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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
LUCAS DE JESUS SANTOS
RETORNO FILOLOGIA E HUMANISMO EM EDWARD
W. SAID
CAMPINAS,
2016
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LUCAS DE JESUS SANTOS
RETORNO FILOLOGIA E HUMANISMO EM EDWARD W. SAID
Dissertao de mestrado apresentada ao
Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas para
obteno do ttulo de Mestre em Teoria e
Histria Literria, na rea de
concentrao de Histria e Historiografia
Literria.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Sterzi de Carvalho Jnior
Este exemplar corresponde verso
final da Dissertao defendida pelo
aluno Lucas de Jesus Santos e orientada
pelo Prof. Dr. Eduardo Sterzi de Carvalho Jnior
CAMPINAS,
2016
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Agncia(s) de fomento e n(s) de processo(s): FAPESP, 2014/04757-1; CAPES
Ficha catalogrficaUniversidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da LinguagemCrisllene Queiroz Custdio - CRB 8/8624
Santos, Lucas de Jesus, 1990- Sa59r SanRetorno filologia e humanismo em Edward W. Said / Lucas de Jesus
Santos. Campinas, SP : [s.n.], 2016.
SanOrientador: Eduardo Sterzi de Carvalho Jnior. SanDissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.
San1. Said, Edward W., 1935-2003 - Crtica e interpretao. 2. Filologia
americana. 3. Humanismo na literatura. 4. tica. I. Sterzi, Eduardo,1973-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III.Ttulo.
Informaes para Biblioteca Digital
Ttulo em outro idioma: Return to philology and humanism in Edward W. SaidPalavras-chave em ingls:Said, Edward W., 1935-2003 - Criticism and interpretationAmerican philologyHumanism in literatureEthicsrea de concentrao: Histria e Historiografia LiterriaTitulao: Mestre em Teoria e Histria LiterriaBanca examinadora:Eduardo Sterzi de Carvalho Jnior [Orientador]Arivaldo Sacramento de SouzaAlfredo Cesar Barbosa de MeloData de defesa: 01-12-2016Programa de Ps-Graduao: Teoria e Histria Literria
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)
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BANCA EXAMINADORA:
Eduardo Sterzi de Carvalho Jnior
Arivaldo Sacramento de Souza
Alfredo Cesar Barbosa de Melo
Tiago Guilherme Pinheiro
Alexandre Andr Nodari
IEL/UNICAMP2016
Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo devida acadmica do aluno.
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A todos aqueles que fazem do exlio sua morada.
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AGRADECIMENTOS
Todo agradecimento um desejo. Desejo de que tudo o que foi recebido se
multiplique, amplie e retorne queles que, de qualquer maneira, atravessaram nossa trajetria
que, sim, sempre coletiva, e, portanto, ser marcada sempre em plurais. Agradecimento
tambm abertura, um modo de relao, franca e receptiva, tanto para com os que estiveram e
esto, quanto para aqueles que ainda viro a estar conosco.
Com desejo e abertura, portanto, meu imenso agradecimento a vocs:
Nirlane, minha me. Dinda e Jairo, tios amados. Davi, meu irmo. Jos Mrio, mestre-amigo.
Viviane, meu amor.
Ari, amigo de infinitas horas.
Eduardo, orientador querido e amigo.
Antonio Marcos, pela amizade e por acreditar em mim.
Os professores Jaime Ginzburg e Tiago Guilherme Pinheiro pela interlocuo valorosa.
Meus colegas de ps-graduao, com quem aprendi tanto.
Os amigos que fiz ou que reencontrei em Baro Geraldo, Luana, Jlia, Fbio, Rogrio, Alan,
Franklin.
Todos meus amigos e colegas de graduao na UFBA e do PET-Letras UFBA.
Meus orientadores de graduao, Cssia Lopes e Rodrigo Vieira Marques.
Toda equipe administrativa do IEL, que sempre tratam a ns alunos to bem, sempre to
dispostos a nos auxiliar no que for preciso.
Todos os professores do IEL, pelas provocaes e ensinamentos.
Capes, por financiar parte dessa pesquisa.
Agradeo tambm Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP)
processo n 2014/04757-1 por financi-la e proporcionar acesso a materiais e bibliografias
imprescindveis.
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Que sabes tu seno da geografia
(magra at aos ossos)
do deserto? Aqui todo comeo
e fim de tua viagem
Max Martins
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RESUMO
Esta pesquisa trata do humanismo e da proposta de retorno filologia de Edward W. Said.
Segmentamos a pesquisa em trs etapas: primeiro, a abordagem da noo saidiana de
Mundanidade, segundo a qual textos, autores, instituies seculares fazem parte de uma esfera
mundana, que produz e constituda atravs das expresses textuais humanas. Para traar os
contornos do conceito, investimos em uma triangulao entre o intelectual palestino-
americano, Giambattista Vico e Erich Auerbach, argumentando que eles formam como que
um campo mundano de reflexo, possibilitando Said enderear os problemas e apontar
alternativas para seu tratamento da Filologia e do Humanismo. A Mundanidade funciona, para
Said, como uma espcie de ontologia do mundo secular e, sobretudo, como a condio
decisiva para a ao tica. Em um segundo momento, abordamos mais especificamente o
tema de Filologia em Said. A partir da crtica de concepes racistas e religiosas da Filologia
e de sua influncia na constituio dos Estudos Literrios, argumentamos que Said v a
Filologia como uma tica de leitura, uma forma de interveno na arena secular da
textualidade humana. Nesse sentido, propomos a existncia de duas dimenses ticas
relacionadas Filologia, uma tica oposicional e uma tica possibilista: a primeira diz
respeito ao vetor de resistncia que envolve toda interpretaao; a segunda se refere
capacidade da leitura de constuir novas relaes intertextuais, interinstitucionais e polticas,
sem apelar para a fixao de mtodos ou formas reproduzveis de interpretao. Em terceiro
lugar, nos detemos sobre o tema do Humanismo. Abordamos o humanismo em perspectiva
histrica, acentuando seu surgimento simultneo empresa colonialista na Europa,
demonstrando o compartilhamento de pressupostos onto-epistemolgicos entre Humanismo e
Colonialismo, e como ambos sistemas de pensamento forjaram uma imagem fixa do humano
universal. Em seguida, tratamos da crtica de Frantz Fanon a esse entrelaamento, devido ao
fato de seus argumentos haverem sido de suma importncia para a viso renovada de Said
sobre o Humanismo. Ao mostrar essas discusses entorno do tema, discorremos sobre o modo
como a imagem universal de humano foi herdada pelo sistema educacional superior
americano, e como as discusses sobre o currculo das Humanidades foram marcadas por
injunes de pureza da figura humana. Finalmente, argumentamos que o Humanismo
advogado por Said , ao contrrio do anterior, aberto s transformaes sociais, culturais,
polticas e sensvel s demandas dos povos e populaes que comearam cada vez mais
fortemente a exigir seus direitos e a marcar sua presena no cenrio poltico-cultural. Nesse
sentido, defendemos que o Humanismo de Said tem um sentido cosmopolita, mas que no se
basea nas ideias de pertencimento e fixidez requerida pelo cosmopolitismo iluminista. O
humanismo cosmopolita de Said exlico e em constante deslocamento, no permitindo
qualquer forma de estabilidade limitadora ou sntese apaziguadora. Por fim, conclumos por
propor um alargamento das possibilidades do Humanismo e da Filologia na
contemporaneidade, por faz-los encarar o problema do Antropoceno e das mudanas
climticas terrestres. Acreditamos que, na esteira do que Said propunha para qualquer forma
de expresso acadmica, imprescindvel pens-los sob as novas configuraes de
humanidade e mundo que advm contemporaneamente.
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ABSTRACT
This research deals with humanism and the proposal of return to Philology of Edward W.
Said. We chose to segment the research in three stages: first, the approach of the saidian
notion of Worldliness, according to which texts, authors, secular institutions are part of a
mundane sphere, which produces and is made through human textual expressions. In order to
trace the contours of the concept, it is invested in a triangulation between the Palestinian-
American intellectual, Giambattista Vico and Erich Auerbach, arguing that they form a
mundanelike field of reflection, enabling Said to address the problems and alternative
solutions for his treatment of Philology and Humanism. The Worldliness works, for Said, as a
kind of ontology of the secular world and above all as the decisive condition for ethical
action. In a second stage, we address more specifically the issue of Philology. Starting from
the critique of racist and religious conceptions of Philology and its influence on the formation
of Literary Studies, we argue that Said saw Philology as an ethics of reading, a form of
intervention in the secular arena of human textuality. In this sense, we propose the existence
of two ethical dimensions related to Philology: an oppositional ethics and an enabling ethics:
the first one concerns a resistance vector involving all interpretation; the second refers to the
ability of reading to build new intertextual, inter-institutional and political relations, without
resorting to the methods of fixing or reproducible forms of interpretation. Third, it is attended
the theme of Humanism. Humanism is approached in a historical perspective, accentuating its
simultaneous emergence with the colonialist enterprise of Europe, demonstrating the sharing
of onto-epistemological assumptions between Humanism and Colonialism, and how both
systems of thought forged a fixed image of an universal human. Then it is dealt with the
critique of Frantz Fanon to this intertwining, due to the fact that his arguments have been of
substantial importance to the renewed vision of Said on Humanism. By approaching these
discussions about this issue, it is discussed how the universal human image was inherited by
the American higher education system, and how the discussions on the humanities curriculum
were marked by purity injunctions of the human figure. Finally, it is argued that the
Humanism pleaded by Said is, unlike the previous one, open to social, cultural, and political
changings and sensitive to the demands of the peoples and populations that began
increasingly strongly to demand their rights and to mark their presence in the political and
cultural scene. In this sense, we argue that Said's Humanism has a cosmopolitan sense, but not
on a base of ideas of belonging and fixity required by illuminist cosmopolitanism. The
cosmopolitan humanism of Said is exilic and in constant shifting, not allowing any form of
limiting stability or placating synthesis. Finally, we conclude by proposing an enlargement of
the possibilities of Humanism and Philology in contemporaneity, by making them face the
problem of the Anthropocene and terrestrial climate change. We believe that, as Said
proposed to any form of academic expression, it is essential to think of them under the new
settings of humanity and worldness that come contemporaneously.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
Todas as referncias s obras de Edward W. Said sero feitas segundo as abreviaturas
indicadas abaixo entre parntesis.
