liberté: as representações das identidades ciganas no ... · especificidades culturais do imenso...
Post on 12-Feb-2019
221 Views
Preview:
TRANSCRIPT
Liberté: As representações das identidades ciganas no filme de Tony Gatlif*
Lucas Medeiros de Araújo Vale - UFPB**
Resumo: Devido ao longo tempo em que permaneceram sem o domínio da escrita,
sendo a oralidade o principal meio difusor de suas práticas e costumes para as novas
gerações, é raro encontrar registros de autoria cigana nos quais eles se coloquem
enquanto sujeitos de suas próprias narrativas. Os documentos mais antigos de que se
tem conhecimento, oferecem apenas o discurso do outro (não-cigano) sobre um povo
estranho e distante. É neste contexto que o filme ficcional Liberté (2009), produzido
pelo diretor Tony Gatlif, que é cigano, torna-se relevante para a nossa etnografia. Nesta
obra, Gatlif faz menção ao Porrajmos, o massacre nazista que dizimou mais de duzentos
mil pessoas de sua etnia, e nele representa os supostos costumes, hábitos, meios de
sobrevivência, vestimentas e moradias dos Roms que viviam na França, sob influência
nazista, durante o período da segunda grande guerra. O filme é protagonizado por uma
família cigana nômade que passa a ser proibida de viajar e de manifestar a sua
“ciganidade”, sob o risco de ser presa e/ou exterminada nos campos de concentração.
Neste trabalho, procuramos identificar de que maneira as identidades ciganas são
(des)construídas e representadas nesta obra, a partir das performances do viver, viajar,
pousar, morar, trabalhar e as suas formas de socialidades (FERRARI, 2010), atentando
para as narrativas, personagens, cenários, figurinos, e suas potências figurativas; para as
intertextualidades narrativas e interpretativas, através da decomposição do filmes em
sequências, cenas, e/ou planos.
Palavras-chave: Ciganos; Cinema; Representações.
Ciganos. Palavra que ultrapassa todos os sentidos enunciados nos dicionários.
Depois de pronunciada, bombardeia-nos e invade-nos com imagens, sons, gestos e
cheiros. Desfilam no imaginário, seres líricos e fantásticos, multicoloridos e detentores
de um poder místico. São os nômades, as Carmens e as Esmeraldas, os ladrões de
cavalo, os trapaceiros, os músicos, e as velhas que leem o futuro na palma da mão e que
podem lançar pragas caso não lhes pague bem. Em geral, são ditos como perigosos e
neles nunca se deve confiar.
Produto de uma longa construção histórica o vocábulo “ciganos”, é um termo
genérico do século XV inventado na Europa, que “ainda hoje é adotado, apenas por falta
de um outro melhor” (MOONEN, 2012, p. 9), e que chega à contemporaneidade envolta
* Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2016, João Pessoa/PB **
Aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do PPGA/UFPB.
a estereótipos, violências, generalizações e homogeneizações, que forjam uma ideia de
identidade perigosa. Visto que as imagens do outro, são construídas a partir de relações
históricas específicas de dominação e diálogo. (CLIFFORD, 1998, p. 19) Os símbolos
que perpassam a compreensão das culturas ciganas chegam-nos através de diversos
meios; podendo ser esses: os discursos enraizados no senso-comum, a leitura de um
livro específico, as manchetes estampadas nas páginas dos jornais, ou através de algum
filme. Este último contribui de maneira singular na cristalização e na (de)formação
imaginária, e imagética, das culturas ciganas.
Apesar de ainda serem amplamente mal vistos nas sociedades que os cercam, a
aura mística que supostamente emana daquilo que se compreende como sendo “cigano”
possibilitou a criação de diversas obras cinematográficas que exploraram este recurso ao
máximo. Esbarrar com o cinema – aqui, entendido como fonte etnográfica e objeto de
análise da antropologia - mostrou-se inevitável, visto que as produções cinematográficas
se apresentam como uma das maneiras utilizadas com o propósito de contar suas
histórias e representar suas culturas.
Invisibilizados na história escrita, e perseguidos na sociedade desde tempos
imemoriais (MOONEN, 2012), os ciganos da contemporaneidade lutam por
empoderamento e reconhecimento, e, no cinema, encontraram meios para representar as
suas histórias, suas culturas e suas denúncias para os outros e para si. E aqui destacamos
o cineasta cigano Michel Dahamani Gatlif, conhecido, artisticamente como Tony Gatlif.
