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Luísa Costa Gomes
Contos outra vez
Revisão e Formatação:
http://groups.google.com/group/digitalsource
Biblioteca Prestígio
Contos Outra Vez
1997 Luísa Costa Gomes
2001 BIBLIOTEX, S. L.
para esta edição Licença editorial por cortesia de
Edições Cotovia, Lda.
Revisão: Ignacio Vázquez
Impressão e encadernação: Printer, Indosma Gráfica, S. A.
Abril de 2001
ISBN: 84-8130-293-7
Deposito legal: B. 19 702-2001
Tiragem: 90 000 exemplares
Todos os direitos reservados
1
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
Luísa Costa Gomes
Contos outra vez
Grande Prémio de Conto
Da associação portuguesa de escritores
Uma Empresa Espiritual
Índice
I
Uma Empresa Espiritual
A Janela da Despensa como Argumento Moral
Os Três Homens Aderem à Revolução
Sentado no Deserto
Costureirinha
II
Brandina ou o Silêncio dos Produtos
Últimas Notícias
À Grande e à Francesa
Hades
Elegantil
III
O Caso dos Dois Juans
O Salto de Master Campbell
O Pico do Furcht
Rex
IV - Viagens que não fiz
1. A Islândia
2. Catorze Países em Oito Dias
3. Encontro em Éfeso
4. Preâmbulo à Nova Zelândia
5. À Chuva na Ilha da Vancouver
6. Algures a Sul do Bidon V
7. Terra Adormecida
I
Uma Empresa Espiritual
Procure o leitor imaginar um homem. Ele há-de ser todo ao alto,
encovado, o rosto à proporção, ossudo e sombreado da barba. Como
auxiliar, lembre-se da mística Toledo onde cresciam como espargos
essas figuras que o Greco tornou populares e que passaram, de então
para cá, a ser o símbolo mesmo da vida ascética. Se julgar injusto o
requisito de tanto esforço, vá pelo Quixote, tire-lhe uns anos,
desmonte-o do Rocinante, calce-lhe umas sandálias, o burel de um
hábito, faça-lhe uma atitude um pouco menos tresloucada, traga-o ao
presente onde ele vive estremunhado - e aí tem o Tomás Bernardino,
pode muito bem ser que da Anunciação. A chamar-se assim, é capaz
de trazer o olhar pisado de tanto meditar para dentro, aflito de si
próprio e de como servir o mundo, mais que do funcionamento e
modo proveitoso de se servir dele.
E afinal, que importa? Não é no frontispício das intenções que se
joga a mão, é no final da história que se dão os votos.
- Isto hoje esteve fraco - disse o Bento a limpar a boca do café. -
E o almoço é sempre a mesma merda. A propósito, o director quer
falar consigo.
Tomás Bernardino ia perguntar “outra vez?” mas pensou melhor.
Depois, perguntou:
- Outra vez?
O Bento encolheu os ombros. Quem se podia dar ao luxo da
caridade de conversar explicadamente numa tarde daquelas? Queria
era fechar os olhos e adormecer, ali à mesa, arredando a chávena, ou
nem isso. Mas já se abriam as portas aos grupos (ia tarde. Quarta-
feira, como de propósito, estavam trinta e seis graus. Discutiam,
justamente ao almoço, esse fenómeno climatérico desprezado nos
manuais que consiste na distinção entre os trinta e seis graus
quentes e os trinta e seis graus frios. Os primeiros, que ganham em
secura ao acumularem-se nas paredes durante um certo tempo, são
bem mais temíveis do que os trinta e seis graus novos de uma
canícula, colocada ao meio de dias frescos. Eram debates que
exasperavam os humores, especificamente a bílis, de Bernardino, que
se recolhia no silêncio a organizar os alimentos no prato. Quarta-feira,
portanto, havia dois espectáculos, um de auto-flagelação e um de
canto sacro. Uma estafadeira que os fazia despegar arrasados, a
suspirar pela calma das segundas-feiras em que se fazia uma
confissão pública e ala para casa, descanso do pessoal.
A manhã, no entanto, como dizia o Bento, estivera fraca. A falta
de público, mesmo considerando o calor, desencorajava-os.
- Não se lembram de um que esteve cá uma semana, ou pouco
mais, que passava o tempo a afiançar que não era nada com ele? -
perguntou o Bento, de olhos fechados, soçobrando. - Pois também eu
já estou como ele. Esteve fraco, mas não é nada comigo.
- Que lhe disse o director? Que quer ele?
- Ainda dará tempo para um cigarro? - quis saber o homem do
lado. - Ó Marques, ainda posso? Ou já é tarde? - gritou ele para o
outro canto do refeitório, por cima do estrépito das conversas, dos
ecos dos talheres, apontando o cigarro.
- Pá - gritou o Marques de volta -, já devíamos estar na sacristia,
anda sempre tudo atrasado. Ninguém ouviu a sineta? Vê lá se
despachas isso...
- A que horas estará no gabinete? - perguntou o Bernardino,
encarando primeiro o Bento adormecido e depois o homem do lado,
que era novo para ele.
- Consta que vive lá. Faz à americana, come uma bucha com a
mão direita sentado à secretária e continua a escrever com a
esquerda.
- Raio de emprego - disse o Bernardino.
- Bem pago - disse o outro, limpando a cinza do hábito. Pouco
esforço, criativo até. Ganha-se catorze meses, os extras à parte,
declara-se o mínimo por causa do imposto... Eu estou bem. Gosto. O
almoço é que é sempre a mesma merda, nisso tem aquele toda a
razão.
Olharam ambos para o Bento.
- Você tem cara de frade - disse o Bernardino com amargura -,
barriga de frade, cabeça de frade. Não admira que esteja bem.
- Não é preciso ofender. Tive uma banda, toquei guitarra baixo
durante uma data de anos, mas nem todos podem ter sucesso. Isto
ao menos é seguro. A barriga e a cabeça foram os aspectos que me
seleccionaram. Músicos há milhares, note.
Noventa por cento desempregados.
- É um trabalho de blasfemo - disse o homem que fazia de irmão
Tomás. - Um trabalho estuporado.
Ao grito do Marques que os chamava pelo megafone, o Bento
acordou a dizer que era já bem tempo de se ter inventado um hábito
de Verão numa sarja leve e confortável, que não desfavorecesse o
espectáculo. O burel teria a sua autenticidade, e a autenticidade é
insubstituível na reconstituição histórica, mas quem iria reparar se o
trocassem por um algodão fino, arejado? O burel, em termos
estéticos, era o cabo dos trabalhos. Quando ainda não estava afeito
ao corpo, era teso e armava em balão, produzindo figuras muito
deselegantes. Picava no peito, dava comichão nas costas. Nos casos
piores, causava alergias. E pelo fim da Primavera, quando abria a
estação, ainda regelavam os falsos frades, proibidos de se mostrarem
ao público em meias de lã.
Tomás Bernardino ia pronto para lidar o Baptista. Chamava-lhe
alarve, merceeiro, filho da mãe, entre dentes, e raspava a mão nas
paredes multisseculares. De exagero, quase corria para o gabinete do
director, instalado com todos os confortos no que tinham sido os
aposentos do Superior da Ordem. Parvalhão das dúzias, génio do
marketing, filho da mãe.
- Pensas que se brinca com o espírito? - perguntava ao Baptista,
furioso, parado diante da porta fechada do gabinete.
Eu te digo se se brinca com o espírito. Bateu à porta. Ouviu de
dentro a voz do director dizer que entrasse. Trocaram saudações e
Bernardino sentou-se. Em cima da secretária, viu mais uma vez,
abominando a estúpida vaidade do outro, a placa de prata com o
nome: “José Maria Andrade Pardal Baptista, gestor” e um símbolo, de
intenção heráldica, que representava uma águia sobrevoando o que
parecia ser a concha de um baptistério, supôs Bernardino que em
alusão engrandecedora à modéstia da denominação Pardal.
Não é difícil imaginar José Baptista. Exala-se dele o conceito
mesmo de prosperidade, auto-confiança e saúde. Tão alto quanto
Bernardino, parece maior, mais denso, cheio de autoridade. Aos
quarenta anos, já não tem idade certa. É uma camisa às riscas azuis,
uma gravata aos patos, umas calças pardas. É uma energia
concentrada, que não se espalha em gestos, não se gasta em
subterfúgios. Fixa o objectivo de frente, procura o olhar do
interlocutor, regula para o familiar o volume da voz.
- Sabe com certeza que o produto que vendemos é delicado.
Essa delicadeza exige de nós o máximo rigor, a máxima disciplina,
para garantir a qualidade. Não podemos, de maneira nenhuma,
compactuar com os caprichos individuais dos nossos empregados.
Bernardino viu passar, nos olhos do Baptista, e num instante, a
fímbria de uma dúvida quanto à correcção do “compactuar>@. Mas
havia algo de enternecedor nela e o falso monge teve vergonha de
mostrar compaixão.
- Faço-me entender?
- Penso que sim - respondeu. Reparou na postura em que se
sentara, obrigado pelas saias do hábito. Pernas juntas, pés juntos,
magros, dedos finos, tristes, deitados nas sandálias de couro. Com as
mãos postas no colo, curvado para diante, tinha a impressão de ser a
imagem viva do suplicante. Endireitou as costas. - Mas... - disse. - O
seguro não cobre todos os riscos e nós não queremos problemas com
o seguro. O espectáculo de Vésperas, terça-feira, não inclui possessão
pelo Demónio. O senhor podia ter-se magoado. Foi uma atitude
irrepreensível. Lamentável.
- Não se brinca com o espírito - disse Tomás Bernardino.
- O seguro, explicita o programa de Vésperas, não cobre riscos
físicos, não cobre cabeças partidas, não cobre perfuração do pulmão.