Joseph Conrad and the Fiction of Authobiography (JCA)
Beginnings: Intention & Method (BG)
Orientalismo (OR)
A Questo da Palestina (QP)
Covering Islam: How the Media and the Experts Determine How We See the Rest of the
World (CO)
The World, the Text, and the Critic (WTC)
After the Last Sky (ALS)
Blaming The Victims (BTV)
Cultura e Imperialismo (CI)
A Pena e a Espada (PE)
The Politics of Dispossession (PDP)
Representaes do Intelectual (RI)
Peace and its Discontents (PDT)
Fora de Lugar (FL)
Reflexes sobre o Exlio e outros ensaios (RE)
Reflections on Exile (REE)
The End of the Process of Peace (EPP)
Power, Politics, and Culture (PPC)
Cultura e Resistncia (CR)
Freud e os No Europeus (FNE)
Humanismo e Crtica Democrtica (HCD)
From Oslo to Iraq and the Road Map (FRM)
Paralelos e Paradoxos (PPA)
Estilo Tardio (ET)
Todas as demais obras citadas tero sua referncia completa disponibilizada em nota
de rodap, para facilitar as consultas por parte do leitor. Conforme sua contnua citao,
aparecero, tambm em rodap, referenciadas segundo o sistema autor-data. Todas as citaes
de obras em lngua estrangeira so por ns traduzidas, salvo indicao ao contrrio.
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SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 12
1. MUNDANIDADE .......................................................................................................... 16
1.1 OS ESTUDOS LITERRIOS E A PERDA DO OBJETO ........................................... 16
1.2 GIAMBATTISTA VICO: EPISTEMOLOGIA E ONTOLOGIA DO MUNDO
TERRENO ........................................................................................................................... 21
1.2.1 Criar o Mundo .......................................................................................................... 22
1.2.2 Conhecer o Mundo ................................................................................................... 27
1.3 ERICH AUERBACH: CRTICA DO MUNDO TERRENO ........................................ 32
1.3.1 Histria e Mtodo ..................................................................................................... 33
1.3.2 Irdischen Welt e Weltphilolgie .................................................................................. 39
1.4 EDWARD SAID: MUNDANIDADE, HUMANISMO E FILOLOGIA ...................... 47
1.4.1 O mundo visto como temporalidade: uma hermenutica te(le)olgica ............... 47
1.4.2 O mundo visto como espao mundano: interpretao secular ............................. 53
1.4.3 O mundo, o texto e o crtico ..................................................................................... 59
2. CRTICA SECULAR .................................................................................................... 64
2.1 EDWARD SAID E A FILOLOGIA .............................................................................. 64
2.1.1 Filologia, Crtica Textual e Exegese Sagrada ......................................................... 65
2.1.2 Laboratrio Filolgico .............................................................................................. 71
2.1.3 Crtica Religiosa ........................................................................................................ 80
2.2 VINCULANDO A FILOLOGIA INTERPRETAO SECULAR ......................... 84
2.2.1 tica e Crtica: Leitura Filolgica e Phronesis ...................................................... 85
2.2.2 Ijtihad e a Interpretao Secular da Filologia ........................................................ 94
2.3 A FILOLOGIA E SEU RETORNO .............................................................................. 104
2.3.1 Uma nova agenda para a Filologia .......................................................................... 105
3. COSMOPOLTICA ...................................................................................................... 112
3.1 A ESFERA DO HUMANISMO.................................................................................... 112
3.1.1 Os limites do humanismo: imperialismo, colonialismo e o universal humano ... 114
3.1.2 Humanismo e Educao: as Humanidades e a disputa pelo sentido do humano122
3.2 COSMOPOLITISMO: UM "HUMANISMO MEDIDA DO MUNDO" .................. 130
4. CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 149
REFERNCIAS ................................................................................................................ 155
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12
INTRODUO
No incomum a observao, por parte de comentadores e estudiosos, da dificuldade
de apreenso da obra e vida de Edward Said. A trajetria anfbia entre Ocidente e Oriente; a
multiplicidade de temas abordados em seus livros, artigos e palestras; o dilogo com figuras
das mais diversas reas de saber, como antropologia, histria, sociologia e msica, tornaram
tanto o tipo de intelectual quanto sua produo um "fenmeno difcil"1 para qualquer tentativa
de categorizao decisiva ou uniformizao sistemtica. Por razo das diferentes posies que
adotava, Said foi atacado, por exemplo, de ser marxista e anti-marxista, de ser extremamente
poltico ou insuficientemente poltico, de promover a destruio ou a defensa do cnone
literrio ocidental2. Said e sua obra se tornam, ento, para qualquer empreendimento
interpretativo, muito mais um ambiente de risco do que um objeto estvel. Ler Said lidar
com as tenses prprias de sua vida e de suas intervenes, de suas leituras e debates, sejam
na esfera pblica poltica ou no meio intelectual acadmico.
Por esses motivos, este estudo funciona como uma espcie de mapeamento, uma
forma de referenciao multidimensional dos conceitos aqui trabalhados. Nesse sentido, o
estudo est organizado de modo a apresentar, por um lado, as coordenadas que localizam as
ideias de Said a respeito da Filologia e do Humanismo. Com isso, pretende-se oferecer uma
interpretao imanente dos temas aqui abordados, lidando com seus interlocutores
privilegiados e apresentando o desenvolvimento de seus conceitos ao longo de sua obra. Por
outro lado, esses dados so relacionados aos contextos prximos e amplos de emergncia do
pensamento de Said a respeito da Filologia e do Humanismo e do debate histrico a respeito
dessas noes.
Por exemplo, o primeiro captulo pretende apresentar o conceito de Mundanidade
saidiano, pela triangulao entre Auerbach, Vico e Said. No se trata de desenhar uma
continuidade entre os autores, de argumentar em favor de relaes simples de influncia entre
eles, mas de apontar a formao de uma espcie de campo mundano de reflexo, que
proporcionou o compartilhamento de certos pressupostos e que possibilitou a Said enderear a
questo da agncia humana no mundo social, poltico e cultural das instituies humanas, em
um momento da histria da reflexo acadmica e terica americana em que o iderio de
carter (ps-)estruturalista era predominante. Argumentamos que a noo de Mundanidade
imprescindvel para entender a recusa de Said de determinadas teorias filolgicas, sua crtica
1 BENJAMIN, Walter. Understanding Brecht. Traduo de Anna Bostock. Londres/Nova York: Verso, 1998.
p. 27. 2 Cf. WILLIAMS, Patrick. Introduction. In: ______ (Ed.). Edward Said. Sage Masters of Modern Social
Thought. v. 1. Londres/Thousand Oaks/Nova Delhi: Sage Publications, 2001. p. IX-XXVIII.
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13
s formas engessadas de compreenso do humanismo e, sobretudo, a tarefa do crtico, do
intelectual em um contexto poltico e social cada vez mais marcado pelo recrudescimento de
paixes autocrticas, fundamentalismos de todo tipo e discursos beligerantes. A Mundanidade
funciona, para Said, como uma espcie de ontologia do mundo secular e, sobretudo, como a
condio decisiva para a ao tica.
E justamente o tema da tica que perpassa o segundo captulo, no qual abordamos
mais detidamente a proposta de retorno Filologia de Said. Nessa seo do estudo,
mostramos como o campo filolgico esteve atrelado s teorias racistas do sculo XIX no
somente do ponto de vista de pressupostos arbitrrios e concluses esprias a respeito de
hierarquia das raas, excepcionalismo etnocntrico e assim por diante. Tambm do ponto de
vista dos prprios procedimentos tcnicos da disciplina, frequentemente entendidos como
neutros, possvel perceber a presena de relaes esprias com o imaginrio racista do
perodo. Alm disso, apesar do movimento de secularizao aprofundado, no sculo anterior,
pelos iluministas e pelas prticas cientficas, essas discusses permaneciam ligadas a debates
de carter eminentemente religioso, dotando uma certa poro da humanidade de uma funo
providencial de conquista e civilizao dos demais povos. A partir disso, argumentamos que
Said prope um retorno a um outro tipo de Filologia que, na esteira das comunidades
jurisprudenciais e hermenuticas da Ijtihad islmica, encara o trabalho sobre a linguagem e as
instituies criadas pelos humanos como uma forma de tica possibilista e oposicional.
Assim, a Filologia, por ser um saber eminentemente mundano, contribui para um contnuo
esforo de secularizao do espao da existncia humana: o que significa a crtica e a recusa
de qualquer forma de colonialismo, imperialismo ou dominao sobrenatural. Finalmente,
abordamos outras retomadas da Filologia contemporaneamente, indicando uma nova agenda
para a Filologia e suas relaes com os Estudos Literrios.
No terceiro captulo o tema do Humanismo abordado mais detidamente. Apesar da
histria e dos percursos do termo serem, como se sabe, bastante extensos, o debate saidiano
em torno do assunto se insere muito pontualmente no contexto ps- e anticolonialista do
sculo XX, principalmente a partir do trabalho de Frantz Fanon. Assim, abordamos
historicamente o humanismo em seus pontos de conexo com a empresa colonialista: ambos
compartilham o mesmo horizonte de surgimento, partilhando, da mesma forma, o mesmo
conjunto de pressupostos epistemolgicos, polticos, sociais, culturais e assim por diante. Ao
produzir a figura do universal humano, o sculo XVIII tambm fomentou o debate acerca da
superioridade europeia e caucasiana e seu papel de guia e vanguarda para o progresso do
gnero humano. Fanon considerado por Said como a figura central no desmantelamento
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14
desse imaginrio etnocntrico que orientou tantas formas de dominao institucionais,
culturais, epistemolgicas e mesmo de ordem existencial. Uma das dimenses que abordamos
justamente o papel da Educao e o lugar da Universidade na reproduo desse modelo
exclusivista de humanidade, principalmente no contexto americano. A disputa pelo currculo
dos Colleges se deu desde a fundao da Universidade de Harvard, em 1636, e se intensificou
sobretudo no incio do sculo XX, no perodo logo posterior a Dilthey e outros terem refletido
sobre o estatuto epistemolgico das cincias do homem.