Ele conta com uma filmografia extensa, que tem seu início em 1975 com La Tête en
ruine, e já arrematou alguns prêmios ao redor do mundo, inclusive em Cannes (melhor
diretor em 2004, por Exils, e indicação à Palma de Ouro, pelo mesmo filme).1 Gatlif
atua como realizador, diretor, roteirista e também como compositor em filmes franceses,
sendo a maioria de sua obra dedicada aos povos ciganos. Os seus filmes são vistos por
nós como importantes fontes e objetos de análise antropológica, principalmente por se
tratar de um conjunto de obras produzidas por um cigano que se coloca como narrador
de suas próprias histórias.
Neste trabalho, procuramos identificar de que maneira as identidades ciganas
são (des)construídas e representadas em um dos filmes de Tony Gatlif, que têm os
ciganos como protagonistas: Liberté, de 2009, a partir das performances do viver,
1 IMDB. Tony Gatlif. Disponível em: <http://www.imdb.com/name/nm0309697/>. Acesso em: 10 fev.
2015.
viajar, pousar, morar, trabalhar e as suas formas de socialidades (FERRARI, 2010),
atentando para as narrativas, personagens, cenários, figurinos, e suas potências
figurativas; para as intertextualidades narrativas e interpretativas, através da análise
fílmica e antropologia do cinema.
1. Os Ciganos, o Cinema e o Antropólogo: um campo em construção
Enquanto delimitávamos o nosso recorte temático utilizamos como referência
pesquisas realizadas pelas mais diversas áreas: Antropologia, Artes Plásticas,
Comunicação, Geografia, História, Letras, Serviço Social, Sociologia, dentre outras. O
contato interdisciplinar com esses estudos foi de extrema importância, pois nos deu
acesso a inúmeras referências e outros dados relevantes para a pesquisa antropológica.
Revisitamos os clássicos da ciganologia brasileira, Mello Moraes Filho
(1885/1886), José Baptista d'Oliveira China (1936) e João Dornas Filho (1948), e
demais pesquisadores, como Manuel Augusto Abrantes da Costa (2006), que nos situou
numa ampla discussão teórica acerca de categorias como “identidade”, “raça” e
“cultura”, ajudando-nos a relacionar a aplicabilidade destes conceitos aos ciganos
europeus; Rodrigo Corrêa Teixeira (2007), que estudou a presença de ciganos em Minas
Gerais, e suas formas de se relacionar com o espaço; a antropóloga Florencia Ferrari
(2010), que discorre em sua tese de doutorado sobre os processos de fazer-se calon
(cigano) e a constante afirmação da calonidade contrastado ao esforço em diferenciar-se
dos gadjés (não-ciganos); e Frans Moonen (2012) com o seu trabalho sobre o
anticiganismo na Europa e no Brasil, que nos trouxe ricas informações a respeito da
história e das culturas ciganas. Além dos estudos de Nicole Martinez (1989), Teresa San
Román (1997), Geraldo Pieroni (2002), Ático Vilas-Boas da Mota (2004), José Bessa
(2004), Fábio J. Dantas de Melo (2005), Manoel Costa (2006), Lourival Andrade Júnior
(2008), Cristina Pereira (2009), Maria Patrícia Lopes Goldfarb (2013) e os demais, que
constam em nossas referências.
Todos esses trabalhos nos situaram em um amplo debate acerca da categoria
“Cigano” e de como esta foi explorada pela academia nas últimas décadas sob as mais
diversas perspectivas. Além disso, através dessas leituras foi possível pensar
metodologicamente a nossa proposta de estudo, que deve levar em conta as
especificidades culturais do imenso grupo étnico que a qual está relacionada.
No que diz respeito às representações dos ciganos no cinema, e no que toca a
produção de Tony Gatlif, ainda são poucos os trabalhos publicados no Brasil. Podemos
citar o de conclusão de curso de Vasconcelos (2014) em Artes Plásticas: Os “Ciganos”
não existem: representações dos Romà no cinema, onde a autora analisa a qualidade da
cultura visual produzida pela indústria cinematográfica ocidental sobre os ciganos; e
alguns artigos científicos de nossa autoria (VALE, 2014; 2013). Tratando de trabalhos
monográficos de pós-graduação, temos conhecimento apenas de As representações dos
ciganos no cinema documentário brasileiro, um estudo realizado por Francielle Felipe
Faria de Miranda, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Goiás em 2010. Nenhum desses trabalhos, entretanto, propõem
uma análise antropológica do cinema.