Com todo aquele espumar pela boca, o senhor podia ter-se magoado.
Tem de se mostrar mais responsável. Faz parte da sua job-
description.
E perante o silêncio ressentido do empregado, o gestor repetiu o
que lhe dissera já em sermões anteriores: que encorajava a
criatividade dos colaboradores, que todas as ideias eram
consideradas e estudadas desde que viessem postas por escrito, mas
que numa empresa daquele teor, em que o público era o pilar da
sobrevivência, o fundamental era seguir o programa e dar ao cliente
exactamente o que ele pagara para ver.
- Quem lhe garante que o público quer ver possessos à terça-
feira? Terça-feira, o que é que lá diz no programa? Prostração, oração
em Latim, tonsura, lava-pés, beija-mão, programa em cinco partes,
das dezoito às vinte, intervalo de quinze minutos. Quer um número
exclusivo de possesso, escreva o projecto, entregue-mo, deixe-me
ponderar. Agora fazer possessão sem estar no programa só confunde
o público e os seus colegas, que ficam sem saber com o que contam.
Houve quem pensasse que tinha havido alteração, que estavam a
representar um exorcismo. Ora, exorcismo é quinta à noite. Como
sabe, é quinta à noite.
Calara-se.
- Devo dizer-lhe, mais uma vez, qual é a sua função nesta
empresa? O senhor foi contratado...
- Sim, eu sei, o contrato.
- Se quiser rever a sua situação... Ergueu-se, em todo o seu
horror, diante dos olhos do espírito de Tomás Bernardino, o espectro
da Escola Secundária do Laranjeiro. Fora aí colocado no seu devido
lugar, a ensinar História. Tentara ensinar História por todos os meios
ao seu dispor. Por jogos, por concursos, por desenhos animados, por
palavras cruzadas, por encenações teatrais em que ele acabava
sempre por fazer de tolo da Corte. Dera prémios, dera estalos. Todo o
esforço era vão, toda a estratégia baldada. Não havia, nas cabeças
dos meninos, a mínima noção do que pudesse ser o tempo, os séculos
passados e interesse algum pelo que tivesse neles havido. No
desespero, dera por acaso com o anúncio: “Frades, precisam-se para
Empresa Espiritual. Resposta ao número tantos deste jornal”.
- Julgo que o senhor Tomás não terá sido trilhado para este tipo
de iniciativa. Posso libertá-lo em qualquer momento e vou libertá-lo
em qualquer momento. No momento em que a sua atitude
individualista puser em causa o projecto do conjunto, tal como foi
estipulado. Sabe que a credibilidade do espectáculo depende da sua
verosimilhança. O senhor, na sessão de Vésperas de terça-feira, como
possesso...
Não estava possesso. E cometeu diversos anacronismos,
disseram-me que falou de satélites, de telediscos... E logo o senhor
doutor, que é de História.
- Disseram-lhe? Quem?
- Relógios digitais e nada disso existia no período consignado. O
senhor passou das marcas. Embaraçou os seus colegas. Pôs em risco
a coerência do espectáculo, e pior do que tudo, o que é
verdadeiramente imperdoável é que o senhor incomodou o público. E
um cliente incomodado é um cliente que não volta nunca mais. Faço-
me entender?
- Com certeza.
- Tem algum problema de que me queira falar?
- Nenhum. Lamento tê-lo feito perder tempo.
- Sempre ao dispor.
- Larva! Cobardolas! - gritou então Bernardino para si mesmo,
enquanto se levantava para sair. Já fora do gabinete do director,
puxando o hábito que se lhe entalara na porta, desabafou, contendo a
voz:
- Verme da terra! - E, atrevidamente, já afastado, disse para uma
pomba tresmalhada que passava fora, no momento:
Isto não é um mosteiro! É uma fantochada! Debaixo da alta
abóbada, iluminada por projectores potentíssimos, vermelhos,
alaranjados, numa imitação credível do Inferno, a que não faltavam
os fumos-de-máquina, a congregação chicoteava-se. Os instrumentos
da flagelação tinham obedecido ao duplo requisito da virtude
histórica e do design sugestivo. Não era bem medieval a cena e não
se podia situar em nenhum século particular. Era um tempo
imaginário, com uma intensidade espanhola, uma intenção barroca.
Havia vergastas, chibatas, chicotes, uns mais sofisticados que outros.
O Bento, empunhando um belo exemplar cujas pontas ostentavam
pequenas bolas de ferro, batia de bom grado no homem que Tomás
conhecera ao almoço - e que se chamava, de nome artístico, António
-, agora retorcido em esgares e gestos expansivos. E era por todo o
lado um aviar de pancada, assestada no próximo ou nos lombos
próprios, um ecoar de gritos, de gemidos, de imprecações furtivas a
chamar a atenção a outrem para os excessos do entusiasmo. Da
galeria, tiravam-se fotografias e registava-se em vídeo.
Bernardino teve vergonha e ficou à porta. Baixou os olhos para
as sandálias. Lembrou-se de repente dos colegas da Escola do
Laranjeiro, da troça que faziam por ser o único a usá-las, desde o
dealbar da Primavera ao assentar das notas dos exames. Surgiu-lhe
na memória o refrão do hino que lhe tinham feito no jantar do fim do
ano lectivo esses garridos jovens prematuramente condenados à
docência, com o título “As Sandálias do Professor”. Associou à vileza
deste pensamento a pequenez do gestor Baptista e num soluço
pensou que era tudo terra e pó, vaidade, vacuidade, falsidade. Daí,
lembrou-se de outras vezes, de outras falas, e deixou-se cair,
auxiliado pelo contraste entre a sombra em que se escondera e o
clamor que lhe chegava da nave, em analepse profunda.
- Vou contar-lhe um pouco da história deste projecto - dissera
José Baptista logo na primeira entrevista -, pode ser que compreenda
melhor o espírito da empresa.
A história começava uns dez anos antes, no seio de uma
multinacional, a Burotics Inc., com sede em Tucson, Arizona, e filiais
nas sete partidas do mundo. Abriu-se o ramo português com pompa e
na circunstância elogiou-se o esmero da companhia e louvou-se a
iniciativa. Não havia muito mais a fazer. Meteu-se pessoal. Formatou-
se o pessoal de modo a entrar na disciplina do comércio à larga
escala. Mandou-se embora o pessoal que não servia. Poucos foram os
escolhidos. José Maria Baptista, trinta anos feitos e todo vontade de
vencer, ficou.
Importante foi, disse o gestor, a maneira de ficar. No caso de
José Maria Baptista, fora dedicação exclusiva desde a primeira hora.
Era o primeiro a chegar, o último a sair e levava trabalho para se
entreter em casa.
- Sentia uma oclusão de entusiasmo, vibrava com o meu
trabalho. Nada mais contava. Era toda a minha vida - dissera ele e
Bernardino lembrava-se de se ter perguntado em vez de que outra
palavra estaria ali a “oclusão”.
Baptista divorciara-se pouco depois. Tinha ficado só com a
companhia. Deitava-se tarde, dormia pouco, acordava ansioso por
mais e mais facturação no departamento das Expedições. Um
departamento difícil, minado de intrigas, quezílias entre secretárias,
casos de amor falhados, ambições concorrentes, para não falar da
permanente revolta dos materiais, desde os erros dos computadores
ao desaparecimento de arquivos. José Baptista a tudo se dera todo.
Meu objectivo número um era chegar ao topo, compreende? - e o
Bernardino realizara que se lhe estava a contar uma história moral.
Ficara interessado, embora contrariado.
Pela devoção, fora subindo na empresa. Chegara a dirigir o
departamento. Esforçara-se por manter os equilíbrios. Puxar por uns,
acalmar outros, não ter mais ideias do que as que sabia de antemão
poderem ser entendidas por todos. Mas ardia por reformar. Altas
horas trabalhava num plano de escalas inteligente, que encurtasse os
prazos de entrega, optimizando os percursos e os recursos. E
estudara a forma de...
É o implementar. A implementação correra bem, mas esgotara o
homem. Confundira excessivamente os serviços. Causara a catástrofe
informática em computadores de natureza conservadora. E a Cher
Bureau acabara recebendo uma encomenda de quarenta mil contos
em que nada do que fora entregue podia aspirar corresponder ao que
fora pedido. O senhor Petitot, de Bruxelas, inflamou-se pelo telefone
com este erro e fez pagar a chamada no destinatário.
O Presidente Walter viu-se forçado a chamar o Baptista e a pôr-
lhe diante dos olhos os custos da operação de troca do material. Eram
enormes. O director do departamento das Expedições sentia sorrisos
à sua passagem. Aplicou-se mais e mais e a aplicação parecia virar-se
contra ele. Queria reacender a chama da confiança, a chama da boa
impressão; escrevia relatórios exemplares e apresentava planos
prudentes - era recebido com cepticismo ou ignorado. Aquele exílio
da graça dos superiores durou dois anos. A força de horas
extraordinárias, de atitudes exemplares, estava o Baptista prestes a
saldar o erro original, e o Presidente Walter já começava a olhá-lo
olvidado da grande perda que sofrera, quando o contactou o
advogado de uma pequena agência marroquina, reclamando de mais
uma confusão na expedição de material. Era irónico, concluía agora o
gestor, que tivesse pesado mais, no seguimento das coisas, esse
pequeno erro com a agência marroquina do que a voz telefónica do
senhor Petitot, um dos clientes primordiais da Burotics Inc. Porque a
reclamação do advogado marroquino fora uma espécie de sinal para
que saísse do nada Lima avalanche de denúncias, de injúrias e de
acusações, dentro e fora da empresa.
