paz, de realizar tratados e fazer todas as
339 REDISH, Martin H. The Constitution as Political Structure. New York: Oxford University Press, 1994. P.103.
255
negociações internacionais. Na estruturação do Estado de Locke ele não havia previsto o
Poder Judiciário.340
A separação dos poderes, nos moldes que concebemos atualmente, foi formulada por
Montesquieu, na sua Esprit des Lois (1748), com uma finalidade essencialmente política,
para contrapor-se à monarquia absolutista francesa, tomando como parâmetro o modelo
político inglês. A essência da sua tese era que cada um dos poderes do Estado exerce uma
determinada função precípua, de forma autônoma e distinta das demais, de forma que cada
um deles pudesse mitigar o outro, quando houvesse uma extrapolação de poder. Para ele, o
maior objetivo da separação dos poderes era evitar o absolutismo, por intermédio da
fragmentação do poder que estabelece um equilíbrio na sua atuação.
Para Montesquieu, a liberdade política somente pode ser encontrada em governos
moderados, considerados como tais aqueles em que não há abuso de poder. Em decorrência
da experiência haurida da história, verificou-se que o homem que detém um determinado
poder tende a extrapolá-lo, perpetrando abusos, necessitando, para que se evite essa situação
que um poder seja limitado por outro. Destarte, Montesquieu formulou a teoria de separação
dos poderes, em que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário exercem uma
determinada função específica.
Quando há uma concentração de poder, o governo deixa de ser moderado e abre
caminho para um governo despótico. Explica Montesquieu: “Quando em uma mesma pessoa
ou em um mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo é unido ao Poder Executivo,
não pode haver liberdade porque se pode temer que o mesmo rei, ou o mesmo senado, faça
leis arbitrárias para segui-las de forma arbitrária. Também não existe liberdade se o Poder
Judiciário não é separado do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Se fosse concentrado
com o Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: de
fato os juízes tornar-se-iam legisladores. Se fosse concentrado como o Poder Executivo, os
juízes teriam força de um opressor. Tudo estaria perdido se o homem ou o mesmo corpo de
340 LOCKE, John. Trattato Sul Governo . Trad. Lia Formigari. Roma: Riuniti, 1974. P. 106-107.
256
magistratura, ou de nobres, ou o povo, exercitassem esses três poderes: o de fazer leis, o de
executar as decisões públicas e o de julgar os delitos e as controvérsias privadas”.341
A primeira aplicação da teoria da separação dos poderes ocorreu em 1776, com a
realização da Constituição da confederação norte-americana, que agasalhou a teoria dos
freios e contrapesos, check and balances, em que um poder fiscaliza se o outro está atuando
dentro dos limites fixados. Depois a separação dos poderes foi adotada pela Constituição
francesa, de 1791 (balance des pouvoirs). Na Inglaterra, o desenvolvimento da teoria do
supreme law of the land prevaleceu à concepção tradicional da divisão dos poderes, com a
finalidade de garantir aos cidadãos prerrogativas mínimas imprescindíveis – os chamados
direitos fundamentais.
O conteúdo semântico da expressão separação dos poderes não é precisa, afinal o
poder não se pode separar. Factualmente, o que há é uma divisão no exercício das funções
estatais, com o fator teleológico de impedir a concentração de poder e também buscar, com a
divisão, uma maior eficiência na realização da função deferida. Ela traz um sentido bilateral,
pois ao mesmo tempo que um poder tem o seu âmbito de atuação limitado, ele também atua
fiscalizando os outros poderes e, portanto, cerceando a atuação dos demais.
Concomitantemente, a teoria da separação dos poderes, ao mesmo tempo que limita as
prerrogativas de um poder, oferece instrumentos para que aquele que fora limitado na sua
atuação possa atuar na fiscalização dos demais, coibindo eventuais acintes ao ordenamento
jurídico.
O fator teleológico preponderante para a criação da separação dos poderes é a
mitigação dos poderes dos órgãos estatais, resguardando os direitos dos cidadãos e
estruturando a atuação dos entes estatais através dos princípios imanentes ao Estado de
Direito. Esse escopo é reforçado por outro tipo de limitação, que se realiza pela separação ou
341 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat de. Lo Spirito delle Leggi. Trad. Beatrice Boffito Serra. 5 ed., V. I. Milano: Universale Rizzoli. 1999. P. 310.
257
divisão dos entes públicos em diversos órgãos, com funções previamente estabelecidas e
exercendo suas atividade de modo harmônico e independente.342
A vinculação de todos os poderes, inclusive o Legislativo, às produções normativas
encontra respaldo no princípio da legalidade, com a presunção de que as leis, que são feitas
por representantes do povo, contam com o consentimento da população. Toma-se uma
concepção de que o Poder Legislativo funciona de acordo com o clamor público e, portanto,
suas decisões estão legitimadas pelo sufrágio universal.
Dentro da perspectiva tradicional, pode ser realizada uma divisão de competência
temporal. As decisões judiciais são concebidas com uma visão de passado, orientando-se
pelo direito positivo, realizado pelo órgão Legislativo. O Poder Executivo elabora suas
decisões com base nas premências do presente. E o Poder Legislativo toma suas decisões
com uma perspectiva futura, vinculado às condutas posteriores.343
A concepção tradicional da divisão dos poderes é utilizada como argumento
contrário à legitimação do aumento da atuação da jurisdição constitucional, basicamente
devido a dois de seus postulados: que todas as decisões judiciais devem ser proferidas dentro
dos parâmetros legais e que a análise de questões, que envolvam elevado grau de
discricionariedade são questões essencialmente políticas e, portanto, estão fora do alcance da
apreciação pela jurisdição constitucional. Essa concepção se encontra um pouco arrefecida
diante da crescente importância da supralegalidade constitucional, em que todos os poderes
estabelecidos atuam para concretizar os dispositivos da Carta Magna, ultrapassando os
limites delineados pela concepção tradicional da divisão dos poderes.
O enquadramento das funções dentro do esquema da rígida tripartição de poder não
corresponde mais às necessidades de uma sociedade pós-moderna, que devido a sua alta
complexidade permite o afloramento das mais diversas necessidades. Em decorrência da
alucinante velocidade como os fatos sociais ocorrem, exigindo respostas imediatas dos
342 AFTALIÓN, R. Enrique et alli. Introducción al Derecho. Conocimiento y conocimiento Científico. Historia de las Ideas Jurídicas. Teoría General del Derecho. Teoría General Aplicada. 3 ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1999. P. 852-853. 343 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva del Diritto e della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizioni Ângelo Guerini e Associati, 1996. P. 293.
258
órgãos públicos, o Poder Legislativo, que para realizar uma lei tem que cumprir um
minucioso e longo procedimento, não pode atender de forma eficiente a essas demandas. A
concepção do Poder Legislativo como órgão único de produção normativa torna-se
insustentável, o Poder Executivo, por intermédio das medidas provisórias, e o Poder
Judiciário, pela extensão das suas decisões, passam a legislar de forma concorrente.
A crise provocada pela extensão da jurisdição constitucional, no princípio da
separação dos poderes, não significa a sua revogação, a sua finalidade prolegômena de
impedir a formação de governos absolutos e forcejar um sistema de freios e contrapesos
ainda é necessário para os regimes políticos. O que entrou em declínio irremediável foi a
rígida separação de funções exercidas por cada um dos três poderes, que não mais
correspondem às demandas da sociedade. A determinação de cada uma das funções a ser
exercidas pelos três poderes foi idealizada no século XVIII, para um modelo de sociedade
que estava entrando na modernidade. As sociedades hodiernas, pós-modernas, são
incompatíveis com essa determinação de funções, devendo buscar novos modelos para
atender as suas necessidades.344
A necessidade de uma reformulação da concepção clássica de divisão de poder pelos
três poderes acontece em razão do célere processo de cambiamento das demandas sociais,
alterando as relações entre a sociedade e o Estado, a tradicional divisão de funções não mais
pode atender às exigências hodiernas, necessitando de uma reformulação profunda para
realizar a sua modernização.
344 No mesmo sentido é o posicionamento de Kelsen: “o conceito de “separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma dessas três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada pelos fatos. Como vimos, não há três, mas duas funções básicas do Estado: a criação e a aplicação do Direito, e essas funções são infra e supra-ordenadas. Além disso, não é possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre a aplicação de Direito – subjacente ao dualismo de poder legislativo e executivo (no sentido mais amplo) – tem apenas um caráter relativo, a maioria dos atos do Estado sendo, ao mesmo tempo, atos criadores e aplicadores de Direito. É impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções. É dificilmente possível e, de qualquer modo, indesejável, ate mesmo que se reserve a legislação – que é apenas um determinado tipo de criação de Direito – a um “corpo separado de funcionários públicos” e se excluam todos os outros órgãos dessa função”. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. P. 385-386.
259
Não se intenciona aqui fazer apologia à tese de que a jurisdição constitucional pode
exercer um papel normogenético sem o amparo de normas constitucionais, nem tão pouco
aplicar padrões estruturais do século XVIII no século XXI, sem nenhuma adequação. A
jurisdição constitucional é um dos esteios de legitimação do regime democrático e a sua
função deve se adequar às demandas atuais da sociedade.
A separação do exercício das funções estatais, com a sua concepção de atuação da
jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, não pode ser concebida nem como um fator
para restringir ou para expandir sua esfera de incidência. Da mesma forma que não se pode
outorgar à jurisdição constitucional a absoluta interpretação jurídica, chegando a ponto de
prescindir do alicerce normativo, também não se pode vincular seu desenvolvimento a
modelos ultrapassados que não mais atendem ao interesse da sociedade. Assim, a separação
do exercício das funções estatais é uma moldura, configurando-se como a verdadeira
essência para uma maior ou menor atuação da jurisdição constitucional às prerrogativas que
lhe são investidas para garantir o conteúdo da Constituição.
11.) Legitimidade da Jurisdição Constitucional
A questão mais sensível com relação à jurisdição constitucional é saber qual o
substrato de legitimidade que a ampara para velar pela concretização da eficácia
constitucional. A razão maior da controvérsia é que as normas ou os atos normativos são
textos legais que são formulados por representantes eleitos diretamente pela população, ou
seja, fruto do princípio da soberania popular. Já os membros do órgão que exerce a
jurisdição constitucional não são providos aos seus cargos por intermédio da vontade
popular, têm seu provimento realizado por indicação do Presidente da República,
necessitando depois da homologação pelo Senado Federal.
260
Então a grande discussão gira em torno de se saber qual a legitimidade que ampara a
jurisdição constitucional para declarar a inconstitucionalidade de normas que são feitas pelo
Legislativo ou pelo Executivo.345 Com qual substrato de legitimidade o órgão que exerce a
jurisdição constitucional retira normas do ordenamento jurídico que foram feitas por
representantes eleitos pelo povo?
A questão não é tão simples com a priori pode parecer. Em verdade, a legitimidade
da jurisdição constitucional não é extraída da vontade direta da população. Hodiernamente,
esse dogma enfrenta contundentes críticas no sentido de que a democracia moderna não
permite a aferição da vontade popular, predominando o interesse dos grupos de pressão, dos
lobbies, da mídia e dos grandes conglomerados econômicos. Em suma: não existe uma
vinculação entre a vontade dos eleitores e dos seus representantes.346
Os poderes Executivo e Legislativo têm sua legitimidade haurida diretamente no
sufrágio universal, apresentando assim um teor de legitimidade que não pode ser
desprezado; o Presidente da República e o Congresso Nacional são eleitos diretamente pelos
cidadãos, ostentando, assim, apoio da população para tomar as decisões políticas
necessárias. Enquanto a legitimidade da jurisdição constitucional, nos moldes tradicionais,
alicerça-se nos dispositivos da Constituição Federal. O Poder Judiciário, que exerce a
jurisdição constitucional, no caso brasileiro, no sistema difuso, igualmente não tem sua
legitimidade haurida diretamente no sufrágio universal. Os juízes são escolhidos através de
concurso público, de provas e títulos, e o exercício de sua jurisdição tem que obedecer a
345 Esclarece Clèmerson Merlin Clève acerca da atividade legislativo do Poder Executivo: “O Executivo chama para si tarefas que, na doutrina liberal, não cabiam no espaço funcional reservado ao Estado, além de outras antes perfeitamente realizáveis pelos particulares. Esse poder, igualmente, invade o território funcional tradicionalmente reservado ao legislador. O fato não constitui novidade. O processo de descentralização da atividade normativa não poderia deixar de contemplar o Executivo que, nas sociedades contemporâneas, participa ativamente do processo legislativo. CLÈVE, Merlin Clèmerson. Atividade Legislativa do Poder Executivo. 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. P. 99. 346 “A lei enquanto obra do legislador e expressão da vontade soberana do povo, que consiste em tradição do século XIX, tornou-se mera ficção, pois seja em virtude da flagrante crise da democracia representativa, seja pelo fortalecimento do poder político dos grupos de pressão, a lei não necessariamente representa o povo, por muitas vezes, desrespeita princípios e direitos fundamentais básicos, com a finalidade de favorecimento de alguns poucos, mais poderosos grupos de pressão”. MORAES, Alexandre de. “Legitimidade da Justiça Constitucional”. In: As Vertentes do Direito Constitucional Contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. P. 559.
261
alguns princípios constitucionais, como o devido processo legal, formal e material, o
contraditório, a ampla defesa etc.
A teoria da soberania popular é descipienda porque a legitimação da escolha dos
membros do órgão, que realizam a jurisdição constitucional e dos membros do Judiciário é
realizada por meio de um processo seletivo de escolha, de taxionomia burocrática que
realiza a aferição da capacidade dos candidatos, sem a necessidade de um processo eleitoral,
amparado no sufrágio universal.347
Apenas de forma indireta pode-se dizer que os Ministros do Supremo Tribunal
Federal estão legitimados pela vontade da população, não obstante o Presidente da
República ser eleito pela população e os senadores também serem eleitos majoritariamente
por cada um dos seus Estados. Conjugando a legitimação do Chefe do Executivo e a dos
senadores, os ministros do STF detêm alguma parcela de legitimação popular, obviamente,
que não pode ser comparada com a legitimidade dos mandatários populares que são eleitos
mediante voto secreto.
Pode-se argumentar que a representatividade estaria na forma de sua escolha, que nos
tribunais constitucionais permite que os poderes estabelecidos participem da composição.
Ou que a sua legitimidade estaria em concretizar os mandamentos da Constituição, que é a
lei que maior aceitação detém no ordenamento. Sua legitimidade pode até mesmo ser
alicerçada com base no procedimento judicial. Todavia, nenhuma dessas teorias pode
amparar devidamente uma maior extensão nas atividades da jurisdição constitucional.
A legitimidade da jurisdição constitucional, estabelecida pelos direcionamentos
ofertados pelos mandamentos legais que, indiretamente representariam a soberania popular e
a legitimidade do procedimento criador do órgão que exerce essa jurisdição, não é suficiente
para respaldar um maior alcance das decisões judiciais. O fato de que foi a Carta Magna que
conferiu esse poder, por si só não é suficiente para embasar uma teoria que cumpra esse
desiderato.
347 BANDRÉS, José Manuel. “Poder Judicial y Constitución”. In: La Aplicación Jurisdiccional de la Constitución. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1997. P. 11.
262
Legitimar a atuação da jurisdição constitucional apenas no dogma da legalidade, pois
haveria o cumprimento de dispositivos constitucionais, não se mostra factível para amparar
todas as suas atuações, mormente porque essas decisões estão envoltas em grande dose de
discricionariedade e acarretam intensas conseqüências políticas. Necessita-se, portanto,
construir uma teoria que alicerce a legitimação dessa atuação e que, ao mesmo tempo, possa
preservar a sociedade de decisões arbitrárias. A legitimação da jurisdição constitucional
deve se enquadrar nos limites do Estado Democrático Social de Direito porque toda a sua
atuação é pautada dentro dos contornos legais, principalmente os ofertados pela Constituição
Federal.
A legitimidade da jurisdição constitucional haurida apenas na validade do
ordenamento jurídico, pelo parâmetro da legalidade, é insuficiente para respaldar as decisões
do Supremo Tribunal Federal porque é imperioso estabelecer links com a sociedade civil,
fazendo com que a racionalidade jurídica das decisões entre em sintonia com o sentimento
dos espaços públicos. Neste sentido, são as palavras de Cláudio Pereira: “Para a efetividade
social das direitos é importante não somente sua dimensão de validade (que se define como
referência ao direito produzido pelas autoridades estatais), e o aspecto da coerção, que a
acompanha. É necessário também que o direito seja legítimo, que as decisões possam ser
aceitas pela comunidade de jurisdicionados. Por isso, a racionalidade do ordenamento
jurídico é fundamental para legitimá-lo, provocando o assentimento espontâneo do grupo
social atingido”.348
Assim, pode-se afirmar que a legitimidade do controle de constitucionalidade
advinda do Estado de Direito, que tem seus parâmetros delineados pela Constituição
Federal, não é suficiente para justificar o aumento na atuação da jurisdição constitucional,
mesmo que o espaço de discricionariedade dos juízes seja limitado pelo conteúdo das
normas infraconstitucionais, fazendo com que eles não possam agir com livre arbítrio.
A legitimidade da jurisdição constitucional deve ocorrer tanto na origem da
composição de seus membros, como no exercício de sua função, arrimando-se nas
348 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 272.
263
cominações constitucionais, principalmente nos direitos fundamentais. O seu procedimento
de escolha deve ser aquele que permita a participação do maior número possível de forças
políticas, refletindo o pluralismo político existente na sociedade, o que propicia auferir uma
maior legitimidade social. De outra forma, também devem suas decisões ser embebidas por
parâmetros jurídicos, que permitam situar-se no universo jurídico, garantindo-lhes
autonomia e independência.
Inicialmente, a legitimidade da jurisdição constitucional nos Estados Unidos baseou-
se em um unwritten law, reflexo da existência de um higher law, que ainda representa uma
forte tradição no direito constitucional norte-americano. Posteriormente, com o
desenvolvimento do conceito de consent of the governed, influenciado pelo princípio da
soberania popular, a legitimidade da jurisdição constitucional passa a encontrar guarida no
written law, consonante o conteúdo dos dispositivos constitucionais.349
A fundamentação da legitimidade da jurisdição constitucional, segundo José de
Sousa e Brito, conselheiro do Tribunal Constitucional português, está radicada no princípio
da separação dos poderes, que na sua divisão clássica de atribuições concede à função
jurisdicional a prerrogativa de defender a supremacia do ordenamento jurídico,
principalmente a Constituição, de qualquer ato que macule o seu conteúdo, seja esse ato
implementado pelo Legislativo seja pelo Executivo.350 Todavia, a divisão tradicional de
atribuição dos três poderes não atende mais aos interesses hodiernos da sociedade,
notadamente quando a jurisdição constitucional tem que forçar os demais poderes a
implementar as diretrizes contidas na Constituição.
O princípio da divisão dos poderes, por si só, não apresenta densidade suficiente para
amparar a legitimidade das atividades da jurisdição constitucional. Ele é um princípio muito
abstrato, que depende de injunções sócio-político-econômicas para configurar os seus
contornos. A defesa da supralegalidade dos mandamentos constitucionais pela jurisdição
constitucional, seja em uma dimensão negativa ou positiva de concretização dos direitos
349 GOLDSTEIN, Leslie Friedman. In Defense of the Text. Democracy and Constitutional. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 1991. P. 67-68. 350 SOUZA E BRITO, José. “Jurisdição Constitucional e Princípio Democrático”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 39.
264
fundamentais, em muitos países assume a conotação de um ornamento retórico, apesar da
existência do princípio da separação dos poderes.
Pedro Cruz Villalón, presidente do Tribunal Constitucional espanhol, refere-se a três
tipos de legitimidade constitucional: objetiva, de origem e de exercício.351 A legitimidade
objetiva pode ser obtida: através de uma legitimação proveniente da Constituição, já que
esta é a sua fonte primeira; por intermédio da proteção das minorias, quando os seus direitos
fundamentais são ameaçados pela maioria, já que os direitos fundamentais devem ser
garantidos para todos os segmentos sociais; e por último, ela é obtida pela característica da
neutralidade da jurisdição constitucional, arbitrando o conflito entre os demais poderes. O
principal elemento para a legitimidade objetiva da jurisdição constitucional é o seu papel de
defesa dos direitos fundamentais e de garantia dos requisitos do regime democrático, no que
se denomina de fundamentação substancialista da jurisdição constitucional.
A legitimidade de origem vincula-se à forma como é composto o órgão que exerce a
jurisdição constitucional. Quanto mais plural for a forma de escolha de seus membros,
maior será a densidade desse tipo de legitimidade. O principal elemento auferido pelo
prisma da legitimidade de origem é o caráter de permanência de seus membros, por um
determinado lapso temporal, um mandato previamente determinado, que está fora do
alcance das maiorias políticas que são transitórias, configurando-se como uma garantia para
que o exercício da jurisdição constitucional não sofra injunções políticas.
Quanto à legitimidade de exercício, ela reside no fato de que as decisões da
jurisdição constitucional devem ser tomadas de acordo com os procedimentos jurídicos, com
base no padrão normativo do texto constitucional. Por esse parâmetro, a fundamentação da
jurisdição constitucional é obtida através de uma argumentação jurídica, de forma racional.
E são esses requisitos que a distinguem de um ato político, que é discricionário, sem precisar
amparar-se em uma técnica de fundamentação jurídica. A dimensão da legitimidade do
exercício da jurisdição constitucional se configura no fato de que as decisões da jurisdição
351 VILLALÓN, Pedro Cruz. La Curiosidad Del Jurista Persa, y otros estudios sobre la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999. P. 535-539.
265
constitucional têm a função de interpretar a Constituição, como última instância, assumindo,
portanto, uma posição de poder.
Um dos substratos mais proeminentes de legitimidade da jurisdição constitucional
são os direitos fundamentais, servindo como instrumento para a sua concretização. Estas
prerrogativas são as normas que maior consenso ostentam na sociedade, configurando-se sua
defesa a tarefa mais preponderante do controle de constitucionalidade. Essa fundamentação
alicerça principalmente em uma atuação ativa do Supremo Tribunal Federal, cujo maior
desiderato é concretizar efetivamente os direitos fundamentais, obrigando os demais poderes
a concretizá-los.
À medida que o Poder Judiciário assegura o cumprimento dos dispositivos constantes
na Carta Magna, principalmente dos direitos fundamentais, sedimenta-se no inconsciente
dos cidadãos, principalmente nos mais humildes, a simbologia de sua eficácia, aumentando
o seu consenso na sociedade. É uma legitimidade popular que não foi aferida pelos
mecanismos tradicionais da democracia participativa, mas que nem por isso detém menos
relevância, haja vista o seu caráter teleológico de garantir as expectativas da população.
O princípio do sufrágio universal não pode ser considerado como a única forma de
legitimação da jurisdição constitucional, haja vista que suas decisões judiciais podem ser
democráticas, mesmo sem esse princípio. Ele é uma espécie da soberania popular que pode
se manifestar de vários modos, sem a necessidade desse instrumento específico,
principalmente em uma democracia participativa.352 O que as decisões judiciais necessitam é
de moldar-se ao conteúdo da Constituição, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo regime
democrático.
352 Ensina Paulo Bonavides: “Tal modelo de democracia participativa direta conserva ainda a aparência de uma forma mista, típica das chamadas democracias semi-representativas ou semidiretas, bastante conhecidas da nomenclatura política pós-Weimar, mas com esta diferença capital: seu centro de gravidade, sua mola chave, em todas as ocasiões decisivas, é a vontade popular, é o povo soberano. A parte direta da democracia é máxima, ao passo que a parte representativa será mínima; uma primária ou de primeira grau, a outra secundária ou de segundo grau. Poder-se-ia, ate, dizer, em termos matemáticos, num cálculo de aproximação, que a democracia participativa direta é noventa por cento mais direta que representativa”. BONAVIDES, Paulo. Teoria da Constitucional da Democracia Participativa. Por um Direito Constitucional de Luta e Resistência. Por uma Nova Hermenêutica. Por uma Repolitização da Legitimidade. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 60.
266
Da valia ressaltar, que a densificação da legitimação da jurisdição constitucional de
forma alguma pode servir como instrumento para deslegitimar disposições normativas.353 O
seu escopo é assegurar que as suas atividades possam se desenvolver consonante parâmetros
pré-estabelecidos, com arrimo na Carta Magna, sem cercear o exercício dos demais poderes.
As disposições normativas apenas podem ser consideradas inconstitucionais quando houver
uma afronta ao texto legal, não cabendo à jurisdição constitucional decidir sobre esse
critério de forma discricionária.
Quanto maior for o grau de eficácia do órgão que exerce a jurisdição constitucional,
mais eficiente é o seu desempenho em tutelar as normas constitucionais e mais intenso será
o nível de concretude normativa da Carta Magna. Cumprindo realmente a jurisdição
constitucional a função para a qual foi criada, haverá uma potencialização dos direitos
fundamentais, que estarão resguardados e com sua eficácia assegurada. A sedimentação da
legitimidade da jurisdição constitucional contribui para o aprimoramento do Estado
Democrático Social de Direito.
11.1) Conceito de Legitimidade
A busca pela legitimidade significa aprimorar a obediência dos postulados
normativos, com a obtenção do consenso da sociedade. O grau de eficácia da dominação
legal propiciada pelo Direito vai depender da solidez do seu conceito de legitimidade. Por
sua vez, o conceito de legitimidade apresenta uma relação direta e inegável com o poder;
pode-se dizer que ela é uma justificativa para a utilização do poder. Para David Beethan o
poder, de uma forma geral, indica a prerrogativa que um cidadão dispõe para produzir os
efeitos por ele desejado no meio que o cerca e no lugar previsto para a sua realização.354
353 VILLALÓN, Pedro Cruz. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 89. 354 BEETHAN, David. The Legitimation of the Power. .Hampshire: Macmillan. 1991. P. 43.
267
A premência de se aprofundar a análise acerca do conceito de legitimidade reside na
institucionalização da dominação legal que é propiciada pelo Direito. Claro que a
dominação, objeto de apreciação, é a dominação legal, característica do Estado Democrático
Social de Direito, sem possibilidade de análise da dominação arbitrária, que não obedece a
nenhum pressuposto legal.
A hodierna fase que caracteriza o Direito, fase pós-moderna, caracteriza-se por
amiúde regulamentação em vários setores da vida social. Cada vez mais há a necessidade de
intervenção normativa para arbitrar sobre os mais variados conflitos de interesses que
nascem na sociedade. Muitas relações sociais, que eram regidas pela tradição ou que eram
deixadas sob o manto do arbítrio privado, passaram a ser reguladas por instrumentos legais
(apesar de que em alguns países que adotaram políticas neoliberais a regulamentação for
feita por órgãos que não pertencem ao Estado). Com o maior alcance da atuação normativa,
igualmente surgem o aumento da resistência e a crítica aos preceitos legais, o que conduz ao
problema da legitimação das proposições jurídicas para a obtenção do seu cumprimento.
Quanto mais modernas forem as sociedades maior é o seu grau de complexidade, e
como todas as sociedades pós-modernas tendem a ser complexas, com o tecido social
dividido em várias classes sociais, com anseios e perspectivas diferentes, conseqüentemente
mais difícil será a elaboração de uma teoria de legitimidade que contemple todas as classes
sociais. Nessa pluralidade de agrupamentos sociais, o processo de legitimação de todos os
órgãos estatais sofre um forte arrefecimento, principalmente no que diz respeito à
legitimação das decisões judiciais da jurisdição constitucional, que diante do seu amplo
campo de atuação não mais obtém completa legitimação, nem do princípio da legalidade
constitucional nem do princípio da soberania popular.
A legitimidade inerente à pós-modernidade se baseia na linguagem. Esta passa a
exercer um papel imprescindível na teoria da legitimação, na medida em que ela é
indiferente a qualquer tipo de teoria universal de verdade, estruturando-se de acordo com as
circunstancias sócio-político-econômicas que lhes são inerentes, em um jogo pós-subjetivo.
O conteúdo da linguagem não apresenta nenhuma importância, assumindo uma coloração de
acordo com as variantes da sociedade. Quem produz um enunciado lingüístico deve ter
268
autoridade para proferi-lo, com condições para legitimá-lo. A legitimação pós-moderna é
pós-subjetiva, decorrendo, de forma topológica, do deslocamento de símbolos lingüísticos,
que são aceitos por um grupo de pessoas.355
As normas jurídicas não obtêm legitimidade pelo seu conteúdo, apartadas de
circunstâncias sócio-político-econômicas. O conteúdo das normas jurídicas deve manter uma
sincronia com os anseios coletivos, como forma de facilitar-lhes a solidificação da
legalidade democrática. O sentido deontológico dos mandamentos constitucionais abriga
determinados valores que refletem uma dada concepção ideológica, estruturando as relações
sociais nesse diapasão.356
Vários foram os substratos de legitimidade que existiram ao longo da história. Firmá-
los com base em primados teocráticos se mostra de difícil concretização, mormente em uma
sociedade secular como é a nossa.357 A legitimidade com sustentáculo exclusivo no princípio
da legalidade não se mostra de bom alvitre, haja vista a ausência de um referencial
ontológico que possa balizar as suas cominações.358 O recurso ao uso da força bruta não
oferece resultados satisfatórios a longo prazo, ao menor sinal de debilidade do seu uso, a
eficácia do sistema jurídico entra em decréscimo, tendendo ao ocaso.
Afirma José Eduardo Faria que até a Revolução Industrial, o poder era considerado
legítimo à medida que estivesse em conformidade com a tradição ou com o jusnaturalismo
racionalista. Após a Revolução Industrial, a legitimação do poder passa a depender de
355 ROMANO, Bruno. Soggettività Diritto e Postmoderno. Uma interpretazione com Heidegger e Lacan. Roma: Bulzone, 1988. P. 62-64. 356 Os valores imputados às normas constitucionais dependem da ideologia do operador jurídico. Themístocles Cavalcanti define da seguinte o conceito de ideologia: “ É o conjunto de idéias a respeito da sociedade, da vida, do governo e que se transforma, pela sua importância, pelo seu sentido dogmático, em credo de um grupo social, de um partido, de uma nacionalidade”. CAVALCANTI, Themístocles. “Reflexões sobre o Problema Ideológico”. In: Revista de Direito Público e Ciência Política.. Vol. VIII, set/dez, n.º 3, Rio de Janeiro: [ s.e.]. P. 84. 357 “O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, transitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente “leigas” (ou racionais) de vida”. SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. P. 57. 358 “Se o conceito de legitimidade é um conceito jurídico-formal, ou seja, considera-se o que determinado está na Lei, a legitimidade, pelo contrário, é um conceito sociológico-político, interessando-lhe valores e ideais do grupos, ou seja, legítimo é aquele poder que, mesmo à margem da Lei, se exerce atendendo aos interesses da sociedade para a qual se destina”. DANTAS, Ivo. Teoria do Estado. Direito Constitucional I.Belo Horizonte: Del Rey. 1989. P. 115.
269
critérios externos aos legisladores e aos governantes, necessitando de uma explícita
aprovação popular, obtida por procedimentos formais, convertendo-se em um processo de
interação entre o governante e os governados.359
Para o positivismo jurídico, o conceito de legitimação está calcado nas normas
componentes do ordenamento jurídico, preponderantemente nas normas constitucionais. A
sua justificação não pode ser procurada em fatores metadogmáticos, pois iria acarretar uma
perda na autonomia da Ciência Jurídica. A fundamentação da legitimidade é realizada com
base no escalonamento normativo, cuja norma superior garante a validade da norma inferior
e assim sucessivamente. A desvantagem dessa teoria é que a falta de contato com os fatores
sociais pode contribuir para o surgimento de uma auto-legitimação, ausente de conteúdos
substanciais que se amparem em argumentos retóricos para favorecer o status quo
dominante.360 Sustenta Sabino Cassese que o ordenamento jurídico global não tem sua
legitimação fundada através no consenso haurido da população, mas através do direito.361
A solução vislumbrada por Weber, Luhmann e Habermas, apesar da diferença de
suas teorias, tem como liame comum a fundamentação da dominação legal propiciada pelo
Direito, com base em procedimentos racionais, previamente estabelecidos. Esse tipo de
legitimação é baseada em procedimentos judiciais, que prescindem de qualquer conteúdo. O
procedimento regulamenta a forma em que se dará a tramitação do processo, sem a
359 “Após a Revolução Industrial, o problema da legitimação passa a ser visto como uma questão de reconhecimento de pautas: para tornar-se legítimo, o poder depende então de um critério externo aos legisladores e aos governantes, ou seja, de uma explícita aprovação popular obtida por procedimentos formais. A legitimação se converte dessa maneira em um processo de interação entre os detentores do poder (os legitimados) e os Cidadãos (as legitimantes), resultando de um acordo em torno de valores delineados como modelo de vida de uma comunidade. Como em todo sistema de dominação sempre existe em maior ou menor grau um componente de receio e de medo por parte dos governados, temerosos do arbítrio dos governantes, a legitimidade se converte numa ponte capaz de propiciar a superação dessa incerteza entre o poder e os grupos sociais, tornando a vida pública mais segura”. FARIA, José Eduardo. A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade. Porto Alegre: Fabris, 1985. P. 13-14. 360 Explica de forma límpida o Professor João Maurício Adeodato: “Com o monopólio da produção de normas jurídicas, a ascensão da lei e a positivação do direito, a legitimidade faz-se legitimação, o que significa transferir a questão de fundamento para uma ação legitimadora por parte do Estado e do ordenamento em geral; a legitimidade deixa de reportar-se a conteúdos externos e o poder jurídico-político, embora de forma mais ou menos velada por uma retórica tradicional e aparentemente conteudista, pode ter pretensões a uma auto-legitimação. Esse esvaziamento de conteúdo oferece o perigo de propiciar a constituição da estrutura-cebola, na analogia de Hannah Arendt, a estrutura característica do totalitarismo”. ADEODATO, João Maurício. O Problema da Legitimidade. No Rastro do Pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. P. 55. 361 CASSESE, Sabino. Lo Spazio Giuridico Globale. Roma: Laterza. 2003. P.13.
270
formulação de diretrizes que condicionem o seu resultado. Ela é um tipo de legitimação
auto-referente, em que o consentimento é obtido pelo cumprimento das etapas previstas
pelas normas jurídicas. Assim, Luhmann precisa o seu conceito de legitimidade: “Pode
definir-se a legitimidade como uma disposição generalizada para aceitar decisões de
conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”.362
Exemplo de legitimação auto-referente é a obtida por intermédio da justificação
racional, centrada em estruturas argumentativas, em que cada decisão judicial deve ser
motivada em argumentos contidos nos mandamentos normativos e essa referência aos
comandos legais é o que garante a legitimação das referidas decisões. A argumentação
jurídica não necessita estar baseada em fatos empíricos, devendo-se ater a uma seqüência
lógica, com base no texto da lei.363
Noberto Bobbio, um dos autores do Dicionário de Política, define o conceito de
Legitimidade: “Num primeiro enfoque aproximado, podemos definir legitimidade como
sendo um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da
população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de
recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos”.364
Ronald Dworkin defende que o substrato de legitimidade que melhor garante o
cumprimento das disposições contidas no ordenamento jurídico se baseia na “comunidade
moral de princípios”, que transcendem ao conteúdo das normas jurídicas para encontrar
362LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 30. 363 “No mundo do Direito, e em geral da prática jurídica, uma decisão pode revelar-se útil ou satisfatória e ser assim aceita ou justificada, em qualquer senso destas palavras, para prescindir da verdade de sua justificativa e também prescindir de ser qualificada como verdadeira ou falsa. Conseqüentemente, os critérios de coerência e de aceitabilidade justificada, direcionam-se não apenas ao critério da verdade – mas antes prevalentemente – sob outros valores. É o caso de todas as atividades de governo – administrativa, econômica e política – cujos paradigmas de justificação racional e de legitimação política são indubitavelmente constituídos do simples critério da aceitabilidade justificada em relação ao sucesso prático da satisfação do interesse público ou no sentido do consenso majoritário, restando de forma secundária, ou absolutamente não pertinente, o requisito dos pressupostos da decisão”. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Razione. Teoria Del Garantismo Penale. 7 ed., Laterza, 2002. P. 42-43. 364 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11. ed. V. II, Brasília: Universidade de Brasília, 1998. P. 675.
271
amparo na seara moral. A justificação da coerção dos órgãos estatais é feita com base nas
obrigações morais que foram tomadas pelos próprios cidadãos.365
O conceito da soberania popular expõe que a legitimidade do poder provém do povo.
Todavia, as formas como o povo pode expor a sua vontade e o seu próprio conceito não se
acham pacificados de forma unívoca. Häberle afirma que o conceito de povo não é apenas
um critério quantitativo, que no caso brasileiro se manifesta de dois em dois anos, com a
finalidade de referendar o regime democrático. Povo da mesma forma é um elemento
pluralista, podendo ser tomado como partido político, opinião científica, grupo de interesse,
cidadão etc. Termina seu pensamento afirmando que “a democracia do cidadão é mais
realista do que a democracia popular”.366
Canotilho afirma que apenas através do princípio da soberania popular, em que todo
o poder vem do povo, garantindo igual participação na formação da vontade popular, é
possível formular uma resposta plausível à pergunta de onde vem o poder, no que assegura
“a legitimidade de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder
político”.367
Zippelius considera que o conceito de legitimidade não coincide simplesmente com a
vontade da maioria. Há necessidade de se instituir mecanismos institucionais e processuais
para construir um resultado, o mais condizente possível com a formação de um forte
consenso popular, em um processo dialógico com a opinião pública.368
Muller se posiciona contra a tese defendida por alguns juristas de que a legitimidade
representa sempre uma correção do Direito, oriunda de vetores suprapositivos, sofrendo as
injunções de uma idéia de Direito, ocasionando uma diferenciação com relação ao princípio
da legalidade – adstrito a parâmetros estritamente jurídicos. O jurista alemão formula uma
365 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 231-232. 366 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997. P. 37-38. 367 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2002. P. 100. 368 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3 ed., Trad. Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. P. 153.
272
teoria em que o conceito de legitimidade não se aparta do conceito de legalidade, unindo-se
em uma simbiose perfeita: “Na definição mais avançada, “legitimidade” significa o seguinte:
a ação formalmente legal de modo adicional (a) é compatível com as regulamentações
centrais do direito positivo (os textos das normas) da Constituição (forma de Estado,
objetivos do Estado, garantias dos direitos fundamentais, sistema de Estado de Direito); e (b)
pode-se continuar discutindo abertamente e sem restrições por parte do Estado sobre a
questão de sua legitimidade ou ilegitimidade, mesmo se a decisão formal (ato
administrativo, texto legal, sentença judicial – no caso em epígrafe: alteração da
Constituição) já tiver sido tomada”.369
Marcello Caetano distingue a legitimidade quanto ao título e quanto ao exercício. A
primeira se configura quando o detentor do poder político é investido no cargo de acordo
com as normas anteriormente estabelecidas, para disciplinar o provimento na função, sem
rupturas com o ordenamento jurídico. A segunda se concretiza quando o governante
desenvolve suas atividades consonante com os fins para o qual a função pública foi
instituída. Essas duas formas de legitimidade são distintas, podendo em muitos casos não
coincidir.370
A importância acerca do conceito de jurisdição, configura-se em construir um
referencial para densificar a legitimidade da jurisdição constitucional. Em uma sociedade em
que as decisões judiciais assumem cada vez maior relevância, a justificação da tutela dos
mandamentos constitucionais é um requisito imprescindível para a garantia da força
normativa da Constituição e para a construção de uma democracia realmente participativa.
369 MÚLLER, Friedrich. “Legitimidade como Conflito Concreto do Direito Positivo. Uma Comparação Atual Entre as Constituições Alemã e Brasileira”. In: Revista da PGE – Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. V. 25, n. 56, Porto Alegre: PGE, 2002. P. 13. 370 CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra: Almedina, 1996. P. 253.
273
11.2) A Legitimação pela Soberania Popular
Soberania é a característica intrínseca dos Estados que lhes permite tomarem suas
próprias decisões políticas, escolhendo livremente os seus destinos. È uma conseqüência
inexorável da autodeterminação dos povos. A soberania alicerça a estruturação do governo
que pode tomar as suas decisões para resguardar os interesses coletivos.371
Segundo Hermann Heller, sempre que se fala em soberania do Estado, vincula-se a este
conceito, de alguma forma, a idéia de soberania popular.372 Esta assertiva é válida para os
regimes democráticos, mas não pode ser transladada para todas as instituições políticas. Ao
longo da história muitas foram as bases de fundamentação para a soberania do Estado, a
exemplo da fundamentação teocrática, da violência, da razão etc.
O consenso em torno da soberania popular advém do fortalecimento do regime
democrático, que se constitue na forma de organização política mais avançada que os homens
conhecem. Além de permitir uma maior estabilidade dos órgãos governamentais. Difícil é o
processo de sua concretização, mas uma vez realizado, sua estabilidade é mais sólida que as
demais porque foram os próprios destinatários que criaram as normas que irão reger o
funcionamento da sociedade.
A soberania popular serviu de base para a criação do conceito de soberania parlamentar,
sustentado na soberania da lei. Entende o professor Michele Carducci que essa concepção é
uma doutrina oitocentista, que serve para fortalecer a independência do Poder Legislativo e
corroborá-lo, como órgão exclusivo de produção legislativa.373 Ressalte-se, todavia, que a
teoria da soberania parlamentar configura-se como uma defluência da teoria popular,
dependendo desta como fonte de validade.
371 STRECK, Luiz Lenio & BOLZAN DE MORAIS, José Luis. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2000. P.143-145. 372 HELLER, Hermann. La Soberanía. Contribución a la Teoría del Derecho Estatal y del Derecho Internacional. 2 ed., Trad. Mario de la Cueva. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. P. 164. 373 CARDUCCI, Michele. Controllo Parlamentare e Teorie Costituzionali. Padova: Cedam, 1996, P . 14-15.
274
A idéia de soberania popular, defendida pelo liberalismo, é centrada nos cidadãos de
uma forma particular, somente podendo ser atingida quando eles tiverem autodeterminação.
Portanto, o liberalismo sustenta que a soberania popular não pode ser tomada em uma
dimensão coletiva, mas formada por direitos morais individuais, que decidirão sobre suas
condutas políticas. Sob essa concepção, a democracia consiste na possibilidade de obtenção
do consenso individual com base em obrigações políticas.374
De acordo com David Beethan, a concepção de soberania popular tem duas implicações
para a legitimação das Constituições modernas: primeiro, que os textos constitucionais
devem estruturar o processo de representação popular, mesmo que seja em monarquias
hereditárias, teocráticas ou baseadas em doutrinas seculares; segundo, que os textos
constitucionais tenham sido de alguma forma aprovados, seja através de um plebiscito, do
Poder Constituinte, mobilização de massas etc.375
Peter Häberle também é um defensor da soberania popular, mas assevera que a
legitimidade da jurisdição constitucional é haurida de modo específico, realizando-se
mediante um processo público de mediação, através da realização dos direitos fundamentais.
Nesse processo, exerce função importante a pressão da opinião pública, que realiza a
integração da realidade no processo de integração, possibilitando um espaço público e
pluralista de debates.
Eis o seu posicionamento: “No Estado constitucional-democrático coloca-se, uma
vez mais, a questão da legitimação sob uma perspectiva democrática (da Teoria da
Democracia). A Ciência do Direito Constitucional, as Ciências da realidade, os cidadãos e os
grupos em geral não dispõem de uma legitimação democrática para a interpretação da
Constituição em sentido estrito. Todavia, a democracia não se desenvolve apenas no
contexto de delegação de responsabilidade formal do Povo para os órgãos estatais
(legitimação mediante eleições), até o último intérprete formalmente competente, a Corte
Constitucional. Numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas
refinadas de mediação do processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana,
374 BERAN, Harry. The Consent Theory of Political Obligation. New York: Library of Congress, 1987. P. 38. 375BEETHAN, David. The Legitimation of the Power. .Hampshire: Macmillan. 1991.P. 132.
275
especialmente mediante à realização dos Direitos Fundamentais
(Grundrechtsverwirklichung), tema muitas vezes referido sob a epígrafe do “aspecto
democrático” dos Direitos Fundamentais. Democracia desenvolve-se mediante a
controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade e
também o “concerto” científico sobre questões constitucionais, nas quais não pode haver
interrupção e nas quais não existe e nem deve existir dirigente”.376
O conceito pós-moderno de soberania popular é uma decorrência da quinta dimensão
dos direitos fundamentais, com a concepção de participação ativa dos cidadãos nas decisões
políticas, mediante institutos como o orçamento participativo, recall, assembléias populares,
plebiscitos etc. Ela não se resume ao voto, sendo este apenas um dos resultados da maior
atuação da população nos negócios políticos da sociedade. Por sua vez, necessita de vários
requisitos para a sua concretização, como condições mínimas de bem-estar social, saúde,
educação, cultura, democratização dos meios de comunicação etc.
Contudo, a crise do Estado Democrático Social de Direito também afetou o regime
democrático, lançando sérias dúvidas quanto a sua eficácia. Atualmente, uma das principais
causas que serve para explicar o descrédito por que passa a teoria da soberania popular, pode
ser creditada ao multiculturalismo social que tende a aumentar nas sociedades
contemporâneas, principalmente nas sociedades dos países desenvolvidos. Com o avanço
geométrico da infra-estrutura econômica, a sociedade civil divide-se em vários segmentos
sociais, com interesses próprios, valores específicos e necessidades peculiares. O que faz
com que o Estado, da mesma forma tenha que atender a uma imensa gama de necessidades e
interesses, muitos dos quais completamente diferentes.
Por causa dessa segmentação social fica muito difícil legitimar as políticas públicas
exclusivamente através do dogma da soberania popular, já que conseguir uma grande adesão
popular para determinada política pública se mostra muito difícil.
376 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendas. Porto Alegre: FABRIS, 1997, P. 36-37.
276
Assim, diante da crise que grassa na teoria da soberania popular e da crescente
complexidade das decisões da jurisdição constitucional, a construção de uma teoria que
legitime as decisões da tutela da Carta Magna não pode se alicerçar apenas na vontade
popular, não obstante ter sua significativa participação, no processo de legitimação quando
democratiza a escolha dos membros que compõem o tribunal constitucional, por parte de
órgãos eleitos diretamente pelo povo. A essência da legitimação da jurisdição constitucional
passa a ser feita com base na substância dos direitos fundamentais.
A legitimação da jurisdição constitucional com arrimo na soberania popular é
importante, contudo, não pode ser o sustentáculo único de justificação da tutela das normas
constitucionais. Foi a soberania popular, ainda que de forma distorcida, que fundamentou os
crimes do regime nazista e fascista. A magnitude da legitimação da jurisdição constitucional
alicerça-se nos direitos fundamentais, que juntamente com os demais elementos propostos,
justificarão uma maior atuação da jurisdição constitucional.
11.3) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com Base no Texto da Constituição
A legitimação da jurisdição constitucional, com base na interpretação literal da
Constituição, foi predominante na “Rehnquist Court”. Ela é realizada por intermédio de uma
interpretação textual da Carta Magna. Como o objetivo deste trabalho não é enfocar métodos
hermenêuticos, a análise se restringirá à sua função de legitimação. Como adeptos da
fundamentação literal da Constituição, podemos citar Marshall, Hugo Black, Rehnquist,
Scalia, dentre outros.377
A fundamentação textualista do Texto Constitucional não é uma teoria uniforme,
mas um gênero a partir do qual se bifurcam várias espécies. Existem desde aquelas mais
extremadas que se fiam exclusivamente na análise literal da letra da Constituição como
377 Quanto ao posicionamento do Chief of Justice Marshall vários autores sustentam que ele é um “intentionalism” ou ate mesmo um “extratextualism”.
277
aquelas mais moderadas que advogam que os juízes não devem esperar que todos os
princípios constitucionais estejam contidos na Carta Magna, letra por letra. Então, de forma
superficial os textualistas podem ser divididos em dois principais ramos: os primeiros,
admitem que apenas as normas contidas no texto da Constituição é que podem servir de
fundamento para a legitimação da jurisdição constitucional, sem a utilização de nenhum
subsídio que esteja fora dos “four corners”; e os segundos, que admitem como insuficiente
apenas o texto da constituição pois falta-lhe apresentar densidade suficiente para legitimar as
normas constitucionais, sendo necessária à busca de elementos conexos com o seu texto,
mas que guardem pertinência com o “four corners”, do texto constitucional.
O textualismo ou interpretação literal (strict constructionism) postula que a base de
legitimação da jurisdição constitucional é o texto da Constituição, afirmando que os juízes
devem realizar a concretização normativa apenas das normas que se encontrem contidas na
Constituição de forma explícita ou, no mínimo, que possam defluir do seu texto, de forma
implícita. Como a Carta Magna é a norma constitucional que detém maior legitimidade no
ordenamento jurídico, a legitimidade da jurisdição constitucional reside no texto das normas
constitucionais, não podendo dela se afastar.378
John Hart Ely planteia que a legitimidade da jurisdição constitucional, baseada no
sentido literal da Constituição, tem a finalidade de conciliar o judicial review com a teoria
democrática de governo. Todavia, para o mencionado professor, o órgão que exerce a
jurisdição constitucional age todo o tempo como se fosse um lawmaking, sem a legitimidade
auferida pela soberania popular e a legitimidade auferida pelo sentido literal da Constituição
não soluciona o problema. Ely assevera que essa teoria serve para mascarar a atuação do
378 “Perante este quadro, os partidários de um método de “interpretação estrita” (strict constructionism) afirmam que os juízes só devem aplicar as normas que se encontrem fixadas ou claramente implícitas no texto escrito. Os juízes que oferecem uma interpretação que não pode ser descoberta nos “quatro cantos do documento” são considerados como “activistas” ou “não interpretatitivistas”. O respeito pelo texto e pela intenção dos constituintes funcionaria assim como “substituto” de uma responsabilidade política inexistente, fixando o “limite adequado” entre o “poder da maioria” e os “direitos da minoria”. Enquanto respeitarem esse limite os juízes “estariam a agir de forma legitimada”. QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 203-204.
278
órgão que exerce a jurisdição constitucional, alegando que suas decisões seguem o texto da
constituição quando, na verdade, obedece apenas à vontade de seus membros.379
A legitimação da jurisdição constitucional com base no texto constitucional significa
que os juízes têm a função de meramente aplicar as normas que foram formadas pela
vontade popular, em virtude de que os cidadãos são o elemento imprescindível da soberania
popular. Como os juizes não detêm o seu cargo em virtude do consentimento popular e a
soberania popular é o elemento primordial da democracia, a única forma de se evitar um
atrito contra a essência do sistema político é que as decisões da jurisdição constitucional
sejam de acordo com a Constituição.
Dentre aqueles autores que se destacam na defesa da fundamentação da jurisdição
constitucional, com base no texto da constituição, destaca-se a figura de Antonin Scalia, juiz
republicano da Suprema Corte norte-americana, indicado por Ronald Reagan, em 1986. Para
ele, um dos grandes riscos presentes na interpretação extensiva da jurisdição constitucional é
que os juízes comecem a interpretar a Constituição tomando como parâmetro critérios
externos ao seu texto, como por exemplo à vontade dos legisladores, para justificar o seu
poder discricionário. Com esse estratagema pode-se transformar o rule of law em rule of
men.
Scalia sustenta que o Poder Judiciário não pode usar a jurisdição constitucional com
uma finalidade legislativa. A interpretação da jurisdição constitucional deve ser objetiva,
com alicerce no texto da lei e não em elementos subjetivos. Buscar a intenção dos
legisladores na realização da norma é assumir um papel ilegítimo de co-legislador, tendo em
vista o poder discricionário, que é facultado aos juízes. Propõe que o Poder Judiciário
abandone o seu papel de lawmaker e comece a interpretar a Carta Magna com base no
Constitution’s original meaning. O judiciário não deveria cair na tentação do judicial
constructionism, mas deveria aplicar a Constituição às novas circunstâncias.
379 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 4.
279
A sua teoria é denominada de textualismo porque é calcada no sentido original da lei,
com uma forte relevância no seu texto objetivo, cujos dispositivos normativos “expressam
aquilo que está no conteúdo legal e não o que os intérpretes julgam que seja o seu
conteúdo”.380 O alcance das normas é limitado pelo seu sentido objetivo e não pode a
jurisdição constitucional tentar ampliar este alcance, sem o amparo no dispositivo legal.
Afirma que a interpretação textual da Constituição é factível, a despeito do seu caráter
normativo genérico, sem arrefecer a sua eficácia concretiva. Parte do princípio de que os
juízes, e de forma especial a jurisdição constitucional, não possuem autoridade, pois falta-
lhes legitimidade popular para realizarem uma reelaboração legislativa ou para produzirem
uma interpretação praeter legem.