Os escritos de Gilles Deleuze (1990), Rose Hikiji (1998), Claudine de France
(2000), Faye Ginsburg (1999), Robert Stam (2013), Kelen Pessuto (2014), João
Rapazote (2015), e de tantos outros que já se debruçaram sobre teoria e antropologia
visual, estão nos ajudando a pensar o cinema enquanto campo, as abordagens sob o
filme ficcional, e a refletir acerca dos seus limites e possibilidades.
Nosso principal instrumento metodológico será a análise fílmica das fontes
audiovisuais, onde nos esforçaremos para a construção de uma descrição densa.
Atentaremos para as narrativas, personagens, cenários, figurinos, e suas potências
figurativas; estudando as intertextualidades narrativas e interpretativas, através da
decomposição dos filmes em sequências, cenas, e/ou planos.
Os filmes de Tony Gatlif são aqui compreendidos como documentos
extremamente importantes para o antropólogo pesquisador, e como orienta Napolitano
(2011), ao discorrer sobre as fontes audiovisuais, pretendemos buscar na narrativa, no
roteiro, no cenário, e nos sons e nas imagens, as relações do filme com aquilo que não é
filme: o autor, a produção, o público, a crítica a sociedade, e as culturas que estão sendo
representadas. Conceituamos os filmes, não como uma imitação da realidade, mas,
como diz Robert Stam (2013), ao citar Barthes (1977), um artefato, um construto; como
um espaço multidimensional em que uma diversidade de escrituras, funde-se e entra em
conflito. Um conjunto de pensamento sobre a vida que pode ser interpretado. (HIKIJI,
1998).
2. Uma história (não só) sobre holocausto
De acordo com Frans Moonen (2012), a mais selvagem e bárbara perseguição
aos ciganos de que se tem notícia ocorreu não em séculos passados, entre povos então
ditos “primitivos” ou “selvagens”, mas em pleno Século XX, na Alemanha nazista.
Em Liberté, esta perseguição é tematizada por Gatlif, que mostra-nos que nas
mesmas câmaras de gás, nos mesmos crematórios, ou então fora deles num lugar
qualquer da Europa, foram massacrados, também, de 250 a 500 mil ciganos, dos dois
milhões que viviam na Europa naquele período. No filme, é também destacado a
participação do Centre National de La Cinématographie, com seu fundo de imagens da
diversidade. E o apoio da L’agence Nationale pour la Cohésion Sociale et l’égalite des
chances, que provavelmente ajudaram a equipe de produção na caracterização dos
personagens e cenários.
No prelúdio, arames farpados de uma cerca vibram com o movimento dos
ventos produzindo uma melodia de forte carga dramática, em plano de fundo podemos
ver um campo de concentração vazio. O espectador é transportado metaforicamente
para o ano de 1943, em algum lugar remoto da França, e é avisado que o filme que está
assistindo é baseado em fatos reais. A França exibida em Liberté remete-se ao período
de influencia nazista, onde existiam campos de concentração somente para ciganos,
administrados pelas próprias autoridades francesas. Não se tratava de campos de
extermínio, mas quase sempre de campos de trabalhos forçados, e eram em geral
pequenos, para alguns poucos milhares de pessoas.
Bernadac chama estes campos, apropriadamente, ‘as antecâmaras
francêsas de Auschwitz’, porque principalmente no final da guerra,
muitos dos 30 mil ciganos internados nestes campos franceses foram
deportados para os campos de extermínio existentes na Alemanha e
em outros países. (MOONEM, 2012. p. 54)
Logo somos apresentados aos protagonistas. Os ciganos da família Laville que
viajam em vurduns2 puxadas por cavalos e mulas. Um desses, o menor, é dirigido pelas
crianças. Alguns fazem a viagem dentro dos vurduns, enquanto outros seguem
caminhando a pé pela floresta. Tina (Bojana Panic), uma jovem mulher, montada em
um cavalo, anuncia ao resto do grupo que a passagem pela qual seguiriam está
bloqueada. Enquanto o grupo discute o que fazer, dois deles correm pela floresta em
uma perseguição. Eles encontram uma criança (Mathias Laliberté) escondida em
arbustos e a levam à força para perto dos demais. “encontramos o fantasma”, “Por que
nos persegue?”, “Ontem você me assustou, fantasma!”, diz um deles. Logo todos os
outros chegam e cercam o garoto, chamando-o de “fantasma”. Quando questionado por
2 Espécie de carroção utilizado como transporte e moradia por alguns grupos ciganos na Europa.
que os seguia, o garoto disse que estava sozinho e por isso desejava a companhia dos
ciganos.