Retomando esses debates, no contexto da grande penetrao que o estruturalismo e
ps-estruturalismo tiveram nos Estados Unidos entre as dcadas de 1960-1980, houve um
ressurgimento de um discurso conversador e tradicionalista tanto no mbito poltico-
institucional como no acadmico. Esse foi o cenrio de escrita de Cultura e Imperialismo, por
exemplo, um das primeiras ocasies em que Said reclamava explicitamente por uma renovado
paradigma para o humanismo. Apontamos esse novo paradigma como a mudana da figura do
cidado para a do refugiado. O humanismo saidiano no estaria empenhado em construir
pertencimentos, mas em promover o constante deslocamento e experimentao das vrias
formas de apresentao do humano nas diversas culturas. Nesse sentido, argumentamos que o
humanismo de Said tem um sentido cosmopolita, mas em um sentido inteiramente deslocado
da tradio kantiana do iluminismo. Trata-se de um cosmopolitismo onde no se advoga por
uma figura representativa definitiva do humano e se coloca em coextenso ao mundo secular
viquiano.
Por fim, conclumos por inserir os debates sobre Filologia e Humanismo dentro do
contexto contemporneo das mudanas climticas e do Antropoceno que compreendemos ser
a maior questo que a humanidade ter de enfrentar, pelo menos durante as prximas dcadas.
Conclumos dessa forma por entender que o nimo das consideraes de Said sobre os temas
aqui tratados sempre veio de sua compreenso de que qualquer manifestao acadmica
sempre poltica e imersa no seu prprio contexto histrico de emergncia. Se qualquer
empreendimento interpretativo de sua obra tem de estar consciente de que ter de lidar com
suas tenses, interlocues e paradoxos prprios, nosso estudo no pode se abster da tarefa de
tambm encarar nosso horizonte de escrita, ou ao menos tentar enderear seus problemas.
Expoente dos estudos ps-coloniais, Edward Said tornou-se amplamente conhecido
sobretudo aps a publicao de Orientalismo, em 1978, onde apontava, entre outras coisas, a
relao de obras literrias ocidentais com a criao da imagem de um determinado tipo de
Oriente til a interesses coloniais e imperialistas do Ocidente. Alm disso, suas posies
firmes sobre o conflito entre Israel e a Palestina alaram-no condio de intelectual pblico
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15
e ativista, posicionando-o na linha de frente em debates polticos sobre temas incluem
identidade cultural, poltica externa dos Estados-nao, e interpretaes fundamentalistas
religiosas. Seu empenho em participar do debate pblico poltico mesmo sendo um acadmico
cuja rea de atuao passava pelo ensino de msica, literatura e cultura ocidentais, custou-lhe
ameaas de morte, preconceitos diversos e acusaes de todo o tipo. Ainda assim, ao invs de
se confinar nos muros da universidade, Said adotava uma postura combativa sobre problemas
considerados comummente como extra-acadmicos, tornando-o, conforme tima observao
de Radhakrishnan, "academicamente poltico [e] politicamente acadmico"3.
justamente esse trnsito saidiano entre espaos acadmico e mundano que, em nossa
viso, permeia toda sua obra. Para alm disso, no estudo da obra de Said, na leitura de seus
textos, conferncias, estudos ou artigos de opinio, preciso ter em mente que as relaes
entre obra e mundo so constitutivas do discurso crtico e que, portanto, a nossa leitura uma
dobra cosmopoltica terrena. Dobra, pois se trata de uma curvatura no espao da linguagem,
que conecta vrios fios e feixes de fora em um momento; cosmopoltica, porque participa da
arena internacional de disputa pelos sentidos dos textos; terrena, porque as foras que a
movem so construdas historicamente por seres humanos conexos com suas formas materiais
de existncia o que inclui, no limite, a prpria Terra.
3 RADHAKRISHNAN, Rajagopalan. A Said dictionary. Hoboken, N.J.: John Wiley & Sons Inc., 2012. p. xii.
-
16
1. MUNDANIDADE
O homem s conhece a si mesmo na medida em que
conhece o mundo que ele somente apreende em si, e a si mesmo nele.
Cada novo objeto bem observado abre um novo rgo em ns.
J. W. Goethe
1.1 OS ESTUDOS LITERRIOS E A "PERDA DO OBJETO"
Em artigos publicados em New Prospects in LiteraryResearch4, a convite da
Academia Real de Artes e Cincia da Holanda, Geoffrey Galt Harpham e Ansgar Nnning
fizaram um relato do debate contemporneo em seus pases poca EUA e Alemanha
respectivamente sobre o futuro das pesquisas em literatura. A proposta da Academia
holandesa era de reunir expoentes da pesquisa em literatura para tratar da virada terica
ocorrida recentemente. O que se verificava era uma mudana, em escala global, do prprio
objeto de estudo, formulada como perda do objeto. Os movimentos tericos, nomeadamente
os Estudos Culturais e Ps-coloniais, tinham passado a alargar o raio de atuao do crtico
para artefatos at ento considerados perifricos e estrangeiros ao campo. Essa abertura
resultara em um progressivo questionamento e distanciamento da literariedade dos textos,
elemento central caracterstico dos artefatos de que se ocupam (ou ocupavam) os estudos
literrios.
Essa a matria de discusso de Ansgar Nnning em seu artigo "Literary studies and
as into cultural studies: Gauging a complex relation and suggestions for the future directions
of research" [Estudos Literrios e como em Estudos Culturais: Medindo uma relao
complexa e sugestes para rumos futuros de pesquisa]. Partindo da existncia de uma crise
das filologias nacionais, cuja tarefa premente era de cevar o esprito das naes atravs de
uma arqueologia das lnguas nacionais, Nnning aponta para o questionamento da funo e
natureza dos objetos literrios. Por um lado, certos arranjos tericos, nos quais a filologia teve
participao ativa, pressupem que tais objetos esto dados no mundo e que existem
independentemente da ao do observador. Por outro lado, assumem que a tarefa daqueles
envolvidos com tais objetos eminentemente hermenutica, ou seja, a nica possibilidade
ou a evidente ao que se apresenta empreender esforos de interpretao desses objetos.
Para Nnning, o debate estaria sendo feito sob falsas premissas, uma vez que, primeiro, a
constituio dos objetos verbais formulada "por meio de diferenciaes tericas e
4 HARPHAM, Geoffrey G.; NNNING, Ansgar. New Prospectives in Literary Research. Amsterdam: Royal
Netherlands Academy of Arts and Sciences, 2005.
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17
terminolgicas"5, segundo parmetros prvios que definem o campo de observao
fenomnico e os problemas de que se encarregam. A grade de problemas e o espectro de
locuo so responsveis por produzir previamente a fauna dos objetos literrios.
O fato de que essa observao aparea em um texto com a incumbncia de fazer um
balano da situao da pesquisa sobre literatura dirigida para a comunidade dos estudiosos da
linguagem, historicamente cientes da qualidade arbitrria6 de seu objeto, antes de indicar uma
evidncia suprflua, sintoma da instabilidade de determinada herana terica, a saber: a
compreenso de literatura que toma seus artefatos como entes autnomos em relao ao
social, poltica, em suma, ao mundo que os circunscreve. justamente a essa linha terica
que se opem os Estudos Culturais e Ps-coloniais, pois, advinda da desvinculao da
reflexo esttica das outras dimenses do pensamento, germinada por Alexander Baumgartem
(1714-1762) e propalada por Immanuel Kant (1724-1804), promoveu sobretudo a recluso
das obras artsticas na participao da confeco poltica do mundo.
Em uma resenha ao livro de Peter Brger, Teoria da Vanguarda7, Antonio Ccero
8
aponta para uma suposta confuso provocada pelos crticos da autonomia da arte, a saber,
entre, de um lado, esteticismo e formalismo e, de outro, autonomia. Segundo Ccero, na
esteira da formulao kantiana das analticas do belo, a ideia da autonomia da arte diz respeito
impossibilidade desta de ser til a quaisquer interesses. O artefato artstico autossuficiente
e independente no porque no dialogue com o mundo, mas porque no tem "nenhuma funo
prtica, moral ou cognitiva"9. A arte, que no serve para nada e a ningum, criaria um campo
a parte de pensamento, produziria toda uma outra fauna prpria de objetos, que imporiam suas
questes especficas, formando um regime distinto de existncia. Ao contrrio, portanto, do
que pensariam os crticos da autonomia, no o caso de afirmar que a arte no se relaciona
com o real, mas de perceber que a arte produziria um deslocamento da realidade, tornando-a
matria artstica equipolente aos demais compostos dos materiais artsticos. Do contrrio, a
arte estaria merc de uma razo instrumental, empregada em atividades determinadas pela
ideologia hegemnica.
5 HARPHAM; NNNING, 2005, p. 30. "by means of theoretical and terminological differentiations".
6 preciso afirmar que a arbitrariedade do signo no implica em um afastamento de sua relao com o mundo.
Ao contrrio, diz da multiplicidade de referenciao que pode haver no campo interno linguagem. Como
lembra Antoine Compagnon, Saussure, no Curso de Lingustica Geral, afirma que a arbitrariedade do signo se
d entre sua face acstica e a face semntica, e no entre o signo e o mundo. Cf. COMPAGNON, Antoine. O
Demnio da Teoria. Traduo de Cleonice Paes Barreto Mouro e Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte:
UFMG, 2001. p. 122-127. 7 BRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
8 CCERO, Antonio. A Autonomia da Arte. Folha de So Paulo, 11 de dezembro de 2008. Disponvel em
. Acesso em 24 abril 2016. 9 CCERO, 2008.
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18
Um dado, no entanto, escapa ao argumento de Antonio Ccero. Peter Brger pretende
fazer um corte epistemolgico sobre a compreenso da espacialidade da arte. Ao invs de
compreender a arte dentro de um j-dado espao autnomo e tentar inverter seu telos para
fora, Brger recoloca a questo da autonomia da arte, a "instrumentalidade normativa"10
que
esta tem na sociedade burguesa , enquanto instituio. Ora, o desenho desse problema no
parte do pressuposto, apontado acima, de que os objetos de linguagem so prvios sua
(cons)cincia. Afirma, em contrapartida, que a relao entre arte e mundo se deu no seu
processo de institucionalizao, a partir do sculo XVIII, em termos de autonomia. O que nos
leva a concluir, portanto, que o fato da arte ser definida nesses termos j aponta para sua
instrumentalizao: o interesse de que determinada valncia do logos seja o lugar por
excelncia de produo humana singular de objetos, que esses objetos tm tal e tal natureza e
comportamento, que certas coisas possam ou no serem ditas sobre eles por causa de sua
natureza, e assim por diante. Mais uma vez, note-se, a pertinncia da observao de Nnning
(2005) sobre a problemtica necessariamente epistemolgica imposta pelos objetos de
linguagem.