Havia corrupção e o Baptista andava a dormir na forma. Alguém
no seu departamento, debaixo da sua gravata aos patos, andava a
desviar o material destinado a marroquinos, a gregos, a cipriotas. O
Baptista continuava a procurar os equilíbrios, eles é que não se
deixavam encontrar. Tudo lhe resistia. Tudo se virava contra ele, a
morder a mão que tanto organizava. E, já no fim, quando o Presidente
Walter em pessoa lhe entrara no gabinete acenando uns papéis e
exigindo uma explicação, o José Baptista, esmagado pela injustiça do
mundo e dos conglomerados, abatera-se sobre a secretária
inteiramente ergonómica num choro convulsivo. Era o amor não
correspondido pela multinacional que assim o magoava fortemente. O
Presidente Walter estacara pasmado a olhá-lo, incerto da atitude a
tomar, e saíra sem fechar a porta. Mandara a secretária chamá-lo
pouco depois, pedira-lhe que se sentasse e anunciara que o ia
mandar de férias.
- Férias? - gritara então o Baptista. Informado do processo, o
Presidente Walter concluíra que, em nove anos de casa, o Baptista
não tirara um único dia de férias.
- Adoro o meu trabalho - afirmara.
- Só lhe fica bem - dissera o Presidente, que levava o snobismo
ao ponto de falar o português sem qualquer sotaque e sem enganos,
usando mesmo aqui e ali alguns regionalismos -, mas de momento
essa sua adoração só nos está a causar problemas. As férias somos
nós que obrigamos, somos nós que pagamos. Que é que quer, campo
ou praia?
- Eu, sinceramente, prefiro trabalhar. Não me calha, agora.
Tenho assuntos pendentes. Dentro de um mês ou dois, talvez,
podemos voltar a pensar nisso.
- Estamos em Junho. Escolha o sítio.
- É muito gentil. Mas prefiro não ir.
- Temos de deixar de o ver durante um mês, seis semanas.
- Um mês?
- Para restabelecer a ordem. Mês e meio. Vai relaxar.
- E o departamento? Mas o Presidente Walter pegava no telefone
e pedia que o ligassem à Paradise Lost. Apesar do nome, era uma
agência de viagens em Alcântara, que tinha a particularidade de se
ter especializado em stress. Conhecia bem a tendência do quadro
para o excesso de trabalho que acabava por transformá-lo no
fantasma da empresa. Sabia tudo, o quadro, lera todos os dossiers,
todos os processos, conhecia de trás para a frente o lugar dos
documentos no arquivo; falava muito, muito depressa, não se calava
nem quando lho pediam, nem quando lho exigiam. As suas visões de
reforma tinham de ser ouvidas sem queixas e sem perguntas, porque
ele se impacientava com a pasmaceira em que os outros se
compraziam. Zangava-se com toda a gente. Sozinho, dava-lhe o asco
do mundo e resmungava contra as traições dos falsos amigos.
Tornava-se incompreensível e lamentava-se de que ninguém o
compreendia. Um dia, metia o pé na argola. Perdia um processo,
punha um zero a mais ou a menos num cheque, tinha uma discussão
violenta com um cliente mais afoito, deixava escapar, no entusiasmo,
um segredo empresarial. Iam encontrá-lo a bater com a cabeça na
parede da casa-de-banho, incapaz de perceber como é que se abria a
porta.
Os patrões ligavam para a Paradise Lost. Pediam o catálogo dos
programas de Retiro.
- Junho é um mês complicado - respondia a funcionária -, não se
imagina como o mês de Junho é complicado, parecendo que não.
Deixe-me ver.
No silêncio que se segue, enquanto o Baptista envia uma prece
sem destinatário para que não haja absolutamente vaga nenhuma em
lado nenhum, o Presidente canta baixinho para dentro do bocal uma
moda popular.
- Parece que ainda temos qualquer coisa nos Irmãos de Cister.
Ninguém tinha ouvido falar, era um programa recente, em
regime experimental.
- É perto - dissera a funcionária, sabendo que não era um bom
argumento na filosofia das viagens turísticas -, e é barato.
Se o argumento da proximidade era um contra - sabe-se que
quanto mais remoto for o destino da viagem, mais repousante ela é -,
o argumento do preço também não contava numa empresa que
queria deduzir a despesa nos lucros.
- É o que temos de momento - concluíra ela, e ficara à espera.
- É campo, é praia, é montanha? Tenho aqui um caso muito
grave de excesso de trabalho.
A funcionária explicara vagamente que se tratava de um
mosteiro muito velho, tão velho que se podia considerar antigo. É
rude, é tosco. É ambiente familiar. É estilo românico. O Presidente
Walter percebeu que ela lia por alto o folheto. A congregação é
dedicada ao estudo. Recebe hóspedes, homens, particulares. Tem
pomares, há um ribeiro.
- Marque-me já um mês, seis semanas.
- Posso levar algum trabalho para ir adiantando? - perguntara o
Baptista, com a voz a tremer.
- Não leva tal. Saia. E levantava-se o turista, encaminhava-se
para a porta, quando se lembrou:
- E, Walter, aquela entrega urgente? As divisórias para as
Canárias? É só despachar isso e posso ir.
- Vais-te embora já - disse o Presidente Walter. E não estava a
brincar. Vemos agora, pelos olhos de Bernardino, o José Baptista
especado à porta do Retiro dos Irmãos de Cister. Ao Baptista, cheira-
lhe a quartel, cheira-lhe a hospício e a asilo de velhos. É uma
correnteza disposta em quadrado à volta de um pátio onde secam os
canteiros. As janelas de guilhotina, no rés-do-chão, estão pintadas de
fresco por cima de muito tempo e muito caruncho. O mosteiro, sabê-
lo-á depois, não é ali, mas ao lado. Como instituição, tem as suas
tradições, as suas glórias, colonizou e civilizou as redondezas,
notabilizou-se pelas habituais tropelias do poder enquanto o teve e
por uma especialização em História imaginativa e de auto-
legitimação.
Se estivesse apto a ser impressionado, o viajante teria, em
olhando para a Igreja, visto ao que se chama a majestade de um
monumento. Mas o espaço imenso da nave e a altura da abóbada só
o fazem sentir mais culpado e mais perdido. Quem é o responsável
por estas férias? Apenas ele, mais ninguém. O seu fracasso, a sua
vergonha. O homem das Expedições, o mesmo que imagina o
percurso das suas mercadorias por terras alheias, na maior parte
hostis, que as acompanha carinhosamente nos mapas, é obrigado a
deslocar-se em pessoa, para sofrer a humilhação das suas férias.
Comprara dois livros, uma resma de revistas da especialidade e
acabara a ler com atenção as regras para se ter acesso ao pequeno-
almoço, impressas numa folha sebenta, pregada com toda a força na
porta do quarto.
Mas ele ainda está em frente da entrada, a resma de revistas
debaixo do braço, a mala pequena pousada a seus pés. Não tem
coragem de fazer soar a aldraba, para não ter de saber o que fica do
outro lado. Muda as revistas para o outro braço, considera fugir. Toma
pouco a pouco consciência do seu corpo (isto interpreta Bernardino,
porque o gestor dissera apenas “que lhe pesavam as barrigas das
pernas”), a causa do seu desespero, e pensa que está bem arranjado
se começa ainda por cima uma crise de tipo psicológico.
Tomás Bernardino vê agora o objectivo da narração do gestor.
Identifica-se com o desespero do homem diante da porta e com o
terror do conhecimento do lugar do exílio. Vê que se assemelham os
seus fervores, a mesma busca da sinceridade numa vida de outro
modo mole e inexpressiva. Por isso compreende aquele pânico das
seis semanas de ócio, em que o Baptista, forçado ao relaxamento,
não poderia avançar com nada de verdadeiramente curricular.
- Não tinha nada que fazer durante um mês e meio dissera o
gestor -, nada de construtivo. Fico com pele de galinha, ainda hoje,
quando penso nisso. Foi um momento difícil que durou alguns dias.
Deixei de dormir. Comecei a beber. Os irmãos do Retiro olhavam-me
de lado e os outros hóspedes evitavam-me.
Era de prever. Todos eles quadros, habituados a drogas subtis,
encolhiam-se quando viam ao longe o Baptista, incerto, descomposto,
cambaleando nos claustros. Eles próprios não estariam bem de
saúde. O gestor dizia que os observava em grupos, a combinar
almoços de negócios ou a discutir um novo projecto obtido por meio
de uma insónia. Mesmo embriagado, José Baptista tivera o bom senso
de se manter equidistante desses grupos. Os Irmãos do Retiro tinham
suportado até onde podiam os desmandos do Baptista. Um dia
tinham-lhe dado a entender suavemente que não o queriam mais ali.
- Procedimento pouco cristão - dissera o Bernardino. José Maria
exagerava, Bernardino sentia-o, com intuitos pedagógicos. Não se
embebedara com certeza, nem de perto nem de longe, tanto quanto
queria dar a perceber. O mais natural era que bebesse pouco, mas
com a regularidade que lhe permitia alcançar um estado de anestesia
controlada e uma certa flexibilidade muscular. Bernardino não
acreditava em alterações que tirassem a serenidade aos Irmãos de
Cister. E aquelas situações em que, como dizia o gestor, ele se tinha
transcendido, deviam estar incluídas no rol das ofensas que os
monges estavam preparados para aceitar dos seus hóspedes.
Dizia o gestor que após uma semana de tortura turística, em que
se incluíram inúmeras voltas ao claustro, visitas a igrejas, mosteiros,
miradouros e a todas as atracções das redondezas, o horror ao vazio
que o deixara especado diante da porta do mosteiro dera origem a
um tédio que lhe tornava graves todos os gestos. Dormia dezasseis
horas, dezoito horas, incapaz de sonhar, de acordar, sem que o
pudesse divertir do poço negro o mais ínfimo pensamento positivo.