Apesar da resistência, por se tratar de um gadjé3, o grupo decide acolher a
criança e ele ganha o apelido de Chouroro. À noite reúnem-se ao redor de uma fogueira
e partilham os alimentos. As mulheres usam roupas bem coloridas, com peças
marcantes em vermelho, feitas a partir de retalhos, e adornadas com moedas e fitas. As
mais velhas tem os cabelos parcialmente cobertos por lenços vermelho, deixando a
mostra as suas tranças. Os homens usam calças, camisas, coletes, chapéus e agasalhos
em tons mais sóbrios (azul, cinza, marrom e preto), as roupas parecem ser velhas e
gastas. Alguns carregam anéis nos dedos, possuem barba e cabelos na altura dos
ombros. Durante a refeição, conversavam sobre a possibilidade de estarem sendo
seguidos pelos alemães, e que precisavam seguir em frente.
Uma das crianças, o jovem Tatane (Thomas Baumgartner “Lévis”), avista dois
alemães na estrada, parados em suas motocicletas verdes, e então corre
desesperadamente para avisar aos demais. O pânico é generalizado. Eles se preparam
para partir, cobrindo os cascos dos cavalos as rodas das carroças e os focinhos dos
cachorros com tecido, a fim de abafar qualquer ruído.
Moonen (2012) parafraseia Gilsenbach e cita três fatores que facilitaram a
perseguição aos ciganos na Alemanha antes e durante a II Guerra Mundial: 1) o já
tradicional ódio dos alemães e de outros europeus aos ciganos, existente já desde o
Século XV; 2) os arquivos desde o final do Século XIX existentes sobre ciganos na
polícia criminal e 3) as teorias de antropólogos, psiquiatras e médicos sobre “higiene
racial” e “biologia criminal”.
Na cena seguinte somos levados à cidade de St. Amout, onde os guardas
solicitam a presença do veterinário Théodore Rosier (Marc Lavoine), levando-o de carro
para um escritório, onde um cão sofre com alguma enfermidade. Perto dali os ciganos
caminham em direção à cidade, e ao questionar sobre o significado do nome que
recebera, a criança estrangeira descobre que Chouroro significa “um miserável”.
De volta à cidade, os sinos da igreja tocam enquanto uma jovem menina corre
gritando: “Os ciganos estão de volta” “Os ciganos estão aqui”. Lá os homens se dirigem
à prefeitura onde são recebidos pela secretária, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée
Croze), que carimba os seus documentos. Apenas a mais velha das mulheres os
3 Palavra de alteridade do dialeto rom, utilizada para se referir aos não-ciganos, os estrangeiros.
acompanha. Trata-se dos cartões antropométricos de identidade para ciganos nômades,
fruto das atividades do Serviço Central de Combate à Praga Cigana, criado em 1930.
Este órgão exigia a obrigatoriedade da identificação cigana junto às autoridades com o
intuito de dar a essas mesmas autoridades total controle sobre as comunidades
monitorando os seus movimentos.
Théodore, que também trabalha na prefeitura, diz que garantirá cartão de
alimentação e pergunta por quanto tempo permanecerão na cidade. Eles dizem que estão
ali pela colheita de uvas, e que depois partirão. Entretanto, são surpreendidos por uma
nova lei que proíbe o nomadismo, mesmo com identificação, enquanto a guerra durar,
punível com prisão de um a cinco anos. Os ciganos aceitam com relutância
permanecerem na cidade, pois nunca ficam por muito tempo no mesmo lugar. A eles é
destinado um terreno nos arredores.