Esses movimentos tericos, exemplificados aqui pelos Estudos Culturais e Ps-
coloniais, mas que remontam Literatura Comparada, agem precisamente nessa dimenso.
Sua entrada na cena terica remete a uma reconfigurao epistemolgica dos paradigmas
explicativos tradicionais, uma irrupo no tecido das chamadas master narratives. Importante
salientar que no se trata de uma nova poca do pensamento, nem de uma nova fase linear da
reflexo, ou uma consequncia de empreitadas tericas prvias. O que est em jogo uma
invaso de minorias e excludos os 'fora-de-lugar', mas que vivem sempre nas fronteiras
na disputa pelos sentidos de histria, identidade, poltica, e assim por diante. Retomando uma
expresso de Heidegger, Homi Bhabha, em uma feliz formulao do sentido do "ps" dos
termos 'ps-colonial', 'ps-moderno', etc., afirma ser a fronteira "o lugar [se que se pode
categoriz-la assim] a partir do qual algo comea a se fazer presente"11
.
Corpos estranhos, ento, passam a se fazer presentes na atmosfera pblica. Alargam
seu tecido, esticam a malha grossa de seu revestimento; criam salincias epistemolgicas,
anunciam a crise de sua costura. Afirmao da existncia, transformao das visibilidades:
disputa pelo mundo, por um mundo. No toa, Antonio Ccero termina sua resenha do livro
de Brger afirmando que "a luta contra a autonomia da arte" "em suma, a luta pelo
10
BRGER, 1993, p. 19. 11
BHABHA, Homi K. O Local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. p. 24.
-
19
empobrecimento do mundo"12
. Que ele tenha formulado o problema em termos contbeis j
anuncia a qu serve. E dentro dessa contabilidade dos objetos artsticos, mais
especificamente da literatura e sua planta, os estudos literrios, que a ideia de perda do objeto
pelos estudos literrios foi formulada. Irnica formulao, portanto, pois se tratava de uma
abertura, tanto de conceitos como, por exemplo, o conceito de texto quanto de objetos. A
'perda do objeto', ento, nada alm da dilatao ou mesmo efuso epistemolgica que os
estudos culturais e ps-coloniais colocaram em pauta. A despeito das relaes nostlgicas
para com objetos e mundos perdidos, o que ocorre efetivamente um retorno do objeto sob
mltiplas formas e em vrias direes. Um 'bom retorno', para nos referirmos ao nostos
grego, que, no entanto, vem disfarado, sob novas aparncias, assim como Ulisses ao retornar
a taca. Neste captulo, cuidamos do que pensamos ser uma das noes mais importantes da
obra de Said: o conceito de mundanidade. A partir dele, acredito poder contextualizar melhor,
pensando dentro da obra do prprio Said, a proposta de Retorno Filologia e do Humanismo.
Um dos motivos para a escolha deste conceito talvez o mais forte posto em dois
artigos de Geoffrey Galt Harpham: o de abertura das New Prospects in Literary Research
chamado "Returning to philology: The past and future of literary study"13
e "Roots, Races,
and the Return to Philology", publicado no peridico Representations, da Universidade de
Califrnia. De maneira mais evidente, Harpham coloca o problema: "os estudos literrios [...]
parecem ter perdido de vista seu objeto"14
. Segundo a apresentao de Harpham, a
constatao da perda do objeto pelos estudos literrios teria feito Said afirmar que "o discurso
da crtica estava cheio de pronunciamentos empolados sobre o que Said chamou de 'imensas
estruturas de poder ou [...] estruturas vagamente teraputicas de redeno salutar'"15
. Dada
essa obnubilao do discurso crtico, Harpham deduz que a sada encontrada por Said e
anteriormente por Paul de Man16
, que analisarei posteriormente foi um retorno filologia,
disciplina historicamente envolvida na reconstruo e autenticao de objetos textuais. Para
que o objeto volte, retorne-se sua lente original. Harpham faz, portanto, o retorno filologia
parecer ser um movimento reacionrio e conservador, cuja funo salvar a crtica de
12
CCERO, Antonio. A Autonomia da Arte. Folha de So Paulo, 11 de dezembro de 2008. Disponvel em
. Acesso em 24 abril 2016. 13
HARPHAM, Geoffrey G.; NNNING, Ansgar. New Prospectives in Literary Research. Amsterdam: Royal
Netherlands Academy of Arts and Sciences, 2005. 14
HARPHAM, Geoffrey G. Roots, Races and the Return to Philology. Representations, v. 106, n. 1, p. 34-62,
2009. p. 34. "literary studies [...] seem to have lost sight of the object". 15
HARPHAM, 2009, p. 34. A traduo da citao apud do texto de Said de Rosaura Eichenberg. "the
discourse of criticism was filled with windy pronouncements about what Said called 'vast structures of power or
[...] vaguely therapeutic structures of salutary redemption'" 16
DE MAN, Paul. The resistance to theory. Minneapolis: Univ. of Minnesota, 1986.
-
20
pronunciamentos nublosos sobre estruturas dispersas de poder ou recomendaes displicentes
de edificao do carter.
Opomo-nos diametralmente interpretao de Harpham por alguns motivos: primeiro,
a filologia, segundo Said no est envolvida com qualquer "forma de erudio reacionria",
nem se qualifica como "disciplina obsoleta de antiqurio"17
, cuja tarefa seja velar pelo
patrimnio cultural da humanidade. Para Said, as palavras e a linguagem so "parte formativa
e integrante da prpria realidade" e no "marcadores e significantes passivos que representam
despretensiosamente uma realidade mais elevada"18
. A filologia definida uma das
mltiplas definies dadas por Said como uma forma de leitura ativa, que "implica adentrar
no processo da linguagem j em funcionamento nas palavras e fazer com que revele o que
pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido em qualquer texto"19
.
Trata-se, ento e esse o segundo motivo de nossa discordncia com Harpham , de
alargar o campo de discusso, de promover a construo de campos de coexistncia em
oposio separao. Se a filologia esteve historicamente atrelada a intenes de "controle e
dominao externa" imperialistas, cujos objetivos eram de determinar o texto, o sentido, a
verdade, um retorno que tenha em perspectiva os trnsitos migratrios internacionais, as
interferncias cada vez mais evidentes das culturas entre si, gerando o problema da
convivncia entre modos de existncia diversos, no pode deixar de produzir uma noo de
filologia dentro de um projeto humanista de alargamento de horizontes, que veja a
multiplicidade das expresses humanas menos em termos de separaes identitrias
beligerantes do que de multiplicidade sinfnica de vozes. Se para James Clifford o trabalho de
Said (1990) em Orientalismo levantou questionamentos importantes sobre os procedimentos
empregados na representao de povos estrangeiros aos europeus ocidentais, "sem propor, de
modo definido e sistemtico, novos mtodos ou epistemologias"20
, o que se percebe que o
prprio movimento de retorno filologia, talvez, seja o pano de fundo epistemolgico da
prxis crtica saidiana.
Essas consideraes sobre a relao entre linguagem, filologia e prtica humanista,
levam, finalmente, a repensar a suposio da perda do objeto pelos estudos literrios. Com
efeito, se Said entende as palavras como partes integrantes da constituio da realidade, as
ligaes feitas entre objetos literrios e relaes de poder, condies de produo da escrita,
17
HCD, p. 80-81. 18
HCD, p. 82-83. 19
HCD, p. 82. 20
CLIFFORD, James. A experiencia etnografica: antropologia e literatura no sculo XX. 3. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Editora da UFRJ, 2008. p. 19.
-
21
posies ideolgicas autorias, e assim por diante, no so, necessariamente, compreendidas
como afastamento do campo adequado de reflexo. Ao contrrio, pode indicar um
entendimento mais complexo do que sejam as relaes entre mundo e obra, que Said
desenvolve em seus trabalhos e que, defendemos, condensado, posteriormente, em suas
discusses sobre Filologia e Humanismo. E justamente o conceito de Mundanidade que
produz o espao necessrio para se poder pensar a relao dos corpos literrios e o mundo. Ao
mesmo tempo, esse conceito o nome da relao prpria que as obras estabelecem com o
mundo. Em outras palavras, os textos com que lidam os estudiosos profissionais da cultura
os intelectuais, acadmicos, humanistas, crticos esto contaminados e embebidos das
relaes materiais de onde foram concebidos, circulados, lidos, que interpem certas
resistncias s foras de interpretao.
Como a ideia de Mundanidade transversal obra de Said, perpassando vrios de seus
escritos, de Beginnings (1985) a Humanismo e Crtica Democrtica (2004), necessrio
reconstruir, a partir de suas vrias obras, o conceito. Para investig-lo, recorro a duas figuras
da filologia e filosofia ocidentais, que consideramos, seguindo o prprio Said, como
fundamentais para a formulao e entendimento desse conceito: o filsofo e fillogo
napolitano Giambattista Vico (1668-1744) e o fillogo alemo Erich Auerbach (1892-1957).
No investiremos numa exegese exaustiva das teorias e conceitos desses autores, optaremos
por produzir uma discusso das interpretaes e usos que Said fez de suas ideias, o que no
significa, claro, que no sero minimamente apresentadas levando em conta sua fortuna
crtica.
1.2 GIAMBATTISTA VICO: EPISTEMOLOGIA E ONTOLOGIA DO MUNDO
TERRENO
A relao entre obra literria e mundo, para Said, constitutiva. No existe texto
literrio sem uma circunscrio mundana, que no mantenha relaes com seu contexto de
criao que institui as possibilidades e funes do texto. Texto e mundo fazem parte de uma
mesma esfera, cuja matria so as representaes formuladas sobre os atores sociais,
costumes, crenas, e assim por diante. O mundo a carne do texto, embora o texto no seja
mero reflexo do mundo. O texto , ao mesmo tempo, espelho e lmpada para falar como M.
H. Abrams21
, de um modo esquemtico , reverberando e produzindo saber sobre o mundo.