Alerta Antonin Scalia que o textualismo que ele defende não deve ser confundido
com estreito “constructionist”, que é uma forma degradada de textualismo e contribui para
o seu descrédito. As decisões judiciais não devem ser construídas considerando as estruturas
normativas de forma estreita, nem muito menos construídas de forma leniente, mas
prolatadas de forma racional, em sincronia com o sentido da lei. Um bom hermeneuta
textualista não é um literalista, nem tão pouco um niilista, seu trabalho deve ser feito
tomando o texto escrito da lei como limite para o alcance da interpretação, não podendo
nenhuma valoração normativa ser feita além do seu sentido literal.381
Como exemplo de interpretações além do alcance legal, ele recorre à quinta e à
décima quarta emendas à Constituição norte-americana que tratam do due process of law,
em que os juízes, ao invés de aterem-se ao mandamento literal da lei, que é o de assegurar o
devido processo legal, terminam por amparar direitos de cunho material que não foram
previstos expressamente pela Lei Maior.
Nesse diapasão a legitimação da jurisdição constitucional não pode ser realizada por
intermédio de critérios externos aos contidos no texto da lei. Posiciona-se contrário à
qualquer injunção de princípios ético-morais na concretização normativa, mesmo se o seu
380 De forma pejorativa os seus detratores denominam a interpretação textual de : wooden, unimaginative, pedestrian. 381 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 23-24.
280
objetivo for densificar a legitimidade do órgão que exerce a jurisdição constitucional.
Responde às acusações de que o seu posicionamento é uma postura formalista, afirmando
que as estruturas legais são formalistas e que são esses procedimentos que garantem um
governo de leis e não de homens.
Ele discorda particularmente de duas teorias de legitimação da jurisdição
constitucional: arrimada em uma interpretação subjetiva, em que se busca o sentido e
alcance da lei segundo a intenção dos seus criadores e o living constitution ou involving
constitution, que tem o objetivo de modernizar os dispositivos constitucionais consoante a
evolução dos fatos sociais.
A legitimação da jurisdição constitucional realizada através de uma interpretação das
normas constitucionais, de acordo com a intenção do legislador, não passa de uma ficção,
sendo de melhor alvitre fixar atenção ao texto da lei. Esse método de interpretação jurídica é
um simulacro, pois na realidade o que se propõe é impor a vontade dos juízes, colocando o
conteúdo legal de lado, no que é secundado por Oppenheim, para quem as interpretações
judiciais não passam de uma máscara para que os juízes possam exercer uma função de
elaboração jurídica.382 A legitimação da jurisdição constitucional, com base no textualismo,
se diferencia da legitimação com base no originalismo, que possibilita um plus ao teor
literal da Constituição, no sentido de se buscar a vontade dos legisladores constituintes.
A legitimação, procurando esclarecer a mens legislatoris,é uma escusa para
possibilitar a construção de decisões consonantes os interesses dos seus intérpretes. Esse tipo
de análise hermenêutica é incompatível com as normas do regime democrático porque deixa
ao arbítrio do lawgiver determinar o conteúdo das normas, função para qual não foi
revestido de legitimidade popular para exercer. Ela não significa uma racionalização das
normas constitucionais, mas o abandono do parâmetro legal. A legitimação da jurisdição
constitucional, de acordo com a interpretação subjetiva do legislador, trata na realidade de
uma usurpação jurídica por parte do Poder Judiciário.
382 OPPENHEIM, Felix E. “The Judge as Legislator”. In: Cognition and Interpretation of Law. Torino: Giappichelli, 1995. P.292.
281
Antonin Scalia considera o living constitution ou involving constitution um retorno
aos padrões vigentes no common law, ocasionando, como conseqüência, um arrefecimento
dos regimes democráticos, cujo alicerce é a soberania popular.383 Essa técnica consiste em
afirmar que a Constituição deve ser legitimada de acordo com a evolução e as modificações
ocorridas na sociedade, adequando-se com a evolução dos interesses sociais. A
argumentação empregada para a utilização do living constitution configura-se no seu
objetivo de propiciar flexibilidade ao texto constitucional, evitando o seu perecimento e
ensejando o seu desenvolvimento pari passu com a sociedade. Nesse contexto, a finalidade
da jurisdição constitucional é adequar a Carta Magna ao living constitution.
Essa concepção, que exige uma adaptação do sentido textual da Constituição para
adaptá-la às premências da sociedade, é uma influência do sistema do common law, que
assevera que um texto constitucional escrito não pode resistir ao desenvolvimento social.
Todavia, expõe Scalia, a densidade de legitimação obtida pela Lei Maior impõe às gerações
futuras o respeito pelos princípios estabelecidos. Ele afirma que o common law, atualmente,
não é um direito consuetudinário ou um direito desenvolvido mediante as tradições do povo,
mas um Direito desenvolvido pelas decisões judiciais.384
A argumentação de que a teoria textualista de fundamentação da jurisdição
constitucional também, em muitos casos, não tem uma única resposta para muitas questões é
verdadeira, no que se parece com a indeterminação do living constitution. A diferença reside
no fato de que os textualistas sabem o seu ponto de partida – o texto da Constituição – e esta
deve ser a linha mestra da sua análise. As dificuldades advindas da interpretação do texto da
Constituição são infinitamente menores que as dificuldades ocasionadas em se tentar
identificar o living constitution.
383 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 39.
384 Para Scalia o common law não é verdadeiramente um sistema jurídico baseado nos costumes, mas naquilo que os juízes entendem como tal; deixando de ser um Direito sustentado no costume da sociedade para ser alicerçado nas decisões dos juízes. O Common Law poderia ser um sistema baseado no direito consuetudinário na sua origem, deixando de apresentar essa característica há muito tempo, a não ser no sentido de que a doutrina do stare decisis considera as decisões judiciais anteriores como “custom”. Afirma que os tribunais no sistema do Common Law têm duas funções: a primeira de aplicar o direito aos fatos concretos, no sistema que se chama subsunção, a segunda, mais importante, de realizar a produção normativa.
282
A crítica que é endereçada à teoria do textualismo é que ela realiza o processo de
interpretação jurídica mediante rígidos cânones e que muitos desses standards não passam
de fraudes porque para cada um deles pode ser encontrado outro cânone no seu sentido
oposto. No que Scalia contra-argumenta afirmando que a maioria desses cânones é
proveniente da literatura latina, exprimindo uma racionalidade que é decorrente da
literalidade do texto legal. Os cânones não podem ser considerados de forma absoluta, pois
incidem em uma determinada realidade específica; não obstante, não nega a existência de
cânones que possam ser usados de forma dupla, no que defende que esses não sejam
utilizados para a construção de uma decisão da jurisdição constitucional. Os standards de per
si não podem ser considerados como fraudes, a menos que quem executa a sentença tenha
esse desiderato.385
Defende que as decisões da jurisdição constitucional não têm o poder de adaptar a
vontade dos legisladores constituintes à realidade presente do texto constitucional porque
isto transformaria a Lei Maior em um texto flexível, passível de modificações. As decisões
judiciais, com arrimo na vontade dos legisladores constituinte, são uma operação para
encobrir o poder discricionário na aplicação da jurisdição constitucional. A transformação da
Constituição em um living constitution contribui para aumentar a indeterminação do texto
legal, cujos membros dos Tribunais constitucionais, que não foram eleitos e, portanto
carecem de legitimação popular para tomarem decisões políticas, decidiriam livremente
sobre o sentido atual da Lei Maior, em detrimento dos legisladores democráticos que foram
eleitos para exercerem tal função.
A legitimação da jurisdição constitucional, sustentada no literalismo do texto
constitucional, de forma, alguma pode ser considerada como uma concepção que torna a
Constituição um texto imutável; ela pode ser modificada, desde que haja uma
potencialização da soberania popular que a legitime. O fenômeno da
transconstitucionalização pode ser exercido sempre que a sociedade queira desenhar uma
nova estrutura jurídica. Não havendo possibilidades sócio-político-econômica para
385 SCALIA, Antonin Scalia. A Matter of Interpretation.Federal Courts and The Law. New Jersey: Princeton University Press, 1997. P. 25-27.
283
estabelecer um Poder Constituinte, os postulados estabelecidos na Carta Magna devem ser
obedecidos.
A interpretação textualista da Constituição provoca uma sacralização da Carta
Magna, que passa a ser o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional, como se a
aplicação da subsunção normativa fosse uma operação exata, o que não ajuda a resolver o
“countermajoritarian problem”, principalmente diante da extensão hodierna das atividades
da jurisdição constitucional.
12.) Influências Sobre a Legitimação da Jurisdição
Constitucional
O objetivo do presente tópico destoa da finalidade de tecer um estudo de direito
comparado, analisando as várias matrizes de influências que incidem sobre a jurisdição
constitucional. O estudo se resumirá apenas à influência da Suprema Corte norte-americana
e do Tribunal Constitucional alemão devido as suas importantes contribuições para a
jurisdição constitucional e do grau de legitimidade que cercam as suas decisões.
Não resta a menor dúvida de que são exemplos de influência distintos, pois o
primeiro pertence ao Common Law e o segundo ao Civil Law, o que redunda em
características diversas no seu funcionamento. Todavia são os dois exemplos mais relevantes
no exercício da jurisdição constitucional devido à extensão de suas decisões e à importância
que cada um ocupa no ordenamento jurídico de seu respectivo país.
São os dois casos que melhor retratam uma sólida legitimação da jurisdição
constitucional. Eles foram escolhidos porque contribuíram de forma direta com os elementos
que estruturarão a densificação da legitimidade da tutela constitucional brasileira. Em
comum têm como características o respeito pelo regime democrático, a primazia na
284
concretização dos direitos fundamentais e a importância das decisões da jurisdição
constitucional na vida institucional dos seus países.
12.1) A Influência da Suprema Corte norte-americana sobre a Jurisdição
Constitucional
Os Estados Unidos, por ter sido o país em que o controle jurídico de
constitucionalidade surgiu no começo do século XIX, de forma inovadora, apresenta uma
longa tradição de respeito e prestigio à Suprema Corte Constitucional.386 A sua atuação é
amplíssima, muitos dos direitos fundamentais existentes na sociedade norte-americana
foram construídos por decisões da Suprema Corte, como o aborto, o fim da discriminação
racial, a regulamentação de importantes setores da economia, etc.387 O que levou o Chief
Justice Hughes a afirmar que os juízes da suprema corte exerciam a função de “weavers of
the fabric of constitucional law”.
Já na elaboração doutrinária, contida no livro “The Federalists”, um dos textos que
mais marcou as discussões políticas que antecederam a Convenção que elaborou a
Constituição de 1787, a Suprema Corte foi delineada como o principal instrumento de
386 “Não é a estrutura da Suprema Corte norte-americana que a faz notável, mas a sua atuação. Cortes costumam ser conservadoras, com uma determinada concepção de direitos alicerçada nos seus precedentes e, assim, resistem às inovações de forma firme. Nos Estados Unidos da América do Norte, acontece o contrário, a Suprema Corte é a maior incentivadora da adequação dos órgãos públicos aos interesses da população”. CALLEO, David P. The American Political Sistem. London: The bodley Head, 1968. P. 94. 387 “A Corte norte-americana opera não apenas como última instância do Poder Judiciário que exerce em todas as suas instâncias o judicial review of legislation – funcionando, assim, em um regime de jurisdição constitucional difuso – mas sobretudo (e isto é um pouco esquecido), o judicial review nasce em um sistema jurídico do Common Law, um sistema em que todo o poder e que toda a relevância da interpretação e atuação criativa se encontra no judge-made law. As experiências mais recentes (naturalmente a experiência mais referida é aquela da Corte de Warren) demonstram plenamente uma ampla e incisiva capacidade de intervenção, fundada na vinculação com os outros órgãos da jurisdição federal e diretamente como os órgãos da organização estatal. Este pode é derivado da tradição do Common Law, que permitiu que a Corte de Warren desenvolvesse, através de decisões judiciais, um papel de profundas reformas sociais”. ELIA, Leopoldo. “La Corte Nel Quadro Dei Potere Constituzionale”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 518-19.
285
garantia da supremacia das normas constitucionais. A maioria das decisões do período
intitulado de Marshall Court foram nesse sentido. No exercício desse papel, o órgão de
cúpula do Judiciário norte-americano tornou-se referência para muitas das controvérsias
políticas ocorridas, principalmente, com a finalidade de demarcar os limites de atuação do
governo federal e dos estados componentes.
Segundo Martin Shapiro, a forma como é feita a seleção dos juízes norte-americanos
é um dos motivos para a relevância de atuação da Suprema Corte, ocorrendo esse fato não
em virtude da natureza das leis que estruturam essa instituição, mas em razão dos critérios
de escolha dos seus juízes. Eles são selecionados entre advogados de meia-idade, que
possuem uma larga visão política, com uma longa atuação na prática da advocacia privada, o
que lhes permitem prolatar decisões judiciais com um grau de profundidade maior que
aqueles ostentados pelos juízes europeus, pois possuem um alto grau de conhecimento e
uma inclinação para atuar em negócios públicos. Os escolhidos são advogados de sucesso,
destacando-se entre os seus pares, estando diretamente envolvidos em atividades privadas e
que, portanto, possuem as condições para atuar em assuntos governamentais.388
Assim, os membros da Suprema Corte gozam de grande status social e alguns deles,
como Marshall e Earl Warren, chegaram a ter os seus nomes esculpidos na galeria dos
grandes estadistas norte-americanos. Em conseqüência desse prestígio, surgiu uma vasta
bibliografia a respeito dos seus juízes, o que ilustra bem a sua relevância.
A discussão atual sobre a questão da legitimação das decisões da Suprema Corte
norte-americana se desenvolve mais sobre uma seara política do que propriamente sobre
uma seara jurídica, o que de forma alguma retira a importância do seu estudo. Nesse
contexto, ocupa grande relevo a idéia do sufrágio universal como fonte de legitimação,
gerando a partir daí uma doutrina procedimental da justificação da jurisdição constitucional,
com o objetivo de proteger a formação da vontade democrática da sociedade.
388 SHAPIRO, Martin. “ The United States. ” In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 44-45.
286
A principal influência para a elaboração da Constituição dos Estados Unidos de 1787
foi o republicanism. O republicanismo é uma teoria política que se alicerça na autonomia da
vontade dos cidadãos, fazendo parte de uma tradição liberal, devendo ser a proteção desse
direito o objetivo premente dos entes estatais. Não se pode considerar que o republicanism
possua apenas uma única vertente, ao longo da história política dos EUA várias foram as
derivações dessa corrente política que entraram em conflito.
A concepção republicana vigorante no período da fundação dos Estados Unidos não
considerava como essência do Direito o seu papel de previsibilidade, “rule of law”, para
essa concepção, a sua principal finalidade era garantir a autodeterminação dos cidadãos.
Obviamente que o governo deveria ser regido por lei, mas sem mitigar a autodeterminação.
A justificativa para a consolidação dessa essência tem raízes históricas, como a forma que
ocorreu a colonização, o longo histórico de opressão da Coroa inglesa aos colonos norte-
americanos e a posterior guerra da independência.
Partindo do pressuposto de que a autodeterminação é o alicerce do ordenamento
jurídico, as disposições normativas devem propiciar o maior espaço possível de liberdade
aos cidadãos, que pautam suas relações sociais pelos princípios decorrentes do Direito
Consuetudinário, com a supervisão do Poder Judiciário. A influência do common law é
preponderante no ordenamento jurídico norte-americano e, dentro desse prisma, a produção
de leis por parte do Poder Legislativo era considerada como um cerceamento na
autodeterminação dos cidadãos. Nessa perspectiva, a Constituição tinha como função a
garantia de direitos e a limitação do poder político.
Os “foundations fathers” construíram a sua teoria de Constituição com base no
princípio da soberania popular. A concepção republicana apresenta duas concepções
diversas de soberania popular. A primeira concepção, chamada de populista, considera a
participação política do povo fundamental, devendo se manifestar constantemente para
legitimar os seus representantes. Parte da premissa que sempre a população, considerada de
uma forma homogênea, sabe escolher os melhores caminhos para o seu destino. Nutre uma
certa aversão a qualquer forma de hierarquia ou burocracia. A segunda concepção, chamada
de clássica, considera como elemento essencial a confiança que existe entre o povo e os seus
287
representantes, e dessa forma, a população não deve ser convocada sempre para tomar todas
as decisões políticas, podendo a maior parte delas serem tomadas pelos representantes
populares eleitos. Parte da premissa que o povo nem sempre sabe escolher os seus destinos,
inspirado na teoria platônica, podendo ser passível de corrupção e que nem sempre ele sabe
escolher o melhor caminho para a coletividade. O processo político representa um meio de
filtragem dos melhores quadros para exercerem a atividade política.389
A concepção republicana populista, adotada dentre outros por Thomas Jefferson,
defende que o povo, como detentor da soberania popular, deve periodicamente se manifestar
sobre as principais decisões políticas, diferenciando a autonomia inerente à sociedade civil
daquela inerente aos entes estatais, para impedir a concentração de poder. Nesse contexto,
Jefferson argumenta que a Bill of Rights deve assegurar a autonomia dos estados federados e
firmar que a Corte Suprema deve funcionar no limite da aplicação do texto da lei. Explica a
concepção republicana populista que planteia uma atuação restrita da jurisdição
constitucional a professora Brunella Casalini: “Se o Poder Judiciário não puder ser reduzido
a uma mera máquina, como um órgão técnico com a função de aplicar o texto da lei, o poder
dos juízes, poderá, de fato, segundo Jefferson, desviar-se da lógica democrática, tornando-se
um poder impróprio dentro de um governo republicano”.390
A concepção republicana clássica, defendida por John Adams, James Madison dentre
outros, assevera que o povo pode ser conduzido pela paixão irracional, como aquela que
legitimou o governo de Hitler ou Mussolini, guiado por uma classe política demagógica.
Nessa concepção, a atuação da jurisdição constitucional pode divergir da vontade da maioria
da população com a missão de realizar os valores estabelecidos nos dispositivos
constitucionais, desenvolvendo suas atividades de modo mais intenso para cumprir o
conteúdo constitucional.391 Explica a professora Brunella: “A república é sim o governo do
389 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 229. 390 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 230. 391 Explica Frederico Mioni a concepção de Madison acerca do republicanismo: “Um garantismo para o indivíduo, mas também para a sociedade, a confiança no autogoverno e em uma concepção harmônica de convivência, a tolerância e a autonomia recíproca como única análise entre o indivíduo e a comunidade. A base deste modelo, que representa também um tratamento diferencial e negativo (como a escravidão), era uma gentry iluminada, que via nas funções públicas um meio para o reconhecimento social, mas também para um
288
povo, mas o povo não tem existência se não em virtude de sua conformidade com a lei
fundamental e com os princípios de justiça – povo e não mera “moltitudine” – existe
exclusivamente quando vontade e razão convergem.. Apenas nesse sentido rule of the people
pode coincidir com rule of law e contrapor-se a rule of men. Para manter a vontade dos
governantes fiel aos princípios do governo da lei, Adams propõe um sistema de check and
balances que é imaginado como um verdadeiro instrumento de controle da paixão, que
deveria encarnar uma direção socialmente não danosa”.392
A teoria republicana populista abriga o princípio do rule of people enquanto que a
teoria republicana clássica adota o princípio do rule of law. Esta ao advogar uma suspeição,
mesmo que implícita, à autodeterminação popular abre caminho para a construção da teoria
que fundamenta o papel desempenhado pela Suprema Corte norte-americana. Ela deve
conter os excessos da soberania popular, ratificando os preceitos contidos na Constituição.
Existe ainda uma concepção estrita do rule of law que parte de uma visão formalista
do Direito, em que a Suprema Corte, agindo de forma imparcial e neutra, deve proteger as
normas constitucionais, sendo o seu intérprete máximo, descurando de todos os fatores
metajurídicos que pululam na sociedade. Nesse prisma, há um corte epistemológico
reduzindo o objeto analisado às normas jurídicas, o que pode levar a prolatação de decisões
que destoam das necessidades sociais do próprio living of constitution. Hodiernamente, essa
concepção estrita do rule of law tem tido cada vez mais dificuldade na aplicação das normas
constitucionais, haja vista a modificação mais intensa da realidade social e os contraditórios
interesses que pululam na sociedade.
A concepção republicana clássica planteia que o papel da suprema corte se configura
na custódia da democracia participativa.393 Quando o Poder Legislativo formular uma
disposição normativa que esteja fora dos interesses coletivos, com a finalidade de atender
serviço ao bem comum”. MIONI, Frederico. James Madison. Tra Federalismo e Repubblicanesimo. In: Il Político. N. 160, Ottobre-Dicembre, 1991. P. 680. 392 CASALINI, Brunella. . Sovranità Populare, Governo della Legge e Governo dei Giudice negli Stati Uniti d’America. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 230. 393 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 304.
289
determinados interesses específicos, deve a Corte Constitucional declarar a
inconstitucionalidade da norma para preservar a democracia participativa.
O republicanismo, na sua acepção clássica da Suprema Corte norte-americana, com a
sua concepção de democracia participativa, é uma das fontes do ativismo judicial, em que se
tenta compensar o desnível existente entre a idéia republicana e a realidade constitucional. A
sua intenção não é substituir o Poder Legislativo, mas garantir os pressupostos necessários
para a realização de uma democracia participativa e que esse poder possa seguir os seus
direcionamentos.
Na concepção republicana, que prevalece na Suprema Corte norte-americana, a
esfera de decisões políticas e a sociedade civil tornam-se um importante instrumento de
fortalecimento da cidadania. O desenvolvimento das relações sociais se orienta sobre o mais
arraigado princípio de igualdade, permitindo que toda a coletividade possa participar de
forma ativa das decisões políticas.
É uma concepção que ultrapassa a idéia de liberdade negativa, centrada em direitos
que podem ser opostos às arbitrariedades estatais (conceito da primeira dimensão dos
direitos fundamentais); mas um conceito de liberdade positiva, em que os cidadãos devem
participar das decisões políticas de modo ativo (quarta dimensão dos direitos
fundamentais).394 A prática dessa liberdade positiva é o que possibilita aos cidadãos formar
uma comunidade política autônoma, onde todos tenham o mesmo peso nas decisões
judiciais.
A concepção de liberdade negativa foi ultrapassada pelo desenvolvimento das
estruturas sociais. Esta fundamentava-se em um esquema do século XVIII, que colocava a
liberdade privada contra a autoridade pública, como se fossem duas coisas antagônicas. Por
sua vez, o conceito de autoridade que vigorava nessa concepção de liberdade indicava um
poder específico do Estado de tomar decisões juridicamente vinculantes, determinando o que 394 Define o conceito de liberdade negativa Tim Gray: “A concepção de liberdade em termos de inexistência de impedimentos (ou interferências, restrições ou constrangimentos, etc) foi popularizada especialmente por Hobbes, transmitindo a imagem de liberdade sem restrição de movimento ou obstrução de espaço. Dentro dessa perspectiva uma pessoa torna-se sem liberdade para fazer alguma coisa se algum obstáculo estiver no seu caminho[...] assim ela descreve um conceito residual de liberdade”. GRAY, Tim. Issues in Political Theory. Hampshire: Macmillan, 1990. P. 19-20.
290
seja lícito e o que seja ilícito, legitimando dessa forma os atos coercivos, sem a participação
ativa dos cidadãos.395
A finalidade principal da jurisdição constitucional é garantir a realização das
condições procedimentais de participação política que legitimam a formação institucional da
opinião publica, baseada na autonomia dos cidadãos. As Cortes Constitucionais haurem sua
legitimidade quando asseguram que a produção do Direito possa ser realizada consonante os
parâmetros estabelecidos pela política, com a participação ativa, liberdade positiva, de todos
os cidadãos.
A partir da decisão do caso Marbury v. Madison, em 1803, foi firmado pela
Suprema Corte que a Constituição não deveria ser interpretada consonante as interferências
políticas, apoiada em maiorias transitórias, que poderiam desviar os mandamentos
constitucionais. O Poder Judiciário passa a exercer a função de guardião dos preceitos
estipulados pelo Poder Constituinte, apogeu da soberania popular, não podendo ser
maculado por leis infraconstitucionais. A Suprema Corte se tornou depois da mencionada
decisão intérprete e guardiã do Poder Constituinte.
O Poder Legislativo, ao contrário da doutrina estabelecida na França e na Inglaterra,
não era considerado como a emanação da soberania popular, e nem mesmo poderia exercer
o papel de intérprete último da Constituição; foi considerado como um dos Poderes
Constituídos e como tal deveria se ater aos limites impostos. O poder da Suprema Corte de
revogar a legislação produzida pelo Poder Legislativo significa a defesa da Constituição, por
ter esse poder descurado no cumprimento dos mandamentos constitucionais.
A Suprema Corte, que antes do New Deal declarava como inconstitucionais as
medidas de regulamentação da economia, em virtude das demandas ocasionadas pelo Crash
da Bolsa de Nova York (quando o Estado teve que intervir na economia para regulamentar
os ciclos econômicos, com base na teoria de Lord Keynes, e atender as necessidades do
desenvolvimento da sociedade capitalista), passou também a admitir a regulamentação de
setores considerados essenciais para o desenvolvimento econômico. A modificação no
395 HOFMANN, Hasso. Legittimità Contro Legalità. Trad. Roberto Miccù. Napoli: Scientifiche Italiane, 1999. P. 106.
291
posicionamento da Suprema Corte norte-americana, a partir de 1937, aceitando as
regulamentações do New Deal, é denominada de Constitucional Revolution, trilhando
novamente a concepção de Marshall de “poder federal”, cristalizadas em decisões como
National Labor Relations Act, The Fair Labor Standardardas Act etc.396
Mas essa modificação de rumo das decisões da Suprema Corte foi realizada a custa
de grandes embates.397 No início, a Egrégia instância do Poder Judiciário foi um sério
obstáculo à implementação das medidas necessárias do New Deal. O presidente Roosevelt,
que gozava de amplo apoio popular, teve duros embates com a Suprema Corte, inclusive
sugeriu o aumento no número de seus componentes como forma de garantir a efetivação das
medidas econômicas necessárias.
O ativismo judicial praticado pela Suprema Corte norte-americana e pelos juízes
ordinários, entendido como uma série de direitos assegurados por decisões judiciais sem
expressa previsão legal, que beneficia direitos individuais e direitos das minorias, data do
século XX, com o escopo de legitimar a ascensão dos Estados Unidos na seara internacional.
Ele tem origem na interpretação extensiva da emenda XIV à Constituição norte-americana,
estendendo a toda sociedade a cláusula do equal protection of the laws. Esses direitos foram
consolidados principalmente durante a presidência de Warren, no período de 1953-1969,
quando se consagraram as decisões contra a segregação racial e a favor de direitos civis,
destacando-se o direito ao privacy, o fim da segregação racial e o direito ao aborto.398
O ativismo judicial foi o resultado das demandas sociais, que exigiam a criação de
uma sociedade mais justa e democrática, com a extensão da igualdade política para a
igualdade social, principalmente com relação às normas que apresentavam uma
396 DEAN, Howard E. Judicial Review and Democracy. New York: Random House, 1966. P. 82. 397 A concepção moderna da Constituição dos Estados Unidos da América foi criada durante a administração de Roosevelt e não foi por um processo condizente com o estipulado no seu artigo quinto. ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 383. 398 Precioso é o depoimento sobre Earl Warren prestado por William J. Brennan Jr., que foi juiz da Suprema Corte norte-americana na mesma época: “Ele era um homem íntegro e justo, e nenhum outro juiz contribuiu mais para firmar na Suprema Corte um conteúdo humano e pleno de sabedoria. Suas grandes decisões, como no caso Brown v. Board of Education to Miranda v. Arizona, mostrou seu maior presente para a nossa jurisprudência: ele acreditava na dignidade humana e, talvez, esse seja o valor primário agasalhado pela Constituição”. BRENNAN JR., William J. “A Personal Remembrance”. In: The Warren Court. A Retrospective. New York: Oxford, 1996. P. 10.
292
discriminação racial. Depois da Segunda Guerra Mundial, essas exigências começaram a
ganhar respaldo na Suprema Corte norte-americana, pois um país que propagandeava ser o
baluarte da democracia, não podia ter no seu ordenamento jurídico normas que asseguravam
a desigualdade.
Grande parte dos direitos norte-americanos não foi assegurada por previsão
normativa, mas devido à atuação da Suprem Corte. As decisões da jurisdição constitucional
começam a criar direitos que até então não haviam no ordenamento e a exercer uma função
de policy-maker ou law-making.
Para contrariar os resultados produzidos pelo judicial activism é que foi criada a
doutrina do self-restraint, com a finalidade de mitigar a atuação da jurisdição constitucional
e tornar-se o contra-ponto ao alargamento dos direitos civis que caracterizou a atuação da
Suprema Corte, na época de Warren. A mais séria e persistente crítica contra o ativismo
judicial é que ele se configura incompatível com os preceitos do regime democrático.
Deve-se ressaltar que o ativismo judicial, apesar de ganhar maior desenvolvimento
na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, entre outros motivos pela adoção do
sistema do common law, pode ser encontrado na jurisprudência da jurisdição constitucional
de diversos outros países, como na Itália, Alemanha etc.399
12.2) A Influência da Tribunal Constitucional Alemão sobre a Jurisdição
Constitucional
O Tribunal Constitucional Alemão de Karlsruhe, criado em 1951, apresenta um
grande alcance nas suas decisões, configurando-se como um dos tribunais europeus que
399 Como exemplo de ativismo judicial na Corte Constitucional italiana podemos mencionar as sentenças de números 353 de 1996, 306, 307 e 308 de 1997, 232, 347 de 1998 etc. RODOTÀ, Carla. Storia Della Corte Costituzionale. Roma: Laterza, 1999. P. 130-136.
293
mais exercem influência na sociedade, ocupando o posto mais proeminente da estrutura
judiciária alemã.400 Essa ampla atuação da jurisdição constitucional por parte do tribunal
alemão foi possível também devido a motivos históricos, que remontam ao relevante papel
desempenhado pelos tribunais imperiais.
Diante dos horrores perpetrados pelo nacional-socialismo, durante a Segunda Guerra
Mundial, solidificou-se a idéia de construir um tribunal constitucional para preservar os
direitos fundamentais e obrigar as maiorias parlamentares a respeitarem os mandamentos
constitucionais. Nenhum outro povo com igual desenvolvimento cultural, econômico e
social como o que goza o povo alemão, praticou ou apoiou a prática de tamanhas atrocidades
como as que foram executadas pelo nazismo. Em virtude desses elementos fáticos e devido
ao desenvolvimento da ciência jurídica produzida na Alemanha, o seu Tribunal
Constitucional dispõe de extenso rol de prerrogativas que lhe permite cumprir as funções
para as quais foi criado.
Ao Tribunal Constitucional alemão atribui-se uma função legislativa concorrente,
proporcionando um alargamento das funções da magistratura. Dentre os instrumentos
normativos que amparam essa função legislativa estão as sentenças aditivas e as sentenças
de dupla pronúncia. Outro exemplo, de uma maior atuação das decisões judiciais relativas a
jurisdição constitucional, ocorre quando há uma declaração de inconstitucionalidade e, em
decorrência das necessidades do caso concreto, tem o tribunal a prerrogativa de
regulamentar as situações transitórias.
O Tribunal alemão igualmente exerce uma atividade mais extensiva quando atua na
competência suplementar, considerando que essa competência não é criada por nenhuma
norma jurídica, mas advém de uma competência ex facto, e que a omissão por parte do órgão
competente de realizar uma atividade prevista pela Constituição, preenche o requisito para a
sua atuação. Essa concepção serve como um dos alicerces para a extensão de incidência de
suas decisões.
400 Art. 92 da Lei Fundamental Alemã.
294
O elemento fático que motiva essa extensão no alcance de suas decisões configura-
se na transformação do Estado de Direito, em Estado Social de Direito, exigindo dos entes
estatais intervenções em vários setores da sociedade para garantir direitos mínimos à
sociedade. As normas programáticas passam a ter atuação corrente e eficácia obrigatória.
Suas decisões, portanto, são vinculantes para os outros juízes e todos os operadores do
direito devem respeitar as motivações de suas sentenças.
A maior extensão das decisões judiciais da jurisdição constitucional é realizada com
base em princípios jurídicos, realizando um processo de “criação do Direito” que permite
um maior contato com a realidade social e melhor atendimento às demandas sociais. As
decisões judiciais baseadas nos princípios constitucionais, ou em princípios implícitos,
operando uma interpretação construtiva do Direito, têm a função de manter a Lei Mater
sempre atualizada, sem propiciar fossos normativos.
O Tribunal Constitucional concebe a Lei fundamental nem tanto como um sistema de
normas baseado em princípios, mas principalmente como uma estrutura normativa que
possui ligação com elementos éticos e axiológicos, estabelecendo em decorrência uma
ordem concreta de valores, realizando uma interpretação construtiva com base nos
dispositivos constitucionais.
Bastante significativa é a decisão do Tribunal Constitucional Alemão, referindo-se ao
artigo 20, parágrafo 3, do Grundgesetz ( Lei Fundamental), no qual declara de forma clara:
“o Direito não se restringe apenas aos dispositivos legais.401 Com relação às cominações
normativas que estatuem o poder legal, pode existir, em determinadas circunstâncias, um
plus de Direito que tem a sua fonte implícita no ordenamento, surgindo de sua concepção
sistêmica, não podendo ser elidida pela lei escrita. A obrigação da jurisdição é individualizar
este plus e realizá-lo nas suas decisões”.402
Por causa desses posicionamentos são contundentes as críticas contra o Tribunal
Constitucional, com a alegação de que a jurisprudência de valores provoca uma
401 O Poder Legislativo estará vinculado à ordem constitucional e o Poder Executivo e o Poder Judicial estarão sujeitos ao Direito. 402 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 291.
295
indeterminação no conteúdo das decisões judiciais. Essa é uma crítica principalmente de
cunho metodológico porque acredita que a mencionada jurisprudência operaria uma
confusão na definição conceitual de princípios e de valores. Contudo, a jurisprudência de
valores não significa que os critérios axiológicos devam ser utilizados de forma arbitrária,
mas de acordo com a determinação do valor dos mandamentos constitucionais diante dos
casos concretos apresentados.
Segundo Habermas, a alegação de inconsistência metodológica não pode prosperar
porque várias são as diferenças apontadas entre princípios e valores. Os princípios têm um
sentido deontológico enquanto que os valores têm um sentido teleológico. Os primeiros,
como são normas válidas, obrigam todos os seus destinatários de forma geral e abstrata ao
contrário dos valores que atuam como uma influência intersubjetiva, sem dispor de sanção
institucionalizada por órgãos estatais. Os princípios jurídicos são moldados de acordo com
uma pretensão binária, ou são válidos ou inválidos; os segundos não oferecem essa opção
disjuntiva porque indicam uma relação de preferência, podendo alguns valores serem mais
atraentes do que outros de acordo com o interesse do cidadão, sem uma relação de exclusão,
de forma gradual. Os princípios jurídicos, devido à sua taxionomia deontológica, possuem
uma pretensão de aceitação absoluta, devendo ser coerentes entre si para formar um sistema;
os valores possuem um senso relativo na valoração dos bens, de acordo com a classe social,
momento histórico, sociedade determinada etc. Estes últimos não são coerentes entre si,
lutando diversos valores para a prevalência em uma determinada situação.403
Mesmo diante dessa crítica metodológica não pode negar a plausibilidade de se
construir uma teoria racional para as decisões judiciais da jurisdição constitucional. Segundo
Habermas, o problema da construção das decisões judiciais é evitar o vazio de racionalidade,
sendo esta realizada pelo procedimento fornecido pelas regras jurídicas e pelos vetores
morais estabelecidos normativamente no ordenamento jurídico.
O vetor que balisa as decisões do Pretório Excelso alemão é o princípio da
proporcionalidade, com o objetivo de realizar um equilíbrio dos bens postos à apreciação,
403 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 304.
296
com o pressuposto de que nenhum valor pode ser tomado no seu sentido absoluto. O
princípio do equilíbrio dos bens estabelece que os valores jurídicos devem ser aplicados da
melhor forma, satisfazendo a imperativos de optimização da concretização normativa. Essa
ponderação garante à interpretação hermenêutica uma “realização de valor”para o caso
concreto.
No desenvolvimento da sua jurisprudência têm considerado alguns “conceitos-chave”
para entender a Constituição, e um dos mais importantes é o conceito da proporcionalidade,
que permite uma abertura sistêmica entre a Constituição e a seara fática. Aliás, a maioria das
leis européias adotam o princípio da proporcionalidade, que requer para a sua aplicação uma
relação razoável entre a decisão, seus objetivos e as circunstâncias do caso concreto.404
Portinaro afirma que as decisões do Tribunal Constitucional alemão abrigando a
teoria do “ordenamento objetivo de valores”, baseado em princípios constitucionais, provoca
uma dúplice tendência: de um lado, provoca a “politização das decisões constitucionais”, em
que o Tribunal tem que intervir com mais freqüência na sociedade para garantir as normas
programáticas da Constituição; do outro lado, concomitantemente, provoca uma
“giurisdicização da política”, em que as decisões políticas e as iniciativas legislativas são
condicionadas ao posicionamento do Tribunal Constitucional.405
Com relação aos direitos fundamentais, o Tribunal Constitucional alemão dispõe que
eles representam princípios globais do ordenamento, cujo conteúdo normativo vem
estruturado no complexo de dispositivos constitucionais. Afirma que os direitos
fundamentais apenas são invioláveis no seu conteúdo essencial, servindo ainda como limite
implícito para as normas constitucionais.
Coerente com a concepção de que a Constituição representa uma ordem objetiva de
valores, o Tribunal Constitucional alemão advoga que não existe um numerus clausus de
dimensões de tutela dos direitos fundamentais, admitindo uma “proteção dinâmica dos
direitos fundamentais” consonante o contexto histórico-social.
404 GORDON, Richard Q. C. Judicial Review. Law & Procedure. 2 ed., London: Sweet & Maxwell, 1996. P. 44. 405 PORTINARO, Pier Paolo. “Oltre lo Stato di Diritto. Tirannia dei Giudici o anarchia degli avvocati?”. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88. P. 395.
297
13.) Legitimação pelo Procedimento da Jurisdição Constitucional
A importância de racionalizar a fundamentação das decisões do Poder Judiciário tem
como objetivo legitimar o papel desempenhado principalmente pela jurisdição
constitucional, cujo órgão essencial é o Supremo Tribunal Federal, gerando assentimento da
sociedade com relação às suas decisões.
Trata-se de criar um novo tipo de legitimidade para o Poder Judiciário, que alicerce
suas decisões fora do standard de qualquer conteúdo ontológico. A legitimação pelo
procedimento caracteriza-se como uma forma “pós-moderna de legitimação”, sendo
concretizada quando o conceito de legitimação estiver apartado da religião, dos costumes e
de conceitos abstratos como nação e povo, com os seus procedimentos disciplinados
racionalmente por parâmetros previamente estipulados pelo ordenamento jurídico.
Os procedimentalistas, em maior ou menor grau, advogam que a legitimidade do
direito é haurida da legalidade, cujo conteúdo normativo deve estar adstrito aos mecanismos
que orientam a realização das decisões judiciais. A justificação da jurisdição constitucional é
obtida mediante os procedimentos que regulamentam as decisões, relegando a importância
de direitos substanciais na concretude normativa.
Essas teorias criticam a utilização de um conteúdo substancial na tutela dos
dispositivos constitucionais porque esses princípios não são aceitos de modo inconteste por
toda a população. A obtenção de princípios universalizantes, diante do pluralismo social,
apenas pode ser formulado com base em procedimentos que assegurem a previsibilidade na
tomada das decisões. A aceitação é obtida não da decisão, mas das premissas das decisões.
O conteúdo final perde a sua importância diante da relevância do preenchimento das
expectativas esperadas para a tomada das decisões. A pretensão universalizante de
Habermas é realizada por intermédio de procedimentos que possam propiciar racionalidade
ao discurso.
298
Afirmam que os direitos fundamentais não podem servir como substrato
universalizantes de legitimidade, pois, diante do multiculturalismo, eles não podem ter um
conteúdo generalizante, assumindo, dessa forma, um caráter procedimental.
A legitimação pelo procedimento se configura como um fundamento de legitimidade,
com a função de racionalizar as expectativas comportamentais, deslocando a legitimidade do
sujeito para o procedimento empregado.
As teses procedimentais de Habermas, Ely e Sunstein, afora a defendida por
Luhmann que se baseia na teoria sistêmica, admitem a existência de conteúdo substantivo
apenas quando ele for oriundo de decisões formuladas pela maioria política, ou seja, quando
o conteúdo substancial for decorrente do processo democrático. Entretanto, essa substância
normativa não assume uma natureza absoluta, podendo ser modificada por uma maioria
política formada dentro do processo democrático.406
Esses quatro autores foram escolhidos porque representam as vertentes mais
importantes da teoria procedimental: Luhmann por atribuir relevo ao procedimento judicial,
tornando-o um subsistema social; Habermas pela sua concepção de espaço público, o que
possibilita uma democratização das decisões da jurisdição constitucional; Ely e Sunstein,
pertencentes à escola de legitimação norte-americana, por privilegiar o regime democrático e
a participação dos cidadãos.
13.1) A Questão da Legitimidade em Jürgen Habermas
Para Habermas, a jurisdição constitucional, que se baseia no ordenamento jurídico, tem
como orientação princípios de natureza ética e moral. Sua intenção é impedir o
406 “A autoridade deles deriva da justiça e da franqueza dos seus procedimentos, embora no caso mencionado, as decisões do Poder Legislativo e das cortes poderão trazer instabilidades, a menos que os resultados substantivos estejam em consonância com os parâmetros da opinião da maioria política”. ALDER, John. Constitutional and Administrative Law. 3 ed., Hampshire: Macmillan, 1999. P. 61.
299
estabelecimento de ordenamentos jurídicos como o nazista e o fascista que praticamente
aboliram os direitos fundamentais, Habermas propõe uma re-moralização do Direito, cujas
normas jurídicas teriam como vetores parâmetros éticos que sinalizariam o contorno geral do
seu conteúdo. Os argumentos morais seriam inseridos dentro do ordenamento por intermédio
dos princípios jurídicos.407
A legitimação da jurisdição constitucional através da teoria discursiva do direito,
representa uma alternativa tanto à concepção liberal do Estado, como a defendida por Ely,
Sunstein etc, quanto à sua concepção comunitarista, defendida por Dworkin. Para a teoria
habermasiana o objetivo mais importante é a formação de procedimentos éticos de
deliberação, que possibilitem a formação de consensos, ao invés da busca de valores éticos à
priori.
Elemento imperioso para a construção da teoria habermasiana de legitimação da
jurisdição constitucional é o seu conceito de espaço público, configurando-se como uma
conseqüência direta da razão comunicativa. O conceito de democracia passa a ser
estruturado juntamente com o conceito de espaço público, partindo do pressuposto de que
em sociedades altamente complexas como são as sociedades pós-modernas, há a necessidade
de se estabelecer um locus onde as discussões devem ser travadas.
Em contraposição à democracia liberal, Habermas elabora a democracia discursiva,
em que para as decisões serem tomadas, não necessita de uma assembléia de cidadãos, mas é
imprescindível que todos tenham acesso ao espaço público e possam participar do debate
acerca das decisões. A democracia deixa de ser visualizada exclusivamente como
democracia representativa, necessitando que as pretensões normativas passem por intensos
debates públicos.
O telos do espaço público é institucionalizar a legitimação do direito, a partir da
construção de um acordo, ou consenso, que ampare as proposituras normativas.408 Pelo
407 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 313. 408 O espaço público deve ser o grande legitimador das decisões judiciais. Assim, quanto maior for a simetria entre o espaço público e o Poder Judiciário, maior será o consenso extraído de suas decisões. Ele dever ser a ligação entre a vontade produzida pelos atores sociais e as instâncias estruturadoras das decisões judiciais.
300
caráter pós-moderno da razão comunicativa, o acordo estará amparado no argumento que
obtiver o maior consenso no espaço público, devendo obrigatoriamente estar imbuído de
fundamentos ético-racionais, que obedeçam ao procedimento previamente determinado. Para
se saber se o acordo obtido é racional ou não, deve-se verificar o procedimento adotado, pois
é esse o que vai validar a estrutura normativa.409
Como pressuposto do espaço público, podemos mencionar o princípio da igualdade
comunicativa, em que cada cidadão tenha a mesma oportunidade de participar do processo
discursivo, possibilitando que o argumento que obtenha o maior grau de consenso possa ser
utilizado.
13.1.1) A Concepção de Direito em Habermas
A base da concepção do Direito em Habermas é a razão comunicativa, ela pode ser
situada como representante da filosofia pós-positivista, na sua tentativa de superação da
filosofia analítica kelseniana, fundamentada na razão no âmbito do discurso prático. A
filosofia analítica kelseniana pode ser definida como a filosofia cujo método fundamental é a
análise, com o escopo de resolver qualquer raciocínio mediante silogismos, que constituem
suas premissas evidentes, buscando as provas necessárias no próprio silogismo.410 Por sua
409 O espaço público deve possibilitar aos cidadãos iguais chances de influenciar na tomada das decisões. E essa participação democrática inclusive é um limite às próprias decisões da maioria, que terão que respeitar a participação de todos no processo de tomada de escolha, ou seja, o limite para as deliberações é a manutenção do procedimento democrático. 410 Nicola Abbagnano assim define Filosofia Analítica: “Em geral, uma disciplina ou uma parte de disciplina cujo método fundamental é a análise. Aristóteles chamou de análise a parte da lógica que visa resolver qualquer raciocínio na figuras fundamentais dos silogismos (Primeiros analíticos) e qualquer prova nos próprios silogismos e nos primeiros princípios, que constituem suas premissas evidentes (Segundos analíticos)”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 54
301
vez, os silogismos são pressupostos que através de raciocínio dedutivo desencadeiam outros
pressupostos de forma inexorável.411
A essência desse conceito é o deslocamento da racionalidade e da legitimidade do
sujeito para o procedimento da produção normativa, garantindo a previsibilidade do
processo comunicativo.412 Enquanto, no positivismo jurídico a racionalidade está centrada
no juiz, na razão comunicativa a racionalidade está centrada no processo argumentativo, por
meio do debate entre os argumentos que alicerçam as estruturas normativas.
Os argumentos estabelecem racionalidade às decisões judiciais, assegurando a
previsibilidade do procedimento, eliminando a surpresa da escolha de um argumento que
não fora por ele previsto. A argumentação forma uma ilusória justificação para as decisões
judiciais, com se fosse o seu principal esteio, esquecendo que muitas vezes são as decisões
que justificam a argumentação escolhida.
O discurso utilizado no processo de comunicação não pode ser aleatório, mas um
discurso racional, pautado por parâmetros pré-fixados. Explica Habermas: “E “discurso
racional” é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de validade problemáticas, na
medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento
livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público
constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se
411 Nicola Abbagnano também define silogismo: “Essa palavra que na origem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio em geral, foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo, definido como um discurso em que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução: Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 896. 412 O Direito é considerado como uma instituição de segunda ordem porque é externo à seara fática, desenvolvendo-se não por uma seqüência natural de fatos, mas por meio de disposições normativas implementadas pelo homem. Assevera Luiz Moreira: “Mas por que o Direito é uma instituição de segunda ordem? Porque as diversas vivências sociais originárias brotam de um eticidade tradicional, de um universo de compreensão que, como tal, é compartilhado, de um horizonte de sentido comum, e não a partir dos termos de uma manifestação social juridicizante. Pois, nesse sentido, o Direito é uma instituição artificial que ocupa uma posição externa em relação à vida e ao modo como esta se reproduz em termos societários”. MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 2º ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. P. 50.
302
também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos
fundamentados discursivamente”.413
O filósofo alemão busca a superação da concepção de Direito clássico, que tem como
característica a legalidade, a positividade e o formalismo. Legalista na medida em que o
padrão normativo determinante é a lei, por sua vez representante da soberania popular.
Positividade no sentido de que as normas devem ser escritas para possibilitarem um maior
grau de segurança jurídica. E formalismo que se fortalece com a sistematização do
ordenamento jurídico, em que a criação e aplicação das leis estão vinculadas a
procedimentos de conteúdo eminentemente formal.
O Direito clássico nasce com o Estado secular, sepultando o Estado Absolutista,
onde as leis teocráticas, baseadas na vontade divina, cedem lugar às leis baseadas na vontade
humana.414 A normatividade de suas leis é amparada na possibilidade de implementação de
uma sanção, defluindo como uma de suas características principais a objetividade, atingindo
a todos os cidadãos que estejam na mesma situação jurídica.
Para Max Weber, que foi uma dos formuladores da concepção clássica do Direito, as
características fundamentais do ordenamento jurídico ocidental moderno de administração
da justiça são: a criação normativa de forma racional e a natureza sistêmica do Direito, o que
garante ao fenômeno jurídico um crescente particularismo.415
A racionalização formal para Weber ocorre de três modos.416 O primeiro por
intermédio do escalonamento normativo kelseniano, cuja norma inferior é validada pela
norma superior, ocupando a Constituição a posição estruturante de todo o ordenamento
jurídico, que garante o seu caráter sistêmico. O segundo, se dá devido à característica das
413 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade. Volume I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. P.142. 414 Doutrina o culto professor Nelson Saldanha: “ O processo de secularização corresponde a uma gradual transformação ocorrida em determinadas sociedades, transitando de um padrão predominantemente religioso para formas preferentemente “leigas” (ou racionais) de vida. Tal processo ocorreu exemplarmente na Grécia do século V A. C. e no ocidente do século XVIII, com antecipações que radicam no Humanismo renascentista”. SALDANHA, Nelson. Da Teologia à Metodologia. Secularização e Crise no Pensamento Jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. P. 57. 415 WEBER, Max. Economia e Società. Sociologia Del Diritto. III. Trad: Giorgio Giordano. Milano: Edizione di Comunita, 1995. P. 186. 416 HABERMAS, Jurgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. P. 18-19.
303
leis que são genéricas e abstratas, garantindo uniformidade jurídica para a solução dos casos
apresentados, sem serem formuladas para casos específicos ou especiais. E terceiro, é que a
atuação dos órgãos administrativos e judiciais ocorre de forma vinculada ao que fora
determinado por prescrições normativas, de acordo com o princípio da legalidade, com a
finalidade de assegurar uma aplicação metódica e calculável que se concretiza mediante
leis.417
A superação dessa concepção de Direito clássico baseia-se no estabelecimento de
procedimentos racionais que norteiam o medium comunicativo para a obtenção do consenso,
que será efetuado com a participação efetiva da sociedade. A função dos parâmetros
jurídico-morais é indicar um consenso todas as vezes que ele não puder ser realizado pelo
âmbito comunicativo.
O Direito moderno, para Habermas, se caracteriza pelas exigências concomitantes de
positivação e de fundamentação argumentativas, baseadas em parâmetros éticos morais. No
que se difere dos positivistas tradicionais que sustentam poder ser a legitimidade obtida
apenas pelo procedimento, destituída de qualquer tipo de conteúdo material.
A institucionalização das decisões judiciais é realizada de uma dupla forma:
obedecendo ao procedimento que fora previamente estipulado, quando cada ato acarretará
uma conseqüência prevista no ordenamento, e que a decisão proferida seja sustentada pelo
critério fornecido pelo melhor argumento, com a abertura de um canal para os preceitos
morais.
A legitimação do Direito é obtida por meio de procedimentos, que se desenrolam
através de uma seqüência de atos jurídicos, cuja decisão será tomada com base no
417 Para Weber, o Direito é formalmente irracional quando no processo legislativo e na jurisdição são empregados tanto elementos que não podem ser controlados de forma racional e materialmente irracional, como quando as decisões têm por base valorações concretas do caso particular, seja de natureza ética, afetiva ou política. De forma contrária, o Direito é formalmente racional quando, sob o plano jurídico e processual, considera exclusivamente as características gerais unívocas dos casos concretos. Para conceituar o Direito materialmente racional, ele parte dos principais pressupostos: a) que cada decisão jurídica concreta é a aplicação de um princípio abstrato a um caso concreto; b) que para cada caso concreto deva ser possível, através da lógica jurídica, utilizar um dos princípios abstratos em vigor; c) que o direito objetivo possa formar um sistema dos princípios jurídicos.WEBER, Max. Economia e Società. Sociologia Del Diritto. III. Trad: Giorgio Giordano. Milano: Edizione di Comunita, 1995. P. 16-17.
304
argumento mais robusto, imbuída de preceitos morais. A legitimação procedimental do
Direito fundamenta-se em princípios morais. A única coerção admitida durante o
procedimento judicial é a força exercida pelo melhor argumento, em uma relação de
complementaridade entre o Direito e a moral.
Nesse processo há uma interseção de três fatores que atuam simultaneamente: o
jurídico, o político e o moral. O jurídico que influencia o procedimento do processo de
decisão; o político que estrutura o espaço público e o moral que oferece um alicerce de
fundamentação para as estruturas normativas.
A influência de vetores ético-morais na seara do Direito é também defendida por
Dworkin.418 Segundo o qual o direito e a moral são os alicerces para as decisões da jurisdição
constitucional. Ele assevera que os princípios morais são elementos intrínsecos às normas
jurídicas, mesmo que não tenham sido por eles acolhidas, devendo ser concebidas de modo
implícito, configurando-se como condição imprescindível para as decisões judiciais.