Para ali estava, a contar os minutos que me faltavam para voltar
à Burotics Inc. Dormindo, sonhava que me levantava e fazia todas as
acções do dia. Acordado, nada fazia. Olhava pela janela. Não era fácil,
ou sequer útil, distinguir o sono, da realidade.
- Sei como é - dissera Tomás Bernardino.
- Não sabe. É muito... - ficou à procura da palavra. Em síntese, o
Baptista andava um dia às voltas no claustro, contando os passos,
quando parou por acaso diante de um anjo.
- Penso que fosse um anjo - disse ele - ou um arcanjo.
- Qual é a diferença? - perguntara o Bernardino, pronto à
impaciência.
- São palavras diferentes, senhor Tomás - dissera então o gestor.
- Anjo, arcanjo, são nomes diferentes. Aí é que reside a diferença.
Este arcanjo, conhece-o Bernardino de ginjeira, não tem um ar
sereno. Parece um rapazinho injustamente sobrecarregado de umas
asas de pedra. Fora ele a sugerir ao Baptista a ideia salvadora, a ideia
de um grande negócio.
- Que lhe disse o arcanjo exactamente?
- O arcanjo não me disse nada, eu é que congeminei a ideia de
comprar o mosteiro com os irmãos dentro, ou sem eles, logo se via.
Mas primeiro correra de volta para a Burotics lnc., a propor-lhe
parceria no empreendimento. O Presidente Walter olhara-o sem
querer reconhecê-lo; e ao reconhecê-lo, levantara-se sem dizer uma
palavra e acompanhara-o à porta.
- Seis semanas - dissera -, nunca antes das seis semanas.
José Baptista metera-se no carro e voltara para o exílio. Mas
vinha animado de um projecto cem por cento seguro. A ideia não era
nova: germinavam, há anos, por todo o lado, os projectos cujo forte
era a reconstituição histórica - aldeias do Neolítico, castros, citanias,
vilas romanas, burgos medievais, cidades oitocentistas, em que
andavam os cidadãos nas suas vidas como se nada fosse, enquanto
os turistas aprendiam como se cozia o pão, como se fiava o linho e
quem fazia os tamancos. Um espectáculo de frades, neste contexto,
oferecia apenas a ligeira diferença que lhe permitia ser novo sem ser
inteiramente novo.
O Baptista não sabia era quanto podia custar um mosteiro.
Frades calculava que haviam de sair baratos, se ele conduzisse bem o
negócio. Tinha algum capital disponível, acumulado nos anos
desferiados e, para resumir, acabara por lhe custar mais o mosteiro
em tempo e subornos do que em contado, papel e selos fiscais.
Comprara, enfim, a maior igreja de Portugal. Naves, abóbadas,
transeptos, rosáceas, capelas, absides, Pilares, claustros e
deambulatórios, celas e refeitório, era tudo dele. E estava tudo a cair
de podre.
Montou o espectáculo. Os frades estavam à experiência e ainda
bem porque cedo se revelou que não tinham talento que bastasse
para sustentar a atenção do público. Cantavam, é certo, e oravam em
Latim, e produziam esta ou aquela iluminura, mas as confissões eram
de uma pobreza franciscana. Não tinham oportunidade de pecar em
grande aqueles homens, era sempre a gula, a luxúria, a gula, a
luxúria, e uma falta de imaginação que fazia bocejar as bancadas.
O Baptista compreendera que precisava de investir forte para
que o projecto mudasse de escala. Era preciso limpar, restaurar,
remodelar, redecorar; era preciso ver-se livre daqueles frades e
contratar actores, por um lado, e estudiosos que lhe pudessem dar
ideias, por outro. Ele queria autos-de-fé, queria procissões
encapuchadas, vergastadas, gritos e gemidos; queria encenações
emocionantes, exorcismos, conversões sinceras diante do público.
Queria milagres, curas dos paralíticos, dos cegos, dos deprimidos.
Compreendera, numa palavra, que faltava ao projecto dimensão
artística, e que essa era cara. Correra de novo ao Presidente Walter a
buscar capital. Como tinham passado seis meses, ele recebeu-o.
Como se encontrava de boa disposição, ouviu-o. Quis maioria das
acções da empresa. Investiu. José Baptista ficara com a gestão.
Juntara os Irmãos de Cister e expedira-os para outro mosteiro da
Ordem. Procedera ao recrutamento dos seus frades, após colocação
do tal anúncio em periódicos mais afeitos a massagistas e astrólogos.
Munido de algumas estampas medievais, ou que lhe faziam as vezes,
em que se viam monges em diferentes atitudes, o Baptista escolhera
por comparação uma dúzia e meia de actores, professores e
estudantes - e um padeiro - que lhe pareceram de todos os mais
próximos da fisionomia de religiosos idealizados. Foi assim que
entraram o Bento e o Tomás Bernardino numa vida que não tinham
sonhado. Mas, por outro lado, quem é que sonha vir a ser professor
de História? Mal por mal, antes o mosteiro.
E ali estava ele agora à porta, recolhido, embalado nestas
recordações e no canto dos colegas que descansavam do chicote.
Rapidamente se fazia o balanço da sua vida. Tomás Bernardino
tomara a seu cargo o estudo da Teologia, embora não tivesse nascido
em Terras de Bouro, nem descendesse de família rural de treze filhos
em que algum lote excedentário fosse doado por tradição à Igreja.
Adolescente, Bernardino tivera os seus problemas com a divindade e
metera-se sozinho à especulação. Discutira com as autoridades.
Perdera a fé na Igreja. Enveredara pela História, talvez à procura dos
vestígios do progressivo e misterioso desaparecimento do alegado
Criador de todas as coisas.
A família de Tomás Bernardino era respeitável, ainda que liberal.
Alegrava-se daquele varão e de tudo o que lhe dizia respeito, fosse o
ter boas notas, dizer o seu palavrão, envolver-se em acidentes de
automóvel ou, no extremo, estudar Línguas, Teologia ou História.
Andou o Bernardino pelas Faculdades assim favorecido pela bonomia
parental e houve uns ,anos em que esse favor se derramara sobre os
seus actos e lhe dera a impressão de que o mundo se lhe estendia
numa bandeja. Mas insensivelmente - porque foi de facto
insensivelmente, Bernardino começou a deslizar para dentro da má-
sorte e é legítimo que tenha reparado, e se tenha afligido. Afligia-se
com o amor, o saber, o poder, com o correr do mundo, com a magna
questão da alma. O negócio da família despenhou-se, quanto mais se
entrava na Europa mais definhava a fiação, o pai apanhou um cancro,
a mãe morreu de medo de que o pai morresse e o pai, sobrevivendo-
lhe uns dez anos, curava-se de umas doenças para cair nos braços de
outras. Bernardino achou-se um dia, sem saber como, professor de
História na Escola Secundária do Laranjeiro, com pouco mais em seu
nome que a casa velha de Alenquer e um volkswagen novo. Depois
vira o anúncio do Baptista.
Pondera, finalmente, se valerá a pena juntar-se aos irmãos que,
no Coro, cantam, seráficos e pós-prandiais, um Te Deum em play-
back. Enquanto pondera, já caminha para lá. O Bento, o único que
está treinado para dormir em pé, imita, no pausado das respirações,
os compassos majestosos do canto. Abrindo e fechando a boca, o
Bento dava-se a entender como o mais laudante e entretido dos
frades - e se não fosse o sobressalto estremunhado com que recebeu
o Tomás, ninguém se teria apercebido do atraso.
O espectáculo era de apresentação recente e viera substituir
uma experiência de sessões de cópia e iluminura. José Baptista cedo
se apercebeu de que os turistas debandavam ao fim de um quarto de
hora, à procura do bar do mosteiro. E embora o consumo de
refrigerantes equilibrasse o orçamento, o gestor sabia que, no longo
prazo, esta era uma estratégia auto-destrutiva. Disse de si para
consigo que a cópia de manuscritos poderia constituir uma peça
educativa de um curso de História de Arte - e considerou
comercializar as sessões em vídeo -, mas não era com certeza um
espectáculo no sentido estrito do termo, o único que realmente
importa. Pedira auxílio à sua e à imaginação de outros e montara este
canto coral, que não exigia qualquer formação profissional e era só
pôr o disco a tocar na sacristia. Para ser tudo perfeito, era um número
que parecia encantar os visitantes.
Marques, escolhido pelo Baptista para capataz da empresa, seria
competentíssimo na liderança, mas tinha uma falha no seu sistema
de trabalhador assalariado. Quando aprendia, era para sempre. Mas,
enquanto não aprendia, dava a impressão de que nunca chegaria a
aprender. Por isso, sem despegar os olhos, seguia como um cão o
canto na pauta, onde cada compasso era acompanhado de um
boneco que indicava a exacta medida da abertura e do fechamento
da boca. A chegada de Bernardino não alcançara perturbá-lo mais
que um instante.
- O Baptista disse - murmurou Tomás ao ouvido do Bento, mais
por ser um ouvido que por ser do Bento - que eu desrespeitei a
verdade histórica.
- E fez muito bem - cantarolou o Bento -, a verdade histórica é
uma grande treta.
- Diz que lhe foram dizer que eu estava possesso e que falei em
vídeos e em telediscos. Gostava de saber quem foi a besta.
- O Baptista é um director moderno - disse o Bento escolheu- de
todas as actividades da vida religiosa, as que mais aptidão têm para
se transformar em grandes encenações do espírito de todas as
épocas. A auto-flagelação, a prédica inflamada, os cortejos coloridos,
as procissões, os cilícios, as prostrações, o exorcismo, os sacrifícios à
vista de todos, lá uma vez por outra uma grande comezaina, a
confissão pública...