21
ABRAMS, Meyer H. O espelho e a lmpada: teoria romntica e tradio crtica. Traduo de Alzira Vieira
Allegro. So Paulo: UNESP, 2010.
-
22
Assim, h uma posicionalidade das produes literrias que as situa em relao a um passado
e um presente e, sobretudo, a um futuro, que atribui sentido e direo s aes humanas.
Nesse sentido, as representaes literrias no so apenas retratos passivos das relaes
sociais, mas compem e so compostas por estas, estando investidas nas lutas sociais e
polticas que, muitas vezes, envolvem projetos de dominao e subjugao da diferena. As
obras literrias, alm de serem constitudas pelo e no mundo, constroem-no e ajudam a
conformar e distribuir os lugares de pertena e circulao de corpos e ideias.
Essa concepo saidiana do liame entre texto e mundo devedora de um princpio
formulado por um filsofo napolitano, que viveu entre os sculos XVII e XVIII, cuja
fecundidade pavimentou um novo espao para reflexo sobre a humanidade e o mundo,
proporcionando toda a constituio de um campo de pensamento. Trata-se do princpio de que
os homens fazem o mundo civil em que vivem, de Giambattista Vico, tal como o filsofo o
formulou e deu sentido em sua obra mxima La Scienza Nuova (1744). Este princpio
ontolgico da relao homem e mundo civil organizado, posteriormente, sob um preceito
epistemolgico, cuja histria teolgica tem de ser levada em conta, a saber, o verum et factum
convertuntur, aquilo que criado pode ser compreendido verdadeiramente por seu criador,
fundamentando a emergncia de uma Scienza Nuova capaz de entender a natureza do mondo
civile.
Tal princpio organiza a relao entre criao e conhecimento, conferindo-lhe um
carter poltico bastante caro a Said. Os homens fazem o mundo, so os produtores e criadores
dos valores, leis, costumes pelos quais vivem, e agem conforme as limitaes materiais das
foras do mundo que criaram. Dessa forma, os homens so agentes ativos do processo de
constituio da realidade, tornando-a fruto de suas relaes entre si. Precisamente por o terem
criado, so capazes de produzir conhecimento sobre ele. Assim, todo artefactum est ligado
mente de seu criador. Estud-lo significa compreender a vida de seu autor, sempre pautada
por interesses e circunstncias polticas objetivas que disformam a matria. A palavra chave
aqui fazer: o que significa fazer (factum) o mundo? Essa ideia de criar o mundo requer
algumas notas importantes.
1.2.1 Criar o Mundo.
A ideia de que os humanos produzem o mundo em que vivem tem longa estrada22
,
passando por figuras como, por exemplo, Karl Marx. De fato, h uma interpretao marxista
22
Cf. MONDOLFO, Rodolfo. Verum factum: desde antes de Vico hasta Marx. Buenos Aires: Siglo Veintiuno,
1971.
-
23
de que Vico teria sido uma espcie de protomarxista, um precursor da nfase marxiana sobre
a dimenso prtica (praxis) da filosofia e do pensamento. As relaes entre os autores no
foram pouco abordadas, tendo pontos de contatos notveis, no obstante a parca referncia de
Marx a Vico em sua obra23
. Um dos aspectos ressaltadas pelas leituras viquianas de Marx, ou
marxistas de Vico, foi justamente a questo da criao humana do mundo. Said chega a
afirmar que Marx tomou de Vico a ideia de que os seres humanos fazem sua prpria
histria24
. Terence Ball, no entanto, em artigo sobre as diferenas entre as concepes de
"fazer" de Vico e Marx, sugere que a distncia entre os filsofos " maior do que se acreditou
at o momento"25
. Esse afastamento e proximidade so dados pela referncia mtua dos
autores distino ontolgica, de origem grega, dos objetos criados pelo homem.
Como se sabe, a histria da compreenso da criatividade humana, de seus movimentos
de produo, tem, em Aristteles e sua clebre diferenciao entre os verbos gregos praxis e
poiesis, seu momento de fundao para o pensamento ocidental. Ao comunicativa, a
atividade da praxis corresponderia ao conhecimento prtico intersubjetivo humano, cujo
modus operandi o trabalho com as palavras, de natureza pblica, informado de contedo do
carter (ethos) do cidado. O ponto decisivo que esta atividade est relacionada com a
criao de artefatos no-tangveis, posto que sua matria de trabalho o prprio logos. Em
contrapartida, poiesis diz respeito fabricao ou manufaturao de objetos tangveis dotados
de uma finalidade intrnseca, cujo conhecimento produzido (techn) local, contextual e
teleolgico; o modo de funcionamento da atividade potica, no sentido clssico, seria a
captura de matria j dado in natura, operando sua transubstanciao em um artefato distinto
da substncia de base.
A argumentao de Terence Ball vai na direo dessa separao aristotlica entre
praxis e poiesis, que funcionaria para interpretar e distinguir as concepes de fazer o mundo
23
H uma nota de rodap em O Capital em que Marx menciona Vico e Darwin sobre a diferena de
compreenso entre a histria natural e histria humana. 24
SAID, Edward W. Edward Said talks to Jacqueline Rose. Critical Quartely, v. 40, n. 1, p. 72-89 april, 1998.
O comentrio de Said a esse respeito, na pgina 81, o seguinte: Since hes [Vico] interested in historiography
and the way history is made, he sets up a distinction between the people of the Book it could be Christians as
well, he says, but he specifically means, in this instance, the Jews whose history is made for them by God
(they're a special case), and the rest of humanity, which is what he's interested in. They're the people that make
history possible, because human beings make history. This is what Marx took from Vico the idea that human
beings make their own history. [Uma vez que ele (Vico) est interessado na historiografia e no modo que a
histria feita, ele fixa uma distino entre o povo do Livro que tambm poderiam ser os Cristos, ele diz, mas
ele quer dizer especificamente, nesse caso, os Judeus cuja histria feita para eles por Deus (eles so um caso
especial) e o resto da humanidade, que no que ele est interessado. Eles so as pessoas que fazem a histria
possvel, porque os seres humanos fazem histria. Isto o que Marx tomou de Vico a ideia de que os seres
humanos fazem sua prpria histria]. 25
BALL, Terence. Sobre "Hacer" Historia en Vico y Marx. In: TAGLIACOZZO, Giorgio (Org.). Vico y Marx:
afinidades y contrastes. Traduo do Italiano de Sadie Ordiales de la Garza. Cidade do Mxico: Fundo de
Cultura Econmica, 1990. p. 81.
-
24
para Vico e Marx. O que importa para Ball apontar que, para Vico, o ato de criar o mundo
est atrelado forma da praxis, o que significa que o ato viquiano de criar o mundo
performtico, ou seja, lida com os signos que compem e do sentido comunidade,
produzindo objetos intangveis que, no entanto, no deixam de serem importantes para a vida
gregria: "a metafsica potica no tem a inteno de 'fazer' no sentido de fabricao ou
manufatura, mas de criar significado e dar sentido a um mundo que, do contrrio, seria
incomprensvel"26
. Trata-se, portanto, da dimenso mgica da linguagem, o dom lingustico
que possui a potncia de criar e instituir marcos e distines entre os entes e, finalmente, dar a
sua existncia.
A interpretao de Terence Ball da teoria viquiana da relao linguagem e mundo
criticada de modo bastante preciso por Alberto Mario Damiani em seu livro La dimensin
poltica de la Scienza Nuova. Segundo Damiani, o professor norte-americano comete alguns
equvocos na interpretao do sentido do fare humano de Vico. Primeiro, Ball reduz o
significado da noo aristotlica de poiesis ao exposto no livro VI da tica a Nicmaco.
Damiani aponta que poiesis ganha todo um outro sentido na Potica, no se reduzindo apenas
produo fabril e instrumental de objetos sensveis. Inclusive, essa reduo parece ser o
nico alicerce da argumentao de Ball. A grande questo que Vico considerava a ideia de
que os primeiros gentis tinham uma linguagem de "caracteres poticos" como sua principal e
mais importante descoberta, e isso por um motivo bem especfico.
Para Damiani, Ball acerta, todavia, em chamar ateno para a importncia da
linguagem na concepo viquiana de mundo civil: "O homem faz o mundo civil pela palavra
que estabelece, perpetua e transforma as instituies sociais e persuade os homens a obedec-
la"27
. O centro das preocupaes viquianas o motivo da obedincia dos homens a essas
instituies sociais que eles mesmos criaram mediante a linguagem, que sua prpria palavra
criou. neste ponto, precisamente, que a interpretao de Ball torna-se insuficiente: o
entendimento de que o fazer viquiano traduzvel segundo o conceito de praxis aristotlica
oblitera a dimenso ontolgica que o gesto original epistemolgico dos primeiros gentis
realizaram: "a praxis comunicativa dos membros participantes de uma comunidade pressupe
uma poiesis criadora de imagens que garantam o reconhecimento (e com ele a existncia) das
instituies sociais"28
.
26
BALL, 1990, p. 89. 27
DAMIANI, Alberto M. La dimension politica de la scienza nuova y otros estudios sobre Giambattista
Vico. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1998. p. 45. 28
DAMIANI, 1998, p. 45.
-
25
Assim, praxis e poiesis fundem-se em uma outra esfera de ao humana que no
diferencia mais (ou carrega em si os dois componentes) entre as dimenses sensveis e etreas
da ao humana. Damiani29
, ento, chama ateno para o fato de que, para Vico, as
instituies sociais, criadas na e pela linguagem, esto envolvidas no processo de
transubstanciao da matria natural com fins de satisfazer as necessidades ou utilidades
humanas. Com efeito, Giambattista Vico afirma em La Scienza Nuova: "o arbtrio humano,
por sua natureza incerta, se apura e determina pelo senso comum dos homens em funo de
uma necessidade ou utilidade, que so as duas fontes do direito natural das gentes"30
.
A combinao dessas duas dimenses da ao humana forma o que Vico chama de
sabedoria potica, a "chave mestra" de sua obra, a nova cincia do mundo feito pelos homens.