O espaço público é o elo de ligação entre a política e o Direito, onde os cidadãos
respaldariam o melhor argumento para que este pudesse alicerçar a decisão. A ligação entre
os princípios morais e a política originá-se no fato de que esta recebe daquela os argumentos
que permitiriam estabelecer determinados consensos na sociedade. Segundo Stanley
Kleinberg, os argumentos morais são uma importante saída para se tentar resolver
controvérsias políticas de forma racional.419
Na concepção moderna de Direito de Habermas assume relevante significado o
conceito de direito subjetivo. Eles são espaços privativos de atuação dos cidadãos, onde eles
podem exercer livremente sua vontade, sendo constituídos para garantir igual liberdade à
comunidade de sujeitos de direito. Na circunscrição desse espaço não cabe atuação dos entes
estatais no sentido de cercear os direitos subjetivos, mas apenas no sentido de limitar a sua
atuação.
418 DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 7. 419 KLEINBERG, Stanley S. The Necessity and Limitations of Rational Argument. Massachusetts: Blackwell, 1991. P. 35.
305
Os direitos subjetivos, para serem concretizados de forma plena, necessitam ser
definidos através de uma idéia de reciprocidade, na qual cada cidadão é co-responsável pelo
exercício do direito de outrem, de forma que exista uma responsabilidade difusa por todo o
ordenamento jurídico. Apenas em uma sociedade livre, onde os cidadãos possam discutir os
seus interesses no espaço público, por meio de argumentos racionais, é que os direitos
subjetivos podem ser realizados, devido à co-responsabilidade que existirá dentro das
relações.
Diante da liberdade de ação que permeia os direitos subjetivos, dentro do espaço de
atuação previamente estipulado pelas disposições normativas, os cidadãos se comportam
como responsáveis pela elaboração do ordenamento jurídico, em uma co-autoria
concretizada pela livre atuação na elaboração argumentativa no espaço público. Portanto,
para Habermas, os direitos subjetivos são responsáveis pela reciprocidade de direitos e
deveres dos cidadãos e pela co-autoria do ordenamento jurídico.
Uma concepção que assume especial relevo para a teoria habermasiana, diz respeito
ao caráter instrumental do Direito, decorrente dos direitos subjetivos dos cidadãos, em que
há uma atuação pautada no interesse singular. O particularismo na ação de cada cidadão é
arrimado na seara do espaço subjetivo ofertado, permitindo um amplo espaço para a
estruturação da teoria discursiva do Direito.
Para Habermas, os direitos subjetivos remetem a uma ordem jurídica objetiva, que
obedece à lógica do processo comunicativo, assim, as normas jurídicas são formuladas por
atores políticos que agem dentro de uma reflexão do nexo ético vital. Dessa reflexão, ele
traça uma relação entre os direitos fundamentais e a autonomia dos cidadãos, já que a livre
participação dos cidadãos no processo comunicativo permite a formulação de dispositivos
jurídicos que assegurem a concretização dos direitos subjetivos.
A tensão entre os direitos fundamentais e o princípio da soberania popular,
apresentada no pensamento de Sunstein ou de Frank Michelman para a legitimação da
jurisdição constitucional, é para Habermas ultrapassada quando a legitimidade do
ordenamento jurídico corresponde ao consenso dos cidadãos como participantes do processo
306
comunicativo, criando uma conexão com o sistema de direito, que garante a autonomia
privada e, ao mesmo tempo, com a supremacia dos mandamentos constitucionais.
A teoria habermasiana somente pode ser construída em um Estado Democrático
Social de Direito. Democrático, no sentido de que as decisões devem ser tomadas de forma
coletiva, assegurando uma ampla participação popular; Direito, porque o parâmetro legal
deve ser o alicerce da sociedade, pairando acima das vontades individuais e de grupos
econômicos; Social para atender as necessidades dos hipossuficientes sociais.
Outra condição para o florescimento da teoria discursiva é a existência de uma
cultura em que os cidadãos se sintam obrigados a participar das decisões políticas, sendo
responsáveis individualmente pela gerência da coisa pública. Estas duas condições devem
ser pautadas em fundamentos éticos que ajudem a previsibilidade dos fundamentos
racionais, orientadores da teoria discursiva.
Elemento imprescindível para o desenvolvimento da teoria discursiva são os direitos
fundamentais, funcionando como pressupostos para o debate no espaço público. Não são
concebidos apenas do ponto de vista liberal burguês, mas entendidos como condições,
procedimentos, para o processo democrático de escolha das decisões judiciais. Princípios
como a liberdade de consciência, liberdade de expressão, vedação à censura e à licença,
entre outros, são pressupostos substancias para a participação dos cidadãos no espaço
público. A teoria do espaço público também é defendida por outros autores, como Cass
Sunstein.420
Os direitos fundamentais, dentro da ótica do agir comunicativo, passam a ser vistos
como requisitos procedimentais para a interação comunicativa, sem a contingência de
apresentar uma validade metafísica, apesar da lição de Norberto Bobbio de que não há mais
necessidade de se buscar fundamentação metafísica para os direitos fundamentais.421
420 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 27. 421 “Mas, quando digo que o problema mais urgente que temos de enfrentar não é o problema do fundamento, mas o das garantias, quero dizer que consideramos o problema do fundamento não como inexistente, mas como – em certo sentido – resolvido, ou seja, como um problema cuja solução já não devemos nos preocupar. Com efeito, pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro
307
Os direitos fundamentais também funcionam como limites ao regime democrático,
que não podem ser tolhidos, mesmo que legitimados pela vontade popular. Desempenham,
dessa forma, uma dupla função, sendo ao mesmo temo requisito e limite para a democracia.
Habermas não pode ser entendido como um adepto da escola liberal clássica, para ele
os direitos fundamentais, relacionados à autonomia privada, devem ser entendidos como
supedâneos da autonomia política dos cidadãos, com o escopo de aprimoramento do regime
democrático. Os direitos políticos dos cidadãos somente podem ser desenvolvidos se forem
amparados nos direitos fundamentais da autonomia privada, que asseguram a liberdade
imprescindível para a participação no processo democrático, ainda mais na atualidade
quando os mecanismos da democracia semiparticipativa sofrem um processo de intenso
incremento.
13.1.2) A Legitimidade da Jurisdição Constitucional em Habermas
A principal crítica que é imputada à legitimidade da jurisdição constitucional diz
respeito ao fato de ela sempre ultrapassa os limites estipulados na separação dos poderes,
estabelecendo um conflito entre o Poder Legislativo, que teoricamente tem a incumbência de
realizar a produção normativa, e o Poder Judiciário, que tem a função de aplicar a lei em
relação ao caso concreto. Atuando esses dois poderes em função concorrente quando o
Judiciário acolmata o ordenamento jurídico diante de uma omissão do Legislativo.
As assertivas mais virulentas contra a extensão da atuação do Poder Judiciário na
jurisdição constitucional consistem no medo da criação de um “governo de juízes”,
destituído de legitimidade popular. Entretanto, dos três poderes, o Judiciário é o mais frágil
deles, porque não dispõe de nenhum meio coercitivo para garantir a eficácia de suas
decisões, além de auferir a sua legitimidade de forma diferente dos outros dois.
de 1948”. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 16º Tiragem. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. P.26.
308
Para Habermas, o objetivo principal da jurisdição constitucional é proteger os
direitos fundamentais através de decisões que obriguem os demais poderes, principalmente o
Executivo, de forma vinculante, e que garanta a existência de disposição normativa quando a
sua ausência for motivo impediente para o exercício de um direito.
A idéia de Habermas é estabelecer uma jurisdição constitucional com base em uma
democracia participativa, que propicie a participação intensa dos cidadãos, o que seria um
antídoto contra a ameaça de que os tribunais constitucionais se fechem em um ciclo
autônomo de decisões. A jurisdição constitucional deve se basear em argumentos racionais,
permitindo sempre a inclusão de participantes no debate público, com ligações intrínsecas
com a sociedade.
Ele constrói a legitimidade da jurisdição constitucional, fundada no agir
comunicativo, que busca formar uma teoria de justificação cujas decisões judiciais sofrem
injunções diretas do espaço público que, por sua vez, deve garantir a mais completa
participação isonômica dos cidadãos e da sociedade civil organizada, formando um canal
entre a sociedade civil e os entes estatais. Assim define a sua teoria o próprio autor: “A
teoria discursiva do Direito concebe o Estado Democrático Social de Direito como uma
instituição de procedimento e de pressupostos comunicativos – socorrendo-se sobre o
binário do direito legítimo e garantindo a autonomia privada – tornando possível uma
formação discursiva da opinião e da vontade. Por sua vez, esta última, transmite o exercício
da autonomia política e torna possível a legitimação da estrutura jurídica”.422
A sua teoria configura-se como procedimental porque assegura que os pressupostos
racionais dos procedimentos judiciais possam direcionar a decisão tomada pelo magistrado.
Esses pressupostos são construídos pelas normas jurídicas e por vetores jurídicos, no ensejo
de propiciar a maior participação possível dos cidadãos no espaço público. A sua concepção
procedimental não significa que a forma deva preponderar em detrimento do conteúdo, mas
sinaliza que os procedimentos jurídicos são a garantia para a realização dos pressupostos
necessários para o funcionamento do espaço público.
422 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 518.
309
A teoria comunicativa habermasiana se serve da política, tomada como um dos
sistemas de ação existente, para tentar reduzir a complexidade da integração social, através
da interação proporcionada pelo espaço público, com base em argumentos racionais. O agir
comunicativo servindo-se da autonomia das vontades (um dos princípios basilares da
economia capitalista) e do regime democrático constitui-se na força propulsora do espaço
público.
Os princípios ético-morais, mesmo com o inconveniente de provocar uma incerteza
quanto à sua definição, são considerados essenciais para a legitimação da jurisdiçã
constitucional porque representam uma tentativa de garantir conteúdo ao regime
democrático, uma esperança de equalizar o fático e o normativo dentro de uma perspectiva
de consolidação dos direitos fundamentais. Eles garantem a densidade ontológica do
procedimento judicial, sem que estes possam servir de obstáculo para o desenvolvimento do
espaço público.
Os parâmetros que delineiam o procedimento judicial das decisões não podem ser
cambiantes, pois segundo a especificidade dos casos, eles devem ser constantes para
solidificar a segurança jurídica, tão importante ao ordenamento. As diretrizes do
procedimento devem ser estipuladas pelas normas jurídicas e pelos vetores ético-morais
imperantes na sociedade.
Os tribunais constitucionais não devem substituir o Poder Legislativo, mas os
dispositivos constitucionais devem ser cumpridos e essa se revela a sua função mais
sublime. Elas devem se tornar o esteio para a concretização dos direitos fundamentais. A sua
atuação como legislador negativo somente deve ser verificado quando o Legislativo
descumprir as cominações procedimentais que legitimam a produção jurídica. Como
legislador positivo, o Poder Judiciário somente pode atuar para garantir a realização dos
comandos normativos da Constituição e na extensão do programa normativo expresso.
A solução para a crise de legitimidade por que passa a jurisdição constitucional, ao
cumprir suas extensas funções, condizentes com um Estado Social que ampara os direitos
dos cidadãos, é segundo Habermas densificar a taxionomia democrática de suas decisões,
por intermédio de uma concepção procedimental da Constituição, que tente buscar uma
310
maior legitimidade das decisões da jurisdição constitucional por argumentos racionais
construídos no espaço público.
O Poder Judiciário deve zelar pela integridade de aplicação da Constituição,
verificando se os procedimentos necessários e os parâmetros ético-morais foram seguidos e
se a decisão tomada se legitimou nas discussões travadas no espaço público.
Para Habermas, a racionalidade constitucional deve ser amparada por princípios
ético-jurídicos, traduzida em argumentos que obtém legitimidade no espaço público,
garantindo assim às decisões da jurisdição constitucional uma certa previsibilidade. Ensina o
mencionado autor: “A racionalidade legitimante da Corte Constitucional (proveniente da
Constituição) vem especificada na perspectiva da aplicação jurídica, não na perspectiva de
um legislador que interpreta e desenvolve o sistema dos direitos perseguidos no sentido da
“policy”. A Corte utiliza-se de uma estrutura racional já confeccionada pelo legislador e
legitimada na sua elaboração e a aplica em um caso singular de maneira coerente e
sintonizada com os princípios jurídicos vigentes. Mas desta racionalidade, a Corte não pode
dispor de forma livre para interpretar e desenvolver, em sede jurídica, o sistema dos direitos
(que estalaria um espécie de legislação implícita).”423
Pode-se traçar algumas simetrias entre Habermas e Häberle no sentido de que ambos
têm o escopo de democratizar de forma mais incisiva as decisões da jurisdição
constitucional, sendo estas expostas ao debate público, principalmente no concernente à
ampliação dos intérpretes da Lex Mater. A diferença está em que a base da teoria
habermasiana reside na racionalidade dos procedimentos que antecedem a decisão judicial,
assumindo o processo judicial um caráter procedimental.
O alicerce de fundamentação da jurisdição constitucional reside no consenso obtido
pelos cidadãos, como participantes da produção de um discurso racional, possibilitado pelo
agir comunicativo; enquanto que o ordenamento jurídico garante a plenitude da autonomia
privada que é um pré-requisito para a livre participação na formação do discurso racional,
sem que haja a submissão de uma dessas esferas à outra. A jurisdição constitucional tem a
423 HABERMAS, Jürgen. Fatti e Norme. Contributi a uma Teoria Discorsiva Del Diritto e Della Democrazia. Trad. Leonardo Ceppa. Milano: Edizione Guerini e Associati, 1996. P. 311-312.
311
missão de assegurar que o ordenamento jurídico cumpra essa função: velar pela autonomia
privada. O modelo habermasiano de legitimação constitucional tem como essência
procedimentos que têm o objetivo de resguardar o desenvolvimento do regime democrático
de forma que possibilite a participação mais ampla possível dos cidadãos.
Ele planteia a teoria de legitimação da jurisdição constitucional, através de um
procedimento calcado no agir comunicativo. Critica as teorias substancialistas de
legitimação porque elas teriam um traço autoritário, na medida em que impõem à realização
de valores materiais contidos na Constituição, desestimulando a participação dos cidadãos
nos espaços públicos porque alça a jurisdição constitucional como última referência.
Habermas desaprova o que denomina de “colonização do mundo da vida”, processo
provocado pela expansão da jurisdição constitucional que tolhe a autonomia privada dos
cidadãos, diminuindo a sua margem de atuação.
O argumento mais importante utilizado por Habermas para explicar a sua rejeição às
teses substancialistas é porque na aplicação dessa essência, contida no texto constitucional, é
descurado o pluralismo sócio-político-econômico, existente nas sociedades atuais, onde há
uma ampla fragmentação de classes sociais, que impede o estabelecimento de substâncias
que contemplem os interesses de todos os segmentos sociais.
Segundo Lenio Streck, Habermas propõe que o tribunal constitucional deva ficar
limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, restringindo-se a preservar
os procedimentos de criação democrática do Direito.424
A importância de Habermas para a legitimação da jurisdição constitucional está na
sua conexão com a vontade popular, emanada do espaço público, com base no agir
comunicativo. A sua teoria procedimental não é pura como a defendida por Luhmann, pois
entende que os paradigmas ético-morais orientam as decisões judiciais. Mas, a
concretização da legitimação realiza-se pelos procedimentos que propiciam o consenso no
espaço público, e essa é a essência de sua teoria.
424 STRECK, Luiz Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 138.
312
13.2) A Questão da Legitimidade em Luhmann
A concepção de Luhmann para a fundamentação da jurisdição constitucional passa
ao largo de uma conexão com o regime democrático ou com valores axiológicos. Ele a
alicerça em procedimentos judiciais, que são autônomos em relação aos outros subsistemas,
e busca a aceitação dos cidadãos de forma autopoética. Como teoria procedimental da
jurisdição constitucional, ele defende que o procedimento inerente às decisões judiciais, por
si só, é condição suficiente para legitimar a jurisdição constitucional, mesmo que seus
posicionamentos tragam grande repercussão social.
O seu conceito de legitimidade não permite uma ligação direta com os interesses dos
atores sociais, fazendo com que as decisões judiciais obtenham consenso porque houve
participação dos jurisdicionados, no seu processo de elaboração. Para o mencionado autor,
não há necessidade de construção de um espaço público para a participação dos
jurisdicionados como planteado por Habermas.425 Para ele, as normas são legítimas na
medida em que são capazes de realizar uma aceitação do seu processo de decisão. O que
garante legitimidade às decisões judiciais é o seu procedimento jurídico, que tem seu ponto
inicial no primeiro ato jurídico e a sua conclusão com a decisão final.
O fator teleológico dos procedimentos judiciais é possibilitar a aceitação, por parte
dos jurisdicionados, da decisão final. Antes dos interessados ao pronunciamento judicial
recorrerem ao Poder Judiciário, há o conhecimento da existência de procedimentos judiciais,
previamente estabelecidos, que definem a amplitude de suas atuações comportamentais,
garantindo a aceitação da decisão antes da sua concretização. Teoricamente, os
425 De uma forma sintética podemos apontar as principais diferenças entre a teoria procedimental de Habermas e Luhmann: desnecessidade de construção de um espaço público para este; A influência de preceitos morais resulta na des-diferenciação entre o direito e a moral. De igual forma veda a influência de questões de natureza política; A legitimidade pelo procedimento de Habermas não ocorre apenas intra ordenamento jurídico, ela necessita para se consolidar também de elementos extra-sistêmicos, como o espaço público e vetores ético-morais; com Luhmann a legitimidade necessita apenas de elementos intra-sistêmicos, hauridos do próprio procedimento judicial.
313
procedimentos são “neutros”, de forma que mantenham um posicionamento eqüidistantes
das partes, advindo no subconsciente coletivo uma idéia de imparcialidade.
O procedimento judicial não tem a função de produzir um consenso entre as partes
litigantes, seja qual for a matéria presente na lide, sua missão é tornar as decisões aceitáveis,
evitando resistências que inviabilizassem a concretude do sistema. Seu principal escopo
configura-se em imunizar as decisões judiciais por intermédio de um procedimento “neutro”
que garanta “iguais direitos para as partes”. O significado da expressão “imunização das
decisões judiciais” sé torná-las aceitáveis pelos participantes da relação processual, como se
houvesse um pacto implícito entre as partes para a aceitação do veredictum proferido pelo
Poder Judiciário.
Preleciona Tércio Ferraz Sampaio Jr: “Para Luhmann, sendo a função de uma
decisão absorver e reduzir insegurança basta que se contorne a incerteza de qual a decisão
ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la. Em certo sentido
Luhmann concebe a legitimidade como uma ilusão funcionalmente necessária”.426
Os procedimentos judiciais estabelecidos pelo ordenamento, absorvem as decepções
das partes envolvidas no conflito. Por um lado, eles norteiam de forma direta a solução da
lide, entretanto, por outro, destituem todos os seus elementos empíricos, isolando e
despolitizando o cidadão, com a utilização de um código de conduta próprio que é
hermeticamente fechado a vetores axiológicos da seara fática. Os procedimentos jurídicos
não visam conseguir a formação de consenso, mas formar uma imagem exterior de
aceitação.
Habermas assevera que a legitimidade pelo procedimento, sem uma sincronia com o
espaço público, é uma auto-ilusão, com a finalidade de estabilizar o sistema, onde todas as
controvérsias são esgotadas no próprio ordenamento normativo, solucionadas pelo código
jurídico.427
426 SAMPAIO JR, Tércio Ferraz. Apresentação. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 6. 427 HABERMAS, Jurgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. P. 73.
314
Portanto, diante desse pórtico an passant do pensamento de Luhmann a respeito da
legitimação pelo procedimento, pode-se depreender que a legitimidade da jurisdição
constitucional para ele reside no próprio procedimento, apoiando-se no poder persuasivo dos
dispositivos normativos e nos vetores oferecidos pelas normas jurídicas. Os dados empíricos
advindos do meio ambiente somente seriam passíveis de avaliação depois de serem
codificados para a linguagem sistêmica, por intermédio de estruturas seletivas, “membranas
de calibração”, tornando-se parte do procedimento.
Para Luhmann, os códigos binários têm uma função essencial, ao mesmo tempo em
que permitem a autonomia do sistema jurídico, possibilitam a base de sua interação com o
meio ambiente, mesmo que para isto tenham que utilizar uma linguagem específica, que
dificulte a percepção dos cidadãos comuns.428 Para ele, a finalidade da jurisdição
constitucional não é garantir a unidade sistêmica do Direito, de acordo com uma estrutura
em que a norma inferior deveria estar dentro dos parâmetros de validade ofertada pela norma
superior, como planteado por Kelsen. Seu escopo é servir como um instrumento auto-
referencial do ordenamento jurídico, assegurando que nenhuma interferência antípoda ao
Texto Constitucional possa interferir no funcionamento sistêmico.
Segundo o mencionado autor, os procedimentos organizados pelo ordenamento
jurídico constituem-se nos atributos mais extraordinários do sistema político das sociedades
modernas, ou ao menos representam a fachada desses sistemas.429 O grande problema, ainda
segundo o mencionado autor, é que não há um parâmetro previamente definido do conteúdo
das decisões, passível de ser determinado por critérios objetivos. E é por esse motivo que
existe uma dificuldade de se formar uma teoria homogênea sobre os procedimentos
judiciais.
A saída, segundo ele, não estaria na teoria pura do direito, que não trata de
procedimento e sim de direito processual, nem na sociologia pura que busca elementos
428 BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P.49. 429 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 17.
315
fáticos para o enquadramento dentro de uma regra geral, mas na construção de um sistema
sociológico de procedimento judicial, com base em dados empíricos.
Os procedimentos jurídicos entendidos como processos de decisão não têm a
finalidade de concretizar parâmetros de justiça.430 As fundamentações do direito natural
foram decompostas através da positivação do direito, alicerçando-se em torno de processos
de decisão. A necessidade inexorável de sempre os procedimentos realizarem uma decisão
correta não assegura que essa decisão será a mais justa. Para Luhmann um sistema que tem a
missão de sempre implementar uma decisão para as questões suscitadas não pode, de forma
simultânea, garantir a justiça da decisão; a realização de uma função exclui a outra de forma
obrigatória.431
O processo de legitimação pelo procedimento pressupõe a aceitação das premissas da
decisão e, inelutavelmente, da própria decisão. O critério de aceitação da decisão não pode
ser subjetivo, dependendo de fatores internos e externos que circundam os litigantes; ele
deve ser objetivo, estruturado formalmente no procedimento, impondo que os litigantes
obedeçam sempre às decisões, mesmo que elas firam seus interesses.
430 A legitimação pelo procedimento substitui os fundamentos da escola jusnaturalista e as diversas teorias de obtenção da legitimidade por intermédio do consenso. O procedimento garante legitimidade às decisões judiciais, gozando de autonomia, sem depender de parâmetros de justiça para a sua conclusão. 431 “Nenhum procedimento pode prescindir de verdades nesta função específica; de outra forma perder-se-ia num poço sem fundo de possibilidades sempre diferentes. Determinadas observações e determinadas conclusões têm de ser garantidas como obrigatórias. Há sempre um sentido que não pode ser negado sem tirar aquela relevância, e um dos resultados essenciais do método comunicativo em muitos procedimentos consiste em agrupar de tal forma o sentido confirmado que se torna diminuto o espaço de manobra da decisão. Está igualmente fora de dúvida que tanto hoje como anteriormente, verdades com este sentido específico não são suficientes todos os problemas com uma absoluta certeza intersubjetiva. Por isso, uma teoria do procedimento necessita dum ponto de vista mais abstrato de relação funcional, que inclua o mecanismo da verdade, mas que não se esgote nele. É natural que para isso se apóie na função da verdade e, partindo dela, se procurem outros mecanismos de transmissão funcionalmente equivalentes, de complexidade mais reduzida. Aí deparamos com o mecanismo do poder e o problema de sua legitimidade.” LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 26.
316
13.2.1) O Procedimento como Subsistema Social
Uma das essências do pensamento luhmanniano é a concepção de procedimento
judicial como subsistema social. O seu objetivo é diminuir a complexidade que o circunda,
entendida esta como uma ampla gama de possibilidades que influenciam as decisões da vida
real, seja exterior, complexidade extra-sistêmica, seja interior, complexidade intra-sistêmica.
O procedimento judicial assume grande proeminência, tornando-se a base de
validade das decisões processuais. A validade, inserção da norma no ordenamento jurídico,
para Luhmann relega a sua influencia kelseniana, cuja norma superior valida a norma
inferior, e a mesma a influência sociológica, calcada no apoio social, e passa a residir no
procedimento, consubstanciando-se paulatinamente de acordo com o desenvolvimento
social.
Há uma tendência crescente de complexidade das sociedades ocidentais do capitalismo
avançado devido à amplitude de sua infra-estrutura econômica. À medida que a economia
capitalista diversifica a cadeia produtiva, diferentes serão as relações de produção e
necessariamente diversas serão as necessidades almejadas pelos cidadãos, o que exige do
Estado uma capacidade enorme para implementar políticas que possam atender a todas essas
demandas
O ambiente exterior tende a ser mais complexo que o interior, já que dentro do
sistema existem princípios que funcionam como “membranas de calibração”, filtrando as
informações que entram, convertendo-as em elementos assimiláveis pelo código imperante
no seu interior.
A redução da complexidade é uma função realizada pelas estruturas sistêmicas, na
medida em que generalizam as expectativas de comportamento de forma ampla.432 Elas
432 “A complexidade própria dum sistema de procedimento depende, essencialmente, da complexidade da tarefa de decisão. Esta, por sua vez, depende da medida em que as premissas de decisão devam ser pressupostas ou procuradas”.. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 46.
317
reduzem a complexidade do sistema porque ostentam uma seletividade dupla, uma do
próprio processo de sua escolha, e outra da filtragem dos elementos do meio ambiente de
acordo com seus parâmetros. As estruturas do sistema social do procedimento jurídico
reduzem o grande número de possibilidades de comportamento possível de acordo com
dispositivos normativos previamente determinados.433 Elas são formadas por normas gerais,
válidas para os mais diversos procedimentos judiciais, com o objetivo de estabelecer as
regras de funcionamento do sistema.
As estruturas, além de operar uma redução na complexidade do sistema, têm a não
menos importante função de garantir sua autonomia, já que através delas os elementos do
meio ambiente são calibrados em uma linguagem que possa ser perceptível para os seus
elementos internos. Elas transformam os dados provenientes do meio ambiente em códigos
que são utilizados internamente, fazendo com que o funcionamento sistêmico ocorra por
intermédio de expectativas próprias e não devido a interferências externas.
Quanto maior for a diferenciação entre o funcionamento do sistema de procedimento
jurídico e o meio ambiente, maior será o seu grau de autonomia. Assim, a autonomia e a
conseqüente diferenciação com o meio ambiente reduzem a complexidade da seara fática e
garantem a concretização da legitimação pelo procedimento.
A auto-referência do sistema jurídico é uma decorrência da formação de um código
binário interno, que a partir de tal distinção garante a sua unidade. Este código se configura
como um grupo de símbolos que permite uma comunicação entre as pessoas. Para
Luhmann, o código apresenta duas características principais: generalização simbólica e
estrutura binária.A primeira consiste em que os símbolos devam representar a pluralidade de
elementos como uma unidade, tornado-os passíveis de comunicação, ao possibilitar maior
quantidade de elementos inteligíveis. A segunda regulamenta o código por intermédio de 433 “Como todo sistema, o procedimento reduz a complexidade do mundo circundante selecionando determinadas alternativas de conduta em detrimento de outras que não são interiorizadas e que não podem ser argüidas, não importando em que medida tenham a ver com a realidade dos fatos. De nada adianta argumentar que determinada prova dos autos foi forjada se não se puder faze-lo através das regras pré-fixadas na estrutura do próprio procedimento, tais como a apresentação de provas em contrário, dentro da forma prescrita em tempo hábil etc. Se isso não for possível, a parte prejudicada vê-se constrangida a aceitar a decisão como legítima, embora permaneça convencida de que foi ludibriada”. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 64.
318
uma estrutura binária, sempre com duas alternativas de possibilidades para cada, sendo,
portanto, uma com valor positivo e outra com valor negativo, de modo que cada formulação
se depare com sua negação para realizar a seleção.434
Cada subsistema social tem um código binário próprio que realiza uma
especialização-diferenciação de seu processo comunicativo, permitindo o fluxo contínuo de
inputs e outputs de forma circular, sem que as características que orientam o sistema possam
ser comprometidas.
Na verdade, o procedimento inerente às decisões judiciais da jurisdição
constitucional não formam um subsistema social, nem ao menos em interação com os outros
subsistemas. Ele é importante para a fundamentação da jurisdição constitucional, mas
constitui apenas um dos seus elementos. A fundamentação da jurisdição constitucional de
forma autopoética impede a sua densificação porque cerceia a interferência da sociedade. As
“membranas de calibração” se configura em um ardil para justificar as decisões judiciais da
tutela constitucional em elementos exclusivamente de natureza técnica.
13.2.2) A Autonomia do Procedimento Judicial
A condição sine qua non para a existência do sistema de procedimento judicial é a
sua autonomia, concretizada na diferenciação estrutural frente às suas próprias estruturas e
àquelas específicas ao meio ambiente.435 Essa diferenciação não significa o isolamento do
sistema procedimental, as informações do meio ambiente devem ser agasalhadas, porém
mediante um código próprio que permita que o sistema estabeleça relações exteriores e
434 BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P. 47-48. 435 “Presente nos ideais cientificistas que caracterizam, em parte, o pensamento iluminista, a razão centrada no sujeito levou a tecnificação e a autonomização sistêmica das esferas do estado e do mercado. Com tal processo de autonomização, esses subsistemas passaram a exercer uma coordenação automática da vida do homem concreto, que está no mundo vivido, dispensando-se da necessidade de justificar discursivamente suas ações”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 291.
319
possa ser continuamente realimentado (inputs), sem prejuízo para a sua autonomia.436
Quanto maior for a diferenciação do sistema do procedimento judicial com o meio ambiente,
menor será as possibilidades de que elementos fáticos, de forma isolada, possam servir de
parâmetros para a decisão judicial.
A característica dessa autonomia é que o procedimento judicial se desenvolve
mediante critérios internos, formulados por sua própria estrutura, não sendo o seu
funcionamento direcionado por critérios externos. A autonomia do sistema de procedimento
será maior na medida em que maior for a diferenciação do referido sistema com as relações
predominantes na sociedade, todavia esse requisito, por si só, não se configura como
condição essencial para assegurar a autonomia.
De acordo com os mandamentos normativos, o procedimento judicial tem uma ampla
seara de atuação para o desenvolvimento das atuações comportamentais dos participantes do
processo, e esse espaço extenso de atuação somente pode ser estabelecido porque o seu
escopo não é a busca de uma verdade, no sentido ontológico, predominando a incerteza
sobre a concretização da decisão final. Essa incerteza quando a decisão final é que garante
uma margem de manobra comportamental aos participantes.
O desempenho dos “papéis” pode afetar a decisão do procedimento judicial e de
acordo com a sua relevância pode ser-lhe atribuído maior ou menor credibilidade. Até
mesmo os juízes podem ser influenciados pela relevância de alguns “papéis” na hora de
prolatar as suas decisões.
Não obstante, essa influência deve ficar restrita às disposições normativas,
mormente às de caráter extra-sistêmico. O juiz ao prolatar a sua decisão não pode realizá-la
sob o influxo de argumentos extra-jurídicos, a isenção a estas interferências é uma condição
436 A teoria dos sistemas de Luhmann parte do pressuposto de que as estruturas internas reduzem a diferença entre o sistema e o meio ambiente, operando uma seletividade nas informações provenientes do exterior. Essas estruturas são essenciais para a auto-referência do sistema, mesmo que comprometa os canais de ligação com a sociedade. Para a teoria luhmanniana, a complexidade apenas provoca uma evolução sócio-cultural quando provoca uma modificação na estrutura da sociedade, no que compromete a auto-referência. BARALDI, Cláudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Semântica e Comunicazione. L’evoluzione delle idee nella prospettiva sociológica di Niklas Luhmann. Bologna: Clueb, 1987. P.41.
320
institucionalizada para a autonomia do sistema, uma obrigação para a construção de uma
decisão objetiva e imparcial, que garante a concretização do princípio isonômico.
Assinala Luhmann: “A canalização e controle das influências sociais através da
legislação, portanto a positivação do direito, constitui uma condição prévia essencial da
autonomia social da evolução leal da decisão. O juiz retira o seu parecer do direito escrito,
onde se definem quais são os fatos e qual o sentido em que são relevantes para a decisão e
não já diretamente a idéia do verdadeiro e do justo que lhe foram impostas numa
organização visualizada da vida social.”437
O procedimento jurídico sempre terá como seu ponto culminante uma decisão, o que
é uma conseqüência inexorável. E como garantia de sua aceitação, ela deve se manter incerta
até o momento da sua prolatação final. A principal condição que faz com que os
participantes venham a aceitar essa decisão, independente do seu conteúdo, configura-se na
incerteza quanto ao seu posicionamento, podendo ela atender aos anseios de qualquer um
dos dois postulantes, aos anseios dos dois ou a de nenhum.
Esse é o incentivo que garante que os participantes contribuirão para o
desenvolvimento do procedimento e mantém vivas suas esperanças no sucesso. Essa
esperança na obtenção das expectativas acalentadas garante que os participantes processuais
aceitem a representação de um determinado “papel”. Em suma, a incerteza quanto ao teor da
decisão é o que garante que os postulantes desempenhem os seus “papéis” processuais.
Uma sociedade, que não tenha mecanismos mínimos para a resolução de conflitos,
corre o risco de que esses degenerem o tecido social. Em sociedades complexas como as
pós-modernas, as litigâncias que surgem devem ser resolvidas por procedimentos judiciais, a
utilização da justiça privada tornou-se um instrumento passível de utilização para
pouquíssimos casos.
Uma das características mais importantes do procedimento judicial é que ele permite
uma relação contraditória entre duas partes, institucionalizando por meio de mandamentos
437 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 56.
321
normativos o conflito, com o desiderato de operacionalizar uma decisão que ponha fim à
litigância. A centralização da resolução dos conflitos por meio de dispositivos jurídicos é
uma das principais finalidades do ordenamento jurídico.
O primeiro requisito para a institucionalização do conflito por meios jurídicos é
despersonalizar a querela, desfigurando os seus traços pessoais, evitando a generalização do
conflito para além do objeto posto, sob apreciação judicial. Para isto, deve ser retirado da
esfera dos litigantes as “armas” disponíveis na seara fática e verbalizar seus interesses por
meio de argumentos jurídicos. O procedimento judicial deve especificar o objeto em litígio
para, de forma mais fácil, decidir a seu respeito e absolver paulatinamente o
descontentamento dos participantes.
Despersonalizando a lide, retirado qualquer oportunidade de resolução do conflito
por meios não-jurídicos e transformando os interesses em argumentos jurídicos, o campo
conflitivo retira-se da esfera fática e passa a ser regulamentado pela esfera jurídica. Pois, há
uma transmutação do conflito de interesse, que não mais ocorre por questões fáticas, mas
exclusivamente por questões jurídicas. Esclarece de melhor forma Luhmann: “Uma das
fontes de tensão reside no grau de diferenciação de personalização da declaração de ambos
os lados. A pessoa do decisor tem de ser desligada da declaração, pois a decisão deve
aparecer como uma conseqüência de normas e fatos. Por outro lado, a pessoa que recebe a
decisão deve constituir para ele uma premissa de comportamento e deve alcançar o seu
objetivo pela aceitação como premissa de decisão.”438
O segundo requisito para a instituição do conflito por parâmetros legais é que o
aparelho de decisão judicial deve tratar os participantes de forma igual, garantido a plenitude
do preceito isonômico.A igualdade das partes é um dos procedimentos essenciais para o
procedimento judicial porque densifica a incerteza quanto ao direcionamento da sentença,
fazendo com que os participantes cumpram o seu papel e se sintam co-responsáveis pela
decisão.
438 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 92.
322
Um terceiro requisito que pode ser mencionado é a necessidade imperiosa de
imparcialidade do juiz, o que de pronto afasta o judex inhabilis e o judex suspectus. É a
imparcialidade do membro do Poder Judiciário que assegura a incerteza quanto à conclusão
do processo, configurando-se em uma das precondições mais indeléveis para o engajamento
dos participantes no procedimento judicial, velando pela imaculabilidade da decisão. Para
Luhmann, os juízes são representantes da burocracia pública. E por serem imparciais e
neutros, adequando suas decisões ao formato legal, não respondem pelas conseqüências
práticas de suas decisões. O exercício das funções do Poder Judiciário não tem outra
finalidade a não ser a aplicação imparcial da lei.
Se para o Poder Judiciário os participantes processuais são iguais, se há uma
despersonalização do conflito e se o antagonismo de interesses passa a ser jurídico, então,
abre-se a possibilidade para uma moderação da contenda processual, propiciando que o
procedimento processual seja o locus privilegiado para a resolução institucionalizada dos
conflitos.
A conseqüência da autonomia da estrutura sistêmica é que o procedimento judicial
permite uma certa esfera de decisão por parte dos participantes do processo, obviamente que
de acordo com as estruturas normativas. Ele não pode ser entendido como uma seqüência de
atos predeterminados para o exercício de uma ação. O procedimento deve resultar em uma
decisão, mas, de acordo com a postura que as partes vão adotando ao longo do processo, e
não, como um ritual em que apenas uma única ação deva se considerada como certa e que a
realização de uma devesse desencadear obrigatoriamente outra, excluindo a possibilidade de
escolha.
O procedimento não tem o seu desenvolvimento estabelecido por um mecanismo
próprio, determinado a priori, mas através de decisões seletivas de seus participantes, que
vão de acordo com suas expectativas eliminando as alternativas apresentadas por meio de
suas decisões, no que, paulatinamente, reduzem a indeterminação do sistema. Os
participantes do sistema não são obrigados a tomar determinadas decisões, pois elas vão
sendo estabelecidas por suas próprias vontades e em conseqüência daquelas que foram
323
tomadas pela parte contrária. Essa liberdade do sistema jurídico permite que os participantes
possam formular críticas e alternativas e mantê-las em suspenso por algum tempo.439
Não que a possibilidade de escolha de modelos comportamentais possa estorvar a
cominação, que deriva das normas jurídicas. Estas são predeterminadas e permanecem
constantes, ao alvedrio do legislador; mas ao lado dos dispositivos normativos igualmente
existe uma margem para a construção de expectativas comportamentais que orientarão as
decisões do procedimento. A escolha dos modelos comportamentais, dentro do espaço
delineado pelas normas jurídicas, constitui também um processo de seleção, realizando uma
restrição em relação às informações provenientes do meio ambiente.
Dessa forma, alicerçando-se na autonomia dos sistemas e na estrutura
comportamental que admitem a possibilidade de escolha de modelos comportamentais,
pode-se dizer que o procedimento judicial permite aos participantes a representação de
diferentes “papéis” que terão que desempenhar, vinculando sua própria personalidade e
ocasionando relações com outros “papéis” assumidos no procedimento.440 Dentro de um
processo judicial, há vários “papéis” que podem ser assumidos, tais como: juiz, acusador,
testemunha, escriturário, réu, postulante etc., e dentro dessas representações, inúmeros
interesses que podem direcionar o seu comportamento.441
439 O comportamento dos participantes assume relevante papel no desenvolvimento do procedimento. Na maioria dos casos, eles têm momentos determinados para tomar as decisões, sob pena de preclusão, devendo, por isso, arcar com o ônus daquelas decisões que foram tomadas e daquelas que não o foram. “Os participantes cooperam na determinação da história do processo jurídico”. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 42. 440 “Diferenciar os papéis significa delimitar as alternativas de comportamento atribuídas a cada um deles: o juiz, por exemplo, não deve assumir o tom irônico do promotor público ao interrogar uma testemunha; o escrivão não deve manifestar-se. Caso o façam, os transgressores vêem-se constrangidos a justificar sua atitude, uma vez que abandonaram a conduta (postura, atos, linguagem etc.) que seus papéis faziam esperar deles. Adaptando-se ao papel, por outro lado, a pessoa vê-se garantida pelo sistema e tem suas atitudes previamente “justificadas”, ou seja, legitimadas. Em nível externo, por sua vez, o funcionamento adequado dos papéis assegura a auto-legitimação do sistema contra eventuais contingências advindas de possibilidades não previstas (complexidade)”. ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 65. 441 A adoção de “papéis” foi no seu início uma teoria essencialmente sociológica, desenvolvida por George Herbert Mead. Ela parte do pressuposto de que o cidadão se espelha em condutas de outros como perspectivas próprias e individuais.O cidadão, tomando como referência a conduta de outro, pode alicerçar-se nessa conduta como analogia para construir a sua própria. Adotando uma representação alheia, como simetria, ele pode construir a sua. Em suma, poder-se-ia dizer que a adoção de “papéis” representa um mecanismos de auto-identificação, em que o cidadão sedimenta a sua identidade com a ajuda de “papéis” desempenhados por outros.
324
De qualquer forma, pode-se dizer que a representação mediante a adoção de “papéis”
também funciona como uma válvula de escape para as contrariedades, críticas e objeções
com relação ao conteúdo da decisão. Através da participação no processo, os litigantes se
tornam partícipes da decisão, vislumbrando a hipótese de direcioná-la para seus interesses. A
participação no processo contribui para a formação de um sentimento de co-
responsabilidade pela decisão judicial, afinal os postulantes igualmente foram artífices da
sua construção. Portanto, a atuação dentro das perspectivas comportamentais e a adoção de
“papéis” formam um mecanismo de imunização da sentença.442
A decisão judicial, como conseqüência da autonomia sistêmica, faz uma
diferenciação entre elementos de direito e elementos de fato, evitando que o procedimento
judicial possa se tornar um prolongamento do meio ambiente. A diferenciação do
procedimento judicial obriga que a decisão não possa ser exclusivamente amparada em
elementos fáticos, que não foram codificados para a linguagem interna do sistema.. Os
participantes têm que escolher as normas de acordo com os fatos, mas devem da mesma
forma escolher os fatos de acordo com a norma.443
De forma alguma se configura objetivo da decisão judicial buscar um consenso entre
as partes litigantes, o seu escopo premente é encerrar o processo com uma sentença, que fará
coisa julgada material e formal. A busca de consenso dentro do procedimento judicial
envolveria questões psíquicas que são de difícil solução por moldes normativos, fazendo
com que o sistema perdesse a sua consistência sistêmica.444
442 Destarte, o procedimento judicial deve exercer um controle sobre essa representação. As normas jurídicas sancionam de várias formas a inconsistência dos participantes processuais, como no caso daquele que falta com a verdade no processo, sendo punido com a tipificação do crime de falso testemunho, ou daquele que pleiteia em juízo com má fé, punido com uma sanção pecuniária. Mas não são apenas os dispositivos normativos que garantem a consistência da representação, a formalidade do ambiente jurídico também contribui para inculcar a fidelidade ao cumprimento das obrigações procedimentais. A manutenção da consistência no desempenho dos “papéis”igualmente é mantida pelas decisões tomadas pelos participantes, impedindo que eles possam voltar ao que foram decidido, ou seja, uma vez tomada uma decisão, na maioria dos casos, ela não mais pode ser desfeita pelos participantes. 443 LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. P. 63. 444 Formar um consenso converter-se-ia em interiorizar instituições, ao mesmo tempo em que exigiria a obtenção da convicção de pessoas e envolveria instáveis elementos psíquicos que fogem ao objeto de análise das normas jurídicas. Ao construir uma teoria independente da busca de consensos passa-se a não depender da variedade de personalidades individuais, que contribuiriam para a instabilidade do sistema jurídico. O objetivo
325
Por um lado, tenta-se vincular os participantes ao procedimento judicial com a sua
atuação nas expectativas comportamentais e no desempenho dos “papéis”, como alguém que
teve vários momentos processais para produzir provas no seu interesse, fazendo com que ele
valide a decisão proferida e aceite a imparcialidade com que ela foi realizada. Por outro
lado, esse processo de vinculação do participante ao procedimento judicial provoca o seu
auto-isolamento, fazendo com que a sua revolta não tenha mais sentido porque foi ele
próprio que, ao mesmo tempo em que vincula os participantes ao processo, isola-o caso ele
não se contente com o teor da decisão.
A concepção de autonomia do processo judicial para Luhmann impede o uso de sua
teoria para fundamentar a jurisdição constitucional brasileira, constituindo-se em um acinte
ao regime democrático. Entretanto, é importante estudá-lo para evidenciar a relevância que o
procedimento do controle de constitucionalidade assume para a sedimentação da
legitimidade da jurisdição constitucional, principalmente para o desenvolvimento do seu
caráter dialógico.
13.3) A Legitimação pelos Procedimentos Assecuratórios do Regime
Democrático
As teses procedimentalistas de legitimação da jurisdição constitucional baseadas no
processo assecuratório do regime democrático, no qual se sobressaem às obras de John Hart
Ely e Cass Sunstein, representam uma reação conservadora à intensa atuação da Corte
Constitucional norte-americana, sob a presidência de Earl Warren e em menor intensidade
sobe a presidência de Burger Warren. Esse movimento tem início nos anos oitenta e ganha
um maior impulso sob a presidência de William Rehnquist, que passa a exercer a
presidência da Suprema Corte, por indicação do Ronald Reagan.
central do procedimento judicial é decidir o processo e que todos cumpram o que for decidido por ela, imunizando-se a sentença de veleidades pessoais subjetivas.
326
As teorias de Ely e de Sunstein têm em comum a negação de uma legitimação
substancialista da jurisdição constitucional, advogando que ela deve ter como arrimo apenas
os procedimentos inexoráveis ao desenvolvimento do regime democrático. Também
condenam a atuação construtivista da Suprema Corte, advogando que ela deve se inserir
dentro dos marcos do self-restraint.
13.3.1) A Igualdade de Participação Política dos Cidadãos
Uma das mais importantes teses procedimentalista de legitimação da jurisdição
constitucional é a que procura fundamentar o seu alicerce com base na igualdade de
participação dos cidadãos nas decisões políticas, que tem em John Hart Ely o seu principal
expoente. Esse importante professor norte-americano afirma que a base da legitimação da
jurisdição constitucional não está presente em conteúdos constitucionais, mesmo que sejam
os direitos fundamentais, mas nos procedimentos assecuratórios do regime democrático.
Consonante o seu posicionamento, a função maior da jurisdição constitucional é corrigir os
desvios do processo de representação popular, e não verificar se substratos materiais
(substantive merits) contidos na Constituição estão sendo observados pelas normas
infraconstitucionais.
O seu objetivo é elaborar uma teoria de fundamentação da jurisdição constitucional
que não entre em contradição com os elementos essenciais do regime democrático e que fuja
da falsa polarização realizada pelas duas principais teorias de fundamentação da jurisdição
constitucional: a que postula que o arrimo da jurisdição constitucional é buscar o sentido
original das normas constitucionais, de acordo com a vontade dos “foundations fathers”
(pensamento de quem escreveu a Constituição), ou a que assevera que o órgão que exerce a
jurisdição constitucional tem a incumbência de declarar os valores constitucionais contidos
327
no texto da Carta Magna. Como Ely discorda das duas teorias propõem a criação de uma
nova concepção, baseada na igualdade de participação política dos cidadãos.445
Essas duas teorias são construídas a partir das normas constitucionais para evitar que
sejam tipificadas de incompatíveis com o regime democrático. Todavia, segundo Ely mesmo
partindo de mandamentos constitucionais elas não se coadunam com os procedimentos
democráticos. Buscar a vontade dos “foundations fathers”, teoria que se denomina de
originalismo, não apresenta uma diretriz nítida de fundamentação haja vista a redação
abstrata e abrangente dos dispositivos constitucionais que podem gerar até mesmo um
“paradoxo democrático”, na feliz expressão utilizada por Canotilho, em que as gerações
futuras serão obrigadas a seguir o que fora estipulado por uma geração antecedente.446 A
segunda teoria pode levar ao que Schmitt denominou de tirania dos valores, que consiste em
deixar a incumbência do órgão que exerce a jurisdição constitucional a prerrogativa de
decidir quais são os valores esculpidos na Constituição. Devido ao caráter dialógico dos
mandamentos constitucionais, realizado por normas de textura aberta, os juízes podem
firmar qualquer conteúdo valorativo, mesmo que não haja amparo de estruturas normativas,
tornando os membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional guardiões do conteúdo
axiológico da sociedade.
Ely em seu livro mais importante, Democracy and Distrust, argumenta na defesa da
proposição de que a jurisdição constitucional não deve atuar como se fosse um órgão de
elite, impedindo os excessos praticados pelos poderes politicamente responsáveis contra os
valores substanciais agasalhados pela Constituição. Mas, ao contrário, sua concepção é que
ela tem a função primordial de assegurar o processo democrático. Dessa forma, a escolha
dos valores substanciais, que devem ser defendidos pela jurisdição constitucional, não é
445 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. vii. 446 “Como pode um poder estabelecer limites às gerações futuras? Como pode uma Constituição colocar-nos perante um dilema contra maioritário ao dificultar a vontade das descendências futuras na mudança de suas leis?” CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. p. 68.
328
prerrogativa de um tribunal constitucional e sim dos representantes do povo, escolhidos de
acordo com os mecanismos do regime democrático.447
O impulso preponderante para a criação de um sistema de jurisdição constitucional
que tenha uma atuação mais efetiva, o holocausto proporcionado pelos regimes nazi-
fascistas, que possibilitou a formação dos tribunais constitucionais europeus com o objetivo
principal de proteção aos direitos fundamentais, não pode servir de paradigma para a
realidade norte-americana. Os princípios constitucionais que asseguram o funcionamento do
regime democrático foram suficientes para evitar a formação nos EUA de regimes
totalitários e, em razão desses fatos, é que para Ely, o escopo da jurisdição constitucional
deve ser a participação dos cidadãos nas decisões políticas que é um caminho muito mais
eficiente de se evitar que maiorias momentâneas possam cercear direitos da minoria,
discordando da função de concretizar substratos materiais da Constituição.448
Tomando como parâmetro a Constituição norte-americana, afirma que ela é
composta principalmente por normas processuais em detrimento de dispositivos
substantivos. Por exemplo, planteia que o princípio do equal protection of the law tem a
taxionomia processual, na medida em que proporciona a todos condições de participação
igualitária no processo democrático, não podendo esse princípio apresentar natureza
substancial porque as diferenças sociais existentes entre os cidadãos são de ordem natural e
“a vida sem essas diferenças seria impossível”. Da mesma forma, sobre o due process
clause, que muitos autores admitem o seu conteúdo substancial, Ely afirma a sua natureza
essencialmente processual, descabendo a sua utilização para rever a substância contida nos
mandamentos normativos, realizados pelos legisladores.449 Muitos outros juristas norte-
447 ELY, John Hart. “The Apparent Inevitability of Mixed Government”. In: Constitutional Commentary. Número: 2 V. 16, Summer, Minnesota: University of Minnesota, 1999. P. 290. 448 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 181-182. 449 O devido processo legal nos Estados Unidos foi elaborado conjuntamente pelas emendas 5° e 14°. A fundamentação de que o devido processo legal tem natureza substancial advém da 14° emenda que assevera que nenhum Estado poderá negar a qualquer cidadão sob a sua jurisdição a igualdade de proteção perante a lei. Muitas decisões proferidas principalmente durante a presidência de Warren para garantir direitos civis foram baseadas na igualdade de proteção perante a lei.
329
americanos, como Robert Bork, se posicionam do mesmo modo, afirmando que substantive
due process é uma contradição, uma fraude.450
A teoria de John Hart Ely pode ser classificada como uma tese procedimental de
legitimação da jurisdição constitucional porque o seu objetivo é garantir o funcionamento do
regime democrático, sem a intenção de assegurar a concretização de conteúdos mínimos
contidos na Carta Magna. A sua preocupação como os direitos fundamentais restringir-se-ia
apenas quando esses direitos dissessem respeito ao funcionamento dos direitos
fundamentais.
O trabalho desenvolvido por Ely é classificado como procedimental porque a
relevância da atuação da jurisdição constitucional reside nos mecanismos que proporcionam
a todos os cidadãos igualdade de participação política, sendo os direitos fundamentais uma
conseqüência desse procedimento, sem que sejam concebidos como um dado a priori,
porque não existem direitos absolutos e que gozem de consenso em toda a sociedade.