O veterinário acompanha os ciganos até o local e lá ele encontra o jovem
Chouroro, que na verdade diz se chamar Claude. O gadjé revela ser um órfão cujos pais
morreram e então recebe abrigo de Théodore, que o leva pra casa, o alimenta,
providencia roupas novas e o matricula na escola. No colégio, Claude é questionado
sobre o seu relacionamento com os ciganos. Um de seus colegas comenta que soubera
que os ciganos roubavam crianças, e tais comentários deixam-lhe irritado.
Na cena posterior, os ciganos dividem-se em grupos e saem pela cidade
oferecendo seus serviços para o concerto de utensílios e entretenimento musical, venda
de renda, cestos, panelas, ferramentas e frigideiras, mas não são recebidos com simpatia
pelos moradores.
De volta ao acampamento, são surpreendidos com a visita do prefeito, que é
recebido com certo cuidado. Tratam de lhe garantir uma cadeira de madeira, um copo de
vidro com água, e um grupo para entretê-lo com os violinos. O prefeito, entretanto,
parece estar desconfiado. Após sua partida, os homens do grupo se reúnem na floresta e
questionam a permanência na cidade. Mais uma vez apenas a mulher mais velha do
grupo participa do encontro.
Mademoiselle Lundi visita o acampamento e oferece espaço na escola para as
crianças estudarem, pois além do trabalho na prefeitura, também ensina na escola da
cidade. Como resposta a mais velha pergunta quanto Mademoiselle Lundi irá pagar. As
crianças ficarão no acampamento se ela não der nada em troca. Lundi fica confusa
enquanto os demais conversam entre si numa língua que ela não compreende, e que não
nos é traduzida. Uma cigana que observa de longe comenta: “ela veio roubar nossos
homens”.
Em outra cena Théodore é surpreendido por um cavalo selvagem, enquanto
tentava salvar uma égua num rancho, e é gravemente ferido. Ele é encontrado por
Taloche (James Thiérrée), um cigano tido como desajustado, que ao velo agonizando no
chão acha que trata-se de um fantasma e sai correndo. Ele então chama os demais, que
dividem-se em ajudar Théodore e ajudar a égua. Nesta cena é possível ver as técnicas de
cura conhecidas pelo grupo, que neste contexto envolvem orações, estrume de vaca, e
ovo de galinha. Passado o susto, Théodore manda uma cesta de comidas como
agradecimento aos ciganos, que o louvam em nome de Santa Sara.
Os ciganos aceitam a proposta da professora e permite que as crianças do
grupo, Tatane e Calin (Calin-Alin Mezei) frequentem a escola, acompanhadas de
Taloche. Na escola eles parecem estar deslocados, e são motivos de riso. Principalmente
Taloche. Na cena seguinte os ciganos são visitados por soldados franceses que os
hostilizam, tomam os seus cavalos e ordenam a ficar naquela terra, e não mais saírem.
Todos entram em pânico e desespero. As mulheres choram e os homens se exaltam. O
pequeno conselho reúne-se mais uma vez na floresta e após muita discussão decidem
continuar na cidade.
Então chega o inverno e vemos a Mademoiselle Lundi encontrar-se com um
homem armado na floresta, repassando para ele um envelope. O grupo cigano ainda
permanece na cidade e tocam numa festa em troca de comida e bebida. Lundi fica
nervosa a ver soldados alemães próximos a sua casa e somos levados a crer que ela tem
muitas coisas a esconder. Após isso, somos surpreendidos com as imagens do
acampamento cigano vazio. Eles foram levados para um campo de concentração.
Amontoados atrás de arames farpados encontram-se as crianças ciganas. Aos
poucos se revela o destino da família. Um campo de concentração, onde a liberté e o
movimento não existem. Gatlif nos transmite isso com a sequência de imagens em
movimentos que contraditoriamente nos parecem estáticas. Centenas de ciganos
dividem um minúsculo espaço e o silêncio mórbido é rompido por uma cantinela
dramática. Ao questionar uma autoridade sobre o motivo de tanta hostilidade, Darko
(Arben Bajraktaraj), um cigano da família, obtém uma resposta clara: “Para livrar a
França do verme dela!”
A expressão do oficial nos remete ao incomodo que os ciganos causaram
durante praticamente toda a sua história no ocidente. Acusavam-lhes de sustentarem-se
através de ondas de furtos e pilhagens, que aconteciam no intervalo entre uma viagem e
outra, o que justificara as suas andanças. Além disso, na Europa, segundo Andrade
Júnior (2008), cientistas, médicos e antropólogos se empenharam em legitimar a
perseguição contra ciganos, “provaram” que os ciganos pertenciam a uma raça inferior e
desprovida de condições de conviver em sociedade.
