lesley pearse - a melodia do amor
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Ficha Técnica
Título original: GIPSY
Título: A Melodia do Amor
Autor: Lesley Pearse
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Craig Fordham
ISBN: 9789892312033
Edições ASA II, S.A.
é uma chancela do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201
© 2008, Lesley Pearse
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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www.leya.pt
Para o meu neto Brandon.
Minha alegria e meu maior tesouro.
CAPÍTULO 1
Liverpool, 1893
–Beth, pára de tocar essa música do Demónio e vem ajudar-me! – gritou
Alice Bolton da cozinha, num tom zangado.
O epíteto com que a mãe mimoseava a sua execução musical pôs um
sorriso malicioso nos lábios de Beth, que, na rebeldia dos seus quinze anos, se
sentiu por momentos tentada a continuar a tocar ainda mais alto e com mais
entusiasmo. Mas a mãe andava particularmente irritável, naqueles últimos
tempos, e o mais certo era entrar por ali adentro e tirar-lhe o violino, de modo
que o guardou no velho estojo e saiu da sala de estar para fazer o que lhe
diziam.
Ia a entrar na cozinha quando, vindo da oficina por baixo do
apartamento, lhe chegou aos ouvidos um baque surdo, imediatamente seguido
pelo barulho de objectos pesados a cair.
– Que foi isto? – exclamou Alice, voltando-se com a chaleira que
acabava de tirar do lume.
– O papá deve ter atirado qualquer coisa ao chão – respondeu Beth.
– Não fiques aí especada, vai lá ver – ordenou a mãe, ríspida.
Beth deteve-se no patamar e espreitou, por cima do corrimão, para a
escada que fazia a ligação com a oficina. Ouvia coisas a rebolar lá em baixo,
mas não o som dos palavrões que habitualmente acompanhavam os acidentes.
– Está bem, papá? – gritou.
A tarde chegava ao fim, e, apesar de ainda não terem acendido os bicos
a gás do apartamento, ficou surpreendida por não ver ao fundo das escadas o
clarão das luzes da oficina. O pai era sapateiro e precisava de uma boa
iluminação para os trabalhos mais minuciosos, de modo que acendia sempre
os candeeiros bem antes de a luz diurna começar a esmorecer.
– O que foi que esse desastrado fez agora? – berrou a mãe, da cozinha.
– Diz-lhe que já chega de trabalho por hoje. O jantar está quase pronto, de
todos os modos.
Não havia muitas carroças nem carruagens a passar por Church Street,
uma das principais ruas comerciais de Liverpool, às sete da tarde, pelo que o
pai devia ter ouvido claramente o comentário ofensivo da mulher. Como ele
não respondeu, Beth pensou que devia estar na latrina, no pátio das traseiras, e
que talvez um gato vadio tivesse entrado na oficina e derrubado qualquer
coisa. Da última vez que acontecera, o conteúdo de uma lata de cola
derramara-se pelo chão e tinham sido precisas horas a esfregar para limpar
toda aquela porcaria. A recordação do incidente fê-la descer as escadas a toda
a pressa, para verificar.
O pai não fora à latrina, uma vez que a porta do pátio das traseiras
estava trancada por dentro, e, quando entrou na oficina, Beth encontrou-a
quase às escuras: todas as persianas tinham sido baixadas.
– Onde está, papá? – perguntou em voz alta. – Que barulho foi aquele?
Não havia sinais de um gato, e nem sequer de qualquer coisa fora do
lugar. A porta da rua estava fechada e trancada; além disso, o pai tinha varrido
o chão, arrumado a banca de trabalho e pendurado o avental de couro no
gancho pregado à parede, como fazia todas as tardes.
Intrigada, Beth olhou para a porta da arrecadação onde o pai guardava o
couro, as formas e outros equipamentos. Tinha de lá estar, mas não fazia ideia
de como conseguia ele ver fosse o que fosse com a porta fechada numa
divisão que era escura mesmo em pleno dia.
Um estranho pressentimento arrepiou-lhe a pele. Desejou que o irmão,
Sam, estivesse em casa. Mas Sam saíra para ir entregar umas botas a um
cliente que morava a alguns quilómetros de distância e não estaria de volta tão
cedo. Não se atreveu a chamar a mãe, com receio de apanhar uma palmada por
ser «fantasiosa», o termo que Alice usava sempre que lhe parecia que a filha
estava a reagir com demasiada emoção. Mas a verdade era que, para a mãe, as
únicas coisas que deviam ocupar o espírito de uma rapariga de quinze anos
eram melhorar as suas habilidades na costura, na cozinha e noutras
competências domésticas.
– Papá! – chamou Beth, enquanto rodava a maçaneta da porta da
arrecadação. – Está aí?
A porta abriu-se apenas uma fresta, como se houvesse qualquer coisa a
prendê-la do outro lado, de modo que encostou o ombro à madeira e
empurrou. Ouviu um raspar nas lajes do chão, talvez uma cadeira ou uma
caixa, e empurrou com mais força até conseguir uma abertura suficiente para
poder enfiar a cabeça. Estava demasiado escuro para ver fosse o que fosse,
mas soube que o pai estava ali pelo cheiro que tão bem conhecia, uma mistura
de cola, couro e tabaco de cachimbo.
– Papá! Que está a fazer? Não se vê nada! – exclamou, mas ainda não
tinha acabado de falar quando lhe ocorreu que talvez o pai tivesse perdido os
sentidos ao ser atingido por qualquer coisa que lhe caíra em cima. Em pânico,
voltou à oficina para acender o candeeiro a gás. Antes ainda que a chama
crescesse o suficiente para iluminar a manga de vidro e derramar em redor
uma luz dourada, já ela estava de novo junto à porta da arrecadação.
Por um ou dois segundos, pensou estar a ver um grande saco de couro
em frente da janela, mas quando a luz na oficina se tornou mais brilhante,
percebeu que não era um saco, e sim o pai.
Estava suspenso de um dos ganchos do tecto, com uma corda à volta do
pescoço.
Gritou involuntariamente e recuou, horrorizada. A cabeça do pai rodava
de um lado para o outro, os olhos esbugalhados, a boca aberta num grito
silencioso. Parecia uma grande e pavorosa marioneta.
Estavam explicados os estranhos barulhos que tinham ouvido. Quando
ele afastara com um pontapé a cadeira em cima da qual se pusera, fizera cair
ao chão uma caixa cheia de latas de graxa e frascos de tinta para couro.
Eram os primeiros dias de Maio e, horas antes, Beth ia a caminho da
biblioteca a resmungar consigo mesma porque o pai não a deixava arranjar um
emprego. Acabara a escola no ano anterior, mas ele teimava que as filhas das
«pessoas finas» ficavam em casa a ajudar as mães até casarem.
Também Sam, o irmão, um ano mais velho do que ela, andava
contrariado por ter de ser aprendiz do pai. O que Sam queria era ser
marinheiro, ou estivador, ou soldador, ou fosse o que fosse desde que não
tivesse de estar trancado em casa e pudesse ter a companhia de outros rapazes.
O pai, porém, apontava para a tabuleta pendurada por cima da porta e
que dizia «Bolton & Filho, Botas e Sapatos», e esperava que Sam se sentisse
tão orgulhoso por ser o «Filho» como ele se sentira quando o seu próprio pai
mandara fazer aquela tabuleta, tantos anos antes.
Todavia, por mais frustrante que fosse verem as suas vidas planeadas
por terceiros, tanto Sam como Beth compreendiam as razões do pai. Os pais
dele tinham fugido da Irlanda para Liverpool em 1847, para escaparem a uma
morte lenta durante a grande fome da batata. Durante anos, tinham vivido
numa húmida cave em Maiden’s Green, um dos muitos infames e sórdidos
bairros degradados da cidade.
Fora lá que Frank, o pai de Sam e de Beth, nascera, um ano mais tarde,
e as suas recordações mais antigas eram do pai a ir de porta em porta com a
sua pequena carroça, nos bairros mais abastados de Liverpool, à procura de
botas e sapatos para consertar, e de a mãe a sair todos os dias para trabalhar
como lavandeira.
Quando tinha sete anos, Frank ajudava-os aos dois recolhendo e
entregando botas e sapatos para o pai ou rodando a manivela da máquina de
torcer roupa para a mãe. Cedo compreendera, mesmo quando tinha frio e fome
e o cansaço o esmagava, que a única maneira de fugir à pobreza era
trabalharem duramente até ganharem o suficiente para montarem a sua própria
oficina de sapateiro.
Alice, a mãe de Sam e de Beth, tivera uma infância igualmente difícil,
pois fora abandonada ainda bebé e criada no orfanato. Com doze anos,
tinham-na mandado trabalhar como criada de copa, e as histórias que contava
a respeito das intermináveis horas de labuta esgotante e da crueldade da
cozinheira e da governanta povoavam os sonhos de Beth.
Frank tinha vinte e três anos quando conheceu Alice, de dezasseis, e,
por essa altura, ele e os pais tinham conseguido realizar o seu sonho e eram os
locatários de uma pequena oficina com dois quartos por cima. Alice
costumava dizer, com um grande sorriso, que o dia do casamento fora o mais
feliz da sua vida porque Frank a levara a viver com os pais. Continuara a ter
de trabalhar duramente, mas não se importava, porque o objectivo passara a
ser conseguir instalações ainda melhores onde o sogro e o marido pudessem
fabricar sapatos novos, em vez de remendar antigos.
O esforço acabara por compensar e levara-os para ali, para Church
Street, com uma oficina e dois pisos por cima, onde Sam e Beth nasceram.
Beth não se lembrava da avó, que morrera quando ela era ainda bebé, mas
adorara o avô, e fora ele que a ensinara a tocar violino.
Desde a morte do avô, há já cinco anos, a habilidade do papá como
sapateiro tornara-se conhecida, e passara a fazer botas e sapatos para algumas
das pessoas mais ricas da cidade. Continuara a trabalhar do nascer ao
pôr-do-sol, e na maior parte das noites adormecia mal acabava de comer o
jantar, mas, até àquela tarde, Beth sempre pensara que era um homem feliz.
– Que diabo se passa aí em baixo? Ouvi-te gritar – perguntou a mãe,
irritada, do alto da escada. – É outra vez uma ratazana?
Beth despertou do seu devaneio com um sobressalto. Apesar da
surpresa e do horror, o seu primeiro instinto foi proteger a mãe.
– Não desça – respondeu. – Vou chamar Mr. Craven.
– Não podes ir incomodar os vizinhos quando estão a jantar. O teu pai
não pode tratar do assunto?
Beth não sabia o que responder àquilo, de modo que foi até ao fundo da
escada e olhou para cima, para a mãe, na esperança de que lhe ocorresse
alguma coisa.
Alice Bolton tinha trinta e oito anos, mas parecia muito mais nova, por
ser pequena, ter cabelo louro, uns grandes olhos azuis e o género de feições e
pele delicadas que sugeriam fragilidade.
Sam herdara da mãe os cabelos louros e os olhos azuis, mas tinha um
metro e oitenta de altura e o vigor e as feições fortes do pai. Toda a gente dizia
que Beth era uma cópia da avó irlandesa, com o seu cabelo escuro e
encaracolado, olhos azul-escuros e uns modos impertinentes que ainda haviam
de metê-la em sarilhos.
– Pelo amor de Deus, rapariga, não fiques aí especada com esse ar de
pateta – atirou-lhe a mãe. – Diz ao teu pai que suba antes que o jantar se
estrague.
Beth engoliu em seco, ciente de que mentiras e cortinas de fumo não
iriam ajudá-la numa coisa daquelas.
– Ele não pode subir, mamã – disse bruscamente. – Está morto.
A mãe nunca percebia tudo à primeira, e daquela vez não foi excepção;
ficou a olhar para a filha, com uma expressão vazia.
– Enforcou-se, mamã – continuou Beth, a tentar conter as lágrimas e a
histeria que ameaçavam invadi-la. – Era por isso que queria ir chamar Mr.
Craven. É melhor voltar para a cozinha.
– Que disparate, o teu pai não pode estar morto. Estava óptimo quando
subiu para o chá.
Beth esforçava-se por controlar o desejo de gritar, e a incredulidade da
mãe quase a fez perder essa luta. E, no entanto, o que a mãe dizia era verdade,
o pai parecera perfeitamente normal à hora do chá. Comentara que o bolo de
cominhos estava muito bom e dissera-lhes que ia acabar as botas para Mr.
Greville.
Parecia impossível que tivesse voltado a descer as escadas, acabado o
trabalho do dia, arrumado a bancada e em seguida pegado calmamente numa
corda para pôr fim à vida, sabendo que a mulher e a filha estavam no andar de
cima.
– Está morto, mamã. Enforcou-se na arrecadação – disse Beth,
brutalmente.
A mãe abanou a cabeça e começou a descer as escadas.
– É preciso ser uma rapariga muito má para dizer uma coisa dessas –
disse, indignada, empurrando Beth para um lado ao chegar ao fundo. – Eu já
converso contigo.
Beth agarrou-lhe nos braços e tentou impedi-la de entrar na oficina.
– Não entre aí, mamã – pediu. – É horrível.
A mãe não estava, porém, disposta a dar-lhe ouvidos; libertou-se com
um safanão, avançou para a arrecadação e abriu violentamente a porta. O grito
que soltou ao ver o marido ecoou por todo o edifício, mas foi subitamente
interrompido quando ela caiu inanimada no chão.
Uma hora mais tarde, Sam voltou e encontrou as luzes acesas na
oficina, ao contrário do que esperava. Através da janela, viu o gordo Dr.
Gillespie e o corpulento Mr. Craven, vizinho da família, mas ainda antes de
lhe abrirem a porta soube que qualquer coisa de grave tinha acontecido.
Foi o médico que lhe explicou que Beth tinha corrido a casa de Mr.
Craven quando a mãe caíra no chão. Mr. Craven mandara o filho chamar o
médico e acompanhara Beth até à oficina para cortar a corda da qual pendia o
corpo do papá. Quando chegou, o Dr. Gillespie disse a Beth que levasse a mãe
para cima, lhe desse um pouco de brandy e a enfiasse na cama.
Sam era um rapaz de dezasseis anos, alto e desengonçado. Cambaleou
ao ouvir as notícias, o sangue fugiu-lhe do rosto e o choque quase o fez
desmaiar também. O corpo do pai estava estendido no chão, coberto por uma
manta, excepto uma mão manchada de tinta castanha. Se não fosse aquela
mão, talvez se tivesse recusado a acreditar no que lhe diziam, mas a mão do
pai era-lhe tão familiar como a sua própria.
Perguntou porque tinha o pai feito uma coisa daquelas, mas ninguém
lhe soube responder. Mr.
Craven disse que era uma coisa incompreensível e que ainda naquela
manhã passara pela oficina para dois dedos de conversa e Frank lhe parecera
até muito bem-disposto. O Dr. Gillespie estava tão confuso como Mr. Craven
e falou de como Frank era respeitado na comunidade. Era evidente que ambos
os homens estavam tão chocados e horrorizados como ele.
O médico agarrou os braços de Sam e olhou-o nos olhos.
– A carreta fúnebre vai chegar em breve – disse, gentilmente. – Tem de
haver um inquérito, em situações como esta. Agora vais ter de ser o homem da
casa, Sam, e tomar conta da tua mãe e da tua irmã.
Para Sam, foi como se um alçapão se lhe tivesse aberto debaixo dos pés
e ele tivesse caído num lugar que não reconhecia. Desde que conseguia
lembrar-se, sempre houvera ordem e uma certeza absoluta na sua vida. Muitas
vezes se revoltara contra a enfadonha rotina quotidiana, com o pai a trabalhar
na oficina desde as sete da manhã até ao fim da tarde e a mãe a cozinhar e a
limpar a casa lá em cima. No entanto, sempre se sentira seguro sabendo que se
se estatelasse na sua busca de uma vida mais aventurosa para si, tudo ali
continuaria na mesma e teria um refúgio para o qual poderia regressar.
E agora, de uma só penada, toda essa preciosa certeza se tinha
desvanecido.
Como pudera um homem tão calmo, atencioso e de bom coração
albergar tais demónios dentro de si? E como era possível que nem os mais
chegados a ele os tivessem sequer vislumbrado? Ainda naquela manhã Sam
vira o pai ir até ao fundo das escadas para ouvir Beth tocar violino. Não fizera
qualquer comentário, mas o rosto resplandecera-lhe de orgulho. Mais tarde,
quando Sam tinha acabado de reparar um par de botas, o pai dera-lhe uma
palmada no ombro e elogiara-lhe o trabalho.
Vezes sem conta, ele e Beth tinham visto a maneira afectuosa como
olhava para a mulher, o tinham visto abraçá-la e beijá-la. Se significavam
assim tanto para ele, porque quisera deixá-los?
E que iria acontecer à família agora, sem o homem que cuidara de todos
eles, que fora o sustento da família, o pilar e o consolo a que todos se
agarravam?
CAPÍTULO 2
Ovelho relógio de pêndulo no patamar deu a meia-noite, mas Sam e
Beth continuavam na cozinha, demasiado atordoados para pensarem sequer
em ir para a cama. O corpo do pai tinha sido levado horas antes, e estavam os
dois de mãos dadas enquanto ela contava novamente como o tinha encontrado.
De vez em quando, ele limpava-lhe as lágrimas do rosto com um lenço, ou
passava-lhe a mão pelo cabelo, consolando-a. Do mesmo modo, quando era
ele que se exaltava e a sua voz crescia, irada, ela estendia a mão e
acariciava-lhe o rosto.
O Dr. Gillespie dera a Alice um remédio para a fazer dormir porque a
pobre mulher ficara histérica, a arrancar os cabelos e a gritar que alguém devia
ter enforcado o marido, que ele nunca a deixaria de sua livre vontade. E
embora os dois filhos soubessem que era impossível ter havido a mão de outra
pessoa no que acontecera naquela tarde, partilhavam os sentimentos dela. Os
pais amavam-se e eram felizes.
– O Dr. Gillespie perguntou-me se o negócio corria mal – disse Sam
numa voz cansada e confusa. – Mas não. Não consigo sequer pensar em
qualquer coisa que tenha acontecido nas últimas semanas que possa explicar
uma coisa destas.
– Terá sido algum cliente que o perturbou? – alvitrou Beth.
Por vezes, havia clientes difíceis e desagradáveis. Queixavam-se de que
Frank não conseguia fazer-lhes as botas ou os sapatos com a celeridade que
pretendiam, e com frequência, quando os iam buscar, tentavam encontrar-lhes
defeitos para poderem obrigá-lo a baixar o preço.
– Ele ter-me-ia dito. Além disso, sabes bem que não dava grande
importância a essas coisas.
– Não achas que foi por causa de nós, pois não? – perguntou Beth, num
tom ansioso. – Eu sempre a queixar-me de me aborrecer em casa, e tu a fugir
para as docas.
Sam abanou a cabeça.
– Não acredito. Uma vez, ouvi-o a rir a meu respeito com um cliente.
Dizia que eu era bom rapaz, apesar de andar sempre com a cabeça nas nuvens.
E por tua culpa não foi de certeza; ele orgulhava-se muito de ti.
– Mas como vamos viver agora? – perguntou Beth. – Tu não tens
experiência suficiente para manter a oficina a funcionar!
Era frequente as pessoas comentarem a respeito de como Sam e Beth
eram diferentes. E não só no aspecto – ele alto e louro, ela baixa e morena –
mas também na maneira de ser.
A cabeça de Sam andava, como o pai dizia, sempre nas nuvens, a viver
num mundo imaginário de fantásticas aventuras, riquezas e lugares exóticos.
Tanto podia desperdiçar um dia inteiro nas docas, a olhar sonhadoramente
para os navios que partiam rumo a terras distantes, como passar horas a
espreitar pelos portões das grandes mansões, a observar maravilhado a
maneira como os ricos viviam. Embora nunca o tivesse admitido perante a
irmã, ela sabia bem que a verdadeira razão por que não queria ser sapateiro era
por saber que ninguém ficava rico ou tinha aventuras a fazer e consertar
sapatos.
Beth era muito mais prática e lógica do que o irmão, capaz e diligente
quando lhe davam uma tarefa para fazer. Tinha uma inteligência mais viva, e
se lia livros era mais para adquirir conhecimentos do que para fugir à
realidade. No entanto, compreendia que Sam vivesse num mundo de fantasia,
porque também ela tinha o seu sonho: tocar violino diante de um público
numeroso e ouvir os estrondosos aplausos.
Era, claro, um sonho inatingível. Mesmo que tivesse aprendido a tocar
música clássica, nunca vira uma violinista numa orquestra. Tocava jigas e
quadrilhas, melodias que o avô lhe ensinara e que a maior parte das pessoas
considerava música cigana, própria para tabernas barulhentas.
Apesar de todas as suas diferenças, porém, Sam e Beth eram muito
chegados. Com apenas um ano de diferença, e nunca tendo podido brincar na
rua como as outras crianças do bairro, sempre tinham dependido um do outro
em matéria de companhia.
Sam levantou-se da sua cadeira, foi ajoelhar-se ao lado de Beth e
abraçou-a.
– Eu hei-de tomar conta de vocês as duas, seja como for – disse, com a
voz a quebrar-se-lhe.
Nos dias que se seguiram, as emoções de Beth balançaram entre o
desgosto esmagador e a raiva.
Nunca conhecera um dia sem o pai, uma presença tão constante na sua
vida como o velho relógio que marcava com o seu tiquetaquear o passar das
horas. Um homem seco e nervudo de quarenta e cinco anos, com cabelos
grisalhos que começavam a rarear, um bigode cuidadosamente aparado e um
nariz proeminente, sempre bem-disposto e, julgara ela, transparente.
Talvez não fosse excessivamente expansivo – uma palmadinha no
ombro era a sua maneira de mostrar afecto e aprovação –, mas também nunca
fora uma figura distante, como tantos outros pais.
Gostava que ela descesse até à oficina para conversar enquanto ele
trabalhava; mostrava-se sempre interessado no que ela estava a ler e na sua
música.
Agora, no entanto, Beth sentia que nunca o conhecera verdadeiramente.
Como pudera ele subir à cozinha para beber o chá com a mulher e a filha já
com a intenção de voltar à oficina, terminar o seu trabalho e enforcar-se?
Ele tinha falado de umas botas com botões que uma senhora lhe
encomendara ainda naquela manhã, rindo porque ela as queria azul-claras para
condizer com um vestido novo. Dissera que não continuariam a ser azul-claras
durante muito tempo nas ruas sujas de Liverpool. Porque teria dito aquilo se
sabia que não ia fazê-las?
Se tivesse morrido de um ataque de coração ou atropelado por uma
carruagem ao atravessar a rua, teria sido terrível, e a dor que todos sentiam
não menos lancinante, mas ao menos nenhum deles se sentiria traído.
A mãe não parava de chorar. Deitada na cama, recusava comer ou
sequer permitir que abrissem as cortinas, e Sam parecia uma alma penada,
convencido de que tudo aquilo fora culpa sua, por se ter mostrado pouco
entusiasmado com a ideia de ser sapateiro.
Só uns poucos vizinhos tinham aparecido a oferecer condolências, e
Beth sabia que o verdadeiro motivo daquelas visitas não era expressar
simpatia e sim obter mais informações que pudessem espalhar. O padre Reilly
aparecera, mas apesar do seu tom bondoso, apressara-se a dizer que Frank
Bolton não poderia ser sepultado em solo sagrado, uma vez que cometera um
pecado mortal ao atentar contra a própria vida.
O resultado do inquérito apareceria nos jornais, e todos os amigos e
vizinhos o leriam e passariam a evitá-los. Beth achava que fora uma cobardia
e uma crueldade da parte do pai fazer-lhes uma coisa daquelas. E achava
também que nunca mais a mãe havia de querer voltar a sair de casa.
Cinco dias depois da morte do pai, Beth encontrava-se sentada na sala, a
fazer vestidos pretos para si mesma e para a mãe. Lá fora, o sol brilhava, mas
ela tinha de manter as cortinas fechadas, como mandava o costume, e a luz era
tão fraca que até lhe custava enfiar a linha na agulha.
Beth sempre tinha gostado de costurar, mas uma vez que a mãe não se
levantara da cama para ajudar, não tivera outro remédio senão procurar os
padrões, cortar o tecido em cima da mesa da sala e fazer os vestidos sozinha,
pois cairiam ainda mais nas bocas do mundo se não vestissem devidamente de
luto.
Daria tudo para poder tirar o violino do estojo e tocar um pouco, porque
sabia que poderia perder-se na música e encontrar talvez um pouco de
consolo. Mas tocar um instrumento musical tão pouco tempo depois da perda
de um ente querido não era coisa que se fizesse.
Irritada, atirou o trabalho para o chão, dirigiu-se à janela e entreabriu as
cortinas apenas o suficiente para espreitar a actividade em Church Street.
Estava cheia de gente, como sempre. Os autocarros, as tipóias, as
carroças e carruagens deixavam o chão juncado de montes de excrementos de
cavalo, e, naquele dia, o calor tornava o cheiro ainda mais pungente que de
costume. Senhoras elegantemente vestidas passeavam de braço dado com
cavalheiros de colarinho engomado e chapéu alto. Havia governantas com um
pesado ar de matronas, severamente vestidas de negro e transportando na
dobra do braço cestos de frutas e legumes, e, aqui e além, raparigas de ar mais
alegre, talvez criadas na sua tarde de folga, a olhar sonhadoramente para as
montras das lojas.
E havia também muitos pobres. Um homem só com uma perna, apoiado
em muletas, pedia esmola à porta da Bunney’s, a loja junto ao cruzamento
conhecido como Holy Corner porque ali confluíam a Lord Street, a Paradise, a
Chapel e a Church Streets. 1 Passavam mulheres de ar cansado, com bebés ao
colo e seguidas por outras crianças pequenas. Miúdos da rua, de cabelos
desgrenhados, caras sujas e pés descalços, rondavam de um lado para o outro,
quem sabe se à procura de qualquer coisa que pudessem roubar.
Havia uma fila à porta do talho, do outro lado da rua, e por causa do
calor e do sol as mulheres pareciam descontraídas e despreocupadas,
tagarelando umas com as outras enquanto esperavam a sua vez de ser
atendidas. Mas enquanto as observava, Beth viu duas delas voltarem-se e
olharem directamente para as janelas por cima da oficina, e percebeu que
acabavam de saber que o sapateiro se tinha enforcado.
Subiram-lhe lágrimas aos olhos, pois sabia que os mexericos ganhariam
um renovado ímpeto depois do funeral. As pessoas conseguiam ser tão cruéis,
sempre a deleitarem-se com os infortúnios dos outros. Imaginou-as a comentar
que os Bolton sempre se tinham considerado superiores, e que sem dúvida
Frank se suicidara por estar crivado de dívidas. Beth quase desejou que fosse
verdade; seria, pelo menos, um motivo compreensível.
Voltou costas à janela e olhou em redor. Aquela sala de estar era o
orgulho e a alegria da mãe; tudo, desde o tapete aos quadrados e dos cães de
porcelana sentados um de cada lado da lareira aos duros e desconfortáveis
cadeirões de braços capitonné e aos pesados cortinados, eram cópias de coisas
que Alice tinha visto na grande casa onde fora criada de copa.
O piano fazia parte do cenário, e seis homens tinham-no içado à força
de braços pela janela.
Nenhum dos pais sabia tocar, mas, para a mãe, era um sinal de
refinamento, de modo que Beth tivera de aprender. Sabia que a mãe esperara
que a afastasse da «mania» do violino, um instrumento considerado «vulgar».
Apesar de sentir-se muitas vezes ofendida pelo desprezo da mãe pelo
seu adorado violino, Beth ficara bastante contente quando ela contratara Miss
Clarkson para lhe dar lições de piano. Podia ser uma solteirona de trinta anos,
de cabelos grisalhos e um olho ligeiramente vesgo, mas era uma mulher
inspiradora. Não só ensinara Beth a ler música e a tocar piano, como lhe abrira
as portas de todo um novo mundo de livros, música e ideias.
Durante cinco anos, Miss Clarkson fora a sua aliada, amiga, confidente
e professora. Adorava tanto ouvi-la tocar violino como piano, levava-lhe
livros que achava que ela devia ler, falava-lhe de todos os géneros de música
e, por vezes, levava-a a concertos. No entanto, do que Beth mais gostava nela
era o facto de não ser curta de vistas como a mãe. Miss Clarkson acreditava
firmemente que as mulheres deviam ter direitos iguais aos dos homens, quer
fosse ter direito a votar, ter uma boa educação ou trabalhar naquilo que mais
lhes agradasse.
Quem lhe dera que Miss Clarkson ainda vivesse em Liverpool, porque
era a única pessoa que talvez conseguisse ajudá-la a ela e ao irmão a
compreender porque tinha o pai feito uma coisa tão horrível. Mas Miss
Clarkson emigrara para a América, porque, segundo dizia, se sentia sufocada
pela hipocrisia, pelo sistema de classes e pela falta de oportunidades para as
mulheres em Inglaterra.
– Vou ter saudades tuas, Beth – dissera com um sorriso resignado
quando se tinham despedido pela última vez. – Não só por seres a melhor das
minhas alunas, mas por teres um espírito vivo, um coração forte e um
entusiasmo sem limites. Promete-me que não casarás com o primeiro homem
adequado que to peça, só para poderes ter a tua própria casa. O casamento
pode ser considerado por muitos uma coisa sagrada, mas não se escolheres o
homem errado. E agarra-te à tua música, porque ela dá-te ânimo e permite-te a
liberdade de expressão de que uma rapariga como tu precisa.
Beth descobrira que Miss Clarkson tinha razão a respeito da música.
Transportava-a para um lugar onde as repetidas instruções da mãe a respeito
de questões domésticas banais não conseguiam alcançá-la, um mundo onde o
divertimento, a liberdade e o entusiasmo não eram objecto de censura.
Entristecia-a saber que a mãe nunca compreendera isto. Sempre gostara
de se vangloriar perante as vizinhas do talento da filha, mas nunca a ouvia
verdadeiramente tocar piano e detestava o violino. O
pai sim, e aquilo de que mais gostava era de sentar-se a ouvi-la tocar
piano num domingo à tarde – Chopin era o seu preferido –, mas também se
divertia quando ela tocava e cantava músicas populares. Mesmo para ele, no
entanto, o violino fora um pequeno pomo de discórdia, talvez por lhe lembrar
a infância e despertar nele o receio de que as loucas jigas irlandesas que o pai
ensinara a Beth a arrastassem para más companhias.
Ao ouvir Sam subir as escadas, Beth recomeçou a costurar. Ouviu-o ir
ter com a mãe, ao quarto junto à cozinha, e minutos mais tarde, abrir a porta
da sala.
Estava pálido e tenso, a testa franzida num gesto de preocupação.
– O juiz de instrução vai libertar o corpo do papá amanhã – disse,
penosamente. – Não encontrou nada que explique o que fez. Não estava
doente. Mas, ao menos, agora podemos enterrá-lo.
– Disseste à mamã? – perguntou Beth.
Sam assentiu, descoroçoado.
– Continua a chorar. Acho que nunca mais vai parar.
– Talvez pare, depois do funeral – disse Beth, com mais convicção do
que sentia. – Vou ter de lhe fazer a prova deste vestido. Espero que não faça
outra cena.
– Encontrei Mrs. Craven lá fora. Disse que passava por cá mais tarde,
para tentar falar com ela; talvez seja melhor aproveitares a oportunidade para
provar o vestido. Por muito mal que a mamã se sinta, não vai deixar que os
vizinhos saibam que deixou tudo nas nossas mãos.
Beth reparou no azedume na voz dele e pôs-se de pé para o abraçar.
Sam tinha passado a maior parte dos últimos dias na oficina, do nascer do sol
ao anoitecer, a acabar todos os consertos, e ela sabia como ele estava
preocupado e assustado.
– Naquela noite disseste que íamos conseguir, e vamos – disse.
– Tenho a sensação de que a mamã sabe porque foi que ele fez aquilo –
disse Sam em voz baixa, apoiando o queixo na cabeça da irmã, enquanto ela o
abraçava. – Estive a ver as contas e, apesar de não haver muito dinheiro,
também não estava em dificuldades. Nunca saía, de modo que não podia andar
a beber ou a jogar, e com toda a certeza não tinha outra mulher. Só pode ser
qualquer coisa que tenha a ver com ela.
– Não penses isso, Sam – suplicou Beth. – Culpar a mamã não resolve
nada.
Sam apertou-lhe os braços com força e olhou-a nos olhos.
– Não percebes que a partir de agora vai ser tudo diferente? – disse,
numa voz zangada. – Vamos ser pobres. Quem me dera poder dizer que vou
ser capaz de manter a oficina a funcionar, mas só sei fazer consertos. Não sei
fazer sapatos e botas, e era nisso que o papá ganhava dinheiro. Vou ter de
arranjar outro trabalho, mas não vai ser o suficiente para nos sustentar aos três.
– Eu também posso trabalhar – disse Beth, veemente. – Havemos de
nos arranjar, Sam.
Ele olhou para ela, cheio de dúvidas.
– Pode ser que tenhamos de encontrar uma casa mais barata para morar,
ou arranjar um inquilino.
Não vamos poder continuar a viver da maneira a que estávamos
habituados.
A raiva voltou a incendiar-se no peito de Beth. Durante toda a sua vida,
ouvira o pai dizer que queria que ela e Sam tivessem todas as vantagens que
ele nunca tivera. Fizera-a acreditar que eram gente fina, um furo acima dos
vizinhos. Mas no fim envergonhara-os e arruinara-os sem sequer explicar
porquê.
1 «Holy Corner», esquina sagrada; «Lord Street», rua do Senhor;
«Paradise», paraíso; «Chapel», capela; «Church», igreja. (N. do E.)
CAPÍTULO 3
Enquanto punha a mesa para a refeição da noite, Beth observava a mãe
a mexer uma panela diante do fogão. Como de costume, estava no seu mundo
privado, praticamente alheada da presença da filha na mesma divisão.
Tinham passado três meses desde que enviuvara, mas fora assim que
ficara. Apesar de continuar a lavar, cozinhar e limpar mais ou menos da
mesma maneira que sempre fizera, só falava em resposta a uma pergunta
directa, e não se interessava por nada nem por ninguém.
Mrs. Craven, a bondosa vizinha que tanto os ajudara na altura da morte
do pai, dissera a Beth e a Sam que tinham de ser pacientes, porque o desgosto
afectava as pessoas de maneiras muito diferentes e a mãe deles acabaria por
sair do seu silêncio quando estivesse pronta. Mas, fazia um mês, até Mrs.
Craven perdera a paciência quando a mamã a mandara embora, ao vê-la
aparecer para uma das suas visitas.
– A cara dela estava fria como uma lápide de mármore! Digo-te,
arrepiou-me toda, porque foi como se não me conhecesse – contara a Beth,
indignada.
Parecera incrível a Beth que a mãe fosse capaz de mandar embora a
única pessoa que provara ser uma verdadeira amiga, mas a verdade era que
também não mostrava qualquer apreço por tudo o que Sam fizera por ela.
Sam esforçara-se ao máximo por manter a oficina a funcionar, mas as
pessoas que costumavam levar sapatos e botas para consertar tinham deixado
de aparecer. Se por causa do suicídio, se por pensarem que Sam não estava à
altura da tarefa, ninguém sabia. Por isso Sam alugara a loja a outro sapateiro.
A mãe limitara-se a encolher os ombros, quando ele lho dissera.
Para um rapaz sonhador e anteriormente tão preguiçoso, Beth achava
que Sam se revelara um verdadeiro homem na maneira magistral como lidara
com os problemas da família. Com o aluguer da oficina a pagar quase toda a
renda do edifício, só precisavam de arranjar mais qualquer coisa para poderem
continuar a viver no apartamento. Sam conseguira um lugar de aprendiz de
escriturário numa companhia de navegação e levava para casa tudo o que
ganhava, para os manter a todos. A mãe deveria era tecer-lhe louvores, em vez
de se limitar a ignorá-lo.
A verdade, porém, era que também não louvara Beth quando ela
arranjara emprego numa loja de meias. Nunca perguntara que horário ia ter ou
quanto lhe iam pagar.
Dias antes, Sam comentara que era como se a mãe tivesse sido
substituída por uma criada muda.
Dissera-o em tom de brincadeira, mas era exactamente o que parecia,
porque a mãe cozinhava e servia as refeições sem dizer uma palavra. Nunca
tinha sido grande conversadora – um ou outro mexerico a respeito das
vizinhas era o seu limite habitual –, mas sempre soubera ouvir e sempre se
revelara atenta à mais pequena mudança em qualquer um deles, demonstrando
preocupação se estavam adoentados ou pareciam tristes. De repente, deixara
de reparar se estavam cansados ou se tinham apanhado uma constipação; nem
sequer fazia um comentário a respeito do tempo. Se lhe perguntavam o que
fizera durante o dia, respondia com uma frase curta: «Lavei a roupa», ou
«Mudei a roupa das camas». Beth fervia por dentro, com vontade de lhe gritar
que continuava a tê-los a eles e a casa que amava, enquanto o mundo dos
filhos fora virado de pernas para o ar. Sam passava dez horas por dia amarrado
a uma secretária, às ordens de homens que o tratavam como se fosse lixo. Já
não podia ir até às docas divagar durante uma ou duas horas, como costumava
fazer; cada penny que ganhava era necessário.
Talvez Beth tivesse querido trabalhar numa loja, mas depressa
descobrira que trabalhar na Hooley’s Hosiery não era nada do que tinha
imaginado. Ela e as outras assistentes tinham de formar todas as manhãs para
serem submetidas a uma revista durante a qual a chefe se certificava de que
tinham as unhas limpas e as botas engraxadas, e dois fios de cabelo fora do
lugar constituíam uma falta grave. As clientes eram muitas vezes
mal-educadas, mas elas tinham de sorrir docemente e tratá-las como se fossem
membros da realeza. Nem sequer podia ir à casa de banho sem pedir
autorização, e trocar duas palavras com uma colega bastava para ser
despedida. Era constantemente espiada, havia uma quantidade infindável de
pequenas regras a observar e estar de pé o dia inteiro era esgotante. A mãe
raramente saía, de modo que não via os sorrisos escarninhos nas caras das
pessoas nem ouvia os comentários cruéis que faziam. Sam e Beth tinham de
enfrentar aquilo todos os dias.
No entanto, toda a ansiedade, ressentimento e irritação que Beth sentira
ao longo do último par de meses foram eclipsados naquele dia por algo muito
mais grave.
Era dia de fechar mais cedo e Beth chegara a casa pouco depois da uma.
Tencionava comer qualquer coisa e tentar convencer a mãe a ir dar um passeio
para aproveitar o sol.
As pessoas a quem tinham subalugado a oficina iam vender sapatos, e
durante a última semana um carpinteiro estivera a montar prateleiras e a fazer
um balcão. Quando Beth entrou pela porta das traseiras, estava um pintor a
trabalhar na oficina, com a porta aberta de par em par. O homem pedira
desculpa pelo cheiro e dissera que esperava que não tivesse sido esse o motivo
da indisposição da mãe dela, pois tinha-a ouvido vomitar na latrina.
Beth ficara naturalmente alarmada e correra escadas acima. Mas a mãe
negara que houvesse qualquer problema e dissera que o pintor estava
enganado.
O cheiro a tinta era muito intenso no apartamento, mas mesmo assim a
mãe recusara sair, de modo que Beth comera um pouco de pão com queijo e
saíra sozinha.
Tinham passado a só usar a porta das traseiras, mas quando, no
regresso, ao chegar a Church Street, Beth vira a porta da oficina aberta,
resolvera entrar por lá, para não ter de contornar o edifício. Eram três e meia, e
detivera-se no pequeno vestíbulo junto ao fundo das escadas que davam
acesso ao apartamento porque, através da porta aberta das traseiras, vira a mãe
no pátio, a recolher a roupa deixada a secar.
Estava de braços esticados para cima, para chegar a uma das camisas de
Sam, e Beth ficara chocada ao reparar como a barriga lhe tinha crescido.
A mãe era pequena e sempre fora muito magra. Na realidade, tinha uma
cintura tão estreita que o pai costumava rodeá-la com as duas mãos. Quando,
três meses antes, Beth lhe fizera o vestido de luto, continuava na mesma. Mas
agora já não. Usava um avental de linho por cima do vestido preto, mas a
cintura do avental estava muito acima do que deveria estar, e a barriga inchada
notava-se perfeitamente.
Beth ficara tão chocada que quase gritara, alertando a mãe para a sua
presença. E não se tratava de um engordar geral, pois a cara de Alice Bolton
tornara-se muito mais magra desde que tinha enviuvado. Beth sabia
exactamente o que uma barriga inchada significava, apesar de não ser suposto
as meninas bem-educadas saberem dessas coisas.
Fora outra das coisas que Miss Clarkson lhe explicara. Dizia que era
absurdo manter as raparigas na ignorância de uma coisa tão natural, sendo
para além disso perigosa, já que os homens podiam aproveitar-se dela. Por
isso Beth sabia como se faziam os bebés.
Apesar de ter achado embaraçoso descobrir que os pais tinham
continuado a praticar o acto depois de ela ter nascido, a verdadeira
preocupação de Beth, na altura, fora como abordar com a mãe um tema tão
delicado. Mas sabia que tinha de fazê-lo, pois se vinha um bebé a caminho, ia
ser preciso fazer planos.
Um pouco mais tarde, quando a mãe voltara a casa, a dobrar a roupa
seca, Beth observara-a com atenção, na esperança de ter-se enganado, já que
com o avental no devido lugar a barriga de Alice deixava de ser tão evidente;
parecia apenas um pouco mais larga na cintura.
Naquele momento, Beth bebia uma chávena de chá enquanto tentava
ganhar coragem, sabendo que podia contar com alguma hostilidade. Mas o
tempo passava, e quando Sam chegasse a casa perderia a oportunidade, pois
sabia que nunca conseguiria falar de gravidez com um homem presente,
mesmo tratando-se de um irmão.
Finalmente, inspirou fundo e mergulhou de cabeça.
– Vai ter um bebé, não vai, mamã?
Ela própria não tinha a certeza de como se sentia em relação a ter mais
um irmão ou irmã, mas a reacção da mãe à pergunta deixou bem claro que
considerava aquilo nada menos que uma calamidade. Contraiu o rosto, pousou
as mãos na barriga, como que a tentar escondê-la, e deixou escapar um
gemido de angústia.
Meio à espera de ouvir dizer que se metesse na sua vida, uma reacção
tão dramática apanhou Beth completamente desprevenida.
– Eu sei que deve parecer horrível agora que o papá nos deixou, mas eu
e o Sam vamos ajudá-la – apressou-se a dizer, aproximando-se da mãe. Não
tentou abraçá-la, porque naqueles três últimos meses, sempre que esboçara o
gesto, a mãe afastara-se, como se se tivesse queimado.
Para sua surpresa, foi a mãe que se lhe lançou nos braços, a chorar
como uma criança, com a cara escondida no ombro dela.
– Não sabia como te dizer – soluçava. – Tenho tido tanto medo do que
vai ser de nós.
Beth limitou-se a abraçá-la, tão aliviada por a mãe estar finalmente a
comunicar com ela que todas as outras preocupações pareciam insignificantes.
– Não tem de se preocupar – disse, apaziguadoramente. – Temo-nos
arranjado até agora, um bebé não vai ser problema. Pelo contrário, talvez até
seja aquilo de que precisamos para voltarmos a ser felizes. Sabe quando é que
vai nascer?
– Em Dezembro, acho eu – respondeu Alice, a limpar os olhos com o
avental. – Mas eu estou demasiado velha para ter outro filho. Já é
suficientemente mau ter sobre nós a vergonha da forma como o teu pai
morreu… agora as pessoas vão começar outra vez a falar de nós.
– Não é nada demasiado velha – disse Beth com firmeza. – E que
importa o que os outros digam?
Não têm nada com isso.
Fez mais chá, e a mãe assoou-se e admitiu que era um alívio poder falar
abertamente do assunto.
– Portei-me muito mal com vocês – fungou. – Mas estava tão
preocupada e assustada que não conseguia pensar em mais nada. O que é que
o Sam vai pensar?
– O mesmo que eu, que vamos ter um irmãozinho ou uma irmãzinha –
disse Beth com calma. O facto de o estranho comportamento da mãe estar
enfim explicado tirara-lhe um enorme peso de cima dos ombros. – Eu sei que
as coisas parecem agora um pouco difíceis, mamã, mas vão melhorar. E é
melhor fazer as pazes com Mrs. Craven, porque vai precisar da ajuda dela
quando esse bebé chegar.
Mrs. Craven, entre os seus muitos talentos, tinha fama de ser uma
excelente parteira.
– Foi por isso que a mandei embora, tive medo que percebesse –
admitiu Alice. – Era demasiado para mim, depois de o teu pai ter partido
daquela maneira.
Mais tarde nessa noite, depois de a mãe ter ido para a cama, Beth e Sam
ficaram sentados na cozinha, a conversar. Sam fizera um ar horrorizado
quando Beth o chamara à parte, horas antes, e, muito embaraçada, o pusera ao
corrente das novidades. Murmurara que aquilo era a última coisa de que todos
eles precisavam, mas tivera a diplomacia de não mostrar à mãe os seus
sentimentos.
Agora que estavam os dois sozinhos e ele tivera tempo para pensar no
assunto, a sua atitude suavizou-se um pouco.
– Não posso dizer que estou encantado com a ideia de ter um fedelho a
correr aos berros pela casa fora – admitiu. – Mas pelo menos explica o
comportamento da mamã. Cheguei a pensar que ainda ia acabar num asilo.
– Deve ter sido muito assustador para ela – disse Beth. – Especialmente
porque a mãe dela a deve ter tido quando estava sem marido, pois caso
contrário não a teria abandonado. Aquele lugar onde cresceu estava junto a
uma casa de correcção. Calculo que estava com medo de ir lá acabar.
– Eu nunca permitiria que isso acontecesse – disse Sam, resolutamente.
– Mas vai amarrar-nos.
– Que queres dizer com isso?
Ele cerrou os lábios e franziu a testa.
– O papá não deixou muito, e a maior parte do que deixou foi tragado
pelas despesas do funeral e para nos alimentar a todos até eu arranjar emprego.
Os nossos ordenados juntos dão à justa para irmos vivendo. A minha
esperança era que, a seu tempo, a mamã voltasse a casar e nós ficássemos
livres.
Beth nunca imaginara a mãe casada de novo, e assim o disse.
– Pois é melhor começares a ter a esperança de que aconteça –
respondeu ele, com uma ponta de sarcasmo. – Se conheceres um sujeito que
queira casar contigo, de certeza que ele não vai querer carregar também com a
tua mãe e um bebé. E eu também não estava a planear ficar aqui plantado para
sempre. Quero conhecer o mundo.
Beth quis repreendê-lo por ser egoísta, mas não foi capaz porque sabia
que ele nunca as abandonaria.
– Não nos preocupemos com o futuro, por enquanto – sugeriu. –
Alguma coisa há-de aparecer, vais ver.
*
Foi um Verão longo e quente. O leite azedava a meio da manhã, as
latrinas e os esgotos fediam horrivelmente, as folhas das árvores pendiam
tristes, cobertas de pó. A cidade não se calava sequer quando escurecia,
porque estava demasiado calor para alguém conseguir dormir. Os bebés
choravam, os cães ladravam, as crianças brincavam nas ruas até altas horas e
havia mais zaragatas de bêbedos às portas das tabernas do que de costume.
Beth enfrentava todos os dias, na Hooley’s Hosiery, uma prova de
resistência. Ao meio-dia, as montras da loja recebiam de chapa os raios do sol
e a temperatura no interior subia acima dos trinta e cinco graus. As clientes,
irritadiças e muitas vezes mal-educadas, obrigavam-na a abrir gavetas atrás de
gavetas de meias e collants, e frequentemente Beth tinha de morder a língua
para não lhes responder no mesmo tom. A sufocar no seu vestido preto de gola
alta com saiotes por baixo, os pés inchados e doridos, interrogava-se como
pudera em tempos pensar que seria maravilhoso ter um emprego.
Sam saía-se melhor no seu trabalho, porque as janelas do escritório
davam para o porto e, quando estavam abertas, corria uma brisa refrescante.
Mas de colarinho engomado e casaco, também ele confessava cabecear muitas
vezes, amodorrado pelo calor ou a olhar para os navios que se faziam ao mar,
desejando estar a bordo de um deles.
Era, no entanto, a mãe quem mais sofria. Não tinha apetite, sentia-se
desfalecer com o calor, e a meio da tarde tinha as pernas e os tornozelos tão
inchados que não conseguia andar. Beth assustava-se ao ver como o rosto dela
estava a tornar-se emaciado e pálido, ao mesmo tempo que a barriga parecia
crescer de dia para dia.
A vaga de calor cedeu finalmente em finais de Setembro, quando
choveu quase sem interrupção durante duas semanas. Voltou a ser possível
dormir à noite, as ruas ficaram lavadas e Alice Bolton começou a comer um
pouco melhor.
Alice pedira desculpa a Mrs. Craven pela sua indelicadeza, e a vizinha
tinha a gentileza de aparecer todos os dias para a ajudar com alguns dos
trabalhos mais pesados. Juntas, as duas mulheres tinham desencantado uma
caixa cheia de roupas de bebé que tinham servido primeiro a Sam e depois a
Beth, e outra vizinha emprestara-lhes um berço.
O Inverno só se instalou a sério em finais de Novembro, mas quando
chegou foi com ventos fortes e um frio cortante. Na segunda semana de
Dezembro, quando estava a nevar, Beth chegou a casa numa tarde de
sexta-feira e encontrou Mrs. Craven na cozinha, a encher um grande tacho de
água para pôr a aquecer no fogão.
– Começou por volta do meio-dia – explicou a mulher. – Foi uma sorte
eu ter passado por cá no regresso do mercado. Quero que vás pedir ao Dr.
Gillespie que venha dar-lhe uma vista de olhos.
Beth ficou imediatamente alarmada, mas Mrs. Craven abraçou-a
tranquilizadoramente.
– É só por precaução – insistiu.
Era a primeira vez que Beth via o médico desde a noite em que o pai se
enforcara e sentiu-se tremendamente embaraçada por ter de explicar-lhe
porque precisava dele naquela altura.
– Vai ter um bebé! – exclamou ele, o rosto redondo e vermelho a
rasgar-se num grande sorriso. – Que surpresa! E como estás tu e o teu irmão?
Devem ter sido duros para vocês, estes últimos meses.
– Vamos indo bem, doutor – disse Beth. O sorriso de prazer dele
fizera-a sentir-se um pouco menos ansiosa, e o interesse que demonstrava por
ela e Sam era reconfortante. – Claro que o bebé foi um choque para todos nós.
Mas Mrs. Craven disse que queria que o doutor passasse por lá só por
precaução.
Não fora, porém, só por precaução, compreendeu Beth mais tarde, de pé
à porta do quarto a ouvir o que o médico dizia a Mrs. Craven.
– É uma mulher muito pequena e o bebé é grande. E Mrs. Bolton já não
é muito nova nem está muito forte. Deixo-a nas suas mãos competentes por
agora, Mrs. Craven, mas não hesite em mandar-me chamar outra vez se surgir
algum problema.
O coração de Beth começou a martelar-lhe o peito, cheio de medo, e à
medida que a noite avançava e ela ouvia a mãe gritar de dor, o medo
transformou-se em terror. Também não ajudou o facto de Sam ainda não ter
chegado a casa. Havia apenas Mrs. Craven, que proibira Beth de entrar no
quarto. «Eu chamo-te se precisar de ajuda ou para ir chamar outra vez o
médico», dissera firmemente. «Os bebés demoram por vezes uma eternidade a
nascer, mas não te preocupes com os gritos… a maior parte das mulheres
grita, mas não quer dizer nada.»
Sam chegou pouco depois das dez, mesmo a tempo de Mrs. Craven o
mandar chamar o médico outra vez, e, apesar de se recusar a dizer porque
precisava dele, Beth viu-lhe a ansiedade estampada no seu rosto largo.
O Dr. Gillespie voltou com Sam e tornou a desaparecer no quarto
durante algum tempo.
Por volta da meia-noite, entrou na cozinha e pediu uma bacia de água
quente para lavar as mãos. Já tinha despido o casaco e enrolado as mangas da
camisa, e enquanto esfregava as mãos e os antebraços olhou por cima do
ombro para Beth e para Sam.
– Tenho de retirar o bebé rapidamente – disse. – Arranjem mais panos
lavados e toalhas. Vejo que estão ambos assustados, mas tentem não se
preocupar… a vossa mãe vai ficar bem.
Beth correu a buscar os panos lavados e o médico levou-os para o
quarto, fechando a porta. Pouco depois, a mamã parou de gemer e Sam disse
que o doutor devia ter-lhe dado éter.
Estava agora tudo muito silencioso. Lá fora, a neve continuava a cair,
abafando o ruído das poucas carruagens que passavam na rua. Dentro de casa,
o único som era uma ou outra tossidela ou instrução abafada do doutor a Mrs.
Craven e o crepitar e o sibilar do carvão a arder no fogão.
Sam e Beth não falavam. Estavam sentados cada um de cada lado da
mesa da cozinha, pálidos e ansiosos, ambos absortos nos seus próprios medos.
Subitamente, houve um barulho: passos apressados e a voz baixa do
médico. «Céus, que grande ela é», exclamou Mrs. Craven, e instantes depois
ouviram o bebé chorar.
– Graças a Deus! – disse Sam, limpando a testa com a manga da camisa.
Pouco depois, Mrs. Craven saiu do quarto trazendo nos braços o bebé
embrulhado numa manta.
Parecia exausta, mas estava a sorrir.
– Esta é a vossa irmãzinha. Um autêntico porquinho – disse, com algum
orgulho.
Para Beth, a visão do avental de Mrs. Craven ensopado em sangue
diluiu qualquer alegria que pudesse ter sentido ao ver a criança.
– A mamã… está bem? – perguntou.
– Estará em breve, quando o doutor acabar de a coser – respondeu Mrs.
Craven. – Mas vocês podem ajudar tomando conta da pequenina –
acrescentou, entregando o pequeno embrulho a Beth. – Ponham-na no berço
perto do fogão, para a manter quente. Eu tenho de ir ajudar o doutor.
Enquanto Sam ia à sala buscar o berço, Beth ficou a olhar para o bebé
que tinha nos braços. Nunca tinha visto uma recém-nascida, e apesar de Mrs.
Craven ter dito que aquela era grande, a ela parecia-lhe minúscula, vermelha e
engelhada. O cabelo era escuro, e embora não conseguisse ver-lhe os olhos,
porque os tinha fechado com força, gostou da pequena boca que não parava de
se abrir e fechar, como a de um peixe.
Sam voltou com o berço.
– Acho que é melhor aquecermos primeiro o colchão e as mantas –
sugeriu Beth, pois não tinham voltado a acender o lume na lareira da sala
desde que o frio começara a sério. – O que é que achas dela?
Sam espreitou para o bebé e acariciou-lhe hesitantemente a bochecha
com um dedo.
– É bastante feia – disse, de nariz franzido num gesto de desagrado.
– Não é nada! – exclamou Beth, protectoramente. – É um amor, e é
como estar a olhar para um cachorrinho ou um gatinho acabados de nascer. Ao
princípio todos parecem ratinhos, mas depressa se tornam bonitos, e com ela
vai ser a mesma coisa.
Com todos os preparativos para o berço da bebé e fazer mais chá para o
doutor e para Mrs. Craven, esqueceram temporariamente a mãe. Só quando a
vizinha apareceu com um grande monte de lençóis ensanguentados e disse a
Sam que fosse ao pátio buscar o alguidar de zinco para pôr tudo aquilo de
molho é que voltaram a lembrar-se dela.
– Vai estar fraca durante algum tempo – disse gravemente Mrs. Craven.
Vamos ter de restituir-lhe as forças com uns bons caldos de carne, ovos e leite.
Quando o doutor acabar, poderão entrar para a ver durante um ou dois
minutos. Mas não esperem muito dela, passou por um mau pedaço.
Pareceu passar uma eternidade antes que o Dr. Gillespie saísse
finalmente do quarto, apesar de na realidade ter sido apenas meia hora. Tinha
um ar cansado enquanto despia o avental sujo de sangue e ia até à bacia lavar
as mãos.
– Têm brandy em casa? – perguntou.
– Julgo que sim, senhor doutor – respondeu Sam, indo à despensa
buscá-lo.
– Óptimo. Dá-o à tua mãe, com um pouco de leite quente. –
Aproximou-se do berço e olhou para o bebé adormecido. – Pelo menos parece
de boa saúde, e Mrs. Craven explica-lhes o que têm de fazer.
Passo por cá de manhã para ver a vossa mãe. – Tirou um pequeno
frasco castanho da maleta e pousou-o em cima da mesa. – Se ela tiver dores
durante a noite, dêem-lhe três ou quatro gotas disto, com água quente. Tentem
obrigá-la a beber um pouco de água.
– Vão lá! Podem ir vê-la agora – disselhes Mrs. Craven, depois de o
médico sair. – Depois também eu vou ter de me ir embora.
Sam e Beth entraram em bicos de pés no quarto da mãe, sem saberem
com que contar. Estava tudo surpreendentemente arrumado e normal, tendo
em conta o que ali se passara, apesar de estar muito calor devido à lareira
acesa e haver um cheiro estranho no ar. Mas a mãe parecia ter encolhido. Não
ocupava mais espaço na grande cama de latão do que uma criança, e o rosto
dela parecia salpicado de manchas à luz do candeeiro a gás.
– Como se sente, mamã? – perguntou Sam.
– Dói-me – resmungou ela. – O bebé?
– Está óptimo, bem tapadinho e deitado no berço a dormir – respondeu
Beth, docemente. – Tem de beber isto – acrescentou, aproximando-se mais
para soerguer a mãe o suficiente para lhe dar o leite com brandy. – Vou
dormir na cozinha, ao pé dela, para ficar quentinha e eu poder tê-la debaixo de
olho. Está a nevar, lá fora.
Quando acabou de beber e voltou a pousar a cabeça na almofada, Alice
agarrou o braço da filha.
– Por favor, não me odeiem por causa disto – disse, numa súplica.
– Odiá-la porquê? – Beth franziu a testa e olhou para Sam, confusa.
– Por deixá-los com este fardo – respondeu Alice, enquanto fechava os
olhos.
Beth aconchegou as mantas à volta da mãe e baixou a chama do
candeeiro a gás até restar apenas uma ténue claridade. Sam deitou mais um
pouco de carvão no lume e saíram os dois em silêncio.
– Achas que ela pensa que vai morrer? – perguntou Beth ao irmão,
depois de Mrs. Craven ter ido para casa.
– Deve ser só o efeito do remédio que o doutor lhe deu – respondeu
Sam, com ar entendido. – Não lhe dês importância.
– Amanhã não vou poder ir à loja, vou ter de ficar a tomar conta do
bebé – disse Beth. – Mr.
Hooley não vai ficar nada contente. Já que estamos tão perto do Natal.
E se ele não me guarda o lugar até a mamã melhorar?
– Não te preocupes com isso – disse Sam, cansadamente. – Escreve-lhe
uma nota e eu deixo-lha debaixo da porta a caminho do escritório. Agora é
melhor pôr um pouco mais de carvão no fogão, para manter a nossa irmãzinha
aquecida. Pergunto-me que nome lhe vai a mamã dar.
– A mim parece-me uma Molly – declarou Beth, voltando a espreitar
para dentro do berço. – Só espero que não acorde antes de Mrs. Craven voltar.
Não sei nada de bebés.
*
Beth dormiu um sono inquieto no velho cadeirão de braços junto ao
fogão, com os pés apoiados num tamborete e tapada por algumas mantas.
Acordava ao mais pequeno ruído, mas era sempre apenas o estalar de uma
brasa no fogão, ou um pequeno murmúrio do bebé. Mas, quando tentava
voltar a adormecer, o estranho pedido da mãe invadia-lhe o espírito.
Às seis da manhã, estava a embalar o bebé e a tentar fazê-lo parar de
chorar quando, para seu alívio, Mrs. Craven entrou pela porta das traseiras, a
bater com os pés no chão para sacudir a neve das botas.
– O bebé precisa de mudar de fralda e comer – declarou, num tom de
comando, e, atirando o casaco para cima de uma cadeira, pegou na criança,
começou a desembrulhar a manta encharcada e ordenou a Beth que fosse
buscar o caixote onde estavam guardadas as roupas e as fraldas.
Beth ficou a ver, fascinada, a mulher mais velha lavar cuidadosamente o
minúsculo corpo ao mesmo tempo que lhe dava instruções a respeito de mudar
o pedaço de gaze que envolvia o coto do cordão umbilical, que devia ser
salpicado com um pó especial até cair. Em seguida, dobrou uma fralda em
forma de triângulo e atou-a com gestos hábeis à volta do traseiro da criança.
– Daqui a pouco, quando as lojas estiverem abertas, vê se consegues
comprar um par de cueiros de borracha para ela – continuou Mrs. Craven. –
Não existiam quando os meus filhos nasceram, mas para mim são uma dádiva
de Deus, porque mantêm as roupas e os lençóis secos. Tens de mudar a fralda
de duas em duas ou de três em três horas. Se a deixares molhada, fica toda
assada.
Enquanto vestia ao bebé uma pequena camisa de noite, continuou a
transmitir uma enorme quantidade de informações a respeito dos cuidados a
ter com uma criança, a maior parte das quais entrou por um ouvido de Beth e
saiu pelo outro.
– Bem, agora vamos levá-la à mãe, para que lhe dê de mamar – disse,
devolvendo a criança a Beth.
– É natural que ela proteste, porque ainda está muito combalida, mas as
mães recuperam sempre mais depressa quando têm os filhos nos braços.
Alice parecia ligeiramente melhor, na medida em que pelo menos as
manchas da cara tinham desaparecido, e abriu os olhos, tentando sorrir. Fez
um esgar de dor quando Mrs. Craven a ajudou a sentar-se um pouco para
poder pôr-lhe mais almofadas atrás das costas, e estava horrivelmente pálida.
Beth já sabia que o Dr. Gillespie tinha feito aquilo a que se chamava
uma cesariana, e que devia ter sido feita num hospital. Mas não tivera por
onde escolher: a mamã não podia ser transportada e o bebé tinha de ser
retirado o mais rapidamente possível, ou morriam ambas.
– Vamos deixar o bebé mamar um pouco – disse Mrs. Craven,
desabotoando a frente da camisa de noite da mamã. – Depois arranjo-lhe
qualquer coisa para beber e comer e instalo-a mais confortavelmente.
Beth corou ao ver os seios da mãe, mas quando Mrs. Craven colocou o
bebé em posição e o viu agarrar imediatamente o mamilo, o embaraço
transformou-se em deleite ante o espectáculo de tanta avidez, não contendo
um sorriso.
– É uma lutadora, a pequena marota – disse Mrs. Craven, ternamente. –
Ora muito bem, como é que vamos chamar-lhe?
– Eu acho que é uma Molly – disse Beth, sentando-se na beira da cama.
– Então Molly será – disse a mãe, com um vislumbre de um sorriso.
CAPÍTULO 4
Nos dias que se seguiram ao nascimento de Molly, Beth não teve um
momento de descanso, num constante corrupio entre mudar as fraldas e
acalmar o bebé, tratar da mãe, o que incluía ajudá-
la a usar o bacio uma vez que não podia ir até à latrina no pátio das
traseiras, lavar a roupa e fazer todas as outras tarefas domésticas. Um espesso
manto branco cobria tudo, e continuava a nevar quase todos os dias. Estava
tão escuro dentro de casa que Beth tinha muitas vezes de acender os
candeeiros a gás mesmo durante o dia. Quando saía a correr para ir comprar
qualquer coisa, não se demorava, pois por mais convidativo que fosse o
aspecto de Church Street, com as montras das lojas enfeitadas para o Natal, os
vendedores de castanhas assadas e os tocadores de realejo, fazia demasiado
frio para andar na rua.
Além disso, estava fascinada pela irmã. Cuidar dela era um prazer, não
uma obrigação, e também não se importava com todas as outras coisas que
tinha de fazer. Passada uma semana, no entanto, a alegria foi substituída pela
ansiedade por causa da mãe.
Ao princípio, Alice parecera ir melhorando progressivamente. No
terceiro dia após o parto, pedira uma omeleta a Beth e comera-a até ao último
pedaço, além de um pouco de arroz-doce. Ficava com Molly ao colo por
longos períodos depois de a amamentar e gostava de conversar com Beth,
explicando-lhe pequenas coisas a respeito de bebés e de cozinhados.
No quarto dia, estivera mais ou menos na mesma até à noite, quando
repentinamente se queixara de ter muito calor. Na manhã seguinte, Beth tivera
de ir chamar o Dr. Gillespie, porque a mãe estava cheia de febre.
O médico dissera que era frequente as mulheres ficarem assim ao quarto
ou quinto dia depois de darem à luz e recomendara a Beth que a fizesse beber
muitos líquidos e a mantivesse quente. Mas Alice começara a piorar cada vez
mais, com tanta febre que mal sabia quem era. Cheirava mal e era atormentada
por dores de barriga tão terríveis que nem o medicamento que o médico lhe
dera conseguia aliviar.
Mrs. Craven chamava-lhe febre de parto, mas o Dr. Gillespie tinha um
nome muito mais complicado. Ia lá a casa duas vezes por dia, irrigava o útero
da mamã com uma solução anti-séptica e depois enchia-o de gaze.
Continuaram a levar-lhe Molly para que lhe desse de mamar, apesar de
não conseguir pegar nela, mas, naquela manhã, Mrs. Craven levara-lhes um
biberão de vidro com uma tetina de borracha. Não tivera de explicar porquê;
era evidente que a saúde de Alice estava de tal modo deteriorada que já não
conseguia produzir leite suficiente.
Molly agarrou-se ao biberão com entusiasmo e Beth ficou encantada
por sentar-se na confortável cadeira junto ao fogão a dar-lhe de comer.
Adorava a maneira como os olhos de Molly se abriam muito quando
começava a mamar; pareciam dois grandes berlindes azul-escuros, e Molly
agitava as minúsculas mãos como se isso ajudasse o leite a deslizar para baixo
mais depressa. Mas quando chegava ao fim do biberão, baixava as pálpebras e
deixava cair os braços ao longo do corpo.
Muitas vezes, Beth ficava uma hora ou mais a segurar a irmã contra o
ombro e a massajar-lhe ao de leve as costas, como Mrs. Craven lhe tinha
ensinado, para a fazer arrotar. Adorava o cheiro e o contacto do bebé, os
pequenos suspiros de contentamento que deixava escapar e tudo nela. Mesmo
depois de lhe ter mudado a fralda, de a ter embrulhado numa manta de tal
modo que só se via a minúscula cabeça e de a ter depositado no berço,
deixava-se ficar a vê-la dormir, maravilhada pelo milagre de uma nova vida.
Esta alegria era, no entanto, perturbada pela fraca saúde da mãe. Nem o
Dr. Gillespie nem Mrs.
Craven tinham sequer sugerido que Alice não ia recuperar, mas por
mais que se esforçasse por ser optimista, Beth sentia a morte aproximar-se no
quarto ao lado.
A bondosa e competente vizinha aparecia agora de duas em duas ou de
três em três horas, e Beth soube pelo aumento do número de lençóis
manchados de sangue, pelo cheiro, pelo modo como Mrs.
Craven deitava cada vez mais carvão na lareira do quarto e pela
gravidade da sua expressão que era apenas uma questão de tempo.
Não deu parte dos seus medos a Sam, pois sabia que ele andava
preocupado com a questão do dinheiro. Mr. Hooley levara a mal o facto de
Beth ter deixado o trabalho na época de maior azáfama do ano e não se punha
sequer a possibilidade de lhe guardar o lugar até ela poder voltar. Ainda por
cima, Sam gelava no escritório da companhia de navegação e queixava-se de
que era difícil escrever com uma letra bonita quando tinha os dedos
entorpecidos pelo frio. A ideia de mais dois ou três meses de Inverno num
local de trabalho tão inóspito enchia-o de terror. Beth achava que se lhe
dissesse que a mãe ia provavelmente morrer e que teria de ser ele a sustentar
sozinho as duas irmãs era bem possível que se sentisse tentado a voltar costas
e fugir.
No entanto, na tarde de domingo, depois de Sam ter passado o dia
inteiro em casa a observar toda aquela frenética actividade, Beth percebeu,
pela expressão ansiosa do irmão, que começava finalmente a perceber a
gravidade da situação.
– Porque não me disseste? – perguntou-lhe ele num tom de censura,
enquanto Beth, sentada, embalava a pequena Molly.
– Já tinhas mais do que o suficiente com que te preocupar – respondeu,
e era verdade. – Além disso, estava na esperança de que melhorasse.
Nesse momento, ouviram o tilintar da pequena campainha que Beth
deixara à cabeceira da mãe para que ela pudesse chamar se precisasse de
alguma coisa. Beth pôs-se de pé e foi até ao quarto, ainda com Molly ao colo.
O calor no quarto era sufocante, e o cheiro desagradável tornara-se
ainda mais intenso.
– Quer água, mamã? – perguntou Beth, evitando olhar para a cara da
mãe. Doía olhar para ela, porque a carne do rosto parecia ter-se recolhido para
dentro dos ossos e os olhos destacavam-se, proeminentes como os de um
peixe na bancada do peixeiro.
– Não. Chama o Sam, preciso de falar com os dois – respondeu a mãe, a
voz reduzida a um murmúrio rouco.
Sam entrou imediatamente, de nariz franzido por causa do cheiro.
– Aproximem-se mais – sussurrou a mãe. – Custa-me falar.
Os dois irmãos chegaram-se mais para a cama, Beth a apertar Molly
com força contra o peito.
– O que foi, mamã? – perguntou Sam, a voz a tremer.
– Tenho uma coisa muito má para lhes dizer – continuou Alice. – Sei
que estou a morrer, e não quero levar isto na consciência.
Sam começou a dizer que ela não ia nada morrer e que de todos os
modos era pura e boa, mas ela agitou debilmente uma mão para o calar.
– Não sou uma boa mulher – disse, a voz quebrada e áspera. – O vosso
pai matou-se por causa daquilo que eu fiz.
Sam olhou de soslaio para Beth, numa pergunta muda. A irmã
limitou-se a encolher os ombros, convencida de que a mãe estava apenas a
delirar por causa da febre.
– Houve outro homem. O vosso pai descobriu-o poucas semanas antes
de se matar. Disse que me perdoaria se eu prometesse nunca mais voltar a
vê-lo. – Calou-se, sacudida por uma tosse fraca. Nem Beth nem Sam fizeram
um gesto para a ajudar a beber.
– E eu prometi – continuou ela, quando a tosse amainou. – Mas não
consegui cumprir a minha promessa e continuei a procurá-lo sempre que podia
sair. A última vez que o vi foi na manhã do dia em que o vosso pai se
enforcou.
Beth estava aturdida.
– Como pôde fazer uma coisa dessas? – gritou.
– Sua, sua… – gritou Sam, o rosto a ficar vermelho de raiva e repulsa. –
Sua rameira!
– Não há nada que possam dizer capaz de me fazer sentir pior do que já
me sinto – rouquejou Alice.
– Traí o vosso pai e sou responsável pela morte dele. Era um bom
homem, demasiado bom para mim.
– E a Molly? Quem é o pai dela? – perguntou Beth.
– O outro homem – respondeu a mãe, fechando os olhos como se não
conseguisse suportar ver os rostos zangados dos filhos. – Procurem na gaveta
onde guardo as minhas meias – continuou. – Está lá uma nota que encontrei
naquela noite, que o Frank tinha escondido debaixo da minha almofada.
Sam abriu a pequena gaveta da cómoda e remexeu-a durante alguns
instantes até encontrar uma folha de papel. Levou-a para junto do candeeiro a
gás, para a ler.
– O que é que diz? – perguntou Beth.
Querida Alice, leu Sam.
Sei desde há algum tempo que continuas a ver o teu amante. Quando
encontrares isto eu já terei partido e tu estarás livre para ires ter com esse
homem de quem gostas mais do que de mim. Tudo o que peço é que esperes
um tempo razoável depois da minha morte antes de ires ter com ele, por causa
dos nossos filhos.
Amei-te, lamento não ter sido o suficiente.
Frank.
Beth tinha começado a chorar enquanto Sam lia a nota. Imaginou o pai,
sempre calmo e gentil, a escrevê-la, a subir à hora do chá para escondê-la
debaixo da almofada. Mesmo com o coração despedaçado, não recorrera à
raiva nem à maldade. Continuara a ser um bom pai e um marido carinhoso até
ao fim.
Sam aproximou-se dela e passou-lhe um braço pelos ombros; olhou
para Molly adormecida nos braços dela. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.
– Porquê, mamã? – gritou. – Porque é que tinha de fazer uma coisa
destas?
– Amava o vosso pai, mas era o amor carinhoso de uma amiga –
respondeu ela, a voz entrecortada.
– A paixão é uma coisa completamente diferente. Talvez um dia vocês
mesmos o descubram e compreendam.
– Mas porque não veio esse outro homem buscá-la? – gritou Sam,
furioso. – Se era verdadeiro amor, porque não está ele a seu lado neste
momento?
– O meu maior erro foi confundir paixão com amor – disse Alice, os
olhos a arder cravados no filho. – Ele desapareceu mal soube que o Frank
tinha morrido. Foi esse o meu verdadeiro castigo, saber que me tinha unido a
um patife que não queria saber de mim para nada, e o Frank morreu a pensar
que tinha arranjado maneira de me fazer feliz.
– Esse outro homem sabia que estava grávida dele? – perguntou Beth, a
soluçar.
– Não, Beth. Só o descobri depois da última vez que estive com ele.
Alice começou a tossir e a respiração tornou-se-lhe sibilante. Era
evidente que não estava em condições de dizer o que mais quer que fosse.
– Agora durma – disse Beth, secamente. – Amanhã voltamos a falar.
Mais tarde, na cozinha, Sam andava de um lado para o outro, lívido de
raiva.
– Como foi capaz? – repetia. – E se ela não recuperar, é suposto
cuidarmos nós dessa miúda?
Beth chorava enquanto embalava Molly nos braços.
– Não digas isso, Sam. É apenas um bebé, não tem culpa de nada, e é
nossa irmã.
– Minha irmã, não! – enfureceu-se Sam. – O nosso pai podia ser
suficientemente fraco para aceitar que a mulher tivesse um amante, mas eu
não vou seguir-lhe o exemplo. Ela tem de ir.
– Ir para onde? – perguntou Beth, por entre as lágrimas. – Queres que a
levemos para o orfanato?
Que a deixemos à porta de alguém?
– Não posso nem quero sustentar a filha do homem que seduziu a minha
mãe e levou o meu pai a matar-se – disse Sam num tom firme, os lábios
cerrados numa linha determinada. – Livra-te dela!
Beth continuou a pé muito tempo depois de Sam ter ido para a cama.
Deu de comer e mudou a fralda a Molly antes de a deitar no berço, e em
seguida sentou-se na cadeira a tentar compreender o que se passara.
Mas nada daquilo fazia sentido. Até àquela noite, nunca julgara possível
que uma mulher com um bom marido, filhos e uma casa confortável pudesse
querer mais qualquer coisa. Ouvira, claro, falar de mulheres sem moral que
andavam com homens que não eram seus maridos, mas sempre tivera a ideia
de que eram o género de debochadas que frequentavam as tabernas e se
maquilhavam. Não mulheres normais, como a mãe.
«Paixão», da maneira como a mãe se lhe referira, era algo que não
compreendia. Miss Clarkson gostava de usar a palavra, mas era quase sempre
em ligação com a música. Mas certa vez, quando estava a falar da maneira
como os bebés eram feitos, dissera que a «paixão» dominava por vezes
algumas mulheres e lhes roubava a vontade. Beth tinha de supor que fora o
que acontecera à mãe.
*
Beth ainda estava sentada na cadeira, a chorar, quando ouviu um ruído
vindo do quarto da mãe.
Qualquer coisa tinha caído no chão, talvez o copo de água. Não queria
voltar a ver a mãe naquela noite, mas sabia que tinha de ir lá verificar.
Alice estava caída sobre um dos lados da cama, a tentar chegar à foto de
família pousada na mesa-de-cabeceira. Fora tirada um ano antes em New
Brighton Beach, quando lá tinham ido passar um fim-de-semana prolongado
em Agosto. Ao tentar agarrá-la, fizera-a cair em cima do frasco de
comprimidos que o médico lhe dera.
– É isto que quer? – perguntou Beth, pegando na fotografia e
segurando-a para que a mãe pudesse vê-la.
Alice ergueu um braço com grande dificuldade e pousou um dedo na
fotografia.
– Não contes a ninguém a respeito da Molly – pediu, num murmúrio. –
Deixa-os pensar que é do Frank. Não por mim, mas por ela, e dá-lhe isto
quando crescer, para que saiba como éramos.
A mão dela deslizou pela fotografia e agarrou o pulso de Beth. Era seca
como uma folha de Outono, tão pequena e ossuda, e estava a apertar com
força.
– Lamento tanto – murmurou. – Diz que me perdoas.
O instinto disse a Beth que aquilo era o fim, ou muito perto disso. Fosse
o que fosse que a mãe tivesse feito, fosse quem fosse que tivesse magoado,
não podia deixá-la morrer sem uma palavra bondosa.
– Sim, perdoo-lhe, mamã – disse.
– Posso ir agora? – sussurrou Alice.
A pressão no pulso de Beth afrouxou e a mão da mãe caiu na manta.
Beth ficou a olhar para ela durante algum tempo antes de perceber que tinha
deixado de respirar.
CAPÍTULO 5
Vamos fazer o funeral mais barato possível – declarou Sam
teimosamente. – Por causa dela, o nosso pai não pode repousar em solo
sagrado, e ninguém foi ao funeral dizer que tinha sido um bom homem.
Porque há-de ela ter melhor?
– Não podemos fazer-lhe um funeral de mendiga – alegou Beth,
cansada, pois já tinham discutido aquilo várias vezes desde que o irmão
chegara a casa para cear, sendo agora quase onze da noite. – O que é que as
pessoas vão pensar de nós?
– E o que é que isso nos importa? – explodiu ele. – Exceptuando os
Craven, toda a gente tem murmurado boatos a nosso respeito desde que o papá
morreu. Pois que continuem.
Beth começou a chorar, porque não conhecia aquela pessoa de coração
de pedra que tomara o lugar do irmão. A mãe tinha morrido há menos de vinte
e quatro horas, o corpo ainda estava estendido na cama, e apesar disso Sam
saíra para trabalhar de manhã como se nada tivesse acontecido.
Compreendia, claro, que o irmão tinha medo de perder o emprego se
não fosse, mas ele podia ter-lho explicado, apenas meia dúzia de palavras
meigas para lhe mostrar que não estava zangado também com ela.
– Não chores, Beth – pediu ele, os olhos a suavizarem-se. – Não quero
ser cruel, mas as coisas chegaram a um ponto desesperado. Não podemos
gastar dinheiro que não temos no funeral dela. E
essa criança tem de ir!
Beth moveu-se protectoramente para junto do berço de Molly.
– Não digas isso, Sam. É nossa irmã, e eu não vou abandoná-la. Podes
vender o piano ou outra coisa qualquer para conseguirmos algum dinheiro,
alugamos um dos quartos ou mudamo-nos para uma casa mais barata, mas a
Molly fica connosco.
– Não suporto olhar para ela – disse Sam, com os olhos carregados de
lágrimas. – Vai lembrar-me sempre o que a mamã levou o papá a fazer.
– Se a mamã não tivesse sido tão honesta e corajosa ao confessar a
verdade, nunca o teríamos sabido – argumentou Beth. – Além disso, o papá
havia de dar voltas no túmulo se abandonássemos um bebé indefeso, mesmo
não sendo dele. Por isso tens de encontrar um pouco de bondade para aceitar
que temos de fazer o que é justo para a Molly.
Sam ficou a olhar pensativamente para ela. Fez uma longa pausa antes
de voltar a falar.
– Posto dessa maneira, suponho que tenho de concordar. – Suspirou. –
Mas não esperes que sinta alguma coisa por ela. E não me culpes quando
descobrires o que é ser verdadeiramente pobre.
Para Beth, bastava que Sam tivesse cedido.
– Nesse caso, chegamos a um compromisso e fazemos um funeral o
mais barato possível. Mas depois não me culpes quando descobrires que isso
te faz sentir mal contigo mesmo.
O Natal foi triste; não tinham dinheiro nem vontade para qualquer
espécie de festejos. Deixaram Molly com Mrs. Craven apenas o tempo
suficiente para irem à igreja na manhã de Natal, mas isso não lhes
proporcionou qualquer consolo, pois só serviu para lhes lembrar a alegria de
natais passados. Algumas pessoas, poucas, aproximaram-se deles para lhes
apresentar condolências, mas não havia nelas sinceridade, apenas curiosidade.
O funeral foi dois dias mais tarde, e a filha mais velha de Mrs. Craven
ficou a tomar conta de Molly. A chuva tinha derretido a neve, mas um vento
gelado varria o cemitério, quase a cortá-los ao meio enquanto o caixão barato
descia à terra. Além de Sam e Beth, havia só mais três pessoas: os Craven e o
Dr. Gillespie. Enquanto o padre Reilly entoava as palavras finais do serviço,
Beth lançou um olhar ao lugar onde o pai estava enterrado, em solo não
consagrado. Pensou em como era injusto um homem que nunca pecara contra
ninguém estar ali enquanto a esposa adúltera era sepultada com a bênção da
Igreja.
Na primeira semana de Fevereiro, quando Sam fez dezassete anos e
Beth dezasseis, foram obrigados a vender o piano. Beth não se importou
muito, já que continuava a ter o seu precioso violino, mas ver o piano a ser
descido pela janela até à rua fê-la pensar na trágica ironia de tudo aquilo.
Para os pais, o piano fora o símbolo de que tinham conseguido erguer
os filhos até à classe média, o que os poria ao abrigo das privações que eles
próprios tinham tido de suportar. E no entanto, por terem sido protegidos da
necessidade e escudados contra as duras realidades da vida, nem ela nem Sam
tinham recursos para enfrentar a pobreza.
Beth sabia fazer bolos, pôr uma mesa, engomar e passar a ferro uma
camisa, e adquirira dúzias de outras refinadas competências, mas nunca fora
ensinada a planear as refeições de uma semana com um orçamento minúsculo.
Sam podia ser capaz de ir buscar carvão para o lume, limpar a neve do pátio
das traseiras e chegar a horas ao emprego todos os dias, mas não fazia a
mínima ideia de como desentupir um lava-louça ou consertar o caixilho de
uma janela.
Durante toda a infância deles, houvera sempre um lume na sala, um
fogão na cozinha e até lareiras a arder nos quartos quando o frio apertava a
sério. Os candeeiros a gás eram acesos antes de escurecer, havia sempre fruta
numa taça, bolo na caixa de lata e carne todos os dias.
O carvão acabou-se pouco depois do Natal e quando encomendaram
mais ficaram chocados ao descobrirem o preço e que só poderiam alimentar o
fogão da cozinha. O gás comia moedas a uma velocidade tal que tinham medo
de acendê-lo. A fruta e os bolos desapareceram da dieta.
O salário de Sam era gasto em comida muito antes de cada sexta-feira, e
depois de terem comido as conservas e as reservas de açúcar e farinha que a
mãe tão frugalmente acumulara na despensa, ficaram reduzidos a pão até ao
dia de pagamento.
Talvez tivesse sido possível conseguir um melhor preço pela mesa
redonda de mogno com cadeiras a condizer de que a mãe tanto se orgulhara,
mas precisavam do dinheiro para pagar o carvão e a conta do Dr. Gillespie.
Foram sem dúvida enganados na venda do velho relógio de pêndulo. Mas
nenhum dos dois sabia o verdadeiro valor daquelas coisas ou que os
negociantes de mobílias em segunda mão sabiam detectar o cheiro do
desespero.
Apesar do seu amor por Molly, Beth não contara com a solidão de
passar um dia inteiro em casa com um bebé. Parecia nunca ter um instante seu
para descansar, tocar violino ou tomar um banho.
Sam não estava interessado em saber de Molly quando voltava do
trabalho, e ela só tinha Mrs.
Craven com quem falar e estava constantemente preocupada com o
dinheiro.
Em meados de Março, Sam chegou à conclusão de que não tinham
alternativa senão aceitar inquilinos.
Um dos empregados mais antigos do escritório sugeriu um primo seu,
Thomas Wiley, e a mulher, Jane, que tinham estado a viver com ele e a família
desde que Thomas se mudara de Manchester para começar a trabalhar nos
Correios de Liverpool. O casal andava pelo meio da casa dos trinta e Beth
antipatizou imediatamente com Jane. Tudo nela era afiado: os olhos, que
dardejavam pela sala enquanto falava, o nariz e as maçãs do rosto, e até a voz,
com um tom agudo.
Não mostrou o mais pequeno interesse em Molly e mirou Beth dos pés
à cabeça, como que a avaliar o preço das roupas. Quando Beth tentou sugerir
que estabelecessem um plano que permitisse às duas preparar as respectivas
refeições da noite, Jane interrompeu-a dizendo que não gostava de cozinhar.
O marido, Thomas, era bem mais simpático, um homem jovial de faces
rosadas que pareceu muito grato quando Beth lhes disse que poderiam dispor
da sala de estar e do seu antigo quarto no segundo piso por cima da cozinha,
uma vez que ela e Molly tinham passado a ocupar o quarto que fora dos pais.
Declarou que já começava a desesperar por conseguir arranjar um lugar
decente, ou sequer limpo, para viver, pois tinha visto quartos que nem para um
cão serviriam.
Infelizmente, cedo se tornou evidente que Thomas gostava mais da
bebida do que da mulher ou da casa. A maior parte das noites, não chegava
antes das dez.
Beth esforçava-se ao máximo por dar-se bem com Jane, mas ficou claro
desde o início que esta achava que uma inquilina tinha o direito de ser servida.
Logo no segundo dia, ordenou a Beth que lhe enchesse de água quente a
banheira de zinco do quarto. Quando Beth lhe disse que ela e Sam tomavam
sempre banho na cozinha, que era muito mais quente e conveniente, e que de
todos os modos teria de ser ela a encher e despejar a banheira, a mulher
voltou-lhe as costas com um ar indignado e disse que «nunca tinha ouvido
semelhante coisa».
No fim, derramou água por todo o chão da cozinha e não fez o mais
pequeno esforço para limpá-la.
Queixava-se de que o choro de Molly à noite a impedia de dormir e de
que o colchão da cama estava cheio de altos e baixos. Beth apressava-se a dar
o biberão a Molly se ela acordasse de noite e passou uma boa hora no pátio a
sacudir o colchão de penas, para o tornar mais macio, mas Jane não a ajudava
de maneira nenhuma. Era capaz de deixar tudo sujo a fazer uma simples
chávena de chá, e nunca arrumava nada. Enchia o lava-louça de roupa suja e
em seguida desaparecia, o que significava que Beth tinha de lavar a roupa dela
para poder lavar a sua.
Dia após dia, Beth via a vida confortável e ordeira a que estava
habituada, e que tanto se esforçara por manter, degradar-se cada vez mais.
Quando estava a dar banho a Molly no lava-louça, Jane entrava na cozinha e
punha-se a fritar bacon, atirando para o chão o vestido, o casaquinho e a fralda
lavados que estavam a arejar junto ao fogão. Se Beth se quisesse sentar no
cadeirão de braços para dar o biberão a Molly, já Jane estava lá instalada.
Servia-se da comida deles; não lavava os pratos nem os tachos que usava.
Beth depressa perdeu a esperança de ouvi-la oferecer-se para limpar uma vez
que fosse a cozinha, as escadas ou a latrina, apesar de Thomas chegar à noite a
casa com as botas cheias de lama e Beth encontrar na manhã seguinte um rasto
de porcaria no patamar e escadas acima.
E não podia queixar-se. Não só tinha um bocado de medo de Jane como
sabia quanto ela e Sam precisavam desesperadamente do dinheiro da renda.
Mas era duro, muito duro, ver a casa que sempre conhecera tão limpa e
arrumada cair na sujidade, ouvir as etilizadas divagações de Thomas a altas
horas da noite e nunca ter um momento de verdadeira privacidade. Tocar
piano ou violino sempre fora a sua maneira já comprovada de escapar por
algum tempo aos problemas, mas já não tinha piano, e com Jane sempre a
rondá-la, não era capaz de tocar violino. Sentia que estava a ficar enrolada
como a mola de um relógio e tinha medo do que podia acontecer quando essa
mola finalmente se soltasse.
Aconteceu numa manhã de Julho. Sam e Thomas tinham saído para os
respectivos empregos cerca de uma hora antes. Beth entrou na cozinha com
Molly ao colo, pronta para lhe dar o biberão, e encontrou Jane a despejar uma
parte do leite na sua chávena de chá.
– Que está a fazer? – exclamou. – Esse leite é da Molly!
– Não há mais nenhum – respondeu Jane.
– Então vá comprá-lo! – retorquiu Beth, furiosa. – Que espécie de
pessoa é capaz de tirar comida a um bebé?
– Não me fale nesse tom. – Jane semicerrou os olhos e aproximou
ameaçadoramente o rosto afilado do de Beth. – Dá-lhe demasiada comida, de
todos os modos. É por isso que ela está tão gorda.
Com sete meses, Molly era rechonchuda, mas Beth orgulhava-se por
vê-la tão saudável e forte.
Tinha uma farta cabeleira negra, quatro dentes e já conseguia sentar-se
sem ajuda. Era um bebé feliz, que sorria e tagarelava todo o santo dia.
– É bonita, não é gorda, e a senhora devia era ter vergonha – atirou-lhe
Beth. – Já é suficientemente mau roubar a nossa comida. Será que agora vou
ter de esconder também o leite da Molly?
– Estás a chamar-me ladra? – gritou Jane e, agarrando um punhado de
cabelo de Beth, puxou-lhe violentamente a cabeça para trás, fazendo-a gritar.
– Isso, grita, minha ranhosa. Achas-te superior e importante, não é? Mas que
motivos tens tu para te julgares superior? O teu pai matou-se, e toda a gente
sabe porquê.
Largou o cabelo de Beth e lançou-lhe um olhar cheio de desprezo.
– Não sabes que toda a gente fala a respeito da tua mãe? Eu e o Tom já
sabíamos da história antes de virmos para cá. O teu pai devia ser maluquinho
para matar-se em vez de a pôr na rua. Não admira que o teu irmão não queira
saber da fedelha para nada.
Beth recuou com Molly nos braços. Estava horrorizada por saber que a
verdade a respeito da mãe era do conhecimento geral, e além disso tinha medo
de Jane, mas estava farta, e não ia deixar aquela mulher levar a melhor.
– O que acaba de dizer é totalmente falso – gritou. – E não vou permitir
que seja quem for calunie a minha mãe, de modo que pode pegar nas suas
coisas e sair da minha casa, já.
– E como é que achas que vais obrigar-me? – Jane pôs
desafiadoramente as mãos nas ancas. – O
irmão mais velho vai pôr-me fora, é isso? – Soltou uma gargalhada. – O
teu irmão é mole como a merda.
Naquele instante, Beth soube que tinha de ser forte e lutar pelos seus
direitos. Deu meia-volta, correu para o quarto e deixou Molly a salvo no
berço. Molly protestou aos berros, mas Beth ignorou-a e voltou à cozinha para
confrontar Jane.
– Não preciso do meu irmão – disse, desafiadoramente. – Sou
perfeitamente capaz de lidar com gente da sua laia. Saia agora e eu embrulho
as suas coisas e deixo-as no pátio para que o Thomas as venha buscar mais
tarde.
Jane saltou para ela, com uma mão erguida para lhe bater, mas Beth,
mais rápida, agarrou-lhe o pulso e torceu-o, fazendo-a uivar de dor.
– Fora! – gritou, continuando a torcer-lhe o pulso enquanto a empurrava
para as escadas. – E se tentar voltar, vai-se arrepender.
Beth nunca tinha lutado com ninguém, excepto na brincadeira com
Sam, quando eram mais novos, mas a fúria deu-lhe força e determinação.
Jane quis ripostar e tentou arranhá-la com a mão livre, mas Beth tinha a
seu favor a juventude e a força da razão e conseguiu arrastar a mulher mais
velha escadas abaixo em direcção à porta das traseiras. Uma vez no pátio,
empurrou-a com tanta força que Jane caiu.
– Hás-de pagar por isto! – gritou Jane, estendida no chão, com os
encardidos saiotes e ceroulas à mostra. – Não penses que fica assim. Quero as
minhas coisas.
– Pode levá-las – disse Beth. – Vou atirar-lhas da janela.
A seguir, girou sobre os calcanhares, voltou a entrar em casa, trancou a
porta e correu escadas acima. Não demorou mais de um par de minutos a tirar
do quarto o casaco, o chapéu, a bolsa e um par de botas da mulher, chegar à
janela da cozinha, abri-la e atirar tudo para o pátio.
– E pode dar-se por muito satisfeita por levar isso – gritou. – O resto vai
ficar na latrina. Venha buscá-lo mais logo.
Mr. Craven tinha saído para o beco por trás do pátio e estava a olhar
para Beth, cheio de espanto e curiosidade.
– Estou a pô-la fora por caluniar os meus pais – gritou-lhe ela. –
Importa-se de a ajudar a sair?
Ficou à janela apenas o tempo suficiente para ver o vizinho acompanhar
Jane até à cancela das traseiras e ouvir a torrente de insultos corrosivos que a
mulher lhe lançou.
Sem saber muito bem como, Beth conseguiu dar o biberão a Molly,
apesar de estar a tremer como varas verdes devido ao choque. Ouviu Mrs.
Craven gritar do pátio e desceu para lhe abrir a porta.
– Oh, Céus! – exclamou Mrs. Craven, ao ver como Beth estava pálida e
agitada. – Ouvimos os gritos, e foi por isso que o meu Alfie saiu para ver o
que se passava.
A ternura na voz dela fez Beth chorar, e então Mrs. Craven abraçou-a e
tirou-lhe Molly dos braços.
– Vou fazer-te uma boa chávena de chá, e depois podes contar-me tudo.
– Não há leite – fungou Beth. – Foi por causa disso que tudo começou.
– Então eu vou buscar – disse Mrs. Craven. – E é melhor mudares a
fralda da Molly enquanto vou.
Que cheiro!
Meia hora mais tarde, Beth tinha explicado tudo. O chá e a preocupação
da vizinha fizeram-na sentir-se melhor.
– Soube que não era boa peça mal pus os olhos nela. Ordinária e com
cara de má – disse Mrs.
Craven, enquanto fazia Molly saltitar nos joelhos. – Como se não
tivesses já o suficiente para te atormentar! E não ligues ao que ela disse a
respeito da tua mãe.
– Mas é o que as pessoas andam a dizer?
Mrs. Craven franziu a testa.
– A mim ninguém mo disse. Porque se dissessem eu logo lhes contava.
Mas o meu Alfie disse que havia falatório na Fiddlers.
A Fiddlers Inn ficava na esquina de Lord Street. O papá não fora
homem de beber, mas a maior parte dos vizinhos sim, e Thomas Wiley
frequentava a taberna.
Nunca antes passara sequer pela cabeça de Beth que alguém suspeitasse
de que Molly não era filha do pai dela, e descobrir isso deixara-a horrorizada,
mas não fazia a mínima tenção de admitir que os rumores eram verdadeiros,
nem sequer perante a bondosa Mrs. Craven.
– Porque é que as pessoas são tão cruéis? – perguntou, confusa.
– Por vezes é a inveja. A tua família parecia tão perfeita, a tua mãe era
uma mulher bonita, o teu pai tinha um bom negócio e dois filhos de que se
podia orgulhar. Ninguém consegue perceber a razão por que se matou, por
isso põem-se a adivinhar.
– Que vai ser de nós agora? – perguntou Beth, desolada. – Precisamos
de inquilinos para nos aguentar. O Sam vai ficar furioso comigo.
– Não acredito, Beth. – Mrs. Craven estendeu a mão e pegou na de
Beth, do outro lado da mesa. – Mostraste muita coragem, e ele vai admirar
isso. Agora vou ajudar-te a empacotar as coisas dos Wiley. O meu Alfie vai
ficar de ouvido atento para quando eles voltarem, e dará uma ajuda se houver
algum problema.
CAPÍTULO 6
–Quem me dera que pudéssemos emigrar para a América – disse Sam
com desalento durante o jantar. – Este lugar está carregado de más
recordações. Odeio-o.
Foi no dia seguinte a Beth ter corrido com Jane Wiley. Sam não ficara
zangado, apenas desmoralizado. Observara que havia centenas de pessoas à
procura de um lugar para morar, mas que era impossível saber quem poderia
roubá-los ou transformar-lhes a vida num inferno.
Beth ficara muito abalada por tudo aquilo. Quando fora limpar o quarto
dos Wiley, descobrira que o bacio não era despejado há dias, e que havia
pedaços de pão bolorento no chão e roupa interior suja espalhada por todo o
lado. Até os lençóis da cama estavam manchados de sangue e o toucador tinha
um grande risco que parecia ter sido feito com uma faca.
Sam descera ao pátio quando Thomas fora buscar as coisas do casal e
Mr. Craven mantivera-se atento no beco, para o caso de haver problemas. Mas
Thomas parecera mais resignado do que com vontade de lutar. Limitara-se a
pegar nos sacos e fora-se embora.
– Mas para emigrar precisávamos de dinheiro – disse Beth,
desejosamente.
– De todos os modos, não podíamos ir com a Molly – acrescentou Sam.
Beth sentiu uma pontada no coração, pois sabia que o que ele queria
verdadeiramente dizer era que não estaria disposto a levá-la. Não mudara de
atitude em relação ao bebé, como ela esperara; nunca lhe pegava ao colo ou
brincava com ela. Nem sequer o riso de Molly conseguia arrancar-lhe um
sorriso.
– Se não fosse ela, podíamos vender tudo para arranjar dinheiro para as
passagens – continuou ele, num tom amargo. – Como as coisas estão, amanhã
vou ter de levar as duas molduras de prata e vendê-las só para nos irmos
aguentando.
Pouco depois, Beth foi até ao quarto e abriu a parte de trás das molduras
para retirar as fotografias.
Uma era dela e de Sam quando tinham cerca de nove e dez anos, tirada
num estúdio de Church Street.
Ela usava um vestido branco e um pequeno chapéu de palha por cima
do cabelo encaracolado. Sam estava de pé ao lado da cadeira, de casaco escuro
e calções até aos joelhos, com um ar muito sério.
A mãe adorava aquela fotografia, e o papá comprara a moldura
especialmente para ela.
A outra fotografia era a que a mãe lhe pedira que guardasse para Molly.
Os pais estavam a sorrir, e Beth lembrou-se de que segundos depois de a foto
ter sido tirada todos eles tinham desatado a rir às gargalhadas porque, ao
dobrar-se para enfiar a cabeça debaixo do pano preto, o fotógrafo
descuidara-se.
Se ao menos pudessem ter continuado sempre tão felizes como naquele
dia! A mamã tão bonita com o seu melhor vestido, e o papá tão distinto com o
seu casaco às riscas e chapéu de palha. Fora tirada num dia de calor, e todos
eles tinham descalçado os sapatos e as meias e molhado os pés na água do
mar.
Beth compreendia o azedume de Sam. Havia momentos em que
também ela tinha vontade de amaldiçoar a mãe por ter sido a causadora de
tudo aquilo. Porque fora que não se satisfizera com um marido bom e
carinhoso que a amava?
*
Na manhã seguinte, Beth acordou mais animada e disposta a pôr um
anúncio para dois inquilinos do sexo masculino. Mais tarde, com Molly ao
colo, levou-o até à loja de doces mais adiante em Church Street. Depois de o
entregar para ser exposto, deteve-se a ler alguns dos outros anúncios já
colocados no painel e reparou num que pedia uma mulher para trabalhar
algumas horas por semana a lavar roupa e costurar.
A morada era em Falkner Square, num dos bairros mais chiques de
Liverpool. Percorrera muitas vezes as suas amplas ruas e as praças cheias de
árvores para entregar sapatos e botas a mando do pai.
A pensar que o lugar seria ideal para ela, correu a pedir a Mrs. Craven
que lhe ficasse com Molly enquanto lá ia.
– Com todo o prazer, minha querida – disse Mrs. Craven, sorrindo e
estendendo os braços para a bebé. – E se for só algumas horas por semana,
não me importo de tomar conta dela enquanto trabalhas.
Beth engraxou as botas, vestiu o seu melhor vestido azul-escuro, com
gola e punhos de renda, e cobriu a cabeça com uma simples touca da mesma
cor, que pertencera à mãe. Era a primeira vez que usava roupas que não
fossem pretas desde que o pai morrera e sentiu-se ligeiramente culpada por
não vestir de luto, mas os seus dois vestidos pretos começavam a ter um ar
bastante coçado e o azul-escuro era perfeitamente apropriado.
Ia muito mais animada quando se pôs a caminho, pois estava um belo
dia de sol e era agradável sair sem ter de levar Molly consigo, quase uma
aventura.
Os canteiros no centro de Falkner Square estavam lindos, com muitos
arbustos carregados de flores.
Deteve-se diante do número quarenta e dois, a olhar especulativamente
para os degraus que desciam até à cave por trás do gradeamento de ferro
forjado e para os de mármore que subiam até à porta principal sob o pórtico
com colunas.
A mãe falara-lhe da vida dos criados nas grandes casas, de modo que
sabia que a porta da cave era aquela a que devia bater. Mas fora-lhe muito
claramente incutido, durante toda a sua infância, que nunca seria criada de
ninguém, pelo que não estava disposta a começar agora.
Por isso inspirou fundo, subiu os degraus de mármore e puxou a
corrente da sineta. Ouviu-a retinir com um som harmonioso que ecoou pela
casa, e, de repente, sentiu-se nervosa e com a boca seca.
A porta foi aberta por uma mulher já de idade, vestida de cinzento e
com um avental branco e uma touca franzida.
– Vim em resposta ao anúncio a pedir alguém para ajudar a lavar e a
coser – anunciou Beth, numa voz um tudo-nada excessivamente alta. –
Chamo-me Miss Bolton.
A mulher mirou-a dos pés à cabeça.
– De onde é? – perguntou.
– De Church Street.
– É melhor entrar – disse a mulher, de testa franzida como se estivesse
confusa. – A senhora não está, de momento, mas eu tomo nota das suas
indicações e transmito-lhas quando ela voltar.
A mulher levou-a para uma sala pequena e mobilada com simplicidade
nas traseiras da casa. Beth ficou com a ideia de que era a sala dela, pois ao
percorrer o corredor viu um relance da sala de estar, e essa era luxuosa, com
magníficos tapetes e elegantes sofás e cadeirões de braços.
– Sente-se, por favor – convidou a mulher. – Sou Mrs. Bruce, a
governanta de Mrs. Langworthy.
Que idade tem?
– Dezasseis, minha senhora – respondeu Beth.
– E tem referências?
Beth não fazia ideia do que aquilo pudesse ser.
– Uma carta da sua última patroa? – disse Mrs. Bruce, num tom
bastante seco.
– Tive de sair à pressa da loja de meias onde estava a trabalhar –
respondeu Beth e, um pouco ofegante, explicou que a mãe, viúva, falecera
recentemente ao dar à luz. – Não pude voltar à loja porque tive de ficar em
casa a tomar conta da minha irmãzinha.
Beth estava a descascar batatas para o jantar, com Molly recostada
numas almofadas dentro de um caixote de madeira junto ao lava-louça,
quando Mr. Filbert, o homem que geria a sapataria no rés-do-chão, lhe gritou
lá de baixo.
– Miss Bolton, está aqui um rapazinho com uma carta para si!
– Desço já – respondeu ela, lavando as mãos e secando-as ao avental.
Tinha a certeza de que a carta só podia ser de recusa, mas ao menos Mrs.
Langworthy ou a sua governanta tinham tido a delicadeza de escrever.
– Não são más notícias, espero? – disse Mr. Filbert ao ver Beth parada
de pé no umbral da porta da loja, a olhar de boca aberta para o conteúdo da
carta que acabava de abrir.
– Não – respondeu Beth, erguendo os olhos para ele com um grande
sorriso. – Muito pelo contrário.
Mal podia esperar que Sam chegasse a casa para lhe dar as boas
notícias. Mrs. Langworthy queria que ela começasse na manhã seguinte.
Sugeria que Beth trabalhasse cinco horas dois dias por semana, por lhe parecer
que desse modo lhe seria mais fácil arranjar alguém para tomar conta da bebé.
E ia pagar-lhe dez xelins! E ela que recebera apenas sete xelins e meio para
trabalhar a semana inteira na loja de roupa interior!
– A nossa sorte mudou finalmente, Sam! – gritou, exuberante, no
instante em que o irmão entrou em casa.
O rosto de Sam abriu-se num rasgado sorriso e abraçou-a.
– Mrs. Bruce deve ter-se deixado fascinar pelo teu encanto – insistiu,
quando ela lhe disse que achava que tinha falado de mais. – Agora só espero
que Mrs. Craven não se farte de tomar conta da Molly.
– Ela disse que não se importava – respondeu Beth. – De qualquer
modo, a Molly não dá trabalho nenhum, e eu dou-lhe um xelim por dia.
Tudo o que Beth sabia a respeito do modo como as pessoas finas viviam
era o que a mãe lhe tinha contado sobre a sua experiência no serviço
doméstico, mas teve praticamente a certeza, logo a partir do seu primeiro dia
de trabalho para os Langworthy, de que aquela era uma casa muito invulgar.
Chegou às oito, como combinado, e Mrs. Bruce ofereceu-lhe chá e
torradas na cozinha da cave.
– Não pode trabalhar de estômago vazio – disse –, e tenho quase a
certeza de que correu para cá sem comer. Muito bem, vamos esperar que Mr.
Edward, o jovem Mr. Langworthy, saia para o escritório, e depois levo-a a
conhecer a senhora.
Vinte minutos mais tarde, Beth estava na sala de jantar do rés-do-chão,
onde Mrs. Langworthy tomava o pequeno-almoço. Ficava nas traseiras da
casa, ao lado da pequena sala de estar para onde Mrs. Bruce a levara no dia
anterior, e as janelas davam para um pátio.
Mrs. Langworthy foi uma surpresa. Estava à espera de uma senhora de
meia-idade e cabelos grisalhos, não de uma mulher relativamente nova, de
cabelos ruivos flamejantes, olhos azuis cintilantes e um sorriso caloroso.
– Bem-vinda, Beth – disse, levantando-se da mesa e estendendo-lhe a
mão. – Tenho pena de não ter cá estado ontem para te receber, mas Mrs. Bruce
contou-me tudo a teu respeito e das circunstâncias em que te encontras.
Lamento a tua dupla perda e espero que a tua irmãzinha não se importe de te
partilhar comigo.
Beth estava tão espantada pelo inesperado calor do acolhimento que,
por uma vez, ficou sem palavras. Apertou a mão à sua nova patroa e olhou
para Mrs. Bruce, em busca de orientação.
– A Molly fica com uma vizinha a quem está habituada – explicou Mrs.
Bruce.
– Nesse caso, tenho a certeza de que está feliz – disse Mrs. Langworthy.
– Vou deixar Mrs. Bruce mostrar-te a casa e dizer-te o que é preciso para hoje.
Agora tenho de ir ver o meu sogro, mas voltamos a falar no final da manhã.
Uma irlandesa pequena, magra e de cabelo escuro, de vinte e poucos
anos, estava a fazer a cama no quarto de Mrs. Langworthy, cujas janelas
davam para a praça. Mrs. Bruce apresentou-a como Kathleen e explicou que
vivia ali e tinha um quarto no último piso.
– É a criada de dentro. Faz as limpezas e acende as lareiras. Temos uma
cozinheira que vem todos os dias… hás-de conhecê-la mais tarde… e eu. Um
pessoal pequeno, mas os Langworthy não recebem muito, e, claro, Mrs.
Langworthy toma conta do velho Mr. Langworthy – disse Mrs. Bruce,
indicando o outro quarto na parte dianteira da casa. – Este é o quarto de Mr.
Edward – continuou pouco depois, já nas traseiras, abrindo a porta de outro
quarto. Era austeramente masculino, com um grande guarda-fato de mogno
envernizado, um lavatório com torneiras de latão e uma ampla cama, já tapada
por uma pesada manta escocesa azul-escura. – A casa de banho – prosseguiu,
indicando a porta seguinte. – Uma das maravilhas desta casa é ter sido
construída com todos os confortos modernos.
Beth nunca tinha visto uma casa de banho interior, só fotografias em
revistas, e não conseguiu resistir a dizê-lo.
– Nem eu, até ter vindo trabalhar para os Langworthy – respondeu Mrs.
Bruce, com um sorriso. – Há outra no piso térreo, além da do pátio das
traseiras.
A última divisão era um quarto de hóspedes. Mrs. Bruce explicou que o
seu próprio quarto ficava ao lado do de Kathleen.
As roupas de Mrs. Langworthy, cujo cuidado faria parte dos deveres de
Beth, eram guardadas num quarto de vestir contíguo ao quarto de dormir, mas
a governanta disse que, naquele primeiro dia, Beth teria apenas de lavar
lençóis.
Só quando voltaram à cave, depois de terem passado pela grande sala de
estar, que ocupava quase metade da casa da frente para as traseiras, e pelo
escritório de Mr. Edward, uma pequena divisão também com janelas para a
praça, Beth se apercebeu de que não lhe iam pagar todo aquele dinheiro para
não fazer nada.
Na lavandaria, que tinha porta para o pátio, havia duas grandes bacias
brancas, uma outra mais baixa a que chamavam escorredouro, uma máquina
para secar roupa e uma grande caldeira a gás que tinha de ser acesa por baixo.
E havia uma grande cesta cheia de lençóis que cheiravam fortemente a
urina e que era preciso ferver, e então Mrs. Bruce levantou a tampa de um
balde de esmalte a abarrotar de fraldas sujas.
– Tenta imaginar que não é muito pior do que o da tua Molly – disse,
apesar de ter o nariz voltado para fugir ao cheiro. – Enxagua-as bem no
escorredouro, e depois têm de ser fervidas juntamente com os lençóis. Haverá
mais roupa para lavar, ainda que não hoje, mas não te podes esquecer que os
lençóis de Mr. Langworthy têm de ser sempre fervidos à parte, no fim de tudo.
– Durante quanto tempo os fervo? – perguntou Beth, a tentar não pensar
no que estava no balde tapado.
– Vinte minutos a meia hora – respondeu a governanta. – Enquanto
fervem, podes lavar à mão na bacia as peças mais delicadas.
– É Mrs. Langworthy que lhe muda as roupas? – Beth tinha de
perguntar. Não conseguia imaginar uma pessoa tão encantadora e fina a fazer
um trabalho daqueles.
– Sim, Beth, é ela. Ele sempre foi um homem difícil, mesmo antes da
trombose. Mas depois tornou-se ainda muito pior, porque ficou com um lado
do corpo paralisado e a voz e a visão afectadas. Já tivemos dúzias de
enfermeiras ao longo dos anos, mas ele assustava-as tanto que fugiram todas.
Mrs.
Langworthy é a única pessoa que lhe pode tocar, e tem uma paciência
de santa. Devia ter filhos, receber amigos, uma vida. – Mrs. Bruce calou-se
bruscamente e corou. – Não devia ter dito isto. – Suspirou. – É que…
– Que fica tão furiosa por ela? – arriscou Beth.
– Sim, Beth. – Mrs. Bruce assentiu com a cabeça. – Mas não devia ter
falado.
– Não repetirei a ninguém o que disse – declarou Beth, enquanto abria a
torneira da caldeira para a encher. – Ela teve a bondade de me dar trabalho
quando eu precisava. Só por isso, têm as duas a minha lealdade.
– Então, como foi? – perguntou avidamente Mrs. Craven, quando Beth
voltou ao princípio da tarde.
Beth levantou Molly do tapete onde estava sentada e fez-lhe cócegas até
ela rir.
– Maravilhoso – respondeu. – É uma casa muito bonita, e até tem casa
de banho interior. Quem me dera que o velho Mr. Langworthy pudesse usá-la.
Não havia palavras para descrever o nojo que lhe causava lavar aquelas
fraldas. Engasgava-se e tinha vómitos, mal se atrevia a respirar, tão mal
cheiravam. Perguntou-se como conseguiam as enfermeiras aguentar coisas
daquelas dia após dia, e se ela própria seria capaz de se habituar a ponto de
deixar de lhe fazer diferença. Mas pensara também, no caminho para casa, que
a parte horrível só durava vinte minutos, no máximo, o que deixava quatro
horas e quarenta minutos de agradáveis deveres. Não se importava de lavar e
passar a roupa branca pelos rolos da máquina de torcer. Pô-la a secar no pátio
era um prazer. E passara a última hora sentada na cozinha a remendar as meias
de Mr. Edward enquanto conversava com Mrs. Cray, a cozinheira, e com
Kathleen, a criada irlandesa, que falava sempre numa voz muito baixa. E
ainda por cima, levava uma grande fatia de deliciosa empada de carne para o
jantar, e Mrs. Cray dera-lhe dois bolinhos para a sobremesa.
– Uma pessoa habitua-se a tudo, com o tempo – observou Mrs. Craven,
filosoficamente. – E eu adorei ficar com a Molly, de modo que é bom para as
duas.
*
Mrs. Craven tinha razão. Beth descobriu que tinha acabado por se
habituar a lavar aquelas fraldas.
Ou talvez fosse porque as partes boas do trabalho excediam largamente
as más. Era agradável sair de casa duas vezes por semana, ter outras pessoas
com quem falar e saber que estava a ajudar Sam a aguentar o barco.
Quase nunca via Mr. Edward. Geralmente, já tinha saído para o
escritório quando ela chegava, mas mesmo assim encontrou-o uma ou outra
vez e achou-o simpático. Era alto e magro, com cabelos cor de areia, já a
rarear, e um bigode de estilo militar, e era pelo menos dez anos mais velho do
que a mulher. Pareceu a Beth um homem estudioso e calado, que levava a vida
muito a sério.
Mrs. Langworthy era muito diferente. Expansiva e alegre, arranjava
sempre tempo para dois dedos de conversa. Adorava ouvir Beth falar a
respeito de Molly, e via-se que desejava muito ter tido um filho. Tinha uma
habilidade maravilhosa para manter a sua posição como senhora da casa e ao
mesmo tempo dar-se com todos os que trabalhavam para ela. Beth
compreendia por que razão Mrs.
Bruce lhe era tão dedicada e decidiu que se alguma vez se encontrasse
em situação de ter criados, seguiria o exemplo daquela admirável mulher.
Parecia que a sorte de Sam e de Beth tinha finalmente mudado, pois,
uma semana mais tarde, arranjaram dois novos inquilinos, Ernest e Peter,
ambos jovens respeitáveis que trabalhavam para uma companhia de seguros e
eram amigos.
Sam achou que seria melhor para Beth os inquilinos ficarem com os
quartos do último piso, de modo que se mudou para a sala de estar. Logo na
primeira noite, os dois jovens provaram ser os inquilinos ideais,
bem-educados, arrumados e atenciosos para com Beth e Molly.
Eram ambos entusiastas da bicicleta, e todos os domingos saíam com
um clube de ciclismo que organizava passeios pelo campo. Comiam o que
Beth lhes punha à frente, mostravam-se agradecidos por ela lhes lavar a roupa
e nenhum deles bebia. Sam gostava da companhia deles e frequentemente, à
noite, os quatro jogavam cartas. Por vezes, pediam a Beth que tocasse violino,
e acompanhavam-na com palmas e a bater com os pés no chão. Aquelas eram
as melhores noites de todas, porque, durante um par de horas, a música varria
todas as suas preocupações e Beth sentia-se livre e despreocupada como um
passarinho.
Além disso, Beth achava que Sam começava finalmente a gostar um
pouco de Molly. Por vezes, quando chegava a casa do trabalho e ela estava
sentada no chão, inclinava-se e fazia-lhe uma festa na cabeça, como Ernest e
Peter faziam constantemente. Beth não dizia nada – tinha a certeza de que se
comentasse o facto ele não voltaria a fazê-lo –, mas observava-o pelo canto do
olho e apanhava-o a brincar ao esconde-esconde com Molly, ou a fazer-lhe
cócegas para a fazer rir.
Uma noite de Agosto, depois de ter posto Molly na cama, Beth saiu por
uns minutos para falar com Mrs. Craven e, quando voltou, encontrou Sam
com a pequenina ao colo.
– Acordou a chorar – disse ele, como que a justificar-se. – Pensei que
estivesse com dores de barriga.
No dia seguinte, quando saiu para ir para Falkner Square, Beth teve
vontade de correr e saltar o caminho todo, tão feliz estava. Mais tarde, quando
estava na pequena sala junto à cozinha onde guardavam a máquina de coser, a
cantar enquanto arranjava as bainhas de uns lençóis já velhos, Mrs.
Langworthy entrou.
– E o que foi que te transformou em ave canora? – perguntou, com um
grande sorriso.
– Estou feliz porque o meu irmão parece começar finalmente a gostar da
Molly – admitiu Beth. – Tivemos tantos problemas depois de a nossa mãe
morrer. Ele não queria aceitar a Molly.
– Penso que os homens não têm esse amor instantâneo por bebés que as
mulheres sentem – disse Mrs. Langworthy, pensativamente. – Muitas das
minhas amigas disseram-me que, ao princípio, os maridos não se interessavam
minimamente pelos filhos. Deve ter sido ainda mais difícil para o teu irmão,
sendo os dois tão novos.
Beth continuou a tagarelar a respeito dos dois inquilinos, e de como
Sam parecia muito mais feliz, ultimamente.
– Nem sequer voltou a falar de emigrar para a América.
– E tu gostarias de ir?
– Bem, sim. Que grande aventura seria! Mas claro que com a Molly não
é possível. Eu também teria de trabalhar, se quiséssemos ter uma boa hipótese.
E sem amigos nem família, não teríamos ninguém para ficar com ela.
– Acho uma pena tu e o teu irmão terem de sacrificar os vossos sonhos
e ambições – disse Mrs.
Langworthy, dando uma palmadinha de compreensão no ombro de
Beth.
Numa quente e soalheira tarde de Verão, em finais de Agosto, Sam
chegou a casa do trabalho e sugeriu que, no dia seguinte, apanhassem o ferry
para New Brighton. Ernest e Peter planeavam sair de manhã nas suas
bicicletas e já tinham avisado de que não iam jantar, o que significava que não
precisariam de regressar à pressa.
Beth ficou entusiasmadíssima com a sugestão de Sam, não só por
guardar muitas e boas recordações de New Brighton, da vez que lá tinham ido
com os pais, mas também por o irmão estar a incluir Molly.
– Veste uma coisa bonita – disse ele. – Já andas de luto há tempo mais
do que suficiente. É altura de nos divertirmos um pouco.
Por coincidência, uma ou duas semanas antes Beth tinha passado em
revista as roupas da mãe para ver o que podia ser vendido ou alterado de modo
a servir-lhe, e encontrara, escondido no fundo do armário, o vestido azul-claro
com riscas brancas com que a mamã aparecia na fotografia. Ficara desejosa de
experimentá-lo, por ser tão bonito, com um decote mais cavado do que
geralmente usava, mangas tufadas e corpete pregueado. Só precisava de
alargar um pouco a cintura e baixar a bainha alguns centímetros, mas em tudo
o mais servia-lhe perfeitamente.
*
– Estás muito bonita – disse Sam apreciativamente, quando ela entrou
na cozinha no domingo de manhã, pronta para sair.