Sintetiza o mencionado assunto Oscar Vilhena Vieira: “A Constituição americana é
para Ely um documento preponderantemente procedimental, voltado a viabilizar o
autogoverno de cada geração. A função dos tribunais é fortalecer a democracia, defendendo
a realização do processo democrático, com a inclusão do maior número e da forma mais
igualitária (politicamente) possível. Sendo os tribunais treinados para assegurar o devido
processo legal – questão de procedimento – e postados fora do campo da política, estariam
mais habilitados que qualquer outro órgão para realizar a fiscalização procedimental do
regime político”.451
Portanto, as decisões proferidas pela Warren Court nos casos Brown v. Board of
Education e no caso loving v. Virgínia não significaram apenas o desmonte da discriminação
450 W. ELY, James Jr. “The Oximoron Reconsidered: Myth and Reality in The origins of Substantive Due Process”. In: Constitutional Commentary. Número: 2 V. 16, Summer, Minnesota: University of Minnesota, 1999. P. 315. 451 VILHENA VIEIRA, Oscar. A Constituição e sua Reserva de Justiça. Um Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 215-216.
330
racial contra os negros, mas primordialmente a concretização formal da igualdade que é
essencial para uma ativa participação no processo democrático.452
Ely é adepto da limitação à atuação da jurisdição constitucional, self-restraint,
evitando a sua atuação excessiva que acarreta acintes ao princípio majoritário da soberania
popular. O exercício da jurisdição constitucional deve ser pautado pelo resguardo aos
procedimentos essenciais ao desenvolvimento do regime democrático. A função dos juízes
componentes do órgão que exercem a jurisdição constitucional, sob a perspectiva do self-
restraint da teoria da igualdade de participação política dos cidadãos, pode ser resumida da
seguinte forma: verificar se as normas infraconstitucionais contrariam os mandamentos
constitucionais, sem a utilização de elementos alheios ao “four corners” da constituição;
observar se os representantes populares foram eleitos de acordo como os preceitos
imperantes no regime democrático; cuidar para que as normas infraconstitucionais não
cerceiam a participação da minoria no processo democrático.
Pelo exposto, pode-se depreender que a jurisdição constitucional assume uma função
negativa, garantindo os preceitos contidos na Constituição. Todavia, ela assume uma função
positiva, com atuação mais abrangente, quando o seu escopo for proteger a livre participação
dos cidadãos nas decisões políticas e assegurar os direitos das minorias. Nesses dois últimos
casos a atuação da jurisdição constitucional se mostra mais incisiva, deixando de lado a
política do self-restraint e adotando a política do judicial activism.
Discorda da legitimação substancialista por parte da jurisdição constitucional,
mesmo que seja para garantir a concretização de direitos fundamentais, porque com isto
seria transferido um grande poder aos juízes que exercem tais prerrogativas sem terem sido
alçados em suas funções por meio do voto popular, e nem mesmo terem responsabilidade
política por suas atividades. Com a escusa de concretizar o conteúdo das normas
constitucionais, suas decisões podem impor a concepção prevalecente dos poucos juízes que
atuam no exercício da jurisdição constitucional, descurando dos direitos fundamentais. O
452 ELY, John Hart. “ If at First you don’t Succeed, Ignore the Question Next Time? Group Harm in Brown v. Board of Education and Loving v. Virginia”. In: Constitutional Commentary. V. 15, N.° 2 , Minnesota Law: University of Minnesota Law School, 1998. P. 217.
331
conteúdo das normas realizadas pelo Poder Legislativo pode revestir qualquer substância,
desde que os procedimentos inerentes ao processo democrático sejam respeitados.
A preponderância forcejada em torno do princípio da democracia acarreta o direito
de se autogovernar e esse direito se projeta acima, até mesmo, dos direitos fundamentais.
Destarte, o escopo da teoria de legitimidade do judicial review, no prisma hora analisado, é
garantir o desenvolvimento dos preceitos inerentes ao regime democrático, propiciando a
igualdade de participação política dos cidadãos, concretizando uma verdadeira democracia
participativa. Os direitos fundamentais vigentes, em uma determinada sociedade, são
determinados dentro dos parâmetros delineados pelo regime democrático e não por
intermédio de direitos fundamentais absolutos.
Advoga Ely que a jurisdição constitucional apenas pode incidir sobre aqueles direitos
fundamentais, considerados imprescindíveis para o funcionamento do regime democrático,
que têm por base o princípio majoritário, como os direitos de participação política, o direito
à não-discriminação, liberdade de expressão, de associação, e todos os direitos que sejam
instrumentais a estes, porque derivam do princípio democrático e asseguram sua eficácia.
Assim, como conseqüência da sua teoria não são todos os direitos fundamentais que
deveriam ser protegidos pela jurisdição constitucional, ficando de fora os direitos que não
versam sobre o regime democrático, como o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à
vedação à pena de morte, garantias processuais etc.
Durante o século XIX, a principal característica da teoria constitucional foi o
fortalecimento do controle do governo pela maioria da população e a vontade da maioria se
configura como o núcleo substancial da teoria política norte-americana. Em virtude dessa
característica, a teoria exposta no livro “Democracy and Distrust”superdimensiona o
princípio majoritário, tornando-o o centro gravitacional do regime democrático, mesmo se as
deliberações forem no sentido de tolher direitos das minorias, com exceção dos direitos
inerentes à participação política dos cidadãos. Dentro desse prima, os procedimentos do
regime democrático são mais importantes do que os direitos fundamentais.
Ely defende que mais importante do que a jurisdição constitucional proteger
determinados conteúdos contidos na Constituição é ela ensejar condições para que as
332
minorias possam participar do processo democrático, sustentando suas posições e
verificando se os procedimentos do regime democrático, para formação da opinião pública e
da vontade política, são respeitados.
A jurisdição constitucional tem a função de proteger as minorias apenas quando
houver perigo de que elas sejam excluídas ou prejudicadas do processo de participação
política. Não protegendo nenhum conteúdo da Constituição, afora os inerentes ao regime
democrático, podendo a maioria decidir livremente acerca do conteúdo desses direitos,
mesmo que eles prejudiquem os interesses da minoria, devendo o órgão que exerce a
jurisdição constitucional respeitar a decisão da maioria.
Quando os interesses das minorias fossem desrespeitados, a elas somente restaria o
recurso de se mudar para outro estado ou país, sendo um direito já reconhecido pela
Suprema Corte norte-americana, right to travel from state to state, consubstanciando o
direito ao deslocamento dos cidadãos norte-americanos dentro do seu país. Dessa forma
expõe Ely o seu pensamento: “O direito em discussão nos casos modernos não pode ser
considerado como um simples direito de viajar ou de cruzar os estados, mas,
preferivelmente, o direito de locomoção – o direito, caso exista interesse, de
deslocamento”.453
Consonante a sua concepção, o grande perigo para as sociedades hodiernas não é a
fragilidade da concretização dos direitos fundamentais, mas o risco de que o funcionamento
do regime democrático seja estorvado, impedindo uma real participação efetiva dos
cidadãos, principalmente das minorias que têm maior dificuldade de se inserir nos debates
políticos. O processo democrático deve funcionar de acordo com a igualdade política de
participação dos cidadãos, com estímulo à alternância de poder e com o aprimoramento dos
mecanismos de participação popular. O mau funcionamento ocorre quando o regime
453 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 178.
333
democrático, de forma geral, não estimula a confiança nos procedimentos da igualdade de
participação política dos cidadãos.454
Para John Hart Ely, os representantes eleitos pelo povo não têm condições de reparar
os desvios do regime democrático porque estão inseridos dentro de uma conjuntura política
e, portanto, não têm imparcialidade para permitir que os órgãos estatais possam ser
ocupados pelas mais diversas matizes políticas. Diferente é a situação quando o órgão
incumbido da jurisdição constitucional é um tribunal constitucional, porque os seus
membros não estão inseridos dentro de uma disputa política nem dependem do resultado
eleitoral para a sua sobrevivência. Como estão fora do jogo político, podem velar pela
manutenção das regras que possibilitam o funcionamento e o aprimoramento das regras da
democracia.
Ely discorda de Dworkin, que planteia ter a jurisdição constitucional a função de
proteger os princípios morais estabelecidos pela sociedade. Para ele, os princípios morais
estabelecidos pela sociedade devem ser assegurados por representantes eleitos pelo povo,
dentro dos embates proporcionados pelo regime democrático. Quem deve resguardar esses
princípios são os representantes populares e não juízes que não têm ligação direta com a
vontade popular e, portanto, podem decidir livremente de acordo com suas convicções
pessoais e, até mesmo, em detrimento dos interesses da população.
Ele não acredita na existência de princípios morais que sejam consensuais e neutros,
compartilhados por todas as classes sociais. Devido à fragmentação da sociedade em vários
segmentos, cada qual com os interesses mais variados, a formação de uma moral que
obtenha consenso em toda sociedade se mostra impossível e a atuação da jurisdição
constitucional nesse sentido desfalece de legitimidade por não contar com o apoio popular.
Como inexiste uma única moral social, a atuação da jurisdição constitucional sempre
privilegiará determinados setores sociais e os seus juízes não dispõem de legitimidade para
tal tarefa. Os princípios morais vigentes em uma sociedade devem ser estabelecidos pelos
representantes eleitos pelo povo, que gozam de legitimidade para efetuar tais decisões.
454 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 103.
334
Ponto deficiente na teoria de Ely é a precisão dos procedimentos democráticos que
devem ser assegurados pela jurisdição constitucional, inexistindo uma clara determinação de
como será essa atuação, o que pode ensejar que os juízes apliquem suas próprias convicções
para o desenvolvimento da democracia, sem respaldo dos representantes políticos eleitos
para exercer tal função.455 Deficiência teórica conexa com a descrita supra guarda relação
com a crise que se abate sobre o sistema representativo de um modo geral, em que a
democracia se torna cada vez mais produto de forças elitistas, como a mídia, as forças
econômicas, os conglomerados internacionais, enquanto o povo desempenha cada vez
menos um papel relevante nas decisões políticas. Se a democracia não representa mais o
desaguar da vontade popular e a jurisdição constitucional tem como função preponderante
assegurar a igualdade de participação política dos cidadãos, a crise do regime democrático
igualmente representa a crise da jurisdição constitucional.
A teoria de Ely se configura como um reforço à teoria da representação dos
mandatários populares, não sob o enfoque de valores substanciais que embasam o regime
democrático, mas sob o prisma numérico-estatístico, constituindo esse ponto uma outra
debilidade de sua teoria porque o processo eleitoral pode se tornar um processo eleitoral
elitista, com a exclusão da grande maioria da população. Essa prevalência da quantidade em
detrimento da qualidade, esquecendo a definição dos procedimentos inerentes ao
desenvolvimento do procedimento democrático, sem nenhum valor que possa garantir um
conteúdo mínimo, pode ensejar que o processo de escolha dos mandatários populares se
constitua em um argumento retórico para garantir o status quo dos detentores do poder,
impedindo o autogoverno por parte dos cidadãos.
455 Assim se posiciona Dworkin: “Ely insiste em que o papel adequado do Supremo Tribunal é policiar o processo da democracia, não rever as decisões substantivas tomadas por meio desses processos. Isso poderia ser persuasivo se a democracia fosse um conceito político preciso, de modo que não pudesse haver lugar para discordância quanto a ser ou não democrático um processo. Ou se a expectativa norte-americana definisse unicamente alguma concepção particular de democracia, ou se o povo norte-americano concordasse agora com uma única concepção. Mas nada disso é verdade, como Ely reconhece”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 82.
335
Apesar das deficiências da teoria formulada por John Hart Ely sua importância reside
na tentativa de conciliar o controle de constitucionalidade com o princípio majoritário que
ocupa um papel imprescindível no regime democrático.456
13.3.2) A Democracia Política
A análise da legitimação da jurisdição constitucional, com base na democracia
política, tem uma forte tradição na teoria constitucional norte-americana. Um dos seus
principais autores é Cass R. Sunstein, reputado como um dos principais constitucionalistas
dos Estados Unidos na atualidade.
Ele pode ser considerado como um liberal republicano, cuja preocupação é evitar que
a “tirania da maioria” possa obnubilar os requisitos que garantem o funcionamento do
regime democrático, configurando-se como um dos objetivos mais conspícuos da jurisdição
constitucional.457 O princípio majoritário, apesar da sua grande influência na sociedade
norte-americana, não pode ser confundido com o princípio da soberania popular, sendo este
o gênero do qual aquele é a espécie.
Um dos escopos primordiais da teoria de Sunstein é tentar estabelecer ligações entre
a jurisdição constitucional e a democracia política. A jurisdição constitucional deve ser
pautada pelo rule of law, mas ela deve, de igual modo, atender a outros princípios. A
legitimidade do judicial review se concretiza quando ele tem o objetivo de assegurar o
processo democrático, sem obnubilar o sistema do check and balance e o caráter
democrático das decisões.
456 O’BRIEN, David M. “The Framers’ Muse on Republicanism, The Supreme Court, and Pragmatic Constitutional Interpretivism”. In: Constitutional Commentary. V. 8, Number 1, Winter, Minnesota: University of Minnesota, 1991. P. 121. 457 Ressalte-se, como já fora mencionado, que o republicanism é uma concepção política muito ampla, abrangendo diversas matrizes doutrinárias.
336
Para Sunstein o objetivo da jurisdição constitucional é garantir a formação e o
desenvolvimento de uma democracia participativa, com um alto grau de responsabilidade e
participação popular. Este pode ser considerado como o escopo preponderante da jurisdição
constitucional norte-americana.458 Os direitos inerentes à participação democrática são
considerados tão essenciais e imprescindíveis que se configuram como uma qualidade
inexorável da cidadania, evitando a formação de uma sociedade formada por consumidores
regidos por leis de mercado feitas sem a participação popular.459
Sunstein propõe uma reelaboração do pensamento de Madison, sedimentado em uma
“política virtuosa” na qual os cidadãos participariam da política não por motivos egoísticos,
mas por causa de uma vontade de afirmar a sua própria opinião. A Constituição, segundo
ele, é um instrumento contra os governos arbitrários, delimitando o espaço dos entes
públicos para que sua atuação possa contemplar os mais diversos interesses, por meio da
formação de um consenso geral.
Sunstein não faz uma redução da participação política a sua característica de
pluralismo democrático, em que os segmentos sociais lutam para conseguir maiores
alocações de recursos, tenta uma reelaboração do pensamento republicano para adaptá-lo à
construção de uma “grande república”, de acordo com os ensinamentos dos the federalist.
A sua teoria recoloca o papel da jurisdição constitucional nos moldes concebidos
pelo princípio da separação dos poderes, vedando as suas atuações extensivas, exceto em
dois casos específicos: quando se trata de um direito que desempenha um papel crucial no
processo democrático, ou quando determinados grupos minoritários não recebam um
tratamento isonômico no processo político.460 Então, afora esses dois casos específicos, a
jurisdição constitucional deve se ater ao exercício de suas funções delineadas pela separação
dos poderes, contendo o seu ativismo judicial para a concretização de outros direitos.
458 SUNSTEIN, Cass R. “Free Speech Now”. In: The Bill of Rights in the Modern State. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. P. 313. 459 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 195. 460 Nesse ponto, como em vários outros, há uma similaridade muito forte entre a teoria formulada por Ely e a formulada por Sunstein.
337
Advoga que o melhor instrumento para a defesa das minorias é o bom funcionamento
do regime democrático, que permite que elas participem das decisões políticas e assim
possam influenciá-las no sentido da adequação aos seus interesses. Os direitos fundamentais
que protegem as minorias são resguardados de forma mais eficaz não pela construção de
uma jurisdição constitucional atuante, mas pelo desenvolvimento de um regime democrático
participativo.
Os direitos fundamentais, de uma forma geral, não são o alicerce primordial para
legitimar a atuação da jurisdição constitucional. Apenas podem exercer essa função os
direitos humanos que garantem a livre participação dos cidadãos no regime democrático,
pois são considerados dados pré-políticos e configuram-se como um limite à soberania
popular. A sua maior preocupação é evitar a “tirania da maioria”. Diversa é a concepção
quanto à gênese dos direitos fundamentais defendida pelos republicanos, para eles, esses
direitos constituem um elemento da tradição histórica e são reconhecidos aos membros
individuais da sociedade como parte de seu próprio projeto de vida e não como segmento de
um dado pré-político, de conotação jusnaturalista.
A maioria dos direitos fundamentais não têm uma gênese em elementos pré-
políticos, sua fonte e a garantia de sua efetivação é a participação política ativa dos cidadãos.
Parte do pressuposto de que os direitos são criados pelos cidadãos no processo democrático
ao mesmo tempo que cria o processo normogenético que regulará a criação das normas
infraconstitucionais. Portanto, ele defende a existência de direitos substanciais na
Constituição, minimalism’s substance, que foram concretizados divido à formação de um
amplo consenso por parte dos cidadãos nas instâncias políticas da sociedade, mas que não
são direitos absolutos e sim relativos, entrelaçados à participação política dos cidadãos.461
Os direitos fundamentais mais preponderantes do ordenamento jurídico, dentro do
seu raciocínio, são os direitos políticos, basic rights of political participation, pois permitem
a plena realização do princípio da autonomia de vontade dos cidadãos. Sua importância é
tamanha que são considerados como auto-referentes, isto é, são direitos primários que a
461 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 62.
338
partir deles permitem a realização de novos direitos e a sua posterior tutela jurídica.
Exemplo de um direito apanágio intrínseco do regime democrático é a liberdade de
expressão, freedom of speech, um dos direitos considerados essenciais para a participação
dos cidadãos nas decisões políticas, devendo por isto ser protegido pela jurisdição
constitucional.462
A auto-referencialidade dos direitos políticos decorre do fato de que eles são a
estrutura que permite o desenvolvimento do processo democrático, dotados de taxionomia
procedimental, com a finalidade de garantir que a população tome as suas próprias decisões
políticas. São auto-referenciais porque possibilitam, dentro do regime democrático, a criação
de novos direitos, elaborados a partir desses e se configuram como a base para a legitimação
da jurisdição constitucional.
A maior parte dos direitos fundamentais é caracterizada como produtos inexoráveis
do processo deliberativo e para a sua proteção é mais relevante a defesa do funcionamento
do regime democrático, segundo os parâmetros de liberdade e participação ativa dos
cidadãos, do que a proteção dos direitos fundamentais, por si só, através da jurisdição
constitucional. Destarte, os direitos fundamentais, ao mesmo tempo, em que constituem uma
precondição para o exercício da cidadania, proporcionado a participação de todos os
cidadãos, independente de qualquer condição, são também conseqüências inerentes ao seu
desenvolvimento, criando outros direitos fundamentais a partir do basic rights of political
participation.
Sunstein discorda da atuação da jurisdição constitucional para garantir direitos
fundamentais que não estão inseridos no processo democrático ou que não tenham a
finalidade de propiciar um tratamento isonômico a grupos marginalizados. Conteúdos
materiais da Constituição, mesmo que sejam os direitos fundamentais, apenas podem servir
para invalidar dispositivos infraconstitucionais, com uma atuação mais extensiva da
jurisdição constitucional, quando houver uma falha no sistema político de deliberação dos
cidadãos.
462 SUNSTEIN, Cass. R. Republic. Com. New Jersey: Princeton University, 2002. P. 141.
339
A defesa de uma atuação minimalista por parte das decisões judiciais, restringindo-se
à proteção dos direitos à participação política dos cidadãos e aos direitos das minorias,
apresenta um sólido liame entre democracia e jurisdição constitucional, em que os limites do
exercício das atividades desta é delineado pelo conceito aferido àquela.
Quando republicanos como Sunstein e Frank Milcheman criticaram a decisão da
Suprema Corte ao declarar que a constitucionalidade da lei promulgada pelo Estado da
Geórgia, que proibia a sodomia, no caso Bowers versus Hardwick, o fizeram para proteger
um basic right of political participation e não porque discordavam do mérito da decisão.
Eles consideraram que houve uma infração à tutela da liberdade sexual, ferindo uma
prerrogativa do direito de personalidade, decorrente da proibição de um cidadão adotar a
opção homossexual. Nesse caso, o direito à privacy foi considerado como um direito
político, no sentido de liberdade pessoal dos cidadãos.463 Caracterizado como um direito
inerente à participação política deve ser protegido pela jurisdição constitucional, advindo daí
a crítica dos mencionados professores.
Sunstein vislumbra o papel dos Tribunais constitucionais de modo minimalista, em
que eles somente deveriam intervir em casos restritos, baseando-se no incompletely
theorized agreements, fazendo com que, em cada caso específico, pudesse se chegar a um
acordo, sem a necessidade de fundamentação com os princípios fundamentais, com respeito
ao pluralismo das sociedades contemporâneas, mantendo uma relação com os demais
poderes componentes do Estado.
Ao contrário de Dworkin, Sunstein não defende que a solução para os hard cases
seja através de princípios constitucionais que guardem uma estreita relação com os
princípios morais. Para ele, os princípios constitucionais podem até mesmo dificultar na
solução dos casos concretos, pois como são genéricos e abstratos tendem a gerar muitas
polêmicas em torno do seu conteúdo. As discussões sobre o conteúdo dos princípios
463 “ Nessa perspectiva a privacy vem valorizada como direito político: tal desenvolvimento de relação da noção constitucional-legal da autonomia – no diapasão da primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos – representa exatamente a propensão republicana no sentido de coligar a esfera pessoal e a esfera política. Nessa perspectiva a privacy não é vista somente como um fim (mesmo que controverso) de deliberação da parte do direito, mas também como princípio constante e regenerativo – jusgenerativo – de tal deliberação. O argumento fornece a conexão entre o privacy e a cidadania”. BACCELLI, Luca. Il Particolarismo dei Diritti. Poteri Degli Individui e Paradossi dell’Universalismo. Roma: Carocci, 1999. P. 167.
340
constitucionais provocam uma partidarização no seio da opinião pública que deve ser
resolvida nas devidas instâncias do regime democrático e não nos tribunais.
Sunstein discorda das teorias comunitaristas, dentre outros, defendidas por Dworkin,
cuja concepção delineia a sociedade como uma “comunidade de princípio”. Em contraponto,
advoga que o principal elemento da cidadania é a liberdade pessoal, consonante uma
concepção republicana da política, na qual o objetivo social preponderante é o de oferecer a
cada cidadão as prerrogativas essenciais para a realização do auto-governo.
Nessas situações, postula a aplicação do incompletely theorized agreements que é
feito através de regras e de analogias, sobre as quais os cidadãos, mesmo discordando do
princípio constitucional, diante do caso concreto, que não envolve abstrações nem conceitos
herméticos, podem aceitar a sua aplicação porque seus efeitos resolvem a demanda judicial e
podem ser facilmente inteligíveis, particularizando os seus efeitos. A teoria dos acordos
parciais deve ser concebida no sentido de que os cidadãos concordem com o resultado da
decisão judicial , sem necessariamente concordarem com os princípios constitucionais que
alicerçam a aplicação das normas. Como as regras e o procedimento analógico não possuem
um conteúdo denso, carregado de intensidade axiológica, podem possibilitar mais facilmente
um consenso, evitando a discordância quanto à extensão do conteúdo que é uma
característica inerente aos princípios constitucionais.464
Considera que quando a decisão é sobre uma questão polêmica, retirada da seara
política a resolução da questão, se por um lado pacifica a controvérsia, por outro retira do
espaço público de discussão a possibilidade de sua solução, mitigando o processo
democrático. E, como segunda razão para restringir o ativismo da jurisdição constitucional
aos dois casos citados anteriormente, ele planteia que, em um regime democrático, o local
mais apropriado para o debate de temas polêmicos é a seara política e não uma corte
constitucional ou órgão similar. Explica o autor: “No governo americano e nas democracias
constitucionais que funcionam a contento, o real fórum para a deliberação sobre os mais
464 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 4-5.
341
importantes princípios políticos não é o judiciário – a maioria dos princípios fundamentais
são desenvolvidos democraticamente, não em courtrooms”.465
Como exemplo, Sunstein cita a decisão da Suprema Corte norte-americana que
legalizou o aborto, em 1973, Roe versus Wade. Com essa decisão a Suprema Corte subtraiu
uma importante discussão da seara política, ativando mais ainda a divisão da sociedade entre
grupos a favor e contra o aborto. Segundo ele, se essa divergência tivesse encontrado um
consenso político, poder-se-ia pacificá-la de modo definitivo. Outro caso mencionado é com
relação ao suicídio assistido no qual advoga uma atuação minimalista da Suprema Corte,
onde não se deve proferir uma decisão nem no sentido de admitir nem no sentido de proibir
tal conduta, deixando que a população, por intermédio dos meios democráticos cabíveis,
possa chegar a uma decisão.466
A defesa do rule of law não é a característica principal da jurisdição constitucional,
mas a sua função preponderante se configura em fornecer os requisitos para o
funcionamento do processo democrático, propiciando o diálogo entre os poderes
estabelecidos para incentivar o debate político. Diante de um caso posto à apreciação da
Suprema Corte cuja decisão acarrete profundas controvérsias na sociedade, é de melhor
alvitre deixar que os segmentos sociais organizados tomem a decisão, deslocando a
discussão acerca do caso para as esferas democráticas que dispõem de melhores condições
para colmatar a questão do que as esferas judiciais.
O pluralismo que impera nas sociedades contemporâneas se configura como a
melhor solução para a resolução de questões controversas, onde o consenso pode ser obtido
por meio do debate político por toda a sociedade, sem estarem adstritas essas decisões
importantes a um grupo seleto de juízes, que na maioria das vezes bloqueia ao invés de
estimular a participação no processo democrático. A heterogeneidade social não é um
impedimento para as decisões judiciais, em que dever-se-ia recorrer a princípios morais para
se buscar uma solução apropriada, ela se configura como uma “productive force”,
465 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 7. 466 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 115.
342
incentivando o debate nas esferas políticas pertinentes para que os cidadãos possam chegar a
um acordo que balizará as decisões judiciais nesse sentido.
O constitucionalista norte-americano defende a legitimação procedimental da
jurisdição constitucional, sendo ela concretizada quando os elementos apanágios de uma
democracia participativa estiverem consolidados. Para ele, não é função da jurisdição
constitucional defender direitos substancias agasalhados pela Constituição, a não ser que
sejam direitos essenciais ao desenvolvimento do regime democrático. A sua principal
preocupação é adequar o rule of law à soberania popular, evitando que esses princípios
entrem em choque. A função da jurisdição constitucional é garantir a adequação do rule of
law e da soberania popular.
Para evitar as mesmas críticas que são direcionadas à tese procedimentalista,
esposada por Ely, por causa da ausência de conteúdo mínimo ao regime democrático,
Sunstein planteia que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deva se manter distante
de qualquer decisão com o propósito de definir um standard para o conceito de democracia.
Ao invés de se tentar encontrar um standard para o conceito de democracia de melhor
alvitre é direcionar a atuação da jurisdição constitucional por um critério funcional: o de
possibilitar a formação de consensos através da participação política dos cidadãos que,
conseqüentemente, oferecem um seguro vetor para as decisões judiciais.467
Dependendo do conceito que seja adotado para o conceito de democracia pode-se
possibilitar uma atuação extensiva da jurisdição constitucional para a concretização de tais
conceitos, como por exemplo, os direitos contidos na quarta dimensão de direitos
fundamentais que têm a construção de uma verdadeira democracia política como objetivo
que exige para sua real concretização direitos como lazer, educação, trabalho digno,
pluralidade da mídia etc. 468
Não obstante, incorre no mesmo erro atribuído a Ely, que superdimensiona as
virtudes do regime democrático, descurando-se da grave crise por que passa a participação
467 Nesse ponto específico há uma similitude com a teoria do espaço público formulada por Habermas. 468 SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. P. 25-26.
343
política nas sociedades pós-modernas. Nas sociedades periféricas como a brasileira, onde a
participação efetiva nas decisões do regime democrático é prerrogativa de uma elite, ficando
a maior parte da população excluída de qualquer decisão política mais importante, atrelar a
atividade da jurisdição constitucional à defesa dos procedimentos democráticos significa
deixar os direitos fundamentais, principalmente os de segunda dimensão, sem uma
concretização mais efetiva.
Em uma sociedade como a brasileira, em que o grande problema social é a alta
desigualdade social entre os seus cidadãos, tanto a teoria defendida por Ely quanto a
defendida por Sunstein tendem a perpetuar o status quo dominante em detrimento dos reais
interesses da população.
13.4 Críticas às Teorias Procedimentais de Legitimação da Jurisdição
Constitucional
Sustenta a professora Ferrarese que o impulso na legitimação do Direito por modelos
procedimentais é uma decorrência do processo de globalização que torna a lex mercatoria
suprema, em detrimento dos outros poderes institucionalizados. Os modelos procedimentais
de legitimação permitem que elementos diversos e de conteúdos variáveis, produzidos pela
privatização do Direito, possam se desenvolver, no que não eliminam o risco e a incerteza
provocados pela ausência de regulamentação econômica.469
Dessa forma, sem a necessidade de seguir um padrão fixo de conteúdo, os modelos
procedimentais podem se adaptar de forma fácil às constantes necessidades produzidas pela
sociedade, não precisando reestruturar-se a cada novo cambiamento social, constituindo-se
469 FERRARESE, Maria Rosaria. Le Istituzione della Globalizzazione. Diritto e Diritti nella Società Transnazionale. Bologna: Mulino, 2000. P. 62-63.
344
essa característica como a principal responsável pela sua difusão em um mundo em
constante modificação.
A principal crítica concernente à legitimação procedimental da jurisdição
constitucional é ao seu distanciamento quanto ao conteúdo agasalhado pela Constituição.
Para as doutrinas procedimentais não existe um teor material a ser perseguido, com uma
supervalorização ou da seqüência de atos que formam um processo, ou de um processo
comunicativo que encontre o seu apogeu no espaço público, ou na participação efetiva dos
cidadãos no regime democrático. As normas constitucionais deixam de significar um vetor
preponderante para a atuação da jurisdição constitucional, perdendo a legitimidade baseada
na densidade da soberania popular, contida no Poder Constituinte, um forte instrumento para
a sua concretização. O conteúdo perde importância para a primazia da forma, podendo o
procedimento ser preenchido por qualquer substância; com isto há um esvaziamento da força
normativa da Constituição porque a matéria que preenche a forma das normas
constitucionais passa a não ter mais relevância.
Dessa forma, há um empobrecimento da supremacia constitucional e
conseqüentemente do papel desempenhado pelas Constituições, que deixam de apresentar
um referencial para as condutas sociais e para a estruturação dos entes políticos. Sem
apresentar um conteúdo que influencie as decisões da jurisdição constitucional, a
proeminência das normas constitucionais no ordenamento jurídico é mitigada, já que as
normas procedimentais não possibilitam uma adequada fiscalização do teor material das
normas infraconstitucionais aos ditames da Lei Maior. Corre-se o risco, com as teses
procedimentalistas, de transformar a Constituição em uma norma simbólica, em um signo
que sirva apenas para legitimar a dominação da população por uma elite que não tem em
consideração os seus anseios.
O processo de esvaziamento da substância do Direito, produzido pelas teorias
procedimentais, representa um grave perigo para os direitos fundamentais dos cidadãos.
Com a ausência de um parâmetro de natureza substancial de atuação, as normas jurídicas
podem apresentar os mais variados conteúdos, legitimando-se desde que cumpram o
procedimento devido. Com isto os direitos fundamentais ficam completamente relegados,
345
podendo até mesmo serem afrontados ou mitigados desde que as normas sigam o
procedimento previamente estabelecido. As prerrogativas dos cidadãos deixam de ser um
referencial para a atuação normativa.
A ineficiência das teorias procedimentais para sustentar a legitimação da expansão
das atividades da jurisdição constitucional também se mostra evidente, na medida em que,
principalmente em sociedades que não têm um lastro histórico de participação popular como
a sociedade brasileira, não consegue sedimentar uma densidade de consenso que ampare as
suas decisões. Enquanto que as teses substancialistas podem fazer uma vinculação entre a
vontade constituinte e a população porque os direitos fundamentais gozam de ampla
aceitação na sociedade, alcançando facilmente o consenso dos cidadãos.
Outra alegação, contra as teses procedimentais, é que pelo fato de inexistir um
conteúdo que sirva como parâmetro, elas não fomentam a segurança jurídica. Se por um lado
elas propiciam uma maior adequação às modificações de uma sociedade cambiante, por
outro lado, a inexistência de vetores jurídicos substanciais aprofunda a insegurança jurídica,
já que respeitado o procedimento previsto pode-se chegar a qualquer conteúdo.
De acordo com essas teorias, há uma redução na esfera de atuação da jurisdição
constitucional, o que não contribui para a formação de uma tese que legitime a ampliação da
sua atuação que é um dado empírico que ocorre principalmente nos países europeus. Dessa
forma, a jurisdição constitucional não é considerada importante para fortalecer a força
normativa dos dispositivos constitucionais, perdendo os direitos fundamentais um
instrumento imprescindível para a sua concretização.
Salutar é a crítica feita pelo professor Lenio Streck às teses procedimentais de
legitimação da jurisdição constitucional: “Em face dessas concepções, há fortes indicadores
que o modelo de interpretação procedimentalista, proposto por autores como Habermas,
muito embora calcado na teoria do discurso, incorre, a meu sentir, no esquecimento da
diferença ontológica, ao desvincular os valores do texto constitucional de sua
ação/concretização (naquilo que a Constituição tem de substantividade), terminando por
separar o ser do texto constitucional do (respectivo) ente, como se o ser pudesse subsistir
sem o ente, e este pudesse ser “apreendido”como ente. Portanto, o procedimentalismo, em
346
certa medida, ao esquecer a diferença ontológica, objetifica o texto da Constituição,
impedindo o questionar originário da pergunta pelo sentido do seu texto. Assim, a teoria
procedimentalista atua como um método ou como uma ferramenta que está “à disposição”
dos agentes sociais/jurídico/ políticos, com os quais se afastam do paradigma
hermenêutico”.470
A teoria formulada por Luhmann apresenta algumas deficiências que impedem a sua
aplicação em uma sociedade considerada como pós-moderna. Orientar as decisões inerentes
à jurisdição constitucional apenas por procedimentos judiciais, sem uma forte inter-relação
entre a normatividade e a faticidade, significa aumentar o gap jurídico e contribuir com o
decréscimo da força normativa da Constituição. Outrossim, pela falta de canais eficientes
com a realidade social, tende o ordenamento jurídico a se tornar auto-referencial, cerceando
as tentativas de construção de uma sólida teoria de legitimidade de uma atuação extensiva da
jurisdição constitucional.
A respeito da teoria procedimentalista de Habermas, a crítica mais forte realizada é
que a sua idéia de espaço público, como alicerce para as decisões da jurisdição
constitucional, é impossível de ser concretizada em um país como o Brasil onde grande parte
da população não dispõe ainda dos direitos de segunda dimensão, configurando-se
impossível pensar como que uma população pode exercer plenamente a sua cidadania, sem
que ao menos as menores condições de sobrevivência lhe sejam asseguradas. O espaço
público não pode ser o locus para as discussões que possibilitem a participação de toda a
população porque ela, na sua grande maioria, está excluída do debate político. Sem a
garantia das cinco dimensões dos direitos fundamentais (que será acrescido de mais algumas
com o decorrer do desenvolvimento das sociedades humanas), a teoria habermasiana não
pode ser aplicada, fato que dificulta a sua aplicação a países subdesenvolvidos.
Na teoria habermasiana, o conceito de espaço público é supervalorado, acarretando
que uma estrutura de taxionomia sócio-comunicativa, sem nenhuma especificação mais
concreta que impeça a sua manipulação, se sobreponha à Constituição e fragilize a
470 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 149.
347
normatividade das normas constitucionais, esvaziando a força de garantias jurídicas que
protegem o desenvolvimento das sociedades humanas.
Quanto às teorias de Ely e de Sunstein, que podem ser analisadas de forma conjunta
em virtude de suas similitudes, elas são específicas para a aplicação na sociedade norte-
americana, ou ao menos em países que apresentem bastante semelhanças com os fatos
políticos que ensejaram e orientam o funcionamento da sua organização política. Tentar
aplicar essas teorias em um país periférico como o Brasil revela-se uma insensatez, haja
vista o rarefeito desenvolvimento do seu regime democrático. Nesse tipo de país a
concretização dos direitos fundamentais não pode ficar ao talante das decisões políticas,
necessitando que a jurisdição constitucional densifique a sua concretização.
Por causa do contexto histórico brasileiro, com a sua longa história de exclusão
social, a necessidade de concretização dos direitos fundamentais contidos na Constituição
assume uma necessidade imperiosa. Sem a realização desses direitos, qualquer teoria
procedimental tornar-se-á inócua porque não haverá uma consciente participação política
dos cidadãos nas decisões sociais mais importantes, nem a Constituição poderá garantir os
direitos que lhe foram agasalhados pela soberania popular em seu apogeu que é o processo
constituinte.
14.) Legitimação Substancialista da Jurisdição Constitucional
Em antípoda com as teorias de legitimação da jurisdição constitucional pelo
procedimento estão as teorias substancialistas, defendidas por Laurence Tribe, John Rawls,
Dworkin, Paulo Bonavides, etc. Apresentam como ponto comum o postulado de que a
legitimação da jurisdição constitucional é concretizada quando o órgão incumbido de a
realizar assim o faz para assegurar valores substanciais, mormente aqueles que foram
agasalhados pelo Texto Constitucional. Ao contrário das teses procedimentais, que
defendem ser a legitimação construída ao longo da jurisdição constitucional, com o
348
preenchimento de alguns requisitos, as teses substancialistas defendem que a jurisdição
constitucional tem um sentido teleológico: garantir a concretização de valores substanciais,
principalmente dos direitos fundamentais.
As teorias substancialistas surgem com o fator teleológico de legitimar as decisões
judiciais proferidas pela jurisdição constitucional, na tentativa de se contrapor à constante
crítica de que essas decisões são destituídas de legitimidade. Baseando-se em elementos
substancialistas, principalmente contidos na Lei Maior, asseveram que suas decisões não são
destituídas de legitimidade, muito pelo contrário, detêm uma densidade de consenso muito
maior do que o propiciado pelo princípio da soberania popular.
Com a legitimação das decisões judiciais por parte de valores materiais, que na
maioria dos casos foram estabelecidos pela Constituição, há a superação da tradicional
legitimidade auferida pela soberania popular, já que decisões judiciais podem revogar
normas realizadas pelo Poder Legislativo, evidenciando a grave crise que se abate sobre o
regime democrático em virtude de muitos fatores, como: a influência do poder econômico, o
poder da mídia, a falta de participação política dos cidadãos, conseqüência do
multiculturalismo das sociedades modernas etc.
As teorias substancialistas partem do pressuposto da existência de um conteúdo
material, contido principalmente na Constituição, na acepção que ele representa aqueles
valores que formam as invariáveis axiológicas, gozando, portanto, de alta carga de
legitimidade nos mais variados extratos sociais. Configurando-se como a essência da
jurisdição constitucional, nada mais lógico do que a sua função primordial ser a sua
realização. Essa forma de legitimação permite que se estabeleça um referencial com o
princípio da soberania popular, haja vista ser a Constituição a norma jurídica que maior
consenso obtém na sociedade (obviamente quando é promulgada e o processo constituinte
permite a participação efetiva de todos os setores sociais), haurindo a jurisdição
constitucional significativa legitimação para o desempenho de suas funções.
A definição do conteúdo substancial que deve ser concretizado pela jurisdição
constitucional é realizada pelo texto da Constituição, abrangendo principalmente os
princípios constitucionais, tanto os explícitos como os implícitos, que têm a função de
349
densificar os explícitos. A própria Carta Magna serve como referência para a atuação da
Corte Constitucional ou Tribunal que faça as suas vezes, evitando uma exacerbação do seu
poder e, de igual maneira, a mitigação do Poder Legislativo. O que não impede que alguns
autores substancialistas, como Ronald Dworkin, defendam que conteúdo substancial
também reside na “comunidade moral de princípios”, de taxionomia moral, que não está
integralmente contida na Constituição.
Todavia, a grande essência para a construção de uma teoria substancialista de
legitimação da jurisdição constitucional são os direitos fundamentais, em qualquer uma de
suas cinco dimensões (que com o decorrer do tempo serão adicionadas novas dimensões).
São eles, o substrato de dignidade da pessoa humana, o arrimo do ordenamento jurídico e,
portanto, deve ser o eixo para a formação de uma teoria de legitimação que faça com que a
Corte ou Tribunal Constitucional possa ficar mais conexo com as demandas sociais e não se
isolar por intermédio de procedimentos que se auto-referenciam, consubstanciando-se um
sistema que se auto-reproduz sem sentir as demandas da sociedade.
As teorias substancialistas de legitimação da jurisdição constitucional são um contra-
ponto às teses procedimentais, que não entendem os valores contidos na Constituição como
alicerce para justificar a sua atuação, baseando-se em valores adjetivos ou procedimentais
com o objetivo de assegurar a participação dos cidadãos nas decisões políticas.
Essas teorias partem do pressuposto de que a jurisdição constitucional tem que
desenvolver um papel ativo, activism judicial, no sentido de assegurar a defesa dos direitos
fundamentais. Em países periféricos como o Brasil, a garantia desses direitos, em alguns
casos, infelizmente, de primeira dimensão como a vedação à tortura, mostra-se como a
diretriz mais importante que deve nortear as decisões do Supremo Tribunal Federal.
Por causa desse pressuposto, é difícil conceber a defesa dos direitos fundamentais
pela atividade da jurisdição constitucional em um Estado liberal, regido pelas forças do
mercado, onde os entes estatais devem intervir da menor forma possível e que as decisões
judiciais devem ser pautadas pela self-restraint. Maior estímulo para o desenvolvimento da
defesa dos direitos fundamentais pela jurisdição constitucional é encontrado em um Estado
350
Democrático Social de Direito, em que as organizações estatais intervêm em vários setores
da vida social para proteger direitos considerados essenciais para os cidadãos.
14.1) A Legitimação da Jurisdição Constitucional pelos Direitos
Fundamentais
Os direitos fundamentais se configuram como os mais importantes elementos para a
legitimação da jurisdição constitucional. Quando o processo de expansão da atuação da
jurisdição constitucional se ampara sobre seus fundamentos, até mesmo as decisões que
incidem em controversas searas políticas encontram respaldo na sociedade, desempenhando
o órgão que exerce a jurisdição constitucional um papel de guardião dos direitos agasalhados
pela Constituição. No atendimento das demandas sociais pós-modernas, a jurisdição
constitucional é chamada a incidir cada vez de forma mais constante na seara política,
chegando, inclusive, a desempenhar uma função normogenética, quando um direito
fundamental não puder se exercido por falta de regulamentação do legislador
infraconstitucional.
A importância dos direitos fundamentais é uma unanimidade em todos os
ordenamentos constitucionais, configurando-se como a principal característica das Cartas
Magnas hodiernamente. A “Era dos Direitos” assinala o ocaso da concepção hobbesiana de
que os direitos fundamentais são prerrogativas inerentes ao Estado e somente poderiam
existir enquanto fossem apanágio das atividades estatais.471
Neste diapasão está a exposição de Mirkine Guetzévitch: “As liberdades individuais e
sociais ocupam um lugar de honra nas novas Constituições européias. Mesmo as dos países
onde a prática governamental ou administrativa não é absolutamente democrática consagram
capítulos eloqüentes à afirmação dessas liberdades. Pode-se dizer que o reconhecimento dos
471 HOBBES, Thomas. El Estado. México: Fondo de Cultura Económica. 1998. P. 43.
351
Direitos do Homem penetrou na opinião mundial com uma unanimidade quase
desconcertante, pois, embora unânime, esse reconhecimento não é para tanto um penhor de
eficácia”.472
A primazia ocupada pelos direitos fundamentais no ordenamento jurídico configura-se
de tamanha magnitude que eles são elementos essenciais para que o processo de globalização
seja deslocado de um enfoque mercantilista, em que prepondera a lex mercatoris, para um
enfoque social, em que prepondere o homem e os seus interesses.
A utilização dos direitos fundamentais como arrimo à jurisdição constitucional advém
de uma tradição jusnaturalista, que concebe os direitos dos cidadãos como direitos
intrínsecos ao homem, existindo não em razão das leis ou do Estado, que são anteriores
inclusive a qualquer organização política, mas considerados como direitos inalienáveis, que
não podem ser maculados por qualquer órgão estatal.
Todavia, Norberto Bobbio considera que a controvérsia na busca dos alicerces dos
direitos fundamentais, decorrente de múltiplos fatores, como o caráter histórico dos direitos
dos cidadãos, da indefinição quanto aos seus limites, do choque entre direitos, da ausência
de pressupostos de demonstrabilidade etc, é despicienda. Para o ilustre filósofo italiano o
problema mais iminente não é encontrar um fundamento último para os direitos
fundamentais, mas o de garanti-los, porque o problema do fundamento foi solucionado com
a Declaração Universal dos Direitos do Homem que assegurou a validade jurídica para a
eficácia desses direitos.473
Exprime Luigi Ferrajoli que uma definição formal ou estrutural do conceito de
direito fundamental pode ser obtido através da sua característica de universalidade, no senso
de que eles podem ser atribuídos a todos os povos, tornando-se um apanágio da qualidade de
cidadão.474 Por sua vez, o professor Paolo Barile assevera que os direitos fundamentais são
invioláveis não porque é vedado ao Poder Legislativo realizar uma norma que infrinja esses
472 MIRKINE-GUETZÉVITCH, Boris. Evolução Constitucional Européia. Trad. Marina de Godoy Bezerra. Rio Janeiro: José Konfino Editor, 1957. P. 157. 473 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P.26. 474 FERRAJOLI, Luigi. Il Fondamento Dei Diritti Umani. Pisa: Servizio Editoriale Universitário, 2000. P. 8.
352
preceitos ou em razão de que há impedimento até para a sua supressão por parte do Poder
Reformador – de uma forma geral não se pode produzir normas que contrariem a
Constituição ou que destruam as suas cláusulas pétreas – o motivo situa-se na importância
valorativa dos princípios constitucionais, porque são consideradas as normas mais
importantes do ordenamento jurídico, apenas podendo ser retirados do ordenamento jurídico
pelo Poder Constituinte.475
Definição interessante é a exposta por Gregório Peces-Barba Martínes que pela
extensão dos seus elementos possibilita uma visão mais abrangente do objeto enfocado: “Os
direitos fundamentais são o conjunto de normas de um ordenamento jurídico que formam um
subsistema deste, fundados na liberdade, na igualdade, na seguridade, na solidariedade,
expressões da dignidade do homem, que formam parte da norma básica material de
identificação do ordenamento jurídico, e constituem um setor da moralidade procedimental
positivada, que legitima o Estado Social de Direito”.476
A dificuldade é a densificação da eficácia concretiva dos direitos fundamentais que é
um dos fatores teleológicos da jurisdição constitucional. A importância da jurisdição
constitucional é garantir que os direitos fundamentais não fiquem restritos à sua seara
formal, reduzidos a uma função retórica, possibilitando-lhes uma concretização efetiva na
sociedade. Por outro lado, os direitos fundamentais constituem o principal elemento de
legitimação da jurisdição constitucional na medida em que eles são considerados como
invariáveis axiológicas, gozando de aceitação nos mais variados extratos sociais.
Para o definitivo estabelecimento da teoria dos direitos humanos, foi imprescindível o
papel desempenhado por declarações que externavam determinadas prerrogativas à
sociedade, tendo como um dos seus expoentes a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão, do século XVIII, adotando uma concepção moderna, cujas prerrogativas dos
cidadãos eram anteriores ao Estado e à Constituição, e, portanto, os órgãos estatais não
poderiam cerceá-los. Entre os mais importantes textos que asseguram direitos humanos
475 BARILE, Paolo. Diritto Dell’Uomo e Libertà Fondamentali. Bologna: Mulino, 1984. P.53. 476 MARTÍNES, Gregorio Peces-Barba. Curso de Derechos Fundamentales. Teoria General. Madrid: Universidad Carlos III, 1999. P. 469.
353
podemos citar: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e a Declaração de
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1917.477
Problema bastante relevante para a doutrina dos direitos fundamentais é a definição de
sua extensão, elencando quais são os direitos que devem ser classificados como
fundamentais. Essa definição liga-se umbilicalmente à concepção ideológica acerca do papel
do Estado e de suas funções, que por suas intensas conseqüências na sociedade adquire uma
magnitude contraditória explosiva. É difícil conceber os direitos fundamentais como algo
fixo e invariável em uma perspectiva temporal e espacial, o que não diminui a importância do
estabelecimento de critérios para que eles possam ser definidos e garantidos a
potencialização de sua eficácia.
Francisco Tomás y Valiente diferencia a expressão direitos fundamentais da expressão
direitos humanos.478 Este significa uma concepção ética-filosófica, portando uma concepção
semântica muito abrangente; aquela apresenta uma conceituação mais restrita, referindo-se ao
ordenamento jurídico-constitucional.479 Uma concepção sistêmica da Constituição não pode
vislumbrar as normas constitucionais apenas sob um ponto de vista normativo, de melhor
alvitre para a concretização dos direitos fundamentais é a concepção ético-filosófica, que
abrange tanto as normas abrigadas pela Carta Magna, quanto aquelas que fortalecem os
dispositivos constitucionais, normas implícitas.
Devido ao teor abstrato das normas constitucionais e do antagonismo ideológico que a
aplicação de suas normas acarretam, defende Robert Alexy que as teorias materiais dos
direitos fundamentais não podem ser alicerçadas exclusivamente na referência do texto da
Constituição, na vontade do legislador constitucional e nos precedentes do tribunal
constitucional. Para ele, uma teoria geral dos direitos fundamentais apenas é possível sob a
forma de uma teoria dos princípios, cujo pressuposto é uma teoria axiológica ou uma teoria
477 ARNAUD, André-Jean. Por une Pensée Juridique Européenne. Paris: Presses Universitaires de France, 1991. P.133. 478 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. “Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Español en Matéria de Derechos Fundamentales”. In: Enunciazione e Giustiziabilità dei Diritti Fondamentali nelle Carte Costituzionali Europee.Profili Storici e Comparatistici. Millano: Giuffrè, 1994. P. 124. 479 GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais. Análise de sua Concretização Constitucional. Curitiba: Juruá, 2003. P. 48-49.
354
teleológica, em que o maior número possível de cidadãos possa fazer uso de suas
prerrogativas.480
Os princípios permitem uma abertura dialógica entre o texto normativo da Constituição
e a realidade fática, possibilitando uma sintonia fina com as demandas do Estado
Democrático Social de Direito. Essa teoria dos direitos fundamentais, baseada nos princípios,
é concebida de forma sistêmica, em que o paradigma da proporcionalidade ou da
razoabilidade assume relevância impar para dirimir eventuais antinomias e garantir maior
eficácia do ordenamento jurídico.
A necessidade de comunicação com as aspirações sociais acontece porque como a
teoria material dos direitos fundamentais não é apoiada pelo dogma da autoridade, ela tem
que ser estruturada por uma teoria baseada no Estado e na Sociedade, o que realça o seu
caráter dialógico e circular como forma de legitimar os direitos fundamentais.481 A abertura
do sistema jurídico provocada pelo sentido principiológico dos direitos fundamentais
configura-se como a forma encontrada para se contrapor à insegurança de resultado
produzida pela teoria da argumentação jurídica.
Sustenta Alexy que o critério de escolha para a utilização dos direitos fundamentais,
determinando a intensidade do seu conteúdo, realizar-se-á por intermédio da teoria da
argumentação jurídica. A função da teoria material dos direitos fundamentais é construir um
discurso argumentativo que consiga obter o maior grau possível de consenso da sociedade
através de diretrizes racionais. Ela se configura como uma justificação externa, verificando a
correção das premissas lógicas, utilizadas no discurso argumentativo.482
Na Constituição brasileira de 1988, os direitos fundamentais foram regulamentados
nos arts. 1° ao 17 e nas demais partes da Lei Maior que assim for declarada pelo Supremo
Tribunal Federal, como por exemplo, o princípio da anterioridade.
480 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.543-544. 481 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.547. 482 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hatchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. P. 218.
355
A vantagem de se deixar aberta a elencação dos direitos fundamentais, desde que
seja assegurado um “conteúdo mínimo” a sua densidade, é que dessa forma pode haver uma
adequação mais eficaz entre a realidade fática e a realidade normativa, permitindo uma
evolução dos direitos fundamentais para atender às demandas cada vez mais complexas do
Estado Democrático Social de Direito. No que seguiu a diretriz estabelecida pela nona
emenda à Constituição norte-americana de 1787, cuja declaração afirma que a numeração de
certos direitos na Constituição não poderá ser interpretada como negando ou minimizando
outros direitos inerentes ao povo.
O órgão que exerce a jurisdição constitucional e o Poder Judiciário são, quando há
distinção entre esses órgãos, dentre os organismos estatais, aqueles que por sua própria
natureza possuem as melhores condições de garantir os direitos fundamentais. Eles são os
que apresentam a menor condição de afrontar, do ponto de vista positivo, os direitos
fundamentais. Não detêm nem mesmo estrutura para executar as suas decisões, não
dispondo de recursos nem de força para impor os seus postulados.
Do ponto de vista negativo, eles apenas deixam de representar uma garantia para os
direitos fundamentais quando se tornam omissos diante de atentados contra a jurisdição das
liberdades; ou seja, quando o dano é ocasionado e os direitos fundamentais são relegados,
sem que o Poder Judiciário adote uma postura firme para suprimir essas
inconstitucionalidades.483 Dessa forma, pode-se dizer que eles atuam como intermediários
entre o Executivo e o Legislativo, com a função de fiscalizar se esses poderes estão
cumprindo os dispositivos constitucionais, mormente os direitos fundamentais.
O desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais marca a superação do seu
conceito subjetivo, de um direito que era oponível apenas a órgãos estatais para preservar a
liberdade dos cidadãos, concepção essa que era o apanágio de um Estado Liberal, que deveria
483 Para se entender a densidade semântica da conceituação de jurisdição constitucional das liberdades, é interessante demonstrar a sua definição para Roosevelt, que introduziu uma nova concepção de atuação dos órgãos estatais nos Estados Unidos da América. “Em 6 de janeiro de 1941 o Presidente Roosevelt introduz o que é definido como as quatro liberdades: de opinião, religiosa, da miséria e do medo. Estas liberdades foram reconhecidas por parte de todas as outras nações. Essa exigência se avolumou depois da segunda guerra mundial, quando a exigência de reafirmamento desses princípios ganhou uma maior amplitude”. MONTANARI, Laura. I Diritti dell’uomo nell’area europea tra Fonti Internazionali e fonti interne. Torino: Giappichelli Editore, 2000. P.8
356
intervir o menos possível na sociedade. Atualmente, os direitos fundamentais devem ser
concebidos tanto de forma subjetiva, mas, principalmente, na sua forma objetiva, no sentido
de uma cominação vinculante para todos os poderes. A identificação dos direitos
fundamentais de forma objetiva e subjetiva contribui para a construção de um Estado social,
que condiciona teleologicamente a jurisdição constitucional ao atendimento dessas
prerrogativas dos cidadãos.
Devido à proeminência dos direitos fundamentais, até mesmos países que adotam o
sistema concentrado de controle de constitucionalidade, como a Alemanha e a Espanha,
admitem recursos constitucionais individuais, como o verfassungsbeschwerde e o recurso de
amparo, para defender direitos fundamentais. Exemplo de país, com sistema concentrado de
constitucionalidade, que não prevê nenhum remédio individual é a Itália.484
É indubitável que em um regime democrático onde os direitos humanos tendem a ser
mais respeitados, considerando os valores que amparam esse regime político. Nesse sentido
defende Müller: “Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos
enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima”.485 Contudo,
existem os casos em que os direitos humanos foram desrespeitados, em países com tradição
democrática, como a Áustria e a Suíça.486 Pode-se concluir que a democracia não é o único
requisito para o respeito dos direitos humanos, configurando-se como uma das suas
condições, devendo, obviamente, existir outros requisitos.
Os direitos fundamentais, especialmente os que têm um caráter programático,
apresentam o mesmo conteúdo normativo que as demais normas, sendo, portanto, dotados de
coercitividade. Pela magnitude de sua função no ordenamento jurídico deve ter uma
concretude normativa mais intensa que as demais normas, inclusive porque assim está
preceituado no § 2º do art. 5º da Constituição Federal brasileira. Konrad Hesse defende que
os direitos fundamentais vinculam também o legislador, contendo princípios que abrangem
484 LILLO, Pasquale. “Corte Costituzionale ed Esperienza Giuridica”. In: Diritto e Società. N. 4. Ottobre-Dicembre. Padova: CEDAM, 2001. P. 479. 485 MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo. A Questão Fundamental da Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 76. 486 SCAGLIONE, Daniele. “Democrazia e Diritti Umani: Um Impegno per Tutti i Cittadini”. In: I Diritti Umani nel Processo di Consolidamento delle Democrazie Occidentali. Brescia: Promodis, 1999. P. 89-91.
357
toda a ordem jurídica em sua totalidade e aplicação do direito. Segundo o professor alemão,
quanto mais extensa for a esfera de aplicação dos direitos fundamentais, maior deve ser a
esfera de proteção das disposições constitucionais vinculantes.487
Os direitos fundamentais são o principal elemento para a legitimação da atuação da
jurisdição constitucional, tornando-a apta a enfrentar as demandas da sociedade. Sem o
amparo proporcionado pela concretização dos direitos fundamentais, a maior atuação do
Supremo Tribunal Federal encontrará sérias resistências nos poderes estabelecidos e,
igualmente, não obterá amparo na sociedade.
14.2) A Legitimação da Jurisdição Constitucional com base no Dualismo
Constitucional
Bruce Ackerman alicerça sua teoria com base na vontade popular, “we the people”.
Para ele cada geração que discordar dos postulados postos pela Carta Magna pode dar ensejo
a um novo processo constituinte, desde que consiga sedimentar a legitimidade necessária
para reescrever os princípios jurídicos fundamentais do ordenamento. A Constituição
vincula apenas o legislador ordinário, deixando aberto o caminho, a qualquer momento, para
o fenômeno da transconstitucionalização.
A finalidade da jurisdição constitucional, consentânea com os pressupostos da sua
teoria, configura-se por garantir a livre manifestação da população na formação de um novo
Poder Constituinte e fortalecer a sua supremacia com relação aos dispositivos
infraconstitucionais.
Ackerman cria a dualist democracy que possibilita ao cidadão uma conduta
específica em cada uma das espécies, com a valorização da soberania popular. Ele concebe a
487 BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE & HEYDE. Manual de Derecho Constitucional. 2 ed., Trad. Antonio López Pina. Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 114.
358
autodeterminação dos cidadãos em uma democracia de uma forma dualista: um higher
lawmaking track, específico de uma “política constitucional” e um lower lawmaking track,
específico de uma “política ordinária”. Esta ocorre em tempos de normalidade
constitucional, quando a participação política dos cidadãos está adstrita às suas obrigações
corriqueiras da cidadania, deixando ao governo e aos representantes eleitos a gerência da
coisa pública. Aquele ocorre em momentos de crise institucional, em que a participação
política exigida dos cidadãos é mais intensa, necessitando de forte colaboração popular para
atingir o grau de legitimidade esperado para a formação do processo constituinte.
A “política constitucional” se diferencia da “política ordinária” porque somente
ocorre em momentos extraordinários da vida nacional, quando as condições sócio-político-
econômicas propiciam a sedimentação da legitimidade necessária para o início do processo
constituinte, fazendo com que os cidadãos, imbuídos de virtude pública, pensem mais no
interesse coletivo do que nos seus interesses particulares.488 Se os legisladores legitimados à
atuação na “política ordinária”, que ocorre no cotidiano, pudessem legislar acerca da
“política constitucional” estariam perpetrando uma fraude à constituição, esbulhando uma
função que caberia aos legisladores constituintes que são eleitos para o exercício de tal
preponderante função.489 Essa supremacia da “política constitucional” deve-se a particulares
requisitos necessários para o surgimento do Poder Constituinte, que exigem um processo de
deliberação tanto em termos quantitativo como em termos qualitativo, bem mais rígidos do
que aqueles exigidos para a formação da “política ordinária”.490
A concepção de dupla democracia representa uma solução para quando a Carta
Magna não mais puder regulamentar a organização social de acordo com o interesse da
população. Ela evita a petrificação da Constituição, permitindo a sua renovação quando
488 BONGIOVANNI, Giorgio & GOZZI, Gustavo. “Democrazia” In: Le Basi Filosofiche Del Costituzionalismo. 4 ed., Roma: Laterza, 2000. P. 222. 489 Acerca do conceito de Fraude à Constituição ver: AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição. Um Atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Fabris, 2000. P. 185. 490 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P. 285-290.
359
houver as condições sócio-político-econômicas adequadas. Quem também adota um critério
dualista de democracia é John Rawls.491
Existem para Ackerman, portanto, duas democracias: uma é feita pelo povo (by the
people) e a outra é feita pelo governo (by their government). A primeira ocorre raramente e
sob especialíssimas condições. Para a atuação da primeira, sob forma de um Poder
Constituinte ele impõe os seguintes requisitos: a) convencer a predominante maioria dos
cidadãos a redesenhar o pacto político, haja vista a inadequação das estruturas políticas
atuais; b) permitir que todos os setores da sociedade possam participar do processo
constituinte; c) convencer a predominante maioria dos cidadãos a participar do processo de
deliberação e aceitar as suas decisões para a criação da “Higher lawmaking”. A atuação da
segunda, denominada de “normal lawmaking”, ocorre diariamente, mas deve preencher
algumas condições especiais: a) que os representantes populares tenham sido eleitos pelo
povo; b) que tenham como propósito garantir o interesse público, sem sofrer a influência de
grupos de interesses privados.492
O seu conceito de povo não se confunde com o conceito de governo. Para a teoria
dualista da democracia, a população somente atua de forma efetiva na formação de uma
nova Constituição. Claro que há a participação popular nas duas formas de democracia,
afinal o governo é feito por representantes eleitos pelo povo e a constituinte da mesma forma
por representantes eleitos em votação direta. O que diferencia estas duas formas de
democracia é o grau de participação popular e a intensidade da legitimidade depositada em
cada um deles, que se apresenta muito mais forte na formação de uma nova Constituição, do
que na criação das normas infraconstitucionais ou no gerenciamento do dia-a-dia do
governo.
A finalidade da teoria da democracia dual é impedir a concretização da “tirania da
maioria”, que de forma alguma pode ultrapassar os limites impostos pela Lei Maior,
cerceando os excessos cometidos pelos poderes estabelecidos. As decisões tomadas pela
491 “A democracia parlamentar também é dualista. Distingue o Poder Constituinte do poder ordinário e a lei suprema das leis ordinárias”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 199. 492 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.6.
360
maioria parlamentar, formada no parlamento (by their government), não podem contrariar a
vontade do povo (by the people), haja vista a superioridade desta em relação àquela. A teoria
do dualismo constitucional arrefece o princípio da maioria, importante dogma do regime
democrático, protegendo as decisões tomadas no processo constituinte porque elas são
concebidas como um momento crucial na vida da sociedade, configurando-se como um
contrato social que não pode ser revogado pelos legisladores ordinários.
A idéia monista de democracia parte do pressuposto de que o regime democrático se
consubstancia na soberania do parlamento. Como o Poder Legislativo foi eleito pelo povo,
ele pode exercer o plenary lawmaking authority, com a presunção de que agindo dentro dos
limites oferecidos pelo check and balances as suas leis são consoantes com a vontade
popular. Diante dessa concepção, as decisões da jurisdição constitucional que revogam as
leis feitas pelo Poder Legislativo exercem uma countermajoritarian difficulty.
A teoria monista da democracia não atribui aos direitos fundamentais o papel de
alicerce do ordenamento jurídico, nem ao menos considera-os como cláusulas pétreas do
ordenamento e por isto podem ser revogados pelo legislador ordinário. Bruce Ackerman
chama de rights foundationalists todos aqueles que defendem que a essência da Constituição
é a defesa dos direitos fundamentais.493
A crítica feita por Ackerman contra a concepção monista de democracia é que ela
investe o vencedor das eleições com plena autoridade, igual àquela que ostenta o We the
people. O que, segundo ele, não acontece com a concepção dualista de democracia. O ponto
em comum das duas teorias é que elas acreditam que o fundamento último do regime
democrático é o povo.A divergência reside em saber quando os legisladores podem agir de
forma plenipotenciária, ou seja, constituindo um Poder Constituinte.
A teoria da supremacia do parlamento, bastante difundida a partir das peculiaridades
da tradição inglesa, hodiernamente, perdeu a sua primazia para a teoria da supremacia da
Constituição, advinda da elaboração de um Poder Constituinte que é originário, autônomo e
493 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.11.
361
ilimitado. O Poder Legislativo não representa essa supremacia porque é um poder
constituído, sendo derivado, subordinado e limitado, devendo se ater aos parâmetros
estabelecidos pelos mandamentos constitucionais. O grau de legitimidade que aufere o Poder
Constituinte é muito mais intenso do que o grau de legitimidade que ampara a supremacia
do parlamento, o que leva a essa série de restrições impostas à atuação do Legislativo.
O papel desempenhado pelos Tribunais constitucionais depende para Ackerman de
qual a espécie de democracia preponderante. No período de normalidade democrática a sua
função é a de tutor dos valores agasalhados pela Constituição, devendo as decisões da
jurisdição constitucional se ater aos princípios fixados pelo Poder Constituinte. No período
de crise institucional, a sua função passa ao largo da função de guardião do ordenamento
jurídico, assumindo a incumbência de garantir que os cidadãos expressem a sua vontade no
processo constituinte.
De acordo com a concepção dualista, a jurisdição constitucional tem uma função
bipartida: atuando como higher lawmaking track, seu escopo é assegurar a formação do
Poder Constituinte, verificando a existência dos seus requisitos necessários; atuando como
lower lawmaking track seu escopo é garantir a adequação dos mandamentos
infraconstitucional ao preceituado na Constituição.
A jurisdição constitucional atua preponderantemente para proteger os princípios que
foram democraticamente escolhidos pelo Poder Constituinte para fazer parte da
Constituição, impedindo que eles sejam afrontados por aqueles que ocupam transitoriamente
o poder, contribuindo ainda para diferenciar as regulamentações elaboradas pelo we the
people das implementadas pelo We the politicians.
Diante da concepção bilateral de democracia, Ackerman nega a existência de uma
tensão entre o parlamento e o poder da jurisdição constitucional de invalidar as suas
decisões, negando a existência de uma tensão com o princípio majoritário, counter
majoritarian difficulty. Essa idéia advém da falsa concepção de que o Poder Legislativo
representa a soberania popular e que o regime democrático é sinônimo de soberania do
parlamento. Para ele, a soberania popular apenas se manifesta nos momentos de crise,
exigindo a participação dos cidadãos na formação do Poder Constituinte. Destarte, quando a
362
decisão da jurisdição constitucional considera nula uma lei proveniente do Poder Legislativo
não está fazendo uma afronta ao princípio majoritário, mas sim assegurando uma função
democrática de defesa da vontade do povo no processo constituinte.
A Constituição norte-americana contém duas estruturas que acomodam a tensão
entre o poder e a legitimidade. A primeira delas é o calendário eleitoral, que proporciona
uma rotatividade dos representantes populares, com regras pré-determinadas que antecipam
o desenvolvimento das eleições. A segunda é a separação dos poderes, entre a Câmara dos
Deputados, o Senado, a Presidência da República e a Suprema Corte. Por causa dessa real
separação de poder, é muito difícil que o resultado das eleições possa dar o controle a um
único partido de todos esses órgãos. Assim, as reformas pretendidas para a Constituição
devem ser estabelecidas com base em um amplo debate popular que possa acarretar um forte
consenso para que elas se realizem. O caso específico são as reformas implementadas no
New Deal, em que devido a um amplo debate popular, as suas medidas terminaram por ser
concretizadas. A separação de poder impõe como requisito para a realização das
modificações a formação de uma maioria perene, com respaldo na sociedade, para que com
base no convencimento de suas propostas, possa ser efetivadas.494
Essas duas estruturas que acomodam a tensão entre o poder e a legitimidade são os
propulsores do regime democrático porque possibilitam que os participantes do jogo
democrático continuem jogando com a finalidade de ocupar o poder e assim formar uma
estável maioria que garanta os seus objetivos.
Bruce Ackerman é um ferrenho crítico do modelo de reforma constitucional norte-
americano, que exige dois terços dos votos nas duas casas do Poder Legislativo e três
quartos dos Estados norte-americanos apoiando a proposta de emenda constitucional, com a
fiscalização da Suprema Corte, no exercício de sua jurisdição constitucional para verificar se
os requisitos foram atendidos. Dessa forma, ele acha que a soberania popular é fragilizada
porque alguns estados podem estorvar o processo de reforma, com base em seus interesses
particulares, em detrimento dos interesses nacionais. Planteia que o artigo quinto da
494 ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 384-386.
363
Constituição dos Estados Unidos falhou em acomodar as características nacionais na
identidade constitucional. As dificuldades para a concretização do higher law-making
servem apenas para aprofundar as crises constitucionais e aumentar as instabilidades sociais.
Para contornar esse estorvo à vontade dos cidadãos, ele propõe a criação da iniciativa
popular soberana. Proposta pelo Presidente, ela deveria ser aprovada pelo voto de dois
terços dos membros das duas casas legislativas. E depois, a iniciativa deveria ser posta em
votação em duas eleições presidenciais consecutivas. Aprovada em todas essas fases,
deveria ser apreciada pela Suprema Corte para verificar sua adequação aos parâmetros
constitucionais.495
Ackerman nota uma certa contradição nas decisões da Suprema Corte norte-
americana, nos anos noventa, no exercício da jurisdição constitucional, porque ao mesmo
tempo em que adota uma política de respeito aos direitos humanos dos cidadãos, permite
que o ativismo estatal assalte os direitos fundamentais da Constituição, afastando-se da
estreita avaliação judicial.496 Ou seja, não obstante a Suprema Corte garantir os direitos
fundamentais dos cidadãos, permite que muitos desses direitos sejam obnubilados pela
atuação dos órgãos estatais na sociedade, cerceando muitas vezes o exercício desses direitos,
o que ele chama de ativismo estatal. Para ele, essa maior atuação estatal apenas poderia
ocorrer se tivesse sido prevista pelo We the People.
O grande problema da teoria de Ackerman é que continuam sendo os tribunais
constitucionais que decidem se os requisitos estão presentes para a transmutação de uma
política ordinária para uma política constitucional. Como esses órgãos têm a última decisão,
podem deixar de exercer o papel de condutor do Poder Constituinte e ao invés impedir a sua
concretização.
Acerca da proteção dos direitos fundamentais a teoria da dualist democracy deixa a
desejar. O escopo principal da jurisdição constitucional é assegurar a vontade do we the
495 ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. . Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1998. P. 415. 496 ACKERMAN, Bruce. “Liberating Abstraction”. In: The Bill of Rights in the Modern State. Chicago: The University of Chicago Press, 1992. P. 318.
364
people, firmada no processo de criação da Constituição; os direitos fundamentais são
protegidos de forma reflexa como parte integrante da Carta Magna. Assim, há um retrocesso
porque as prerrogativas inerentes aos cidadãos não são mais consideradas como vetor para a
atuação da jurisdição constitucional. Os direitos fundamentais perdem seu lugar de alicerce
de legitimação do Texto Constitucional, ocupando a sua função à vontade do we the people
que ampara todas as normas contidas na Constituição, sem fazer menção à relevância
desempenhada por esses direitos.
Para a teoria dualista de democracia, os direitos fundamentais devem ser defendidos
pela jurisdição constitucional no lower lawmaking. Contudo, durante o processo de atividade
do Poder Constituinte, a jurisdição constitucional deixa de ter a função de proteger os
direitos fundamentais, incubindo-se de verificar se as condições para o surgimento de uma
nova Constituição foram satisfeitas. No processo de transconstitucionalização nada impede
que o Poder Constituinte possa reestruturar os direitos fundamentais e até mesmo suprimir
alguns deles. Para o professor da Universidade de Yale, os direitos fundamentais nem são
dados pré-políticos nem são derivados de uma deliberação política. Na verdade, são
definidos pela Constituição e podem ser modificados pelo Poder Constituinte.
A outra crítica que se faz à sua obra é que ela despreza o papel desempenhado pela
jurisdição constitucional em tempos de “política ordinária”, esquecendo a sua função de
defesa dos mandamentos constitucionais e alicerce da segurança jurídica, garantindo a
concretização dos direitos fundamentais e contribuindo para a resolução dos conflitos sociais
dentro dos parâmetros da legalidade. É na política ordinária que a jurisdição constitucional
pode aprimorar as suas decisões no sentido de garantir uma maior eficácia dos postulados
constitucionais, construindo canais de diálogo com a sociedade, oportunidade não
apresentada na “política constitucional” cuja função reside em permitir a fruição da vontade
popular soberana.
Formalmente, é difícil classificar Bruce Ackerman como um substantancialista ou
um procedimentalista com relação à legitimação da jurisdição constitucional. A priori, ele
destoa dos parâmetros da teoria substancialista porque, primeiro, não defende que a missão
profícua da jurisdição constitucional é a concretização de determinados conteúdos da
365
Constituição; segundo, nem pode ser classificado como procedimentalista, pois não defende
que a jurisdição constitucional tem a função de garantir as deliberações do regime
democrático ou os procedimentos do processo judicial.
Ele foi classificado como substancialista porque o fator teleológico da sua teoria é
garantir a vontade do we the people, cristalizada no texto constitucional. Então, o conteúdo
expresso pelas normas constitucionais tem preponderância em relação às normas
infraconstitucionais, realizadas pela “política ordinária”, velando a jurisdição constitucional
para a sua concretização normativa. O seu objetivo direto não é garantir determinado
conteúdo agasalhado pela Constituição, mas assegurar a efetivação da vontade do we the
people, protegendo, de forma indireta, o conteúdo estabelecido pela vontade popular na
construção da Lei Maior.
A essência do pensamento de Ackerman é asseverar a importância da supremacia
constitucional e sublinhar a preponderância da vontade do we the people sobre a vontade do
their the government. Essa conclusão não representa uma inovação para a teoria
constitucional brasileira que, mesmo que seja em sentido formal, reconhece a supremacia,
supralegalidade e imutabilidade relativa dos textos constitucionais. A relevância da sua
teoria consiste no fornecimento de novos elementos teóricos para a compreensão da
magnitude inerente às normas constitucionais, com uma maior densificação de sua
legitimidade auferida pelo Poder Constituinte, estabelecendo limites à atuação da maioria
parlamentar, representante da vontade do their the government, evitando a “tirania da
maioria”.
14.3) Argumentação Principiológica
Ronald Dworkin atualmente se configura como um dos mais prestigiosos
constitucionalistas norte-americano. A importância de sua obra é tão relevante que alguns
366
autores chegam a denominá-la de Dworkinism.497 Na sua obra, ele elabora uma teoria para a
fundamentação da decisão judicial que foge dos parâmetros impostos pela discricionariedade
dos juízes ou do formalismo Kelseniano, marcando a reaproximação do Direito com a
ética.498 Quando uma decisão judicial tiver que enfrentar um hard case os juízes não podem
decidi-la conforme seu livre arbítrio ou utilizar os cânones do formalismo jurídico. A
solução proposta é a utilização dos princípios que deixam um espaço aberto para a atuação
dos magistrados sem que essa extensão seja ilimitada.
A sua teoria possibilita a aplicação da jurisdição constitucional fundamentada em
princípios, garantindo a formação de um rule of law em detrimento de um rule of men. Os
elementos morais que direcionam a aplicação dos princípios constitucionais é que devem
estruturar uma concepção substancialista de jurisdição constitucional, relegando a sua
concepção meramente formalista. Sua teoria é considerada construtivista porque defende
que a interpretação deve ser guiada pelos princípios, em que a construção das decisões
judiciais, bem como toda a legislação infraconstitucional, deve ser compatível com esses
princípios.
Dworkin formulou uma teoria que procura legitimar a jurisdição constitucional de
forma racional, mostrando sua adequação com a concepção do rule of law. Tomando como
premissa que a jurisdição constitucional é estabelecida com base em um foro de princípios
constitucionais, os tribunais constitucionais têm a obrigação de atuar para garantir a
concretização de direitos fundamentais que foram adotados pelas normas principiológicas,
sem arrefecer o princípio da separação dos poderes. Ele não concebe a Lei Maior como um
sistema de regras, mas como um sistema de princípios, propondo um critério de jurisdição
constitucional com base nos elementos substanciais ofertados por esses princípios. 497 GOLDSTEIN, Leslie Friedman. In Defense of the Text. Democracy and Constitutional. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 1991. P. 3. 498 Assim expõe Gustavo Binenbojm: “A obra de Dworkin se insere, na verdade, em um movimento de retorno e revalorização do pensamento de Kant verificado nas últimas décadas do século XX, não apenas na filosofia do Direito como na filosofia política. A partir do que se convencionou chamar virada kantiana, dá-se uma reaproximação entre ética e Direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e o ressurgimento do debate sobre a teoria da justiça fundado no imperativo categórico, que “deixa de ser simplesmente ético para se apresentar também como imperativo categórico jurídico”. A idéia de dignidade da pessoa humana, traduzida no postulado kantiano de que cada homem é um fim em si mesmo, eleva-se à condição de princípio jurídico, valor-fonte do qual decorrem direitos fundamentais do homem que não podem ser relativizados em prol de qualquer projeto coletivo de bem comum”. BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira. Legitimidade Democrática e Instrumento de Realização. São Paulo: Renovar, 2001. P. 75-76.
367
Os casos mais difíceis que devem ser solucionados pelos juízes são os hard cases,
onde o seu espaço de deliberação se torna mais latente, o que não se configura uma
discricionariedade porque as decisões devem se ater ao conteúdo principiológico. Esses
casos são assim denominados porque são de difícil solução, já que as regras jurídicas não
podem ser aplicadas porque não se enquadram inteiramente ao fato concreto ou são, até
mesmo, contraditórias. Nessas situações, o poder de discricionariedade dos juízes ganha uma
maior dimensão, atuando os princípios jurídicos como diretrizes no encaminhamento de uma
decisão justa para solucionar a questão.499 Essas questões, que muitas vezes envolvem
litígios políticos, apenas podem ser resolvidas através de princípios, estruturados com base
na justiça e na eqüidade.
Para Ronald Dworkin, o ordenamento jurídico é formado por princípios, regras e por
diretrizes políticas. Os princípios apresentam um maior relevo do que as regras porque
fazem a conexão entre a esfera jurídica e a esfera moral e política e direcionam os juízes
para a solução dos casos mais difíceis.500 As regras têm taxionomia jurídica e uma
499 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 16 ed., Cambridge: Havard University Press, 1997. P. 327 e 328. 500 As regras são tópicas, ou seja, têm um campo delimitado de competência. Por isso, seu teor de abstração se torna reduzido e possuem uma maior determinabilidade. Elas não têm possibilidade de flexibilização, sua extensão assume uma proporção fixa e o seu conteúdo tem uma transparência jurídica nítida.
Os princípios têm uma textura ideológica mais forte, a conotação jurídica sofre uma influência sócio-política marcante. Fazem a translação entre a esfera social para a jurídica, advindo daí um caráter híbrido. Eles possuem considerável capacidade de elasticidade, seus limites podem ser ampliados ou reduzidos de acordo com a conjuntura social. Pelo seu grau de abstração (o que propicia um caráter polissêmico maior) e menor condição de determinabilidade, o conteúdo também sofre variações consonantes as conjunções sistêmicas do ordenamento e das vertentes sociológicas. Além disso, os princípios constitucionais têm função normogenética, servindo para a criação das regras.
Os princípios, pela característica de poder sopesar sua extensão, fornecem ao Texto Constitucional uma estrutura dialógica, capacitando as normas a solverem o desenvolvimento da sociedade e possibilitar sua sincronia com ela. Eles desempenham fundamental importância na eficácia da Lei Maior porque evitam a decrepitude das normas constitucionais.
A estrutura dialógica da Constituição propicia uma abertura horizontal e vertical. A abertura horizontal afronta o axioma da completude do sistema, ensejando o seu constante incremento. Este tipo de abertura expele os princípios da inclusão – do non liquet, e da exclusão, o que não está proibido está permitido – que são os alicerces da completude do ordenamento jurídico, defendido por Kelsen (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.4º ed., Trad. Dr. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976. P. 338).
Assim, pela variabilidade da sua extensão, os princípios se harmonizam, enquanto as regras podem se excluir. Uma maior ou menor extensão dos princípios deriva da legitimidade haurida na sociedade, possibilitando um balanceamento dos valores e interesses. Aqueles que se conectam com as denominadas invariáveis axiológicas têm uma eficácia constitucional mais sólida.
Outra ilação a que se pode chegar é que os princípios são compatíveis com vários graus de concretização de acordo com os condicionamentos fáticos e jurídicos. Quanto mais íntima for a relação dos
368
incidência tópica porque apresentam um reduzido grau de abstração. As diretrizes políticas
são oriundas das decisões das estruturas políticas da sociedade, traçando os objetivos que
devem ser alcançados pelos órgãos estatais.
Dessa forma se posiciona Dworkin diferenciado os princípios das diretrizes políticas:
“Eu chamo de diretrizes políticas esse tipo de standard que traça um objetivo para ser
alcançado, normalmente uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da
comunidade (também podem ser concebidas como negativas no sentido de que determinadas
características apresentadas na sociedade devem ser protegidas de mudanças adversas). Eu
chamo de princípios um standard que deve ser observado não porque represente um avanço
ou uma segurança considerados desejáveis nos aspectos econômico, político e social, mas
porque é um requisito de justiça ou equidade ou outra dimensão de moralidade”.501
A aplicação dos princípios constitucionais utilizados na jurisdição constitucional é
realizada de acordo com preceitos morais, abrangendo questões de justiça e de eqüidade.
Assim, os juízes ao prolatarem uma decisão judicial devem buscar na seara moral o
fundamento jurídico que guarde uma maior proximidade com o princípio que será utilizado
no caso concreto. Se por um lado, os princípios, igualmente como as regras, são obrigatórios
tanto para os juízes como para os advogados, apresentando igual coercitividade, por outro
lado, ostentam uma área de incidência diversa, não havendo possibilidade de se tratar de
forma igualitária sua abrangência porque os princípios têm um maior alcance do que as
regras.
Dworkin não nega que a jurisdição constitucional sofre injunções políticas, mas
tomando como prisma um conteúdo principiológico, pode-se chegar a uma “right answer”,
ou seja, a uma melhor resposta possível. Ele admite o vínculo entre o Direito, a moral e a
política; e com esses três elementos constrói sua teoria de legitimação das decisões
constitucionais. Dessa forma, os juízes não têm um poder absoluto, eles obrigatoriamente
devem realizar uma interpretação da jurisdição constitucional de acordo com o “fórum de
princípios com os valores predominantes na sociedade, maior o grau de concretização e conseqüentemente da realização constitucional. 501 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 16 ed., Cambridge: Havard University Press, 1997. P. 22.
369
princípios”. Uma outra limitação para o poder de aplicação da jurisdição constitucional são
os parâmetros vigorantes na moral política que direciona a sua atuação.
Ao mesmo tempo em que a seara jurídica não pode ser separada da seara política,
não se pode separar esses dois segmentos em compartimentos sem conexões recíprocas.
Contudo, necessita-se ressalvar que as decisões judiciais são questões de natureza
principiológica antes de serem questões políticas. Já a injunção de elementos morais deriva-
se da certeza de que os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos
perante os órgãos estatais.
Ele diferencia dois tipos de matérias: uma que é sensível à escolha, denominada de
choice-sensitive, preference-sensitive e outra que não é sensível à escolha, denominada de
choice-insensitive, preference-insensitive. As primeiras podem ser modificadas de acordo
com a vontade popular, enquanto que as segundas não podem ser modificadas pelas
preferências populares. Seguindo o seu raciocínio afirma que o parlamento e o governo são
mais preparados para decidir as questões referentes a choice-sensitive, e os juízes que
compõem a jurisdição constitucional, pela forma de seleção e pela exigência de um
substancioso cabedal de conhecimento, são mais bem preparados para decidir acerca de
choice-insensitive.
Ao diferenciar as matérias inerentes ao choise-sensitive e aquelas inerentes ao
choise-insensitive ele realiza uma diferenciação entre a linha de atuação da jurisdição
constitucional e a linha de atuação do Poder Legislativo. A este incumbe a função de atuar
com relação às normas, que têm uma fundamentação política, onde os agentes sociais atuam
de forma discricionária, sem a possibilidade de sofrer restrições por parte de decisões
judiciais, respeitando, obviamente, os mandamentos constitucionais. A seara de atuação da
jurisdição constitucional é aquela pertinente às normas que têm uma fundamentação
principiológica, em que as decisões judiciais têm a missão de assegurar que o Poder
Legislativo não irá macular o seu conteúdo.
A fundamentação do judicial review, segundo o mencionado professor, é proteger o
conteúdo principiológico, defendendo a proeminência dos arguments of principle em
detrimento do policies, dando prioridade aos direitos individuais com relação aos interesses
370
dos entes estatais. A jurisdição constitucional personifica o “fórum de princípios”, com a
missão de resolver os hard cases consonante uma sincronia com a “comunidade morais de
princípios”, inclusive este é o fundamento da sua legitimidade, cujas decisões judiciais
obrigatoriamente devem seguir o conteúdo principiológico firmado no âmbito moral.502 O
princípio escolhido deve ser aquele que, do ponto de vista moral, melhor se adeque à
estrutura das instituições e as decisões realizadas pela comunidade.
Divergindo de procedimentalistas como Habermas, Sunstein ou Ely, a legitimação da
jurisdição constituição não reside nos procedimentos do regime democrático, nem na
literalidade das normas jurídicas como plantearia os formalistas como Kelsen. O pilar de
legitimidade é estruturado com base em uma “comunidade moral de princípios”, de caráter
transcendental às normas jurídicas, cujas decisões da jurisdição constitucionais devem
buscar o arrimo de sua legitimidade.
Cabe aos juízes a função de identificar os princípios contidos na Constituição e a
cada geração, os novos juízes devem desenvolver esses princípios, alicerçados no judges’
personal philosophy. De acordo com a sua concepção, os juízes apresentam melhores
condições para refletir os valores morais contidos nos princípios constitucionais do que os
mandatários populares, em contraposição a John Hart Ely, que sustenta tese diametralmente
oposta. Os membros que compõem a jurisdição constitucional dispõem de melhores
condições para solucionar os litígios advindos da aplicação dos mandamentos
constitucionais porque são imparciais, sem uma participação ativa nos confrontos políticos,
e detêm de uma melhor qualificação técnica para tal incumbência.
Os elementos substanciais, utilizados por Dworkin, são formados durante a
assembléia constituinte, cristalizando uma “comunidade moral de princípios” que foram
escolhidos pela população mediante um processo político em que os cidadãos arduamente
discutem para chegar a um consenso comum sobre os princípios morais coletivos. Os
502 “O melhor que fazermos é trabalhar, abertamente, e com boa vontade, para que o argumento nacional de princípio oferecido pela revisão judicial seja o melhor argumento de nossa parte. Temos uma instituição que leva algumas questões do campo de batalha da política de poder para o fórum do princípio. Ela oferece a promessa de que os conflitos mais profundos, mais fundamentais entre o indivíduo e a sociedade irão, algum dia, em algum lugar, tornar-se finalmente questões de justiça. Não chamo isso de religião nem de profecia. Chamo isso de Direito”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 103.
371
cidadãos são considerados como agentes morais que estabelecem um consenso sob quais são
os princípios morais que devem nortear o funcionamento político da sociedade. Portanto, o
elemento aglutinador da sociedade são os princípios morais e não as condições sócio-
político-econômicas.
Ele personifica a “comunidade moral de princípios”, transformando-a em um pessoa
moral, fazendo com que ela possa agir de forma distinta dos cidadãos que a compõem e
permitindo que possa escolher qual o princípio que predomina em determinados casos. Ele
ainda defende que a Constituição pode ser considerada como formada por um único autor,
através de um condensamento dos princípios constitucionais mais imperiosos.
Essa “comunidade moral de princípios” é concebida dentro da integridade do Direito
(integrity).503 Dessa forma, todas as decisões da jurisdição devem ser tomadas com base em
um sistema coerente, influenciado pela doutrina e pela jurisprudência. A coerência do
sistema jurídico tem a finalidade de densificar a sua eficiência ao impedir o surgimento de
antinomias. A integridade do Direito é considerada como uma virtude política, decorrente de
uma comunhão principiológica decidida pelos cidadãos, densificando a legitimidade
auferida pelo sistema jurídico, principalmente pela jurisdição constitucional. Igualmente, a
integridade se mostra imprescindível para uma interpretação construtivista das práticas
jurídicas, pois oferece melhor condição de dirimir os hard cases.504
A teoria de Dworkin é denominada de comunitária, pois o alicerce da ação coletiva
não é a ação individual, mas aquela atribuída à comunidade que tem autonomia frente aos
indivíduos, embasada sobre uma ética da responsabilidade com relação às decisões coletivas
em que os cidadãos têm que arcar com o ganho ou a perda decorrente da sua escolha. Parte
do princípio, desenvolvido por Rousseau, da vontade geral para firmar uma comunidade
503 “Será útil dividir as exigências da integridade em dois outros princípios mais práticos. O primeiro é o princípio da integridade na legislação, que pede aos que criam o direito por legislação que o mantenham coerente quanto aos princípios. O segundo é o princípio de integridade no julgamento: pede aos responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e façam os responsáveis por decidir o que é a lei, que a vejam e façam cumprir como sendo coerente nesse sentido”. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 203. 504 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 260-261.
372
ética, formada pelos juízos valorativos dos indivíduos que obtêm maior consenso na
sociedade.505
A democracia somente pode ser concretizada quando houver respeito aos princípios
de participação de cada cidadão, dentro de um processo coletivo de decisão em que cada
interesse particular seja considerado. Sua concepção de democracia é comunitária
integrativa, sustentando que essa forma de regime político é essencial para concretizar os
direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, a participação política dos cidadãos é um
requisito imprescindível para a concretização de uma verdadeira democracia.
Os direitos fundamentais, uma das finalidades precípuas da jurisdição constitucional,
não são alicerçados por regras jurídicas, mas através de princípios morais que são
estabelecidos pela “comunidade moral de princípios”. Assim, os direitos fundamentais
configuram-se como transcendentes porque seu fulcro está nos princípios morais,
asseverando sua taxionomia de direitos morais antes de direitos jurídicos. Normalmente, os
direitos morais escolhidos pela comunidade de princípios são traduzidos por normas
jurídicas, o que não impede que alguns deles não encontrem amparo no ordenamento
jurídico, adquirindo um caráter transcendente. Pela sua importância, os direitos
fundamentais não são passíveis de escolha pela maioria da população através do princípio
majoritário, caracterizando-se pelos direitos choice insensitive or preference insensitive.
O ideal abstrato de democracia e o princípio majoritário não têm a importância que
lhes é dada por John Hart Ely, por exemplo, ao transformar a democracia em um cálculo
numérico.506 Esses princípios não são absolutos, assumindo primazia os direitos
fundamentais que se configuram em uma matéria regulamentada pelo conteúdo
principiológico. Dworkin não os relega, considera-os como princípios importantes do Estado
de Direito, mas sem poder determinar o conteúdo dos direitos fundamentais. Sempre que o
505 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. 5 ed., Trad. Antônio de P. Machado. São Paulo: Brasil Editora, 1958. P. 119. 506 “Nesta sessão sustento que o ideal abstrato de democracia, em si mesmo, não oferece nenhuma sustentação maior para uma doutrina da revisão constitucional baseada no processo que para uma baseada nos resultados”. DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. Luiís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 82.
373
posicionamento da vontade da maioria se chocar com os princípios exigidos pela moralidade
política estes devem prevalecer em detrimento daqueles.
As críticas à teoria de Dworkin sustentam que, com base nos princípios contidos na
Carta Magna, o órgão que exerce a jurisdição constitucional adquire um grande poder para
realizar livremente suas decisões judiciais, limitando as funções do Poder Legislativo. O
papel que é delegado por Dworkin aos juízes, superdimensionando suas prerrogativas, ao
qual cabe, confiando nas suas habilidades pessoais, garantir que os preceitos morais contidos
nos princípios jurídicos tenham concretização, também sofre bastante oposição. Com isto,
delega-se aos juízes um poder discricionário muito vasto, sem que haja limites para a sua
extensão. Cass Sunstein se configura como um dos opositores à magnitude de funções que é
atribuída aos juízes, por Dworkin. Para o defensor do basic rights of political participation,
os juízes não são cidadãos comuns mas também não podem ser considerados como
filósofos, não podendo a jurisdição constitucional substituir as esferas públicas de debate nas
soluções de casos judiciais que produzam antagonismos sociais.507
Em segundo lugar, há uma lógica de perversão do processo democrático, haja vista
que um órgão sem legitimidade popular irá tomar decisões políticas de grande influência.
Em nenhum momento da sua teoria, ele menciona instrumentos de democracia participativa
que pudessem controlar as decisões dos Tribunais constitucionais. Obedecendo às decisões
da jurisdição constitucional, através de uma lógica interna, sem o estabelecimento de contato
com a realidade social, os seus posicionamentos tendem a ser vistos como atos arbitrários,
pois inexistem mecanismos de legitimação social. O núcleo principiológico fundamental da
Constituição é subtraído do processo democrático, cabendo aos órgãos da jurisdição
constitucional decidir a seu respeito.
Autores como Frank Michelman não aceitam a concepção do Direito como integrity,
segundo o qual a integridade de um ordenamento jurídico pode ser apresentada como obra
de um único legislador, devido aos princípios que formam a sua estrutura. Argumentam que
esse é um trabalho impossível de ser realizado, haja vista que a Constituição é o produto de
uma ação coletiva, formada por vários autores sociais, com os mais variados interesses.
507 SUNSTEIN, Cass R. Legal Reasoning and Political Conflict. New York: Oxford University, 1996. P. 4.
374
Discute-se qual o critério para diferenciar as matérias sensíveis à escolha, e quais
aquelas que são insensíveis porque a Constituição não traria esse tipo de distinção. O temor
é que essa distinção seja feita pelo órgão que exerce a jurisdição constitucional e,
obviamente, teria uma interpretação extensiva, concentrando muito poder nas suas mãos.
Poderiam ser estabelecidos critérios com base no conteúdo das normas constitucionais ou na
sua estrutura?
Em decorrência dos seus posicionamentos, Ronald Dworkin pode ser denominado
como um liberal-democrático, ressaltando a sua defesa em prol dos direitos individuais e das
minorias. Nesse ponto específico, a crítica realizada, principalmente tomando como
parâmetro a realidade brasileira cuja sociedade apresenta grande desigualdade social, é no
sentido que ele privilegia os direitos individuais, em detrimento das políticas públicas que
podem amparar os hipossuficientes. Como para a sua teoria os dois principais direitos que
devem ser protegidos pela jurisdição constitucional são a liberdade e a democracia, passíveis
de serem concretizadas por atuações negativas dos órgãos estatais, a defesa de uma postura
mais ativa para a concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão, por parte de
decisões judiciais, não faz parte do seu escopo, o que significa uma deficiência para as
necessidades pátrias.508
14.4) Elementos Constitucionais Essenciais
Apesar de a teoria da justiça de John Rawls ser uma teoria procedimental, buscando
a superação das teses baseadas no jusnaturalismo e naquelas que advogam a ausência de
preceitos ontológicos, ele recorre aos constitucional essentials para que, através de
elementos substantivos, apesar de apresentarem taxionomia relativa e não absoluta, corrija
os desvios de uma teoria procedimental sem referenciais mínimos. Essa aparente contradição
deve ser analisada dentro da evolução da obra de Rawls já que o livro “Uma Teoria de
508 DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue. The Theory and Practice of Equality. Cambridge: Harvard University Press, 2000. P. 211.
375
Justiça”, no qual exprime a sua teoria procedimental de justiça, data de 1971, enquanto
“Liberalismo Político”, em que concebe a teoria dos elementos constitucionais essenciais,
data de 1993. O próprio Rawls admitiu na introdução da edição espanhola do “Liberalismo
Político” que as modificações efetuadas são uma resposta às modificações efetuadas no
panorama global.509
Ele percebeu que mesmo uma teoria procedimental de justiça necessita de alguns
limites substanciais para que possa funcionar à contento, com a realização de alguns
objetivos considerados como imprescindíveis.Os elementos constitucionais essenciais têm a
finalidade de evitar que um modelo procedimental possa colidir contra preceitos
considerados essenciais e imprescindíveis para a construção de um conceito de justiça.510 Os
constitucional essentials se configuram em elementos substantivos que garantem um
conteúdo mínimo à sua teoria procedimental de justiça.
A idéia do liberalismo político de Rawls é que a jurisdição constitucional deve ser
exercida com a finalidade de realizar a razão pública e essa razão deve ser construída pelo
órgão que prolata as suas decisões judiciais.511 Para ele, a Suprema Corte é o órgão que deve
servir de paradigma para concretizar a razão pública, sendo plenamente compatível com o
seu papel de intérprete da Constituição. Toda a atuação da Suprema Corte ou corte
constitucional que exerce a jurisdição constitucional deve ser baseada na razão pública e,
portanto, as suas decisões devem ser explicadas e justificadas com alicerce na Constituição.
509 “Certamente poderia aparecer que o objetivo e o conteúdo dessas conferências representam uma modificação importante na teoria formulada no meu livro “Teoria da Justiça”. E, na verdade, como eu já indiquei há relevantes diferenças. Mas para entender a índole e o alcance destas devemos considerar que surgem no intento de resolver um sério problema inerente a justiça como imparcialidade; a saber, surge do fato de que a explicação para a estabilidade contido na terceira parte do livro “Teoria da Justiça” não é mais congruente com o panorama global. Penso que todas essas diferenças neste aspecto são conseqüência de se tentar dissipar tal incongruência”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Sérgio René Madero Báez. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. P. 11. 510 “O consenso sobreposto, por sua vez, deve ter seus princípios fundados numa concepção política de justiça, indo além dos princípios políticos que estabelecem o procedimento democrático, incluindo princípios que cubram a estrutura básica da sociedade como um todo, através do estabelecimento de direitos substantivos como a liberdade de consciência e liberdade de pensamento, igualdade de oportunidade e princípios cobrindo certas necessidades essenciais”. VILHENA VIEIRA, Oscar. A Constituição e sua Reserva de Justiça. Um Ensaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 209. 511 A etimologia da expressão razão pública deixa entrever que existem outras razões que não pertencem ao espaço público, sendo razões de natureza privada, como aquelas que são pertinentes às associações civis.
376
O liberalismo político tem como requisito para a sua construção teórica, que a Lei
Maior seja fruto de uma criação democrática, em que todos os setores da sociedade tenham
oportunidade de participar da sua elaboração. Teoricamente, cada cidadão deve ter igual
poder político. Como conseqüência, o poder político deve ser exercido de acordo com os
princípios constitucionais, privilegiando o debate público no qual as decisões mais
importantes devem ser tomadas. A legitimidade do poder político também é importante para
a teoria analisada, consistindo em um dever moral dos cidadãos explicar de forma racional,
aos demais, as questões primordiais da vida política. As escolhas políticas devem ser
tomadas com arrimo nos valores políticos que foram adotados pela Constituição.
A razão pública se configura como apanágio dos regimes democráticos, cujas
decisões políticas são tomadas pelo povo, no sentido de alcançar o bem comum. Ela é assim
considerada porque se constitui em um bem público, pertencente à coletividade, formada
pelos cidadãos; seu conteúdo de igual forma é público porque é constituído de princípios
decorrentes da concepção que a sociedade tem de justiça política, sedimentados na sua base.
Como as sociedades hodiernas são plurais, refletindo uma divisão econômica, social,
cultural, religiosa etc, a formação de consensos sociais que orientarão a razão pública
necessita do desenvolvimento de espaços públicos de discussão, que somente podem
florescer em um regime democrático.
Um dos apanágios relevantes da razão pública é a sua imparcialidade, que representa
um importante fator para a sua legitimidade. Se o órgão que exerce a jurisdição
constitucional não pautar suas ações pelo dogma da imparcialidade, a aquiescência as suas
decisões na sociedade sofrerá um decréscimo, o que conseqüentemente diminuirá a eficácia
dos mandamentos constitucionais e principalmente dos elementos constitucionais essenciais.
A dificuldade de se atrelar à jurisdição constitucional a realização de um objetivo é
definir o seu conceito, impondo limites à interpretação para garantir estabilidade ao
ordenamento jurídico. O conteúdo da razão pública para Rawls é definido através de uma
concepção política de justiça, centrada no seu aspecto de equidade. A concepção política de
justiça é alicerçada nos seguintes aspectos: liberdades e oportunidades básicas para todos os
cidadãos, independente de classe social, convicção ideológica ou credo religioso; que essas
377
liberdades e oportunidades básicas sejam construídas sob o fundamento de propiciar o bem
geral para todos os cidadãos; que existam instrumentos assecuratórios de que essas
liberdades e oportunidades básicas serão concretizadas.
Para se entender essa concepção, de cunho ideológico liberal, é necessária a
construção de diretrizes que especifiquem a forma de concretização da razão pública. Essas
diretrizes constam de duas partes: de princípios substantivos de justiça, que incidem na
estrutura básica da sociedade – mesmo não apresentando uma taxionomia absoluta porque
são relativos, é inquestionável seu teor substancial; e as diretrizes de indagação que
delineiam a forma como os cidadãos devem decidir e aplicar de maneira adequada os
princípios substantivos – apresentando natureza procedimental para possibilitar que as
discussões realizadas nos espaços públicos possam chegar a um consenso.
Destarte, a concepção política de justiça é formada de duas partes, que possuem
idêntico valor, sendo partes concomitantes de um acordo único. A primeira compõem-se de
princípios de justiça substancial, formados pelas estruturas de base – que englobam todas as
principais instituições políticas, sociais, econômicas, cujas funções mantêm áreas de
interseção nas suas atuações, dentro da sociedade de forma difusa. A segunda compõem-se
de regras procedimentais, princípios e regras racionais, chamados de regras de orientação,
cuja função é esclarecer aos cidadãos o modo de aplicação dos princípios substanciais para
escolher as leis e as políticas que melhor lhes satisfaçam.512
A finalidade de conectar a concepção política de justiça aos princípios fundamentais
e às regras procedimentais de orientação é densificar a legitimidade popular ao conteúdo da
razão pública. A teoria de Rawls é substancialista, na medida em que procura legitimar a
jurisdição constitucional com base em uma determinada substância, ou seja, o conteúdo da
justiça substancial, concretizado nos elementos constitucionais essenciais. As regras de
orientação, que apresentam uma nítida taxionomia procedimental, não obnubilam o caráter
substancial da teoria de Rawls porque servem para garantir o debate da razão pública, sem
interferir na concretização dos elementos substanciais, muito pelo contrário, são requisitos
para a sua realização.
512 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 192.
378
Os princípios substanciais de justiça, como já mencionamos, não são absolutos, são
preenchidos de acordo com as decisões tomadas pelo Poder Constituinte. Esses princípios
substancias de justiça ao serem concretizados na Carta Magna formam os elementos
constitucionais essenciais que constituem o vetor da atuação da jurisdição constitucional
porque apresentam uma ampla legitimidade no seio da sociedade.
O núcleo ontológico da razão pública são os elementos constitucionais essenciais,
que são os princípios substanciais de justiça, normatizados no texto da Constituição. Esses
vetores não podem ser descurados, sob hipótese alguma, na atuação da jurisdição
constitucional porque têm a função de preservar a sua racionalidade. O conteúdo dos
elementos constitucionais essenciais deve ser oriundo de um amplo consenso social que é
realizado na feitura da Constituição, propiciado pelas especialíssimas condições ensejadas
na formação do Poder Constituinte.
Os elementos constitucionais essenciais para o liberalismo político de Rawls são de
dois tipos: “a) princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do
processo político, definindo os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a estipulação de
limites ao governo formado pelo princípio da maioria; b) igualdade de direito e liberdade
fundamental de cidadania, que a maioria parlamentar deve respeitar: direito de voto e de
participação ativa na política, liberdade de consciência, de pensamento e de associação,
proteção do princípio da legalidade, assim como as garantias estipuladas pelo Estado de
Direito”.513
Pode-se facilmente depreender, que o principal elemento para a definição da razão
pública são os elementos constitucionais essenciais e a função basilar da jurisdição
constitucional é a garantias desses elementos, sendo eles o guia para a sua atuação e o seu
principal fundamento de legitimação.
Segundo Rawls, os limites da razão pública não se encontram claramente definidos
no conteúdo de uma estrutura normativa, em uma visão estreitamente normativa, havendo da
mesma forma limites históricos e sociais que restringem a atuação da razão pública. São
513 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 195.
379
elementos constitucionais, que servem ao mesmo tempo de limite e de orientação para a
razão pública, comportando-se como invariáveis axiológicas que são aceitas pelos mais
diversos extratos sociais, inerentes principalmente ao regime democrático. A função
primordial da razão pública é garantir a concretização dos direitos constitucionais essenciais,
embasados por princípios de justiça.514
O órgão que deve zelar pela implementação da razão pública, na teoria de Rawls, é a
corte constitucional, que exerce o papel de mais alta esfera de interpretação das normas
constitucionais, porém não é o intérprete exclusivo da Constituição. Ele fundamenta seu
posicionamento em cinco pontos principais: na distinção entre poder constituinte, que tem a
função de estabelecer as linhas fundamentais de um novo regime e o poder ordinário,
exercido na política quotidiana; na distinção entre leis constitucionais e leis
infraconstitucionais, em que estas têm que se adequar àquelas devido a sua supralegalidade;
que uma Constituição democrática expressa a idéia política de um povo, cabendo à razão
pública articular este ideal; no fato de que as Constituições modernas trazem uma declaração
de direitos que estabelece elementos constitucionais essenciais, configurando-se como uma
garantia para os cidadãos; que em um Estado Democrático Social de Direito o poder não é
exercido apenas por uma corte suprema, ou pelo Poder Legislativo, mas pelos três poderes
que têm que prestar contas de sua atuação ao povo.