Esse tipo de sabedoria constri o cosmos segundo as disposies materiais corpreas dos
seres humanos. Poder-se-ia objetar que a atividade da poiesis seria anterior atividade da
praxis, uma vez que seria preciso, logicamente, criar o lastro ontolgico que sustentaria os
percursos prticos (prattein) humanos. Duas observaes sobre esse quesito devem ser feitas:
primeiro, uma das crticas de Vico a seus contemporneos era a falta de perspectiva histrica
que lhes afligia. Em suas interpretaes dos povos antigos, costumavam empregar categorias
de pensamento e juzos de valores que tinham nascido sob circunstncias muito prprias e
distintas do mundo que estavam estudando. Isso se dava por considerarem que o quid humano
era fixo e eterno, o que colocaria todos os seres humanos, de qualquer poca, no mesmo
patamar de referncia para estudo. Vico argumenta que preciso compreender esses povos
segundo seu prprio modo de pensamento e valores, pois so estes que guardam as causas
criadoras das instituies e artefatos observados pelos estudiosos contemporneos. Vico,
assim, desenvolve uma noo de natureza humana mvel e histrica, cuja compreenso s
pode ser alcanada levando-se em conta o contexto e as causas sob as quais se desenvolveu.
Assim, que a ordem entre poiesis e praxis faa uma exigncia lgica para ns, no quer dizer
que tenha, necessariamente, agido assim para os povos gentis, uma vez que, para Vico, o
pensamento lgico seja um estgio mais avanado no movimento do quid humano. Incorrer
nesse argumento seria ento projetar nossas categorias de pensamento no objeto que
estudamos: anacronia conceitual. Segundo, e talvez mais importante, a relao entre as
atividades potica e prtica no so ordenadas de modo sucessivo: "a ordem das ideias (ou
universais fantsticos, resultado da poiesis) se corresponde com a ordem das coisas humanas
29
DAMIANI, 1998, p. 46. 30
VICO, Giambattista. La scienza nueva e opere scelte. Torino: Editrice Torinese, 1952. p. 84, grifo nosso.
"l'umano arbitrio, di sua natura incertissimo, egli si accerta e determina col senso comune degli uomini d'intorno
alle umane necessit o utilit, che son i due fonte del diritto naturale delle genti".
-
26
(ou instituies estabelecidas, conservadas e transformadas na praxis)"31
. O que h uma
sincronia entre as duas atividades, o que permite formar tal outra esfera da ao humana, a
qual Vico nomeia de sabedoria potica: "a ordem das ideias deve proceder segundo a ordem
das coisas"32
.
Reciprocidade ontolgica constitutiva entre humanidade e mundo, atravs da
linguagem, que faz com que haja uma dimenso poltica da Scienza Nuova valiosa a Edward
Said. Isso se d porque os homens acreditam e confiam no mundo civil que criaram. A
legitimidade das instituies so, ento, imprescindveis para a conservao delas mesmas. A
interdependncia e cofundao entre humanidade, linguagem e mundo projeta um curso
histrico ideal, que afeta toda e qualquer nao. Trata-se da teoria viquiana do movimento
espiral33
da histria das naes, cuja trao fundamental a afirmao que as naes se
desenvolvem segundo estgios que vo desde a existncia brbara racional, comum a todas
e que se dinamiza por um movimento de recorrncia diferencial. O conhecimento desse
movimento comum a todas a naes permite ao "novo cientista" identificar em que estgio
estaria uma determinada nao para assim poder prescrever a medicao necessria para sua
conservao. Essa teraputica social, segundo Vico, consiste em boas ordens, leis e exemplos.
Essa ideia aparece em um texto produzido por Vico, um ano aps a segunda reviso da
Scienza Nuova em 1730, um novo captulo chamado Pratica della Scienza Nuova [Prtica de
Cincia Nova], que preferiu no incluir na terceira verso de sua obra, publicada em 1744. Os
motivos da recusa de Vico sua publicao so razo de discusso e algumas hipteses34
.
Mas, nesse texto, Vico coloca bem a questo, aqui bem resumida por Damiani: sem a
confiana dos homens no h instituies, sem instituies no h mundo civil.
Trs pontos importantes: primeiro, a noo de que a existncia de algo est
intimamente ligada s circunstncias de seu engenho para usar uma palavra viquiana , ou
seja, que a observao das foras histricas circundantes ao objeto de ponderao so vitais
para seu conhecimento; segundo, o papel pblico do "novo cientista", ou aqueles cujo papel
preservar o mundo civil ordenado, reforado e posto como uma tarefa que diz respeito ao
31
DAMIANI, 1998, p. 52. 32
VICO, 1959, p. 105 "L'ordine dell'idee deve procedere secondo l'ordine delle cose". 33
Ver a observao aguda de R G. Collingwood, em A Ideia de Histria, sobre o sentido espiral, e no cclico,
da concepo de histria em Vico. "No um crculo mas uma espiral, pois a histria nunca se repete, atingindo
cada nova fase, numa forma diferenciada em relao ao que a antecedeu". COLLINGWOOD, Robin G. A ideia
de historia. Traduo de Alberto Freire. 8. ed. Lisboa: Presena, 1994. p. 113. 34
Em "Vico's Pratica", Max Fisch considera algumas hipteses para a recusa de Vico em incluir tal captulo na
ltima verso da Scienza Nuova. Cf. FISCH, Max. Vico's Pratica. In: TAGLIACOZZO, Giorgio; VERENE,
Donald. Giambattista Vico's Science of Humanity. Baltimore; Londres: John Hopkins University Press, 1976.
p. 423-429. Cf. nota 31, em DAMIANI, 1998, p. 57.
-
27
mundo e no retirada dos assuntos coletivos para uma erudio encastelada e reclusa; por
ltimo, em terceiro lugar, Vico demonstra um humanismo historicista que coloca mulheres e
homens em posio protagonista na resoluo de conflitos e no cultivo das conquistas
alcanadas na participao coletiva do mundo civil. A confluncia desses trs fatores atestam
e do o sentido poltico das reflexes viquianas na Scienza Nuova, to importantes para as
ponderaes de Edward Said sobre o mundo, o texto e o crtico. Ao final desta seo, veremos
um dos casos em que Said se utiliza das ideias de Vico para desenvolver suas consideraes
sobre as figuras citadas acima.
Essas relaes estabelecidas entre humanidade e mundo, como vimos, requerem, em
Vico, uma mediao lingustica para sua constituio ontolgica. Tal mediao se configura
tambm como um princpio epistemolgico: o verum factum convertentur, o que verdadeiro
e o que est feito equivalem-se35
. Este princpio e seus desdobramentos polticos so
abordados a seguir.
1.2.2 Conhecer o Mundo
Como aponta Damiani, o grande inimigo epistemolgico de Vico era o ceticismo ao
molde cartesiano que preconizava, entre outras coisas, a impossibilidade de se garantir a
existncia de um mundo fora do espectro de percepo subjetiva. Em Discurso do Mtodo36
e
na Meditao sobre a Filosofia Primeira37
, Descartes descreve seu caminho para encontrar a
verdade cientfica e a certeza absoluta. As descobertas cientficas recentes sua poca o
heliocentrismo de Coprnico; o telescpio e a crtica ao mtodo aristotlico de Galileu; o
empirismo de Gassendi, para mencionar apenas em alguns exemplos tinham nublado as
evidncias cognoscveis dos sentidos humanos, borrado a tangibilidade do mundo, quebrando
a experincia de conexo estreita e direta entre humanidade e mundo. Hannah Arendt38
chama
ateno para essas mudanas na percepo humana do mundo, que acarretaram novas
exigncias epistemolgicas para entend-lo. O mundo sensorial, rebaixado pela ordem
religiosa crist condio de iluso e transio, sofria uma novo desgaste de consequncias
ainda mais devastadoras: todo o arranjo csmico tradicional, cuja certeza havia sido garantida
no s pela palavra divina, mas tambm pela evidncia mais simples da experincia humana
35
Traduo tomada de Alberto Freire, tradutor da obra de Collingwood. 36
DESCARTES, Ren. Discurso do metodo. So Paulo, SP: Martins Fontes, 1999. 37
DESCARTES, Ren. Meditaes sobre filosofia primeira. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. 38
ARENDT, Hannah. A condio humana. 11. ed. rev. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitria, 2010.
ARENDT, Hannah. o passado e o futuro. 7. ed. So Paulo, SP: Perspectiva, 2013.
-
28
(que o Sol que se movimenta e no a Terra, por exemplo) desmoronava em um sem-nmero
de desconfianas e dvidas a respeito de seu funcionamento.
Descartes era sensvel a esse processo e tentou resolver a questo. O filsofo francs,
ento, procede a sua investigao sobre o que poderia devolver o certum para os humanos, j
que, segundo ele, era bem possvel haver uma espcie de esprito maligno que mascarasse
permanentemente o mundo para os humanos e, assim, impedisse qualquer conhecimento
verdadeiro sobre o entorno. A soluo cartesiana amplamente conhecida e no h
necessidade de fazer aqui mais uma explanao. Basta dizer que, para Descartes, se possvel
duvidar da existncia de toda e qualquer coisa que se nos apresenta atravs da experincia
sensvel, no possvel duvidar de que se duvide uma contradio que confirmaria o
preceito. O fato de se duvidar j pressupe a existncia de algo que duvida, que seria sujeito
da dvida, um substrato ontolgico ao omnibus dubitandum est, a partir do qual poder-se-ia
novamente produzir um continente para a mobilidade da ao humana. A partir dessa ideia, o
conhecimento verdadeiro no poderia vir da experincia sensorial imediata compartilhada, o
sensus communis, mas somente atravs da linguagem formal matemtica, a nica lngua
compartilhada entre o eu e o mundo.
O fato que ao estabelecer o fundamento do novo continente filosfico a partir do
cogito, Descartes e a "escola da suspeita"39
acabaram por divinizar o homem. Isso porque o
processo com que identificaram o fazer humano do mundo, e por conseguinte o conhecer, foi
o fazer divino. A humanidade cria o mundo civil assim como Deus criou o mundo natural;
equipara-se, assim, o faber divino e humano, ao mesmo tempo que se seculariza o mundo.
Mudana pari passu do estatuto ontolgico e epistemolgico do mundo e da humanidade.