Théodore se sensibiliza pela prisão dos Naville e concede a eles uma
propriedade de sua família, para que sejam libertos, mesmo sendo advertido pelo
tabelião que a cidade se voltaria contra ele. A família Laville é liberta, e ao chegarem na
casa iniciam um ritual pra expulsar os espíritos que moram no lugar. Taloche se recusa a
entrar na casa, pois não deseja se tornar um gadje. Darko planeja a morte da autoridade
que o mandou para o campo de concentração, mas suspende a execução.
Os ciganos, entretendo não adentram a casa e decidem montar suas barracas do
lado de fora, pois de acordo com eles o recinto estava cheio de fantasmas. Isso pode ser
constatado após encontrarem diversos camundongos no recinto.
Tudo parecia estar seguro. Théodore e Lundi assumem um papel romântico, e
os ciganos não corriam mais o risco de serem presos. A situação começa a piorar após
um conflito gerado entre os seus vizinhos, que não se conformavam com a presença dos
ciganos. Após isso, oficiais invadem a escola que Mademoiselle Lundi trabalha e
revistam a sua casa. Ela e Théodore são torturados e descobre-se que Lundi é uma espiã.
Depois da grande revelação, Théodore liberado, e procura por Claude em casa, que
fugiu com os ciganos.
Na floresta, o grupo é emboscado por soldados. Taloche tenta fugir e é
assassinado. Chouroro tem a chance de voltar pra St. Amout, mas prefere ser detido
com os ciganos. Na cena final os ciganos são amontoados numa caminhonete. Eles
gritam e choram a morte do irmão cigano. As carroças ficam vazias e os animais são
abandonados. E nas informações soltadas antes dos créditos descobrimos que a família
cigana que inspirou este filme foi internada em Michelin na Bélgica antes de ser
deportada de trem para Aushwitz em 15 de janeiro de 1944, e que a personagem
Mademoiselle Lundi é baseada na Combatente da Resistência Yvette Lundi, que foi
deportada para Ravensbruck e libertada em 1945.
3. Construção cigana, desconstrução fílmica
O cinema está longe de ser mero entretenimento na contemporaneidade. Os
filmes são resultados de um longo processo que envolve a seleção de imagens, a edição
dos discursos e da trilha sonora, a escolha detalhada de um elenco, e entre muitos outros
cuidados realizados a fim de sensibilizar de alguma forma o seu público alvo e fazer
atingir os seus objetivos.
As representações construídas a partir, e sobre, os ciganos dizem respeito às
concepções particulares de seus (re)produtores. O cigano do cinema é o cigano
imaginado, é a personificação de uma ideia permeada de intencionalidades e
subjetividades, que remetem desde um ode as culturas ciganas, denuncias de abusos, à
necessidade da consolidação de outro retórico, diferenciado e diferenciante.
Gatlif provoca-nos a olhar para a história dos ciganos, para o seu passado e
para a história dos massacres e perseguições. O poder dos filmes em construir e
fortalecer imagens e memórias (coletivas e individuais) é objeto de estudo de diversos
pesquisadores ao redor do mundo, e aqui nos cabe afirmar que sem dúvida alguma os
filmes de Gatlif cumprem esse papel, construindo e fortalecendo memórias acerca da
história e culturas ciganas, principalmente pelo fato de que publicações sobre o assunto
tem acesso ainda limitado a um público restrito de pesquisadores. Para, além disso,
Gatlif constrói um mito, no sentido que Rose Hikiji (1998) compreende o filme
ficcional. “Ambos [filmes e mitos] projetam imagens estruturadas do comportamento
humano, da interação social e da natureza do mundo e refletem a vida social, sem ser,
necessariamente, descrições realistas da vida cotidiana.” (HIKIJI, 1998, p. 98)
Pensamos o cinema de Gatlif, tal como Andréa França (2006) pensa o cinema
de resistência: “São filmes que incorporam na sua narrativa uma gama de outras vozes e
imagens, que se perguntam o que é um sujeito hoje, senão aquele que se forma nos
entrelugares, nas fronteiras e na mistura.” (FRANÇA, 2006. p.397).