Munindo-se da teoria da dupla democracia de Bruce Ackerman, Rawls defende que a
função da jurisdição constitucional é a proteção do conteúdo estabelecido no processo
constituinte e alcomatado na Carta Magna, e essa atuação deve ser direcionada de acordo
com a razão pública, impedindo que as leis constitucionais possam ser desrespeitadas pelo
legislador ordinário, que não dispõe de legitimidade suficiente para tal, pois se ampara em
uma maioria transitória. Ele discorda das assertivas de que a jurisdição constitucional exerce
uma atividade antidemocrática quando anula leis infraconstitucionais por estarem em
desacordo com a Constituição. Afirma que antidemocráticas são as leis infraconstitucionais,
514 “A primeira afirmação dos dois princípios é a seguinte: primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos”. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 64.
380
que não ostentam o grau de legitimidade da Lei Maior, e, em alguns casos, têm conteúdo
conflitante com os seus postulados.
A interpretação realizada pelo tribunal constitucional deve ser feita de acordo com os
princípios da razão pública, baseando-se em argumentos racionais e com base nos elementos
constitucionais essenciais, com o objetivo de defender a Constituição, exercendo uma
função instrumental. Entretanto, Rawls defende um papel mais atuante do órgão que exerce
a jurisdição constitucional, no sentido de que ele deve, não apenas defender os mandamentos
constitucionais, mas atuar como paradigma institucional determinando o conteúdo da razão
pública em cada um dos casos concretos. A razão pública somente pode ser definida pelo
órgão que exerce a jurisdição constitucional, sem nenhuma intervenção dos outros poderes
estabelecidos.515
Nesse sentido, a teoria de Rawls apresenta um avanço porque não restringe a atuação
da jurisdição constitucional apenas ao seu sentido negativo ou positivo – mesmo que em
relação a fazer valer a razão pública – abrangendo ainda uma função pedagógica,
estimulando as discussões que se realizam nos espaços públicos da sociedade, mediante os
quais são formados os consensos sociais.516
Os direitos fundamentais para o liberalismo político de Rawls não abrange as suas
cinco dimensões, principalmente aqueles direitos sociais que exigem uma intervenção mais
nítida dos órgãos estatais para a sua realização. Claro que ele fala em assegurar aos cidadãos
condições mínimas para que eles possam participar de forma “livre”das decisões políticas,
que denomina de “mínimo social”, mas de forma muito genérica.
Os direitos fundamentais que ocupam um lugar proeminente na sua teoria são
aqueles de primeira dimensão, pertinentes aos direitos civis e de participação política. Para
515 “Dizer que a Corte Constitucional é o paradigma da razão pública significa também que os juízes, usando a consciência daqueles que escreveram a Constituição e os procedentes constitucionais, devem procurar desenvolver e exprimir nas suas decisões racionais a melhor interpretação possível, em que a melhor interpretação possível é aquela que melhor se adapta aos corpus material da Constituição pertinente e a justifica nos termos da concepção pública de justiça”. RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 201. 516 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Sérgio René Madero Báez. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. P. 224.
381
ele, os princípios da isonomia e das liberdades fundamentais e aqueles que exprimem a
desigualdade social e econômica desempenham papéis coordenados: os primeiros garantem
iguais direitos de liberdade e iguais direitos fundamentais para que os cidadãos possam
participar do processo político de forma justa; os segundos atuam em uma sociedade onde os
seus membros são livres e iguais em direitos, para garantir a aplicação da justiça distributiva,
com relação ao mérito de cada um dos cidadãos.
Dentre as teorias substancialistas de legitimação da jurisdição constitucional a teoria
esposada por Rawls, fundada nos elementos constitucionais essenciais, é aquela que oferece
uma menor eficiência na garantia dos direitos fundamentais. Primeiro, porque pairam
dúvidas sobre a exata definição do que venham a ser os elementos constitucionais essenciais,
havendo uma forte analogia com o conceito de constituição material. E segundo, porque os
direitos fundamentais, que exigem uma prestação mais ativa por parte do Estado, como os
direitos sociais, não foram tipificados como elementos constitucionais essenciais o que, para
a realidade brasileira, mostra-se como uma grassa deficiência.
Não obstante, a convicção da necessidade de existência de elementos constitucionais
essenciais para a garantia de concretização de um conteúdo mínimo da Constituição, como é
defendido por Rawls na construção de sua teoria de justiça, mostra-se, indubitavelmente,
como um avanço, no sentido de assinalar que mesmo em uma teoria procedimental deve
existir um conteúdo substancial mínimo para garantir a concretização de determinados
direitos fundamentais. A teoria dos elementos constitucionais essenciais de Rawls é uma
tentativa de entrelaçar a legitimação da jurisdição constitucional, baseada nos direitos
fundamentais, com a teoria de legitimação procedimental, cujo alicerce reside nos
procedimentos do regime democrático.
382
15.) Jurisdição Constitucional versus Regime Democrático
O aumento na esfera da atuação estatal, considerada como uma tendência irreversível
do Estado Democrático Social de Direito, provoca em várias searas um choque entre a
atividade da jurisdição constitucional e o regime democrático, o que engloba as estruturas
que representam a democracia representativa. O objetivo desse capítulo é explicitar que a
maior incidência da atuação da jurisdição constitucional, para garantir a concretização dos
direitos fundamentais, não arrefece o regime democrático, muito pelo contrário, aprimora o
seu funcionamento. Assim, será delineado os pontos de conflito entre a esfera política e a
esfera jurídica, especificando as zonas de aparente atrito, onde o princípio majoritário se
confronta com a jurisdição constitucional para que a eficácia dos comandos constitucionais
não reste prejudicada.
O princípio majoritário é um dos componentes da legitimação da jurisdição
constitucional, mas não é o único. Um assentimento mais denso da tutela constitucional
pode ser aferido pelos direitos fundamentais que formam invariáveis axiológicas mais
consolidados do que o princípio majoritário que é muito cambiante. Não obstante, o
princípio majoritário se configura em um elemento essencial para o funcionamento do
regime democrático e não pode ser relegado.
A função da jurisdição constitucional como instrumento de garantia dos dispositivos
constitucionais é uma realidade que paira acima de qualquer crítica, mormente em países
cujas Constituições são rígidas, separando de forma nítida as normas constitucionais das
normas infraconstitucionais. Indubitável o seu papel para o desenvolvimento de um Estado
Social Democrático de Direito, fazendo com que a Lei Maior possa ser aplicada
integralmente. Todavia, a Corte Constitucional não pode ser um órgão preponderante em
relação aos outros poderes e até mesmo acima das leis constitucionais. A sua seara de
atuação está circunscrita a um fator teleológico: a aplicação dos mandamentos
constitucionais, densificando a concretude dos direitos fundamentais.
383
A maior incidência de atuação da jurisdição constitucional não é um mal em si, mal é
a ausência de legitimidade de suas decisões, a afronta de postulados constitucionais ou o
cerceamento dos direitos fundamentais. As decisões judiciais têm que ser tomadas a partir de
um processo que promova amplas discussões na sociedade para que ela possa realizar a
formação política de um consenso, tomando como parâmetro as normas jurídicas.
Importante problema que pode ser suscitado pelo maior desenvolvimento das
decisões da jurisdição constitucional é que esse processo pode reduzir o espaço das decisões
políticas, com uma intromissão indevida, sem amparo nem dos mandamentos legais, nem
nas atividades dos agentes políticos. Com uma maior ou menor representatividade, os
membros do Poder Legislativo e do Executivo foram eleitos pelo povo, submetendo-se à
vontade popular quanto têm que disputar uma eleição, enquanto os membros que compõem
a jurisdição constitucional não são eleitos e não têm que cumprir a vontade da população. A
essência da questão é delimitar até que ponto as decisões da jurisdição constitucional podem
limitar as atividades realizadas pelos agentes políticos.
As cortes e os tribunais constitucionais não são o oráculo da vontade popular, nem
muito menos o censor do regime democrático. Eles desempenham um importante papel no
sistema político, mas não podem substituir o espaço público onde as discussões devem ser
travadas, impedindo a cidadania de chegar a um consenso. É através do confronto político
que a sociedade pode chegar a determinados acordos e realmente realizar uma pacificação
social. Quando há uma decisão da jurisdição constitucional que não respeita o caráter
dialógico do procedimento judicial, impondo uma decisão que extrapola as normas
constitucionais, pode essa decisão produzir ainda mais conflitos sociais.
É importante ressaltar que, de modo algum, afirmar-se que as decisões da jurisdição
constitucional devem se atrelar ao sentimento da opinião pública. Os preceitos normativos
contidos na Constituição não podem ser obnubilados. Todavia, as decisões não podem
substituir o debate democrático das questões como forma de se chegar a um consenso, que
se configura como um dos apanágios da democracia.
Para resumir tudo o que foi dito até agora, bastantes expressivas são as palavras de
Zagrebelsky: “Existe hoje realmente uma grande responsabilidade dos juízes na vida do
384
Direito, não conhecida nos ordenamentos do Estado de Direito legislado. Mas os juízes não
são os patrões do direito no mesmo sentido de que os legisladores não o eram no século
passado. Eles são, propriamente, as garantias da complexidade estrutural do Direito no
Estado Constitucional, ou seja, são necessários para a coexistência harmônica entre lei,
Direito e Justiça. Podemos, assim, dizer de forma conclusiva que entre o Estado
Constitucional e qualquer tipo de “patrão do Direito” há uma radical incompatibilidade. O
Direito não é objeto de propriedade de um, mas deve ser objeto de tantos quantos queiram
dele cuidar”.517
Como conclusão pode-se afirmar que a jurisdição constitucional não é
intrinsecamente contrária ao regime democrático, seu funcionamento, tomando como
parâmetro a Constituição, ajuda a fortalecer a participação popular nas decisões políticas e
incentiva a consolidação da democracia. Considerando que os direitos inerentes à cidadania,
de quinta dimensão, fazem parte dos direitos fundamentais e sendo esses direitos uma das
bases da legitimação da jurisdição constitucional, não pode haver anacronismos entre a
tutela da Constituição e a participação política dos cidadãos, já que um constitui pressuposto
do outro.
15.1) A Tensão entre o Político e o Jurídico
O exercício da jurisdição constitucional pelos tribunais constitucionais pode
ocasionar uma tensão entre a esfera política e a esfera jurídica, pondo em evidência
diferentes níveis de legitimação e suscitando algumas perguntas: as razões jurídicas devem
preponderar em detrimento das motivações políticas ou as motivações políticas devem
preponderar em detrimento das razões jurídicas? Quais os limites para o exercício de
decisões judiciais que contrariam o posicionamento dos agentes políticos? Como um órgão
que não recebe legitimidade direta do sufrágio universal pode controlar um outro órgão que
517 ZAGREBELSKY, Gustavo. Il Diritto Mite. 2 ed., Torino: Einaudi. 1992. P. 213.
385
é estabelecido diretamente pelo povo ? A resposta a estas perguntas pode começar a ser
delineada na análise das diferentes funções e dos diversos princípios que orientam essas
duas searas.
O conflito entre a seara política e a seara jurídica esconde na verdade um conflito
entre duas funções – a função fiscalizadora do órgão que exerce a jurisdição constitucional e
a função de legislar por parte dos membros do legislativo518 – e dois princípios que, apesar
de estarem em várias oportunidades em lados opostos por conjunturas fáticas – o princípio
majoritário e o princípio da supralegalidade constitucional –, têm em comum a sua
construção a partir do princípio da soberania popular, sendo que o segundo ostenta um valor
mais densificado por ser oriundo do Poder Constituinte.
A dicotomia entre a esfera política e a jurídica não tem uma taxionomia antípoda na
relação entre eles, variando muito de acordo com as condicionantes sócio-político-
econômicas. Essa tensão existe porque a jurisdição constitucional exerce a função de
adequar as decisões políticas as diretrizes estabelecidas pela Constituição. Todavia, algumas
decisões judiciais ao invés de cercear as decisões política, maculando-as de
inconstitucionais, pode solidificá-las, ao afirmar, por exemplo, a constitucionalidade de
determinadas medidas imputadas como inconstitucionais por outros órgãos judiciais.
Os dois princípios são compatíveis e sincrônicos quando há um respeito pelas
normas constitucionais, prevalecendo o princípio da supralegalidade constitucional todas as
vezes que o princípio majoritário afronta a Constituição e não obtém legitimidade suficiente
para o processo de transconstitucionalização.519
É inegável que o Poder Legislativo e o Supremo Tribunal Federal possuem
estruturação, composição e princípios diversos, o que não significa que não possam trabalhar
518 “Em primeiro lugar, parto do princípio de que existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é um mero executor da Constituição”. VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 76. 519 SALDANHA, Nelson. O Poder Constituinte. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 78
386
de forma harmônica, com seus campos de atuação delimitados. O primeiro, como é
legitimado diretamente pelo princípio da soberania popular, tem a função de representar os
interesses da maioria; o segundo, que não pode ser legitimado diretamente pela soberania
popular, tem o escopo de concretizar os mandamentos constitucionais, protegendo os
interesses da minoria que encontra respaldo na Constituição. Ambos devem exercer as suas
atividades em sincronia para que tanto a maioria quanto a minoria tenham seus direitos
preservados.
Tanto o Poder Legislativo como o Supremo Tribunal Federal são órgãos
importantíssimos para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, ajudando a encontrar
soluções que possam resolver o grave problema de exclusão social que aflige a sociedade
brasileira. A grande conexão entre esses dois órgãos deve ser estabelecida no sentido da
defesa dos direitos fundamentais, que é o requisito essencial para a construção da sociedade
desejada por todos os brasileiros.
O problema consiste em como delimitar o espaço de atuação da jurisdição
constitucional e do Poder Judiciário para que o espaço político não seja arrefecido, porque
de acordo com o posicionamento defendido por Oppenheim toda interpretação judicial é
uma forma de criação normativa.520 Quando há uma decisão judicial, segundo o mencionado
autor, há uma produção jurídica, que adentra na competência do Poder Legislativo, e,
portanto, causa um arrefecimento da seara política, o que ocasiona um conflito entre essas
duas dimensões.521
A função da jurisdição constitucional não é a de criar normas constitucionais,
cabendo-lhe interpretá-las, se bem que é difícil distinguir quando há a realização de uma
produção jurídica ou uma interpretação judicial, por isto, que a composição do órgão que
exerce a jurisdição constitucional deve ser a mais democrática possível. 520 OPPENHEIM, Felix E. “The Judge as Legislator”. In: Cognition and Interpretation of Law. Torino: Giappichelli, 1995. P.293. 521 Também defende a mesma premissa Eugenio Bulygin: “A cognição legal é limitada pela determinação do conteúdo estipulado pelo princípio geral aplicado ao caso concreto, mas como existem várias possibilidades de aplicação, nas quais o juiz pode escolher uma para incidir no caso proposto, então, diversas normas podem ser criadas do mesmo princípio geral [...] desde que todas elas estejam se desenvolvendo dentro dos parâmetros da norma geral, o ato de escolher uma dentre essas possibilidades não é um ato de cognição, mas um ato de criação: é uma decisão política”. BULYGIN, Eugenio. “Cognitio and Interpretation of Law”. In: Cognitio and Interpretation of Law. Giappichelli: Torino, 1995. P. 14.
387
Embora seja oportuno frisar novamente que analisar a natureza da interpretação
judicial foge dos limites estipulados para o tema proposto, o que não quer dizer que toda
interpretação judicial possa ser considerada como uma criação normativa, nem que o risco
de se adentrar na esfera política esteja afastado. A função da jurisdição constitucional é
aplicar os dispositivos normativos contidos na Constituição, o que, em decorrência da
própria natureza da sua atividade, implica em um grande teor de discricionariedade, devido
às várias possibilidades de aplicação da norma.
A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais
tensas existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões
tomadas pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua
população, tendo como uma de suas principais característica a discricionariedade de sua
escolha. O Direito tem como uma de suas principais característica, de modo inverso, a
previsibilidade de sua normatização. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais
características, o Direito e a Política podem gerar atritos. 522
Essa possibilidade de tensão entre a seara política e a seara jurídica tem gerado uma
oposição contra uma maior atuação da jurisdição constitucional. Devido à experiência do
New Deal, em que a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais várias de
suas medidas, setores políticos ligados mais ao espectro da esquerda, que defendem uma
intervenção do Estado na economia para garantir o desenvolvimento econômico e assegurar
direitos sociais, vêem com uma certa desconfiança o aumento da atuação da jurisdição
constitucional, pelo fato de que esse órgão não conta com a legitimação direta da soberania
522 “ O problema política-direito no marco do Estado como forma política é insolúvel teoricamente. Não admite mais soluções do tipo prático. Pois, por uma parte, é inegável que o Estado é o ente criador do Direito e não é, portanto, possível a submissão do criador a criatura de forma integral. Por outro lado, tão pouco cabe dúvidas de que a sociedade civil sobre a qual se eleva o Estado é uma sociedade que tende a se configurar como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas e tende , assim, inequivocamente à substituição do poder arbitrário e imprevisível por um poder regrado e controlável. Nenhum destes dois elementos podem ser suprimidos. Ambos coexistem mais ou menos de forma harmoniosa ou contraditória, mas sempre em tensão. Nesse contexto é que se instalam as relações entre a política e o direito. Sim, é possível submeter por completo o Estado ao Direito, também é possível estruturar inteiramente um Estado à margem do respeito às normas jurídicas. Todavia, o que interessa é ressaltar os seguintes extremos: 1) que as sociedades estatais têm oferecido ao longo da história da humanidade exemplos tanto de melhor controle do poder político pelo Direito, conhecido hasta la fencha (democracias ocidentais), como a subtração mais bruta do poder do Estado do controle das normas jurídicas (ditaduras fascistas); 2) que a justiça constitucional é o instrumento histórico mais desenvolvido que se tem conhecimento ate hoje para a justificação da política”. ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 14-15.
388
popular, podendo se constituir em um órgão autônomo e passar a decidir independente dos
anseios sociais. Na Grã-Bretanha, Suíça e nos países Escandinavos os partidos socialistas e
trabalhistas apenas recentemente vêm admitindo uma maior atuação da jurisdição
constitucional.523
Essa oposição não é um apanágio exclusivo das posições ideológicas mais ligas à
esquerda. Na Itália, forças políticas ligadas à direita, encabeçadas pelo Primeiro Ministro
Sílvio Berlusconi, travam uma luta feroz com o Poder Judiciário, sob a alegação de que os
seus membros estão extrapolando o exercício das suas competências.
A política, em uma concepção habermasiana, deve ser entendida como um locus
onde se desenvolvem as relações vitais do senso ético, uma forma de reflexão sobre os nexos
deontológicos da sociedade, impondo aos cidadãos a consciência de sua dependência
recíproca. O espaço público deve se regulamentado no sentido de propiciar uma maior
densidade dos princípios éticos. A regulamentação da esfera política, assim, deve ser
implementada pelos agentes políticos que foram votados pelo povo e não pelos membros
que compõem o órgão que exerce a jurisdição constitucional.
Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser
facilitada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa,
sem o recurso de termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá
ser melhor definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu
texto permite antever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto
constitucional não for escrito de forma precisa, agasalhado muitas normas programáticas,
haverá a ausência de uma definição para a atuação da jurisdição constitucional, o que
ensejará a prática de decisões judiciais de cunho político.524
Esse tipo de afirmação, de que a demarcação entre a política e o direito pode ser
realizada pela construção de mandamentos constitucionais de forma precisa, padece de
elementos fáticos para a sua fundamentação. Primeiro, porque qualquer texto normativo
523 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 20-21. 524 A exemplo de Danilo Zolo, Javier Perez Royo etc.
389
pode ser objeto de análise, podendo-se modificar o seu conteúdo normativo, mediante o
método hermenêutico utilizado. A norma jurídica mais precisa pode ser modificada por
recursos hermenêuticos. Depois, é praticamente impossível a elaboração de uma
Constituição sem a utilização de princípios, que pela sua própria natureza, apresentam uma
densidade semântica aberta. Por fim, a utilização de normas programáticas configura-se de
suma importância, principalmente em países periféricos, onde esse instrumento jurídico se
mostra eficaz para a concretização dos objetivos estabelecidos pelos legisladores
constituintes, representando as mais legitimas aspirações da sociedade.
De forma precisa, Torbjörn Vallinder define o processo de judicialização da política:
“A expansão da atuação dos tribunais e dos juízes acarreta a conseqüente redução de atuação
das esferas política e administrativa, isto é, a transferência da produção normativa do Poder
Legislativo, do Executivo e das agências administrativas para os tribunais; significa da
mesma forma a expansão do método de produção normativa da jurisdição constitucional e
do Poder Judiciário para fora de sua seara de atuação específica. Portanto, pode-se dizer que
o processo de judicialização da política essencialmente consiste em modificar o
procedimento de alguma coisa para a forma de um procedimento judicial”.525
Torbjörn Vallinder elaborou um interessante quadro comparativo mostrando as
diferenças de resolução dos conflitos pela Suprema Corte norte-americana e pelo Poder
Legislativo. Com relação aos participantes, no primeiro atuam duas partes e um terceiro que
é o juiz, no segundo, atuam diversas partes. Referente ao método de trabalho, a Suprema
Corte realiza um processo ouvindo os argumentos das partes para depois valorá-los; no
Poder Legislativo o método é o da negociação, através de compromissos pactuados,
geralmente efetuados fora do alcance da opinião pública. Quanto ao processo de produção
normativa, o primeiro o realiza sob a decisão imparcial de um juiz, e o segundo através do
princípio majoritário. Com relação ao modo de concretização de suas decisões, a Suprema
Corte os realiza por intermédio da apreciação de um caso particular, prestando atenção aos
precedentes judiciais, principalmente aos relacionados ao judicial review, já o Poder
Legislativo concretiza suas decisões através de normas genéricas e abstratas. Inerente às
525 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 13.
390
implicações das decisões tomadas, o primeiro as estabelece diante dos casos concretos e dos
dispositivos normativos inerentes à matéria, enquanto o segundo as estabelece de acordo
com os valores preponderantes na sociedade.526
Os componentes da jurisdição constitucional são sempre escolhidos entre pessoas
que apresentam uma formação técnica específica, exigindo-se determinadas qualidades
técnicas para o exercício de seu mister, sendo selecionados, no Brasil, pela escolha do
Presidente da República, depois da aprovação pelo Senado Federal. Os componentes do
Poder Legislativo, afora os requisitos dispostos na Constituição, não precisam apresentar
conhecimentos técnicos específicos, sendo escolhidos pelo povo. Os casos decididos pela
jurisdição constitucional servem para sinalizar o seu posicionamento em casos futuros, a não
ser que haja uma modificação no seu entendimento. A respeito das decisões políticas não se
pode traçar uma regra para modelar as suas decisões, variando consonantes as variantes
políticas. Outra diferença que pode ser apontada é que a solução dos litígios jurídicos é
sempre realizada por um procedimento previamente definido, enquanto que os litígios
políticos permitem um maior campo de discricionariedade, desde que respeitados os
dispositivos constitucionais.
Como o regime democrático foi transformado em um dogma em grande parte dos
países e a expansão da atuação da jurisdição constitucional não é sustentada de forma direta
pelo princípio da soberania popular, a maior crítica que se faz contra o processo de
judicialização é que ele afronta a democracia. Muitos doutrinadores, a exemplo de Ingeborg
Maus, consideram o processo de extensão da jurisdição constitucional uma ameaça contra o
regime democrático, o princípio majoritário e o princípio da responsabilidade popular, no
sentido de que o povo pode escolher os seus representantes.
Acontece que em um Estado Democrático Social de Direito as decisões políticas,
para serem aplicadas, devem contar com a legitimação da população, por intermédio de
instrumentos, principalmente da democracia participativa. Já as decisões da jurisdição
constitucional e do Poder Judiciário não se amparam de forma direta no sufrágio universal,
526 VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 14.
391
mas de forma objetiva têm a missão de concretizar os dispositivos da Constituição Federal.
O ponto em comum entre a seara jurídica e a política é o respeito pelos mandamentos
constitucionais e pelas normas do ordenamento jurídico, de uma forma geral. Portanto, a
relação entre a política e o direito não será sempre conflitiva porque as duas searas devem
subordinar as suas atuações aos mandamentos constitucionais.
Quanto maior forem a falta de sintonia dos representantes políticos com os anseios
da sociedade, a presença de corrupção para a tomada de decisões e o imobilismo causado
pelo antagonismo social, menor será a legitimação da classe política. Por outro lado, quanto
maior for a reputação dos membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional e maior
o grau técnico de suas decisões, maior será o seu grau de credibilidade e maior serão as
possibilidades de legitimação de sua atuação. Como conclusão, depreende-se que a
debilidade dos agentes incumbidos de proferir as decisões políticas pode favorecer uma
maior atuação da jurisdição constitucional nesta seara.
Para que haja o desenvolvimento do Estado Democrático Social de Direito de forma
harmônica, sem o conflito dos poderes estabelecidos, as decisões políticas têm que se ater
aos parâmetros legais e as decisões jurídicas não podem extrapolar os seus limites e
desempenhar o papel reservado aos atores políticos, principalmente, a jurisdição
constitucional que exerce um grande poder pelo seu papel de intérprete máximo da Carta
Magna. A jurisdição constitucional tem a importante missão, dentro de uma sociedade
pluralista, de demarcar os limites de incidência das decisões políticas, para que os princípios
almejados pelos legisladores constituintes sejam preservados. O que não quer dizer que ela
não deva direcionar o desenvolvimento de suas atividades pelos dispositivos contidos na
Constituição.
Uma das causas que mais influenciam a expansão da jurisdição constitucional no
campo das decisões políticas é a paulatina perda de legitimidade do processo político. A
complexidade do debate político, o poder econômico, a falta de locais para o debate público,
bem como a concentração dos meios de informação são algumas das razões para a perda de
legitimidade dos representantes populares. Como a classe política se apresenta distante da
392
população, a atuação da jurisdição constitucional é vista como um avanço, principalmente se
o seu objetivo for concretizar um direito fundamental.
Com o processo de judicialização, ou seja, com a extensão da atuação da jurisdição
constitucional, preponderantemente com relação às normas programáticas, juízes que
teoricamente deveriam exercer uma função “não-política”, têm que se envolver em
atividades de natureza eminentemente política, o que agrava ainda mais a tensão entre a
política e o direito. Ressalve-se que essa atuação não é feita por critérios absolutamente
discricionários, mas de acordo com os parâmetros expostos no texto da Constituição.
Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara
política e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos
dispositivos constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e
que tanto o Poder Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função,
pudessem fiscalizar a atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos
ditames da Constituição.527
A essência da crítica exposta contra a jurisdição constitucional é a falta de
legitimidade popular para amparar as suas decisões. O erro desse argumento é que a
jurisdição constitucional não é ontologicamente contraditória ao regime democrático, muito
pelo contrário, pode se constituir em um importante instrumento para o seu aperfeiçoamento.
O órgão que exerce a máxima função judicante pode ser formado com a participação dos
poderes estabelecidos, o que evita que ele perca o laço com os interesses da sociedade.
Como sustenta Neal Tate, o princípio democrático se configura como um dos requisitos para
527 “E o que será no futuro? As perspectivas são claramente diferentes de país para país, dependendo da tradição constitucional e da situação política. Portanto, não se pode definir se o desenvolvimento do processo de judicialização será revertido ou mesmo paralisado. Apresenta, no momento, alguma expansão, como no leste europeu. A Hungria, por exemplo, promulgou uma declaração de direitos e instituiu um tribunal Constitucional. Em contra partida, regimes ditatoriais têm sido estabelecido fora do mundo ocidental. No final, em muitos países, um novo equilíbrio pode ser obtido entre os direitos dos cidadãos e os direitos e obrigações da maioria”. VALLINDER, Torbjörn. “When the Courts Go Marching In”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 24.
393
o processo de judicialização, existindo uma relação bilateral entre o princípio democrático e
a jurisdição constitucional.528
A tensão entre o universo político e a jurisdição constitucional, em decorrência da
taxionomia de cada uma dessas searas e da densidade de poder que representam, jamais
pode ser prefixada de forma rígida; entretanto, essa indeterminação pode ser arrefecida pela
revalorização da supremacia das normas constitucionais, pela especificação do “conteúdo
mínimo” dos direitos fundamentais e pela sua consolidação por intermédio do entrenchment.
Atrelando essa maior atuação da jurisdição constitucional a missão de efetivar os direitos
fundamentais, os confrontos entre a seara política e a jurídica serão muito menor.
15.2) A Apropriação da Moral pelos Tribunais Constitucionais como Forma
de Imunização de suas Decisões
A aplicação de princípios ético-morais no ordenamento jurídico, defendido entre
outros por Habermas e Dworkin, e combatido por Luhmann, teria, segundo os primeiros
autores, a finalidade de resguardar os direitos fundamentais, assegurando um certo conteúdo
ontológico às normas jurídicas, e não de servir como base para imunizar as decisões
judiciais, tornando-as infensas às criticas da sociedade, permitindo uma auto-programação
da jurisdição constitucional sem Links com a sociedade.
Antes de qualquer coisa urge necessário definir o conceito de moral, tarefa bastante
complexa, mas que se configura necessária para a precisão do termo analisado. A definição
empregada é a adotada por Abbagnano. Para ele, a moral tem dois sentidos, no primeiro,
analisada como substantivo, ela significa o mesmo que ética, com a finalidade de conduta
dirigida ou disciplinada por normas. No segundo sentido, analisada como adjetivo, ela é
528 TATE, C. Neal. “Why The Expansion of Judicial Power”. In: The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. P. 29.
394
atinente à conduta e, portanto, susceptível de avaliação, seja em um sentido positivo, seja em
um sentido negativo.529
Quanto ao conceito de ética, utilizaremos o sentido empregado pelo Professor João
Maurício Adeodato, que começa a sua conceituação pela etimologia da palavra ao afirmar
que ela é composta das palavras gregas pathos, ethos e logos, designando uma das
dimensões ontológicas fundamentais da vida humana, constituindo-se na doutrina do bom e
do correto, com o objetivo de mostrar os caminhos de se alcançar esse desiderato.530
A utilização de preceitos ético-morais para direcionar a aplicação do Direito, com a
manutenção do contato entre a normatividade e a normalidade, não acarreta autonomia ao
ordenamento jurídico, impedindo que as ““membranas de calibração”” entrem em contato
com a realidade. O problema advém quando os preceitos ético-morais são utilizados como
instrumento de imunização das normas jurídicas, isolando-as em um sistema de auto-
reprodução, sem conexão com a realidade empírica. A objeção aqui apresentada configura-
se quando os parâmetros morais são utilizados para justificar a auto-reprodução do sistema
jurídico sem amparo nos elementos fornecidos pela sociedade.
Uma das maiores críticas à imunização das decisões judiciais através da apropriação
dos preceitos morais pelo Direito é feita pela professora da Universidade de Frankfurt,
Ingeborg Maus. Segundo a professora, sob o argumento capcioso de que nenhum outro
grupo social possui maior capacidade moral do que os juízes – argumento defendido entre
outros por Dworkin –, eles podem estabelecer o conteúdo moral da sociedade e tomar suas
decisões segundo esses preceitos, mesmo que não estejam contidos em lei. Esclarece Maus o
seu ponto de vista: “Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância
moral da sociedade passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social; controle ao
qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de
organização democrática. No domínio de uma Justiça superior que contrapõe um direito
“superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e à
529 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. P. 682. 530 ADEODATO, João Maurício Leitão. Ética e Retórica. Para uma Teoria da Dogmática Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 185.
395
sociedade é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração
social”.531
Ingeborg Maus toma como objeto de suas análises a realidade fática da Alemanha,
onde as decisões da Corte Constitucionais têm relevante papel na sociedade e na vida
política alemã. O seu receio é que os princípios ético-morais, que devem orientar as decisões
judiciais, tornem-se produto de uma interpretação judicial, com o objetivo de imunizá-las às
críticas sociais. Os parâmetros morais prevalecentes na realidade fática não iriam garantir
um “mínimo ontológico” ao Direito, mas seriam utilizados para legitimar as decisões
judiciais, mesmo que não fossem aplicadas em seu contexto ou que seu escopo fosse
desviado.
Quando o órgão que exerce a jurisdição constitucional assenhora-se da administração
da moral pública, ela impede que os princípios ético-morais imperantes na sociedade possam
servir de parâmetro para as críticas de suas decisões, obstaculizando que a moral
convencional possa ser utilizada como instância autônoma de controle normativo. De igual
forma, o tribunal constitucional pode utilizar a sua função de administração da moral para se
opor aos dispositivos legais, com o argumento de que os princípios ético-morais são
superiores aos mandamentos normativos.532
A apropriação da moral pelos tribunais constitucionais esconde o fato de que não há
uma moral uniforme contida na Carta Magna. O processo democrático constituinte é
realizado por meio de embate entre os vários posicionamentos ideológicos, cujas forças
sociais tentam incorporar à Constituição os seus interesses, que nem sempre são os
interesses da maioria. Portanto, não se pode falar em uma moral da Carta Magna em sentido
531 MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 129. 532 “A mencionada introdução de pontos de vista morais e de “valores” na jurisprudência não só a arma com maior grau de legitimação, imunizando assim suas decisões contra qualquer crítica, mas também conduz a uma liberação da Justiça de qualquer vinculação legal que pudesse garantir sua sintonização com a vontade popular. Toda menção a um dos princípios “superiores” ao direito escrito leva – quando a Justiça os invoca – à suspensão das disposições normativas individuais e a decidir o caso concreto de forma inusitada”. MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 134.
396
homogêneo, mas sim em princípios que foram oriundos dos mais diversos segmentos sociais
e que devido à sua sustentação pelos atores sociais vão adquirindo uma maior eficácia.
Uma visão contrária à apropriação da moral pelos tribunais constitucionais é adotada
principalmente pela teoria do rule of law que concebe a Constituição como uma ordem
moral objetiva e inteligível, alheia à influência cambiante dos anseios sociais. O órgão que
exerce a jurisdição constitucional, por ser imparcial e, portanto, imune às injunções políticas,
é quem têm a obrigação de aplicar a moral objetiva, trazida pela Carta Magna.
O movimento Critical Legal Studies, de conotação realista e contrário ao formalismo
jurídico, se opõe tanto ao rule of law como à apropriação dos padrões morais pelos tribunais
constitucionais. Para esse movimento, a incoerência e a indeterminação são as principais
características do ordenamento jurídico. Inexiste um único vetor moral que direcione o
sentido dos dispositivos constitucionais, pois há vários vetores morais, que são construídos
no texto da Lei Maior, frutos do embate das classes sociais. Segundo a mencionada corrente
teórica, qualquer interpretação constitucional com a finalidade de especificar um dos seus
conteúdos esconde, de forma implícita, uma operação ideológica. Como as normas jurídicas
são construídas de forma genérica e abstrata, os juízes têm um vasto campo discricionário
para atuarem de forma a fazer prevalecer o seu posicionamento ideológico.
Para os autores pertencentes ao Critical Legal Studies, a apropriação moral pelas
cortes e pelos tribunais constitucionais representa uma justificativa para esses órgãos
imporem, com maior liberdade, as suas convicções morais à sociedade. Significa uma forma
de imunizar suas decisões, alegando que são órgãos neutros e imparciais e estão apenas
zelando pelos preceitos morais contidos na Constituição.
A essência da questão é que os tribunais e as cortes constitucionais têm que legitimar
suas decisões em consonância com a Lei Maior, propiciando espaço para que a sociedade
possa participar ativamente do debate político, impedindo a formação de um sistema isolado,
de auto-reprodução de suas decisões, onde eles se tornem “Legibus Solutus”, o oráculo
exclusivo do “Templo de Delphos” da Constituição. Eles não podem construir um processo
circular de legitimação, realizado de forma auto-referencial, criando valores que não
encontram respaldo na sociedade, fechando linhas de conexão com a realidade.
397
Quando há a imunização das decisões da jurisdição constitucional pelos parâmetros
morais, a esfera das decisões políticas sofre uma mitigação, sem amparo em elementos que
legitimem essa maior extensão de atividade. Restringindo o debate público destinado a
estimular o procedimento dialógico da decisão judicial, o órgão que exerce a jurisdição
constitucional contribui para o seu isolamento e colabora para intensificar a crise de
legitimidade por que passa a jurisdição constitucional.
Como na sociedade brasileira inexiste uma trajetória de autonomia das decisões do
Supremo Tribunal Federal, ocorrendo, infelizmente, o contrário, em que as suas decisões são
proferidas de acordo com interesses políticos que muitas vezes fragilizam a eficácia da
Constituição, a imunização das decisões da jurisdição constitucional pelos princípios ético-
morais não encontra firme amparo na jurisprudência pátria.
A apropriação da moral pela jurisdição constitucional, mesmo que seja um exemplo
distante da realidade brasileira, é perniciosa porque ocasiona decisões judiciais auto-
referentes, sem contato com a realidade social, o que impede o caráter dialógico do
procedimento, a mudança nos critérios de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal
Federal e, conseqüentemente, a sua transformação em tribunal constitucional.
15.3) A Jurisprudencialização da Jurisdição Constitucional – A
Jurisprudência das Cortes Constitucionais como Auto-Referencia de suas
Decisões
O aumento da complexidade nas sociedades contemporâneas faz com que o
ordenamento jurídico não possa continuar sendo sistematizado de modo a gerar inflação
legislativa, pois a cada nova demanda social se produz uma lei para regulamentá-la. Como
as necessidades são cada vez maiores e sofrem constantes modificações, a regulamentação
não surte o efeito esperado. Essa proliferação exacerbada de normas acarreta insegurança
398
sobre o conteúdo da norma que está em vigor e incentiva antinomias normativas diante da
constante produção legislativa.
O termo jurisprudência significa prudentia júris, ou em uma terminologia muito
corrente nos autores franceses “La mise em oeuvre du droit par les juges”, entendida como a
mistura de conhecimentos teóricos, o conveniente know-how e a faculdade de utilização das
doutrinas jurídicas que faz um verdadeiro jurista.533
Como as estruturas normativas não podem mais tecer minudências que rapidamente
serão revogadas, as leis têm que ser produzidas cada vez mais em sentido genérico e abstrato,
de forma a poderem se adaptar mais facilmente à cambiante realidade social. Sendo as leis
amplas, dispõem os tribunais constitucionais de um maior espaço de atuação. Esse fenômeno
é chamado de jurisprudencialização da jurisdição constitucional e significa que a
jurisprudência passa a ser uma nova fonte do Direito.
De acordo com o professor Danilo Zolo, o declínio da função legislativa por parte do
Poder Legislativo tem contribuído para um fortalecimento do poder normativo dos juízes e
esta é uma das modalidades mais primitivas e sem diferenciação com as outras espécies
normativas já produzidas pelo Direito.534 Se esse espaço de atuação da jurisdição
constitucional não for precisado de modo mais rígido, de acordo com a substância
encontrada nos dispositivos da Lei Maior, a jurisdição constitucional pode provocar
insegurança jurídica, enfraquecendo o princípio da legalidade.
Uma prática por parte dos Tribunais constitucionais, no sentido de formar uma
legitimidade auto-referencial, é quando eles passam a se basear apenas em suas decisões
judiciais, atuando mais como um guardião de sua própria jurisprudência do que como um
“guardião da Constituição”. A jurisprudência se torna um referencial para as decisões
judiciais, não precisando mais elas serem legitimadas, a não ser com uma simples referência
a uma decisão anteriormente elaborada.
533 GRIDEL, Jean-Pierre. Introduction au Droit et au Droit Français. 2 ed., Paris: Dalloz, 1994. P. 289. 534 ZOLO, Danilo. Teoria e Crítica Dello Stato di Diritto. In: Lo Stato di Diritto. Storia, Teoria, Critica. Milano: Feltrinelli, 2003. P. 17-88.
399
Sem querer fugir ao tema proposto, é imperioso tecer algumas considerações acerca do
papel da jurisprudência no sistema do Civil Law e do Common Law, para mostrar que o
imprescindível papel ocupado pela jurisprudência, nesse sistema não pode substituir o
primado da normatização jurídica por normas produzidas pelo Poder Legislativo daquele. No
sistema do Civil Law, de tradição euro-continental, o precedente judiciário não tem força
normativa, haja vista a importância do direito legislado como instrumento de realização do
princípio da legalidade. O sistema do Common Law, de tradição anglo-saxônica, onde
prepondera o stare decisis (et quieta nom movere), o precedente judiciário é fonte de direito,
isto é, detêm valor normativo.535
A expressão precedente judiciário no sistema do Common Law não significa qualquer
tipo de decisão do Poder Judiciário, mas aquela que preenche dois elementos de forma
conjunta: a) que a decisão possa ser aplicada “pattern upon which future conduct may be
based”, ou seja, tomada como ponto de referência para um tipo determinado de conduta que
se adequa aos padrões de condicionamento por ela estabelecido; b) que o mérito da questão
decidida seja compilada em um repertório jurisprudencial – circunstância formal.536 Com a
apresentação desses requisitos a decisão judicial se configura como um precedente, a menos
que tenha sido baseada em erro ou que seja contrária ao direito e à razão.537
Os precedentes judiciais, mesmo no sistema do Civil Law no qual o Brasil se insere,
apesar de não ter força normativa, exerce um significativo valor nas decisões judiciais, o que
leva a doutrina italiana a chamá-lo de “Diritto Vivente”.538 O precedente judicial,
consolidado pelo seu uso reiterado pela jurisprudência, exerce uma autoridade de fato, o que
não elimina a hipótese de que eles possam exercer coercitividade normativa através de uma
535 Dessa forma, a presunção em favor da presunção em favor do precedente possui uma dupla função: de um lado olha para o passado, do outro para o futuro. De um lado deve tomar em consideração os precedentes que se encontram no passado, do outro deve considerar que a sua decisão será utilizada no futuro como precedente, sobretudo quando decide pela primeira vez uma “nova” questão constitucional. Mais do que a necessidade de certeza e segurança jurídica, o precedente apela à predicabilidade, a um desejo de antecipar o futuro. QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 215. 536 CRISCUOLI, Giovanni. Introduzione allo Studio Del Diritto Inglese: Le Fonti. Milano: Giuffrè. 1994. P. 61. 537 No sistema do Common Law, a primeira etapa se configura por individualizar o precedente, depois especificar a ratio decidendi e, com base nesses procedimentos, aplicá-los aos casos posteriores. 538 CAVINO, Massimo. “Il Precedente tra Certeza del Diritto e Liberta del Giudice: La Sintesi nel Diritto Vivent”. In: Diritto e Società. n. 1 Gennaio-Marzo. Padova: CEDAM, 2001. P. 162
400
súmula vinculante. A sua importância reside no fato de que dentro da pluralidade de
significações que uma estrutura legal pode revestir, ele atribui um determinado parâmetro
que serve como orientação.
Os tribunais constitucionais, bem como o Supremo Tribunal Federal, não se encontram
vinculados aos seus próprios precedentes, podendo modificá-los seja de forma parcial, seja
de forma total. As decisões anteriores não exercem qualquer efeito vinculante, podendo ser
modificadas desde que os procedimentos exigidos para a prolatação de decisões judiciais
sejam seguidos.
A auto-referência das decisões do Supremo Tribunal Federal acarreta os mesmos
problemas mencionados no tópico anterior, sobre a apropriação judicial dos conteúdos
morais. Em ambos os casos há um estiolamento de elementos imprescindíveis para a
densificação da legitimidade da jurisdição constitucional brasileira.
15.4) A Teoria da Neutralidade das decisões da Jurisdição Constitucional
A teoria da neutralidade das decisões da jurisdição constitucional e do Poder
Judiciário, de um modo geral, têm seu marco inicial com a teoria da separação dos poderes,
em que as prerrogativas estatais são exercidas por três poderes distintos, independentes e
harmônicos, realizando cada um uma função específica. Os órgãos incumbidos de
prolatarem as decisões judiciais têm suas atividades adstritas aos dispositivos normativos,
com a missão de submeter à seara fática a seara jurídica. Os juízes devem aplicar a lei de
forma imparcial e com independência política, vinculando-se apenas à lei, sem a intromissão
de nenhuma influência ideológica. As interferências políticas e ideológicas ficam restritas à
formação da lei, no processo normogenético realizado pelo Poder Legislativo, cabendo aos
401
órgãos que exercem o jurisdictio a função de aplicar a lei, sob pena de ultrapassarem os
limites de sua atuação.539
A neutralização política da jurisdição constitucional é realizada através do princípio
da legalidade, principalmente por intermédio dos comandos constitucionais. As leis são
consideradas como as fontes normativas indeléveis do ordenamento jurídico, obrigando que
as decisões judiciais subordinem-se ao seu conteúdo. Assim, impõe-se aos juízes um
distanciamento político que supostamente os impede de agasalhar uma ideologia, modelando
a sua atuação pela indiferença aos mais relevantes embates políticos, direcionando a sua
atenção para a aplicação dos dispositivos legais, independente do seu conteúdo.
Dos poderes estabelecidos, o Poder Judiciário e o tribunal constitucional nos
sistemas de controle concentrado, são os órgãos estatais cujas decisões apresentam maior
conteúdo técnico, haja vista a argumentação lógica de sua fundamentação e a forma de
provimento de seus membros, constituindo-se como um dos elementos que formam a sua
legitimação. O que não quer dizer que os seus membros sejam elementos sociais apolíticos;
há um forte teor de substância política nas suas sentenças.540 Todo operador jurídico, de
forma consciente ou inconsciente, carrega um conteúdo político nas suas decisões. A
neutralidade política advinda do positivismo é uma doutrina em franca decadência, não
servindo para explicar as necessidades atuais. Contudo, os argumentos lógicos que
respaldam as decisões judiciais são encontrados na seara jurídica.
A teoria da neutralidade do Poder Judiciário tem a finalidade de legitimar a
jurisdição constitucional sem fugir aos parâmetros estabelecidos pelo princípio do “rule of
539 “A teoria clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento anti-hierarquizante e com a finalidade de implodir a concepção mono-hierárquica do sistema político, iria garantir, de certa forma, uma progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade da influência política no governo, que se torna totalmente aceitável no Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. “O Judiciário Frente à Divisão dos Poderes: Um Princípio em Decadência ? In. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11, Recife: UPFE, 2000. P. 347. 540 “Justiça e política são palavras que amam andar juntas no mundo. Há muito tempo se sabe que se a justiça se ocupa da política, não é plenamente justiça; e se os políticos se ocupam demasiadamente da justiça, é porque vêem os juízes como seus impassíveis e frios inimigos nas suas aspirações de serem os condutores do povo. Todavia, em um sentido mais profundo, também justiça é política, porque sem ela nenhum ideal político de reconstrução, de encaminhamento e de ação realizadora pode considerar-se consumado”. COUTURE, Eduardo J. Estúdios de Derecho Procesal Civil. La Constitución y el Proceso Civil. Tomo I. Buenos Aires: EDIAR, 1948. P. 169.
402
law”, concebendo as decisões dos tribunais constitucionais como imparciais, justificando
sua atuação no processo político, na medida em que realizam a função de velar pela eficácia
dos mandamentos constitucionais.
A repolitização da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário, de forma
preponderante naqueles países que exercem o controle difuso, começou a ocorrer com a
transformação do Estado de Direito, em Estado Social de Direito, em que os direitos sociais
para serem concretizados necessitam também de decisões judiciais que efetivem sua
realização. Diante dessa situação, os juízes não poderiam mais ficar adstritos exclusivamente
aos comandos normativos de forma absoluta, passando a analisar qual a extensão que as
normas constitucionais podem ser implementadas.
O maior campo de atuação das decisões da jurisdição constitucional, fruto de
demandas sociais, desnuda por completo a teoria da neutralidade política, por parte do Poder
Judiciário. Em várias de suas decisões as cortes ou os tribunais constitucionais são levados
a se posicionarem sobre questões de natureza política, em que o direcionamento das decisões
dependerá da convicção de seus juízes. Inclusive são decisões que acarretam conseqüências
diretas para os outros poderes e para todos os cidadãos. Essas decisões patenteiam a
discricionariedade de que gozam as cortes constitucionais e os tribunais para efetuarem os
seus julgamentos. O que levou Luís Nunes de Almeida, vice-presidente do Tribunal
Constitucional português, a afirmar que o juiz deve sempre ter presente que a sua
consciência humana e a sua opinião política se projetam, de forma inexorável, nas suas
decisões, sendo essa parêmia válida para todos os juízes.541
Como teoricamente a magistratura é um órgão neutro e imparcial, ela não poderia
nutrir expectativas a respeito de políticas de governo, judiciária, de segurança etc.
Consonante a separação clássica dos três poderes caberia ao Poder Judiciário, inspirado no 541 “Em tudo isto, ou para julgar todos estes casos, não entra o juiz com critérios próprios de uma escala de valores que lhe é própria, que tem que ver com a sua mundividência, com a sua formação cultural, com as suas opiniões políticas e filosóficas? A isto, respondo seguramente que sim. E é grave que se possa pensar que não, porque, quando tal acontecer de boa fé, é porque não se tem consciência da realidade e, por isso, se perde aquilo que é mais importante na actividade do juiz: perde-se a independência interior, a independência perante si próprio, ainda que se mantenha uma independência externa, isto é, uma independência relativamente a terceiros. NUNES DE ALMEIDA, Luís. “Da Politização à Independência (Algumas Reflexões Sobre a Composição do Tribunal Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 244.
403
modelo liberal-democrático, como órgão burocrático do Estado, a estreita subordinação ao
princípio da legalidade, impedindo-lhe, a qualquer título, o exercício de função política, em
decorrência da falta de legitimação representativa, inerente aos Poderes Legislativo e
Executivo.542
A impossibilidade de neutralidade das decisões da jurisdição constitucional, que se
mostra evidente com relação aos posicionamentos do órgão que exerce a jurisdição
constitucional, devido ao maior alcance de suas decisões, igualmente se estende para as
decisões tomadas em sede de controle difuso, o que leva Alessandro Pace a afirmar que o
fator político desempenha um papel importantíssimo nas decisões do controle difuso.543
São de uma clarividência sublime as palavras de Ingeborg Maus: “A Justiça aparece
então como uma instituição que, sob a perspectiva de um terceiro neutro, auxilia as partes
envolvidas em conflitos de interesses e situações concretas, por meio de uma decisão
objetiva, imparcial e, por isso, justa. O infantilismo da crença na Justiça aparece de forma
mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional uma retificação de
sua própria postura frente às questões que envolvem a cidadania” .544
A função do direito não é neutral porque não é apenas aplicativa, mas interpretativa,
com o objetivo de concretizar os dispositivos normativos.545 O processo de decisão da
jurisdição constitucional não é mecânico, cabendo apenas aos juízes a aplicação da lei ao
caso concreto. O processo de subsunção exige que o juiz intérprete a norma genérica e
abstrata para a sua aplicação ao caso concreto, devendo adequá-la diante de uma perspectiva
sistêmica do fenômeno jurídico. Portanto, não cabe ao Poder Judiciário a prerrogativa de
simplesmente aplicar as normas aos casos concretos, devendo interpretá-las e valorá-las
dentro de uma determinada situação específica.
542 ZOLO, Danilo. “A Proposito dell’ Espansione Globale del Potere dei Giudici”. In: Iride. Bologna: Il Mulino. n..11. 1998. P. 447. 543 PACE, Alessandro. “Corte Costituzionale e Altri Giudici: Un Diverso Garantismo”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 237. 544 MAUS, Ingeborg. “O Judiciário como superego da sociedade – Sobre o Papel da Atividade Jurisprudencial na Sociedade Órfã”. In: Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. N. 11 Recife: UFPE, 2000. P. 135. 545 CHELI, Enzo. Costituzione e Sviluppo delle Istituzioni in Itália. Bologna: Mulino, 1978. P.143.
404
De acordo com Pizzorusso não existe um sistema de jurisdição constitucional
plenamente político ou jurídico. Para o professor da Universidade de Pisa, o controle pode
ser prevalentemente jurídico ou político, o que faz com que a escolha de um critério não
implique totalmente na eliminação do outro.546
O órgão que exerce a jurisdição constitucional não pode ser considerado como
apolítico pelas razões já expostas. Todavia, um dos grandes perigos que lhe ameaça é a sua
partidarização, passando a decidir de acordo com conveniências políticas, sem respaldo nos
mandamentos constitucionais. Pelo indelével papel que representa nas sociedades
democráticas, setores organizados da sociedade podem vê-lo como um caminho mais fácil
para conseguir os seus desideratos políticos do que o processo eleitoral, espaço no qual
pairam as mais diversas condicionantes. As decisões da jurisdição constitucional também
devem ser passíveis de debate público, mas ela não pode substituir os atores políticos. A sua
incidência na seara pública tem que estar atrelada aos dispositivos constitucionais, sendo
impossível a sua atuação sem o amparo legal.
O grande perigo é que a jurisdição constitucional seja transformada em um órgão de
luta política, em que os seus componentes tenham como finalidade alcançar objetivos
políticos, sem amparo legal, ou realizar oposição ao governo estabelecido. Como solução
aponta-se para impedir esse desvio, encontram-se as seguintes medidas: a democratização
dos seus componentes, em que os poderes estabelecidos pelo regime democrático participam
do processo de escolha; o mandato por tempo definido; a criação de uma corte
constitucional; requisitos mais rigorosos para a seleção dos seus membros; a valorização dos
mandamentos constitucionais.