O Bento deixara para o fim a confissão pública por duas razões.
Primeiro, tratava-se de um tema a que Bernardino era
particularmente sensitivo - fora a sua confissão extremada, fora de
programa, que motivara mais esta querela com o gestor -, e em
segundo lugar porque o Bento era, ele próprio, nada menos que um
perito nessa modalidade de ritual religioso. O Baptista chegara a
cumprimentá-lo várias vezes por isso mesmo, mostrando-lhe a
relação estatística nítida entre as suas mais vívidas confissões
públicas e os almoços dos turistas no refeitório do mosteiro. É que o
Bento ensaiava confissões que se detinham, com pormenor tal, nos
aspectos gastronómicos, arrependia-se da sua gula tão meloso, tão
deliciado, que os visitantes largavam a correr para o comedouro ao
primeiro toque da sineta, para se empanturrarem e pecarem até
caírem redondos de indigestão.
Bernardino recorda as directivas internas para as confissões
públicas: temas que interessassem o comum dos mortais, sexo,
violência, pecados modernos; uma especialidade para cada
“colaborador”, para que se pudessem preparar com seriedade. E,
como que por uma espécie de comunhão telepática, o Bento acabou-
lhe o pensamento:
- Lembre-se das confissões do Parece, são verdadeiras obras-
primas de masoquismo, são de antologia. Se o Baptista se desse ao
trabalho de as analisar bem, havia de concluir que cresce à proporção
o número de turistas que se deixa atropelar à saída do mosteiro
depois de ouvir os delíquios do Parece, nos dias em que ele está
mesmo a sério. O que vende é o sofrimento, isso é que vende como
pãezinhos quentes.
- E a confissão em privado, de boca a ouvido, como Deus quer? A
assistência aos pobres? A vocação da fraternidade? - perguntava o
Bernardino, elevando temivelmente a voz. - A contemplação da obra
divina? A verdade histórica requer essas actividades, que eram as
principais...
- A principal - interrompeu o Bento, fora do compasso era encher
o bandulho, sempre foi. É conhecido. Por isso é que eu me queixo dos
almoços. Eles é que desrespeitam a verdade histórica.
- E os votos de pobreza, de castidade, de estudo, de obediência?
A penitência pelos pecados do mundo? Praedicatio, oratio,
contemplatio!
- Amigo Tomás - disse o Bento _, baixe lá a voz, daqui a nada
está o Marques a levantar os olhos, e somos ambos corridos da
Ordem. De resto, se você tem senso comum, logo compreenderá que
o Baptista não podia anunciar um espectáculo de contemplação...
O Marques virara a última página e fazia o sinal combinado. Mais
três compassos, boca aberta em ó, boca semi-aberta, boquinha e
estava pronto. O público acordava da letargia em que a música,
combinada com o calor, os tinha deixado e saía a arrastar os pés e a
despegar a roupa do corpo.
- Não foi mal, mas ainda estamos pouco soltos - disse o Marques,
em forma de apreciação global. - Mas para a próxima não quero ouvir
zumbidos nas fileiras. Estás a ouvir, aí atrás, ó Bernardino?
A questão da verdade histórica, que preocupava presentemente
Tomás Bernardino, é muito mais abrangedora e muito mais densa do
que ele poderia imaginar. De modo que, quanto mais pensava nela e
lhe dava as suas voltas, mais lhe dava que pensar e mais lhe parecia
ficar por pensar. Conhecendo a forma peculiar do pensamento de
Tomás Bernardino, a saber, a sua imbrincância na vida comum, é
plausível que fosse, de facto, a indecisão a impeli-lo aos excessos de
zelo que o Baptista deplorava. Tomás Bernardino não duvidava só do
gestor. Duvidava de si próprio, da justeza dos seus ideais.
A experiência mostra que o pensamento é muito fugaz. Quanto
mais o perseguimos armados da pura concentração, do amor pelas
respostas, mais ele se evade e se exprime em enigmas, em frases
soltas, em ditos ambíguos, deslocados. Era assim que, ao primeiro
espectáculo de sexta-feira, uma sessão de interrogatório do Santo
Ofício - na segunda parte havia tortura - em que o Bento fazia não
muito credivelmente de cristão-novo, passavam como relâmpagos na
mente de Tomás Bernardino estas frases desconexas:
- Também São Bernardo foi um dissidente! - E, daí a pouco: -
Correr os vendilhões do Templo. Onde é que isso estará na Bíblia? - E,
depois, sem relação aparente: - A autenticidade também vive do
auto-sacrifício dos actores. O que ele quer é... - E, noutro repente: -
Gestos verdadeiros levam a actos verdadeiros, gestos verdadeiros
levam a actos verdadeiros... - E esta frase repetia-se
desnecessariamente.
- É o circo, isto é um circo, não há dignidade.
Há ainda outra questão abrangedora e densa que preocupa
igualmente Tomás Bernardino, e ela é a questão dos despedimentos.
Ressalve-se que, enquanto tinha pouca consciência do seu papel na
cadeia assalariada e desconhecia as maiores vicissitudes do mundo
do trabalho, Tomás Bernardino trazia muito presente a noção da
Escola Secundária da Laranjeiro. E se o Baptista corporizava o Mal,
corporizava-o ainda mais, para o falso monge, devido ao facto de que
a alternativa ao Mal fosse o ensino da História.
- Um dos mais altos flagelos do nosso tempo é a esperteza -
disse para si o Bernardino , a esperteza saloia. Para ela nada é
sagrado. Nem mesmo a verdade histórica.
Vender bilhetes é uma coisa, pensava ainda, e ficar nas galerias
da História como autor de uma representação rigorosa, outra coisa
bem diferente. E a desgraça estava em que não se podiam as duas
perspectivas confundir, misturar, sequer complementar. Elas
excluíam-se por natureza.
Preocupa-o, então, o despedimento, não do ponto de vista do
desemprego, nem da pobreza - Bernardino, sem o saber, considera
que merece ser pobre , mas porque é insuportável a vergonha da
derrota. Ele e o Baptista, o monge do espírito e o gestor do
espectáculo, encontram-se agora em combate de titãs. Tomás quer
monges vernáculos, que possam repetir ponto por ponto os rituais.
Considera que seria útil para o espectáculo, porque acrescentaria
essa dimensão espiritual a que se chama qualidade, e mais
enriquecedor para todos. Ofendia-o a distorção a que o Baptista
submetia todos os fenómenos e aquela nervura central do espírito da
época que perdoa a mentira se ela tem um fim lucrativo.
Da última confrontação - como Bernardino gostava de lhe
chamar na memória lisonjeira que lhe ficara - com o Baptista, Tomás
reservara muito pouca da simpatia que tivera pela experiência
aventurosa do gestor. O que crescia, com a passagem dos dias, era a
raiva que lhe tinha. Raiva, porque o Baptista se julgava protegido pela
única verdade, o único valor, o do sucesso do empreendimento, a que
havia de sacrificar lobos e cordeiros e o que fosse preciso.
Andou ali uns dias tem-te não caias, muito amuado com a época
que lhe calhara na rifa, e ora faltava aos serviços, ora ia e não
cantava, nem respondia quando lhe perguntava a San- ta Inquisição
cousas do foro íntimo. Ficava embatucado, a remoer. Não é de
estranhar que pensasse agora o Bernardino numa forma vindicativa
que levasse a melhor sobre o Baptista, demonstrando ao mesmo
tempo a superioridade da sua concepção.
Mas a vingança não será uma modalidade criminosa simples. É
muitíssimo subjectiva. Fundamental na vingança é que o objecto do
ódio tenha a perspicácia de dar por ela. Se cremos que nos vingámos
e o outro prossegue na sua vida bonançoso, indiferente, então não
nos vingámos. Isto implica um conhecimento profundo do sujeito de
quem pretendemos vingar-nos. Mas o que é o nosso conhecimento do
outro senão um caos de interpretações, de pressupostos, de
hipóteses, de mal-entendidos, pousados eles mesmos sobre uma
série de omissões, de máscaras, de silêncios, de vazios? É um
estranho conhecimento, uma quase ignorância. Não é o medo da
retaliação que nos impede a vingança. É este seu aspecto
contingente. Se Tomás Bernardino tivesse outro temperamento, havia
de querer o acaso deixar tomar conta dos seus ajustes. Mas, como foi
o leitor imaginá-lo? Duro, seco, sério. Não será o próprio exemplo da
coragem, mas é combativo, discretamente, intimamente é-o. Agora é
apenas consequente que se queira vingar, e logo do Baptista,
principal espinho da sua consciência, causa primeira das suas dúvidas
- em Baptista é do tempo que ele se vinga, das coisas que ele mata. E
sem mais pensamentos sobre a natureza da vingança, Tomás
Bernardino passou ao acto.
João Fortunato, dito o Bondoso, era o único empregado que se
fazia passar por uma personagem histórica mais ou menos real, no
caso, Bernardo de Claraval, fundador da Ordem de Cister, mas
velozmente mudado num género de Savonaro. Ia, deitando sermões
inflamados do púlpito aos cristãos turísticos que de baixo lhe
recebiam com palmas as ameaças. São Bernardo, que fora o Doutor
Melífluo à força da sua grande eloquência, sofria aqui o tipo de
adaptação histórica que o Baptista preferia. Falava num jargão bíblico
que o gestor garantia como seiscentista, traduzido em diversas
línguas, e macarronicamente por uma rapariga poliglota recém-
formada, para dentro das orelhas dos clientes, invectivando os irmãos
que andavam a pedi-las, outros que se não comportavam em
circunstância alguma à altura da sua Humanidade e deixando cair,
mas isso já dependia dos humores do Fortunato, alguma sugestão
inquisitorial, alguma rosnadela persecutória, remotíssimas todas das
verdadeiras intenções do pobre São Bernardo e do século doze em
que ele viveu. Esta síntese entre os lugares comuns do barroco e o
nome de São Bernardo pregava, com extrema teatralidade, sermões
ao sábado ao fim da tarde.