Beth estava quase inebriada de excitação, porque com o cabelo solto e
um pequeno chapéu de palha posto um pouco de lado, sentia-se uma jovem
muito à moda. Molly pareceu captar esse estado de espírito, pois pôs-se a rir e
a bater as mãozinhas gorduchas enquanto Beth a levava para baixo e a sentava
na cadeirinha de rodas.
Até Sam se tinha deixado contagiar pela animação: quando viraram para
Lord Street e começaram a descer em direcção às docas e ao ferry, caminhou
ao lado da cadeirinha, a brincar com Molly e a fazê-la rir.
Havia centenas de pessoas a encaminharem-se na mesma direcção. New
Brighton, com a sua praia de areia, os seus carrosséis, os seus passeios de
burro e a sua marginal, era um dos locais de recreio preferidos da classe
trabalhadora.
O dia foi o melhor possível. Comeram gelado, algodão-doce, empadas
de camarão e de carne, e riram alegremente de Molly, que queria tudo o que
eles comiam. Era tão gulosa por gelado que quase se punha de pé para lhe
chegar, ficando com a cara toda lambuzada.
Descalçaram as botas e molharam os pés no mar, andaram de carrossel,
com Sam a segurar Molly à sua frente, e Beth ganhou um frasco de caramelos
na barraquinha das argolas. Sam testou a sua força, mas só conseguiu fazer a
marca subir até ao nível de «fracote», enquanto outros rapazes muito mais
pequenos do que ele faziam tocar a campainha. Mas ganhou um coco no
tiro-aos-cocos com bolas de madeira. E tiraram uma fotografia na cabina da
praia. Tiveram de esperar uma eternidade na fila enquanto as mães à frente
deles limpavam as caras sujas dos filhos com um lenço e muito cuspo e lhes
passavam um pente pelos cabelos desgrenhados.
Beth teve dificuldade em não desatar a rir quando entrou na cabina e lhe
disseram que se sentasse na cadeira com Molly ao colo. Sam ficou atrás, com
uma mão no ombro dela. O cenário de fundo mostrava um castelo e um lago.
Pensou, divertida, que talvez, um dia mais tarde, Molly olhasse para a
fotografia e perguntasse em que sítio de Liverpool ficava aquele castelo.
Eram quase oito quando chegaram a casa, e o rosto de Sam estava da
cor do camarão.
– Vou fazer chá enquanto tu deitas a Molly – disse ele, e inclinou-se
para beijar a pequenita, que dormia nos braços de Beth.
Para Beth, aquele foi o momento culminante do dia. Podia ter demorado
oito meses a chegar, mas saber que ele o fizera por verdadeiro afecto e não por
dever tornava-o ainda mais doce.
– Feiticeirazinha! – sussurrou a Molly enquanto lhe tirava a roupa e a
fralda para a lavar. – Conseguiste finalmente conquistá-lo.
Ficou na cozinha muito depois de Sam, Ernest e Peter terem ido para a
cama. Pensou em como tinha sido bom voltar a ver o irmão rir, ter no coração
esperança no futuro e um certo orgulho por ter sido uma tão boa mãe
substituta para Molly. O cabelo escuro de Molly era agora encaracolado, as
bochechas pareciam duas pequenas maçãs, e naquele dia muitas pessoas
tinham parado para admirá-
la. Em breve começaria a andar e a falar. Beth sorriu ao recordar como
ficara assustada na noite em que ela nascera e Mrs. Craven lhe dissera que ia
ter de tomar conta dela. Mas portara-se bem, e Sam também.
Beth acordou repentinamente e, descobrindo que estava cheia de calor,
sentou-se e empurrou as mantas para os pés da cama. Não devia ser muito
tarde, pois ainda ouvia o barulho distante dos bêbedos em Church Street. Mas
quando voltou a almofada e tornou a deitar-se, ouviu um ruído no beco das
traseiras.
Imobilizou-se. Estava habituada a ouvir pessoas andar de um lado para
o outro no beco – quase todos os que moravam por cima das lojas usavam a
porta das traseiras para entrar e sair. E os que, como os Craven, viviam nas
casas da rua atrás de Church Street tinham igualmente acesso à passagem.
Mas o ruído que ouvira não era o de alguém a dirigir-se premeditadamente a
casa, ou sequer o cambalear de um bêbedo, era mais o de alguém a mover-se
furtivamente, a tentar não ser ouvido.
Certificara-se de que trancara bem a porta das traseiras quando fora pela
última vez à latrina, de modo que sabia que ninguém poderia entrar. Mas
lembrou-se de que as bicicletas de Ernest e de Peter estavam no pátio, e
pensou que podia ser alguém a tentar roubá-las.
Levantou-se da cama e foi até à janela, mas apesar de conseguir
distinguir a cancela das traseiras ao luar, não via as bicicletas porque os
rapazes as tinham provavelmente encostado à parede lateral da latrina e o
telhado do alpendre obscurecia-lhe a visão.
Não ouvindo mais nada, decidiu que fora provavelmente um gato e
voltou para a cama. Mas quando, momentos mais tarde, ouviu outro pequeno
ruído, saltou da cama e foi descalça até à cozinha, de cuja janela se via a maior
parte do pátio.
Afastou a cortina de renda, e embora não houvesse luz suficiente para
distinguir mais do que uma forma escura contra a parede da latrina, viu um
reflexo de cromado, o que a convenceu de que as bicicletas continuavam no
seu lugar. Mas quando largou a cortina, ouviu outro ruído e voltou a afastá-la,
vendo dessa vez a silhueta de alguém atravessar o pátio a correr, abrir a
cancela e desaparecer no beco.
A figura esteve na sua linha de visão não mais do que um segundo, mas
teve a certeza de que era uma mulher. No entanto, apesar de saber que os
ladrões podiam ser de ambos os sexos, não conseguia imaginar uma mulher a
andar pelas ruas àquela hora da noite. Ficou ali quieta por um instante,
confusa, a interrogar-se se devia ou não acordar Sam. Acabou por decidir que
seria inútil, uma vez que o intruso já desaparecera e Sam tinha de ir trabalhar
de manhã cedo, e regressou ao quarto.
Quando chegou à porta, porém, sentiu o cheiro a parafina e ouviu um
som sibilante.
Só podia ser fogo.
Horrorizada, correu para o alto das escadas, olhou para baixo e viu as
chamas. Não fora um ladrão, e sim alguém disposto a queimá-los vivos.
– Fogo! – gritou, a toda a força dos pulmões. – Sam! Ernest! Peter!
Fogo! Levantem-se já!
CAPÍTULO 7
Beth arrancou Molly do berço, pegou numa manta e correu pelo
corredor até à sala de estar, onde Sam dormia.
– Acorda, Sam! – gritou, abanando-o. – Há fogo!
Sam não correra as cortinas da sala antes de se deitar e havia luz
suficiente, vinda dos candeeiros da rua, para ver claramente. Abriu os olhos e,
por um momento, ficou a olhar para a irmã com uma expressão vazia, mas,
quando ela repetiu o aviso, saltou da cama, pegou nas calças e enfiou-as.
– Vai chamar o Ernest e o Peter! – gritou-lhe Beth, e ele saiu disparado
pelo corredor. O fumo começava a encher as escadas, e Beth soube que tinha
de encontrar uma via de fuga alternativa.
Depois de fechar a porta da sala e de pousar Molly em cima da cama de
Sam, levantou o mais que pôde a janela de guilhotina e começou a gritar, na
esperança de que um polícia ou alguém que estivesse próximo a ouvisse. Mas
a rua lá em baixo estava deserta, nem um gato por lá passava.
Os rapazes desceram as escadas a correr e irromperam na sala.
– Como foi que começou? – perguntou Peter, a voz estridente de medo.
– Isso agora não interessa – disse Ernest, e inclinou-se da janela. – É
demasiado alto para saltar daqui. Talvez seja mais fácil pela janela das
traseiras.
– Vou ver – declarou Sam, assumindo o comando. – Vocês fiquem aqui,
usem os lençóis e tudo o que puderem para fazer uma corda. Beth, continua a
gritar com quanta força tiveres.
Desapareceu num instante, para regressar momentos mais tarde a tossir
por causa do fumo e carregando nos braços um monte de lençóis.
– O fogo alastrou à escada toda e é demasiado perigoso tentar sair pela
janela do quarto, já que as chamas estão mesmo por baixo – disse, respirando
com dificuldade. – Vamos ter de sair por aqui.
Beth, tapa a fresta por baixo da porta com o tapete. Ernie, ajuda-me a
atirar o colchão pela janela, para nos amortecer a queda, e depois nós
descemos-te. A Beth e a Molly vão a seguir.
Beth fez o que ele pedia e entalou o tapete na fresta da porta o mais
apertado que pôde. Ernest e Peter já tinham atado dois lençóis e estavam a
puxar pelo nó para testar-lhe a resistência, sem pararem de gritar por socorro.
Beth voltou a pegar em Molly e os rapazes atiraram o colchão pela janela, e
então Ernest subiu para o parapeito, agarrou uma ponta do lençol e, com Sam
e Peter a segurar a outra, começou a descer.
Enquanto os rapazes se afadigavam à janela, Beth procurou uma
maneira segura de transportar Molly. Ao ver a cesta do carvão, pegou nela e
despejou-a na lareira. Molly tinha começado a chorar, assustada pelos gritos e
pelo pânico à sua volta. Beth sentou-a dentro da cesta e travou-a com uma
almofada.
– Menina bonita – disse Sam, aprovadoramente. Lá em baixo, Ernest
gritava como um possesso, com Peter a fazer coro da janela. Sam atou
rapidamente a ponta do lençol à pega da cesta e testou o nó.
De coração na boca, Beth viu Molly ser descida para a rua. Sam e Peter
baixavam-na com todo o cuidado, mas a cesta oscilava alarmantemente. Se
Molly se agitasse, acabaria por se voltar.
Felizmente, manteve-se sossegada e chegou em segurança aos braços de
Ernest.
– Agora tu, Beth – disse Sam, enquanto puxava para cima a outra ponta
da corda improvisada. – Agarra-te ao lençol com unhas e dentes. Eu desço-te.
Aterrorizada, Beth subiu de costas para o parapeito da janela. Estava
descalça e vestia apenas a camisa de noite, sem nada por baixo. Mesmo
naquela situação desesperada, não suportava a ideia de alguém lhe ver as
partes íntimas.
– Enrola-o à volta do pulso e segura-te com força – ordenou Sam. – Usa
os pés para te ajudar a descer pela parede. Vamos descer-te devagar, não te
deixamos cair.
Nenhum outro momento da sua vida fora tão assustador. Tinha medo de
cair de cabeça e partir o pescoço, e estava bastante consciente de que o vento
lhe enfunava a camisa de noite e que Ernest estava a olhar para cima. Mas
tinha de despachar-se, porque Sam e Peter também precisavam de descer.
– Muito bem, só mais um bocadinho e já podes saltar! – gritou Ernest. –
O colchão está mesmo por baixo e eu estou aqui para te agarrar.
Beth atrapalhou-se um pouco com a tabuleta pendurada por cima da
porta da loja, mas conseguiu passar por ela e então Ernest disselhe que
saltasse.
Entretanto, a rua começara a encher-se de gente que saíra de casa para
saber a razão de tanto barulho, e o som das vozes tranquilizou-a um pouco.
Largou o lençol e caiu de pé em cima do colchão.
Arrancou Molly dos braços de Ernest, olhou através da montra da loja e,
para seu horror, viu as chamas lamberem a parede à volta da porta das
traseiras que dava acesso ao apartamento. O fumo invadia tudo e havia cada
vez mais gente na rua. Esperou que os bombeiros chegassem antes que toda
aquela fila de lojas ardesse.
– Tenho uma escada! – gritou uma voz de homem. – Dêem-me dois
minutos!
Entretanto, Sam ajudava Peter a passar pela janela.
– Como é que o Sam vai descer? – perguntou Beth a Ernest. – Não há lá
em cima nada a que possa amarrar o lençol.
– Pode ser que a escada chegue antes disso – respondeu Ernest. –
Vamos, Pete! – gritou. – Tem cuidado quando chegares à tabuleta.
Peter saltou os últimos três metros e voltou-se para Ernest.
– O fogo já chegou à porta lá de cima – disse. – Como é que o Sam vai
descer?
Beth via as chamas rastejarem pelo chão da loja. Em breve o fogo
engolfaria a fachada do edifício e o irmão ficaria encurralado.
– Sam! – gritou. – Arrasta a cama até à janela. A cabeceira é demasiado
grande para caber por ela, de modo que podes atar lá a ponta do lençol!
Agoniada de medo, desejou poder ver se Sam estava a fazer o que lhe
tinha dito… seria mesmo dele tentar reunir alguns valores antes de sair. Na
rua, instalara-se o pandemónio, com algumas pessoas a gritar que deviam
formar uma cadeia de baldes de água, outras com medo de que o fogo
alastrasse às suas casas, crianças descalças e vestindo roupas de dormir a
chorar porque não sabiam dos pais. Umas poucas sopravam apitos e mais
algumas batiam às portas das casas para fazer sair os ocupantes.
Quando Beth já começava a pensar que tinha perdido o irmão, a ponta
do lençol caiu da janela e Sam estava no parapeito, de tronco nu, a luz dos
candeeiros da rua a refulgir-lhe nos cabelos louros, o estojo do violino na mão.
– Apanha isto! – gritou, e atirou-o para as mãos de Peter. No instante
em que as chamas no interior da loja começavam a fazer estalar o vidro da
montra, Sam desceu a pulso pelo lençol.
Beth correu a abraçá-lo.
– O que foi que te fez pensar em salvar o violino? – perguntou.
Sam encolheu os ombros.
– Alguma coisa me disse para o fazer. Sei o quanto significa para ti.
O primeiro carro de bombeiros chegou cerca de quinze minutos mais
tarde. Os homens saltaram rapidamente para o chão e começaram a ligar a
mangueira ao tanque de água, mas por essa altura já toda a fachada da loja
estava em chamas. Os cavalos foram desatrelados e levados mais para o fundo
da rua, longe do terrível calor, e Beth viu os rapazes no passeio em frente,
chegados uns aos outros, a contemplar a cena com horror.
Foi então que compreendeu que tinham perdido tudo. A casa, as roupas,
o dinheiro. Tudo.
Estavam reduzidos à miséria e sem tecto.
O senhorio e Mr. Filbert, o inquilino da loja, deviam ter seguro, mas
eles não. Sam não tinha sequer um fato para ir trabalhar de manhã. Quanto a
Molly, tinha uma camisa de dormir, uma fralda e uma manta.
Beth tremeu de medo, não de frio. Alguém lhe pôs uma manta à volta
dos ombros e ouviu uma voz perguntar-lhe se tinham para onde ir. As
lágrimas encheram-lhe os olhos, lágrimas escaldantes que lhe deslizaram pelo
rosto e caíram na manta que embrulhava Molly, adormecida nos seus braços.
Chegaram mais dois carros de bombeiros. Um deles foi para as traseiras
do edifício, mas o fogo continuava a devorar tudo e parecia que a loja de
ferragens de um dos lados da sapataria e a camisaria do outro estavam também
condenadas. Dois ou três polícias tentavam fazer recuar a enorme multidão,
afastando-a do fogo.
– Como foi que começou? – gritou alguém.
– Foi ateado de propósito – respondeu Beth. – Vi-os fugir pela cancela
das traseiras. Deitaram parafina pela caixa do correio, queriam matar-nos a
todos.
Um dos polícias aproximou-se dela e pediu-lhe que repetisse o que
acabava de dizer.
– Faz alguma ideia de quem possa ter sido? – perguntou.
– Procurem a Jane Wiley. – Beth cuspiu o nome. – Foi nossa inquilina.
Mrs. Craven apareceu subitamente no meio da multidão, acompanhada
pelo marido.
– Estou aqui, querida – disse. – Não vamos deixá-los sem casa depois
de tudo aquilo por que passaram. – Forçou a passagem até Beth e abriu os
grandes braços para envolvê-la a ela e a Molly. – Venham connosco.
Descalça, tendo de seu apenas uma camisa de noite de algodão e um
violino, e Molly, que levava ao colo, Beth foi com os Craven até à casa deles.
Sam juntar-se-lhe-ia mais tarde, depois de ter arranjado alguém que acolhesse
Ernest e Peter. As duas pequenas divisões dos Craven tinham sido o refúgio
para onde Beth correra naqueles últimos meses, quando tinha algum problema
ou precisava de alguém mais velho e mais sábio com quem falar. Mas estava
bastante consciente de que não poderia agora ser mais do que um abrigo muito
temporário, pois os seus vizinhos eram demasiado velhos para terem a
perturbação de hóspedes inesperados, e demasiado pobres para os alimentar.
Beth não conseguia dormir. Não era só o silvo dos jactos de água na sua
luta contra as chamas, nem os gritos dos bombeiros a menos de quarenta
metros de distância, do outro lado do beco. Não era sequer o chão duro da sala
de estar de Mrs. Craven ou o ar carregado de fumo que a mantinham acordada.
Era saber que Jane Wiley ateara aquele incêndio deliberada e maldosamente.
Não compreendia como podia alguém ser tão malvado, porque mesmo
que não tivesse tido a intenção de os matar, quisera de certeza destruir-lhes a
casa.
Tinha desaparecido tudo – roupas, mobílias e dinheiro –, mas pior ainda
do que isso, para Beth, era a perda dos pequenos objectos pessoais, fotografias
da família, recordações dos pais e dos avós que nunca poderiam ser
substituídas. Ficara comovida por Sam se ter lembrado de salvar o violino,
mas parecia-lhe uma coisa tão frívola para salvar.
Prática como sempre, Mrs. Craven arranjara um par de fraldas e um
vestido de bebé para Molly e improvisara um berço com uma gaveta. Dissera
que o Exército de Salvação ajudava pessoas na situação deles dando-lhes
roupas e botas e que não duvidava de que também os vizinhos fariam uma
colecta. Mas Beth estava demasiado desmoralizada para encontrar qualquer
conforto nestas afirmações.
– É o melhor que podemos fazer para já – disse Mrs. Craven na manhã
seguinte, enquanto entregava a Sam uma camisa, um casaco e umas botas
pertencentes a um vizinho.
Sam vestiu-as, agradecido, mas o proprietário era claramente muito
maior do que ele, e as roupas faziam-no parecer um palhaço.
– Pelo menos, ainda tenho as minhas calças – observou. – Não vou ter
de preocupar-me com a possibilidade de elas me caírem pelas pernas abaixo.
– Eles hão-de compreender, lá no teu emprego – disse Beth, sentindo
que ele estava apreensivo quanto à maneira como o chefe do escritório ia
reagir à sua estranha indumentária. Aproximou-se dele e endireitou-lhe o
colarinho da camisa.
– Não te preocupes, Beth – disse ele. – Quando voltar a casa, logo à
noite, passo pelo Exército de Salvação e vejo se têm alguma coisa que me
sirva.
Beth continuava reduzida à camisa de noite suja de fuligem, mas Mrs.
Craven tinha ido a casa da filha ver se ela tinha algumas roupas que pudesse
emprestar. Beth ficara impressionada ao descobrir que a maior parte das
pessoas tinha apenas dois conjuntos de roupa, um para o dia-a-dia e outro para
as ocasiões especiais. Tivera a sorte de ter cinco ou seis vestidos, e nunca lhe
passara pela cabeça que isso pudesse ser invulgar.
Entretanto, o fogo fora completamente extinto. Mr. Craven, que saíra
para investigar, disse que a escada se tinha desmoronado, as janelas tinham
explodido e as estruturas e portas interiores ardido, juntamente com a mobília.
Também a loja no rés-do-chão ficara destruída. Mr. Filbert ainda não tinha
chegado, mas esperava-o sem dúvida um tremendo choque.
Mrs. Craven voltou da casa da filha pouco depois de Sam ter saído para
o trabalho.
– É muito pobrezinho – disse, tirando do saco um vestido verde, muito
usado e coçado. – É a única coisa que a minha Cathy pode dispensar, mas
há-de servir-te. Trouxe-te também estas botas.
Beth olhou para as botas e viu que a parte de cima de uma delas estava
parcialmente separada da sola; além disso, eram dois tamanhos acima do dela.
Mas, pelo menos, tinha qualquer coisa que vestir.
– Hoje era dia de ir a Falkner Square – disse. – Acha que devo?
– Claro que deves, não podes dar-te ao luxo de perder esse emprego
agora – respondeu Mrs.
Craven um tudo-nada secamente, como se já começasse a arrepender-se
de tê-los acolhido. – Leva uma bacia de água para o outro quarto e lava-te
bem. Tens a cara suja de fuligem.
Quando chegou a Falkner Square, Beth tinha uma bolha num pé por
causa das botas demasiado grandes.
– Beth! – exclamou Mrs. Bruce, ao vê-la entrar na cozinha a coxear. –
Que te aconteceu?
Enquanto contava a história, Beth não conseguiu conter as lágrimas.
Mrs. Bruce fê-la sentar-se, deu-lhe uma chávena de chá e escutou-a
atentamente.
– É por isso que estou assim vestida – terminou Beth, limpando as
lágrimas com as costas da mão. – Não sei onde é que vamos viver e como é
que nos vamos governar. Divertimo-nos tanto ontem, em New Brighton, que
pensei sinceramente que tínhamos dobrado uma esquina e que tudo ia passar a
ser melhor.
Mrs. Bruce deu-lhe uma palmadinha no ombro.
– Lamento muito, minha querida, deve ter sido um choque terrível para
ti. Mas para já sugiro que descalces essas botas horríveis, ou a bolha vai
piorar. Vai tratar da roupa, e mais tarde voltamos a falar.
Aquilo soava muito como se a governanta achasse que ela já tinha
mergulhado na autocomiseração o tempo suficiente, e por muito em baixo que
se sentisse, Beth sabia como era crucial conservar aquele emprego. Descalçou
as botas e foi para a lavandaria, quase satisfeita ao ver a enorme pilha de roupa
que a aguardava, pois sabia que o trabalho a distrairia dos seus problemas.
Já passava do meio-dia quando Mrs. Langworthy apareceu no pátio,
onde Beth pendurava as últimas peças. Estava encantadora com um vestido
verde-claro, o cabelo ruivo preso no alto da cabeça por um par de travessas de
tartaruga.
– Mrs. Bruce contou-me do incêndio, Beth – disse, num tom
preocupado. – Tenho muita pena.
– Hei-de ultrapassar isto – respondeu Beth. Não estava interessada em
apelar à piedade e já lhe bastava o facto de a patroa ter ido falar com ela.
– Mas onde vais viver? – perguntou Mrs. Langworthy. – É muito difícil,
com um bebé.
– Nas próximas duas ou três noites temos o problema resolvido, com a
nossa vizinha. Havemos de arranjar qualquer coisa no fim-de-semana, quando
o Sam receber.
– Imagino o género de lugar que se consegue arranjar quando se está
desesperado. – Mrs.
Langworthy franziu os lábios, num gesto de reprovação. – Não consigo
sequer pensar nisso, de modo que quero que fiquem com os quartos por cima
das cavalariças. Estão desocupados desde que o meu sogro teve a trombose e
tivemos de dispensar o cocheiro.
Beth ficou a olhar para a patroa, estupefacta.
– Não te tinha na conta de uma rapariga incapaz de dizer uma palavra –
disse Mrs. Langworthy, rindo alegremente.
– Peço desculpa, minha senhora – apressou-se Beth a dizer. – Foi da
surpresa. Não acredito que haja alguém tão bondosa como a senhora.
– Talvez não me aches assim tão bondosa quando vires como está tudo
tão cheio de pó!
O rosto de Beth rasgou-se num enorme sorriso.
– Nem que fosse o Buraco Negro de Calcutá2. Trabalharei para si de
graça todos os dias a troco de um lugar para viver.
– Não vai ser necessário – respondeu Mrs. Langworthy, decididamente.
– Dá um pulo até lá e limpa aquilo antes de ires buscar a Molly e o teu irmão.
Vou pedir a Mrs. Bruce que te arranje umas roupas de cama.
Beth deteve-se no alto da escada interior das cavalariças abandonadas a
olhar para a primeira das duas divisões, com a alma em festa. Era pequena e
estava muito suja, mas viu logo que, depois de lavar os vidros, seria clara e
arejada, pois tinha janelas para o pátio das traseiras e para a parte da frente das
cavalariças. Tinha um fogão, um lavatório, uma mesa e cadeiras.
Entusiasmada, atravessou-a a correr para ver a outra, e descobriu que continha
uma velha cama de ferro e uma outra mais baixa, com rodas, que poderia pôr
na cozinha, para o irmão.
Não fazia verdadeiramente ideia de que género de acomodações ela e
Sam poderiam conseguir pela renda que podiam pagar. Mas tinha a certeza
absoluta de que nunca seria nada que se parecesse com aquilo. Provavelmente,
apenas um quarto num bairro de barracas.
Beth trabalhou como uma formiga a limpar as duas divisões durante
duas horas. Pôs os colchões a arejar ao sol, esfregou o chão e lavou as janelas.
Quando acabou, não havia uma única teia de aranha em parte alguma, mas ela
parecia um limpa-chaminés e tinha os pés descalços completamente negros.
Mrs. Bruce e Kathleen atravessaram o pátio no preciso instante em que
ela acabou, cada uma a carregar um monte de mantas, almofadas e lençóis.
Ajudaram Beth a fazer as camas e Mrs. Bruce estendeu uma toalha aos
quadrados brancos e vermelhos em cima da mesa.
– Não está maravilhoso? – disse Beth, ofegante. – Não acredito que
alguém possa ser tão generosa como Mrs. Langworthy.
– Ela teve mais do que o seu quinhão de má sorte e dificuldades – disse
Mrs. Bruce. – E manda dizer que vás tomar um banho e lavar o cabelo antes
de ires buscar a Molly. E também escolheu umas roupas para ti.
Deitada na banheira de água quente, a deixar os cabelos espalharem-se à
superfície, Beth perguntava-se, assombrada, como era possível passar do
desespero à bem-aventurança no espaço de poucas horas.
Só tomara uma vez banho de banheira, e nunca mais, desde os cinco ou
seis anos, pudera voltar a estender-se dentro de uma. Só esperava que, naquele
dia, as pessoas tivessem sido tão bondosas para com Sam como tinham sido
para com ela.
As roupas que Mrs. Langworthy lhe dera estavam dobradas em cima do
banco da casa de banho.
Uma saia azul-escura, uma blusa azul com pontinhos brancos, uma
camisa, ceroulas e um saiote.
Teria Mrs. Langworthy adivinhado que não tinha nada por baixo
daquele horrível vestido verde, ao chegar? Mrs. Bruce dera-lhe um par de
botas suas e algumas meias; as de Mrs. Langworthy eram demasiado grandes.
Por muito bom que fosse estar no banho, Beth sabia que tinha de
apressar-se e voltar a casa de Mrs.
Craven para ir buscar Molly.
– Ora esta! – exclamou Mrs. Craven quando Beth apareceu no pátio
com as suas roupas novas e o cabelo a brilhar como ébano polido. – Alguém te
pôs muito bonita, e tenho a certeza de que não foi o Exército de Salvação!
Beth sorriu, em parte porque voltava a sentir-se mais ela própria, limpa
e arranjada, mas também porque foi um prazer encontrar Mrs. Craven no
exterior, ao sol, com Molly.
Ergueu a irmã da manta onde estava sentada e abraçou-a.
– A Beth tem uma linda surpresa para ti – disse.
– Bem, deste a volta por cima, disso não há dúvida – exclamou Mrs.
Craven, depois de Beth lhe relatar os acontecimentos da manhã. – Venham-me
cá falar de sorte!
Beth sentiu-se um pouco embaraçada por lhe parecer que a vizinha
estava quase desapontada por aquela reviravolta repentina do destino.
– Não será a mesma coisa sem a ter ao pé, do outro lado da rua –
apressou-se a dizer. – Tem sido muito bondosa, Mrs. Craven, desde a morte
do papá. Não sei o que eu e o Sam teríamos feito sem si.
Ao ouvir isto, a vizinha sorriu.
– Desde que não te esqueças de vir visitar-me de vez em quando. Vou
ter saudades de todos, mas sobretudo da minha pequena Molly. – Esticou um
dedo para o bebé, que o agarrou com força. – Ora bem, também tenho
novidades para ti. A polícia prendeu a Jane Wiley. O polícia com que o teu
Sam falou ontem à noite passou por cá hoje de manhã e disseme. Ela nega
tudo, claro, mas as roupas ainda cheiram a parafina. Parece que alguém da
casa onde estão hospedados a viu sair à noite, já depois de o Thomas ter
voltado do pub.
– O que é que lhe vai acontecer?
– Prisão, claro – disse Mrs. Craven, satisfeita. – E por um bom pedaço.
Espero que apodreça lá.
Beth assentiu.
– Sabe alguma coisa de Mr. Filbert e dos outros dois lojistas? –
perguntou. – Deve ser horrível, perder assim o negócio.
– Ouvi dizer que ficou furioso. Ainda entraram uns saqueadores na loja
de ferragens antes de terem entaipado a montra.
Beth abanou a cabeça, indignada.
– Há notícias do Ernest e do Peter?
– Vieram buscar as bicicletas hoje de manhã e perguntaram por ti.
Houve alguém de Lord Street que os acolheu a noite passada e lhes arranjou
algumas roupas, mas não vão ter problemas, têm famílias com cobres para
ajudá-los.
Beth lembrou-se então que tinha levado consigo o vestido e as botas
emprestadas. Entregou-as e tirou depois do saco uma grande empada de carne
que Mrs. Cray, a cozinheira, lhe tinha dado.
– Quem me dera ter dinheiro para lhe comprar qualquer coisa para
mostrar a minha gratidão pela sua bondade – disse –, mas talvez possamos
todos partilhar isto antes de nos irmos embora, mais logo, e quando vier
visitá-la não virei de mãos a abanar.
– Deus te abençoe. – Os olhos de Mrs. Craven brilharam ao ver a
empada. – És uma boa rapariga, Beth. A tua mãe havia de orgulhar-se de ti.
Sam apareceu às seis e meia, transportando um saco de papel castanho.
Continuava a vestir a camisa e o casaco enormes, e disse que os outros
escriturários tinham passado o dia a troçar dele.
Mas o gerente dera-lhe cinco libras do fundo especial da companhia
destinado a ajudar empregados em dificuldades.
– Comprei umas coisas para mim na loja das roupas em segunda mão –
disse. – Ia dizer que podias ficar com algum dinheiro e comprar roupa para ti
amanhã, mas parece que já resolveste esse problema. Deixa-nos com mais
qualquer coisa para a renda da nova casa.
Beth contou-lhe as novidades e Sam ficou pasmado.
– Porque faria ela uma coisa dessas? – perguntou.
– Porque é boa e generosa, de modo que é melhor certificarmo-nos de
que não tem de que se arrepender – respondeu Beth, com um sorriso.
Descobriram que a cadeirinha de Molly, que estava guardada no
telheiro do pátio, escapara intacta, apenas com uma camada de fuligem.
Depois do jantar, Beth e Sam instalaram Molly no assento, juntamente com
um pequeno saco de roupas de bebé que os vizinhos tinham levado para ela, e
o violino, despediram-se dos Craven e puseram-se a caminho de Falkner
Square.
– Ainda não consigo acreditar que perdemos tudo – disse Sam com um
suspiro enquanto metiam pelo beco que os levaria a Seel Street. – Tu bem
disseste que não gostavas da Jane Wiley logo na primeira vez que a viste.
Quem me dera ter seguido a tua intuição.
– Não me serve de grande consolo – respondeu Beth, sombria. – Talvez
se não tivesse sido tão precipitada a pô-la na rua ela não tivesse feito o que
fez. Mas não falemos disso agora. Ninguém morreu no incêndio, graças a
Deus, e talvez um novo começo seja bom para nós.
– Mas temos de ser mais duros – disse Sam, num tom pensativo. – Não
podemos continuar a permitir que as coisas nos aconteçam. Precisamos de
decidir o que verdadeiramente queremos e lutarmos por consegui-lo.
– Que queres dizer com isso? – perguntou Beth. Estava um belo fim de
tarde, calmo e ameno, e apesar de estar terrivelmente cansada, sentia que tinha
ali mesmo tudo o que queria: Molly a dormir na cadeirinha, Sam a seu lado e
uma nova casa à espera deles.
– Ir para a América – disse o irmão. – Não quero ser subserviente,
passar o dia inteiro empoleirado num banco a escrevinhar em livros e sentir
que tenho de estar muito agradecido pela esmola. Nem quero que tu
envelheças antes de tempo a esfregar a roupa de outras pessoas. A América é
um país vasto, jovem, cheio de oportunidades. Podíamos ter uma boa vida lá.
– Não duvido que sim. – Beth estava com medo de perguntar ao irmão
se ele incluía Molly no seu sonho. – Mas primeiro temos de recuperar deste
abalo.
2 Pequena masmorra onde o nababo do Bengali mandou prender
prisioneiros britânicos deguerra após a tomada do forte William, em Calcutá,
na Índia. (N. do E.)
CAPÍTULO 8
Edna Bruce estava a conferir a conta mensal do talho quando ouviu
Beth suspirar. Ao erguer os olhos, reparou que a rapariga estava
invulgarmente pensativa enquanto pregava uns botões numa das camisas de
Mr. Edward.
Estavam no que fora em tempos a sala de estar do mordomo, a divisão
ao fundo das escadas da cave. Na ausência de um mordomo, era agora usada
como sala de coser e de engomar, e, como lá fora chovia intensamente, Molly
estava com elas na sua cadeirinha, a dormir a sesta.
Fazia seis semanas que Beth e a sua pequena família tinham ido viver
para Falkner Square, e Mrs.
Bruce estava encantada com a maneira como estava tudo a correr tão
bem.
Só via Sam aos domingos, porque ele saía para o trabalho de manhã
cedo, mas achara-o um jovem delicado e agradável.
Beth passara a ir trabalhar três horas todos os dias de semana, o que
convinha a todos, pois evitava que os montes de roupa suja atingissem
proporções intratáveis. Levava Molly consigo, e quando o tempo estava bom,
deixava-a ficar sentada na cadeirinha, no pátio.
Não que lá ficasse muito tempo! Mrs. Bruce, a cozinheira e Kathleen
eram todas culpadas de ir buscá-la, para a mimarem, e Mrs. Langworthy
igualmente. Nas raras ocasiões em que estava em casa de manhã e descia até à
cave, também Mr. Edward cedia aos encantos da miudinha e fazia uma
paragem para brincar com ela.
Na realidade, Molly tornara-se no ai-jesus de toda a gente. Os cabelos
encaracolados, os olhos castanhos cor de melaço e o sorriso sempre pronto a
todos seduziam. Era uma criança notavelmente feliz, quase nunca chorava e
aceitava sem hesitar qualquer colo que lhe oferecessem.
A mais surpreendente consequência da mudança de Beth para Falkner
Square foi, no entanto, o facto de o velho Mr. Langworthy se ter embeiçado
por ela. Nunca tinha acontecido com qualquer outra pessoa. Aconteceu porque
Beth se oferecera para ficar com ele certa tarde em que Mrs. Langworthy
precisara de sair por uma hora. Ao regressar, encontrara o sogro absorto a
ouvir Beth ler um romance vulgar. Aparentemente, Beth metera o livro no
bolso para o ler, esperando que ele estivesse a dormir, mas ao vê-lo acordado,
resolvera descobrir se a leitura lhe agradava.
O velho Mr. Langworthy fora, antes de sofrer a trombose, uma espécie
de snob intelectual que nunca permitiria em sua casa semelhantes leituras,
pelo que tanto o filho como a nora acharam o facto muito divertido.
Agora, Beth lia muitas vezes para ele, ou ia até ao quarto apenas para
conversar um pouco. Não parecia minimamente incomodada pela
incapacidade dele, ou pelo facto de falar em grunhidos e estranhos ruídos; na
realidade, falava com ele como com qualquer outra pessoa, a respeito de
notícias dos jornais, de livros que tinha lido e a respeito dos falecidos pais.
No entanto, apesar de estar a correr tudo tão bem, Mrs. Bruce e Mrs.
Langworthy estavam um pouco preocupadas por verem uma jovem tão
vibrante fazer uma vida tão limitada. Não que fosse uma vida difícil, nem
pouco mais ou menos; a maior parte das raparigas que estavam no serviço
doméstico trabalhava das seis da manhã até à hora a que os patrões fossem
para a cama. Se Beth fosse casada e Molly fosse sua filha, poder-se-ia até
dizer que era uma vida de sonho. Mas Sam não era marido dela, e uma vez
que arranjara um segundo emprego como barman no Hotel Adelphi e só
chegava a casa à noite, Beth estava sempre sozinha.
A própria Mrs. Langworthy dissera que não era vida para uma rapariga
tão nova estar fechada num par de quartos com um bebé, sem familiares ou
amigos que a visitassem. Mrs. Bruce pensou que era essa a causa do suspiro
que ouvira.
– Estás preocupada com alguma coisa, Beth? – perguntou. – Vejo-te
hoje muito calada.
– Estava a pensar em como o Sam trabalha tanto – disse Beth, com um
ligeiro encolher de ombros.
– É que ele quer ir para a América, foi por isso que arranjou aquele
emprego como barman. Achou que é o género de experiência que pode ser-lhe
útil.
Era a primeira vez que Mrs. Bruce ouvia falar do assunto.
– Está a planear ir sem ti? – perguntou.
– Não, quer que eu vá também. Mas não estou a ver como, tendo a
Molly.
– Há imensas pessoas que emigram com filhos – disse Mrs. Bruce,
calmamente. – E lá se governam.
Soube de alguns que foram com cinco ou seis filhos.
– Sim, mas é diferente, sendo o Sam meu irmão. – Beth suspirou, tendo
os seus olhos azuis ficado repentinamente muito tristes. – Não quero ser um
empecilho para ele, e ter de sustentar-nos às duas seria muito difícil.
Mrs. Bruce pensou naquilo por alguns instantes.
– Sim, suponho que tens razão, não estaria livre para viajar e procurar
as melhores oportunidades, e mais tarde, se quisesse casar, poderia ser um
problema. Mas não é justo deixar-te para trás com toda a responsabilidade
pela Molly, cá ou lá. Ela também é irmã dele.
– É precisamente esse o grande problema – respondeu Beth, a voz átona
e descoroçoada. – Ele é demasiado consciencioso para ir sem nós, mas eu
sinto que estou a prendê-lo.
– Estou a ver. – Mrs. Bruce assentiu com a cabeça. – Diz-me uma coisa,
se não tivesses a Molly, gostarias de ir para a América? – perguntou.
– Oh, sim! – exclamou Beth, os olhos brilhantes. – Parece ser um lugar
tão maravilhoso. O meu sonho é tocar piano num grande hotel.
– Sabes tocar piano?
Beth sorriu timidamente face à surpresa dela.
– Sei, embora provavelmente esteja enferrujada, porque tivemos de
vender o nosso quando a mamã morreu. E também sei tocar violino. O Sam
salvou o meu, quando foi o incêndio. É do que gosto mais, mas a mamã
chamava-lhe música do Demónio porque tocam violino nas tabernas mais
ordinárias.
Mrs. Bruce sorriu. Ouvira por diversas vezes alguém tocar jigas num
violino, mas nunca lhe passara pela cabeça que o som viesse das cavalariças.
E não achava que fosse música do Demónio; era alegre e viva.
– Porque foi que nunca me disseste? – perguntou. – É uma coisa muito
bonita.
– Tive medo de dar a impressão de estar a gabar-me. Não é suposto os
criados fazerem essas coisas.
– Pois eu nunca pensaria que te estavas a gabar e gostaria muito que
trouxesses o teu violino, de vez em quando, e tocasses para mim.
O modo como os olhos de Beth se iluminaram fez Mrs. Bruce sorrir.
– E nunca pares de sonhar e de fazer planos para o futuro – continuou. –
Eu cometi o erro de pôr sempre o dever à frente dos meus desejos e ambições,
e por causa disso perdi a oportunidade de casar e ter filhos. Não gostaria que
te acontecesse o mesmo.
– O que é que não gostaria que acontecesse à Beth, Mrs. Bruce?
Mrs. Bruce e Beth voltaram-se, surpreendidas, ao ouvirem a pergunta
de Mrs. Langworthy. Não a tinham ouvido descer as escadas da cave. Estava
encantadora com o seu vestido verde-claro com mangas tufadas e o cabelo
arranjado em grandes caracóis no alto da cabeça.
– A Beth estava a dizer-me que o Sam está decidido a ir para a América,
e desconfio que ela quer ir com ele – respondeu Mrs. Bruce.
– Não me custa a compreender. – Mrs. Langworthy assentiu. – Pelo que
ouço dizer, deve ser um lugar maravilhoso e excitante. Mas não vás já a
correr, Beth, habituei-me a ter a tua ajuda. E a ver esta pequenina todos os
dias! – Deteve-se junto à cadeirinha, a olhar carinhosamente para Molly. – É
o bebé mais perfeito do mundo. Quem me dera que acordasse para
poder pegar-lhe ao colo.
Mrs. Bruce sentiu o profundo desejo da patroa de ter um filho ao vê-la
debruçar-se para a pequena Molly. Quando casara com Mr. Edward,
costumava dizer que queria pelo menos seis filhos, e era tão forte e saudável
que Mrs. Bruce sempre esperara que, a seu tempo, veria esse desejo satisfeito.
Mas não acontecera, e a cada ano que passava tornava-se menos provável que
viesse a acontecer.
Molly acordou e espreguiçou-se. Ao ver Mrs. Langworthy, o rosto
rasgou-se-lhe num grande sorriso e ergueu os braços para que lhe pegassem.
– Deve estar toda molhada, vai estragar-lhe o vestido – disse Beth,
alarmada.
– Como se eu me ralasse com isso! – Mrs. Langworthy riu e pegou
ansiosamente na criança. – Então, Molly, deve estar quase na hora do teu
jantar – disse. – O que é que vai ser hoje?
– A cozinheira guardou um pedaço de cordeiro do jantar de ontem para
ela – disse Mrs. Bruce. – Dá gosto vê-la comer, nunca a vi recusar fosse o que
fosse.
– Posso dar-lhe o jantar? – pediu Mrs. Langworthy.
Beth não compreendia porque quereria tanto a patroa fazer semelhante
coisa, mas concordou de imediato.
– É melhor pôr um avental, ou fica toda suja.
Mrs. Bruce ocupou-se dos seus deveres, mas fez questão de ir à cozinha
quando Mrs. Langworthy estava a dar de comer a Molly. Para sua surpresa, a
patroa parecia completamente à vontade com a bebé no colo, a enfiar colheres
de comida na boca avidamente aberta como o bico de uma pequena ave. Mas
mais divertido ainda era ver Beth, que, sentada do outro lado da mesa, abria e
fechava a boca ao mesmo tempo que Molly e, de vez em quando, movia a mão
num gesto involuntário, como se não julgasse Mrs. Langworthy capaz de
apanhar com a colher a comida à volta da boca da criança e enfiá-la também lá
para dentro, como ela fazia.
Mrs. Langworthy apercebeu-se do nervosismo dela.
– Já tenho alguma experiência – disse, com uma gargalhada feliz. –
Costumava dar de comer aos meus irmãos e irmãs. Só desde que casei é que
deixei de ter contacto com crianças pequenas e bebés.
– Faz tudo muito bem – respondeu Beth, aprovadoramente. – Ao
princípio, tinha um medo de morte da Molly. Nunca tinha estado com um
bebé recém-nascido, quanto mais dar-lhe de comer e trocar-lhe a fralda.
– Tenho de experimentar também trocar-lhe a fralda. – O rosto de Mrs.
Langworthy resplandecia. – É muito mais agradável cuidar de bebés do que de
velhos rabugentos.
Mrs. Bruce voltou a cabeça, para que nem Beth nem a patroa vissem os
olhos encherem-se-lhe de lágrimas. Sentia que tudo aquilo acabaria mal,
porque em breve Beth seguiria o seu caminho e levaria Molly consigo.
Ao longo desse Outono, no Natal e no Ano Novo de 1895, Mrs. Bruce
viu como Beth e Molly conquistavam pouco a pouco todos os corações em
Falkner Square. E sabia que não era imaginação sua, porque também ela
estava a sucumbir ao feitiço.
Era difícil não gostar de alguém capaz de cantar mesmo quando estava a
lavar fraldas nojentas. O
alegre riso de Beth enchia de vida a cave; a sua vontade de ajudar todos
nas respectivas tarefas criava uma atmosfera feliz. Passava de boa vontade
uma tarde inteira a arear pratas, a passar a ferro as roupas de Mr. Edward ou a
ler para o velho Mr. Langworthy, apesar de não lhe pagarem para fazer
qualquer destes serviços. Talvez por preferir trabalhar a estar sozinha com
Molly nos dois quartos por cima das cavalariças, mas, fosse pelo que fosse,
Mrs. Bruce gostava de a ter ali.
Tinham festejado o primeiro aniversário de Molly antes do Natal, na
cozinha. A cozinheira fizera um bolo especial e um bolo em camadas,
Kathleen enchera balões e até Sam e Mr. Edward chegaram a casa mais cedo
para estarem presentes. Beth costurara para Molly um novo vestido
cor-de-rosa, que ela lambuzara imediatamente de trifle. Havia já algum tempo
que conseguia andar meia dúzia de passos agarrada à mão de alguém, mas,
naquela tarde, dera quatro ou cinco passos sem ajuda para chegar até Mrs.
Langworthy.
Fora sem dúvida por haver uma criança em casa que Mr. Edward levara
uma árvore de Natal, pois nunca antes tinha acontecido. Sam plantara-a
firmemente numa grande bacia e colocara-a junto à janela da sala de estar, e
Beth ajudara Mrs. Langworthy a enfeitá-la com velas e bolas de vidro.
Como sempre, tinham aparecido vários parentes para a ceia de Natal, e
Sam estava à mão para levar o velho Mr. Langworthy até à sala de jantar. Mas
se os festejos no rés-do-chão tinham sido mais ou menos iguais aos de anos
anteriores, na cave tudo fora muito diferente e incomparavelmente mais
alegre.
Uma vez terminada a ceia, o velho Mr. Langworthy voltara para o seu
quarto e, enquanto os donos da casa recebiam as visitas na sala de estar,
decorria na cozinha a ceia natalícia do pessoal.
Mrs. Bruce pedira a Sam que, sendo o único homem presente, ocupasse
a cabeceira da mesa e trinchasse o ganso. Mrs. Bruce sentara-se no extremo
oposto, com Mrs. Cray de um lado e Molly, sentada numa cadeira em cima de
um caixote, do outro. Beth e Kathleen, ambas com chapéus de papel na
cabeça, sentavam-se de um e do outro lado de Sam. Fosse devido ao vinho que
beberam, fosse por haver à volta da mesa mais pessoas do que era habitual, o
riso começara quando Sam se pusera a fazer palhaçadas, fingindo ser um
cirurgião enquanto atacava o ganso com a faca de trinchar, e nunca mais
acabara.
Mrs. Cray não era residente, mas tinha alojamentos ali perto.
Trabalhava no serviço doméstico desde muito nova, sempre em casas com
muito pessoal, e relatara histórias hilariantes a respeito das asneiras que alguns
dos criados faziam e de como os outros se esforçavam por encobri-las.
Sam falara-lhes das pessoas que apareciam no bar do Hotel Adelphi.
Sabia imitar-lhes tão bem as vozes e os maneirismos que era quase como se
estivessem ali na cozinha.
Mrs. Bruce estudara Sam enquanto ele falava e notara como o rapaz se
tornara muito mais desembaraçado desde que era barman. Ganhara uma nova
confiança, olhava de frente para a pessoa com que estava a falar em vez de
baixar os olhos para o chão, como antigamente. Era um belo rapaz, com o seu
cabelo louro, a sua pele aveludada e os seus brilhantes olhos azuis. E o seu
trato fácil com as mulheres era também muito atraente. Havia de ser
irresistível, pensara, quando pusesse um pouco de músculo em cima daquela
estrutura delgada.
E Mrs. Bruce notara também outra coisa: a pouca atenção que dava a
Molly. Quando, depois da ceia, ela andara, com os seus passinhos trôpegos, à
volta da mesa, de pessoa em pessoa, Sam não a seguira com o olhar, como
todos os presentes. Pegara-lhe quando ela caíra perto dele e oferecera-lhe
pedaços da laranja que estava a comer, mas não a sentara nos joelhos nem lhe
fizera festas. Mrs.
Bruce achara que embora ele não a tratasse certamente mal, estava, com
um esforço deliberado, decidido a evitar qualquer envolvimento.
Interrogara-se porque seria, e a única explicação lógica que conseguira
encontrar fora que ele tencionava abandonar Beth e Molly. E provavelmente
pensava que seria mais capaz de o fazer se não permitisse que o seu coração se
prendesse demasiado à irmã mais nova.
Mrs. Bruce dera por si a pensar cada vez mais naquilo à medida que o
Ano Novo se aproximava.
Dissera a si mesma que Beth ficaria sempre bem, pois com o irmão ou
sem ele, os Langworthy continuariam a empregá-la. No entanto, sempre que
Beth tocava o seu violino nos quartos por cima da cavalariça e ouvia a alegria
e a esperança daquela música, não conseguia impedir que a tristeza a invadisse
ao pensar que a vida dela nunca iria mais além de Falkner Square. Já
conseguia ver as grilhetas que a prendiam ali. Por enquanto, era apenas o seu
dever de sustentar Molly, mas quanto mais tempo ficasse, maior seria a dívida
que sentiria ter para com os Langworthy. Quando Molly tivesse idade
suficiente para trabalhar, ela, Mrs. Bruce, seria velha, e Beth ocuparia o seu
lugar.
Nunca teria oportunidade de tocar em público, de ver mais do mundo.
Muito provavelmente, também nunca casaria.
CAPÍTULO 9
–Minha senhora, minha senhora! – gritou Kathleen, às seis da manhã.
Foi no início de Fevereiro, estava um frio cortante, lá fora ainda era
noite e os donos da casa dormiam. Mrs. Bruce acabava de descer à cozinha
para pôr a chaleira ao lume.
Correu escadas acima e encontrou Kathleen à porta do quarto do velho
Mr. Langworthy. A primeira tarefa de Kathleen, todas as manhãs, era
espevitar o lume naquele quarto, e ao ver a expressão horrorizada da rapariga,
Mrs. Bruce adivinhou que o velho tinha morrido.
– Tinha a boca e os olhos abertos – soluçava Kathleen. – Perguntei-lhe
se queria uma chávena de chá, mas acho que está morto.
– Controla-te – disse Mrs. Bruce, severamente. Ia acrescentar que
Kathleen deveria ter descido à cozinha para lhe contar sem alarido o que se
passara em vez de acordar o senhor e a senhora, mas era demasiado tarde: as
portas dos respectivos quartos abriram-se simultaneamente. Mr. Edward vestia
uma comprida camisa de dormir e Mrs. Langworthy agarrava um xaile posto à
volta dos ombros.
– É o meu pai? – perguntou Mr. Edward.
Mrs. Bruce assentiu com um gesto de cabeça e entrou no quarto.
Kathleen tinha deixado a candeia de azeite em cima da consola da lareira, de
modo que havia luz suficiente para ver exactamente o que ela tinha visto. O
velho Mr. Langworthy estava deitado numa posição forçada, a cabeça junto à
beira do colchão, como se tivesse tentado levantar-se da cama.
Mrs. Bruce aproximou-se dele e confirmou que estava de facto morto.
Voltou a pousar-lhe a cabeça na almofada e fechou-lhe os olhos e a boca.
– Morreu, então? – perguntou Mr. Edward da porta, com a esposa ao
lado, como se estivessem os dois com medo de entrar.
– Receio que sim – respondeu Mrs. Bruce, endireitando as roupas da
cama. – Lamento muito. Mas é melhor os senhores voltarem para a cama antes
que morram de frio. Vou mandar a Kathleen chamar o médico.
Quando Beth chegou com Molly, às nove horas dessa manhã, encontrou
Mrs. Bruce, a cozinheira e Kathleen sentadas na cozinha, todas elas com um ar
muito desanimado.
Mrs. Bruce explicou o que se tinha passado e disse que o médico estava
naquele momento com os Langworthy, a passar a certidão de óbito.
– Foi o melhor para todos – suspirou. – Aquilo não era vida, e a senhora
fica livre de uma autêntica escravidão. Mas, mesmo assim, custa vê-lo partir.
– Os olhos dele pareciam os de um peixe, palavra – disse Kathleen. – E
toquei-lhe na mão e estava fria como gelo.
– Basta, Kathleen – disse Mrs. Bruce, severa. – Eu sei que foi um
choque para ti encontrá-lo, mas devemos mostrar respeito e apoiar o senhor e
a senhora.
Os olhos de Beth encheram-se de lágrimas. Da primeira vez que lhe
tinham pedido que ficasse a fazer-lhe companhia, tivera medo do velho. Tinha
o rosto distorcido, por estar paralisado de um dos lados, e era tão magro que
parecia um esqueleto. Quando tentava falar, mexia a boca de uma maneira
esquisita e as palavras que saíam eram ininteligíveis e assustadoras. Mas
acabara por habituar-se, e depois de ler para ele meia dúzia de vezes,
começara a compreender o que tentava dizer. Conseguia transmitir prazer com
os olhos, irritação com um agitar da mão boa e, por vezes, Beth era capaz de
extrair verdadeiras palavras dos seus grunhidos, e se as repetia ele confirmava
com um aceno de cabeça.
Sentia a alegria dele quando ela aparecia, sabia quando estava a gostar
de uma história, e quanto mais tempo passava com ele, maior era a sua pena.
Pensava que devia ser a coisa mais horrível do mundo ter um espírito vivo
encurralado num corpo que não conseguia controlar, sofrer a humilhação de
ser alimentado e lavado como um bebé e não ter qualquer meio de demonstrar
que compreendia tudo o que se passava à sua volta.
– Não chores, Beth – disse Mrs. Bruce, pegando em Molly, que olhava
com uma expressão ansiosa para a irmã mais velha. – Foi para um sítio
melhor, o sofrimento dele acabou e pode voltar para junto da mulher.
A casa foi envolta por uma sombra de tristeza que parecia tornar-se
mais densa de dia para dia, enquanto os Langworthy faziam os preparativos
para o funeral.
Para Beth, o ambiente era dolorosamente familiar, e, além das
perturbadoras recordações dos funerais do pai e da mãe, havia agora a
inquietante preocupação com o que poderia acontecer-lhe.
Sem toda a roupa que o velho Mr. Langworthy sujava, não ia haver
muito que fazer. Mrs. Bruce, a cozinheira e Kathleen cuidavam perfeitamente
da casa. Estaria Mr. Edward disposto a continuar a pagar um salário a alguém
que deixara de ser necessário?
O décimo sétimo aniversário de Beth e o décimo oitavo de Sam
chegaram e passaram nessa semana sem qualquer espécie de festejos. Beth
andou ocupada a ajudar a cozinheira a preparar bolos e pastéis para a reunião
de amigos e familiares que decorreria depois do funeral e a fazer pequenos
ajustamentos às roupas de luto que Mrs. Langworthy usara quando a sogra
morrera.
Na manhã do funeral, Beth acordou quando ainda estava escuro, embora
o candeeiro de rua junto ao fundo do pátio das cavalariças proporcionasse luz
suficiente para ver que tinha nevado durante a noite. Deixou-se ficar sentada
na cama durante um ou dois minutos, a olhar pela janela. Estava tudo muito
bonito, com a porcaria, o lixo e a fealdade escondidos sob um espesso e puro
manto de neve refulgente. Trouxe-lhe à memória o nevão que caíra um ano
antes, na noite em que Molly nascera.
Lembrava-se de estar à janela da cozinha, com o bebé nos braços, a ver,
maravilhada, como o beco e os telhados se tinham miraculosamente
transformado numa coisa mágica.
Poucos dias mais tarde, a mãe morrera, e a chuva levara a neve. Olhara
pela mesma janela e vira que tudo voltara a ser cinzento, triste e feio. Na
altura parecera-lhe significativo, talvez um aviso de que a felicidade e a beleza
só podiam ser passageiras.
Tanta coisa acontecera desde então. Tanto desespero, dor e
preocupação, e, por fim a perda da casa no incêndio. No entanto, o incêndio
acabara por ser afortunado, na medida em que, por causa dele, tinham ido
viver para ali e voltado a encontrar um pouco de segurança e felicidade.
Tanto ela como Sam tinham sido obrigados a crescer depressa, mas o
mais importante que Beth aprendera fora que não se podia contar com nada.
Nem com a continuada generosidade dos Langworthy, nem que aquele
emprego e aquele abrigo durassem o tempo que ela precisava. Nem sequer
podia contar com que Sam ficasse com ela para sempre.
A única coisa a respeito da qual podia ter a certeza absoluta era de si
mesma. Mas esse era um pensamento solitário e arrepiante.
Ninguém esperava que Sam fosse ao funeral, pois a única vez que vira o
velho Mr. Langworthy fora no Natal, quando o carregara para a sala de jantar.
Mas tinha de ir trabalhar, de modo que Beth pôs um xaile pelos ombros e
entrou na sala de estar para acender o candeeiro a petróleo, espevitar as brasas
no fogão e pôr a chaleira ao lume.
Sam parecia tão calmo e imperturbado, enrolado na estreita cama de
rodas. Ainda não lhe ocorrera que a morte do velho Mr. Langworthy podia
significar mais problemas para eles e ela tinha medo de dar voz a esses
receios, pois o irmão parecia tão feliz depois de ter começado a trabalhar no
Adelphi.
– Horas de levantar, Sam – disse suavemente, abanando-lhe o braço.
Ele abriu os olhos e bocejou.
– Já? Tenho a sensação de só ter dormido uma ou duas horas.
– São seis da manhã e esteve a nevar – disse Beth, reparando em como
o irmão estava a tornar-se bonito. Tinha a cara mais cheia, deixara crescer um
pequeno bigode, e as compridas pestanas chamavam a atenção para os
encantadores olhos azuis. Sentiu uma pontada no coração ao pensar que ele
não tardaria a arranjar uma namorada e ela seria relegada para segundo plano.
Ele sorriu, saltou da cama e correu para a janela, como uma criança.
Vestido apenas com a roupa de dormir, de lã, tinha um ar ligeiramente
ridículo.
– Adoro a neve – disse, voltando-se para sorrir à irmã. – Em certas
partes da América, começa em Novembro e dura até à Primavera.
– Não consigo imaginar coisa pior – respondeu ela secamente enquanto
se ajoelhava para tirar a caixa das cinzas de baixo do fogão. Não era verdade.
Gostava da neve tanto como o irmão e algumas das suas mais doces
recordações de infância eram de deslizar com ele num trenó, mas estava farta
das constantes referências à América. – A água da chaleira já deve estar
suficientemente quente para te lavares e fazeres a barba. A tua camisa lavada
está pendurada na porta do quarto.
– Estás a ficar uma velha solteirona – retorquiu ele.
*
Beth, Kathleen e Mrs. Cray só tinham conseguido lugar de pé ao fundo
de St. Bride’s, pois tinham sido as últimas da procissão de acompanhantes que
seguira as seis carruagens que transportaram os membros da família até à
igreja, e todos os bancos estavam ocupados. Com o espesso manto de neve a
servir de pano de fundo aos cavalos empenachados de negro e ao caixão
coberto de flores, fora um espectáculo impressionante. Beth pensara que a
neve afastaria muita gente, mas parecia que metade da população de Liverpool
se juntara ali.
Uma vez cantado o primeiro hino e iniciadas as orações, os
pensamentos de Beth derivaram para o comentário de Sam naquela manhã.
Sim, era verdade, estava a tornar-se numa velha solteirona. Tudo o que fazia,
e até tudo o que pensava, girava à volta de Molly ou dos Langworthy. Não
queria saber do seu aspecto, todas as suas roupas eram em segunda mão e já
nem sequer ia ver as montras das lojas, não só porque não podia comprar
nada, mas também porque não tinha nenhum sítio aonde ir para poder usar
aquelas coisas.
Antes da morte do pai, costumava passar muito tempo entregue a
devaneios românticos, mas agora já não. Não valia a pena: nunca iria a bailes
nem a festas e nunca andaria numa carruagem vestida de peles e enfeitada
com diamantes. Até os sonhos mais humildes que Miss Clarkson suscitara,
estudar para professora ou enfermeira, ou trabalhar numa loja, estavam agora
excluídos porque tinha de tomar conta de Molly.
Na realidade, as únicas ocasiões em que escapava para o mundo da
fantasia era quando tocava violino. Sozinha nos dois quartos por cima das
cavalariças, podia imaginar-se num belo e colorido vestido de seda, com
enfeites refulgentes no cabelo e bonitos sapatos nos pés. Durante cerca de uma
hora, podia flutuar com a música e esquecer todas as suas responsabilidades.
A voz do reverendo Bloom, que começara a falar a respeito de Mr.
Langworthy, chamou-a de volta à realidade.
– Theodore Arthur Langworthy não nasceu em berço de ouro – dizia. –
O pai era um pobre agricultor do Yorkshire, e esperava que o filho mais velho
lhe seguisse as passadas. Mas o jovem Theodore tinha outros planos.
Beth nunca soubera nada a respeito do passado de Mr. Langworthy,
nem sequer que se chamara Theodore, e era difícil imaginar aquele velho
preso a uma cama de outra maneira que não fosse doente e frágil.
– Já fascinado pela maquinaria, veio para Liverpool, onde começou a
trabalhar como aprendiz de engenheiro – continuou o reverendo Bloom. –
Tinha apenas vinte e dois anos quando desenhou e construiu uma bomba de
água num barracão nas traseiras da casa onde morava. Passados dez anos,
tinha cinquenta pessoas a trabalhar para ele e exportava bombas de água para
todo o mundo. Mais tarde, começou a construir motores a vapor para navios, e
a Langworthy Engineering tornou-se num dos maiores empregadores de
Liverpool.
O reverendo Bloom passou os olhos pela congregação.
– Muitos dos que aqui estão devem-lhe a vossa actual prosperidade,
porque ele acolheu-vos quando eram rapazes, dedicou-vos um interesse
paternal e ensinou-vos bem. Outros que estão ligados a instituições de
caridade recordarão como ele apoiava as vossas causas e contribuía com
generosos donativos para as manter.
Talvez fosse por Mr. Langworthy ter seguido o seu sonho que os
pensamentos de Beth voltaram a derivar para Sam. Esperara que quando o
irmão fizesse novos amigos no Adelphi perdesse o interesse na América. Mas
não perdera. Estudava mapas, lia livros e artigos em revistas e poupava todos
os tostões para poder ir.
Até ao momento, Beth sempre estivera inclinada a ver a paixão de Sam
pela emigração como simples desejo de aventura, mas, de repente, ocorreu-lhe
que não era assim tão diferente de Mr.
Langworthy querer ser engenheiro. Se não tivesse tido a coragem de
desafiar o pai e ir atrás do que realmente queria, muitas das pessoas ali
presentes não teriam tido trabalho, haveria menos obras de caridade, e quem
faria todas aquelas bombas de água e motores a vapor que ele enviara para
todo o mundo?
Talvez o desejo de Sam de ir para a América não beneficiasse ninguém,
mas por outro lado, se não fosse, podia tornar-se amargo e acabar por culpá-la
a ela. Beth tinha medo de ficar sozinha com Molly, especialmente numa altura
em que o futuro era tão incerto, mas achava que tinha ainda mais medo de
perder o afecto do irmão ao prendê-lo ali.
Às cinco horas dessa tarde, Beth estava a lavar louça na cozinha,
enquanto Mrs. Cray arrumava na despensa a comida que sobrara, quando
ouviu Mrs. Langworthy despedir-se dos últimos convidados à porta da rua.
Mesmo àquela distância, detectou o cansaço na voz da patroa e sentiu a tensão
a que estivera sujeita todo o dia, obrigada a controlar as suas emoções.
A porta da rua fechou-se. Beth ouviu Mrs. Langworthy pedir a Mrs.
Bruce e a Kathleen que retirassem os últimos copos e pratos da sala de jantar,
e, minutos mais tarde, descer a escada até à cave.
Apesar da palidez e da exaustão bem patentes no rosto, conseguiu sorrir
a Beth e a Mrs. Cray.
– Só queria agradecer-lhes pelo muito que fizeram hoje – disse.
Mrs. Cray ergueu o olhar para ela.
– Foi com muito gosto, minha senhora – disse. – Mas parece muito
cansada. Quer que lhe arranje alguma coisa?
Mrs. Langworthy suspirou e levou a mão à testa, como se lhe doesse.
– Não, obrigada, Mrs. Cray, já fez mais do que o suficiente por hoje, vá
para casa. Se quisermos comer alguma coisa, mais logo, cá nos arranjaremos.
– Voltou-se para olhar para Molly, que estava sentada numa manta, no canto,
a brincar com duas colheres de madeira.
– Foste uma menina muito bonita – disse, inclinando-se para lhe pegar.
– Não te ouvi durante todo o dia.
– É um autêntico anjinho – disse Mrs. Cray, ternamente. – Acho que
percebeu que estávamos todas demasiado ocupadas para brincar com ela.
Mrs. Langworthy deixou-se cair numa cadeira, com Molly ao colo, e
embalou-a. Permanecendo calada, inclinou a cabeça e encostou a cara ao
cabelo da criança.
Beth apercebeu-se, alarmada, de que a patroa estava a chorar, e avançou
um passo.
– Que se passa, minha senhora? – perguntou.
– Perder o meu sogro fez-me perceber como a minha vida é vazia –
disse Mrs. Langworthy, erguendo um pouco a cabeça e tentando limpar as
lágrimas.
– É natural que se sinta um pouco à deriva, durante algum tempo – disse
Beth, num tom tranquilizador. – Mas agora vai ter tempo para fazer todas
aquelas coisas que nunca pôde fazer. Quer que lhe traga uma chávena de chá?
– Isto é o que eu quero – exclamou Mrs. Langworthy, apertando Molly
contra o peito. – Um bebé para amar. Sem um filho, uma mulher não é nada.
Mrs. Cray fez uma cara de aviso a Beth e um pequeno gesto com a mão,
como que a indicar que a patroa tinha bebido um pouco mais de xerez do que
lhe convinha.
Beth pousou reconfortantemente a mão no ombro da mulher mais velha.
– Podemos todas partilhá-la – disse.
– Não quero partilhá-la, quero-a só para mim – respondeu Mrs.
Langworthy, erguendo uns olhos suplicantes para Beth.
Nesse instante, Mrs. Bruce desceu a escada, transportando uma bandeja
com alguns copos.
– São os últimos – disse alegremente, ignorando o drama que acabava
de interromper.
– Não haja dúvida de que comeram e beberam bem – comentou Mrs.
Cray, numa clara tentativa de quebrar a tensão ambiente. – Não são horas de
levares a Molly para casa, Beth?
Mrs. Langworthy pôs-se bruscamente de pé e passou Molly para os
braços de Beth.
– É melhor voltar para junto do meu marido – disse, a voz a tremer. –
Ficou muito abatido. Tenho a certeza de que amanhã estará tudo bem.
No dia seguinte, Mrs. Langworthy não se levantou da cama. Kathleen
levou-lhe o chá matinal, como de costume, e anunciou na cozinha que a
senhora não se sentia bem.
– Demasiado xerez – disse Mrs. Cray, piscando um olho a Beth, mas
mantendo a voz suficientemente baixa para que Mrs. Bruce não a ouvisse.
Também Mr. Edward não estava no seu normal. Ralhou com Kathleen
por a torrada do pequeno-almoço estar fria e em seguida fechou-se no
escritório e ficou lá, em vez de ir para a fábrica.
– Não seria apropriado ele ir trabalhar hoje – disse Mrs. Bruce, como se
quisesse justificá-lo. – Tem de resolver os assuntos do pai e deve ter dúzias de
cartas para escrever. Mas tenho de admitir que está a reagir pior do que eu
esperava.
Beth compreendia a razão da perplexidade de Mrs. Bruce, pois Mr.
Edward fora trabalhar inclusivamente no dia em que o pai morrera e ainda no
dia anterior, no funeral, mostrara a mais perfeita compostura. Era
compreensível que Mrs. Langworthy tivesse caído à cama; ao fim e ao cabo,
esfalfara-se durante mais de uma semana a tratar de mil e uma coisas. Mas
juntando o muito pouco característico comportamento de Mr. Edward naquele
dia ao estado emocional da esposa no dia anterior, Beth teve a certeza de que
os dois tinham tido uma discussão.
Tê-lo-ia ela culpado por não ter um filho seu?
Três dias depois do funeral, Mrs. Langworthy continuava de cama. Mrs.
Bruce levava-lhe as refeições numa bandeja, mas ela mal lhes tocava.
– O médico diz que não lhe encontra nada de mal – ouviu-a Beth dizer à
cozinheira. – Acha que deve ser um simples caso de melancolia e que talvez
Mr. Edward devesse levá-la a fazer umas férias. Mas quem quereria fazer
semelhante coisa com um tempo destes?
Não voltara a nevar depois do dia do funeral, mas a temperatura estava
tão baixa que a neve continuava a cobrir tudo e o vento cortava como uma
faca. Fazia tanto frio nos quartos por cima das cavalariças que Beth se deixava
ficar na casa grande o mais tempo que podia e, à noite, levava Molly para a
cama consigo, para a manter quente. Também Sam estava a voltar mais tarde
do hotel, talvez pelas mesmas razões, de modo que Beth não tivera sequer
oportunidade para falar com ele a respeito da América.
– Beth, porque é que não vais vê-la? – sugeriu Mrs. Bruce. – Leva a
Molly contigo. Tenho a certeza de que vai animá-la.
A tarde ia a meio, e uma vez que Beth não conseguia encontrar trabalho
que justificasse a continuação da sua permanência, e por estar demasiado frio
para ir aonde quer que fosse, concordou com prazer.
Mrs. Langworthy estava tristemente recostada nas almofadas, nem
sequer a ler, mas quando viu Beth e Molly o seu rosto iluminou-se.
– Que agradável surpresa. Estava precisamente a pensar na Molly.
Põe-na aqui, em cima da cama – disse, batendo na manta a seu lado.
Beth entregou-lhe a criança e puxou uma cadeira para junto da cama.
Molly saltou, feliz, em cima do macio colchão, e depois pôs-se a brincar ao
esconde-esconde tapando-se com a manta e arrancando uma gargalhada a Mrs.
Langworthy.
– O que é que se passa, minha senhora? – perguntou Beth, depois de
terem conversado a respeito de Molly durante algum tempo. – Tem dores?
Tem estado doente?
– Não, nada disso – respondeu Mrs. Langworthy, olhando
carinhosamente para Molly, que se aninhara junto dela como se tencionasse
dormir. – Só estou farta da inutilidade da minha vida.
– A minha mãe disseme uma coisa parecida, uma vez – disse Beth,
pensativa. – Eu fiquei um pouco magoada, na altura, mas suponho que se
referia a passar o dia todo a limpar e a cozinhar.
– As mulheres têm uma vida muito cansativa. – Mrs. Langworthy
suspirou. – Bem sei que devia estar grata pelas minhas bênçãos. Tenho uma
bela casa e um bom marido, mas, sabes, sempre pensei ter filhos, e agora tudo
indica que nunca vou conhecer essa alegria. Não me permiti pensar muito
nisso enquanto o meu sogro foi vivo, tinha demasiado que fazer. Mas agora
não consigo pensar noutra coisa. Estou tão triste.
Beth sentiu-se um pouco desconfortável ao ouvir isto. Para ela, Mrs.
Langworthy tinha a vida perfeita e achava que ela devia ir a algumas das áreas
mais pobres do bairro escocês de Liverpool para ver como era a vida das
mulheres que lá moravam.
Talvez a patroa lhe tivesse lido os pensamentos, pois estendeu a mão e
pousou-a na dela.
– Desculpa, minha querida, esqueço quanta tristeza já conheceste na tua
curta vida. Imagino o que deves pensar de mim.
– Penso que é a melhor e a mais generosa pessoa do mundo – respondeu
Beth com sinceridade. – Recebeu-nos quando não tínhamos para onde nos
voltar. Ficar-lhe-ei eternamente grata por isso.
– Já mais do que mo pagaste – disse Mrs. Langworthy. – Mas diz-me,
Beth, nunca te revoltaste por teres de carregar o fardo da Molly?
Beth olhou para a irmã e sorriu, porque ela tinha adormecido a chuchar
o polegar.
– Nunca a vi como um fardo – respondeu. – Talvez esteja presa, talvez
tenha de pensar no que é melhor para ela e não para mim, mas isso nunca me
provocou revolta.
– É uma atitude muito altruísta – disse Mrs. Langworthy. – Mas diz-me,
tu e o Sam nunca mais voltaram a pensar em ir para a América?
Beth sentiu o coração afundar-se no peito, segura de que aquela era a
maneira que Mrs. Langworthy encontrara de dizer-lhe que já não era
necessária.
– Nunca está longe dos pensamentos do Sam – respondeu, com cautela.
– Mas desde que Mr.
Langworthy morreu, tenho estado muito mais preocupada com a nossa
posição aqui. Com tanta menos roupa para lavar, não vai continuar a precisar
de mim.
– Não precisar de ti! – exclamou Mrs. Langworthy, chocada. – Claro
que continuo a precisar de ti.
Com certeza não pensaste que eu ia mandar-te embora?
– Quer dizer que posso ficar com a Molly?
– Claro, minha querida. Nunca me passou sequer pela cabeça perder-te.
És preciosa… Sei que sempre fizeste trabalhos que não te competiam.
– Oh, obrigada, minha senhora, estava com tanto medo do que pudesse
acontecer-nos – admitiu Beth. – E assim será muito mais fácil para mim deixar
o Sam ir para a América sozinho. Sabe, já tinha chegado à conclusão de que
era o que devia fazer. Talvez daqui a alguns anos, quando ele estiver instalado,
eu e a Molly possamos ir lá ter.
– Mas podias ir com ele agora, se deixasses a Molly connosco.
Beth olhou atentamente para a patroa, um pouco intrigada pelo que ela
acabava de dizer.
– Não posso fazer uma coisa dessas – disse. – Não é como se fosse
voltar dentro de um par de semanas.
– Não estava a falar de tomar conta dela durante algumas semanas –
disse Mrs. Langworthy, a olhar fixamente para Beth. – Quis dizer para
sempre.
Beth ficou tão chocada que deixou cair o queixo.
– Para sempre?
– Não fiques tão espantada, Beth! Com certeza compreendes que esta é
a melhor solução possível para ti e para o Sam. O meu marido e eu
amá-la-íamos como se fosse nossa filha, e ela viveria nesta bela casa,
frequentaria as melhores escolas e nunca lhe faltaria nada.
Beth estava escandalizada.
– Mas ela é do meu sangue!
– Mais uma razão para nos certificarmos de que tem uma boa vida –
disse Mrs. Langworthy, com duas rosetas de um vermelho-vivo a surgirem-lhe
nas faces, como se estivesse com febre. – Quando era pequena, conheci várias
famílias grandes que deixaram um ou dois dos seus filhos irem viver com
parentes mais ricos. Era uma prática comum.
Também Beth conhecia pessoas que o tinham feito.
– Mas a senhora não é nossa parente – fez notar. – Não posso deixar a
Molly crescer a pensar que a abandonei!
– Nem por um segundo me passou pela cabeça sugerir que cortasses
todos os contactos com ela. – Mrs. Langworthy parecia ofendida. – Podias
escrever-lhe, vir visitá-la. Eu dir-lhe-ia que era a guardiã dela, nunca afirmaria
ser a mãe. Ela poderia chamar-me tia Ruth.
Beth sentiu-se como se alguém lhe tivesse aberto um alçapão debaixo
dos pés e estivesse a cair para o espaço. Sabia que os Langworthy podiam dar
à irmã tudo o que uma criança podia querer ou precisar, mas, durante quase
catorze meses, Molly tornara-se, para todos os efeitos práticos, sua filha, e o
seu instinto era lutar por ela com unhas e dentes.
Estendeu a mão e passou um dedo pelo rosto da pequena Molly,
subitamente receosa de que os Langworthy tivessem o poder de lha tirar
mesmo que ela e Sam recusassem dar autorização.
– Pensa bem no que te disse, Beth – continuou Mrs. Langworthy
suavemente, estendendo a mão para tocar no braço dela. – Sei que estás
chocada e talvez até sintas que estou a insultar-te ao sugerir isto.
Mas tens de acreditar em mim quando te digo que ninguém conseguiria
educar melhor a Molly até agora, sobretudo sendo tu tão nova.
– Não posso dar-lha – disse Beth, firmemente. – Amo-a demasiado.
– Eu sei que a amas, mas não recuses a minha oferta assim sem mais –
insistiu a mulher mais velha.
– Pensa no que representaria para ti. Serias livre para ir com o Sam. A
tua vida poderia voltar a pertencer-te, poderias fazer o que quisesses. Mas
continuarias a ser irmã da Molly, e ninguém te poderia tirar isso.
Beth não conseguiu ouvir mais. Pegou na criança adormecida e recuou
para a porta, a pedir desculpa.
Sam chegou a casa às oito e meia. Geralmente, aparecia já passada a
meia-noite, mas o movimento era tão pouco no bar do Hotel Adelphi que o
gerente lhe dissera que podia sair mais cedo. Ao ver as janelas iluminadas,
ficou satisfeito, pois isso significava que ele e Beth poderiam conversar um
pouco. A maior parte das vezes, ela já a encontrava a dormir.
Mal abriu a porta, porém, e a viu sentada em frente do lume, encolhida
e com uma manta a rodear-lhe os ombros, soube que alguma coisa se passava.
– Que aconteceu? – perguntou. Tinha as mãos e os pés gelados, e
aproximou-se do fogão para se aquecer. – Não te disseram que já não
precisavam de ti, pois não?
Beth levantara esse receio no domingo anterior, mas Sam não
acreditava que a dispensassem, porque no Natal tivera oportunidade de
aperceber-se de quanto Mr. e Mrs. Langworthy gostavam dela.
– Mrs. Langworthy quer que lhe demos a Molly – despejou Beth,
desfazendo-se imediatamente em lágrimas.
Sam ajoelhou-se no chão diante dela e interrogou-a até ficar a saber
exactamente o que fora dito.
– E isso é assim tão mau? – perguntou, quando ela acabou. – Ela tem
razão, seria o melhor para a Molly.
– Tu nunca quiseste saber dela! – acusou-o Beth, cheia de azedume. –
Por ti, tinha ido direitinha para o orfanato.
– Talvez não gostasse muito dela quando nasceu – admitiu Sam,
corando de vergonha. – Agora arrependo-me. Mas ela pode ter uma vida
muito melhor com eles do que connosco. E nós podíamos comprar passagens
para a América, viver à grande. Pensa só em como seria maravilhoso!
– Não quero viver à grande, quero a Molly! – Beth começou a chorar e
tapou a cara com as mãos. – Já decidira dizer-te que fosses sozinho. Sei que
não é justo da minha parte prender-te aqui. Vai tu, e eu fico com ela.
Sam não disse nada durante algum tempo. Limitou-se a ficar ajoelhado
aos pés de Beth, enquanto ela chorava com o rosto escondido entre as mãos.
Pensava muitas vezes na infidelidade da mãe, e ficava cheio de azedume por o
pai se ter matado por causa disso, mas já não sentia qualquer ressentimento
contra Molly.
Como poderia? Ela era uma coisinha tão doce; na realidade, não
duvidava de que se tivesse estado constantemente com ela, como Beth
estivera, se sentiria naquele momento tão indignado e horrorizado pela oferta
como a irmã.
No entanto, sendo as coisas o que eram, conseguia ver a situação mais
desapaixonadamente. Não havia dúvida de que os Langworthy poderiam dar a
Molly a melhor educação possível. Eram pessoas ricas, influentes, mas
também tinham bom coração. Se não fosse a generosidade com que lhes
tinham oferecido uma casa depois do incêndio, poderiam ter sido todos
obrigados a viver numa barraca, e Molly não seria o bebé saudável e feliz que
era.
Talvez estivesse a pensar apenas em si mesmo, até certo ponto. Seria
maravilhoso partir para a América com Beth, sem o fardo de uma criança
pequena. Poderiam ir para onde quisessem, seriam livres de fazer o que
quisessem, e com os dois disponíveis para trabalhar, poderiam juntar muito
mais dinheiro.
Acima de tudo, queria que Beth tivesse uma vida boa, um marido que
amasse e filhos. Mas nunca ela o conseguiria com Molly a reboque, porque as
pessoas pensariam sempre que a criança era filha dela, uma filha ilegítima. O
máximo a que Beth poderia aspirar seria um lugar de criada, e ela merecia
muito melhor do que isso.
Como, porém, convencer a irmã de que não estava a pensar apenas em
si mesmo?
– Podia ir para a América, e depois mandava-vos vir quando estivesse
instalado – disse. – Mas não quero ir sem ti, Beth. E agora que surgiu isto com
os Langworthy, como é que eles vão tratar-nos se lhes recusarmos o que
querem? E se nos mandam embora? Que será de nós?
– Não o farão – disse Beth apressadamente, mas olhou para o irmão
com uma interrogação nos olhos. – Pois não?
– Não sei – admitiu ele. – Mr. Edward pode achar que a presença da
Molly perturba a esposa. As pessoas tornam-se más quando não conseguem o
que querem.
Decidiu ficar por ali. Beth sabia muito bem que nunca arranjariam um
lugar como aquele para viver. Nem era muito provável que arranjasse outro
trabalho onde Molly fosse bem-vinda. Era suficientemente inteligente para ter
aquilo em conta quando tomasse a sua decisão.
Nessa noite, Sam não conseguiu dormir, pois sabia que Beth estava
acordada no quarto ao lado, preocupada. Tinham falado e falado do assunto, e
ele sentia que, no fundo do coração, Beth sabia que, para Molly, entregá-la aos
Langworthy era o melhor que podiam fazer. Os acontecimentos e batalhas do
último ano tinham-lhes ensinado aos dois como a vida podia ser precária. Não
era preciso afastarem-se muito de Falkner Square para ver como era fácil cair
no abismo da pobreza.
Por outro lado, Sam também sabia que Beth não conseguia ser
inteiramente racional por gostar tanto de Molly. Não era capaz de, como ele,
pensar em si mesma, sentir-se entusiasmada pela perspectiva de liberdade e
aventura. Ou sequer de acreditar que talvez, quando crescesse, Molly poderia
ir juntar-se a eles na América.
E apesar de tudo o que dissera naquela noite, e no passado, Sam fora ver
Molly adormecida no quarto ao lado antes de ir para a cama e sentira o
coração inchar de amor por ela. Não conseguia imaginar um dia sem ver
aqueles grandes olhos castanhos, ouvir as suas alegres gargalhadas e vê-la
andar de um lado para o outro. Esforçara-se ao máximo por não deixar que o
seu coração se envolvesse, mas falhara, e não seria apenas Beth a sentir a dor
da partida.
*
Beth acordou-o na manhã seguinte, como sempre fazia. Tinha os olhos
vermelhos e estava muito pálida. Entregou-lhe uma chávena de chá e
sentou-se aos pés da cama.
– Esta tarde vens para casa? – perguntou.
Era sábado, e Sam acabava o trabalho na companhia de navegação ao
meio-dia. Normalmente, visitava os amigos durante a tarde e ia directamente
para o bar do Adelphi ao princípio da noite.
– Se quiseres – disse.
– Quero. Quero que venhas para casa e fales com Mr. Langworthy a
respeito da Molly – disse ela, a voz entrecortada de emoção. – Se ele quiser
isto tanto como a mulher, penso que o melhor que temos a fazer é concordar.
Sam sentiu um nó na garganta, pois sabia a dor que aquilo causava à
irmã. Não conseguiu oferecer uma qualquer banalidade em jeito de consolo.
– Virei para casa – disse. – És muito corajosa, Beth.
– Não é coragem. Coragem seria levá-la connosco para a América ou
sair daqui para fora de nariz empinado. Mas pus-me a pensar no que o papá
faria nesta situação. Julgo que teria dito que devíamos dar à Molly o que é
melhor para ela.
Sam pensou que uma vez que o pai não tivera em grande conta os filhos
quando decidira matar-se, não saberia de certeza o que fazer naquela situação,
mas guardou esse pensamento para si.
– Sim, também acho que é o que ele diria – assentiu. – Mas antes de
aceitarmos, temos de fazê-los prometer que falarão de nós à Molly e que se
certificarão de que ela nos escreve quando tiver idade para isso.
Os olhos de Beth encheram-se novamente de lágrimas.
– Penso que também devemos dizer que tem de ser feito rapidamente.
Não conseguiria aguentar se tivesse de esperar semanas com esta coisa em
suspenso.
– Tenho o suficiente para as passagens – respondeu Sam. – Mas é
mesmo à justa.
– Cá nos havemos de arranjar – disse Beth, decididamente.
*
Beth ainda esperava, apesar de tudo, que quando falassem com Mr.
Edward ele lhes dissesse que a mulher não estava no seu juízo perfeito por se
encontrar doente. Mas quando às três da tarde, a hora a que pedira a Mrs.
Bruce que combinasse o encontro, subiram da cave e ele lhes abriu a porta da
sala de estar, tinha como que um brilho nos olhos.
Mr. Langworthy não tinha o calor humano da mulher; era cerimonioso e
frio com toda a gente. Beth sabia que aquilo se devia sobretudo à educação
que recebera e às suas responsabilidades como homem de negócios, mas já o
vira suavizar-se ao falar com Molly.
– Querem discutir a proposta que a minha mulher lhes fez? – perguntou.
– Sim, senhor – respondeu Beth, a sentir as pernas como se fossem
feitas de geleia.
– Entrem e sentem-se – disse ele.
Ardia um grande lume na lareira e o candeeiro aceso compensava a falta
de claridade daquela tarde carregada e cinzenta. Mrs. Langworthy também lá
estava. Vestia o mesmo vestido preto que usava desde o funeral, mas parecia
bem melhor do que no dia anterior. Ocupava um dos cadeirões junto da
lareira, e Mr. Edward indicou a Beth e a Sam que se sentassem no sofá em
frente do lume. Quanto a ele, permaneceu de pé, com o cotovelo apoiado à
consola.
– A minha mulher receia que achem que ela fez a sugestão
precipitadamente, sem me consultar. Mas a verdade é que já tínhamos
abordado o assunto antes do Natal – começou.
– E a sua opinião na altura? – perguntou Sam, sucintamente.
– Que a Molly é uma criança encantadora, que eu poderia certamente
amar como se fosse minha filha. Mas não podíamos, na altura, discutir a
possibilidade convosco, uma vez que o meu pai exigia tantos cuidados.
– Mas poucos dias depois da morte dele sentiu que era apropriado
levantar a questão com a Beth? – continuou Sam, com uma nota de sarcasmo
na voz.
Mr. Edward corou.
– Fiquei bastante alarmado quando a minha mulher me informou de que
tinha falado tão abertamente. O assunto deveria ter sido tratado com tacto e
numa ocasião mais apropriada.
– Por favor, desculpem-me – interveio Mrs. Langworthy, a torcer
ansiosamente as mãos. – Receio que o meu afecto pela Beth e pela Molly me
tenha tornado demasiado impulsiva, e se a ofendi ou a assustei, peço desculpa.
– Ambos compreendemos que Mrs. Langworthy deseja o que é melhor
para a Molly – admitiu Sam, olhando directamente para Mr. Edward. – Mas o
que hoje temos aqui de estabelecer é se ambos partilham o mesmo sentimento.
Beth estava surpreendida por Sam se mostrar tão ousado e directo.
Receara um pouco que o irmão se deixasse levar a concordar com tudo o que
os Langworthy dissessem.
– Sem a mais pequena dúvida – disse Mr. Edward, firmemente. – Posso
garantir aos dois que partilho o desejo da minha mulher de amá-la, protegê-la
e dar-lhe tudo o que daríamos a uma filha nossa, se Deus nos tivesse
abençoado com uma. Confesso que tenho pouca experiência com crianças
pequenas, mas acho a Molly perfeitamente encantadora.
Beth olhava embasbacada para Mr. Edward, pois não esperara que ele
mostrasse um tal grau de calor e empenho.
– Beth! – Sam olhou fixamente para a irmã. – Tens alguma coisa a
acrescentar?
– Se a deixarmos convosco, prometem escrever-nos a dizer-nos como
ela está, até que tenha idade para fazê-lo ela própria? – perguntou Beth, a voz
a tremer de emoção.
– Têm a nossa palavra – disse Mr. Edward, gravemente. – E se um dia
voltarem, poderão vir vê-la.
Tudo o que peço é que nos dêem a possibilidade de a perfilharmos
legalmente, de lhe darmos o nosso nome. Precisamos dessa segurança.
Beth e Sam entreolharam-se, apercebendo-se de que, aos olhos da lei,
isso significaria que renunciavam a todos os seus direitos sobre a irmã.
– Nenhum filho poderia ser mais desejado – disse Mrs. Langworthy,
como se estivesse num tribunal a defender uma causa. – Ter-nos-á a nós, e
também Mrs. Bruce, a Kathleen e Mrs. Cray. Terá um lar estável, feliz e cheio
de amor. Sabemos como isto lhes custa aos dois, mas ao deixarem-na ao nosso
cuidado, estarão a salvaguardar o futuro dela.
Sam olhou para Beth, que assentiu.
– Quando ela for mais velha, deverão dizer-lhe que não foi fácil para
nós fazer isto, que só o fizemos por acreditarmos que era o melhor para ela –
disse Sam, com a voz a tremer.
– Sem dúvida que o faremos, meus queridos. – Mrs. Langworthy pôs-se
de pé e pegou nas mãos de Beth, fazendo-a levantar-se do sofá para a abraçar.
– Não deixaremos que ela os esqueça. E
prometemos que nunca lhes daremos motivos para se arrependerem
desta decisão.
Mr. Edward aproximou-se e aclarou a garganta antes de falar.
– Posso dizer quanto vamos sentir a sua falta, Beth? Trouxe luz e cor a
esta casa. – Fez uma breve pausa, olhou para Sam e depois de novo para Beth.
– Estou convencido de que ambos serão bem-sucedidos na América, mas se
não gostarem, voltem para junto de nós. Haverá sempre espaço nos nossos
corações e na nossa casa para os dois.
Beth sentiu a sinceridade na voz dele e sentiu-se profundamente
emocionada.
– Obrigada, senhor – disse, as lágrimas a subirem-lhe aos olhos. –
Penso que é melhor partirmos o mais rapidamente possível. Será mais fácil
para todos.
CAPÍTULO 10
Um vento forte de nordeste obrigava os passageiros nos conveses do
Majestic a agarrar os chapéus enquanto acenavam a amigos e parentes. O mar
encrespado e o céu tinham a mesma cor de chumbo, mas os casacos vermelhos
da banda que tocava no cais e as serpentinas atiradas ao navio criavam um
ambiente de carnaval que contrastava com a sombria tristeza daquele dia de
Maio.
Mrs. Bruce, Kathleen e Mr. Edward tinham fugido ao aperto da
multidão e procurado refúgio debaixo de um pequeno alpendre, mas
continuavam a acenar freneticamente, a pluma verde do chapéu de Kathleen a
balouçar ao vento.
– Deviam ir-se embora. Ainda apanham uma constipação, com este frio
– gritou Beth a Sam. Mas com o vento, a banda que tocava e as pessoas que
gritavam à sua volta mal conseguia ouvir-se a si mesma.
O que verdadeiramente queria dizer era que não suportava continuar a
olhar para eles por mais um instante que fosse, porque representavam tudo o
que não queria deixar. Forçava-se, claro, a mostrar um sorriso alegre, mas,
gelada até aos ossos, tinha cada vez mais dificuldade em fingir contentamento
e entusiasmo. O que queria era voltar à quente cozinha de Falkner Square,
com Molly sentada nos joelhos. Não queria deixar Liverpool.
Mas não podia dizer nada disto a Sam, porque ele, sim, estava
genuinamente entusiasmado, com uma animação que dava bem para os dois.
Tinha o rosto e o nariz avermelhados pelo frio, mas o sorriso de orelha a
orelha dizia que o sonho por que tanto esperara tinha finalmente começado a
realizar-se.
– Lá está a Sally! – exclamou alegremente, a apontar para a multidão
que acenava. – Ali, junto ao guindaste! A de capa vermelha. Não estava à
espera que viesse despedir-se de mim.
Ver a rapariga de que o irmão tantas vezes falara ao longo das últimas
semanas distraiu Beth da sua infelicidade. Sam fora apresentado à bailarina
burlesca por um dos seus amigos no Adelphi. Mesmo a uma distância de mais
de sessenta metros, Beth viu que a rapariga era tudo o que esperara: uma
lambisgóia morena e curvilínea de cara pintada.
Desde que a conhecera, Sam começara a chegar a casa às três da manhã,
a cheirar ao perfume barato dela e com os lábios inchados de beijos. Beth dera
várias vezes por si a esperar que ele achasse os encantos de Sally ainda mais
atraentes do que os da América e desistisse dos seus planos.
– Ama-la? – perguntou, mais uma vez forçada a gritar para fazer-se
ouvir.
Sam olhou para ela e sorriu marotamente.
– Amei-a enquanto estive com ela, mas em Nova Iorque há montes de
outras iguais.
Beth percebeu, pelo chispar dos olhos do irmão, que Sam tinha feito
muito mais do que beijar a rapariga, e esperou que não a tivesse engravidado.
Pensou que devia censurá-lo, mas estava com um pouco de inveja por ele ter
experimentado aquela coisa misteriosa a que a mãe chamava paixão, e não
soube o que dizer.
O retinir de sinetas e a ribombante ordem, transmitida pelos altifalantes,
para que quem não ia viajar abandonasse imediatamente o navio impediu
qualquer comentário, mas enquanto via o irmão acenar e atirar beijos, Beth
notou que um pouco mais adiante, ao longo da amurada, duas jovens
elegantemente vestidas estavam também a observá-lo. E ocorreu-lhe que Sam
ia provavelmente ser objecto das atenções de muitas mulheres durante a
viagem.
Entretanto, o navio inteiro estava envolto em serpentinas e o entusiasmo
aumentou de uma forma palpável quando a tripulação começou a retirar as
pranchas de embarque e a preparar a partida.
Havia pelo menos tantas pessoas a chorar no convés como no cais. No
passado, Beth tinha contemplado aquela cena dúzias de vezes, mas só se
apercebera do desgosto dos que ficavam. Nunca lhe passara pela cabeça que
alguém a bordo do navio não estivesse felicíssimo por partir. Agora sabia a
verdade, porque separar-se de Molly era como arrancarem-lhe o coração, e
compreendeu que muitos dos outros passageiros deviam estar a deixar para
trás famílias inteiras, não apenas uma miudinha, e que talvez, como acontecia
com ela, temessem nunca mais voltar a vê-las.
Naquela manhã, levantara-se muito cedo e fora à casa grande para ver
Molly dormir. Mrs.
Langworthy mandara desmanchar e redecorar o quarto do sogro mal
Beth acedera a deixar a pequenina com ela. O quarto ficara pronto na semana
anterior e estava agora digno de uma princesa, com um padrão de rosas no
papel que forrava as paredes, um berço magnífico e um tapete verde-maçã
com franjas. Mrs. Langworthy sugerira que Molly começasse a dormir lá logo
que ficasse pronto, alegando que o choque seria menor para ela depois de Beth
ter partido. Mas Molly não parecera nem um pouco amedrontada pelo seu
novo ambiente e dormira como um anjo logo na primeira noite.
Desde então, Mr. Edward comprara-lhe imensos brinquedos, incluindo
cubos para construir coisas, um cão felpudo com rodinhas para empurrar de
um lado para o outro e um cavalo de balouço. Beth sabia que devia estar feliz
por ele se mostrar tão encantado por tornar-se no guardião da irmã, mas a
verdade era que cada compra a fazia sentir mais abatida e inadequada.
Naquela manhã, sentara-se no quarto a olhar para a irmã à luz pálida da
aurora. Adorara-a silenciosamente, absorvendo as compridas pestanas
pousadas nas faces rechonchudas e rosadas, os caracóis escuros, a maneira
como enrolava o indicador à volta do nariz e chupava o polegar. A cabeça
dizia-lhe que ia fazer o que era melhor para Molly, que o futuro da irmã seria
infinitamente melhor com o tio Edward e a tia Ruth, mas continuava a
sentir-se como uma condenada à espera de que a sua vida chegasse ao fim.
Pior ainda fora o último adeus. Mrs. Langworthy segurara Molly ao
colo enquanto eles subiam para a carruagem com Mr. Edward, Mrs. Bruce e
Kathleen. E quando a carruagem começara a afastar-se, Beth tivera de fazer
um esforço sobre-humano para não saltar para a rua, voltar para trás e
arrancar-lhe a criança dos braços.
No cais, uma mulher chorava aos gritos. Era velha, talvez uma avó,
demasiado velha para ir com a família. Estendia os braços, as lágrimas a
correrem-lhe pelo rosto enrugado, como que a suplicar-lhes que não a
deixassem, e Beth teve de desviar o olhar para não ver aquela cena
intoleravelmente trágica.
As pranchas de embarque foram recolhidas, os marinheiros soltaram as
amarras e enrolaram-nas e, de repente, o espaço entre o costado do navio e o
cais tinha aumentado. A banda tocou uma música alegre, as últimas
serpentinas foram atiradas e, numa última tentativa de mostrar a Mr. Edward
que estava feliz por partir, Beth tirou o seu chapéu de palha novo e agitou-o,
apesar de as lágrimas lhe deslizarem pelo rosto.
– Vais ver que não tardas a sentir-te melhor – disse Sam, passando-lhe o
braço pela cintura. – A Molly vai ser feliz com os Langworthy. E tu continuas
a ter-me a mim, e muitas aventuras pela frente.
É mais do que tempo de também te divertires um pouco.
A única resposta de Beth foi reclinar a cabeça no ombro do irmão.
Ajudava saber que ele não se deixara enganar pela sua fingida alegria, que
compreendia a sua dor. Mas havia tanto tempo que não sabia o que era
divertimento que não teve a certeza de ser sequer capaz de reconhecê-lo
quando voltasse a acontecer-lhe.
Ainda naquela manhã, Mrs. Bruce dissera acreditar que a verdadeira
felicidade premiava aqueles que procuravam activamente proporcioná-la aos
outros através da sua bondade e compreensão.
Dissera que Beth devia tentar ver todos a bordo do navio como
potenciais amigos, não como estranhos, e lembrar-se de que todos eles
estavam tão apreensivos como ela e Sam a respeito do que os esperava na
América.
O navio ganhava velocidade, os rostos dos que tinham ficado no cais
transformavam-se numa mancha pálida e difusa. Agora já não havia como
voltar atrás, de modo que tinha de ser corajosa e pensar na sorte que aquela
possibilidade que lhes era oferecida de poderem sacudir todas as tristezas do
passado e construir um novo futuro representava. Como Sam tão justamente
dissera, tinham muitas aventuras pela frente.
– Vamos para baixo conhecer os nossos companheiros de viagem –
sugeriu, a fingir-se mais alegre do que se sentia. – E não desapareças com
outra Sally, deixando-me sozinha!
Sam riu e abraçou-a.
– Assim é melhor, mana. E não te preocupes. Não vou deixar-te
sozinha. Há demasiados homens a lançar olhares maliciosos na tua direcção.
Tenciono ter-te debaixo de olho.
Os passageiros de terceira classe viajavam nas entranhas do navio, e
como se isso não bastasse para deixar bem clara a sua humilde posição, havia
grades metálicas a impedi-los de passar para as áreas da segunda e primeira
classes.
Enquanto desciam as empinadas escadas, Beth e Sam apanharam um ou
outro vislumbre do refinado mundo para lá dessas grades. Macias alcatifas e
portas de madeira envernizada com aplicações de latão, camaroteiros de
casaco branco a transportar bandejas com bebidas para os felizes ocupantes,
crianças muito limpas e bem vestidas a tentar escapar às garras das amas.
Quando chegaram aos níveis inferiores, os chãos e as portas passaram a
ser de metal, as paredes sujas e com a tinta a pelar. Ali havia pessoas a
acotovelarem-se para passar nos estreitos corredores, os rostos ansiosos e por
vezes zangados a transmitirem a mensagem de que nenhum camaroteiro ia
descer até àquelas profundezas com uma chávena de chá, uma manta para uma
criança ou até uma simples palavra tranquilizadora. O barulho dos motores era
tão forte que quase abafava o choro das crianças e os gritos frenéticos das
mães que tentavam reunir os filhos, e o coração de Beth afundou-se ainda
mais.
Os homens solteiros ficavam alojados à frente, as mulheres solteiras na
popa, com as famílias no meio. Beth, que tinha visto imagens de como os
passageiros mais pobres viajavam no tempo dos veleiros, com quatro ou cinco
pessoas para cada beliche e um balde a servir de sanita, ficou aliviada ao
descobrir que as camas eram de lona e concebidas de modo a serem arrumadas
durante o dia para deixar mais espaço, e que havia latrinas e casas de banho
em todas as secções.
Mas o espaço era claustrofóbico, e muito escuro, e ao ver à sua volta os
rostos contraídos e as indumentárias esfarrapadas dos outros passageiros,
congratulou-se por ter seguido o conselho de Mrs. Bruce e cosido o dinheiro
no interior da roupa, pois o instinto dizia-lhe que não seria sensato confiar
fosse em quem fosse.
No dia anterior, Mr. Edward dera-lhes trinta libras, dizendo-lhes que
vissem aquele dinheiro como um fundo de emergência a que só deviam
recorrer se não conseguissem arranjar trabalho imediatamente. Isto além de
todas as coisas que ele e a mulher lhes tinham dado: malas, duas grossas
mantas, toalhas e peças de roupa. E eles tinham-lhes agradecido com os olhos
humedecidos.
Quando Sam levou a mala de Beth para a secção das solteiras, uma
mulher já de idade, de rosto severo e vestido cinzento, avançou para eles.
– Fora daqui, jovem – disse, duramente.
– Estava só a ajudar a minha irmã a instalar-se – explicou ele.
– A sua irmã fica muito bem ao meu cuidado – respondeu a mulher. –
Sou Miss Giles, a supervisora. Não autorizo confraternizações entre mulheres
solteiras e membros do sexo oposto. Se quiser ver a sua irmã durante a
viagem, combine encontrar-se com ela no convés.
Sam fez um ar de incredulidade que provocou o riso de duas bonitas
raparigas irlandesas.
– Encontramo-nos dentro de uma hora – disse Beth, desejosa de não
granjear a hostilidade de Miss Giles. – Não te preocupes, eu fico bem.
A descoberta de que quase toda a gente estava tão apreensiva e
assustada como ela fez Beth sentir-se um pouco melhor. Havia vinte e seis
outras raparigas na sua secção e a grande maioria tinha, como ela, menos de
vinte anos. Muitas viajavam com os pais e irmãos mais novos e detestavam
estar separadas deles, embora houvesse mais quatro como Beth,
acompanhadas por irmãos mais velhos.
As restantes estavam com uma irmã ou uma amiga, e só uma mulher,
uma das mais velhas, viajava completamente sozinha; dizia que ia
encontrar-se com o noivo em Nova Iorque.
Uma das muitas coisas que Mrs. Langworthy oferecera a Beth fora um
casaco castanho, novo, com gola de pele. Tinha também umas botas abotoadas
brilhantes e quase novas e um vestido de viagem de lã castanha; em
comparação com as outras mulheres, que apertavam velhos xailes à volta dos
ombros e tinham buracos nas solas das botas, parecia quase rica. Eram
maioritariamente irlandesas e, apesar de pálidas e mal alimentadas, todas elas
tinham uma expressão de excitada expectativa nos olhos e falavam do seu
destino com uma tal esperança e fervor que Beth se envergonhava da sua
relutância.
Bridie e Maria, as duas raparigas que o espanto de Sam tanto divertira,
sugeriram-lhe que ficasse com a cama junto das delas. As suas vozes alegres,
cheias de calor e amizade, recordavam-lhe Kathleen e eram como um bálsamo
para o seu coração magoado.
– Podemos conhecer homens solteiros na secção das famílias – disse
Maria, com um brilho travesso nos olhos. – O meu tio emigrou o ano passado
e escreveu a dizer que à noite cantavam e dançavam. Miss Giles só está aqui
para não deixar entrar homens nesta secção, mas não pode impedir-nos de nos
divertirmos lá fora.
– Deixaste o teu namorado para trás? – perguntou Bridie. – Tens os
olhos avermelhados de alguém que passou os últimos dias a chorar.
De repente, Beth deu por si a falar-lhes de Molly, e a chorar enquanto
lhes descrevia como era duro deixá-la. Maria abraçou-a e puxou-lhe a cabeça
para o magro ombro.
– Sim, nós bem sabemos como é difícil! Quando me despedi da mamã e
dos pequenos, pensei que o meu coração se ia despedaçar. Mas vamos a
caminho de um sítio melhor, Beth. Vamos ganhar dinheiro, Beth, e em breve
poderemos chamá-los para junto de nós. E tu vais poder fazer o mesmo com a
Molly.
Na manhã seguinte, estavam em pleno Atlântico, e, à medida que o mar
se tornava mais agitado, muitas pessoas começaram a sofrer os efeitos do
enjoo. Beth sentia-se bem, mas sabendo que o som dos vómitos e o cheiro do
vomitado naquele espaço tão abafado iam provavelmente contagiá-la, resolveu
subir ao convés.
Estava bastante frio e o vento soprava com força, mas depois do barulho
constante dos motores do navio e de pessoas a gritar umas com as outras, era
bom desfrutar de um pouco de silêncio e solidão.
Do outro lado da grade que separava a pequena parte do convés
reservada aos passageiros da terceira classe do restante, dois criados de bordo
passeavam cães e um homem solitário, protegido por um pesado sobretudo e
um barrete de pele com abas para tapar as orelhas, caminhava energicamente
de um lado para o outro.
Beth ficou encostada à amurada a olhar para a enorme vastidão de mar
cinzento e vazio que se estendia até ao infinito, e sorriu ao recordar a noite
anterior.
Fora até à secção das famílias com Bridie e Maria, que a tinham
apresentado a algumas pessoas que também vinham da Irlanda. Ao princípio,
sentira uma certa repulsa, porque quase toda a gente estava miseravelmente
vestida e tinha um aspecto sujo, e todos pareciam ter ranchos de filhos.
Recordavam-lhe os irlandeses de Liverpool, que viviam em terríveis
condições nos bairros degradados. Os pais tinham-na ensinado a pensar que os
homens eram todos vadios, sempre bêbedos e metidos em zaragatas, e que as
mulheres procriavam como coelhas e não cuidavam dos filhos.
Mas depressa descobrira que por muito pobres que aquelas pessoas
fossem, e muito más que tivessem sido as condições em que viviam na Irlanda
e em Liverpool, amavam os filhos e queriam uma vida melhor para eles. Não
conseguira manter-se distante ao ser recebida com tanto calor e interesse e
quando tudo à sua volta era alegria e optimismo. Um homem com uma bela
voz de tenor começara a cantar, e não tardara que toda a gente se juntasse ao
coro. Um velho pegara num violino e duas rapariguinhas tinham sido
encorajadas a mostrar os seus talentos nas danças irlandesas.
Acabara por ser uma autêntica festa quando Sam e outros jovens
solteiros se lhes tinham juntado.
Houvera garrafas passadas de mão em mão, mas a maior parte estava
apenas embriagada de alegria por ir a caminho da América. O violinista
começara a tocar uma jiga e, para surpresa de Beth, Sam abrira o baile
pegando nas mãos de Maria e obrigando-a a pôr-se de pé. Beth ter-se-ia
contentado com ficar sentada a ver, mas à medida que outros se levantavam
para dançar, a jiga tornara-se mais rápida e pouco depois estava a bater o pé.
Quando um rapaz de cabelo ruivo e rosto vermelho lhe estendera a mão,
levantara-se e dançara com ele.
Não fora o género de dança tranquila que aprendera na escola, mas uma
efusão de excesso de energia e exuberância. Mal uma música acabava,
aparecia outro homem a reclamá-la. Fora agradável ser posta a rodopiar com
tanta energia. Os seus pares tinham mãos duras e calejadas, as botas ferradas
martelavam as tábuas do chão, o suor escorria-lhes pela cara, mas apesar de
não serem o género de homem que sempre imaginara a conduzi-la na sua
primeira dança, sentira-se feliz.
Mais tarde, no camarote das solteiras, ficara deitada na sua cama de
lona a ouvir as outras raparigas sussurrarem excitadamente a respeito dos
rapazes que tinham conhecido, e ficara orgulhosa por o irmão parecer ter sido
o que mais admiravam. Continuava a ouvir o som do violino do velho
encher-lhe os ouvidos com uma música tão alegre e louca, como se o
executante estivesse a pôr nela todas as experiências da sua vida. Nunca antes
ouvira o instrumento tocado daquela maneira, e sentira-se inspirada a imitá-lo.
Estendera a mão e procurara debaixo da cama até encontrar o velho
estojo de couro preto já a pelar. Só tocar-lhe fora o suficiente. Era o seu
talismã, havia de trazer-lhe boa sorte.
– É enorme, não é?
Beth foi sobressaltada pela voz masculina atrás de si. Voltou-se e viu
que era um dos rapazes com quem dançara fugazmente na noite anterior;
reconheceu-o pela cicatriz no lado esquerdo da cara.
Fora a cicatriz, que parecia ter sido feita por uma faca, que a fizera ficar
de pé atrás. Era alto e magro, a trunfa de cabelos pretos que, lembrava-se de o
ter pensado, estava a precisar de ser lavada e cortada escondida debaixo de um
boné. Apesar de ser provavelmente um par de anos mais velho do que ela, o
esfarrapado casaco que vestia, demasiado grande para ele, e as calças de
fustão davam-lhe o ar de um miúdo da rua.
– Tão grande que assusta – respondeu. – Faz-me sentir muito pequena.
– Dizem que é tão frio que se uma pessoa lá cair morre de choque em
dois minutos – continuou ele.
– Que pensamento tão animador! – disse ela, com uma ponta de
sarcasmo. – Porque é que não experimentas? Eu fico a ver se é verdade.
Ele riu.
– Tens uma língua afiada. Tal e qual a minha mãe.
– É por isso que vais para a América? Para fugir dela?
– De certo modo, suponho que sim – disse ele, com um sorriso. – Para
não falar do meu pai, que está sempre bêbedo. E tu, porque vais?
– Pela mesma razão que a maior parte de nós. – Beth encolheu os
ombros. – Procurar fortuna; pela aventura.
– És a irmã do Sam Bolton, não és?
Beth assentiu.
– Chamo-me Beth Bolton. E tu?
– Jack Child – disse ele, estendendo timidamente a mão. – Prazer em
conhecer-te.
Trocaram um breve aperto de mão.
– De onde és? – perguntou Beth. – O teu sotaque não é irlandês, nem de
Liverpool.
– Do Sul, do East End de Londres. Vim para Liverpool há um ano, para
embarcar para a América, mas roubaram-me todo o dinheiro que tinha e tive
de arranjar trabalho até juntar o suficiente para comprar outra passagem.
– Que pouca sorte – disse Beth, começando a simpatizar um pouco com
ele porque tinha uns bonitos olhos castanhos e um sorriso encantador, ainda
que um pouco torcido.
– Tornou-me mais cuidadoso – disse ele pensativamente, encostando-se
à amurada ao lado dela. – Mas isso é bom. Dizem que Nova Iorque está cheia
de patifes que roubam os imigrantes como nós.
– A sério?
Ele assentiu sabiamente.
– Um amigo meu foi há seis meses. Escreveu a dizer que há homens
que se põem à porta dos serviços de imigração à espreita de pategos para
esfolar. Oferecem-se para arranjar trabalho e um lugar para viver, mas mal a
pessoa lhes entrega algum dinheiro, desaparecem.
Sam contara a Beth que, nas docas de Liverpool, havia homens que
vendiam passagens falsificadas em navios que não existiam e que prometiam
levar os estrangeiros até um hotel e então roubavam-lhes as malas. Calculou
que aquelas coisas aconteciam em todos os lugares do mundo.
– Nesse caso, vamos ter de estar atentos – disse, com um encolher de
ombros.
– Tu e o Sam vão safar-se bem – disse Jack. – Têm os dois qualquer
coisa.
– Sim? O quê? – perguntou Beth, divertida pela maneira como ele a
estudava. Nem com muita imaginação se poderia achá-lo atraente: tinha uma
pele áspera e feições que pareciam demasiado grandes para a cara. O sotaque,
uma mistura de Londres e Liverpool, era estranho, mas mesmo assim havia
nele qualquer coisa que cativava.
Jack fez um ar um pouco embaraçado.
– Bem, o Sam é um rapaz bem-parecido, e tem aquele ar de rei do
galinheiro. E tu tens classe e és bonita.
– Ora, obrigada, Jack. – Beth sorriu. – Só espero que quando for
procurar trabalho achem o mesmo que tu.
Ficaram encostados à amurada durante mais algum tempo. Jack
contou-lhe que, enquanto estivera em Liverpool, trabalhara para um carreteiro
e vivera com uma família em Leeds Street.
– Eram ainda pior do que a minha – disse, a rir. – Brutos como casas e
sempre a beber e a discutir.
Fiquei contente por sair dali para fora. Mas receberam-me quando eu
não tinha um tostão. Poucos o fariam.
Beth, por sua vez, falou-lhe da morte dos pais e contou-lhe como tinha
deixado Molly.
– Fizeste o que era melhor para ela – disse Jack, com uma expressão de
genuína compreensão. – Estava a olhar para algumas daquelas pessoas lá em
baixo, ontem à noite, com todos aqueles filhos, e a interrogar-me como é que
acham que vão começar uma vida nova em Nova Iorque. Vai ser duro, e se os
homens não arranjarem trabalho logo a seguir, como é que vão dar-lhes de
comer?
O mesmo pensamento ocorrera também a Beth. Era muito mais
reconfortante do que doloroso imaginar Molly na casa de Falkner Square,
adorada por todos. A sua vida seria constante e segura e teria sempre uma
cama quente e limpa, muita comida e muito amor. Pensou que se recordasse
isto a si mesma todos os dias, com o tempo seria capaz de sentir-se
verdadeiramente feliz por tê-la deixado com os Langworthy.
O mar tornou-se ainda mais agitado ao fim da tarde e, quanto mais o
navio se empinava e balouçava, mais pessoas enjoavam e ficavam na cama.
Durante a maior parte do dia, Beth sentira-se na obrigação de ajudar os
companheiros de viagem, limpando-lhes o rosto, dando-lhes de beber e
despejando os bacios cheios de vomitado, mas ao fim da tarde, quando o
cheiro começou a fazê-la sentir-se também maldisposta, vestiu o casaco e
subiu ao convés para apanhar um pouco de ar fresco.
O frio era intenso e não havia ninguém à vista, mas o som de uma
orquestra a tocar no salão da primeira classe chegou-lhe aos ouvidos, apesar
do barulho do vento e do mar.
Para ouvir melhor a música, aproximou-se da grade que mantinha os
passageiros da terceira classe confinados ao seu sector e, ao ver um dos
armários onde eram guardados os coletes salva-vidas, encolheu-se junto dele
para se proteger do vento e ouvir melhor. Na sua imaginação, vestia um
vestido azul-pálido com um cinto de cetim e rodopiava pelo salão nos braços
de um dos oficiais do navio.
Deixou-se absorver de tal modo por esta pequena fantasia que
abandonou o seu precário abrigo para dançar sozinha. Foi então que um súbito
aumento do volume da música e uma mancha de luz dourada a derramar-se
pelo convés a avisou de que alguém acabava de sair do salão da primeira
classe. Correu a refugiar-se atrás do armário ao ver um homem vestido a rigor
acender um cigarro, mas não conseguiu resistir a espreitar.
O homem era alto, magro e tinha cabelo escuro, e apesar de
encontrar-se a cerca de quarenta metros de distância, e de a luz ser má,
pareceu-lhe agitado, a olhar nervosamente em redor.
Passados alguns minutos, a porta voltou a abrir-se e uma senhora saiu
para o convés.
Era como um farol na escuridão, devido à estola de pele branca que lhe
envolvia os ombros, ao cabelo louro e ao vestido claro e brilhante que vestia.
Quando ergueu a mão para cumprimentar o homem, a pulseira refulgiu,
sugerindo que era de diamantes.
Enlaçaram-se num abraço, e Beth perguntou-se que motivo os teria
levado a sair para o frio do convés quando podiam estar os dois a dançar no
calor do salão.
A razão tornou-se óbvia quando começaram a beijar-se com paixão,
uma coisa que não poderiam evidentemente fazer diante das outras pessoas.
Beth achou tudo aquilo muito romântico e pensou que talvez estivessem
noivos e tivessem conseguido iludir a vigilância de algum membro da família.
O homem parecia, no entanto, claramente receoso de serem
descobertos, pois, sem deixar de beijar a companheira, foi-a encaminhando na
direcção de Beth e do refúgio oferecido pelo barco salva-vidas que ali estava
suspenso.
– Não posso ficar mais do que um ou dois minutos – disse a mulher,
ofegante, e as suas palavras chegaram nítidas aos ouvidos de Beth, levadas
pelo vento. – Ele vigia-me como um falcão.
– Tens de deixá-lo – respondeu o homem, com veemência. – Cada vez
que o vejo pôr as patas em cima de ti só tenho vontade de o matar.
Beth sentiu-se de repente bastante desconfortável por ser testemunha
daquele encontro clandestino.
Queria afastar-se, ou pelo menos tossir para que eles soubessem que não
estavam sozinhos, mas era demasiado tarde, porque o par estava agora a um
escasso metro de distância, do outro lado da grade, tão perto que conseguia
cheirar o perfume da mulher.
O silêncio fê-la voltar a espreitar. Estavam a beijar-se tão
apaixonadamente que corou ao vê-los. A mulher estava de costas para ela, e a
estola tinha-lhe deslizado dos ombros, revelando a pele muito branca e lisa.
Respiravam ofegantemente, houve um rocegar de roupas e, apesar de
não poder ter a certeza, pareceu a Beth que o homem estava a tocar a mulher
de uma maneira indecente.
– Preciso de mais do que isto, Clarissa – suspirou ele. – Quero fazer
amor contigo numa cama, verte nua debaixo de mim. Vem ao meu camarote
esta noite.
Por esta altura, Beth estava vermelha de vergonha, mas se tentasse
mexer-se eles ouvi-la-iam e pensariam que estivera a espiá-los de propósito.
– Vou tentar – murmurou a mulher. – Vou dar à Aggie um pouco dos
meus pós.
Houve mais beijos frenéticos, mais carícias excitadas, e então Beth
ouviu Clarissa dizer que tinha de voltar para o salão e, passados alguns
segundos, o cliquetear dos saltos dos sapatos dela no convés.
O homem ficou onde estava e Beth viu-o acender outro cigarro. Gelada
até aos ossos, começou a deslizar em direcção à escada, mas, no escuro, não
viu o pequeno rebordo à sua frente, tropeçou nele e estatelou-se no chão.
– Quem está aí? – gritou o homem.
Beth soube, sem se voltar, que ele estava a pouco mais de metro e meio
de distância, a olhar directamente para o sítio onde ela jazia caída e que só a
grade o impedia de se aproximar.
– Ponha-se de pé e fale comigo – ordenou ele.
Beth estava tão habituada a fazer o que lhe diziam que nem sequer lhe
passou pela cabeça fugir.
Obedeceu.
– Há quanto tempo estava aí? – perguntou o homem.
– Há algum. Subi por estar tão abafado lá em baixo.
Beth não resistiu a olhar para ele. Tão atraente, tão impecavelmente
vestido, com uma voz tão culta.