Por ter uma natureza política, a jurisdição constitucional tem uma forte influência no
governo estabelecido. A relação entre o governo e a jurisdição constitucional se apresenta em
dois prismas que são aparentemente contraditórios: se por um lado a vontade política do
governo também se manifesta na estruturação da jurisdição constitucional e no exercício de
sua função, por outro lado, o governo está sujeito ao controle de constitucionalidade, segundo
os ditames da Constituição, tanto da jurisdição constitucional quanto da jurisdição
546 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 252.
405
ordinária.547 Destarte, na sua origem, a jurisdição constitucional tem uma taxionomia política
e, por outro lado, tem a função de exercer a fiscalização dos atos governamentais por
critérios jurídicos, contidos na Lei Maior, ostentando uma natureza jurídica.
O fato de que nas decisões da jurisdição constitucional os juízes não atuem de forma
neutra, não pode ser entendido como uma contradição com relação ao princípio da autonomia
do ordenamento jurídico e da própria Ciência Jurídica. As suas convicções ideológicas atuam
na decisão judicial, desde que seja obedecido o parâmetro legal e desde que estejam de
acordo com a Constituição.
A teoria da neutralidade das decisões da jurisdição constitucional é importante como
forma de legitimação, pois ampara as suas decisões, exclusivamente, nos dispositivos
contidos na Lei Maior. Ocorre que na atualidade ela é muito combatida, estimulando a
necessidade de se construir um novo substrato de legitimação da jurisdição constitucional.
A neutralidade das decisões judiciais funciona como uma máscara para esconder
posicionamentos que são eminentemente políticos, o que não ajuda a fortalecer a concretude
normativa dos direitos fundamentais e a maior representatividade dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal.
15.5) Mitigação da Atuação do Poder Legislativo
O processo de mitigação do Poder Legislativo não é um fato recente, apenas as
críticas se tornaram mais assíduas atualmente. Há muito tempo que se avolumam assertivas
referentes à lentidão de suas atividades, principalmente quando ele é composto de forma
bicameral. A falta de representatividade e de sintonia do Legislativo junto ao segmento
547 Lopez Guerra, Luis. “La Regulación Constitucional Del Gobierno y las Funciones Gubernamentales”. In: MOREAL, Antoni (ed.). Barcelona: Institut de Ciències Politiquees i Socials. 2000. P. 20.
406
organizado da sociedade também contribui para arrefecer a sua legitimidade, avolumando-se
em um país em que ele não apresenta uma tradição histórica, ficando à deriva das
imposições do Poder Executivo. A falência dos mecanismos tradicionais da democracia
liberal reforça ainda o processo referido. Em suma, são vários os motivos que contribuem
para a mitigação do Poder Legislativo e o seu surgimento remonta a um longo tempo.
Ilustrativa a esse respeito é a afirmação de John Hart Ely de que o Poder Legislativo
consome a maior parte do seu tempo em atividades outras que não o processo de produção
normativa.548
Os fatores que mais contribuem para o arrefecimento da atuação do Poder
Legislativo são: a pluralidade de fontes jurídicas, a imperiosa necessidade de adequação
legal aos ditames de uma sociedade pós-moderna e o processo de globalização. Em
decorrência desses fatores, o Direito substancialmente apresentado pelos códigos não
preenche mais as expectativas da sociedade porque ele é inerte às demandas que se
avolumam; em seu lugar, diversas fontes normativas preenchem essa lacuna e,
conseqüentemente, obnubilam a produção normativa realizada pelo Poder Legislativo. O
Direito deixa de ser preponderantemente legislado para se alicerçar em uma pluralidade de
fontes.
A produção normativa, atualmente, é cada vez mais influenciada pelos interesses dos
grandes conglomerados econômico-financeiros, que passam a atuar como verdadeiras
esferas de produção normativa. Órgãos como as empresas multinacionais, os bancos
privados, as organizações não governamentais, as cortes internacionais, os tratados e
convenções internacionais, decisões da jurisdição constitucionais etc, passam a atuar como
instâncias produtoras de normas, elidindo a função essencial do Legislativo. A maioria
dessas instâncias atua mais com o objetivo de satisfazer a interesses específicos do que
realizar os interesses coletivos, condicionados pela lex mercatoria, onde a satisfação das
demandas econômicas é requisito para a sua própria sobrevivência.
548 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theory of Judicial Review. Cambridge: Harvard University Press, 1980. P. 131.
407
Assim, o instrumento jurídico mais relevante desse ordenamento é o contrato, o
pacta sunt servanda, que assume importância absoluta, preponderando o direito privado em
relação ao direito público. Assiste-se a uma paulatina privatização do ordenamento jurídico,
quando muitas das esferas de decisões judiciais estão nas mãos de entidades não-estatais.
Como conseqüência, a legitimidade das estruturas normativas esvazia-se de forma abissal.
O Poder Legislativo tem que enfrentar uma concorrência desigual de outras fontes
normativas que podem se adaptar, de forma mais veloz, ao cambiamento dos fatos sociais.
Por outro lado, enfrenta um processo de esvaziamento por parte do fenômeno da
globalização e da crise de legitimidade da representação calcado nos modelos tradicionais do
regime democrático. Portanto, não há condições para que o Legislativo possa manter o seu
papel de exclusivo núcleo de produção normativa que vigorava anteriormente.
Em uma sociedade pós-moderna, as estruturas normativas passam por constantes
transformações. Como as necessidades são cada vez mais cambiantes, elas passam a
direcionar a produção normativa; a característica de previsibilidade das normas jurídicas é
cerceada, passando a ser organizada de forma a que possa se adequar aos requisitos
mercadológicos, que são transitórios. A concepção de uma estrutura normativa produzida
para permanecer em vigor por um lapso temporal indefinido, foi soterrada, e em seu lugar
prevalece o paradigma das normas em constante mutação, de caráter fluido e rarefeito.
As leis devem ser cada vez mais abstratas e genéricas, para que não necessitem ser
modificadas constantemente e permitam o desenvolvimento das relações econômicas. Elas
têm que atender as constantes modificações que acontecem na infra-estrutura econômica e
como decorrência em toda a superestrutura social. A produção normativa passa a ser mais
calcada na jurisprudência, do que baseada nas estruturas normativas positivas, fenômeno que
se denomina de jurisprudencialização do Direito, mormente na jurisdição constitucional.
Como as estruturas normativas devem ser elaboradas de forma cada vez mais
genérica e abstrata, adaptando-se às modificações requeridas pelo processo produtivo, sem a
necessidade de esperar o processo de normogénese pelo Poder Legislativo, que requer um
determinado lapso temporal que não é compatível com a evolução dos fatos, adquire
importância a atuação legislativa da jurisdição constitucional, com o escopo de adequar as
408
leis abstratas ao caso concreto sem a necessidade de se recorrer à produção de uma norma
jurídica. O florescimento da atuação normativa da jurisdição constitucional é concomitante
ao processo de mitigação da atuação do Legislativo enquanto instância preponderante na
produção jurídica.
O processo de globalização é o terceiro fator que determina a mitigação da atuação
do Poder Legislativo, ocasionando não apenas o arrefecimento desse poder, mas de todas as
estruturas de poder organizadas. Apesar de a globalização ser um fato preponderantemente
econômico, essa característica não serve para contemplar toda a densidade do conceito, em
virtude de sua ampla atuação, produzindo inclusive conseqüências jurídicas.549 Ela apresenta
diversos prismas que não podem ser descartados, como o deslocamento dos centros de
decisões, a intensificações das relações comerciais entre os países, as cortes internacionais, a
interdependência entre os mais diversos países etc.
O processo de globalização representa uma reformulação na estrutura dos
dispositivos normativos de natureza espacial e temporal. Espacial, como referência às leis
que deixam de incidir apenas em um determinado território, de acordo com a demarcação
territorial dos Estados, passando a ser aplicada em várias organizações políticas, o que torna
os limites delineadores da soberania normativa simples ficção.550 E temporal, com base nas
estruturas normativas que não podem mais ser fixas, pois têm que atender às necessidades
cada vez mais cambiantes da sociedade. A jurisdição constitucional e o Poder judiciário são
549 O professor Paolo Grossi considera que a globalização influencia o ordenamento jurídico da seguinte fórmula: “No planeta jurídico “globalização” significa que os protagonistas da vida econômica (uma vida econômica sempre majoritariamente de dimensão global), insatisfeitos por muitas razões com a normatização realizada pelo Estado nacional, começam a dar vida a um direito mais adaptado e mais eficaz, transforma-se em produtores do Direito, com o resultado conspícuo que, do lado do Direito oficial – aquele dos Estados nacionais o de uma comunidade supranacional – constrói-se um Direito absolutamente privado porque é criado por entes privados para tutelar os seus próprios interesses, que correm efetivamente, de forma tácita, em um canal paralelo e que não necessita de encontrar a sua justificação diante de órgãos estatais ou supra-estatais. Assim são regulamentados pelo arbítrio individual ou através do interesse de grupos econômicos, já que contam formalmente com a adesão dos homines oeconomici e não necessitam, por essa razão, da chancela estatal”. GROSSI, Paolo. “Il Diritto Tra Norma e Applicazione. Il Ruolo Del Giurista Nell’Attuale Societa’Italiana”. In: Inaugurazione Dei Corsi D’Insegnamento Dell’anno Accademico. 2001-2002. Firenze: Università Degli Studi, 2002. P. 27. 550 Os territórios desempenham um importante papel por dois motivos: o primeiro por razões histórico-constitucionais, pois é o espaço onde se desenvolvem historicamente as tradições de um povo, e o segundo motivo por questões de direito internacional, demarcando os limites de incidência da soberania nacional. KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático.Buenos Aires: Depalma, 1980. p. 123.
409
os órgãos que melhor podem enfrentar esses desafios porque podem atuar mediante cortes
constitucionais, abrangendo vários países e podem responder de forma imediata às
demandas sociais. 551
A influência da globalização, na mitigação da atuação do Poder Legislativo, ocorre
precipuamente porque a sua produção normativa perde relevo para as normas elaboradas por
órgãos supranacionais, modificando as normas do ordenamento jurídico interno e fazendo
com que estas tenham que se subordinar às normas provenientes de tratados e acordos
internacionais. Inclusive com a instituição de cortes internacionais que podem revogar
dispositivos normativos internos.
O enfraquecimento do Poder Legislativo pode ser sentido principalmente nas
democracias européias, pelo motivo que ele, por razões históricas, sempre representou a
soberania popular, tendo uma importância mais destacada que os demais poderes. Devido à
sua antiga preponderância, ele fornecia as linhas de atuação da jurisdição constitucional,
que deveria seguir a diretriz política que era estabelecida. A extensão da atuação da
jurisdição constitucional, nesses países, provoca um maior número de conflitos e tende a
produzir uma certa insegurança no ordenamento jurídico.
Configura-se impossível o retorno à época histórica em que o Poder Legislativo
exercia a preponderância da produção legislativa.552 Tal predomínio foi o resultado de
injunções históricas, principalmente nos países europeus, onde o Legislativo foi o poder que
liderou a instalação do Estado de Direito. No Brasil, esse poder nunca exerceu a função
normogenética de forma exclusiva, pois ou ele atrelou-se à vontade do Executivo (1891-
1934), ou teve que repartir essa função com o chefe do governo, com a criação do decreto-
lei e depois a sua conversão em medida-provisória. Atualmente, os motivos históricos que
propiciaram a mencionada predominância não mais existem e as demandas sociais exigem
551 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 195. 552 “A lei como expressão do Estado não pode tolerar um controle jurisdicional, sob pena de ver comprometido o primado da soberania popular e o enfraquecimento de sua posição”. CUOCOLO, Fausto. Principi di Diritto Costituzionale. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1999. P. 773.
410
uma resposta imediata que possa se moldar à velocidade exponencial dos acontecimentos
históricos.
O que não significa um esvaziamento desse poder, que continua a ser imprescindível
para a sociedade. Ele continua a ser o principal órgão de produção normativa, com a
obrigação de compatibilizar-se com os mandamentos constitucionais. Desempenhando ainda
relevante função na fiscalização da coisa pública. Seu destino, com o aprimoramento do
regime democrático, é voltar a ser o grande elo de ressonância dos debates da sociedade,
atuando de forma concomitante com o espaço público, para legitimar as estruturas
normativas.
Juridicamente, o Poder Legislativo exerce uma função essencial tanto ao servir como
uma conexão entre a política e o Direito, quanto ao transformar as opções realizadas pela
sociedade em normas jurídicas que devem se ater aos limites estipulados pela Constituição.
É o liame entre a vontade popular e os dispositivos normativos. Por tal motivo, é o poder
que mais sofre com a expansão na atuação da jurisdição constitucional.
Bastante perigoso para a atuação do Poder Legislativo, como órgão autônomo e
independente, é a teoria, defendida pelo professor Javier Perez Royo, segundo a qual as
decisões da jurisdição constitucional ocupam um lugar superior com relação às leis
confeccionadas pelo Legislativo no sistema de fontes normativas, sendo somente inferiores a
Constituição e as emendas constitucionais. Alicerça sua teoria no princípio de que o
Tribunal Constitucional é o intérprete supremo da Carta Magna e que sobre suas decisões
não cabe nenhum tipo de recurso.553
Outra acusação despudorada, que é lançada contra o Poder Legislativo, é que ele
seria pela sua própria natureza um locus onde preponderaria a irracionalidade, ao passo que
a jurisdição constitucional seria o locus da racionalidade em essência. A característica mais
evidente que as decisões do Poder Legislativo seriam irracionais é que elas são motivadas
por questões políticas e suas decisões não necessitam ser motivadas por razões técnicas, não
sendo requisito para se tornar um parlamentar ser detentor de qualquer capacidade
553 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 65.
411
intelectual específica. Enquanto isso, as decisões da jurisdição constitucional seriam
eminentemente técnicas porque os seus membros são escolhidos devido à capacidade que
ostentam, suas decisões são jurídicas e a motivação de suas decisões é realizada de acordo
com critérios técnicos. Todavia, essa afirmativa não encontra respaldo na seara fática porque
as decisões irracionais podem provir tanto de um quanto do outro.
As prerrogativas inerentes ao Poder Legislativo e ao órgão que exerce a jurisdição
constitucional não são suficientes para dizer se a decisão é racional ou irracional. Ao longo
da história, tanto universal quanto brasileira, o Legislativo diversas vezes produziu decisões
muito mais sensatas que as produzidas pela jurisdição constitucional. A grande questão é
como estruturar esses dois órgãos de forma que possam desempenhar suas funções da
melhor forma, condizente com as normas constitucionais e com os anseios da sociedade.
Os elementos aqui propostos para reforçar a legitimidade da jurisdição constitucional
de forma alguma ocasionam um arrefecimento na atuação do Poder Legislativo, muito pelo
contrário, pois permitem a sua participação na composição dos membros do Supremo
Tribunal Federal. Servindo os direitos fundamentais como sinalizadores das obrigações do
Estado Social Democrático de Direito, abre-se espaço para uma convergência entre a seara
política e a seara jurídica.
15.6) Especificação da Atuação Legislativa da Jurisdição Constitucional
A intenção do presente tópico é tentar definir a atuação legislativa da jurisdição
constitucional. Para tanto serão tomadas como parâmetro de análise as decisões pertinentes
às matérias nas jurisprudências nacional e estrangeira. A atuação das cortes e tribunais
constitucionais estrangeiros, principalmente da Europa e dos Estados Unidos, é mais vasta
do que o exercício dessa função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal, por questões
complexas, que fogem aos limites epistemológicos do presente trabalho; mas que de forma
alguma inviabiliza o estabelecimentos de algumas analogias.
412
A especificação da produção legislativa, the making of the law, por parte da
jurisdição constitucional não se configura uma tarefa fácil porque tem como pressuposto a
definição do conceito de lei, que é uma temática bastante controversa na ciência jurídica.
Defende Pizzorusso que o conceito de lei não se refere apenas àquelas contidas em códigos,
estatutos e outros documentos legais, mas abrange também as leis que os juízes aplicam
diante do caso concreto, e as utilizadas pelas instâncias administrativas para a solução de
seus problemas etc.554 Dessa forma, o conceito de lei utilizado nessa análise é bastante
abrangente, compreendendo-a tanto no seu sentido material como formal, bem como os atos
normativos provenientes das instâncias administrativas.
A produção legislativa pode ser dividida em produção legislativa propriamente dita,
aquela que estipula direitos e obrigações para as autoridades e para os cidadãos (law-
making) e aquela que não se destina de forma imediata aos cidadãos e aos órgãos
governamentais porque tem o escopo mediato de regulamentar a aplicação de outras normas.
(law-applying) . Como a jurisdição constitucional pode exercer suas atividades nos dois
tipos de processo normogenético não há motivo de se estabelecer uma distinção.
Antes de se adentrar na temática proposta, urge refletir acerca do posicionamento de
Crisafulli, que afirma inexistir produção legislativa por parte da jurisdição constitucional
porque sua obrigação é tornar eficaz a Carta Magna, e o que se concebe como inovação da
decisão, na verdade, é um dispositivo constitucional que estava sendo violado e que a corte
ou tribunal somente asseguraram a sua implementação. O posicionamento de Crisafulli
basea-se no caráter sistêmico da Constituição, ao afirmar que todas as decisões da jurisdição
constitucionais têm como ratio último um predicativo constitucional que a ampara. Para ele,
não haveria criação de direito, mas reafirmação das disposições constitucionais. Contudo,
muitas decisões da jurisdição constitucional, muitas das quais seguindo a orientação do
activism doctrine, criam direitos ou obrigações que de forma nenhuma pode-se dizer que já
estavam no ordenamento constitucional.555
554 PIZZORUSSO, Alessandro. “The Law-Making Process as a Judicial And Political Activity”. In: Law in the Making. A comparative Survey. Strasbourg: European Science Foundation, 1988. P. 3. 555 CRISAFULLI, Vezio. “La Corte Costituzionale Tra Norma Giuridica e Realtà Sociale”. In: Bilancio di Venti’anni di Attività. Bologna: Mulino, 1978. P. 85.
413
Consonante o posicionamento defendido por Alessandro Pizzorusso, o “germe”da
possibilidade de produção normativa por parte da jurisdição constitucional não estava
presente na teoria inicial da confecção do sistema norte-americano e do sistema europeu. Em
nenhum deles, na sua concepção geral, havia a intenção de se instituir um órgão que fosse
apto para a produção normativa. No sistema norte-americano, em decorrência do stare
decisis, os precedentes judiciais dispõem de eficácia persuasiva, podendo assumir a feição
de uma fonte normativa, já que este é um dos apanágios de todos os órgãos judiciários do
common law e não especificamente da jurisdição constitucional; o que não quer dizer que
essa produção normativa possa incidir no espaço de competência do Legislativo ou do
Executivo. No sistema europeu, na formulação originária criada por Hans Kelsen, as
decisões produzidas pela jurisdição constitucional tinham o efeito de apenas anular a norma
produzida pelo Legislativo, com eficácia ex tunc. Atualmente, desde que estejam presentes
alguns requisitos, as decisões podem ser ex tunc, ex nunc ou pro futuro, de acordo com uma
decisão discricionária do órgão competente, o que não fora previsto na formulação
originária.556
Como atuação legislativa da jurisdição constitucional, o critério utilizado é o adotado
por Gustavo Zagrebelsky que a classifica em função legislativa e função co-legislativa.557 A
função legislativa ocorre quando, por meio de uma decisão judicial, cria-se uma obrigação
ou um direito, com eficácia plena que não existia no ordenamento, ao menos que não tinha
eficácia, seja pela sua re-interpretação, regulamentação, colmatação de lacuna etc. É o que a
doutrina denomina de sentença criativa.
A função co-legislativa decorre da influência exercida pela jurisdição constitucional
na produção normativa do Legislativo. Toda produção normativa está inserida dentro de
determinadas circunstâncias que impõem seu conteúdo, sendo uma dessas circunstâncias as
decisões da jurisdição constitucional. Ela não cria um novo direito ou obrigação, nem
mesmo garante a eficácia de um dispositivo, mas obriga a atuação do legislativo e orienta a
sua produção normativa. Inexiste efeito normativo para o caso concreto, ele é indireto
556 PIZZORUSSO, Alessandro. Sistemi Giuridici Comparati. 2 ed. Milano: Giuffrè, 1998. P. 244-245. 557 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 103.
414
porque produz implicações para a produção do Legislativo. A doutrina italiana a denomina
de sentenze-indirizzo.
Ela é uma forma de participação legislativa da jurisdição constitucional com
influência direta na atuação do Legislativo, sendo também chamada pela denominação de
doutrina de sentença substitutiva. Esse caso pode ocorrer quando há a anulação de uma
norma, e em decorrência existe a exigência de sua regulamentação. É um modo de colocar
para o Poder Legislativo um tema que tem urgência de sua regulamentação, haja vista a
anomia existente diante da declaração de inconstitucionalidade. A decisão do órgão que
exerce a jurisdição constitucional obriga a atuação do Legislativo do modo que foi
estipulado na motivação da sentença, exercendo um monitoramento do Legislativo. Como
exemplo pode ser mencionada a sentença do Tribunal Constitucional italiano de n. 64, que
dispõe sobre prisão preventiva, ou a de n.225, sobre serviços de comunicação.
A sentenze-indirizzo também acontece quando a decisão mantém a norma no
ordenamento, mas exige a regulamentação de determinadas condições. A primeira decisão
do tribunal constitucional é pela rejeição da alegação de inconstitucionalidade, podendo
seguir posteriormente uma decisão de inconstitucionalidade se as regulamentações previstas
não foram feitas a contento. Como exemplo, pode ser mencionada a sentença de n. 103, que
trata do monopólio televisivo.
A verificação para saber se uma sentença é legislativa, em qualquer uma de suas
modalidades, deve ser feita descurando de sua composição formal e do tipo específico de
sentença, atendo-se apenas ao fato se houve a produção de efeito normativo no ordenamento
jurídico.
Pode desempenhar uma função legislativa o órgão que exerce a jurisdição
constitucional, quando houver a prolatação de uma sentença interpretativa que acrescente
novos elementos que não estavam contidos na norma. Esse tipo de decisão ocorre quando o
órgão que exerce a jurisdição constitucional, para evitar a declaração de
inconstitucionalidade de uma norma, realiza uma interpretação conforme a Constituição. No
Tribunal Constitucional alemão, as sentenças interpretativas possuem eficácia jurídica
vinculante erga omnes. Essas decisões são consideradas como uma função legislativa porque
415
a decisão judicial acrescenta elementos que não estão inseridos na estrutura normativa para
impedir a declaração de sua inconstitucionalidade.
A atuação da jurisdição constitucional na função legislativa pode ser simplificada à
seguinte indagação: se o conteúdo da sentença puder ser deduzido do contexto do
ordenamento, a decisão não estará operando um processo de criação normativo, agindo a
jurisdição constitucional dentro dos seus limites. Agora, se o conteúdo da sentença não
puder ser deduzido do ordenamento jurídico em vigor, seja de forma explícita, seja de forma
implícita, pode o órgão que desempenha a jurisdição constitucional exercer a produção
legislativa ? Zagrebelsky afirma que se a jurisdição constitucional atuar sem o respaldo
implícito ou explícito de dispositivo normativo estará invadindo a competência típica do
Poder Legislativo.558
Zagrebelsky discorda da atuação legislativa da jurisdição constitucional, seja para
suprir uma omissão, seja para corrigir um defeito normativo do Poder Legislativo, porque
estar-se-ia premiando a disfunção do poder normativo e a inércia do legislador, com um
paliativo que não solucionaria a questão. Defende o professor italiano o papel delineado pela
Constituição, com o abandono progressivo desse tipo anômalo e precário de produção
normativa.559
Não obstante, o limite exposto supra não logra grande valia porque, como as normas
jurídicas são, cada vez mais, realizadas de forma genérica e abstrata adequando-se ao
constante processo de modificação das sociedades hodiernas, mediante interpretações
extensivas e sistêmicas, pode-se afirmar que quase toda a decisão judicial tem uma
fundamentação em um dispositivo constitucional, expresso ou implícito. Além disso, o
critério para se indagar se a norma tem como fonte o ordenamento jurídico é subjetivo
porque de alguma forma todo o processo de normogénese tem como ponto de referência um
dispositivo jurídico.
558 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 109. 559 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 121.
416
A origem da questão reside na taxionomia da Carta Magna: se a sua concepção se
baseia no contratualismo ou no organicismo. O contratualismo, ou voluntarismo, assevera
que não há uma lei intrínseca à natureza humana que direciona as sociedades para
determinadas estruturas agregativas, podendo os cidadãos criarem aquelas que melhor lhes
convier.O organicismo, ou antivoluntarismo, planteia que existe uma lei intrínseca, que
determina as estruturas da sociedade, cabendo ao Poder Legislativo apenas revelar essas leis
internas.560
A discussão sobre a jurisdição constitucional ter uma atuação legislativa apenas pode
ser posta sob uma concepção contratualista, quando tal função é exercida e o conteúdo da
decisão judicial não está inserido no contrato social, que originou a sociedade. Na concepção
organicista, a jurisdição constitucional não exerce nenhuma função legislativa no sentido de
criar um novo conteúdo normativo, ela apenas tem a função de revelar aqueles mandamentos
que já fazem, de forma intrínseca, parte da sociedade.
Uma forma de atuação legislativa da jurisdição constitucional é quando ela age de
forma supletiva, isto é, utilizando-se de uma competência supletiva para preencher a lacuna
deixada por um ente estatal. Para que essa competência possa ser realizada são necessários
dois requisitos: que o exercício da função seja para garantir a realização de um dispositivo
constitucional e que haja a omissão do ente estatal que tem a competência para realizá-lo.
Sua criação foge da seara normativa para residir na seara factual. Ela é uma competência
transitória, deixando a sua regulamentação de existir quando houver a normatização de
acordo com as regras estipuladas pela Constituição.
Como atuação legislativa da jurisdição constitucional podemos mencionar alguns
julgados do Tribunal Constitucional italiano que permitem sentenças criativas para
resguardar o princípio da isonomia, em que a declaração de inconstitucionalidade vem
acompanhada de regulamentação aditiva, para possibilitar a igualdade de tratamento que
fora violada. A decisão prolatada, para concretizar a igualdade de todos perante a lei, com
fundamento no art. 3° da Constituição italiana, exige que a jurisdição constitucional
560 ZAGREBELSKY, Gustavo. “La Corte Costituzionale e Il Legislatore”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 112.
417
regulamente a questão para que um direito fundamental possa ser exercido de forma
isonômica. Depois de firmada a inconstitucionalidade, faz-se necessário uma construção
normativa para que todos aqueles que estejam amparados pelo princípio sejam alcançados
pela norma. Nesse caso específico, a simples eliminação de norma impugnada como
inconstitucional pode ser um ato muito mais nocivo, exigindo-se uma sentença criativa.
A defesa do princípio da igualdade é apenas um dos casos em que algumas decisões
judiciais permitem uma atuação legislativa por parte da jurisdição constitucional do Tribunal
italiano, exigindo-se essa função em virtude da Constituição necessitar de uma
regulamentação sucessiva visto que a eventual eliminação dessa norma imperfeita resultaria
em um regresso, em uma inconstitucionalidade mais grave ainda.
Ressalve-se que o posicionamento descrito supra não abrange todas as hipóteses de
atuação do Tribunal Constitucional italiano. Em alguns casos, como nas sentenças de n. 42 e
de n. 73, por exigência do estrito cumprimento do princípio da legalidade, apenas lei, no
sentido formal, poderá estender a atuação normativa, garantindo a concretização do preceito
constitucional. Em casos que versem sobre a tipificação penal e penas, ou a tipificação
tributária, em virtude do princípio da reserva legal, art. 25 da Constituição italiana, somente
o Poder Legislativo poderá exercer a função de regulamentação normativa, segundo os
preceitos da Carta Magna.
Vários outros casos, com outros méritos, afora o princípio da igualdade, podem
servir como exemplo de atuação legislativa da jurisdição constitucional, no Direito italiano.
É o caso da sentença de n. 190 que estabeleceu o direito dos defensores tomarem parte no
interrogatório do acusado. Ou a sentença n. 219, em que houve a declaração de
inconstitucionalidade de uma norma porque o Tribunal Constitucional italiano assim o
decidiu para confeccionar uma nova norma em seu lugar.
Nos dois casos mencionados anteriormente, o princípio da isonomia e o da
competência suplementar, a decisão da jurisdição constitucional guia-se pelos imperativos
dos dispositivos constitucionais, impedindo um exercício discricionário, por parte da
sentença judicial.
418
Em qualquer dos casos de atuação legislativa da jurisdição constitucional, as suas
decisões não podem criar uma esfera de impedimento ao Poder Legislativo. Ele pode atuar
em todas as searas normativas onde inexistam um impedimento constitucional, podendo,
inclusive, revogar as disposições implementadas pelas decisões da jurisdição constitucional,
desde que respeitado o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada que são
direitos fundamentais dos cidadãos.
Quanto à discussão existente de que, ao se declarar à existência de uma
inconstitucionalidade por omissão, deve o órgão que exerce a jurisdição constitucional
regulamentar a situação para que o direito fundamental possa ser efetivado de forma
imediata, grassa na doutrina um dissídio doutrinário porque parte da doutrina entende que há
a tipificação de uma atividade legislativa por parte da jurisdição constitucional.
15.7) Limites à atuação da Jurisdição Constitucional
Nas primeiras décadas do século XX, planteiava Carré de Malberg que as limitações
à potestade de atuação da jurisdição constitucional derivavam todas elas do princípio
fundamental de que não podem os juízes, de nenhum modo, imiscuir-se no exercício da
função legislativa, não podendo invadir as atribuições reservadas ao órgão responsável da
produção legislativa.561 Portanto, a questão do estabelecimento de limites à jurisdição
constitucional é um ponto central na discussão de seu papel, mas também se configura de
difícil delimitação, haja vista o seu vasto campo de atuação. Sem o estabelecimento de
precisos limites à atuação da jurisdição constitucional, ela pode ilidir o espaço inerente às
decisões políticas, estorvando a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo, sem que para
isto tenha obtido uma legitimidade conferida diretamente pela soberania popular.
561 CARRÉ DE MALBERG, R. Teoría General del Estado. Trad. José Lión Depetre. 2 ed., México: Fondo de Cultura Económica, 2000. P. 672.
419
Por essa razão, são estabelecidos alguns limites que impedem que a jurisdição
constitucional possa ocorrer de modo discricionário, sem o respeito pelo exercício da
atividade dos outros poderes. Esses limites estão contidos, tanto na doutrina, como são
impostos pela Constituição. Em nível constitucional podemos mencionar o princípio da
inércia, em que a jurisdição constitucional apenas pode ser exercitada quando houver uma
provocação; a numeração constitucional de suas competências, sendo essa especificação
realizada em numerus clausus; a elaboração, pelo Poder Legislativo, de procedimentos que
devem ser seguidos pelo órgão que exerce a jurisdição constitucional para a confecção de
suas decisões, como a lei 9882/99, que regulamenta a argüição de descumprimento de
preceito fundamental; o procedimento de composição dos seus membros e o tempo de
duração dos seus mandatos, dentre outras.
Como o limite à jurisdição constitucional, contido na Carta Magna de 1934, pode-se
mencionar o seu art. 68, que impedia o Poder Judiciário de conhecer questões
exclusivamente políticas.
O limite mais poderoso e claro para a jurisdição constitucional são os próprios
dispositivos da Lei Maior, que não poderão ser desrespeitados, principalmente por um órgão
que tem a função de defendê-los e velar por sua eficácia. A Carta Magna não pode declarar a
inconstitucionalidade das normas produzidas pelo Poder Constituinte, nem pode deixar sem
eficácia nenhum de seus mandamentos.
De acordo com a realidade fática do Tribunal Constitucional espanhol, Javier Perez
Royo destaca as seguintes limitações: a análise do tribunal constitucional deve se limitar aos
textos legais e às fórmulas legislativas; realizar uma interpretação, conforme a Constituição
da lei impugnada sempre que possível; seguir a interpretação do legislador ao realizar uma
estrutura normativa, que não tem que ser a mais lógica, a mais coerente possível com a
vontade do constituinte, bastando que não seja uma interpretação contrária à Carta Magna.562
Tomás y Valiente assevera que a autocrítica interna do órgão que exerce a jurisdição
constitucional é um poderoso instrumento de controle, evidenciando-se nos votos
562 ROYO, Javier Perez. Tribunal Constitucional y División de Poderes. Madrid: Tecnos, 1988. P. 80-84.
420
dissonantes proferidos nas decisões majoritárias.563 O voto dissonante prima facie não tem o
poder de modificar a decisão prolatada, sua importância, dependendo do número de votos
contrários, consiste em determinar os efeitos da sentença e ressaltar o dissídio existente no
órgão, para propiciar um amplo debate nas instâncias jurídicas, com o escopo de pacificar a
questão.
O political questions, terminologia norte-americana, também denominado de atos
políticos ou atos de governo, é um dos limites à atuação da jurisdição constitucional.564 Foi
desenvolvido pela doutrina norte-americana, como uma das modalidades do self-restraint,
com o objetivo de impedir a “politização” das decisões judiciais. Como political questions,
podem ser classificados os atos de governo, a incidência das relações internacionais etc.
A inércia da jurisdição constitucional, ao impedir que sua atuação possa ser realizada
sem o impulso de um órgão devidamente competente, configura-se como um limite a
extensão de sua atuação.565
A teoria do self-restraint é um dos limites à atuação da jurisdição constitucional,
configurando-se como uma das fortes tendências do sistema constitucional norte-americano,
o que levou Bernard Schwartz a expressar que talvez a característica mais notável da Corte
Suprema seja a moderação com que ela exerce o seu poder de controle judicial ao tratar de
leis do Congresso.566 Ela busca conter o judicial activism, defendendo uma ética de
autocontrole dos órgãos que têm a prerrogativa de exercer a jurisdição constitucional, para
563 TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 60. 564 “Acerca de questões políticas, os tribunais nenhuma competência têm e devem aceitar como terminantes as decisões proferidas pelos departamentos políticos do governo. Tais são as questões sobre a existência da guerra, o restabelecimento da paz, sobre o governo de outro país, quer seja o de fato, quer seja o legal, a autoridade dos embaixadores estrangeiros de outros países, a admissão de um Estado à União, o restabelecimento das relações constitucionais de um Estado que se tenha rebelado, a existência jurisdicional de uma nacionalidade estrangeira, a jurisdição dos Estados Unidos sobre uma ilha do alto-mar, o direito dos índios de serem reconhecidos livres e assim por diante”. COOLEY, Thomas M. Princípios Gerais de Direito Constitucional nos Estados Unidos da América. Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2002. P. 146-147. 565 Explica Tomás Y Valiente: “[...]um órgão jurisdicional é um poder passivo ou negativo, que somente atua através de um impulso do exterior, que apenas fala se for perguntado e sobre aquilo que for perguntado, e sempre somente se a pergunta (demanda, recurso, questão) está corretamente formulada em termos jurídicos por quem tem legitimação para fazer”. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Escritos Sobre y Desde El Tribunal Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. P. 1993. P. 38. 566 SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1965. P. 262.
421
que eles não se transformem em tutores dos demais poderes e órgãos hermeticamente
fechados as influências da sociedade, com arrimo no brocardo latino de que “jus dicere e
non jus dare”. Normalmente ela vem associada ao original intent, partindo de uma filosofia
liberal-individualista.
A concepção do self-restraint foi formulada por James Bradley Thayer’s, em um artigo
intitulado “The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitucional Law”, na
Havard Law Review, e pode ser sintetizada pela seguinte fórmula: “Uma norma produzida
pelo Poder Legislativo não pode ser declarada inconstitucional a não ser que a violação seja
tão manifesta que não haja uma dúvida razoável”.567
Dessa forma há uma mitigação no exercício da jurisdição constitucional, devendo ela
apenas ocorrer quando houver uma inconstitucionalidade evidente. A política do self-
restraint significa que o órgão que exerce a jurisdição constitucional deve se autolimitar ao
interpretar a Constituição para não transformar a prerrogativa de interpretar as normas
constitucionais, em última instância, em um monopólio de dizer o direito de acordo com as
suas conveniências, sem respaldo na Lei Maior, ferindo a atuação dos poderes estabelecidos.
Essa vertente teórica é típica da doutrina constitucional dos Estados Unidos, não
podendo ser literalmente transposta para países periféricos, principalmente o Brasil, onde os
casos de desrespeito à Constituição são freqüentes. Crítica bastante percuciente é formulada
por Vital Moreira asseverando que o conceito de autolimitação é contraditório porque ou o
legislador não infringiu nenhum parâmetro constitucional restritivo da sua discricionariedade
legislativa, ou efetivamente o legislador cometeu uma modalidade de inconstitucionalidade e
não tem o que se falar em autolimitação.568
567 DEAN, Howard E. Judicial Review and Democracy. New York: Random House, 1966. P. 112-113. 568 “Seguramente que, por definição, o juiz constitucional só pode censurar o legislador ordinário se e na medida em que este esteja vinculado pela Constituição, independentemente do mérito ou demérito das soluções legislativas em causa. Mas, uma vez verificado que o legislador estava constitucionalmente vinculado e violou a Constituição, não resta ao juiz constitucional senão tirar a conseqüência da inconstitucionalidade, independentemente da natureza, política ou não, das questões envolvidas. O conceito de autolimitação da justiça constitucional é intrinsecamente contraditório e insusceptível de fundamentação razoável. Pois de duas, uma: - ou, afinal, no caso concreto o legislador não infringiu nenhum parâmetro constitucional restritivo da sua discricionariedade legislativa, e então não há que falar em autolimitação do juiz constitucional, visto que nenhuma inconstitucionalidade existe; - ou efectivamente o legislador actuou numa área constitucionalmente
422
Uma outra teoria que busca restringir a extensão da atividade da jurisdição
constitucional, cujo principal doutrinador é Dworkin, baseia-se nos arguments of principle,
com a finalidade de construir primados éticos que guiem as decisões da jurisdição
constitucional, principalmente no sentido de garantir os bens comuns da sociedade e os
valores do regime democrático. Os dois principais sustentáculos dessa teoria seriam os
pressupostos do regime democrático e a moralidade pública.
16.) Novo Esboço da Jurisdição Constitucional Brasileira
Bruce Ackerman fala da na necessidade de se criar uma teoria constitucional
propriamente americana para se tentar fugir das nefastas conseqüências da europeização da
teoria constitucional.569 Essas mesmas palavras devem ser tomadas para o caso brasileiro,
cujas doutrinas estrangeiras são copiadas na sua integralidade e implantadas no Brasil.
Como se fosse possível implantar o mesmo instituto jurídico em realidades diferentes. O
debate internacional se configura importante para balizar a discussão brasileira, oferecendo
os horizontes onde devem ser trilhados os caminhos adequados para a realidade nacional,
atendo-se às peculiaridades locais.
A concepção da jurisdição constitucional brasileira deve ser pensada como uma
função que possa responder às necessidades sociais crescentes, mormente em um Estado
pós-moderno que aprofunda a crise no padrão normativo convencional, contribuindo com o
aumento no grau de certeza do ordenamento e impedindo o desenvolvimento de incertezas
indisponível ou em termos constitucionalmente ilícitos, e então a autolimitação do juiz constitucional na declaração de inconstitucionalidade da norma traduz-se necessariamente numa renúncia à função que lhe está constitucionalmente cometida, que é a de verificar a constitucionalidade das leis e sancionar as inconstitucionalidades”. VITAL MOREIRA. “Princípio da Maioria e Princípio da Constitucionalidade: Legitimidade e Limites da Justiça Constitucional”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 194-195. 569 ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 1991. P.4.
423
jurídicas.570 A principal missão do Supremo Tribunal Constitucional deve ser a de garantir a
estabilidade do ordenamento jurídico, densificando o conteúdo substancial da Constituição,
em que os órgãos estatais possam satisfazer os direitos fundamentais que foram outorgados
aos cidadãos.
A jurisdição constitucional não é um simples ato de cognição, pois há um espaço
para a atuação discricionária dos operadores jurídicos, mormente dos membros do Supremo
Tribunal Federal. Como a maior parte das normas constitucionais é de caráter
principiológico, os intérpretes da Lei Maior dispõem de um maior poder de
discricionariedade para realizar o fenômeno da subsunção. Por outro lado, ela não pode ser
concebida como um mero ato volitivo porque há uma razoável esfera para sua atuação,
principalmente para assegurar a concretização dos direitos fundamentais; entretanto, essa
esfera de desenvolvimento de suas atividades não é arbitrária, devendo se ater aos vetores
ofertados pela Constituição. O parâmetro ofertado pelo programa normativo não pode ser
desprezado, impondo suas disposições com força obrigatória.
Destarte, como a jurisdição constitucional é um ato cognitivo-volitivo, utilizando um
conhecimento técnico em um espaço de razoável discricionariedade, há uma necessidade
inexorável de legitimação de suas decisões.
Também contribui para a necessidade de incorporar uma maior densidade de
legitimidade às decisões do Supremo Tribunal Federal o fato de que a Constituição perdeu a
sua característica de texto estático, devido ao seu caráter dialógico e à rápida evolução das
necessidades sociais, em que suas normatizações têm que evoluir para se adequar às
exigências fáticas. A atualização da Lei Maior deve ser feita primordialmente pela jurisdição
constitucional, criando uma sincronia entre a seara fática e a seara normativa.
Considerando a Constituição Federal como um conjunto de normas que têm um
caráter dialógico, aberto, em constante interação com a seara fática e em razão disso
570 “ O nível de previsibilidade da conseqüência jurídica de uma conduta ou de um fato, sempre representa um critério para valorar a capacidade de um ordenamento na sua finalidade de assegurar a certeza do Direito”. CAVINO, Massimo. “Il Precedente tra Certeza del Diritto e Liberta del Giudice: La Sintesi nel Diritto Vivent”. In: Diritto e Società. n. 1 Gennaio-Marzo. Padova: CEDAM, 2001. P. 168.
424
sofrendo direta influência da conjuntura social, o caráter da jurisdição constitucional não
pode se ater a modelos rígidos de formalismo jurídico. A sua aplicação não se reduz ao
clássico modelo da subsunção normativa, em que a norma abstrata incide no caso concreto.
Todavia, é bom deixar bem claro, que de modo algum se está tentando que o
Tribunal Constitucional, detentor da jurisdição constitucional, venha a substituir o papel
imprescindível do legislador. Todavia, a concepção de que o Poder Legislativo é o detentor
exclusivo da produção normativa encontra-se superada. A legitimidade das decisões do
Supremo Tribunal Federal deve ser construída com base em um elemento catalisador: os
mandamentos da constituição, permitindo uma maior incidência de sua atuação apenas
quando os direitos fundamentais forem deixados sem concretude normativa.
O novo esboço da jurisdição constitucional brasileira seria feito através dos seguintes
fatores: a transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com
um mandato fixo para os seus magistrados; a fragmentação da indicação dos membros do
órgão que exerce a jurisdição constitucional, com a participação dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário; uma firme atuação para garantir os direitos fundamentais,
mormente o conteúdo estipulado nas normas programáticas; a determinação de uma “
densidade suficiente” ou “conteúdo mínimo” dos direito fundamentais que devem ser
defendidos pelo entrenchment dessas prerrogativas; que as regras procedimentais que
regulamentam as decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal ensejem uma
abertura da discussão jurídica, incorporando vários setores da sociedade no debate, para que
os magistrados possam auferir todos os subsídios necessários para a sentença e que as
decisões ostentem um maior nível de legitimidade pela ampla participação do operadores
jurídicos.
425
16.1) A Constituição como Fonte de Legitimidade da Jurisdição
Constitucional
Diante desse latente estado de crise que grassa em todas as esferas sociais,
multiplicando os conflitos e alimentando a incerteza e a insegurança, o primeiro requisito
para um novo esboço da jurisdição constitucional brasileira configura-se na revalorização da
força normativa da Constituição, solidificando o seu papel na sociedade. Essa densificação
das normas constitucionais é imprescindível para a legitimação da jurisdição constitucional,
que por sua vez, configura-se como condição inexorável para a concretização dos direitos
fundamentais.
A missão maior da jurisdição constitucional reside em preservar a eficácia dos
dispositivos constitucionais, vinculando suas decisões aos dispositivos da Lei Maior. Tanto
as teorias procedimentalistas quanto as substancialistas estão de acordo que a jurisdição
constitucional exerce um papel imprescindível nas sociedades contemporâneas para atender
as crescentes demandas da população. Tornando-se uma ferramenta imprescindível para que
o típico padrão do rule of law não possa cercear os avanços propiciados pelo Estado
Democrático Social Direito, e, de forma preponderante, para a defesa dos direitos
fundamentais agasalhados pela Carta Magna.
A função da jurisdição constitucional não pode ser concebida como uma fonte
normativa, com o poder de criar diretrizes jurídicas sem o amparo normativo na Carta
Magna. A sua atuação restringe-se aos mandamentos constitucionais e à concretização dos
direitos fundamentais, mediante um processo jurídico de caráter preponderantemente
substancialista, que possa ser legitimado duplamente: pelos procedimentos judiciais,
previamente estabelecidos, que permitem uma maior participação da sociedade no debate
jurídico; pela concretização dos direitos humanos esculpidos na Constituição.
Concomitante com o processo de aumento na atuação da jurisdição constitucional
pode-se falar em um processo de reconstitucionalização que é inerente a esse processo e à
426
base de sua fundamentação. Sem esse processo, a extensão da atuação da jurisdição
constitucional e do Poder Judiciário não poderia ser legitimada e desenvolvida de forma a
desempenhar uma legitimação substancial no Estado Democrático Social de Direito.
O processo de reconstitucionalização configura-se como uma reafirmação do valor
da Carta Magna, na sociedade e no ordenamento jurídico, como fonte de princípios e regras
de caráter superior e que devem ser cumpridos de forma obrigatória por todos os órgãos
estatais. Significa a supremacia das normas constitucionais, em detrimento da lex
mercatoria, das fontes privadas do direito, da globalização, das transnacionais e do poder do
mercado financeiro. A auto-afirmação da soberania popular no sentido da construção de uma
democracia participativa, cujos instrumentos da democracia direta possam ser cada vez mais
utilizados no processo político. É a reafirmação dos direitos humanos e dos princípios
inerentes ao regime democrático, asseverando que as normas constitucionais têm caráter
imperativo, obrigando a todos os poderes a realizar o conteúdo de suas cominações.
O fortalecimento da jurisdição constitucional assinala igualmente um incremento do
padrão normativo imperante na sociedade, assumindo um maior relevo o alicerce desse
ordenamento jurídico, que é a Constituição. A extensão das decisões políticas fica
demarcada dentro dos paradigmas das normas constitucionais, no que ultrapassa o estágio,
muito freqüente nos países periféricos, em que são as decisões políticas que demarcam o
alcance dos dispositivos constitucionais.
A indelével magnitude da Carta Magna para o ordenamento jurídico reside no fato de
que ela é o instrumento normativo que delineia a vontade da soberania popular no seu
momento mais expressivo: durante o processo constituinte em que todos os setores da
sociedade são convocados a discutir as leis fundamentais do país. Pela relevância desse
papel, servindo como vínculo entre o ordenamento jurídico e a sedimentação da vontade da
sociedade, o cumprimento de suas normas representa um dos requisitos para a configuração
de um regime democrático, já que a soberania popular exposta em suas normas, não
representa uma vontade transitória ou inerente a uma maioria cambiante, mas é produto de
um amplo debate popular, cujos princípios foram sedimentados no imaginário coletivo da
427
sociedade, gozando de grande grau de aceitabilidade. Em uma Constituição promulgada,
essa missão assume uma preponderância muito maior.
Como requisito para o fortalecimento da força normativa da Constituição, aponta-se
o incremento do regime democrático, condição sine qua non para densificar a legitimidade
da jurisdição constitucional. A transformação do regime democrático em uma democracia
participativa e atuante potencializa, não apenas a legitimidade das normas constitucionais,
ou das normas procedimentais que estabelecem a forma de produção das decisões judiciais,
mas igualmente possibilita a participação da sociedade nas decisões da jurisdição
constitucional que ajuda na densificação de sua legitimidade.
Uma atuação mais incisiva da sociedade, não apenas de acordo com os
procedimentos estabelecidos para as decisões judiciais, mas também no debate público, faz
com que toda a população, inclusive os cidadãos mais humildes, se interesse por essas
questões. Essa maior atuação provocará uma desmistificação do Poder Judiciário, concebido
como um órgão distante e inacessível, influindo esses debates inclusive na indicação dos
ministros componentes do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do debate público ocorrido
nos Estados Unidos quando da indicação, por Ronald Reagan, de Robert Bork. Essa
indicação provocou uma grande mobilização na opinião pública contra Bork, culminando
com a rejeição do seu nome pelo Senado Federal.571
Os dispositivos constitucionais são o locus preponderante para o desenvolvimento do
regime democrático, e isto se deve a três fatores: suas normas são aquelas que maior
legitimidade ostentam no ordenamento jurídico, porque o processo constituinte permite a
composição dos mais variados interesses; a força coercitiva da Constituição possibilita que o
seu conteúdo possa ter uma maior concretude normativa; além de regulamentar os principais
institutos da democracia participativa. Como o regime democrático tem o status de
unanimidade e a Constituição é o locus de sua regulamentação, o desempenho desse papel
aumenta a sua carga valorativa no ordenamento jurídico.
571 BELTRÁN, Miguel. Originalismo e Interpretación. Dworkin vs. Bork: Uma polémica Constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1989. P. 40-44.
428
A constituição é a referência para o resgate de um dos princípios mais importante do
ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana.572 Em uma sociedade pós-moderna,
onde há uma ausência de vetores ontológicos, o mencionado princípio serve como um
elemento catalisador para o desenvolvimento do regime democrático e facilita a formação de
consensos em torno das decisões políticas. Concebendo a dignidade da pessoa humana como
uma diretriz de concretização dos mandamentos constitucionais e fazendo parte esse
princípio dos direitos fundamentais, há uma revalorização do papel desempenhado pela
Carta Magna na sociedade, ao mesmo tempo que legitima uma maior atuação da jurisdição
constitucional.
Em decorrência de suas peculiaridades, a Carta Magna é o único instrumento jurídico
que assegura a realização da finalidade do Estado Democrático Social de Direito. O
conteúdo dessa forma de estado, englobando prestações materiais e democracia
participativa, dentro da previsibilidade das normas jurídicas, somente pode ser concretizada
se houver a sua incorporação às normas inconstitucionais.573 Portanto, ao atender as
necessidades hodiernas da sociedade, há um fortalecimento da legitimidade hauferida pela
Lei Maior.
Ela também é importante porque representa uma idéia compromissária entre as várias
gerações dos cidadãos, em que o entrenchment da “densidade suficiente” dos direitos
572 “Para tanto, é necessário que se fixe desde logo a opção que fazemos pela tomada referencial, ainda hoje, da idéia de Constituição como uma referência fundamental para o resgate da dignidade da pessoa humana como único valor apto a se constituir como referência universal, sem que isso signifique a absolutização das fórmulas e lugares onde e como tal resgate se deva promover”. BOLZAN DE MORAIS, José Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espacial dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 59. 573 “Assim, o legado do constitucionalismo do Estado Democrático (e social) de Direito (aqui entendido como o plus normativo representado por essa terceira fase do constitucionalismo fundamentado no binômio democracia e respeito aos direitos fundamentais) trouxe a lume a idéia de força normativa da Constituição, o constitucionalismo dirigente, a superação da idéia de Constituição (meramente) programática, da importância dos princípios e da materialidade da Constituição, além de um novo paradigma de interpretação dos textos das constituições (verfassungskonforme Auslegung e Teilnichtigerklärung ohne Normtexreduzierung, as decisões manipulativas, aditivas e redutivas, p. ex.), questões essas que implica(ra)m uma espécie de ativismo judicial ou intervencionismo dos tribunais constitucionais, enfim, aquilo que muitos vão denominar de judicialização da política (desde logo, ressalve-se que falar em judicialização da política é simplificar a discussão, uma vez que a questão deve ser problematizada a partir do debate entre substancialismo e procedimentalismo)”. STRECK, Luiz Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2002. P. 106-107.
429
fundamentais pode ser aprimorado pelas gerações futuras.574 Servindo como um diritto
vivente que acompanha a evolução da sociedade, a Constituição é simbolizada como a
norma jurídica por excelência, constituindo-se no ponto de referência da regulamentação
normativa da sociedade.575
Um dos principais problemas para a construção de uma teoria sobre a legitimação da
jurisdição constitucional é realizá-la sob parâmetros de racionalidade, de modo que possa
satisfazer critérios de certeza jurídica e adequação a vetores pré-estabelecidos, e colocá-la
em sintonia com os anseios da coletividade, garantindo que ela seja proferida dentro de
moldes jurídicos adequados.576 O objetivo da racionalização das decisões da jurisdição
constitucional é satisfazer às exigências de segurança do ordenamento. A sua realização é
feita com base em princípios explícitos e implícitos da Constituição, que norteiam as
discussões sobre a temática da decisão.