Nesse dia o público ostentava no seu seio um padre vestido a
rigor, e não se sabia se já fora integrado na representação. A ser
actor, era espantosamente discreto, mantendo-se silencioso e atento,
de mãos postas no regaço, a ouvir o sermão que lhes pregava o
Fortunato. Começava sempre da mesma forma:
- Pecadores! Eu já vos tenho falado das labaredas do inferno
onde caireis desamparados, longe do olhar misericordioso de Deus. O
Inferno, ó meus irmãos, é que Deus voltou de nós a sua Face
resplendente; nosso Pai abandonou-nos, vivemos na escuridão,
vivemos na abjecção, vivemos na ignomínia, vivemos na vileza dos
instintos. Que podemos fazer agora que o Senhor nos lançou dele?
Que fizemos nós? - Depois do silêncio, em crescendo: - Hipócritas!
Bancai de inocentes, sim, bancaaai! O Senhor rejeitou sobre nós as
suas pragas, as pestes, as doenças...
Dos irmãos, ninguém ouvia. Havia uma dúvida séria sobre se
pagariam na próxima segunda-feira. Bichanava-se sobre o Monteiro
da secretaria, dizia-se que teria fugido com o dinheiro. O Bento que,
pelo hábito, dormia muito bem embalado nos sermões do Fortunato,
e a quem roía também a dúvida do salário, notara a agitação do
Bernardino. Suspirou e deitou-lhe o canto do olho. Viu como o outro
retorcia as mãos, como lhe tremiam as lágrimas nas pestanas, e
fungava, e estremecia, numa representação quase tão excessiva
como a do próprio Fortunato.
Pecadores, eu vos digo que vos arrependais, chorai e arrepelai-
vos, de rastos e de joelhos rogai, implorai o perdão que não
mereceis... - e, depois que um clarão artificial, ajudado por um
estrondo bem mais débil do que fora pretendido, iluminara a rosácea
numa sugestão de trovoada - É a voz do Senhor, não temos perdão!
Quando, passadas algumas invectivas amargas, o falso São
Bernardo derivara das retóricas um pouco do pecado para entrar na
invenção duma parábola, a parte mais esperada dos seus sermões,
viu-se Tomás Bernardino estremecer, cerrar os olhos e palidamente
ranger os maxilares com um gemido, não muito abafado.
Um dia, andava Jesus na Galileia... e levanta-se o Bernardino,
mas ninguém ligou, salvo o
Bento, que o obrigou a sentar-se com um puxão. Desamparado,
T(--)más sentou-se de novo e o Bento voltou a tentar adormecer.
Nunca se pudera compreender a popularidade destas parábolas
do Fortunato, que eram ininteligíveis, não só por serem ditas numa
algaraviada de fabrico próprio, como porque o sentido delas não era
obscuro à maneira das parábolas, mas era obscuro à maneira do
desconhecimento delas. Acabada a parábola, João Fortunato
considerou poder avançar para as admoestações finais, e avançou.
- Pecadores - perguntou -, porque disse o Senhor não pequeis
quando nos sabia fracos? Porque disse o Senhor sede bons, quando
nos sabia maldosos?
Claro era apenas que a formação teológica de João Fortunato
deixava muito a desejar; e tudo o que ele dizia, envolto nas pregas de
uma capa de tafetá vermelho, estava do princípio ao fim eivado de
heresias. Era nisto muito moderno, acusando a divindade do defeito
da mercadoria, como algum antigo cliente da Burotics Inc. que
reclamasse da entrega.
- Que pecado afinal é o nosso? Somos gananciosos, Senhor, é
verdade. Curvamo-nos diante de Ti. Batemos no peito. Mas a Tua
obra é divinamente apetecível, e Tu deste-nos o desejo dela. Nós
queremos as águas dos rios, os peixes dos rios, as árvores das
florestas, os animais das florestas, o ouro das minas, as espécies da
índia, e tudo de paragens remotas que nos espicaçam a fantasia, e
logo as queremos ter. E para as possuir é preciso extrair, cortar,
arrancar, desenterrar, explorar, despojar, colher, matar, sacar!
Queremos ter, Senhor, ter a Tua obra! Fomos feitos assim, nós,
pecadores, feitos no céu, pelas Tuas mãos. Uma sede de possuir a
obra belíssima da Tua criação, Senhor, eis o nosso único pecado!
Tomás Bernardino levantou-se de um salto.
- O nosso único pecado - gritou - é a falta de sinceridade.
Para explicar o que segue, temos de dizer que se estava depois
do almoço. E embora a antiga Disciplina dos Monges fosse clara
quanto à alegria que devia existir antes de comer e à gravidade e
circunspecção que se devia ostentar depois, para não dar a
impressão de que o “bever nos squeentou e espertou o falar, por o
pecado da gargãtoice”, o facto é que o Fortunato se chegava sempre
mais ao tinto quando tinha sermão. De maneira que, confrontado ao
improviso do Tomás Bernardino, tomou-se de brios depois de um leve
momento em que a perplexidade lhe inclinara a cabeça e
arredondara os olhos e aceitou o repto.
- Quem se atreve assim, ímpio, a interromper a palavra do
Senhor? Quem ousa, herege, infame, sandeu e fariseu, interpelar
aquele que, inspirado, fala a verdade...
O Bento acordara tarde de mais, já Bernardino se chegava ao
púlpito e intentava apear dele o Bondoso. João Fortunato olhava ao
redor, intrigado. Esperava um sinal dos céus, um sinal do Marques,
para saber se havia de resistir e armar uma batalha campal, se devia
aceitar ser substituído no alto ofício por este pregador que se lhe
agarrava à capa e estendia as mãos para o estrangular. Tomás não se
calava, chamava-lhe hipócrita... Caindo o Fortunato de escantilhão,
virou-se o assaltante para o público como se uma angústia horrenda o
estivesse sufocando. Fez uns gestos em branco. Na igreja, o público,
silencioso, esperava. Tomás afastou um pouco os braços do corpo,
como se quisesse enxotar algum animal suspeito, e disse baixo:
- Podem ir, acabou o espectáculo. E como ninguém se mexia,
excepto o Fortunato que se sentira interferido e fizera um gesto para
retomar o seu posto, Tomás continuou:
- Nós somos falsos monges. Nada disto é real. Ou melhor, é real,
mas não é verdade.
Desceu do púlpito. E, de repente, sem qualquer aviso, caiu de
joelhos e prostrou-se aos pés de um suíço que deu um salto atónito à
rectaguarda. Esboçou um gesto vago, humilde, de levar a mão à
carteira, no bolso de trás dos calções, mas pensou melhor e sorriu
para o Fortunato, embaraçado.
Bento dizia depois, de cotovelo apoiado no balcão do bar a beber
uma cerveja, que Tomás fora “tomado de uma urgência de
comunicar”. Falara da sua infância, de incidentes sem valor. Depois
entusiasmara-se, e fizera o seu sermão da autenticidade. Insultara
como papalvos e burgueses embasbacados os turistas que ouviram
tudo o que ele quis dizer. No final, João Fortunato decidira agir para
proteger um americano que Tomás empurrava à sua frente pela
nave. Acenara com autoridade a dois monges da linha da frente, um a
que chamavam o Parece e outro que tinha umas semelhanças com as
pagelas da catequese em que Jesus era loiro, de olhos azuis e um
tanto amaneirado, e ordenou:
- Levem-no! Eles avançaram como se nunca tivessem feito outra
coisa na vida, apanharam o Tomás Bernardino cada qual por seu
braço e arrastaram-no para fora da igreja. Conhecendo por
experiência que a ausência do protagonista queria normalmente
significar o fim do espectáculo, um dos visitantes pôs-se a bater
palmas e todos o seguiram, em conformidade. Escondido pelo
reposteiro de veludo carmim da sacristia, o Baptista assistia, com
sentimentos pouco límpidos, à actuação do artista.
- Você está a definhar - disse-lhe o Bento uns dias depois. - Não é
nada comigo, como dizia aquele outro, mas eu cá se fosse a si, ia-me
embora. Este emprego está a matá-lo, vê-se a olho nu.
Tomás Bernardino sentara-se a um canto do claustro e chorava.
O Bento, interessado nele da forma mais geral que toma o interesse
dos gordos pelos magros, seguira-o de longe, curioso e motivado pela
ambição paracientífica de presenciar a manifestação do religioso e os
sintomas singularmente parecidos ao quadro maníaco-depressivo que
ela provoca.
- Despeça-se, vá para casa. Se não está de acordo com a
orientação da empresa, se não lhe agrada o trabalho, se não aceita...
- Não recuso nada - dissera o Bernardino -, não recuso e não
aceito.
- Mas isso é uma solução muito original - rira-se o Bento. - Não
me diga que está convencido de que é um espinho no pé do sistema?
Um osso de galinha atravessado na garganta do gestor?
O Bento, posto o ser encantador, tinha uma particularidade
nefasta, que também tem direito a ela. Quando achava muita graça,
não era capaz de ter um riso para o exterior; parecia que lhe ficava
todo nos pulmões. Bernardino assustou-se com o rumo que a cor do
Bento estava a tomar, que era em direcção ao roxo, mas mesmo
assim respondeu:
- Não sei o que serei, Bento, mas não aceito porque não posso
aceitar e não recuso porque a minha recusa só me condena a mim.
Em termos práticos, é assim.