Calculou que teria cerca de vinte e cinco anos.
Até então, Sam fora o padrão pelo qual media o aspecto de todos os
homens, e poucos vira que fossem tão bonitos como o irmão. Mas Sam
parecia quase efeminado em comparação com aquele, que tinha cabelos
negros de azeviche, olhos encovados, um nariz orgulhoso e pómulos altos.
– É seu hábito espiar as outras pessoas? – perguntou ele, num tom de
desprezo.
– É seu hábito ser mal-educado para com as pessoas? – retorquiu ela,
com alguma indignação. – Cheguei aqui primeiro. Devia ter-se certificado de
que estava sozinho, se queria fazer alguma coisa secreta.
– É uma rapariguinha atrevida – disse ele, mirando-a do alto. – Um
florim bastará para pagar o seu silêncio?
Beth ficou a olhar para ele, sem perceber a pergunta.
– Cinco xelins?
Só então ela compreendeu o que ele estava a dizer. Ter sido testemunha
de um encontro adúltero já fora suficientemente chocante, mas oferecerem-lhe
um suborno para não falar era um insulto.
– Como se atreve a assumir que o meu silêncio pode ser comprado? –
respondeu, indignada. – Não tenho o mais pequeno interesse em si nem na sua
amiga. Teria bastado pedir que não falasse a ninguém daquilo que vi.
O homem pareceu ligeiramente embaraçado.
– Peço desculpa – disse. – É que… – deixou a frase em suspenso,
inseguro.
Beth tinha recuperado a confiança. Ao longo de todo o dia, tomara
consciência de que a companhia de navegação pouco se importava com o
conforto ou o bem-estar dos seus passageiros mais pobres, e aquela
oportunidade de se impor a alguém da primeira classe fazia-a sentir que estava
a equilibrar um pouco as contas. Aproximou-se mais dele, chegando-se à
grade.
– É que ela é casada com outro?
Ele podia facilmente ter replicado com dureza, mas limitou-se a fazer
um ar triste.
– É demasiado nova para compreender – disse, com um suspiro.
– Ficaria surpreendido se soubesse as coisas que eu compreendo –
respondeu ela, a pensar na confissão que a mãe lhe fizera ao morrer. – Sei que
a paixão faz as pessoas comportarem-se insensatamente.
Ele soltou uma gargalhada despida de humor.
– E que devo eu fazer, ó Sábia, se amo uma mulher casada com um
homem que faz da vida dela um inferno?
Beth ficou surpreendida e um pouco tocada pela franqueza.
– Porque casou ela com ele? – perguntou.
– Foi obrigada pela família.
Beth pensou naquilo por um instante.
– Então porque é que não o deixa?
– Surpreende-me – disse ele, com uma ponta de sarcasmo. – Sempre
pensei que as raparigas da sua classe acreditavam na santidade do matrimónio.
A referência à sua classe e a assunção de que uma rapariga como ela
não podia ter um espírito aberto irritaram-na.
– Em minha opinião, não há santidade num casamento de conveniência.
– Noto aí azedume – observou ele, olhando-a com mais atenção. – Se
não fosse tão nova, diria que fala por experiência própria. Mas o que sugere é
impossível, de qualquer modo; o marido mantém-na vigiada.
– Por uma criada? – perguntou Beth, lembrando-se de ter ouvido a
mulher referir alguém chamado Aggie.
Ele assentiu com a cabeça.
Por razões que não compreendia, Beth sentia-se atraída pelos problemas
daquele homem e queria ajudá-lo.
– Essa criada será facilmente distraída quando chegarmos a Nova
Iorque. Talvez a sua senhora deva fazer planos para essa altura.
– E que género de plano gizaria uma rapariguinha atrevida como a
menina? – perguntou ele, com um ligeiro sorriso a bailar-lhe nos lábios.
Beth não tinha dificuldade em compreender as razões que levavam a
mulher, Clarissa, a correr tais riscos por um homem como aquele. Não era
apenas o rosto que era atraente, era tudo nele.
– Acho que precisaria da ajuda de outra mulher – disse, pensativamente.
– A criada não a vigiaria tão de perto se ela estivesse com uma amiga.
– Vou ter presente a sugestão – disse ele, e dessa vez sorriu-lhe
abertamente. – É pena não estar também na primeira classe. Poderia ser a tal
amiga!
Beth riu.
– Quem me dera estar na primeira classe. Suponho que desse lado há
muito menos gente a sofrer de enjoo. Foi por isso que vim até cá acima, para
fugir ao cheiro. Mas agora tenho de ir, estou gelada.
– E posso esperar que não fale a ninguém do que viu? – perguntou ele,
arqueando interrogativamente uma sobrancelha.
– Discrição é o meu segundo nome – respondeu ela, com uma pequena
gargalhada.
– Nesse caso, Miss Discrição, espero que voltemos a encontrar-nos –
disse ele, com uma pequena vénia. – E agora é melhor ir, antes que morra de
frio.
O resto da viagem decorreu lentamente e sem incidentes de monta, sem
que Beth tivesse voltado a ver os dois amantes. Com tantos passageiros da
terceira classe vítimas de enjoo, não houve mais noites de música, dança e
divertimento, e Beth passou os seus dias a fazer de enfermeira, a limpar e a
tomar conta dos filhos dos que estavam demasiado doentes para o fazerem
eles próprios.
Muitos dos que ajudava afirmavam que ela era um anjo, mas para Beth
não havia nada de extraordinário em cuidar dos outros; estava habituada.
Além disso, a luz era demasiado má para ler, o frio demasiado intenso para
subir ao convés mais do que dez minutos de cada vez, e as pessoas de que
mais gostava, Maria e Bridie em particular, estavam demasiado debilitadas
para brincadeiras ou conversas.
Sam ia chamá-la para subirem ao convés várias vezes ao dia, e
invariavelmente Jack Child aparecia também. Beth assumia que era por ter-se
tornado amigo de Sam, mas o irmão apressara-se a fazer notar que era ela a
atracção.
Beth não acreditava verdadeiramente nisto porque acabara por tomar
consciência de que toda a gente, homens e mulheres, admirava Sam. Era
divertido, bondoso, ousado e não tinha papas na língua.
No entanto, fossem quais fossem as razões que Jack pudesse ter para
querer estar com eles, Beth ficava sempre contente por vê-lo. Era um bom
conversador, dotado de um espírito vivo e conhecia o mundo. Fazia-a sentir-se
um tudo-nada inebriada, e compreendia sempre as pequenas graças dela,
saindo-se com respostas que a faziam rir. Dava muitas vezes por si a desejar
que não estivesse tanto frio no convés para poderem passar lá mais tempo;
mesmo assim, prolongava muitas vezes aqueles encontros até ficar quase
transformada num bloco de gelo. No regresso ao porão, demoravam-se
frequentemente a conversar até que um dos tripulantes lhes ralhava por
estarem a impedir a passagem.
Sam não permitia que fossem simples regras a entravar-lhe os
movimentos; conseguia contorná-las todas graças ao seu encanto, ao seu
aspecto agradável e aos seus bons modos. Arranjara, não se sabia como,
maneira de travar conhecimento com uma jovem chamada Annabel que
viajava na segunda classe e passava uma parte do dia com ela e com a família
em vários lugares do navio, chegando ao ponto de comer com eles, evitando
assim a revoltante refeição diária de guisado distribuída aos passageiros da
terceira classe.
Beth poderia ter tido ciúmes se ele não lhe levasse bolo e fruta. Jack
ficava pasmado com o calmo descaramento de Sam e o bom aspecto que lhe
permitia fazer todas estas coisas.
– Se eu passasse por uma daquelas grades, toda a gente saberia logo de
onde vinha – disse certa vez, com um sorriso triste. – A única maneira seria
roubar o casaco a um dos criados e aparecer lá de bandeja na mão, mas mal
abrisse a boca acabava-se a brincadeira.
– Dizem que não há distinções de classe na América – fez Beth notar. –
A única coisa que é preciso para subir na vida é trabalhar duro.
A verdade era que nunca tivera noção do que fossem distinções de
classe até à mãe morrer. Antes disso, quase todas as pessoas com que
contactava eram da classe média, respeitáveis e industriosas, como a sua
própria família. Sabia, claro, que havia gente muito pobre; via-a todos os dias,
a mendigar nas ruas. Mas as classes altas estavam tão distantes dela, com as
suas grandes casas, os seus criados e as suas elegantes carruagens, que nunca
tocavam a sua vida.
Ter começado a trabalhar e, mais tarde, ir para Falkner Square mudara
tudo isso. Passara a ser uma criada, que observava os ricos de perto, e tomara
consciência do enorme, intransponível fosso que havia entre ela e eles. Nunca
os Langworthy a tinham feito sentir-se inferior, mas sentira-o naquela viagem
só porque não podia pagar uma passagem mais cara.
À noite, deitada na cama a tentar ignorar os gemidos dos doentes e o
cheiro omnipresente a vomitado, pensava na prometida sociedade sem classes
da América. Claro que tinha de haver uma qualquer espécie de hierarquia, mas
se era baseada na riqueza e não no nascimento ou na educação, talvez, se ela e
Sam trabalhassem muito, pudessem atingir um estatuto equivalente ao dos
Langworthy.
CAPÍTULO 11
–Terra à vista!
Ao ouvir o grito entusiasmado de um dos outros passageiros da terceira
classe, Beth, correu a buscar o casaco e juntou-se à multidão que se empurrava
e acotovelava para chegar ao convés. Foi ao princípio da tarde, oito dias
depois de terem partido de Liverpool, e pareceu estranho que até aqueles que
tinham passado a viagem inteira prostrados pelo enjoo encontrassem
repentinamente forças para se porem de pé.
Chovia intensamente, a visibilidade era muito má, e tudo o que Beth
conseguia ver à sua frente era uma linha ligeiramente mais escura no
horizonte, mas isso não foi o suficiente para mandar ninguém de volta ao calor
do porão. Só ouvia, à sua volta, pessoas a perguntarem umas às outras quanto
tempo faltaria para desembarcarem, e em seguida discutirem qual seria a
primeira coisa que fariam depois de passarem pela imigração.
Depois de ter tido o convés inteiro praticamente só para si durante a
maior parte da viagem, era estranho encontrar-se no meio de tanta gente. Sam
não estava com ela – presumia que estivesse com Annabel – e também não via
Jack. Para tentar fugir ao aperto, e na esperança de descobrir um lugar de onde
pudesse ter o seu primeiro vislumbre de terra, abriu caminho pelo meio da
multidão até à grade que os separava da primeira classe.
Ali, para sua surpresa, logo do outro lado, viu Clarissa, acompanhada
por um cavalheiro.
Podia só a ter visto de relance e no escuro, mas soube sem a mais
pequena sombra de dúvida que era ela, mesmo antes de a ouvir falar. Vestia
um comprido casaco de peles castanho-claro, com um chapéu a condizer, e
umas poucas madeixas de cabelos louros adejavam-lhe ao vento à volta do
rosto.
Beth continuou a olhar em frente, mas, pelo canto do olho, estudava a
mulher. Era aquilo a que muitas pessoas chamariam uma beleza clássica: rosto
oval, pele de porcelana, um nariz perfeito e pómulos altos. Não conseguia
ver-lhe bem os olhos, mas assumiu que eram azuis. Mas, mais do que o
aspecto, era a maneira como estava com o companheiro que lhe interessava. O
homem tinha numa das mãos um chapéu-de-chuva com o qual os protegia a
ambos, mas ela segurava-lhe o outro braço quase possessivamente, e olhava-o
nos olhos sempre que ele falava.
Beth assumiu que se tratava de mais um admirador, uma vez que não
correspondia à imagem do homem velho e gordo que criara no seu espírito
para marido daquela mulher. Tinha cerca de quarenta anos e era alto, com uma
pequena barbicha e um bigode muito bem aparado, magro e direito como um
oficial da Guarda, elegantíssimo no seu sobretudo azul-escuro com gola de
astracã. Invulgarmente, não usava chapéu, o que permitia ver uma farta
cabeleira castanha e ondulada. Apesar de não ser arrebatadoramente belo
como o outro homem que Beth vira, tinha um rosto agradável, simpático, e ria
de qualquer coisa que Clarissa lhe dissera.
– Receio que não tardemos a ficar sem o chapéu-de-chuva – ouviu-o
Beth dizer quando uma rajada de vento o virou do avesso, obrigando-o a lutar
para o controlar.
– Eu dissete, querido, que era um erro trazê-lo para aqui – respondeu
Clarissa, ternamente. – Os chapéus-de-chuva não foram feitos para serem
usados em navios, só nas cidades.
– Então ia deixar a minha encantadora esposa molhar-se? – exclamou
ele, jovial.
Beth ficou tão surpreendida ao descobrir que aquele era o marido
enganado que quase voltou a cabeça para eles, mas conseguiu dominar-se a
tempo e manteve os olhos fixos no horizonte.
– Eu sugeri que seria mais sensato esperar para ver terra no salão –
ouviu Clarissa retorquir.
– Talvez fosse mais sensato, mas aqui há uma atmosfera mais excitante
– disse o marido, acenando aos passageiros da terceira classe. – Olha para
eles, ansiosos por avistar a América.
Beth sabia que devia sentir-se enojada por aquela mulher ter tão pouco
respeito pela fidelidade conjugal. O marido não era evidentemente nenhum
ogre, e ela andara a brincar com os sentimentos do atraente jovem. No entanto,
o que sentiu foi mais desilusão e tristeza por saber que o outro homem ia sair
muito ferido de tudo aquilo.
Alguns minutos mais tarde, a chuva e a neblina levantaram o suficiente
para permitir avistar, ao longe, a linha da costa, e isto distraiu os pensamentos
de Beth dos problemas de Clarissa e do amante.
Os passageiros ficaram a saber, para sua grande frustração, que não
desembarcariam em Nova Iorque naquela tarde, porque o navio teria de ficar
ancorado no Hudson até que as autoridades sanitárias fizessem a sua
inspecção. Foi-lhes explicado que seria preciso ter a certeza de que não havia
qualquer doença a bordo e que, se tudo estivesse bem, encostariam ao cais de
Nova Iorque na manhã seguinte.
As águas mais calmas e a alegria de estarem tão perto do destino
curaram instantaneamente os enjoos e todos quiseram que aquela última noite
fosse para recordar. Até Miss Giles, que vigiara as raparigas solteiras com
olhos de falcão, afrouxou um pouco o seu zelo.
Quando apareceu o habitual caldeirão de guisado para a refeição da
noite, houve quase um motim na pressa de ser servido. Alguns dos passageiros
não comiam nada senão umas poucas colheres de sopa rala e pão desde que
tinham partido de Liverpool, e estavam positivamente famintos.
Beth mal conseguia acreditar no que via quando olhou para o líquido
cinzento acastanhado e gorduroso onde boiavam alguns legumes e mais
pedaços de cartilagem do que de carne. Obrigara-se a comer um pouco
daquela repugnante mistela todas as noites, porque não havia mais nada, mas
toda aquela gente parecia estar genuinamente a gostar.
Terminada a refeição, apareceram o violino, as colheres e as gaitas de
beiços, e a festa começou, com muita dança, muitas cantigas e muita bebida.
Jack tinha uma garrafa de whisky e ofereceu-a a Beth. Ela bebeu um gole e fez
uma careta quando o líquido lhe queimou a garganta, mas, determinada a ser
ousada, bebeu outro e descobriu que deslizava mais facilmente.
Talvez fosse só o efeito do whisky, mas naquela noite Beth sentiu-se
como uma borboleta a sair do casulo. Bastava o número de jovens a querer
dançar com ela para provar que era atraente; estava entusiasmada e optimista a
respeito da aventura que a esperava de manhã. Apesar de saber que ia ter umas
saudades enormes de Molly durante as primeiras semanas, apercebeu-se
repentinamente de que não se arrependia de ter deixado a Inglaterra.
– Vai buscar o teu violino e toca, Beth – incitou-a Sam.
Tentou recusar, porque nunca tinha tocado em público e receava não ser
tão boa como o velho irlandês. Mas Sam não se calava, e não tardou que toda
a gente à volta deles começasse a exigir que tocasse também.
Beth sempre tocara violino de ouvido, embora lesse música para o
piano, e quando voltou com o seu instrumento, ouviu alguns compassos da
melodia que o velho estava a tocar, e quando achou que a tinha apanhado,
juntou-se-lhe.
Era muito mais rápida do que aquilo a que estava habituada, mas
parecia-lhe ser aquela a maneira certa, a maneira como o violino devia ser
tocado. Os dedos dela deslizavam como mercúrio pelas cordas e o arco
fazia-as cantar. Movia todo o corpo ao ritmo da música, de olhos fechados e
totalmente absorta.
Sentiu mais do que viu o apreço do público: o bater de pés tornou-se
mais forte, e os que dançavam soltavam gritos de alegria. De repente, soube
que fora para aquilo que nascera, para tocar uma música viva e alegre que a
elevava a ela e aos que a ouviam até um lugar melhor. Esqueceu que estava
num navio rodeada de pessoas de cara pálida e suja e sentiu-se como se
estivesse a dançar descalça num prado salpicado de flores à luz do sol.
Quando a música acabou e voltou a abrir os olhos, viu que tinha levado
toda a gente para o mesmo lugar. À sua volta só havia olhos brilhantes,
sorrisos rasgados e rostos molhados de suor.
– Ah, és uma ciganinha! – gritou um homem do meio da multidão. –
Foi o melhor violino que ouvi fora de Dublin!
Beth tocou mais algumas músicas antes de pousar o violino e voltar à
dança. Foi ainda mais frenético do que na primeira noite, a música mais alta, e
enquanto rodopiava numa louca polca, Beth riu de pura alegria.
Sam passava constantemente por ela, de cada vez com uma rapariga
diferente nos braços, e o grande sorriso de aprovação com que a via divertir-se
fê-la sentir-se ainda mais feliz. Ocorreu-lhe que muito provavelmente ele
duvidara que ela conseguisse libertar-se dos seus modos excessivamente
reservados, e talvez até tivesse receado que se tornasse num fardo.
Jurou a si mesma mostrar-lhe que era tão capaz como qualquer homem
de aguentar tanto o bom como o mau, e que ia lançar-se de todo o coração na
grande aventura.
Um par de horas mais tarde, o fumo dos cachimbos e dos cigarros e o
número de corpos quentes e suados num espaço apertado onde quase não
entrava ar fê-la procurar refúgio no convés.
Enquanto subia a escada apercebeu-se, para sua grande consternação,
que estava um pouco toldada, porque tinha alguma dificuldade em coordenar
os movimentos. Quando estava à beira de cair para trás, sentiu duas mãos
agarrarem-na pela cintura e segurarem-na.
Era Jack.
– Firme, rapariga. Se tens a certeza de que é para o convés que queres
ir, eu vou contigo.
Quando finalmente chegaram ao alto da escada, o ar frio da noite
soube-lhe maravilhosamente bem.
Tinha parado de chover, o céu estava limpo, cravejado de estrelas, e o
mar riscado por luzes prateadas.
– Isto é melhor – disse, inspirando fundo. – É tudo tão bonito.
– É verdade que sim – concordou Jack. – O mar parece cetim preto, e
olha aquela lua!
Era apenas um crescente, mas pareceu a Beth muito mais próxima e
brilhante do que alguma vez a tinha visto em Liverpool. Encontraram um
armário para se sentarem e ali ficaram envoltos num silêncio cúmplice durante
alguns minutos. A orquestra tocava no salão da primeira classe, e agora que
subiam o Hudson e estava muito menos frio do que no mar aberto, vários
outros pares tinham também subido ao convés e distribuíam-se ao longo da
amurada.
– És um poço de surpresas – disse Jack, a sorrir. – Nunca tinhas dito
que sabias tocar violino daquela maneira. Pensei, quando vi o estojo, que só
tocavas aquela seca de música de câmara.
– É um violino irlandês – respondeu ela, também a sorrir. – Acho que
só sabe tocar jigas. A minha mãe nunca aprovou. Dizia que era música de
taberna.
– Nunca há-de faltar-te trabalho, a tocar assim. Mas para onde vais
amanhã? Tens planos?
– Penso que o Sam tem. E tu?
– Vou para casa do meu amigo. Julgo que não deve ser grande coisa,
uma espécie de pensão, mas há-de servir até conseguir arranjar trabalho.
– E que trabalho será esse?
– Qualquer coisa que pague bem. Quem me dera ter um talento como o
teu. Vais ter pessoas a atropelarem-se para te contratar.
– Contratar-me? – exclamou ela. – Para tocar violino?
– Não é o que vais fazer? – perguntou ele, com uma expressão
intrigada.
– Pensei que ia ter de ser criada, ou trabalhar numa loja, como em
Inglaterra.
Jack quase se engasgou a rir.
– Bem, só se fosses maluca é que fazias uma coisa dessas com um
talento como o teu escondido na manga.
– Mas ninguém vai contratar uma rapariga, pois não?
– Seria uma atracção ainda maior. Sobretudo uma rapariga tão bonita
como tu!
– Ora, obrigada, Jack – disse ela, corando um pouco.
– Teria muito gosto em ir ouvir-te, mas suponho que não vais querer
conhecer-me quando começares a andar com gente chique.
– Claro que vou! – exclamou Beth, indignada.
– Ná! – Jack abanou a cabeça. – Sou demasiado rude para alguém como
tu. Os teus amigos vão olhar para a cicatriz na minha cara e pensar que sou
algum bandido.
– Como foi que a arranjaste? – perguntou ela, estendendo a mão para
tocar muito ao de leve na cicatriz.
– Foi o meu pai. Estava a bater na mamã, eu tentei impedi-lo, ele pegou
numa faca e cortou-me. Foi por isso que saí de Londres. Já não conseguia
aguentar mais.
– Se foi a defender a tua mãe, não há nenhuma razão para te
envergonhares dela – disse Beth, beijando a cicatriz.
De repente, ele tinha-a abraçado e estava a beijá-la.
Beth sobressaltou-se, mas não foi desagradável. Os lábios de Jack eram
macios e quentes; gostou da maneira como uma das mãos dele lhe acariciava o
rosto e do arrepio que lhe desceu pela espinha.
Sem ter sequer consciência do que estava a fazer, aninhou-se contra ele
e abraçou-o.
Quando a língua de Jack se lhe insinuou entre os lábios, achou que ele
estava a tomar liberdades, mas era bom e não quis afastar-se. Ele estava a
respirar ofegantemente, a apertá-la cada vez com mais força, e foi só então
que ela percebeu que tinha de pôr cobro àquilo.
– É melhor irmos para baixo – disse, afastando-se dele e pondo-se de
pé. – Amanhã o dia começa cedo e temos muito pela frente.
– Não quero deixar-te ir – murmurou ele. – És tão bonita.
Beth sorriu e deu-lhe uma palmadinha na cara.
– És muito querido. Vemo-nos amanhã.
– Faria tudo por ti – disse ele, agarrando-a veementemente pelos
ombros. – Tudo!
Quando Beth voltou às acomodações da terceira classe, a festa tinha
acabado. Havia alguns bêbedos a deambular de um lado para o outro, mas as
mulheres e as crianças tinham ido para a cama.
No dormitório das raparigas solteiras, Maria e Bridie esperavam por ela.
Aparentemente, alguém lhes dissera que a tinha visto com Jack.
– É o teu namorado? – sussurrou Bridie, o rosto sardento brilhante de
excitação.
– Não. Pelo menos, acho que não – respondeu Beth, enquanto se
desfazia apressadamente das botas e do vestido e se enfiava na cama. Não
fazia a mínima ideia se um ou dois beijos significavam que se era namorada
de alguém. Gostava de Jack, mas a verdade era que fora o único homem que
conhecera durante a viagem. Tanto quanto sabia, podia encontrar alguém
muito mais adequado quando desembarcassem.
– Ele beijou-te? – perguntou Maria, também num murmúrio.
– Sim.
– Como foi? – quis Maria saber.
– Foi bom – respondeu Beth. – Mas como foi a primeira vez, não tenho
nada com que comparar.
– Nunca tinhas sido beijada? – exclamou Bridie, incrédula.
Miss Giles apareceu para se certificar de que estava toda a gente
deitada, o que poupou a Beth ter de dizer mais fosse o que fosse.
Fingiu ter adormecido antes de Miss Giles voltar a sair, fechando a
porta. De olhos fechados, pôde reviver os beijos de Jack e saborear mais uma
vez a deliciosa sensação.
– Que acontece agora? – perguntou Beth a Sam. Eram dez horas de uma
manhã cheia de sol. Tinham sido acordados ao romper da aurora pelo barulho
dos motores do navio, e alguém gritara que eram horas de desembarcar.
De repente, foi o caos entre os passageiros da terceira classe, com toda a
gente a correr para juntar os parcos bens. Nem sequer os gritos da tripulação a
avisar de que faltavam ainda horas para que deixassem o navio bastou para
acalmar o pânico.
Também Beth se deixou contagiar, e correu para o convés para ver por
si mesma.
Lá estava Nova Iorque espraiada à sua frente, exactamente igual à
fotografia que tinha visto numa revista. Conseguiu até ver o pináculo de
Trinity Church, que sabia servir de ajuda à navegação por ser o edifício mais
alto da cidade.
Ficou fascinada. O pináculo da igreja podia ser o edifício mais alto, mas
os outros não lhe pareciam menos impressionantes. Mas foi a enorme
quantidade de navios que verdadeiramente a espantou. Dezenas e dezenas de
docas espetavam-se como dedos esticados naquilo que um marinheiro lhe
disse ser o East River. Aparentemente, o Hudson, por onde tinham navegado
na noite anterior, ficava do outro lado da ilha, e havia um navio acostado em
cada doca. Apesar da hora matutina, os molhes estavam cheios de todo o
género de carroças, carroções e carruagens possíveis e imagináveis, e centenas
de homens carregavam e descarregavam navios.
Quando se aproximaram, o barulho dos barris a serem rolados pelo
empedrado, dos cascos dos cavalos, das rodas dos veículos, dos motores dos
navios e das vozes humanas tornou-se ensurdecedor, e ao desviar os olhos do
cais, Beth viu o rio cheio de milhares de embarcações de todos os géneros,
desde rebocadores a velhos veleiros. Olhando na direcção de onde tinham
vindo, avistou a Estátua da Liberdade, que tantas vezes vira em fotografias.
Mas nada a preparara para o seu gigantesco tamanho, a dominar o porto, nem
para as emoções que despertou nela.
Lembrou-se de ouvir a sua professora de piano recitar um poema. Já
não recordava se tinha ou não alguma coisa a ver com a estátua em particular
ou com a América em geral, mas uma parte dele ficara-lhe na cabeça e
parecia-lhe ajustar-se às duas. «Dai-me os vossos fatigados, os vossos pobres,
as massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade, o miserável refugo das
vossas costas apinhadas.»
Beth não se via a si mesma, nem Sam, nem nenhuma das pessoas do
navio, como «miserável refugo», mas calculou que a mulher que escrevera o
poema tinha visto milhares e milhares de pessoas de toda a Europa passarem
pelos edifícios da imigração. Com as suas velhas malas, os seus rostos
cansados, as suas pobres roupas, pareciam provavelmente refugo, embora
achasse que a poetisa podia ter encontrado uma palavra mais simpática.
Também a ponte de Brooklyn era muito maior e mais comprida do que
imaginara. Não conseguia imaginar como pudera alguém construir uma coisa
tão enorme por cima de um rio.
O seu último pensamento antes de voltar a descer para aguardar
instruções sobre o desembarque foi para perguntar-se, se o porto de Nova
Iorque continha já todas aquelas maravilhas, que mais coisas incríveis haveria
no resto da cidade.
– Parece que a primeira e segunda classes são demasiado chiques para
passarem pela imigração – disse Sam sombriamente algum tempo mais tarde,
enquanto ele e Beth viam as escadas de desembarque serem baixadas e os
passageiros das classes superiores descerem alegremente por elas, a maior
parte com bagageiros a carregar-lhe as malas. – Nós temos de apanhar um
ferry para Ellis Island, para sermos examinados. Se não gostarem do nosso
aspecto, mandam-nos de volta para Inglaterra.
– Não é muito provável que nos mandem de volta – fez Beth notar. –
Somos fortes e saudáveis.
– Não estava com medo que não nos deixassem entrar. É o tempo que
tudo isto vai demorar. Olha para a quantidade de navios que há, todos eles
carregados de imigrantes. Vai ser difícil arranjar um sítio onde ficar esta noite,
depois de escurecer.
*
Por volta das quatro da tarde, Beth começava a sentir-se ansiosa: as filas
de pessoas que esperavam para serem entrevistadas pelos funcionários da
imigração pareciam não avançar. Era quase meio-dia quando o ferry os levara
até à ilha e ao enorme edifício de madeira onde seriam «processados».
Ouvira dizer a um marinheiro do ferry que aquele edifício só fora
inaugurado em 1892, mas estava cheio de milhares de pessoas de corpos mal
lavados, e com a má ventilação, o estômago a protestar de fome e as dores nas
pernas por estar tanto tempo de pé, começava a parecer-lhe uma antiga câmara
de tortura.
E tanto barulho, também – milhares de vozes, todas a falar ao mesmo
tempo, e muitas delas a falar em línguas estrangeiras. Havia ali uma palpável
subcorrente de medo, e talvez fosse por isso que tantas crianças choravam.
Tinha corrido palavra ao longo das filas que seriam, além de interrogados,
submetidos a um exame médico, e embora isto não tivesse preocupado Beth
ou Sam, fora evidente que estava a criar ansiedade para muitos.
«Encargo público» era a frase que Beth ouvia as pessoas repetirem
constantemente. Deduziu que os funcionários estavam a recusar a entrada a
quem pudesse tornar-se num. Viu um par de mirrados velhotes que mal
pareciam capazes de manter-se de pé e esperou que pudessem provar que
tinham uma família capaz de tomar conta deles. Havia famílias inteiras com
um ar tão pobre que era quase inevitável que fossem olhadas com
desconfiança, e que dizer dos escanzelados, pálidos e atacados por violentos
acessos de tosse? Teriam tuberculose?
Quando foi chamada à presença do médico, Beth sentia-se quase a
desmaiar de fome e de sede, mas o clínico limitou-se a fazer-lhe sinal para
seguir em frente. As perguntas eram muito simples: quanto dinheiro tinha, que
espécie de trabalho ia fazer, e algumas outras claramente destinadas a
descobrir se era mentalmente competente.
Depois de ter esperado tanto tempo, a entrevista pareceu-lhe
absurdamente breve, quase uma desilusão. Foi mandada seguir, com Sam
atrás, e de repente descobriram que tinha acabado. Tinham sido aceites e
podiam embarcar no ferry que os levaria à cidade.
As horas passadas em Ellis Island tinham sido horríveis, frustrantes e
cansativas, e ambos se tinham convencido de que, uma vez superado aquele
obstáculo, tudo correria bem. Mas foi uma Beth aterrorizada que desceu a
prancha de desembarque do ferry para o cais de Nova Iorque. Eram oito horas
de uma noite escura e fria, e sentiu-se como se estivesse a ser lançada de
cabeça para um remoinho: milhares de pessoas confusas e carregadas de malas
e sacos, e, à espera delas, os chacais determinados a aliviá-las de uma parte do
pouco dinheiro que tinham.
Homens intimidantemente corpulentos, de casacos aos quadrados e
chapéus de coco, abriam caminho por entre a multidão, oferecendo-se para
trocar o dinheiro dos recém-chegados por dólares e conseguir-lhes um quarto
de hotel ou um bilhete de comboio. E havia miúdos descalços e esfarrapados
que lhes puxavam pelas roupas e pediam dinheiro ou se ofereciam para levar
as malas, e uma negra enorme que, de turbante na cabeça, os convidava a
entrar para comer no seu restaurante.
Um homem gordo, de casaca e chapéu alto, barrou-lhes a passagem,
insistindo em que podia levá-los para um «belo apartamento» a troco de uma
pequena compensação.
Beth poderia ter-se sentido tentada a confiar em alguém, porque estava
cheia de fome e de frio, e queria uma chávena de chá e um lugar onde pudesse
sentar-se mais do que qualquer outra coisa no mundo, mas Sam, que carregava
as malas dos dois, obrigou-a a avançar, afastando toda aquela gente e
avisando-a para que segurasse com força a pega do estojo do violino.
– O pai da Annabel indicou-me um hotel – disse. – Vamos sair daqui e
arranjar qualquer coisa para comer, e depois apanhamos um fiacre para o
hotel.
– E o Jack? – perguntou ela, pois tinha-se voltado e visto como ele
tentava alcançá-los.
– O Jack sabe cuidar de si mesmo – foi a seca resposta.
CAPÍTULO 12
–Nunca pensei que fosse tão difícil arranjar um sítio para viver –
suspirou Sam, desanimado. – Nem que houvesse tanta gente disposta a
enganar-nos. Confesso que já não sei para onde mais me voltar.
Beth estava a descoser o forro do casaco, à luz de uma vela, para chegar
finalmente ao dinheiro que tinham levado de Inglaterra. Quando Sam falou,
olhou para o lugar onde ele estava sentado junto ao magro lume, uma imagem
de infelicidade.
Há um mês que estavam em Nova Iorque, mas não tinham contado com
serem alvo de tantos aldrabões. Era quase como se usassem ao pescoço um
cartaz a dizer «Novato».
Havia a cabina junto às docas que convidava os imigrantes a
registarem-se para conseguir trabalho.
O formulário que tinham tido de preencher parecia oficial; o homem
que os aconselhara estava elegantemente vestido e parecia preocupado com
eles. A taxa de vinte dólares não parecera excessiva, considerando que iam
conseguir um bom emprego, bem pago. Mas ao cabo de três dias, quando
nenhuma mensagem chegara ao hotel, como o homem prometera, tinham
voltado à cabina e descoberto que desaparecera, e os vinte dólares com ela.
Noutra ocasião, tinham respondido a um anúncio de aluguer de quartos
num jornal. Tinham-se encontrado na pensão com o senhorio, que lhes
mostrara dois quartos muito agradáveis que, dissera-lhes, o actual ocupante
abandonaria no final da semana. Tinham pagado vinte dólares de renda
adiantada e recebido uma chave. Mas quando lá tinham voltado, prontos para
se instalarem, a chave não abrira a porta da frente, e quando tinham
conseguido chamar a atenção de um dos outros inquilinos, fora para saber que
o homem não era o senhorio. Não havia ali quartos para alugar.
Não os ajudara nada saber que dúzias de outras pessoas tinham sido
também vítimas destas vigarices. Tinham perdido o que para eles parecia uma
fortuna, e estavam furiosos por, apesar de aquelas aldrabices parecerem ser
comuns, ninguém se ter dado ao incómodo de os avisar.
E tinha havido muitos outros incidentes desagradáveis: ofertas de
trabalho que acabavam por revelar-se falsas, acomodações que se apressavam
a ir ver para descobrir que, afinal, consistiam em partilhar um quarto com
meia dúzia de outras pessoas. Tinham-lhes sido contadas histórias de pouca
sorte muito credíveis e tinham sido convencidos a meterem-se em jogos
«Garantidos» que os tornariam ricos. A maior parte das vezes, tinham sido
realistas em relação a estes últimos e arriscado um dólar, no máximo, mas
tinham-se deixado levar por algumas das histórias de má sorte e compreendido
depois de terem entrado com o dinheiro que tinham sido enganados.
Aquele era o quarto hotel onde ficavam, mudando sempre para outro
mais barato até chegarem àquela pocilga infestada de pulgas em Division
Street. Mas apesar de o quarto ser minúsculo, sujo, triste e frio, sabiam que era
um palácio em comparação com a maior parte das acomodações oferecidas a
imigrantes com pouco dinheiro.
A menos, porém, que conseguissem arranjar trabalho em breve, nem
sequer ali poderiam continuar.
Sam podia não saber para onde mais se voltar, mas Beth sabia, e sabia
que o irmão não ia gostar.
– Podíamos voltar-nos para o Jack – disse em voz baixa, a preparar-se
para a fúria dele. – Ainda hoje o vi.
– O quê? – exclamou Sam, a expressão a tornar-se sombria.
Beth encolheu os ombros.
– Sei que não aprovas porque ele gosta de mim, mas podia ajudar-nos.
Já tem trabalho, conhece pessoas aqui, e com ele do nosso lado não
continuaremos a ser roubados.
– Não precisamos da ajuda de pessoas como ele – respondeu Sam,
secamente.
– Estás à espera que alguém da Fifth Avenue venha ajudar-nos,
suponho? – disse Beth, sarcástica. – Ou que o Waldorf mande alguém
suplicar-te que sejas o novo barman.
– Não sejas ridícula – rosnou ele. – Sabes muito bem quantos trabalhos
tenho procurado.
– Sim, mas todos eles fora da tua esfera – replicou ela, sem rodeios.
Sam tinha sonhos tão grandiosos que andara a procurar trabalhos muito
além da sua limitada experiência. Tinha apenas dezoito anos e a única coisa
que fizera fora remendar sapatos, lançar facturas num livro de contabilidade e
servir bebidas. Mas metera-se-lhe na cabeça que ali na América poderia saltar
para um lugar de topo pelo simples facto de ser inglês.
– Não sejas snob em relação ao Jack – continuou Beth,
reprovadoramente. – Pode ser um pouco rude e despachado, mas é bom rapaz
e é esperto. Nós não somos; todos nos enganam porque não sabemos nada de
nada. A única maneira de nos safarmos neste país é darmo-nos com as pessoas
vulgares, conhecermos os cordelinhos e arranjarmos maneira de trepar por
eles.
– Não fomos criados para viver em barracas – teimou ele, sombrio. –
Com certeza não esqueceste aquele lugar?
Beth não tinha esquecido. Ainda estremecia sempre que pensava na área
aonde tinham acidentalmente ido parar na primeira noite.
Alguém explicara a Sam como chegar a Broadway e a um hotel
razoavelmente barato, mas deviam ter-se enganado, no escuro, e tinham dado
por si numa área miserável conhecida, sabiam-no agora, como Five Points,
assim chamada por ser o ponto de confluência de cinco ruas, incluindo a Park
e a Worth. Era mil vezes pior do que qualquer bairro degradado de Liverpool,
uma autêntica coelheira mal iluminada de estreitos becos ladeados de casas
meio derruídas. Crianças sujas, esfarrapadas e descalças amontoavam-se nos
umbrais, velhos de costas encurvadas reuniam-se à volta de fogueiras em lotes
de terreno abandonados e mulheres de ar desmazelado gritavam-lhes insultos
quando eles passavam. Os blocos de apartamentos com cinco andares, que se
erguiam no meio das casas mais antigas como sombrias fortalezas, pareciam
albergar milhares de pessoas, a julgar pela cacofonia de barulhos que vinha
deles.
Entretanto, eram quase dez da noite, o fedor era como caminhar por um
esgoto a céu aberto e toda a gente parecia embriagada ou louca. Tinham sido
ameaçadoramente abordados várias vezes com pedidos de dinheiro, e cães de
aspecto selvagem tinham-lhes rosnado e ladrado. Tinham verdadeiramente
temido pela vida.
No dia seguinte, na segurança temporária de um hotel limpo e
confortável, tinham sido informados de que, vinte anos antes, Five Points era
considerado o pior bairro degradado de todo o mundo.
Mesmo agora, com os melhoramentos que sofrera, era o último refúgio
dos desesperados, tanto pobres como criminosos. Havia quartos ocupados por
dezasseis pessoas, bandos de crianças viviam em plena rua e quase não se
passava uma noite sem que alguém fosse assassinado.
Desde então, tinham explorado Nova Iorque, e, apesar de haver muitas
outras áreas onde os imigrantes viviam em prédios degradados e muitas vezes
horrorosamente sobrelotados, não tinham voltado a encontrar nada que se
parecesse com Five Points.
Havia as mansões da Fifth Avenue, belas e tranquilas pracetas rodeadas
de elegantes casas, lojas cheias de artigos que nunca tinham visto. Central
Park era vasto e magnífico, e alguns edifícios eram tão grandes e majestosos
que ficavam parados a olhar para eles. Tinham-se maravilhado com a
via-férrea superior por onde o comboio passava por cima das cabeças das
pessoas, e com os novos e espantosamente altos edifícios chamados
arranha-céus.
O volume de tráfego – carroças, fiacres, carruagens e autocarros – era
estonteante, tal como o número de restaurantes, casas de ostras e cafés. Era
uma cidade excitante, barulhenta, vibrante, e a enorme mistura de diferentes
nacionalidades, cada uma com a sua língua, criava um maravilhoso e
fascinante circo de delícias.
Beth sentia que se conseguissem arranjar trabalho e um lugar decente
para viver, poderia de certeza ser muito feliz ali.
– Não estava a sugerir que fôssemos viver para Five Points – disse,
indignada, porque começava a ficar farta de o irmão ver o pior de tudo. – Tens
de parar de comparar tudo o que vês com a Inglaterra, Sam. Tivemos muita
sorte por os Langworthy nos terem oferecido um tecto depois do incêndio.
Mas esse género de sorte é raro. Por vezes penso que teria sido melhor para
nós se tivéssemos tido de viver como a maior parte das outras pessoas; pelo
menos, não nos deixaríamos agora enganar com tanta facilidade. E se tu não
tivesses fugido da terceira classe todos os dias durante a viagem, talvez
tivesses aprendido alguma coisa a respeito das pessoas vulgares.
Ele estremeceu, e Beth suspirou para dentro. Só nas últimas semanas
descobrira que o irmão tinha insuficiências, e não estava muito segura de que
conseguisse ultrapassá-las.
Não que fosse exactamente um snob: não olhava para as pessoas do
alto. Só estava convencido de que lhe eram devidas as melhores coisas da vida
e não considerava sequer a possibilidade de fazer qualquer espécie de trabalho
manual. Estava fascinado pela riqueza e pelas pessoas que a possuíam, e como
o seu encanto lhe permitira tão facilmente aceder à segunda classe durante a
viagem e os abastados clientes do Adelphi pareciam gostar dele, não
compreendia por que razão o truque não estava a resultar ali.
Beth, pelo contrário, sabia. Os nova-iorquinos eram, de um modo geral,
barulhentos e agressivos.
Os trunfos de Sam eram o seu bom aspecto, a sua voz suave, o brilho
dos seus olhos azuis e o facto de ser muito, muito inglês. Seria perfeitamente
suficiente se já fosse rico e vivesse na Fifth Avenue, mas sendo um homem
em busca de trabalho, precisava de projectar uma imagem de força e
capacidade.
Jack trabalhava num matadouro, no East Side. Dizia que era o trabalho
mais duro que alguma vez fizera, um trabalho repugnante, horrível, mas o
salário era bom e fizera muitos amigos. Oferecera-se para conseguir um lugar
a Sam, mas Beth sabia que o irmão preferiria morrer de fome a trabalhar ali.
Gostara muito de voltar a ver Jack naquela tarde. Tinham combinado, à
chegada a Nova Iorque, encontrarem-se um mês depois, às cinco e meia da
tarde, em Castle Green, que ficava perto do cais onde tinham desembarcado.
Beth não estava verdadeiramente à espera de que Jack aparecesse: um
mês inteiro numa nova cidade era o suficiente para qualquer um esquecer
promessas feitas à pressa. Mas lá estava ele, muito elegante com um casaco
aos quadrados, calças impecavelmente engomadas e botas bem engraxadas.
Dissera-lhe que tinha conseguido sair um par de horas mais cedo dizendo ao
chefe que ia esperar um parente que chegava de Inglaterra.
Tivera a franqueza de dizer que vivia num quarto alugado, que
partilhava com mais seis pessoas, mas fizera notar que já em Liverpool vivera
em condições semelhantes. Admitira, com uma gargalhada, que comprara o
casaco e as calças numa loja de roupa em segunda mão e que, com palavras
doces, convencera uma rapariga que trabalhava numa lavandaria a
engomar-lhos. Mas por mais horrível que o seu trabalho parecesse, era
evidente que se lançara na sua nova vida. Parecia mais saudável e mais
musculoso do que no navio, e muito mais confiante.
Beth deixara-o a sentir-se bem mais esperançada, não só por terem
combinado voltarem a encontrar-se alguns dias mais tarde, mas porque ele
fizera algumas sugestões a respeito de como ela e Sam podiam começar a
caminhar pelo próprio pé.
*
– Ouve, Sam – disse Beth, num tom firme. – Porque é que não procuras
um lugar de barman na Bowery? O que lá não falta é trabalho.
Ele abriu muito os olhos, assustado.
– Não era capaz de trabalhar numa daquelas casas.
– Quase todos os bares de Nova Iorque são um pouco duros – continuou
ela, paciente. Nunca entrara em nenhum, fora Jack que lhe dissera aquilo. –
Precisas de experiência antes que alguém te dê trabalho num hotel ou num
clube particular. E eu tive uma ideia. Se trabalhasses num como barman, eu
podia ir lá tocar violino.
Sam olhou para ela, horrorizado.
– Na Bowery! Com todos aqueles…
– Sim, com todos aqueles homens rudes – interrompeu-o ela. – Não
poderia fazê-lo sem ter alguém que olhasse por mim, mas sei que aqueles
homens gostariam de ouvir-me tocar. Além disso, alguns dos que vão lá beber
têm bares na zona alta da cidade. Far-nos-íamos notar. Nem todos os donos de
bares podem ter um rapaz elegante como tu atrás do balcão com uma irmã que
põe os pés de toda a gente a bater o compasso. Seríamos uma fonte de
dinheiro para eles.
As palavras eram de Jack, mas Beth não ia dizê-lo ao irmão, porque
sabia que ele recusaria imediatamente a ideia.
– Queres mesmo tocar num daqueles buracos? – perguntou Sam,
incrédulo.
– Porque não? É um lugar tão bom para praticar como qualquer outro,
melhor do que um sítio fino onde um espertalhão qualquer havia de reparar se
eu desse uma fífia – respondeu ela, num tom de desafio. – Sabes muito bem
que já visitei praticamente todos os hotéis respeitáveis a perguntar se
precisavam de uma pianista. Os gerentes olham para mim e apontam-me a
porta sem sequer me convidarem a mostrar o que sou capaz de fazer. Fui a
lojas, restaurantes, casas de ostras, e ninguém me dá sequer um lugar a lavar
pratos. Além disso, prefiro tocar violino. Se conseguisse fazer nome na
Bowery, podia ser tudo diferente.
– Iam pensar que és alguma prostituta – disse Sam, reprovadoramente. –
E eu não poderia proteger-te, estando atrás de um balcão.
– Bastaria os homens saberem que és meu irmão – insistiu ela, porque
era nisso que Jack acreditava. Também dissera que estaria por lá, com alguns
dos seus amigos. – Não correria perigo nenhum… qualquer homem ia ter
dificuldade em fazer-me coisas impróprias estando eu a tocar violino.
Sam não disse nada, mas Beth sentiu que estava a ceder, quanto mais
não fosse por pensar que a actuação dela poderia reforçar a sua própria
imagem.
– Vamos tentar – incitou ela. – Disseram-me que o Heaney’s é um dos
melhores bares e que precisam de um barman. O que é que temos a perder?
Experimentamos uma noite, vemos como correm as coisas, e, se detestares,
não voltamos lá.
Jack dissera que Sam seria um íman para todas as bailarinas da área e
que achava que ele em breve ficaria convencido quando passasse a ser o
centro das atenções. Beth não ficara particularmente feliz com a ideia de ver
raparigas daquelas à volta do irmão, mas depois pensara que estaria lá, para o
vigiar.
– Está bem – disse Sam, azedamente. – Mas a culpa será tua se
acontecer alguma coisa horrível.
– O que é que pode ser mais horrível do que estar a morrer de fome e
sem casa? – respondeu ela, duramente. – Que é o que nos vai acontecer
quando o dinheiro se acabar.
Às oito horas da noite seguinte, apesar das suas corajosas palavras, Beth
estava cheia de medo.
Ao meio-dia, ela e Sam tinham ido ao Heaney’s e pedido a Pat
«Scarface» Heaney, o proprietário, que lhes desse trabalho. Heaney era um
homem baixo mas extremamente musculoso, na casa dos quarenta, e os
poucos cabelos que lhe restavam eram ruivos. Usava um colete berrantemente
verde que, apesar de impressionante, não roubava efeito à formidável cicatriz
de uma navalhada que lhe sulcava o rosto desde o olho direito até ao queixo.
Jack contara a Beth que lha tinham feito quando ainda era novo e estava
encarcerado na Tombs, a grande prisão construída para resolver o problema de
Five Points, onde fora líder de um gangue.
A Bowery era uma rua de diversão ao longo da qual se alinhavam, de
ambos os lados, bares, salas de música e de dança, teatros, cervejarias alemãs
e restaurantes. À noite, os passeios enchiam-se de bancas que vendiam de
tudo, desde cachorros-quentes a frutas e doces. Havia também os chamados
«museus», embora na realidade fossem espectáculos de feira onde, por alguns
cêntimos, se podia ver a Mulher Barbuda, anões, macacos amestrados e outras
curiosidades. As prostitutas misturavam-se com a multidão e, inevitavelmente,
havia também carteiristas. Mas, no seu todo, era a zona de lazer da classe
operária.
Jack dissera que a clientela do Heaney’s era comparável à das grandes e
barulhentas cervejarias que ficavam perto de Lime Street Station, em
Liverpool – cocheiros de fiacres, carpinteiros e maquinistas. Observara
também que o Heaney’s era um dos bares mais elegantes da Bowery, com o
seu balcão de mogno envernizado, os grandes espelhos que lhe ficavam por
trás, montes de aplicações de latão e serradura limpa no chão.
Sam parecera aliviado quando o vira, pois os homens que bebiam ao
balcão eram pessoas vulgares, não os arruaceiros ou degenerados de que
estava à espera.
Pat Heaney gostara claramente do aspecto de Sam à primeira vista, e
depois de lhe ter feito meia dúzia de perguntas, dissera-lhe que fosse para trás
do balcão servir os clientes enquanto falava com Beth.
– Vou ser franco consigo – dissera Heaney, despejando um grande copo
de whisky enquanto mantinha um olho em Sam. – As raparigas, sobretudo as
bonitas, são sempre causa de sarilhos num bar. Mas gosto da ideia de uma
violinista, e mostra ter coragem ao vir aqui pedir para tocar quando ainda mal
acaba de sair do barco.
Beth mentira ao afirmar que já tocava em público em Liverpool, mas
ele agitara a mão num gesto que dizia que não queria saber do que ela tinha
feito antes, só lhe interessava o que era capaz de fazer no seu bar.
– Vou dar-lhe uma oportunidade – dissera. – Esta noite, às oito. Se
gostarem de si, fica contratada; se não, finis, está fora. Um dos rapazes fará a
colecta para si, e eu fico com metade.
Beth pensara que as vantagens estavam todas do lado dele. Não perderia
nada, mesmo que ela tocasse mal.
Heaney era um homem intimidante, não apenas por causa da cicatriz,
nem dos músculos que se notavam por baixo da fina camisa, mas também
devido aos seus modos bruscos e à maneira como olhava para ela. Não havia
luz naqueles olhos castanho-pálidos, apenas frio cálculo. Perguntara-lhe
porque tinham decidido emigrar para a América, e quando ela dissera que os
pais tinham morrido e que queriam começar de novo não fizera qualquer
comentário, nem sequer uma palavra de condolências.
O instinto dizia-lhe que aquele homem não tinha um lado caridoso e que
ela e Sam iam ter de ser muito cuidadosos na maneira como lidavam com ele.
Jack recomendara que tentassem aquele bar primeiro porque Heaney se
considerava a si mesmo «o homem» na Bowery: gostava de ser o primeiro a
ter qualquer coisa diferente, e uma violinista era sem dúvida diferente. Mas
também a avisara de que tinha a reputação de ser um homem perigoso.
– Durante quanto tempo quer que toque? – perguntara Beth,
cautelosamente.
Heaney desviara os olhos de Sam durante um ou dois minutos para
olhar friamente para ela.
– Depende de eles gostarem ou não de si – dissera. – Se eu agitar as
mãos depois das três primeiras músicas, vai-se embora. Se não, toca durante
uma hora. Depois eu digo-lhe o que fazer a seguir.
Certo?
Beth assentira, nervosa.
– Tem qualquer coisa mais colorida para vestir do que isso? –
perguntara ele secamente, olhando com desdém para o comprido casaco
castanho. – Não vão gostar de si se parecer uma professora.
Beth engolira em seco. Tinha muito poucas roupas, e todas elas eram
em tons escuros.
– Vou tentar arranjar qualquer coisa – dissera.
Ele pusera-se de pé e olhara do alto para ela.
– Pode ir. Volte às oito em ponto. O seu irmão fica.
Ela hesitara junto à porta, a olhar para Sam. Estava a limpar um copo,
enquanto Heaney falava com ele. Sam olhara para ela quando o homem se
afastara e fizera-lhe um alegre sinal de «tudo bem» com os polegares
apontados para cima. Mas Beth notara-lhe no rosto um lampejo de ansiedade,
que atribuíra à preocupação por não poder escoltá-la até ao bar naquela noite.
– Eu fico bem – dissera ela, formando as palavras com os lábios
retribuindo-lhe o sinal com os polegares.
Nessa tarde, praticara com o violino durante um par de horas e fizera
uma lista das músicas que conhecia melhor, para não ficar sem ideias a meio
da actuação. Estava muito nervosa, pois havia uma enorme diferença entre
tocar quando lhe apetecia e tocar diante de uma sala cheia de desconhecidos.
Mais tarde, lavara o cabelo e passara em revista o parco guarda-roupa
enquanto o deixava secar.
Calculava que Heaney esperava que usasse qualquer coisa vistosa, mas
não tinha nada nesse género.
O seu vestido mais colorido era um que Mrs. Langworthy lhe dera
pouco antes da partida; dissera-lhe, na altura, que poderia ser útil se fosse
convidada para uma festa ou um baile. Era ligeiramente brilhante, com riscas
verdes e brancas, um decote bastante cavado, mangas tufadas e uma pequena
crinolina. Estava morta por vesti-lo, por ser tão bonito, apesar de não lhe
agradar muito a ideia de usá-lo num bar cheio de homens. Mas pensou que se
cosesse um pedaço de renda no decote, ficaria pelo menos mais decente.
Às sete e meia estava pronta, o espartilho bem apertado, o cabelo solto
caído sobre os ombros e enfeitado com um par de fitas verdes, as botas
engraxadas. Não conseguira abotoar o vestido nas costas e tivera de ir pedir à
mulher que ocupava o quarto por baixo do deles que a ajudasse. Mas estava
satisfeita com o resultado final: não parecia uma mulher de hábitos devassos,
mas também não parecia uma professora. A combinação de nervosismo e
excitação pusera-lhe nas faces um brilho rosado, e o cabelo cintilava.
Pegara no estojo do violino, fechara a porta do quarto e saíra.
Pat Heaney, encostado ao umbral da porta da sala que reservava para o
jogo privado, via a rapariga tocar, um sorriso a repuxar-lhe os cantos dos
lábios.
Não esperara grande coisa. A suave voz inglesa, a pureza da pele e a
inocência dos olhos, tudo o fizera pensar que tocaria como uma dessas
ressequidas solteironas numa sala de estar. Como se enganara!
A primeira surpresa, quando ela chegara às oito em ponto, fora como
ficava de cabelo solto. Uma beldade de cortar a respiração, com refulgentes
cabelos negros caídos sobre os ombros, completamente diferente do ar
recatado e austero com que se apresentara de manhã, com o cabelo escondido
debaixo do pequeno chapéu de preceptora. Também gostava do vestido, cheio
de classe, embora a vontade dele fosse arrancar aquele pedaço de renda para
poder ver o que ficava por baixo.
A rapariga estava tão cheia de medo, quando chegara, que julgara que ia
fugir. E o irmão também não ajudara, a procurá-la constantemente com os
olhos enquanto ela esperava o momento de actuar.
Seriam verdadeiramente irmãos? Não eram nada parecidos, tirando o
sotaque inglês.
Mas então anunciara-a, e em vez de ir-se abaixo, como ele estava meio
à espera que acontecesse, ela quase saltara para o palco. Vira-a aguardar um
instante com o arco no ar, apenas o suficiente para que todos os homens
presentes na sala se voltassem para olhar. E então começara a tocar, uma
cascata de notas tão doces e rápidas que mal queria acreditar no que estava a
ouvir.
Talvez até já tivesse ouvido melhores violinistas, mas nunca niguém tão
bonita como ela. Não tocava apenas com os braços e as mãos, mas com todo o
corpo, ondulando ao ritmo da música, melhor do que qualquer das lascivas
raparigas que via no burlesco.
Ia agora no seu terceiro número, e açambarcava todas as atenções.
Conversas esquecidas, bebidas que ficavam a meio caminho das bocas abertas,
pés a bater no chão, cabeças a abanar, todos aqueles homens como que em
transe.
A rapariga quase dançava enquanto tocava, dobrava-se, balouçava,
mexia as ancas de uma maneira que lhe enviava mensagens directamente para
as virilhas. Gostava do modo como ela sacudia o cabelo da cara, do modo
como pequenas madeixas ficavam agarradas ao suor do rosto. Era o suficiente
para fazer qualquer homem correr para ela e afastá-las com a mão.
Gostar tanto de uma coisa era algo a que Pat não estava habituado.
Saber que tinha uma mão ganhadora num jogo de póquer, sentar-se diante de
um grande e suculento bife, o primeiro whisky do dia… eram quase as únicas
coisas que podia verdadeiramente afirmar que gostava. Já nem se lembrava de
quando fora a última vez que ouvira música, que ouvira a sério; calculou que
teria sido quando tinha mais ou menos a idade dela.
Dezoito anos. Tinha o diabo no corpo, nesse tempo, sempre a querer
provar alguma coisa, todos os nervos a vibrarem de vida. Quando não estava a
lutar estava a fazer amor, e nunca conseguira descobrir de qual das duas coisas
gostava mais. E havia fartura de ambas em Five Points.
Continuava a conseguir arranjar uma mulher sempre que quisesse, e
uma luta também. Mas estava a ficar demasiado velho para lutas, e as
mulheres eram todas pegas. No entanto, ouvir aquela rapariga tocar fazia-o
sentir o sangue correr-lhe novamente nas veias, fazia-o sentir que era capaz de
deitar abaixo qualquer um daqueles rapazolas que se pavoneavam pela rua.
Que podia levar uma mulher para a cama e manter uma erecção a noite inteira.
Ia ser o rei da capoeira, naquela noite. Todos os homens que ali estavam
iam querer dar-lhe uma palmada nas costas e pagar-lhe uma bebida por tê-la
contratado. Estavam hipnotizados; a rapariga embrulhara-os na sua música
como uma aranha embrulha uma mosca na sua teia. E iam voltar, à espera de
mais, noite após noite.
Olhou para o irmão dela. Também ele fora um achado, bem-parecido
àquela maneira inglesa, aristocrática. Tinha modos finos, a roçar o
sobranceiro, mas com um sorriso desarmante, e servia as bebidas depressa e
com estilo. Sabia, sentia nos ossos, que o rapaz era honesto, ainda por cima, e
isso era mais raro do que um cavalo que não cagasse.
Mas não tardaria muito antes que alguém tentasse sacar-lhe os dois.
Estava a ver Fingers Malone sentado ao fundo do balcão; aquele cerebrozinho
tortuoso já estava provavelmente a gizar planos para os levar para o bar finaço
do irmão, na Broadway.
Por isso sabia que tinha de arranjar uma maneira de lhes conservar a
lealdade.
CAPÍTULO 13
– Tanto? – disse Beth surpreendida quando Heaney lhe entregou metade
da colecta. Tudo moedas pequenas, cinco e dez cêntimos, mas um grande
monte.
– Oito dólares e quarenta e cinco cêntimos – disse Heaney. – Quer que
troque por notas?
Beth assentiu, demasiado espantada para falar. Tocara durante três
horas, com um intervalo de hora a hora. Era quase uma da manhã e estava
exausta.
– Não fique à espera de ganhar o mesmo todas as noites – disse Heaney,
secamente. – Hoje era novidade, e é sábado. Na segunda-feira pode ser só
moedas de cinco cêntimos, mas gosto de si, de modo que lhe prometo que
nunca sairá daqui com menos de dois dólares.
– Quer que eu volte na segunda-feira?
– Nem mais. Segundas, sextas e sábados. Talvez arranje mais alguns
músicos para o fim-de-semana.
– Nesse caso, como é que vai ser feita a divisão? – perguntou Beth, com
receio de receber uma percentagem mais pequena.
Ele lançou-lhe um olhar avaliador, talvez surpreendido por ela ter
ousado perguntar.
– Deixe isso comigo – respondeu. – Mas, como lhe disse, eu trato de si.
Agora pode ir, e o seu irmão também. Não quero uma coisinha tão bonita a
andar por aí sozinha à noite.
– É um homem estranho – disse Sam, pensativamente, enquanto
regressavam ao hotel de braço dado. A Bowery continuava tão animada como
ao princípio da noite; os bêbedos caminhavam aos tombos pelos passeios, a
ziguezaguear por entre os mais sóbrios, falhando por pouco as bancas de
comida. Música e gargalhadas saíam das portas dos bares como lufadas de
vento, à mistura com o bater de pés a dançar algures e saudações gritadas de
um grupo de pessoas para outro do lado oposto da rua. O ar estava carregado
de cheiros, a cebola frita das bancas de cachorros-quentes a competir com a
cerveja, o tabaco, o perfume barato e o suor, os excrementos dos cavalos dos
fiacres. – Mal me dirigiu a palavra todo o dia. Fiquei sem saber se estava ou
não a gostar do meu trabalho. Depois enfiou-me uma nota de cinco dólares na
mão e disseme que voltasse na segunda-feira. Quererá dizer que tenho
emprego enquanto o quiser? E quanto me vai pagar por semana?
– Acho que é um sujeito duvidoso, de modo que vais ter de falar com
ele e perguntar-lhe essas coisas – respondeu Beth, não menos pensativa. – Sei
que o público gostou de mim, mas ele não me disse nada.
– É porque quer ficar por cima. Claro que gostou de ti… estive a
observá-lo enquanto tocavas. Só espero que não comece a ter ideias a respeito
de seres a mulher dele.
– Claro que não! É demasiado velho – exclamou Beth.
Sam riu.
– A maior parte dos homens que estavam a ver-te pensava o mesmo.
Vi-lhes na cara. Acho que vou ter de ter cuidado com a minha irmãzinha.
– Quem diria? – disse Beth sonhadoramente, quando metiam por uma
rua lateral para chegar a Division Street. – Há um ano estávamos doidos de
preocupação por não termos dinheiro, e agora aqui estamos nós, na América.
– Ainda preocupados por não termos dinheiro. – Sam voltou a rir. – E a
trabalhar num bar. O papá deve estar a dar voltas no túmulo.
– Penso que estaria orgulhoso por sermos tão corajosos – disse Beth,
indignada. – Além disso, o bar é só o primeiro passo. Havemos de arranjar
maneira de fazer fortuna.
As fortunas, como Beth descobriu, não eram assim tão fáceis de fazer.
Em Outubro, seis meses depois de terem chegado a Nova Iorque, continuava a
tocar três noites por semana no Heaney’s, e durante o dia trabalhava numa loja
de roupa em segunda mão, na Bowery. Numa boa semana, chegava a ganhar
trinta dólares, mas as boas semanas eram raras; normalmente, ficava à volta
dos dezoito dólares. Mesmo isto, como veio a descobrir, era muito mais do
que a maior parte das mulheres conseguia ganhar. As solteiras eram quase
todas empregadas de limpeza, caixeiras ou criadas, mal pagas e obrigadas a
trabalhar longas horas.
Para as casadas e com filhos, não havia alternativa senão trabalhar em
casa, para pessoas que exploravam o seu desespero, para ganhar algum
dinheiro. Algumas trabalhavam à peça para fabricantes de roupas, catorze
horas seguidas em salas mal iluminadas e sobrelotadas. Outras faziam caixas
de fósforos, e todos os membros da família ajudavam. Estas mulheres tinham
sorte se conseguiam ganhar um dólar por dia, e a maioria ganhava metade
disso.
Beth não procurara um segundo emprego por precisar de dinheiro, mas
porque se sentia demasiado deprimida todo o dia sozinha em casa sem nada
que fazer. Entrara um dia na loja de roupa em segunda mão, que ficava perto
do Heaney’s, para ver se encontrava um novo vestido. A proprietária, uma
velhota judia chamada Ira Roebling, mostrara-se muito simpática e
conversadora, e quando Beth voltara a sair da loja, com um vestido de cetim
vermelho embrulhado em papel, tinha contado a Ira uma versão resumida da
sua história, ouvira um pouco da dela e arranjara emprego.
Ira viera da Alemanha nos anos 1850, com o marido e os pais dele.
Tinham fundado uma pastelaria e, durante anos, a sorte sorrira-lhes. Então, de
um momento para o outro, os sogros tinham morrido de velhice, o marido fora
levado por uma epidemia de gripe e, sem ele, Ira não pudera manter a loja.
Voltara-se para a venda de roupa em segunda mão porque adorava
roupas e conhecia muita gente disposta a vender-lhe peças já usadas mas em
bom estado. Com o constante fluxo de novos imigrantes, havia sempre
pessoas à procura de roupa barata, e outras tantas a querer vender a que
tinham.
Ira era uma velhota astuta, e não faltava quem a considerasse avara.
Pagava o menos possível pelas roupas que comprava e cobrava o mais que
podia pelas que vendia. Beth calculava que teria mais de sessenta anos, mas
era difícil dizer, sendo uma mulher magra, forte e muito enérgica. Vestia
sempre de preto, incluindo um pequeno chapéu de feltro que nunca tirava nem
sequer quando estava calor.
Mas, por mais excêntrica que fosse, era divertida e perspicaz. Beth já a
tinha visto passar os olhos pequenos e redondos como botões por uma coluna
de números e somá-los num instante, e nunca se esquecia de nada, fosse o
nome de um cliente ou uma peça de roupa que tivesse na loja. O número de
pessoas que apareciam durante o dia só para trocar dois dedos de conversa
testemunhava a estima em que era tida na vizinhança.
Era ela que se ocupava da maior parte das vendas, enquanto Beth
separava as roupas por tamanhos, fazia um ou outro arranjo e mantinha a loja
arrumada. O que não era pouco, considerando que estava a abarrotar de artigos
do chão ao tecto. Havia grandes caixas de sapatos, todos misturados, e uma
das primeiras coisas que Beth fez foi juntá-los por pares e separá-los por cores
e tamanhos. Muitas vezes, também experimentava roupas, uma coisa que Ira
encorajava, porque, como fazia notar, não podiam vender coisas se não
soubessem como eram.
Ira vivia por cima da loja, em três divisões igualmente caóticas. Durante
o Verão, quando ficava insuportavelmente quente, Beth interrogava-se como
ela não desmaiava por falta de ar, pois nunca abria as janelas com medo de
que algum ladrão entrasse por uma delas e a roubasse. Mas embora Ira fosse
sovina de muitas maneiras – nunca deitava nada fora e regateava os preços
com os clientes até ao último cêntimo – dava sempre a Beth qualquer coisa
para comer ao meio-dia. Por vezes, era uma deliciosa canja de galinha que ela
própria fazia, mas mais frequentemente sanduíches de carne salgada quente,
que comprava numa charcutaria judaica um pouco mais abaixo na rua, e fruta
fresca.
Achava Beth demasiado magra e dizia que nenhum homem ia querê-la
para esposa enquanto não pusesse alguma carne em cima daqueles ossos.
Beth ria ao ouvir isto, pois encontrava-se com Jack pelo menos duas
vezes por semana e sabia que ele a achava perfeita tal como era. Também ela
gostava dele, do seu sentido de humor, da sua fiabilidade e das suas atenções
constantes, e pensava que se uma rapariga passasse tanto tempo com um
rapaz, em Inglaterra, isso seria considerado quase um noivado.
Mas tinha relutância em encorajá-lo a ir além da amizade.
Ira achava que era uma atitude sensata, não por reprovar a pessoa de
Jack – na realidade, até gostava bastante dele – mas por lhe parecer que Beth
era demasiado nova para se comprometer seriamente fosse com o que fosse.
– Há por aí tantas centenas de rapazes jeitosos – dizia, com um brilho
malicioso nos olhos. – Goza a tua juventude, olha que não vai durar muito
tempo.
O que reprovava sem reservas era o facto de Beth tocar no Heaney’s.
«Aquele homem é podre até ao tutano», dizia enfaticamente. «Não deves
nunca ficar sozinha com ele, e diz ao teu irmão que não aceite favores desse
sujeito, porque quando chegar a hora de ele os cobrar o Sam vai ver-se metido
em grandes sarilhos.»
Beth tinha sempre o cuidado de manter as distâncias em relação a
Heaney, porque o homem causava-lhe arrepios. Sentia os olhos dele pousados
nela sempre que estava a tocar, a olhá-la como se estivesse a despi-la
mentalmente. Mas embora desejasse muito largar o bar e ir trabalhar para
alguém de quem gostasse e com quem se sentisse à vontade, sabia que ele a
faria arrepender-se.
Tudo indicava que Pat Heaney levava muito a peito qualquer
desconsideração. Corriam rumores de que matara vários homens e deixara
estropiados muitos mais, só por terem falado dele nas suas costas ou
desobedecido às suas ordens.
Não tinha verdadeiros amigos, apenas lacaios que o suportavam porque
tinham medo de fazer outra coisa. Segundo Jack, controlava dúzias de
prostitutas, ficando com pelo menos metade do que elas ganhavam. Era
proprietário de dois dos mais degradados pardieiros da zona de Canal Street e
cobrava preços tão exorbitantes que os seus inquilinos se viam obrigados a
subalugar uma e outra vez para conseguirem pagar-lhe. Estava envolvido em
vários outros negócios lucrativos, como as casas de ópio, as lutas de cães e os
combates de boxe sem luvas. Mesmo que só metade das histórias a respeito
das vinganças que exercera contra pessoas que tinham incorrido na sua ira
fosse verdadeira, continuaria a ser um homem excepcionalmente perigoso.
Beth tinha a certeza de que se fosse trabalhar para qualquer outro sítio em
Nova Iorque acabaria por acontecer-lhe um «acidente».
Nunca ele a deixaria ter êxito fosse onde fosse excepto no seu bar.
Sam achava que ela estava a deixar-se levar pela imaginação. Não só
não acreditava que o homem fosse perigoso, como se considerava o seu braço
direito, porque ele o deixava gerir o bar sem interferências.
Beth bem via o porquê desta atitude. Heaney podia ser desprezível, mas
não era parvo. Sabia que Sam era honesto e competente, além de constituir
uma tão grande atracção para as coristas dos teatros das redondezas como ela
própria era para os clientes do sexo masculino. Espreitava muitas vezes pela
porta entreaberta durante o período de descanso antes da última actuação, e
havia sempre três ou quatro daquelas raparigas a borboletear à volta do irmão.
E, claro, Sam adorava a atenção.
Mas a verdade era que sabia que também ela era culpada de gostar da
atenção que recebia. Não havia nada mais excitante do que ter um público
completamente subjugado, saber que era desejada pela maior parte dos
homens que a aplaudiam com tanto entusiasmo. Era bom vestir um vestido
bonito, e saber que podia dar-se ao luxo de comprar outro sempre que
quisesse. Estava a fazer algo com que a maior parte das mulheres só podia
sonhar.
Pouco depois de terem começado a trabalhar no Heaney’s, ela e Sam
tinham arranjado um quarto no último andar de um prédio em Houston Street,
partilhando a cozinha com o casal italiano que ocupava o outro quarto do
apartamento. Para quase toda a gente que conheciam, um quarto só para dois
era um luxo, e apesar de Beth se queixar frequentemente por nunca haver paz
e sossego no prédio de cinco andares, com quatro apartamentos por andar e
uma média de oito a dez pessoas em cada apartamento, agradecia à sorte por
só ter de aturar o barulho e não um quarto cheio de gente.
O quarto não era grande coisa, com o seu velho papel de parede coberto
de manchas, quente como um forno durante o Verão, mas Beth tornara-o
acolhedor. Pedira cartazes de teatro para tapar as manchas das paredes,
encontrara peças de mobília sortidas nas muitas casas de artigos em segunda
mão da vizinhança, e Ira deixara-a fazer umas cortinas na máquina de coser e
dera-lhe uma velha colcha para pendurar entre as duas camas e permitir aos
dois um pouco de privacidade.
Houston Street ficava numa zona pobre, com estendais para secar roupa
em frente de todas as janelas, crianças sujas e esfarrapadas a brincar na rua,
uma taberna na esquina, e Beth via muitas vezes mulheres transportarem à
cabeça as grandes trouxas de roupa que tinham remendado em casa.
Mas era um bairro alegre e animado. Nas noites quentes, as pessoas
sentavam-se nos degraus dos portais e conversavam, as mulheres tomavam
conta dos filhos umas das outras e ajudavam os imigrantes italianos e alemães
a aprender inglês. Todos aqueles com quem falava estavam felizes por terem
ido para a América e acreditavam que, trabalhando duro, conseguiriam
alcançar os seus objectivos.
A pior coisa do prédio era o facto de haver apenas duas latrinas, nas
traseiras, para todos os inquilinos, lugares malcheirosos e horríveis que faziam
Beth estremecer e tapar o nariz quando tinha de lá entrar. Mas Sam despejava
os bacios todas as manhãs, antes de ir para o trabalho, e o quarto deles dava
para a rua, de modo que o fedor das latrinas não entrava pelas janelas. Além
disso, o apartamento ficava tão alto que não eram incomodados por ratazanas,
como acontecia a muitos dos inquilinos do primeiro e segundo andares.
Nos dias em que se sentia irritada pelo barulho e pelos cheiros a
cozinhados que enchiam o prédio, ou sonhava acordada com o luxo de ter uma
verdadeira casa de banho com água quente e fria a sair das torneiras, como a
de Falkner Square, recordava a si mesma que essas coisas não eram
verdadeiramente importantes, e como a sua vida melhorara desde que chegara
à América.
Em Inglaterra, onde as raparigas não tinham nenhuma das liberdades de
que ali gozavam, seria impensável ela tocar violino num bar. Ali, podia
encontrar-se com Jack por uma ou duas horas ao fim da tarde, ou no dia da
folga dele, sem que ninguém erguesse sequer uma sobrancelha. Tinha mais
dinheiro do que alguma vez poderia ter sonhado em Inglaterra, e ninguém
sabia, nem queria saber, como fora que o pai morrera. E, depois, havia a
imensa quantidade de comidas disponível.
Raramente cozinhava, pois era quase tão barato comprar qualquer coisa
já feita. Gostava dos cachorros-quentes, das batatas assadas, dos doughnuts,
das panquecas e das waffles. Havia um chinês que tinha uma banca onde
vendia noodles, que adorava, e gostava das grandes tigelas de spaghetti com
molho de tomate e carne do café italiano. Era raro o dia em que Ira não lhe
mostrava algo de novo: pretzels, pastrami, carne salgada, bolas de peixe ou
salsichas alemãs.
A única coisa de Inglaterra de que tinha verdadeiramente saudades era
de Molly, e isso era como uma dor surda, constante, dentro do peito. Não
conseguia passar por uma mãe com uma menina rechonchuda e de caracóis
pretos sem parar para conversar, e naqueles breves momentos sentia a
mordidela da inveja.
– Eu podia dar-te um bebé só teu – dissera Jack certa vez, quando
estavam juntos e ele a vira falar com uma criança. As palavras tinham sido
ditas com um sorriso, pois sempre que se beijavam, dizia ele, sonhava com
fazer amor com ela.
Beth rira, porque poucos dias antes estivera a conversar com Amy e
Kate, as duas raparigas que viviam no apartamento por baixo do deles. Eram
alguns anos mais velhas do que ela e, aparentemente, bem mais experientes
em matéria de homens, mas ambas divertidas e alegres, e Beth estava muito
contente por ter feito duas novas amigas.
A conversa, naquele dia, fora a respeito dos truques que os homens
usavam para conseguir o que queriam das raparigas. Amy recordara que o seu
primeiro namorado lhe dissera: «Não te vou obrigar a fundar família», e Kate
contara que o dela tentara chantageá-la com «Se me amasses de verdade,
deixavas.»
Beth pensara que Amy acharia graça a saber que Jack optara por
inverter o velho truque do namorado dela.
Mas a verdade era que Jack era um verdadeiro tesouro. Nunca se
queixava de nada, nem do seu trabalho, nem das condições em que vivia, nem
do facto de ela o manter à distância. Sempre optimista, conseguia ver o lado
divertido de todas as situações. Fazia-a rir, podia dizer-lhe tudo o que quisesse
e confiava totalmente nele. No Verão, tinham muitas vezes aproveitado as
tardes de calor para passear pela margem do East River, em busca de um
pouco de ar fresco. Nenhum deles estava preparado para o calor de Nova
Iorque; em Liverpool, havia sempre uma brisa vinda do mar, mesmo nos dias
mais quentes.
Tinham visto bandos de rapazes mergulhar nas águas escuras, talvez o
único banho que tomavam, porque aqueles rapazes viviam nas ruas – eram
conhecidos como árabes da rua –, dormiam nos umbrais das portas e
procuravam comida onde podiam encontrá-la.
Enquanto comiam um gelado comprado numa das bancas, falavam a
respeito do frio que fazia no convés do navio que os trouxera de Inglaterra.
– No Inverno, havemos de falar do calor deste Verão só para nos
aquecermos – dizia Jack.
Era uma relação fácil, descomplicada, porque eles eram os melhores dos
amigos, mas Beth sentia-se sempre um pouco nervosa quando Jack começava
a beijá-la. Gostava da sensação de formigueiro na barriga, da maneira como
parecia derreter-se nos braços dele, e queria ficar ali para sempre, mas tinha
medo do fim a que aquilo podia levá-la.
Amy perguntara-lhe uma vez se o amava, e Beth não soubera o que
responder. Ansiava pelos encontros entre os dois, e ficava sempre contente
quando ele aparecia no Heaney’s, nos sábados à noite, para a ouvir tocar. Mas
não tinha a certeza de que o que sentia fosse aquilo a que as pessoas
chamavam amor. Ele não lhe fazia o coração bater mais depressa, nem a fazia
perder a vontade de comer, como acontecia nos livros românticos.
Jack estava no bar quando Beth subiu ao palco para a sua terceira e
última actuação naquela noite de sábado. Chovia lá fora e ele devia ter
acabado de entrar pois, mesmo àquela distância, do outro lado da vasta sala,
viu-lhe o cabelo molhado. Acenou-lhe antes de atravessar o palco para se ir
juntar ao pianista.
Gostava sempre daquela última actuação de sábado à noite. Os clientes
estavam amolecidos pela bebida, não tinham de ir trabalhar no dia seguinte e
mostravam o seu apreço com ruidosas palmas e batimentos de pés. Também
acabara por gostar de ter Amos a acompanhá-la. Amos era um negro do
Louisiana e tocava piano como Beth nunca ouvira ninguém tocar. Depois de
se terem entrosado, alimentavam-se um do outro e elevavam as músicas a
novas alturas.
Naquela noite, foi ainda melhor do que de costume. O público assobiou
e bateu palmas e gritou no fim de cada número e Beth sentiu que os tinha a
comer da palma da mão. Teve dificuldade em acabar já que as pessoas
continuavam a gritar por mais. Tocou mais uma música, e depois outra, até
que finalmente a deixaram ir.
Quando atravessava a multidão a caminho da sala das traseiras, onde
deixara o casaco, sentiu uma mão agarrar-lhe o cotovelo.
Para seu espanto, era o atraente passageiro da primeira classe, o que vira
no convés com a mulher casada.
– Miss Discrição não me disse que tocava violino – disse ele.
Durante a primeira semana depois de ter chegado a Nova Iorque, ou
pouco mais, Beth interrogara-se sobre o que teria acontecido entre ele e
Clarissa, mas certamente nunca esperara voltar a vê-lo.
Mas ali estava ele, o sotaque inglês a recordar-lhe a pátria, o seu aspecto
físico ainda mais impressionante do que no primeiro encontro entre os dois.
Usava um casaco verde-escuro impecavelmente cortado e, por baixo, um
colete bordado.
– Que o traz até aqui? – perguntou.
– Negócios – respondeu ele, mas a maneira como olhou para a sala das
traseiras, onde ela sabia que decorriam os jogos ilegais de cartas, disselhe de
que género de negócios se tratava. – Como foi que acabou por vir trabalhar
para o Heaney?
– Eu e o meu irmão viemos cá pedir trabalho – explicou ela, e apontou
para Sam, atrás do balcão. – Já cá estamos há seis meses.
De repente, Jack estava a abrir caminho por entre a multidão.
– O Sam pediu-me que te acompanhasse a casa esta noite – disse, com
um grande sorriso. – Tem de ficar a trabalhar até mais tarde.
– Óptimo. – Beth fez um aceno de cabeça, mas continuou a olhar para o
homem do navio. – Que aconteceu com a Clarissa?
Ele encolheu os ombros.
– Acabou por esmorecer, depois de desembarcarmos.
Beth viu que Jack começava a ficar nervoso e a verdade era que não
sabia por que razão queria reter durante um pouco mais de tempo a atenção
daquele homem.
– Tenho de ir – disse. – Mr. Heaney não gosta que eu converse com os
clientes.
– Gostei de voltar a vê-la – respondeu ele, estendendo-lhe a mão. – E
sobretudo de saber que é tão talentosa.
Beth apertou-lhe a mão, e o contacto da pele dele pôs-lhe um arrepio na
espinha.
– Também eu gostei de vê-lo. Boa sorte para o jogo desta noite.
– Quem era aquele homem? – perguntou Jack, a caminho de Houston
Street. A chuva intensa esvaziara a rua de pessoas e os passos dos dois soavam
alto.
– Um passageiro do navio.
– Nunca o tinha visto.
– Viajava em primeira classe. Falámos uma vez, quando eu estava no
convés.
– E que vai um finaço fazer ao Heaney’s?
Beth deteve-se e agarrou o braço de Jack até ele se voltar para ela.
– Jogar? – sugeriu sarcasticamente. – Mas ficou tão surpreendido ao
ver-me como eu ao vê-lo a ele.
Não sei nada a respeito dele, nem sequer o nome, portanto não te
ponhas com ciúmes.
– Não estava – retorquiu ele, indignado. – É só que me pareceu que
havia qualquer coisa entre os dois.
– Apenas surpresa – disse ela, e não acrescentou mais nada.
– Posso entrar por um instante? – perguntou Jack, quando chegaram a
casa dela.
– Não, é muito tarde – disse Beth, tirando-lhe da mão o estojo do
violino.
– Prometo que não faço barulho.
Estava com aquela expressão arrapazada e ansiosa que normalmente a
fazia sorrir, mas que daquela vez, por qualquer razão, a irritou.
– O problema não é recear que faças barulho – disse ela, impaciente. –
É o aspecto que dá quando já passa da uma da manhã. E sem que o Sam esteja
connosco.
Sam continuava a não aprovar totalmente a amizade dela com Jack, mas
convinha-lhe tolerá-la, porque o facto de ele a acompanhar até casa significava
que não tinha de preocupar-se com a irmã.
Aliás, nem sequer saberia se Jack entrasse por um momento, pois
muitas vezes ele próprio ficava fora toda a noite.
– Só queria abraçar-te e beijar-te – disse Jack, tristemente. – Está
demasiado frio e demasiada chuva para o fazermos aqui. Sabes bem que nunca
tentaria obrigar-te a fazer algo que não quisesses.
Beth aproximou-se dele e beijou-o nos lábios. A luz do candeeiro a gás
fazia com que as feições parecessem ainda mais angulosas, a cicatriz mais
lívida, e tingia-lhe a pele de um amarelo sinistro.
Não sentia o mais pequeno desejo por ele, e isso fazia-a sentir-se mal
consigo mesma.
– Eu sei, estou só cansada e um pouco resmungona, e tu estás
encharcado, portanto vai para casa.
– Amo-te, Beth – disse ele, segurando-lhe a cara com as mãos. – Acho
que me apaixonei por ti no instante em que te vi. Não sentes o mesmo?
Jack não podia ter escolhido pior momento para lhe dizer que a amava,
e em vez de se sentir comovida, Beth sentiu-se irritada. Se dissesse que não,
ele ficaria profundamente magoado, mas se dissesse que sim corria o risco de
começar algo de que muito provavelmente viria a arrepender-se.
– Não é este o momento, Jack – disse, cansadamente.
Ele recuou um passo. Tinha o rosto e os cabelos brilhantes de chuva, e a
boca cerrada numa linha amarga.
– Não vai haver um futuro para nós, pois não?
Rodou sobre os calcanhares e afastou-se, sem voltar a cabeça para ver
se ela estava a olhar para ele.
CAPÍTULO 14
Quando acordou no domingo de manhã e descobriu que con tinuava a
chover tão intensamente como na noite anterior, o primeiro pensamento de
Beth foi para Jack. Desde que ela e Sam se tinham mudado para Houston
Street, ele passara a aparecer todos os domingos para a levar a qualquer lado.
Puxou para o lado a cortina divisória, e a cama intacta de Sam disselhe
que o irmão não tinha ido a casa. De repente, apercebeu-se de como se tornara
dependente da companhia de Jack e de como se sentia sozinha sem ele.
Sabendo que o magoara demasiado para que ele aparecesse naquela manhã, ou
em qualquer outra, a menos que ela pedisse desculpa e lhe dissesse que o
amava, puxou as mantas até ao pescoço e tentou voltar a adormecer.
Sam só voltou às duas da tarde, e ficou muito surpreendido ao
encontrá-la ainda na cama.
– Estás doente? – perguntou, sentando-se ao lado dela.
Beth contou-lhe o que tinha acontecido com Jack.
– Não tive coragem para me levantar. Para quê? – concluiu.
– Se gostas verdadeiramente dele, o melhor é saíres da cama, ir
procurá-lo e fazer as pazes – disse Sam, enquanto coçava o queixo onde a
barba já crescia. – Mas eu sempre achei que podias arranjar alguém muito
melhor do que ele.
Beth sentou-se na cama e fulminou o irmão com o olhar.
– Diz-me então onde é que posso conhecer alguém adequado. O Heaney
nunca me deixa falar com ninguém. Tu nunca me apresentas a nenhum dos
teus amigos. E não seria decente ir a casa do Jack e dar-lhe falsas esperanças
só porque não quero estar sozinha.
Sam fez um ar pensativo.
– Praticamente todos os homens que vão ao Heaney’s gostariam de ter
uma oportunidade de te conhecer. Mas também nenhum deles é
suficientemente bom para ti.
– Porque é que hás-de ser tu a decidir isso? – retorquiu ela. – Aposto
que a pessoa com quem passaste a noite, seja ela quem for, também não é
adequada para ti, mas isso não parece incomodar-te.
– Para os homens é diferente.
– Pois não vejo porque é que há-de ser – protestou ela, indignada. – Se
posso tocar num dos bares mais frequentados de Nova Iorque, não percebo
porque é que não posso dar-me com quem quiser.
Sam limitou-se a olhar para ela por um momento.
– Levanta-te e veste-te. Vamos sair – disse, finalmente. – Não gosto de
te ver tão triste.
Quando, na noite de segunda-feira, Beth chegou ao Heaney’s, descobriu
que Jack já lá estivera e lhe deixara uma nota.
Nunca tinha visto nada escrito por ele, e a caligrafia infantil e os erros
de ortografia foram uma confirmação do enorme fosso que separava a
condição social dos dois. Mas por mais inculto que fosse, Jack conseguia fazer
transparecer nas suas palavras o que sentia. Dizia que continuaria a ser seu
amigo e que dela não esperava outra coisa.
Beth arrependeu-se de tê-lo magoado, e o seu primeiro instinto foi
escrever-lhe imediatamente a dizer-lhe que haveria sempre espaço para ele na
sua vida. Mas sabia que se o fizesse em breve voltariam à velha rotina, e mais
tarde ou mais cedo o problema voltaria a surgir. Talvez fosse melhor não fazer
nada, para já.
Na terça-feira, na loja de Ira, fizeram uma grande limpeza às roupas de
Verão. Os artigos que estavam demasiado estragados ou eram demasiado
antiquados seriam recolhidos por um homem que tinha uma banca em
Mulberry Bend, em Five Points. As peças boas foram guardadas em caixas e
armazenadas até à Primavera seguinte.
Era bom estar ocupada, e Beth apercebeu-se, quando, às cinco da tarde,
vestiu o casaco e o chapéu para sair, de que não tinha pensado em Jack
durante todo o dia.
Acabava de sair da loja e de fechar a porta quando viu o homem do
navio descontraidamente encostado a um candeeiro e a sorrir para ela.
– Olá, Miss Discrição! – disse ele.
Beth ficou espantada ao vê-lo. Mas, instintivamente, soube que não era
por acaso.
– Que tal ir tomar um café comigo? – convidou ele. – A menos, claro,
que tenha coisa melhor que fazer?
– Mas eu nem sequer sei o seu nome – protestou ela.
– Bem, isso resolve-se facilmente. – O homem sorriu. – Theodore
Cadogan. Conhecido pelos amigos como Theo.
– Bem, Mr. Cadogan – disse Beth, reprimindo a vontade de rir que lhe
causava o facto de ele ter tido o descaramento de fazer investigações para
saber onde ela estava. – O que o leva a pensar que tenho o hábito de sair com
homens que mal conheço?
– Mas então como consegue conhecer alguém? Só sugeri um café, não
vendê-la para o tráfico de carne branca.
– Quem lhe disse onde eu estava?
– O seu irmão, e eu dei-lhe a minha palavra de cavalheiro em como as
minhas intenções são absolutamente honestas.
Beth duvidava da honestidade das intenções dele, mas Sam devia ter
gostado dele, ou não lhe teria dito onde encontrá-la. Além disso, ele era
bastante atraente e fazia-a sentir-se efervescente por dentro.
– Só um café, então – aceitou.
*
Uma hora mais tarde, estavam ainda a tomar café. Beth tratava-o por
Theo e ele tratava-a por Beth.
Ela contara-lhe os acontecimentos que a tinham levado a ir para a
América e ele contara-lhe que o pai era um rico proprietário de terras do
Yorkshire, mas que, sendo ele o filho mais novo, nada herdaria.
– O meu pai queria que eu estudasse Direito, mas aquilo aborrecia-me –
disse, com um teatral bocejo. – A minha mãe achava que devia entrar para a
Igreja, mas não tinha a mínima vocação para isso. Também considerei a
hipótese do exército.
– O que foi então que te fez vir para cá? – perguntou Beth.
Ele rolou os olhos de uma maneira que dizia que não queria admitir a
verdadeira razão.
– Foi a Clarissa, não foi? – disse ela, rindo.
Theo suspirou.
– Não inteiramente. Mas digamos que me deixei convencer de que o
casamento dela era infeliz.
Comprei passagem no mesmo navio que eles, imaginando, tolamente,
que tudo acabaria bem e que ele lhe daria o divórcio quando chegássemos a
Nova Iorque. Mas ela estava só a brincar comigo, nunca teve a mais pequena
intenção de o deixar.
– Oh, Theo – disse Beth, fazendo um barulhinho de reprovação com a
língua –, deves ter ficado destroçado.
– Apenas amolgado, minha querida – respondeu ele, a sorrir. – E uma
vez chegado a esta terra da oportunidades, descobri a saída perfeita para os
meus talentos, de modo que não me arrependo de ter vindo.
– E quais são os teus talentos? – perguntou ela, a provocá-lo. – Isto é,
além de seres um charmoso e um casanova?
– Jogo cartas bastante bem.
Beth riu.
– E é com isso que esperas fazer fortuna?
– Espero que sim. – Theo sorriu maliciosamente. – Tem-me servido
bem, até agora.
– Se jogares com homens como o Heaney, acabas esfolado – avisou
Beth.
– Estás a subestimar-me, minha querida. Tenciono ser dono de casas de
jogo, não perder a camisa nelas. – Riu ao ver o ar de surpresa no rosto dela. –
E tu, minha linda cigana, podes tocar o teu violino na primeira que abrir, se
quiseres. Sinto que estávamos destinados a encontrar-nos de novo, e que as
nossas sortes estarão inextricavelmente ligadas.
Beth sentiu como que borboletas no estômago quando ele estendeu a
mão e agarrou a dela. Pensou que ia beijá-la, mas, em vez disso, voltou-a e
examinou a palma, seguindo as linhas com o indicador esticado.
– Há muita paixão na tua mão – disse Theo, em voz baixa. – Vejo
também força e coragem.
Ganharás dinheiro, mas o amor, por homens e pela tua música, será
sempre mais importante.
Beth riu.
– Agora pareces tu uma cigana! Não vês aí um marido e filhos?
– É isso que queres?
– Não é o que todas as mulheres querem?
– É-vos dito, desde muito novas, que é isso que devem querer – disse
ele, pensativamente. – A nossa sociedade encoraja essa ideia e não cria
alternativas. Mas eu penso que seria um terrível desperdício casares nova e
passares o resto da vida a criar um bando de filhos quando tens tanto talento.
Continuava a segurar a mão dela e, lentamente, inclinou a cabeça e
beijou-a. Beth sentiu um súbito abanão dentro do peito, uma vaga de calor
percorrer-lhe o corpo e a pele formigar. Teve de conter o impulso de estender
a outra mão e passar os dedos pelo cabelo dele. Reconheceu instantaneamente
os seus sentimentos como sendo o início de uma paixão.
Três dias mais tarde, Beth estava com Ira na sala das traseiras da loja,
onde remendavam e lavavam as roupas, quando Ira lhe perguntou o nome do
homem com quem andava a sair.
– Sei que andas com alguém – disse, olhando fixamente para Beth. –
Desde quarta-feira que andas a sonhar acordada.
Beth tirou o ferro de engomar de cima do fogão e cuspiu-lhe para ver se
estava suficientemente quente para passar o saiote de algodão branco. Não
queria responder à pergunta de Ira; sentia que dizer fosse o que fosse a
respeito de Theo, especialmente dos seus sentimentos para com ele, podia
atrair a má sorte e estragar tudo.
Ele convidara-a para jantar, quando tinham finalmente saído do café, e,
muito mais tarde, acompanhara-a até Houston Street. A noite estava fria e a
rua deserta, com excepção de alguns homens ainda novos reunidos à porta da
taberna da esquina.
– Suponho que vives num sítio elegante – dissera ela, quando se tinham
detido diante do prédio onde morava.
– Nem por isso – respondera ele, estendendo a mão para acariciar-lhe a
face. – Não tenhas vergonha de ser pobre, Beth. A vontade de vencer é sempre
mais forte quando se tem menos.
A mão dele na sua cara voltara a fazê-la sentir aquele abanão na barriga.
Queria tanto beijá-lo que quase a fazia desfalecer. Nem lhe importava quem
pudesse vê-la.
– Voltarei a ver-te? – perguntara debilmente, sabendo que era
demasiado ousado mas incapaz de conter-se.
Ele beijara-a, como se aquele beijo fosse a sua resposta. Os lábios dele
tocaram os dela, ao princípio muito ao de leve, despertando-lhe todos os
nervos do corpo. Então, quando ela ansiava por mais qualquer coisa,
enlaçara-a e abraçara-a com força, a ponta da língua dele insinuara-se-lhe na
boca, e Beth como que entrara em erupção.
Não conseguira impedir-se de apertar-se contra ele; o beijo fora tão
excitante que o corpo dela reagira como que dotado de uma vontade própria.
Sentira os mamilos porem-se rijos e uma espécie de latejar nas partes íntimas,
e enfiara despudoradamente a língua na boca dele.
Fora Theo o primeiro a libertar-se do abraço.
– Beijas tão bem como tocas – dissera, em voz baixa. – És capaz de
fazer qualquer homem perder a cabeça.
Então dissera que tinha de ir e ela ficara ali diante da porta, inebriada de
desejo, a vê-lo descer a rua. Movia-se com a graça de uma pantera, as costas
direitas, o queixo erguido. Quando chegou ao candeeiro da esquina, voltou-se
e acenou-lhe, e Beth sentiu o coração explodir.
O sono fugira-lhe naquela noite, pois revivera aquele beijo uma e outra
vez até sentir o corpo incendiar-se. Fizera-lhe lembrar a gata de uma vizinha
de Liverpool que certa vez vira deitada de costas a contorcer-se no pátio ao
mesmo tempo que emitia um som estranho, rouco. A mãe dissera que estava
no cio e despejara-lhe um balde de água em cima para a afugentar, pois
estavam dois gatos vadios empoleirados no muro a contemplar o espectáculo.
A mamã dissera que não queria aquelas poucas vergonhas no seu pátio. Na
altura, Beth não compreendera o significado do comportamento da gata, mas
compreendia agora.
Desde que tivera idade suficiente para começar a sentir curiosidade a
respeito do amor, do casamento e de ter filhos, fora levada a acreditar que
eram os homens que tinham prazer e que as mulheres toleravam o acto por
amor a eles. Nem sequer a pragmática Miss Clarkson sugerira coisa diferente.
A confissão da mãe no seu leito de morte fora o primeiro indício que tivera de
que talvez as mulheres pudessem desejar ou necessitar de sexo, mas na altura
estava demasiado horrorizada pelas consequências daquela paixão ilícita para
sentir qualquer espécie de compreensão.
– Não responder à minha pergunta não me vai impedir de perguntar –
disse Ira, aproximando-se e pousando uma mão no ombro de Beth. – É
perfeitamente normal uma rapariga da tua idade apaixonar-se, mas eu sei que
não é com o Jack que andas a sonhar. Quem é então este outro homem e onde
o conheceste?
– Chama-se Theodore Cadogan e conheci-o no navio, quando vinha
para cá – disse Beth, com alguma relutância. – No barco só falámos uma vez,
porque ele viajava em primeira classe. Mas voltei a vê-lo a semana passada,
no Heaney’s, e quando saí daqui, na terça-feira, ele estava à minha espera.
– É então um cavalheiro?
Beth assentiu, sombria.
– Nesse caso, que estava a fazer no Heaney’s?
Beth suspirou; sabia que aquela pergunta havia de chegar.
– Foi lá jogar cartas.
Ira chupou as bochechas para dentro.
– Um jogador, hein? Bem, são geralmente muito divertidos, admito.
Mas mantém essa cabeça fria, rapariga. Não quero ver-te levada por maus
caminhos.
– Gosto muito dele – disse Beth, num fio de voz.
Ira ficou a olhar fixamente para ela até fazê-la corar.
– Estou a ver – disse, por fim. – Despertou sensações que não
compreendes. É isso?
Beth limitou-se a olhar para os pés.
– E suponho que sempre te disseram que as raparigas decentes não têm
esse género de sensações? – continuou Ira, com uma gargalhada. – Bem, isso é
conversa. Muito poucos bebés viriam a este mundo se fosse verdade! Se
queres que te diga o que penso, não há mulheres que gostam e outras que não
gostam, o que há é mulheres que têm bons amantes e outras que não têm.
– Não é meu amante – exclamou Beth, alarmada por Ira poder sequer
pensar semelhante coisa. – Só jantei uma vez com ele.
Ira voltou a rir.
– Se conseguiu pôr-te assim só com um casto jantar, diria que é melhor
não te arriscares a ficar sozinha com ele, a menos, claro, que queiras descobrir
o que um bom amante pode fazer por uma mulher.
Beth agitou-se, envergonhada, o que fez Ira rir ainda mais alto.
– Sei que muita gente te dirá que tens de ter uma aliança no dedo antes
de provar o produto. Mas eu nunca me arrependi de ter experimentado o meu
Gunter antes do casamento.
– É possível que nunca mais o veja – disse Beth, numa tentativa de pôr
fim àquela conversa cada vez mais embaraçosa.
– Tenho a certeza de que verás – declarou Ira. – Não só por causa da tua
beleza e das tuas curvas, mas também pela tua alegria, a tua inteligência, os
teus modos e a arte com que tocas violino. És um achado, minha querida. Mas
tens de aprender a proteger-te. Não acredites em tudo o que ele te diz, não lhe
emprestes dinheiro, não esperes que ele case contigo e aconselha-te sobre o
que tens de fazer para evitar ter um filho. Tem sido essa a ruína de muita
mulher.
– Não o farei – exclamou Beth, horrorizada. – Correr o risco de ter um
filho, quero dizer.
– Não estejas tão segura. – Ira deu-lhe uma palmadinha afectuosa na
cara. – A experiência diz-me que quando uma mulher se sente fisicamente
atraída por um homem, a primeira coisa que perde é o bom senso.
Beth tivera de tocar naquela noite, e Heaney chamara um fiacre para a
levar a casa, uma vez que Sam ia ficar a trabalhar até mais tarde. Acordou no
sábado de manhã a meio de um sonho com Theo, e isso fê-la começar a
preocupar-se com o que Ira lhe tinha dito a respeito do assunto.
Puxou ligeiramente a cortina que separava a cama dela da de Sam. Para
seu desapontamento, a do irmão estava outra vez vazia, adivinhando-se um dia
inteiro sem companhia.
Quando, um par de horas mais tarde, ouviu nas escadas a voz de Amy,
Beth desceu e perguntou à vizinha se queria subir para tomar uma chávena de
chá.
Amy era uma americana de segunda geração, de ascendência holandesa,
mas deixara a quinta da família no Connecticut porque o pai se zangara com
ela por andar com um rapaz que ele não aprovava. Contara desconsoladamente
a Beth que o homem em questão tinha recusado fugir com ela, de modo que
chegara a Nova Iorque sozinha. Mas parecia ter-se governado bastante bem
sem ajuda: ela e a amiga, Kate, saíam constantemente, tinham boas roupas e
eram felizes. Beth sentia muitas vezes uma ligeira pontada de inveja, porque
as duas lhe pareciam divertir-se bem mais do que ela.
– Chá! É mesmo do que eu estou a precisar, aquilo lá em baixo parece
uma casa de loucos – disse Amy, ao entrar no quarto de Beth. Tinha ar de
camponesa, alta, com ombros largos, uma cara grande e achatada e cabelo
louro-palha. – Agora trouxeram ainda mais familiares! Pergunto-te, será
possível seis pessoas partilharem um pequeno quarto? Quanto a conseguir
entrar na cozinha…
Amy estava a referir-se à família irlandesa que ocupava um dos quartos
do apartamento dela. De início, eram dois adultos e duas crianças, mas com
mais duas pessoas a entrar tornara-se insuportavelmente sobrelotado. Uma vez
que Amy já partilhava o seu pequeno quarto com Kate, e havia cinco outras
pessoas no terceiro quarto do apartamento, Beth não tinha dificuldade em
imaginar o problema que seria entrar na cozinha comum.
Amy deixou-se cair na cama de Sam enquanto Beth servia o chá e
continuou durante algum tempo a queixar-se dos vizinhos. Suspeitava que um
dos membros da família irlandesa andava a despejar lixo no lava-louças. Disse
que lhe roubavam a comida e que havia sempre uma criança a chorar.
– Tenho de arranjar outro lugar para viver – concluiu. – É insuportável.
Beth tinha imensa pena de Amy e de Kate, e estava bastante consciente
da sorte que ela e Sam tinham por partilharem o apartamento apenas com os
Rossini, um casal de meia-idade, sossegado, asseado e simpático.
Mas Amy não era pessoa para se atardar nos seus próprios problemas
mais do que dois ou três minutos. Quando acabou de beber o chá, estava a
fazer Beth rir com uma história a respeito do merceeiro da esquina que fora
apanhado pela mulher em flagrante delito de adultério.
– Onde está o Sam? – perguntou, um pouco mais tarde. – Não há quem
o veja, nestes últimos tempos. Arranjou uma namorada?
– Julgo que sim – respondeu Beth. – Mas não me disse nada a respeito
dela.
– É uma rapariga de sorte, seja quem for – disse Amy, com um brilho
nos olhos. – O teu irmão é muito bonito.
– Se não tem cuidado, ainda acaba por ver-se obrigado a casar –
profetizou Beth.
– Tenho a certeza de que ele sabe como evitar uma situação dessas.
– Pode-se evitar? – perguntou Beth inocentemente.
– Claro que pode, pateta – riu Amy.
– Como?
– Alguns homens, os mais cuidadosos, retiram-se a tempo – explicou
Amy, despreocupadamente. – Mas, por mim, não confiaria em nenhum para o
fazer. Também podem usar um preservativo, mas às vezes rasgam-se e os
homens não gostam deles. A maior parte das mulheres que conheço usa o
duche, no fim. Ou há uma pequena esponja que se enfia antes de começar.
Beth gostara de Amy desde o primeiro momento precisamente por ela
ser directa e aberta, mas corou de vergonha ao ouvi-la expor aquelas
revelações de natureza tão íntima.
– Como é que sabes essas coisas? – perguntou.
Quando o rosto de Amy se fechou e ela não respondeu com uma das
suas habituais saídas, Beth sentiu que tinha de pedir desculpa.
– Não queria ser bisbilhoteira. Não te pergunto mais nada.
Amy olhou para ela e suspirou.
– Quem me dera que houvesse alguém, quando tinha a tua idade, a
quem pudesse perguntar estas coisas. Mas não havia, e por isso engravidei.
– Que fizeste? – perguntou Beth, num murmúrio escandalizado.
– Uma velha que conheço resolveu-me o problema – confessou Amy. –
Foi pouco depois de ter chegado a Nova Iorque. Foi horrível. Pensei que ia
morrer.
– Essa deve ter-te feito perder o gosto pelos homens.
A rapariga mais velha riu.
– Sim, durante um tempo, mas então conheci outro charmoso. Só que
dessa vez, antes de o deixar chegar sequer perto de mim, aconselhei-me com
uma das raparigas do Rosie’s.
Beth abriu muito os olhos, chocada, porque tinha ouvido alguns homens
no Heaney’s a falar do Rosie’s e sabia que era um bordel.
– Não faças essa cara – censurou-a Amy. – Nem toda a gente tem o teu
talento para tocar violino para se manter. Para algumas, é a única maneira de
terem um tecto. Não tardei a aperceber-me disto e fui trabalhar para o Rosie’s.
Beth quase não conseguia acreditar no que Amy acabava de admitir.
Nunca perguntara à amiga como ganhava a vida; sempre assumira que
trabalhava numa loja, porque usava roupas bonitas.
– Não me digas que não sabias? – Amy atirou a cabeça para trás e riu da
expressão chocada de Beth. – Pensava que já alguém te tinha dito!
– A verdade é que praticamente não falo com ninguém a não ser contigo
– disse Beth, debilmente. – Nunca me teria passado pela cabeça. Quer dizer,
és tão simpática.
– As prostitutas podem ser tão simpáticas como qualquer outra pessoa –
respondeu Amy, com uma ponta de acidez na voz. – E também não
anunciamos o que fazemos andando por aí seminuas e com a cara pintada.
– Não era isso que queria dizer – apressou-se Beth a explicar. – O que
quis dizer foi que julgava que trabalhavas numa loja ou num restaurante.
Amy ergueu os olhos para o tecto.
– Querida, pensei que trabalhar no Heaney’s já te tinha aberto os olhos!
São muito poucas as raparigas que querem fazer esta vida, mas quando a fome
aperta e não se tem um lugar a que chamar casa, deixa de parecer assim tão
errado receber alguns dólares por dar a um homem um pouco de amor. Porque
é que havia de ser criada, ou trabalhar numa loja por cinco ou seis dólares por
semana, quando posso ganhar isso em meia hora?
Beth estava siderada. Claro que aquilo explicava por que razão Amy
parecia saber tanto a respeito de homens, e até porque estava tantas vezes em
casa durante o dia. Estava a tentar descobrir qualquer coisa para dizer que não
parecesse condescendente ou reprovador quando Sam chegou a casa, e Amy
se pôs imediatamente de pé e disse que tinha de ir.
Não querendo que Amy ficasse a pensar que era demasiado pudibunda e
afectada para lidar com aquela revelação, Beth acompanhou-a até à porta.
– Desculpa – disse. – Foi só porque me apanhaste de surpresa.
Amy pousou a mão no ombro dela.
– Acho que, afinal, ainda estás muito verde. Pensei que sabias, e estava
muito contente por gostares de mim apesar disso, mas suponho que isto
significa o fim da nossa amizade.
– Nem penses nisso – disse Beth com sinceridade. – Gosto ainda mais
de ti por teres sido franca comigo. Só me sinto um pouco pateta por não ter
percebido mais cedo. Mas tu deste-me muito em que pensar.
– Pensa menos e diverte-te mais – disse Amy com um grande sorriso. –
O teu irmão é que sabe.
E desceu a escada antes que Beth tivesse tempo de perguntar-lhe o que
queria exactamente dizer com aquilo.
Pouco depois, Beth estava a fazer chá e a preparar uma sanduíche para
Sam comer qualquer coisa antes de ir para o trabalho, quando ouviu um
barulho estranho, como um rocegar, vindo do quarto.
Não lhe perguntara onde tinha passado a noite, porque ele estava a
lavar-se e a fazer a barba, e, de todos os modos, tinha o espírito ocupado com
as coisas que Amy lhe dissera, mas, estando a porta do quarto parcialmente
aberta, espreitou para o interior para ver que barulho era aquele. Para sua
surpresa, Sam estava sentado à pequena mesa junto à janela, a brincar com um
baralho de cartas.
Viu-o baralhá-las, e depois fazer o que lhe pareceu serem complicados
truques com elas, espalhando-as numa tira em cima da mesa de modo que
cada uma se sobrepusesse em parte à seguinte.
– O que é isso? – perguntou.
– Estou a praticar – respondeu ele, sem olhar, ao mesmo tempo que
fazia as cartas dispostas em fila voltarem-se ao contrário numa rápida onda.
– Isso é um truque?
– Não. São só coisas que o dealer faz. Ainda não está perfeito, mas
estou quase lá.
– Porque é que queres fazer isso? – perguntou Beth, entrando no quarto.
Sam pousou as cartas e olhou para ela.
– Porque quero ser um dealer. Quero saber tudo a respeito do jogo:
póquer, roleta, faraó e tudo o mais.
Beth sentiu-se como se o seu pequeno mundo tivesse sido voltado do
avesso. Primeiro, descobria que a sua única amiga era uma prostituta, e agora
Sam falava de tornar-se num jogador.
Aceitava que Theo jogasse: para um cavalheiro, fazia parte do seu estilo
de vida. Mas Sam crescera a ser alertado para os malefícios do jogo. O pai
deles nem sequer apostava um xelim num cavalo, pois dizia constantemente
que a partir daí piorava sempre.
– Quero trabalhar em casas de jogo, não perder o meu dinheiro nelas –
disse ele, olhando-a duramente, como que a desafiá-la a reprová-lo. –
Ganha-se bom dinheiro; a casa nunca perde.
– O Heaney tem alguma coisa a ver com isto? – indagou ela.
– Só na medida em que me deixou ver o que ganha com os jogos lá no
bar – respondeu Sam. – É por isso que tenho de ficar até mais tarde… quer
que eu sirva bebidas aos jogadores. E eu tenho aproveitado para estudá-los
com atenção.
Beth deixou-se cair em cima da cama dele. Sentiu-se invadir pelo
pânico, porque de repente tudo parecia ameaçador.
– O que é que se passa? – perguntou Sam. – Oh, pelo amor de Deus,
não me venhas com sermões, Beth! Aqui o jogo é uma coisa importante, as
pessoas aceitam-no perfeitamente. Porque havemos nós de ser diferentes?
– Nunca tens medo de perder os valores que tínhamos? – insurgiu-se
ela.
– Não esquecer qual era o nosso lugar? Fazer vénias aos ricos? Ser
pobre mas honesto? Diz-me tu, Beth, porque é que não havemos de ser ricos?
Está escrito nas estrelas que lá porque o nosso pai era sapateiro não podemos
aspirar a mais?
– Suponho que tenho medo de que estejamos a deixar-nos corromper –
disse ela, debilmente. – Sabes muito bem, ainda que não o admitas, que
estamos presos ao Heaney, e que ele não é um bom homem.
– Eu sei que ele está a usar-nos, mas nós também podemos usá-lo, Beth.
Tu ganhas experiência e prática enquanto tocas para ele, e eu aprendo o que
preciso de saber a respeito do jogo. Quando chegar a altura, pegamos na nossa
experiência e vamos para outro lugar, trocamos Nova Iorque por Filadélfia,
Chicago ou até São Francisco. Viemos para cá pela aventura e para fazer
fortuna, e é exactamente isso que vamos fazer.
– Não estás a pensar desaparecer um destes dias sem mim, pois não? –
perguntou ela, receosa.
Sam foi sentar-se ao lado dela em cima da cama e abraçou-a com força.
– Beth, tu és a única pessoa em todo o mundo de quem eu gosto. Não és só
minha irmã, és a minha amiga mais querida. Nunca iria para parte nenhuma
sem ti.
Sam nunca fora dado a discursos floreados, e saber que ele estava a ser
sincero no que dizia fez Beth desfazer-se em lágrimas.
– Não chores, mana – sussurrou ele, acariciando-lhe o cabelo. –
Temo-nos saído bem até agora, e podemos fazer ainda melhor.
CAPÍTULO 15
Depois de Sam lhe ter falado da sua ambição de gerir uma casa de jogo,
Beth sentou-se à janela a olhar para o mar de telhados e para o céu cinzento
por cima deles e a pensar em todas as pessoas que conhecera em Liverpool.
Perguntou-se o que pensariam do modo como ela e Sam estavam a viver.
Tinha escrito aos Langworthy religiosamente de quinze em quinze dias,
desde a chegada, e sabia-se culpada de acrescentar a tudo uma camada de
verniz. Usava, por exemplo, a palavra «hotel» em vez de «pensão», descrevia
Central Park e a Fifth Avenue em vez do Lower East Side. Embora sem dizer
exactamente mentiras, criara a imagem do Heaney’s como um
estabelecimento selecto e dera a entender que a loja de Ira vendia roupa, e não
roupa em segunda mão. Anunciara jubilosamente a mudança para um
apartamento, mas abstivera-se de explicar que tinham apenas um quarto para
os dois.
A sua justificação para estas omissões era que toda a gente em
Inglaterra ficaria mortificada se descrevesse a pobreza em que vivia e
preocupada com a sua segurança se fosse um pouco mais franca a respeito do
Heaney’s. Agora, porém, que recordava todas aquelas pessoas de quem
gostava, sentia que ficariam muito mais alarmadas pelas mudanças que se
tinham operado nela e em Sam do que pela maneira como viviam.
De certeza não aprovariam o facto de ela se exibir vestida de cetim
escarlate, e menos ainda os dois ou três cálices de rum que bebia na maior
parte das noites em que tocava no Heaney’s. Ficariam horrorizadas ao saber
que se tornara amiga de uma prostituta e que o homem que desejava era um
mulherengo.
Quanto a Sam, ficariam chocadas por ele passar as noites fora e planear
ter a sua própria casa de jogo. Mrs. Bruce teria sem dúvida de abrir o seu
frasco de sais!
Entristecia-a pensar que estava a levar o género de vida que os seus
antigos amigos nunca aprovariam, mas não tinha a mais pequena intenção de
voltar atrás e ser uma sobrecarregada mas virtuosa criada de lavandaria. Cada
vez que subia a um palco sentia-se como uma ave a ser libertada de uma
gaiola, e adorava ser admirada e aplaudida.
A única parte da sua antiga vida de que realmente tinha saudades era
Molly. Isso era uma dor surda dentro dela que nunca desapareceria. No
entanto, estava, ao mesmo tempo, contente por a irmã se encontrar a salvo em
Inglaterra, já que aquilo não era lugar para uma criança.
Voltou costas à janela e olhou objectivamente para o quarto.
Apercebeu-se de que os toques de decoração que acrescentara representavam
aquilo que as coisas verdadeiramente eram. A colcha azul que servia de
cortina entre a cama dela e a de Sam estava agora presa com uma fita de
veludo vermelho, para lhe dar um pouco de elegância; os cartazes de teatro
escondiam as manchas nas paredes; os vestidos de cores garridas que usava no
Heaney’s eram também objectos de decoração, e todas as semanas comprava
um ramo de flores para fazer o quarto parecer mais acolhedor.
Mas tudo aquilo era como o verniz das cartas que escrevia para
Inglaterra. Só mascaravam o facto de o quarto ser triste e feio.
Pensou que Sam, com a sua natureza sensível, se apercebera
provavelmente de tudo aquilo no dia em que se tinham mudado para ali.
Talvez fosse por isso que estava tão determinado a ser rico, para não terem de
continuar a fingir nem de se envergonharem fosse do que fosse.
Para si, não desejava muito mais do que já tinha, só uma casa mais
sossegada, um quarto só para si e uma verdadeira casa de banho. Mas queria
voltar a casa um dia e ver Molly, e com toda a certeza não queria voltar como
uma parente pobre. Por isso talvez devesse começar a pensar no futuro e fazer
planos, como Sam.
Nessa noite, tocou melhor do que alguma vez tocara. Todo o seu corpo
pareceu ser possuído pela música, e dançou pelo palco, levando a multidão à
beira do frenesim. Os aplausos foram ensurdecedores, ninguém queria que ela
parasse, e Pat Heaney teve de subir ao palco para pôr fim àquilo.
– Não é maravilhosa, a nossa ciganinha? – gritou à multidão. – Vai estar
de volta para tocar para vocês na segunda-feira à noite, por isso vejam se não
faltam.
Foi à sala das traseiras levar-lhe o dinheiro quando ela estava a limpar o
suor da cara e do pescoço.
– Esteve muito bem esta noite – disse, com muito mais calor do que
geralmente mostrava. – Melhorou muito desde que começou a tocar aqui.
Estendeu-lhe o dinheiro, e ela viu que eram cerca de sete dólares. No
entanto, vira dúzias de notas de dólar serem atiradas para dentro do chapéu.
– Nesse caso, penso que é a altura de começar a pagar-me melhor –
disse, impulsivamente. – Ou pelo menos dar-me o chapéu para que seja eu a
contar o dinheiro.
O sorriso dele desapareceu, e Beth sentiu uma pontada de medo.
– Sua cabrazinha ingrata! – exclamou ele. – Estás a querer dizer que te
engano? Dei-te trabalho quando mais ninguém o faria.
Beth soube que aquele era o momento decisivo. Ia ter de recuar ou lutar.
Estava com muito medo; sabia que aquele homem era perigoso, os olhos frios
e a horrível cicatriz aterrorizavam-na. Mas naquela noite tocara com toda a
sua alma, e alguma coisa bem no fundo de si mesma dizia-lhe que tinha de
erguer a cabeça ou ir esconder-se debaixo da cama.
– O senhor foi a primeira pessoa com quem falei – respondeu,
desafiadoramente. – E logo a partir da primeira noite em que toquei aqui
houve muitos outros dispostos a contratar-me. Quanto a enganar-me, sei muito
bem que o fez desde o princípio. Nunca me deu metade do que estava no
chapéu.
– Fiz-te um favor! – rugiu ele.
– Não, não fez. Fez um favor a si mesmo – disse ela, esticando o
queixo. – Vêm muito mais pessoas nas noites em que eu toco, e ficam até mais
tarde e bebem muito mais. A si não lhe custa um cêntimo ter-me aqui, e os
clientes põem o dinheiro no chapéu para mim porque gostam da minha
música.
Portanto, ao ficar com ele, está a enganá-los também a eles.
– Sabes o que acontece às pessoas que me traem? – perguntou Heaney,
aproximando tanto o rosto do dela que Beth sentiu o cheiro a whisky que lhe
empestava o hálito.
– Eu não o traí. Mas se chama traição a sair daqui e ir trabalhar para
outro bar, então é o que farei a menos que me pague aquilo a que tenho
direito.
Viu que ele estava tentado a bater-lhe, a mão que segurava o dinheiro a
cerrar-se num punho, mas manteve-se firme, apesar de estar cheia de medo.