Esse problema apontado pode ser resolvido pela densificação da força normativa da
Constituição, colocando-a como fator crucial de justificação da jurisdição constitucional.
O parâmetro de racionalidade jurídica das decisões da jurisdição constitucional é
realizado pela adequação aos mandamentos constitucionais. Todas as decisões do Supremo
Tribunal Federal, além de serem tomadas de acordo com a Constituição, permitindo
construção jurídica apenas para assegurar direitos fundamentais de auferir a legitimidade
dentro do espaço público, devem ser tomadas consonante padrões racionais, que justifiquem
o sentido de tal posicionamento. A necessidade de fundamentação das decisões judiciais,
exigência do art. 91, X da Constituição brasileira, configura-se como uma forma de
legitimação racional dos posicionamentos judiciais, pois expressa os motivos que levaram a
tal posicionamento.
Constatada a necessidade de revalorização da Constituição, e considerando os
direitos fundamentais como alicerces para a justificação da jurisdição constitucional,
necessário se torna incluí-los como parte efetiva da Carta Magna. A importância da
574 ZAGREBELSKY, Gustavo. La Giustizia Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988. P. 25. 575 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 940. 576 ORTEGA, Manuel Segura. La Racionalidad Jurídica. Madrid: Tecnos, 1998. P. 28-29.
430
constitucionalização dos direitos fundamentais reside na essencialidade do texto
constitucional para o ordenamento jurídico, configurando-se na “dimensão essencial da
comunidade política”. A constitucionalização dos direitos fundamentais densifica o
conteúdo jurídico dessas normas, atribuindo-lhes uma dimensão de fundamentalidade para a
vida comunitária, no que obriga a sua concretude normativa por parte dos operadores
jurídicos e dos agentes estatais.577
À medida que há uma recuperação na força normativa da Constituição, há uma
recuperação na efetivação dos direitos fundamentais e, conseqüentemente, no incremento da
legitimação da jurisdição constitucional. A revalorização da Carta Magna configura-se na
alternativa mais factível de atendimento às demandas sociais e fundamentação de uma maior
atuação da jurisdição constitucional.
16.2) A Transformação do Supremo Tribunal Federal em Tribunal
Constitucional como Fator Determinante da Legitimação da Jurisdição
Constitucional
A relevância das decisões da jurisdição constitucional por parte dos tribunais
constitucionais ou de cortes constitucionais adquire maior interesse porque cabe a eles
decidir em última palavra, sobre o controle difuso, ou em única palavra, controle
concentrado, acerca de questões imperiosas para a concretização da Lei Maior. Eles
concentram as decisões do controle de constitucionalidade de forma irrecorrível e essa
exclusividade em um único pólo de controle, ou instância última para os países que adotam
o controle difuso, configura-se imprescindível para manter a integridade sistêmica do
ordenamento jurídico.
577 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999. P. 56.
431
A concentração da decisão em um único órgão não tem qualquer intuito autoritário,
mas proteger um escopo finalístico: a unidade sistêmica do ordenamento através de um
órgão que possa decidir de forma plena a respeito da jurisdição constitucional. Destarte,
dessa imperiosidade de concentração das decisões da jurisdição constitucional é que a
densidade de legitimação do Supremo Tribunal Federal tem que ser melhor estruturada
como forma de incrementar a justificação de suas decisões.
O Poder Legislativo não dispõe de condições para verificar a constitucionalidade de
uma lei que ele próprio fez, se a considerasse inconstitucional deveria não tê-la
concretizado.O Poder Executivo também não ostenta condições de verificar a
constitucionalidade de uma norma porque tem interesse na sua aplicação e, portanto, falta-
lhe isenção para decidir. E, por último, o Poder Judiciário, com o Supremo Tribunal Federal
exercendo concomitantemente as funções de última instância judiciária e órgão detentor da
jurisdição constitucional, que não goza de legitimidade suficiente e nem dispõe de condições
estruturais para desempenhar a contento as suas prerrogativas.
Um dos elementos para aumentar a legitimação das decisões da jurisdição
constitucional, amparando a sua maior atuação na sociedade, é a transformação do Supremo
Tribunal Federal em um tribunal constitucional, retirando-lhe as incumbências inerentes a
jurisdição ordinária. As propostas que serão apresentadas não são soluções perfeitas e
acabadas, nem mesmo são minudentes. Representam a base para o início do debate que deve
ser aprofundado em trabalhos específicos sobre a matéria.
Não é objetivo aqui esposado tolher o controle difuso de constitucionalidade e adotar
de forma exclusiva o sistema concentrado. A riqueza do controle de constitucionalidade
brasileiro é a existência concomitante de ambos os sistemas. A proposta é tornar o Supremo
Tribunal Federal um tribunal constitucional, com as atribuições da jurisdição ordinária
entregues ao Superior Tribunal de Justiça.
O controle difuso teria o mesmo funcionamento atual, inclusive com a declaração
incidental de inconstitucionalidade; a diferença crucial é que não haveria recurso das
decisões do Superior Tribunal de Justiça. Este Tribunal não iria ter competência concorrente
para analisar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, restringindo-se à aplicação das
432
decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal Federal. Apenas quando não houvesse uma
decisão judicial do STF sobre determinada matéria é que o STJ sobrestaria o processo e
remeteria a decisão, restrita à discussão da inconstitucionalidade, ao STF, que decidiria de
forma vinculante para as demais instâncias.
A competência originária do Supremo Tribunal Federal seria mantida intacta, a
modificação incidiria na competência recursal. A competência recursal extraordinária ficaria
ao encargo do Superior Tribunal de Justiça, enquanto que a competência recursal ordinária
restringir-se-ia a tutelar a “jurisdição constitucional das liberdades”, julgando o habeas
corpus, o mandado de segurança, e o habeas data decididos pelos Tribunais Superiores.578
A última instância da jurisdição ordinária seria o Superior Tribunal de Justiça,
extinguindo-se o recurso extraordinário e o agravo de instrumento nos moldes que
conhecemos atualmente. Dessa forma, a demanda de processos apreciados pelo Supremo
Tribunal Federal cairia de maneira substanciosa, permitindo que o Egrégio Tribunal pudesse
se dedicar de forma mais conscienciosa às questões pertinentes à tutela da Constituição.579 O
Supremo Tribunal Federal seria a instância exclusiva de proteção do caráter sistêmico dos
mandamentos constitucionais, enquanto o Superior Tribunal de Justiça seria a instância
última de garantia ao caráter sistêmico das normas infraconstitucionais.
Sem a competência para exercer a jurisdição ordinária e com a conseqüente redução
no número de processos postos à sua apreciação, o Supremo Tribunal Federal poderia se
dedicar com mais afinco à apreciação das questões relativas à supremacia constitucional.
Assim, o controle abstrato de constitucionalidade poderá assumir cada vez mais um caráter
578 CORRÊA, Oscar Dias. A Crise da Constituição, a Constituinte, e o Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. P. 116. 579 “O primeiro sinal dessa crise pode ser detectado pelo incrível crescimento de processos recebidos pelo Supremo Tribunal Federal. No ano de 2000 foram 105.307 feitos, contra 18.564 em 1990, 9.555 em 1980, 6.367 em 1970, 6.504 em 1960, 3.091 em 1950 e 2.419 em 1940. A grande maioria desses casos encontra-se dentro da competência recursal do Supremo Tribunal Federal. De 1991 para cá, os recursos extraordinários e agravos de instrumento têm constituído mais de 90 % dos processos recebidos pelo tribunal. No ano de 2001, 98,2% dos processos encontram-se nessa categoria. O que mais surpreende, no entanto, é que neste mesmo ano de 2001, os agravos de instrumento constituem, sozinhos, 70% das causas apreciadas pelo Supremo, ou seja, em 70% dos processos o que se discute é se deve ou não o Tribunal analisar as questões a ele submetidas”. VILHENA VIEIRA, Oscar. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência Política. 2 ed., São Paulo: Malheiros, 2002. P. 220-221.
433
dialógico, o que garante um incremento na sua legitimidade procedimental e incentiva os
operadores do Direito a participarem do debate jurídico, o que democratiza as suas decisões.
Essa reestruturação significaria uma valorização do controle concentrado, e o que é
mais importante, sem o cerceamento do controle difuso, que continuaria a ser uma
prerrogativa das instâncias ordinárias. Poder-se-ia pensar, inclusive, na ampliação dos
legitimados a propor as ações diretas.
Adotado os elementos defendidos no decorrer deste trabalho, as decisões do
Supremo Tribunal Federal experimentaria uma considerável densificação de sua
legitimidade, o que possibilitaria uma maior amplitude de eficácia de suas decisões,
inclusive com a adoção do efeito vinculante, que se limitaria a questões constitucionais.
Por causa dessas transformações, com o fortalecimento do Supremo Tribunal
Federal, seria conveniente que ele não mais fosse considerado como o órgão de cúpula do
Poder Judiciário, sob pena de desequilíbrio da isonomia de prerrogativas entre os três
poderes.580 Sua taxionomia seria de um órgão estranho aos poderes estabelecidos, um
tertium genus, ao mesmo tempo em que sua composição seria formada por indicação de
todos os poderes estabelecidos, o que configura um limite a sua atuação. Essa reestruturação
do STF, tornando-o um órgão distinto dos demais poderes, permitiria que ele atuasse como
um “poder moderador” não no sentido clássico empregado pela Constituição de 1824, mas
arbitrando os litígios entre os poderes estabelecidos e zelando pela eficácia das normas
constitucionais.581
580 “Até o constitucionalismo do segundo pós-guerra, os países de tradição romano-germânica não haviam conseguido construir um sistema de controle de constitucionalidade para garantir, efetivamente, a supremacia da Constituição. A grande polêmica Kelsen-Schmitt do final dos anos 1920 desvendou a razão: insuficiência institucional. A defesa da Constituição, nessa tradição, requer uma instância independente e superior à da administração (as quais dependem do Parlamento para a fixação do endereço político de suas decisões), bem como à instância da própria jurisdição ordinária (que se expressa, basicamente, pela aplicação da legislação formal). Os europeus recusaram-se a atribuir a defesa jurisdicional da Constituição ao Chefe do Estado, ao parlamento, ao governo, à administração e à jurisdição ordinária, por razões já aqui expostas. Providenciaram um poder independente de todos: o Tribunal Constitucional”. SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. O Tribunal Constitucional como Poder. Uma Nova Teoria da Divisão dos Poderes. São Paulo: Memória Jurídica, 2002. P. 138. 581 CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. P.43.
434
A reestruturação do Supremo Tribunal Federal permitiria uma extensão das suas
prerrogativas, deixando que ele atue apenas como um contra-poder, dentro de uma
concepção ultrapassada de defesa das normas constitucionais no sentido negativo. O Egrégio
Tribunal passará a ter uma atuação pró-ativa, com uma atividade mais destacada no sentido
de assegurar a concretude normativa dos direitos fundamentais, sendo esta a finalidade
primordial da sua existência.
16.3) Uma Nova Composição do Supremo Tribunal Federal como Forma de
Democratização de Suas Decisões.
O incremento da legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal não será
construído partindo-se apenas de um único fundamento, a realização desse objetivo apenas
tornar-se-á exeqüível se for amparada em diversos alicerces. Um desses fundamentos é a
reestruturação da composição dos ministros que formam a Egrégia Corte brasileira como
forma de democratizar as suas decisões, sendo uma das conseqüências imediatas da sua
transformação em um tribunal constitucional.
A forma de composição do órgão que exerce a jurisdição constitucional apresenta
conseqüências importantes para a análise da legitimação da jurisdição constitucional. Ela é
uma justificação pela origem dos membros do órgão que exercem a jurisdição
constitucional, que juntamente com a justificação objetiva e a pelo exercício configuram-se
como instrumentos de fortalecimento do consenso em torno de suas decisões.
Quanto maior for o respaldo que os seus membros gozarem na sociedade, maior será
a autoridade de suas decisões. A composição dos membros do Supremo Tribunal Federal
deve ser plural porque permitirá a participação das forças políticas imperantes na sociedade
e conseqüentemente menores serão as resistências a suas decisões. E os seus membros
igualmente devem ter representatividade, ou seja, é necessário que eles sejam eleitos através
435
de um acordo das forças políticas, que lhes garanta um amplo consenso indispensável para
garantir a sua nomeação.
Redesenhar as regras para uma nova composição do Supremo Tribunal Federal não
significa que os seus membros passarão a ser escolhidos com base no voto popular,
possibilidade impensável devido aos requisitos específicos que eles devem portar, mas
estabelecer uma composição do STF de acordo com o equilíbrio das forças sociais. Quando
se descentraliza a escolha dos membros da jurisdição constitucional consonante os
imperativos políticos acaba-se com o gap existente entre as suas decisões e os demais
poderes componentes do Estado, porque todas as forças políticas concorreram para a escolha
dos membros da Egrégia Corte. As suas decisões deixam de apresentar a aparência de um
corpo estranho que se imiscue na esfera pública sem nenhum tipo de respaldo da esfera
política que a propulciona.
A participação de órgãos constitucionalmente estabelecidos também tem a finalidade
de combater a assertiva de que se tornando o Supremo Tribunal Federal um tribunal
constitucional haveria um desequilíbrio na separação dos poderes, com um
superdimensionamento do Colendo Tribunal, que preponderaria com relação aos demais
poderes estabelecidos. Firmando-se a pluralidade e a representatividade como requisitos
para a composição do STF, há a formação de uma simbiose intrínseca entre o órgão que
exerce a jurisdição constitucional e os demais órgãos estabelecidos, impedindo que as
decisões de tutela da Constituição sejam tomadas através de um formalismo auto-referencial,
alienadas das demandas sociais.
Como afirma Leopoldo Lia, a legitimidade constitucional do órgão incumbido de
exercer a jurisdição constitucional não pode ser contestada pela falta de um vínculo com as
aspirações sociais, daí advindo a importância de uma escolha plural dos membros que a
compõem.582 Estabelecer conexões das decisões do Superior Tribunal Federal com o
sentimento imperante na sociedade pode ser obtido pela escolha plural e representativa dos
seus membros, conquistando o apoio de importantes órgãos representativos da sociedade
582 ELIA, Leopoldo. “La Corte Nel Quadro Dei Potere Constituzionale”. In: Corte Costituzionale e Sviluppo della Forma di Governo in Itália. Bologna: Mulino, 1982. P. 518-19.
436
civil, o que propicia um largo debate público, onde se permite o afloramento das mais
diversas opiniões, como forma de se sedimentar a legitimidade do processo de escolha.
A democratização da escolha dos ministros, componentes do Supremo Tribunal
Federal, não significa uma partidarização das decisões da jurisdição constitucional. Os
choques comumentes ocorridos na seara política não podem ser transpostos para as decisões
do STF, que têm uma natureza jurídica, apesar de elevado grau de discricionariedade que
apresentam. As decisões políticas apresentam diversas características que são incompatíveis
com as decisões judiciais, o que impede que elas possam ser confundidas, sob pena de
ocorrer uma perda da concretude normativa dos pronunciamentos judiciais que se
caracteriza justamente como uma finalidade contrária daquela que se quer alcançar.
Inexiste um critério determinado para a fixação dos membros dos tribunais
constitucionais, sendo as razões de conteúdo sócio-político o que dita o número dos seus
membros, variando muito de acordo com as peculiaridades de cada país. O número de
componentes do Tribunal Constitucional alemão é de dezesseis, do espanhol de doze, do
italiano de quinze e do português de treze. Condizente com as dimensões territoriais do
Brasil, a sugestão é que o número de ministros componentes do Supremo Tribunal Federal,
seja aumentado para quinze membros, retornando a composição estabelecida
originariamente pela Constituição de 1891.
De acordo com o princípio da pluralidade, que se configura como um dos
norteadores da potencialização da legitimidade das decisões da jurisdição constitucional, a
escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal não pode ficar adstrita aos imperativos
da vontade do Presidente da República, mesmo que depois tenha a indicação de ser aprovada
pelo Senado Federal, que no Brasil, infelizmente, não passa de mero formalismo jurídico,
pois até hoje nenhuma indicação foi rejeitada. A escolha necessita ser democratizada,
permitindo a participação dos poderes constitucionalmente estabelecidos, no que reforça o
grau de legitimação dos membros do Egrégio Tribunal e forçosamente de suas decisões.
Na Itália, um terço dos membros do tribunal é indicado pelo Presidente da República,
com contra-firma do Presidente do Conselho, um terço é eleito pelo Parlamento, em sessão
conjunta, e um terço pela Suprema Magistratura Ordinária e Administrativa; a Corte de
437
Cassação indica três, o Conselho de Estado indica um e a Corte de Contas indica outro.583
Na Alemanha, metade dos membros do tribunal é eleita pelo Conselho Federal e a outra
metade pelo Parlamento Federal. Dos dezesseis juízes, seis devem pertencer aos tribunais
superiores, os demais podem ser livremente escolhidos, desde que atendam aos requisitos
legais.584 Em Portugal, dez dos membros do tribunal são escolhidos pela Assembléia da
República e três pelo próprio Tribunal; seis dentre os juízes designados pela Assembléia da
República são obrigatoriamente escolhidos dentre os juízes dos tribunais de jurisdição
ordinária.585 Na Espanha, quatro membros são escolhidos pelo Congresso, quatro pelo
Senado, dois pelo governo e dois pelo Conselho Geral do Poder Judiciário.586
No Brasil, um terço dos membros do Supremo Tribunal Federal deveria ser escolhido
pelo Congresso Nacional, um terço pelo Presidente da República, com a confirmação do
Senado Federal, e o outro um terço pelos juízes componentes do Poder Judiciário. Dessa
forma, haveria uma democratização na escolha dos componentes da jurisdição
constitucional, com a consecução lapidar do princípio da pluralidade.
A definição de um mandato prefixado para os membros do Supremo Tribunal
Federal, igualmente serve para densificar a legitimidade de origem de suas decisões. Quando
a duração dos mandatos é vitalícia, as modificações na conjuntura política não são
acompanhadas por uma modificação na sua composição, o que gera uma disparidade entre o
sentimento da sociedade e o teor das decisões proferidas. Ao contrário, quando os mandatos
são por períodos determinados, impedindo-se reeleição ou reeleições sucessivas, existe a
possibilidade de sua composição acompanhar a dinâmica das forças sociais, havendo uma
sincronia entre a sociedade e a composição do órgão, que exerce a fiscalização
constitucional.
Instituindo-se os mandatos por tempo determinado, para os membros da jurisdição
constitucional, não haverá o perigo de petrificação de suas decisões judiciais porque o
583 MARTINES, Temistocle. Diritto Costituzionale. 10 ed., Milano: Giuffrè, 2000. P. 450-451. 584 RITTERSPACH, Theo. Legge sul Tribunale Costituzionale della Repubblica Federale di Germania. Firenze; Centro Editoriale Europeo, 1982. P. 7-9. 585 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2002. P. 678-679. 586 CONDE, Enrique Álvares. Curso de Derecho Constituconal. Vol. II. 2 ed., Madrid: Tecnos, 1997. P. 294-296.
438
mandato de seus membros será fixado por tempo determinado, passando a acompanhar de
forma mais sincrônica a evolução das demandas sociais. Dessa forma, a legitimidade do
órgão que exerce a jurisdição constitucional passa a ser haurida também dos poderes
estabelecidos, estabelecendo-se duas ligações com o princípio da soberania popular: a do
Poder Constituinte e a dos poderes estabelecidos, cabendo a estes renovar a legitimidade
sucessivamente dentro de um determinado período. Portanto, instituindo-se o mandato por
tempo determinado para os membros do órgão que exercem a jurisdição constitucional, a
aparente dicotomia entre esse órgão e o princípio majoritário é arrefecida, sinalizando o
importante papel desempenhado pelos poderes estabelecidos e pela sociedade civil.
A duração para os mandatos mais comum nos tribunais constitucionais é de nove
anos, sendo este lapso temporal adotado pelos tribunais da Itália, Espanha, Portugal. O
Tribunal Constitucional alemão adota o prazo de doze anos como duração para o exercício
dos seus membros. A atual vitaliciedade dos ministros do Supremo Tribunal no Brasil foi
estabelecida na Constituição de 1891, no seu art. 57, transposta do modelo adotado pela
Suprema Corte norte-americana.
Consonante com a maioria dos tribunais constitucionais europeus a sugestão é que o
mandato dos ministros do Supremo Tribunal Federal seja fixado em nove anos. Este lapso
temporal possibilita, por um lado, que os ministros tenham estabilidade por um tempo
razoável nos seus cargos e por outro lado, não é demasiadamente longo para que o indicado
possa se desvencilhar das circunstâncias fáticas que propiciaram o seu provimento.
Requisito cogente para a efetivação de todas essas nomeações, seguindo a linha
ofertada pelo princípio da representatividade, é que essas indicações consigam o apoio
substancial do órgão que o está respaldando, geralmente exigindo altos quóruns, como por
exemplo o de dois terços. Devido ao alto quórum exigido, a indicação deve contar com um
amplo consenso, o que permite que a minoria presente nos órgãos competentes para a
nomeação possa vetar o nome escolhido pela maioria que não tenha aglutinado grande
consenso em torno de si. O quórum de dois terços configura-se como um ótimo vetor para
garantir representatividade aos indicados para compor o Supremo Tribunal Federal.
439
A reeleição dos membros componentes dos mencionados tribunais não foi abrigada
pelos referidos tribunais constitucionais europeus porque a possibilidade de manutenção dos
juízes em seus cargos poderia turvar o seu livre convencimento, prolatando decisões com a
finalidade de atender aos interesses daqueles grupos políticos que pudessem garantir a sua
manutenção no cargo.587 Por causa desse motivo a instalação de um tribunal constitucional
no Brasil não pode permitir a reeleição dos seus ministros.
Além de ter um mandato fixo de nove anos, sem possibilidade de reeleição, a
transformação do Supremo Tribunal Federal em tribunal constitucional deve ter uma
renovação parcial dos seus componentes. A idéia é que a renovação seja realizada a cada três
anos, abrangendo em cada uma dessas um terço dos seus componentes. Essa constante
modificação dos componentes do STF abre espaço para uma maior adequação entre as
decisões proferidas e os anseios sociais que exercem influência na indicação dos juízes, o
que reforça a legitimidade da jurisdição constitucional.
Uma maior exigência da capacitação profissional dos escolhidos para ocupar o
Egrégio Tribunal brasileiro também representa um fator relevante para a sua legitimação,
devendo se configurar como requisito imperioso para a escolha de seus membros. A
Constituição de 1988 exige dos indicados para compor o STF: ser brasileiro nato maior de
trinta e cinco anos; reputação ilibada e notório saber jurídico; mais de dez anos de exercício
da advocacia. Esses critérios, por sua ampla generalidade, permitem a escolha de ministros
que não ostentam grande legitimidade no seu meio profissional.
Os critérios poderiam ser mais precisos, exigindo-se, como nos Tribunais
Constitucionais europeus, que parte dos seus ministros sejam escolhida entre os advogados
mais renomados do país, parte dentre os professores universitários catedráticos e parte entre
os membros da magistratura e do ministério público que se destacassem pelo exercício de
suas funções. Como foi declarado em um estudo realizado pela biblioteca do Tribunal
Constitucional espanhol, ressalvado, em alguns casos, a obrigatoriedade da presença de
587 MORBIDELLI, G., PEGORARO, L., REPOSO, A. & VOLPI, M. Diritto Costituzionale Italiano e Comparato. 2. ed., Bologna: Monduzzi, 1997. P. 840.
440
juízes da jurisdição ordinária, boa parte dos magistrados constitucionais são professores
universitários de grande estatura nos seus países.588
Esses critérios mencionados não deixam de ser igualmente genéricos, mas podem
servir para construir uma exigência que os membros indicados para o Supremo Tribunal
Federal realmente possuam uma notória capacitação profissional que possa cimentar a sua
legitimidade.
Requisitos mais rígidos também deveriam fazer parte do processo de seleção dos
membros do Poder Judiciário que, com a transformação do STF em tribunal constitucional,
iriam verificar se há afronta ao texto constitucional e remeter as decisões ao Colendo
Tribunal para julgamento. Os critérios para acesso ao cargo de magistrado deveriam ser mais
rígidos, cobrando dos candidatos não apenas uma cultura jurídica, fruto de alguns anos
isolados, decorando códigos que garante a sua aprovação – decoram os códigos das leis, mas
se esquecem do código da vida. Uma formação cultural mais sólida deveria ser um dos
requisitos necessários, compreendendo um cabedal de conhecimentos zetéticos que incluísse
principalmente a ética. Igualmente importante é exigir um tempo mínimo no exercício da
advocacia ou funções afins, como forma de evitar que pessoas muito jovens, no mais das
vezes inexperientes, possam chegar muito cedo à magistratura.
Danilo Zolo concorda com a exigência de critérios mais rígidos nos processos de
seleção dos membros da magistratura, incluindo a jurisdição constitucional, levando-se em
conta requisitos morais, aliados à necessidade de uma melhor formação cultural, como
forma de auferir uma maior densidade de legitimidade às decisões judiciais.
As sugestões apresentadas não têm a pretensão de servir como parâmetro para a
transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, sua finalidade é
apenas iniciar as discussões para que o debate promovido pelos mais amplos setores da
sociedade possa encontrar as diretrizes mais adequadas à realidade social brasileira.
588 Servicio de Estudios, Biblioteca y Documentación Del Tribunal Constitucional. “Modelos de Renovación Personal de Tribunales Constitucionales”. In: Revista Española de Derecho Constitucional. Ano 21. Número 62, Mayo/agosto. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001. P. 218.
441
Pelos motivos já fartamente expostos configura-se tarefa premente a reestruturação
do Supremo Tribunal Federal para que haja o aumento da legitimidade de suas decisões,
tornando-o capaz de assegurar as demandas oriundas de um Estado Democrático Social de
Direito. Esse processo pode ser realizado pelo Poder Constituinte, mas nada o impede que
seja realizado pelo Poder Reformador e esta é a forma mais factível diante da nossa
realidade hodierna. Claro que surgirá muita oposição contra essa reestruturação do STF,
principalmente por parte daqueles que terão interesses contrariados, o que não será um óbice
intransponível, desde que os dispositivos legais que os prescrevem tenham sido
obedecidos.589
16.4) A Decisão da Jurisdição Constitucional Baseada no Entrenchement
dos Valores Constitucionais
O papel da Constituição não é apenas servir como um limite formal para a atuação do
Poder Legislativo, mas, ao contrário, atuar como uma norma substancial que exprime a
tensão entre a concretização de uma determinada idéia de sociedade com a realidade fática
vigente. A jurisdição constitucional tem a obrigação de velar pela concretização dos valores
da Constituição, desenvolvendo uma atividade mais ampla do que a de simplesmente
declarar a nulidade das normas inconstitucionais, no sentido meramente negativo, mas
igualmente orientar e fornecer as condições necessárias para a realização dos valores
contidos no seu texto.590
A concepção de uma Constituição como uma ordem concreta de valores, arrimado
em princípios da Lei Maior, não desnatura o seu caráter jurídico. A Carta Magna sofre uma
intensa influência da seara fática, indubitavelmente, mas essas interferências são moldadas
sob prismas jurídicos, de acordo com o programa estabelecido pelo conteúdo normativo. A
589 RAWLS, John. Liberalismo Político. Trad. Gianni Rigamonti. Milano: Edizioni di Comunità, 1994. P. 202 590 GIOVANNELLI, Adriano. Dottrina Pura e Teoria Della Costituzione in Kelsen. 2 ed., Milano: Giuffrè, 1983. P.282-283.
442
segurança do ordenamento jurídico se mantém inalterada, uma vez que os valores adotados
pela Constituição são incorporados em dispositivos normativos constituindo-se em
parâmetro para a decisão dos operadores do Direito.
Os valores agasalhados pelos princípios jurídicos não oferecem aos tribunais
constitucionais o poder de decidir sem o alicerce dos instrumentos normativos. A maior
discricionariedade oferecida pelos princípios não permite ao Poder Judiciário o exercício da
função de criação normativa como fora prevista na separação dos poderes ao Legislativo. A
sua legitimidade é haurida pelos mandamentos constitucionais, com a finalidade de
concretizar os direitos fundamentais, amparado na reestruturação do Supremo Tribunal
Federal e no caráter dialógico do seu procedimento.
Não se pode imputar o atrelamento das decisões da jurisdição constitucional aos
valores concretos abrigados pela Constituição de 1988 um motivo de insegurança para o
ordenamento jurídico. A intenção é garantir a efetividade dos direitos fundamentais,
principalmente daqueles classificados como normas programáticas, em que pairam uma
maior discricionariedade na intensidade de sua concretização por parte do legislador
infraconstitucional.
O problema de se adotar uma concepção da Constituição como um complexo de
valores é determinar a extensão desses valores que estão contidos nos dispositivos
constitucionais em estruturas principiológicas. A solução encontrada é através do princípio
da “densidade suficiente” ou do “mínimo possível”.
Ao defender que a Constituição é uma “ordem objetiva de valores” e que a
concretização dos direitos fundamentais deve garantir um conteúdo mínimo ou densidade
suficiente dos seus preceitos está se tentando assegurar sua efetiva realização, mormente dos
direitos que têm uma natureza programática.591 Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal
assume uma relevante importância no sentido de efetivar o conteúdo mínimo ou a densidade
suficiente dos direitos fundamentais abrigados pela Constituição de 1988, tornando-se o
“guardião dos valores”, o instrumento de tutela e efetivação das prerrogativas dos cidadãos.
591 QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Sobre a Epistemologia da Construção Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. P. 258.
443
A definição de um “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” dos direitos
fundamentais se mostra bastante relevante para os direitos sociais e para todos aqueles que
necessitam da intervenção estatal para a sua concretização, ou seja, para todos aqueles que
necessitam efetivar não apenas prestações normativas, mas igualmente prestações fáticas.
Com relação aos direitos de primeira dimensão, atinentes às prerrogativas civis e políticas, a
simples abstenção da atuação dos entes estatais já é suficiente para a sua inteira
concretização.
Portanto, a maior relevância ao se precisar um “conteúdo mínimo”, ocorre naqueles
direitos fundamentais que necessitam de prestações efetivas dos entes estatais, haja vista
serem os direitos negativos incompatíveis com uma densificação do seu conteúdo, o que
impossibilita dividir esses direitos em um “núcleo duro” e uma “zona periférica”. Os direitos
de primeira dimensão não apresentam um substrato econômico significante, atingindo, esse
vetor, forte magnitude com relação às demais dimensões.592
A teoria da “densidade suficiente” ou do “conteúdo mínimo”deve ser concebida
como um entrincheiramento dos direitos fundamentais, entrenchment, no sentido de que as
prerrogativas dos cidadãos são fixadas em uma determinada intensidade e que essa
intensidade seja protegida para que a sua eficácia não se torne cambiante de acordo com as
variáveis sociais. Dessa forma, há uma proteção a precisão dos valores constitucionais, o
que impede a sua variação para atender a particularidades e aumenta a segurança jurídica do
conteúdo das normas constitucionais.593
A concepção de entrincheiramento assegura uma proteção ao conteúdo dos direitos
fundamentais, o que impede a sua ineficácia e a sua inconstância de acordo com os vetores
sociais. Contudo, o entrenchment não impede a evolução dos direitos, depois de garantir
592 “Justamente pelo fato de os direitos sociais prestacionais terem por objeto prestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Tal constatação pode ser tida como essencialmente correta e não costuma ser questionada. Já os direitos de defesa – precipualmente dirigidos a uma conduta omissiva – podem, em princípio, ser considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o objeto de sua proteção (vida, intimidade, liberdades, etc) pode ser assegurado juridicamente, independentemente das circunstâncias econômicas”. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 ed., Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2001. P. 263. 593 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules. A Philosofical Examinations of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1998. P. 42-43.
444
uma intensidade mínima reforçando sua unanimidade na sociedade, a sua finalidade
configura-se em expandir o entrincheiramento dos direitos fundamentais mais adiante,
propiciando maiores prerrogativas à sociedade.
O entrenchment do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais funciona como
uma garantia à efetivação desses direitos, impedindo um retrocesso na sua concretização. O
entrincheiramento, como o étimo da palavra já clarifica, significa o encastelamento do
“conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, expandindo esse
consentimento para o tecido social. Seu escopo é fortalecer a densidade normativa desses
direitos, realizando o que Canotilho chamou de solidificação da legalidade democrática.594
Partindo do consenso firmado pelo entrincheiramento dos direitos fundamentais, a
negociação para o seu desenvolvimento se torna mais fácil, já que o ponto de referência,
entrincheiramento, goza de grande grau de normatividade e legitimação social.
A teoria do entrincheiramento dos direitos fundamentais realiza uma reafirmação da
legitimação da jurisdição constitucional através de uma substantive justification, cujo
reflexo direto é a densificação dos direitos fundamentais. Os valores agasalhados pela Lex
Mater estabelecem parâmetros de racionalidade jurídica que fundamentam a aplicação das
normas constitucionais, justificando a sua própria eficácia, sem necessitar de procedimentos
destituídos de substrato material.595
Para que o Supremo Tribunal Federal possa densificar a legitimação da jurisdição
constitucional através do entrenchment do “conteúdo mínimo” dos direitos fundamentais, as
suas decisões têm que ter uma eficácia erga omnes e efeito vinculante, inclusive como a
prerrogativa de regulamentar dispositivos constitucionais quando estes não o forem
regulamentados pelo legislador infraconstitucional e, como conseqüência, impossibilitar o
exercício de direitos fundamentais. Dessa forma, muitos mandamentos da Constituição que
têm mera função retórica devem ter um conteúdo mínimo assegurado pelo STF, o que já
594 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998. p. 946. 595 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules. A Philosofical Examinations of Rule-Based Decision-Making in Law and in Life. New York: Oxford University Press, 1998. P. 94.
445
aconteceu em algumas de suas decisões com o intuito de obrigar que os poderes competentes
assegurem direitos sociais mínimos aos hipossuficientes, como o direito à saúde, à educação
etc.
Exemplo não de um “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” de um direito
fundamental, mas de um percentual orçamentário mínimo que deve ser aplicado na saúde
pelo Estado brasileiro, que de qualquer maneira garante um maior aporte de verbas para esse
direito fundamental imprescindível, tentando instituir um “conteúdo mínimo”, foi instituído
pela Emenda Constitucional n. 29, que determinou um percentual limite que deve ser
aplicado pela União, Estados, Município e pelo Distrito Federal, e em cada ano esse
percentual deve ser acrescido pela variação do PIB (Produto Interno Bruto). Essa emenda
permitiu que o Supremo Tribunal Federal pudesse efetivamente exercer a tutela para que os
recursos destinados à saúde não sejam alocados para outros setores.
Na determinação do “conteúdo mínimo”, ou da “densidade suficiente” dos direitos
fundamentais, o Supremo Tribunal Federal não pode agir de forma arbitrária, já que os
fatores sócio-político-econômicos direcionam suas decisões, pois são esses fatores que
estruturam a composição política e são as forças políticas que indicam os componentes do
Egrégio Tribunal.596 Então, o Supremo Tribunal Federal, de acordo com a conjuntura fática,
determinaria uma “densidade suficiente” para os direitos fundamentais e zelaria para a sua
efetivação. Poderia, inclusive, traçar determinadas metas que deveriam ser alcançadas pelos
órgãos públicos dentro de um prazo prefixado, sob pena de se incorrer em crime de
responsabilidade.
Um direito fundamental é composto de duas partes: o seu “núcleo duro” e a sua
“zona periférica”. O “núcleo duro” ou “conteúdo essencial” configura-se como um limite
que deve ser respeitado pelo Supremo Tribunal Federal ao determinar a densidade de um
direito, que, de maneira nenhuma, pode ser desrespeitado pelas decisões judiciais,
proibindo-se o seu esvaziamento ou que ele se transforme em uma exceção. Esse “núcleo
duro” é definido como a própria essência do direito, que deve ser concretizada independente
596 O que obviamente exige a transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com a democratização da escolha e mandado fixo para os seus membros.
446
de conjecturas fáticas. A outra parte que compõe o direito fundamental é a “zona periférica”,
que será concretizada consonante a conjuntura fática, mas que o STF deve estipular um
desenvolvimento para que a densidade do direito possa ser aumentada.
O “conteúdo mínimo” ou “densidade suficiente” refere-se ao “núcleo duro” que, de
forma alguma, pode ser desprezado pelos órgãos estatais. A “zona periférica” refere-se à
extensão que os direitos fundamentais devem paulatinamente evoluir, atendendo às
diretrizes estipuladas pelo Supremo Tribunal Federal, sempre em sintonia com os fatores
sócio-político-econômicos. Entretanto, jamais haverá uma conclusão na concretização dos
direitos fundamentais, que sempre estarão em constante evolução pari passu com a evolução
da sociedade. A conclusão que se pode chegar é que sempre haverá uma “zona periférica” na
definição dos direitos fundamentais, que caberá ao STF velar pelo seu desenvolvimento
sintonizado com as demandas sociais.
A finalidade da definição de um “núcleo duro”dos direitos fundamentais não é
limitar sua concretização, muito pelo contrário, configura-se como uma forma de maximizar
a sua eficácia. Por isto, a teoria da “reserva do possível”, que advoga que os direitos
fundamentais, tem uma concretização de acordo com as variáveis sócio-político-
econômicas, não podendo restringir a efetividade das normas constitucionais, cerceando a
extensão do “núcleo duro”. A sua aplicação na realidade brasileira deve ter o escopo de
garantir um constante incremento nas prerrogativas dos cidadãos e não se transformar em
um óbice, sob a alegação de que a seara fática não oferece condições mínimas para a
concretização dos direitos fundamentais.
O princípio da “densidade suficiente”, ou do “conteúdo mínimo”, consiste em se
garantir aos direitos que exigem uma concretização jurídica-política uma precisão do seu
conteúdo, que ao mesmo tempo em que protege o substrato material contido na
Constituição, não cerceia a discricionariedade de escolha inerente ao Poder Executivo e
Legislativo, que é própria do regime democrático. A importância do entrenchment da
“densidade suficiente” dos direitos fundamentais, atuando concomitantemente no “núcleo
duro” e na “zona periférica” é a solidificação desses direitos no ordenamento, o que assegura
a sua eficácia.
447
A discussão acerca do princípio da “densidade suficiente”, ou “conteúdo mínimo”,
reside em se precisar o seu conteúdo, que não pode ser encontrado na seara jurídica, em
razão do caráter aberto dos princípios, o que leva inexoravelmente a uma decisão política.
Ou seja, o idêntico problema para se adotar uma concepção principiológica da Constituição.
A Constituição portuguesa prevê uma distinção básica entre direitos, liberdades e
garantias, que têm uma concretização jurídico-interpretativa, e direitos econômicos, sociais e
culturais, que tem uma concretização jurídico-política da Lei Maior. Com isto, a mencionada
Constituição agasalhou a tese de um “núcleo duro” dos direitos fundamentais e de um “zona
periférica”. Os direitos, liberdades e garantias foram regulamentados no título II, da parte I,
e os direitos econômicos, sociais e culturais no título III, da mesma parte I, evidenciando a
concepção da Constituição, como uma “ordem objetiva de valores”, que assume maior
significado para os direitos que exigem intervenção estatal para a sua concretização.
Os direitos, liberdades e garantias, estruturados tipicamente em regras, são
diretamente aplicáveis e por isto são passíveis de uma concretização jurídico-interpretativa.
Já os direitos econômicos, sociais e culturais, que são estruturados tipicamente em
princípios, dependem para a determinação do seu conteúdo de opções políticas, próprias dos
órgãos políticos que compõem o aparelho estatal. Por isto, são passíveis de uma
concretização jurídico-política, porque se referem a questões que nitidamente envolvem uma
decisão política que tem que ser tomada com um alto substrato de legitimidade.
Esse é um exemplo claro de que a maior importância para o estabelecimento de um
“conteúdo mínimo” aos direitos fundamentais refere-se primordialmente aos que são
concretizados de forma continuada no tempo, e não aos direitos que são concretizados de
forma instantânea, como os de primeira dimensão, que exigem apenas uma omissão por
parte do Estado. Destarte, o conteúdo dos direitos econômicos, sociais e culturais é
constituído de forte carga valorativa, cujas conjecturas sócio-político-econômicas
direcionam o conteúdo axiológico das normas constitucionais. Enquanto que os direitos,
liberdade e garantia têm uma natureza nitidamente jurídica porque sua concretização
necessita de reduzida carga valorativa.
448
Condizente com a “zona periférica” dos direitos fundamentais, o Tribunal
Constitucional português decidiu que não se pode exigir do legislador uma regulamentação
uniforme para todos os preceitos que exijam uma concretização jurídica-política, aceitando-
se uma abertura razoável para as opções legislativas desde que elas não impliquem no
cerceamento da essência do dispositivo constitucional. O instrumento para garantir a
autonomia legislativa e a defesa da cominação, contida na Constituição, foi realizado através
da construção da teoria da “densidade suficiente” ou do “conteúdo mínimo”.597
O Tribunal Constitucional Federal alemão foi o pioneiro na concepção da
Constituição como uma “ordem de valores”, ou um “sistema de valores”. Para assegurar
concretude normativa aos direitos fundamentais, ele defende a realização de um conteúdo
mínimo, principalmente daqueles que necessitam da intervenção do Estado para a sua
realização.
A Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, não menciona expressamente que há um
direito fundamental, inerente a uma assistência adequada por parte dos órgãos estatais, que
garanta os cidadãos contra as provações econômicas. Apesar dessa omissão, o Tribunal
Constitucional Federal alemão se posicionou acerca da existência de um mínimo vital que os
órgãos estatais devem garantir a todos os cidadãos. Assim se manifestou o mencionado
tribunal em uma importante decisão, em 1975: “Certamente, a assistência social aos
necessitados é um dos deveres óbvios do Estado Social. Necessariamente, isto inclui a
assistência social aos cidadãos que, em virtude de vicissitudes físicas ou mentais, estão
impedidos de desenvolver-se pessoal e socialmente e não podem assumir por si mesmo a sua
própria subsistência. Em todo caso, a comunidade estatal tem que assegurar as condições
mínimas para uma existência humana digna”.598
Como pode-se perceber, pela atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão, o
efetivo desenvolvimento da jurisdição constitucional configura-se de suma importância para
a defesa e a concretização dos direitos fundamentais. Para o alcance desse objetivo, é
597 VIEIRA DE ANDRADE, J. C. “Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P. 83. 598 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales. P. 2002. P.422.
449
imprescindível a atuação do Supremo Tribunal Federal como guardião do “conteúdo
mínimo” ou da “densidade suficiente” dos direitos fundamentais, utilizando-se da teoria do
entrenchment.
Mostra Konrad Hesse a importância da atuação do Tribunal Constitucional alemão
para a efetividade dos direitos fundamentais alemães: “Na atualidade, é decisiva, para uma
ampliação da garantia e efetividade dos direitos fundamentais, a proteção por parte dos
tribunais. Na época da Constituição do Reich de 1919 havia apenas reduzidas oportunidades
para que os direitos fundamentais pudessem se tornar efetivos por parte dos tribunais.
Continuou sendo escassa, portanto, a importância prática desses direitos. Sob a Lei
Fundamental, essa efetividade resulta plena e sem fissuras. Tal efetividade conseguiu que os
direitos impregnem não apenas a vida pública, mas toda a vida jurídica – ocasionalmente
inclusa até esta relação circunstanciada”.599
16.5) Densificação da Legitimação da Jurisdição Constitucional Brasileira
Apesar de a jurisdição constitucional ter ganhado uma maior relevância na defesa da
democracia e dos direitos fundamentais, com a criação dos tribunais constitucionais na
Europa e com a extensão dos direitos civis nos Estados Unidos, de longa data, ela é
considerada como um dos alicerces para a construção de um pleno regime democrático,
tanto que no século XIX Alexis de Tocqueville considerou o Poder Judiciário,
principalmente pelas atividades desempenhadas pela Suprema Corte norte-americana, como
um dos elementos mais relevantes para a conservação da república democrática nos Estados
Unidos.600
O aumento na atuação da jurisdição constitucional é imprescindível para atender às
atividades inerentes a um Estado Democrático Social de Direito. Ela representa o
599 BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE & HEYDE. Manual de Derecho Constitucional. 2 ed., Trad. Antonio López Pina. Madrid: Marcial Pons, 2001. P. 112. 600 TOCQUEVILLE, Alexis. La democracia in America. Trad. [ s.t], Milano: Rizzoli, 1999. P. 290.
450
instrumento adequado para garantir a concretização dos mandamentos constitucionais, que
são as normas que foram pactuadas pela sociedade para estruturar a organização política e
explicitar os direitos fundamentais. Contudo, a jurisdição constitucional não se configura
como uma panacéia para a solução dos males que atinge a humanidade no terceiro milênio.
A construção de um Estado de bem-estar depende de vários fatores, de circunstâncias sócio-
político-econômicas que perpassam os limites estreitos da seara jurídica.
Para que haja uma conjuntura propícia ao desenvolvimento das atividades da
jurisdição constitucional no sentido de tutelar os dispositivos constitucionais contidos na
Constituição de 1988, a legitimidade das decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal
deve ser repensada. A justificativa de que suas decisões encontram amparo na Carta Magna,
na forma de sua composição ou no seu procedimento judicial mostra-se insuficiente para
fundamentar a multiplicidade de searas de sua incidência. É necessário encontrar novos
elementos que possam amparar a legitimidade da jurisdição constitucional.
A densificação da legitimidade da jurisdição constitucional brasileira não é uma
tarefa fácil de ser realizada, porque envolve difíceis obstáculos que devem ser superados. A
sua justificação passa a ser reconstruída, com base em diversos alicerces que contribuem
para uma forte aceitação de suas decisões judiciais. O vetor comum dessa densificação é a
tentativa de cumprir as funções inerentes ao Estado Democrático Social de Direito, fazendo
com que a estruturação e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal possa estar adstrito
aos parâmetros delineados pelo regime democrático.
Além da premência de se encontrar elementos externos de justificação, a própria
jurisdição constitucional e o Poder Judiciário também exercem uma função legitimante, não
apenas de suas decisões judiciais, mas também dos demais poderes estabelecidos. Eles, com
a remodelação da estrutura de poder, não estão mais à reboque das decisões proferidas pelos
poderes Executivo ou Legislativo, aumentando cada vez mais sua seara de atuação.
Baseando suas decisões nos dispositivos constitucionais, preponderantemente nos direitos
451
fundamentais, acrescentam um plus ao sistema de freios e contrapesos, ao mesmo tempo em
que obtém uma legitimidade substancial para a sua atuação.601
Essa legitimação intrínseca da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário
acontece na medida em que os cidadãos, principalmente os menos instruídos, passam a vê-
los como esteios para os seus clamores. Em virtude da reestruturação das relações jurídicas,
que deixam de ser bilaterais e passam a ser plurisubjetivas, e dos avanços da teoria
processual, a possibilidade do ingresso dos cidadãos em juízo se tornou mais fácil e ágil,
podendo solucionar problemas que até então eram de alçada eminentemente privada. O que
contribui para aumentar a confiança nas decisões judiciais.
O cidadão comum demonstra muita confiança nas decisões judiciais de um modo
geral, em muitos casos se configura na única possibilidade de aquisição de direitos que lhes
foram outorgados pela Carta Política. As decisões judiciais passam a exercer uma espécie de
competência suplementar, garantindo determinados direitos que deveriam ser ofertados por
outros poderes ou órgãos públicos. Não resta a menor dúvida, de que muitas dessas decisões
adentram no exercício da competência de outros poderes, mas tal atuação ocorre diante da
omissão desses mesmos poderes de cumprir uma obrigação que lhes foi imposta pela
Constituição.
O primeiro elemento externo de legitimação consiste na revalorização da força
normativa da Constituição. O ponto em comum de todas as concepções sobre a Lei Maior é
a sua supremacia e a relevância que ocupa no ordenamento jurídico, sem esquecer o seu
valor fundante para o regime democrático. Por isso, configura-se a Carta Magna como o
601 “Assim, enquanto se estabelece um estreito circuito de caráter operativo entre o judiciário e a corte constitucional, desenvolve-se não apenas uma capacidade de intervenção assaz incisiva da corte no processo de legitimação, mas ainda, de modo geral, uma inversão daquela situação descrita anteriormente em que havia um forte substrato político a legitimar a esfera jurídica reduzida a sua projeção. Através do processo de constitucionalização, agora será o judiciário a legitimar a esfera política em crise de auto-suficiência[...].O processo de constitucionalização, em outro modo, cria uma situação dinâmica em que a instância jurisdicional acumula um poder sempre maior de intervenção, mas também um poder sempre maior de concorrer, de maneira direta ou indireta, com a legitimação ou deslegitimação da política, por intermédio de standards constitucionais. Na incapacidade dos mecanismos representativos de assegurar suficiente legitimação das decisões sobre assuntos internos dos Estados, abrem-se novos espaços para a atuação da jurisdição”. FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 212-213.
452
vetor proeminente de atuação da jurisdição constitucional, e sob este parâmetro deve estar
adstrita para se contrapor às incertezas sociais. Como é a norma que detém maior
legitimidade, essa aceitação é transposta para as decisões judiciais que nela se amparam.
O grau de intensidade mais proeminente de legitimação da jurisdição constitucional,
indubitavelmente, é auferido pela concretização dos direitos fundamentais. Estes são as
normas que possuem maior aceitação no universo jurídico, constituindo-se em invariáveis
axiológicas que vão paulatinamente se sedimentando no inconsciente popular. Com a
finalidade de concretizar os direitos fundamentais, permite-se uma maior atuação das
decisões do Supremo Tribunal Federal, exorbitando a clássica e retrógrada barreira
construída pela separação dos três poderes.
A problemática de se definir o conteúdo dos direitos fundamentais é solucionada
com a determinação da sua “densidade suficiente” por parte do Supremo Tribunal Federal,
tomada por uma decisão judicial em sintonia com os anseios abrigados na sociedade e dentro
das condições materiais de determinada época histórica. A proteção dessa densidade
suficiente é realizada por meio do entrenchment dos direitos fundamentais, consolidando a
determinação da “densidade suficiente” por todos os meios jurídicos disponíveis, haja vista
o intenso teor de sua coercitividade, inclusive por intermédio de atividades legislativas.
O procedimento judicial, que regulamenta as decisões da jurisdição constitucional,
da mesma forma desempenha uma importante função no processo de legitimação, mas não
de forma autônoma, auto-referencial; ele é um instrumento imprescindível na medida em
que contribui para a concretização dos valores substanciais da Constituição. Como o
controle abstrato de constitucionalidade é objetivo, sem partes ou contenda, há necessidade
de se firmar no procedimento um caráter dialógico, o que possibilita que determinados
operadores jurídicos possam intervir no processo e forcejar um amplo debate público para o
incremento da legitimação das decisões judiciais.
Outros dois elementos de reforço da legitimação da jurisdição constitucional é a
transformação do Supremo Tribunal Federal em um tribunal constitucional, com todas as
suas prerrogativas, e a modificação na forma de nomeação dos seus ministros. A
transformação do STF em um tribunal constitucional colocá-lo-ia como um órgão
453
independente dos poderes estabelecidos, o que lhe daria uma maior imparcialidade e
diminuiria o número de processos posto à sua apreciação, já que deixaria de ser uma esfera
recursal em sentido amplo. A modificação na nomeação de seus ministros se daria sob o
primado da pluralidade, em que a escolha pertence aos poderes estabelecidos, da
representatividade, o que exige a formação de um amplo consenso em torno do indicado, e
de temporalidade de seus mandatos, com lapsos temporais fixados sem a possibilidade de
reeleição.
Bastante interessante é o contra-ponto, realizado por Maria Rosaria Ferrarese, à
assertiva de Tocqueville exposta no início do capítulo. O advento de uma sociedade
democrática surgida das ruínas de uma sociedade aristocrática, em virtude do processo de
globalização ensejado pela pós-modernidade, passou a ser assegurado por uma elite de
caráter “aristocrático”, a jurisdição constitucional.602 Ou seja, o órgão que exerce a
jurisdição constitucional, no caso brasileiro o Supremo Tribunal Federal, é formado por
membros que não foram escolhidos pelo povo, e em diversas ocasiões, tem que tomar
decisões contrárias à maioria da população para assegurar os mandamentos constitucionais,
principalmente para defender os direitos fundamentais, e os seus ministros são chamados a
exercer a sublime missão de garantir o regime democrático e o primado da Constituição.
Esse é o signo que marca os contornos da construção de uma nova estrutura política, que
tem à frente o grande desafio de criar um efetivo Estado Democrático Social de Direito.
602 FERRARESE, Maria Rosaria. Il Diritto al Presente. Globalizzazione e Tempo della Istituzione. Bologna: Mulino, 2002. P. 192.
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