Gatlif empreende um enorme esforço ao tentar representar os ciganos de forma
“realistas”. A participação do Centre National de La Cinématographie, e o apoio da
L’agence Nationale pour la Cohésion Sociale et l’égalite confirma a preocupação da
equipe de produção e construir elementos que se conectassem com a história, mas que
não correspondem completamente a todo o multiverso cultural dos ciganos daquela
época, obviamente. A categoria “cigano” é construída no filme através das falas, das
roupas, dos modos de sociabilidade e da constante necessidade de se diferenciar, e
categorizar, o outro.
O filme rompe de certa forma com o senso comum, na medida em que mostra
personagens ciganos completamente diferentes da que estamos acostumados a ver em
outras produções cinematográficas. Talvez, esta produção diferenciada resida no fato do
diretor possuir etnia cigana, e não achar representatividade em outras produções
artísticas e políticas.
REFERÊNCIAS
1. Filmes:
LIBERTÉ. Direção De Tony Gatlif. França: Ugc Distribution, 2009. (111 Min.), Son.,
Color. Legendado.
2. Bibliografia:
ANDRADE JÚNIOR, Lourival. Da barraca ao túmulo: Cigana Sebinca Christo e as
construções de uma devoção. 2008. 284 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2008.
BESSA, José Rogério Fontenele (org.). Comunidade cigana de sobral: aspectos
lingüísticos e etnográficos relativos a mobilidade geográfica, natureza e tempo. Sobral:
Uva, 2004.
CHARNEY, Leo & SCHARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e a invenção da vida
moderna. Tradução de Regina Thompson. 2 ed. São Paulo: Cosac &Naify, 2004.
CHINA, José B. de Oliveira. Os ciganos do Brasil – subsídios históricos, etnográficos
e linguísticos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1936.
CORTESÃO, Luiza. & PINTO, Fátima (orgs.). O Povo Cigano: Cidadãos na Sombra –
Processos explícitos e ocultos de exclusão. Porto: Edições Afrontamento, 1995.
COSTA, Manuel Augusto Abrantes da. Ciganos: histórias de vida. Coimbra:
Minervacoimbra, 2006.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: ____. Cinema II: a Imagem-Tempo. São
Paulo: Ed. Brasiliense. 1990.
DORNAS FILHO, João. Os ciganos em Minas Gerais. In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Vol. III. 1948.
FERRARI, Florencia. O mundo passa: uma etnografia dos ciganos Calon e suas
relações com os brasileiros. 2010. 335 f. Tese (Doutorado em Antropologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
FONSECA, Isabel. Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos. São paulo:
companhias das letras. 1996.
FRANCE, Claudine de. Antropologia fílmica. Uma gênese difícil, mas promissora. In:
FRANCE, Claudine. (org.). Do filme etnográfico à antropologia fílmica. Campinas:
Ed. da Unicamp. 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GINSBURG, Faye. “Não necessariamente um filme etnográfico: traçando um futuro
para a antropologia visual.” In: Eckert, Cornélia e Mont-Mór, Patrícia. Imagens em
foco: novas perspectivas em antropologia. Porto Alegre: EdUFRGS.1999. p. 31-54.
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Memória e etnicidade entre os ciganos Calon em
Souza-PB. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
HIKIJI, Rose S. G. Antropólogos vão ao cinema – observações sobre a constituição do
filme como campo. Cadernos de Campo, 7. 1998.
MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas: Papirus, 1989.
MIRANDA, Francielle Felipe Faria de. As representações dos ciganos no cinema
documentário brasileiro. 2011. 139 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) –
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.
MOONEN, Frans. Os Estudos Ciganos No Brasil: 1885-2010. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmestudosciganos2011.pdf.
Acesso em: 10 jun 2015.
______. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil. Recife: 2012
MORAES, Melo Filho. Os ciganos no brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo
horizonte: Itatiaia; São paulo: edusp, 1981.
MOTA, Ático Vilas-Boas da. (Org.) Ciganos: antologia de ensaios. Brasília: Thesaurus,
2004.
PESSUTO, Kelen. O cinema como objeto de pesquisa antropológica: um olhar para o
cinema de Bahman Ghobadi. In: 29° REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA,
29., 2014, Natal. Anais... . Natal: Ufrn, 2014. p. 1 - 13.
PERERIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009.
PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas – os degredados no brasil-
colônia. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
RAPAZOTE, João. Antropologia e documentário: da escrita ao cinema. Disponível
em: <http://doc.ubi.pt>. Acesso em: 20 ago. 2015
ROMÁN, Teresa San. La diferencia inquietante: viejas y nuevas estratégias culturales
de los gitanos. Madrid: Siglo XXI de España, 1997.
TEIXE IRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em minas gerais: uma breve história. Belo
horizonte: Crisálida, 2007
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo:
Paz e Terra, 2010.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2013.
VALE, Lucas Medeiros de Araújo; ANDRADE JUNIOR, Lourival. Ciganos, Imagens
e Identidades: as representações do sujeito cigano às luzes do cinema. In: III Colóquio
Nacional História Cultural e Sensibilidades, 2013, Caicó. IIII Colóquio Nacional
História Cultural e Sensibilidades, 2013.
_____. O Cigano e a Lanterna de Clio: a história do holocausto cigano através do
cinema de Tony Gatlif. In: IV Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades,
2014, Caicó. IV Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades, 2014.
VASCONCELOS, Natasha Castello Branco de. Os “Ciganos” não existem:
representações dos Romà no cinema. 2014. 80 f., il. Monografia (Bacharelado em Artes
Plásticas)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
VISHNEVSKY, Victor. Memórias de um cigano. São Paulo: Duna Dueto, 1999.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GINSBURG, Faye. “Não necessariamente um filme etnográfico: traçando um futuro
para a antropologia visual.” In: Eckert, Cornélia e Mont-Mór, Patrícia. Imagens em
foco: novas perspectivas em antropologia. Porto Alegre: EdUFRGS.1999. p. 31-54.
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. Memória e etnicidade entre os ciganos Calon em
Souza-PB. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
HIKIJI, Rose S. G. Antropólogos vão ao cinema – observações sobre a constituição do
filme como campo. Cadernos de Campo, 7. 1998.
MARTINEZ, Nicole. Os ciganos. Campinas: Papirus, 1989.
MIRANDA, Francielle Felipe Faria de. As representações dos ciganos no cinema
documentário brasileiro. 2011. 139 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) –
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2011.
MOONEN, Frans. Os Estudos Ciganos No Brasil: 1885-2010. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmestudosciganos2011.pdf.
Acesso em: 10 jun 2015.
______. Anticiganismo e políticas ciganas na Europa e no Brasil. Recife: 2012
MORAES, Melo Filho. Os ciganos no brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo
horizonte: Itatiaia; São paulo: edusp, 1981.
MOTA, Ático Vilas-Boas da. (Org.) Ciganos: antologia de ensaios. Brasília: Thesaurus,
2004.
PESSUTO, Kelen. O cinema como objeto de pesquisa antropológica: um olhar para o
cinema de Bahman Ghobadi. In: 29° REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA,
29., 2014, Natal. Anais... . Natal: Ufrn, 2014. p. 1 - 13.
PERERIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009.
PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas – os degredados no brasil-
colônia. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
RAPAZOTE, João. Antropologia e documentário: da escrita ao cinema. Disponível
em: <http://doc.ubi.pt>. Acesso em: 20 ago. 2015
ROMÁN, Teresa San. La diferencia inquietante: viejas y nuevas estratégias culturales
de los gitanos. Madrid: Siglo XXI de España, 1997.
TEIXE IRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em minas gerais: uma breve história. Belo
horizonte: Crisálida, 2007
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo:
Paz e Terra, 2010.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2013.
VALE, Lucas Medeiros de Araújo; ANDRADE JUNIOR, Lourival. Ciganos, Imagens
e Identidades: as representações do sujeito cigano às luzes do cinema. In: III Colóquio
Nacional História Cultural e Sensibilidades, 2013, Caicó. IIII Colóquio Nacional
História Cultural e Sensibilidades, 2013.
_____. O Cigano e a Lanterna de Clio: a história do holocausto cigano através do
cinema de Tony Gatlif. In: IV Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades,
2014, Caicó. IV Colóquio Nacional História Cultural e Sensibilidades, 2014.
VASCONCELOS, Natasha Castello Branco de. Os “Ciganos” não existem:
representações dos Romà no cinema. 2014. 80 f., il. Monografia (Bacharelado em Artes
Plásticas)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
VISHNEVSKY, Victor. Memórias de um cigano. São Paulo: Duna Dueto, 1999.
top related