Heaney gritou um chorrilho de insultos, mas Beth pegou no casaco e
vestiu-o.
– Tem um minuto para subir isso para quinze dólares – disse, olhando
para o dinheiro que ele tinha na mão. – Ou saio por aquela porta e nunca mais
volto.
– O teu irmão vai para a rua se o fizeres – disse ele, os olhos a
semicerrarem-se como os de uma cobra.
– Então é mais parvo do que eu pensava – replicou Beth, secamente. –
Onde é que vai arranjar outro barman honesto como ele?
Ele ergueu o punho, mas Beth estava tão furiosa que lhe afastou a mão
com uma palmada.
– Bata-me, e vou tocar no bar aqui ao lado, só para lhe mostrar como é
– sibilou. – E o Sam também nunca mais voltará a trabalhar para si. O seu
minuto acabou. Dê-me os quinze dólares ou saia da minha frente.
Soube que tinha ganhado quando ele enfiou a mão no bolso, tirou de lá
um rolo de notas e separou algumas. De uma maneira estranha, ficou
desapontada, porque ele acabava de provar como ela era valiosa, e agora não
podia sair e ir trabalhar para alguém de quem gostasse e em quem confiasse.
– A partir de agora, quero ser eu a contar o dinheiro – avisou. –
Dar-lhe-ei a sua metade porque foi o que combinámos, mas tente voltar a
enganar-me e vou-me embora.
Passou por ele, entrou no bar e dirigiu-se a Sam.
– Tem cuidado com o que lhe dizes esta noite – sussurrou. – Acabo de
ter uma discussão com ele.
Sam fez um ar preocupado e olhou para a porta da sala das traseiras.
– Vou ter de ficar até mais tarde, por causa do jogo. Ele vai chamar um
fiacre?
– Eu acompanho-a a casa – disse uma voz familiar nas costas dela. –
Isto, claro, se a Beth estiver de acordo.
Beth rodou sobre os calcanhares.
– Theo! – exclamou, incapaz de esconder a sua alegria.
Enquanto o fiacre sacolejava a caminho de Houston Street, Beth fez a
Theo um resumo do que se passara.
– Claro que fizeste bem em defender os teus direitos – disse ele. – E
foste muito corajosa. Mas o Heaney é um homem vingativo, Beth, tenho
ouvido muitas histórias a respeito dele.
– Não vai fazer mal ao Sam, pois não? – perguntou ela, receosa.
– Penso que não, precisa dele. E duvido que se atreva a fazer qualquer
coisa contra ti, há demasiados clientes que o pendurariam pelo pescoço se o
fizesse. Mas é melhor tu e o Sam terem cuidado. Talvez fosse boa ideia tentar
amaciá-lo um pouco da próxima vez que fores tocar.
– Não vou fazer nada disso! – protestou Beth, indignada.
Theo suspirou
– Minha querida, escuta o meu conselho. Desarma sempre os teus
inimigos com encanto. Resulta muito melhor do que punhos, pistolas e facas.
Quando o fiacre se deteve diante do prédio de Beth, Theo pegou na mão
dela.
– Agora tenho de voltar para lá, mas posso levar-te a algum lado
amanhã?
Beth sorriu, a sua altercação com Heaney quase varrida pelo convite.
– Gostaria muito – disse.
– Nesse caso, venho buscar-te à uma. Agora, que tal um daqueles
maravilhosos beijos?
A escada estava mergulhada na mais absoluta escuridão, como sempre.
O único candeeiro a gás ficava junto à porta, e há muito que fora apagado.
Beth sentia-se como se tivesse sido enfeitiçada enquanto subia às apalpadelas
até ao último andar. O beijo de Theo incendiara-a, sentia o coração a bater
loucamente e estava ofegante da subida. Tropeçou várias vezes nos degraus,
mas a excitação que a dominava por ir voltar a ver Theo no dia seguinte
afastava qualquer pensamento da cena com Heaney.
Uma vez no quarto e acendido o candeeiro a petróleo, deixou-se cair em
cima da cama, ainda a ofegar. Theo desejava-a, e isso era a única coisa que
importava.
– Estás encantadora, Beth – disse Theo mal se apeou do fiacre para a
cumprimentar, no dia seguinte. – Espero que não tenhas tido de esperar aqui
ao frio durante muito tempo?
– Oh, não, acabei agora mesmo de descer – mentiu ela. Na realidade, há
mais de vinte minutos que estava à espera no portal, demasiado receosa de
ficar em casa não fosse ele entrar pela porta sempre aberta e ver, ouvir e
cheirar como era sujo, barulhento e malcheiroso o lugar onde ela vivia.
Bem desejaria saber com mais antecedência aonde tencionava ele
levá-la, para poder arranjar na loja de Ira qualquer coisa nova para vestir.
Sendo assim, ia ter de usar o mesmo velho casaco castanho, embora tivesse
pedido emprestados a Amy uma estola de pele de raposa e um chapéu para o
animar um pouco. O vestido era de crepe violeta-escuro, com gola e punhos
de renda creme. Um pouco antiquado, uma vez que fora uma oferta de Mrs.
Langworthy.
– Pensei levar-te a Central Park – disse Theo, enquanto a ajudava a
subir para o fiacre. – As árvores devem estar lindas, com as suas cores de
Outono, e depois vamos a um restaurante que conheço e que fica perto.
Beth não ia a Central Park desde Agosto, quando a erva estava castanha
devido à falta de chuva.
Então, até as folhas das árvores pendiam flácidas e cobertas de pó.
Agora, porém, a beleza voltara, a relva era um manto luxuriantemente verde e
as árvores pinceladas de amarelo, vermelho, dourado e castanho a brilhar ao
sol.
Passearam de braço dado à volta do lago, e Theo contou-lhe que
ganhara muito dinheiro na noite anterior, no Heaney’s.
– Não vou lá voltar nos próximos tempos – disse. – O Heaney é má
peça e não me espantaria nada que pagasse a alguém para me atacar e roubar
quando saísse. Ele sabe que te acompanhei a casa ontem à noite, de modo que,
se te perguntar alguma coisa a meu respeito, diz que mal me conheces e que só
nos vimos uma vez no navio, quando vínhamos para cá.
– E é só o que posso dizer – respondeu ela, maliciosa. – Não sei muito
mais a teu respeito.
Ele riu.
– Uma situação que eu tenciono corrigir hoje. Muito bem, o que é que
gostarias de saber?
Sentaram-se num banco junto ao lago e ele falou-lhe dos pais, do irmão
mais velho, das suas irmãs mais novas e da casa da família.
Beth ficou com a imagem de uma mansão rodeada de campos
cultivados, com uma alameda ladeada de árvores a desembocar no grande
pátio diante da porta principal. Theo tinha sido educado em casa, por uma
preceptora, e, mais tarde, num colégio interno. O pai geria pessoalmente a
propriedade e Theo descreveu-o como um homem brusco, teimoso e egoísta
que não tinha paciência para quem não fosse forte, ou não montasse ou
caçasse tão bem como ele.
– Felizmente para mim, montava e caçava tão bem, senão melhor, do
que ele – acrescentou, com um sorriso. – Mas isso não bastava para
compensar a minha falta de interesse pela agricultura, nem a minha reputação
de mulherengo. Ele acusava a minha mãe de ser a culpada destes defeitos, mas
a verdade é que a acusava de ser a culpada de quase tudo.
Disse que a mãe era uma mulher carinhosa mas frágil, incapaz de fazer
frente ao autoritário marido.
O irmão mais velho era igual ao pai, e Theo sentia que não tinha nada
em comum com qualquer um deles. Gostava muito das irmãs, mas elas eram,
infelizmente, muito parecidas com a mãe, indecisas, fracas e sem opiniões
próprias, de modo que, pensava, estavam condenadas a casar com homens
iguais ao pai.
– Eu sou a ovelha ronhosa – disse, com um encolher de ombros. –
Sempre quis mais do que me era oferecido… excitação, cor e novas
experiências. A ideia de viver o género de vida tranquila que o meu pai
aprovava, e que inevitavelmente significaria casar com alguém apropriado,
enchia-me de horror. Queria aventura, e quando casar será também uma
aventura, com uma mulher capaz de pensar por si mesma, apaixonada, com
sentido de humor. Não quero que os meus filhos sofram o género de
formalismo em que fui criado.
Beth pensou secretamente que aquela descrição poderia aplicar-se a ela,
mas guardou este pensamento para si e contou-lhe que estivera destinada a ser
a filha obediente e caseira até que a morte dos pais a empurrara para um
género diferente de servidão.
Disse que o pai morrera de um ataque cardíaco e a mãe ao dar à luz
Molly, mas passou rapidamente para a parte em que fora trabalhar para os
Langworthy, aligeirando a história ao deixar bem claro como os dois tinham
sido bons para ela.
– Não estava com muita vontade de sair de Inglaterra – admitiu. – Mas
era o melhor, e Mrs.
Langworthy escreve-me de vez em quando a dizer como está a Molly.
– És uma rapariga muito corajosa – disse Theo, pensativamente. –
Muito poucas conseguiriam enfrentar tanta coisa com tão pouca idade. Tenho
a certeza de que os teus pais se orgulhariam de ti.
Beth riu.
– Não estou muito segura de que aprovassem o facto de eu tocar violino
num bar.
– Estás a usar um talento que Deus te deu, e ao fazê-lo tornas muitas
pessoas felizes. Para mim, isso é louvável.
– Antigamente, o meu sonho era tocar piano no salão de um hotel
elegante – disse ela. – Certamente, não esperava acabar a viver num pardieiro
e a trabalhar para um bandido.
Theo abanou a cabeça, divertido.
– Não tardarás a subir na vida. O Sam falou-me, ontem à noite, dos seus
planos para trabalhar numa casa de jogo. E eu acredito que vai conseguir: é
esperto, tem encanto e, além disso, tem-te a ti. A minha aposta é que os dois
hão-de fazer fortuna.
– É preciso dinheiro para começar – suspirou Beth.
– Nem sempre. – Theo sorriu e fez-lhe uma cócega debaixo do queixo.
– O encanto e a boa vontade encontram sempre quem os apoie. Tenho um tio
muito pouco respeitável a quem se diz que saio. O
conselho que me deu, certa vez, foi que nunca se deve investir o nosso
próprio dinheiro num negócio.
Tem vivido de acordo com esta regra e amealhou uma fortuna.
– E tu, quais são os teus planos? – perguntou ela.
– Por agora, ver quanto dinheiro consigo ganhar em Nova Iorque,
enquanto mantenho os ouvidos atentos aos rumores a respeito da próxima
boomtown.
– Boomtown? – exclamou Beth. – O que é isso?
Theo chupou as bochechas para dentro.
– Como São Francisco em 49, por exemplo. Era uma pequena aldeia de
pescadores, até que descobriram ouro nas redondezas. Então foi invadida por
dezenas de milhar de pessoas e fizeram-se fortunas.
– Mas foram poucos os que encontraram ouro – disse Beth, recordando
o facto das suas lições de História.
– Os verdadeiramente espertos não vão à procura daquilo que provocou
a corrida, seja ouro, diamantes ou prata – explicou Theo, com uma pequena
gargalhada. – É sempre um trabalho muito duro, e são poucos os que
conseguem ficar ricos. Os verdadeiramente espertos, as pessoas como tu e eu,
vão para oferecer serviços, lojas, bares, hotéis, restaurantes, salões de dança e
de música.
Beth riu.
– E eu toco violino num desses lugares e eles atiram-me pepitas de
ouro?
– Exactamente – disse Theo, com um sorriso. – Não teria graça
nenhuma para eles serem ricos sem poderem gastar à louca.
– Mas de certeza, por esta altura, já todo o ouro, diamantes e prata
foram descobertos?
– Não necessariamente. Há grandes partes da América que continuam
em estado praticamente selvagem, e quem sabe o que poderá estar escondido
debaixo do chão? Mas as boomtowns podem surgir por outros motivos. O
caminho-de-ferro, por exemplo… por onde ele passa, as pessoas querem
casas, lojas e tudo o mais.
– E casas de jogo? – perguntou ela, arqueando ironicamente uma
sobrancelha.
Ele sorriu, com um brilho de malícia nos olhos escuros.
– E casas de jogo.
– Bem, se souberes de uma dessas boomtowns, não te esqueças de dizer
ao Sam e a mim. Teríamos muito gosto em ir contigo.
Theo estivera sentado com o braço em cima das costas do banco, e
subitamente passou-o para os ombros dela.
– Não consigo imaginar duas pessoas mais indicadas para me
acompanharem – disse. – O Sam ameaça ser uma força a ter em conta,
determinado como é. Quanto a ti, com o teu violino, serás um trunfo em
qualquer lado.
Beth pensou que ele ia beijá-la, mas Theo deve ter-se lembrado que não
era adequado beijar uma jovem em público, pois, de repente, disse que
começava a fazer frio e que era tempo de procurarem um café para se
aquecerem.
Enquanto saíam do parque, Beth pensou em como ele era perfeito:
atraente, um cavalheiro e, ainda por cima, divertido.
Jack fora também uma companhia agradável, mas em comparação com
Theo era apenas um rapaz, sem refinamento nem educação. Quando lhe
pegava na mão era desajeitadamente, beijava-a com sofreguidão e não tinha a
capacidade de dizer coisas que fizessem uma rapariga tremer e palpitar.
Quando Theo lhe pegava na mão, o polegar dele acariciava o dela; se
lhe punha a mão na cintura, apertava-a muito ao de leve. Descobriram um
pequeno café do outro lado da rua em frente do parque e, quando se sentaram,
ele pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios, não só para a beijar, mas para tocar
delicadamente com a ponta da língua em cada um dos dedos dela.
– O que eu queria era beijar-te na boca, mas isto vai ter de servir, por
enquanto – sussurrou.
Era o inesperado dos pequenos toques e elogios dele que os tornava tão
excitantes.
Ele estava a falar do drama de alguns imigrantes que, incapazes de
encontrar um lugar onde viver, tinham sido apanhados a tentar acampar
debaixo dos arbustos em Central Park, mas interrompeu-se repentinamente
para afastar uma madeixa de cabelo que se escapara de baixo do chapéu de
Beth.
– Os teus olhos são como fundos lagos de floresta – disse, e logo a
seguir voltou ao que estava a dizer.
Enfiou um dedo por baixo da manga do casaco dela, como para lhe
medir o pulso, e a intimidade do gesto fê-la corar.
– A tua pele é suave e macia como a de um bebé – sussurrou.
Quando Beth deixou cair a colher no chão, porque Theo a deixava
atrapalhada, ele baixou-se para a apanhar e pousou a mão na perna dela, logo
acima do cano da bota que lhe chegava ao tornozelo.
Mas não era apenas o contacto da mão dele que a incendiava, era
também a maneira como falava. A voz era profunda, mas suave e culta, e
quase tudo o que lhe dizia, fosse a respeito da sua vida em Inglaterra ou das
pessoas que conhecera desde que chegara à América, era tão vividamente
descrito que ela via as imagens como num livro.
– Miss Marchment, a minha senhoria, vive com grandes dificuldades –
contou-lhe. – Tem um ar de duquesa, apesar de ser velha e frágil e de o seu
único rendimento ser a renda dos quartos que aluga.
Passa os dias sentada num cadeirão de veludo desgastado pelos anos,
com um xaile de renda à volta dos ombros, e dá ordens à sua única criada
como se continuasse a controlar uma vasta criadagem. A casa está a cair, de
tanto abandono, os tapetes estão no fio, uma espessa camada de pó cobre os
retratos, os espelhos e os ornamentos, mas ela continua a convidar-me para o
chá e manda a criada servi-lo no velho e amolgado bule de prata. É
verdadeiramente magnífica!
– A criada limpa o teu quarto? – perguntou Beth, preocupada com a
ideia de ele viver em más condições.
– Limpa, sim. Julgo que sabe que se os inquilinos se forem embora
deixará de haver dinheiro para lhe pagar o ordenado. Mas a pobre criatura tem
tanto que fazer que não lhe resta tempo para limpar como deve ser os
aposentos da patroa.
– Também é velha?
– À volta dos cinquenta. Toda a vida trabalhou para Miss Marchment.
Mas tu não queres ouvir histórias tristes a respeito de senhoras de idade.
Fala-me das pessoas que vivem no teu prédio.
Foi talvez por ele descrever as pessoas de uma forma tão vívida que
Beth deu por si a fazer o mesmo. Falou-lhe do irlandês maluco do primeiro
andar que gritava a todos os que lhe passavam diante da porta, e do estranho
homenzinho polaco que descia a rua com passos curtos e apressados a apertar
uma sacola de couro castanho contra o peito, os olhos a saltitar de um lado
para o outro como se transportasse segredos de Estado e acreditasse que
alguém queria roubar-lhos. Theo riu à gargalhada, o que fez as outras pessoas
presentes no café voltarem-se para olhar.
– Acho que são horas de irmos jantar – disse, ainda a rir e voltando a
pegar-lhe na mão para a beijar. – É tão bom estar com uma mulher bonita que
também me faz rir. Descobri que a maior parte das mulheres bonitas não tem
sentido de humor.
Quando chegou o Dia de Acção de Graças, em Novembro, Beth estava
tão profundamente apaixonada por Theo que não conseguia pensar noutra
coisa desde que abria os olhos, de manhã, até que voltava a adormecer, à
noite.
Sentia que também ele a amava, apesar de nunca lho ter dito, porque
fazia sempre um esforço para a ver uma vez por semana, mesmo quando tinha
de sair de Nova Iorque para tratar de negócios. E não a abandonara por ela não
o deixar aproveitar-se da situação.
Perguntara-lhe se podia subir até ao quarto dela da segunda vez que
tinham saído, mas ela recusara porque sabia que muito provavelmente se
deixaria arrebatar pelos seus beijos e carícias quando estivessem os dois
sozinhos.
No terceiro encontro, sugerira levá-la a passar a noite num hotel. Ela
fingira-se ofendida pela sugestão, mas a verdade era que se sentira tentada,
porque ao menos os vizinhos não saberiam o que andava a fazer. Mas a doce
razão prevalecera; só precisara de pensar no que tinha acontecido à mãe para
saber que não podia correr o risco, não só de engravidar, mas também de Theo
a pôr de lado depois de ter conseguido o que queria.
Desde então, Theo não se cansara de repetir quanto a desejava, mas
apesar de recorrer a uma enorme quantidade de gentil persuasão, nunca tentara
forçá-la. E quando falava do futuro, era como se os seus planos a incluíssem a
ela.
Por mais que as longas ausências de Theo a entristecessem, Beth ficou
aliviada por ele continuar para fora à medida que o Dia de Acção de Graças se
aproximava. Amy e Kate tinham decidido que o primeiro Dia de Acção de
Graças de Sam e de Beth na América tinha de ser devidamente assinalado e
planeavam preparar-lhes um tradicional jantar de peru.
Uma vez que tinham tão pouco espaço no seu próprio apartamento,
tinham pedido a Beth que as deixasse cozinhar no dela, e sugerido que os
Rossini fossem igualmente convidados. Beth dissera a Sam que convidasse a
namorada, mas a expressão de horror dele deixara bem claro que não tinha a
mínima intenção de levar a sua apaixonada para um jantar com duas
prostitutas e um velho casal italiano que só falava um arremedo de inglês.
No entanto, à medida que o dia se aproximava, o entusiasmo de Amy
por aquela refeição especial começou a contagiar Beth e Sam. Sam levou para
casa uma velha porta e montou-a em cima de um par de cavaletes para fazer
uma mesa suficientemente grande para todos; pediram cadeiras emprestadas
aos outros inquilinos do prédio; Ira emprestou-lhes uma toalha bordada e Mrs.
Rossini desencantou nas suas velhas receitas de família a de uma sobremesa
especial.
Amy e Kate excederam-se na preparação do jantar. Às seis horas, estava
tudo pronto, o peru de um profundo castanho-dourado e os vegetais
perfeitamente cozidos. Preparavam-se para ocupar os respectivos lugares à
volta da mesa quando Jack apareceu.
Beth vira-o algumas vezes desde a separação, quase sempre no
Heaney’s, onde só podia acenar-lhe de longe, mas ele passara um par de vezes
pela loja de Ira para dizer olá. Da primeira vez, ela receara que andasse a
persegui-la, mas quando Jack deixara bem claro que queria apenas vê-la,
referindo inclusivamente uma rapariga que levara a dançar, Beth ficara
contente por poderem voltar a ser amigos.
– Não teria vindo se soubesse que tinham companhia – disse Jack, um
pouco embaraçado. – Trouxe carne e fruta.
– É um prazer ver-te e és mais do que bem-vindo – respondeu Beth,
tirando-lhe o saco das mãos.
Continha várias costeletas de borrego, algumas salsichas, laranjas e
maçãs. – Obrigada. Foste muito gentil.
– O patrão deu a todos um saco de coisas para o Dia de Acção de
Graças – explicou ele, envergonhadamente. – Demasiado para eu comer
sozinho.
A inesperada chegada de Jack acabou por revelar-se uma bênção,
porque ele teve artes de transformar uma festa sem graça num alegre e ruidoso
evento.
Fez Amy e Kate rir à gargalhada, poupou a Sam o embaraço de ter de
distrair todas as mulheres e, uma vez que aprendera um pouco de italiano com
alguns colegas de trabalho, pôde incluir os Rossini na conversa.
Beth notou que o tosco rapaz com poucas ou nenhumas graças sociais
que conhecera no navio se tinha transformado num homem cheio de confiança
e muito divertido. O duro trabalho físico tinha-lhe dado músculo, o rosto
anguloso tornara-se mais cheio e a cicatriz dava-lhe um carácter especial.
Contou-lhes histórias cheias de humor a respeito dos homens com que
trabalhava, mas temperadas por uma grande compreensão pelos problemas
que muitos daqueles imigrantes enfrentavam.
Beth viu-o namoriscar com Amy e Kate e adivinhou que adquirira
muita da sua confiança através de mulheres. Riu quando ela lhe perguntou se
tinha namorada e respondeu, encantadoramente, que o seu coração continuava
à guarda dela. Mas o próprio comentário provava que alguém era responsável
por tê-lo polido. Nunca teria dito uma coisa daquelas nos tempos em que
passeavam juntos.
No fim da noite, todos eles tinham bebido demasiado vinho. Os Rossini
beijaram toda a gente em ambas as faces e agradeceram profusamente antes de
irem para a cama. Também Amy e Kate se retiraram, e foi só quando Jack
ficou, sentado na cama de Sam, que Beth receou que ele fosse tornar-se difícil.
Mas estava enganada.
– Espero que não pensem que vim aqui esta noite à procura de um jantar
à borla – disse, olhando de Beth para Sam. – Não é nada disso. Vim porque há
dias ouvi uma coisa que me preocupou.
– A respeito da Beth? – perguntou Sam.
– Não, não foi a respeito de nenhum de vocês, foi a respeito do Pat
Heaney. Vêm aí sarilhos, ele arranjou problemas com um sujeito chamado
Fingers Malone. Tanto o Fingers como o Heaney têm um gangue por trás,
tipos que andam nesta vida desde muito novos.
Sam assentiu.
– Ouvi falar disso. E também conheci o Fingers… costumava ir ao bar
todas as noites, quando comecei a trabalhar lá.
– Sim, bem, o que corre por aí é que vai haver um ajuste de contas, em
breve. Não vai ser apenas uma coisa entre o Heaney e o Fingers, pode
descambar numa guerra entre gangues. Achei melhor avisá-los, para poderem
sair de lá ao primeiro sinal de sarilhos.
– Vamos seguir o teu conselho – disse Sam, um tudo-nada secamente,
como se estivesse ofendido por Jack saber daquilo primeiro do que ele.
– Não é só isso. – Jack olhou fixamente para Sam. – Estou preocupado
com a segurança da Beth.
Ela é valiosa para o Heaney, e o Fingers sabe disso. Pode até pensar que
está com ele.
– Como pode alguém pensar uma coisa dessas? – exclamou Beth.
– Talvez porque o Heaney queira que as pessoas o pensem – respondeu
Jack.
*
Jack saiu pouco depois, e mal a porta se tinha fechado e já Sam estava a
afirmar que tudo aquilo era puro disparate.
– O que é que ele sabe? Não deve passar de um boato mal-amanhado
que ele apanhou sabe-se lá onde e que está a usar para parecer importante.
– Isso é muito feio – protestou Beth, indignada. – Só estás furioso por o
Jack ter sabido antes de ti.
Mas ninguém se atreveria a dizer-te fosse o que fosse; estás demasiado
próximo do Heaney, e as pessoas teriam medo de que o avisasses.
– Eu, próximo do Heaney! – Foi a vez de Sam se indignar. – Não
suporto o homem!
– Não é o que parece às outras pessoas. Todos sabem que ele confia em
ti.
– O que o Jack quer é voltar a aproximar-se de nós – disse Sam,
depreciativamente. – Que melhor maneira de o fazer do que inventar uma
história a respeito de estares em perigo? Quando deres por ela, está a
oferecer-se para te acompanhar a casa todas as noites; tem ciúmes porque
ouviu dizer que andas a sair com o Theo.
Beth estava menos preocupada com as rivalidades entre gangues do que
com Theo, que continuava ausente. Sempre que tocava no bar, examinava os
rostos à sua volta, na esperança de o ver.
Sam tomou a precaução de levá-la a casa de fiacre depois das actuações,
mesmo que isso significasse que tinha de voltar ao bar para servir os clientes
durante as sessões de jogo particulares.
Mas fazia questão de deixar claro que era o que um irmão devia fazer e
que não tinha nada a ver com o que Jack dissera.
Nevou na noite do segundo aniversário de Molly, em meados de
Dezembro, e Beth acordou para encontrar a cidade sob um manto branco que
despertou nela dolorosas recordações do nascimento da irmã e da morte da
mãe. Sempre se esforçara muito por não pensar na mãe. Mesmo quando
enviara uma prenda e um postal por ocasião do aniversário de Molly, duas
semanas antes, cingira os seus pensamentos a como a irmã seria agora, não à
maneira como tinha nascido. Mas com Theo ainda ausente e sem notícias dele,
não conseguia impedir-se de sentir que tinha sido posta de lado, tal como a
mãe.
Veio mais neve e as lojas de Nova Iorque estavam lindas, todas
enfeitadas para o Natal. Muitas das mais elegantes tinham instalado a nova luz
eléctrica, e quando a escuridão descia sobre as ruas, as suas montras
fantasticamente decoradas refulgiam de luz e cor. Até as lojas mais pequenas e
as bancas de rua ostentavam enfeites e reforçavam o número de candeeiros a
petróleo, havia grandes árvores de Natal em muitas praças e o ar estava
carregado do cheiro rico das castanhas a assar em fogões a carvão.
Beth comprou prendas – um cachecol de lã azul para Sam, sabonetes
perfumados para Kate e Amy, um frasco de água-de-colónia de alfazema para
Ira – e esperou que o bonito vestido vermelho e a boneca de trapos que
enviara para Molly chegassem a tempo do Natal. Queria comprar um presente
também para Theo, mas decidiu esperar um pouco mais, para ver se ele
voltava a aparecer.
Dois dias antes da Véspera de Natal, e ainda sem notícias, Beth estava
muito triste. A azáfama na loja fora constante durante todo o dia, e os
constantes gritos de «Feliz Natal» quando os clientes saíam faziam-na
sentir-se ainda pior, sabendo que não tinha ninguém especial com quem passar
o dia.
Ira, que de certeza notara que ela não estava bem, sugeriu,
inopinadamente: – Querida, devias pedir ao Jack que te leve a dançar. Não
vais ficar pendurada à espera de um homem que não tem sequer tempo para
escrever-te uma carta quando está longe para te dizer que pensa em ti.
Beth não gostava que Ira fizesse este género de comentários. Amuou
durante algum tempo, mas, a meio da tarde, passou-lhe e provou um bonito
vestido rosa-escuro que, como Ira observara, era perfeito para ela.
Ira tinha razão, e quando Beth perguntou se podia comprá-lo, Ira disse
que gostaria de lho oferecer, como prenda de Natal.
– És uma boa rapariga… nem sei como consegui governar-me antes de
teres aparecido – disse Ira, com os olhos ligeiramente húmidos. – Oferecer-te
um vestido que foi feito para ti é o menos que posso fazer para te agradecer.
– Nesse caso, não vou ficar pendurada à espera do Theo – respondeu
Beth. – Vou aceitar o convite que os Rossini nos fizeram, a mim e ao Sam,
para passar o Natal com eles. E se o Jack estiver no Heaney’s esta noite, talvez
até sugira que me leve a dançar.
Fazia um frio cortante quando saiu da loja, às cinco da tarde. Enfiou o
embrulho com o vestido novo debaixo do braço, enrolou o cachecol à volta do
pescoço e, com as mãos metidas no regalo de pele que Ira também lhe dera,
encaminhou-se para o mercado com a intenção de comprar fruta e doces para
partilhar com os Rossini.
Havia uma nova alegria nos rostos das pessoas enquanto Beth descia a
Bowery. Um músico ambulante tinha enfeitado o seu realejo com estrelas de
papel de estanho e tocava «Noite de Paz», e viu um grupo de crianças
observarem, fascinadas, um homem numa banca dar corda a alguns
brinquedos mecânicos. Parou para ver um urso tocar pratos e um homem a
remar num barco. Ainda pensou em comprar o urso e mandá-lo para Molly,
mas decidiu que o mais certo era acabar partido nos correios.
Dobrou a esquina e, depois da luz intensa da Bowery, a escuridão era
como um manto negro. Sentiu alguém atrás de si, mas isso não tinha nada de
invulgar, àquela hora do princípio da noite.
Quando uma mão lhe agarrou um ombro, deixou cair o embrulho,
assustada.
– Não faças barulho – disse uma voz rouca de homem. – Tenho uma
faca apontada às tuas costas.
Imobilizou-se, pois sentia qualquer coisa a fazer-lhe pressão no casaco.
O seu primeiro pensamento foi que o homem queria roubá-la, o que não era
invulgar naquela área.
– Só tenho um par de dólares – disse. – Mas pode levá-los.
– Vales mais para mim do que um par de dólares – rouquejou o homem.
– Agora continua a andar, faz o que eu te disser e vai correr tudo bem. Se
deres um pio, espeto-te a faca.
CAPÍTULO 16
–Onde está a tua irmã? – perguntou Pat Heaney a Sam. Tirou o relógio
do bolso do colete e olhou para ele. – Qual é o jogo dela? São quase oito e
meia!
O bar estava apinhado e Sam andara tão atarefado durante a última hora
que nem dera pela passagem do tempo. Mas, ao ouvir as palavras de Heaney,
olhou para o relógio pendurado na parede atrás do balcão.
– Não sei onde ela está – disse, sentindo no mesmo instante um arrepio
gelado descer-lhe pela espinha, porque Beth nunca se atrasava. – Hoje
trabalhou na loja, como de costume. O Pitosga foi lá comprar qualquer coisa e
viu-a.
O Pitosga era o faz-tudo do bar e merecera a simpática alcunha pelo
facto de ser míope como uma toupeira e usar uns óculos de grossas lentes.
– Se ela me deixa ficar mal esta noite, pode dizer adeus ao lugar –
rosnou Heaney.
– Claro que não vai deixá-lo ficar mal – respondeu Sam,
defensivamente. – Mesmo que tivesse adoecido, tinha-lhe mandado recado.
– Talvez tenha acontecido alguma coisa à velha coruja da Roebling –
disse Heaney. – Vou mandar o Pitosga verificar.
Havia homens a pedir aos gritos de beber, e, enquanto lhes servia
canecas de cerveja e recebia o dinheiro, Sam lembrou-se do aviso de Jack.
Ficara convencido de que Jack inventara toda aquela história a respeito
da guerra entre Fingers Malone e Heaney como uma artimanha para voltar a
aproximar-se dele e de Beth. A única razão que o levava a acompanhar a irmã
a casa todas as noites era não lhe dar uma desculpa para se intrometer.
Agora, no entanto, o alerta já não lhe parecia assim tão fantasioso, e por
isso continuou a servir bebidas com um olho na porta. Quando o Pitosga
voltou, dez minutos mais tarde, e se dirigiu a Heaney, não conseguiu esperar
mais. Abandonou o balcão e abriu caminho por entre a multidão de bebedores
até ao patrão.
– Alguma novidade? – perguntou.
– Saiu da loja às cinco – grunhiu Heaney. – Tencionava passar pelo
mercado antes de ir para casa.
É melhor ires ver se lá está.
Sam correu o caminho todo até Houston Street, as pernas a funcionarem
como pistões. Galgou os degraus da escada aos dois de cada vez e irrompeu
no apartamento. Mrs. Rossini estava na cozinha e olhou para ele,
surpreendida.
– A Beth veio a casa? – perguntou Sam.
Mrs. Rossini abanou a cabeça e disse qualquer coisa em italiano. Sam
adivinhou que estava a tentar perguntar-lhe porque parecia tão preocupado.
Mas não tinha tempo para procurar palavras que ela compreendesse, e entrou
no quarto. O estojo do violino estava pousado no chão, junto à janela,
exactamente no mesmo sítio onde o vira antes de sair, ao meio-dia, para ir
trabalhar. Olhou para os vestidos que ela usava para tocar, e todos os três
continuavam pendurados na parede.
Apercebeu-se de que era possível que Theo tivesse voltado, a tivesse
encontrado à saída da loja e levado para um lado qualquer. Em circunstâncias
normais, Beth não iria a parte nenhuma sabendo que era esperada no bar, mas,
como bem sabia, o coração sobrepõe-se sempre à cabeça quando anda
romance no ar, e havia semanas que ela andava a chorar por Theo.
No entanto, mesmo que fosse esse o caso, teria passado por ali primeiro
para lhe deixar uma nota, quanto mais não fosse para lhe pedir que dissesse a
Heaney que estava doente.
Amy e Kate tinham saído e ninguém da família irlandesa que partilhava
o apartamento com elas vira Beth.
Correu de volta ao Heaney’s. Estava, agora, verdadeiramente assustado.
A segurança de Beth era a sua principal preocupação, mas não lhe agradava
nada a ideia de ter de dizer a Heaney que ouvira rumores a respeito de Fingers
Malone e não os divulgara.
Na sala das traseiras do bar, Sam disse a Heaney que receava que
Fingers tivesse raptado Beth e porquê, e, como seria de esperar, o homem
ficou furioso.
– Ouviste dizer que o Fingers ia declarar-me guerra e não me avisaste?
– rugiu.
Sam pediu desculpa e explicou que não tinha acreditado.
– Fui avisado para olhar pela Beth. Por isso tenho tanto medo de que o
tenham feito.
Estava à espera de ver Heaney troçar daquilo, mas ele não o fez. Em vez
disso, coçou a cabeça e fez um ar preocupado.
– Tê-la-ão levado? – perguntou Sam.
– Como raios queres que saiba? – rosnou Heaney. – Mas uma coisa é
certa, não tardaremos a saber se o filho da mãe a tem, porque vai exigir
alguma coisa.
Não queria saber dos medos de Sam. Era evidente, pela sua agitação,
que o que o preocupava não era a segurança de Beth e sim o ataque ao seu
prestígio.
– Volta para o teu trabalho e não fales disto a ninguém – ordenou.
Sam teve vontade de esmurrar aquele patife por ser tão insensível.
Queria que ele subisse ao palco, anunciasse que Beth tinha desaparecido e
perguntasse se alguém sabia alguma coisa. Mas a razão prevaleceu, pois
apesar de ter a certeza de que a esmagadora maioria dos homens presentes no
bar ajudaria de boa vontade a procurar Beth, Nova Iorque era muito grande.
Beth podia estar sabia-se lá onde, e dúzias de homens a correrem às cegas de
um lado para o outro com o sangue a ferver só serviria para arranjar mais
sarilhos.
Foi a noite mais longa que alguma vez passara. Teve de ouvir Heaney
anunciar que Beth não poderia tocar, ver o desapontamento na cara dos
homens e ouvi-los perguntarem-lhe constantemente se ela estava doente.
Heaney mandou-o para casa à meia-noite.
– Não vão fazer nada antes de amanhã – disse, dando uma palmada no
ombro de Sam, o que era o mais perto que conseguia chegar de mostrar
qualquer coisa parecida com compreensão. – Não é a primeira vez que passo
por este género de coisa, rapaz. Vão fazer-nos suar antes de mostrarem o jogo.
Sam suou, sem dúvida. Deitado na cama, a olhar para a cama vazia de
Beth, amaldiçoou-se a si mesmo por ter ignorado o aviso de Jack. Fora pura
arrogância da sua parte; não quisera admitir que um homem que considerava
seu inferior soubesse mais do que ele. Nunca aprovara a amizade de Jack com
Beth, e no entanto fingira que sim porque isso o desobrigava de tomar conta
da irmã e lhe permitia passar mais tempo com outras mulheres.
Até àquela noite, orgulhara-se das suas muitas conquistas. Saber que era
capaz de, com as suas falinhas mansas, levar qualquer rapariga para a cama
fazia-o sentir-se forte. Mas agora, quando pensava em Polly, Maggie, Nora e,
mais recentemente, Annie, tinha vergonha de si mesmo. Todas elas eram
actrizes ou bailarinas, raparigas que já tinham sido arruinadas por outro
qualquer, alvos fáceis na medida em que eram vulneráveis e estavam
desesperadas por amor. Na realidade, sabia que todas elas acabariam
provavelmente por tornar-se prostitutas mais cedo ou mais tarde. Não
compreendia agora como pudera ser tão hipócrita em relação a Jack, pois
apesar de o rapaz ser um pouco rude, sempre tratara Beth com o maior
respeito e verdadeiro afecto.
Theo, pensando bem, era um animal muito mais perigoso. Era não só
atraente e bem-educado mas também melífluo e calculista. Sam vira-o jogar
póquer várias vezes e ficara espantado pela sua frieza e sofisticação. No
último jogo no Heaney’s, ganhara mais de quinhentos dólares, mas
comportara-se como se aquilo não fosse nada. Qualquer irmão digno desse
nome teria movido Céu e Terra para impedir que a irmã se envolvesse com um
homem assim. Mas ele admirava-o abertamente e dera a sua bênção àquela
relação.
Sentiu-se invadir pela náusea ao pensar que Beth podia ter seguido o
mesmo caminho que a mãe.
Recordou que não mostrara a mais pequena compreensão para com ela,
e envergonhou-se por ter querido abandonar a criança recém-nascida. Fora
Beth que segurara todas as pontas. Se não fosse a inteligência e a
personalidade dela, nunca teriam sido convidados para ir viver em Falkner
Square e era duvidoso que tivessem sequer conseguido chegar à América.
Desejava agora que nunca tivessem vindo e começou a dar voltas à
cabeça a perguntar-se onde poderia ela estar e em que condições estaria a ser
detida. Sabia que não seria um lugar confortável nem quente; os homens como
Fingers viviam como animais. Mas ainda mais aterradora era a possibilidade
de nunca mais voltar a vê-la. Não imaginava Heaney a aceitar pagar um
resgate por ela. Vê-lo-ia como um sinal de fraqueza. E Fingers nunca a
libertaria sem ser pago; mais depressa a mataria do que aceitaria ser
desfeiteado.
Às quatro da manhã, quando era ainda noite escura, Sam saiu de casa
para ir procurar Jack.
Desconhecia onde ele vivia, mas sabia que trabalhava no matadouro
junto ao East River e começava muito cedo de manhã.
O frio era intenso, com uma espessa camada de neve coberta de gelo
que ficara dos dias anteriores.
Sam caminhava depressa para se aquecer, mas sentia-se doente de
ansiedade e privação de sono.
*
Também Beth fora incapaz de dormir. O frio era tanto que lhe passara
pela cabeça que poderia matá-la. Durante as primeiras três horas após ter sido
empurrada sem cerimónias para uma cave escura, andara de um lado para o
outro a gritar, mas, finalmente, o cansaço obrigara-a a sentar-se no que lhe
pareciam ser velhos caixotes de madeira.
Havia água no chão, que se infiltrara nas suas botas, e o ar cheirava mal.
Se era da fuga de um esgoto, de qualquer coisa podre que estava ali com ela
ou consequência da idade do prédio, Beth não sabia, mas não se sentia
inclinada a procurar às apalpadelas no escuro para descobrir.
Não sabia que estava num dos becos de Mulberry Bend, a mesma área
aonde ela e Sam tinham acidentalmente chegado na sua primeira noite na
América. Tomara atenção ao caminho que o homem da faca a obrigava a
seguir na esperança de conseguir distraí-lo num ponto qualquer e fugir. Mas
ele não lhe dera a mais pequena hipótese, mantendo-a firmemente agarrada
pelo ombro e com a faca encostada às costas.
Nunca o tinha visto. Era alto e poderosamente constituído, com feições
rudes e deformadas que sugeriam que talvez fosse um ex-pugilista. As mãos
eram enormes, grandes como presuntos, e os poucos dentes que lhe restavam
escuros e partidos. Pelos padrões de Mulberry Bend, estava bem vestido – um
grosso sobretudo de lã escuro com gola de veludo e chapéu-de-coco –, mas
tinha o cheiro que ela aprendera a reconhecer como sendo o dos habitantes dos
bairros degradados: mofo, tabaco e fumo de lenha.
Sabia que o homem devia ter recebido ordens para a capturar, porque se
o seu objectivo fosse o roubo ter-lhe-ia tirado o que levava e desaparecido. E
estava sem a mínima dúvida a agir por conta de Fingers, porque tentara
argumentar com ele, dizendo-lhe que iria de boa vontade tocar para o salão de
Fingers e que não devia qualquer espécie de lealdade a Heaney. O homem
parecera ficar sobressaltado ao ouvir o nome de Fingers e dissera-lhe que
estivesse calada. Ela não se calara, continuara a defender a sua causa, mas
então ele batera-lhe na cara.
Levou cuidadosamente os dedos à face inchada. A pancada fora como
ser atingida por um martelo de forja. Ficara tão aturdida que mal conseguia
ver, e ele agarrara-a pelo braço e levara-a quase de rastos até ali.
Houvera dúzias de pessoas à sua volta. Nos estreitos e fétidos becos
aonde tinham acabado por ir parar, um grupo de homens olhara para eles com
curiosidade. Infelizmente, pensara Beth, isso não significava que a ajuda
estivesse próxima, pois Fingers não teria de certeza mandado que a levassem
para ali se não soubesse que podia contar com a lealdade dos habitantes locais.
Não fazia ideia de que horas eram, mas tinha a sensação de que ainda
devia ser noite, pois não via a mais pequena fresta de luz fosse onde fosse. A
ideia de que talvez houvesse ratazanas fê-la estremecer e apertar com mais
força os braços à volta do corpo, tentando não pensar nisso. Para se distrair,
tentou calcular quanto tempo demoraria Sam a perceber o que tinha
acontecido.
Soubera, claro, que alguma coisa se passava quando ela não aparecera
para tocar. Mas como poderia ele encontrá-la? Seria como procurar um seixo
específico numa praia inteira.
CAPÍTULO 17
Quando, às seis da manhã, Jack chegou ao matadouro e encontrou Sam
à sua espera, a cor fugiu-lhe do rosto ainda antes de ouvir uma palavra a
respeito do que tinha acontecido.
– Vá, di-lo – disse Sam, amarfanhado. – Devia ter dado ouvidos ao que
disseste.
Os olhos de Jack brilharam perigosamente, mas ele fez um esforço para
controlar-se.
– Suponho que não podias vigiá-la constantemente. – Suspirou. –
Ninguém podia, e quem ia esperar que a apanhassem à saída da loja da Ira?
– Que podemos nós fazer, Jack? – perguntou Sam. – Não estou a ver o
Heaney mandar a sua gente procurá-la. Vai limitar-se a ordenar-lhes que
destruam a propriedade do Fingers, e então a guerra começará a sério.
Jack concordou com um aceno de cabeça.
– Quem me dera poder faltar ao trabalho e ficar contigo, mas não me
atrevo. Hoje saio à uma. Vou manter-me atento ao que se diz e
encontramo-nos no Heaney’s às duas.
Sam regressou a casa, mas, a cada passo, o seu medo por Beth
aumentava. Fora condescendente, convencido da sua superioridade porque
agradava às mulheres e todos o consideravam um cavalheiro. Reinava atrás do
balcão do Heaney’s, nunca se permitindo cair no calão americano porque
queria distinguir-se como inglês.
A verdade, porém, era que não passava de um cobarde. Nunca em toda
a sua vida se envolvera numa luta, tinha medo da violência e, se era honesto,
era por não ter coragem para ser outra coisa.
O seu famoso encanto não ia libertar Beth e não tinha dinheiro para
pagar um resgate por ela. Que ia fazer?
Beth tremia de frio sentada no seu caixote, a ver finas frestas de luz
surgirem entre as tábuas do tecto da cave. Mas embora aquilo lhe dissesse que
devia passar das sete da manhã de sábado, não havia mais frestas de luz em
parte nenhuma. Algures lá em cima ficava o alçapão por onde tinha descido.
Houvera também uma espécie de escada, para a qual o homem a empurrara,
mas ela perdera o equilíbrio e escorregara até ao chão. O homem içara a
escada antes de fechar o alçapão.
Desejou conseguir lembrar-se de como era a sala lá em cima, mas
estivera a debater-se e a chorar enquanto ele a empurrava ao longo de uma
estreita passagem perpendicular ao beco, de modo que mesmo quando o
homem acendera um fósforo, reparara apenas no alçapão que ele abria.
Ocorreu-lhe então que mesmo que não tivesse visto nada, teria sentido
se a divisão que atravessava era ou não habitada. Não vinha qualquer ruído lá
de cima, como não viera durante toda a noite, e se lá vivesse alguém não seria
normal o seu captor tê-la amordaçado?
Talvez fosse um armazém. Talvez não houvesse mais ninguém em todo
o edifício.
Embora isso parecesse bastante improvável. Mulberry Bend e o
labirinto de becos e vielas à volta eram, reconhecidamente, a parte mais
sobrelotada da cidade. Quem ali tivesse um edifício não deixaria de pô-lo a
render usando-o como dormitório a cinco cêntimos por noite.
Queria chorar, de medo, de frio e de fome, mas estava determinada a
não o fazer. Fingers mandara-a raptar porque a considerava valiosa. Não fazia
qualquer sentido deixá-la ali para morrer.
A luz através das frinchas do tecto estava a tornar-se um pouco mais
brilhante, o que sugeria que a sala lá em cima tinha janelas. Naquela zona, os
vidros da maior parte das janelas estavam partidos, de modo que se fizesse
barulho suficiente, era possível que alguém ouvisse. Só precisava de encontrar
qualquer coisa com que fazer barulho.
Sam estava de volta ao Heaney’s às nove da manhã, mas encontrou a
porta fechada. Quando espreitou pela janela, viu o Pitosga a varrer a serradura
suja do chão.
Atraiu a atenção do homem, que lhe abriu relutantemente a porta.
– Mr. Heaney disseme que mantivesse a porta fechada e não a abrisse a
ninguém – disse.
– Não estava a referir-se a mim – afirmou Sam, deslizando para dentro e
voltando a trancar a porta.
– Há notícias da Beth?
– Não sei – respondeu o Pitosga, e a sua expressão dizia que não sabia
nem queria saber.
O homem era um pouco lerdo, e Sam sabia que não valia a pena
continuar a interrogá-lo. Foi para a sala das traseiras e deitou-se no sofá que lá
havia, a tentar decidir o que fazer.
Quando deu por isso, a voz de Heaney ressoava no bar. Levantou-se de
um salto e correu para lá, reparando que eram entretanto onze da manhã e que
tinha dormido duas horas.
– Estás com mau aspecto – comentou Heaney, passando para o outro
lado do balcão e servindo-se de um whisky. – Não sei de nada, de modo que
vai para casa e lava-te. Continua a funcionar tudo como de costume até que eu
diga o contrário.
O tom brusco irritou Sam.
– Não quer saber da Beth para nada, pois não? Só lhe interessa que
alguém lhe tenha levado a melhor. Que espécie de homem é você?
– Da espécie que dá murros no focinho de cachorrinhos insolentes –
replicou Heaney, despejando a bebida de um só trago. – Agora vai para casa,
faz a barba e veste uma camisa lavada.
Jack cumpriu o que prometera. Às duas da tarde estava no Heaney’s.
Trocara as roupas de trabalho, manchadas de sangue, por um velho casaco de
marinheiro azul-escuro e um igualmente velho boné.
– Disseram-me que o Fingers tem uma casa em Mulberry Bend –
murmurou a Sam, do outro lado do balcão. – Não sei a morada, e aquilo é
como um raio de uma coelheira, mas vou até lá dar uma vista de olhos.
– Queria ir contigo – sussurrou Sam em resposta –, mas o Heaney tem
uma fúria se abandono o meu posto.
– Fica aqui, como um menino bonito – respondeu Jack, com um sorriso
irónico. – Eu vou sozinho.
Além disso, é melhor estares cá quando o Fingers fizer a sua jogada.
Precisamos de saber quais são as suas exigências e não podemos confiar no
Heaney para nos dizer a verdade.
– Não acredito que ele pague para recuperar a Beth – disse Sam,
assustado.
– É por isso que temos de encontrá-la, e se o Fingers lhe fez mal, juro
que o mato.
Jack acendeu um cigarro diante de uma casa de penhores em Mulberry
Bend, encostou-se à parede e observou impavidamente a rua cheia de gente.
Beth contara-lhe como tinha ficado horrorizada e assustada quando ela e Sam
se tinham perdido e ido parar àquele lugar, e ele não tivera coragem para lhe
dizer que não era muito diferente do sítio onde ele próprio crescera, no East
End de Londres, ou, já agora, dos bairros pobres de Liverpool.
A principal diferença era os ingleses constituírem ali uma pequena
minoria e talvez metade do resto da população falasse algumas palavras de
inglês.
Havia sobretudo italianos, alemães, polacos, judeus de diversas origens
e irlandeses, com liberais salpicos de outros países europeus, além dos negros
vindos dos estados do Sul. A única coisa que tinham em comum uns com os
outros era o desespero da situação em que viviam, pois aquilo não era apenas
um gueto de gente pobre, era o fundo absoluto da fossa.
Quem ia para aquele inferno em desespero por não ter outro sítio para
onde ir, depressa descobria que as paredes do buraco eram demasiado a pique
para que pudesse voltar a sair.
Jack sabia que as rendas que ali se cobravam por um nojento quarto
infestado de ratazanas e percevejos eram na realidade mais altas do que o que
se pagava por uma casa decente ou um apartamento completo na parte alta da
cidade. Mas aqueles miseráveis imigrantes nunca seriam aceites pelos
senhorios dessas casas.
Por todo o Lower East Side, as pessoas só conseguiam pagar rendas
altas com salários baixos partilhando com outras, regra geral amigos ou
parentes. Ali, porém, o único critério para ter uma espécie de tecto por cima
da cabeça era a capacidade de pagar uns poucos cêntimos por noite, isto para
dormir no chão no meio de muitos outros.
A viver aquela existência miserável, sem conforto, calor ou até maneira
de se manterem limpas, as pessoas depressa se viam apanhadas numa espiral
que as arrastava ainda mais para baixo.
Dificilmente um homem podia fazer um exigente trabalho físico quando
pouco dormia e nunca comia uma refeição decente. E como podia uma mulher
coser ou até fazer caixas de fósforos sem ter um espaço e luz para trabalhar?
Quem não se voltaria para a bebida quando era a única coisa capaz de embotar
o espírito e fazer esquecer o desespero total?
Nas suas redondezas imediatas, Jack contou cinco tabernas, três bares,
duas lojas de roupa usada e duas casas de penhores. Achou que aquilo dava
uma imagem bastante exacta das necessidades da comunidade.
A única mercearia tinha em exposição frutas e legumes que mesmo à
distância se via estarem já longe do seu melhor, e a retrosaria não lhe levava
grande vantagem. Havia por todo o lado pessoas a vender coisas. Duas velhas
de costas encurvadas vendiam pão duro, e Jack via-as enfiar as mãos dentro de
sacos ainda mais sujos feitos de pano de enxerga e tirar de lá mais uma
deformada carcaça.
Um homem desmanchava uma cabra em cima de uma tábua equilibrada
numa das latas de cinzas da rua. Mas ainda piores eram os dois italianos que
vendiam cerveja azeda, restos recolhidos do fundo dos copos de um bar,
distribuindo-a em velhas canecas de lata.
«A Bend», como era geralmente conhecida, porque a rua fazia uma
curva como a perna de um cão, era pelo menos varrida, de longe em longe,
pelos serviços municipais. Mas a poucos passos de distância, no labirinto de
estreitas e escuras vielas, lugares onde as vassouras camarárias e a luz do sol
nunca se aventuravam, o lixo ficava a apodrecer no chão, misturado com o
fedor dos excrementos humanos. Viviam milhares de pessoas naqueles prédios
em ruínas, em caves e até em barracões, um monte de trapos a servir de cama,
uma grade de cerveja a fazer as vezes de banco.
Jack tinha a certeza de que metade das crianças esfarrapadas e meio
mortas de fome que via à sua volta não tinha casa, porque viver nas ruas era
muitas vezes preferível à «casa». Não tinham, pelo menos, de entregar o
pouco que ganhavam a roubar ou a mendigar, nem de correr o risco de serem
espancadas por pais alcoólicos.
Jack sabia exactamente como era, pois tinha fugido para as ruas de
Whitechapel numa idade bastante tenra pelas mesmíssimas razões. A escola
era um lugar aonde só ia quando os inspectores da Câmara o apanhavam.
Todos os seus conhecimentos e competências, que eram sobretudo os da
sobrevivência, tinham sido adquiridos na rua.
Conhecer Beth a bordo do navio fora como um milagre. Os únicos
amigos que alguma vez tivera eram os do lodo do fundo do barril, como ele
próprio. Olhava para as raparigas como Beth de longe, a desejar poder
estender a mão e tocar-lhes nos sedosos cabelos, ou só aproximar-se o
suficiente para lhes cheirar a pele e as roupas limpas. Nunca sonhara ter
alguém assim como amiga, quanto mais pegar-lhe na mão ou beijá-la.
Mas Beth tratava-o como um igual. Ria com ele, partilhava com ele a
sua tristeza e as suas esperanças. Fazia-o sentir-se capaz de conseguir tudo o
que quisesse. Quando ela se despedira no navio, com a promessa de voltarem
a encontrar-se dentro de exactamente um mês em Castle Green, Jack não
esperara nem por um instante que isso acontecesse. Mas a força e a confiança
em si mesmo que ela lhe dera tinham ficado com ele.
Passara a sua primeira noite ali na Bend, porque fora o único lugar de
que lhe tinham falado os seus conhecimentos em Liverpool. Sem a influência
de Beth, nem sequer teria reparado em como tudo aquilo era horrível, ter-se-ia
aturdido com álcool e teria seguido o exemplo das pessoas que conhecera
naquela noite. Mas ela mudara-lhe a perspectiva e, na manhã seguinte, soubera
que tinha de sair imediatamente para não ser sugado por aquele lugar.
Trabalhar no matadouro era pavoroso. O terror dos animais que ele
encaminhava das barcaças para a morte, a atitude desligada dos homens que
os abatiam e o cheiro a sangue e a entranhas, tudo aquilo lhe provocava
vómitos. Mas era trabalho, e mais bem pago do que a maior parte dos outros
empregos ao seu alcance, e embora dormir no chão com cinco outros homens
num minúsculo quarto pudesse não parecer que tinha subido um degrau, ele
sabia que tinha.
Quase não fora a Castle Green, um mês após a chegada. Notara o olhar
gelado de despedida que Sam lhe dirigira. Além disso, esperara que Sam, com
o seu bom aspecto e o seu encanto, tivesse arranjado um bom emprego e que,
por essa altura, Beth andasse de braço dado com alguém que o irmão tivesse
escolhido para ela.
Fora por puro desafio que comparecera ao encontro. Sentira-se muitas
vezes tentado a voltar aos seus velhos hábitos de bebida e zaragatas e pensara
que, se ela o tivesse abandonado, isso lhe serviria de justificação. Mas ela lá
estava, à espera dele em Castle Green, radiosa, expectante e encantadora.
Ficara surpreendido ao saber que Sam ainda não arranjara trabalho, e,
quando sentira a ansiedade que isso causava a Beth, tentara ajudar, sem lhe
passar sequer pela cabeça que Sam se rebaixasse a ser um barman na Bowery.
Não falara de como vivia, nem de como o seu trabalho era horrível – teria sido
demasiado para Beth –, mas o encontro incentivara-o a melhorar a sua
situação.
Passar para o lado dos magarefes no matadouro poderia não parecer a
muitos um grande passo em frente, mas era. Estava a aprender um ofício que
lhe serviria no futuro, e não tinha de ver nem ouvir o pavor dos animais.
Pouco depois, conseguira um quarto melhor, que partilhava com três amigos.
Não era grande coisa, mas era limpo, tinha uma cama verdadeira e um lugar
onde pendurar as roupas.
Ao longo de todo esse Verão, julgara ter o Sol, a Lua e as estrelas
porque tinha Beth. Trabalhara mais horas para ganhar mais dinheiro e poder
pôr um pouco de lado; começara inclusivamente a frequentar uma escola
nocturna para aperfeiçoar a leitura e a escrita.
Chegara então o dia em que compreendera que ela não sentia o mesmo
por ele.
Durante algum tempo, pensara que não valia a pena viver sem ela. Fora
como uma facada no coração saber que o seu rival era um cavalheiro, porque
trouxera de volta a velha convicção de ser indigno e sem valor. Muitas e
muitas noites fora pôr-se à porta do Heaney’s só para a ouvir tocar, a engolir
as lágrimas.
Fora numa dessas noites que lhe ocorrera que mesmo que ela não
retribuísse o seu amor, talvez fosse possível conseguir que continuasse a fazer
parte da sua vida como amiga. Sabia que não ia ser fácil, pois teria de fingir
gostar de Theo, o jogador, e aguentar o desdém de Sam. Mas convencera-se de
que seria capaz de fazê-lo, na esperança de que talvez um dia Beth pudesse
precisar dele.
Pois bem, Beth precisava dele agora. Só esperava conseguir descobrir
onde ela estava cativa e salvá-la.
*
Jack foi sistemático na sua busca, subindo uma viela, descendo a
seguinte, investigando todos os minúsculos pátios por onde passava. Viu
bêbedos estendidos no chão, inconscientes, crianças seminuas de olhos vazios
tristemente sentadas nos degraus dos portais. Bandos de rapazes olhavam-no
com desconfiança, prostitutas de ar faminto ofereciam-se-lhe por alguns
cêntimos.
Nova Iorque inteira estava carregada de decorações natalícias, árvores
engalanadas e montras cheias de ideias para prendas. Mas apesar de no dia
seguinte ser Véspera de Natal, ali não havia sinais de festividades.
Jack falou com muitas pessoas. Com a maior parte delas fingiu ter
acabado de desembarcar de um navio e que lhe tinham dito que procurasse um
tal Fingers Malone. A maior parte abanava a cabeça e dizia não conhecer
ninguém com esse nome. Uma velha prostituta com o rosto marcado pela
varíola cuspiu para o chão e disse que Fingers Malone era um maldito filho da
mãe, mas recusou dizer porquê, ou onde poderia encontrá-lo. Um par de
miúdos com cerca de treze anos gabou-se de ter feito alguns serviços para ele.
Jack teve a certeza de que só tinham ouvido o nome e não conseguiriam
reconhecer o homem nem que o tivessem à sua frente.
O empregado de uma taberna da Mulberry, suja e cheia de fumo,
disselhe que Malone tinha uma propriedade algures em Bottle Alley, mas um
homem que bebia encostado ao balcão afirmou que não, que era em Blind
Man’s Court.
Às oito da noite, Jack tinha os pés doridos. Estava tão cansado de
repetir a mesma história a tanta gente que começava a duvidar que fizesse
qualquer espécie de sentido, e investigara cada centímetro quadrado tanto de
Bottle Alley como de Blind Man’s Court. A Bend não era lugar para um
forasteiro andar de noite, porque os becos eram escuros, cheios de bêbedos
com vontade de lutar e bandos de jovens rufiões à procura de alguém para
roubar. Além disso, fazia um frio de morte, pelo que pensou que o melhor
seria voltar ao Heaney’s e ver se Sam tinha alguma novidade.
*
Foi um alívio estar de regresso à Bowery, com as suas luzes brilhantes e
a sua alegria. Vinha música dos German Beer Gardens, e uma banda tocava
canções de Natal. Os vendedores ambulantes estavam em força na rua, a
vender de tudo desde brinquedos baratos e suspensórios para homem.
Havia maçãs caramelizadas, castanhas assadas e waffles, e o calor e os
cheiros das bancas recordaram a Jack que Beth podia estar a passar frio e
fome.
Avistou um rosto familiar na multidão à sua frente. Só tinha visto Theo
uma vez, mas o seu porte e a sua boa aparência não eram fáceis de esquecer e,
na Bowery, um homem assim destacar-se-ia mesmo sem o traje de noite,
completo com chapéu alto e capa.
Jack saiu-lhe ao caminho.
– Mr. Cadogan! – disse.
– Conheço-o? – perguntou Theo, mirando-o de alto a baixo, como que
espantado por um homem tão mal vestido saber o seu nome.
– Não, senhor – disse Jack. – Mas sou amigo da Beth, e ela está em
grande perigo. Ia a caminho do Heaney’s para falar com o irmão quando o vi.
Jack estava meio à espera que o homem alegasse assuntos urgentes para
não parar, mas não o fez.
– Em perigo? – exclamou. – Conte-me o que aconteceu!
Jack explicou e acrescentou que estava convencido de que Beth se
encontrava retida algures na Bend e que acabava de vir de lá.
– Mas entretanto pode ter acontecido qualquer coisa.
– Pobre Beth – suspirou Theo, parecendo genuinamente preocupado. –
Era minha intenção ir buscá-
la mais logo. Tive de passar algumas semanas em Boston. Mas vou
consigo, e talvez as nossas forças combinadas consigam convencer esse
horroroso Heaney a fazer qualquer coisa para a libertar.
O bar estava cheio, como sempre nas noites de sábado, e um pianista
negro tinha substituído Beth no palco.
Sam parecia desvairado e frenético, a sua bonomia para com os clientes
completamente desaparecida.
– Graças a Deus! – exclamou, ao ver Jack e Theo entrarem. – Já
começava a pensar que todos me tinham abandonado.
Theo trocou algumas palavras com ele, mas, no meio da balbúrdia dos
bebedores, Jack não conseguiu ouvir o que diziam. Então Theo voltou-se para
ele, agarrou-o por um braço e apontou-lhe a porta da sala das traseiras.
– Vamos para ali – disse.
Jack ficou um pouco confuso pelo facto de o homem que tomara por um
chacal da classe alta que gostava de rondar pelo submundo parecer ter alguma
coragem.
Theo nem sequer bateu à porta, limitou-se a entrar de rompante. Heaney
estava sentado a uma mesa, a escrever no que parecia ser um livro de contas.
A inesperada intrusão fê-lo abrir muito os olhos.
– Ouvi dizer que recebeu certas exigências do Fingers Malone pela
libertação de Miss Bolton – mentiu Theo, a voz fria como aço. – Pode ter as
suas razões para não informar o irmão de quais são, mas eu, como noivo dela,
insisto em saber.
Jack tinha quase a certeza de que Beth não se tornara noiva de Theo,
porque nesse caso ela tê-lo-ia dito durante o jantar de Acção de Graças.
Embora detestasse a ideia de aquilo poder ser verdade, ficou contente por
Theo ter arranjado uma boa desculpa para a sua intervenção.
– Uma vez que as exigências me foram feitas a mim – disse Heaney,
levantando-se da cadeira –, é a mim que o assunto diz respeito.
– Não quando está uma jovem em perigo – replicou Theo, e avançou,
ameaçador, para o homem mais velho. – Agora diga-me o que sabe, e
depressa.
Heaney pareceu engasgar-se e ficou calado.
– Quanto é que ele quer? – perguntou Theo.
– Não é tanto o preço como aquilo que pode acontecer no futuro –
respondeu Heaney, com uma nota de queixume na voz. – Ele vai pensar que
pode ficar com tudo o que eu tenho, derrotar-me e espezinhar-me. E eu não o
permitirei.
– Assumo que isso quer dizer que não vai fazer nada – disse Theo, num
tom carregado de desprezo.
– Quer deixá-la apodrecer em poder do Fingers, é isso? Que espécie de
cobra é você para que a vida de uma rapariga não signifique nada para si?
– O Fingers não vai matá-la – disse Heaney, apressadamente. – Quer
que ela toque no bar dele.
– E é o que ela fará, se não mexer um dedo para a ajudar – interveio
Jack, tentado a torcer o pescoço àquele miserável. – Tem de juntar alguns dos
seus homens e retaliar. Porque não raptar a mulher dele?
– Isso não preocuparia o Fingers nem um bocadinho. Morto está ele por
vê-la pelas costas – respondeu Heaney, com um encolher de ombros.
– Nesse caso, apanhamos um dos homens dele!
– Já mandei investigar a casa dele. Está bem protegida, com homens por
todo o lado.
– Está a referir-se ao bar, presumo? – disse Theo. – Que outras
propriedades possui ele? Sabe onde se situam?
– O malandro está metido em tudo, desde tascas de cerveja aos
dormitórios de cinco-cêntimos-por-noite – respondeu Heaney,
desdenhosamente.
– Na Bend? – perguntou Jack.
– Onde havia de ser? – rosnou Heaney.
Jack olhou para Theo e fez-lhe sinal de que queria falar com ele lá fora.
– Já voltamos – disse Theo a Heaney.
Tiveram de sair para a rua, tão grande era a balbúrdia dentro do bar.
– O Heaney não vai ajudar. – Jack falou em voz baixa, enquanto
acendia um cigarro. – Vamos ter de ser nós a encontrá-la. Bottle Alley ou
Blind Man’s Court, tem de estar num desses lugares.
Arranjamos cinco ou seis bons homens e atacamo-los. Mesmo que ela
não esteja lá, talvez descubramos alguém que possamos obrigar a dizer-nos
onde está. Se formos de madrugada, estará toda a gente a curar a bebedeira.
– Nunca lá fui – disse Theo numa voz apagada, como se tudo aquilo
fosse demasiado para ele.
– Eu já, e sei orientar-me. – Jack sorriu-lhe, porque gostava de sentir-se
numa posição de comando.
– E também sei que homens escolher. Não queremos gente do Heaney,
nem do Fingers. Somos só nós, a resgatar a nossa miúda.
Theo não falou durante algum tempo.
– Tenho de ir a casa mudar de roupa – acabou por dizer. – Posso
encontrar-me consigo mais tarde?
– Encontramo-nos na esquina de Canal Street, às seis – disse Jack.
Theo assentiu.
– O que é que dizemos ao Heaney?
– Nada, como ele não nos disse nada – respondeu Jack, furioso. – Mas
as coisas vão pôr-se feias para todos nós. Penso que teremos de sair da cidade
por algum tempo.
CAPÍTULO 18
–Quem é o outro parceiro? – perguntou Edgar, quando, às seis da
manhã, os homens se juntaram na esquina de Canal Street. Reunidos num
grupo compacto debaixo de um candeeiro, a respiração deles era como fumo
no ar gelado.
– Um finaço chamado Theo – respondeu Jack, secamente.
Arrependia-se de ter sugerido a Theo que se lhes juntasse. Quase de certeza ia
revelar-se mais um perigo do que uma ajuda. – A Beth tem andado com ele.
Todos os cinco homens trabalhavam no matadouro e nenhum deles
tinha qualquer ligação a Heaney ou a Fingers. Eram todos grandes e
musculosos, entre os vinte e os vinte e cinco anos, mas Edgar era o único
nascido na América. Os outros quatro eram imigrantes: Karl era sueco,
Pasquale italiano, Thaddeus polaco – todos o conheciam como Tadpole – e
Dieter alemão.
Os laços que os ligavam tinham-se forjado enquanto trabalhavam lado a
lado. Tinham um ofício duro, brutal, onde um acidente grave podia acontecer
a qualquer momento, o que os obrigava a confiar uns nos outros. Jack afastara
certa vez Karl do caminho de um boi enraivecido, e todos os outros tinham
alguém a quem agradecer um aviso a tempo ou uma ajuda quando estavam
magoados.
Havia uma espécie de código entre os homens que trabalhavam no
matadouro: se um deles precisava de ajuda, os outros davam-lha.
Jack fora um dos que se tinham oferecido quando a irmã mais nova de
Tadpole fora violada por três homens no regresso das aulas de bailado. Um
dos violadores nunca mais voltaria a andar, quanto mais a violar outra mulher,
e os outros dois tinham sofrido uma forma primitiva de castração.
Jack sabia que podia contar com aqueles homens porque todos eles não
só sabiam que Beth era especial para ele como a tinham ouvido tocar no
Heaney’s, numa ou noutra ocasião. Quando os procurara nos sítios onde
viviam, a única pergunta que lhe tinham feito fora: «A que horas?» Todos eles
tinham ido preparados com uma moca escondida debaixo do casaco.
Sam apareceu na esquina para se juntar a eles, amarelo como um chinês
à luz dos candeeiros a gás.
Jack apresentou-o rapidamente aos outros e deu-lhe uma amistosa
palmada no ombro, pois sabia que Sam não era um lutador e estava cheio de
medo.
Finalmente, Theo chegou. Vestia roupas de trabalhador, e Jack
perguntou-se fugazmente onde as teria arranjado, pois duvidava que aquele
homem tivesse trabalhado um dia que fosse em toda a sua vida. Também se
interrogou se Theo teria considerado a hipótese de fugir a tudo aquilo. Mas ia
ter a medida plena do homem dentro de uma ou duas horas.
Apresentou Theo e pediu a todos que se juntassem à sua volta, para não
ter de gritar.
– O objectivo é assustar as pessoas de modo a forçá-las a dizerem-nos
onde ela está – começou. – Gritem, empurrem, mas não usem as vossas
mocas. Essas são só para os tipos que se nos atravessarem no caminho, não
para os pobres diabos que vivem nos pardieiros.
– Não vai ser fácil arrancar-lhes seja o que for. Podem viver
miseravelmente, mas até eles têm um código no que toca a denúncias. Mas
como passam a vida na rua, alguém deve ter visto para onde levaram a Beth.
– Finalmente, cuidado com as crianças. Vai haver centenas delas; vai
ser como dar um pontapé num formigueiro. Nenhum de nós quer uma criança
magoada a pesar-lhe na consciência.
– Avançamos todos ao mesmo tempo? – perguntou Karl, o grande e
louro sueco.
– Não. Eu vou primeiro com o Pasquale e o Dieter, para nos
certificarmos de que os italianos e os alemães compreendem o que queremos.
Os outros bloqueiam a porta, para impedir fugas. Tenho algum dinheiro para
oferecer como suborno, de modo que mantenham os olhos e os ouvidos
atentos a quem pareça saber aquilo que queremos.
Entregou a Sam a moca a mais que levara, sabendo que o rapaz não se
teria lembrado de munir-se de qualquer espécie de arma. Reparou que Theo
empunhava um grosso bengalão, o que o surpreendeu; estivera à espera de
vê-lo com uma faca.
Seguiu à frente, com Sam a seu lado e os outros atrás.
Era estranho ver as vielas tão vazias e tranquilas depois das multidões e
do barulho do dia anterior.
Passaram por muitos bêbedos a dormir no chão gelado. Jack
interrogou-se quantos não voltariam a acordar, pois tinha ouvido dizer que a
taxa de mortalidade no Inverno incluía muitos mortos de frio.
O silêncio não era, no entanto, absoluto. Ouviam pessoas a ressonar e
bebés a chorar, e havia o inevitável restolhar das ratazanas na sua azáfama.
Começaram por Blind Man’s Court, e Pasquale acendeu a lanterna que
levara consigo. Como Jack esperava, não havia fechadura na porta da frente, e
nem sequer na porta do primeiro quarto onde entraram. Quando Pasquale
ergueu a lanterna, viram que havia pelo menos quinze pessoas enrodilhadas no
chão e apertadas umas contra as outras, como sardinhas em lata.
– Onde está a rapariga? – gritou Jack, espetando corpos com a moca. –
Vá, digam-me onde está!
Uma a uma, as cabeças levantaram-se, os olhos a piscar à luz da
lanterna. Uma mulher gritou, um homem insultou-os, mas Jack insistiu.
– Alguém trouxe uma rapariga para aqui à força, ontem, por volta das
seis da tarde. Viram-na?
Pasquale repetiu a pergunta em italiano ao ouvir as vozes de
compatriotas. A isto seguiu-se uma enxurrada de palavras, e Jack olhou
interrogativamente para Pasquale, porque apesar de ter aprendido algumas
frases em italiano, não conseguia compreender o que diziam.
– Dizem para nos irmos embora, não viram nada. Estão furiosos por os
teres acordado.
– Acreditas neles?
Pasquale assentiu.
– É melhor tentarmos o quarto seguinte.
Foram de quarto em quarto, e apesar de terem visto cerca de duzentas
pessoas, de bebés a velhos, nada descobriram. Alguns dos mais novos
escaparam-se e correram para fora, onde os outros os detiveram e
interrogaram. Mas não tinham fugido por serem culpados, apenas por uma
pura questão de hábito. Parecia que uma rusga àquela casa significava
geralmente vários deles serem enviados para a Tombs.
Quando ficaram prontos para passar à casa seguinte, a algazarra que
tinham criado alertara os outros residentes do pequeno pátio, e os homens de
Jack tiveram de esforçar-se para impedir fugas.
Felizmente, sendo ainda noite e com tanto frio, a maior parte ficou tão
assustada ao ver as mocas que se apressou a voltar para dentro.
– Não foi para aqui que a trouxeram, Jack – disse Theo, depois de terem
estado em todas as casas, revistando tudo das caves aos sótãos. – Nunca na
minha vida vi gente tão miserável. Viu o ar de esperança deles quando constou
que havia uma recompensa a troco de informações? Estão mortos de fome…
se soubessem alguma coisa, atropelavam-se uns aos outros para nos dizer.
– Esperemos então ter mais sorte em Bottle Alley – respondeu Jack,
penosamente.
*
A situação em Bottle Alley foi uma repetição do que acontecera em
Blind Man’s Court, com a diferença de ter sido mais difícil conter as pessoas
que saíam de casa para ver o que se passava, porque era uma viela, com uma
saída em cada extremo. Quando chegaram a meio, já era dia, e os problemas
foram exacerbados pela quantidade de pessoas que viviam noutros lugares e
queriam passar por ali. Muitas perguntavam o que era aquilo, ou ficavam
paradas a ver.
Sam parecia à beira do esgotamento. Lidar com tantas pessoas a
moverem-se à sua volta, todas a falarem línguas diferentes, quando havia duas
noites que não dormia, era muito duro para ele.
Também Jack estava cansado. Sentia que tinha feito as mesmas
perguntas pelo menos mil vezes, e houve momentos em que esteve tentado a
usar a moca só para provocar uma verdadeira reacção, em vez de olhares
vazios. Algumas velhas, a segurar xailes à volta dos ombros, estendiam as
mãos sujas a pedir dinheiro, muitos dos homens gritavam insultos e as
crianças corriam constantemente à volta deles, atrapalhando tudo.
Para grande surpresa de Jack, Theo revelou-se excelente a lidar com as
crianças. A maior parte falava inglês, ou pelo menos o suficiente para
comunicar com ele, e ele avançava diligentemente pelo meio delas, aliciando e
prometendo uma recompensa por qualquer informação.
– Chegue aqui, Jack! – gritou repentinamente, e quando Jack abriu
caminho por entre a multidão, viu-o com uma rapariguinha de seis ou sete
anos. Era como todas aquelas crianças, dolorosamente magra e pálida, com
cabelos baços e uns olhos que pareciam demasiado grandes para uma cara tão
pequena. Vestia apenas um fino e esfarrapado vestido, tinha os pés descalços e
sujos e um xaile atravessado sobre o peito e atado com um nó nas costas.
– Ouviu qualquer coisa – disse Theo, quando Jack chegou junto dele. –
Mas não fala inglês que se perceba. É italiana.
Jack chamou Pasquale, que se ajoelhou diante da criança e lhe falou na
sua língua materna. Pasquale era um rapaz atraente, com cabelo negro e
encaracolado, pele cor de azeitona e uns suaves olhos escuros, e, apesar da
timidez que a fazia espreitar por entre os dedos, a garotinha começou pouco a
pouco a responder enquanto ele lhe falava e lhe sorria para a tranquilizar.
Theo mostrou-lhe um dólar de prata, que a criança olhou avidamente.
– Diga-lhe que lho dou se nos dizer o que ouviu e onde.
O dólar de prata operou o milagre. De repente, a rapariguinha estava a
falar pelos cotovelos.
– Que diz ela? – perguntou Jack.
– Ouviu pancadas, ontem, e alguém aos gritos. Disse à mãe, que lhe
respondeu que aqui as pessoas estão sempre a bater em qualquer coisa e a
gritar com alguém. Mas ela diz que nunca ouviu ninguém gritar como aquela
senhora.
O coração de Jack pareceu saltar-lhe à boca.
– Onde foi isso? – perguntou.
Pasquale perguntou à rapariguinha, que lhe pegou na mão como que
disposta a guiá-lo até lá.
Jack seguiu-os, juntamente com Theo, até ao fim da viela, que ainda
não tinha sido revistada. A criança deteve-se em frente de um terreno vazio,
claramente o local de um edifício que ardera ou se desmoronara. Estava cheio
de lixo e de escombros e no meio havia um desconjuntado barracão que podia
em tempos ter sido um estábulo. A menina ergueu os olhos para Pasquale e
recomeçou a falar.
Pasquale sorriu.
– Diz ela que costuma esconder-se no barracão quando o pai está
bêbedo. Dormiu lá e foi acordada de manhã por pancadas e gritos. Diz que
vinham dali. – E apontou a casa do lado esquerdo.
Jack sentiu uma vaga de excitação. As casas de ambos os lados do
terreno desocupado eram muito antigas e estavam escoradas por grandes
barrotes de madeira, mas atrás delas, apertadas no que devia ter sido um pátio,
havia outros edifícios mais recentes. Aqueles lugares, conhecidos como
prédios das traseiras, eram comuns em todo o Lower East Side.
– Vamos entrar – disse.
Deu a volta até à frente da casa e viu que a porta estava trancada a
cadeado e as janelas entaipadas.
Perguntou à criança se vivia ali alguém. Ela encolheu os ombros e disse
qualquer coisa em italiano.
– Acha que não – traduziu Pasquale. – Mas por vezes vêm cá homens.
Antes que Jack pudesse sequer expressar a opinião de que tinham
encontrado o lugar certo, Theo enfiou o dólar de prata na mão da menina,
correu para as traseiras e trepou pelo muro que ligava as duas partes da casa.
Tinha cerca de dois metros e quarenta de altura, mas conseguiu-o facilmente,
pois era feito de pedra tosca, com muitos apoios para os pés e para as mãos.
Empoleirou-se por um instante no topo, e então saltou para o outro lado.
Jack apressou-se a segui-lo, gritando a Pasquale que chamasse os outros
e trouxesse a lanterna.
Deixou-se cair no minúsculo pátio entre os dois edifícios.
O espaço não tinha muito mais de três metros quadrados e o lixo,
felizmente congelado, amontoava-se até à altura do tornozelo. As portas de
ambas as casas estavam fechadas a cadeado, e todas as janelas tinham sido
entaipadas excepto uma na frente da primeira casa. Nessa, as tábuas tinham
sido arrancadas, revelando uma vidraça partida.
Theo brandiu o bengalão e estilhaçou o que restava do vidro.
– Espere pelos outros! – gritou-lhe Jack, mas Theo não lhe ligou e
entrou pela janela.
Jack preparava-se para o seguir quando ouviu Karl gritar que estava a
chegar com a lanterna, de modo que esperou até que o amigo trepasse para o
muro e lha passasse.
Entretanto, as pesadas botas de Theo faziam uma barulheira enorme nas
tábuas nuas do soalho, mas quando Jack passou pela janela, pareceu-lhe ouvir
qualquer coisa.
Pediu a Theo que ficasse quieto e pôs-se à escuta. Ambos ouviram
alguém chorar muito baixo.
– Beth! – berrou Theo. – És tu? Vim salvar-te!
Então, quando Jack já começara a pensar que imaginara o choro, ouviu
a voz de Beth.
– Estou cá em baixo – gritou ela, a voz pequenina e fraca. – Há um
alçapão no chão.
– Estou a acender uma lanterna para ver – gritou Theo em resposta,
indicando a Jack com um gesto que fosse ele a fazê-lo. – Aguenta, tiro-te daí
num instante.
Uma vez acesa a lanterna, viram uma velha mesa e umas poucas
cadeiras num dos lados da sala, vários grandes caixotes de madeira e uma
quantidade de garrafas vazias espalhadas à volta.
Aparentemente, era um sítio onde homens se juntavam para jogar
cartas.
Mas não viram qualquer alçapão.
Karl entrou, seguido por Pasquale, e começaram todos a afastar os
caixotes, para ver o que havia por baixo.
Quando empurraram o último, que era mais pesado do que os outros,
descobriram finalmente o alçapão.
– Encontrámo-lo, Beth – gritou Theo, e Jack abriu-o.
– Há aqui uma escada – disse Pasquale, arrastando-a pelo chão.
Jack posicionou-se para ser o primeiro a descer, mas Theo empurrou-o
para o lado e desapareceu na escuridão.
– Já te tenho – ouviram-no dizer acima do choro de Beth.
Theo trouxe-a para cima ao ombro, e quando a pousou no alto da
escada, Jack pensou que nunca em toda a sua vida vira um espectáculo mais
triste. A cara dela estava negra de sujidade, os olhos vermelhos e inchados, as
lágrimas tinham-lhe traçado riscos brancos nas faces. Tinha a saia e as botas
encharcadas e estava tão rígida de frio que tropeçou quando tentou andar.
– Pensei que ia morrer – disse, a voz dela pouco mais do que um
grasnido.
Theo pegou-lhe ao colo.
– Temos de tirá-la daqui e levá-la para um lugar quente o mais depressa
possível – disse.
Sam e os outros acabavam de saltar o muro, e durante algum tempo
puseram-se todos a falar ao mesmo tempo, felizes por a missão ter sido um
êxito. Beth parecia quase não dar pela presença de ninguém excepto Theo, e
enquanto trabalhavam em conjunto para fazê-la passar por cima do muro e
levá-la para um lugar seguro, Jack sentiu uma pontada aguda de ciúme.
Fora ele que a salvara. Fora ele que planeara a acção, juntara os homens
e organizara tudo. Mas Theo, que fizera muito pouco, assumira o comando
mal a tinham descoberto, e aos olhos de Beth ia parecer que fora ele o seu
salvador.
CAPÍTULO 19
Ocafé para onde a tinham levado era quente e abafado. Beth flectia as
mãos e examinava os nós dos dedos, esfolados dos murros que dera nas
paredes.
– Devíamos levá-la a um médico – disse Jack.
– Não faças drama – respondeu ela, sorrindo debilmente. – Já me sinto
mais quente e ficarei óptima depois de tomar banho e dormir. Só queria que os
teus amigos não tivessem desaparecido antes de poder agradecer-lhes.
Fora como se o espírito dela estivesse tão gelado como o corpo, quando
Theo a tirara da cave. Não conseguia explicar nada e os membros recusavam
mover-se. Theo levara-a nos braços até ao café, e por mais perguntas que Jack
e Sam lhe fizessem a respeito de onde e como fora raptada, não conseguira
responder.
Mas agora, depois de duas grandes chávenas de café quente e doce e de
um prato de bacon com ovos, aquecera o suficiente para dizer-lhes como tudo
acontecera, e como o seu raptor não voltara, nem para lhe levar comida ou
bebida ou sequer uma manta. Disselhes como continuara a gritar e a bater até
a exaustão a ter vencido, mas não que já tinha perdido toda a esperança de
salvação. Agora que estava a salvo, o terror que sentira encolhida no escuro
tendo apenas por companhia os guinchos e as corridas das ratazanas começava
a desvanecer-se. Via o medo por ela estampado nos rostos dos homens e não
queria aumentá-lo.
No entanto, da primeira vez que ouvira as vozes de Theo e de Jack,
julgara estar a cair na loucura e a imaginar o que mais queria ouvir. Fora só
quando o alçapão começara a abrir-se, a luz se derramara pela sua escura
prisão e a cabeça de Theo aparecera recortada na abertura que se convencera
de que era real.
– Podes ir para minha casa – disse Theo, pegando-lhe na mão e
beijando-lhe as pontas dos dedos. – Ninguém sabe onde fica, e é muito
sossegada. Podes tomar um banho quente e dormir tudo o que quiseres.
Aquilo sou como o paraíso aos ouvidos de Beth, mas notou o olhar
horrorizado que Sam e Jack trocaram.
Também Theo o viu e, largando a mão dela, olhou duramente para Sam.
– Com certeza compreendes que nenhum de nós estará a salvo? O
Fingers vai querer o nosso sangue, e o Heaney não nos vai ajudar porque a
única coisa que lhe interessa é a sua propriedade.
– Não estou a ver porque é que o Fingers há-de perseguir-nos –
respondeu Sam, num tom beligerante. – Até um patife como ele há-de
compreender que um homem queira salvar a irmã.
– Tem tudo a ver com prestígio – explicou Theo, pacientemente. – Não
quer saber de certos ou errados. Tudo o que vai ver é que o desfeiteámos.
– Ele tem razão, Sam – suspirou Jack, passando os dedos pelos cabelos
escuros num gesto distraído. – O Fingers é um louco, e a maneira como tratou
a Beth prova que ela não significa nada para ele. A única coisa que quis foi
provocar o Heaney. Agora vai ter de fazer mais alguma coisa, e não me
espantava nada que pegasse fogo ao bar esta noite só para mostrar quem
manda.
– Estás a querer dizer-me que não posso continuar a trabalhar lá? –
exclamou Sam, incrédulo.
– A menos que estejas com vontade de morrer. – Theo esboçou um
sorriso torcido. – Tens de desaparecer, Sam. Todos nós temos. O Fingers, o
Heaney e os seus sequazes não são homens razoáveis, são brutos selvagens e
loucos dispostos a ir para a guerra, e nós seremos apanhados no fogo cruzado.
A melhor coisa que vocês os dois podem fazer é ir hoje mesmo para
Filadélfia. Tenho lá uns amigos com quem podem ficar, e eu vou lá ter com a
Beth assim que ela esteja em condições de viajar.
– E os meus amigos do matadouro? – perguntou Jack, pálido e ansioso.
Theo encolheu os ombros.
– Não creio que corram perigo. Nem o Heaney nem o Fingers os
conhecem.
– Não podemos partir assim sem mais, é Véspera de Natal! – objectou
Sam.
Theo arqueou uma sobrancelha.
– Com certeza não pensas que homens como eles acreditam no espírito
natalício, pois não? Vão considerar esta noite o momento ideal para atacar,
aproveitando o facto de os bares estarem cheios.
A expressão beligerante de Sam transformou-se em medo.
– E as nossas coisas que estão em Houston Street?
Theo olhou para o relógio da parede; pouco passava das dez.
– Duvido que a notícia chegue aos ouvidos do Fingers ou do Heaney
antes do meio-dia. Podes ir fazer as malas enquanto eu levo a Beth para minha
casa. Depois passo por lá para ir buscar as coisas dela.
– O que é que te faz pensar que a Beth estará a salvo contigo? –
perguntou Sam, desconfiado. – Disseste que também ias ter de partir!
– E tenho, porque de certeza não vou poder voltar a jogar cartas em
Nova Iorque num futuro previsível – respondeu Theo. – Mas ninguém sabe
onde moro. Estaremos em segurança até ela recuperar.
– Deixa-me falar com a Beth a sós – pediu Sam, secamente.
Theo assentiu e disse que lhe dava dez minutos.
Mal a porta do café se fechou depois de ele sair, Sam aproximou-se da
irmã.
– Não quero deixar-te com ele – disse. – Especialmente no Natal.
Beth compreendia as razões do medo dele, mas estava demasiado
exausta para se preocupar com isso naquele momento e, além disso, amava
Theo, que a salvara, e acompanhá-lo-ia de boa vontade para onde quer que ele
sugerisse.
– É a única coisa a fazer – disse, dando uma palmadinha afectuosa na
cara do irmão. – Fico bem, prometo. Sinto-me tão fraca que só serviria para os
estorvar se fosse convosco agora.
– Não está certo ficares sozinha com um homem como ele – insistiu
Sam, teimosamente. – E também não gosto de o ouvir dizer ao Jack o que tem
de fazer ou deixar de fazer.
– O que ele diz faz sentido – interveio Jack. – Soube, logo que isto
começou, que não ia poder ficar cá. Ouvi histórias a respeito do que aquela
gente faz a quem se lhe atravessa no caminho. Preferia que a Beth fosse
connosco, mas uma vez que ela não está em condições de fazer isso, não
temos alternativa, Sam.
Beth olhou para ele, agradecida.
– Tenho tanta pena que tenhas sido apanhado no meio de tudo isto e
perdido o teu emprego.
– Talvez arranje um melhor em Filadélfia – disse Sam, com um sorriso
resignado. – E já não somos nenhuns novatos… até pode ser que façamos
fortuna.
Beth mal conseguiu manter os olhos abertos no fiacre que a levou,
juntamente com Theo, até casa dele. Theo tinha combinado encontrar-se com
Jack e Sam um pouco mais tarde para ir buscar as coisas dela e dar-lhes uma
carta de apresentação para o seu amigo em Filadélfia.
– Eles nem vão reconhecer-se em Filadélfia – dissera
tranquilizadoramente quando a vira chorar um pouco no momento da
despedida. – O Frank é um homem rico com muitos interesses. Vai colocar o
Sam num dos seus bares e o Jack em qualquer outra das suas empresas antes
que tenham tempo de desfazer as malas.
*
Beth estava tão exausta que nem sequer viu para onde o fiacre os
levava, excepto que era um sítio qualquer na parte alta da cidade. Teve
vagamente consciência de um edifício de pedra castanha numa praça
sossegada, o género de lugar onde as famílias abastadas viviam.
Theo fê-la subir um lanço de escadas e levou-a para um amplo quarto
na parte da frente da casa.
Tudo o que verdadeiramente viu no seu estado de exaustão foi uma
grande cama com postes elaboradamente trabalhados, e deixou-se cair em
cima dela. Ouviu, como que muito longe, Theo dizer-lhe que tinha de tirar as
botas e que ia dizer à senhoria quem ela era antes de voltar a Houston Street,
mas já estava a mergulhar no sono e não conseguiu responder.
Acordou a ouvir o som familiar de alguém a espevitar uma lareira e, por
um instante, julgou estar de volta a Liverpool, porque acordara a ouvir aquele
som durante toda a sua infância. Estava bem aquecida; as mantas que a
cobriam eram grossas e pesadas, mas quando se espreguiçou um pouco, uma
dor nas costas e nos braços trouxe-a de regresso à realidade. Descobriu,
consternada, que vestia apenas a camisola e o saiote; o vestido, as meias e o
espartilho tinham-lhe sido tirados.
Com as mantas puxadas até ao nariz, abriu cuidadosamente os olhos e
viu Theo inclinado para a lareira. Sentiu mais do que soube que ele estava ali
no quarto com ela há já algum tempo, porque os cortinados estavam corridos,
os candeeiros a gás acesos e ele estava em mangas de camisa.
O quarto parecia muito confortável, com dois grandes cadeirões de
braços colocados em frente da lareira, em cima de uma espessa alcatifa
vermelha. Todo o quarto tinha um ar bastante luxuoso: os candeeiros nas
paredes tinham campânulas de vidro lavrado, os cortinados eram de pesado
brocado e, encostado a uma das paredes, havia um armário para roupa branca
da mesma madeira escura que a cama e igualmente trabalhado.
– Theo – murmurou –, que horas são?
Ele endireitou-se e voltou-se para ela com um sorriso.
– Finalmente! Já começava a pensar que nunca mais acordarias. São
sete da noite e há já horas que acompanhei o Sam e o Jack à estação.
– Quem me despiu?
– Eu. Não podia deixar-te dormir com aquela roupa vestida. Estava
molhada e suja e ia fazer-te sentir desconfortável.
Beth corou e enfiou-se ainda mais debaixo das mantas.
– Arranjas-me qualquer coisa que vestir? – pediu, nervosamente. –
Preciso de me levantar.
Theo dirigiu-se à porta e pegou no roupão de lã aos quadrados que
estava pendurado no cabide.
– Veste isto, por agora, apesar de ter aqui todas as tuas coisas. Se
quiseres tomar um banho, é ao fundo do corredor, e certifiquei-me de que a
água está quente. Mas talvez queiras comer primeiro. Eu já comi frango com
batatas, que ficaram a aquecer no forno da cozinha de Miss Marchment.
– Ela importa-se que eu fique cá? – perguntou Beth, puxando o roupão
para debaixo das mantas para poder vesti-lo sem mostrar um pedacinho de
pele que fosse.
– Não, absolutamente nada. Expliquei-lhe o que te aconteceu. Vais
conhecê-la amanhã.
Mais tarde nessa noite, Beth estava deitada na cama a sentir-se
estranhamente desapontada. Theo tratara-a como uma princesa. Servira-lhe
uma magnífica refeição, preparara-lhe o banho e dera-lhe a beber dois copos
de whisky com mel e limão que, afirmou, garantiriam que não ia adoecer com
uma constipação. Mas nem sequer a beijara.
Cheirava nas almofadas o aroma da loção capilar que ele usava, quase
podia sentir a marca do seu corpo no colchão, mas Theo estava a dormir
noutro lugar qualquer da casa e não sugerira, nem sequer por uma
pequeníssima insinuação, que gostaria de partilhar a cama com ela.
Tê-lo-ia deixado, se o tivesse feito?
Não tinha resposta para esta pergunta. A cabeça insistia em que não
teria deixado. Mas, se assim era, como explicar aquela sensação de ter sido
abandonada?
Depois, havia a questão de saber onde passara ele todas aquelas
semanas. Não dera, a esse respeito, qualquer justificação ou desculpa. Parecia
provável que tivesse outra mulher algures, mas, nesse caso, porque teria dito
que ia levá-la para Filadélfia?
Devia amá-la. Que outra razão poderia tê-lo feito planear e levar a cabo
o seu resgate? Contara-lhe como descobrira que Fingers tinha propriedades em
Blind Man’s Court e em Bottle Alley e como invadira todos os quartos de
todas as casas até que encontrara uma rapariguinha que lhe tinha dito que
ouvira gritos e pancadas. Sam, Jack e os amigos de Jack também lá tinham
estado, claro, mas era evidente que fora Theo a liderá-los.
Antes de voltar para a cama, deambulara pelo quarto e tomara nota de
muitas coisas: fotografias da família dele em molduras de prata, roupas e
sapatos de boa qualidade, botões de punho de ouro, escovas de cabelo
revestidas a prata e pelo menos uma dúzia de gravatas de seda. As mobílias do
quarto eram antigas e gastas, mas não havia a mínima dúvida de que aquela
fora, em tempos, a residência de uma pessoa rica; interrogara-se porque a teria
ele levado a pensar que não vivia muito melhor do que ela e Sam.
Talvez por não saber que as pessoas pobres como ela não tinham casas
de banho e retretes ao fundo do corredor. Talvez acreditasse sinceramente que
tinha uma vida dura por ser obrigado a viver e dormir num único quarto.
Mas se aquilo era uma vida dura, com lençóis macios na cama, um
edredão de penas e uma lareira acesa, então ela não se importaria nada de
partilhá-la com ele. Aquela casa era silenciosa como uma igreja. Não havia
bebés a chorar, nem gritos, nem passos de bêbedos nas escadas; a única coisa
que ouvira fora o ocasional rolar das rodas de um fiacre nas pedras da rua, lá
em baixo.
Queria acreditar que Theo se mantivera à distância naquela noite porque
a amava e a respeitava, porque era assim que um cavalheiro se comportava
nos romances. Mas uma vozinha dentro da cabeça dela alertava-a contra estes
pensamentos; ele nunca dissera que a amava, e como Ira tinha feito notar,
mais de uma vez, os jogadores tinham as suas próprias leis.
Na manhã seguinte, foi acordada por uma pancada na porta. Antes que
pudesse perceber o que se passava, a porta abriu-se para dar passagem a uma
mulher que transportava um pequeno-almoço numa grande bandeja.
– Sou Miss Doughty, a governanta de Miss Marchment – disse, o rosto
frio e severo. – Mr. Cadogan pediu-me que lhe trouxesse isto e lhe dissesse
que estará consigo esta tarde.
– Mas é Dia de Natal! – exclamou Beth. Estava muito satisfeita com o
pequeno-almoço de bacon, ovos, panquecas e café, mas não queria acreditar
que Theo tencionava deixá-la sozinha o dia inteiro.
Além disso, sentira a reprovação da governanta. A mulher era magra,
com feições duras e cabelo grisalho, e não parecia pessoa que se deixasse
conquistar por simpatias.
– Mr. Cadogan há-de ter feito os seus planos para o dia de hoje há
várias semanas – retorquiu Miss Doughty. – Os cavalheiros não alteram os
seus planos sem uma boa razão e pediu-me que me certificasse de que
repousava e não saía.
– Peço desculpa pela intrusão – disse Beth, num esforço para aplacar a
mulher. – O pequeno-almoço tem um aspecto maravilhoso.
– Coma enquanto está quente. Voltarei mais tarde, quando estiver
vestida, para a apresentar a Miss Marchment. Escolha uma roupa simples. Não
vai querer assustá-la parecendo uma rapariga de um saloon.
Dito isto saiu, deslizando para fora do quarto e deixando Beth a
sentir-se abalada.
*
Conhecer Miss Marchment foi uma experiência ainda mais
desagradável. O quarto dela, no piso térreo, era escuro e esquálido. Fedia a
urina de gato e tornava ainda mais notável a limpeza e o conforto do de Theo.
Era difícil calcular a verdadeira idade de Miss Marchment, pois embora a pele
enrugada e salpicada de manchas amarelas, as roupas pretas e a touca de renda
que lhe cobria o cabelo branco sugerissem que era muito velha, a voz brusca e
alta parecia pertencer a alguém muito mais novo. Era pequena e magra, mas
tinha umas mãos inchadas que davam a impressão de lhe doer, e Beth pensou
que provavelmente sofria de reumatismo.
Não manifestou a Beth a mais pequena ponta de simpatia ou
compreensão, disparando perguntas a respeito da sua família e passado como
se estivesse convencida de que só alguém vindo da sarjeta poderia ter-se
metido em semelhante aventura. Beth esforçou-se por mostrar-lhe que tinha na
realidade sido bem educada, mas a velha senhora retorquiu que qualquer
rapariga que trabalhasse num bar estava a pedir sarilhos. Chegou ao ponto de
acrescentar que esperava que Beth não estivesse a aproveitar-se da bondade de
Mr. Cadogan.
Beth tentou não responder com a mesma indelicadeza, limitando-se a
afirmar que fora Theo que decidira levá-la para ali por estar exausta depois de
tudo por que passara.
– Estou-lhe muito grata pela generosidade, e à senhora também por me
deixar ficar alguns dias, mas irei juntar-me ao meu irmão o mais rapidamente
possível – concluiu.
Era evidente que Theo não informara a sua senhoria de que ia deixá-la
em breve, e não seria com certeza ela a esclarecê-la.
O seu desânimo tornou-se ainda mais profundo quando voltou ao quarto
de Theo. Era uma visita indesejada num sítio desconhecido. E não sabia onde,
em Filadélfia, encontrar Sam e Jack. Sentia-se encurralada e totalmente
dependente de Theo.
Muito naturalmente, os seus pensamentos voltaram-se para o Natal
anterior, em Falkner Square, e ao evocar a imagem de Molly a brincar na
cozinha, e todo o calor humano e alegria que houvera, a sensação de
segurança e felicidade perfeitas, sentiu um desejo enorme de lá estar.
Theo voltou um pouco depois das sete, irrompendo no quarto com
cheiros e imagens de charutos e mesas carregadas de comida, bebida e alegre
companhia.
– Quem me dera ter podido levar-te hoje comigo – disse, enlaçando-a
num longo e sensual beijo que deixou a cabeça de Beth a andar à roda.
Miss Doughty apareceu pouco depois, com um jantar de carnes frias e
pickles. Beth não precisou de perguntar por que razão tinha Theo direito a
refeições preparadas, roupa lavada e quarto limpo enquanto os outros quatro
inquilinos, de momento com as respectivas famílias para passar o Natal, eram
obrigados a governar-se sozinhos. Tinha um jeito especial que fazia qualquer
mulher, por mais velha que fosse, querer cuidar dele.
Depois de terem comido, e de Beth ter ido sentar-se junto à lareira,
Theo tirou o violino do estojo e entregou-lho.
– Com certeza não queres que toque agora? – exclamou ela,
surpreendida. – Não vai incomodar Miss Marchment?
Ele riu.
– O silêncio incomodá-la-ia muito mais. Ia julgar que estávamos a fazer
amor. Mas pensei que ia manter-te entretida, porque tenho de voltar a sair
dentro de um ou dois minutos.
Beth sentiu o coração afundar-se-lhe no peito.
– Pensei que tinhas dito que era perigoso sair – disse, em voz baixa.
– Seria, se fosse para os lados da Bowery. – Theo encolheu os ombros,
pegou na escova e começou a pentear-se diante do espelho. – Mas tenho
assuntos a tratar numa parte muito mais salubre da cidade. – Talvez por ter-lhe
adivinhado o desapontamento, aproximou-se dela e abraçou-a. – Há pessoas
com quem preciso de falar e negócios que tenho de deixar resolvidos – disse,
beijando-a ternamente na testa. – Claro que preferia mil vezes ficar aqui, mas
então sentir-me-ia tentado a fazer amor contigo. Quando chegarmos a
Filadélfia, será tudo muito diferente. E tu precisas de praticar com o teu
violino, porque quando lá estivermos vou apresentar-te nos melhores lugares.
Beth tocou violino depois de ele ter saído. Tinha os dedos rígidos e
magoados, na realidade doíalhe o corpo todo e teve de fazer um esforço só
para segurar o instrumento, mas tocar era a sua maneira testada e comprovada
de acalmar-se. Não tentou as alegres jigas que tocava no Heaney’s, e sim
algumas das melodias mais lentas e queixosas que aprendera com o avô.
Lembrou-se de o ouvir dizer que lhe recordavam a Irlanda: via Falway Bay
envolta em bruma, as montanhas toucadas de púrpura e as flores silvestres das
turfeiras na Primavera. Para Beth, eram calmantes imagens sonoras, porque
via a sala de estar de Church Street, os pais sentados juntos no sofá, o avô
reclinado na sua cadeira, os olhos fechados e um sorriso no rosto.
A 28 de Dezembro, Beth e Theo apanharam o comboio para Filadélfia.
Theo só na noite anterior informara Miss Marchment da sua partida, e Beth
ouvira a voz dela erguida em fúria.
Theo não lhe contou o que tinha sido dito. O seu único comentário foi
que nunca dissera a Miss Marchment que ia ficar para sempre.
– Detesto que as pessoas tentem prender-me, como se eu fosse sua
propriedade – acrescentou, como que num aviso a Beth.
Era noite quando chegaram a Filadélfia, e um fiacre levou-os, numa
curta viagem, da estação do caminho-de-ferro até uma rua ladeada de casas de
velho estilo federal. A porta foi-lhes aberta por uma negra baixa e gorda, que
usava um avental branco e um turbante vermelho com bolas brancas.
– Mr. Cadogan! – exclamou a mulher, com um sorriso do tamanho de
uma fatia de melancia. – Que bom voltar a vê-lo!
– É bom voltar a ver-te a ti também, Pearl – disse Theo, fazendo-lhe
uma festa no rosto com óbvio afecto. – Esta menina é Miss Bolton, que vem
juntar-se ao irmão.
Pearl mirou Beth dos pés à cabeça, talvez surpreendida por achá-la tão
diferente de Sam.
– Seja bem-vinda, Miss Bolton. Mas receio que o Sam e o Jack tenham
saído para tratar de uns assuntos. Voltarão mais tarde. Entretanto, vou dar-lhes
de jantar e mostrar-lhe o seu quarto.
Beth ficou desapontada por Sam e Jack não estarem presentes para a
receber, mas foi um alívio encontrar-se numa casa elegante, confortável e
quente. As portas e corrimãos brilhavam de limpeza, havia uma espessa
alcatifa na escada e grandes espelhos de molduras douradas reflectiam a luz
dos candeeiros a gás.
Enquanto Pearl os guiava até à cozinha, nas traseiras, Beth viu de
relance uma sumptuosa sala de estar mobilada a vermelho e ouro e com uma
enorme lareira acesa.
– Um pouco diferente da casa de Miss Marchment, hein? – disse Theo,
com um sorriso.
Beth tinha ouvido risos vindos do primeiro piso, mas como nem Theo
nem Pearl, que ela assumia ser a governanta, lhe deram qualquer informação a
respeito dos outros habitantes da casa, comeu o seu jantar de sopa, pão e
queijo sem fazer perguntas, limitando-se a ouvir a conversa dos dois.
Era evidente que Theo encantara Pearl, tal como tinha encantado Miss
Marchment, pois a mulher parecia pendente de cada uma das suas palavras,
rodeava-o de cuidados e mostrava-se deliciada por ele ir ficar algum tempo.
– Tenho de ir tratar de uns assuntos – disse Theo a Beth quando acabou
de jantar. – Mas a Pearl toma conta de ti até que o Sam e o Jack voltem.
Vemo-nos amanhã.
– Está com um ar cansado – disse Pearl solicitamente, depois de Theo
ter saído. – Vou levá-la até ao seu quarto e ajudá-la a instalar-se.
E desceu a escada da cave, levando na mão um candeeiro a petróleo,
enquanto Beth a seguia transportando a mala. Estava frio, ali, depois do calor
da cozinha, e Pearl pediu desculpa pelo facto, acrescentando que ia pôr um
tijolo aquecido na cama dela.
– Cá estamos – disse, abrindo uma das várias portas de um comprido
corredor com chão de pedra rústica. – Aqui ao lado é a lavandaria – continuou
apontando a porta do lado esquerdo, e então, indicando a do lado direito,
explicou que era a do quarto de Sam e de Jack.
O quarto de Beth era pequeno, com cerca de dois metros e setenta por
dois metros e dez, e uma janela com grades.
– É um pouco acanhado, mas muito sossegado – disse Pearl. – O Sam e
o Jack só voltarão depois da meia-noite, de modo que se ouvir barulho, não se
assuste… serão eles. Mais ninguém vem até aqui. Se precisar de alguma coisa,
vá até à cozinha e chame.
O quarto era espartano, contendo apenas uma cama de ferro, um
lavatório com uma bacia esmaltada e uma jarra, e um pequeno armário. Mas
parecia e cheirava a limpo, e Beth estava tão cansada que nem se sentiu
ofendida por Theo a ter deixado novamente sozinha.
Depois de Pearl ter desaparecido escada acima, pegou no candeeiro a
petróleo e abriu a porta do quarto ao lado, e ficou tranquilizada ao ver uma das
camisas de Sam pendurada de um cabide espetado na parede e o casaco aos
quadrados de Jack nas costas de uma cadeira.
Acabava de desfazer a mala quando um relógio lá em cima bateu as dez.
Com a ideia de pedir a Pearl um pouco de água quente para se lavar, voltou à
escada.
A porta da cave abria para a parte de trás do vestíbulo e, quando lá
chegou, ouviu os passos de pessoas que desciam do primeiro piso. Assumindo
que se tratava de membros da família, que talvez não achassem graça a ver
uma desconhecida àquela hora tão tardia, recuou para a sombra do umbral.
Na parede em frente havia um grande espelho e, subitamente reflectidas
na sua superfície polida, apareceram as figuras de quatro raparigas.
O choque fê-la ofegar, pois não eram as recatadas jovens que estava à
espera de ver, e sim quatro criaturas escassamente vestidas, os seios e as
pernas em parte revelados pelas coloridas roupas de cetim e renda que
adejavam à volta delas.
Não lhe foi difícil adivinhar o que eram, nem o que era aquela casa, pois
Amy e Kate tinham-lhe mais de uma vez mostrado roupas semelhantes. E até
Ira tinha na sua loja uma secção especial para aquelas coisas.
As quatro raparigas, uma loura, duas morenas e uma ruiva, eram jovens
e bonitas, e todas elas riam de uma graça partilhada.
– Se ele não se despachar em dez minutos, obrigo-o a dar-me mais dez
dólares – disse a ruiva, com uma gargalhada.
Beth recuou um passo e fechou silenciosamente a porta, tão chocada
que já não queria saber de lavagens. Queria acreditar que podia haver outra
explicação, apesar de saber que não havia.
Theo tinha-a levado para um bordel.
CAPÍTULO 20
Beth estava deitada, rígida, na estreita cama, demasiado perturbada para
dormir. Reinava na cave o mais absoluto silêncio, mas, se apurasse o ouvido,
conseguia distinguir o som de risos e de um piano vindo lá de cima.
Já era suficientemente mau pensar que havia mulheres a vender o corpo
ali tão perto, mas estava ainda mais ofendida por Theo a ter levado para um
lugar daqueles sem uma palavra de aviso.
Teria sido por pensar que ela era demasiado estúpida ou demasiado
ingénua para perceber que espécie de lugar era aquele? Ou haveria uma razão
mais sinistra, como, por exemplo, ele estar a planear recrutá-la para o
negócio?
Não fazia ideia de que horas eram quando finalmente ouviu as vozes de
Sam e de Jack lá fora no corredor, mas calculou que já devia passar bem da
uma da manhã. Saltou da cama e, detendo-se apenas o tempo suficiente para
pôr um xaile à volta dos ombros, correu descalça para o quarto ao lado.
– Beth! – exclamou Sam. – Não te esperávamos tão cedo.
– Sentes-te melhor agora? – perguntou Jack.
Era evidente que os dois tinham estado a beber, pois mal se mantinham
de pé e tinham os olhos vidrados.
Beth explicou atabalhoadamente o que tinha visto e como ficara
perturbada por Theo não a ter avisado.
– Ele disse-vos o que este lugar era antes de os mandar para cá? –
perguntou.
– Bem, sim – respondeu Jack, com um ar embaraçado. – Mas disse-nos
que ficaríamos na cave e não teríamos qualquer relação com o que se passava
lá em cima. Nem sequer usamos a porta principal, usamos a da cave.
– Não te preocupes, mana – disse Sam, a arrastar um pouco as palavras.
– É só um lugar onde ficar até arranjarmos outra coisa, e já temos os dois
trabalho. Além disso, não é a primeira vez que conheces prostitutas. A Kate e
a Amy eram tuas amigas.
Beth imaginara, ingenuamente, que o irmão ignorava como as amigas
dela ganhavam a vida, e foi a sua vez de ficar atrapalhada.
– Mas o Theo não me disse nada – queixou-se.
– Volta para a cama – disse Sam, impaciente. – Sim, o Theo é um bom
malandro. Porque é que achas que não queria deixar-te sozinha com ele em
Nova Iorque? Mas temos um lugar para viver, trabalho e tudo corre pelo
melhor. Voltamos a falar a respeito de tudo isto amanhã.
Beth olhou suplicantemente para Jack, que se limitou a encolher os
ombros e a dizer: – Há lugares piores do que um bordel.
O dia ainda mal tinha rompido, na manhã seguinte, quando Beth ouviu
a voz de Theo. Parecia estar na cozinha, lá em cima, a falar com alguém.
Cheia de fúria por ele não só a ter traído como também corrompido o irmão e
o amigo, vestiu-se à pressa e correu escada acima.
Theo estava calmamente sentado à mesa, a beber uma chávena de café e
a conversar com Pearl. O
cabelo despenteado e o queixo sombreado pela barba provavam que
passara a noite inteira a pé.
– Como pudeste fazer-me uma coisa destas? – esbravejou ela, antes que
ele tivesse sequer tempo de dizer bom-dia. – Fizeste-me crer que ias trazer-me
para um lugar respeitável. Isto é um bordel!
Não quis saber se ofendia Pearl, e, quando ele se riu da sua indignação,
teve vontade de esbofeteá-
lo.
– Vá lá, Beth – disse ele, batendo com a mão na cadeira a seu lado, a
convidá-la a sentar-se. – Acreditas mesmo que alguém totalmente respeitável
estaria disposto a receber pessoas perseguidas por bandidos de Nova Iorque?
Era uma coisa em que Beth não tinha pensado, e que a apanhara
desprevenida.
– Penso que devias estar muito agradecida por uma boa pessoa como a
Pearl estar disposta a correr o risco de arranjar sarilhos com gente tão pouco
recomendável – acrescentou Theo, reprovadoramente.
Beth lançou um olhar a Pearl, que vestia ainda as roupas de dormir, com
uma pequena touca a cobrir-lhe os cabelos. O rosto bondoso expressava
preocupação, e Beth sentiu-se um pouco envergonhada da sua explosão, pois a
mulher recebera-o tão calorosamente na noite anterior. Tudo indicava, além
disso, que não era uma simples governanta, e sim a dona da casa.
– Podias ter-me avisado – disse, debilmente. – Foi um choque tão
grande.
– E tu devias ter sido suficientemente esperta para perceber sem ser
preciso que alguém to dissesse.
– Theo suspirou, passando os dedos pelo cabelo. – Trabalhaste para o
Heaney durante meses, trabalhaste numa loja onde metade das prostitutas de
Nova Iorque compra as suas roupas, pensei que isso te teria aberto os olhos
para a realidade. Além disso, perdeste a tua imagem respeitável na primeira
vez que tocaste num bar.
Beth ficou a olhar para ele por um instante, quase incapaz de acreditar
no que acabava de ouvir, mas então, quando compreendeu que ele tinha
provavelmente razão, rompeu a chorar.
Foi Pearl que se aproximou para a reconfortar.
– Ora vamos, não leve as coisas tão a peito – disse, apertando Beth
contra o farto seio. – Aqui não lhe acontece mal nenhum, e nem sequer vai ter
de conhecer as minhas raparigas, a menos que queira.
Mas se quer ganhar a vida a tocar violino, tem de habituar-se a ser vista
como uma mulher de maus costumes.
– Mas porquê? – soluçou Beth. – Ninguém pensa mal de um homem
que toque um instrumento. Não sou uma rapariga má, só gosto de música.
– O mundo é dos homens, querida. Bailarinas, cantoras, actrizes e
músicas, todas recebem o mesmo rótulo – disse Pearl, apaziguadoramente. –
Pode escolher ser Miss Decência-vai-à-igreja-ao-domingo, mas isso significa
vestir discretamente, arranjar um emprego respeitável e fazer uma vida
aborrecida. Mas se escolher ser Miss Irreverente, a violinista que dorme até ao
meio-dia e se diverte como quer, vai ter de aprender a não dar importância ao
que as pessoas dizem.
– Como é que vai ser, Beth? – perguntou Theo. – Porque tenho uma
espécie de estreia preparada para ti esta noite.
Beth libertou-se dos braços de Pearl, limpou os olhos e olhou para os
dele, na esperança de lá ver amor. Viu divertimento, mas nada mais.
– Nesse caso, acho que vou ter de tocar – respondeu,
descontraidamente. – Não posso deixar-te ficar mal depois de te teres dado a
tanto trabalho.
Talvez se continuasse a diverti-lo ele acabasse por amá-la.
– Aqui tem, querida – disse Pearl, entregando a Beth o vestido vermelho
que acabava de passar a ferro. – E tenho um enfeite bem bonito para o cabelo
que lhe posso emprestar, se quiser. É da mesma cor que o vestido.
Eram seis da tarde e Beth tinha conseguido ultrapassar o choque que lhe
causara saber o que se fazia naquela casa, pois ninguém poderia ser mais
carinhosa do que Pearl.
Depois da troca de palavras dessa manhã, Theo desaparecera no seu
quarto, que ficava mais para o fundo do corredor da cave. Pearl dissera-lhe
que Sam e Jack não apareceriam antes do meio-dia, e parecia que as raparigas
lá de cima também não gostavam de se levantar cedo.
Depois de se lavar e vestir, Beth subiu à cozinha para oferecer os seus
préstimos a Pearl, pois estava arrependida e envergonhada do que tinha dito.
Pearl sorriu de orelha a orelha, agradecida pela oferta, mas começou
imediatamente a preparar mais uma cafeteira de café e deixou bem claro que
preferia conversar a preocupar-se muito com o que havia para fazer.
Beth tinha visto muitos negros em Liverpool, e ainda mais desde que
chegara à América, mas Pearl era a primeira pessoa de cor com quem tinha
uma verdadeira conversa. Era inteligente, espirituosa e carinhosa. Até a voz
dela dava prazer ouvir, baixa e melodiosa, apenas com uma leve sugestão do
Sul Profundo.
O mais surpreendente de tudo era, no entanto, a idade. Não tinha rugas
no rosto, movia-se graciosa e rapidamente apesar do volume, e Beth imaginara
que não teria mais de quarenta anos. Mas se as histórias que contava eram
verdadeiras, e Beth acreditava que sim, já passara dos sessenta, tendo Pearl
confessado, a rir, que a razão porque cobria sempre a cabeça com um turbante
ou uma touca era ter o cabelo completamente branco.
Contou que tinha nascido escrava, no Mississippi, mas que ela e a mãe
tinham fugido, quando tinha treze anos, com a ajuda de um grupo de
abolicionistas do Kansas.
– Houve um grupo de pessoas que partiu para oeste numa caravana de
carroções – explicou. – Eram na sua maioria boa gente, e nós íamos com eles
e ajudávamo-los a cuidar dos filhos e a lavar e a cozinhar a troco de comida.
Tencionávamos ir até ao Oregon, mas então alguém disse que tinham
encontrado ouro em São Francisco, e um grande grupo dos que estavam na
caravana separou-se para ir para lá. A mamã achou que também devíamos ir,
já que poderíamos arranjar trabalho como cozinheiras.
Beth ouviu, fascinada, Pearl descrever a travessia da Sierra Nevada a
caminho da Califórnia em pleno Inverno.
– O frio era tanto e a neve tão alta que receámos morrer ali, como
alguns dos outros morreram. Mas conseguimos chegar a São Francisco. Não
havia muitas mulheres, nessa época, e era um lugar bravio e selvagem, mas a
mamã tinha razão, havia uma grande falta de cozinheiras. Montámos a nossa
tenda logo que lá chegámos, fizemos um grande caldeirão de guisado e
vendemo-lo a dez cêntimos a tigela enquanto o diabo esfrega um olho.
Beth estava meio à espera de que Pearl lhe dissesse que ela e a mãe
depressa tinham descoberto que era mais fácil vender o corpo do que
guisados, mas enganou-se. Continuaram a cozinhar, aumentando
gradualmente os preços e a variedade de pratos. Cobravam aos mineiros por
lhes lavar e remendar as roupas, e até abriram um «hotel».
– Não era de certeza parecido com qualquer hotel que conheça – disse
Pearl, com uma gargalhada.
– Era apenas uma grande tenda, e os nossos hóspedes tinham direito a
um colchão de palha no chão, e tinham de levar as suas próprias mantas.
Também construímos uma casa de banho nas traseiras. Eu mal conseguia
levantar do lume aqueles baldes de água, tão pesados eles eram. Mas
ganhámos dinheiro, mais dinheiro do que alguma vez tínhamos sonhado. Em
52, mandámos construir um hotel a sério, uma coisa chique com mobílias e
espelhos vindos de França, mas por essa altura as mulheres respeitáveis
começaram a chegar e não queriam ficar num hotel que pertencia a duas
negras. Eram muito más para nós; se pudessem, tinham corrido connosco da
cidade. Por isso a mamã transformou aquilo num bordel, para lhes dar uma
lição.