- Mas é uma surpresa enorme, você ainda está lúcido! Não aceita
e não recusa, o que significa que anda a empatar o trabalho dos
outros, não sei se terá pensado nisto desta maneira. Eu também não
aceito e não recuso, mas aceito mais do que recuso, por isso não
causo problemas a ninguém e ninguém chega para me criar
problemas a mim. Mas você acha que a solução adequada é insultar
os turistas que nos dão de comer? Empunhá-los pelas camisolas e
corrê-los a pontapé do templo, como eu sei que você gostaria de
fazer? Será a solução andar a gritar pelos corredores e a incomodar
as pessoas com a ideia do Juízo Final?
De facto, nos poucos dias anteriores, Tomás Bernardino
resolvera-se a incorporar uma certa consciência histórica e treinava-
se na coerência. Era agora um anacoreta misantropo, endurecido
pelas privações, que descera ao povoado para alertar os homens para
o cataclismo, o que fazia perguntando-lhes à queima-roupa:
- Se agora houvesses de morrer, farias isto que fazes, dirias isto
que dizes e pensarias isto que pensas e cobiçarias isto que cobiças e
queres?
Interditos se entreolhavam os visitantes, de instinto agarrados às
máquinas fotográficas. Não sabiam o que responder, ou mesmo se
era caso de responder ou antes esgaravatar um pouco no solo, como
fazem as galinhas quando se sentem embaraçadas e precisam de
pensar. Alguns visitantes tomavam ofensa. Um argumentou que o
que ele fazia ou não fazia com o seu tempo e a sua alma não era da
conta de um mongezeco miserável que não devia ter os cinco
alqueires bem medidos. E quando ele passava, rasando as paredes,
ou se punha, de imprevisto, a recitar passagens tremendas do Antigo
Testamento, havia um burburinho entre o público, que tinha a
sensação de que alguma coisa estava, de facto, acontecendo. Mas o
que interessava em todo esse aparato, é que Tomás Bernardino em
menos de nada se transformara numa personagem muito castiça.
- Quem é aquele ali? - perguntou, limpando o nariz às saias. O
Bento olhou.
- Não é ninguém - disse ele. - Um tipo qualquer a tirar fotografias
ao anjo.
Era o anjo do Baptista, o que lhe tinha sugerido a peregrina ideia
de comprar o mosteiro. O Tomás está agora também diante dele, à
espera. E a revelação dá-se, embora o falso monge não compreenda
muito bem o que lhe diz. Que os meios justificam os fins? Que não
vale a pena lutar? O ridículo da sua situação? O inescapável da sua
situação? Que deve aceitar e cantar em Play-back? Que a sua recusa
pode ter algum peso?
Para revelação, foi deveras confusa. Uma coisa apenas
transparece claramente, a necessidade de se confessar, de se abrir
inteiramente com o José Baptista. E já não é o galarote assustado e
revoltoso que se senta diante do gestor, mas o homem maduramente
torturado pelas complexidades, que procura a absolvição sem estar
contrito.
- Dou-lhe os meus parabéns - começou o Baptista perigosamente
sorrindo. - Não fazia ideia de que o Tomás tivesse tanto olho para o
negócio. Eu assisti ao seu improviso, aquele dia, na igreja, e deixe-me
dizer-lhe que fiquei um pouco céptico. A argumentação moral é um
assunto muito técnico, pouco acessível ao público em geral. Mas a
sua encenação foi de tal modo impressionante, que eles responderam
logo positivamente. Há mercado para isto, Tomás, você viu isso muito
bem.
Tomás Bernardino vinha na intenção de conversar. Sobre os seus
problemas, as suas dúvidas. Recorrera ao Baptista porque ele era, na
sua imaginação, o outro que era preciso apaziguar para que ele
mesmo tivesse sossego. Vinha na esperança de que um diálogo todo
dádiva pudesse tornar o homem mais humano. Enfermando desta
perspectiva, o anacoreta não pôde compreender a fala do Baptista e
piscou os olhos, e desejando que ele tivesse querido significar apenas
um elogio, um elogio à toa, disse:
- Naquela tarde eu soube de certeza que estava tudo errado.
- Claro e resultou muitíssimo bem. Daí para cá tenho
acompanhado a sua carreira com interesse e penso que melhorou
consideravelmente. A representação na igreja foi ainda muito contida,
demasiado subtil. Sabe que eles gostam de muitas lágrimas, muito
suor, muito rebolar de olhos, muito cuspo...
Tomás Bernardino pôs-se a chorar. O Baptista também se
comoveu.
- Sei que tivemos as nossas divergências, e que eu cheguei a
desconfiar da sua capacidade para o lugar. Mas estava enganado e
apraz-me dizê-lo.
Depois de um silêncio, continuou:
- O senhor Marques anunciou-me que deixará a empresa para o
mês que vem. Penso que o Tomás será o homem indicado para o
substituir.
Por entre lágrimas, sorriu Tomás Bernardino à ideia de ser
capataz do circo dos monges do Baptista. Quem sabe se poderia estar
em melhor posição para realizar algumas reformas? Teria mais poder
para convencer o gestor da necessidade delas? Conseguiria torná-los
a todos mais autênticos?
- Não precisa de abandonar as personagens que criou. O
anacoreta tem um sucesso enorme. Oiço as pessoas saírem daqui a
discutir, a sua intervenção fá-las pensar.. É importante, é diferente. E
há mercado para isso.
O Bento seria o primeiro a despedir-se. Ao contar-lhe, cheio de
energia renovadora, os seus planos de reformulação global da
empresa em quatro fases, o Bento rira-se.
- Mas isso assim vai ser preciso trabalhar muito mais! Era preciso
trabalhar mais. Tomás erguera-se, ajeitara o hábito em toda a volta. E
inclinando levemente a cabeça, sem aceitar, nem recusar,
abandonara o gabinete do gestor.
A Janela da Despensa como Argumento Moral
A primeira coisa que embateu nos olhos de Luisinho ao entrar foi
a mesa relhena. A grande mesa oval, bem assente no meio da sala, a
transbordar de doçaria e delicadezas. E enquanto os outros miúdos se
atiçavam uns contra os outros e saltavam aos gritos por cima dos
sofás, Luisinho fora o singular a ir direito ao que mais o comovia, e
especado diante da mesa posta, religioso ficou a deixar entrar pelas
retinas toda aquela pompa e grandeza. E viu, destacada do todo,
antes do mais a taça de cristal, redonda, muito trabalhada, da musse
de chocolate coberta de nozes; a seu lado, o monumento da tarde,
um bolo imenso de claras com morangos e natas batidas, camadas de
diversas naturezas sobrepostas, todas elas boas, todas elas
harmoniosas, conjugadas num macio cilindro branco que fazia sonhar;
vinham depois, deitadas num prato de porcelana chinesa, por cima de
uma suspeita de luta entre dragões, as cornucópias, recheadas com
doce de ovos. Quase se embaciam os óculos do Luisinho ao
contemplar as taças de gelado feito em casa, na máquina de
manivela, com sabores de café, de morango, de chocolate, de natas,
dispersas sobre a mesa, quase livres de irem para onde lhes
apetecesse, mais para junto da travessa dos rolinhos de pão-de-forma
com atum e maionese, mais para longe do bolo de ananás enfeitado
com ziguezagues de natas, por baixo das quais se sabia estarem um
pão-de-ló que não podia sem exagero ser mais amarelo e um creme
de manteiga pecaminoso. Desfalece o coração de Luisinho, imune ao
caos infantil a que na sala velozmente se chega, ao passar os olhos
sobre os três pratos grandes, cama real das sanduíches aparadas,
com fiambre e fuagrá autêntico. Recapitulou, saltando a bandeja dos
biscoitos de manteiga, que é comida de miúdo, e o palhaço de
gelatina, transigência inaceitável ao paladar selvagem. E demorou-se
com prazer no bolo que ele já conhecia, musse cozida no forno,
coberta de chocolate. Na mesinha de apoio, em formação cerrada, os
jarros de limonada com muito gelo, sumo de laranja para os menos
exigentes, chá gelado e mazagrã para as mães.
Luisinho saiu do devaneio com a miudagem a chegar-se à mesa.
Teve um repentino movimento de irritação e afastou, em dupla
cotovelada, dois rapazinhos gémeos, que repetiram o assalto.
Luisinho acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito
daquela mesa seria, daí em diante, não mais que uma lembrança. Os
bárbaros atacavam as sanduíches, davam cabo do palhaço e
descompunham o bolo de claras. Mas reconfortou Luisinho pensar
que chegara o momento da consumação. Lançou a mão aos rolinhos
de atum e, de olhos fechados, alheio à agitação da sala e das mães
que ofereciam delícias em altos brados, mastigou com extrema unção
o pão e os recheios, uma, duas cornucópias, uma fatia de bolo de
claras que passara à inspecção da mãe, uma fatia de bolo de ananás,
um bom pedaço de bolo de chocolate, este já na completa
clandestinidade, e quando, absorto, avançava para a musse,
coroação de uma primeira volta abençoada, sentiu antes do mais
uma sapatada ligeira nos dedos, depois o olhar reprovador:
- Já chega! - disse a mãe -, o Luisinho rebenta. Confuso e
envergonhado, o menino ainda é capaz – a vontade é muita - de
balbuciar que não chegou a comer musse nenhuma.
- Tenho estado a ver - disse a mãe -, e acho que já chega.
Lembre-se do que lhe disse o doutor.
- Ora - disse a mãe do aniversariante -, um dia não são dias.
Luisinho, a quem a injustiça feria para além das palavras,
manteve-se firme, de barriga encostada à mesa, inamovível, à espera
que alguém cedesse. Olhava um a um todos os outros, demorando-se
com desprezo num pequenino a quem a mãe enfiava o bolo de
chocolate na boca colher a colher, que ele comia enjoado,
contrariado! Outro deixara no prato a fatia quase inteira do bolo de
claras e entretinha-se a esfaquear o palhaço. Se lhe perguntavam
porque não comia, respondia que não gostava! Não gostava de bolo
de claras com morangos! Luisinho, incrédulo, corria os olhos de um
para outro e todos lhe pareciam estranhos. Loucos!