A ideia de que o homem fabrica o mundo, aponta Sandra Rudbrick Luft40
, s surge
com a mudana ontolgica do mundo. Esse movimento se deu, segundo a autora, pela
sobreposio entre dois ordenamentos ontolgicos do mundo, tomados de Hans Blumenberg:
a "predisposio ontolgica mxima" da filosofia escolstica entra em colapso, abrindo
espao para uma "predisposio construtiva mxima" humana do caos cosmolgico41
. Os
Modernos, para legitimar sua filosofia nascente, recorreram a um predicado ento atribudo a
Deus, formulado como verum et factum convertentur, que reservava o acesso ao
conhecimento do mundo ao seu criador, produzindo uma ciso entre os intelectos humano e
39
ARENDT, 2013, p. 86. 40
LUFT, Sandra Rudnick. Vico's uncanny humanism: reading the New science between modern and
postmodern. Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 2003. 41
BLUMENBERG, Hans. Die Legitimitat der Neuzeit. Erneuerte Ausg., 2. Aufl. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1999. p. 220.
-
29
divino. Aos homens s seria dada a oportunidade do vislumbre, alcanar apenas fascas
parciais da luz do mundo, emanada por Deus. Ao reivindicar esse princpio, os Modernos
conceberam um estatuto divino para subjetividade moderna, cujo atributo se sustentava,
ironicamente, na doutra da Imago Dei, que j colocava a humanidade em correlao s
potencialidades divinas. Conferindo, assim, a devida autoridade s potncias humanas, os
Modernos tornaram o homem conhecedor de um mundo que ele prprio criara42
, formando a
figura do Homo Faber, o artfice do mundo.
No por acaso, Amos Funkenstein se refere a esse processo de secularizao do
princpio verum-factum como uma "teologia secular"43
. Com efeito, essa ideia da equipolncia
formal entre o faber humano e o divino sintetizada primorosamente pelo escritor ingls do
sculo XVII, Thomas Browne: "a natureza no est em descontinuidade com a arte [...] ambas
esto a servio da providncia [...] pois a Natureza a arte de Deus "44
. Segundo Sandra Luft,
essa convergncia entre os dois regimes de criao se deu atravs do conceito de mundo-
mquina, a partir do qual se pensou tais atividades sob o signo da fabricao (poiesis),
inserindo tanto a fauna de objetos naturais quanto civis para usar a expresso de Vico no
processo causal estruturado pela relao de meios e fins45
. Ambos os mundos, ento, so
capturados pelas relaes instrumentais da poiesis caracterizadas nesse perodo como
tcnicas , fazendo emergir a figura do Homo Faber.
O sentido da vida na polis, a vida tico-poltica organizada para o cultivo da
comunidade, reduzido tambm produo instrumental. Com a reduo da razo
racionalidade tcnica e da sociedade s tcnicas de controle, corre-se o risco da prpria
humanidade se tornar fabricvel, um mero instrumento para determinados fins. Hannah
Arendt v esse processo como uma alienao do mundo46
. O mundo natural transformado em
matria prima e o mundo civil vertido em tecnologia, a explorao da pobreza para fonte de
trabalho, o mapeamento da Terra para torn-la mensurvel e divisvel, e outros clculos
projetados por essa transformao filosfica conformam essa espcie de separao entre
homem e mundo. Nesse sentido, o que ocorreu no processo de legitimao da Modernidade
foi uma contnua perda do mundo, devido tanto ao claustro da subjetividade quanto
instrumentalizao das realidades.
42
LUFT, 2003. p. 19. 43
FUNKENSTEIN, Amos. Theology and the scientific imagination: from the Middle Ages to the seventeenth
century. New Jersey: Princeton Univ. Press, 1986. 44
LUFT, 2003, p. 20. "nature is not at variance with art [...] they being both in the service of his providence [...]
all things are artificiall, for Nature is the art of God". 45
LUFT, 2003, p. 21 46
ARENDT, 2013, p. 83-84; ARENDT, 2010, p. 260-269.
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30
Giambattista Vico, como dito acima, se ope soluo cartesiana para a problemtica
da inacessibilidade da natureza. O argumento de Vico, j apresentado fantasmagoricamente
durante o raciocnio seguido nestas pginas, que se pode reivindicar a converso
(convertentur) do verum e do factum, baseando-se na evidncia de que o que feito pode ser
conhecido pelo seu criador. A humanidade pode conhecer sua criao, e a sua grande criao
precisamente o mondo civile. Na passagem clebre e amplamente citada da Scienza Nuova,
Vico apresenta seu argumento:
Mas, em tal densa noite de trevas onde encoberta a primeira de nossa
distante antiguidade, aparece esta luz eterna, que no passar, esta verdade, a
qual no se pode colocar, sob quaisquer condies, em dvida: que este
mundo civil certamente foi feito pelos homens, de modo que podemos,
porque devemos, redescobrir os princpios dentro das modificaes da nossa
prpria mente humana47
.
A construo humana do mondo civile notadamente a verdade de que no se pode
duvidar. O elemento da certeza aqui no um ncleo indivisvel interior ao humano, a alma,
mas um continente externo e conexo com a mente humana. As empreitadas de compreenso
desse mundo tm de ser feitas no mbito das modificaes da prpria mente humana, "atravs
de um esforo de interpretao construtiva"48
. Vico chama ateno para o fato de que os
filsofos, at ento, s teriam investido na compreenso do mundo natural e teriam
"negligenciado meditar sobre a questo do mundo das naes, ou seja o mundo civil, do qual,
em virtude de o terem feito os homens, podem conseguir os homens a cincia"49
. Essa
negligncia dos filsofos para com o mundo civil claramente perceptvel no prprio
Descartes, para quem a histria devia ser ignorada como campo de conhecimento digno e
confivel para o exerccio do pensamento e encontro da verdade50
.
No sentido contrrio qualquer recusa do mundo, Vico consegue garantir a estreita
ligao entre mundo e humanidade atravs do verum-factum, o mesmo argumento utilizado
pelos Modernos, que, pelo tratamento que lhe deram, acabou justamente por solapar a relao
homem-mundo. Sandra Luft aponta que, para o filsofo napolitano, as realizaes humanas
no so frutos de mera conveno apartada de uma realidade concreta instituinte. Elas esto,
47
VICO, 1959, p. 128. "Ma, in tal densa notte di tenebre ond coverta la prima da noi lontanissima antichit,
apparisce questo lume eterno, che non tramonta, di questa verit, la quale non si pu a patto alcuno chiamar in
dubbio: che questo mondo civile egli certamente stato fatto dagli uomini, onde se ne possono, perch se ne
debbono, ritruovare i princpi dentro le modificazioni della nostra medesima mente umana". 48
LWITH, Karl. O sentido da historia. Lisboa: Edies 70, 1991. p. 123. 49
VICO, 1959, p. 129. "trascurarono di meditare su questo mondo delle nazioni, o sia mondo civile, del quale,
perch lavevano fatto gli uomini, ne potevano conseguire la scienza gli uomini". 50
LWTIH, 1991.
-
31
antes, impregnadas inalienavelmente de mundo, so mundanas e terrenas, enraizadas nas suas
condies de emergncia. Alm disso, para Vico, no seria a razo o fundamento para
qualquer investigao intelectual: as dimenses da fantasia e da imaginao so igualmente
partcipes na histria da criatividade humana. A descoberta viquiana da natureza potica dos
primeiros homens a sabedoria potica, "chave mestra" de sua Scienza Nuova , assim, um
dos fundamentos de sua antropologia e mundanidade. Finalmente, ao mesmo tempo o que
confere a dimenso poltica de sua obra mxima, a despeito das interpretaes idealistas que
lhe imputavam51
.
J que o mundo civil o plano de vivncia e sapincia humanas, a tarefa do "novo
crtico" percorrer os caminhos da mente humana atravs de suas obras, seguindo uma "arte
critica", ou seja, "a doutrina de todas as coisas que dependem do arbtrio humano, como so
todas as histrias das lnguas, dos costumes e dos feitos tanto da paz como da guerra, e dos
povos"52
. A filologia , ento, o corpo da Scienza Nuova; o modo por excelncia de
investigao do mondo civile. A interseco entre filologia e poltica se d propriamente na
legilibilidade do mundo53
, na investigao multiespacial do facere umano, onde os corpos e
os textos54
so parte de uma mesma disciplina.
por essa associao entre Filologia e Poltica, por sua mundanidade, que Edward
Said enxerga em Vico uma referncia, um ponto de partida o Ansatzpunkt de Erich
Auerbach para desenvolver suas ideias. Desde Beginnings, Said parte de concepes
viquianas para tratar dos seus problemas. Pode-se afirmar, at mesmo, que, sem Vico, Said
no teria o lastro filosfico necessrio para avanar suas hipteses de leituras das obras dos
autores que estudou, nem poderia criar suas teorias a respeito do papel pblico de intelectuais,
ou das relaes entre obra e mundo. Vico, ento, proporciona a Said sua base epistemolgica
para ao, alm de uma postura poltica para ocupar o espao de sua crtica.
Se para o autor palestino-americano os textos literrios participam da criao de
representaes que veiculam determinados sentidos de pertencimento e excluso,
silenciamento e confinamento, e assim por diante, porque reconhece a constituio viquiana
do mundo pelos seres humanos. No apenas Said, mas tambm Erich Auerbach foi leitor de
Vico e sempre teve em vista as ideias viquianas na concepo de suas obras. Para Said,
51
Ver a esse respeito os comentrios de Damiani (1998) sobre a leitura do idealismo italiano de Vico, que o
interpretava sob um chave hegeliana. Seus maiores nomes so CROCE, Benedetto. La filosofia di Giambattista
Vico. 4a ed. riv. Bari: G. Laterza, 1947 e BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Braslia, DF: Editora da UnB, 1982. 52
VICO, 1959, p. 6. "la dottrina di tutte le cose le quali dispendono dall'umano arbitrio, come sono tutte le storie
delle ligue, de' costumi e de' fatti cos della pace come della guerra de' populi". 53
BLUMENBERG, Hans. La legibilidad del mundo. Barcelona: Paids, 2000. 54
RE, 2003, p 31-45.
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32
Auerbach , assim como Vico, uma referncia imprescindvel para se pensar a relao entre
mundo, texto e crtico. Na prxima seo, examinarei os dilogos entre Said e Auerbach tendo
em vista a relao da trade supramencionada.