Riu estrepitosamente ao dizer isto, e Beth juntou-se-lhe, porque
entretanto começara a ver a cena através dos olhos de Pearl.
– Mas isso havia de certeza de fazer com que as corressem da cidade
ainda mais depressa – disse, por entre as gargalhadas.
Pearl pôs as mãos nas vastas ancas e rolou os olhos.
– A mamã sabia umas coisas a respeito de homens, sobretudo daqueles
emproados que mandavam na cidade. Contratou o género de raparigas que
viravam aqueles sujeitos do avesso e os faziam voltar a uivar por mais. As
senhoras respeitáveis berravam a exigir que a casa fosse fechada, e os homens
delas assentiam e concordavam, mas iam-se lá enfiar pelas traseiras sempre
que tinham oportunidade.
Beth não tinha dificuldade em compreender por que razão os homens
preferiam a companhia de Pearl e da mãe… Imaginava aquelas esposas de
feições duras e corações frios a mexericar à volta da mesa do chá da tarde
enquanto os maridos, pomposos mas famintos de sexo, se divertiam longe
delas.
– E a Pearl? – perguntou. – Qual era o seu papel no negócio?
– Durante o dia limpava os quartos, cozinhava e lavava a roupa, mas à
noite cantava no bar – respondeu Pearl. – Nunca fui uma prostituta. Não estou
a dizer que não houve homens na minha cama.
Mas nunca recebi dinheiro por isso.
Beth não duvidou por um instante que aquilo fosse verdade.
– Cantava bem? – perguntou.
– As pessoas diziam que sim – respondeu Pearl, com modéstia. – Desde
criança que adoro cantar; para mim, era tão natural como respirar. Tinha de
cantar, era como deixar o meu espírito voar livre.
Mas penso que sente o mesmo em relação a tocar o seu violino. Nessa
altura, também eu era nova e bonita, gostava da atenção, de vestir cetim e
seda, de ver os homens olharem para mim como se eu fosse o amor das suas
vidas. Tinha percorrido um longo caminho desde que era uma escrava
descalça e faminta à mercê do meu dono.
Beth calculou que a razão que levara a mãe de Pearl a fugir com a filha
fora provavelmente querer protegê-la do tal dono. Apesar de não ter conhecido
o género de provações por que Pearl passara, compreendia a sua necessidade
de cantar.
– Eu sinto o mesmo quando toco – disse. – Sei que nunca fui uma
escrava, mas uma pessoa pode sentir-se amarrada pelo seu passado e pela
maneira como foi educada.
– Respeitabilidade – assentiu Pearl, sabiamente. – Bem, é coisa que
nunca tive, e nunca terei. Mas sou respeitada pelas minhas raparigas, e pelos
homens que aqui vêm. Não preciso de mais.
Contou então a Beth que a mãe fora atropelada por uma carruagem e
ficara aleijada, e que estava convencida de que não se tratara de um acidente.
A mãe nunca mais voltara a andar e Pearl tivera de tomar conta dela e do
negócio.
– Mas fiquei lá até que ela morreu, dez anos mais tarde. Não ia
deixá-los ganhar – disse, orgulhosamente. – Então vendi a casa e vim para
aqui e comprei esta.
– Porquê aqui? – perguntou Beth.
– Um homem, querida. Que outra coisa me faria atravessar o país de
uma ponta à outra?
– É o tal Frank, o amigo de que o Theo falou?
Pearl assentiu.
– É bom para mim, e um autêntico cavalheiro, mas um jogador e um
sedutor como o Theo. Agora, ouça com muita atenção o meu conselho! Não se
ponha a sonhar com ser feliz para sempre. Não acontece com homens como o
Frank ou o Theo. Divirta-se com ele, mas guarde o dinheiro que ganhar e tudo
o que ele lhe der. Ofereça-lhe o corpo de graça, mas não lhe dê o coração,
porque ele parti-lo-
á.
Beth preparava-se para tentar convencer Pearl a alongar-se sobre o
assunto quando as raparigas começaram a descer à cozinha. A loura de ar
amuado era Missy, as duas morenas Lucy e Anna, e a bonita ruiva era Lola.
Missy, Lucy e Anna não teriam mais de dezoito anos, Lola talvez vinte e três.
Todas elas usavam roupão e chinelos e tinham os rostos pálidos por
falta de ar fresco.
Beth sentiu que as raparigas não tinham ficado muito satisfeitas por
encontrarem uma desconhecida na cozinha, de modo que pediu licença e
voltou à cave, para ver se Sam e Jack já estavam acordados.
Já estavam acordados, mas estavam ambos com dores de cabeça por
causa da bebedeira da noite anterior. Jack foi à cozinha buscar café e deu a
Beth uma oportunidade de falar a sós com o irmão.
– Já ultrapassei o choque de viver num bordel – começou ela,
cautelosamente. – Estive a falar com a Pearl e gostei dela. Acho que ontem à
noite entrei em pânico, mas a culpa foi do Theo. Devia ter-me avisado.
– Confesso que estava com medo da tua reacção – admitiu Sam.
– A Pearl fez-me ver as coisas de uma perspectiva diferente. Mas basta
disto. Diz-me o que tu e o Jack fazem.
– Eu estou a gerir o Bear, um grande saloon a poucas ruas daqui – disse
Sam. – O Jack está a aprender o ofício, serviço ao balcão e adega. Mas o
Frank Jasper, o proprietário, é dono de várias casas de jogo e anda a
treinar-me nessa área. É óptimo, mana, não tem nada a ver com o Heaney, é
um autêntico cavalheiro sulista.
Beth sorriu. Perguntou-se se o irmão saberia que Frank era, ou tinha
sido, amante de Pearl.
Duvidava. Sam não se interessava tanto por pessoas como ela.
– O salário é bom? – perguntou.
– Ainda não estamos cá há tempo suficiente para chegar a essa parte,
mas a noite passada ele deu dez dólares a cada um de nós e disse que
voltávamos a falar no assunto no Ano Novo. Estamos aqui à borla, e a Pearl é
uma óptima cozinheira.
– O Theo disse que ia estrear-me esta noite. Vai ser no teu saloon?
– Penso que sim, porque mal chegámos cá o Frank quis saber quando
vinhas. Parece que o Theo lhe falou de ti há já algum tempo. Vai ser bom para
ti, mana, é uma boa casa, não tem nada a ver com a tasca do Heaney.
– Como é que te dás com as raparigas lá de cima? – perguntou Beth,
arqueando interrogativamente uma sobrancelha.
Sam sorriu, malicioso.
– A Pearl não as deixa dar borlas, deixou isso muito claro logo na noite
em que chegámos. E, de todos os modos, mal as vemos. Só vamos lá acima
quando a Pearl nos chama para jantar.
Conversaram durante mais algum tempo, e Beth contou-lhe como tinha
sido o Natal.
– Espero que o Theo se tenha portado decentemente – bufou Sam. –
Gosto dele, mas não confio nele.
– A Pearl parece pensar o melhor possível dele.
– A Pearl gosta de homens – observou Sam, sabiamente. – E suponho
que, com a idade dela, já não precisa de preocupar-se com serem ou não de
confiança. Mas agora que estás cá, eu e o Jack vamos cuidar de ti.
– Eu sei cuidar de mim mesma, obrigada – disse Beth, mas suavizou a
afirmação com um sorriso. – Agora vou deixar-te levantar e vestir, e talvez tu
e o Jack possam levar-me a sair e mostrar-me qualquer coisa enquanto ainda é
dia. Não quero ficar com cara de fantasma, como as raparigas lá de cima.
O enfeite para o cabelo que Pearl emprestara a Beth era uma travessa
cravejada de pérolas e com um penacho de plumas vermelhas.
– O Frank ofereceu-mo quando nos conhecemos, em Frisco – disse,
enquanto o prendia no cabelo de Beth, na cozinha. – Era o meu amuleto, e
usava-o sempre que cantava. Ficas ainda mais bonita com ele do que eu, e
acho que o Frank vai gostar de o ver outra vez. Saberá que gosto de ti.
Beth foi ao vestíbulo ver-se no grande espelho. O passeio pela cidade
com Sam e Jack devolvera-lhe a cor às faces, e a maneira como Pearl lhe
prendera alguns caracóis no lado da cabeça com a travessa fazia-a parecer
mais sofisticada. O vestido vermelho sempre a fizera sentir-se um pouco
nervosa, por ter um decote tão pronunciado, mas as plumas na cabeça
pareciam equilibrá-lo melhor.
Pearl estava a observá-la da cozinha, e sorriu para si mesma. A rapariga
parecia um quadro, com os caracóis negros caídos sobre os ombros muito
brancos. Com aquela cara bonita e expressiva, os grandes olhos, os lábios
cheios, era o género de mulher que qualquer homem desejaria.
Bem gostaria de poder ir ao Bear naquela noite para ouvi-la tocar, mas o
seu lugar era ali. Frank havia de contar-lhe como tudo se tinha passado.
Sam e Jack tinham saído mais cedo para o trabalho, de modo que foi
Theo que escoltou Beth até ao Bear. Vestia a sua habitual indumentária de
noite: camisa branca como a neve, laço, casaca impecavelmente cortada e
chapéu alto, com a pesada capa forrada a cetim descuidadamente suspensa de
um ombro.
– O Bear chama-se assim porque o dono de uma velha cervejaria que
fica perto tinha um urso no pátio das traseiras – explicou Theo, enquanto
desciam a rua. – Se algum cliente armava sarilho, ele ameaçava atirá-lo ao
urso.
Beth soube que ele estava nervoso porque lhe conhecia o hábito de
contar velhas histórias quando queria esconder os seus sentimentos. Não sabia
se o nervosismo se devia ao receio de ela não estar à altura das suas
expectativas naquela noite ou ao receio de que recomeçasse a queixar-se por
ele a ter instalado num bordel. Ou talvez estivesse apenas um pouco
apreensivo porque ia jogar cartas, mais tarde.
Não perguntou, porque ela própria estava tão assustada que pensou que
ia vomitar. A razão dizia-lhe que se era capaz de tocar no Heaney’s, era capaz
de tocar fosse onde fosse. Só que, no Heaney’s, não tinha ninguém a apoiá-la;
se falhasse agora, não seria só ela a ficar malvista. Sabia que Theo, Sam e Jack
deviam ter-se fartado de tecer-lhe louvores; se fosse um desastre, todos eles
fariam má figura.
Entrou no Bear com um alarmante nó no estômago. Era muito maior do
que o Heaney’s, e o tecto alto e as estreitas janelas abertas dois metros e meio
acima do chão indicavam que tinha sido construído para servir de armazém, a
que fora acrescentado um novo soalho de boa madeira. Um comprido balcão
corria ao longo de um dos lados; do outro, uma área sobrelevada protegida por
uma balaustrada continha mesas e cadeiras. No extremo oposto ao da porta
havia um palco. A iluminação era proporcionada por lâmpadas eléctricas, essa
novidade, que se reflectiam no enorme espelho por trás do balcão.
Estava já muito concorrido, com três filas de clientes diante do balcão à
espera de serem servidos e um par de empregados a tomar nota das
encomendas dos que ocupavam a área sobrelevada. Também o ambiente era
completamente diferente do Heaney’s, talvez por haver mais mulheres. Não o
género que Beth se habituara a ver em saloons, mas mulheres normais, sóbria
e decentemente vestidas, do género que seria normal encontrar a trabalhar
num escritório ou numa loja. Teve medo de tocar para elas, de certeza não iam
aprová-la.
Viu Sam e Jack a servir, mas nenhum dos dois pareceu reparar nela.
– Vou apresentar-te ao Frank – disse Theo, segurando-lhe um braço e
guiando-a rapidamente por entre as mesas.
Beth agarrou o estojo do violino com as mãos quando passaram uma
porta ao lado do palco, meteram por um curto corredor e se detiveram diante
de outra porta, a que Theo bateu.
– É um bom homem. Não tenhas medo – sussurrou-lhe ao ouvido.
Frank Jasper era enorme, com uma cabeça completamente calva,
pescoço grosso, nariz afilado e pele marcada pelas bexigas. Parecia o género
de homem que subira na vida da maneira mais difícil, mas as elegantes roupas
que vestia eram prova do seu sucesso.
– É então esta a tua pequena violinista – disse a Theo, depois de ter
mirado Beth da cabeça aos pés.
– Espero sinceramente que seja tão boa como dizes, ou eles atiram-na
ao urso.
Beth não fazia ideia de que Frank tinha o hábito de usar o urso que dera
o nome ao bar como brincadeira. Pensou que estava a dizer que os seus
clientes eram muito difíceis de satisfazer e estremeceu dentro das botas. O
tamanho do bar era outra preocupação: não tinha a certeza de conseguir
fazer-se ouvir acima da algazarra de mais de duzentos bebedores.
Deixaram-na sozinha no escritório de Frank durante pelo menos vinte
angustiantes minutos. Frank não lhe dissera durante quanto tempo teria de
tocar, ou sequer as músicas que ia tocar, e, enquanto esperava, Beth pensou
que antes ser criada de lavandaria do que enfrentar aquele género de terror.
Estava a ponderar a hipótese de procurar uma porta das traseiras por
onde pudesse escapulir-se quando Jack a foi buscar.
– Estou demasiado assustada – disse ela. – Não vou ser capaz de tocar
uma nota.
Até ele parecia estranho, com o laço preto e o avental às riscas de
barman, e o barulho que vinha do bar tornava-se mais ensurdecedor a cada
minuto que passava.
Jack passou-lhe um braço pelos ombros.
– Vai correr tudo bem, Beth, não vais estar sozinha. O Frank contratou
um contrabaixo e um pianista para tocarem contigo.
– A sério? – Beth sentiu-se imediatamente mais confiante. – Mas
porque foi que não me disse nada?
– Talvez quisesse ver se perdias a coragem – disse Jack, com um
sorriso. – Vai lá para fora e mostra-lhe de que material és feita.
Beth despiu o casaco e pegou no violino e no arco que tinha pousados
em cima da mesa, depois de o ter afinado.
– Estou pronta.
Quando Jack abriu a porta que dava para o bar, Beth ouviu alguém tocar
uma sineta a pedir silêncio.
Então Frank falou, dando as boas-vindas aos clientes do Bear, e Jack
reteve Beth, indicando-lhe que devia esperar até ser apresentada.
– A maior parte de vocês já conhece o Herb, que está ao piano, e, claro,
o Fred, no contrabaixo – disse Frank. – Mas alguns queixaram-se de que
faltava alguém que fosse também agradável de ver.
Por isso esta noite, pela primeira vez em Filadélfia, temos uma autêntica
boneca inglesa a tocar. Ouvi dizer que em Nova Iorque lhe chamavam Cigana,
porque os punha todos a bater o pé com o seu violino. Uma grande salva de
palmas para Miss Beth Bolton!
– Vai – disse Jack, dando-lhe um ligeiro empurrão em direcção aos
degraus do palco.
Ouvir novamente aplausos foi como beber um trago de rum, e Beth
subiu os degraus a correr, fez uma vénia ao público, voltou-se para o pianista,
um homem já de idade e com uma cara triste, e perguntou:
– «Kitty O’Neill’s Champion»?
– Certo – respondeu o homem com um sorriso, e fez um sinal de cabeça
ao contrabaixista.
Os dois músicos tocaram uma introdução e Beth sorriu ao público
enquanto prendia firmemente o violino debaixo do queixo e erguia o arco. O
medo tinha desaparecido, estava de volta ao palco, que era o seu lugar, a tocar
uma das músicas populares irlando-americanas de que mais gostava.
Doravante ia ser Miss Irreverente e tocar o coração de todos e cada um
dos homens presentes naquele bar.
Frank tirou o charuto da boca e inclinou-se para Theo, sentado do outro
lado da mesa.
– Desta vez não me vendeste gato por lebre… Ela é uma brasa.
Theo assentiu, com um sorriso. Sentia o coração a rebentar de orgulho,
porque Beth não era apenas uma brasa, estava a pegar fogo ao bar. Receara
que tivesse perdido a chama, depois do que passara na cave, mas estava a
tocar ainda melhor do que no Heaney’s.
Ele e Frank estavam sentados numa mesa na plataforma sobrelevada de
um dos lados do saloon, de onde tinham uma excelente vista do palco. Beth
parecia muito pequena lá em cima, como uma chama escarlate com o seu
vestido vermelho. Tinha conquistado a multidão com «Kitty O’Neill», e em
seguida tocara «Tom Dooley», «Days of ‘49» e «The Irish», tudo músicas
carregadas de significado para os Americanos. Mas foi com as jigas irlandesas
que mostrou tudo o que valia, e por toda a parte central do bar havia uma
centena de cabeças a acenar e de pés a bater no chão.
Theo sorriu a Frank.
– Então, ganho os cem dólares?
– Claro, grande patife. É muito boa. E suponho que a Pearl também
gostou dela. Emprestou-lhe as plumas.
Theo pegou no copo de whisky e despejou-o de um só trago. Era um
homem feliz. Ganhara a sua aposta, Sam e Jack tinham provado ser dois
trunfos de valor e tinha todas as mesas de jogo de Filadélfia à sua espera. E a
sua ciganinha para seduzir.
CAPÍTULO 21
–Então, que achas da minha nova casa? – perguntou Theo. – Ficaste
muda diante de tanta grandiosidade?
Beth riu. Tinha bebido um pouco mais do que a conta no Bear, naquela
noite, e Theo convencera-a a ir até ali com ele.
Estava a brincar a respeito da grandiosidade. Eram apenas duas divisões
por cima de uma cocheira, não muito diferentes das que ela e Sam tinham
ocupado em Falkner Square. A decoração era, porém, muito mais bonita:
espessos cortinados, uma alcatifa colorida no chão e um velho sofá de brocado
que não ficaria mal numa mansão campestre. Mas a grande atracção era o
calor proporcionado pelo grande e bojudo fogão esmaltado no centro da sala
de estar. Lá fora, na rua, a neve tinha quase um metro de altura, e Beth
esperara que estivesse igualmente frio no interior.
– Estou impressionada pela limpeza e pelo calor – disse, falando
devagar para não arrastar as palavras.
– Não posso reclamar o crédito disso – respondeu Theo, abrindo a porta
do fogão e despejando mais uma pazada de carvão lá para dentro. – Tenho
uma criada. Na realidade, trabalha para as pessoas a quem aluguei estes
quartos, mas eu subornei-a e agora cuida também de mim. É velha e feia como
o pecado, mas gosto da maneira como me torna a vida confortável.
Beth sorriu. Theo estava destinado a ter sempre uma mulher pronta a
servi-lo. Pearl não o quisera a viver em casa dela, porque a tinha enfeitiçado
tal como enfeitiçara Miss Marchment e Miss Doughty.
– Vai dar para a noite toda – disse Theo, enquanto fechava a porta do
fogão. – Agora dá-me o teu casaco e deixa-me preparar-te uma bebida.
Estavam no início de Março, mas já quando os sinos das igrejas tinham
repicado na véspera do Ano Novo para dar as boas-vindas a 1896, e estava em
Filadélfia há apenas um par de dias, Beth soubera que ia ser feliz ali.
A elegante casa estilo federal de Pearl em Spruce Street não mostrava
quaisquer sinais exteriores do que se passava para lá da sua brilhante porta
pintada de negro, apesar de ali perto, em Camac Street e nas muitas estreitas
vielas em redor, abundarem os bordéis, as casas de jogo e as tabernas.
As pessoas respeitáveis queixavam-se dos crimes e do barulho, mas
para Beth e para os rapazes toda aquela área era um extraordinariamente
colorido e alegre conclave de espíritos livres que não se deixavam reger pelos
rígidos costumes sociais que prevaleciam no resto da cidade.
O Bear ficava entre a casa de Pearl e Camac Street. Apesar de a maioria
da sua clientela ser constituída por artesãos que viviam na zona, o número de
artistas, músicos, bailarinas e actores que também o frequentavam atraía
muitas pessoas das classes média e alta que gostavam de ser vistas num local
considerado risqué.
Beth ficara a saber que muitos dos homens que se escapuliam para a
casa de Pearl e outros bordéis nas noites de sexta-feira eram profissionais
liberais e barões da indústria. Ouvira falar de senhoras da alta sociedade que
mandavam os seus criados comprar ópio nos tugúrios ao longo das docas. Até
a mamã Connelly, a pequena irlandesa que resolvia os casos de gravidezes
indesejadas, afirmava ter mais clientes da alta burguesia do que prostitutas ou
criadas de servir.
Filadélfia significava «A Cidade do Amor Fraternal», e era sem dúvida
um lugar muito mais amistoso do que Nova Iorque, não existindo a atmosfera
muitas vezes ameaçadora e perigosa que lá sentira. Não havia talvez muito
menos pobreza, sobretudo entre as comunidades negra e irlandesa, mas, de um
modo geral, os imigrantes pareciam mais instalados e as diferentes
comunidades mais integradas.
O tempo estivera terrivelmente frio. No dia do seu décimo nono
aniversário, em Fevereiro, caíra um nevão tão forte que formara montes com
mais de um metro de altura. Mas a cozinha de Pearl estava sempre quente e o
Bear ficava a umas poucas ruas de distância. Quando regressava a casa, já
tarde, encontrava sempre um tijolo aquecido na cama, e de manhã acordava
com o cheiro de bacon ou panquecas a fritar.
Nas noites em que não tocava violino, continuava a trabalhar no bar, a
servir bebidas e levantar copos, o que lhe dera a oportunidade de conhecer
outros músicos e cantores. Tinha feito muitos amigos, tanto entre os clientes
como entre os restantes membros do pessoal.
Frank Jasper tinha fama de teimoso e implacável, mas Beth achava-o
jovial e justo. Todo o dinheiro que os clientes punham no chapéu para os
músicos era dividido igualmente entre eles, sem que a casa cobrasse qualquer
percentagem. Era, além disso, um genuíno amante da música, que se
orgulhava de procurar e acalentar novos talentos. Havia noites em que Beth se
limitava a acompanhar outros músicos ou cantores, e outras em que era a
estrela de serviço, mas quer estivesse a tocar ou apenas a observar e ouvir,
estava sempre a aprender, e sentia que era precisamente essa a intenção de Mr.
Jasper.
Era um grande admirador do italiano Paganini e do espanhol Pablo
Sarasate, ambos violinistas famosos, e tivera a sorte de ouvir Sarasate tocar
num concerto em Nova Iorque. Miss Clarkson falara a Beth daqueles dois
homens e uma vez levara-a a um concerto em que a orquestra tocara algumas
das suas músicas, e por isso ela compreendia o entusiasmo de Mr. Jasper.
Theo prometera-lhe levá-
la a alguns concertos ali em Filadélfia, para que ela pudesse alargar o
seu conhecimento de outros músicos.
As saudades de Inglaterra eram uma coisa do passado. Continuava a
escrever regularmente aos Langworthy, e esperava ansiosamente as cartas
deles com notícias de Molly, mas perdera o desejo de voltar.
Viver em casa de Pearl fora o que mais contribuíra para alterar o modo
como via as coisas. Era difícil reprovar o que ali se passava quando ouvia
tanto riso e alegria vindos dos quartos lá em cima.
Acabara por conhecer as raparigas, e nenhuma delas era uma pobre e
indefesa criatura obrigada a entrar para a profissão. Tinham-na escolhido.
Algumas só queriam dinheiro fácil, outras eram aventureiras, e Missy admitira
francamente que adorava sexo e não via qualquer motivo para não ser paga
ainda por cima.
Reinava em toda a casa uma atmosfera sedutora, com os perfumes das
raparigas, o fumo de charuto e a música de piano na sala de estar. Até a
lavandaria, ao lado do quarto de Beth, estava sempre enfeitada com diminutas
peças de roupa de seda ou de renda. Quando, à noite, ouvia o gemer das molas
dos colchões, Beth dava por si a desejar estar na cama com Theo e descobrir
todos os prazeres de que as raparigas falavam.
Amava-o, e estava razoavelmente segura de que ele também gostava
dela. Senão, porque apareceria ao fim da noite para acompanhá-la a casa, ou a
levaria a almoçar, ou lhe oferecia chocolates, flores e adereços para o cabelo?
Pearl costumava dizer-lhe que os homens precisam de sexo e que se não o
encontravam junto da mulher que amavam, iam procurá-lo noutro sítio
qualquer. Dizia que só uma louca julgaria que não. E Pearl tinha a obrigação
de saber: todas as noites lhe entrava pela porta um fluxo constante de homens
casados e noivos.
Beth pensava que uma vez ultrapassado esse obstáculo, Theo deixaria
de desaparecer e seria mais aberto a respeito de todos os aspectos da sua vida.
O casamento já não lhe parecia tão importante como em tempos parecera. Só
queria que ele dissesse que ela era a sua namorada e fizesse planos que a
incluíssem.
*
Beth sentou-se no sofá enquanto Theo lhe servia uma taça de vinho.
– Está suficientemente quente para ti? – perguntou ele, entregando-lha.
– Sim, obrigada – respondeu ela, repentinamente nervosa. Adorava ser
beijada, abraçada e acariciada por ele, mas não tinha verdadeiro conhecimento
do que vinha a seguir, se Theo a despia ou se devia ser ela a fazê-lo. Iria doer?
E saberia ele como fazer para se certificar de que ela não acabava grávida?
Tratara de saber, junto de Pearl, como podiam as mulheres proteger-se.
Havia lavagens e pequenas esponjas que tinha visto, e aprendera em teoria
como funcionavam. Mas era apenas teoria. Pearl dissera que os preservativos
de borracha para os homens eram o que aconselhava, mas acrescentara que a
maior parte tinha relutância em usá-los.
Theo sentou-se ao lado dela e ficou a vê-la beber um gole de vinho.
– O que é que se passa nessa linda cabecinha? – perguntou.
– Só que é um grande passo ter vindo para aqui contigo – respondeu ela.
Ele olhou-a ternamente, e então tirou-lhe a taça da mão e abraçou-a.
– Não te vou magoar – disse baixinho. – Só quero mostrar-te os
prazeres de fazer amor.
Beijou-a, a ponta da língua a insinuar-se-lhe entre os lábios com
movimentos rápidos, de uma maneira que a fazia sentir o estômago apertado e
lhe endurecia os mamilos. No passado, aqueles beijos aconteciam sempre ao
fim da noite, ao frio, a caminho de casa, ou quando estavam os dois de pé no
corredor da cave da casa de Pearl, onde Jack ou Sam podiam aparecer de um
momento para o outro, o que a fazia estar numa constante tensão.
Agora, porém, estava num ambiente aquecido, ninguém ia
interrompê-los, e ela sucumbiu à delícia, moldando o corpo contra o dele e
deixando todas as ansiedades voarem para longe.
– Hum – suspirou ele, fazendo deslizar um dedo pelo rosto dela, pelo
pescoço, pelo vale entre os seios. – Esperei tanto tempo por isto.
Com um só dedo, afastou suavemente o corpete do vestido e a camisola
debruada a renda que ficava por baixo, expondo o seio direito enquanto
continuava a olhá-la nos olhos, o rosto a centímetros do dela. O dedo
encontrou o mamilo erecto, e Theo sorriu antes de inclinar a cabeça e tocá-lo
com os lábios.
Beth arquejou involuntariamente, pois nunca experimentara nada tão
maravilhoso como aquele chupar, lamber e morder. Agarrou-lhe
despudoradamente a cabeça e arqueou o corpo para ele, enquanto um delicioso
frémito a percorria da cabeça aos pés.
Ele tinha agora exposto completamente ambos os seios, e passava de
um para o outro, beijando, acariciando e chupando, e ver-lhe a expressão
extasiada à luz suave do candeeiro aumentou ainda mais o prazer dela.
– Demasiada roupa – murmurou ele. – Quero ver o teu corpo e beijá-lo
todo.
O vestido tinha pequenos botões nas costas. Theo fê-la sentar-se à sua
frente, e, enquanto com a mão esquerda continuava a acariciar-lhe os mamilos,
com a direita desapertou todos os botões, sem parar de lhe beijar o pescoço e
os ombros enquanto lhe puxava o vestido para baixo. Atilhos foram soltos, o
espartilho caiu no chão, e de repente ela estava ali sentada, o tronco nu
incongruente com a saia do vestido e os saiotes que formavam balão à volta da
cintura.
Theo ajoelhou-se à frente dela, tirou-lhe os alfinetes e o adereço
emplumado dos cabelos e passou-lhe os dedos pelos caracóis enquanto a
beijava longamente. Beth sentiu o calor a intensificar-se entre as pernas, e
retribuiu o beijo com paixão ardente, a querer mais.
Theo pôs-se de pé, levantando-a consigo e, sempre a beijá-la, puxou a
saia, os saiotes e as culotes e fê-los passar por cima das ancas. Então,
dobrando-se para voltar a apertar um mamilo com os lábios, deixou deslizar a
mão para baixo e introduziu um dedo dentro dela.
Beth estava já muito para lá de querer saber se deixava um homem
tomar tais liberdades consigo. O
coração martelava-lhe o peito, a sua respiração estava ofegante, e
movia-se sem pudor contra o dedo dele, gemendo como era bom.
As roupas foram pontapeadas para o lado. Estava nua exceptuando as
meias e as botas, e ele empurrou-a para o sofá, onde lhe fez as coisas mais
incrivelmente ordinárias e maravilhosas.
Theo tinha-se desembaraçado do casaco e da gravata a dada altura do
processo – Beth só se lembrava de lhe ter puxado a camisa para cima para
poder sentir-lhe o peito e as costas – mas não fez qualquer tentativa para
desabotoar as calças. Ela sentia a rigidez dele contra ela, mas era como se
Theo estivesse a reprimir os seus próprios desejos enquanto satisfazia os dela.
Só muito, muito mais tarde ele a levou para o quarto ao lado e aí,
finalmente, despiu o resto das roupas. Os lençóis estavam frios e rígidos
debaixo da pele escaldante de Beth, e ele ajoelhou por um instante ao lado
dela, pegou-lhe na mão e pousou-a no seu sexo entumecido e rijo. Parecia
enorme, e saber que dentro de instantes ele ia introduzi-lo dentro dela
causou-lhe um medo momentâneo.
Theo deve tê-lo adivinhado, pois deitou-se a seu lado e beijou-a.
– Não temos de ir mais longe, se não estás preparada – sussurrou.
Mas o calor do corpo dele e os dedos que lhe acariciavam e excitavam o
corpo baniram o medo, e quando ele voltou a beijá-la ela abriu as pernas e
arqueou as costas para o receber.
Pearl tinha dito a Beth que se um homem gostava verdadeiramente de
uma mulher se retirava antes de derramar a sua semente. Foi o que Theo fez.
Enquanto tocava a substância pegajosa que lhe humedecia o ventre, Beth
sentiu que tinha todas as garantias de que precisava.
Doera-lhe um pouco, e ainda estava levemente dorida, mas isso não
importava. Theo levara-a ao Céu, e com certeza não poderia tê-lo feito se não
a amasse tanto como ela o amava a ele.
*
Depois de abotoar as botas e vestir o casaco, Beth voltou-se para olhar
para Theo estendido na cama, a dormir. A luz da aurora que clareava o céu
permitia-lhe ver a mancha escura no queixo dele e a boca macia. Pensou que
devia sentir-se envergonhada do abandono com que se entregara, mas a
verdade era que não sentia. Sentia apenas alegria. Estava, no entanto,
determinada a sair e chegar a casa de Pearl antes que alguém percebesse que
passara a noite fora. Não era suficientemente corajosa para apregoar a sua
imoralidade.
Inclinou-se para beijá-lo no rosto, inspirando o inebriante aroma
almiscarado que emanava dele.
Theo não se mexeu. Então, em bicos de pés, Beth saiu do quarto,
fechando silenciosamente a porta.
Lá fora, o frio era cortante, com manchas de gelo onde a neve fora
limpa ou pisada. Beth deteve-se num umbral para enfiar as galochas de
borracha por cima das botas e calçar as luvas, seguindo rapidamente o seu
caminho, com uma nova vivacidade no andar.
– Acorda, Beth!
Beth abriu um olho e viu Sam com uma vela acesa na mão.
– Que horas são? – perguntou.
– São quatro da manhã, mas temos de partir.
Foi o tom da voz dele que a fez sentar-se na cama, não as palavras.
Parecia aterrorizado.
– Partir? Porquê?
– Aconteceu uma coisa no jogo, esta noite. Levaria demasiado tempo a
explicar, mas estou metido num grande sarilho e temos de fugir
imediatamente.
Era Setembro, estavam em Filadélfia há nove meses, e fora a época
mais feliz que Beth conhecera em toda a sua vida. Sentira-se segura, com
Theo, com o seu êxito como música, a viver ali em casa de Pearl. Não podia
acreditar que Sam tivesse feito algo capaz de destruir tudo aquilo.
– Diz-me o que fizeste – exigiu. – Não vou a parte nenhuma sem saber.
– Morreu um homem, é tudo o que precisas de saber para já –
respondeu ele, ofegante.
A cara do irmão estava na sombra, porque ele tinha pousado a vela, mas
ela sentiu a vergonha e a angústia que o dominavam.
– No jogo de póquer?
– Sim. Um dos homens acusou o Theo de fazer batota e puxou de uma
faca. Tentei afastá-lo do Theo e acabei com a faca na mão. Mas, Deus é minha
testemunha, não queria matá-lo.
Calou-se e tapou a cara com as mãos.
Beth tinha compreendido o suficiente, e saltou da cama.
– Onde está o Theo?
– Foi a casa fazer a mala. Vem buscar-nos com um fiacre.
– Volta-te enquanto me visto – ordenou Beth, e despiu a camisa de
noite. Sentia-se doente de medo e não queria ter nada a ver com aquilo, mas
eles eram as duas pessoas mais importantes da sua vida e tinha de apoiá-los.
– O Theo pediu para eu ir também? – perguntou, enquanto enfiava os
saiotes.
– Não podemos deixar-te aqui para enfrentar as consequências – disse
Sam, debilmente. – O Jack também vai.
– O Jack também esteve envolvido? – A voz de Beth subiu uma oitava.
– Só nos ajudou a escapar.
Beth sentia as lágrimas escaldarem-lhe os olhos e mal conseguia apertar
o espartilho, tanto as mãos lhe tremiam.
– E a Pearl e o Frank?
– Não estávamos no bar do Frank, de modo que não teremos problemas
com ele. Quem me dera que pudéssemos avisar a Pearl, para se preparar, mas
não podemos, Beth. Temos de partir já.
Jack entrou no quarto no preciso instante em que Beth acabava de
vestir-se. Transportava a sua mala e a de Sam. Sem uma palavra, pousou-as no
chão e começou a estender os vestidos de Beth em cima da cama e a dobrá-los
para os arrumar no saco de viagem.
– Temos então de fugir daqui a meio da noite, como ladrões? – disse
Beth. – Nem uma palavra de agradecimento à Pearl pelo que fez por nós?
– Escrevemos-lhe a pedir desculpa – disse Sam, pegando
apressadamente em mais coisas de Beth e enfiando-as no saco. – Lamento
muito, mana.
Menos de dez minutos mais tarde, os três e as respectivas malas, e Beth
transportando o estojo do violino, estavam na escuridão das ruas, a avançar
rapidamente para a esquina ao encontro do fiacre que já os esperava. O cavalo
raspou as pedras com um casco quando eles se aproximaram, e Theo saltou da
cabina.
– Lamento muito, Beth – disse, enquanto a ajudava a subir. – Hei-de
compensar-te, seja como for.
– Para onde vamos? – perguntou Beth, quando a carruagem se pôs em
movimento.
– Para onde o primeiro comboio nos levar – respondeu Theo.
CAPÍTULO 22
–Estou gelada – queixou-se Beth, apertando o cachecol à volta do
pescoço quando saíram da estação de Montreal. – Se está assim tanto frio em
Setembro, como será em pleno Inverno?
O primeiro comboio que partia de Filadélfia tinha como destino Nova
Iorque, mas, durante a viagem, Jack fizera notar que não seria boa ideia
demorarem-se lá, pois não tardariam a ser descobertos.
Na Grand Central Station, tinham visto que havia um comboio para o
Canadá com partida marcada para daí a duas horas, e Theo achara que era o
lugar ideal para escaparem à justiça americana.
– Não teremos de lá ficar muito tempo. É só esperar que o pó assente e
as pessoas esqueçam, e poderemos voltar – dissera, despreocupadamente.
– Não podemos voltar a Filadélfia nem a Nova Iorque – observara Jack,
a tiritar de frio, porque vestia apenas um fino casaco. Com a pressa, deixara o
sobretudo pendurado na porta do quarto, em casa de Pearl. – Mas talvez a
Costa Oeste, qualquer sítio que fique bem longe daqui, e seja quente.
Havia agora trinta horas que tinham partido de Filadélfia. Fora uma
viagem aborrecida e fria, e nenhum deles conseguira dormir mais do que
alguns minutos seguidos. Beth sentia-se como se tivesse a pele, o cabelo e os
olhos cobertos de sujidade, e apesar de Montreal lhe parecer um lugar
perfeitamente civilizado, não esperara que fosse tão frio.
– Não está assim tanto frio, tu é que tens essa impressão por estares tão
cansada – disse Theo, pegando-lhe no braço. – Vamos procurar um hotel. Um
banho quente, pequeno-almoço, umas horas de sono e fica tudo bem.
– Nada pode fazer com que um assassínio fique bem – disse ela, tensa.
– Foi legítima defesa – retorquiu Theo. – O homem tinha uma faca
encostada à minha garganta e ia usá-la. Para mim, o Sam é um herói…
salvou-me a vida.
Mais tarde, quando acordou, Beth deu por si com os braços de Theo à
sua volta. Durante alguns instantes, pensou que estava na cama dele, em
Filadélfia, e deixou-se ficar quieta, a ouvi-lo respirar, a saborear o calor do seu
corpo. Então lembrou-se de onde estava, e porquê, e toda a fúria que tentara
reprimir durante a viagem até ali veio ao de cima.
A escuridão era total, mas não sabia se a noite estava a começar ou se já
ia a meio. Sentiu-se tentada a acordar Theo sem cerimónias e perguntar-lhe;
na realidade, tinha muito mais a perguntar-lhe além das horas. Mas ao cabo de
um ou dois instantes de reflexão, decidiu que era preferível pôr os seus
próprios pensamentos em ordem antes de o enfrentar.
Libertou-se dos braços dele e levantou-se da cama, pegou no edredão,
embrulhou-se nele, aproximou-se da janela e levantou uma ponta da cortina
para poder espreitar para fora.
A rua, tão cheia de carroças, fiacres e pessoas quando se tinham
registado no hotel, estava silenciosa. Todas as lojas e o bar em frente estavam
às escuras e não se via vivalma. Mas havia luzes acesas em quartos dos pisos
superiores dos prédios vizinhos, o que a fez pensar que já devia passar das
onze da noite.
Jack e Sam partilhavam o quarto ao lado. Theo registara-a como sua
esposa, e, embora dois dias antes ela tivesse ficado satisfeita por fingir essa
condição, agora irritava-a.
Sabia que Theo fizera batota no jogo de cartas, apesar de ele jurar que
não. Mostrara-se demasiado verboso, excessivamente compreensivo por ela
ter sido arrancada da cama a meio da noite, e aproveitara o facto de o comboio
ir cheio como desculpa para não explicar como tudo acontecera.
Se não tivesse sido a apressada explicação de Jack na Grand Central de
Nova Iorque, enquanto Theo ia comprar bilhetes para Montreal, Beth não teria
compreendido nada, porque Sam estava ainda em choque e pouco falara
durante a viagem.
Nos últimos meses, a posição de Jack no Bear deixara de ser a de um
simples barman. Era ele que intervinha quando surgia alguma rixa entre
bêbedos: Beth tinha-o visto em acção muitas vezes, enquanto tocava. Nunca
era agressivo, mas tinha um instinto para adivinhar problemas antes que eles
se tornassem graves, e a maior parte das vezes resolvia a questão usando
apenas diplomacia. Mas quando a diplomacia não resultava, não receava usar
a força, bater com as cabeças dos zaragateiros uma na outra e pô-los na rua.
Frank Jasper apreciava-o por isto, referindo-se-lhe muitas vezes, na
brincadeira, como «O Meu Gancho Direito».
Graças ao talento que Jack demonstrava para usar um punho de ferro
numa luva de veludo, Frank escolhia-o para estar presente nos jogos mais
importantes, ostensivamente para servir bebidas, mas na realidade para
garantir a segurança. O último jogo não fora, porém, organizado por Frank e
sim por um tal Rob Sheldon, um sujeito que Frank desprezava por ser um
senhorio de pardieiros e um notório patife. Theo e Sam tinham pedido a Jack
que os acompanhasse, para o caso de haver problemas.
O jogo decorrera num armazém junto às docas. Os outros cinco
jogadores não eram frequentadores do Bear; Theo conhecia-os de outros jogos
e sabia que eram grandes apostadores. Mas Sam e Jack nunca os tinham visto,
e a Sheldon também não.
Theo ganhara as primeiras mãos, mas então começara a perder
fortemente, e quando tinham feito uma pausa, por volta das duas da manhã,
Sam e Jack aconselharam-no a encaixar os prejuízos e ir para casa, como dois
dos outros jogadores já tinham feito. Mas Theo recusara, dizendo que sentia
que a sua sorte ia mudar.
Os dois outros homens que se sentaram à mesa para jogar com Theo e
Sheldon eram conhecidos pelas alcunhas, Lively e Dixey. Theo ganhara a
primeira mão, e perdera na segunda. Mas voltara a ganhar na terceira e na
quarta e as apostas tinham subido. Tinha arrecadado cerca de quinhentos
dólares e estava a embolsar o dinheiro para sair quando Sheldon, que
começara a noite a ganhar, o desafiara para uma última mão.
Jack dissera que nessa altura sentira que ia haver problemas. Havia
qualquer coisa no ambiente que não batia certo. E pensava que Theo parecia
um tudo-nada excessivamente calmo e confiante quando se sentara para
continuar a jogar.
Sam distribuíra as cartas e o jogo começara. O monte de dinheiro no
centro da mesa começara a crescer. Dixey desistira e saíra, deixando Sheldon,
Lively e Theo. Então Sheldon pedira para ver as cartas de Theo.
Theo tinha quatro reis, que batiam os quatro oitos de Sheldon.
– Eu não estava a prestar muita atenção às cartas que eram jogadas –
admitira Jack. – Estava demasiado ocupado a vigiar o Sheldon, porque senti
que era capaz de ficar furioso se perdesse. Mas tinha a certeza de que o Dixey
tinha um rei quando desistira. E acho que o Sheldon também o sabia, porque
saltou da cadeira, a gritar que o Theo tinha feito batota e tinha outro rei
escondido na manga.
Antes que o Theo tivesse tempo para levantar-se, o Sheldon estava em
cima dele e tinha tirado uma faca do cinto e encostara-a à garganta do Theo.
Jack demonstrara como Sheldon fizera, com a mão direita na garganta
de Beth e usando o braço esquerdo para a prender.
– Eu estava com medo de dar a volta à mesa e acabar com aquilo, não
fosse ele cortar a garganta ao Theo; era suficientemente selvagem para o fazer.
E havia também o Lively, que não era um tipo muito grande, mas do género
de se meter ao barulho se achasse que o Theo tinha feito batota. Por isso tentei
acalmá-lo a ele e ao Sheldon com conversa, cheguei até a dizer que se
encontrássemos alguma carta na manga do Theo podiam ficar com o dinheiro
todo. Mas o Sheldon estava a gritar e a praguejar, a ficar cada vez mais
furioso.
«Então, de repente, o Sam apareceu atrás deles e tirou a faca da mão do
Sheldon. Eu corri à volta da mesa para ajudar, o Theo conseguiu libertar-se e a
faca caiu no chão, mas nessa altura o Lively decidiu juntar-se à festa. Deu-me
um murro no queixo, e o Sam deve ter apanhado a faca do chão ao mesmo
tempo, porque quando eu ia responder ao Lively, vi o Sam com a faca na mão,
como se não soubesse o que fazer com ela.
«Nessa altura, o Sheldon saltou para ele e tentou tirar-lha, e foi então
que o Sam o apunhalou.»
Beth tentara que Sam lhe contasse a sua versão do que tinha acontecido.
Embora incapaz de explicar-se com tanta clareza como Jack, dissera
basicamente o mesmo, com a diferença de que, segundo ele, não apunhalara
Sheldon, fora o homem que correra de encontro à faca.
A lacónica opinião de Theo era que pouco importava como fora a faca
parar à barriga do homem.
Ao fim e ao cabo, Sheldon ia matá-lo e Sam impedira-o.
Mas importava para Beth. Havia uma enorme diferença entre alguém
correr de encontro a uma faca e ser deliberadamente esfaqueado. E culpava
Theo por ter despertado a fúria de Sheldon que transformara o irmão de dealer
pacífico em assassino.
Lively fugira imediatamente ao ver Sheldon a sangrar. Jack dizia que
tinha acreditado que ia chamar um médico, mas Theo afirmava que fugira para
salvar a pele.
Jack tentara estancar a hemorragia de Sheldon com a sua própria
camisa, mas o homem morrera durante a tentativa. Por isso tinham recolhido
todo o dinheiro e as cartas que estavam em cima da mesa e saído, deixando
Sheldon com a faca ainda cravada na barriga.
Beth bem desejava ser capaz de pensar, como Jack e Theo, que Sheldon
fora um patife sem escrúpulos que toda a sua vida tinha explorado os pobres e
os indefesos e que não tivera mais do que merecia. Mas devia ter tido uma
mulher, e talvez filhos que o amavam.
À parte o crime, no entanto, e o facto de as três pessoas que mais amava
estarem em fuga, o que enfurecia Beth era ter perdido a boa vida que tivera em
Filadélfia.
Fora tão feliz lá. Era admirada como violinista e apreciada como
pessoa. Ganhava bem, comprara roupas novas, podia comprar prendas para
mandar a Molly, tinha até conseguido pôr algum dinheiro de lado. A vida era
divertida, sentia que estava a conseguir alguma coisa, mas agora ia ter de
recomeçar tudo de novo, e dessa vez sem o apoio e o afecto que recebera de
Frank Jasper e de Pearl.
Ia saber-se que Theo fazia batota, e Frank podia até perguntar-se
quantas vezes a fizera nos seus jogos, e inclusivamente se não teria sido essa
mesma razão que o levara a procurar refúgio em Filadélfia.
Ia de certeza perguntar-se se devia ter confiado em qualquer um deles, e
arrepender-se de ter convencido Pearl a acolhê-los. Quanto a Pearl, Beth sabia
que ficara muito magoada por eles terem fugido a meio da noite sem uma
palavra de explicação.
Theo estava plenamente convencido de que nenhum dos dois daria à
polícia qualquer informação a respeito deles, e talvez tivesse razão, pois era
esse o código por que se regiam. Mas Beth construíra uma relação muito
próxima com Pearl, mais próxima até do que com a mãe, e sentia que
desmerecera a confiança dela.
Quando se sentou junto à janela, na escuridão, sentiu, pela primeira vez
desde que embarcara no seu caso amoroso com Theo, que o odiava.
Ele magoara-a tantas vezes desaparecendo de repente para regressar
uma ou duas semanas mais tarde sem dar uma palavra de explicação. Sabia
que arranjara maneira de introduzir-se nas festas e soirées das pessoas mais
ricas e influentes da cidade, e só uma tola acreditaria que não a abandonaria se
uma herdeira jovem e bonita o quisesse.
Mas ele conseguia sem esforço transformar as lágrimas dela em riso e
as depressões em alegria graças ao seu inesgotável encanto. Era generoso
tanto com o seu dinheiro como com o seu afecto.
Fazia-a sentir-se a mulher mais bela e talentosa do mundo, e, quando
fazia amor com ela, levava-a ao Céu, pondo sempre o prazer dela à frente do
dele.
Mas tudo isto levara-a a ver uma outra faceta dele, mais escura. Tinha a
certeza absoluta de que Theo fizera batota naquele jogo. Porquê? Jogar não
seria precisamente ganhar e perder?
E seria um batoteiro em tudo o mais? Andaria a fazer amor com outras
mulheres além dela? Tinha posto Sam e Jack em perigo. Podia ter a certeza de
que não voltaria a fazê-lo?
Um restolhar do outro lado do quarto avisou-a de que ele tinha
acordado.
– Beth? – chamou Theo em voz baixa. – Estás aí?
– Claro que estou aqui – respondeu ela, secamente. – Onde havia de
estar a meio da noite num país desconhecido?
– Vem para a cama.
– Acho que nunca mais vou querer estar numa cama contigo – retorquiu
ela.
Theo riscou um fósforo e acendeu a vela.
– Porque é que estás tão zangada?
Vestia a camisola interior, e, com o cabelo negro despenteado e um
começo de barba a escurecer-lhe o rosto, não parecia o elegante cavalheiro do
costume.
– Porque tu és o responsável por isto – disse ela, aproximando-se da
cama para não ser ouvida pelos outros hóspedes. – Todos nós tínhamos uma
boa vida em Filadélfia, e tu estragaste tudo.
Porque é que tiveste de fazer batota?
Ele não respondeu imediatamente, e Beth ficou à espera de mais uma
negação.
– Eu sei que fizeste – disse. – Mente ao resto do mundo, se é preciso.
Mas não a mim.
– Está bem, fiz batota – admitiu ele, com um ligeiro tremor na voz. –
Não ia ficar a ver todo o meu dinheiro desaparecer no bolso do Sheldon.
– Mas fazer batota é errado.
– Já fizeram batota comigo, muitas vezes.
– Isso não justifica que tu a faças também. – Beth estava exasperada. –
Puseste o meu irmão em perigo. A polícia vai persegui-lo, e se o apanharem
pode ser enforcado, ou seja lá o que for que aqui fazem aos assassinos.
– Não foi um assassínio, foi um acidente.
– Acidente ou assassínio, um homem está morto e o meu irmão é um
fugitivo.
– Duvido que a polícia tente sequer investigar quem o matou. Vão
pensar que foi uma luta de gangues. O Sheldon era um bandido, não muito
melhor do que o Heaney, o país não perdeu grande coisa. E mesmo que
descubram que foi o Sam, não poderão chegar-lhe aqui. Dentro de um par de
anos estará tudo esquecido.
– Não por mim, e pelo Sam de certeza que também não.
Theo recostou-se contra a cabeceira da cama e ficou a olhar para ela até
que Beth começou a sentir-se pouco à vontade.
– Vais continuar zangada comigo muito tempo? – acabou ele por
perguntar. – É que esta é a primeira vez que temos a oportunidade de passar a
noite inteira juntos sem teres de sair a correr para fingir que dormiste na tua
cama. Não podemos aproveitar o facto de seres Mrs. Cadogan em vez de ficar
aí sentada a morrer de frio e com esse ar de quem me odeia?
– Tudo isto foi um grande choque para mim – disse ela, a desejar ser
capaz de encontrar as palavras que o fizessem compreender o que lhe tinha
feito. – Nunca quis vir para o Canadá. Tanto quanto sei, é uma terra selvagem
e gelada durante metade do ano… O que é que vamos fazer aqui?
– Há bares e saloons em todos os cantos do mundo – respondeu ele,
com riso na voz. – Tenho a certeza de que todos eles gostariam de ter-te a ti e
ao teu violino. Vê isto como uma nova aventura, Beth. Tens os teus três
mosqueteiros contigo para te protegerem. Agora vem para a cama e deixa-me
mostrar-te como te amo.
– Amas mesmo? – perguntou ela. O coração deu-lhe um salto, porque
nunca o tinha ouvido dizer aquilo.
– Claro que amo – disse Theo, estendendo a mão. – Senti algo por ti
logo na noite em que nos conhecemos no Majestic. Foste muito fria e retraída,
mas gostei da maneira como me respondeste.
Tentei encontrar-te na manhã em que desembarcámos. Mas não sabia o
teu nome, não sabia nada a teu respeito. Quando te descobri a tocar violino no
Heaney’s, fiquei entusiasmado. Eras muito mais bonita do que eu recordava…
e a tua música!
Beth teve de sorrir, e então estendeu a mão e pegou na dele.
– Prometes que nunca mais voltas a fazer batota? – perguntou.
– Contigo não, pelo menos – disse ele. – Agora vem para a cama.
Montreal era linda, cheia de edifícios novos e elegantes, ruas largas e
parques e praças graciosos.
Beth e os rapazes gostavam particularmente de ir até ao Mount Royal, o
parque na montanha de onde se desfrutava uma magnífica vista da cidade e do
porto.
Maravilharam-se com Victoria Bridge, construída sobre o rio St.
Lawrence, a que as pessoas chamavam a Oitava Maravilha do Mundo, e
admiraram o edifício New York Life, onde um elevador subia oito andares.
Havia a Golden Mile, com as belas e enormes mansões onde os ricos
viviam. O Windsor Hotel era o mais magnífico que Beth, Sam e Jack alguma
vez tinham visto, e as lojas de St. Catherine’s Street eram tão elegantes como
as melhores de Nova Iorque.
À medida que Setembro chegava ao fim e as folhas das árvores se
pintavam de vermelho, laranja, dourado e castanho, tudo se tornou ainda mais
belo. Mas por mais encantadora que Montreal fosse, todos eles sentiam que
não era o sítio onde encontrariam o êxito. Havia bares em abundância, e
espectáculos musicais e salões de dança, mas Montreal não era uma cidade
liberal: a esmagadora maioria da população era grave, sóbria e trabalhadora.
Sam e Jack arranjaram trabalho como empregados de bar poucos dias
depois de terem chegado, mas apesar de ambos terem tentado convencer os
respectivos patrões a dar a Beth uma oportunidade de entreter os clientes, nada
tinham conseguido. Sem que ninguém o dissesse abertamente, era evidente
que pensavam que qualquer rapariga disposta a pôr os pés num bar era uma
prostituta.
Beth percorreu todas as lojas, na esperança de ser aceite numa delas.
Mas, aparentemente, só empregavam homens como vendedores. Se via uma
mulher a trabalhar numa loja, num restaurante ou num café, era
invariavelmente por ser parente do proprietário.
Theo descobriu que era quase impossível encontrar alguém disposto a
admitir sequer que se jogava na cidade, quanto mais ser convidado para um
jogo. Pela primeira vez na sua vida, a sua figura de cavalheiro inglês parecia
jogar contra ele. Em Montreal, ao que parecia, eram os franceses que
gostavam de ser vistos como aristocratas, e olhavam-no de alto. Por outro
lado, os vulgares membros da classe trabalhadora, sobretudo imigrantes de
primeira e segunda geração de ascendência escocesa ou inglesa, mostravam-se
igualmente desconfiados.
Ainda tinha a maior parte dos ganhos do último jogo de póquer, mas
não estava preparado para gastá-los em despesas do dia a dia. Dizia que tinha
de guardá-los para poder apostar quando conseguisse finalmente arranjar
maneira de entrar num grande jogo. Jack e Sam tinham, inicialmente,
concordado com isso, porque ambos queriam trabalhar nos círculos do jogo e
precisavam de Theo para os introduzir. Mas à medida que as semanas se
sucediam e eles trabalhavam longas horas a troco de baixos salários,
começaram a ressentir-se de ver Theo passar os dias a preguiçar e a beber em
sítios elegantes como o bar do Windsor Hotel enquanto eles o sustentavam,
bem como a Beth.
Mudaram-se do hotel para uma pensão, e depois para um apartamento
com três divisões, mas até isso era demasiado caro, o que recordou a Beth as
dificuldades que ela e Sam tinham enfrentado durante o primeiro ano em Nova
Iorque. Tal como então não tinham tido alternativa senão contentarem-se com
um quarto num pardieiro do Lower East Side, também agora não tinham
opção senão baixar a fasquia e procurar um lugar para viver em Point St.
Charles.
Griffintown, ou o Pântano, como Point St. Charles era muitas vezes
referida, era uma zona degradada no extremo oeste da cidade, entre o rio St.
Lawrence e os carris da Canadian Pacific. Não tinha nenhuma da beleza do
resto da cidade, que se situava no alto de uma colina, salpicada de igrejas e
pináculos. No Pântano, havia fábricas e indústria pesada, altas chaminés que
vomitavam fumo negro noite e dia.
Não havia os feios blocos de apartamentos com cinco andares que se
tinham habituado a ver em Nova Iorque, apenas filas de casas iguais com dois
ou três andares no máximo, mas era um lugar sombrio e triste, onde viviam os
mais destituídos de Montreal. Encontraram uma minúscula casa de
contraplacado com quatro divisões distribuídas por dois pisos em Canning
Street, uma das áreas mais pobres, com uma alta taxa de desemprego e
famílias numerosas. Até os que tinham trabalho provavelmente levavam para
casa menos de dez dólares por semana.
Depois do conforto da casa de Pearl, com casa de banho interior, era
horrível voltar à latrina no pátio das traseiras, sobretudo com aquele frio.
Conseguiram comprar algumas peças de mobília numa das inúmeras lojas de
artigos em segunda mão das redondezas, mas Beth não fora ainda capaz de
juntar coragem suficiente para tentar tornar aquele tugúrio mais acolhedor,
porque os rapazes só iam a casa dormir e Theo só aparecia de vez em quando.
Josie, a irlandesa que vivia na porta ao lado, conseguiu arranjar-lhe
emprego na fábrica de camisas onde trabalhava. Era um trabalho entediante e
repetitivo: cosia à máquina os lados das camisas, e outra pessoa qualquer
acrescentava o colarinho e as mangas.
Quando o Outono se transformou em Inverno e caíram as primeiras
neves, Beth gelava durante todo o dia naquela fábrica. Imaginou-se a ficar
como as outras mulheres que lá trabalhavam, velha antes de tempo, de costas
vergadas e os olhos estragados. Eram quase todas irlandesas e não tinham
alternativa senão aceitar os poucos dólares por semana porque tinham filhos
para alimentar e, em muitos casos, maridos miseráveis que bebiam o que elas
ganhavam.
Mas, ao menos, tinham um marido. Beth chamava a si mesma Mrs.
Cadogan, lavava as camisas, as meias e a roupa interior de Theo para que ele
pudesse continuar a parecer elegante, e cozinhava-lhe as refeições quando ele
se dignava aparecer em casa. Tudo o que uma esposa faria. Mas eram Sam e
Jack que lhe apreciavam as competências domésticas, eram eles que iam
buscar carvão para o lume e a confortavam quando ela achava que nada valia a
pena. E ela não conseguia arranjar coragem para lhes dizer que trazia no
ventre o filho de Theo.
CAPÍTULO 23
Beth puxou para baixo o barrete de pele, de modo a tapar melhor as
orelhas, e saiu de casa com alguma apreensão, porque eram cinco da
madrugada e estava bastante escuro. As botas forradas a pele que Jack lhe
oferecera no Natal mantinham-lhe os pés quentes e secos, mas o casaco
comprido, a saia e os saiotes enchiam-se de neve à medida que ela caminhava
e se atrapalhava nos seus movimentos.
Tinha sido despedida da fábrica de camisas no princípio de Dezembro.
Não podia dizer que o lamentasse, pois detestava aquele trabalho. Arranjara
outro, pouco depois, como cozinheira.
Theo, Sam e Jack tinham ficado horrorizados, e tentado fazê-la desistir
da ideia, pois o lugar era num dormitório de trabalhadores itinerantes da
construção civil. Ela insistira em aceitar porque não havia mais nada em
perspectiva, mas no primeiro dia, quando se vira confrontada com quarenta
homens rudes, duros e não muito limpos de uma dúzia de nacionalidades
diferentes, quase dera meia-volta e fugira. Mas o salário era muito melhor do
que na fábrica de camisas e ali, ao menos, não tinha frio.
Os rapazes tinham receado que os homens tomassem liberdades com
ela, mas Beth descobrira que eram respeitosos, protectores e agradecidos. Era
um longo dia de trabalho, das cinco da manhã às sete da noite, mas depois de
levantadas as mesas do pequeno-almoço e cumpridas algumas outras tarefas
como varrer as camaratas e limpar o refeitório, podia voltar a casa por um par
de horas. A maior parte das vezes, porém, ficava no dormitório, a ler um livro
ou a dormitar junto ao fogão até serem horas de preparar a refeição da tarde.
Até poderia ser verdadeiramente feliz se não fosse a ansiedade que lhe
provocava ter de dizer a Theo e aos rapazes que estava grávida. Desde os
princípios de Janeiro, quando começara a tornar-se mais difícil apertar a saia,
tomava todos os dias a decisão de falar com eles nessa tarde. Mas Fevereiro
chegava ao fim e ainda não conseguira fazê-lo.
Não era só cobardia por recear que a notícia fosse acolhida com alarme.
Na maior parte dos dias nem sequer via os rapazes, porque eles ainda estavam
a dormir quando ela saía e já tinham saído para o trabalho quando voltava.
Mas mesmo aos domingos, quando se juntavam todos em casa, a altura nunca
era a certa. Uma vez era porque Sam estava todo entusiasmado por causa de
um aumento de ordenado e ela não queria estragar-lhe a alegria, outra porque
Jack caíra na neve e magoara uma perna e ela não queria arranjar-lhe mais
preocupações. Quanto a Theo, não se podia contar com ele nem sequer aos
domingos, porque conseguira finalmente insinuar-se num grupo de homens
ricos que gostavam de jogar póquer.
Theo levava uma vida dupla. Para os amigos, era um homem de
negócios bem sucedido com interesses na América e no Canadá. Nenhum
deles fazia ideia de que a sua verdadeira casa ficava no Pântano, nem de que o
seu único negócio era o jogo.
Apesar de não gostar do facto de ele desaparecer durante dias seguidos,
ou de não fazer parte daquela sua outra vida, Beth não podia deixar de
admirar-lhe o talento para convencer as pessoas de que era um homem de
substância. Alugava um quarto no Windsor Hotel e enviava notas aos amigos
a convidá-los para jantar. O investimento feito no quarto e no jantar era regra
geral o suficiente para conseguir-lhe um convite para uma das mansões da
Golden Mile, onde ficava durante uma semana ou mais a fazer o papel de
distinto hóspede que frequentemente aliviava os anfitriões de centenas de
dólares em amigáveis jogos de póquer.
Beth sentia-se por vezes ofendida pela injustiça de ele preguiçar no luxo
enquanto ela cozinhava para quarenta homens, mas compreendia que Theo
estava a tentar reunir apoiantes para uma casa de jogo que os beneficiaria a
todos. Além disso, contribuía com dinheiro para ela e para os rapazes, e, no
fundo do coração, sabia que se ele não a amasse e não considerasse Sam e
Jack os seus melhores amigos, há muito que teria seguido o seu caminho.
Mas Theo não incluíra um bebé nos seus planos a longo prazo, e Beth
receava que a notícia deitasse tudo a perder. Para ser franca, ter um filho
também não fizera parte dos planos dela, e ao princípio ficara horrorizada. No
entanto, à medida que as semanas passavam, começara a dar por si a reviver a
alegria de cuidar de Molly, e agora queria aquele bebé com todo o coração.
Mas permanecia o facto de ser bastante provável que os rapazes acolhessem a
novidade com muito pouco entusiasmo.
Não ia poder manter o segredo durante muito mais tempo. Pelas suas
contas, estava grávida de quatro meses e meio, o bebé nasceria em Julho, e a
única razão porque ninguém reparara ainda na alteração das suas formas era a
quantidade de roupas de Inverno que usava. Mesmo na cama, nunca despia a
camisa de noite de flanela, e como estava quase sempre a dormir quando Theo
chegava a casa, há já várias semanas que não faziam amor.
– Vou dizer-lhe esta noite – decidiu em voz alta. Era raro ele sair antes
de ela chegar a casa, e podia deixar-lhe o cuidado de dar a novidade a Sam e a
Jack na manhã seguinte, antes de eles irem trabalhar.
Era difícil caminhar com tanta neve, e além disso perigoso, pois podia
haver obstáculos escondidos debaixo do espesso manto branco e, na escuridão,
não era fácil ver o ligeiro montículo que poderia avisá-la. Por isso avançava
com passos curtos e cuidadosos, os pensamentos perdidos nos seus planos
para o futuro.
Apesar de todos os seus defeitos, Theo era carinhoso e atencioso, e Beth
tinha a certeza de que casaria com ela para dar um nome ao filho. Mas
também sabia que não podia ter a esperança de transformá-lo num marido
tradicional, desses que saem todos os dias para trabalhar num banco ou noutro
emprego regular para sustentar a mulher e o filho.
A ideia dela era que deviam alugar uma casa inteira numa área melhor e
aceitar inquilinos para ganhar algum dinheiro. Theo podia continuar com os
seus planos, bem como Sam e Jack. Mesmo que os rapazes tivessem de sair de
Montreal, ela ficaria segura, e se não podia tocar violino em público, seria ao
menos dona da sua própria casa e não teria de deixar o bebé ao cuidado de
ninguém enquanto saía para trabalhar.
Quando virou para Fuller Street, onde ficava o dormitório, estava tão
ocupada a planear como ia apresentar esta ideia aos rapazes que se esqueceu
de olhar para o chão. De repente, os pés fugiram-lhe para a frente e ela caiu de
costas na neve, batendo dolorosamente com as nádegas.
Quando rolou para um lado e se pôs cautelosamente de joelhos, viu que
tinha pisado uma placa de gelo. Alguém devia ter despejado um balde de água
na neve, e o frio intenso congelara-a.
Calculou que mais tarde ia ficar com uma grande nódoa negra, mas,
felizmente, as pernas e os tornozelos estavam bem.
Só quando já estava no dormitório, a espevitar o lume do fogão que
ficara no borralho a noite inteira, a encher cafeteiras de água e a acender o gás
para começar a cozinhar se apercebeu de que estava um pouco zonza e
abalada. Mas não havia tempo para pensar naquilo, pois os homens não
tardariam a levantar-se.
O pequeno-almoço era sempre mais difícil do que cozinhar a refeição
da tarde, que tinha todo o dia para preparar. De manhã, tinha menos de uma
hora para fritar oitenta ovos, bacon e salsichas em grandes frigideiras, cortar
em fatias seis grandes pães e fazer várias cafeteiras de café e chá.
O dormitório tinha uma grande sala comum onde os homens comiam e
relaxavam. As camaratas e as casas de banho ficavam nas traseiras. As
paredes eram de estuque tosco e sem pintura e o chão de cimento nu. Havia
uma série de compridas e desconjuntadas mesas de madeira, bancos corridos
também de madeira e um balcão que separava o refeitório da área da cozinha.
Um placard e os cacifos dos homens cobriam uma das paredes; a segunda
tinha cabides para pendurar as roupas de sair; como o fogão se mantinha aceso
de dia e de noite, de manhã os casacos e as botas molhados estavam secos.
A terceira parede fora decorada por residentes com tendências artísticas.
Havia esboços de ursos e alces, caricaturas de alguns dos homens e muitas
mulheres voluptuosas e seminuas que faziam Beth corar.
Da primeira vez que entrara numa das camaratas, para varrer o chão, o
fedor a suor e a pés sujos fora como uma barreira que a fizera recuar, mas
supunha que não podia ser de outro modo quando tantos homens dormiam
num espaço tão pequeno e mal ventilado. Além disso, trabalhavam longas
horas e só podiam frequentar o balneário, um pouco mais abaixo na rua, uma
vez por mês, ou à volta disso. Mesmo assim, a maior parte guardava as suas
parcas posses e roupas limpas numa caixa ou num saco de lona debaixo dos
catres. Aqueles homens eram nómadas que se deslocavam para onde quer que
houvesse trabalho. Eram uma raça dura livre de peias de mulheres ou famílias,
indiferentes ao frio e ao calor e, muitas vezes, também à dor. Tudo o que
pareciam precisar era alguns amigos, comida e bebida, e ficavam contentes.
Quando o primeiro grupo de homens desgrenhados, a bocejar e a tossir,
entrou no refeitório, já Beth tinha os pratos, as travessas com pão e comida em
cima do balcão e estava pronta para a distribuição. Tinha posto o café e o chá
no extremo do balcão, para que eles se servissem sozinhos.
A maior parte limitou-se a grunhir uma saudação, porque ainda só
estavam meio acordados, mas quando o enorme americano a que os homens
chamavam Tex parou diante dela para que lhe enchesse o prato, olhou-a
fixamente e franziu o sobrolho.
– Sentes-te bem, querida? – disse. – Estás muito pálida.
– Escorreguei no gelo, quando vinha para cá – explicou Beth, com um
débil sorriso. – Não parti nada, só fiquei um pouco abalada.
– Então vê se descansas o resto do dia – disse ele. – Não queremos
perder uma coisinha bonita como tu!
Às dez da manhã, Beth tinha acabado quase todos os seus trabalhos de
limpeza. Geralmente, era a hora em que fazia uma pausa e bebia uma chávena
de chá e comia uma sanduíche de bacon enquanto lia o jornal antes de
começar a preparar a refeição da tarde. Mas a refeição da tarde daquele dia era
guisado, e uma vez que a carne que o homem do talho normalmente fornecia
tendia a ser dura, resolveu pô-la a cozinhar mais cedo.
Quando estava a tirar os grandes e pesados tachos do guisado da
prateleira por baixo do poial do fogão a gás, sentiu uma dor aguda
atravessar-lhe o ventre. Pôs os tachos em cima do fogão, e uma nova pontada
pareceu trespassá-la.
Sentou-se numa cadeira, a dizer a si mesma que era apenas uma cãibra,
ou que pegara mal nos pesados tachos de ferro. Mas então aconteceu terceira
vez, e instintivamente agarrou a barriga como vira a mãe fazer quando entrara
em trabalho de parto, quando Molly nascera.
Uma sensação de pavor apoderou-se dela. Iria perder o bebé?
Talvez não tivesse ficado encantada, ao princípio, mas depois começara
a gostar cada vez mais da ideia, e durante o último mês pensara em pouco
mais do que segurar o filho ou a filha nos braços.
Que faziam as mulheres para se certificarem de que não perdiam os
bebés? Estender-se no chão bastaria? Ou devia pedir a alguém que chamasse
um médico?
Mas quem? Todos os homens tinham saído para ir trabalhar. O
dormitório pertencia a um tal Mr.
Sondheim, mas exceptuando as tardes de sexta-feira, em que ia
pontualmente cobrar as rendas, era raro aparecer. Fora visita mais frequente
quando ela começara a trabalhar ali, mas agora parecia confiar nela e só ia
recolher as contas dos géneros, certificar-se de que ninguém se fora embora ou
de que ninguém estava a usar as instalações sem a sua autorização. Não era
muito provável que aparecesse naquele dia, uma vez que o fizera na véspera.
Beth levantou-se da cadeira, na esperança de que a dor desaparecesse,
porque Mr. Sondheim não ficaria satisfeito se não tivesse a refeição da tarde
pronta para os homens. Tinha chegado à bancada, onde deixara a carne pronta
para ser cortada, quando a dor voltou. Dessa vez foi mais intensa e durou mais
tempo. Beth soube então que não ia desaparecer e que tinha de conseguir
ajuda.
Muito devagar, passo a passo, avançou para a porta. Quando lá chegou,
a dor voltou a atingi-la, tão forte que a fez gritar. Quando abrandou, sentiu
uma humidade pegajosa entre as pernas, e pensou que fosse sangue.
Apavorada, abriu a porta e olhou para fora.
Não havia ninguém à vista, e embora a casa mais próxima ficasse a
apenas alguns metros de distância, do outro lado da rua, teve medo de
atravessar até lá, porque podia cair na neve. De todas as outras vezes que
abrira aquela porta, houvera sempre pessoas por perto, mesmo com a neve,
porque a maior parte dos residentes da área vivia em espaços tão apertados
que tinham de sair para respirar.
– Alguém que me ajude, por favor – suplicou em voz alta, ao mesmo
tempo que outra pontada de dor a trespassava. Horrorizada, viu a neve entre os
seus pés tornar-se vermelha de sangue, e o medo provocou-lhe uma náusea.
Estava ali há uns dez minutos, gelada até aos ossos, cheia de dores e a
ver a mancha de sangue a aumentar à volta dos pés, quando finalmente avistou
um homem a descer a rua, puxando um trenó atrás de si.
– Ajude-me, por favor – gritou, o mais alto que foi capaz.
Quando o homem chegou junto dela, estava agarrada ao umbral da porta
para não cair.
– Tem algum problema? – perguntou ele.
Beth apercebeu-se de que era muito novo, não mais de vinte anos,
irlandês, com uns grandes olhos azuis e brilhantes.
– Sim, acho que estou a perder o meu bebé – disse atabalhoadamente, o
medo a sobrepor-se à vergonha de dizer uma coisa daquelas a um estranho. –
Importa-se de ir a minha casa chamar o meu marido ou o meu irmão?
– Com certeza – disse o rapaz. – Mas primeiro deixe-me ajudá-la, ou
ainda morre de frio aqui.
Parecia conhecer o local, pois uma vez no interior foi direito a uma das
camaratas e voltou com uma manta e uma almofada. Obrigou-a a deitar-se no
chão e tapou-a, e até lhe pegou na mão quando a dor a fez gritar.
Beth explicou-lhe, entrecortadamente, aonde tinha de ir, e ele prometeu
correr até lá.
A dor piorou muito mal o rapaz desapareceu, e não diminuiu como
antes, continuou a vir como ondas, cada uma mais forte do que a anterior, até
Beth não conseguir pensar para lá dela, ou ver ou ouvir fosse o que fosse.
De muito longe, através do nevoeiro vermelho que a envolvia,
pareceu-lhe ouvir Jack chamá-la, mas não conseguiu responder. Sentiu-se
como se estivesse a deslizar para dentro de um escuro túnel do qual não havia
fuga possível.
– Mrs. Cadogan! Consegue ouvir-me?
Beth pensou que estava a caminhar por uma floresta escura em direcção
à voz do homem. Quando tentou andar mais depressa, as pernas não lho
consentiram.
– Abra os olhos, Mrs. Cadogan. Acabou-se.
A voz tão próxima fê-la compreender que era um sonho, e que estava na
cama. Abriu os olhos e viu um homem com óculos de aros dourados a olhar de
cima para ela.
– Está num hospital – explicou o homem. – Pregou um grande susto ao
seu pobre marido; estava cheio de medo de a perder.
– Perdi o meu bebé?
O médico assentiu.
– Lamento muito, minha querida. Mas é jovem e saudável e em breve
voltará a ser o que era.
– Posso ver o meu marido? – murmurou ela.
– Só por alguns minutos, depois precisa de descansar. Vou chamá-lo.
Beth pensou que devia ser muito tarde, pois havia só uma luz acesa na
grande sala, e as pessoas das outras camas pareciam estar a dormir. Estava
intrigada por não conseguir lembrar-se de nada depois de o jovem irlandês a
ter socorrido. Que lhe teriam dado para fazer a dor desaparecer e para ela
dormir tanto tempo? Tê-la-iam operado?
Ao ouvir passos, voltou a cabeça e viu Jack avançar na sua direcção.
– Onde está o Theo? – murmurou, quando ele chegou junto da cama.
– Não sei – murmurou ele em resposta. – Fui eu que te fui buscar ao
dormitório… o Sam já tinha saído para o trabalho. Disse que era teu marido
porque pareceria melhor. O Theo sabia que ias ter um bebé?
Beth abanou debilmente a cabeça.
– Ia dizer-lhe esta noite.
– Mas eles disseram que estavas com mais de quatro meses! Tive de
fingir que sabia. Porque é que não disseste a nenhum de nós? Não te teríamos
deixado trabalhar naquele lugar, se soubéssemos.
– Nunca houve uma altura certa para vos dizer – respondeu ela,
cansadamente.
Jack inclinou-se e beijou-a no rosto.
– Como te sentes agora?
– Um pouco estranha. – Beth suspirou. – Mas já não tenho dores. O que
foi que eles me fizeram, Jack?
– O médico explica-te tudo de manhã – disse ele. – Agora precisas de
dormir. Vou procurar o Sam e o Theo e contar-lhes. Vimos ver-te amanhã.
*
Já passava das dez da noite e Jack caminhava pelas ruas desertas e
cobertas de neve, os olhos a encherem-se de lágrimas ao pensar no que o
médico tinha dito.
– Tive de operar de urgência para remover as partes que não tinham
saído naturalmente e, infelizmente, tenho de dizer-lhe que é muito improvável
que a sua mulher possa gerar outro filho.
Muitas mulheres que Jack conhecera não se importariam de nunca ter
filhos, e quem tivesse visto Beth tocar violino pensaria que ser mãe não era
particularmente importante para ela. Mas Jack sabia a verdade. Ouvira a
tristeza na voz dela quando falava de Molly, e sabia que desistir da irmã era
uma coisa com que nunca conseguira reconciliar-se totalmente, por mais que
dissesse que sim. Quando, no Natal, recebera uma fotografia de Molly, ficara
a olhar para ela durante horas. Jack sempre pensara que só quando tivesse um
filho seu Beth conseguiria recuperar plenamente.
Agora perdera essa possibilidade.
Theo não foi a casa naquela noite, e Jack ficou acordado a odiar o
homem que tratava Beth com tanto descaso. Theo não sabia, claro, que ela
estava no hospital, mas Jack não conseguia compreender como podia qualquer
homem que tivesse uma rapariga tão encantadora como Beth ficar longe dela
uma noite que fosse.
Sam fizera um ar incrédulo quando ele lhe dera a notícia.
– Mas porque foi que não me disse? – repetia, como se pensasse que se
ela o tivesse feito nada daquilo teria acontecido. Mas até Sam, próximo como
era da irmã, expressara a opinião de que talvez tivesse sido melhor assim.
– Melhor para quem? – gritara Jack. – Para ti e para o Theo talvez, para
poderem fazer o que querem sem impedimentos! Mas não para a Beth. Uma
parte dela morreu com o bebé, e quando descobrir que não pode ter mais,
como é que ela vai reagir?
*
O dia estava quase a romper quando Jack ouviu Theo entrar. Ele e Beth
partilhavam aquilo a que ela chamava, na brincadeira, a sala, a ligeiramente
maior das duas divisões do piso térreo e a que tinha a lareira. Era ali que tinha
de cozinhar, e improvisara uma pequena cozinha colocando no espaço ao lado
da lareira um caixote de madeira sobre o qual arrumava os pratos, os tachos,
os utensílios e os alimentos.
A habilidade dela para tornar qualquer lugar acolhedor espantava Jack.
Cobrira a cama com uma manta aos quadrados de várias cores e fizera
almofadas para os dois cadeirões de madeira. A maior parte das pessoas em
redor vivia sordidamente, derrotada pela pobreza e pelas provações, mas Beth
mantinha a casa impecavelmente limpa e estava sempre a acrescentar qualquer
coisa para a tornar mais agradável.
Desde que começara a trabalhar no dormitório, comprara uma pequena
mesa, e aos domingos, quando estavam todos em casa, era nela que comiam,
sentados em caixotes. Tapara as frestas à volta das janelas com papel de
jornal, para evitar as correntes de ar, e escondera as manchas das paredes com
cartazes de teatro e fotografias cortadas de revistas. Ao domingo, sentados à
volta da mesa e com a lareira acesa, a comer um saboroso jantar, podiam
esquecer o frio cortante e a miséria lá fora e, por algumas horas, ser uma
verdadeira família.
Desde que o vira pela primeira vez, os sentimentos de Jack em relação a
Theo tinham oscilado entre o ciúme por ele lhe ter roubado Beth e a
indignação por tê-la deixado pensar que fora ele o autor do plano para a salvar
da cave. Com o tempo, e depois de se mudarem para Filadélfia, tinha acabado
por gostar dele.
Apesar da sua ostentação, das suas roupas elegantes, do seu sotaque
requintado e da sua impecável educação, Theo não era um snob. Para ele, só
havia dois géneros de pessoas: as de quem gostava e as de quem não gostava.
O que tinham ou de onde vinham não entrava na equação.
Quando conseguira pôr de lado os seus ressentimentos, Jack descobrira
que Theo era generoso, tinha bom coração e era um companheiro divertido…
e esperto, também, sempre um passo à frente dos outros.
Não o escandalizava saber que ele fazia batota ao jogo. Achava que
provavelmente teria feito o mesmo se tivesse perdido um monte de dinheiro.
Esperara, isso sim, que Theo desaparecesse e os deixasse a Sam e a ele
enfrentarem as consequências quando Sheldon morrera.
Mas não o fizera. Assumira o comando, organizara a fuga para o
Canadá, pagara-lhes os bilhetes e, porque provara ser digno disso, Jack
passara a confiar nele.
No entanto, quando ouviu Theo entrar e se lembrou de onde Beth
estava, foi dominado por um ímpeto assassino. Saltou da cama e correu para o
quarto ao lado vestindo apenas a roupa de dormir.
Theo tinha acendido uma vela e estava ali com ela na mão, ainda de
chapéu alto e capa pelos ombros, a olhar espantado para a cama vazia.
– Onde está ela? – perguntou.
– No hospital, grande filho da mãe – rosnou Jack. – Perdeu o bebé, e tu
merecias ser enforcado por não estar com ela e por a deixares trabalhar
naquele sítio.
– A Beth ia ter um bebé? – arquejou Theo, repentinamente muito
pálido. – Não sabia!
– Nunca lhe deste uma oportunidade para te dizer, nunca cá estavas –
gritou-lhe Jack. – Entras e sais, comes as refeições que ela cozinha para ti,
vestes as camisas que ela lava e trata-la como se fosse uma criada.
Theo pousou a vela e deixou cair o chapéu em cima da cama.
– Oh, Deus! – exclamou. – Perdeu o nosso bebé? Por favor, Jack,
senta-te e conta-me o que aconteceu e como ela está.
Jack bem via que Theo estava chocado e horrorizado, mas isso não o
apaziguou. Cerrou o punho e disparou-o para a frente. Apanhado em cheio no
queixo, Theo retrocedeu, a cambalear.
– Dava cabo de ti à pancada sem pensar duas vezes – sibilou Jack. –
Mas não quero estragar este quarto que a Beth tentou tornar agradável. Ou
nunca reparaste nisso? Já viste como as mãos dela se tornaram ásperas. Em
Filadélfia era alguém, usava roupas bonitas e era feliz, mas tu roubaste-lhe
tudo isso.
– Suponho que tinhas um plano melhor? – disse Theo, com uma nota de
sarcasmo na voz. – Um plano do qual nunca falaste, hein?
– Cínico filho da mãe! – gritou Jack, e preparava-se para lhe bater outra
vez quando Sam entrou a correr no quarto e lhe agarrou o braço.
– Lutar não vai ajudá-la a pôr-se boa – disse furiosamente,
interpondo-se entre os seus dois amigos.
– Sabe Deus que também eu gostaria de desfazer o Theo por ter
negligenciado a Beth, mas ela está devastada por ter perdido o bebé e se
chegar a casa e descobrir que o perdeu também a ele, nunca mais recuperará.
– Nunca deixaria a Beth nem que vocês os dois me matassem à pancada
– disse Theo, indignado. – Estão a portar-se como se eu fosse responsável por
isto. Mas como posso ser? Nem sequer sabia.
Agora, são capazes de se sentarem e explicarem-me como é que ela
está, pelo amor de Deus? Amo-a, com certeza sabem isso?
Ao ouvir esta inesperada declaração de amor, a fúria de Jack
dissipou-se.
– Nesse caso, porque era que a deixavas sempre sozinha? – perguntou,
com uma voz pouco segura.
– Não podias tê-la apresentado aos teus novos amigos? Ela é uma
verdadeira senhora, nunca te teria envergonhado.
Theo suspirou e deixou-se cair numa cadeira, passando os dedos pelo
cabelo.
– Estava a tentar conseguir algo para todos nós. Se soubesse que ia ser
pai… – Calou-se bruscamente, esmagado pela emoção, cobrindo a cara com
as mãos. – Por favor, digam-me como ela está – disse com uma voz
estrangulada ao cabo de alguns instantes. – Acho que tenho pelo menos direito
a isso.
*
Theo deteve-se diante da porta da enfermaria, a olhar para Beth através
do pequeno painel de vidro. Estava deitada de lado na cama, com um braço
dobrado a esconder a cara, e ele soube que estava a chorar. Preparou-se para
entrar, esperando, quando a abraçasse, saber encontrar as palavras certas para
a reconfortar.
Tinha a cara dorida do murro que Jack lhe dera horas antes, mas não tão
dorida como o coração.
Não podia dizer que tivesse alguma vez pensado em como seria ser pai,
mas sentia uma tristeza insuportável por ter involuntariamente gerado com
Beth uma criança que tinha agora desaparecido.
Inspirou fundo, empurrou a porta e entrou. Beth afastou o braço da cara,
e ele viu que tinha os olhos inchados e vermelhos.
– Minha pobre querida – disse, docemente. – Lamento tanto não ter
estado contigo ontem.
A expressão dela era tão desolada que ele não suportava vê-la.
– Devias ter-me dito – continuou, inclinando-se para a abraçar. –
Amo-te, Beth, sei que nem sempre o mostro, mas não devias ter-me escondido
isto.
– Dizem que quase morri – soluçou ela, com a cabeça escondida no
peito dele. – Quem me dera ter morrido, Theo. O que vai ser de mim no futuro
sem sequer poder ter um filho para amar?
– Não temos a certeza de que isso seja verdade – disse Theo, as
lágrimas a escorrerem-lhe também pelo rosto. – Vamos consultar outro
médico, havemos de fazer com que seja possível.
– Há coisas que não são possíveis – disse ela, a voz abafada contra o
peito dele.
O instinto disse a Theo que ela sentia que estava a ser castigada por ter
tido relações sexuais com um homem com quem não estava casada.
– Não acredito nisso – disse. – Vou tomar conta de ti, e quando
estiveres bem outra vez, vai parecer tudo diferente, vais ver. Havemos de
casar, um dia, e voltaremos a Inglaterra para ver a Molly.
Mesmo que não possamos ter outro filho, continuaremos a ter-nos um
ao outro.
Ela continuou a chorar, e ele sentiu-se impotente para acalmar aquela
dor. Que podia ele dizer?
Nunca ansiara ter um filho, duvidava que qualquer homem ansiasse.
Compreendia o desgosto e o desapontamento de Beth, mas não podia presumir
saber o que ela sentia.
– Lamento tanto – murmurou. – Lamento não ter tomado melhor conta
de ti. Lamento não te ter dito mais vezes que te amava. E lamento muito que
tenhamos perdido o nosso bebé. As coisas podem parecer terríveis para ti,
Beth, mas hão-de melhorar. Prometo-te.
CAPÍTULO 24
Junho de 1897
–Pára com isso, mana, estou cansado de ver essa cara triste! Beth corou
de embaraço, pois a voz de Sam parecia-lhe ter ecoado por toda a carruagem
de comboio.
– Porque é que não gritas um pouco mais alto? – retorquiu, sarcástica. –
Tenho a certeza de que as pessoas lá ao fundo gostariam de te ouvir.
– Desculpa – disse ele, confuso. – Não me apercebi de que estava a
gritar. Mas parece que passaram anos desde a última vez que te ouvi rir ou
sequer mostrar entusiasmo por alguma coisa.
Atravessámos todo o Canadá e vimos tanta coisa; esta noite estaremos
em Vancouver, será que não podes animar-te um pouco?
– Esfregar soalhos, lavar roupa e servir à mesa não são coisas que
despertem grande entusiasmo – retorquiu ela, venenosamente. – Se puderes
garantir-me que Vancouver vai ser diferente, então talvez eu possa começar a
rir outra vez.
– Talvez lá tenhas oportunidade para voltar a tocar violino.
Beth forçou um sorriso.
– Talvez, mas desculpa-me se não conto muito com isso.
*
Tinham passado quatro meses desde que perdera o bebé e, fisicamente,
recuperara numa semana.
Mas saber que nunca poderia ter outro filho deixara-a completamente
destroçada. Por vezes, ficava todo o dia na cama, não queria saber se o quarto
estava sujo ou desarrumado, e quando se arriscava a sair, evitava falar fosse
com quem fosse.
Theo não poderia ter sido mais gentil naquelas primeiras três ou quatro
semanas. Oferecia-lhe guloseimas, tónicos, fruta fresca e chocolates, levou-a
num trenó puxado por um cavalo até Mount Royal, comprou-lhe um vestido
novo numa das melhores lojas de Sherbrooke Street. Ficara muitas noites em
casa com ela e, não fora isso, talvez Beth tivesse caído numa permanente
melancolia.
Ficara contente quando os rapazes tinham sugerido uma mudança.
Sentira que mal começasse a ver novas paisagens e a conhecer novas pessoas
recuperaria a sua antiga animação.
Tinham partido de Montreal em finais de Março, quando estava ainda
muito frio e os rios continuavam gelados, mas a Primavera ia a caminho. A
teoria de Theo era que a nova via-férrea que atravessava o Canadá até
Vancouver devia ter criado algumas boomtowns pelo caminho. Tinha razão na
medida em que pequenas povoações tinham surgido à volta dos pontos de
paragem do comboio, mas não eram do género de proporcionar as
oportunidades que esperara.
Um saloon, que normalmente era também hotel, armazéns, lojas de
roupas e de ferragens, estábulos e um ferreiro eram tudo o que a maior parte
destas povoações tinha para oferecer. Os imigrantes que tinham comprado
terras de cultivo naquelas regiões remotas eram gente sóbria, trabalhadora e
grave, nada dada a perder no jogo o dinheiro que tanto lhes custava a ganhar.
Beth achava que a única maneira de fazer rapidamente fortuna naquelas terras
era levar peças de tecido, chapéus e outros luxos, porque a maior parte das
mulheres estava faminta de qualquer coisa bonita para usar.
No entanto, sair de Montreal fora bom para ela. Deixara de pensar no
filho que nunca mais poderia ter e arranjara energia para trabalhar quando a
oportunidade surgia. Recomeçara a preocupar-se mais com o aspecto e voltara
a praticar com o violino.
Na maior parte dos lugares onde paravam, os rapazes conseguiam
geralmente arranjar um qualquer trabalho temporário, em quintas, como
lenhadores ou nas serrações. Numa povoação, Sam ajudara um sapateiro e
ganhara quase quarenta dólares. Mas para Beth, o único trabalho disponível
era fazer limpezas, lavar roupa e, ocasionalmente, numa quinta, semear ou
mondar. Por vezes, tinha de ficar sozinha numa pensão enquanto os rapazes se
acomodavam no dormitório do sítio onde estivessem a trabalhar, de modo que
também a solidão se juntava aos outros males.
Conseguira tocar violino num ou noutro saloon, mas apesar de receber
entusiásticos aplausos, o apreço do público nunca se traduzira em mais de uns
poucos cêntimos no chapéu. Era difícil não recordar Nova Iorque e Filadélfia,
e como era bom ganhar a vida a fazer aquilo de que mais gostava.
Receava nunca mais voltar a ter oportunidade de o fazer.
No entanto, apesar de todos os desapontamentos, provações e
ansiedades fora, como Sam dizia, uma viagem incrível de uma ponta à outra
daquele imenso país, e as impressionantes paisagens tinham-na aturdido a
cada curva: montanhas toucadas de neve, grandes lagos e florestas de
pinheiros, trovejantes quedas de água e pradarias que se estendiam quase até
ao infinito. Mal podia acreditar que, em tempos, o seu mundo se limitara a
Church Street em Liverpool e que um parque era a sua ideia de um vasto
espaço aberto.
A razão da sua cara de enterro naquele dia era apenas cansaço. Estava
cansada daquela vida de nómada, cansada de ver os rapazes entusiasmarem-se
sempre que se aproximavam de uma nova povoação para voltarem a partir,
desapontados, poucos dias mais tarde. Era incapaz de sentir qualquer
entusiasmo por Vancouver porque tinha a certeza de que não seria diferente de
todos os outros lugares.
Theo estava convencido de que era ali que todos os seus sonhos iam
tornar-se realidade. Naquele momento, estava na plataforma de observação ao
fundo da carruagem, com Jack, e Beth não duvidava de que estavam mais uma
vez a planear a casa de jogo com que sonhavam.
Soubera que Jack e Theo tinham lutado depois de ela perder o bebé
porque vira a marca na cara de Theo. Mas qualquer animosidade que tivesse
havido entre os dois dissipara-se, pois agora eram os melhores amigos, e Jack
provara mais de uma vez o seu valor durante a viagem. No que tocava ao duro
trabalho manual, não tinha rival, porque era imensamente forte e capaz. Fazia
o trabalho de Theo e de Sam quando eles se atrasavam, e a sua atitude dura
dissuadia eventuais arruaceiros de implicarem com eles.
Estavam os três, aliás, mais musculados e fortes do que quando tinham
iniciado a viagem, e mais bonitos, também, com os rostos bronzeados pelo sol.
Apesar de não conseguir partilhar o entusiasmo juvenil que Vancouver lhes
suscitava, Beth continuava a estar muito satisfeita por estar com eles.
– Serve, não serve? – Jack olhou nervosamente para Beth enquanto lhe
mostrava as acomodações que encontrara para eles em Gas Town.
Chegados a Vancouver de madrugada, tinham dormitado na sala de
espera da estação até ao nascer do dia. Jack saíra sozinho enquanto eles
tomavam o pequeno-almoço e regressara uma hora mais tarde para lhes dizer
que tinha alugado aquela casa, a um par de ruas de distância da estação.
– É óptima, Jack – respondeu Beth, demasiado cansada para querer
saber do que quer que fosse. A casa tinha dois quartos, com enxergas sujas nas
camas, uma cadeira só com três pernas, um fogão a gás e um lava-louça no
canto da sala das traseiras, que dava para o porto. Mas já tinham ficado em
sítios muito piores.
– Foi a melhor das que vi – disse Jack, nervosamente. – Talvez
conseguíssemos arranjar melhor noutra zona da cidade, mas disseram-me que
Gas Town é onde ficam todos os bares e casas de jogo, e parece ser o lugar
certo para nós. Aposto que aqui ninguém é contra violinistas bonitas.
Beth ficou comovida por Jack ter pensado nela e sorriu cansadamente.
– Fizeste bem, Jack. Mas a verdade é que fazes sempre bem, seja o que
for que fizeres.
Nesse momento, Theo e Sam subiram a escada. Theo franziu o nariz e
Sam fez um sorriso forçado.
– Porque será que arranjamos sempre umas casas tão feias? Seria de
esperar que, uma vez por outra, nos tocasse uma coisa decente – disse.
Beth sentiu-se na obrigação de tranquilizá-los.
– Pelo menos, é um prédio novo. Até vi um lavatório interior e uma
casa de banho quando subi as escadas. Posso arranjá-la, vamos ficar bem aqui.
– Se estás satisfeita, também nós estamos – disse Theo, aproximando-se
da janela e olhando para fora. – Temos uma boa vista dos navios, e se
acharmos que Gas Town não nos serve, podemos sempre embarcar num deles.
– Desde que não seja para norte – declarou Beth, enquanto abria o saco
de viagem. – Estou farta de neve e de frio.
Beth acordou algum tempo depois a ouvir um banjo tocar algures ali
perto. Era uma música rápida e vibrante, que lhe fez lembrar um negro que
tocava banjo nas ruas de Filadélfia. Parecia ser o melhor presságio possível.
Tinham-se deitado os quatro, completamente vestidos, nas enxergas
nuas, para descansar um pouco, mas isso devia ter sido horas antes, porque a
posição do sol disselhe que já passava do meio-dia.
Theo dormia profundamente, enrolado contra as costas dela, mas Beth
desenvencilhou-se dos braços dele, repentinamente cheia de energia e disposta
a tornar aquele quarto acolhedor.
Tinha desenrolado os lençóis e as mantas, pendurado os vestidos no
armário, e estava a arrastar a mesa para junto da janela quando Theo acordou.
– É bom sinal – comentou ele, ao vê-la estender uma toalha aos
quadrados em cima da mesa. – Quer isto dizer que te sentes em casa.
– Sinto-me em casa onde quer que tu estejas – respondeu ela,
provocadora. – Mas tira-me essa carcaça preguiçosa da cama, para eu poder
fazê-la.
Theo fez o que ela pedia, mas então atravessou o quarto para a abraçar.
– As coisas por que eu te faço passar – disse, num tom arrependido.
A afirmação era, no mínimo, um eufemismo, e se ela estivesse com
disposição para implicar podia ter-lhe recitado uma longa lista de agravos, a
começar pelo inevitável estilo de vida festa-ou-fome de um jogador. Havia as
ausências inexplicadas, o namoriscar com outras mulheres, a falta de
fiabilidade e o egoísmo. Mas Beth não estava voltada para as recriminações.
– Nem tudo foi mau – disse, passando-lhe os braços pelo pescoço, para
o beijar. Ele respondeu ardentemente, a ponta da língua a insinuar-se entre os
lábios dela enquanto a apertava contra si, e, para sua surpresa, Beth sentiu um
genuíno desejo a despertar dentro de si.
Desde que perdera o bebé, deixara de querê-lo como antigamente.
Continuara a fazer os gestos, fingindo que sim, por ele, mas cada vez que
simulava o êxtase sentia-se insuportavelmente triste e ludibriada, porque fazer
amor fora uma parte tão importante do que houvera de bom entre os dois.
Theo sentou-se numa cadeira e puxou-a para os joelhos, de modo que
ela ficou como que montada nele, e então desapertou-lhe o corpete do vestido
e libertou-lhe os seios, para os acariciar e beijar.
Foi bom, como antigamente, e quando ele lhe enfiou a mão debaixo da
saia e dos saiotes para a acariciar, ela soube que dessa vez não haveria
fingimentos.
O facto de Sam e Jack estarem do outro lado da porta enquanto Theo a
levava a um estado ardente de excitação com os dedos era tão erótico que
atingiu o clímax antes que ele desabotoasse as calças e entrasse nela. Inclinou
a cabeça para trás, empurrando os seios contra a cara de Theo com abandono,
a adorar o prazer sensual de o sentir dentro de si.
Theo chegou ao orgasmo com um rugido de prazer, cravando os dedos
nas nádegas dela.
– Foi como ganhar mil dólares no virar de uma carta – sussurrou contra
o ombro de Beth. – Amo-te tanto.
Já passava das dez da noite quando os quatro saíram para comer
qualquer coisa. Tinham sido obrigados a tomar banhos frios, porque só havia
água quente quando a fornalha da cave era acesa.
Mas estavam todos revigorados, e Beth sentia-se tão radiante depois de
fazer amor à tarde que ria de tudo o que os rapazes diziam.
Usava o vestido de cetim vermelho, apesar de estar vincado por ter
estado guardado no saco de viagem durante tanto tempo.
– Vou levar o violino comigo – anunciou, quando saíram. – Esta noite
sinto-me com sorte.
Depois de um jantar de frango frito e batatas num restaurante próximo,
desceram a rua principal de Gas Town.
Segundo lhes tinham dito, Vancouver nascera ali. Em 1867, era apenas
um aglomerado de barracas de madeira e armazéns junto aos molhes até que
John Deighton, conhecido como Gassy Jack, chegara e abrira o primeiro
saloon. Os dignitários da cidade queriam chamar à área Granville, mas, para
os residentes, continuara a ser Gas Town.
Depois das pequenas e pacatas povoações por onde tinham passado nos
últimos meses, foi maravilhoso descobrir Gas Town estuante de actividade,
barulho e prazeres menos recomendáveis.
As pessoas saíam dos bares para a rua com as suas bebidas e havia
bancas a vender todo o género de comidas, desde batatas assadas e
cachorros-quentes a tigelas de noodles. A música vinha de uma dúzia de
fontes diferentes e grupos de marinheiros embriagados cambaleavam de um
lado para o outro, a cantar.
Havia angariadores a tentar arrastar os incautos para jogos de cartas em
ruelas esconsas e prostitutas sugestivamente encostadas aos umbrais das
portas. Mendigos, saltimbancos, artistas de rua e vendedores ambulantes
contribuíam para aumentar a confusão.
Jack fê-los parar num concorrido saloon na esquina de Water Street.
– Vamos chatear estes aqui – disse, com um sorriso. – Não há música,
de modo que talvez consigamos convencê-los de que é disso mesmo que estão
a precisar!
Enquanto esperava à porta com Theo que Jack e Sam fossem ao balcão
buscar bebidas, Beth reflectiu em como a dinâmica do grupo mudara desde
que tinham saído de Filadélfia. Até então, Theo fora o líder indisputado, por
força da sua personalidade e educação, e porque era ele que tinha o dinheiro.
Sam era o seu braço direito e o papel de Jack quase o de um criado.
Em Montreal, com a propensão de Theo para ausências mais ou menos
prolongadas, Jack e Sam tinham começado a tomar decisões sozinhos. Mesmo
assim, bastava a Theo estalar os dedos para que eles alinhassem com os seus
planos.
Fora de Montreal, tudo mudara; tanto Theo como Sam eram demasiado
refinados e citadinos para se sintonizarem com os duros e fortes agricultores,
lenhadores e operários que encontravam. Mas aqueles homens gostavam de
Jack, reconhecendo-o como um dos seus.
De repente, fora Jack a tomar as decisões, e a levar Theo e Sam
consigo. Em alguns dos trabalhos que tinham feito, não teriam durado um dia
se Jack não os tivesse ajudado e disfarçado as insuficiências de ambos. Sam
depressa começara a endurecer, e a orgulhar-se de aprender novas
competências e aguentar o ritmo de Jack e dos outros homens. Mas Theo era
como um peixe fora de água; não conseguia adaptar-se. Ia-se safando à custa
do seu encanto, e Beth ouvira muitas vezes os homens referirem-se a ele como
«o cavalheiro inglês».
Interrogou-se se ali, no género de meio onde se sentia à vontade, Theo
voltaria a assumir a liderança do grupo.
Jack e Sam voltaram com as bebidas, e vinham a sorrir rasgadamente.
– Perguntamos ao patrão se podias tocar – disse Sam –, e ele respondeu:
«Se se atrever.» Atreves-te, mana?
Beth pegou no copo de rum, olhou para o bar apinhado de gente e
despejou a bebida de um só trago.
– Tentem impedir-me – disse, com um grande sorriso. Theo
entregou-lhe o estojo do violino, e ela abriu-o e pegou no instrumento.
– Que parte do dinheiro temos de dar ao patrão? – perguntou.
– Ele não disse – respondeu Jack. – Acho que não acreditou que
houvesse dinheiro a receber. Eu passo o chapéu. É melhor darmos-lhe alguma
coisa, e talvez ele te ofereça um lugar permanente.
Theo viu Beth deslizar por entre a multidão até ao fundo do saloon, com
o violino debaixo do braço e o arco na outra mão. Parecia uma chama esbelta
com o seu vestido vermelho, e percebeu, pela maneira como ela mantinha as
costas direitas e os ombros puxados para trás, que estava decidida a ter êxito
naquela noite.
A dada altura desapareceu, e Theo sentiu uma súbita pontada de
ansiedade, mas logo a seguir viu-a erguer-se atrás dos corpulentos homens que
lhe tapavam a vista, e apercebeu-se de que tinha subido para cima de uma
mesa.
Beth prendeu firmemente o violino debaixo do queixo, passou o arco
pelas cordas e arrancou com «Kitty O’Neill».
Durante um longo momento, não houve reacção por parte dos
bebedores; estavam quase todos de costas para ela. Theo conteve a respiração,
mas, lentamente, os homens começaram a voltar-se, e os sorrisos de apreço
espalharam-se pelos rostos.
Theo viu como Beth estava sintonizada com o seu público. Sorria e
sacudia o cabelo, acelerando o ritmo à medida que lhes captava a atenção,
sabendo depois conservá-la.
Havia sobretudo estivadores e marinheiros, alguns já muito bêbedos,
mas começaram a bater com os pés no chão, sem desviarem os olhos dela,
levados pela música às praias distantes da sua imaginação.
– Está melhor do que nunca – murmurou Jack. – Olhem para a cara
dela!
Theo não via outra coisa. Nem os homens que dançavam sem saírem do
lugar em frente dela, nem as duas prostitutas que o miravam do canto, nem
sequer o copo de whisky que tinha na mão. Tinha visto aquela mesma
expressão de êxtase no rosto de Beth horas antes, quando faziam amor. Sentiu
que deveria ter ciúmes de uma música que significava tanto para ela, mas não
tinha. Pelo contrário, sentia-se maior e mais poderoso do que qualquer um dos
outros homens presentes naquele saloon porque ela era a sua rapariga.
Vinte minutos depois de Beth ter começado a tocar, as pessoas que
passavam na rua abriam caminho à cotovelada para entrar no bar, que ficou
cheio a deitar por fora.
– Nunca mais vão conseguir servi-los todos – disse Jack, empurrando
Sam. – Vamos até lá dar-lhes uma ajuda.
Mais uma vez, Theo pôde apreciar o sentido de oportunidade de Beth,
porque quando os rapazes chegaram ao balcão e ofereceram os seus serviços,
ela parou de tocar.
– Preciso de fazer uma pausa – gritou. – Vão buscar as vossas bebidas,
que eu já volto.
Naquela primeira noite, havia mais de trinta dólares no chapéu, e Oris
Beeking, o proprietário do Globe, concordou, encantado, que Beth tinha de
tocar lá quatro noites por semana. Além disso, contratou Sam e Jack como
barmen.
Vancouver convinha-lhes de todas as maneiras. As pessoas eram muito
menos rígidas do que no resto do Canadá porque se tratava ainda, de certa
maneira, de uma cidade de fronteira. Era bom poder caminhar ao longo da
praia nos dias de sol, conversar com pescadores e marinheiros e sentir que
aquele era o seu lugar. Sam e Jack encontraram duas vistosas raparigas de que
gostaram. Theo participou em alguns jogos de póquer e aos domingos à noite,
quando se reuniam todos em casa, faziam planos para o seu futuro saloon, um
lugar onde haveria jogo, música e bailarinas.
Depois da incerteza e do desconforto que tinham experimentado nas
suas viagens, sentiam-se os quatro felizes por terem assentado mais uma vez.
Não se voltou a falar de seguir em frente, só de arranjar uma casa um pouco
maior onde viver.
A 16 de Julho, Beth foi à estação de correios mandar uma carta para
Molly e os Langworthy. Tinha escrito para Inglaterra de quase todas as
povoações onde tinham parado, e agora estava ansiosa por indicar-lhes uma
morada para onde poderiam escrever.
Havia um grande grupo de homens à porta dos correios e, de início,
Beth pensou que iam começar a lutar, porque andavam de um lado para o
outro, a gritar e a agitar os braços. Mas, ao aproximar-se, percebeu que não era
a fúria que provocava toda aquela excitação. Dois dos homens eram
estivadores que conhecia do Globe, e calculou que os outros acabassem de
desembarcar de um navio.
– Que se passa? – perguntou, quando um dos homens que conhecia lhe
sorriu e lhe acenou com a mão.
– Ouro! – respondeu ele, com os olhos a brilhar. – Encontraram ouro no
Alasca. Toneladas dele.
Estamos a planear ir para lá no próximo navio.
Beth riu. Tudo aquilo parecia uma invenção disparatada. Tanto quanto
soubesse, um espesso manto de neve cobria o Alasca durante o ano inteiro e as
únicas pessoas que lá viviam eram os caçadores de peles.
Mandou a carta, comprou pão, carne e legumes e regressou a casa. Mas,
ao passar pelo quiosque, viu o cabeçalho «Tonelada de Ouro!» na primeira
página de um jornal, juntamente com a fotografia de um navio acostado no
porto de São Francisco, onde se dizia que estava a tal tonelada de ouro.
Pegou no jornal e ficou a saber que, em Agosto do ano anterior, um
homem chamado George Carmack e os seus dois cunhados, Tagish Charlie e
Skookum Jim, tinham encontrado ouro em Rabbit Creek, um dos afluentes do
rio Klondike, no vale do Yukon. Carmack encontrara o ouro entre grandes
lascas de rocha, «como queijo numa sanduíche».
Desde então, ao que se dizia, os prospectores tinham invadido a área e
demarcado as suas parcelas, e tinham sido feitas fortunas da noite para o dia,
mas só agora o mundo soubera do caso, porque uma vez instalado o Inverno
no Yukon, ninguém podia de lá sair.
Beth estava apenas moderadamente interessada, mas continuou a ler
enquanto caminhava pela rua e, de repente, começou a ouvir as palavras
«Ouro do Klondike» vindas de todo o lado.
Os rapazes acabavam de acordar quando chegou a casa, mas quando
lhes disse o que tinha visto e ouvido na rua, e lhes entregou o jornal, os olhos
deles iluminaram-se.
– Onde fica exactamente o Klondike? – perguntou Jack. – É no Alasca?
– Chamam-lhe o Yukon, no jornal, e penso que faz parte do Canadá –
respondeu Theo, começando a revolver a mala à procura de um mapa da
América do Norte. Afastou para um lado as chávenas e os pratos e abriu-o em
cima da mesa. – É aqui – continuou, apontando uma área a norte de
Vancouver, entalada atrás do Alasca. – Podíamos ir para lá.
– Oh, não – disse Beth, num tom definitivo. – Disselhes, quando viemos
para aqui, que se tivéssemos de viajar outra vez seria para sul, onde está calor.
Não vou embarcar numa aventura de loucos para um lugar que fica gelado
durante todo o ano.
– Mas podemos ficar milionários – exclamou Sam, com a voz a tremer
de excitação.
– Podemos é morrer de frio e fome, quase de certeza – argumentou
Beth. – Não te lembras do que aprendemos na escola a respeito da Corrida ao
Ouro em 49? Só umas poucas pessoas encontraram alguma coisa que se visse.
E lembras-te do que a Pearl me disse? Ela esteve lá, mas fez fortuna a
cozinhar para os prospectores.
– É exactamente por isso que devemos ir – disse Theo, os olhos a
brilhar. – É o lugar ideal para montar uma casa de jogo!
– Vê se lhes metes um pouco de juízo na cabeça – pediu Beth,
dirigindo-se a Jack. – Isto é uma perfeita loucura, gostamos de estar aqui,
estamos a governar-nos bem. É uma estupidez deitar tudo a perder como todos
esses outros idiotas que vão para lá de olhos fechados.
– Penso que primeiro temos de saber muito mais a esse respeito – disse
Jack, sem a apoiar a ela nem a Theo e Sam. – Discretamente, calmamente e
usando a cabeça.
Era impossível ser calmo e discreto naquele dia, porque a notícia da
descoberta do ouro, como uma doença infecciosa, alastrara pela cidade e
contagiara toda a gente. À tarde, as pessoas faziam fila para comprar
passagem no primeiro navio que partisse para Skagway, no Alasca, a cidade
que se dizia ficar mais perto das jazidas auríferas.
Os lojistas galvanizaram-se, colocando nas montras grandes cartazes a
dizer «Compre aqui o seu equipamento». Trenós que tinham recolhido aos
armazéns para o Verão voltaram inesperadamente a ser postos em exibição.
Tendas, casacos e botas forrados a pele, impermeáveis e galochas formavam
convidativos montes. As lojas de panos ostentavam à porta ardósias com a
lista dos artigos que os proprietários tinham em stock que era possível comprar
por grosso.
Theo e Sam brilhavam de entusiasmo e até Beth sentiu que o coração
lhe batia um pouco mais depressa, mas Jack mantinha-se estranhamente
silencioso. Saiu para ir falar com Foggy, um velho que ia ao saloon quase
todas as noites e que ele sabia ter sido caçador de peles no Alasca, quando era
mais novo. Quando voltou, um par de horas mais tarde, para se lavar e fazer a
barba antes de ir para o trabalho, Theo e Sam perguntaram-lhe o que tinha
descoberto, mas ele disse que lhes contaria tudo de manhã.
Naquela noite, o ouro foi o único tema de conversa no saloon. E os
veteranos, os que tinham prospectado na Califórnia em 49, foram o centro de
todas as atenções. Os que sabiam de cães e trenós tiveram direito a bebidas
grátis, e qualquer homem que tivesse navegado pela Passagem Interior até ao
Alasca podia discursar e ser ouvido.
– Estudei o mapa e falei com o velho Foggy – disse Jack, na manhã
seguinte. – Fiz uma lista do que ele acha que vamos precisar.
Theo pegou na comprida lista e riu à gargalhada.
– Não precisamos de tudo isto! Uma tenda, mantas, roupas quentes e
alguma comida será o suficiente. Picaretas de gelo, serras, pregos! Para que é
que precisamos disso?
– O Klondike fica a mil e cem ou mil e trezentos quilómetros de
Skagway – explicou Jack, calmamente. – Primeiro vamos ter de escalar
montanhas, e depois vamos ter de construir um barco para fazer o resto do
percurso. Vamos atravessar uma área completamente selvagem, não vai haver
lojas onde comprar coisas.
– Posso caçar – disse Theo, mas a sua voz soou muito menos confiante.
– Vai ser duro. – Jack olhou para Sam, depois para Beth e de novo para
Theo. – Somos gente da cidade, e se não formos preparados vamos morrer
pelo caminho, de frio ou de fome.
– As pessoas que encontrarmos vão ajudar-nos, não vão? – perguntou
Sam, com um tremor na voz.
– Não podemos contar com nada nem com ninguém – respondeu Jack,
sobriamente. – Viste a loucura que foi ontem à noite. Dentro de uma semana,
quando a notícia se espalhar mais, vai ser ainda pior, vai haver pessoas a
correr para lá vindas de todo o lado. Temos de reservar passagens num navio
para Skagway o mais rapidamente possível… isto se quiserem ir, claro.
– Tu queres ir, Jack? – perguntou Beth. Tinha uma sensação esquisita
no estômago, mas se era medo ou excitação não saberia dizer.
– Sim, quero, mais do que qualquer outra coisa – disse ele, sorrindo-lhe.
– É a oportunidade de uma vida e não vou deixá-la escapar.
CAPÍTULO 25
Jack não se enganara. Uma semana mais tarde, Gas Town tinha sido
tomada por uma autêntica onda de loucura. A Corrida ao Ouro do Klondike
estava lançada.
Os jornais de todo o mundo tinham espalhado a notícia, e cada comboio
que chegava a Vancouver trazia mais centenas de pessoas desejosas de partir
para o Yukon. Invadiram Gas Town, trazendo consigo o caos, acotovelando-se
e empurrando-se para comprar equipamento, provisões e passagem em
qualquer barco que as levasse até Skagway. Mesmo assim, a situação foi
muito menos frenética do que em Seattle, e havia também vapores a partir de
Victoria, Portland e São Francisco carregados de passageiros.
Beth e os rapazes ficaram espantados pela rapidez com que os
empreendedores comerciantes de Vancouver juntaram montes de equipamento
e provisões para vender a todos aqueles candidatos a prospectores. Grandes
faixas atravessadas nas fachadas das lojas de Cordova Street anunciavam
«Equipamento para o Klondike». Anunciava-se cães de trenó por preços
exorbitantes, pequenos livros que continham a lista de tudo o que seria preciso
para a viagem eram impressos e vendidos antes que a tinta tivesse tempo de
secar. A febre do ouro era, ao que parecia, altamente contagiosa: bancários
abandonavam os seus bons empregos; condutores de autocarros abandonavam
os seus veículos, houve até alguns agricultores que deixaram as searas nos
campos sem as colherem.
Não havia outro tema de conversa. Era como se as pessoas tivessem
deixado de estar doentes, de ter filhos, de casar ou de morrer. Velhos e novos,
ricos e pobres, fosse qual fosse a sua nacionalidade, todos queriam juntar-se à
corrida.
Os ricos chegariam ao Yukon num relativo conforto, viajando de vapor
até St. Michael, no mar de Bering, e descendo depois o Yukon até aos campos
auríferos, mas a viagem era muito mais longa do que fazendo o caminho por
terra, a partir de Skagway. Edmonton era anunciada como a Rota Canadiana
para os patriotas, mas Jack, que estudara os mapas, declarou-a impossível,
porque significava atravessar duas cadeias de montanhas.
Foi Jack quem comprou os bilhetes para o vapor, e poderiam tê-los
revendido logo a seguir por quatro ou cinco vezes o preço original. Correu
palavra de que a polícia montada canadiana não permitiria a travessia da
fronteira entre o Alasca e o Canadá a quem não levasse consigo uma tonelada
de provisões. Isto por receio de uma fome generalizada.
Jack e Sam correram de um lado para o outro, a reunir provisões: blocos
de carne, arroz, açúcar, café e ovos desidratados. Uma tenda, casacos de pele,
chapéus de aba larga, botas altas, luvas, óculos para impedir a cegueira pela
neve… a lista era interminável, e gastaram todo o dinheiro que tinham tão
esforçadamente poupado ao longo dos últimos meses. Mas Theo arranjou
maneira de manter o afluxo de fundos, movendo-se por entre os
recém-chegados com o jogo-da-vermelhinha e aliviando-os de algumas das
suas poupanças.
Enquanto os dias passavam num frenesim de comprar e embalar as
provisões em sacos de lona impermeável, Beth tocava violino, era aplaudida
em delírio e acabava a noite com um chapéu cheio de dinheiro. Sam e Jack
serviam bebidas suficientes para pôr a flutuar vários navios e Theo jogava
póquer e ganhava.
Finalmente, a 15 de Agosto, embarcaram no Albany, um decrépito
vapor que, mesmo pelos padrões menos exigentes, poucos considerariam em
condições de navegar. Jack tinha reservado um camarote, mas quando
chegaram a bordo foi-lhes dito que a maior parte dos camarotes tinha sido
desmantelada para arranjar espaço para mais passageiros e mais carga.
Não tiveram alternativa senão aceitar, uma vez que se tornou claro que
seriam corridos caso se queixassem, de modo que encontraram um pequeno
espaço no convés e instalaram-se rodeados das suas provisões.
Quando o vapor zarpou de Vancouver, juntamente com uma flotilha de
outras embarcações, todos os passageiros estavam delirantes de excitação.
Mesmo que houvesse espaço para se deitarem, era duvidoso que alguém
tivesse dormido.
Só quando o barco entrou na Passagem Interior do Alasca, com a
estonteante beleza das suas paisagens de florestas virgens, montanhas
toucadas de neve e fiordes envoltos em bruma, se aperceberam do que os
esperava.
Por mais maravilhoso que fosse o que viam para lá da amurada do
barco, a sensação era completamente arruinada pelo cheiro a carvão, estrume
de cavalo, vomitado e suor que os rodeava.
As matilhas de cães uivavam sem parar, os cavalos relinchavam e
escouceavam, e o barco estava tão apinhado que não se atreviam a abandonar
o minúsculo espaço que tinham no convés, com receio de o perder. Encolhidos
debaixo de uma lona para se protegerem do frio cortante e da chuva torrencial,
aperceberam-se de que o desconforto que sentiam naquele momento só podia
piorar antes de chegarem aos campos auríferos.
A maior parte dos outros passageiros não tivera o mesmo cuidado que
Jack em descobrir onde ficava exactamente o Klondike e pensava que o ouro
se encontrava à distância de um curto passeio de Skagway. Poucos sabiam que
havia montanhas a escalar, e que seria preciso um barco para percorrer os
últimos oitocentos quilómetros.
Algumas pessoas tinham sido convencidas a comprar coisas ridículas,
como bicicletas montadas sobre esquis, ou engenhocas mecânicas para
peneirar ouro que nunca funcionariam. Outras levavam madeira suficiente
para construir uma cabana, pianos ou fogões de ferro forjado, mas não tinham
pensado em como transportar estas coisas até ao outro lado de uma montanha.
No entanto, apesar das terríveis condições a bordo – esperar sete horas
por uma refeição tão horrível que era quase intragável, inexistência de um
sítio onde se lavarem e latrinas que faziam o estômago de Beth revoltar-se –,
os quatro mantiveram-se animados, porque o ambiente era de festa, toda
aquela gente tão excitada como crianças a caminho de uma feira.
Era divertido observar a enorme variedade de pessoas. Cavalheiros
elegantemente vestidos eram obrigados a partilhar o espaço com rudes
marinheiros e lenhadores; havia mulheres garridamente vestidas e de rostos
pintados, veteranos de outras corridas ao ouro, sacerdotes que pareciam
animados por um espírito de missão. A vasta maioria era constituída por
americanos e canadianos, mas havia alemães, suecos, húngaros, mexicanos e
até japoneses. O que os unia a todos era o sonho de voltarem a casa ricos.
Quando falavam de ouro, os olhos deles brilhavam, e recusavam permitir que
a sua excitação fosse diluída por um mero desconforto.
– Devemos chegar a Skagway amanhã – disse Jack, quando voltou a
enfiar-se debaixo da lona ao cabo de uma ausência de duas horas. Era o nono
dia de viagem e estavam no deslumbrante Lynn Canal, que desembocava nas
praias de Skagway e Dyea. Altos paredões de rocha quase a pique erguiam-se
da água azul-turquesa, esmagando com a sua majestade o extravagante
comboio de embarcações que navegava pelo estreito corredor. – Estive a falar
com um dos membros da tripulação que já cá esteve. Disseme que só há um
pequeno atracadouro, de modo que vamos ter de ir a pé até terra com o nosso
material. Ainda bem que já temos vestidas as nossas roupas mais velhas!
– Bem estão a precisar de uma lavagem – riu Beth, pois não mudavam
de roupa desde que tinham embarcado. – Mas a água não vai estragar a
comida seca?
– Tenho mais medo de que nos roubem as nossas coisas – respondeu
Jack, de sobrolho franzido. – Aposto que o que não vai faltar é ladrões à
espera. Primeiro, ponho-te a ti em terra, Beth, enquanto o Theo e o Sam ficam
de guarda, e depois levamos-te o material pouco a pouco.
– Não podemos pagar a um marinheiro para que nos leve numa
chalupa? – perguntou Theo.
Beth e Jack trocaram um sorriso divertido. Theo achava sempre que
podia pagar a alguém para fazer qualquer coisa que ele achasse desagradável.
– A maior parte vai abandonar o navio – respondeu Jack. – Acho que, a
partir de agora, vai ser cada um por si.
Mais uma vez, a informação de Jack revelou-se correcta, pois quando
ouviram o ranger das correntes e o bater da âncora na água, a linha de costa
estava ainda a quilómetro e meio de distância.
– Com certeza não estão à espera que nademos até terra! – exclamou,
alarmada, uma gorda matrona.
Havia alguns escaleres dos outros barcos a transportar pessoas e
equipamento para terra, mas demoraria semanas a desembarcar toda a gente
daquela maneira. Os membros da tripulação já estavam a gritar que aquilo era
a baixa-mar e que se as pessoas não se despachassem a chegar a terra,
arriscavam-se a perder o que tinham e, talvez, também a vida.
Os aterrorizados cavalos e outros animais foram empurrados sem
cerimónias para a água, para que nadassem até terra, e as pessoas
seguiram-nos, saltando para o mar.
Jack enfiou o casaco, as botas e o xaile de Beth num saco de oleado e
encaminhou-a para a escada do portaló. A água estava tão gelada que ela ficou
sem respiração por um instante, mas Jack abraçou-a, exortou-a a manter o
saco erguido acima da cabeça para o manter seco e nadou de costas os poucos
metros necessários para que ela pudesse encontrar pé e caminhar até à praia.
– Não é um bom começo – disse Beth, com os dentes a bater.
– O sol está quente, daqui a pouco estás seca – respondeu ele,
alegremente. – Vai até à praia e arranja um lugar para as nossas coisas. Vou
voltar ao barco.
Uma vez em terra, Beth estudou com excitação o cenário que tinha à
sua frente. Skagway não passava de um aglomerado de barracas de madeira e
tendas no meio de um pântano de lama preta escorregadia. A toda a volta
havia montanhas, algumas ainda toucadas de neve, mas ainda mais
descoroçoante era o espectáculo que se desenrolava atrás dela.
Havia pelo menos trinta barcos ancorados, todos a tentar desembarcar
passageiros e carga o mais depressa possível. O mar estava cheio de cavalos,
cabras, cães, mulas e bois a nadar para terra, com os respectivos donos a
esforçarem-se por acompanhá-los.
O barulho era ensurdecedor. Os proprietários de dezenas de pequenos
barcos a remos e primitivas jangadas ofereciam os seus serviços gritando a
plenos pulmões. Os passageiros dos vapores respondiam ainda mais
estridentemente. Quando os bens atirados das amuradas falhavam os alvos e
caíam no mar, os donos gritavam e praguejavam. Os animais expressavam o
seu medo com guinchos, relinchos e latidos. Havia gritos de socorro dos que
estavam a afogar-se na água gelada. Alguns fardos tinham-se rasgado, e Beth
viu um saco de farinha branquear o mar à sua volta.
Alguém gritou que a maré estava a virar e que era melhor
apressarem-se. O medo pela sorte dos rapazes fez com que as roupas
molhadas perdessem repentinamente toda a importância. Sam não sabia nadar,
Theo talvez também não soubesse, e o Albany estava demasiado longe para
que conseguisse avistá-los no convés.
Despiu os saiotes, prendeu-os com seixos para que secassem ao vento e
voltou a calçar as botas.
Decidiu não vestir o casaco enquanto o vestido não secasse.
A ansiedade que a dominava continuou a aumentar à medida que a maré
subia e via mais pessoas a esbracejar na água e mais fardos se rasgavam,
derramando o respectivo conteúdo. O vestido estava agora quase seco, o que
significava que devia ter passado cerca de uma hora, mas continuava a não ver
sinal dos rapazes.
Quando estava à beira do pânico, avistou subitamente Jack na água
baixa. Arrastava atrás de si o que parecia ser uma enfiada de grandes salsichas
pretas.
Já não era a primeira vez desde que tinham saído de Montreal que
ficava impressionada pelo engenho dele: tinha amarrado a uma corda todos os
fardos de oleado que continham os pertences do grupo. Quando voltou a olhar,
viu Sam agarrado a um dos fardos, e Theo a fechar a retaguarda.
– Quem te dera que não tivéssemos vindo, não é verdade, Beth? –
perguntou Jack, mais tarde nessa noite.
– Não – mentiu ela. – Mas é tudo um pouco assustador, muito diferente
do que tínhamos imaginado.
Eram oito da noite. Enxames de homens que pouco mais eram que
bandidos dispostos a roubar os ingénuos tinham-se abatido sobre eles, a tentar
persuadi-los a pagar por um espaço para montar a tenda, por lenha para fazer
uma fogueira e por uma infinidade de outras coisas.
Os rapazes tinham-se mantido firmes e recusado pagar fosse o que
fosse, acabando por montar a tenda, entre centenas de outras, a cerca de
oitocentos metros das barracas de Skagway. Dispuseram os fardos à volta,
para acrescentar peso e algum isolamento contra os ventos do Outono, e Jack
acendeu uma boa fogueira para lhes secar as roupas e cozinhar.
Beth estava recostada contra um dos fardos, embrulhada numa manta e
a esforçar-se muito por não ceder ao mais absoluto desânimo.
Sam adormecera e Theo fora verificar o que a povoação tinha para
oferecer. Se, como lhes tinham dito, Skagway era um lugar sem lei, dominado
por bandidos, vigaristas, jogadores e prostitutas, Beth calculava que não
voltaria tão cedo.
Já era suficientemente mau descobrir que tinham ido parar a um sítio
cheio de patifes e ladrões, mas ainda pior foi saberem que teriam de ficar ali
pelo menos até Fevereiro.
Havia dois caminhos que atravessavam as montanhas. White Pass, que
começava ali em Skagway, era supostamente o mais fácil, em que se podia
usar animais de carga, mas era mais longo do que Chilkoot Trail, que
começava em Dyea, a um pouco mais de trinta quilómetros de distância.
Havia, naquele preciso instante, pessoas a seguir por qualquer deles,
mas Jack falara com um índio que trabalhava como carregador, ajudando as
pessoas a transportar as suas coisas até ao outro lado das montanhas, e que lhe
dissera que seria loucura imitá-las. Conforme explicara, o rio Yukon gelaria
no mês seguinte, muito antes de conseguirem lá chegar, e, sem uma equipa de
cães capazes de puxar um trenó, ficariam encurralados nas montanhas durante
todo o Inverno, o que poderia significar a morte.
Jack ficara desapontado, ao contrário de Theo, a quem a necessidade de
se demorarem ali até Fevereiro parecera providencial. Via Skagway como a
boomtown que há muito procurava, madura para ser explorada. Sem ponta de
vergonha, fizera notar que todos a bordo do barco eram jogadores, na medida
em que tinham abandonado as suas casas e empregos para ir até ali, e portanto
não mereciam mais do que ser esfolados.
Sam parecera não querer saber se iam ou ficavam, e os três tinham
empurrado para Beth a responsabilidade de tomar a decisão final. Embora
achasse que Skagway era o Inferno na Terra, a perspectiva de morrer gelada
nas montanhas era ainda mais terrível, de modo que optara por ficarem.
– Não vai ser assim tão mau como agora te parece – disse Jack,
tranquilizadoramente. – Vou construir uma cabana. O que não falta é madeira.
Talvez quando acabar a nossa possa ganhar alguns dólares a construí-las para
outras pessoas.
– Nesse caso, amanhã pego no meu violino – disse Beth. Fora um
enorme alívio verificar que escapara incólume à travessia até terra. A farinha
ficara húmida, o açúcar também, mas, felizmente, não houvera outros
estragos. – Vai custar-nos uma fortuna ficar aqui. Já viste o preço de uma
refeição?
Já havia tendas abertas como saloons e restaurantes. Beth vira a ementa
pregada à entrada de uma delas, a oferecer feijão com bacon por um dólar. Em
Vancouver, custaria apenas alguns cêntimos.
Jack assentiu.
– E o Theo vai ter um choque quando vir o preço do whisky. Mas tu
deves conseguir ganhar algum dinheiro com esse monte de fitas que trouxeste.
Algumas das raparigas dos saloons têm todo o ar de quem precisa de alguma
coisa que lhes dê graça.
– Já foste então vê-las?
– Oh, sim, são um triste espectáculo. – Jack riu. – Uma delas é
conhecida como Mary Pescoço-Sujo e outra como Sal Cara-de-Porco! Um
homem teria de estar muito desesperado para ir com qualquer uma delas.
– Então talvez o Theo esteja a salvo aqui – disse Beth, com um sorriso.
– Acho que tu é que és capaz de te deixar seduzir. – Jack arqueou as
sobrancelhas. – Com menos de trinta mulheres para cerca de dois mil homens,
e mais a chegar todos os dias, és o grande prémio.
– A tocar aqui esta noite! A Mundialmente Famosa Rainha Cigana
Inglesa!
Beth riu quando viu o cartaz que os irmãos Clancy tinham afixado. Para
ela, era um exagero tão grande como os Clancy chamarem saloon à grande
tenda que ficava atrás do cartaz.
No seu segundo dia na povoação, Beth ficara a saber que os irmãos
Frank e John Clancy eram os homens mais importantes de Skagway e dirigiam
tudo a partir do seu saloon, de modo que fora ter directamente com eles.
Consciente de que não tinha concorrência, uma vez que era a única
violinista num raio de milhares de quilómetros, e que eles cobravam preços
exorbitantes pelas bebidas que vendiam, tivera a ousadia de pedir vinte e cinco
dólares por noite, mais o que fosse para o chapéu. Esperara que eles
concordassem apenas com a receita do chapéu, mas, para seu grande espanto,
tinham aceitado sem pestanejar o pagamento nocturno.
A primeira noite foi um êxito retumbante, com mais de cinquenta
dólares no chapéu, dez dos quais ela deu ao barman para o manter dócil.
Como Theo não tinha aparecido para a acompanhar de regresso à tenda,
quando os irmãos Clancy, dois homens entroncados, de cabelo escuro e
grandes bigodes, a convidaram para ficar e tomar uma bebida com eles, Beth
aceitou.
Frank Clancy apresentou-a a um homem alto e elegantemente vestido,
com uma densa barba escura e um stetson preto na cabeça.
– Mr. Jefferson Smith, mais vulgarmente conhecido como «Soapy» –
disse.
– E eu sou também conhecida como Beth Bolton – respondeu ela,
incapaz de resistir ao impulso de abanar as pestanas, porque ele era um
homem bastante atraente, com olhos cinzento-escuros no fundo de umas
órbitas encovadas. – Mas porquê Soapy? É porque nunca se lava, ou porque o
faz em excesso?
– Qual das duas coisas preferiria, minha senhora? – perguntou ele,
pegando-lhe na mão para a beijar.
Beth riu, porque o homem tinha um sotaque do Sul Profundo tão
atraente como ele próprio.
– Algures no meio – disse. – Mas Skagway tem tão poucos confortos
que acho que vou ter de habituar-me a pessoas pouco amigas do sabão.
Estava a desesperar ter de aguentar Skagway até Fevereiro. O mar de
lama, o barulho constante do ladrar dos cães e das lutas, os ladrões e vigaristas
sempre à espera de uma oportunidade de esfolar qualquer incauto e a ausência
de até os mais elementares confortos tornavam o lugar definitivamente
inóspito.
– Ah, mas eu tenho planos – disse Smith, sorrindo da graça dela. – Para
ruas decentes, um hotel, lojas, iluminação, um balneário e até uma igreja.
– Ah, tem? – perguntou ela. – É então o mayor de Skagway?
– Uma coisa no género – disse ele, e a confiança com que o fez
confirmou a Beth que aquele homem estava decidido a controlar a povoação.
Conversaram durante algum tempo, sobretudo a respeito da recente
chegada dela. O próprio Smith chegara apenas uma semana antes e fizera uma
sociedade com os irmãos Clancy.
– O conde Cadogan é seu marido? – perguntou ele.
O título apanhou Beth de surpresa. Fingia ser casada com Theo desde
que tinham chegado a Montreal, mas agora que ele se atribuíra um título, não
sabia se isso fazia dela Lady Cadogan ou condessa. Incapaz de mentir a tão
grande escala, disse que era apenas um bom amigo e que estava com o irmão e
outro velho amigo, Jack Child.
– O londrino? – disse Smith. – Conheci-o esta tarde, e pareceu-me um
homem muito capaz. Tem então protecção suficiente?
– Acha que vou precisar, senhor? – perguntou, provocante.
– Todas as senhoras precisam de protecção, mas uma tão bonita e
encantadora neste lugar miserável vai precisar dela de dia e de noite.
Nessa altura, Sam e Jack apareceram e escoltaram-na de regresso à
tenda. Tinham estado com o capitão Moore, dono de uma serração, e Jack
comprara madeira suficiente para construir uma cabana.
– Sabiam que o Theo anda a dizer às pessoas que é conde? – disse Beth,
enquanto avançavam cuidadosamente por entre as fundas poças de lama.
– Já em Montreal fazia o mesmo – confessou Sam. – Não tem
importância, mana, é só para olear as engrenagens. Os Americanos
impressionam-se com essas coisas.
– Bem, acaba de perder uma esposa – disse ela, secamente. – Mas a
verdade é que calculo que isso não lhe importe muito.
Houve, nas semanas que se seguiram, ocasiões em que Beth se sentiu
tentada a embarcar no primeiro barco de regresso a Vancouver, nem que isso
significasse ir sozinha. Acordava de manhã rígida de frio, e a perspectiva de
mais um dia a patinhar na lama, a cozinhar numa fogueira, sem privacidade
nem paz, parecia-lhe impossível de aguentar.
Todos os dias chegavam novos navios que despejavam na praia mais
centenas de pessoas, cavalos, cães e outros animais. As filas de tendas
estendiam-se cada vez mais longe, mais e mais árvores eram abatidas, mais
lama e imundície eram criadas.
Os preços ridiculamente altos dos produtos mais básicos faziam-na
temer que todo o dinheiro que ganhava no Clancy’s fosse sugado ainda antes
que se pusessem a caminho dos campos auríferos.
Ratazanas, ladrões e ursos estragavam ou roubavam as provisões; a
doença grassava devido às condições insalubres em que todos viviam e quase
não se passava uma noite sem que rebentasse um tiroteio ou uma zaragata.
Sentiu-se mais segura depois de Jack e Sam terem acabado de construir
a cabana, porque, apesar de pequena, oferecia protecção contra os elementos
naturais, tinha um chão de madeira e uma fechadura na porta. Jack apareceu
um dia a cambalear sob o peso de um fogão de ferro que um louco qualquer
tencionara levar pelo trilho de montanha, e Sam arranjou-lhe uma celha de
banho.
Tocar todas as noites no Clancy’s levantava-lhe o moral, e à medida que
via a povoação melhorar quase de dia para dia, com ruas traçadas e muitos
novos edifícios permanentes, começou a alimentar a esperança de que, pelo
Natal, o lugar estivesse mais civilizado. O Clancy’s era agora de madeira, e
havia um hotel, vários outros saloons mais elegantes, a maior parte com
bordéis no primeiro piso, lojas a sério e um passeio sobrelevado por onde as
pessoas podiam caminhar sem se atascarem na lama. Havia até um fotógrafo,
que abrira um estúdio.
Havia muitos motivos para optimismo relativamente à povoação, mas
Beth estava muito infeliz com o comportamento de Theo. Tinha encontrado a
boomtown dos seus sonhos e, de repente, nada mais importava para ele além
de ganhar dinheiro.
Skagway atraíra centenas de homens como ele. Soapy Smith e os
irmãos Clancy eram iguais; sabiam que não precisavam de ir para o Klondike
para fazer fortuna. Podiam consegui-lo ali mesmo. Soapy tinha agora o seu
próprio saloon, conhecido como Jeff Smith’s Parlour, com palmeiras
envasadas e um balcão de mogno importado de Portland. Tanto ele como os
Clancy tinham, nas traseiras dos respectivos bares, uma porta que dava para
uma série de cubículos onde as raparigas trabalhavam.
Controlavam todos os negócios da cidade, e mandavam os seus
sequazes aterrorizar quem recusasse pagar para ser «protegido».
Mas aqueles homens tratavam Beth como uma senhora. Ninguém em
Skagway ousaria roubá-la ou insultá-la, porque tinha a protecção deles. Theo,
porém, usava-a como se ela fosse a sua governanta e prostituta particular.
Beth não conseguia evitar gostar de Soapy, apesar de saber que metade
dos vigaristas e rufiões da povoação estavam a soldo dele. Soapy namoriscava
com ela, fazia-a rir, animava-a quando se sentia em baixo. Ganhara o nome
porque em tempos praticara um conto de vigário em que vendia sabões que
supostamente tinham, numa determinada percentagem, notas de dez dólares
escondidas no invólucro. Juntava uma multidão à volta da sua banca e vendia
um sabão marcado a um cúmplice, que imediatamente anunciava ter
encontrado uma nota. A partir desse momento, toda a gente queria comprar os
sabões, mas claro que não havia mais notas de dez dólares.
Ali em Skagway, o truque era o telégrafo. Não havia linhas telegráficas
no Alasca, mas ele montara, junto à praia, uma pequena barraca com um cabo
que desaparecia no mar, para dar uma ilusão de realidade. Cobrava vários
dólares às pessoas que queriam enviar mensagens para casa, e chegava a
falsificar respostas de uma esposa ou de uma mãe a pedir dinheiro para um
filho ou outra pessoa da família que estivesse doente.
Beth achava isto miserável, tal como a aldrabice do sabão, mas Soapy
compensava esta maldade alimentando os cães vadios da cidade, e ajudava os
que nada tinham, os doentes e as viúvas.
Theo parecia já não ter um lado bom. Fingia ser um conde e, graças ao
seu encanto, conseguia que as pessoas confiassem nele, roubando quem quer
que se sentasse à sua frente numa mesa de jogo.
Beth sabia que ele fazia batota, mas era suficientemente esperto para só
o fazer com os mais inexperientes. Certa manhã, Beth vira um homem a
chorar enquanto tentava vender o seu equipamento para comprar uma
passagem de regresso a casa. Na noite anterior, Theo ficara-lhe com o dinheiro
todo, até ao último cêntimo.
Mas não eram só o jogo e o facto de enganar as pessoas que a
incomodavam, era também o facto de parecer ter-se esquecido que eram
supostamente uma equipa de quatro. Sam e Jack tinham trabalhado duramente
desde o primeiro dia, na serração e a construir a cabana para os quatro. Agora,
construíam cabanas para outras pessoas. Beth contribuía com a sua parte
tocando à noite, cozinhando para todos e lavando a roupa.
Mas Theo não fazia nada pelo bem comum. Passava a maior parte do
dia na cama, e depois exigia uma camisa lavada para poder aparecer em estilo
na baiuca onde esperasse encontrar um novo papalvo para esfolar. Raramente
ia ao Clancy’s ouvi-la tocar e deixava a Sam ou a Jack o cuidado de a
acompanhar a casa. As fitas que ela tinha levado desapareceram, e então uma
noite Beth viu Mary Pescoço-Sujo com as verdes nos cabelos.
O pior de tudo, para ela, era, porém, ter a certeza de que ele fornecia
raparigas para os bordéis. A primeira vez que o vira carregar as malas de um
par de raparigas acabadas de desembarcar pensara que estava apenas a ser
cavalheiro. Mas, nessa noite, vira as raparigas no recém-construído Red Onion
Saloon, e era evidente pelos rostos pintados delas que se tinham juntado às
prostitutas que trabalhavam no primeiro piso.
Todos os dias os barcos traziam duas dúzias de raparigas novas entre os
seus passageiros, e era possível que algumas delas já fossem prostitutas nos
lugares de onde vinham. Mas não todas…
algumas eram apenas raparigas do campo em busca de um pouco de
aventura. Theo ia esperar todos os navios, e era sempre às raparigas mais
bonitas que se dirigia para lhes oferecer ajuda e um lugar onde viver.
Parecia já não amar Beth, e ter esquecido todos os planos que os quatro
tinham feito em Vancouver.
CAPÍTULO 26
–Tem verdadeiramente alma de cigana – murmurou Jefferson enquanto
levava a mão de Beth aos lábios. – Era capaz de ficar ouvi-la tocar para
sempre e nunca me cansar.
– Havia de cansar-se, sim – disse ela com um sorriso, pegando na taça
de champanhe francês que ele acabava de servir-lhe.
Janeiro chegava ao fim e, lá fora, um espesso manto de neve cobria
tudo, mas eles estavam no Jeff Smith’s Parlour, o bar e a sala de jogo que ele
reservava para os que faziam parte do seu círculo mais íntimo. O fogão estava
aceso, Beth estava um pouco inebriada e era bom ter um homem atraente a
tentar seduzi-la.
Desde Dezembro que Jefferson a cortejava. Oferecera-lhe uma cadeira
de balouço para a cabana, comprava-lhe doces e estava constantemente a
convidá-la para uma bebida ou uma refeição. Mas aquela era a primeira vez
que estava completamente sozinha com ele; geralmente, quando a levava para
o saloon, a maior parte dos amigos dele também lá estava.
Eles tinham lá estado, mas haviam dispersado há já algum tempo, e até
Nate Pollack, o barman, se fora embora, depois de pôr mais alguns toros no
fogão.
– Continua a planear ir à procura de ouro para o mês que vem? –
perguntou ele, pegando-lhe numa madeixa de cabelo e enrolando-a à volta do
dedo.
– O Sam e o Jack estão ansiosos por ir, de modo que acho que vou com
eles.
– Não é viagem para uma senhora – disse ele, abanando a cabeça.
– Sou tão forte como a maior parte dos homens – afirmou Beth, com um
sorriso. – Além disso, Skagway será uma cidade-fantasma quando todos
partirem. Que me restaria aqui que fazer?
– Logo que o tempo melhorar, haverá ainda mais barcos. Há gente a vir
para cá de todos os cantos do mundo – disse ele, com aquele brilho nos olhos
cinzentos de que ela acabara por gostar tanto. – Ganhará mais dinheiro aqui do
que poderá ganhar em Dawson City. Pode morrer nessa viagem; até os índios
dizem que é difícil.
– Planeámos ir para lá, por isso iremos – respondeu Beth, encolhendo
os ombros.
– E o conde?
Beth baixou os olhos para o regaço. Por muito zangada que estivesse
com Theo, continuava a amá-
lo, e a ideia de separar-se dele parecia-lhe intolerável. Mas há meses
que ele se comportava de forma indecente com ela, e sabia que se ficasse
depois de Sam e Jack terem partido, seria muito pouco provável que Theo
mudasse, e ficaria sozinha.
– Não vai connosco – disse, tentando sorrir, como se aquilo não doesse.
– Então é louco, porque vai acabar por fazer-se matar sem o Jack para o
livrar de sarilhos – declarou Jefferson.
– Mas porquê? – exclamou Beth, assustada.
– É demasiado convencido para o que lhe convém. Há por aí muitos que
gostariam de vê-lo morto.
– Não é o seu caso? – perguntou ela, ansiosamente.
Jefferson olhou para ela, pensativo, por um instante.
– Não, gosto do homem – acabou por dizer. – Mas também ele tem sido
suficientemente esperto para não se atravessar no meu caminho. Mas ouvi
rumores, e vejo os sinais.
– Não pode falar com ele e avisá-lo?
– Não me daria ouvidos. Além disso, porque há-de importar-lhe o que
lhe acontece? Com certeza sabe que ele passa a maior parte das noites com a
Dolly, no Red Onion?
Beth sentiu-se como se tivesse sido apunhalada no coração, porque, até
ao momento, aquilo fora apenas uma coisa de que suspeitasse, sem ter a
certeza.
Dolly era uma loura voluptuosa que cantava e dançava no Red Onion.
Era também prostituta, e dizia-se que cobrava cinquenta dólares de cada vez.
Não havia em Skagway, ao que parecia, um único homem que não quisesse ir
para a cama com ela.
– Não sabia, pois não? – disse Jefferson. Enlaçou-a com os braços e
apertou-a contra o peito. – Lamento se a magoei. Não era minha intenção.
Beth engoliu as lágrimas.
– Estou bem. Já suspeitava, de todos os modos. Penso que era o que
precisava para confirmar que é tempo de partir.
– Sabe, gostaria que ficasse e fosse a minha companheira. Arranjava-lhe
um sítio bonito para viver, com criada e tudo. Até correria com o conde da
povoação.
O champanhe e o sotaque melífluo do homem estavam a quebrar a
resistência dela, e, quando ele lhe ergueu o queixo para a beijar, não se
afastou. O beijo foi tão suave como todo ele era, quente e muito sensual, e ela
sentiu-se instantaneamente excitada.
Jefferson passou-lhe ao de leve os dedos pelo pescoço enquanto a
beijava, e apesar de uma vozinha no fundo da cabeça lhe dizer que fazer amor
com ele seria um erro, a verdade era que o desejava.
Jefferson dava-lhe valor, tratava-a como uma senhora, e, se Theo
gostava mais da prostituta loura do que dela, chegara a altura de lhe mostrar
que não se importava.
A mão de Jefferson insinuou-se-lhe no decote do vestido, agarrando-lhe
o seio, e os beijos dele tornaram-se mais apaixonados.
– Deixe-me levá-la para o meu quarto nas traseiras – murmurou, com a
boca junto ao pescoço dela.
– Lá estaremos mais confortáveis.
Não esperou pela concordância dela, limitou-se a erguê-la nos braços e
levá-la até à porta ao fundo do bar. O quarto estava igualmente aquecido, pois
havia outro pequeno fogão aceso, e, à luz que emanava dele, Beth viu uma
cama de mogno lavrado digna de um grande hotel, coberta por uma manta aos
quadrados vermelhos.
Jefferson não se atrapalhou com os botões nas costas do vestido nem
com os atilhos do espartilho, e, apesar de saber que isso significava que tinha
prática de despir mulheres, Beth não se sentiu menos desejada.
A experiência dele revelava-se também na maneira como fazia amor.
Não se apressou, e o seu toque era firme mas acariciante enquanto murmurava
palavras doces e lhe dizia como era bela.
Beth foi levada a um estado de quase delírio ainda antes de ele se
despir, e, quando o envolveu com os braços e o acariciou, descobriu que todo
ele era rijo músculo, sem nenhuma da flacidez que esperaria de um cavalheiro
sulista.
Tinham passado semanas desde a última vez que Theo fizera amor com
ela, e mesmo assim fora uma refeição apressada, insatisfatória, em vez de um
festim. Jefferson ofereceu-lhe um banquete, excitando-a, chupando-a e
lambendo-a, e quando finalmente a penetrou, ela estava encharcada em suor e
febril de luxúria.
– Mais do que excedeu as minhas expectativas, senhora – disse ele com
um sorriso malicioso, apoiado nos cotovelos e a olhá-la nos olhos, mas ainda
dentro dela.
– Também o senhor – respondeu ela, rindo. – Penso, além disso, que
resolvemos o problema de como nos mantermos quentes no Alasca.
– Aconteça o que acontecer no futuro, guardarei para sempre como um
tesouro a recordação desta noite – declarou Jefferson, baixando a cabeça para
a beijar.
Beth teve de sorrir, pois sabia que aquelas palavras aliviariam a culpa
que ia sentir de manhã.
– Espero poder convencê-la a ficar – disse ele pouco mais tarde, depois
de ter rolado de cima dela e enquanto a apertava nos braços. – Nós os dois
podemos fazer uma grande equipa. E quando a febre do ouro passar, podemos
ir para outras terras e procurar novos desafios.
Beth ficou aliviada ao encontrar a cabana deserta quando lá chegou, ao
meio-dia do dia seguinte.
Depois do conforto do bar de Jefferson, pareceu-lhe espartana e triste.
As camas deles eram simples sacos cheios de palha, e o que partilhava com
Theo estava tão intocado como o deixara na noite anterior, o que significava
que ele tinha dormido fora. Os de Sam e Jack tinham ainda a marca dos corpos
e as mantas formavam o habitual monte.
Sam e Jack sabiam que ela aceitara tomar uma bebida no Jeff Smith’s
Parlour, e uma vez que se tinham dado ao trabalho de abastecer o fogão
naquela manhã, antes de saírem, soube que não estavam zangados por ter
passado a noite com ele. Mas, mesmo assim, sentia um acentuado mal-estar.
Era perfeitamente aceitável um homem levar mulheres para a cama, mas se
uma mulher sucumbia à mesma tentação, era considerada uma vadia.
Já tomara banho em casa de Jefferson; ele enchera-lhe a banheira e até a
esfregara. Sentando-se na cadeira de balouço que ele lhe dera, Beth reclinou a
cabeça para trás e fechou os olhos, revivendo a sensualidade do que
acontecera, e decidiu que não se importava de ser uma vadia. Falaria
abertamente do assunto quando os rapazes chegassem a casa. Jack e Sam
estavam constantemente a envolver-se em aventuras amorosas. Porque não
havia ela de fazer o mesmo?
Quanto a Theo, se não gostasse podia ir-se embora e viver com Dolly, a
prostituta. Talvez quando descobrisse que ela só servia para uma coisa, que
não sabia cozinhar, lavar ou remendar-lhe a roupa, se apercebesse de quanto a
Rainha Cigana fora valiosa.
A porta da cabana abriu-se violentamente ao fim da tarde, deixando
entrar uma revoada de vento gelado e neve.
Beth estivera a dormitar sentada na cadeira de balouço. Acordou
sobressaltada e viu Theo no umbral, o rosto vermelho de fúria.
– Como pudeste ir para a cama com aquele filho da mãe? – gritou. –
Fizeste-me passar por parvo!
Beth já tencionava admitir o que tinha feito, porque sabia que alguém ia
acabar por dar com a língua nos dentes. Mas não esperara que a história
chegasse tão depressa aos ouvidos de Theo.
Por um segundo, limitou-se a olhar para ele, chocada pelo facto de
parecer mais magoado pela reacção dos outros à notícia do que pela
infidelidade dela.
– Estavas a pedi-las – disse, desafiadoramente. – Há meses que te
comportas como um porco, e tens passado as noites no Red Onion com aquela
cabra.
– Tenho andado a tratar de negócios – disse rispidamente. – Os
interesses financeiros de um homem têm de passar à frente de tudo, se ele
quiser chegar a algum lado.
– Há só um género de negócio que se pode tratar num bordel – retorquiu
ela, a voz a subir de tom. – Não penses que aceito ficar em segundo lugar
depois de uma prostituta, de modo que podes voltar para lá e esperar a tua vez
enquanto ela fornica com todos os outros homens da terra.
Theo estava a olhar para ela, com um ar espantado.
– És um batoteiro e um vigarista! – continuou Beth, cada vez mais
furiosa. – Dizeres às pessoas que és conde! A roubá-las com as tuas cartas
marcadas! Mas isso até seria capaz de aceitar. Mas não viverei com um
homem que não me dá valor. Apoiei-te em tudo e estive contigo, mas agora
acabou-se. Vai-te embora e não voltes.
Ele hesitou apenas um instante, e então pegou nas roupas que estavam
na prateleira do canto, enfiou-as num saco e saiu, batendo com a porta com
tanta força que toda a cabana estremeceu.
Beth chorou, lágrimas amargas que não eram de arrependimento por ter
estado com outro homem, mas por um amor que azedara. Teria ido até aos
confins do mundo por Theo e, apesar de tudo o que dissera, sabia que
continuava a amá-lo.
*
Uma semana mais tarde, Beth e Sam tinham decidido não sair à noite.
Estava tanto frio lá fora que as pestanas se cobriam de gelo numa questão de
segundos e respirar fazia doer os pulmões. Tinham carregado o fogão de lenha
e estavam sentados um de cada lado, envoltos em grossas mantas.
Jack tinha ido ver os Arnold, uma família com três filhos que chegara a
Skagway no início de Dezembro. Vinham muito mal equipados, e o pouco
dinheiro que traziam depressa se evaporara.
Continuavam a viver numa tenda, como tantos outros, e um dos filhos,
uma menina de nove anos chamada Nancy, morrera de pneumonia pouco
depois do Natal.
Jack tentara arranjar trabalho para Sid Arnold, o pai, que tinha sido
barbeiro em Portland. Mas ali, onde quase todos os homens usavam grandes
barbas e bigodes, a profissão tinha pouca procura. Sid aguentara apenas um
dia na serração – não tinha pura e simplesmente força para trabalhos pesados –
e revelara-se um perfeito desastre em todos os empregos que Jack lhe
arranjara. Agora a mulher e o filho mais novo, Robbie, estavam doentes, e
Jack fizera uma colecta em Skagway para os mandar de volta a casa no
primeiro navio. Mas nos olhos de Sid a febre do ouro brilhava tanto como a da
doença nos da mulher. Insistia em que ia partir para Chilkoot Pass, como se
isso fosse a solução para todos os problemas.
– Achas que o Jack vai conseguir convencê-lo? – perguntou Sam a
Beth.
Beth abanou a cabeça. Tinha observado aquela febre do ouro durante
tanto tempo que chegara à conclusão de que era fatal. Das pessoas que ali
chegavam, poucas faziam ideia da distância a que ficava Dawson City –
imaginavam um curto passeio em que teriam de passar por cima de um par de
colinas. Poucas se apercebiam de como as montanhas eram perigosas e
traiçoeiras, e muitos dos que tinham partido no Outono anterior, tanto por
White Pass como por Chilkoot Pass, foram obrigadas a regressar e esperar
pela Primavera.
Mas, segundo os índios Chilkoot, habituados a usar aquele trilho,
muitos do que não tinham voltado haviam lá morrido, e os seus corpos
serviam de pasto às aves de rapina e outros necrófagos.
– Talvez a única solução seja pôr a mulher e os dois filhos que restam
no barco sozinhos. Julgo que têm família em Portland que os ajudará a
recuperar a saúde. Isto, claro, se não morrerem antes que apareça um barco.
– Estás com medo de atravessar a passagem? – perguntou Sam, curioso.
– Estou – admitiu ela. – Mas já que viemos até aqui,
arrepender-nos-íamos para o resto da vida se não fôssemos até ao fim.
– Não será a mesma coisa sem o Theo.
– Pois não. – Beth suspirou. – Será mais fácil.
Sam ficou calado durante algum tempo, a olhar para o lume com uma
expressão vazia. Beth sabia que tanto ele como Jack sentiam a falta de Theo,
das suas ideias imaginativas e do ambiente divertido que sabia criar. Tinham
admitido que sabiam de Dolly há já algum tempo e tinham esperado que a
noite que ela passara com Jefferson o fizesse voltar aos carris. Mas por muito
que gostassem de Theo e o vissem quase como um irmão, a primeira lealdade
deles era para com Beth. Por isso não tinham tentado falar com ele, e ele, por
sua vez, não os procurara.
– E o Soapy? – perguntou Sam, quebrando o silêncio. – Sentes alguma
coisa por ele?
– Luxúria, talvez. – Beth riu. – Mas já passou uma semana e ele não fez
qualquer esforço para voltar a ver-me. Suponho que agora que sabe que o
Theo saiu de cena, já não lhe pareço tão atraente.
Sam esboçou um meio sorriso.
– Talvez seja pelo melhor, mana, é um homem perigoso. Não que não
goste dele, mas é mais escorregadio do que uma enguia. Se só metade das
histórias que correm por aí forem verdadeiras, há o bastante para assustar
qualquer um. Hás-de encontrar o homem certo, um dia, alguém digno de ti.
Beth estendeu a mão e despenteou-lhe a espessa barba loura.
– Fizemos um longo caminho, não fizemos? Duvido que os Langworthy
nos reconhecessem agora.
Não é só o aspecto exterior, é também a maneira como mudámos por
dentro. Imagina-nos a tentar ter esta conversa quando estávamos em
Liverpool! Lembras-te do que a mamã disse a respeito da paixão? Na altura,
não fazia ideia do que fosse.
– Nem eu. – Sam sorriu maliciosamente. – Foi uma das melhores
descobertas.
Riram ambos, e continuaram a falar a respeito de como era bom viver
longe das restrições com que tinham crescido, e serem amigos, além de irmão
e irmã.
– Houve alguma mulher a quem não quisesses dizer adeus? – perguntou
Beth.
– Seria mais rápido fazer a lista daquelas a quem o disse com muito
gosto – brincou Sam. – Pareço condenado a conhecer sempre alguém com
quem a coisa faz faísca quando estamos a preparar-nos para partir. Vê o caso
daquela ruiva que ajuda a mãe a fazer empadas na Main Street!
– A Sarah? – Beth tinha falado com a rapariga várias vezes. Era muito
recatada, nunca punha os pés no saloon nem encorajava as abordagens dos
homens, mas tinha um ar alegre, e era muito bonita.
– Sim, a Sarah, do Idaho. Gosto muito dela, tem aquele género de… –
Foi subitamente interrompido pelo som de um tiro. – Foi aqui perto –
exclamou, libertando-se da manta e pondo-se de pé.
Os disparos de armas de fogo eram frequentes, tal como as zaragatas
nas ruas e nos saloons. Mas não naquela parte da povoação.
– Não vás, Sam – pediu Beth. – Sabes como é quando alguns deles se
embebedam e se irritam.
Podes ir parar ao meio da confusão e ficar ferido.
Sam hesitou.
– Vou só até lá fora ver o que se passa. Não há perigo.
Quando abriu a porta, uma rajada de vento gelado invadiu a cabana.
Sam pegou no casaco e no barrete forrados a pele e saiu rapidamente,
fechando a porta atrás de si. Beth levantou-se e foi espreitar pela minúscula
janela, mas só conseguia ver o ombro de Sam e o chão coberto de neve.
Mas, ao ouvir gritos, ficou curiosa, e também ela pegou no casaco e no
barrete.
Sam sorriu quando ela saiu.
– Eu logo vi que não conseguias resistir! Vamos até lá? Parece que foi
em State Street. Vamos só dar uma espreitadela. Não nos vamos envolver.
Caminharam apressadamente, Beth agarrada ao braço de Sam por causa
do chão escorregadio.
Quando dobraram a esquina para State Street, viram uma pequena
multidão à volta de um homem caído por terra. Mesmo naquela rua mal
iluminada, via-se o sangue alastrar pela neve.
– Quem disparou? – perguntou Sam a um homem que passava.
– Não sei o nome. Um tipo qualquer que tinha sido esfolado, suponho.
– Conhece o homem que foi atingido? – perguntou Beth.
– É aquele sujeito a quem chamam conde.
CAPÍTULO 27
Sam tentou detê-la, mas Beth libertou-se dele e abriu caminho por entre
a multidão que rodeava Theo. O medo apertava-lhe o coração e toda a
recordação das últimas palavras zangadas que tinham trocado foi
repentinamente varrida.
– Theo! – gritou, caindo de joelhos ao lado dele.
– Não vai safar-se, minha senhora – disse um homem no meio do grupo
de espectadores.
As perspectivas não eram boas. Theo estava inconsciente e Beth viu o
buraco onde a bala tinha atravessado o casaco e penetrado no ombro. O
sangue jorrava da ferida. Pegando-lhe no pulso, procurou o batimento
cardíaco. Estava lá, mas muito fraco.
– Não vai com certeza safar-se se o deixarem aqui a congelar – disse,
rispidamente. – Alguém que me ajude a levá-lo ao médico.
Theo mexeu-se e abriu os olhos.
– Beth!
A voz quase não se ouvia. Beth inclinou-se mais e aproximou o rosto do
dele.
– Sim, sou eu. Mas não fales nem te mexas, só vai enfraquecer-te.
Quando Sam avançou para ajudar, um dos outros homens sugeriu que
arranjassem qualquer coisa rígida onde pudessem estender o ferido, e quase no
mesmo instante uma mulher saiu do saloon mais próximo carregando o
estreito tampo de uma mesa.
– Partiram as pernas numa zaragata – disse em jeito de explicação,
voltando imediatamente para dentro, para fugir ao frio.
Sam fez deslizar o tampo da mesa para debaixo de Theo e em seguida
pegou-lhe na cabeça, enquanto outros dois o agarravam pelos pés.
A cabana do Dr. Chase ficava perto, e alguém correu à frente a
acordá-lo. Beth não conhecia o médico, por nunca ter tido necessidade dos
cuidados dele, mas sabia que era um bom homem porque fora, juntamente
com o reverendo Dickey, o responsável pelo financiamento da construção de
uma cabana que funcionaria como hospital e que seria inaugurada em breve e
era conhecido por tratar os muito pobres sem lhes cobrar um cêntimo.
O Dr. Chase, um homem pequeno e magro, de óculos e um início de
calvície, já estava de avental e a enrolar as mangas quando chegaram à porta.
– Ponham-no em cima da mesa – disse, aproximando o candeeiro a
petróleo. – Algum dos presentes é parente do ferido?
Sam explicou que ele e Beth eram amigos e companheiros de viagem de
Theo, e declinou os nomes.
O médico pediu-lhes que ficassem para ajudar e mandou sair todos os
outros.
– Espero que o sangue não lhe faça impressão – disse a Beth, enquanto
começava a cortar com uma tesoura a roupa de Theo, à altura do ombro. –
Porque vou precisar de uma enfermeira. Vá lavar muito bem as mãos.
Enquanto lavava as mãos na bacia que o médico lhe tinha indicado,
Beth olhou para Theo. Não tinha vestígios de cor na face, os lábios estavam
azuis e voltara a perder os sentidos. Sentiu-se doente de medo, porque a ferida,
uma vez exposta, tinha um aspecto horrível, uma escura massa de tecido
vermelho-escuro e sangue.
Pôs um avental e enrolou as mangas, e o médico disse a Sam que se
colocasse atrás da cabeça de Theo e o segurasse com força se ele se debatesse.
– Ainda bem que está inconsciente – disse, num tom quase jovial. –
Mas o mais certo é acordar quando eu começar a procurar a bala, de modo que
esteja preparado.
Beth queria perguntar ao médico por que motivo não aplicava
clorofórmio, mas não se atreveu, e preparou-se para seguir instruções.
– Se alguém tiver de levar um tiro, este é um bom sítio – disse o Dr.
Chase, indicando a Beth que segurasse a bacia dos instrumentos e lhe fosse
entregando os que pedisse. – Porque foi que o alvejaram, afinal?
– Não sabemos, não estávamos com ele quando aconteceu – explicou
Sam. – Só saímos de casa para ver o que se passava quando ouvimos o tiro.
– E ele chama-se?
– Theodore Cadogan – disse Beth.
– Ah, o conde inglês – exclamou o médico. – Pelo que ouvi dizer, era só
uma questão de tempo antes que alguém lhe desse um tiro. E nesse caso –
continuou, olhando para Beth por cima dos óculos –, a menina deve ser a
muito aclamada Miss Bolton, a Rainha Cigana?
Beth sentiu-se invadir por uma onda de vergonha, porque a implicação
das palavras do médico era que ela tinha de ser uma pessoa indigna para se dar
com um homem como Theo. Mas ele não disse mais nada e começou a limpar
a ferida com mechas de algodão, e em seguida a sondá-la. Theo recuperou a
consciência uma vez e tentou levantar-se mas, misericordiosamente, voltou a
perder os sentidos.
– Cá está ela! – exclamou o Dr. Chase, segurando a bala entre as pontas
da pinça. – Não foi muito fundo, felizmente para ele. Mas vai precisar de bons
cuidados para recuperar. As balas são fáceis de extrair; o verdadeiro problema
são as infecções que podem instalar-se. É capaz de cuidar dele, Miss Bolton?
– Sim, claro – respondeu ela, sem a mais pequena hesitação.
– Vou cosê-lo, e pode ficar aqui esta noite. Amanhã, vou arranjar
alguém com uma carreta para o levar até à sua cabana. Dar-lhe-ei instruções
quanto à dieta. Perdeu muito sangue e vai demorar algum tempo a recuperar as
forças.
– Porque me ajudaste? – perguntou Theo, na noite seguinte.
O médico tinha-o levado de manhã, e os dois homens que o
acompanhavam tinham-lhe pegado em peso e carregado para a cama. O que
quer que fosse que lhe fora ministrado para as dores fizera-o dormir quase
todo o dia. Beth preparara uma panela de caldo de carne, de acordo com as
instruções do Dr. Chase, e estava a mexê-la em cima do fogão quando Theo
falou.
– Porque não vi a Dolly, a prostituta, a correr para te ajudar –
respondeu, venenosamente. – Mas se preferes ir para lá e deitar-te na sua cama
cheia de pulgas, é só pedir.
– Prefiro estar contigo – disse ele, a voz muito fraca. – És a única
mulher que verdadeiramente amei.
Beth sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos, mas empurrou-as para
baixo.
– Vou cuidar de ti em nome dos velhos tempos, mas não contes comigo
a longo prazo, Theo.
Nos primeiros dias, Theo teve muitas dores. O Dr. Chase ia mudar os
pensos diariamente e disse que estava satisfeito por não ver sinais de infecção,
mas não mostrou qualquer simpatia para com o ferido.
– Tem sorte em não estar morto – disse, sem rodeios. – Tenho pacientes
que estão doentes sem culpa nenhuma, e eles são a minha prioridade.
Aparentemente, o homem que disparara o tiro deixara a povoação,
talvez por pensar que matara Theo e recear ser acusado de homicídio. Tudo o
que Theo dizia sobre o assunto foi que tivera o que merecera. Beth deduziu
disto que tinha enganado o sujeito.
Passava os dias a ler para ele e a contar-lhe as novidades e mexericos, e
a verdade era que gostava de ficar em casa, no quente, com ele. Jack ou Sam
substituíam-na nas noites em que tinha de tocar.
Já tinham passado dez dias desde a tentativa de assassínio quando
Jefferson falou do assunto pela primeira vez. Não tinha ido ao saloon dos
Clancy durante todo aquele tempo, e ela também não o vira na povoação. Mas,
de repente, lá estava ele no meio da multidão, a ouvi-la tocar, com aquele
sorriso preguiçoso e sedutor que lhe fazia o coração bater mais depressa.
– Aceita tomar uma bebida comigo? – perguntou, quando ela desceu do
pequeno palco.
– Tenho de ir para casa – respondeu ela, morta por lhe perguntar onde
estivera todo aquele tempo, mas sabendo que não era a coisa mais inteligente
que podia fazer.
– Deveres de enfermeira? – Jefferson arqueou uma sobrancelha. – O
que é que o conde faz por si para merecer tão ternos cuidados? Ouvi dizer que
o tinha posto na rua.
– Conhecemo-nos há muito tempo. Não volto as costas aos meus
amigos quando eles precisam de ajuda.
Ele pôs-lhe um copo de rum na mão.
– E quando ele recuperar?
Beth encolheu os ombros.
– Não sei. Dependerá dele.
– Devo deduzir que se conformará aos planos dele? Se voltar para a
Dolly, fica livre; se não, fica presa a ele?
– Ouça, Jefferson, não sei – respondeu ela, irritada. – Quando aceitei
cuidar dele, foi em nome do nosso passado, tal como teria cuidado do Jack se
lhe tivesse acontecido alguma coisa. Neste momento, não consigo pensar para
lá disso, e não percebo porque me faz tantas perguntas. Nem sequer passou
para ver como eu estava quando o pus fora, porque é que se importa agora?
– Porque gosto de si e ele vai arrastá-la para um buraco.
– O Theo não é assim tão diferente de si – disse ela, indignada.
– É por isso que sei como vai acabar.
Beth suspirou, bebeu o resto do rum e pegou no estojo do violino para
se ir embora.
– Nesse caso, espero que tenha alguém que cuide de si se lhe derem um
tiro – disse, secamente. – Boa-noite, Jefferson. Foi agradável enquanto durou.
Pensou que ele iria segui-la; ao fim e ao cabo, na noite que tinham
passado juntos, dissera que a queria por companheira. Mas talvez isso fizesse
parte da conversa e ele estivesse apenas interessado em mais uma conquista.
– Fui um idiota chapado – disse Theo, alguns dias mais tarde. Já andava
a pé, apesar de não poder fazer esforços; até vestir-se tinha de ser feito lenta e
cautelosamente.
– O que foi que te levou a essa espantosa conclusão? – perguntou Beth.
– Não sejas sarcástica – censurou-a ele. – Estou a tentar mostrar-te que
te dou valor. Sempre dei, mas o que mais me entristece é a distância que há
agora entre nós, quando em tempos fomos tão chegados. Eu sei que a culpa foi
minha. Mas não sei como fazer-te voltar ao que costumavas ser.
– Nem eu – respondeu ela, com tristeza. – Por vezes, penso que é esta
terra cheia de pessoas que só pensam em ouro. Afectou-nos a todos. Até o
Jack, que passa todo o tempo que tem livre a ajudar os outros, está ansioso por
pôr-se a caminho. É como uma doença.
– Talvez a única cura seja então pormo-nos a caminho.
– Ainda vai passar algum tempo até que estejas pronto para isso.
– Um mês deve chegar. Mas a verdadeira questão é saber se me queres
convosco.
– Claro que quero, Theo! Talvez não te adore cegamente, como noutros
tempos, mas ainda te amo.
Se ao menos fosses um pouco mais honesto!
– A honestidade não te preocupou no caso do Soapy, que é muito mais
desonesto do que eu. É um mentiroso, um ladrão, um vigarista e não duvido
de que já mandou matar pessoas, embora duvide que tenha sujado as suas
próprias mãos.
– Pelo menos estava presente quando eu precisei de alguém – atirou-lhe
Beth. – Não vi a Dolly Cara-de-Cão a correr a ajudar-te.
– Está feito, mana – disse Sam, depois de carregar o último saco de
provisões da cabana para a carroça alugada que os levaria até Dyea e ao início
de Chilkoot Trail. – Diz adeus à cabana. Duvido que voltemos a passar por
aqui.
Theo estava sentado na carroça. O ombro sarara bem, mas as semanas
de inactividade e de boa comida tinham-no feito ganhar peso, dando-lhe um ar
flácido. Jack, pelo contrário, estava magro, pois trabalhara seis dias por
semana a construir casas, lojas e cabanas. Tudo isto para garantir que tinham
dinheiro suficiente para pagar a carregadores índios que levassem as suas
coisas até ao alto da passagem.
Além da obrigatória tonelada de provisões para se poder entrar no
Canadá, eram necessárias ferramentas de carpinteiro para construir um barco
no lago Bennett, uma pá, um trenó, uma tenda, enxergas para dormir e muitos
outros artigos essenciais. Uma vez que a maioria dos homens não conseguia
transportar às costas, naquele trilho, mais de vinte e cinco quilos, isto
significava que quem não pudesse contratar carregadores índios teria de fazer
dúzias de viagens para cima e para baixo, que podiam demorar três meses a
completar.
A esmagadora maioria dos prospectores não tinha alternativa senão
fazer isso mesmo, pois os carregadores índios cobravam um preço exorbitante.
Mas Theo não estava suficientemente forte para carregar mais do que alguns
quilos, e nem Sam nem Jack queriam que Beth fizesse esforços exagerados.
Constituindo um fundo comum, tinham o suficiente, e achavam que o que
perdiam em dinheiro compensariam em tempo, além de levarem alguns
artigos que poderiam vender com um bom lucro em Dawson City.
– Tenho de ir pôr esta carta no correio antes de partirmos – disse Beth,
agitando um sobrescrito.
Um par de dias antes, tinham finalmente recebido uma carta de
Inglaterra com uma fotografia de Molly tirada na festa do seu quarto
aniversário, pouco antes do Natal. Beth rabiscara apressadamente uma
resposta, a que juntara uma fotografia dela e de Sam tirada ali em Skagway.
Nela informava Molly e os Langworthy que iam partir para os campos
auríferos.
Perguntara-se, enquanto escrevia, se as pessoas em Inglaterra fariam
alguma ideia do que aquela viagem significava. Quanto a ela, sabia
perfeitamente que não ia ser um passeio, porque o previdente Jack fora até ao
início do trilho e falara com pessoas que tinham desistido a meio, e o que
ficara a saber fora quase o suficiente para os fazer abandonar o projecto.
– Nós vamos andando, e tu apanhas-nos depois – gritou Theo. – Mas vê
lá não te percas!
Estava-se em finais de Março, e a maior parte das pessoas que tinham
conhecido durante o Inverno já partira, por White Pass ou por Chilkoot Trail,
havia mais de um mês. Mas Beth sabia que, se tudo corresse bem, voltariam a
encontrar-se todos na margem do lago Bennett. O gelo que cobria o lago só
derreteria em meados de Maio, de modo que ninguém poderia partir antes
disso.
Skagway estava agora muito diferente do que era quando tinham
chegado. Havia um cais, uma igreja e um hospital, e as ruas principais eram
ladeadas de edifícios autênticos – lojas, saloons, restaurantes, hotéis, casas e
cabanas. As ruas continuavam a ser um mar de lama, uma condição agravada
pelo ligeiro degelo dos últimos dias. Mas a cidade de tendas à volta da
povoação continuava lá. Tendas diferentes, pois as antigas tinham sido levadas
pelos donos ou rasgadas pela ventania. Os navios continuavam a desembarcar
diariamente novas centenas de prospectores de ouro.
Alguns ficavam apenas alguns dias antes de se fazerem aos trilhos;
outros eram sugados pelo lado mais sórdido da povoação, perdiam todo o
dinheiro que tinham e acabavam por apanhar um barco de regresso a casa.
Beth estava contente por partir. Passara ali alguns bons momentos, mas
os maus tinham levado vantagem. Não ia ter saudades da desordem, da
imundície, dos exploradores e dos explorados. Mas ia sentir falta dos pés a
bater no chão e das palmas quando tocava o seu violino. Nunca esqueceria
aqueles sorrisos de pura alegria quando levava o seu público para longe de
preocupações e cuidados.
Ao passar pelo saloon dos Clancy, sorriu ao ver a ardósia onde estava
escrito: «Rainha Cigana toca esta noite». Pegou num pedaço de giz caído no
chão e acrescentou: «Esta noite não, parto para o Klondike, mas
encontramo-nos lá.»
Voltou costas à ardósia, ainda a rir para si mesma, e viu Jefferson
encostado a um caixote, a fumar o seu cachimbo.
– Vai então embora? – perguntou ele.
– Só pôr esta carta no correio e vou apanhar a carroça.
– Fique para tomar uma bebida comigo. Eu depois levo-a até eles no
meu cavalo.
Ela abriu a boca para recusar delicadamente, mas então viu o brilho nos
olhos dele e não foi capaz de resistir.
– Pelos velhos tempos – disse, rindo. – Mas só uma hora, nem mais um
minuto, e se não me levar até à carroça vai haver sarilhos.
– Vá pôr a sua carta, e eu terei as bebidas preparadas quando voltar.
Quando Beth entrou no Clancy’s, Jefferson fez saltar a rolha de uma
garrafa de champanhe.
– Achei que merecia uma despedida condigna. – Sorriu. – Pode bem ser
a última coisa boa dos próximos meses. – Serviu-lhe uma taça e encostou-se
ao balcão, a olhar para ela. – Vamos sentir a sua falta – disse, finalmente. – Há
muitas raparigas bonitas na povoação, mas poucas com a sua genica e a sua
coragem. Talvez um dia dê um pulo até Dawson City, para ver como está. Se
não tiver sido apanhada por algum mineiro rico, levo-a para São Francisco e
faço de si uma mulher honesta.
– Não vai ser coisa fácil, sendo tão desonesto – retorquiu ela. – Além
disso, quero voltar a Inglaterra. Tenho uma irmã que preciso de ver.
Pegou na fotografia de Molly, que guardara no bolso interior do casaco,
e mostrou-lha. Molly tinham uns cabelos tão compridos e encaracolados como
os dela, presos com dois laços, e usava um bibe branco com folhinhos por
cima do vestido escuro. Já não era um bebé, era uma menina, com uns grandes
olhos escuros e redondos e uma expressão séria.
– É parecida consigo – disse Jefferson. – Acho que é o género de miúda
que qualquer pessoa quereria voltar a ver. E os seus pais também. Devem ter
saudades suas.
– Já morreram os dois – disse Beth e, de repente, deu por si a pensar no
que tinha acontecido. – Não sei porque foi que lhe falei disto – concluiu, a
sentir-se embaraçada. – Nunca digo a ninguém.
Jefferson encolheu os ombros.
– Há-de ter sido a fotografia. Fazem-nos recordar. Também eu tenho
uma fotografia assim.
– De uma menina?
– Não. – Jefferson riu. – Uma fotografia sua, tirada aqui, uma noite. Só
fui buscá-la há dias. Fez-me pensar em como as coisas poderiam ter sido se…
– Não completou a frase e sorriu-lhe.
– Se o quê?
– Se eu fosse outro género de homem. Se tivesse ido procurá-la depois
daquela noite para lhe dizer como me sentia.
– E como era que sentia?
– Como se fosse outra vez novo. Como se pudesse haver uma vida sem
vigarices nem manhas. Mas acho que não tive coragem suficiente para tentar
lá chegar.
Beth ergueu a mão e beliscou-lhe afectuosamente o rosto.
– Teve coragem suficiente para mo dizer agora. Vou guardar essas
palavras na minha cabeça e pensar nelas de vez em quando.
Conversaram durante algum tempo a respeito das mudanças em
Skagway desde que ela chegara, e de como a povoação poderia vir a ser
dentro de alguns anos. Jefferson perguntou por Sam e por Jack, mas não
mencionou Theo.
– Não confiem em ninguém na subida até à passagem – disse,
inesperadamente. – Há lá em cima homens que parecem prospectores, de
mochila às costas e tão sujos como todos os outros. Vão oferecer-lhes um
pouco de bondade, uma bebida quente ou um lugar junto à fogueira. Mas não
são verdadeiros prospectores, são vigaristas, e vão tentar roubá-los.
Beth teve uma forte suspeita de que aqueles homens de quem ele falava
podiam até estar a seu soldo, mas agradeceu-lhe o conselho e disse que eram
horas de ir.
Ele pegou-lhe na mão quando saíram do saloon para ir buscar o cavalo
ao estábulo, e o contacto fez um súbito frémito descer-lhe pela espinha.
O moço do estábulo trouxe para a rua a égua castanha e, enquanto
segurava firmemente o animal pela cabeçada, Jefferson estendeu a mão para
segurar o pé de Beth e ajudá-la a içar-se para a sela.
Então, saltando para a garupa com um ágil movimento, passou os
braços à volta do corpo dela para empunhar as rédeas.
Pouco depois, trotavam pelo caminho que conduzia a Dyea.
Em Skagway, com toda a azáfama e confusão, a beleza da paisagem
circundante passava muitas vezes despercebida. Mas uma vez fora do tumulto,
com o débil sol de Inverno a refulgir na água azul-turquesa do Lynn Canal e
as montanhas toucadas de neve em redor, ela saltava repentinamente à vista.
Enquanto trotavam, Jefferson apontou um par de focas na água e uma
águia-calva empoleirada numa árvore. Beth não evitou desejar que tivessem
tido tempo de fazer juntos um pequeno passeio como aquele, e falarem
verdadeiramente um com o outro.
Havia muitos grupos de pessoas a seguir a estrada de Dyea, umas a
empurrar carrinhos de mão onde tinham amontoado a bagagem, outras com
mulas ou carroças tiradas por cavalos. A dada altura, Beth avistou, um pouco
mais à frente, a carroça dos rapazes.
– Acho que é melhor deixar-me aqui – disse. – Consigo alcançá-los
facilmente.
Jefferson saltou para o chão, ágil como um gato, ergueu os braços,
agarrou-a pela cintura e ajudou-a a desmontar. Mas não a soltou.
– Adeus, minha Rainha Cigana – disse. – Tenha cuidado no trilho, e
pense em mim de vez em quando.
Então beijou-a longamente, abraçando-a como se nunca mais fosse
largá-la. De repente, desfez o abraço, saltou para a sela e afastou-se a galope.
Beth ficou parada no caminho por um instante, a olhar para a égua
castanha, para as costas muito direitas e para o chapéu preto dele, e sentiu uma
pequena pontada de tristeza pelo que poderia ter sido.
CAPÍTULO 28
–Deus nos ajude! – exclamou cansadamente Beth, quando estavam a
chegar a Sheep Camp, o último lugar onde poderiam encontrar lenha e
provisões antes de começarem a subir a montanha.
Eles e um milhar de outros homens e mulheres tinham já suportado três
dias de caminhada dolorosamente lenta, a arrastar carroças e trenós pelo trilho
cheio de buracos que subia a partir de Dyea, saltando de um lado para o outro
do rio no seu coleante percurso. O gelo, os súbitos nevões e a passagem de
uma enorme quantidade de pessoas, carroças, cães e animais de carga, que
rasgava fundos sulcos na lama, tornavam o trilho escorregadio e traiçoeiro. As
pontes apressadamente improvisadas eram tão periclitantes que, a dada altura,
tinham acabado todos com água gelada até aos joelhos e obrigados a continuar
com as botas e as roupas encharcadas.
Não fora, porém, o espectáculo das centenas de pessoas e animais que
se misturavam naquele último verdadeiro acampamento que provocara a
chocada exclamação de Beth. E nem sequer o amontoado de primitivas
cabanas, os objectos pesados como fogões, cadeiras e baús abandonados por
todo o lado, ou as tendas rasgadas e as montanhas de coisas empilhadas à
espera de serem levadas para o outro lado.
O choque devera-se ao que ficava para lá de tudo aquilo.
Chilkoot Pass. E, mais ainda, a escalada que implicava.
Todos os pretendentes a prospectores de ouro sabiam que a passagem
era difícil. Nos saloons de Skagway, toda a gente ouvira pelo menos uma
dúzia de histórias de horror diferentes da boca de pessoas que ou tinham
voltado costas e fugido ao vê-la, ou tinham sido repelidas pelo mau tempo.
Mas ouvir falar de uma coisa e vê-la com os próprios olhos era
completamente diferente.
Sheep Camp ficava numa depressão no limite da linha das árvores,
rodeada de montanhas. Beth sabia que o cume que tinha de alcançar se situava
a pouco mais de mil metros acima de Dyea, a apenas seis quilómetros e meio
de distância se pudesse voar até lá como uma águia. Mas não era uma ave, e o
caminho que teriam de seguir provocou-lhe na espinha um arrepio de medo e
espanto.
A montanha parecia cingida por uma contínua fita preta que se
destacava nitidamente contra o fundo de neve. Eram os que subiam vergados
como macacos sob o peso que carregavam às costas e que, àquela distância,
pareciam imóveis. Mas Beth sabia que se moviam, porque não podiam parar;
até uma breve paragem emaranharia a linha dos que vinham atrás. Se alguém
decidisse sair da fila para descansar, nunca mais conseguiria voltar a entrar.
Theo empalidecera, e Sam esfregava os olhos como se não quisesse
acreditar no que via. Só Jack pareceu calmo e pronto para juntar-se à temível
corrente humana, na manhã seguinte.
– Há dois lugares para parar – disse. Apontou um gigantesco penhasco e
explicou que lhe tinham dito que quem subia podia descansar um pouco junto
à sua base. Em seguida indicou uma plataforma lisa, mais acima, e disse que
era a Balança. – É onde os carregadores voltarão a pesar a nossa carga e
provavelmente exigir-nos mais dinheiro.
Não lhes recordou que a parte mais difícil e perigosa da passagem
ficava para lá da Balança, invisível de Camp Sheep. Nenhum animal de carga
conseguia subir os chamados Degraus Dourados, 1500 degraus escavados no
gelo por um grupo de empreendedores que exigia uma percentagem pela sua
utilização. Uma vez iniciada a subida, não se podia parar até chegar ao cimo.
Sam, Theo e Beth entreolharam-se, horrorizados. Não fora a atitude
determinada de Jack, talvez tivessem expressado o medo que a subida lhes
inspirava. Mas Jack tornara-se no líder do grupo desde que tinham saído de
Dyea. Só ele mantivera a cabeça fria quando a carroça quase caíra de uma
ponte, ou quando ficara atolada num sulco do trilho; a sua força, determinação
e calma tinham-lhes permitido chegar até ali, e nenhum dos três duvidava de
que haviam de levá-los incólumes até Dawson City.
– Se montarmos aqui a nossa tenda, vai ser o diabo juntar tudo amanhã,
ao romper do dia – continuou Jack, aparentemente inconsciente de que os
outros não partilhavam o seu entusiasmo. – Por isso acho que o Theo e a Beth
deviam ir arranjar-nos quartos num dos hotéis daqui. Eu e o Sam vamos
procurar os carregadores e perguntar-lhes onde querem que ponhamos tudo
isto.
Beth olhou para a carroça, com a sua montanha de equipamento e
provisões. Já em Skagway parecera uma quantidade formidável, e no entanto
tinham-se indignado ao saber o preço que os carregadores índios exigiam por
cada saco. Mas agora que via a montanha até cujo topo tudo aquilo tinha de
ser levado, sentia-se desmaiar à simples ideia do que significaria terem de ser
eles próprios a carregá-lo. Disse uma silenciosa oração de graças por terem
conseguido juntar o dinheiro suficiente para pagar aos carregadores. Duvidava
que conseguisse levar às costas um saco que fosse, quanto mais repetir a
viagem várias vezes.
Os chamados hotéis não tinham a mais pequena semelhança com
qualquer hotel, por mais humilde, que Beth tivesse alguma vez visto, mas
depressa descobriria que os preços eram iguais aos dos de Nova Iorque. Eram
simples barracões, sem camas, apenas um pequeno espaço no chão, com
dúzias de outras pessoas amontoadas em redor. Se comprassem uma refeição,
custaria quase tanto como dois dias de salário.
Descobriu também que se podia comprar praticamente tudo em Sheep
Camp, desde que se tivesse dinheiro suficiente. Whisky, óculos escuros para
evitar a cegueira causada pela neve, trenós, barretes de pele e até doces. E
havia também prostitutas que, por cinco dólares, permitiam a qualquer homem
passar num relativo conforto a sua última noite antes de iniciar a escalada até
ao alto da passagem.
Apesar do cansaço de um dia de árdua caminhada, Beth não pôde
impedir-se de sorrir àquelas prostitutas, porque eram as mulheres mais feias e
mais sujas que via desde que trabalhara na fábrica de camisas em Montreal.
Algumas ostentavam esfarrapados vestidos de cetim, uma manta presa à volta
dos ombros como uma capa, pesadas botas de homem nos pés e cabeleiras que
pareciam ninhos de ratos. E, no entanto, não faltava quem lhes requisitasse os
serviços.
Uma vez no «hotel», cercados por pessoas por todo o lado, não havia a
mais pequena possibilidade de voltar a sair durante a noite. Beth ficou
ensanduichada entre Theo e Sam, e o fedor de pés sujos e outros odores
corporais era tão intenso que puxou o capuz forrado a pele de modo a tapar o
nariz e a boca e esperou que a exaustão lhe garantisse um pouco de sono.
Ficou acordada pelo que lhe pareceu a noite inteira, a ouvir uma
orquestra dos mais diferentes géneros de roncos. Havia rugidos altos, como o
ribombar de comboios a vapor, guinchos agudos, algumas ressonadelas
normais, regulares, e algumas irregulares, e, de vez em quando, alguém se
descuidava, tossia ou gemia. Um homem fazia um barulho como se estivesse a
rezar, e outro praguejava durante o sono. Era como o afinar maciço de uma
estranha orquestra.
A respiração de Theo era pesada, a de Sam leve. Jack estava deitado
atrás de Sam, mas Beth não conseguia distinguir dos restantes os sons que ele
fazia. Tinha consciência de que aquilo era provavelmente o mais confortável e
quente que podia esperar vir a estar nas próximas semanas, e isso assustou-a
mais do que nunca. Porque ia? Não queria saber de ouro, e em Skagway não
teria dificuldade em ganhar dinheiro suficiente para lhe garantir que poderia
regressar a Inglaterra no ano seguinte com um bom pé-de-meia. E se houvesse
uma avalancha quando estivessem na montanha e fosse enterrada viva? E se
caísse e partisse uma perna ou um braço? Que seria então dela?
Devia ter acabado por adormecer, porque de repente Jack estava a
abaná-la e a dizer que eram horas de ir.
Ao meio-dia, Beth já estava convencida de que não conseguiria dar
mais um passo. A mochila que levava às costas era leve, pouco mais de onze
quilos, contendo apenas roupa seca, enquanto as dos rapazes pesavam o dobro,
e Sam e Jack tinham ainda de carregar um trenó cada, mas parecia-lhe pesar
uma tonelada. A neve que cobria o trilho era dura, mas irregular devido às
pedras por baixo, de modo que tinha de ver com muito cuidado onde punha os
pés, usando o grosso cajado para se apoiar enquanto se arrastava, a bufar e a
ofegar, sempre mais para cima.
Estava a transpirar devido ao esforço com tanta roupa vestida, mas da
única vez que despiu o casaco forrado a pele o vento cortante como facas
gelou-a até aos ossos numa questão de segundos.
Queria uma bebida quente e sentar-se, o vento frio enchia-lhe os olhos
de água, tinha os lábios gretados e todos os ossos do corpo lhe gritavam que
parasse. Amaldiçoou a saia comprida e o saiote, que se carregavam de neve a
cada passo, e jurou a si mesma que, quando chegassem à Balança, mandaria a
decência às urtigas e convenceria Sam a deixá-la usar uma das suas calças.
Teve direito à única bebida do dia em Stone House, quando Jack
aqueceu água na «chaleira-vulcão», alimentando o lume que acendera no
interior com gravetos secos e aparas de madeira que guardara do seu trabalho
como carpinteiro em Skagway. Enquanto ele, dobrado para a chaleira, soprava
para espevitar o fogo que ardia entre as paredes da dupla câmara, Beth
observava-o com admiração, perguntando-se por que razão teria sido o único a
aperceber-se, em Vancouver, de que aquela curiosa invenção, que permitia
acender um pequeno lume no interior, iria revelar-se a mais útil peça de todo o
equipamento que levavam. Podia ser acendida com vento forte, e até com
chuva, e mesmo assim aquecer água muito rapidamente.
Recordou o miúdo da rua, escanzelado e pálido, que Jack era quando o
conhecera. Já nessa altura era desembaraçado e duro, mas desde então
crescera de todas as maneiras possíveis. O rosto por cima da barba cerrada e
negra tornara-se castanho e curtido pela intempérie como o de um índio, tanto
que a fina cicatriz na face já mal se notava. Os ombros largos, os braços e as
coxas eram sólido músculo. Aceitara e aprendera alguma coisa com todas as
experiências por que passara desde que tinha desembarcado do navio que o
levara de Inglaterra, quer fosse matar gado, servir atrás do balcão de um bar
ou construir cabanas. Era ele o aço do pequeno grupo, a força que os
amparava quando a deles se esvaía.
– Como estão os teus pés? – perguntou, notando imediatamente que
Sam coxeava quando foi à mochila buscar o café e o açúcar. – Fizeste uma
bolha?
– Acho que sim; as botas roçam-me os tornozelos – gemeu Sam.
– Descalça-as. Vou pôr-te umas ligaduras – disse Jack. – E tu, Theo,
como é que estás a aguentar-te?
– Menos mal. Uma ou outra pontada, mais nada – respondeu Theo,
enfiando uma mão por baixo do casaco como que para certificar-se de que a
ferida não reabrira.
– Também já vou tratar disso – prometeu Jack. – A Beth está com ar de
quem se vai abaixo se não lhe dão qualquer coisa quente bem depressa.
Beth sentiu um nó a formar-se na garganta, pois não compreendia como
conseguira Jack tornar-se num homem tão atencioso. Pelo pouco que ele lhe
contara a respeito da sua infância, sabia que fora difícil, do género que
normalmente produziria um bruto insensível.
*
Quando chegaram à Balança, Beth estava à beira do colapso. Doía-lhe o
corpo todo, como se tivesse sido submetida à tortura medieval da roda.
O céu parecia chumbo, e ouvira alguém dizer que ia voltar a nevar em
breve. Olhou para trás, para o caminho que tinham percorrido até ali, e viu que
a fila de trepadores continuava tão comprida como naquela manhã, e
espantou-se com a loucura de tudo aquilo.
Ouviu vagamente Jack dizer que iam montar a tenda para passar a noite
e depois verificar se os carregadores já tinham transportado todas as suas
coisas até ao topo da passagem.
Rastejou para dentro da tenda ainda antes de os rapazes terem acabado
de cravar as estacas no chão gelado. Não havia um centímetro de terra à volta
da Balança onde não se erguesse uma tenda, e o barulho de centenas de vozes,
a queixarem-se, a discutirem, a chamarem, fê-la querer tapar os ouvidos e não
ouvir nada.
Sem saber muito bem como, conseguiu tirar as mantas das mochilas,
mas caiu em cima delas antes de conseguir estendê-las ou tentar acender a
lanterna.
Estava escuro quando os rapazes voltaram, e, apesar de ouvir-lhes as
vozes quando entraram na tenda, Beth não foi capaz de mexer-se ou sequer de
abrir os olhos.
Ficaram acampados na Balança durante três dias, por causa do grande
nevão que caiu. Houve quem continuasse até aos Degraus Dourados, apesar da
tempestade, mas Jack achou que era loucura, porque alguém caíra e partira
uma perna e tivera de ser levado para Sheep Camp por carregadores índios.
Era aborrecido estarem ali encolhidos na tenda, mas ao menos dava-lhes
tempo para descansar e prepararem-se para a próxima e terrível etapa da
viagem. Os homens contra os quais Jefferson a alertara estavam presentes em
força ali na Balança. Pareciam prospectores como os outros, com mochilas e
pás, mas as fogueiras que acendiam, as bebidas quentes que ofereciam aos
incautos eram apenas um engodo para atrair os mais tolos para um dos seus
jogos-da-vermelhinha. Reconheceu alguns como sendo apaniguados de Soapy,
que, calculou, devia ficar com uma boa parte dos lucros.
Theo amuou durante algum tempo quando ela lhe explicou que os jogos
estavam viciados, mas isso permitiu-lhe ao menos não se deixar atrair.
Na quarta manhã, Jack anunciou que era tempo de dobrar a tenda e
partir, apesar de o céu continuar a ameaçar neve e a temperatura ter descido
ainda mais.
– Se as deixarmos lá durante muito mais tempo, as nossas coisas estarão
escondidas debaixo de metros de neve quando lá chegarmos – disse, lançando
um olhar ansioso ao céu. – Além disso, nunca vai haver um dia bom para subir
aqueles degraus.
Sam tomou a dianteira, com o trenó amarrado por cima da mochila.
Seguia-se Beth e, atrás dela, Jack, que transportava o trenó e a mochila como
Sam, e Theo fechava o grupo. Era imperativo que mantivessem o ritmo da
pessoa que ia à frente, e com um vento forte e gelado a ameaçar arrancá-los a
todos ao flanco da montanha e apenas uma fina corda ao longo da parede de
gelo a que se agarrarem, cada passo era uma aventura.
O suor alagava-os e todos os músculos gritavam por misericórdia; a
mordidela do vento nas partes expostas do rosto era como mil alfinetadas.
Beth não ousava olhar para outro lugar que não fosse aquele onde punha os
pés, porque uma escorregadela seria mortal, e as costas doíam-lhe, dobradas
numa postura tão pouco natural. Começou a contar os degraus, mas desistiu ao
chegar aos quinhentos.
Ouvia-se, acima do uivo do vento, um contínuo gemido comum, o som
de duas centenas de almas levadas aos limites da resistência humana.
Um homem, lá mais acima do sítio onde Beth e os rapazes se
encontravam, tombou para o lado e deslizou pela encosta da montanha, a
gritar, mas ninguém voltou sequer a cabeça para olhar, quanto mais
interromper a subida para tentar ajudá-lo. Poder-se-ia dizer que fazê-lo seria
arriscar a própria vida e as dos que vinham atrás, mas mesmo assim parecia
bárbaro ignorá-lo. A subida era, no entanto, demasiado íngreme para que
alguém gastasse fôlego a fazer um comentário. Beth sentiu Jack tocar-lhe ao
de leve nas costas, como que a comunicar-lhe que também ele se sentia
impotente.
E continuaram a subir, sem se atreverem a olhar para trás ou sequer em
redor. O gemido universal tornava-se cada vez mais alto, misturado com o
som de respirações ofegantes.
Recomeçou a nevar e, de repente, Beth deixou de ver fosse o que fosse
excepto as botas de Sam à altura dos seus olhos. À agonia do esforço
juntou-se o terror, pois não imaginava como conseguiriam montar uma tenda
quando chegassem lá acima, e sem um abrigo morreriam certamente de frio.
– Consegues continuar, Beth – disse Jack atrás dela, a voz
fantasmagórica naquele estranho mundo branco. – Vai correr tudo bem,
estamos quase lá. Pensa no chá que vamos fazer. Continua.
Algures lá em baixo soou um grito estrangulado, e calculou que mais
alguém tinha caído. E então ouviu Theo gemer.
Voltou involuntariamente a cabeça, mas só conseguiu ver uma forma
coberta de neve que sabia ser Jack.
– Agarra-te ao trenó – ouviu-o dizer a Theo. – Eu ajudo-te a subir.
Era um mundo cinzento-esbranquiçado em que não conseguia ver mais
do que meio metro em qualquer direcção e em que o som se distorcia. De
certeza que a voz com sotaque escocês que ouvira horas antes viera de cima?
Parecia-lhe agora vir de baixo. Mas a voz de Jack acalmou-a, recordando-lhe
que estavam quase a chegar, que Theo estava a aguentar e que Sam estava
mesmo à frente dela.
Uma voz de mulher gritou que não conseguia dar mais um passo, e uma
voz de homem incitou-a a continuar, mas os sons pareciam vir da direita de
Beth, confundindo-a ainda mais.
– Concentra-te no próximo degrau – gritou Jack, quando ela vacilou. –
Já não falta muito.
Chegaram finalmente ao topo e deram por si no que parecia ser uma
cidade branca. Os edifícios eram altos montes de objectos, as ruas os estreitos
corredores deixados entre eles.
Jack deixou escapar uma praga angustiada ao aperceber-se de que não
ia ser fácil encontrar as coisas deles. Tinham dado aos carregadores uma
comprida vara enfeitada com fitas de cores garridas para as marcar, mas nunca
lhe ocorrera que a neve escondesse tudo. Viram homens empoleirados nos
montes, a escavar freneticamente com pás, e ouviram um deles dizer que
estava a cavar há já três dias.
Não havia espaço para montar uma tenda. O único abrigo era dentro da
«cidade» e Jack guiou-os pelas ruas sinuosas até encontrar um sítio onde
podiam esticar uma lona para lhes servir de tecto.
Estava menos frio sem o vento gelado que tinham enfrentado durante
toda a manhã. Sentaram-se em cima dos trenós e mais uma vez fizeram chá na
chaleira-vulcão. Nenhum deles falava, e Beth teve a certeza de que estavam
todos a pensar o mesmo que ela, que deviam ter esperado pela Primavera. Já
começava a escurecer, e a perspectiva de uma noite ali acocorados, talvez
muitas mais se não conseguissem encontrar as suas coisas, era demasiado
terrível de encarar.
Jack e Sam pareceram revigorados pelo chá quente e, pegando na
lanterna, afastaram-se para ir procurar o material.
– Como está a tua ferida? – perguntou Beth a Theo, os dois aninhados
em cima do trenó e embrulhados numa manta.
– Não me parece que tenha reaberto – disse ele. – Mas se reabriu, é o
que mereço por ter-te trazido para aqui. Isto não é lugar para uma senhora.
– Estou longe de ser a única. E um dia havemos de olhar para trás e rir
de tudo isto.
– Espero que sim. – Theo suspirou. – O meu desejo é compensar-te
sendo o marido perfeito e dando-te o lar que mereces.
– Isso é um pedido de casamento? – perguntou ela, a provocá-lo.
Theo descalçou a luva da mão direita e acariciou-lhe ternamente o rosto.
– Se queres que seja, mas a minha intenção era pedir-te num local muito
mais romântico do que este.
Beth olhou para a estreita passagem entre os montes de dejectos.
Continuava a nevar e outras pessoas tinham ido partilhar aquele abrigo com
eles; também elas estavam a estender uma lona para se protegerem. Riu.
– Não me parece que encontremos um local romântico nos tempos mais
próximos – disse.
Tinham pensado que a subida dos Degraus Dourados seria de longe a
pior parte da viagem, mas os dois dias seguintes, enquanto tentavam encontrar
as suas coisas, foram uma longa e arrastada tortura.
Era impossível dormir; estavam gelados, sujos e desesperados por uma
refeição quente, e o barulho de tanta gente amontoada à volta deles, o vento
que não parava de soprar e as repetidas quedas de neve estavam a levá-los à
beira da loucura.
Todos eles cavaram pilhas de objectos, só para ficarem desapontados, a
perder a esperança de alguma vez recuperarem as suas provisões. Cavar
aquecia-os um pouco, mas os músculos doíam-lhes insuportavelmente, e
quando paravam de cavar o frio parecia gelar-lhes todas as articulações do
corpo.
Beth tremia de pavor sempre que tinha necessidade de aliviar-se. Os
homens iam para um lado qualquer, independentemente de quem estivesse por
perto, mas ela não podia fazer o mesmo, e quanto mais se preocupava com
isso, mais frequentemente parecia precisar de o fazer.
No terceiro dia ali em cima, com a ameaça de nevões ainda mais
intensos, pensou verdadeiramente que não conseguiria sobreviver mais vinte e
quatro horas. As lágrimas congelavam-lhe no rosto e tinha os lábios tão
gretados que quase não conseguia falar. Até Jack começava a dar sinais de
fraquejar. Viu-o trepar para cima de um dos montes e notou como os seus
movimentos se tinham tornado lentos. Theo estava mortalmente pálido e
cambaleava quando tentava andar, e, apesar de Sam se esforçar ao máximo
por acompanhar Jack na busca, era evidente que se aproximava do colapso.
E, no entanto, foi Sam quem acabou por encontrar as coisas deles.
Tinha ido fazer mais uma tentativa, sobretudo para restabelecer a circulação
nos membros, e aconteceu passar por um homem que tinha encontrado o seu
material. Quando o homem tirou o último saco, Sam viu a vara enfeitada com
fitas coloridas a espreitar por baixo. Se não estivesse ali, mais uma hora e a
neve teria voltado a cobri-la.
Amontoar tudo aquilo nos trenós aqueceu-os e animou-os um pouco,
apesar de a neve cair cerrada e rápida. Finalmente, arrastaram os trenós até à
cabana coberta de neve, com uma Union Jack esfarrapada a drapejar no
telhado, onde a polícia montada do Noroeste guardava, com as suas
metralhadoras Maxim, a fronteira do Canadá.
Beth sentiu-se tranquilizada ao ver os familiares casacos vermelhos e
calças azul-escuras, e também por saber que os polícias não permitiriam a
entrada no país de pistolas ou revólveres.
Estavam decididos a impedir que a violência e a anarquia que reinavam
em Skagway passassem a sua fronteira.
Havia que pagar direitos sobre os artigos que vinham do lado americano
da montanha. Mas Theo resolveu uma parte do problema mostrando recibos
de tudo o que tinham comprado em Vancouver e argumentou que não tinham
de pagar direitos sobre eles, só sobre o que fora adquirido em Skagway.
Beth perguntou-se como conseguiam os mounties ser são simpáticos e
bem-dispostos, ali presos no alto de uma montanha durante meses seguidos
com um tempo daqueles. Podiam ter casacões de pele de bisonte, mas a
cabana era pouco mais quente do que uma tenda, e numa só noite a neve podia
atingir uma altura de um metro e oitenta. No entanto, pareceram divertidos
com o argumento de Theo e assentiram, cobrando-lhes apenas dois dólares no
total, sem sequer verificarem a carga.
Miraculosamente, parou de nevar e um sol tímido brilhava quando
iniciaram, com as raquetas de neve nos pés, a caminhada de oito quilómetros
até Happy Camp. Apesar de terem de puxar os sobrecarregados trenós e de
adaptarem-se à estranheza das raquetas de neve, pela primeira vez desde que
tinham saído de Dyea o caminho pareceu-lhes fácil. O número de pessoas que
os tinham precedido compactara a neve, e os trenós deslizavam suavemente.
Ficaram espantados quando alguém lhes disse que só tinham percorrido trinta
e cinco quilómetros desde Dyea e treze quilómetros e meio desde Sheep
Camp, pois parecera-lhes que tinham sido duzentos.
Apesar do cansaço, o facto de estarem outra vez em movimento, com a
perspectiva da próxima noite numa tenda com uma fogueira para os aquecer,
devolveu-lhes o ânimo. Em alguns pontos onde o trilho descia, deslizaram
inclusivamente em cima dos trenós, a gritar e a rir como crianças. Havia quem
tivesse equipado os seus com uma vela e até ultrapassasse os poucos que eram
puxados por equipas de cães.
Era fácil perceber porque tinham chamado Happy ao acampamento.
Ficava situado numa zona plana, onde era fácil montar uma tenda, e tinham
finalmente voltado à linha das árvores, de modo que podiam cortar lenha para
fazer fogueiras.
A felicidade esteve presente por todo o lado naquela noite, não obstante
a espessa camada de neve e a promessa de mais. O alívio de poder descansar
antes de voltar ao caminho, a convicção de que mais nada poderia ser tão mau
como os Degraus Dourados ou o alto da passagem e o facto de poderem
sentar-se à volta de uma grande fogueira e secar as roupas molhadas eram o
suficiente para trazer de volta os sorrisos e as gargalhadas.
Depois de terem preparado uma refeição de arroz com bacon, Beth tirou
o violino do estojo e tocou junto à fogueira. Em grupos de duas e de três, as
pessoas começaram a sair das tendas para ouvir, aplaudindo no final de cada
música. Alguém levou uma garrafa de whisky para partilhar com Beth e com
os rapazes e o líquido ardente subiu-lhes à cabeça, fazendo-os rir de tudo e de
nada.
Mais tarde, quando as pessoas regressaram às respectivas tendas, Beth
ficou por um instante a olhar em redor. Estava lua cheia, e o céu limpo e
salpicado de estrelas. As árvores à volta do acampamento eram raquíticas, mas
com a sua capa de neve pareciam mágicas. Até as tendas à volta da deles, que
ela sabia estarem sujas e gastas, pareciam bonitas à luz dourada das fogueiras
que ardiam diante de cada uma delas. Com toda a ansiedade da última semana,
não reparara sequer na paisagem, mas agora, novamente em paz, via como era
magnífica, e descobriu que estava entusiasmada com a aventura que os
esperava.
«Um dia, poderei falar à Molly de tudo isto», pensou, olhando para os
rapazes que estavam sentados, meio adormecidos, junto à figueira. Estavam
tão sujos e desalinhados, de olhos orlados de vermelho, barbas hirsutas,
cabelos desgrenhados e enfiados numa tão grande quantidade de roupa que
facilmente alguém os confundiria com três ursos. Desejou que houvesse um
fotógrafo entre as pessoas que se dirigiam para Dawson City. Seria bom ter
uma recordação permanente do aspecto de todos eles naquele trilho, e
qualquer coisa para mostrar a Molly.
Um lobo uivou algures ali perto, e o seu grito foi respondido por alguns
dos cães do acampamento.
Beth estremeceu e apressou-se a voltar para junto da fogueira. Por um
instante, esquecera que viviam criaturas selvagens naquela selvagem
imensidão.
CAPÍTULO 29
–Finalmente chegámos! – exclamou Jack alegremente enquanto corria
com o trenó pela estreita passagem que ligava o lago Lindemann ao lago
Bennett.
A maior parte dos que tinham vindo com eles por Chilkoot Pass ficara
nas margens do lago Lindemann para construir os barcos em que viajariam até
Dawson City, mas Jack ouvira dizer que, quando o gelo derretia, os rápidos
entre os dois lagos eram muito perigosos e decidira que seria preferível
continuarem até ao lago Bennett e construir o barco lá.
Theo ficara descontente com o que considerara ser um esforço inútil.
Gostara da cidade de tendas do lago Lindemann, onde tinham surgido uma
casa de jogo, bares, lojas e até restaurantes, e não duvidava de que conseguiria
ganhar ao póquer dinheiro suficiente para comprar um dos barcos
desmontáveis que um negociante levara até ali pelo perigoso caminho da
montanha. Ele e Jack quase chegaram a vias de facto, porque Jack afirmara
que aqueles barcos não eram suficientemente resistentes para transportá-los
quinze quilómetros, quanto mais oitocentos, e acusara Theo de ser demasiado
preguiçoso para se dar ao trabalho de construir um que fosse seguro.
Beth andara com os nervos em franja durante os poucos dias que tinham
passado no lado Lindemann, vendo como Jack começava a ficar exasperado
com Theo. Jack carregara sem protestar mais peso do que lhe caberia para o
aliviar, deixara-o viajar instalado num dos trenós de Happy Camp até ao lago
Lindemann porque lhe doía o ombro, isentara-o de ajudar a cortar lenha e de
outros trabalhos mais duros. Mas não aceitava que Theo se pavoneasse de um
lado para o outro, tratando-o como se fosse um criado. Beth temia que
acabasse por decidir continuar sozinho até Dawson City, e não o censuraria se
o fizesse.
Acontecera, porém, que Theo perdera a maior parte do dinheiro que lhe
restava num jogo de póquer, de modo que comprar um barco ficara fora de
questão, e acabara por não ter alternativa senão resignar-se aos planos de Jack.
O que não significava que o tivesse aceitado bem. Beth sentia que,
apesar dos seus ares de superioridade, Theo tinha na realidade ciúmes de Jack
porque tantas pessoas o respeitavam e lhe davam ouvidos, enquanto ele era
visto como pouco mais do que um parasita. Mal dissera uma palavra enquanto
caminhavam pela superfície gelada do lago, nem sequer a ela.
E a verdade era que também Beth tinha os seus próprios motivos para
estar irritada com Theo. Por muito que quisesse esquecer a dor que ele lhe
causara em Skagway e fazer com que as coisas voltassem a ser como em
Vancouver, não estava a ser fácil.
À medida que avançavam pelo lago Bennett, porém, quaisquer
ressentimentos que houvesse entre eles dissiparam-se, porque o espectáculo
que contemplavam era verdadeiramente espantoso.
Além da fascinante beleza do estreito lago gelado que parecia insinuar
um coleante caminho por entre montanhas cobertas de neve, havia tendas
espalhadas ao longo de ambas as margens até tão longe quanto a vista
conseguia alcançar.
Milhares de tendas, de todos os tamanhos e feitios: tendas novas e
tendas velhas e esfarrapadas; tendas improvisadas e minúsculas, que mal
dariam para abrigar um homem, e tendas suficientemente grandes para um
circo; tendas de todos os géneros possíveis e imagináveis.
Sabiam que White Pass, o caminho alternativo e mais comprido que
partia de Skagway, terminava ali, pelo que estavam à espera de uma multidão,
mas não tinham imaginado que fosse tão grande, ou que houvesse tantos
animais.
White Pass era também conhecido como «Trilho dos Cavalos Mortos»
devido às centenas de cavalos que nele morriam de fome e de maus-tratos. Um
dos mounties, na fronteira, falara num tom zangado da crueldade e estupidez
das pessoas que se punham a caminho sem levarem alimento suficiente para
os animais. Mesmo assim, havia ali muitos cavalos, além de cães, bois, burros,
cabras e até galinhas.
E havia também uma cacofonia de sons: o bater de machados em
madeira, o raspar áspero de serras, as pancadas repetidas de martelos, os
latidos dos cães e os gritos das pessoas a chamarem umas pelas outras. Um par
de anos antes, aquele sítio devia ter sido um lugar silencioso e selvagem por
onde só passavam índios e um ou outro caçador de peles. Agora era uma
cidade que nascia.
Theo ficou visivelmente mais animado ao ver uma tabuleta a anunciar
jogos de póquer e de faraó todas as noites, e apesar de não lhe agradar a ideia
de ele arriscar no jogo o pouco dinheiro que lhe restava, Beth ficou contente
por vê-lo sorrir outra vez. Pensou também que poderia ganhar qualquer coisa a
tocar violino, como fizera no lago Lindemann.
– Até onde temos de ir? – resmungou Theo uma hora mais tarde, ao
verificar que Jack continuava a avançar pela superfície gelada do lago.
– Ali em baixo há mais árvores. Já vai ser suficientemente duro
abatê-las para construir o barco sem termos de arrastá-las para muito longe –
respondeu Jack, friamente.
Beth trocou um olhar com o irmão. Sabia que ele não gostava de ver-se
apanhado no meio, pois gostava de ambos os companheiros e ambos gostavam
dele. Apreciava um jogo de cartas e uma bebida, e continuava convencido de
que era Theo quem havia de torná-los ricos. Ao mesmo tempo, porém, sabia
que dependiam os três de Jack, porque só ele tinha as competências
necessárias para levá-los em segurança até Dawson City.
Sam fez-lhe uma careta. Não precisou de dizer uma palavra, ela sabia
que estava a pensar que Jack era um tudo-nada demasiado exigente e mandão
e que a todos eles faria bem uns dias de descanso antes de começarem a
construir o barco.
Beth decidiu que tinha de intervir e, levantando a orla da saia, correu
atrás de Jack.
– Não podemos descansar uns dias antes de começarmos a trabalhar no
barco? – perguntou. – Ainda estamos em Março, e o gelo não vai derreter
antes de finais de Maio, de modo que temos muito tempo.
Jack deteve-se bruscamente, largando a corda do trenó que rebocava, e
olhou para ela com um ar ligeiramente divertido.
– Viste a quantidade de pessoas que já aqui estão?
– Bem, sim – respondeu ela, encolhendo os ombros.
– A cada dia que passar, o número vai tornar-se maior – disse ele,
pacientemente. – Estão a chegar pelos dois caminhos aos milhares, e, muito
em breve, todas as árvores que agora vês terão sido cortadas. Temos de
começar a juntar madeira logo que acamparmos, ou arriscamo-nos a que outra
pessoa qualquer fique com ela.
Beth olhou atentamente para ele. Estava sujo e esfarrapado, com a barba
hirsuta, o cabelo comprido e empastado, a pele do rosto queimada pelo frio.
Mas não tinha a brilhar-lhe nos olhos a ganância do ouro que todos os outros
homens tinham. Duvidava que ele sonhasse sequer com grandes riquezas,
como Theo e Sam sonhavam.
– É justo – assentiu. – Faz sentido. Mas diz-me uma coisa, Jack Child, o
que é que te impulsiona?
Não me parece que seja o ouro.
Ele riu baixo, a olhar para Theo e Sam, que descansavam apoiados ao
trenó.
– Alguém tem de assegurar que vocês os três chegam lá em segurança.
– Isso não responde verdadeiramente à minha pergunta – retorquiu ela.
Ele sorriu, estendeu a mão e fez-lhe uma festa na cara.
– Eu achei que sim.
Em meados de Maio, o barco estava pronto. Era, mais exactamente,
uma jangada solidamente construída, com um mastro, um leme para a
governar e tábuas de lado para os manter a eles e ao equipamento a salvo em
águas turbulentas. Os rapazes tinham-lhe chamado Cigana, pintando o nome e
o número, 682, na trave que atravessava a proa. Samuel Steel, o comandante
local da polícia montada, tinha decretado que todas as embarcações teriam de
ser registadas e andara de um lado para o outro entre os prospectores a
distribuir números e a anotar num grande livro os nomes dos que viajariam em
cada uma delas, bem como os dos familiares mais chegados, para o caso de
haver acidentes durante a longa viagem até Dawson City.
A jangada estava pousada no gelo, colada à margem do lago,
juntamente com milhares de outras embarcações, à espera do dia em que a
superfície descongelasse. Muitas tinham poucas semelhanças com algum
barco que Beth ou os rapazes tivessem alguma vez visto: formas triangulares,
redondas e ovais, enormes jangadas suficientemente grandes para transportar
cavalos, chalupas, catamarãs, canoas, algumas pouco mais que toscas caixas
de madeira.
Muitas mais estavam ainda a ser construídas, e, apesar do sol e do céu
azul, havia por todo o lado discussões, o barulho de serras, de martelos e
pragas, porque os que não tinham acabado os barcos sentiam a pressão e
começavam a entrar em pânico, estando toda a gente numa grande
expectativa.
Calculava-se que havia agora mais de vinte mil pessoas nas margens do
lago Bennett, cobertas em toda a sua extensão de tendas e equipamento.
Havia, à disposição de quem quisesse, todo o género de confortos e serviços,
incluindo tendas de banhos, tendas de barbeiro, uma igreja, um casino e um
posto de correios, além de lojas onde se vendia de tudo, desde pão a botas de
borracha. O que não havia, graças à vigilância dos mounties, era o crime e o
desrespeito pela lei que caracterizavam Skagway. Dizia-se que alguns
sequazes de Soapy tinham atravessado a passagem, mas tinham sido
recambiados com severos avisos para não voltarem.
Os únicos problemas graves que surgiam eram entre os homens que
cortavam a madeira verde em tábuas para construir os barcos. Tinham de
trabalhar aos pares, usando uma serra com um metro e oitenta de
comprimento. O que ficava na parte de cima da armação guiava a serra ao
longo da linha traçada a giz no tronco, enquanto o de baixo tinha de puxá-la,
mas quando os grandes dentes da serra mordiam a madeira, apanhava um
autêntico duche de serradura. O de baixo convencia-se de que o companheiro
não estava a guiar a serra como devia ser, tal como o de cima achava que o
outro agarrava o punho da ferramenta com demasiada força. As discussões
descambavam muitas vezes em violentas lutas, e houve casos em que
amizades de uma vida inteira, que tinham sobrevivido a todas as provações
que o trilho lhes despejara em cima, ficaram irremediavelmente destruídas.
Jack, Sam e Theo tinham evitado a maior parte deste problema ao
decidirem construir uma jangada de troncos em vez de um barco de tábuas,
mas mesmo assim houvera muitas pragas e discussões.
Theo julgava-se acima de qualquer espécie de trabalho manual e a
maior parte das vezes desaparecia. Sam não se importava de trabalhar, mas
facilitava se Jack não andasse de olho nele.
Muitas tinham sido as ocasiões em que Beth o ouvira ameaçá-los de
partir sem eles se não fizessem a sua parte.
De todos os modos, o trabalho estava feito. Tudo o que faltava era
montar a vela e carregar o equipamento a bordo, e à medida que o sol da
Primavera se tornava um pouco mais quente a cada dia que passava, e os dias
se tornavam mais compridos, ouviam o ribombar distante das avalanchas nas
montanhas e o gorgolejar da neve a derreter.
A maior parte dos que tinham acabado de construir os barcos tendia a
passar os dias sentada na margem, a olhar distraidamente para a água verde
que se via através do gelo enquanto afeiçoavam com a faca mais uma pagaia
ou um remo. Dias antes, alguém brincara com o facto de chamarem ao
movimento de toda aquela gente em direcção aos campos auríferos uma
«corrida». Para todos eles, o nome dava vontade de rir, porque, até ao
momento, tinha sido precisamente o contrário. Fora um lento e penoso
arrastar, uma prova de resistência que durara três meses. As barrigas dos
homens tinham desaparecido, os seus corpos tinham-se tornado magros e
musculosos, e as caras encovadas, barbas espessas e cabelos compridos
provavam que já não eram «novatos». Sorriam com orgulho quando falavam
dos que tinham desistido e voltado para casa. Estavam todos unidos por um
laço que nascera das vicissitudes e obstáculos que tinham ultrapassado.
As mulheres continuavam a não ter tempo para se irem sentar na
margem. Para elas, havia roupa para lavar e remendar, cartas a escrever e
dúzias de outros trabalhos que tinham de ser feitos para tornar a vida dos
homens mais confortável. Mas Beth reservava algum tempo para ver os
bandos de gansos passarem lá em cima e estudar os tapetes de flores que
surgiam quando a neve derretia: montanhas de não-me-esqueças,
grãos-de-esquilo e corações-de-maria.
Depois de ter vivido tanto tempo num mundo todo branco, as cores que
iam aparecendo à medida que a neve derretia pareciam-lhe
extraordinariamente brilhantes. O vermelho das montanhas, o verde-escuro
das florestas de abetos, o verde-ácido dos líquenes e musgos sulcados por
veios rosa, azuis e amarelos das flores que atapetavam o chão fora da
esqualidez do acampamento. Os pardais e os tordos tinham voltado, e por
vezes o concerto dos seus cantos quase abafava o barulho das serras e dos
martelos.
Quando se fartava daquela algazarra constante, Beth pegava no violino,
afastava-se do acampamento e tocava para si mesma, contente por estar
sozinha. Um dia, viu duas crias de urso a brincar ao sol junto de uma grande
rocha e escondeu-se para observá-las de uma distância segura, a sentir-se
privilegiada por tê-los descoberto. A mãe não tardou a aparecer,
empurrando-as brincalhonamente com as grandes patas, e o espectáculo
evocou recordações de Molly, pondo lágrimas nos olhos de Beth.
Ocorria-lhe com frequência, quando estava completamente sozinha, que
já não tinha planos, ou sequer sonhos, para o futuro. Todos os que ali estavam
tinham o sonho do ouro; à noite, sentados à volta das fogueiras, falavam das
coisas em que iam gastá-lo, ou dos lugares para onde iriam a seguir.
Mas ela parecia incapaz de pensar para lá do dia seguinte. Havia muitas
coisas que queria: uma verdadeira casa à prova de chuva, um banho quente,
uma cama macia, fruta fresca, e poder vestir um vestido bonito tendo a certeza
de que cinco minutos mais tarde não estaria cheio de lama. Gostaria que Theo
fizesse amor com ela, porque fora impossível desde que tinham saído de Dyea,
com aquele frio, e eles tão sujos, e Sam e Jack sempre por perto. Também
gostaria de voltar a ver Molly e a Inglaterra, mas até isso lhe parecia tão
distante que não podia chamar-lhe um plano.
Perguntava-se o que seria feito de todos os sonhos que costumava ter.
Da casa com um encantador jardim. Do seu dia de casamento, ou de umas
férias à beira-mar. Agora, já só muito de longe em longe pensava nessas
coisas. Seria por ter visto bastante mais do que alguma vez sonhara? Ou por
estar desiludida?
Theo tecia muitas vezes sonhos a respeito de os dois viverem num
grande apartamento em Nova Iorque, ou numa magnífica mansão em
Inglaterra. Beth bem teria gostado de poder acreditar que se tornariam
realidade, mas não acreditava. Theo voltara a ganhar o dinheiro que perdera
no lago Lindemann, e voltara a perdê-lo. A realidade era que seria sempre
assim com ele, nunca seguro, nunca assente, sempre à procura da grande
oportunidade.
Beth tinha consciência dos defeitos dele, e também sabia que eram
radicais, que nunca ia mudar.
Por vezes, desejava ter prestado mais atenção ao que Ira lhe dissera a
respeito dos homens que amavam o jogo e nunca lhe ter dado o seu coração.
Mas quando as coisas estavam bem entre os dois era maravilhoso, porque ele
era divertido, inteligente e bastante amoroso, e ela tinha tendência para
esquecer as partes más: os desaparecimentos, as mentiras ou meias verdades, a
preguiça e a presunção.
A verdadeira segurança vinha-lhe de dentro de si mesma. Sabia que
podia ganhar a vida em qualquer lado com o seu violino, e amava isso tanto
quanto amava Theo. Talvez não precisasse de um sonho porque já estava a
vivê-lo?
Ouviram o primeiro estrondo na madrugada de 29 de Maio. Beth
pensou que tinha sido um tiro e sentou-se na enxerga, alarmada. Mas então
houve outro, e compreendeu que era o gelo a rachar.
Naquela altura do ano, nunca anoitecia completamente. O céu ganhava
tons de púrpura por volta da meia-noite, como se o sol fosse finalmente
pôr-se, mas nunca ficava verdadeiramente escuro. Por isso levantou-se de um
salto, enfiou as botas enquanto chamava os outros e correu para a margem do
lago.
Quando os rapazes se juntaram a ela, havia centenas de pessoas a
assistir. O gelo estalava e trovejava, e grandes jorros de água verde-escura
esguichavam das fendas e lavavam os detritos, as aparas de madeira, os pregos
e as manchas do piche com que tinham calafetado os barcos. Alguém aplaudiu
e os outros todos fizeram coro, dando as mãos e andando à roda como crianças
num recreio.
O último dia no lago Bennett foi de pura alegria para todos, pois na
manhã seguinte poderiam partir.
Beth desenterrou do fundo de um saco o seu vestido de cetim vermelho,
para usar nessa noite. Tinha um pouco de bolor escuro na frente, de estar
guardado tanto tempo, mas ela lavou-o e pô-lo a secar, entusiasmada com a
perspectiva de voltar a parecer uma verdadeira mulher, ainda que fosse só por
uma noite. Também lavou o cabelo, deixando-o secar ao sol.
Estava toda a gente ocupada com tarefas semelhantes. A fila para a
tenda dos banhos era a mais comprida que alguma vez vira, e alguém lhe disse
que estavam a usar a mesma água quente para cada doze homens, oferecendo
um enxaguamento com água fria.
Alguns dos homens, incluindo Jack, resolveram dar uma ajuda aos que
ainda não tinham acabado de construir os barcos. Até os cães sentiam a
excitação que andava no ar e corriam pelo acampamento a ladrar loucamente.
Às oito da noite, Beth tocou o seu violino diante de uma casa cheia no
Golden Goose, o grande saloon de jogo. Apareceram pessoas que nunca lá
tinham sido vistas, e toda a gente dançou.
Muito mais tarde, quando regressava à tenda com o som dos
estrondosos aplausos a ecoar-lhe nos ouvidos e trinta e cinco dólares no
chapéu de Theo, ouviu a voz de um jovem a cantar «Sweet Molly». Até ao
momento, esquecera que a mãe costumava cantar aquela canção para Sam e
para ela quando eram pequenos, e ouvi-la naquele momento, tão longe de
casa, na véspera da última fase da sua viagem, pareceu-lhe uma coisa
portentosa.
Sam e Jack tinham ficado no saloon e, pela primeira vez em meses,
Theo fez amor com ela. Mais tarde, quando estava sonolentamente aninhada
contra o ombro dele, a ouvir os sons da alegria que ecoavam por todo o
acampamento, pensou que devia ser a mais feliz das mulheres que ali estavam.
Os festejos que se prolongaram pela noite dentro não impediram
ninguém de levantar-se cedo na manhã seguinte e correr a verificar o estado
do gelo.
Havia alguns grandes pedaços a flutuar, mas o caminho estava
suficientemente livre para se fazerem à vela e partir. De repente, estava toda a
gente a desmontar tendas, a arrumar tachos e enxergas, a carregar provisões
para dentro dos barcos.
Beth sorria para si mesma enquanto dobrava o seu vestido de cetim
vermelho e preparava as melhores botas para Theo guardar num dos grandes
sacos impermeáveis que não voltariam a abrir antes de chegarem a Dawson
City. Usava novamente o velho vestido de algodão azul-escuro, o grosso
casaco de lã aos quadrados castanhos e vermelhos, o chapéu de aba larga e as
botas de borracha. Uma muda de roupa e o violino foram guardados num saco
impermeável mais pequeno, para a viagem.
Ficou a ver Sam empacotar as suas coisas. Estava de tronco nu, a
primeira vez que o via sem uma camisa desde o Verão anterior, e foi uma
surpresa notar como o magro peito e as costas de rapaz que recordava dos
tempos de Liverpool se tinham enchido de músculos duros e encordoados.
Mas a verdade era que também ela tinha agora músculos nos braços e nas
pernas. Carregar mochilas, arrastar trenós e transportar baldes de água
tinham-na tornado quase tão forte como os homens.
– Estás entusiasmado, Sam? – perguntou.
– Podes apostar! – respondeu ele, o seu rosto bonito a rasgar-se num
grande sorriso. – Bem sei que ainda temos um longo caminho a percorrer, mas
vai ser uma viagem fácil, e o tempo está óptimo.
– Pergunto-me se continuaremos juntos quando lá chegarmos – disse
ela, pensativamente. – Ainda acreditas que tu e o Theo têm hipóteses de
montar um saloon de jogo?
– Claro que temos, mana. – Sam riu. – Contigo e o teu violino a
atraí-los, não podemos falhar.
– Pensas alguma vez na Inglaterra? – perguntou ela, e era uma pergunta
que nunca antes pensara fazer-lhe.
Ele sorriu.
– Para ser sincero, nem por isso. Voltar lá para quê? Nunca teríamos as
emoções que temos aqui.
– Mas há a Molly.
Ele coçou a cabeça loura e pareceu um pouco perplexo.
– Agora não seríamos nada para ela. Nem sequer se lembraria de nós.
Além disso, sei que não conseguiria voltar a adaptar-me àquela vida tacanha,
depois disto.
Beth sentiu um nó a formar-se na garganta e as lágrimas arderam-lhe
nos olhos.
– Nesse caso, acho que vou ter de voltar sozinha.
Sam agarrou-lhe os braços e apertou-os.
– Que se passa contigo, mana? Não devias estar a pensar nessas coisas
num dia como o de hoje.
Vamos partir numa aventura.
– Quantas vezes achas que me disseste isso desde que deixámos
Liverpool? – perguntou ela. – É
sempre o que vai acontecer a seguir, nunca uma pausa para pensar no
passado.
– E o passado foi assim tão bom que valha a pena pensar nele? –
replicou ele, com uma nota de sarcasmo na voz. – Se bem me lembro, era toda
a gente a dizer-me o que tinha de fazer… ninguém me perguntava o que
queria. Pois bem, já queria ser rico quando era rapaz, e hoje quero-o mais do
que nunca. A riqueza está em Dawson City, Beth, à nossa espera, quer a
arranquemos do chão, quer a tiremos a outros numa mesa de jogo. Ser rico
varrerá para sempre o facto de o papá se ter suicidado porque a mamã lhe foi
infiel.
Beth ficou chocada ao ouvi-lo dizer uma coisa daquelas. Pensava que o
irmão tinha posto aquilo de lado há muito tempo.
– Não consigo esquecer – continuou Sam, como se lhe tivesse lido os
pensamentos. – Impede-me de confiar nas mulheres… excepto em ti, claro.
– Bem, fico muito contente por isso – disse ela, sarcástica. – Mas que
acontece se não enriqueceres em Dawson?
– Vou enriquecer – disse ele, despreocupadamente. – Eu sei que vou.
Mais de sete mil barcos iniciaram a viagem naquela tarde, sob o
agradável calor do sol, uma vasta armada das mais bizarras embarcações que
jamais se viu. Umas tinham apenas um velho casaco ou camisa a servir de
vela; a maior parte ostentava uma espécie de bandeira improvisada na qual
tinha sido pintado ou cosido um nome. Alguns começavam já a adornar
perigosamente, outros tinham um aspecto elegante e capaz. Novos, velhos,
bancários, lojistas, escriturários, agricultores, soldados e coristas de cabaret…
todos os estratos da sociedade estavam ali representados. Alguns tinham
deixado esposas e famílias para trás, alguns fugiam à lei; havia gente oriunda
de meios privilegiados e gente vinda dos bairros de lata. No entanto, a
esmagadora maioria nunca tinha feito nada de excitante e investira as
poupanças de uma vida naquela louca aventura.
Sentada na proa da Cigana, Beth sentia as esperanças de todos eles
enquanto Sam e Jack remavam furiosamente e Theo segurava a cana do leme.
Os gritos de «Vemo-nos em Dawson» soavam por todo o lago e ecoavam nas
encostas das montanhas. Olhou para a margem e viu o que parecia ser um
imenso depósito de detritos: serrações abandonadas, esfarrapados restos de
tendas, roupas e fardos.
Garrafas e latas vazias brilhavam ao sol, milhares de cotos de árvores,
uma floresta inteira abatida para construir barcos.
Ao princípio, todos remavam freneticamente, todos queriam contar-se
entre os da frente, mas quando chegaram a águas mais profundas, levantou-se
um vento que enfunou as velas, e os remos e pagaias foram recolhidos.
Mais tarde, o vento amainou e as velas desincharam, mas como se uma
mensagem silenciosa tivesse sido passada de barco para barco, ninguém pegou
nos remos. Os viajantes recostaram-se, acenderam os cachimbos e deixaram a
corrente levá-los. Ouvia-se cantar por todo o lago, os sons alegres de pessoas
que acreditavam que o pior tinha ficado para trás e que o dia seguinte seria
cedo suficiente para correrem para o ouro.
A corrida recomeçou às primeiras horas da manhã, e Jack ficou
encantado ao ver a grande vela apanhar o vento e fazê-los deslizar a uma boa
velocidade. Havia talvez quarenta ou cinquenta barcos à frente deles, mas para
trás ficava todo o resto da imensa armada, dividida em grupos.
Com o sol a aquecê-los, a água a refulgir e a jangada a mostrar-se mais
estável e governável do que se tinham atrevido a esperar, ficaram ainda mais
animados. Jack tinha feito uns bancos baixos para se poderem sentar, de modo
que a água que entrasse pelas frestas entre os troncos não lhes ensopasse as
roupas, e instalaram-se neles, congratulando-se com a habilidade e previsão de
que tinham dado provas.
Foi durante a tarde que Beth reparou que algumas das pessoas dos
barcos que os precediam apontavam para o que parecia ser uma bandeira
vermelha e uma mensagem de uma só palavra rabiscada num pedaço de
madeira, a dizer «Canhão».
– Parece um aviso – disse Jack, e mal as palavras acabavam de sair-lhe
da boca ouviram o trovejar da água mais adiante.
Quando o rio descreveu uma ligeira curva à esquerda, viram
subitamente a estreita garganta que os esperava, com abruptas paredes de
rocha negra.
Beth arquejou, Theo empalideceu, Sam agitou o chapéu, excitado.
– Agarrem-se bem! – gritou Jack. – Deve ser Miles Canyon!
Um dos homens da polícia montada tinha-lhes falado daquele canhão.
Dissera-lhes que era um lugar assustador e perigoso, para lá do qual havia uma
grande quantidade de rápidos, mas nenhum deles estava à espera de que
aparecesse tão cedo. Era demasiado tarde para remar até à margem e
investigá-lo a pé, pois a jangada estava como que a ser sugada para a garganta.
– Peguem nos remos e usem-nos para impedir que sejamos atirados
contra as paredes! – gritou Jack, enfiando um remo na mão de Sam e outro na
de Theo. – Eu vou tentar governar-nos com o leme. E tu, Beth, agarra-te com
quanta força tenhas.
Todos olharam, horrorizados, quando a jangada entrou no canhão. O
desfiladeiro tinha um terço da largura do rio por onde até então tinham
navegado e a água, forçada a correr por um espaço muito mais estreito,
formava no centro uma espécie de crista com mais de um metro de altura.
Estavam praticamente equilibrados no alto desta crista, avançando a uma
velocidade alucinante, e o rugido da corrente era tão forte que não conseguiam
ouvir-se uns aos outros.
A água estava cheia de troncos à deriva, trazidos pelo rio dos lagos da
montanha, de grandes penhascos e rochas de arestas aguçadas. Beth
agarrava-se à prancha que servia de amurada, a ver como Jack tentava
contornar aqueles obstáculos, e a cada raspar pelo fundo da jangada temia que
ela se voltasse.
Viu, mais à frente, uma grande barcaça voltar-se e cinco ou seis homens
tentarem desesperadamente agarrar-se a ela enquanto rodopiava e se desfazia
contra as rochas e penhascos.
Olhou para trás e viu uma canoa virada, mas nenhum sinal do
proprietário. A situação era, no entanto, demasiado assustadora para lhes
permitir pensar sequer nos outros, pois a jangada rodopiava loucamente, e tão
depressa era a proa que se erguia como a popa que se empinava como um
cavalo. Grandes vagas geladas varriam-na de uma ponta à outra, e tinham de
agarrar-se aos lados para não serem arrastados borda fora.
Beth fechou momentaneamente os olhos e, quando voltou a abri-los, viu
mais dois barcos esmagarem-se contra os rochedos. Um desfez-se no mesmo
instante, como se tivesse sido construído com paus de fósforo.
Só Jack estava de pé. Tinha-se amarrado com uma corda à amurada da
proa e, com todos os músculos do corpo retesados, usava um remo para guiar
a jangada e fazê-la passar ao lado das rochas e evitar embater nas paredes do
desfiladeiro.
Sam estivera ajoelhado à proa, também a usar o remo para os desviar
das rochas, mas, quando Beth voltou a olhar, tinha desaparecido.
– Sam! – gritou, com toda a força dos pulmões. – O Sam caiu borda
fora!
Agarrou-se à amurada e procurou-o, desesperada, mas tudo o que
conseguia ver na água escura e turbilhonante era pedaços de madeira.
Também Jack e Theo o procuravam, mas, como ela, nada viam.
– A corrente há-de tê-lo arrastado à nossa frente! – gritou Jack. –
Aposto que se agarrou a um pedaço de madeira para se aguentar!
Restava a Beth esperar que tivesse razão, pois era evidente que nada
poderiam fazer para salvar Sam mesmo que conseguissem vê-lo.
Nesse instante, a jangada rodopiou sobre si mesma ao ser apanhada por
um remoinho, e tudo o que puderam fazer foi agarrarem-se com força,
pedindo a Deus que aquele pesadelo acabasse em breve.
Saíram do remoinho e foram disparados para uma garganta ainda mais
estreita e, no fim desta, como que cuspidos para uma série de rápidos.
Sentiram as pontas aguçadas de rocha rasparem o fundo da jangada e ouviram
gritos vindos de outros barcos, mas estavam a ser arrastados tão depressa que
mal conseguiam distinguir por quem ou pelo que passavam.
Então, tão repentinamente como tinha começado, acabou. Estavam
outra vez em águas calmas.
Jack remou até à margem, saltou para terra e amarrou a jangada. Ao
longo de toda a margem, havia barcos a fazer o mesmo, alguns
semidestruídos, outros com buracos no fundo. A maior parte tinha perdido
bens ou pessoas.