1.3 ERICH AUERBACH: CRTICA DO MUNDO TERRENO
Erich Auerbach publicou poucos estudos tericos. A despeito das consideraes, feitas
a esse respeito, espraiadas por suas obras, h poucos trabalhos que tematizam diretamente seu
arcabouo conceitual e metodolgico. Desses textos, destacamos dois que, em nossa viso,
proporcionam uma viso global de suas posies; so eles: Vico e o Historicismo Esttico e
Filologia da Literatura Mundial, de 1949 e 1952 respectivamente55
. Nesses trabalhos,
Auerbach expe dois aspectos importantes do pano de fundo dos seus trabalhos: primeiro,
traa as coordenadas histrico-filosficas de seus escritos ao posicionar Giambattista Vico
como um de seus interlocutores principais; segundo, apresenta o intuito de sua atividade
crtico-filolgica.
No entanto, em 1957, no mesmo ano de seu falecimento, Auerbach termina a produo
de seu ltimo livro, Literary language & its public in late latin aintiquity and in the middle
ages [Linguagem Literria e seu Pblico na Antiguidade Latina Tardia e na Idade Mdia]56
,
para o qual escreveu uma introduo em que sintetiza o "propsito e mtodo" subttulo do
captulo de sua obra. Esse texto concatena as reflexes feitas anteriormente nos textos
supramencionados, acentuando a inclinao programtica de Auerbach frente a seu ofcio de
fillogo, bem como o quadro histrico-cultural em que o prprio autor posicionava sua
atividade. Escolhemos esse texto como fio condutor para a interpretao dos aspectos da obra
auerbachiana que interessam a Edward Said na formulao da noo de Mundanidade. Ao
passo que o pensamento do fillogo alemo caracterizado a partir desse texto, as assertivas
da emergentes so cotejadas com excertos de obras anteriores de Auerbach, alm de
intervenes de alguns de seus principais comentadores, a fim de mostrar a extenso e
propagao de tais concepes em textos prvios, que foram condensadas nos ltimos
escritos.
55
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental: filologia e crtica. Traduo de Jos Marcos Mariani de
Macedo. 2. ed. So Paulo, SP: Duas Cidades: Editora 34, 2012. 56
AUERBACH, Erich. Literary language & its public in late latin aintiquity and in the middle
ages. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1993.
-
33
1.3.1 Histria e Mtodo
Logo no incio de sua introduo, Auerbach enfatiza o fato de o historicismo
romntico aliado a sua faceta erudita (scholar), a Filologia Romnica, ter produzido uma
concepo dialtica de homem. Essa dialtica da humanidade significava compreend-la sob
a base da diversidade das individualidades nacionais. Expoentes dos movimento, como J. G.
Herder, os irmos Schlegel e Jacob Grimm, eram comprometidos com a ideia de um
desenvolvimento histrico manifestado nas particularidades do esprito nacional do povo
(Volksgeist). Auerbach aponta para o embate dos Romnticos contra os Esclarecidos, cuja
concepo de humanidade era a-histrica e no dialtica. Para Auerbach, os grandes eruditos
da poca Romntica trabalhavam com outras culturas para alm das suas prprias, colocando-
os no perigo de se perderem em envolvimentos patriticos com suas prprias culturas.
Mesmo essas culturas diferenciando-se todas entre si e ainda mais da prpria cultura alem,
Auerbach aponta, elas tinham um pano de fundo comum: o substrato clssico e cristo que
conformava e dava unidade a suas civilizaes.
Assim que se desenvolveu a perspectiva histrica romntica que pensou a Europa
como um todo, produzindo a conscincia europeia de sua prpria historicidade e compleio.
Associadas a crises internas e externas da Europa, algumas correntes intelectuais usaram-nas
para chamar ateno dos eruditos do romantismo alemo sobre a historicidade e realidade
cultural europeias. Desses movimentos, surgiram eruditos a quem Auerbach se refere como
fillogos europeus, como Leo Spitzer, Ernst Robert Curtius e Karl Vossler. Todos eles
trabalharam sob os momentos de crise profunda por que passava a Europa, sobretudo a
Alemanha sob a ascenso do nazismo.
Auerbach reconhece, no entanto, que nenhum desses fillogos tomou to a srio a
crise da Europa quanto ele prprio. Por esse motivo, ele passou a considerar o que chamou de
"possibilidades da filologia romnica" no apenas como valncias tecnotericas, mas como
uma tarefa de nosso tempo, uma poca limite, em que "o processo de nivelamento,
originrio da Europa, estende-se cada vez mais e soterra todas as tradies locais"57
. Para
Auerbach, a civilizao europeia estava em vias de seu termo, sua distino histrica estava
no fim, pois era tragada por uma outra espcie de unidade. Uma nova ordem planificadora
proclamava, ento, o ocaso no apenas da civilizao europeia mas de toda a "Nossa Terra"
(Unsere Erde), que, conforme explica em Filologia da Literatura Mundial, "torna-se a cada
dia menor e mais pobre em diversidade"58
.
57
AUERBACH, 2012, p. 357. 58
AUERBACH, 2012, p. 357.
-
34
Descrito esse cenrio, Auerbach anuncia sua tarefa: devemos atualmente tentar
formar uma imagem lcida e coerente da civilizao e de sua unidade59
. Muitos crticos da
leitura que Said faz de Auerbach se atm especificamente a esta passagem ou ideia geral,
um tanto conservadora e totalizante, que ela pressuporia60
. O argumento geral de que a
tarefa que o fillogo alemo se prope seria muito distante da postura humanista-herica de
Said, de "falar a verdade ao poder", de promover a expanso cosmopolita do concerto
internacional de manifestaes artstico-literrias. Segundo Avihu Zakai, Auerbach estaria
empenhado em "[] salvar a tradio humanista judaico-crist ocidental da ameaa da
barbrie nazista"61
. O objetivo do fillogo judeu alemo era restaurar a centralidade da
contribuio judaica para construo da cultura ocidental, que os nazistas haviam tencionado
apagar. Essa interpretao tambm feita por Carlo Ginzburg ainda que no direcionada a
uma contraposio a Said , em entrevista Folha de So Paulo, para quem a obra mais
famosa de Auerbach, Mimesis, "trata de uma teleologia negativa, porque o mundo no qual
Auerbach est inserido de homogeneizao cultural. [...] ele estava cercado de guerra e
perseguio, mas tambm por essa situao que ele descreve em 1952"62
. Tambm para
Geoffrey Harpham a filologia romnica do sculo XIX um saber envolvido em um
momento histrico de tez colonialista, que tentava conjurar o esprito europeu autntico,
atravs da pesquisa de suas supostas razes. Assim, as potencialidades que Said enxergava na
Filologia, tanto a partir de Auerbach quanto de Vico, eram apenas m leitura (misreading) do
intelectual palestino, ou, em ltima instncia, um retorno reacionrio como chamado
ateno no incio deste captulo63
. Essa questo se desenrola melhor ao olharmos para o
mtodo indicado por Auerbach no realizar de sua tarefa.
59
AUERBACH, 1993, p. 6. 60
Cf. HARPHAM, Geoffrey G. Roots, Races and the Return to Philology. Representations, v. 106, n. 1, p. 34-
62, 2009.; Cf. ZAKAI, Avihu. Professor of Exile: Edward Saids Misreading of Erich Auerbach. Disponvel em
< http://www.momentmag.com/edward-said-erich-auerbach/>. Acesso em 10 maio 2015. 61
ZAKAI, Avihu. Professor of Exile: Edward Saids Misreading of Erich Auerbach. Disponvel em <
http://www.momentmag.com/edward-said-erich-auerbach/>. Acesso em 10 maro 2016 62
GINZBURG, Carlo. "Sou quase obcecado pela prova". Folha de So Paulo, 28 de novembro de 2010.
Disponvel em . Acesso em 11 maio 2015. 63
No pretendemos responder a essas interpretaes, sem antes continuar a exposio da tarefa que Auerbach se
incumbiu. No entanto, cabe a observao de que, para Said, a condio de exlio de Auerbach poca da escrita
de Mmesis em Istambul, entre maio de 1942 e abril de 1945, integra intimamente sua leitura do sentido da obra
do fillogo, conformando de modo perceptvel as consideraes saidianas sobre a condio extrnseca, exterior e
estranha do intelectual. Diferentemente da interpretao de Avihu Zakai, Said estava bem atento s condies
materiais de escrita de Mimesis. Alm disso, em Humanismo e Crtica Democrtica, Said expressa uma viso
mais complexa e bem especfica sobre a espacialidade e a posio que o fillogo judeu alemo toma em relao
a sua prpria poca, visivelmente quando chama ateno para um equvoco na traduo inglesa de Irdischen
Welt ("Mundo Terreno", ou, no ingls de Said, "Earthly World") como "Mundo Secular", no livro de Auerbach
(1997) sobre Dante. Essa observao de Said da mesma natureza, pensamos, das feitas por Michael Holquist e
Seth Lerer. Para Lerer, seria uma simplificao afirmar que as preocupaes de Auerbach com o declnio da
civilizao europeia se dariam diretamente da sua condio de judeu. A tarefa e o mtodo apresentado na
-
35
A questo central do texto de introduo Linguagem Literria, ento, se apresenta:
como alcanar esse objetivo de traar uma figura lcida e coerente da cultura europeia, antes
da subsuno na unidade compreensiva maior que est por vir? O mtodo proposto por
Auerbach consiste sinteticamente em [] selecionar, desenvolver e correlacionar problemas
estritamente limitados e prontamente acessveis de tal modo que eles iro operar como Chaves
para o todo"; desta forma, "o todo toma a forma de uma unidade dialtica"64
uma ideia que,
como destacado acima, vem do historicismo alemo romntico. A compreenso auerbachiana
dessa linha de pensamento se deu atravs de uma figura que era tanto referncia fundamental
para Auerbach quanto um precursor posteriormente reconhecido dessa mesma linha.
Na construo do mtodo de estudo da totalidade da civilizao, Auerbach se refere a
Vico e sua obra, cujas consideraes gerais subjazem este mtodo"65
. Alm disso, as ideias
viquianas complementaram e modelaram a compreenso de auerbach do historicismo alemo.
Esse dado de extrema importncia para entender certas peculiaridades da interpretao de
ideias comuns a Vico e ao historicismo alemo, que influram na posio e no carter poltico
que Auerbach d ao seu projeto.
O princpio epistemolgico de Vico, de que falamos anteriormente, a ideia de que s
dado ao conhecimento humano aquilo que este prprio fez, proporciona tambm a Auerbach
uma possibilidade de fund
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