O rugido dos rápidos ficara para trás, mas o som dos gritos de dor e do
choro rodeava-os por todos os lados. Grandes sacas passavam levadas pela
corrente, a derramar na água farinha, açúcar ou arroz. Uma gaiola cheia de
assustadíssimas galinhas encalhou na margem, cães nadavam até terra e
sacudiam-se. Havia muitas pessoas na água, a maior parte agarrada a um
tronco ou a um caixote.
Theo e Jack saltaram para o rio e nadaram para ir ajudá-las, enquanto
Beth corria ao longo da margem à procura de Sam.
Viu duas pessoas serem tiradas da água já sem vida, os amigos e
parentes a tentarem desesperadamente reanimá-las, e então avistou o irmão.
Mesmo a uma distância de quase cem metros, soube que era ele pelos cabelos
cor de manteiga e pelo lenço vermelho que tinha ao pescoço.
Soube também que estava morto, porque estava a ser levado pela
corrente, sem mover os membros.
– Está ali! – gritou a Theo e a Jack, apontando. – Vão buscá-lo,
depressa!
A rápida corrente levou Sam até eles e, juntos, puxaram-no para terra.
Beth entrou na água baixa para ajudá-los e, ao pegar na cabeça do irmão com
as mãos, viu que esmagara o crânio contra uma rocha.
Foi em silêncio que os três puxaram o corpo para terra, sabendo que os
esforços frenéticos que outros faziam para reanimar entes queridos de nada
serviriam naquele caso.
Beth ajoelhou-se ao lado de Sam, soluçando enquanto secava o seu belo
rosto com a saia. Ele fora muito mais do que um irmão. Fora o seu
companheiro de brincadeiras infantis, o seu aliado, o seu amigo e confidente, a
pessoa com que sempre partilhara tudo toda a sua vida. Não queria acreditar
que o destino tinha sido suficientemente cruel para lho levar.
Ouvia um som horrível, um uivo, e quando Theo e Jack lhe pegaram
nos braços e tentaram afastá-la do corpo de Sam, apercebeu-se de que era ela
que fazia aquele som.
– Não posso continuar sem ele! – gritou, furiosa. – Era o único que
restava da minha família.
– Ainda nos tens a nós – disse Theo, abraçando-a. – Sabemos o que
sentes. Eu e o Jack também o adorávamos.
Foi só então que ela viu que estavam ambos a chorar também. Não
houve nenhuma tentativa de esconder virilmente o desgosto; as lágrimas
corriam-lhes pelo rosto e os olhos deles espelhavam a dor dela.
Não saberia dizer quanto tempo ficaram os três a chorar junto ao corpo
de Sam. Estavam encharcados e a tremer de frio, mas eram o choque e o
desgosto que os paralisavam. Muitos mais barcos deviam ter-se voltado ao
passar os rápidos, pois ouvia vagamente outros gritos e outros choros. Mas foi
só quando um homem disse os nomes deles e se ofereceu para ajudar a cavar a
sepultura que saíram o suficiente daquele estado de estupor para reconhecer o
homem que falara e os seus companheiros como pessoas que tinham
conhecido no lago Bennett e admitir que era preciso enterrar Sam.
– Era um bom homem – disse o líder do grupo, os olhos carregados de
simpatia e compreensão. – Lamentamos muito a vossa perda. Deixem que os
ajudemos.
– Não é justo – soluçou Beth, enquanto via os homens começarem a
cavar num pedaço de terreno mais solto a poucos metros da margem do rio. –
Chegámos tão longe e passámos por tanta coisa.
Porque é que tínhamos de perdê-lo agora?
– Não o vi cair – disse Jack surdamente, como se acreditasse que
poderia ter modificado o desfecho se tivesse.
Theo ajoelhou-se ao lado de Sam e afastou-lhe da testa os cabelos sujos
de sangue.
– Oh, Sam, Sam, que vamos nós fazer sem ti? – perguntou, a voz
entrecortada de desgosto.
Beth via Jack e Theo baixarem o corpo de Sam para a cova
apressadamente aberta, e a cena parecia-lhe irreal. A mãe e o pai tinham
ambos sido enterrados em dias cinzentos e frios; tinha-se despedido de Molly
num dia cinzento e frio; até o dia em que perdera o seu bebé fora cinzento e
frio.
Os funerais deviam acontecer em dias cinzentos e frios, em locais
sóbrios, não ali à luz do sol, junto a um rio refulgente e com manchas de flores
coloridas a crescer ao longo das margens. Sam era jovem e forte, tinha a vida
toda pela frente, e tantos sonhos e planos. Não era justo não poder realizar
nenhum deles. Quase sentia que ia acordar de um momento para o outro e
descobrir que tudo aquilo não passava de um horrível pesadelo, de que ela e
Sam haviam de rir juntos.
Mas era real, porque Theo estava a recitar uma passagem da Bíblia, e a
voz tremia-lhe no esforço de não se ir abaixo. A cruz de madeira que Jack
improvisara e na qual tinha gravado toscamente o nome de Sam estava caída
em cima do monte de terra que esperava para encher a cova.
As vozes deles soaram frágeis e quebradiças quando cantaram «Rock of
Ages», e Beth pensou amargamente que Deus tinha voltado a abandoná-la.
Ao longo da margem do rio, muitos outros enfrentavam as
consequências dos rápidos, uns cavando sepulturas, outros cuidando dos
feridos. Ouvia os lamentos e os gritos de desespero dos que tinham perdido os
seus barcos e todos os seus bens. E ouviu o som do seu próprio coração a
despedaçar-se.
CAPÍTULO 30
–Quanti? Quanti? – gritava outro grupo de índios Stick do seu
acampamento na margem do rio.
Beth desviou o olhar, porque estavam sujos, esfarrapados e pareciam
doentes, e ela sentia-se culpada por não lhes dar nada. Mas já tinham dado
comida a outros grupos mais para montante, e não podiam dispensar mais.
Além disso, tinham-lhe dito que os índios vendiam tudo o que lhes davam a
outros prospectores, e com milhares de barcos a passar todos os dias,
provavelmente governavam-se muito bem.
As primeiras flores da Primavera tinham dado lugar a campainhas e
lupinos, um mar de azul ao longo das margens do rio. De longe em longe,
Beth avistava um alce, por vezes com uma cria, a beber, ou um urso-preto a
espreitar de entre as árvores, como que espantado por ver tantos humanos
atravessarem o seu domínio. Frutos silvestres – arandos, groselhas e
framboesas – amadureciam entre as rochas e os musgos e o aroma das
rosas-bravas chegava até ela levado pela brisa.
Era uma paisagem espectacular, e bem desejava poder deliciar-se com
tudo aquilo. Mas desde que Sam morrera nos Squaw Rapids fora como se o
sol se tivesse extinguido de vez e nunca mais voltara a encontrar prazer no que
quer que fosse.
Cinco homens tinham perdido a vida naquele dia, e o mesmo teria
acontecido a muitos mais se o comandante Steel da polícia montada não
tivesse chegado para evitar maiores desastres. Além dos mortos, houvera
dúzias de barcos destruídos; os sacos de provisões arrastados pela corrente
tinham-se rasgado e vertido o respectivo conteúdo na água, e muitos bens
preciosos tinham-se perdido.
Algumas pessoas estavam tão desesperadas que arrepelavam os cabelos,
gritavam e soluçavam.
Steel estabelecera imediatamente regras, estipulando que mais nenhum
barco atravessaria os rápidos sem levar alguém competente no comando e que
todas as mulheres contornariam a garganta percorrendo a pé os oito
quilómetros de caminho pelo interior.
Jack mal voltara a dizer uma palavra desde que tinham enterrado Sam.
Beth sabia que se torturava com o pensamento de que poderia ter evitado o
acidente. Mas tanto ela como Theo tinham perfeita consciência de que não era
verdade. Jack fizera o que pudera levando a jangada inteira e tudo o que
possuíam intacto até ao outro lado da garganta. Sam devia ter sido imprudente
e largado a amurada.
Racionalizar o que acontecera, e como acontecera, não bastava, porém,
para lhes diminuir o desgosto. Nunca ninguém poderia ocupar o lugar de Sam
nas suas vidas, e, naquele momento, Beth não conseguia sequer ver como
seria capaz de continuar sem ele.
Quando tentava parar de pensar no irmão, dava por si a pensar no filho
que perdera e a sentir-se desesperada por voltar a ver Molly. Supunha que
aquilo era natural: Molly era, ao fim e ao cabo, o único membro da família
que lhe restava. Perdera a conta às vezes que pegara na fotografia dela,
bebendo-lhe o doce rosto e os cabelos encaracolados enquanto recordava
aqueles primeiros tempos em que lhe dava o biberão e lhe mudava a fralda.
Não podia esperar que Jack e Theo compreendessem os seus
sentimentos em relação a Molly, mas proporcionava-lhe algum consolo saber
que sentiam tão agudamente como ela a perda de Sam.
Talvez tivesse a parte de leão das recordações e os laços de sangue, mas
eles também o tinham adorado. A dor estava ainda demasiado crua para que
fossem capazes de falar abertamente dos seus sentimentos, ou partilhar as
melhores recordações que tinham dele. Mas talvez viesse a acontecer, a seu
tempo.
Estavam agora perto de Dawson City, e o rio Yukon era uma fervilhante
massa de barcos. Além de todos os que tinham vindo dos lagos das
montanhas, havia muitos garimpeiros a que chamavam Fermentadores. Beth
ficara a saber que o nome advinha do hábito que os veteranos daquelas
paragens tinham de conservar um pequeno pedaço de massa de pão num saco
dentro das camisas de modo a mantê-lo quente e poderem usá-lo para levedar
a próxima fornada de pão que cozessem.
Aqueles homens eram velhos e curtidos prospectores que tinham
passado o Inverno inteiro nas respectivas parcelas em pequenos ribeiros.
Muitos deles procuravam ouro na região há muitos e muitos anos.
A excitação de estarem a aproximar-se do destino era palpável. As
pessoas gritavam saudações; queriam partilhar as suas histórias a respeito da
jornada e as suas esperanças em relação ao futuro.
Mas Beth e os rapazes não se sentiam capazes de participar nas
conversas, porque uma referência a Sam poderia fazê-los ir abaixo.
Beth esperava que toda a gente assumisse que o silêncio e os rostos
sombrios deles se deviam ao calor insuportável e aos atormentadores
mosquitos, porque era uma coisa que estava a fazer muitas pessoas agirem de
uma forma irracional. Ela e os rapazes tinham assistido a muitas lutas
violentas e acesas discussões, geralmente entre homens que já tinham passado
juntos por muita coisa. Fosse qual fosse a causa, era horrível de ver, porque
eles pareciam odiar-se agora mortalmente e querer separar-se e continuar
sozinhos. Viram dois homens, na margem, a serrar o barco e as provisões ao
meio enquanto gritavam insultos um ao outro. Outros dois lutavam pela posse
de uma frigideira, até que alguém apareceu e a atirou ao rio e nenhum deles
ficou com ela.
Era uma loucura que Beth e os rapazes achavam impossível de
compreender. A morte de Sam fizera-os aperceberem-se do valor que tinham
uns para os outros, e de como eram insignificantes os simples bens materiais.
Agora nunca escurecia, havia apenas uma ligeira diminuição da
claridade por volta da meia-noite, mas às duas da madrugada a luz do dia já
tinha voltado. Acampavam na margem apenas o tempo suficiente para acender
uma fogueira, cozinhar uma refeição rápida e voltavam a partir na jangada,
com Jack e Theo a dormir por turnos. Não por quererem chegar a Dawson
antes dos outros, pois tinham perdido o interesse na aventura, mas porque
precisavam de estar ocupados. Apercebiam-se agora, demasiado tarde, de que
fora o entusiasmo, a jovialidade e o constante optimismo de Sam que, no
passado, fizera fluir as conversas e que, sem ele, parecia não haver nada que
dizer.
Na manhã de 2 de Junho, Beth estava meio a dormitar na proa quando
ouviu Jack gritar: – Dawson City! Finalmente chegámos.
Como não sabiam exactamente onde ficava a cidade, tinham-se mantido
perto da margem naqueles dois últimos dias, com receio de darem
repentinamente com ela e serem arrastados mais para diante pela forte
corrente. Mas quando contornaram uma falésia, lá estava ela à frente deles. A
fabulosa cidade do ouro.
Beth não saberia dizer como esperara que fosse, mas a realidade, um
amontoado de tendas, cabanas de troncos, edifícios com falsas fachadas e
periclitantes montes de madeira não era muito diferente de Skagway. Até
havia a mesma lama preta e viscosa.
No entanto, aquela lama estendia-se desde a margem do rio até à
pequena cidade, e não via pranchas de madeira por cima das quais uma pessoa
pudesse caminhar, nem passeios e nem sequer pedras, como em Skagway.
Cavalos e carroças atascavam-se nela, e as pessoas tentavam inutilmente
arrastar trenós pesadamente carregados.
Haviam de descobrir, mais tarde, que a cidade fora inundada quando o
gelo derretera, um par de semanas antes, e que os que tinham construído
cabanas junto à margem as tinham visto ser levadas pela enxurrada. Mas
parecia que, em Dawson City, coisas como esta não passavam de pequenos
percalços, pois mal os barcos começaram a chegar com provisões,
especialmente luxos durante tanto tempo desejados como ovos, whisky e
jornais, as ruas lamacentas passaram a ser uma mera inconveniência.
Conseguiram arranjar um lugar, ao longo da sobrelotada margem, para
amarrar a jangada, e levaram as suas coisas para a parte de trás da cidade, o
único sítio onde encontraram espaço para montar a tenda. Ouviram dizer que
alugar um quarto custava cem dólares por mês, e que as mais pequenas coisas
eram vendidas e compradas por preços exorbitantes.
– Ainda bem que trouxe estes pregos – disse Jack, ao ver uma tabuleta
que os anunciava a dezassete dólares o quilo. – Não que tencione vendê-los…
vamos precisar deles para construir a nossa casa.
– Talvez consiga um bom preço pela seda e pelo cetim que trouxe –
disse Beth, pensativamente. Os rapazes tinham discutido com ela, em
Skagway, e dito que devia levar qualquer coisa mais útil, mas ela mantivera-se
firme, afirmando saber que haveria mulheres desesperadas por tecidos para
um vestido quando chegassem a Dawson. A julgar pelas roupas sujas e feias
que a maior parte das mulheres usava, tinha razão.
Depois de montarem a tenda, voltaram a Front Street para dar uma vista
de olhos. Aquela rua, sobranceira ao rio, era claramente onde tudo acontecia e
onde toda a gente se juntava. Era ladeada de saloons, hotéis, restaurantes e
salas de baile, apesar de tudo aquilo ter visivelmente sido erguido à pressa. A
cada minuto que passava, mais um barco encostava à margem e os
proprietários transportavam as suas coisas para terra, tornando ainda maior um
caos já total. Milhares de recém-chegados andavam de um lado para o outro
sem objectivo, enquanto os veteranos, que, ao que parecia, tinham passado o
Inverno inteiro a sofrer a escassez de praticamente tudo, os perseguiam
dispostos a comprar-lhes fosse o que fosse que tivessem para vender, desde
vassouras a livros.
Como no lago Bennett, havia enormes pilhas de madeira por todo o
lado, e o zunir das serras e o bater dos martelos tornavam difícil ouvir o que as
pessoas diziam. Construía-se por todo o lado – lojas, saloons, bancos e até
uma igreja – mas, desconcertantemente, parecia não haver qualquer plano
geral.
Junto ao rio, tinham surgido filas de bancas onde se vendia de tudo,
desde botas a caixas de tomates, e tudo a preços escandalosos. Muitos
daqueles bens tinham sido trazidos de vapor alguns dias antes, mas
descobriram uma velha, que tinham visto no lago Bennett, que conseguira
transportar as suas galinhas ao longo de todo o Chilkoot Trail e as vendia
agora a vinte e cinco dólares cada.
Havia inúmeros sinais a anunciar: «Compra-se e Vende-se Pó de Ouro».
No exterior de algumas destas cabanas, homens de cabelo grisalho e grandes
barbas desgrenhadas, com pequenos sacos de couro suspensos dos cintos,
faziam fila e esperavam enquanto fumavam os seus cachimbos. Um homem
que vestia um berrante fato aos quadrados e um stetson preto explicara a Beth
e aos rapazes que eram fermentadores que tinham encontrado ouro nas suas
parcelas em Forty Mile e Eldorado Creek. Dissera que achava que o ouro que
iam vender naquele dia valia o resgate de um rei, e no entanto pareciam
vagabundos sem um cêntimo de seu.
Apesar de estranho, tudo aquilo era colorido e vibrante. Homens
elegantemente vestidos e de chapéu de coco na cabeça misturavam-se com
outros ataviados com esfarrapadas e sujas roupas de viagem. Viram uma
bonita loura com um vestido de cetim cor-de-rosa atravessar o campo de lama
levada ao colo por um homem de peito nu que parecia um pugilista. Havia
cães por todo o lado, na sua maioria malamutes e outros cães de trenó, mas
havia também senhoras que transportavam cães de brinquedo debaixo do
braço, e galgos e spaniels que caminhavam com delicado cuidado pelo meio
da lama.
– Não me parece bem ver isto sem o Sam – suspirou Jack.
Foi um momento fulcral, porque Beth tinha pensado a mesma coisa e
adivinhado que Theo também.
Sentiu-se grata a Jack por ter tido a coragem de tocar no assunto.
– Se ele aqui estivesse, estávamos todos a discutir o que fazer a seguir –
disse ela com um meio sorriso, ao imaginar como teria sido excitante.
– Então devemos fazer o que tínhamos pensado fazer, por ele – declarou
Theo inesperadamente. – De todos nós, era ele o que mais queria vir para cá.
Não vamos deixá-lo ficar mal agora.
Beth sentiu nos olhos o ardor das lágrimas e enterrou a cabeça no peito
de Theo para as esconder.
Ele tinha razão: a melhor homenagem que podiam prestar-lhe era serem
bem-sucedidos. Talvez assim conseguissem enfrentar a perda.
Afastou a cabeça do peito de Theo e limpou os olhos humedecidos.
– Nesse caso, tenho de encontrar um sítio onde tocar esta noite – disse.
– E vocês os dois têm de começar a procurar oportunidades.
Beth foi ao Monte Carlo Saloon, em Front Street, enquanto Theo e Jack
iam dar uma vista de olhos a alguns outros lugares.
Do exterior, o Monte Carlo parecia o mais elegante e mais buliçoso de
todos os saloons, pintado de fresco e com um grande retrato da rainha Vitória
por cima da porta, e tinha cartazes a anunciar a existência de uma sala de jogo
e um teatro. Mas a fachada de madeira que prometia sofisticação era falsa. O
interior era decepcionante, pouco mais do que uma cabana, as salas de jogo
eram escuras e feias e o teatro pequeno e espartano, com bancos de madeira.
Sem se deixar desencorajar, Beth dirigiu-se ao homem de bigodes
retorcidos e colete de fantasia que estava atrás do balcão e perguntou-lhe se
podia tocar violino no estabelecimento.
Ele mirou-a de alto a baixo e encolheu os ombros.
– Se quiser correr o risco, é lá consigo – disse. Muito claramente, não
acreditava que a rapariga que via à sua frente, enfiada num velho vestido e
com botas de borracha nos pés, pudesse interessar os seus clientes.
– Então se eu vier e começar a tocar, e no fim passar um chapéu em
redor, não se importa?
– Claro que não, querida – disse o homem, já a voltar-se para pegar
numa garrafa e num copo. – Mas não esperes grande coisa, nem que eu te
defenda. As coisas por aqui costumam aquecer, à noite.
A evidente convicção do sujeito de que ela ia fazer figura de parva
deixou Beth ansiosa por provar-lhe que estava enganado. Voltou à tenda,
lavou o cabelo num balde, tirou do saco o vestido escarlate e engraxou as suas
melhores botas. Só algumas horas mais tarde havia de saber, pelas pessoas da
tenda ao lado, que o homem atrás do balcão era Jack Smith, um dos que
tinham feito fortuna em Bonanza Creek e que construíra o Monte Carlo.
Revelara-se, porém, um mau avaliador de caracteres, pois enviara o
sócio, Swiftwater Bill Gates, a Seattle, com dez mil dólares em ouro e a
missão de comprar espelhos, tapetes de veludo e candelabros para o saloon.
Pouco depois, tinham chegado notícias de que Gates fora na realidade para
São Francisco, onde era conhecido como o Rei do Klondike porque distribuía
ouro à esquerda e à direita enquanto vivia à grande no melhor hotel da cidade.
Beth achara a história divertida, e ficara ainda mais firme no seu
propósito. Às sete da tarde estava de volta ao Monte Carlo, que quase abanava
com o tremendo barulho que vinha do interior. Mas com o cabelo brilhante
enfeitado por uma travessa com plumas, o vestido vermelho e um coração
determinado, estava pronta para tudo. Descalçou as enlameadas botas de
borracha, que deixou à porta juntamente com o estojo do violino, calçou as
refulgentes botas e, sob o olhar ansioso de Theo e de Jack, segurou o violino
debaixo do queixo e tocou uma animada jiga enquanto entrava.
Foram precisos alguns minutos para que a música chegasse a todos os
cantos do saloon. Beth estava nervosa, com os dedos húmidos de transpiração
por causa do calor, e intimidada pela presença de tantos homens de ar rude
num espaço tão pequeno, mas deixou que o seu espírito invocasse a imagem
de Sam, imaginou-o à sua frente como tantas vezes acontecera quando tocava.
E tocou só para ele.
Viu-o sorrir, a maneira como a boca larga se dobrava para cima nos
cantos e lhe aparecia uma covinha na face direita. Viu os olhos azuis
brilharem e a maneira como afastava impacientemente os cabelos louros da
testa.
Em espírito, deixou o abafado saloon e voltou ao navio de imigrantes, e
viu-o fascinar as raparigas que riam com ele no convés. Viu-o estendido na
cama no quarto onde tinham vivido em Nova Iorque, e a servir bebidas no
Heaney’s, com uma horda de prostitutas da Bowery a fazer-lhe olhinhos
doces.
Só passado algum tempo se apercebeu de que o barulho no saloon tinha
cessado, e abriu os olhos para ver mais de uma centena de homens a olhar para
ela. A maior parte teria provavelmente a idade de Sam, mas com um ar curtido
pelas intempéries que os fazia parecer muito mais velhos. Alguns usavam
fatos elegantes, camisas engomadas, gravatas e chapéus de coco, outros
vestiam sujas camisas de mangas arregaçadas, com suspensórios a segurar
calças que já tinham visto melhores dias e chapéus de aba larga que poderiam
contar umas quantas histórias. Havia europeus de rostos pálidos, rostos
morenos da América do Sul, rostos negros e também alguns índios. Uns
ostentavam barbas e bigodes hirsutos, outros estavam cuidadosamente
escanhoados. E entre eles havia também algumas mulheres: uma roliça,
bonita, com um chapéu de palha enfeitado com plumas, e outra com rosas;
mulheres vestidas de seda e renda, outras de simples algodão. Mas
independentemente de quem fossem, de já terem encontrado ouro ou estarem a
ajudar alguém que o tinha encontrado a gastá-
lo, todos estavam a ouvi-la tocar.
– Bravo! – gritou um homem de casaco aos quadrados quando ela
acabou a primeira música. – Não pares agora, dá-nos mais!
Já passava da uma quando Beth regressou à tenda, a patinhar na lama.
Estava exausta mas satisfeita por ter deixado a sua marca em Dawson, pois
Jack Smith declarara que ela era a melhor violinista que ouvira em toda a sua
vida.
Não fazia ideia de onde Theo e Jack pudessem estar. Tinham ficado no
Monte Carlo durante cerca de uma hora, mas depois tinham saído e não
voltara a vê-los. Não se importara, porque quando não estava a tocar não
faltara quem se oferecesse para lhe pagar uma bebida ou fazer-lhe companhia.
O céu estava claro como de dia, e ninguém parecia pensar sequer em
dormir, pois os lamacentos caminhos entre as tendas e as cabanas fervilhavam
de gente. Acima dos sons de milhares de pessoas a divertirem-se em Front
Street, dos risos, das conversas e do tilintar de copos, ouvia o bater rítmico de
pés na sala de baile, o zumbido da pianola e um saxofone a tocar uma
queixosa balada.
Tinham-lhe dito que Dawson City só adormecia lá para as oito da
manhã, o que supunha ser compreensível num lugar que ficava isolado do
exterior pela neve e pelo gelo desde Setembro até fins de Maio.
Levava presa à cintura um saco de couro que alguém lhe atirara, com
um pouco de pó de ouro.
Juntara-o à pequena fortuna em notas e moedas que um dos
espectadores recolhera para ela.
Enquanto caminhava, sentia-o bater contra a coxa, o que lhe punha nos
lábios um sorriso de satisfação. Dinheiro e sucesso nunca compensariam a
morte do irmão, ou a fariam sentir menos saudades dele, mas, naquela noite,
as nuvens negras do desgosto tinham recuado o suficiente para a fazer voltar a
querer viver.
Uma semana mais tarde, eram quatro da manhã e Beth descia Front
Street, de regresso à tenda, escoltada por Wilbur, um dos empregados do
Monte Carlo.
– Parece que hoje há um grande jogo no Golden Horse Shoe – disse ele,
apontado a multidão de gente reunida à porta de um saloon um pouco mais
adiante. – Aposto que é o Mack Dundridge que está lá a jogar póquer. As
pessoas querem sempre ir vê-lo jogar, porque quando ganha paga bebidas a
toda a gente.
Beth sorriu a Wilbur, porque o alto e desengonçado jovem oriundo de
Seattle não só era a sua escolta habitual até à tenda como tinha sempre
histórias para lhe contar a respeito das grandes figuras de Dawson City.
Ainda na noite anterior lhe falara de Mack Dundridge, porque Mack era
um dos famosos Reis do Eldorado. Deambulara durante anos pelo Alasca e
pelo Yukon em busca de ouro, e estava por perto quando George Carmack e
Skookum Jim o tinham encontrado em Rabbit Creek. Correra para lá mal
ouvira a notícia e reclamara uma parcela que em pouco tempo lhe renderia
uma fortuna. E Rabbit Creek tornara-se conhecido como Eldorado.
Mas como muitos outros veteranos a quem a sorte bafejara, Mack era
descuidado com a sua fortuna.
Chegava à cidade, entrava num bar, atirava para cima do balcão um
saco de couro cheio de pepitas e oferecia bebidas a toda a gente. Dizia-se que,
certa noite, dera a uma dançarina de uma sala de baile uma pepita no valor de
quinhentos dólares para que só dançasse com ele.
– Podemos ir ver? – perguntou Beth. Apesar de não passar uma hora
sem que pensasse em Sam, a sua popularidade no Monte Carlo e a permanente
excitação e alegria da cidade tinham-lhe devolvido o ânimo. Gostava de
Wilbur e sentia-se segura na companhia dele, e uma vez que Theo e Jack
nunca voltavam à tenda antes das sete da manhã, não via qualquer razão para
não se divertir também um pouco.
– Como é um jogo importante, hão-de ter alguém à porta para impedir a
entrada às pessoas vulgares. Mas como a Beth não é uma pessoa vulgar, acho
que posso usar os meus poderes de persuasão – respondeu Wilbur, com um
sorriso.
Pegou-lhe firmemente num braço e abriu caminho por entre as pessoas
amontoadas em frente do bar e que tentavam espreitar pela porta e pelas
janelas o que se passava lá dentro.
– Vais deixar entrar a Cigana do Klondike, não vais? – disse ao homem
corpulento que barrava a passagem. – Deu-lhe a vontade de ver os grandes
jogadores, e talvez te retribua o favor tocando para ti uma destas noites.
A maneira como o homem lhe sorriu fez Beth compreender que se
tornara numa figura conhecida na cidade, e gostou da sensação.
– Bem-vinda ao Golden Horse Shoe, Miss Cigana – disse o homem. –
Mas veja lá, não distraia os jogadores com a sua carinha bonita nem com o seu
violino.
Apesar da claridade da rua, o interior do saloon estava escuro e era
impossível ver fosse o que fosse devido à parede compacta de homens que,
ombro contra ombro, observavam atentamente qualquer coisa que se passava
ao fundo da sala. Mas Wilbur voltou a pegar no braço de Beth e levou-a para
um dos lados, onde a multidão era menos densa.
Deixou-a ali para ir buscar bebidas para os dois. Beth continuava a não
ver os jogadores do outro lado da muralha de ombros masculinos, mas sentia,
pela tensão do ambiente, que alguma coisa fora do vulgar estava a acontecer.
– O Mack está a ganhar? – perguntou num murmúrio a um homem alto
que estava a seu lado.
– Esteve, mas perdeu o último par de mãos – respondeu ele, também
num murmúrio. – Acho que vai ser uma daquelas noites em que aposta tudo
numa parada.
Wilbur contara-lhe que Mack construíra a sua reputação de grande
jogador indo até ao limite, preparado para arriscar tudo o que tinha. Dizia-se
que perdera meio milhão de dólares numa noite, mas que voltara na noite
seguinte e recuperara tudo.
– Com quem está a jogar? – sussurrou ela.
– Com o Sueco, o Fintas e um tipo que nunca tinha visto.
Em Dawson City, toda a gente tinha alcunhas; parecia ser uma espécie
de prova de que se tinha sido aceite. Mas como Beth não conhecia o Sueco
nem o Fintas, sentiu que tinha de dar-lhes uma vista de olhos, de modo que foi
até um dos pilares que sustentavam o tecto, esgueirou-se à volta dele e abriu
caminho por entre os homens à sua frente.
Teve de abafar uma exclamação quando finalmente viu os jogadores,
pois um deles era Theo.
Por cima da mesa, um ornamentado candeeiro a petróleo criava um
círculo de luz dourada na escuridão da sala. Para lá deste círculo e atrás de
Theo, viu Jack, de costas contra a parede, a observar o jogo, e percebeu, pela
postura dele, que estava muito nervoso.
Os três homens com que Theo jogava eram típicos garimpeiros,
barbudos, com cabeleiras hirsutas, roupas rudes e rostos curtidos pela
intempérie. Theo, barbeado, com as suas roupas elegantes e botas engraxadas,
parecia incongruente, apesar de não ser muito mais novo do que os outros.
Ganhara algum dinheiro desde que tinham chegado a Dawson, mas Beth tinha
quase a certeza de que nem de longe o suficiente para entrar num jogo
daqueles.
– Qual deles é o Mack Dundridge? – sussurrou ao homem que estava a
seu lado.
– O de cabelo ruivo – respondeu ele. – Ninguém consegue ganhar-lhe
ao póquer, e vai ficar até limpar todos os outros.
Beth recuou um pouco, para que Theo não pudesse vê-la, e ficou a
observá-lo durante mais um ou dois minutos. Parecia perfeitamente calmo e
descontraído, quase recostado na cadeira, a luz vinda de cima a realçar-lhe os
pómulos altos. Mas Beth sabia o suficiente de póquer para saber que era tudo
uma questão de bluff, pelo que ele podia estar na verdade tão nervoso como
Jack.
A tensão na sala aumentava a cada momento, e Beth soube que não
suportaria ficar a ver Theo ser derrotado.
– Mudei de ideias. Não quero ficar – disse, indo ao encontro de Wilbur,
que atravessava a sala. – Levas-me agora a casa, por favor?
A luz clara do dia tornava sempre difícil adormecer, mas Beth estava
tão nervosa que mal conseguia fechar os olhos. Ao longo do último ano,
habituara-se às perdas de Theo, mas, que soubesse, nunca ele jogara mais do
que podia perder. Ali, o caso era diferente: garimpeiros, donos de saloons,
lojistas e coristas… todos eram basicamente jogadores. Com fortunas a mudar
tranquilamente de mão todas as noites, até os mais sensatos podiam facilmente
perder a noção da realidade.
Devia estar deitada, acordada, há um par de horas quando finalmente
ouviu Theo e Jack aproximarem-se da tenda. Vinham aos tropeções, como se
estivessem bêbedos, o que a fez ficar ainda mais zangada.
Theo enfiou a cabeça pela abertura da tenda.
– Estás acordada, minha doçura? – perguntou, a sorrir tolamente.
– Agora estou – respondeu ela, a voz carregada de sarcasmo.
Theo retirou a cabeça e falou com Jack.
– Está zangada comigo – disse. – Achas que vai ficar ainda mais
zangada quando lhe contar as nossas novidades?
– Quem vai ficar zangado são os nossos vizinhos, se os acordam a esta
hora – disse ela severamente, do interior da tenda. – Por isso entrem e estejam
calados.
Entraram, a cambalear, e Jack caiu ao lado dela.
– Desculpa estarmos bêbedos, mas tínhamos de festejar, porque o Theo
ganhou um lote para construção em Front Street.
Beth sentou-se direita, como que disparada por uma mola.
– Ganhou?
Estava espantada: um lote para construção em Front Street valia cerca
de quarenta mil dólares.
– É verdade, minha querida – disse Theo, deixando-se cair do outro
lado. – Um jogo de roer as unhas com o Mack Dundridge. Diziam que não era
possível vencê-lo, mas estavam enganados.
Beth franziu a testa. Não gostava quando Theo começava a
vangloriar-se, e passou-lhe pela cabeça que talvez tivesse feito batota.
– Não te preocupes, Beth – sorriu-lhe Jack, como se lhe tivesse lido os
pensamentos. – O Jack ganhou limpamente. E teve o bom senso de parar
depois de ter obrigado o sujeito a apostar o lote. A história poderia ter sido
diferente se fosse a mina de ouro.
– Estamos governados – riu Theo. – Podemos construir a nossa própria
casa de jogo com quartos por cima para vivermos. Até vamos dar-te a casa de
banho com que sempre sonhaste.
Estavam os dois demasiado bêbedos para explicar devidamente como
tudo aquilo acontecera, mas Beth compreendeu o suficiente para perceber que
a intenção de Theo fora levar Mack a apostar o lote em Front Street.
– Achei que ele não daria tanta importância – disse Theo, satisfeito
consigo mesmo. – Se fosse a mina de ouro em cima da mesa, ter-me-ia
obrigado a continuar a jogar até tê-la recuperado.
– O Theo apostou numa mão fechada – disse Jack, o rosto a brilhar de
admiração. – Convenci-me de que tinha mau jogo; estava a suar como um
porco e parecia mesmo assustado. Poder-se-ia ouvir um alfinete cair quando o
Mack pediu para ver. Eu nem sequer olhei. Mas o Theo tinha quatro noves, e o
Mack quatro oitos. Foi um pandemónio. Até o Mack admitiu que tinha
encontrado um adversário à sua altura.
Beth voltou a deitar-se e tentou adormecer quando os rapazes saíram
para fumar, mas o som das suas vozes entusiasmadas e embriagadas enquanto
faziam planos para a construção da casa de jogo impediu-a de conciliar o
sono.
Estava excitada, e não duvidava de que iam construí-la. Sentia até que,
para todos eles, aquele empreendimento atenuaria a dor que a perda de Sam
lhes causara, pois estariam a realizar o seu sonho.
Mas conseguirem tão facilmente o que tinham planeado durante tanto
tempo, apenas com o virar de uma carta, parecia-lhe estranho e irreal.
Nos dias que se seguiram, enquanto os rapazes começavam a organizar
a construção do saloon de jogo, Beth pensou muitas vezes que tudo naquela
cidade era estranho: o sol a brilhar vinte e quatro horas por dia, a lama que
nunca secava, as falsas fachadas dos saloons, os vapores que chegavam quase
diariamente de Seattle e de São Francisco trazendo champanhe, ostras e todo o
género de luxos.
Parecia bizarro terem sido obrigados a carregar uma tonelada de
provisões através das montanhas só para descobrirem que ninguém queria nem
precisava de farinha, açúcar ou arroz. Mais bizarro ainda era o facto de todos
aqueles milhares de pessoas que tinham empenhado tudo o que possuíam para
financiar a viagem, arriscado a saúde física e mental por um sonho de riqueza,
não estarem a fazer o mais pequeno esforço para procurar ouro.
Ela e os rapazes nunca tinham tencionado ser garimpeiros. Mas quase
todos os outros sim. No entanto, mal amarravam os barcos – agora alinhados
em seis filas compactas ao longo da margem –, as pessoas deixavam-se ficar
pela cidade, sem sequer se deslocarem até aos ribeiros onde tinha sido
encontrado ouro. Como se ter chegado até ali fosse o suficiente.
Beth compreendia o cansaço, porque a maior parte daquelas pessoas
demorara um ano inteiro a chegar até ali e enfrentara todos os desafios
imagináveis. Muitos tinham queimado todas as pontes, abandonando
empregos, casas, por vezes mulheres e filhos, e gastado todo o dinheiro.
Tinham arriscado a saúde, a sanidade mental e, em alguns casos, a vida. Mas
seguramente uns poucos dias de descanso bastariam para reanimá-los. Porque
estariam a tentar vender tudo para comprarem passagem num vapor que os
levasse de regresso a casa? Como era possível que a febre do ouro tivesse
desaparecido tão repentinamente? Ou seria que o ouro nunca fora o verdadeiro
objectivo, mas apenas um pretexto para ter a maior aventura de todos os
tempos?
Dizia-se que havia agora aproximadamente dezoito mil pessoas em
Dawson, e outras cinco mil a garimpar nos ribeiros em redor, o que perfazia
uma população quase tão grande como a de Seattle.
Sem espaço para mais tendas ou cabanas, as pessoas estavam a ir para o
outro lado do rio, para um lugar geralmente conhecido como Cidade do
Piolho.
Junto ao rio, tinha nascido um enorme mercado. Cães, cavalos, trenós e
sacas de farinha, camisas aos quadrados, machados usados, roupa interior de
inverno, impermeáveis e botas altas, estava tudo lá à venda. As pessoas
examinavam e voltavam a examinar todas aquelas coisas e, para desespero dos
vendedores que queriam voltar para casa, rejeitavam a maior parte delas.
Cada vapor que chegava, no entanto, despejava novas centenas de
almas: coristas, actrizes e prostitutas, empregados bancários, médicos e até
sacerdotes. Havia famílias inteiras, senhoras elegantes de chapéus
emplumados, os maridos de colarinho engomado e casaca, e filhos. Também
eles tinham, na sua maioria, vindo apenas para ver, pois não tencionavam de
certeza peneirar ouro.
Era um lugar louco e desordenado, uma cidade de fugitivos, alguns da
lei, outros de mulheres insuportáveis ou de maridos brutais, de dívidas, de
empregos monótonos ou da miséria dos bairros degradados. A moralidade e a
condição do exterior não tinham ali qualquer significado. Os homens
juntavam-se a coristas, uma mulher podia beber num saloon sem ter um
homem a seu lado, até as prostitutas eram tratadas com respeito. Ali, cada um
podia ser aquilo que quisesse; de onde vinha não importava. Os que tinham
tido sorte ajudavam os que nada tinham. Era quase como se as pessoas
despissem a antiga pele no momento em que desembarcavam e lhes crescesse
uma nova, mais confortável.
No entanto, de momento, convinha a Beth. Porque enquanto pudesse
tocar o seu violino, podia esquecer tudo o que perdera e que não tinha um
lugar a que pudesse verdadeiramente chamar casa.
A profunda tristeza que se lhe aninhara no âmago parecia ter dado uma
nova dimensão à sua música, e descobriu que estava a usá-la para condicionar
as emoções do público. Se uma das suas músicas lhes lembrava um amor
antigo, a mãe, os filhos, punham mais dinheiro no chapéu. Não sentia que
estivesse a explorar quem quer que fosse; ao fim e ao cabo, o dinheiro que
ganhava ia parar às mãos da mulher que cozia o pão, do rapaz que vendia
ovos, do casal de Idaho que tinha um restaurante. E
havia, um dia, de levá-la de regresso a casa para ver Molly.
*
Perto do fim da tarde de 3 de Julho, Beth estava em Front Street a ver
Jack e dois dos homens que ele contratara a construir a fachada do saloon. A
rapidez com que Jack metera mãos à obra fora surpreendente. No espaço de
uma semana, o esqueleto do edifício estava de pé; no final da segunda, o
telhado estava pronto e já começara a trabalhar nos soalhos do primeiro piso.
As longas horas de luz diurna e a quantidade de homens a precisar de trabalho
ajudavam. Agora, o edifício estava quase acabado, com três quartos no
primeiro andar, uma grande sala para o saloon no piso térreo e uma cozinha e
armazéns nas traseiras.
– Está a ficar bonito, Jack! – gritou-lhe Beth. – Mas não vais trabalhar
amanhã, espero? É o Dia da Independência.
Apesar de Dawson City ficar no Canadá, como uma esmagadora
maioria de habitantes era americana, naquele dia fazia-se uma grande festa,
com danças, porcos a assar e fogos-de-artifício.
Beth descobrira uma boa costureira e mandara fazer um vestido novo
com a seda cor-de-rosa que trouxera do outro lado de Chilkoot Pass.
Jack interrompeu o trabalho e sorriu-lhe.
– Acho que um dia não me vai matar! Já viste o Theo hoje? Dava-me
jeito uma ajuda.
– Foi aos correios – respondeu Beth. – Sabes como ele é!
Receber correio era um grande problema em Dawson. Era trazido e
levado por muitos barcos, mas era frequente ser deixado por engano em
Juneau, Haines ou qualquer uma das pequenas povoações ao longo da
Passagem Interior. Com tantos milhares de pessoas, as filas para o correio
eram tão compridas que às vezes se levava um dia para chegar à frente, e a
maior parte afastava-se desapontada por não ter recebido qualquer carta. Beth
ainda não se dera ao incómodo de ir para a fila, pois as únicas pessoas que lhe
escreviam eram os Langworthy, e mesmo que já tivessem recebido a carta que
ela lhes escrevera no lago Lindemann a indicar a data aproximada da chegada
a Dawson City, a resposta podia demorar um mês ou mais a chegar.
Voltara a escrever-lhes quando chegara a Dawson City e lhes contara da
morte de Sam, mas essa carta ainda havia de ir no vapor a caminho de Seattle.
Theo, no entanto, fora juntar-se à longa fila para enviar um telegrama
aos pais, a informá-los de onde estava. Dissera, a rir, que mesmo que o pai e o
irmão mais velho não quisessem saber, a mãe e as irmãs quereriam. Beth
suspeitava de que o verdadeiro objectivo da mensagem era vangloriar-se de
como estava bem, sabendo que a notícia chegaria a todos os seus antigos
amigos.
– Se o vires, diz-lhe que preciso dele – disse Jack. – É um diabo
preguiçoso, só aparece quando lhe convém.
Beth não disse nada. Theo não estava a fazer a sua parte, mas a verdade
era que nunca fizera.
Parecia pensar que ganhar o lote e avançar o dinheiro para a madeira e
outros materiais era o suficiente. Tinha de ser Jack a tratar de tudo, desde
construir o saloon a comprar a madeira e transportá-la até ali. À noite, Theo
raramente ia ao Monte Carlo ouvi-la tocar, ela tinha muitas vezes de comer
sozinha e ele nunca voltava à tenda antes das sete ou oito da manhã, e então
dormia durante todo o dia. Por vezes, Beth perguntava-se se ele lhe dava
algum valor.
Decidiu passar pelo posto dos correios e ver em que altura da fila ele
estava. Mas quando dobrou a esquina de Front Street, viu-o avançar para ela
por entre a multidão. Acenou-lhe e, quando a avistou, o rosto dele abriu-se
num rasgado sorriso.
Apesar de um pouco desencantada com o carácter dele, mal passava um
dia sem que Beth pensasse em como era bonito. Mesmo em pleno Inverno,
embrulhado num pesado casacão, de chapéu e cachecol e uma espessa barba a
tapar-lhe metade do rosto, os seus olhos escuros e expressivos tinham
continuado a fazer o coração dela esvoaçar.
Theo conseguira manter a imagem do perfeito cavalheiro inglês até
naquela cidade de gente rude e despachada. Fizera a barba ainda no rio, e uma
das suas primeiras prioridades ao chegar fora cortar o cabelo. Com o seu
casaco de linho creme, lenço vermelho ao pescoço e chapéu de palha, podia ir
a caminho de Ascot. Só a lama nas botas castanhas de montar estragava a
imagem, uma coisa que o fazia resmungar quase todos os dias enquanto as
limpava.
– Tens uma carta – gritou, quando chegou mais perto, e tirou um
sobrescrito do bolso e agitou-o. – Não ma queriam entregar, porque vem
endereçada a Miss ou Mr. Bolton, mas quando lhes disse que era o nome de
solteira da Cigana do Monte Carlo, não houve mais problemas.
Beth riu.
– É dos Langworthy – disse, reconhecendo a letra mesmo àquela
distância, e correu os últimos metros para lha tirar da mão. – Com certeza não
podem já ter recebido a que lhes mandei do lago Lindemann?
– Dawson City aparece nas notícias em todo o mundo – respondeu
Theo. – Suponho que decidiram escrever para aqui sabendo que acabarias por
chegar.
– Parece que apanhou água – observou Beth, ao ver que o sobrescrito
estava manchado e a tinta esborratada.
– Algum do correio estava tão encharcado que os sobrescritos não se
conseguiam ler ou tinham desaparecido – explicou Theo. – Houve montes de
pessoas desiludidas, hoje, mas tu foste uma das felizardas.
Beth rasgou o sobrescrito, incapaz de esperar até mais tarde.
Queridos Beth e Sam, leu. Não há maneira de lhes dar esta terrível
notícia senão assim de chofre.
Um arrepio gelado desceu-lhe pela espinha, mas teve de continuar a ler:
Por isso lhes peço que desculpem a minha brusquidão quando lhes digo que a
nossa querida e maravilhosa Molly morreu de pneumonia há dez dias, a 7 de
Março. Em Fevereiro, apanhou uma forte constipação do peito que, apesar de
tudo o que nós e o médico fizemos, de todos os tratamentos e cuidados,
degenerou em pneumonia. Morreu durante o sono, enquanto eu estava
sentada junto dela.
Eu e o Edward estamos desolados. Amávamo-la muito, e sem ela é tudo
tão frio e triste. Mas o meu coração e os meus pensamentos vão também para
ti e para o Sam, aí tão longe, pois sabemos que vai ser um terrível choque
para vocês, como foi para todos os que a amaram. Acreditem, por favor, que
fizemos tudo o que era possível. O funeral foi uma semana mais tarde, a 14,
um belo e comovente serviço em St. Brides… O Edward, Mrs. Bruce, a
cozinheira e a Kathleen, todos enviam as suas condolências, e esperamos
sinceramente que esta carta chegue às vossas mãos. Lemos sempre tudo o que
aparece nos jornais a respeito do Klondike, e perguntamo-nos se terão
chegado a salvo. Estão sempre presentes nos nossos pensamentos e nas
nossas orações, por favor venham ver-nos quando regressarem a Inglaterra.
Eu e o Edward queremos agradecer-lhes por toda a alegria que nos
proporcionaram ao deixarem a Molly ao nosso cuidado. Pode só ter passado
quatro curtos anos connosco, mas foram os tempos mais felizes que
conhecemos.
A pensar em vocês neste triste momento,
Ruth Langworthy
O que foi, Beth? – perguntou Theo, chocado pela expressão da cara
dela.
– A Molly morreu – respondeu Beth, numa voz estrangulada pela
angústia. – Morreu de pneumonia.
CAPÍTULO 31
–Eu sei que é terrivelmente triste saber da morte de uma criança, Beth,
mas tens de te recompor – disse Theo, com uma nota de dureza na voz.
– Ela não era uma criança qualquer, era minha irmã – retorquiu Beth,
recomeçando a chorar. – Primeiro o Sam, agora a Molly. Já não tenho
ninguém.
Tinha passado uma semana desde que recebera a terrível carta. Theo
mostrara-se meigo e tentara consolá-la, na altura, mas no dia seguinte, Dia da
Independência, deixara-a a chorar na tenda e fora juntar-se aos festejos.
Jack chegara à tenda ao princípio da tarde, depois de ter encontrado
Theo num saloon e percebido que ele a deixara sozinha.
– Penso que já não sabe o que mais há-de dizer-te para te consolar –
dissera, em defesa de Theo. – E eu também não, Beth. Só sei que não devias
estar sozinha.
– Porque é que tu sabes e ele não? – perguntara ela, amargamente. – O
filho que perdi não era teu, era dele. Jurou-me em Chilkoot Pass que me
amava e que queria casar comigo; sabe como a morte do Sam foi dura para
mim, portanto, se me amasse de verdade, seria capaz de pôr-se no meu lugar e
compreender.
– Oh, Beth, conheceste tanta tristeza. – Jack suspirara e sentara-se ao
lado dela, abraçando-a. – Logo quando me falaste da Molly, no barco, percebi
como te tinha custado deixá-la. Mas fizeste o que era melhor para ela.
Lembra-te das dificuldades que tivemos em Nova Iorque. Não havias de
querer que ela passasse por tudo aquilo, pois não?
– Mas não consigo deixar de pensar que se ela estivesse comigo não
teria morrido.
Jack afastara-lhe os cabelos da cara e secara-lhe os olhos.
– Teria tido ainda mais probabilidades de apanhar uma coisa má. Pelo
menos, teve quatro anos felizes numa casa onde era acarinhada e amada. É
uma tragédia ela ter morrido, uma coisa terrível, e tudo o que posso fazer é
oferecer-te um ombro para chorares.
Ficara pacientemente a ouvi-la desabafar em soluços toda a sua tristeza,
por Molly, pela morte de Sam e por ter perdido o bebé e lhe ter sido dito que
não poderia ter outro.
– É como se tivesse sido amaldiçoada – dissera ela. – Que fiz eu de tão
mau para merecer tudo isto?
Jack não soubera o que responder, mas ficara o resto da tarde a
abraçá-la, a deixá-la deitar cá para fora todo o seu desgosto. Quando
escurecera, milhares de fogos-de-artifício tinham iluminado o céu, e os dois
tinham ficado à porta da tenda a ver, juntos. Mas os fogos-de-artifício não
eram o suficiente para os foliões da cidade, que também dispararam
espingardas para o ar e fizeram rebentar cartuchos de dinamite. Tudo isto
assustara de tal modo os cães que tinham atravessado o rio a nado até à Cidade
do Piolho, para fugir ao tumulto.
Beth odiara toda a gente por festejarem quando ela estava tão
desesperadamente infeliz, e nem sequer permitira que Jack a convencesse a
pôr um vestido bonito e ir tocar ao Monte Carlo. «Nunca mais volto a tocar»,
jurara.
Desde o Dia da Independência, Beth mal voltara a pôr os pés fora da
tenda, preferindo ficar deitada lá dentro a sentir-se amarga e ofendida. Jack e
Theo tinham trabalhado longas horas no saloon, e apesar de Jack ter feito
várias tentativas para convencê-la a ir ver os progressos da obra, ou voltar a
tocar no Monte Carlo, Theo pouco dissera a respeito do assunto até àquele dia.
– Ainda tens alguém – disse Theo, num tom cansado. – Tens o Jack e
tens-me a mim. O saloon está pronto, podemos mudar-nos amanhã. Mas tu
ainda nem sequer foste vê-lo.
– Não quero saber do saloon. Não quero saber de coisa nenhuma –
soluçou Beth. – Deixei a Molly com os Langworthy porque pensei que teria
uma boa vida com eles, mas mesmo assim ela ficou doente e morreu. Talvez
se tivesse ficado com ela ainda estivesse viva.
– É tolice dizer uma coisa dessas – disse Theo, o tom a suavizar-se.
Sentou-se ao lado dela no chão da tenda e limpou-lhe as lágrimas com o lenço.
– Estava destinado, tal como a morte do Sam estava destinada. Não acredito
que possamos alterar o nosso destino, façamos o que fizermos. Mas não podes
ficar aqui a chorar eternamente, não vai resolver nada. Se dedicares as tuas
energias a transformar a nossa nova casa num lar, ajudar-te-á a não pensar
tanto na Molly. Anda comigo agora, só para ver. O Jack ia pôr a tabuleta com
o nome hoje. Decidimos chamar-lhe Golden Nugget.
Beth sentiu-se tentada a recusar, mas, no fundo do coração, sabia que
tudo o que ele tinha dito era verdade, e que ficar sentada ali na tenda
mergulhada no desgosto não ia resolver coisa nenhuma. Por isso pôs-se
relutantemente de pé, encontrou um pente e passou-o pelo cabelo.
Theo deu-lhe uma aprovadora palmadinha no ombro.
– Esta noite vais poder tomar um banho, se quiseres. O Jack conseguiu
pôr a caldeira a funcionar.
Imagina só, querida, uma casa de banho a sério, vais ser a inveja de toda
a gente na cidade. Quer dizer, se não nos deixares e apanhares um vapor de
regresso a Vancouver no fim de Agosto.
– Porque faria uma coisa dessas? – perguntou ela. – Não há lá nada à
minha espera. – Apercebeu-se de que aquilo soava a autocomiseração e corou.
– Temos o saloon de jogo que queríamos, e estou satisfeita por isso. Só te
peço que tenhas um pouco mais de paciência. Duas mortes em tão pouco
tempo é mais do que qualquer pessoa consegue aguentar.
– Eu sei, querida – disse ele, passando-lhe os braços pela cintura. – Mas
vais ter de tocar na noite da inauguração. Vai estar toda a gente à espera.
Beth lavou a cara e foi com Theo até ao saloon. Aparentemente, muita
gente soubera da sua perda, pois foi obrigada a parar várias vezes por pessoas
que queriam expressar-lhe as suas condolências.
Não estava à espera, e estas manifestações de carinho emocionaram-na.
Jack acabava de pregar a tabuleta quando os dois chegaram. Deslizou
escada abaixo e abraçou-a.
– O que é que achas? – perguntou.
Beth recuou para a rua, para ver melhor. Da última vez que a vira, a
fachada estava só meio acabada, e em tosco, ainda por cima. Agora, a madeira
estava pintada de vermelho e refulgia, com uma tabuleta preta onde as
palavras «The Golden Nugget» se destacavam em letras douradas.
– Está maravilhoso – disse, sorrindo pela primeira vez desde que
recebera a notícia da morte de Molly. – Consegues fazer milagres, Jack.
O elogio fez o rosto dele resplandecer.
– Tive muita ajuda – disse apressadamente. – Anda, vem ver o interior.
Desde os tempos de Skagway que Beth se habituara aos truques usados
nos saloons para criar uma sensação de permanência e luxo. Falsas fachadas
davam para edifícios rudimentares, muitas vezes tendas, e mesmo os que eram
de madeira tinham apenas lonas estendidas entre os postes para fazer as
paredes interiores. Mas Jack forrara as paredes de madeira com uma camada
de tábuas aparelhadas, que pintara do mesmo vermelho que a fachada,
tornando o interior quente e à prova de vento.
Mais espantoso ainda, porém, era a imagem pintada na parede lateral
fronteira ao balcão: Chilkoot Pass, a que não faltava sequer a interminável e
serpenteante fila de caminhantes recortada contra a neve.
– Quem pintou aquilo? – perguntou.
– O Enrico, aquele homenzinho de São Francisco que ajudei a acabar o
barco, no lago Bennett.
Beth assentiu. Lembrava-se do sujeito baixo e de cabelo muito negro
que julgara ser mexicano.
– É fantástico – disse. – Ofusca tudo o resto. Mas o balcão também é
maravilhoso, Jack. És tão inteligente.
Era madeira de primeira qualidade, aplainada e envernizada até adquirir
um brilho quente. Beth passou a mão pela superfície.
– Tenho de dar mais uma demão de verniz no chão, esta noite, e amanhã
podemos trazer a mobília para dentro – disse Jack. – Está toda amontoada nas
traseiras.
Beth olhou para o espelho por trás do balcão e reparou que estava cheio
de dedadas e manchas.
– É melhor eu limpar aquilo – declarou.
Theo e Jack sorriram um ao outro.
– O que é que tem tanta graça? – perguntou ela.
– Deixámo-lo assim de propósito. Pensámos que te faria entrar em
acção – explicou Jack.
Beth sorriu.
– É melhor mostrarem-me a parte de cima. Aposto que também lá deve
ser preciso um pouco de acção.
Jack não tivera tempo de fazer grande coisa no primeiro piso. Havia
apenas três quartos, com soalhos e paredes de madeira em tosco. Quanto à
casa de banho, Beth mal queria acreditar que Jack tivera artes de passar os
canos pelo interior das paredes desde a caldeira, lá em baixo, até à torneira da
banheira.
– Tive uma grande ajuda de um engenheiro – disse ele, modestamente.
– Só não pude montar uma sanita, porque a cidade ainda não tem esgotos.
Vamos ter de nos governar com a latrina exterior até que tenha.
*
Front Street era a principal artéria de Dawson City. Estava sempre cheia
de gente e de vida, sem interrupções. De dia, era um gigantesco mercado onde
se podia comprar tudo desde um medicamento a um cavalo ou um cão e todos
os géneros de comidas e artigos de luxo trazidos pelos comerciantes.
À noite, transformava-se num ruidoso paraíso hedonista onde se podia
beber, jogar, assistir a um espectáculo ou simplesmente, caso se estivesse
falido, passear para cima e para baixo a ver os outros.
Até aos domingos, quando a lei, estritamente imposta pela polícia
montada, proibia todo e qualquer estabelecimento de abrir as portas, a rua
continuava cheia de passeantes. Todos os bares, salas de baile e teatros mais
populares ficavam em Front Street, e competiam entre si para serem os
melhores.
Queriam as coristas mais bonitas, as paradas mais altas nas mesas de
póquer, os melhores cantores e artistas.
Apesar de estarem em Dawson há ainda pouco tempo, Beth, Theo e
Jack levavam vantagem sobre outros recém-chegados que tentavam lançar-se
nos negócios por já terem atraído atenção suficiente na cidade para receberem
alcunhas. Em Dawson, as pessoas adoravam alcunhas: Lil Sumo-de-Lima,
Louie Dois-Passos, Billy o Cavalo e Johnson Buraco-Fundo eram apenas
alguns dos que tinham ouvido. A imagem de cavalheiro inglês de Theo e a sua
reputação como jogador de póquer tinham-lhe merecido o apodo de «O
Lorde». Jack era afectuosamente conhecido como «Cockney Jack» e de um
modo geral visto como o homem com quem convinha falar quando se queria
construir qualquer coisa. Beth continuava a ser a «Cigana», pois o nome
acompanhava-a desde Skagway e no Monte Carlo era apresentada como «A
Rainha Cigana do Klondike».
Mesmo assim, quando abriram pela primeira vez as portas do saloon, às
seis da tarde, estavam os três muito nervosos. A maior parte das outras casas
de Front Street era propriedade de Reis do Eldorado, homens com parcelas
que lhes tinham rendido fortunas e que podiam dar-se ao luxo de gastar
dinheiro em candelabros, tapetes de veludo, bandas de cinco elementos e belas
raparigas para atrair os grandes gastadores. Em contrapartida, o dinheiro de
Theo acabara-se e já havia uma dívida de um par de milhares de dólares em
bebidas, madeira, mesas e cadeiras.
Puseram um cartaz à porta a anunciar bebidas a metade do preço e
esperaram que isso, e a música de Beth, fosse o suficiente. Theo vestia um
smoking branco que aceitara como pagamento de uma dívida de jogo no lago
Bennett. Com a camisa de folhos no peito e laço preto ao pescoço, o cabelo
escuro a refulgir de brilhantina, era o retrato do proprietário de saloon
bem-sucedido. Jack usava um colete vermelho, um laço de pescoço branco
com bolas vermelhas e um chapéu de palha.
Beth vestira o novo vestido cor-de-rosa que tencionara usar no Dia da
Independência. Emagrecera bastante, pois quase deixara de comer desde que
recebera a carta a respeito de Molly, e estava tão pálida que até recorrera a um
pouco de rouge para avivar as faces.
Começou a tocar uma jiga logo que seis homens entraram no bar.
Tinham contratado Will e Herbert, dois homens de Portland que tinham
conhecido no lago Bennett.
Estavam ambos desesperados por juntar dinheiro suficiente para voltar a
casa, e Theo prometera-lhes que se trabalhassem duas semanas para ele lhes
pagaria as passagens e ainda daria cinquenta dólares a cada um.
Quando Beth chegou ao terceiro número, já se tinha reunido uma boa
assistência, e, de repente, sentiu-se exultante por estar a atrair pessoas para
gastarem dinheiro no bar deles. Esperava que Sam estivesse a vê-los,
entusiasmado por terem finalmente atingido o seu objectivo.
À medida que a noite avançava, foram entrando mais pessoas, até que
ficaram apertadas como sardinhas em lata. Theo dirigia um jogo de faraó, um
dos mais populares em Dawson por ser rápido e dar uma boa hipótese aos
jogadores.
Tinha comprado a mesa de faraó ao proprietário de um vapor que
precisava de dinheiro. Todas as cartas, do duque ao ás, estavam pintadas no
tampo, e os jogadores colocavam as fichas em cima daquela em que queriam
apostar. O dealer levantava a primeira carta do baralho. Se a de baixo fosse
uma em que alguém tivesse apostado, perdia, mas se fosse a segunda,
ganhava. Se não fosse uma nem outra, voltava a apostar.
Na parede por trás de Theo havia uma armação de madeira onde
estavam penduradas as bolsas dos jogadores. Em cada bolsa era introduzido
um talão de papel com a quantidade de fichas que o dono comprara. No fim do
jogo, o número de fichas era comparado com a soma dos talões de cada
jogador e o valor da bolsa era aumentado ou diminuído conforme tivesse
ganhado ou perdido.
O ouro, em pó ou em pepitas, era a principal moeda de Dawson, e todas
as lojas, bares e outros estabelecimentos tinham uma balança para o pesar. Ao
princípio, Beth e os rapazes tinham ficado espantados ao ver a maneira
despreocupada como as pessoas atiravam bolsas contendo centenas de dólares
em ouro de um lado para o outro, mas agora já estavam habituados.
Enquanto Theo se ocupava da mesa de faraó, Jack recebia os clientes e
mantinha um olho no balcão e em Will e Herbert. Mais tarde, passaria para a
mesa de faraó, deixando Theo livre para começar um jogo de póquer, e, entre
as sessões de violino, Beth ia vigiando o que se passava.
Depressa se tornou evidente que iam precisar de mais pessoal, tal como
iam precisar de mais bebidas e de outro músico para manterem as coisas a
funcionar a noite toda. Mas naquela primeira noite tiveram de se
desembaraçar, trabalhando os três até à exaustão. O whisky acabou por volta
das quatro da manhã, mas a maior parte dos clientes ficou, disposta a beber o
que houvesse. Theo tinha um grande sorriso no rosto porque Sam Bonnifield,
conhecido como «Sam o Silencioso», o proprietário do Bank Saloon and
Gambling House na esquina da Front com a King, entrara para jogar faraó. A
alcunha devia-se ao facto de nunca dizer uma palavra ou sorrir enquanto
jogava. A sorte não estava com ele naquela noite e já tinha perdido quinhentos
dólares, mas nem mesmo assim desistia.
Às seis da manhã, Theo fechou finalmente as portas. Estavam
demasiado cansados para contar o que tinham ganhado naquela noite, mas
calculou que andaria perto dos quinze mil dólares. O suficiente para pagar as
dívidas, refazer o stock de bebidas e comprar alguma mobília para o primeiro
andar.
– Mais logo hei-de comprar-te uma grande cama de latão e um colchão
de penas – disse, enquanto abraçava Beth. – Prometo-te que nunca mais
voltarás a dormir no chão.
O Golden Nugget depressa se estabeleceu como uma das mais
populares casas de jogo de Dawson.
Theo usou o seu encanto para convencer quatro raparigas a trabalhar lá,
pagando-lhes uma pequena comissão por cada taça de champanhe que
conseguissem persuadir os homens a oferecer-lhes. Não era champanhe
autêntico, mas também muito poucas pessoas em Dawson seriam capazes de
notar a diferença. As raparigas davam cor à casa, provocando os homens e
namoriscando com eles, e se mais tarde vendiam o corpo pela melhor oferta, o
problema era delas e de mais ninguém.
Paradise Alley, nas traseiras de Front Street, era onde as verdadeiras
prostitutas faziam o seu negócio, numa enfiada de tendas chamadas berços,
cada uma com um nome por cima da porta. Eram na sua maioria mulheres
feias e robustas, porque a difícil viagem através das montanhas para ali chegar
eliminava logo à partida as mais delicadas. Cada uma servia cerca de
cinquenta homens por dia e os respectivos chulos ficavam-lhes com a maior
parte do que ganhavam, e aos olhos de Beth tinham a pior vida que conseguia
imaginar.
Mas a verdade era que Dawson não era um bom lugar para as mulheres.
Coziam pão, lavavam roupa e cozinhavam nos restaurantes, e apesar de
algumas delas se governarem bastante bem, tinham de trabalhar duramente, e
muitas tinham homens que lhes gastavam o dinheiro tão depressa como o
ganhavam. As que estavam casadas com mineiros passavam os dias a peneirar
areia em riachos distantes, vivendo em condições terríveis sem qualquer
companhia feminina.
Só uma pequena percentagem levava uma boa vida, e essas eram as
actrizes, as cantoras e as raparigas das salas de baile. A maior parte das
raparigas das salas de baile tirava dos homens muito mais do que lhes dava.
Por um dólar, um homem podia ter uma delas nos braços durante menos de
um minuto antes de a passar para o cliente seguinte. Havia uma rapariga que
tinha um cinto feito com vinte e sete moedas de ouro de vinte dólares, uma
prenda de um mineiro. A maioria não fazia segredo do facto de estar ali para
separar os homens das respectivas bolsas.
Beth trabalhava demasiado duro e demasiadas horas para viver à
grande, mas não se importava, porque isso a impedia de pensar em Molly e em
Sam. Theo cumprira a sua palavra e comprara mobília para os quartos do
primeiro piso, incluindo a prometida cama de latão, bem como tapetes.
As noites no saloon eram divertidas, e vê-lo tornar-se num tão grande
êxito dava-lhe uma enorme satisfação.
Quando pensamentos tristes se insinuavam no espírito, recordava a si
mesma que estava a viver um sonho. Não era difícil ser feliz em Dawson; as
pessoas eram simpáticas e amistosas, e não se passava um dia sem que alguém
fizesse algo extravagante que punha toda a gente a rir. Poderia talvez sentir-se
um pouco desapontada por ela e Theo terem tão pouco tempo para estar
juntos, mas à medida que Agosto se aproximava e o tempo frio e os dias
escuros se anunciavam, muitas pessoas começavam a partir de barco para o
exterior, e ela sabia que o seu tempo a sós com Theo havia de chegar.
E sabia, também, que tinha forjado um lugar no folclore de Dawson.
Havia muitos violinistas na cidade, mas nenhum tão bom como ela, e eram
todos homens. Era, além disso, considerada a rapariga mais bonita da cidade,
uma coisa de que Theo e Jack muito se orgulhavam.
As pessoas de Dawson gostavam de histórias, e havia as suficientes, a
respeito dos Reis do Eldorado, das fortunas que tinham ganhado e perdido às
mesas de jogo, e de todas as outras figuras menores, para encher vários livros.
Não ficou minimamente surpreendida ao descobrir que as pessoas inventavam
histórias fantásticas a respeito dela, de Theo e de Jack. Uma noite, no saloon,
ouviu um homem dizer a outro que Theo a carregara aos ombros durante toda
a travessia de Chilkoot Pass, para de seguida descrever como Sam morrera nos
Squaw Rapids como se tivesse estado lá a ver enquanto tudo acontecia.
Mas o que mais intrigava as pessoas era, ao que parecia, a relação dela
com Theo e Jack, pois corria palavra de que não era casada com Theo.
Estava bastante consciente de que muitas das raparigas das salas de
baile andavam de olho nele.
Não podia censurá-las: Theo era bonito, carismático e, agora, ainda por
cima rico, pois estavam a ganhar dinheiro como se caísse do céu. Beth sorria
quando as via aparecer no Golden Nugget com as suas melhores roupas e
tentavam atraí-lo para as salas de baile onde trabalhavam. Conhecia Theo
suficientemente bem para ter quase a certeza de que se ele se deixasse atrair
por outra mulher, não seria uma simples rapariga de uma sala de baile.
Numa noite chuvosa de princípios de Agosto, entrou no Golden Nugget
um homem que não só tinha uma história para contar como ia desencadear
uma cadeia de acontecimentos que mudaria tudo para Beth.
Beth estava a tocar quando ele entrou, um homem alto com um casacão
de lã e um chapéu de aba larga que lhe pareceu vagamente familiar, mas o
saloon estava demasiado cheio de fumo para que conseguisse distingui-lo com
nitidez.
Como sempre, tocou cerca de meia hora antes de fazer uma curta pausa,
e quando se dirigia ao balcão para ir buscar uma bebida, o homem agarrou-lhe
o braço.
– Viva, Miss Cigana – disse. – Vinha na esperança de a encontrar.
Ao olhar para a cara dele, Beth reconheceu Moss Atkins, um dos
sequazes de Soapy em Skagway.
Fora muitas vezes ao Clancy’s quando ela lá estava, e, apesar de nunca
lhe ter falado, conhecia-lhe a reputação de maldade. Tinha, além disso, uma
daquelas caras em que era difícil não reparar, com uns olhos azuis muito
brilhantes e o rosto marcado pelas bexigas.
– Olá, Moss – disse. – Prazer em vê-lo. Acaba de chegar?
– Já cá estou há alguns dias, a interrogar-me se será mais sensato zarpar
antes que o rio gele ou ficar para o Inverno e fazer algum negócio por estas
bandas.
– Acho que estaria melhor em Skagway – disse ela, com um sorriso. –
Os mounties daqui andam sempre de olho alerta. Nada de armas, nada de
trafulhices. Se o apanham a pisar o risco, põem-no três meses a cortar
madeira.
Dizia-se que poucas pessoas apanhadas a infringir a lei se preocupavam
com a multa que lhes era aplicada: de um modo geral, podiam pagá-la. Mas o
castigo de ser obrigado a cortar lenha para o conselho municipal funcionava
bem como dissuasor. Era um trabalho aborrecido e esgotante, e a maior parte
preferia sair da cidade a ter de o fazer.
– Bem, nesse caso talvez seja melhor pôr-me a andar – disse ele, com
uma gargalhada desprovida de humor. – Mas para onde? Skagway perdeu a
graça desde que mataram o Soapy.
– O Soapy morreu! – exclamou Beth.
É possível que, se não tivesse ficado tão surpreendida, tivesse reparado
que havia pessoas a ouvir a conversa. Mas estava tão desejosa de saber como
acontecera que nem lhe ocorreu que talvez fosse sensato ser mais discreta.
– Não sabia? Foi a 8 de Julho. Morto a tiro pelo Frank Reid, no cais.
– Mas porquê? – perguntou ela, recordando que Frank Reid era um
sujeito de aspecto inócuo, mais interessado em planeamento urbano do que em
lutas.
Moss lançou-se numa história a respeito de como um garimpeiro
chamado J. D. Stewart tinha chegado a Skagway, vindo do Yukon, com 2800
dólares em pó de ouro. Fora roubado, e o dedo público apontara para um dos
homens de Soapy. Os comerciantes locais recearam que, se começasse a
correr palavra de que era perigoso levar ouro para a cidade, os garimpeiros
passassem a evitá-la optando pela rota marítima e prejudicando-lhes o
negócio. Tinham exigido que Soapy devolvesse imediatamente a Stewart o
ouro que lhe fora roubado e os habitantes começaram a voltar-se contra ele.
– O resultado foi que o Soapy começou a beber, ficou todo eriçado e foi
para o cais com uma Derringer escondida na manga, um Colt .45 no bolso e
uma Winchester ao ombro – continuou Moss.
– O Frank Reid estava lá, e disse ao Soapy que não avançasse mais. O
Soapy apontou-lhe a espingarda à cabeça. O Reid agarrou o cano com a mão
esquerda e com a direita sacou o revólver que levava enfiado no cinto.
Disparou, mas o cartucho estava estragado, e no mesmo instante o Soapy
disparou a espingarda e atingiu o Reid na virilha. Mas o Reid voltou a disparar
o revólver, e dessa vez acertou em cheio no coração do Soapy, que morreu
instantaneamente.
Beth arquejou, e o mesmo fizeram os que estavam à volta e tinham
ouvido a história, pois toda a gente em Dawson sabia quem era «Soapy»
Jefferson Smith, mesmo os que não tinham passado por Skagway para ali
chegar.
As pessoas em redor começaram a fazer perguntas a Moss, que estava
claramente encantado por ter sido ele a levar a notícia a Dawson e por ver-se
no centro de todas as atenções.
– Sim, o Reid também morreu, mas foi uma morte lenta e dolorosa. Ao
menos a do Soapy foi rápida.
Theo e Jack aproximaram-se, tão interessados como todos os outros
numa história daquelas. Moss continuou a falar, dizendo que muitos dos
homens de Soapy tinham fugido para as montanhas para escapar aos bandos
de vigilantes que queriam linchá-los.
– Talvez tenha sido boa ideia deixá-lo quando deixou – disse
repentinamente, dirigindo-se a Beth. – O Soapy dizia que era a namorada dele,
mas acho que deve ter sido difícil para si engolir aquela maldade toda,
sobretudo depois de ter feito com que aquele seu outro sujeito apanhasse um
tiro.
Beth sentiu um nó no estômago ao ver a expressão da cara de Theo.
– Nunca houve nada entre mim e o Soapy – declarou. – E tenho a
certeza de que não foi ele que mandou atacar o Theo. Não sabe do que está a
falar.
Moss riu trocistamente.
– Sei muito bem do que estou a falar, querida. Estava com o Soapy
quando ele deu a ordem.
«Liquidem esse tipo inglês», foi o que ele disse. «Tenho planos para a
miúda dele.» Vi-os juntos dúzias de vezes, e se isso não quer dizer que havia
alguma coisa entre os dois, então eu sou holandês.
Jack interveio neste ponto, sugerindo que eram horas de Beth voltar a
tocar, e Moss saiu pouco depois.
O dia seguinte era sábado, e como tinham dormido até tarde, tiveram de
apressar-se para abrir o saloon ao meio-dia. Beth notou que Theo se mostrava
um pouco frio para com ela, mas estavam todos tão ocupados que não havia
tempo para abordar o assunto.
No domingo, só acordaram a meio da tarde, mas quando Beth se chegou
para Theo, esperando que fizessem amor como habitualmente faziam, ele
levantou-se da cama e começou a vestir-se.
– Aonde vais? – perguntou ela.
– Tratar de uns assuntos – respondeu ele, secamente.
Depois de Theo sair, Beth foi pôr-se à janela, a olhar para o rio do outro
lado de Front Street, e sentiu o Inverno aproximar-se. As árvores das
montanhas eram todas perenes, de modo que não havia cores outonais como
em Inglaterra, na América e em Montreal. Tinham-lhe dito que, ali, a
temperatura chegava a atingir os cinquenta graus negativos durante os meses
de Inverno, e estremeceu só de pensar nisso.
Quatro horas mais tarde, Theo ainda não tinha voltado. Beth entretivera
o tempo a fazer pequenos trabalhos, como coser a bainha de um dos seus
vestidos, lavar alguma roupa e escrever aos Langworthy. Lá fora, continuava a
chover intensamente, e não imaginava aonde poderia ter Theo ido, uma vez
que estava tudo fechado.
Mais tarde, ela e Jack prepararam uma refeição na cozinha, e
deixaram-se ficar por lá para aproveitar o calor do fogão.
– Está zangado por causa daquilo que o Moss disse – desabafou
finalmente Beth. – Mas não compreendo porque é que descarrega em mim. Ao
fim e ao cabo, ele é que andava com aquela pega do Red Onion, e eu tratei
dele quando foi ferido.
– Eu não acreditaria numa palavra do que alguém que trabalhou para o
Soapy Smith dissesse – observou Jack. – E ficaria muito espantado se o Theo
acreditasse. Mas ontem à noite não se falava de outra coisa na cidade, e várias
pessoas fizeram piada com o assunto na presença dele. Suponho que está um
pouco magoado.
Theo não voltou a casa nessa noite. Apareceu ao meio-dia de
segunda-feira para abrir o saloon, mas não disse uma palavra a respeito de
onde estivera. Como ele não parecia estar a remoer nada de especial e se
mostrava apenas um pouco calado, Beth resolveu deixá-lo em paz e sair para
fazer umas compras.
Quando, um par de horas mais tarde, regressava ao Golden Nugget,
ouviu o agora muito familiar som do apito de um barco que partia. Ao dobrar
a esquina para Front Street, viu que se juntara uma grande multidão a acenar, e
acenou também, como era costume fazer quando se estava perto.
Quando entrou no saloon, Jack disselhe que Theo tinha ido ao banco
depositar os ganhos. Passou uma hora, e outra, e Theo não voltava.
– Há-de estar a jogar póquer num sítio qualquer. Esperemos que tenha
passado primeiro pelo banco – disse Jack, com uma gargalhada.
Já passava das sete quando Wilf Donahue, mais conhecido como
«Zarolho» por ter um olho de vidro, entrou. Era um cliente habitual do Golden
Nugget, apesar de ter um estabelecimento semelhante em King Street. Na
opinião de Beth, aquele nativo do Kansas, gordo e de cara redonda, era
mal-educado e tomava demasiadas familiaridades com as pessoas, mas Jack e
Theo achavam-lhe graça e diziam que era um bom homem.
– Quero-te ali em cima a tocar, minha menina – disse Wilf a Beth,
apontando para o pequeno estrado que ela habitualmente usava.
– E desde quando é que dá ordens por aqui? – perguntou ela
descuidadamente, assumindo que aquilo era o que ele entendia por uma piada.
– Desde as duas horas desta tarde, quando comprei a casa – respondeu
ele.
CAPÍTULO 32
–Onde é que eu e o Jack vamos dormir? – perguntou indignadamente
Beth ao Zarolho, no dia seguinte. Estava lívida depois de tê-lo ouvido dizer a
Dolores e a Mary, duas das raparigas do saloon, que podiam instalar-se no
primeiro andar.
– Não tenciono tirar-te o teu quarto, a menos que continues a
responder-me torto – disse ele. Estava meio voltado de costas, o olho bom
virado na direcção dela enquanto o de vidro permanecia cegamente fixo em
frente. – Mas o Jack vai ter de mudar-se para a cozinha, porque prometi o
quarto dele a outras duas raparigas.
Beth sentia-se capaz de explodir, mas não se atrevia com medo de que
ele os pusesse, a ela e a Jack, na rua.
– Não é justo, Mr. Donahue – argumentou. – Foi o Jack que construiu
isto de alto a baixo, é a nossa casa! Já foi suficientemente mau o Theo tê-la
vendido sem nos dizer nada.
No dia anterior, ela e Jack tinham começado por pensar que o Zarolho
estava a brincar com eles ao dizer que comprara o saloon. Tinha fama de
brincalhão e quando, no passado, entrava no Golden Nugget com o seu
berrante fato aos quadrados e stetson enfeitado com penas, dizia sempre
alguma coisa extravagante. Também gostava de ostentar o seu dinheiro, e
embora as pessoas o considerassem um tolo, viam-no como um tolo
inofensivo.
Mas, para grande choque e consternação de ambos, Donahue
mostrara-lhes um documento legal redigido por um advogado de Dawson, e
assinado por Theo, que provava que tinha comprado o saloon, e tudo o que
continha, por oitenta mil dólares.
Parecera-lhes espantoso que Theo tivesse tido a insensibilidade de fazer
o negócio a um domingo, e tão cobardemente que passara a noite toda fora
para não ter de os enfrentar. Mas tivera a coragem de aparecer na
segunda-feira, depois de ter descontado a ordem de pagamento, pegado
friamente nos ganhos de sábado e emalado em segredo algumas das suas
coisas. Até falara jovialmente com Jack, lembrando-lhe que estavam a precisar
de mais whisky, e saíra com toda a calma para apanhar o vapor…
ironicamente, o mesmo a que Beth tinha acenado.
Jack estava a ferver de fúria; se não fosse ele, Theo nunca teria
construído o saloon. Mas as lágrimas que lhe brilhavam nos olhos sugeriam
que o que mais lhe doía era ter pensado que ele e Theo eram como irmãos, e
não conseguia acreditar que o tivesse traído.
Beth via a absoluta baixeza de tudo aquilo. Teria ficado ao lado de Theo
fosse o que fosse que a vida lhe atirasse para cima, mesmo que tivesse perdido
o saloon num jogo de póquer. Talvez a relação entre os dois tivesse esfriado
um pouco nos últimos tempos, mas ela continuava a amá-lo e pensara que esse
amor era retribuído. Mas descobrir que ele era capaz de pura e simplesmente
abandoná-la, depois de tudo o que tinham enfrentado juntos, que estava mais
interessado no dinheiro do que nela, era nada menos que devastador.
Não havia ali lugar a recurso legal. Theo era o proprietário do terreno e
nunca fora redigido qualquer acordo para dar aos sócios uma parte do negócio,
apesar de ele sempre ter dito que era o que tencionava fazer. Se o Zarolho
decidisse pô-los na rua, podia legalmente fazê-lo.
Para juntar o insulto à ofensa, tinham agora de ficar gratos por o novo
proprietário aceitar mantê-los ao seu serviço e oferecer-lhes um tecto para se
abrigarem.
Desde que o Golden Nugget abrira, nunca tinham tido um salário, e
Jack nunca fora pago pelo seu trabalho. Tinham-se limitado a levantar uns
poucos dólares de longe em longe, quando precisavam de alguma coisa,
tolamente confiados em que o dinheiro que entrava para a conta do saloon
pertencia a todos, tal como tinham partilhado tudo no passado.
O Zarolho olhava para Beth com frio cálculo. Não gostava da fúria e da
dor que lhe via nos olhos; as mulheres enganadas eram regra geral uma fonte
de problemas. Mas tinha de arranjar maneira de apaziguá-la, pois sabia bem
que era ela a verdadeira atracção do Golden Nugget. Na verdade, se não fosse
por ela nunca teria comprado a casa. Bons dealers, dançarinas e empregados
de balcão competentes havia-os aos montes, eram tão comuns como bêbedos.
Mas uma violinista bonita era tão rara como um urso-pardo domesticado.
Sabia que tinha de prendê-la durante mais uma semana, ou à volta disso,
até que o rio gelasse e ela não tivesse alternativa senão ficar todo o Inverno. E
se conseguisse livrar-se de Cockney Jack sem a irritar, talvez até conseguisse
acabar por levá-la para a cama.
– Escuta, minha pequena Rainha Cigana – disse, num tom melífluo. –
Lamento muito que o teu homem te tenha abandonado; foi uma patifaria da
pior espécie. Mas paguei bom dinheiro por esta casa e agora tenho de pô-la a
render. Por isso sou obrigado a alugar aqueles dois quartos. Mas digo-te uma
coisa, trato eu de fazer a colecta depois de tocares, e tudo o que for para o
chapéu é para ti.
Que dizes a isto?
Beth estava demasiado aturdida para protestar mais. Não seria a mesmo
coisa agora que Theo se fora embora, de modo que supunha que pouca
diferença lhe fazia que lá passassem a morar quatro outras raparigas.
Como sempre, tocar violino naquela noite acalmou-a. Talvez não
tivesse feito ninguém querer pôr-se de pé e dançar. Na realidade, as melodias
tristes que tocou puseram lágrimas nos olhos de muitos dos presentes. Mas
quando o chapéu foi passado em redor e lhe chegou à mãos, contou mais de
trinta e cinco dólares, confirmação de que tinha um talento único que lhe
garantia que nunca teria de passar fome.
Foi uma noite sossegada, e o Zarolho deixou-os fechar à uma, porque
havia muito poucos clientes.
As raparigas só se mudariam no dia seguinte, de modo que Jack pegou
numa garrafa de whisky e disse que iam os dois afogar o desgosto.
– Aposto que o Theo já tinha o negócio cozinhado com o Zarolho há
algum tempo, mas não teve coragem de ir para a frente na altura – disse Jack
um pouco mais tarde, quando estavam os dois sentados cada um na sua ponta
da cama de Beth, a beber, com uma manta a tapar-lhes as pernas. – Então
ouviu aquele tipo falar de ti e do Soapy Smith e pensou que era a desculpa
perfeita para sair sem parecer um completo canalha.
– Mas isso significa que deve ter deixado de gostar de mim há séculos –
murmurou Beth com a voz a desfazer-se e uma nova ameaça de lágrimas. –
Porque não foi capaz de o admitir?
– Duvido que tenha sido isso. Era um jogador dos pés à cabeça –
recordou-lhe Jack. – Aposto que só pensou no dinheiro que ia ter na mão. Ao
todo, há-de ter sido bastante mais de oitenta mil, com a receita de sábado e o
que havia no banco. O bastante para uma porção de grandes jogos de póquer.
Ou talvez tenha visto aquele dinheiro como um monte muito grande e
achado que o melhor era sair do jogo enquanto estava a ganhar.
– Mas eu estive ao lado dele no melhor e no pior. Ele dizia que me
amava e que sabia que eu teria ido até às profundezas do Inferno com ele.
Porque foi então que não quis levar-me?
– Não sei, Beth. – Jack abanou a cabeça, confuso. – Mas lembra-te de
como foram as coisas desde que saímos de Filadélfia. Eu e o Sam tivemos
sempre de carregá-lo ao colo. Admito que contribuía com a sua parte quando
ganhava, mas se não fôssemos nós nunca teria conseguido atravessar o
Canadá, quanto mais chegar até aqui. Talvez o soubesse, e isso o
incomodasse. Ir-se embora com o dinheiro todo talvez o tenha feito sentir-se
livre.
– Para encontrar uma senhora da sociedade que não o envergonhe –
disse ela, amargamente. – Lembra-te de como ele era em Montreal, sempre à
procura de gente fina com quem se dar. Não lhe importava que eu trabalhasse
numa fábrica e vivesse num pardieiro. Aposto que ficou encantado quando
perdi o nosso bebé e o médico disse que não poderia ter outro. Desse modo
não tinha responsabilidades. Que parva que fui!
Jack estendeu a mão e pegou na dela, apertando-lha num gesto de
compreensão. Mas não protestou nem disse que estava enganada.
– Pois bem, espero sinceramente que perca todo aquele dinheiro no
primeiro jogo – disse Beth, furiosamente. – Quando estiver na sarjeta e sem
mais nenhuma esperança, espero que venha a rastejar até mim. Para eu lhe dar
um pontapé na cara.
Beberam em silêncio durante algum tempo, ambos absortos em
pensamentos amargos.
– Houve alguma coisa entre ti e o Soapy? – perguntou Jack mais tarde.
– Eu sei que passaste uma noite com ele, mas houve mais do que isso?
– Não, mas podia ter havido. – Beth suspirou, e então contou como
tinha encontrado Soapy e bebido um copo com ele no último dia que tinham
passado em Skagway, e que fora ele que a levara até Dyea no seu cavalo. –
Gostava bastante dele, mas, no fim, ainda bem que não o escolhi. Não havia
grande diferença entre ele e o Theo, pois não? Achas que é verdade aquilo de
o Soapy ter mandado alguém matá-lo?
– Acho que pode ter acontecido, mas duvido que fosse por causa de ti.
Julgo que o Theo pisou o risco. Eram os dois iguais, ambos aldrabões. Não me
refiro só no jogo e com as mulheres, mas em tudo. Usavam o seu encanto para
cativar as pessoas e poderem aproveitar-se delas. O Theo enganou-me bem
enganado, isso é certo, e o que me está mais encravado na garganta é que teria
morrido por ele.
Em meados de Outubro, Dawson era um lugar muito mais sossegado.
Tinha nevado e o Yukon, congelado, já só era usado por trenós puxados por
cães para levar mantimentos aos mineiros e trazer lenha para as lareiras.
Os candidatos a garimpeiros que tinham chegado em Junho e
deambulado como almas penadas pelas ruas lamacentas da cidade tinham
quase todos regressado a casa enquanto ainda era possível o contacto com o
exterior. Sem mais barcos a trazer ou levar pessoas, a margem do rio estava
deserta.
O fumo de mil chaminés erguia-se para formar um nevoeiro cinzento
contra o fundo de um céu ainda mais cinzento.
As partes mais baixas das montanhas que rodeavam a cidade estavam
despidas de árvores, os cotos enegrecidos deixados para trás como dentes
podres, e a doença espreitava entre as muitas pessoas que ainda viviam em
tendas. A cidade fora construída em terras pantanosas e durante todo o quente
Verão, sem escoamento de águas residuais ou medidas sanitárias dignas desse
nome, doenças como a febre tifóide, a diarreia e a malária tinham cobrado o
seu tributo. Aumentava o número de casos de escorbuto, bem como os de
pneumonia e de problemas respiratórios.
A maior parte dos residentes de Front Street não tinha consciência, ou
não queria saber, do drama dos cidadãos mais pobres, porque podia continuar
a ter as suas caldeiras, lareiras e fogões acesos, as suas latrinas despejadas e as
suas despensas abastecidas. A electricidade tinha chegado, tal como o
telefone, e para os que dispunham dos meios adequados, Dawson era tão
alegre e colorida como Paris, ainda que terrivelmente fria.
Beth descobriu que não era capaz de ignorar o sofrimento dos pobres e
dos doentes. Todos os dias fazia um grande panelão de sopa e levava-o num
trenó ao padre William Judge, o frágil e esquelético sacerdote que dirigia um
pequeno hospital junto a uma colina no extremo norte de Dawson.
Para ela, o padre Judge era um santo. Trabalhava incansavelmente
desde manhã cedo até bem entrada a noite, vestindo apenas uma esfarrapada
sotaina apesar do frio extremo. Beth suspeitava de que os enfermeiros não
eram tão puros como ele e roubavam os pacientes que ali estavam à espera da
morte, de modo que ficava até ver os doentes comerem a sopa, para ter a
certeza de que não era desviada para outro sítio e vendida.
Também Jack estava a ficar cada vez mais desiludido com a forma
como as coisas funcionavam em Dawson. A maior parte das pessoas bajulava
os ricos e admirava as suas extravagantes ostentações de riqueza ao mesmo
tempo que tudo fazia para conseguir que uma parte dela lhe fosse parar aos
bolsos. Achava ofensivo que muitos dos mais ricos explorassem os pobres,
pagando-lhes uma ninharia para lhes lavarem a roupa, lhes cortarem a lenha e
fazerem uma série de outros trabalhos servis. Quando o Zarolho lhe ordenava
que expulsasse do saloon pessoas que ali ficavam horas seguidas a fazer durar
uma bebida para aproveitarem o calor, recusava. Sabia que alguns daqueles
homens iam morrer de frio nas suas tendas e cabanas sem aquecimento, e era
sua opinião que o Zarolho deveria dar provas de alguma caridade cristã.
Tinha havido muitos conflitos entre os dois, pois o Zarolho não tinha
ponta de respeito pela honestidade nem pela humanidade de Jack.
– Tenho de me ir embora – anunciou finalmente Jack a Beth numa noite
de Novembro, depois de o bar ter fechado. – Senão, um destes dias perco a
cabeça e dou cabo do Zarolho. Deita água nas bebidas, transformou as
raparigas em prostitutas e fica com a maior parte do que elas ganham, e
desconfio que os jogos estão viciados. Não aguento continuar a fazer parte
disto.
Também Beth ficara horrorizada quando as quatro raparigas tinham
começado a escapulir-se até aos quartos do primeiro piso acompanhadas por
homens, porque apesar de nenhuma delas ser uma virgem inocente quando
Theo as contratara, também não eram prostitutas. Dolores, que lhe fazia
confidências, dissera-lhe que o Zarolho ameaçara despedi-las se recusassem ir
para a cama com qualquer homem sempre que ele o ordenasse.
Tinha as raparigas à sua mercê, e Beth sentia muita pena delas.
Nenhuma era particularmente bonita ou sequer inteligente, e todos os outros
saloons tinham a sua quota de raparigas, de modo que não encontrariam
trabalho em mais nenhum lugar. O melhor que podiam esperar era que um dos
mineiros as levasse como «esposa de Inverno», para lhe aquecer a cama e
cozinhar para ele. Mas uma cabana fria e primitiva nos limites da cidade, sem
dinheiro e com um homem que não amavam, era provavelmente tão mau
como ser prostituta.
– Para onde vais? – perguntou a Jack. A perspectiva de ele se ir embora
era como estarem a apertar-lhe uma fria cinta de aço à volta do coração.
Julgara ter ultrapassado a perda de Sam e de Molly, mas quando Theo a
deixara fora como se todos os seus desgostos passados tivessem voltado ao
mesmo tempo. Sem Jack, o seu único verdadeiro amigo, não teria aguentado,
talvez até tivesse tentado acabar com tudo, como outras mulheres
abandonadas tinham feito em Dawson.
Mas há semanas que sabia que Jack odiava e desprezava o Zarolho, e
seria errado tentar fazê-lo ficar só por causa dela.
– Para o Bonanza. – Jack encolheu os ombros. – Há lá muito trabalho.
– Mas é uma vida muito dura – protestou ela.
– Não tão dura como fazer vénias ao velho Zarolho – respondeu ele,
com um sorriso. – Voltarei quando o gelo derreter, na Primavera, e, se
entretanto nenhum homem bonito e rico te tiver apanhado, talvez estejamos os
dois prontos para voltar ao exterior.
Beth sorriu debilmente. Percebeu, pelo brilho nos olhos de Jack, que ele
estava na realidade a apreciar a ideia de trabalhar em Bonanza Creek. Nunca
tivera medo do trabalho nem de condições duras, e tinha muito mais em
comum com muitos dos mineiros do que com os jogadores, parasitas e os
peralvilhos ali de Dawson. Fora só a influência de Theo que o levara a
trabalhar num saloon, e na verdade valia muito mais do que isso.
– Perdi todo o interesse no amor, mas sei que vou ter imensas saudades
tuas. – Beth estendeu os braços para o abraçar. – Tem cuidado contigo, e
manda notas por alguém, para que eu saiba como estás.
Jack partiu dois dias mais tarde com um mineiro chamado Cal Burgess,
num trenó puxado por cães.
Beth foi até à beira do rio gelado para lhe acenar adeus, a sorrir apesar
de lhe apetecer chorar. Os malamutes ladravam furiosamente e puxavam pelos
tirantes, ansiosos por correr. Quando Cal subiu para a parte de trás do trenó e
lhes deu o sinal, saltaram para a frente.
Jack voltou-se, o rosto meio escondido pelo capuz forrado a pele de
lobo, a mão enluvada erguida, mas Beth adivinhou, pela linha estreita e recta
que os lábios dele formavam, que estava preocupado por deixá-la.
Tinha sido horrível quando Theo a abandonara. Sentira-se exposta,
humilhada, todos os seus sonhos e esperanças despedaçados. Mas fora capaz
de analisar a relação entre os dois, fazer a lista dos muitos defeitos e falhas
passadas dele e ver por si mesma que sempre estivera à espreita da grande
oportunidade. Deveria ter sabido desde o princípio que nunca poderia confiar
totalmente nele.
Agora, porém, não havia estes sentimentos para contrabalançar a
tristeza que a partida de Jack lhe causava. Recordava-o a cada hora, a cada
momento. Enquanto fazia a primeira chávena de café do dia, imaginava a cara
sonolenta dele todas as manhãs, as faces e o queixo escurecidos pela barba, a
rasgar-se num sorriso quando ela o acordava. E mais tarde, quando o saloon
abria, lembrava-se de como, nos tempos mortos, costumava ir sentar-se num
dos bancos do bar a conversar com ele e a vê-
lo arrumar as prateleiras e limpar os copos.
Havia piadas que partilhavam a respeito de clientes. Jack conseguia
transmitir-lhe uma mensagem a respeito de um nariz muito grande, um defeito
na fala, um mentiroso compulsivo ou qualquer outra coisa com um simples
sorriso ou uma sobrancelha arqueada. Por vezes, não conseguiam conter o riso
e tinham de esconder-se atrás do balcão ou correr para as traseiras, com medo
de que lhes exigissem uma explicação.
Mas era à tarde que mais sentia a falta dele, pois iam sempre os dois
jantar juntos por volta das seis. Ela mudava de roupa e arranjava o cabelo
quando voltavam, e mais tarde, quando entrava no saloon para tocar, ele
lançava-lhe um assobio de apreciação. Estava sempre presente, sempre a
admirá-la, sempre a apoiá-la, sempre o amigo que nunca a abandonaria,
sempre disposto a ouvi-la a qualquer hora do dia ou da noite, feliz por
sentar-se a seu lado em silêncio quando era isso que ela queria.
E quando olhou para trás, apercebeu-se de que sempre assim fora. Se
ele não a tivesse animado a ir ao Heaney’s, talvez nunca tivesse chegado a
tocar em público e em vez disso tivesse arranjado trabalho numa loja. Não se
fora abaixo quando ela o trocara por Theo, e apesar de todas as raparigas que
tivera, e tinham sido muitas, nunca deixara que se intrometessem entre os
dois.
Dera-lhe força e consolo quando ela perdera o bebé e assumira o
controlo de tudo em Skagway.
Fora ele que os levara até ao alto de Chilkoot Pass. Partilhara o desgosto
dela pela perda de Sam e compreendera o que ela sentira quando Molly
morrera. Partilhara até a sua dor quando Theo a abandonara.
Agora, porém, partira para fazer a sua própria vida, e por muito que lhe
sentisse a falta, Beth estava contente por ele. Já passara demasiado tempo a
apoiá-la a ela, a Sam e a Theo; chegara a altura de usar toda a energia e
capacidade que tinha em seu próprio proveito.
Compreendeu que também ela tinha de fazer o mesmo.
A partir do momento em que conhecera Theo e se apaixonara por ele,
entregara-lhe praticamente as rédeas da sua vida. Nunca fizera uma pausa para
se interrogar se queria na verdade fazer parte dos grandes planos dele; na
realidade, perdera a capacidade de fazer os seus próprios planos. Em
retrospectiva, parecia-lhe impossível que tivesse percorrido tantos milhares de
quilómetros, suportado tantas provas e privações, só para estar com ele.
Certa manhã, várias semanas depois de Jack ter partido, estava a
escovar o cabelo no quarto quando de repente lhe ocorreu que o Zarolho
estava a usá-la do mesmo modo que Heaney fizera em Nova Iorque. Aceitar o
dinheiro que era posto no chapéu todas as noites e estar agradecida por poder
conservar o quarto era fazer o jogo dele. Estava a ser explorada, e se não
tivesse cuidado arriscava-se a ficar apanhada como Dolores e as outras
raparigas.
Ganhava duzentos dólares ou mais por semana, mas o elevado preço de
tudo em Dawson depressa lhe reduzira o pé-de-meia, porque tinha comprado
vestidos novos, um casaco de peles para a aquecer quando saía e umas botas
forradas a pele.
No inebriamento de ter chegado até ali e fazer parte da loucura que era
Dawson, perdera de vista a razão que os levara a tentar a arriscada viagem. O
plano inicial fora fazer fortuna.
Theo conseguira-o, mas tudo o que ela tinha para mostrar depois de
tanto trabalho era uma poupança de cento e sessenta dólares. Que não iam
levá-la muito longe.
– Vá lá, querida, dá-me um beijo!
Beth recuou, horrorizada, quando o Zarolho tentou ebriamente
agarrá-la. O homem vestia o seu fato aos quadrados amarelos e pretos, o
colete tão apertado no tronco que, por baixo dele, a barriga se projectava para
fora. Tinha o rosto vermelho e brilhante de suor e o hálito fedia a álcool.
Eram quatro da manhã e fora uma noite muito animada, com um jogo
de póquer em que se apostara forte. Como de costume, o Zarolho passara a
noite sentado a uma mesa a beber com os amigos, só se mexendo para mandar
servir mais bebidas, ordenar a um dos empregados que expulsasse um bêbedo
ou acariciar uma das prostitutas de Paradise Alley que, ultimamente, tinham
começado a frequentar o saloon.
O jogo de póquer acabara uma hora antes. Os jogadores tinham ido para
casa e os únicos clientes que restavam eram seis ou sete homens tão
embriagados que ou estavam a dormir com as cabeças apoiadas nas mesas ou
a balouçar-se precariamente sentados nas cadeiras.
O actual barman, conhecido como Sly, um nome apropriado para um
homem que, Beth tinha praticamente a certeza, metia ao bolso o preço de
muitas bebidas, estava a tentar fechar a porta para poder ir para casa. Pedira a
Beth que o ajudasse, e fora quando sugerira ao Zarolho que corressem com os
bêbedos que ele se pusera de pé.
Mas não correra com ninguém; em vez disso, tentara agarrá-la.
Subitamente, Beth soube que tinha de manter-se firme e mostrar quem
era.
– Não se aproxime, seu patife nojento – cuspiu-lhe. – Não sou uma das
suas mulheres. Atreva-se a tocar-me e vai arrepender-se.
– Se voltas a falar-me nesse tom, ponho-te na rua – disse ele, a arrastar
as palavras.
Ela limitou-se a lançar-lhe um olhar carregado de desprezo, ao ver que
mal conseguia manter-se de pé, e dessa vez lembrou-se de que era uma figura
popular na cidade, ao passo que ele era alvo de chacota.
– Ponha esses desgraçados na rua e vá para casa – disse. – Amanhã
falamos.
Voltou-lhe as costas e correu escada acima até ao quarto, fechando a
porta à chave. Duvidava que o Zarolho fosse para casa ou pusesse os bêbedos
na rua porque, apesar de toda a sua conversa, era um homem fraco. O mais
certo era ainda lá estarem de manhã, a dormir no chão.
Dezembro tinha chegado e o frio era tanto que a neve nas ruas era dura
como pedra e respirar fazia doer os pulmões. A única razão que a levara a
adiar a implementação do plano que traçara duas semanas antes fora o facto de
o quarto por cima do Golden Nugget ser quente e confortável. Sentia-se
segura lá, apesar de odiar o Zarolho. Mas essa segurança tinha desaparecido,
agora que ele se convencera de que ela era sua propriedade. Não duvidava de
que seria bem capaz de a dominar à força, ou até de gizar um plano qualquer
para a implicar num acto criminoso como vingança por ela o ter repudiado.
Pouco dormiu durante o que restava da noite, pois cada rangido do
edifício fazia-a temer que fosse ele a subir a escada. Às nove da manhã,
desistiu de tentar dormir e levantou-se.
Desceu ao saloon, onde encontrou os homens estendidos no chão,
inconscientes. O Zarolho, ainda agarrado a uma garrafa de whisky, tinha a
boca aberta e ressonava ruidosamente. O fedor quase a fez engasgar-se; não
era só o vomitado no chão, era qualquer outra coisa ainda mais repugnante.
Fechou a porta que dava para a escada, enfiou o casaco e o barrete de
pele e saiu pelas traseiras.
Jurara a si mesma tentar nunca mais pensar em Theo, mas não pôde
impedir-se de imaginar o horror dele se visse o que acabava de ver. Theo
sempre respeitara rigorosamente o princípio de recusar mais bebida a homens
que já não soubessem o que estavam a fazer. Se um dos clientes estava à beira
de cair, pedia aos amigos que o levassem para que curasse a bebedeira em
casa. Nunca permitiria que alguém ficasse a dormir embriagado no chão do
seu saloon.
Era demasiado cedo para que os saloons estivessem abertos, de modo
que foi a um café em King Street e pediu o pequeno-almoço.
Às onze horas, entrou no Monte Carlo.
– Gostaria de falar com Mr. Fallon – disse ao rapaz que varria o chão. –
Diga-lhe que é a Cigana.
O Monte Carlo mudara várias vezes de mão desde Junho, quando ela lá
tocara, e cada novo proprietário tinha-o embelezado com espelhos,
candelabros, quadros e alcatifas. O actual dono, John Fallon, era, dizia-se, um
cavalheiro sulista, com planos ainda mais grandiosos para o local. Beth não o
conhecia, mas estava a contar que ele já tivesse ouvido falar dela.
– Ainda está a dormir – disse o rapaz.
– Então acorde-o – replicou ela, secamente. – Tenho outras pessoas com
que falar esta manhã.
O rapaz desapareceu nas traseiras e Beth ouviu os passos dele
ressoarem na escada. Minutos mais tarde, ouviu-o voltar a descer, e o seu
coração afundou-se porque assumiu que Fallon lhe tinha dito que não se
levantava fosse para quem fosse.
Para sua surpresa, porém, não era o rapaz e sim um homem de trinta e
muitos anos. O cabelo louro estava despenteado e vestia um roupão de cetim
por cima de uma camisa sem colarinho, bastante suja.
– John Fallon às suas ordens, minha senhora – disse ele, pegando-lhe na
mão e beijando-a. – Perdoe o meu aspecto. Soubesse eu que a Rainha Cigana
do Klondike vinha visitar-me e estaria todo aperaltado, pronto para a receber.
Beth ficou encantada por descobrir que os rumores que ouvira
correspondiam à verdade: John Fallon era um verdadeiro cavalheiro.
– Eu é que peço desculpa por vir tão cedo – disse.
– É uma honra conhecê-la, minha senhora. – Fallon sorriu. – Sou um
grande apreciador da sua música. Muitas vezes me deixei ficar à porta do
Golden Nugget a ouvi-la tocar. Na Virgínia temos muitos bons violinistas,
mas não acredito que alguma vez tenha ouvido um melhor.
O coração de Beth começou a bater um pouco mais depressa.
– Obrigada, senhor – disse, ofegante. – Nesse caso, talvez tenha vindo
ao lugar certo. – O rasgado sorriso dele e o interesse que lhe lia nos olhos
azul-claros eram garantia suficiente para lhe dar coragem. – É que ando à
procura de um outro lugar onde tocar, e o Monte Carlo convir-me-ia, desde
que aceitasse as minhas condições.
– E se me dissesse quais são? – pediu ele, o sorriso a desvanecer-se num
esgar matreiro.
– Cinquenta dólares por noite mais o que os clientes puserem no
chapéu. E um quarto.
Ele inspirou por entre os dentes.
– Cinquenta dólares por noite é muito. Poderia ir até aos vinte e cinco.
Beth entrara ali disposta a aceitar quinze, mas o facto de lhe terem
oferecido mais reforçara-lhe a confiança.
– Nesse caso lamento, Mr. Fallon, mas não posso tocar para si – disse e,
voltando-se, fez menção de dirigir-se à porta.
Preparava-se para a abrir quando ele tossicou.
– Talvez possa ir até aos trinta e cinco.
– Ora vamos, Mr. Fallon, não quer que eu vá tocar para o Criterion, pois
não? Quarenta e cinco e não falo com mais ninguém. Desde que o quarto que
me der seja bom.
Ele hesitou apenas um segundo.
– Combinado – avançou para lhe apertar a mão. – Quando é que pode
começar?
– Quando é que o meu quarto fica pronto?
– Uma hora? – sugeriu ele.
Beth assentiu.
– Tem alguém que possa acompanhar-me até ao Golden Nugget para ir
buscar as minhas coisas?
Receio que o Zarolho não aceite bem a minha saída.
– Irei eu próprio, minha senhora – respondeu ele, com um grande
sorriso. – Dê-me cinco minutos para me vestir convenientemente.
Foi um momento deliciosamente satisfatório ver a expressão de puro
assombro do Zarolho quando encontrou John Fallon na escada a transportar
um braçado de vestidos de Beth.
– Pa…para onde vai com isso? – gaguejou.
– Para a minha casa – respondeu Fallon alegremente. Voltou-se para
Beth, que descia atrás dele. – Já tem tudo?
– Tudo o que é importante para mim – respondeu ela, sorrindo ao
Zarolho. Levava o estojo do violino numa mão e o saco de viagem com o resto
das suas coisas na outra. – Agora já pode alugar o meu quarto a mais um par
de prostitutas. Vai precisar de uma nova atracção, sem mim para convencer as
pessoas a entrar.
– Não podes deixar-me assim pendurado – protestou o Zarolho.
– Ora vamos, Mr. Donahue – disse Beth, num tom suave. – Clientes que
cagam nas calças e vomitam no chão não querem saber de música de violino
para nada, e agora pode transformar a casa toda num bordel. Vai safar-se bem.
Teve o prazer acrescido de saber que Dolores, uma das maiores
coscuvilheiras de Dawson, estava no alto da escada a ouvir tudo. Quando a
noite chegasse, a história seria conhecida em toda a cidade.
O Zarolho fez uma tentativa de impedir Fallon de sair pela porta das
traseiras, mas o outro empurrou-o para um lado.
– Não se esqueça de mandar lavar o chão antes de abrir – disse Beth, ao
passar por ele. – Caso contrário as pessoas podem pensar que se espalhou pelo
chão!
– O Lorde devia estar mal da cabeça para a deixar – disse Fallon,
enquanto levava os vestidos de Beth para um dos quartos da frente do Monte
Carlo. – Foi admiravelmente digno, o modo como pôs o Zarolho no lugar.
– O meu tempo no Golden Nugget chegou ao fim – respondeu Beth. –
Preferia não falar mais no assunto.
Fallon pousou os vestidos em cima da cama e sorriu.
– Por mim, tudo bem, e penso que devíamos beber uma taça de
champanhe para celebrar um novo começo.
– Seria bastante agradável – disse Beth, retribuindo o sorriso. Gostava
do aspecto daquele homem e gostava da maneira como ele falava. Estava
determinada a, de futuro, deixar de olhar para trás e aproveitar ao máximo as
oportunidades que lhe surgissem.
*
O Monte Carlo estava cheio a abarrotar naquela noite, e quando Beth
espreitou por cima da balaustrada antes de descer para tocar, calculou que a
última história a seu respeito já circulava, ganhando um pouco mais de drama
cada vez que era contada.
Fallon mandara afixar cartazes a anunciar que ela tocaria ali naquela
noite, e o jovem Tom acabava de informá-la de que tinha passado pelo Golden
Nugget e que só lá havia três ou quatro clientes.
Ia ganhar muito dinheiro ali. Tinha o melhor quarto da casa, com
colchão de penas na cama e um toucador suficientemente grande para a rainha
do Sabá. Até havia electricidade, e a casa era quente como uma torrada.
Theo já não passava de uma pequena dor. Podia muito bem viver sem
ele.
Quando voltou ao quarto para ir buscar o violino, viu-se no comprido
espelho do patamar. O cabelo brilhava como alcatrão molhado; os olhos
chispavam de excitação e tinha as faces encantadoramente rosadas. Com o
vestido de cetim púrpura enfeitado com folhos de renda preta que mandara
recentemente fazer a uma costureira, as mitenes de renda preta que lhe
chegavam aos cotovelos e uma flor púrpura nos cabelos, sabia que estava
espectacular.
– Usa-o para teu proveito – murmurou para si mesma. – Sê a Rainha
Cigana!
Durante todo o resto de Dezembro, até ao Ano Novo de 99, Beth
triunfou no Monte Carlo. Tocava duas vezes por noite, uma hora de cada vez,
mas não era invulgar acompanhar outros músicos. John Fallon gostava que ela
se misturasse com a clientela, e era uma festa quase todas as noites.
A Passagem do Ano e o vigésimo segundo aniversário dela, mais tarde
em Janeiro, foram pontos altos, porque Fallon deu uma festa privada para
celebrar o Ano Novo e para a qual convidou as pessoas mais ricas e influentes
da cidade, e no aniversário dela organizou outra especial, oferecendo-lhe uma
pulseira de ouro.
Beth sentiu, pela maneira como ele lha colocou no pulso e lhe beijou a
mão, que a desejava, e ficou encantada ao descobrir que também o desejava,
porque isso significava que estava definitivamente livre de Theo.
Não andava à procura de um caso amoroso a sério, mas estava pronta
para uma pequena aventura.
Não imediatamente – primeiro queria tirar bem as medidas a Fallon –,
mas entretanto podia namoriscar com ele.
Por vezes, nos escuros e gelados dias de Janeiro e Fevereiro, chegava a
sentir-se satisfeita por Theo ter partido, porque se ele ainda ali estivesse nunca
teria descoberto como era forte e independente. Assumira o controlo da sua
própria vida, era uma lenda viva em Dawson, e sabia que para onde quer que
decidisse ir depois daquilo, teria confiança e crença em si mesma suficientes
para ser bem-sucedida.
Em princípios de Maio, decidiu que chegara a altura de ter uma noite de
amor. Há várias semanas que tinha dificuldade em pensar noutra coisa,
acordando muitas vezes de noite a meio de um sonho erótico.
Em Dawson, a lei impunha que, nas noites de sábado, tudo fechasse à
meia-noite, e, desde que Beth se mudara para o Monte Carlo, Fallon abria
sempre uma garrafa de champanhe depois de as portas estarem fechadas e
convidava Beth a juntar-se a ele.
Tinha andado a poupar o mais que podia desde que começara a tocar no
saloon, mas como queria estar particularmente bonita para Fallon,
encomendara a uma costureira um novo vestido vermelho. O
corte imitava o estilo dos vestidos das bailarinas de flamenco, com um
fundo decote, mangas com folhos, cingido do corpete até aos joelhos, onde a
saia rodava em camadas sucessivas de folhos até aos pés.
Era um vestido sensacional, que ela nunca se teria atrevido a usar em
qualquer outro lugar senão Dawson, e parte do prazer residia em saber que era
ousado e faria arquear muitas sobrancelhas.
Sabia que as pessoas continuavam a coscuvilhar a respeito de Theo a ter
deixado, e talvez aquele vestido provasse que tinha conseguido esquecê-lo.
Sabia que tinha, porque enquanto vestia a roupa interior, de seda e renda, só
pensava em Fallon a desapertar atilhos e botões, e estes pensamentos
fizeram-na corar.
Tocou só para ele toda a noite. O saloon estava apinhado de clientes,
todos a olhar para ela no seu pequeno palco, a marcar o compasso com os pés,
a bater palmas, a sorrir. Mas os olhos escuros dela continuavam fixos nele, de
pé no extremo do balcão. Não era arrebatadoramente bonito como Theo; a
pele era pálida, as feições vulgares e os olhos de um azul deslavado. Mas tinha
estilo. Naquela noite, usava um colete de seda verde-mar por baixo do casaco
escuro, as mãos dele eram macias e bem tratadas, e o sorriso que tinha nos
lábios era só para ela.
– Está muito bonita esta noite – disse Fallon enquanto lhe entregava
uma taça de champanhe na sala privada, depois de o saloon ter fechado. – E
esse vestido novo fica-lhe muito bem.
A sala era pequena, sem espaço para mais do que um sofá em frente da
lareira, uma grande secretária de madeira envernizada e uma cadeira e um
cofre cheio de papéis. Fallon geria o saloon a partir dali, e a divisão contígua
era o seu quarto de dormir.
– Obrigada, Mr. Fallon – disse ela, com um sorriso.
– John – pediu ele, de costas para a lareira. – Dificilmente conseguirei
seduzir uma senhora que me trata por Mister.
– Tenciona então seduzir-me? – perguntou ela, maliciosa.
– Desde a primeira vez que a vi entrar no meu saloon – sorriu. – Mas
sinto que esta noite está a fazer-me sinal para avançar. Engano-me?
– Uma senhora admitiria uma coisa dessas?
– Se fosse franca como a Beth, sim.
Ela pôs-se de pé e pousou a taça em cima da secretária.– Nesse caso,
talvez seja melhor beijar-me – disse.
Tinha dedicado muito tempo a estudar-lhe a boca, recentemente. Era, na
realidade, a melhor feição dele. Os lábios eram bem desenhados e cheios, com
os cantos voltados para cima, quase como se estivesse sempre a sorrir.
Esperava que isso significasse que era bom a beijar.
Ele pousou-lhe as mãos na cintura e puxou-a para si, a olhar-lhe para o
rosto sorridente.
– Espero que não esteja só a provocar-me!
Beth não respondeu, porque os lábios dele baixaram para os dela e os
braços dele enlaçaram-na.
Era bom a beijar, nem demasiado insistente nem demasiado hesitante, e
quando a língua dele se insinuou entre os lábios, Beth sentiu-se zonza de
desejo.
As paredes do Monte Carlo não passavam de finas divisórias de
madeira, e os sons dos vários residentes a conversarem, rirem e divertirem-se
lá em baixo eram um pouco desconcertantes. Beth receou que ouvissem a sua
respiração ofegante quando John a fez recuar até a deitar no sofá, sem parar de
a beijar. Quando ele enfiou a mão no corpete, lhe libertou os seios e os beijou,
teve de abafar um gemido de prazer.
– Belos seios – murmurou ele, lambendo os mamilos com a ponta da
língua. – Há muito tempo que sonhava fazer isto.
A mão dele deslizou por baixo da saia dela, acariciando a pele macia
acima das meias, insinuando os dedos debaixo das cuecas até encontrar o
sexo.
– Tão húmida – voltou a sussurrar. – Acho que devias estar a
desejar-me muito.
Beth esqueceu as pessoas que pudessem estar a ouvir, porque John
estava fazer-lhe coisas com os dedos que a faziam querer gritar como era bom.
Mas também foi rude para com ela, levantando-lhe as saias de modo a poder
ver-lhe o corpo, o que a fez sentir-se imoral e devassa.
Possuiu-a ali no sofá, enquanto estavam os dois ainda vestidos,
penetrando-a com uma força que a chocou e ao mesmo tempo a excitou.
– Desculpa, não foi muito galante da minha parte – disse ele, quando
acabou. – Por favor, perdoa-me.
– Não tens nada de que pedir desculpa – disse ela, porque apesar de não
ter sido inteiramente satisfatório, fora muito bom.
– E ainda por cima amarrotei-te o vestido todo – continuou ele, com um
ar preocupado.
– Engoma-se. – Beth riu. – Agora vamos para a tua cama, ou tenho de ir
sozinha para a minha?
– Por favor, fica comigo – disse ele, voltando a beijá-la. – Quero provar
que sou capaz de ser um amante sensível.
CAPÍTULO 33
–Acorda, John, passa-se qualquer coisa lá fora – disse Beth,
sacudindo-lhe o braço com força.
Tinham passado seis ou sete semanas desde a primeira vez que fora para
a cama com John, e nunca ele lhe dera motivos para se arrepender.
Mostrara-se capaz de ser um amante não só muito sensível como também
extremamente assíduo. Procurava-a muitas vezes durante o dia, quando o bar
lá em baixo estava cheio de gente, entre as duas actuações dela à noite, e ainda
estava pronto para mais quando finalmente fechava o saloon, já perto do
amanhecer.
Para Beth, era exactamente do que estava a precisar. Já quase nunca
pensava em Theo, e quando o fazia era mais com uma ligeira diversão do que
com mágoa. Fizera muitos novos amigos, tinha dinheiro de parte para o
futuro, e, como só trabalhava à noite, podia ajudar no hospital durante o dia.
Continuava a sentir a falta de Jack, mas, uma ou duas vezes por mês,
havia sempre alguém que vinha do Bonanza e lhe levava uma carta dele.
Trabalhava para Ed Osborne, um velho garimpeiro afectuosamente conhecido
como Avestruz ou Oz, porque quase nunca saía da sua parcela. Beth sabia que
Jack era feliz porque as cartas dele estavam cheias de pequenas histórias
divertidas a respeito dos mineiros que ia conhecendo.
Beth estava perfeitamente contente. A sua relação com John era
construída com base numa paixão mútua, mas não sentia a necessidade de
disfarçá-la de amor, ou de esperar que tivesse um futuro.
John tinha uma mulher e três filhos na Virgínia e fora totalmente
honesto desde o princípio a respeito de vender o Monte Carlo em meados do
Verão e regressar a casa.
– Está sempre a acontecer qualquer coisa lá fora – disse John
sonolentamente, tentando puxá-la para si. – Vem dormir.
Beth preparava-se para voltar a aninhar-se junto dele quando ouviu
alguém gritar «Fogo!». No mesmo instante, estava fora da cama e à janela.
Tudo o que viu foi um clarão dourado ao longo de Front Street, mas foi
o suficiente. Dessa vez, bateu em John com os punhos, pois vira, em 98, com
que rapidez um incêndio podia alastrar. Naquela noite, os hotéis Greentree e
Worden e a estação de correios tinham ardido, e fora preciso deitar abaixo
outros edifícios para evitar que o incêndio se propagasse ao resto da cidade.
John correu a acordar toda a gente no Monte Carlo, enquanto Beth
vestia as suas roupas mais quentes, pois lá fora a temperatura era de quarenta
graus negativos.
Com o coração a martelar-lhe o peito, Beth correu ao lado de John em
direcção ao fogo. Entretanto, a maior parte dos residentes e proprietários de
Front Street estava na rua, os homens a organizarem-se para quebrar o gelo do
rio para terem água. Toda a gente perguntava onde estava a bomba de
incêndio, comprada no ano anterior. Mas, aparentemente, os bombeiros
recém-treinados estavam em luta por melhores salários e ninguém cuidara de
manter acesas as caldeiras dos motores.
Beth via, horrorizada, os homens acenderem grandes fogueiras no rio
para derreter o gelo e chegarem à água, mas estava a demorar demasiado
tempo, e o fogo saltava de edifício para edifício, devorando tudo no seu
caminho.
Finalmente, os bombeiros chegaram com mangueiras e as bombas
começaram a funcionar. Beth viu as mangueiras começarem pouco a pouco a
inchar à medida que sugavam a água e, como toda a gente, pensou que em
breve o fogo estaria controlado. Mas então, com um som arrepiante e para
horror da multidão reunida, as mangueiras rasgaram-se, porque a água que
continham congelara e aumentara de volume.
Beth viu Tom Chisholm, proprietário do Aurora, tapar a cara com as
mãos quando as chamas começaram a alastrar ao seu saloon.
– Que se pode fazer? – gritou ele.
– Rebentem os edifícios à frente do fogo – ordenou o capitão Starnes,
da polícia montada, mandando imediatamente uma equipa com um trenó e
cães ir buscar explosivos.
Apareceram milhares de pessoas dispostas a ajudar. Todas as carroças e
trenós foram requisitados para retirar artigos e bens do interior dos edifícios
condenados que se situavam no caminho do fogo.
Houve até quem entrasse em lugares que as chamas já devoravam para
tentar resgatar o que pudesse ser salvo.
– Dou mil dólares para salvar o meu banco! – gritou David Doig, o
director do Bank of British North America. Mas a oferta foi em vão, porque
não tardou que o banco fosse engolfado, juntamente com dúzias de saloons e
salas de baile.
A cidade inteira estremeceu com a força das explosões de dinamite, e
Beth viu homens que sabia serem muito duros chorarem sem rebuço enquanto
as suas propriedades crepitavam e eram consumidas pelo fogo.
John estava a ajudar a ensopar mantas na água do rio para tentar salvar
o Fairview, o melhor hotel de Dawson, no extremo norte da cidade, e então
voltou a sua atenção para as prostitutas de Paradise Alley, de cujas
periclitantes barracas as chamas se aproximavam. Muitas das raparigas tinham
saído quase nuas, a gritar de medo, mas então, estupidamente, tentaram voltar
a entrar para salvar as suas roupas e posses.
Com a ajuda de alguns homens, muitos dos quais despiram os casacos
para as cobrir, Beth conseguiu levá-las para um lugar seguro.
A noite estava tão fria que muitas das pessoas que estavam a ver o fogo
só sentiam o calor das chamas quando os seus casacos começavam a ficar
chamuscados. Barris de whisky explodiam em chamas e o seu conteúdo
derramava-se na neve, congelando instantaneamente. O terrível calor derreteu
o ouro guardado no cofre do banco, bem como as jóias e outros tesouros lá
depositados.
Finalmente, não havia mais nada que alguém pudesse fazer senão ficar a
contemplar aquele inferno, na esperança de que os corta-fogos criados com a
demolição dos edifícios sacrificados fosse o bastante para o conter.
John procurou Beth, e ficaram juntos o mais perto que ousaram do
Monte Carlo, que, até ao momento, mal fora tocado. Com os rostos
enrubescidos pelo calor do braseiro, as costas geladas e os pulmões cheios de
fumo, não conseguiam sequer falar do desastre. A maior parte de Front Street,
incluindo o Golden Nugget, com todas as suas recordações, tinha
desaparecido. Beth vira fugazmente o Zarolho a andar de um lado para o
outro, a apertar a cabeça com as mãos e a soluçar que estava arruinado, e
conseguiu até ter pena dele.
Quando a luz do dia conseguiu finalmente atravessar a nuvem de fumo,
viram que todo o coração da zona comercial de Dawson fora destruído.
Salvou-se o Fairview Hotel, no extremo norte da cidade, e o Monte Carlo,
crestado pelo fogo, no extremo sul. Entre eles, onde antes houvera tanta
alegria, luz e calor, havia agora um buraco negro. Um ou outro pilar calcinado
erguia-se ainda no meio de um leito de cinza cinzenta, e foi o espectáculo
mais desolador que Beth alguma vez contemplara.
*
Não houve alegria por o Monte Carlo se ter salvado, porque a escala do
desastre era demasiado devastadora, com milhares de desalojados e
arruinados. John e Beth acolheram centenas de pessoas, deixando-as
deitarem-se onde conseguissem arranjar espaço e fornecendo-lhes café e a
comida que foi possível reunir.
No Fairview, centenas de outros desalojados acamparam no átrio. Mais
tarde nesse dia, disse-se que tinham ardido cento e dezassete edifícios e que os
prejuízos ascendiam a mais de um milhão de dólares.
Mas as gentes de Dawson eram tão robustas de espírito como de corpo.
Volvidas menos de doze horas, Tom Chisholm tinha erguido uma grande
tenda no lugar do seu antigo saloon e reabrira o Aurora antes ainda de a cinza
ter tido tempo de assentar completamente. Foi o sinal para todos os outros.
Um ou dois dias depois, o familiar som das serras a cortar madeira e dos
martelos a espetar pregos voltou a fazer-se ouvir, e os grandes cavalos de tiro
puxavam as carretas carregadas de tábuas vindas das serrações.
Beth passara o tempo a cozinhar grandes panelões de sopa e de guisado
para os que tinham perdido casa e bens. Arrastava um trenó pelas ruas da
cidade a pedir pão, carne e vegetais àqueles que tinham reservas, e organizava
recolhas de roupas, botas e mantas.
John mostrara-se muito activo nos dois dias seguintes ao incêndio, e
Beth não estranhara o facto de ele não a procurar à noite, porque, com o
saloon apinhado de gente a dormir no chão, não era o mais apropriado.
Mas, de repente, apercebeu-se de que ele andava a agir de uma maneira
estranha. Via-o muitas vezes parado de pé no passeio chamuscado pelas
chamas a olhar para o buraco negro no coração da cidade, e não falava com
ninguém, muito menos com ela.
Ao princípio, andava demasiado ocupada com as recolhas de comida e
roupas para se preocupar muito com ele. Mas à medida que os dias passavam,
e toda a gente juntava esforços e fazia planos para reconstruir a cidade,
enquanto ele continuava ali sozinho e calado durante horas a fio, começou a
ficar intrigada e irritada.
Afinal, não tivera prejuízos. Havia até mais movimento do que antes do
incêndio, e agora que a maior parte dos desalojados arranjara outros lugares
onde ficar e tinha deixado o Monte Carlo, o pessoal precisava de ser dirigido.
Certa tarde, oito dias depois do incêndio, regressava do hospital quando
o viu novamente parado no passeio. Reparou que estava desarranjado, com a
barba por fazer e ainda com as mesmas calças, camisa e casaco que vestira
depois do fogo.
Quando ela subiu para o passeio, ele olhou na sua direcção, mas não
falou ou sequer sorriu.
– Que se passa? – perguntou Beth. – Estás doente?
– Não, não estou doente – respondeu ele, mas não havia luz nos seus
olhos.
– Então vem para dentro comigo, está muito frio aqui fora – disse ela,
pousando-lhe a mão no braço.
Ele sacudiu-a, como se o tivesse queimado.
– Diz-me o que foi que fiz para te ofender – pediu Beth, confusa. – É
por ter andado pela cidade a ajudar as pessoas? Achas que estou a
negligenciar-te a ti e ao saloon?
– Não é isso. – John lançou-lhe um olhar suficientemente frio para a
gelar. – O incêndio. Foi o Senhor a mostrar-me como tenho pecado.
– Mas foste poupado! – exclamou ela, estupefacta.
– Precisamente. É o Senhor a dizer-me: «Não peques mais.» Será que
não vês?
De repente, Beth percebeu aonde ele queria chegar.
– Queres dizer comigo? – perguntou, incrédula.
Ele assentiu.
– Eu sabia que era adultério, mas não fui capaz de resistir à tentação.
Beth teve vontade de rir, porque toda aquela história de santidade lhe
parecia uma piada; nunca ele lhe dissera que tinha qualquer espécie de
convicções religiosas profundas. Mas conteve-se a tempo ao recordar como
ele começara a rezar em voz alta enquanto os homens tentavam acender
fogueiras para derreter o gelo do rio. Parecera-lhe estranho, na altura, mas,
mais tarde, quase toda a gente admitira ter rezado fervorosamente, e ela
supunha que também o fizera, em silêncio.
– Esta cidade é como Sodoma e Gomorra – continuou ele, a voz
monocórdica e desalentada. – Agora o Senhor destruiu-a para nos mostrar o
vício que aqui residia.
Beth tinha ouvido o suficiente. Sempre o achara bastante formal e
pomposo, não o género de homem capaz de fazer uma mulher rir ou sequer
um grande conversador. O que gostara nele fora o modo como fazia amor e as
boas maneiras, e agora o sexo era claramente uma coisa do passado e ele
estava a insinuar que ela era a serpente no Jardim do Éden, e os dois tinham
obviamente chegado ao fim do caminho.
– Vais então fugir, como Lot e a mulher – disse, a voz carregada de
sarcasmo. – Tem cuidado e não olhes para trás, não vás transformar-te numa
estátua de sal.
– Também tu farias bem em pensar nos teus pecados – disse ele, num
tom de censura. – Seduzes os homens com a tua música demoníaca.
Foi então que Beth riu. Não a surpreenderia ouvir uma frase como
aquela em Inglaterra, mas era ridícula ali numa cidade de fronteira e vinda da
boca de um homem que até uma semana antes não se cansava de fazer amor
com ela.
– Se és assim tão religioso, porque foi que vieste para aqui e compraste
um saloon?
– Acho que foi o Diabo que me tentou a afastar-me do Senhor.
– Nesse caso, o melhor que tens a fazer é voltar a cair nas boas graças
dele vendendo este lugar e doando o dinheiro aos pobres ou à Igreja – ripostou
Beth. – Mas perdoa-me se não faço o mesmo. O
teu maravilhoso Senhor levou-me os meus pais, o meu irmão e a minha
irmã. Aprendi a só confiar em mim mesma.
*
Nessa noite, Beth ficou sozinha no seu quarto. Lá em baixo, o saloon
estava a abarrotar de gente, por restarem agora muito poucos lugares onde as
pessoas pudessem beber, e as vozes e os risos chegavam até ela. John
dissera-lhe que não queria que ela tocasse, e era evidente, embora ele não o
tivesse dito expressamente, que a queria fora do seu saloon.
Via a faceta engraçada da questão, pois nenhuma das dançarinas do
teatro nem das raparigas do saloon era pura como a neve acabada de cair.
Jogar, beber… tudo coisas pecaminosas, porquê então apontá-la a ela como
fonte de todo o Mal? Quem lhe dera que Jack estivesse ali. Sempre soubera
apreciar uma boa piada.
Podia, claro, ir para qualquer dos saloons que restavam em Dawson,
que a receberiam a ela e à sua música de braços abertos. Mas o incêndio, e
agora a estranha reacção de John, tinham-na feito perder o interesse em
Dawson City.
Teria, no entanto, de esperar mais um mês até que o degelo lhe
permitisse apanhar um vapor dali para fora.
Tirou o saco de viagem de baixo da cama, para contar as suas
poupanças. Quando o abriu, a primeira coisa que viu foi a fotografia que os
quatro tinham tirado em Skagway, pouco depois de terem chegado. Ainda
nem tinham passado dois anos, mas parecia-lhe muito mais tempo. Tinham
todos um ar tão jovem e fresco, e o fundo de montanhas atrás deles, pintado
numa lona, que então lhes parecera maravilhoso, era agora simplesmente
irrealista. Os rapazes tinham pedido emprestadas as espingardas que
ostentavam ao ombro: no caso de Sam e de Jack, as primeiras armas de fogo
em que pegavam. Ela usava um chapéu de palha e um vestido azul de gola alta
com umas pequenas anquinhas. Na altura era suficientemente tola para pensar
que aquele vestido, com um casaco por cima, seria adequado para a viagem.
Sorriu e passou um dedo pelo rosto severo e sério de Sam na fotografia.
Deixara crescer a barba depois de a ter tirado, para lhe dar um ar mais duro,
mas não resultara; continuara a parecer jovem e sonhador. Theo, com um
colete bordado e um casaco bem cortado, parecia aquilo que era: um
aristocrata jogador.
Jack era o único que sorria, quase como se já então soubesse o que
aquelas montanhas lhes reservavam. Aprendera a disparar, tal como se
esforçara por aprender tudo a respeito do trilho, e de construir cabanas e
jangadas. Que estranho o facto de ele, que nunca sentira a febre do ouro, ter
sido o único dos quatro a chegar aos campos auríferos.
Olhar para aquela fotografia fez acudir à cabeça de Beth um milhar de
pequenas recordações. A terrível noite espremidos no hotel em Sheep Camp, e
aquelas em que quase tinham morrido congelados no alto de Chilkoot Pass.
Muita gente em Dawson passara por aquela horrível prova, mas todos se
orgulhavam de a ter suportado, era como uma medalha de honra.
Beth preferia saborear as boas recordações: deslizar encosta abaixo no
trenó em direcção a Happy Camp, e as grandes noites que tinham tido no lago
Lindemann e no lago Bennett. Agora, Sam tinha morrido e Theo fora-se
embora. Só restava Jack.
Voltou em pensamento ao segundo dia no navio que os levara até Nova
Iorque, e sorriu à recordação da primeira conversa entre eles. Quem diria
então que aquele rapaz escanzelado havia de tornar-se no seu mais querido
amigo?
De repente, soube o que queria fazer. No dia seguinte, pediria a alguém
que a levasse até Bonanza Creek. Queria ver os campos auríferos e Jack.
CAPÍTULO 34
Os cinco cães estavam impacientes por partir, a ladrar e a raspar com as
patas a neve que cobria a superfície gelada do rio.
– Confortável? – perguntou Cal Burgess enquanto ajeitava melhor a
pele de urso à volta dela.
Beth assentiu. Com um barrete de pele de lobo, um casaco de pele de
guaxinim e vários outras camadas de roupa por baixo, sentia-se muito
aconchegada.
A um sinal de Cal, os cães saltaram para a frente, e a cabeça de Beth
balançava alarmantemente de um lado para o outro. Mas quando os animais
acertaram o passo, a viagem tornou-se mais suave, e a fina camada de neve,
levantada pelos patins do trenó, salpicava-a com uma leve poalha branca,
como açúcar num bolo.
Emalara as suas coisas na noite anterior. Todos os vestidos que usava
no saloon e as roupas, sapatos e botas mais elegantes tinham ido para dentro
de uma caixa que naquela manhã deixara à guarda de uns amigos,
proprietários de um restaurante. Tudo o mais que possuía estava no saco de
viagem, e antes de partir comprara alguns luxos para Jack – bolo de fruta,
marmelada, chocolate, fruta, um pedaço de cordeiro e outro de bacon, queijo e
várias garrafas de whisky. Tinha o estojo do violino entalado no assento a seu
lado e, não fora o encontro daquela manhã com John, estaria efervescente de
excitação por ir ver o amigo.
Estava a fazer café, por volta das sete da manhã, quando John entrara na
cozinha. Cheirara-lhe o whisky no hálito e, a julgar pelos olhos pesados e pela
camisa amarrotada, bebera até perder o conhecimento e dormira vestido.
Oferecera-lhe café, mas a única resposta dele fora um olhar carregado,
que significava que nem devia ali estar.
– Não há necessidade de ser tão hostil – dissera ela, gentilmente. –
Vou-me embora de vez, daqui a pouco.
– Para onde? – perguntara ele.
Beth soubera que não o fizera por estar preocupado com ela, e sim por
receio de que fosse para outro saloon e falasse a respeito dele.
– Não me parece que tenhas o direito de fazer essa pergunta, depois de
teres sido tão desagradável – respondera jovialmente.
Ele lançara-lhe outro olhar sinistro.
– As prostitutas como tu deviam ser corridas da cidade – retorquira.
Até àquele momento, Beth tivera toda a intenção de sair calmamente,
sem recriminações, mas chamar-lhe prostituta mudava tudo.
– Seu monte de esterco hipócrita! – exclamara. – Andaste doido por
levar-me para a cama a partir do momento em que pus aqui os pés. Mantive-te
à distância durante três meses, e, quando sucumbi, parecia que nunca te
chegava.
– Tentaste-me! – gemera ele. – És uma Jezebel que explora as fraquezas
dos homens.
Beth pusera desafiadoramente as mãos nas ancas.
– Além de reles, és patético. Como te atreves a tentar aliviar a tua
consciência atirando as culpas para cima de mim? Tu és o culpado, porque
tens mulher e filhos. Penso que a tua pobre mulher veria esta situação como
tendo sido tu a aproveitares-te de mim!
– A minha mulher é uma senhora! Compreenderia que eu não era
adversário para uma meretriz como tu!
Com esta, Beth perdera completamente a cabeça.
– Uma senhora! Que raio é que isso quer dizer? Que só deixa que a
fodas às escuras e com a camisa de noite abotoada até ao pescoço? Não
admira que me quisesses… aposto que realizaste todas as perversas fantasias
que alguma vez tiveste. Mas o mais provável é que outro qualquer tenha
andado a comer a tua mulher enquanto tu aqui estás. Talvez ela até tenha
descoberto como é bom ser amada por um homem a sério em vez de um
choramingas beato como tu.
Ele erguera a mão para lhe bater, mas ela afastara-a com uma palmada.
– Toca-me com um dedo que seja e arrependes-te – rosnara. – Posso ir
agora mesmo ali a Front Street e juntar um grupo que te esfola vivo. Tenho
amigos nesta cidade. Agora sai da minha frente!
Ele recuara a rastejar, como a cobra que era, deixando-a a tremer de
fúria e um pouco envergonhada por não ter visto logo de início com quem
estava a lidar.
A deslizar ao que lhe parecia ser uma grande velocidade, com o vento
gelado a picar-lhe o rosto como milhares de minúsculas alfinetadas, Beth
esforçava-se por varrer do espírito a recordação de John. Orgulhava-se um
pouco, era verdade, de ter-lhe feito frente e tê-lo posto no seu lugar. Um ano
ou dois antes, nunca teria sido capaz. Mas as coisas não deviam ter chegado
àquele ponto, e agora sentia-se magoada e envergonhada.
A neve estendia um espesso e alvo manto sobre as margens do rio, onde
os cotos de todas as árvores abatidas formavam um padrão curiosamente
irregular. Mas mais para trás, onde as encostas eram demasiado íngremes para
os lenhadores, os abetos envoltos no seu branco sudário eram belos e
magníficos. Os únicos sons que ouvia eram o ofegar dos cães, o bater ritmado
das patas almofadadas e o silvo dos patins metálicos na neve. Sabia que Cal
estava de pé na parte de trás do trenó, mas tão silencioso que era como se
estivesse completamente sozinha com os cães que corriam.
Débeis raios de sol atravessavam as nuvens, e era bom deixar para trás o
barulho, a fealdade e os mexericos de Dawson.
Ocorreu-lhe que nunca antes tinha conhecido uma paz tão perfeita.
Desde que se conseguia recordar, sempre houvera gente e barulho à sua volta.
Até nas montanhas, no trilho, houvera sempre pessoas por perto. Em Dawson,
perguntara muitas vezes a velhos garimpeiros que viviam a quilómetros de
distância do vizinho mais próximo como conseguiam aguentar tamanho
isolamento.
Quase todos diziam que o adoravam. Fazia agora uma pálida ideia de
porquê. O silêncio curava todos os males.
– Estamos quase lá. – Cal inclinou-se para o ouvido dela para falar. –
Mais um par de minutos e chegamos ao Bonanza. Chamava-se Rabbit Creek
antes de lá terem encontrado ouro, e aposto que nessa altura era um lugar
bonito.
Os cães saíram do Yukon e meteram pelo ribeiro. Minutos depois,
passaram pela primeira de muitas pequenas cabanas cobertas de neve, com
fumo a sair das chaminés. Cães ladravam quando eles passavam, e a partir dali
outros se juntaram ao coro, quase como se cada um estivesse a transmitir a
mensagem de que ia uma desconhecida a caminho.
Todas as imagens mentais que Beth formara a respeito dos famosos
campos auríferos tinham como pano de fundo o Verão, uma cena idílica com
prados salpicados de flores, homens em mangas de camisa a peneirar a areia
dos riachos e umbrosas árvores em redor. Talvez tivesse sido assim antes da
corrida ao ouro, mas agora as árvores tinham sido cortadas, e todas as
minúsculas cabanas por que passavam estavam rodeadas de máquinas cobertas
de neve; havia caixas de lavagem, pás e picaretas e carrinhos de mão
espalhados pela neve revolvida e suja. Homens que mais pareciam macacos
com os seus pesados casacões e barretes de pele dobravam-se para fogueiras
ou tiravam pazadas de terra de buracos abertos no chão.
– A parcela do Avestruz é já ali à frente – gritou Cal. – Está a ver a
bandeira? Iça-a todas as manhãs. Foi ele mesmo que a fez.
Beth viu uma bandeira azul a drapejar ao vento, com qualquer coisa
castanha, mas só quando os cães começaram a abrandar sorriu ao perceber que
a forma castanha era uma avestruz recortada em couro.
Dois grandes malamutes, um preto e branco, o outro cinzento e branco,
saíram a correr da cabana, a abanar a cauda e a fazer aquele uu-uu que Beth
sabia agora ser típico da raça.
– Eles sabem que lhes trago sempre qualquer coisa – explicou Cal,
parando os seus cães e saltando da traseira do trenó. – Mas quero que seja a
menina a dar-lhes.
Beth levantou-se do seu lugar e pegou no saco que Cal lhe estendia.
Continha dois grandes ossos, que ela deu aos cães um tudo-nada
nervosamente. Devia ter visto milhares de cães de trenó, daquela raça e
huskies também, desde que tinham partido de Skagway. Admirava-lhes
imenso a força e a coragem, mas nunca estivera tão perto deles.
– Não tenha medo – disse Cal. – Os malamutes gostam de pessoas, e
vão gostar de si.
– Viva, Cal – gritou uma voz da cabana, e um homem já velho de
grandes e desgrenhadas barbas, enfiado num grosso casaco e com um chapéu
de peles a condizer começou a descer o caminho em direcção a eles. – Ficas
por aqui, ou vais levar essa bonita menina a dar um passeio?
Beth sorriu.
– O passeio dela acaba aqui, Oz – respondeu Cal. – Apresento-te Miss
Bolton, a famosa Rainha Cigana do Klondike. Veio ver o Jack.
Antes mesmo que Beth tivesse tempo de apertar-lhe a mão, Oz
voltou-se e chamou Jack aos gritos, com uma voz tão alta que os cães do trenó
começaram a uivar.
– Bem, minha menina – disse Oz, voltando-se para ela. – Espero que
tenha trazido o seu violino consigo, porque ouvi muito a respeito de como toca
bem.
De repente, Jack estava no topo de uma colina por cima deles, a correr
encosta abaixo como se os cães do Inferno o perseguissem e a gritar enquanto
corria.
– Diria que o rapaz ficou contente por vê-la, minha menina – observou
Oz, com um sorriso desdentado.
Jack deixara crescer uma espessa barba, o cabelo chegava-lhe aos
ombros e, com as roupas e as botas sujas de lama, estava exactamente igual a
qualquer outro mineiro. Mas o rosto dele brilhava de saúde e perdera aquele ar
tenso que tivera nas últimas semanas que passara no Golden Nugget.
Abraçou Beth e fê-la rodar, rindo de pura alegria.
Mas o coração de Beth afundou-se-lhe no peito quando Oz os convidou
para uma caneca de café na sua cabana, pois não estava a ver como caberia
Jack lá dentro, quanto mais ela também. Era minúscula, com um chão de terra
batida, uma cama feita de velhos caixotes, uma mesa, um tamborete e uma
cadeira, tudo feito de madeira em tosco. Mas era muito quente, pois havia um
fogão de folha, e Oz deitou nas canecas quase tanto whisky como café.
Tanto Jack como Oz estavam ansiosos por saber todos os pormenores a
respeito do incêndio. A notícia chegara-lhes um par de dias depois do
acontecimento, e Jack disse que estivera a preparar-se para ir a Dawson ver se
ela estava bem. Mas que então soubera que o Monte Carlo continuava de pé e
que ela se dedicava a ajudar os desalojados.
Foi só quando Cal se pôs de pé e disse que ia buscar o saco dela ao
trenó e que depois teria de ir um pouco mais adiante recolher um
carregamento de madeira que Beth compreendeu que tanto Jack como Oz
estavam convencidos de que ela tinha ido apenas passar o dia com eles e
regressaria à cidade antes do anoitecer.
– Vinha na esperança de poder ficar algum tempo – explicou. – Mas
vejo que não há espaço, de modo que talvez seja melhor voltar com o Cal.
– Não voltas nada! – exclamou Jack. – Não vivo aqui com o Oz. Tenho
a minha cabana no alto da colina. Se conseguires aguentar as más condições,
podes ficar o tempo que quiseres.
Despediram-se de Cal e, pegando no saco de Beth, Jack contornou a
cabana de Oz e começou a subir a íngreme encosta da colina, passando por
uma enorme quantidade de equipamento coberto de neve.
– É tão bom ver-te – disse, com um caloroso brilho de boas-vindas nos
olhos escuros. – Calculo que alguma coisa correu mal entre ti e o Fallon. Mas
não precisas de me dizer, se não quiseres.
Beth estava demasiado sem fôlego para conseguir responder, e estava
também um pouco horrorizada por Jack já saber que alguma coisa correra mal
entre ela e John. Mas a verdade era que seria de esperar, pois em Dawson
ninguém podia fazer fosse o que fosse sem que toda a gente soubesse.
A cabana era de troncos, bastante parecida com a de Oz, mas maior e
mais nova, e com um mobiliário menos tosco.
– Podes ficar com a cama – disse ele, espevitando o lume no fogão, ao
qual acrescentou lenha. – Tenho uma cama de campanha que serve
perfeitamente para mim.
– O que foi que ouviste a respeito de mim e do Fallon? – perguntou ela,
deixando-se cair numa cadeira de corda.
Jack encolheu os ombros.
– Só que estavas a viver com ele. Fiquei um bocadinho triste por não
teres sido capaz de me dizer nada numa das tuas cartas.
– Dizes-me alguma coisa sempre que tens uma nova mulher na tua
vida? – retorquiu ela.
– Dir-te-ia, se ela significasse alguma coisa de especial.
– Bem, o Fallon não significava nada de especial. Foi apenas um pouco
de… – Calou-se, sem saber como explicar que fora apenas uma questão de
sexo.
– Uma aventura? – sugeriu ele.
– Sim, só isso.
Jack assentiu, a dar a entender que compreendia.
– E qual dos dois lhe pôs fim?
A única alternativa era dizer a verdade. Mas quando começou a contar o
que John dissera depois do incêndio, viu a faceta engraçada de tudo aquilo e
começou a rir.
– Oh, Jack, foi tão estranho. Nunca me passou pela cabeça que fosse um
santarrão, e quando ele começou com aquilo de voltar as costas ao Mal e a
dizer que Dawson era como Sodoma e Gomorra, não fui capaz de ficar séria.
Jack riu com ela.
– Por vezes penso que todas as pessoas mais estranhas do mundo se
juntaram em Dawson. Sempre achei que o Fallon era um bocado maluco.
Costumava ir ao Nugget e tomava só uma bebida enquanto tu tocavas. Parecia
não ter amigos, não jogava… nunca consegui perceber o que foi que o atraiu
para o Klondike, ou porque comprou o Monte Carlo.
– Nunca me disse porquê. – Beth encolheu os ombros. – Mas a verdade
é que, pensando bem nisso, nunca falava muito a respeito do que quer que
fosse. Esta manhã disse que eu era uma prostituta. Não é horrível, Jack? Mas
acho que a culpa foi minha.
Jack aproximou-se da cadeira e ajoelhou-se diante dela, os olhos cheios
de compreensão.
– A minha vontade era ir amanhã a Dawson e dar-lhe uma carga de
pancada, mas isso só serviria para provocar mais coscuvilhices. Merece que
tenhamos pena dele se não sabe ver a diferença entre uma mulher que se dá
voluntariamente e outra que exige pagamento. Mas não te tortures Beth,
limita-te a lançar o que aconteceu na conta da experiência. Continuas a ser a
rapariga mais bonita que conheço, a minha melhor amiga e a maior violinista
de todos os tempos. Portanto, parece-me que tudo o que perdeste foi um pouco
de orgulho.
– Não devia ter-me juntado a um homem casado – disse ela. – Foi
errado.
– Não me venhas tu agora com santidades – riu Jack, e pôs-se de pé,
levantando-a da cadeira. – Deixa-me mostrar-te o que tenho andado a fazer
antes que escureça, e esta noite vamos apanhar uma de caixão à cova para
celebrar o facto de teres finalmente chegado ao Bonanza.
Jack levou-a até um lugar a cerca de cinquenta metros das traseiras da
cabana. Disselhe que tivesse cuidado com as covas na neve, porque eram
buracos que tinha cavado. Explicou-lhe o que andava a fazer.
– A terra está gelada até mais de meio metro de profundidade, mesmo
no Verão – disse. – Por isso cavo o mais fundo que sou capaz, e depois acendo
uma fogueira no buraco. O calor derrete o gelo e, no dia seguinte, uso uma pá
para retirar a lama, que é o que são aqueles montes além. – Apontou para
vários grandes montes cobertos de neve e para um, mais recente, que estivera
a cavar quando ela chegara. – É o chamado sedimento.
Limpou a neve que cobria uma comprida caixa cujo fundo era
atravessado por uma série de traves metálicas.
– Isto é uma caixa de lavagem, e quando chegar o degelo, despejarei o
sedimento dentro dela e lavá-lo-ei com água, que levará a terra e o cascalho. E
então, se tiver sorte, encontrarei um pouco de ouro no fundo da caixa.
– E dá-lo-ás ao Oz? – perguntou ela.
– Não se o encontrar aqui. «Arrendei» este pedaço da parcela dele. Mas
não lhe paguei em dinheiro. O combinado é eu trabalhar para ele lá em baixo
durante uma parte do dia, e tudo o que lá encontrarmos pertence-lhe. Em
troca, tenho isto.
Beth assentiu.
– E então, já encontraste algum ouro?
– Ainda não, e, de todos os modos, só ficarei a saber quando começar a
lavar. Talvez nunca encontre nenhum. Mas o Oz encontrou muito nos últimos
dois anos. Podia, se quisesse, vender a parcela por uma fortuna.
Beth sorriu. Desde que chegara a Dawson, ouvira uma infinidade de
histórias fantásticas a respeito de parcelas no Bonanza e no Eldorado que
tinham mudado de mãos por quantias astronómicas.
Muitos dos proprietários originais eram agora donos de hotéis e saloons
em Dawson ou tinham voltado, ricos, ao exterior.
Havia, no entanto, muitos velhos garimpeiros como Oz que nunca
venderiam. Continuavam a viver nas suas cabanas primitivas, indo à cidade de
longe em longe para desbaratar uma boa parte do seu ouro, após o que
regressavam às respectivas parcelas e recomeçavam de novo.
– O Oz já não consegue cavar muito – explicou Jack. – Está a ficar
velho, cansado e cheio de maleitas. A verdade é que já não precisa de mais
ouro, mas teima em não desistir. Por isso, comigo aqui, tem o que quer: ajuda,
companhia e a excitação de encontrar mais ouro.
Continuaram a subir a encosta, até ao ponto onde se transformava em
bosque.
– Venho aqui caçar – disse Jack. – Aqui há um par de semanas matei
um alce, e agora temos carne suficiente para nos durar até ao degelo. Foi tão
bonito, no Outono passado, com tantas bagas diferentes a crescerem e as
folhas a mudarem de cor. Nada a ver com aquilo lá em baixo – disse,
apontando com o polegar na direcção do ribeiro.
Beth voltou-se para contemplar o cenário coberto de neve.
– Agora está bonito – respondeu. – Mas suponho que é por todas as
cicatrizes e buracos, todos os montes de lama e equipamentos estarem
disfarçados pela neve. Aposto que quando chegar o degelo vai parecer um
depósito de sucata no meio de um mar de lama.
– Pior. Há grandes valas cavadas a partir dos ribeiros para levar a água
até às caixas de lavagem. É
horrível.
Jack tinha de acender mais fogueiras nos seus buracos, de modo que
Beth voltou à cabana para fugir ao frio.
Não precisou de perguntar se fora Jack a construí-la. A marca dele
estava por todo o lado, desde a maneira como encaixara a cama numa espécie
de alcova às portadas cuidadosamente ajustadas das janelas. Calculou que
tinha feito a maior parte da mobília quando o tempo estava tão mau que não
podia sair. Passou a mão pelas pernas da mesa, vendo como ele as arredondara
e lixara até ficarem muito lisas.
E estava tudo muito arrumado. As travessas e os pratos empilhados nas
prateleiras, uma camisa deixada a secar numa armação junto ao fogão, e até
tinha feito a cama.
Foi quando estava a olhar para a cama que viu as fotografias. Estavam
pregadas na parede da alcova e não seriam vistas por alguém que se limitasse
a entrar na cabana para uma caneca de café e dois dedos de conversa.
Uma era dos dois quando tinham chegado a Nova Iorque, tirada numa
cabina perto de South Seaport. O exemplar dela perdera-se quando tinham tido
de sair à pressa do apartamento em Houston Street, e era bom voltar a vê-la.
Outra era dela a tocar violino no Bear, em Filadélfia. Não fazia ideia de quem
a tirara ou quando, nunca a tinha visto.
Havia uma dos dois, tirada em Skagway. Aquela, lembrava-se, fora
tirada por um homem que estava a compilar um diário fotográfico de Chilkoot
Trail. Não sabia como Jack conseguira arranjar uma cópia, pois nunca mais
voltara a ver o homem. Finalmente, havia uma dela a tocar na noite de
inauguração do Golden Nugget. Fora tirada pelo editor do jornal de Dawson,
The Nugget, e publicada juntamente com um artigo a respeito dela, de Jack e
de Theo, e de como tinham perdido Sam na viagem. Jack devia ter-lhe pedido
uma cópia da fotografia.
Sentiu um calor no peito ao descobrir que Jack guardava fotografias
dela. Estava convencida de que a maior parte dos mineiros devia ter
fotografias de mulheres bonitas e escassamente vestidas, não de uma velha
amiga.
– Aquelas tuas fotografias despertaram uma porção de recordações –
disse mais tarde, quando ele regressou.
Ele pareceu um pouco embaraçado.
– Gosto de olhar para elas quando me deito – disse. – Também tive
durante algum tempo aquela tirada em Skagway em que aparecemos os
quatro, mas tirei-a porque a cara do Sam me fazia ficar triste e a do Theo me
fazia ficar zangado.
Beth apontou para a que os mostrava juntos à chegada a Nova Iorque.
– Pareces tão novo e magro – disse. – E eu toda empertigada. Como
mudámos!
– Naquele tempo nem sequer me convidavas a subir até ao teu quarto. –
Jack sorriu. – E agora aqui estamos nós tanto tempo depois, sozinhos e a
quilómetros de tudo. É um progresso!
Nos dias que se seguiram à sua chegada à cabana de Jack, Beth
sentiu-se como uma mola fortemente enrolada que se fosse pouco a pouco
soltando. O incêndio em Dawson, ajudar os desalojados e depois aquela
história com John deviam ter-lhe exigido mais do que pensara.
Era bom acordar de manhã no mais absoluto silêncio e saber que o dia
que tinha pela frente não exigiria nada dela. Ocasionalmente, Jack levava-a
numa excitante corrida de trenó, com os cães de Oz, Flash e Silver, a puxá-los.
Mas a maior parte das vezes lia um pouco, remendava as roupas rasgadas de
Jack e dava passeios pelo curso gelado do rio ou até ao bosque, acompanhada
pelos cães.
A temperatura tinha subido, e quando o sol se mostrava parecia quase
Primavera. Jack era a pessoa de convívio mais fácil que conhecia, sempre
calmo, sem uma queixa. O seu rosto abria-se num grande sorriso quando ela
lhe levava café e bolo enquanto ele estava a trabalhar, e ficava agradecido por
encontrar água quente pronta para se lavar quando voltava à cabana. Mas não
esperava fosse o que fosse.
No entanto, aquilo de que ela gostava acima de tudo era o facto de ele a
fazer rir. Estava sentada a ler e de repente erguia os olhos e via a cara dele
grotescamente apertada contra os vidros da janela.
Uma vez, ouvira um rosnido e o raspar de garras na porta e assustara-se,
pensando que era um urso, mas era só ele a fazer de tolo. A maior parte das
gargalhadas surgia, porém, durante descontraídas conversas entre os dois,
recordações partilhadas e observações a respeito de pessoas. Beth apercebia-se
de que nunca tivera verdadeiramente aquilo com Theo, e grandes conversas
também não. Suspeitava de que se não tivessem sempre tido Sam e Jack por
perto, se teriam aborrecido mortalmente.
Agora que os dias começavam a ficar mais compridos, desciam por
vezes até à cabana de Oz, depois da ceia, e ela tocava violino. Havia noites em
que homens das parcelas mais próximas a ouviam e apareciam também. Eram
aqueles os melhores momentos, porque alguns dos homens cantavam com ela,
tinham boas histórias para contar e apreciavam um pouco de companhia
feminina.
Havia algumas mulheres ao longo do Bonanza. Eram, de um modo
geral, de uma raça dura e resistente, capazes de abrir buracos no chão gelado
tão eficientemente como os homens, e muitas faziam ainda outros trabalhos,
como lavar a roupa ou cozer pão e empadas para ganhar algum dinheiro extra
que boa falta lhes fazia. Repeliram todas as tentativas de Beth para estabelecer
amizades, e embora Jack dissesse que era por não quererem uma rapariga
bonita por perto dos respectivos maridos, Beth achava que mais
provavelmente tinham ouvido os rumores que corriam a seu respeito.
Se ali aquilo pouco importava, Beth apercebeu-se, com algum alarme,
que uma vez de regresso ao exterior ia ter de enfrentar uma reprovação social
muito mais séria.
Uma rapariga de sala de baile, ou até uma prostituta, podia casar, ou
passar a ser enfermeira ou secretária, sem grande medo de que alguém lhe
descobrisse o passado. Mas Beth sabia que estava numa categoria à parte,
juntamente com Klondike Kate, Gertie Dente-de-Diamante e outras mulheres
que tinham feito furor em Dawson City e cujas histórias tinham corrido
mundo graças a artigos publicados nos jornais a respeito do Klondike.
Por isso, a menos que desistisse de tocar violino em público e nunca
dissesse a ninguém que estivera em Dawson City durante a Corrida ao Ouro,
as partes mais escandalosas da sua estada ali acabariam por vir a lume.
Estava a pensar nesse problema certa manhã, enquanto se lavava e
vestia. Não descortinava uma solução, uma vez que tocar violino era a única
maneira que tinha de ganhar a vida. Mas o sol brilhava, e ela resolveu deixar
de se preocupar com o futuro e ver se conseguia tentar Jack a parar de cavar
buracos e ir dar um passeio.
Soube que a temperatura tinha subido no instante em que saiu da cabana
e não sentiu as picadas do frio na cara, como de costume. E então ouviu um
gotejar. A toda a sua volta, vindo das máquinas cobertas de neve, do telhado
da cabana, do trilho até à cabana de Oz, de todo o lado.
A neve estava a derreter!
Correu excitadamente para as traseiras da cabana e encosta acima, a
chamar por Jack, que parou de cavar ao vê-la aproximar-se e ficou apoiado à
pá, com um grande sorriso no rosto.
Beth deteve-se bruscamente, o que quer que fosse que ia dizer
esquecido ao vê-lo sem barba.
– Quando foi que o fizeste? – perguntou.
– Quando foi que fiz o quê?
– Tu sabes! A barba!
– Oh, isso. – Jack esfregou o queixo, como que surpreendido por não
encontrar lá a espessa mata de pêlos. – Vi que o degelo tinha começado esta
manhã e achei que era tempo de a barba desaparecer também.
– Ficas muito melhor – disse ela. Na realidade, ficava até muito bem,
porque o queixo quadrado e a boca larga eram duas boas feições que nunca
devia ter escondido. – Muito mais novo.
– Ainda bem que aprovas. Mas o que era que vinhas a correr para me
dizer? A rainha Vitória morreu?
– Não, que eu saiba. – Beth riu. – Só fiquei excitada por o degelo ter
começado.
– Lembras-te de como foi o ano passado? – disse Jack, com um sorriso.
– Atascados na lama até aos joelhos, no lago Bennett, e tu a desapareceres
para ir procurar flores silvestres!
– Vamos fazer o mesmo outra vez – sugeriu ela.
– Ainda vai demorar algum tempo até que haja flores.
– Pode ser que haja em lugares abrigados. Vamos procurar?
Jack espetou com força a pá na terra.
– Está bem, só para te fazer a vontade.
Chegaram ao bosque mais acima na encosta, e ali o degelo era ainda
mais evidente, porque o som da neve a cair dos ramos das árvores era quase
uma sinfonia. Beth fez uma bola de neve e atirou-a a Jack, que retaliou no
mesmo instante. Ela fugiu a correr, mas sempre que parava atrás de uma
árvore em busca de abrigo, fazia outra bola de neve para lhe atirar.
A brincadeira continuou, ambos a gritar e a rir quando eram atingidos e
a fazer ruídos de troça quando o outro falhava o alvo.
Foram-se internando cada vez mais no bosque, e Beth encontrou uma
grande árvore atrás da qual se escondeu. De repente, deixou de ouvir Jack, e
espreitou à volta do tronco para ver onde ele estava.
Subitamente, sentiu uma mão agarrar-lhe um ombro.
– Bu! – gritou ele, pregando-lhe um enorme susto porque não o tinha
ouvido aproximar-se.
Beth tinha uma bola de neve pronta na mão, ergueu-a e espetou-lhe com
ela na cara – Bu para ti também!
Ele riu e limpou a neve da cara, mas ficou alguma agarrada ao nariz.
Estavam a trinta centímetros de distância um do outro, e Beth descalçou a luva
e estendeu a mão para a tirar. Mas quando lhe tocou na cara, viu qualquer
coisa nos olhos dele. Era a mesma expressão que tinha visto na última noite a
bordo do navio, antes de chegarem a Nova Iorque. Era tão inocente, naquele
tempo, que não soubera o que significava, só que era especial. Mas agora
sabia.
Puro desejo.
Não afastou a mão. Havia uma sensação a crescer dentro dela que era
tão forte e tão doce que a fazia querer chorar. Ele pegou-lhe na mão, puxou-a
para a boca e beijou a palma. O calor e a suavidade daqueles lábios
puseram-lhe um delicioso arrepio na espinha.
Foi ela que se aproximou, desviando a mão para a face para beijá-lo nos
lábios. Por um ou dois instantes, Jack ficou imóvel, os lábios contra os dela, os
corpos sem chegarem a tocar-se, mas então ergueu a mão para lhe segurar o
rosto e retribuiu o beijo com tal ternura que a fez sentir que era novamente
uma inocente rapariguinha de dezassete anos.
Quanto tempo ali ficaram a beijar-se não saberia dizer, mas sabia que
não queria que ele parasse.
Todo o corpo dela vibrava de desejo, a querer mais do que beijos, mas
com medo de afastar-se por um segundo que fosse e quebrar o feitiço.
A neve continuava a cair das árvores à volta deles e os raios de sol que
lhe incidiam obliquamente na cara eram quentes. Ouviu à distância o chiar de
um cabrestante quando um mineiro içou o seu balde cheio de lama do buraco
aberto no chão, e uma ave chilreou numa árvore próxima.
Foi Jack o primeiro a desfazer o abraço. Ergueu as duas mãos para lhe
segurar o rosto e olhou-a no fundo dos olhos.
– Minha maravilhosa Beth – sussurrou. – Espero que isto não seja
apenas um sonho e que não vá acordar para descobrir que não aconteceu
realmente.
CAPÍTULO 35
Quando se detiveram no exterior da cabana para descalçar as botas,
Beth sentiu-se um pouco confusa. Os beijos tinham acontecido
espontaneamente na encosta, e parecera tudo muito puro e certo. Mas agora
iam entrar e ela estava bem consciente de que ia ter de decidir se passariam ou
não à fase seguinte. Queria fazê-lo, mas não tinha a certeza de ser sensato.
Jack era o seu melhor e mais íntimo amigo, a única pessoa em todo o
mundo que a conhecia verdadeiramente. Tinha medo de estragar aquela
amizade.
– Assustada? – perguntou ele, quando entraram na cabana.
– Não – mentiu ela.
– Pois eu estou – admitiu Jack, beijando-lhe a ponta do nariz enquanto
lhe tirava o chapéu e lhe passava os dedos pelo cabelo. – Mas a verdade é que
sonho com fazer amor contigo desde a primeira vez que te vi.
– A sério?
– Sim, a sério. Por vezes, se conseguisses ler-me os pensamentos, terias
corado.
– Estás a brincar.
– Não, não estou – disse ele, desabotoando-lhe o casaco. – Pensar em ti
manteve-me quente em muitas noites geladas.
Deixou cair o casaco no chão, puxou-a para si e voltou a beijá-la.
Enquanto a língua dele tocava a dela, Beth sentiu o impulso do desejo
crescer-lhe no ventre e soube que estava perdida, que não seria capaz de
recuar.
Sem parar de beijá-la, Jack conseguiu despir-lhe todas as roupas até à
camisa interior, e então levou-a para a cama e ajoelhou-se ao lado dela para
lhe descalçar as meias.
– Costumava imaginar como seriam as tuas pernas – disse, passando as
mãos por elas enquanto a olhava nos olhos. – Vi-as até aos joelhos, uma vez,
quando estávamos na jangada, e fiquei tão excitado que quase caí ao rio.
– Oh, Jack! – disse ela, reprovadoramente.
– Não gostas de pensar que eu sempre te desejei? – perguntou ele com
um brilho malicioso nos olhos, as mãos a subirem-lhe pelas coxas até se
deterem a dois centímetros do sexo dela.
Deliciosas vagas de desejo roubaram-lhe a palavra. Tudo o que
conseguiu fazer foi estender as mãos para ele.
Jack desembaraçou-se das roupas numa questão de segundos, o tempo
que Beth demorou a puxar as mantas para trás e enfiar-se debaixo delas,
porque a cabana estava a arrefecer. Mas no instante em que ele se deitou a seu
lado e a abraçou, esqueceu a ansiedade, o pudor e o frio, porque era tão bom, e
tão certo, sentir a pele macia e quente de Jack contra a sua.
Sempre pensara que Theo, Jefferson e John Fallon eram bons amantes,
mas não passavam de medíocres em comparação com Jack, que sabia usar os
dedos com tanta sensibilidade, e a acariciava, a explorava, a beijava tão sem
pressa que todos os nervos do seu corpo ganharam vida.
Tentou uma e outra vez estender a mão para lhe acariciar o pénis, mas
ele não deixava. Só quando qualquer coisa parecida com uma erupção
explodiu dentro dela, e perdeu toda a noção de onde estava e até de quem era,
ele a penetrou, com um ímpeto de paixão cujas tremendas ondas de choque a
submergiram completamente.
Ouviu o seu próprio grito, sentiu as lágrimas deslizarem-lhe pelas faces,
e soube que ele a levara a um lugar que nenhum dos seus anteriores amantes
sabia sequer que existia.
Apoiado num cotovelo, Jack via Beth deitada a dormir a seu lado e
sentia o coração inchado de amor por ela. Era quase meia-noite, mas a luz que
vinha do fogão e da lanterna suspensa por cima dele era o bastante para ver
claramente. Era meio-dia quando tinham entrado na cabana, e desde então
tinham feito amor três vezes, além de cozinharem, lavarem-se um ao outro,
beberem meia garrafa de whisky e conversado a respeito de tudo e mais
alguma coisa. Jack pensava que deveria estar exausto, mas estava demasiado
excitado para dormir. Ela fora o seu primeiro amor, o seu único verdadeiro
amor, e agora era finalmente sua.
Tinha havido muitas outras raparigas naqueles seis anos desde que se
tinham conhecido no navio.
Umas pudicas, outras devassas, raparigas bondosas, raparigas cruéis,
raparigas felizes e raparigas tristes. Com umas tentara convencer-se a si
mesmo de que as amava, com outras limitara-se a fazer amor na esperança de
que o prazer que lhes proporcionava compensasse a sua falta de empenho.
Mas, inevitavelmente, acabava sempre com uma sensação de
desapontamento.
Beth sempre fora a sua estrela-guia, mesmo quando sabia que ela só
tinha olhos para Theo. Se não fosse por ela, ainda estaria em Nova Iorque;
nunca teria ido para Montreal, nunca teria atravessado o Canadá e chegado até
ali. Tornara-se no seu autonomeado guardião só para poder estar perto dela.
Teria feito tudo por ela, mesmo que ela nunca o visse senão como um
amigo.
Agora estava ali, o corpo esbelto aninhado contra o dele, profundamente
adormecida, o rosto suave como o de uma criança. Recordou o aspecto dela
quando a tinham resgatado da cave, gelada até aos ossos e o rosto marcado
pelo horror da prisão. A indignação dela quando descobrira que a casa de
Pearl em Filadélfia era um bordel. Também a noite no hospital em Montreal
lhe ficara gravada na memória, quando ela gritara por Theo, mas tivera de
contentar-se com o consolo que ele podia oferecer-lhe.
A coragem dela em Chilkoot Pass e a sua capacidade de resistência ao
longo de todo o percurso tinham-no espantado. E então, em Dawson, tendo
perdido Sam tão pouco tempo antes, perdera também Molly. No entanto,
cerrara os dentes e tocara com o coração e a alma todas as noites, no Nugget.
Muitos homens sem dinheiro para gastar em bebidas tinham-lhe dito que
ficavam à porta do saloon para ouvi-la tocar. Diziam que os fazia sentirem-se
menos famintos e sedentos, que a música dela lhes transmitia a esperança de
que ainda arranjariam maneira de fazer fortuna.
Jack compreendia o que aqueles homens sentiam, porque também ele
sucumbira ao feitiço da música de Beth logo na primeira vez que a ouvira, no
navio.
Deslizou para fora da cama, pôs mais um pouco de lenha no fogão para
o manter aceso até de manhã e soprou a lanterna. Dentro de mais um par de
semanas, o rio descongelaria, e mais uma vez milhares de pessoas chegariam
em busca de ouro.
Sorriu, pois sabia que ali, na sua pequena cabana, tinha algo muito mais
precioso do que o ouro.
Um grande grito de entusiasmo de Oz subiu a encosta até aos ouvidos
de Jack e de Beth, que estavam ocupados a fazer passar pazadas de terra e
cascalho pela caixa de lavagem.
– O que lhe terá dado? – disse Jack, endireitando-se e indo até um lugar
de onde podia ver o que se passava lá em baixo.
– O mais certo é ter encontrado uma garrafa de whisky cheia de que já
não se lembrava – brincou Beth.
Junho ia a meio. Duas semanas antes, o ribeiro tinha descongelado e a
parcela de Oz transformara-se num atoleiro de lama pegajosa. Mas o calor do
sol, constante desde então, secara a maior parte, ervas e flores silvestres
tinham crescido à volta da cabana e o canto das aves enchia o ar.
Beth nunca conhecera tanta felicidade. A partir do momento em que
abria os olhos de manhã e via Jack a seu lado até que voltavam a deitar-se à
noite, sentia-se cheia da alegria por saber que tomara a decisão certa ao ir para
ali.
Não tinham falado de amor ou sequer do futuro, porque parecia
desnecessário quando era tão evidente que estavam destinados a ficar juntos
para sempre. Beth trabalhava ao lado de Jack e de Oz, atirando alegremente
pazadas de sedimento para dentro da caixa de lavagem. Não se importava de
ser um trabalho duro e sujo, ou de muitas vezes parecer inútil. Bastava-lhe
estar com Jack, rir e conversar e sentir-se totalmente segura.
Por vezes, à tarde, ele levava-a a pescar no ribeiro no pequeno barco a
remos de Oz, e ela deitava-se para trás, a saborear o calor do sol e a pensar
avidamente em como iam fazer amor quando voltassem à cabana. Noutras
ocasiões, montavam armadilhas para caçar nos bosques no limite superior da
parcela, e ela apanhava flores silvestres enquanto ele cortava lenha para o
lume. Por vezes, o desejo avassalava-os ali mesmo, porque havia qualquer
coisa de deliciosamente perverso e perigoso em fazer amor ao ar livre,
sobretudo quando podiam ser surpreendidos por um urso ou até por um ser
humano.
– Vamos ver o que está ele a fazer – disse Jack. – De todos os modos,
são horas de comer qualquer coisa. Que tal um pouco de mimo, mais logo?
Correram encosta abaixo de mãos dadas, e encontraram Oz, com uma
camisa esfarrapada aos quadrados e as calças presas na cintura por um pedaço
de corda, debruçado para a caixa de lavagem.
Ergueu os olhos ao ouvi-los aproximarem-se e mostrou os dentes
enegrecidos num grande sorriso.
– Vejam o que encontrei! – Pegou numa velha lata de fermento para pão
e mostrou-lhes o que continha.
Quatro pequenas pepitas de ouro. Jack fê-las saltar na palma da mão.
– Jesus Cristo! – exclamou. – Encontraste-as todas juntas?
– Nem mais – respondeu Oz. – Lavei cinco montes de sedimento esta
manhã e nada, e, então, no sexto, encontrei isso.
– Estou tão feliz por ti, Oz. – Beth aproximou-se dele e abraçou-o. – É
maravilhoso!
– De que buraco veio isto? – perguntou Jack, olhando em redor. Todo o
terreno daquele lado da cabana estava cheio de buracos, com montes de terra
ao lado.
– Daquele. – Oz apontou para o que ficava mais perto da cabana. – Foi
o último que fizemos.
Lembras-te de teres ficado com medo de que eu caísse nele quando
saísse?
Jack sorriu e voltou-se para Beth.
– Foi pouco antes de tu chegares. Quando ele me pediu que o cavasse,
tentei dissuadi-lo.
– Suponho que agora vão querer mudar a cabana para outro lado para
poderem cavar debaixo dela – disse Beth.
– Talvez – disse Oz. – Mas antes disso quero aperaltar-me todo e ir até à
cidade anunciar que o velho Avestruz voltou a acertar em cheio. Há por lá
pessoas que têm andado a rir à minha custa. Esta vai calá-las.
– Vão aparecer interessados em comprar-te a parcela – lembrou-lhe
Jack.
– E se a oferta for boa, talvez eu a venda – retorquiu Oz.
Beth olhou para Jack, alarmada, interrogando-se em que situação isso os
deixaria a eles, mas, para sua surpresa, Jack estava a sorrir.
– Vai lá à cidade – disse. – Nós ficamos por aqui a lavar mais uns
montes, a ver se encontramos mais alguma coisa. Mas tem cuidado com o que
aí tens, está bem? Pode ser que não haja mais nada!
*
Uma hora mais tarde, Jack e Beth acenavam a Oz, que partia para
Dawson no barco. O
«aperaltamento» consistira em aparar a barba e vestir umas roupas um
pouco menos esfarrapadas.
Beth obrigara-o a guardar as pepitas numa bolsa de couro que lhe
pusera ao pescoço, escondendo-a dentro da camisa. E Jack aconselhara-o a
depositá-las no banco antes de começar a beber ou a jogar cartas.
– E se ele vende a parcela? – perguntou Beth, quando o barco e o velho
desapareceram da vista. Oz deixara Flash e Silver com eles, e os dois cães
estavam sentados na margem do ribeiro, a olhar na direcção em que o dono
partira.
– Espero que venda – respondeu Jack. – Não aguenta mais um Inverno
aqui.
– Mas e tu? O novo dono não vai querer-te cá.
Jack encolheu os ombros.
– Não me importo. Se não tivesses vindo, por esta altura já teria partido
para outro sítio qualquer.
– A sério?
Jack riu da expressão surpreendida dela e acariciou-lhe a face.
– Não vim para aqui por causa do ouro, foi só para sair de Dawson.
Agora que estás comigo, posso ser feliz em qualquer lugar.
Era exactamente o que ela sentia, mas ouvi-lo da boca de Jack era
maravilhoso.
– Que vamos então fazer? – perguntou. – Se formos corridos daqui.
– O que tu quiseres – disse ele, abraçando-a. – O meu sonho já se
tornou realidade.
Ela segurou-lhe o rosto com as mãos.
– Amo-te, Jack Child – disse.
– Amas-me mesmo? – Jack parecia surpreendido.
– Claro que sim. A cem por cento. Mas espero que comeces a fazer
planos. Senão, começo eu a mandar em ti.
– Não há ninguém por quem gostasse mais de ser mandado – riu ele.
– Não estás a esquecer-te de nada? – perguntou Beth, mordendo-lhe
brincalhonamente a ponta do nariz.
– De quê?
– Bem, eu disse que te amava. Não devias responder?
– Como?
Beth soube que ele estava a brincar, e puxou-lhe uma orelha.
– Di-lo – ordenou.
Ele agarrou-a pela cintura e fê-la rodar.
– Amo-a, Miss Beth Bolton. Há cinco longos anos – disse, continuando
a fazê-la rodar.
Largou-a, e ela cambaleou um pouco, entontecida.
– Não se pode dizer que seja uma maneira muito romântica de dizer a
uma rapariga – protestou, indignada.
– É que eu sou do género prático – respondeu ele, com um sorriso. –
Por isso vou ser verdadeiramente romântico e sugerir que continuemos a lavar
sedimento para o velho Oz, a ver se descobrimos mais alguma coisa.
Encontraram mais cinco pequenas pepitas naquela tarde. Jack
guardou-as na lata de Oz.
– Devem valer umas centenas de dólares – comentou, pensativamente. –
Houve um tempo em que talvez tivesse ficado com elas, mas conhecer-te
mudou-me.
– Mudou-te?
– Sim. – Jack assentiu. – Eras tão refulgentemente limpa e honesta que
eu pensei que não teria a mais pequena hipótese contigo a menos que fosse
também assim. Tenho muito que te agradecer.
Beth ficou emocionada.
– Fui uma parva por não ter percebido logo que tu eras o homem certo
para mim.
– Raios, Beth, se nos tivéssemos juntado e tornado pessoas vulgares em
Nova Iorque, o mais certo era não ter durado muito. Vê as aventuras que
tivemos juntos!
Beth sabia que aquilo era a maneira de ele lhe dizer que não guardava
rancores por na altura ela ter escolhido Theo, e isso fê-la amá-lo ainda mais.
Oz não voltou poucos dias mais tarde, como prometera. Jack e Beth
continuaram a trabalhar. Não encontraram ouro em nenhum dos montes de
sedimento de Jack, mas os de Oz produziram mais algumas pequenas pepitas,
bem como algum pó de ouro que ficou retido pelas traves da caixa de
lavagem.
O tempo manteve-se de um modo geral magnífico, apesar de os
mosquitos serem uma irritação constante, mas à medida que os dias se
transformavam numa semana, e depois em duas, e Oz continuava sem
aparecer, Jack começou a ficar preocupado. Que soubesse, ele nunca deixara
os seus cães entregues a outra pessoa durante tanto tempo, e os dois animais
passavam o dia sentados na margem do ribeiro, à espera do dono. Mas não se
atrevia a abandonar a parcela para ir procurá-lo.
As notícias de Dawson City viajavam depressa, e chegavam até aos
ribeiros mais distantes, porque todos os que passavam tinham qualquer coisa
para contar. Tinham sabido que a cidade fora quase inteiramente reconstruída
depois do incêndio, com esgotos, electricidade e caldeiras a vapor. Desde o
degelo, tinham chegado novos milhares de pessoas, os ricos por mar, os
pobres pelos trilhos da montanha, e dizia-se que muitos deles vinham sem um
cêntimo e deambulavam de um lado para o outro em busca de trabalho.
Homens como Jack, que trabalhavam em parcelas alheias, começavam a
recear que os seus salários descessem em consequência do excesso de
mão-de-obra, e até aqueles que tinham parcelas registadas em seu nome
temiam que os desesperados tentassem invadi-las, ou ir até lá para os roubar.
A 4 de Julho, ouviram os estrondos e os silvos dos fogos-de-artifício em
Dawson, e Beth recordou que fazia um ano que recebera a notícia da morte de
Molly. Oz continuava ausente.
Numa tarde de meados de Julho, Flash e Silver começaram a uivar, e
finalmente Jack avistou Oz, a subir o curso do ribeiro no seu barco.
Ficaram encantados por vê-lo, mas Oz saiu aos tombos do barco, e fedia
a whisky a quilómetros de distância. Era evidente que passara os últimos dias a
encharcar-se em bebida, e os dois temeram o pior.
– Perdeste tudo? – perguntou Jack, enquanto ajudava o velho a chegar à
cabana.
– Acho que sim – disse Oz antes de cair na cama e mergulhar
imediatamente num sono de chumbo.
Jack foi duas vezes à cabana naquela tarde, verificar se ele estava bem,
mas Oz não acordou.
– Deve ter perdido a parcela ao jogo – disse Jack tristemente, quando
voltou para junto de Beth. – Não trouxe nada com ele, excepto duas garrafas
de whisky. Nem provisões nem nada. Acho que temos de preparar-nos para
sair daqui mais cedo do que esperávamos.
– Não faz mal – respondeu Beth. – Apanhamos um barco para
Vancouver. Posso voltar a tocar no Globe, e tu não terás dificuldade em
arranjar trabalho. Tenho o dinheiro que poupei, para nos aguentar nos
primeiros tempos.
– Gostarias de voltar para casa? – perguntou Jack.
– Para Inglaterra?
Jack assentiu.
– Já não penso em Inglaterra como sendo a minha casa – respondeu
Beth, pensativa. – Não há lá nada à minha espera.
– É também o que eu sinto – concordou Jack. – A nossa casa é onde
quer que estejamos. Acho que vamos ter de encontrar um sítio que ambos
sintamos que é o nosso lugar.
Nessa noite, o amor entre os dois foi marcado por uma ponta de tristeza,
porque aquilo representava para ambos o fim de uma era. Durante semanas,
tinham gozado de um género de privacidade total que, sabiam-no, não
voltariam a encontrar em mais parte nenhuma, e a liberdade de fazerem
exactamente o que quisessem. Tinham até posto a banheira de lata no exterior
e tomavam banho à luz do sol, no feliz conhecimento de que ninguém os
ouviria nem veria. Numa cidade, qualquer que fosse, o máximo a que podiam
aspirar era um par de divisões, com todo o barulho, cheiros e discussões que
viver no meio de outras pessoas implicava.
Na manhã seguinte, Beth fez um monte de panquecas e levou-as a Oz:
Jack seguiu-a com uma cafeteira cheia de café. Mas, para grande surpresa dos
dois, encontraram-no sentado no banco no exterior da cabana, de roupas
limpas, a barba feita e os cabelos encharcados.
Beth sempre imaginara que devia ter pelo menos sessenta, mas, sem a
barba, viu que era vinte anos mais novo.
– Bem – disse, pousando o prato com as panquecas no banco ao lado
dele e pondo as mãos nas ancas. – Estávamos à espera de encontrar-te ainda a
curtir a bebedeira. Ou és o irmão mais novo do velho Oz?
Ele esboçou um sorriso embaraçado.
– Dei um mergulho no ribeiro – disse. – Acho que foi o choque da água
fria que me fez rapar a barba. Peço desculpa por tê-los deixado a tomar conta
do Flash e do Silver durante tanto tempo, mas as coisas complicaram-se.
– Come as panquecas enquanto estão quentes – disse Jack, servindo
café para todos. – Quando é então que temos de sair daqui?
– O Olsen há-de aparecer lá mais para o fim do dia.
Jack assentiu. Olsen, o Sueco, já fizera fortuna com a sua mina no
Eldorado e tinha várias propriedades em Dawson. Era um homem gigantesco,
e um formidável jogador de póquer.
Provavelmente, ficara de olho em Oz mal soubera que ele estava na
cidade e que levava ouro.
– Dawson já não é a mesma coisa – disse Oz, com tristeza. – É certo
que está toda aperaltada, mas há uma espécie de tristeza, como o rebentar de
uma bolha. E agora até estão a chegar senhoras!
– Bem, isso é bom, não é? – disse Beth, sentando-se no coto de uma
árvore. – Nunca houve que chegassem.
– Não são raparigas da brincadeira. – Oz abanou a cabeça, como se
aquilo o entristecesse. – São senhoras a sério, esposas de banqueiros, damas
da sociedade, professoras e outras que tais, com os seus guardasóis e chapéus
finos. Vieram com os maridos e os filhos. Há uma loja de vestidos elegantes,
que é de uma senhora francesa, e dizem que se pode lá comprar a última moda
de Paris.
Beth e Jack olharam um para o outro, interrogando-se se seria verdade
ou se Oz estaria a imaginar tudo aquilo.
– Como está o Monte Carlo? – perguntou Beth.
– Todo pintado de novo, como se nunca tivesse havido um incêndio. O
Fallon há muito que se foi embora. Dizem que fugiu da cidade pouco depois
de teres saído de lá.
– E o Zarolho? – quis saber Jack.
– Continua por lá. Dizem que tem um saloon na Cidade do Piolho e
umas quantas pegas a trabalhar para ele.
– Nesse caso, para onde vais tu? – perguntou Jack.
– Isso depende.
– De quanto conseguires arrancar daqui? Ainda bem que eu continuei a
trabalhar para ti enquanto estiveste fora. – Enfiou a mão no bolso, tirou de lá
uma pequena bolsa de couro onde guardara as pepitas que tinha encontrado e
atirou-a para o colo do velho. – Faz-me um favor, Oz, não jogues essas
também. Não queremos pensar em ti falido e cheio de frio no próximo
Inverno.
Oz abriu a bolsa, despejou as pepitas na palma da mão e olhou para
Jack com uma expressão chocada.
– Há também algum pó de ouro. Não o trouxe comigo, mas vou já
buscá-lo.
– Guardaste isto para mim apesar de saberes que ias ter de ir embora? –
perguntou Oz, de sobrolho franzido.
– Claro que sim. O ouro é teu.
– Não há muitos assim tão honestos – disse Oz pensativamente. – Acho
que fiz bem, ao fim e ao cabo.
– Fizeste, Oz – afirmou Jack, assumindo que ele estava a referir-se ao
facto de o ter deixado ficar e construir uma cabana na sua parcela. – Fui feliz
aqui, e desde que a Beth chegou, ainda mais feliz.
– Vais então ser caçado?
Beth riu.
– Ele não me pediu, Oz. Não o embaraces.
– Uma rapariga que sabe fazer panquecas como estas e tocar violino tão
bem como tu vale o seu peso em ouro – declarou Oz, enfiando mais uma
panqueca na boca. – Peço-lhe eu, Jack, se não te fazes esperto e te despachas.
– Não vou pedir-lhe à tua frente – respondeu Jack, sorrindo. – Mas
estamos a planear ir para Vancouver. É melhor ir até lá abaixo ver se alguém
nos pode levar a Dawson, mais logo. Não cabemos todos no teu barco, e ainda
por cima com os cães.
– Podes levar o barco. Decidi ir a pé, com os cães, talvez visitar alguns
velhos amigos pelo caminho. Mas primeiro temos de tratar de negócios.
– Vou buscar o pó de ouro – disse Jack.
– Não era disso que estava a falar, rapaz – disse Oz, pondo-se de pé e
entrando na cabana.
– Deve querer que eu assine qualquer coisa a respeito do arrendamento
– sussurrou Jack ao ouvido de Beth.
Oz reapareceu com um pedaço de papel na mão.
– Aqui tens, rapaz – disse. – Os teus dez por cento.
Jack fez uma expressão confusa ao olhar para o papel. Beth
aproximou-se e viu que era uma ordem de pagamento bancária no valor de 20
000 dólares, em nome de Jack Child.
– Vendeste a parcela por duzentos mil dólares? – exclamou, ofegante.
– Não a perdeste ao jogo com o Olsen? – acrescentou Jack.
– Claro que não. Já vi demasiados homens irem ao fundo dessa maneira.
– Oz riu. – Ganhei algum dinheiro e voltei a perdê-lo, embebedei-me mais do
que julgava ser possível. Mas não ia arriscar a parcela ao jogo. Vendi-a ao
Olsen.
– Mas porquê dar-me dez por cento? – perguntou Jack, a voz a tremer
de emoção.
– Porque cuidaste de mim durante todo o Inverno. Foste como um filho.
Além disso, se não tivesses cavado aqueles buracos, eu nunca teria encontrado
mais ouro. Em Dawson, toda a gente dizia que eu estava arrumado. O Olsen
não me teria dado dez cêntimos pela parcela se não tivesse visto algum ouro.
– Não posso aceitar – disse Jack, com os olhos brilhantes de lágrimas. –
É demasiado!
– Tinhas uma parte da parcela, podias ter encontrado ouro a qualquer
momento. É justo dar-te a tua parte. Somos sócios, não somos?
Jack parecia aturdido. Continuava a olhar ora para a ordem de
pagamento, ora para Oz.
– Resolveste a questão quando me deste estas pepitas – continuou Oz. –
Vou dizer a toda a gente que o Jack Honesto vai casar com a Rainha Cigana.
Considera esse dinheiro uma prenda de casamento.
CAPÍTULO 36
–Esta noite ficamos no Fairview Hotel – disse Jack enquanto amarrava
o barco ao cais de Dawson. – Veste o teu vestido mais bonito, e logo vamos
pavonear-nos por Front Street.
– Tenho de ir ao restaurante buscar as minhas roupas boas – respondeu
Beth distraidamente, a olhar para todos os novos edifícios que tinham sido
construídos depois do incêndio. Era como se o desastre nunca tivesse
acontecido, com a diferença de que as lojas, saloons e salas de baile que
tinham substituído os antigos eram maiores e mais magníficos.
Havia também milhares de pessoas a passear de um lado para o outro.
Muitas delas estavam tão pobremente vestidas e pareciam tão exaustas como
os recém-chegados do ano anterior, mas era espantosa a quantidade de pessoas
elegantemente vestidas, de aspecto citadino. Como Oz dissera, havia também
um grande número de senhoras de ar bastante respeitável e crianças.
Beth ouvira dizer que fora construída uma via-férrea para transportar
passageiros de Skagway até ali, por White Pass, mas duvidava que qualquer
daquelas pessoas finas tivesse vindo desse lado, pois nenhuma delas parecia
capaz de construir um barco e descer o Yukon.
Um homem de casaca, calças às riscas e cartola caminhava de braço
dado com uma senhora que usava um vestido de musselina branca e um
grande chapéu enfeitado com rosas e preso por um comprido alfinete,
aparentemente indiferente ao facto de a orla da saia arrastar pelo pó. Outra
mulher, com um casaco de brocado muito elegante e uma saia a condizer,
sentava-se num baú de couro, do género que Beth só vira ser usado pelos
passageiros da primeira classe do Majestic.
Havia homens e mulheres igualmente bem vestidos por todo o lado, e
Beth não conseguia imaginar o que fora que os levara até ali. Que esperavam
eles encontrar naquela cidade de pioneiros que ficava isolada do exterior oito
meses por ano?
Quando começaram a caminhar por Front Street, ela com o estojo do
violino numa mão e um pequeno saco na outra, Jack a carregar o resto dos
pertences de ambos, sentiu-se como se estivesse a ter um daqueles estranhos
sonhos em que se encontrava num lugar familiar mas nada era como devia.
Tinha sido assim desde a manhã em que tinham acordado a
prepararem-se para comprar os bilhetes mais baratos possíveis para sair dali e
para enfrentar a dura luta que os esperava em Vancouver.
E então, sem aviso, tinham ficado ricos.
Embora tivesse sido a melhor das surpresas, houvera também alguma
tristeza no adeus a um lugar onde tinham conhecido tanta felicidade. Então,
depois de se terem despedido de Oz com emocionados abraços, tinham
remado até ali, uma recordação do modo como tinham chegado um ano antes,
ainda esmagados pelo desgosto da perda de Sam.
Quando, no ano anterior, tinham percorrido aquela mesma rua, a
patinhar na lama, eram «cheechakos», o termo local para designar os
«verdes», excitados, assustados, cansados, expectantes e completamente
baralhados. Dawson City mudara-os. E nem poderia ter sido de outro modo,
pois fora como serem atirados para dentro de uma enorme misturadora de
onde todos saíam ligeiramente modificados pelo contacto com as personagens
extravagantes, a frivolidade permanente, as provações, o excesso de pessoas, a
permissividade e o espectáculo de fortunas feitas da noite para o dia.
Beth perguntava-se agora se conseguiria alguma vez readaptar-se a uma
sociedade convencional.
Viera a remoer este pensamento durante toda a viagem de barco, quase
sem dizer uma palavra, e como Jack se mantivera igualmente silencioso,
calculara que devia estar tão apreensivo como ela a respeito do regresso a
Dawson.
– Vai correr tudo bem, temo-nos um ao outro – disse subitamente Jack,
como se estivesse a ler-lhe os pensamentos. – Se quisermos, podemos partir
no próximo barco.
Beth lançou-lhe um sorriso agradecido. Achava extraordinário ele
parecer saber sempre o que ela estava a pensar.
Às oito da noite, estavam quase prontos para ir dar uma vista de olhos à
cidade. Tinham-lhes dado um dos melhores quartos do Fairview. Era
sumptuoso, com uma espessa alcatifa, requintadas mobílias francesas, um
colchão de penas e pesados cortinados de veludo na janela. Beth pensou
cinicamente que era uma pena os proprietários não terem feito um esforço
para tornar as paredes interiores mais robustas. Ela e Jack conseguiam ouvir
tudo o que as pessoas do quarto ao lado diziam.
Tinham ido buscar as roupas de Beth ao restaurante, descontado a
ordem de pagamento e Jack comprara um elegante fato novo, cortara o cabelo
e mandara engraxar os seus melhores sapatos.
Beth estava a fazer o nó do laço preto quando soou uma pancada na
porta. Jack abriu-a e viu-se perante um paquete de uniforme que lhe estendia
uma carta.
– Para Miss Bolton – anunciou o rapaz. – Mandaram-me esperar pela
resposta.
Surpreendida e confusa, Beth abriu a carta e viu que era de Percy
Turnball, o novo proprietário do Monte Carlo. Dizia:
Cara Miss Bolton,
Fiquei encantado ao saber que está de regresso à nossa cidade, com
Mr. Jack Child.
Consideraria um privilégio se ambos aceitassem vir ao Monte Carlo
esta noite, como meus convidados, na esperança de que consinta em tocar
algumas músicas para todos os que tanto sentiram a sua falta.
Seu humilde servidor,
P. Turnball
Entregou a missiva a Jack, para que a lesse.
– O que é que achas?
– É o escocês a quem chamavam «Grandes Tomates»? – perguntou
Jack. – Aquele sujeito grande, com o alfinete de gravata de diamante, que
costumava aparecer no Nugget?
Beth riu. Dolores chamava-lhe Percy, o Porquinho, porque tinha uns
olhos muito pequenos e uma cara muito vermelha. Como o Zarolho, gostava
de vistosos fatos aos quadrados, mas era um homem decente e generoso, e ela
gostara dele.
– Sim. Imagina, agora é dono do Monte! Vamos?
– Se quiseres. Talvez seja bom para ti tocar aqui uma última vez.
Beth voltou-se para o paquete.
– Diga-lhe que teremos muito prazer.
Eram nove quando chegaram ao Monte Carlo. Estava um pianista a
tocar, mas mal conseguiam ouvi-lo tal era o barulho no saloon apinhado de
gente. Quando Beth e Jack entraram, as pessoas voltaram-se para olhar para
eles, e uma espécie de murmúrio percorreu a sala.
– É ela – ouviu Beth um homem dizer. – É ainda mais bonita do que
diziam.
Percy Turnball, tendo certamente notado a agitação, abriu caminho por
entre a turba para os receber.
– Sejam os dois bem-vindos – disse, o rosto rubicundo a rasgar-se num
grande sorriso. – Houve muito contentamento quando foram vistos a chegar à
cidade esta manhã. É uma das lendas de Dawson, Miss Bolton, até os
cheechakos ouviram falar de si e ficaram desapontados por não poderem
ouvi-la tocar. Quanto a si, Jack, ouvi histórias a respeito de ter sido atacado
por um urso, ter ficado rico e ter casado em segredo com a Rainha Cigana.
Alguma delas é verdadeira?
Jack riu.
– Todas falsas. Se casar com a Rainha Cigana, não será em segredo.
Turnball deu-lhe uma palmada nas costas.
– Óptimo. Sempre achei que vocês os dois estavam bem juntos. Vamos
beber um pouco de champanhe para festejar o vosso regresso.
Turnball guiou-os até à mesa que tinha reservado e um dos empregados
levou-lhes champanhe num balde de prata. Era de qualidade muito superior à
do que Fallon costumava oferecer a Beth, e as taças eram de cristal autêntico.
Dúzias de pessoas que nunca tinha visto dirigiam-se-lhe para dizer
como estavam encantadas por conhecê-la. Era uma boa sensação, e com Jack a
segurar-lhe a mão por baixo da mesa, a ansiedade que sentira durante o dia
desapareceu.
Havia muitos rostos conhecidos no meio da multidão, todos eles com
direito ao título de Fermentadores agora que tinham passado ali um Inverno
inteiro. A alguns conhecera-os, jovens de rostos frescos, em Skagway,
inocentes que tinham deixado as suas pequenas cidades em busca de um
sonho. Agora eram homens endurecidos, capazes de enfrentar tudo. O facto de
ainda ali estarem significava que tinham encontrado um nicho qualquer,
mesmo que não tivessem encontrado ouro.
Aqui e além havia raparigas de saloon e dançarinas, com os seus
vestidos berrantes e os seus elaborados penteados. Podiam parecer roliças,
bonitas e simpáticas, mas a maior parte era calculista, dura e mercenária.
Tinham, no entanto, levado brilho e beleza a Dawson, e tinham sem dúvida
dado um pouco de conforto a muitos mineiros, mesmo aqueles a quem a sorte
voltara costas.
Outros rostos, igualmente familiares, eram os dos que tinham montado
negócios na cidade. Alguns conhecera-os no trilho, outros tinham chegado por
outras vias, mas eram todos enérgicos empreendedores. Muitos deles tinham
perdido tudo em incêndios, pois já antes do grande, em Abril, houvera muitos
outros. Aceitar a derrota não estava na natureza daqueles homens: se um
negócio falhava, iniciavam outro. Inabalavelmente determinados, com uma
coragem de aço, seriam de certeza capazes de enfrentar tudo o que a vida lhes
atirasse para cima.
A grande maioria dos clientes era, porém, constituída por gente que
Beth não conhecia. Entre eles contavam-se os mais recentes cheechakos,
homens de rostos emaciados, com os seus coçados casacões de lã e velhas
botas de marcha, mas a maior parte dos desconhecidos era gente elegante, bem
vestida e de ar próspero.
– São apenas turistas – disse Turnball desdenhosamente, ao notar-lhe o
olhar curioso. – Para eles não houve passagens de montanha nem provações.
Chegam com as suas malas de couro, em alguns casos até com as criadas, só
para poderem dizer que estiveram em Dawson City. No ano passado, nenhum
de nós sabia que os jornais do mundo inteiro acompanhavam tudo o que se
passava aqui.
Algumas destas pessoas sabem mais a nosso respeito do que nós
próprios! Claro que ainda há muitos que chegam convencidos de que vão
encontrar ouro, mas a maior parte só quer ver como é.
Às dez, Turnball subiu ao pequeno palco e fez soar um gongo para
chamar a atenção dos presentes.
– Senhoras e senhores – disse, quando se fez silêncio. – Todos os que
aqui estão ouviram algumas das lendas do Klondike. Mesmo os que vieram da
maneira mais fácil, de barco, ouviram falar dos bravos que desafiaram a morte
nos famosos Chilkoot Pass e White Pass, carregando às costas tudo o que
tinham.
«A jovem senhora que tenho comigo esta noite atravessou o Chilkoot
em Fevereiro do ano passado.
Perdeu o irmão, afogado nos Squaw Rapids. Mas continuou até aqui,
trazendo o seu violino, e encantou-nos a todos com a sua música.
«Lembro-me da primeira vez que a ouvi tocar, e foi neste mesmo
saloon, um par de dias depois de ter chegado. A reputação dela precedera-a,
mas eu não esperava que a violinista inglesa que conquistara tantos corações
em Skagway fosse um nico de rapariguinha.
«Naquela noite, pôs-me lágrimas nos olhos, pôs os meus pés a bater e o
meu coração a cantar, e, como todos os outros homens da cidade, fiquei
deslumbrado pela sua coragem, pelo seu talento e pela sua beleza.»
Voltou-se para Beth, fazendo-lhe sinal para que subisse ao palco.
Com um aparatoso gesto de braços abertos, ergueu a voz ao nível de um
trovão e anunciou: – Apresento-lhes a dona dos nossos corações, a
mundialmente famosa Miss Beth Bolton, a Rainha Cigana do Klondike!
No meio de estrondosos aplausos, Beth subiu ao palco com o violino na
mão e fez uma reverência à multidão. Em memória dos velhos tempos,
começou com «Kitty O’Neill’s Champion», e numa questão de segundos a
assistência em peso batia com os pés no chão e sorria para ela. Seguiram-se
«The Days of ‘49», a velhinha «California Gold Rush Jig» e «The Lass of
Glenshee».
Fez uma pausa, em que os aplausos redobraram de entusiasmo.
Levantou o arco do violino, a pedir silêncio, e dirigiu-se ao público.
– A próxima música é uma composição minha – disse. – Espero que
ouçam nela o vento e a neve a fustigarem-me o rosto em Chilkoot Pass, as
serras dos construtores de barcos no lago Bennett e a nossa alegria por
podermos partir quando o gelo derreteu. A secção do meio é a dor pela morte
do meu irmão, e também a beleza do Yukon na Primavera. Finalmente, há a
alegria de Dawson City, no fim do caminho.
Jack tinha-a muitas vezes ouvido, enquanto trabalhava na parcela de Oz,
tocar uma música muito bela, que não conhecia. Pensara que era uma peça
clássica, e tivera sempre a intenção de pedir-lhe que a tocasse para ele, à noite.
Naquele momento, quando ela começou a tocar, apercebeu-se de que
era o que já tinha ouvido. A partir dos primeiros compassos, dolorosamente
belos, de gelar os ossos, deu por si a reviver a subida até Chilkoot Pass.
Voltou a sentir-se quase dobrado ao meio, com a mochila às costas e a arrastar
o trenó atrás de si, a caminhar sempre em frente e para cima através da neve.
Beth conseguira retratar na sua música o desespero, a exaustão e o medo que
todos tinham sentido naquele trilho. E no entanto, na altura, só se lembrava de
a ver sorrir corajosamente quando olhava para ela.
Houve um alegre humor nas serras do lago Bennett, e Jack reparou que
muitos dos que ali estavam olhavam uns para os outros e sorriam ao recordar
as suas azedas discussões.
Todos entre o público, tivessem ou não percorrido o trilho, sentiram a
alegria da partida rio abaixo, pois Beth conseguira insinuar o apito de um
navio, o drapejar das velas enfunadas pelo vento e até o calor do sol
primaveril nas costas deles.
Uma sequência rápida, arrepiante, espelhou a excitação e o terror dos
rápidos de Miles Canyon, seguida por um lamentoso memorial a Sam. Jack
viu-os a tirarem-no da água, o vermelho-escuro do sangue a manchar-lhe os
cabelos louros. Viu Beth ajoelhada junto do corpo, os seus soluços a
retalharem-no como uma faca. E viu-os a baixá-lo à morada do seu último
repouso junto à margem do rio, e a cantar «Rock of Ages» depois de terem
rezado por ele.
Sentiu um nó a formar-se na garganta, porque estava tudo na música.
Quando olhou em redor, apercebeu-se de que até aqueles que nada sabiam a
respeito de Sam ou de Miles Canyon compreendiam a angústia de Beth.
Na descrição da viagem pelo Yukon, estavam presentes toda a dor e
toda a desesperança dela, mas também a beleza do rio serpenteante, das
montanhas em redor, das flores primaveris, de um alce a beber à beira da
água.
Naquela viagem, tinham chegado subitamente à vista de Dawson. Beth
ilustrou isto com uma abrupta mudança de compasso. Num repente, a
composição tornou-se agitada, alta e alegre, levando Jack a recordar o
mercado junto à margem, a lama viscosa, os milhares de pessoas. Incluiu os
pregoeiros a gritar que o saloon, o restaurante ou a sala de dança deles eram os
melhores. Retratou a romântica «Long Juicy Waltz», tão insistentemente
promovida pelos reis das salas de baile. Os homens depressa descobriam que o
seu dólar só lhes comprava um minuto com uma rapariga nos braços, e mesmo
assim alguns gastavam cem dólares numa noite para terem esse privilégio.
Um toque de burlesco no teatro do Monte, atrevido, vulgar, mas nunca
indecente, ou os mounties apressar-se-iam a fechá-lo. As mesas de faraó, as
raparigas de Paradise Alley, os uivos dos cães, os bêbedos, os que perdiam e
os que ganhavam, estavam todos na música de Beth, e nunca Jack se orgulhara
tanto dela.
Contemplou-a em cima do palco, a cabeça inclinada para o violino, os
caracóis negros a caírem-lhe pelas costas, o corpo esbelto a mover-se
sensualmente com a música. E compreendeu que, naqueles anos em que a
conhecera e sem que desse pela mudança, ela se tinha transformado de uma
bonita rapariga numa bela mulher.
Quando a peça acabou e Beth baixou o arco, o público enlouqueceu. Os
que estavam sentados levantaram-se de um salto, a bater com os pés, a
aplaudir, a aclamar. Os aplausos não paravam, todos gritavam por mais. Mas
Beth sorriu e abanou a cabeça, formou com os lábios a palavra «obrigada»,
pois nunca conseguiria fazer-se ouvir acima do barulho, e voltou-se para
abandonar o palco.
Jack compreendeu porquê. Aquela música esgotara-a. Pusera nela toda
a dor, todas as provações, todas as alegrias e prazeres. Nunca poderia fazer
melhor do que aquilo, e não queria sequer tentar.
Não puderam partir de Dawson no dia seguinte, como tinham planeado,
porque não havia um único lugar em qualquer barco, mas Jack conseguiu
reservar um camarote de primeira no Maybelline para 3 de Agosto, cinco dias
mais tarde.
Na tarde do dia seguinte, quando andava sozinha a comprar umas coisas
de que precisava, Beth viu Dolores, a rapariga que trabalhara no Golden
Nugget, a sair de uma mercearia. Estava grávida, e numa fase já avançada.
Ao ver Beth, Dolores correu para ela, tão excitada que mal conseguia
respirar.
– Fiquei tão preocupada quando desapareceste. Ninguém sabia para
onde tinhas ido! – exclamou.
– Fui ter com o Jack, ao Bonanza – explicou Beth. – Estava farta de
Dawson. Mas então e tu? Para onde foste depois de o Nugget ter ardido?
Dolores riu.
– Aquele incêndio foi a minha sorte. Conheci o Sol naquela noite, era
um dos bombeiros. Levou-me para casa dele e temos estado juntos desde
então.
Conversaram durante algum tempo, e Beth disse que ela e Jack iam para
Vancouver. Dolores contou que ajudava numa lavandaria e que Sol estava a
juntar mais um quarto à cabana, para o bebé.
– Para quando é o nascimento? – perguntou Beth, feliz por tudo ter
acabado bem para a rapariga.
– Bem, os médicos dizem que vai ser em Novembro – respondeu
Dolores. – Mas não podemos ter a certeza da data porque eu não me lembro de
quando tive o meu último coiso.
Beth sorriu ao ouvir como Dolores chamava à menstruação. Depois de
se certificar de que Sol parecia estar encantado por ir ser pai e de que Dolores
estava bem e feliz, despediu-se dela e voltou ao Fairview.
A pensar na conversa enquanto caminhava, ocorreu-lhe subitamente que
há já algum tempo que também ela não tinha «o coiso». Lembrava-se de ter
tido um pouco depois de ter chegado à cabana de Jack, e um segundo, que
devia ter sido um mês mais tarde, em princípios de Junho, mas nada mais
depois disso.
Uma vez que lhe tinham dito em Montreal que nunca mais voltaria a
engravidar, não tivera qualquer razão para esperar, ou querer, que qualquer
homem tomasse precauções, e nunca lhe passara sequer pela cabeça que o
médico pudesse estar enganado.
De regresso ao quarto, examinou-se atentamente no espelho. Não
notava nada de diferente na sua pessoa, e de certeza não se sentia diferente,
mas a verdade era que estava mais de um mês atrasada.
E se estivesse grávida?
Fechou os olhos e pousou as mãos no ventre e desejou com todo o
coração que sim. Ter um filho de Jack seria a melhor coisa do mundo.
Mas não lhe disse nada quando ele voltou. Primeiro precisava de ter a
certeza, e como ele encontrara alguns velhos amigos nessa tarde e apareceu
cheio de novidades para contar, não lhe foi difícil esconder a excitação.
No dia seguinte, Jack saiu para ir ajudar alguém a construir uma cabana,
e Beth tentou afastar do espírito a ideia de um bebé indo visitar algumas
amigas. Mas não resultou. Fosse por sugestão ou por ser verdade, tinha os
seios sensíveis, e até sentira uma pontinha de enjoo naquela manhã.
Conversou e riu com as amigas, mas o pensamento que lhe enchia a cabeça
era como Jack ia ficar feliz quando se confirmasse. Na noite de 31 de Julho,
correu em Dawson o boato de que tinha sido encontrado ouro em Nome, junto
ao mar de Bering, no Alasca.
Beth e Jack ouviram-no pela primeira vez da boca de um outro hóspede
do Fairview que recebera um telegrama de um amigo que vivia algures perto
de Nome. Não deram muita importância ao assunto, pois houvera, em Janeiro,
um rumor a respeito de uma nova descoberta de ouro, e muitos homens tinham
partido a correr, alguns deles tão mal preparados que sofreram graves
queimaduras provocadas pelo frio, sendo afinal tudo mentira.
Quando, porém, desceram Front Street, as pessoas não falavam de outra
coisa. No saloon onde entraram, os homens afirmavam que o ouro estava
espalhado pela praia, à espera de ser apanhado, e todos eles tencionavam partir
para Nome logo que conseguissem comprar uma passagem.
O rumor alastrou como um fogo de mato e, de repente, todos os homens
que tinham andado a deambular pelas ruas com expressões vazias no rosto
tinham uma vez mais o velho e familiar brilho nos olhos.
Jack achava tudo aquilo muito divertido. Riu à gargalhada quando um
velho garimpeiro o deteve em plena Front Street e lhe perguntou se tencionava
ir.
– Eu não – respondeu. – Já tive febre do ouro suficiente para o resto da
vida. Tudo o que quero é ir para casa com a minha rapariga.
No dia seguinte, a cidade inteira fervilhava de excitação. As pessoas
batiam-se por um lugar num vapor, e quando não conseguiam bilhetes
alugavam barcos a remos ou à vara para irem pelos seus próprios meios.
Jack parecia achar tudo aquilo muito perturbador e disse que ia dar uma
volta pelas colinas. Antes de partir, separou quinhentos dólares do monte de
dinheiro e sugeriu a Beth que fosse à loja de madame Aubert comprar
qualquer coisa bonita e elegante para usar em Montreal.
A francesa era uma modista maravilhosa, mas também tinha na loja
vestidos já feitos que eram a última moda de Paris.
– Não posso comprar nada lá – disse Beth, horrorizada. – É tudo
caríssimo.
Jack riu.
– Agora somos ricos, e todas as tuas roupas vão parecer muito
antiquadas em Vancouver. Além disso, com tanta gente a partir para Nome,
aposto que consegues obrigá-la a baixar os preços.
Beth queria um vestido novo, mas disse a Jack que quinhentos dólares
era demasiado.
– Vais ver que não – insistiu ele. – Também precisas de sapatos e outras
coisas.
Nessa noite, ao jantar, Jack pareceu um pouco distante. Beth encontrara
um vestido maravilhoso na loja de madame Aubert, um casaco com riscas
verde-escuras e cremes e saia verde a condizer, e um pequeno chapéu verde
com um véu. Estava excitada por causa do vestido e dos mexericos que a
francesa lhe contara, e ficou bastante desapontada por Jack não se mostrar
muito receptivo.
Bebeu um par de copos de whisky depois do jantar, e o álcool subiu-lhe
à cabeça. Mal conseguia manter-se de pé, e Jack ajudou-a a subir até ao quarto
e a enfiar-se na cama.
– Acho que vou dar uma volta por aí e ver o que se passa – disse. – É
muito cedo para dormir. Bons sonhos.
Beth foi abruptamente acordada, de manhã, pelo barulho que vinha da
rua. Mas, para sua surpresa, estava sozinha na cama. Levantou-se e
aproximou-se da janela para descobrir o que estava a causar toda aquela
algazarra, e viu centenas e centenas de homens que, de mochila às costas, se
encaminhavam para o cais.
Era exactamente como tinha acontecido dois anos antes, em Vancouver,
e assumiu que Jack tinha saído sem a acordar para assistir ao espectáculo. Mas
quando voltou a olhar para a cama, percebeu que ele não tinha dormido lá.
Faltava a marca da cabeça na almofada, e os lençóis e mantas continuavam
presos do lado dele.
Ainda mais estranhamente, o fato novo que tinha comprado estava
dobrado nas costas da cadeira, com as suas melhores botas ao lado. Devia ter
voltado ao quarto na noite anterior, quando ela estava a dormir, e vestido as
suas velhas roupas.
Procurou no armário e descobriu que o saco das ferramentas também
tinha desaparecido. Jack sempre fora incapaz de resistir a uma história triste, e
se alguém lhe tivesse pedido ajuda na noite anterior, teria tido muita
dificuldade em recusar. Mas o que não conseguia compreender era por que
motivo, se voltara ao quarto para mudar de roupa e levar as ferramentas, não a
acordara para lhe dizer aonde ia, ou não lhe deixara uma nota.
Voltou a sentir uma náusea, mas decidiu que era fome e desceu para
tomar o pequeno-almoço, a pensar que talvez houvesse uma nota de Jack na
recepção.
Não havia, e ela teve de sair a correr da sala de jantar só por ter
cheirado o café.
De novo no quarto, sentou-se junto à janela a olhar para o rio de
homens que desfilava diante do hotel e, de súbito, o seu coração contraiu-se de
medo. Poderia Jack ter ido para Nome?
Parecia um pensamento absurdo, pois ele mostrara apenas uma
curiosidade divertida a respeito de toda aquela história. Até dissera que se
procurar ouro ali era duro, devia ser muito pior em Nome, que ficava quase no
círculo árctico.
Mesmo assim, um arrepio gelado desceu-lhe pela espinha, porque a
própria cidade onde estava não existiria se não fosse a irracionalidade e a
ganância que o ouro trazia à tona na alma humana. Nem sequer podia dizer
que havia apenas um género de pessoas que sucumbia ao engodo, pois sabia
que vinham de todas as condições e estratos sociais, e os homens honestos e
decentes eram muito mais comuns do que os ladrões e os vigaristas.
Também sabia que pouco importava o dinheiro que um homem já
tivesse, porque vira fortunas perdidas no virar de uma carta. Theo vira o seu
sonho realizado quando tivera o Golden Nugget, e no entanto vendera-o nas
costas dela e fugira com o dinheiro. Porque havia de pensar que Jack era assim
tão diferente?
Olhou para a cama. Tinham posto o dinheiro num saco de pano debaixo
do colchão, depois de voltarem do banco. Jack ficara apenas com cerca de mil
dólares, e desses dera-lhe quinhentos a ela.
Se o saco tivesse desaparecido, o mesmo teria ele feito, como Theo.
A tremer de nervos, aproximou-se hesitantemente da cama e levantou o
colchão. Fez deslizar a mão por baixo dele, mas não encontrou nada. Um grito
de desespero involuntário brotou-lhe da garganta.
Passou as mãos à volta da cama, e, não encontrando nada, pegou no
colchão e atirou-o ao chão. Não havia nada por baixo dele, apenas o fino forro
de crina por cima das molas.
O choque fê-la cambalear, pois por muito que tivesse racionalizado que
Jack não era diferente dos outros homens, no fundo do coração sentia que
nunca ele seria capaz de fazer uma coisa tão baixa.
Dissera que não tinha ido para ali por causa do ouro, mas só para estar
perto dela, e ela acreditara.
A traição era insuportável, muito pior do que o que Theo tinha feito,
pois sempre soubera que em Theo não se podia confiar. Mas o Jack Honesto, o
homem em que confiara implicitamente durante todos aqueles anos, o seu
consolador, o seu amigo, como pudera fazer-lhe aquilo?
Atirou-se para cima das roupas da cama a chorar histericamente.
Recordou como ele lhe pusera os quinhentos dólares nas mãos e dissera que
não podia chegar a Vancouver a parecer uma pobre.
A ratazana já então devia estar a planear a fuga, e só lhe dera aquele
dinheiro para salvar a consciência não a deixando reduzida à miséria.
Como fora capaz de fazer-lhe aquilo?
CAPÍTULO 37
Ficou horas a chorar em cima do monte de roupas. Uma vez que os
bilhetes continuavam em cima do toucador, pareceu-lhe óbvio que Jack queria
que partisse no barco, de manhã. Ficaria assim livre de ir com aquela
irmandade de loucos que preferia passar a vida em cabanas fedorentas
perdidas em lugares remotos e sonhar com encontrar ouro a ter uma mulher e
uma família que os amassem.
Reviveu as últimas semanas, a tentar ver se ignorara qualquer coisa que
lhe pudesse ter dado uma pista de que Jack não estava tão profundamente
ligado a ela como julgara.
Havia o momento em que ela lhe dissera que o amava e ele não
respondera de imediato que também a amava. Mas na altura pensara que
estava apenas a provocá-la.
Sabia que ele tinha sido feliz no Bonanza, mas talvez tivesse sido
presunção sua pensar que seria ainda mais feliz a viver com ela no exterior.
Agora que pensava nisso, nunca ele falara a respeito de como tencionava
ganhar a vida quando saíssem de Dawson.
E o silêncio dele durante a viagem no barco a remos até à cidade
parecia-lhe agora igualmente suspeito. Pensara que ficara apenas aturdido por
Oz lhe ter dado o dinheiro, mas teria sido por sentir que estava a ser arrastado
para uma armadilha?
Parecia ridículo, mas talvez para um homem que gostava de uma vida
simples e longe dos outros a perspectiva de viver numa verdadeira casa,
rodeado de pessoas sóbrias e respeitáveis fosse uma espécie de morte em vida.
E no entanto, ele decerto sabia que podia ter-lhe falado dos seus medos.
Fora talvez no Monte Carlo que começara a fazer marcha atrás? Quando Percy
Turnball dissera aquilo a respeito de ela ser uma lenda, tinha talvez temido
ficar para sempre na sua sombra? Que se esperasse dele que se moldasse à
música dela e nunca mais pudesse escolher como queria viver?
Mas porque havia de pensar semelhante coisa? Talvez ela não tivesse
deixado suficientemente claro que nada mais lhe importava excepto ele. Que
até tocar violino era secundário; que ficaria igualmente feliz por tocar só para
ele e já não ansiava ter um público.
Teria Jack partido se ela lhe tivesse dito que achava que trazia um filho
dele no ventre?
Ao fim da tarde, o orgulho fez finalmente Beth levantar-se de cima do
monte de roupa.
«Se prefere andar a arrastar-se pelo Árctico com um bando de malucos
a ir comigo para Vancouver, o problema é dele», disse para si mesma.
Voltou a pôr o colchão em cima da cama e atirou as roupas para cima
dele, lavou a cara na bacia e examinou de sobrolho franzido os olhos
inchados.
– Não vais chorar mais – disse à sua imagem reflectida no espelho. –
Vais descer à sala de jantar, comer uma boa refeição, e depois vais preparar as
tuas coisas para amanhã. Não vais deixar que ninguém veja como te doeu ele
ter-se ido embora.
– Gostaria que alguém me ajudasse a levar a minha bagagem para o
barco, por favor – disse Beth ao gerente do hotel na manhã seguinte, enquanto
pagava a conta.
O átrio estava cheio de gente que partia para Nome, e, apesar de poucos
parecerem capazes de enfrentar um Inverno árctico, davam a impressão de
seguir o rebanho como ovelhas, só porque havia tantos outros a partir.
– Com certeza, Miss Bolton – respondeu o homem, sorrindo-lhe
untuosamente. – Mr. Child vai lá ter consigo?
– Sim. Teve de tratar de uns assuntos – disse ela, picada porque o patife
fizera questão de tratá-la por Miss Bolton, para mostrar que sabia que não era
casada com Jack.
Emalara também as roupas novas de Jack, porque se as deixasse no
hotel tornaria óbvio que ele a tinha abandonado, mas achava que o gerente já o
sabia, e que estava a deleitar-se com o desgosto dela.
O paquete do hotel caminhava atrás dela por Front Street, levando as
malas num pequeno carrinho de mão. A rua estava apinhada de gente que saía
de Dawson, e Beth calculou que o barco devia estar sobrelotado uma vez que
os comandantes não eram diferentes do resto das pessoas e aproveitavam
todas as oportunidades para ganhar dinheiro fácil. Mas, pelo menos, toda a
gente a mais iria só até St. Michael, onde desembarcaria e teria de procurar
outra maneira de chegar ao seu destino.
Manteve a cabeça bem erguida enquanto caminhava. Podia ter o
coração destroçado, mas sabia que ficava bem com o seu vestido novo e o
cabelo preso debaixo do chapéu. Mesmo assim, tremia à ideia de encontrar
alguém conhecido, que não deixaria de perguntar-lhe onde estava Jack.
O Maybelline era um pequeno vapor de aspecto robusto e relativamente
novo, ao contrário da maior parte dos barcos que tinham sido postos ao
serviço no ano anterior. Um dos membros da tripulação levou a bagagem de
Beth e mostrou-lhe o camarote, que ficava no convés superior. Era minúsculo,
com apenas trinta centímetros de chão ao lado dos beliches, mas ela tinha
visto como estavam sobrelotados os dois conveses inferiores, e não se
importou. Deixou as malas no beliche de baixo, subiu para o de cima e
deitou-se a observar a cena no cais através da pequena vigia.
Se não estivesse tão infeliz, talvez tivesse rido ao ver as pessoas
baterem-se para chegar à cabeça da fila para comprar bilhetes, e depois a
tentarem subornar os membros da tripulação para que as deixassem embarcar.
Não compreendia aquele desespero. Só os entes queridos justificavam que se
lutasse por eles. Ela teria sem dúvida lutado com unhas e dentes para salvar
Sam, e voltado as costas a uma fortuna se isso significasse que Molly poderia
continuar viva e de saúde em Inglaterra.
O barco ressoava com o barulho de botas cardadas a bater no convés.
Ouviu, lá fora no corredor, um homem de voz tonitruante queixar-se de que o
seu camarote era demasiado pequeno, e um membro da tripulação dizer-lhe
sem rodeios que se não gostava podia desembarcar e vender os seus bilhetes a
outra pessoa pelo dobro do dinheiro.
Nessa altura, uma voz de mulher declarou que era uma vergonha o
barco estar tão sobrelotado. A resposta que recebeu foi a mesma que tinha sido
dada ao primeiro queixoso.
Beth desceu do beliche quando o apito do barco soou a chamar os
atrasados para bordo. Sentiu que tinha de ver pela última vez o lugar para
onde, dois anos antes, partira com tanta excitação.
A vigia era apenas um quadrado de vidro com trinta centímetros de lado
e não se abria, pelo que o seu campo de visão se limitava ao que estava
directamente em frente: um grupo de jovens com sacos às costas, pesados
casacões e pás, ainda à espera de conseguirem um lugar de última hora. Atrás
deles havia um saloon, a elaborada fachada a sugerir que o interior seria
igualmente luxuoso. Mas era uma falsa imagem; por dentro pouco mais era do
que um barracão, e Beth sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos porque lhe
pareceu que aquilo simbolizava a maneira como se deixara convencer de que
Jack era diferente. Acreditara que nele não havia falsas fachadas, nem truques
ou aldrabices. Jack Honesto, o homem com quem podia contar, que seria o seu
amigo, o seu amor, o seu tudo.
Tinha agora a certeza de que o filho dele lhe crescia no ventre, pois
voltara a sentir o enjoo mal cheirara o café naquela manhã. Sabia que ia amar
a criança apesar da traição de Jack. Talvez até, com o tempo, conseguisse
perdoar. Mas também sabia que nunca mais na vida voltaria a confiar num
homem.
Tinha a visão desfocada pelas lágrimas que lhe alagavam os olhos. Viu
um homem a correr por trás dos que faziam fila, e apesar de só o ter visto por
um segundo, teve a fugaz impressão de que era alto, com cabelo escuro. O
coração deu-lhe um salto involuntário no peito, mas voltou costas à vigia,
irritada consigo mesma por ter imaginado que era Jack.
Mas então ouviu gritos, e apurou o ouvido, porque o homem que gritava
que a mulher tinha o bilhete dele parecia mesmo Jack.
Saiu do camarote e desceu a escada até ao sobrelotado convés inferior a
correr como o vento.
Havia passageiros e malas a ocupar cada centímetros de espaço, mas,
para lá deles, viu que a tripulação já tinha recolhido a prancha de embarque e
soltado as amarras, e que no cais, do qual o navio se afastava lentamente,
estava Jack, vermelho e furioso.
– É o meu marido! – gritou ela, saltando por cima de malas e sacos,
empurrando as pessoas para o lado. – Deixem-no embarcar, por favor!
Os membros da tripulação olharam para ela, espantados. Jack recuou
alguns passos, e então correu para a frente e saltou.
Houve como que um som geral de respirações retidas entre os
passageiros do convés inferior, porque o espaço entre o barco e o cais
aumentava rapidamente.
Beth tapou a boca com a mão, pois Jack parecia suspenso em pleno ar e
ia de certeza cair na água.
Mas aterrou no convés, por pouco mais de um centímetro, e caiu para a
frente sobre os joelhos.
Estava sujo e com a barba por fazer, mas a Beth pareceu maravilhoso.
Correu para ele, de braços estendidos para o abraçar.
– Graças a Deus consegui! – arquejou Jack, quando ela o alcançou. –
Senão ias pensar que te tinha abandonado!
Dez minutos mais tarde, no camarote, Jack estava ainda ofegante.
– Tive de ir ver o Oz – disse. – Foi atacado. O Willy Apito não
conseguia levá-lo para o barco.
Demorou ainda algum tempo a normalizar a respiração o suficiente para
explicar melhor. Estava de regresso ao hotel na noite em que a deixara para ir
dar uma volta quando Willy Apito (assim chamado por tocar um pequeno
apito de lata), um veterano que já garimpava à volta de Dawson muitos anos
antes de a corrida ao ouro ter começado, lhe gritara que parasse.
Ao princípio dessa tarde, estava Willy na sua cabana, a sete ou oito
quilómetros da parcela de Oz, quando ouvira cães a ladrar e a arranhar a porta.
Reconhecera imediatamente Flash e Silver, e sabendo que os animais tinham
ido ali pedir ajuda, seguira-os através do bosque. Cerca de quilómetro e meio
mais adiante, encontrara Oz caído no meio do mato, quase inconsciente. Tinha
sido selvaticamente espancado e sangrava de um ferimento de faca no peito.
Willy era um homem pequeno, e, apesar de ter conseguido improvisar
uma maca e, com os cães a puxá-la, levar Oz até à sua cabana, sabia que não
teria força para carregar o amigo até ao barco e içá-lo lá para dentro. Por isso
enfiara uma velha toalha na ferida de Oz, dera-lhe um trago de whisky e,
deixando os cães a guardá-lo, remara até Dawson em busca de auxílio.
Jack fora ao hotel para mudar de roupa, mas, como estava cheio de
pressa e de todos os modos esperava estar de volta de manhã cedo, não
pensara em deixar uma nota ou sequer acordar Beth.
Quando ele e Willy chegaram à cabana, era ainda noite, mas, depois de
examinar Oz, Jack convencera-se de que transportá-lo para o barco e levá-lo
para um hospital poderia matá-lo. Por isso pusera um penso na ferida o melhor
que pudera e mandara Willy buscar um médico enquanto ele ficava ali.
– Eu disselhe que viesse contar-te o que tinha acontecido – continuou
Jack. – Mas o grande idiota bebeu uma garrafa de whisky quase inteira durante
a viagem, adormeceu e passou por Dawson sem dar por isso. Eu estava preso
na cabina dele, sem um barco para ir buscar ajuda, e de todos os modos não
podia deixar o Oz sozinho. Quando o Willy acordou, quase se matou a remar
para Dawson contra a corrente para chamar um médico, já era outra vez noite.
O médico apareceu no seu próprio barco, com outro homem, estava o dia a
nascer. Vim para cá com eles. Depois de deixar o Oz no hospital, corri para o
Fairview, mas tu já tinhas saído.
– Pensei que me tinhas deixado para ir para Nome – murmurou ela.
Estava envergonhada por ter duvidado dele, porque o sangue e o pó que tinha
nas roupas, e o cansaço de que dava mostras, eram ampla prova de que estava
a dizer a verdade.
– Como pudeste pensar uma coisa dessas? – exclamou Jack, com uma
expressão magoada no rosto.
– Com certeza sabes que és a coisa mais importante do mundo para
mim? Não te trocaria por uma tonelada de ouro. Amo-te, Beth.
– Mas tu levaste o teu saco de ferramentas e o dinheiro – disse ela,
debilmente. – Que outra coisa podia eu pensar?
– Levei as ferramentas para o caso de precisar delas. Mas não levei o
dinheiro. Estava no cofre do Fairview. – Enfiou a mão dentro da camisa e
tirou de lá o saco de pano. – Guardei-o lá depois de te ter dado os quinhentos
dólares para o teu vestido. Já se sabia na cidade que o Oz mo tinha dado. Tive
medo de ser roubado.
– O gerente não me disse nada.
Jack abanou a cabeça, incrédulo.
– O grande sacana – sibilou. – Aposto que pensou que talvez eu não
voltasse e que poderia ficar com ele. Pareceu surpreendido ao ver-me. Corri
como o vento até aqui, nem sequer tive tempo para me lavar. E agora nem
sequer posso abraçar-te para te compensar de tudo isto, ou estrago o teu bonito
vestido.
– Posso ir buscar água para te lavar, e trouxe as tuas roupas novas
porque não queria que ninguém soubesse que me tinhas abandonado.
Jack sorriu.
– Abandonar-te! Se tivesse de nadar para apanhar o barco, tinha nadado.
Beth sentiu toda a tensão e toda a dor que se tinham acumulado dentro
dela dissiparem-se.
– Como está o Oz?
– Escapa desta. A ferida no peito teve de ser cosida, e os mounties vão
apanhar os tipos que o atacaram. Felizmente, tinha deixado o dinheiro no
banco aqui em Dawson, e até tinha posto as pepitas que eu encontrei numa
bolsa que prendera à coleira do Flash.
– Mas porque foi que os cães não o defenderam? – perguntou ela.
– Também eu e o Willy ficámos intrigados. Mas, a caminho do hospital,
o Oz recuperou a consciência o tempo suficiente para nos contar que tinha
estado a beber com dois sujeitos que julgava serem seus amigos, na cabana
deles, que fica a cerca de quilómetro e meio da do Willy, e que prendera os
cães à porta. Julgo que os sujeitos pensaram que o Oz tinha o dinheiro com
ele, e a ganância fê-los atacá-lo. Mas fugiram quando não encontraram nada, e
o Oz conseguiu arrastar-se para fora e soltar os cães.
– Que amigos! – exclamou Beth. – Se os cães não fossem tão
inteligentes, podia ter morrido ali.
Beth arranjou um balde de água para Jack se lavar e, depois de limpo,
ele abraçou-a e beijou-a.
– Gostaria de provar-te como te amo – disse ele, docemente. – Mas
depois de duas noites sem dormir, não me parece que consiga.
Beth deixou-o a dormir e foi para o convés superior contemplar o rio.
Tinham-lhe dito que Yukon era uma palavra índia que significava «o Maior»,
e achou que o título era bem merecido, pois tinha mais de 3200 quilómetros de
comprimento, com estreitas gargantas por onde corria tumultuosamente,
curvas apertadas e longas extensões em que deslizava calmo por terras planas.
A água oriunda dos glaciares era tão fria nos rápidos que, se um homem
caísse, seria o bastante para o matar ainda antes de ser sugado para o fundo
pela forte e mortífera corrente.
E era tão belo, por vezes verde-esmeralda, por vezes turquesa. Alces e
caribus frequentavam os baixios, patos e gansos nadavam nas águas mais
plácidas, andorinhas nidificavam nos barrancos das margens. Mas ela também
o adorara no Inverno, quando o gelo atingia um metro e vinte de espessura e
ela e Jack tinham corrido pela sua superfície num trenó, com Flash e Silver a
puxá-los.
Olhou em redor para os outros passageiros sentados no convés,
apertados no meio das bagagens, e sentiu-se triste por eles, porque não
estavam a ver a beleza daquela terra, desejavam apenas a riqueza que podiam
tirar dela.
Ir para aquele lugar fora uma educação completa. Uma vida inteira em
Inglaterra ou em Nova Iorque nunca a teriam testado, marcado e ensinado
tanto como os dois anos que ali passara. Era agora capaz de viver sem
confortos, preparar uma refeição com quase nada, e sabia que o corpo humano
conseguia aguentar muito mais do que a maior parte das pessoas pensava.
Mas o mais importante de tudo, e apercebia-se de que só naquele dia o
descobrira, era a consciência de quem era e de que era capaz de ser
independente. Ficara horrorizada e terrivelmente entristecida pelo pensamento
de que Jack a tinha abandonado, mas não ficara assustada pela perspectiva de
ter de enfrentar a vida sozinha.
Enquanto, na noite anterior, fazia as malas, sentira que aquilo era o
triste fim de um capítulo e que não havia nada a fazer senão avançar para
outro. Soubera que, quando chegasse a Vancouver, seria capaz de arranjar um
lugar para viver, e seria capaz de trabalhar. Não se teria deixado abater pelo
facto de estar sozinha.
Nem sequer a perspectiva de criar um filho sem ajuda a tinha assustado.
Talvez tivesse optado por chamar a si mesma «Mrs.», mas só por uma questão
de convenção, não por se envergonhar do que quer que fosse. Era uma música,
e uma boa música, arranjaria sempre trabalho em qualquer sítio.
Estava, claro, muito feliz e aliviada por Jack ter aparecido. Mas, de
certo modo, sentia-se satisfeita por ter tido aquela possibilidade de descobrir
que se tornara numa mulher forte, digna e capaz.
– Qual será a melhor altura para lhe dizer do bebé? – murmurou para si
mesma, enfiando a mão por baixo do casaco para apalpar o ventre. Tinha a
certeza de que estava ali um bebé, mas talvez fosse melhor esperar até que um
médico o confirmasse.
Quando Jack acordou, já a luz do dia esmorecia. Abriu os olhos no
instante em que Beth entrou no camarote e lhe sorriu.
– Sentes-te melhor? – perguntou ela, inclinando-se para lhe acariciar a
face.
– Sinto, agora que estou contigo – respondeu ele, pegando-lhe a mão e
beijando-a. – Apanhei um susto quando pensei que te tinhas ido embora sem
mim. Teria tido de esperar vários dias por outro barco e não teria maneira de
te contactar.
– E eu não teria ido esperar todos os barcos na esperança de que fosses
num deles – respondeu ela, a provocá-lo.
Ele sorriu, estudando-lhe o rosto.
– Teria acabado por te encontrar. Teria corrido Vancouver de uma ponta
à outra a afixar cartazes a dizer: «Desaparecida! Rainha Cigana violinista.
Dá-se recompensa por qualquer informação.»
– O que é que vamos fazer quando lá chegarmos? – perguntou ela,
empurrando-o para poder sentar-se no beliche.
– O que tu quiseres. Podíamos apanhar outro barco para a Califórnia e
passar o Inverno no quentinho. Nova Iorque, Filadélfia. Constantinopla, Paris,
Roma, podemos ir para onde nos der na gana. O que é que tu queres?
– Estar contigo – respondeu ela. – Numa casa quente e sossegada, com
uma casa de banho como deve ser. Quero-te em casa comigo todas as noites.
Ele lançou-lhe um olhar interrogativo.
– Nada de planos grandiosos para outro saloon? Uma loja? Uma
pensão?
Ela abanou a cabeça.
– Mas tens qualquer coisa escondida na manga. Sinto-o!
– Talvez – respondeu Beth, deitando-se ao lado dele no beliche e
abraçando-o. – Mas por enquanto somos só nós os dois, apertadinhos neste
minúsculo beliche, e o que temos de fazer é tirar o máximo partido da
situação.
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todos os que me ajudaram a pesquisar a Corrida ao
Ouro do Klondike.
Malcolm Latchem foi uma enorme ajuda ao proporcionar-me
informação de fundo sobre a maneira de tocar violino e a música popular da
época. Obrigada, Malcolm, fizeste-me desejar ter persistido em aprender
violino para lá de «Twinkle, Twinkle, Little Star».
Um enorme agradecimento ao Patrick Griffin, da Wexus Travellers’
Club, que se ocupou de todos os complicados pormenores da viagem que fiz,
seguindo os passos da minha heroína, ao Alasca e a Dawson City, no Canadá.
O seu conhecimento, o seu entusiasmo e o seu sentido de humor tornaram-na
muito menos assustadora.
Li todos os livros que consegui encontrar a respeito da Corrida ao Ouro
e das suas personagens, mas dois deles, ambos de Pierre Berton, um dos mais
brilhantes historiadores canadianos, destacaram-se de todos os outros.
Klondike: The Last Great Gold Rush, 1868-1899 é nada menos que
maravilhoso. Excitante, fantasticamente descritivo, um livro que toda a gente
devia ler para ter a ideia exacta do que foi a loucura da febre do ouro. The
Klondike Quest, também de Berton, é um ensaio fotográfico sobre a mesma
história. Com fotografias fabulosas a acompanhar a narrativa, sentimo-nos
quase como se estivéssemos lá.
Um agradecimento especial ao Bombay Peggy’s, o antigo bordel onde
fiquei em Dawson City e que conseguiu recriar a decadência e os aspectos
mais picantes de como foi em tempos, com todos os confortos do século xxi e
um caloroso acolhimento.
Nunca cheguei a saber os nomes dos maravilhosos australianos que
conheci na minha primeira noite em Dawson. Tenho fotografias de todos
vocês e um monte de agradáveis recordações, de modo que espero que um de
vós se tenha lembrado do meu nome e comprado o livro. Vocês sabem quem
são, de modo que entrem em contacto!
Para fechar com chave de ouro, os meus agradecimentos a Mari Evans,
a minha editora, pelo seu entusiasmo sem limites e a sua competência.
Adoro-te, Mari!
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