- Está gorducho, sim, mas é tão engraçado... - dizia a amiga da
mãe.
- E esperto que ele é - dizia outra.
- E bonzinho - disse outra voz.
- Que sorte - comentou a amiga da mãe -, o meu é um castigo
para comer. Ainda ontem tive de lhe ir fazer uns ovos mexidos... - e o
resto da história perdeu-se no zunzum da sala. Mas quanto ao
assunto em referência, a saber, autorização para avançar para a
musse de chocolate, ou mesmo para um biscoito de manteiga bem
negociado, nada se concluía.
- O médico diz que não pode estar tão gordo - disse a mãe. - Faz-
lhe mal. Até psicologicamente.
- Ele logo emagrece, quando crescer - disse alguém. Luisinho não
tem fome. Tem vontade de comer. Tem anseio, desejo. Sente falta. A
barriga estava cheia, não se tratava de encher a barriga. Isto nele era
uma devoção, não era pecado. Quieto junto à mesa desafiava a mãe
e a consciência. Esperou que ambas se distraíssem, para que o
instinto prevalecesse. Os saciados foram abandonando aos poucos a
mesa do lanche. Luisinho e mãe ficaram sós, frente a frente.
- E um biscoito, posso? - quis ele saber.
- Mais nada, já chega.
- É sempre a mesma coisa - resmungou o menino toda a gente
pode comer menos eu.
E amuou, visto que não lhe restava mais nada.
Sentado nas escadas de pedra do jardim, o magro papo-seco
com uma réstea de doce de ginja amorosamente encerrado na palma
da mão, Luisinho olhava para a estrada. Esperava, como todas as
tardes pela mesma hora, que a Bibi passasse, a caminho de casa.
Ouvia o restolhar das galinhas na capoeira, de vez em quando a
excitação do galo que carregava sobre elas sem pré-aviso. Daí a
pouco, o som mole de uma ameixa a esborrachar-se no chão.
A Bibi vinha cansada de subir e deixou-se cair no degrau, sem
fôlego. O Luisinho deu uma viril dentada no pão e ficou a aguardar.
- Dás-me? - perguntou a Bibi. O Luisinho estendeu-lhe um
cantinho do seu lanche, demarcando com os dedos a quantidade de
pão que ela podia tirar.
- O que é que foi o almoço? - perguntou.
- Já nem me lembro. Uma porcaria qualquer. Bifes, acho eu. Sou
capaz de comer três bifes. A minha mãe fica doida.
- Três bifes? E ela deixa?
- Que remédio - disse a Bibi. - Eu só faço o que quero, pelo
menos é o que a minha mãe diz.
Atravessou o espírito do Luisinho uma pergunta tremenda: seria
possível desobedecer à mãe? Possível era, com certeza, visto que
havia quem dissesse que o fazia. Podia haver até quem o fizesse de
facto. Desobedecer à mãe? Não fazer o que ela queria? A noção era
interessante, mas dava-lhe arrepios contemplá-la muito tempo.
Luisinho demorava-se a acabar o pão, roendo pontinha aqui, pontinha
ali, temendo imaginar o que aconteceria quando não houvesse mais
nada para comer.
- Vamos às ameixas? - perguntou a Bibi.
O Luisinho olhou em volta. A mãe devia estar a chegar das
compras e a criada estava distraída com o rádio. Era boa altura. A
Bibi levantou-se toda lesta e encaminhou-se para a árvore, pisando
de propósito as ameixas caídas, sujando as meias de croché com o
sumo delas.
- Vais tu ou vou eu?
- Sobe tu - disse o Luisinho -, eu empurro-te para cima.
A Bibi era inesperadamente ágil para uma menina tão
rechonchuda. Depois do impulso inicial, que quase soterrara o
Luisinho, desequilibrado com o fardo de tanto peso, num instante
estava lá em cima e recolhia nos bolsos da bata as melhores ameixas.
- Tu usas calções de rapaz por baixo das saias? - perguntou,
curioso, o Luisinho.
A Bibi acertou-lhe com uma ameixa em cheio no olho. Começou
a descer e a praguejar ao mesmo tempo. E o Luisinho sem perceber
ao que vinha toda aquela fúria.
- É a estúpida da minha avó que me faz estes calções. E não são
de rapaz. São para o frio. Não te atrevas a dizer que são de rapaz.
Agora enfrentava-o, um dos bolsos a transbordar de ameixas e o
outro vazio, olhando a direito para ele, muito perto. Luisinho queria
apaziguá-la, sem saber corno. Ia lançar-lhe a mão à cara para lhe
fazer uma festa, mas a mão desviou-se e acabou junto à perna da
Bibi, a levantar-lhe a saia e a pedir:
- Deixa-me lá ver. A Bibi não perdeu tempo a defender-se. Deu-
lhe uma palmada na mão, um empurrão que o fez cair e foi-se
embora a correr.
Ao abrir a mão que errara, Luisinho encontra lá dentro uma
ameixa. Com a força, esmagara-a de tal modo que o sumo escorria
por entre os dedos.
Luisinho lambeu a mão, não lhe restava mais nada.
Torturado pela fome, Luisinho acorda a meio da noite de um
sonho de compotas sobre fatias de pão caseiro. Sem acender a luz,
silencioso desce a escada em direcção ao frigorífico. Ele conhecia de
cor o interior do frigorífico, a arrumação que a mãe lhe dava, todo o
seu conteúdo. Em cima, na porta, manteigas, margarinas; em baixo, o
jarro do leite; os legumes organizados nas gavetas, os restos de
jantares e almoços hierarquicamente sobrepostos por grau de
antiguidade. Muito contra o seu hábito, Luisinho sucumbiu à
precipitação. Agarrou no que lhe pareceu maior, sem se preocupar
em saber o que era. E ficou no escuro, apenas iluminado pela fraca
luz do frigorífico, a escutar os barulhos da casa, segurando pela perna
um frango inteiro, assado. É que lhe parecera ouvir a mãe a descer as
escadas. Ele bem suspende a respiração, mas o coração bate-lhe tão
depressa que não o deixa ouvir. Fecha devagarinho a porta do
frigorífico sem largar o frango e dá dois passos, mas sem direcção
determinada, posto que não sabe o que fazer. A sua primeira ideia é
ir para a saia, onde há mais luz, e dar ali mesmo cabo do frango. Mas
a porta da cozinha fechara-se e Luisinho só a encontra no final de
muita topada por armários e esquinas de mesas e caneladas em
cadeiras e banquinhos. A mãe era grande apreciadora da profusão
dos móveis, mesmo na cozinha.
Luisinho está no sopé das escadas, o gordo frango assado preso
pela perna, a olhar para cima. Agora é que ouviu mesmo a mãe
acender a luz da mesinha-de-cabece ira, vestir o roupão, tossicar. O
pai acordou e perguntou-lhe se não conseguia dormir. Luisinho
tremeu à voz serena da mãe:
- Pareceu-me ouvir barulho lá em baixo. Paralisado, sozinho no
escuro, o menino teve o impulso inútil de esconder o frango atrás das
costas, lambuzando o belo roupão de seda que o tio lhe dera. Mas
quando viu a figura da mãe aparecer no topo das escadas, deitou a
correr pela sala, em direcção à porta da rua. O pai fechava-a sempre
com as duas voltas da chave e punha-lhe, por maior garantia, uma
corrente de segurança. Era o único a fazê-lo entre os vizinhos,
gostava de citar um provérbio que Luisinho nunca conseguia
reproduzir e que tinha a ver com barbas de molho e trancas à porta.
A mãe vinha a meio das escadas e viu o rapazinho colado à
parede. Não distinguiu o que ele trazia na mão, mas percebeu
imediatamente que surpreendera uma actividade ilícita.
- Luisinho? - chamou ela. - O que é que o menino anda a fazer?
O Luisinho atravessou a sala correndo, passou em velocidade o
guarda-vento que dava para a copa e procurou uma saída. E a única
saída era a janela da despensa. Luisinho empurrou a porta e entrou,
naturalmente sem o costumado prazer, no quartinho onde se
amontoavam as provisões. Às vezes, quando se sentia mais triste,
pedia à mãe para lá ir com ela, só olhar e cheirar. E contemplava com
saudade as prateleiras dos açúcares, os ovos frescos na cestinha, os
belos frascos do feijão e do grão. Agora, que estava com pressa,
subiu para o banquinho, foi direito à janela pequena e abriu-a.
Passou, em primeiro lugar e para maior segurança, o braço que
continha o frango assado para o lado de fora, depois o outro braço,
depois içou o peito e muito em breve percebeu que ficara entalado.
O rabo do Luisinho não cabia na janela.
Foi mortificado que ouviu a mãe abrir atrás dele a porta da
despensa. Esperou que ela dissesse alguma coisa, enquanto tentava
desentalar a barriga o suficiente para se deixar escorregar para
dentro e receber a censura com alguma dignidade. Mas ela não dizia
nada e ele não estranhou. Imaginou o que ela via, o banquinho
tombado, as pernas dele bamboleando sem apoio, o corpo disforme
no roupão de seda azul, cortado ao meio pela moldura da janela. E
imaginou o que ela imaginava e não via: o frango enxovalhado, preso
pela perna, a apanhar ar na mão direita de Luisinho, que o
empunhava como a bandeira da autêntica desgraça. O meio corpo
embaraçado, o peso da culpa de Luisinho, era isto que ela via.
A mãe deu-se tempo de fechar a porta da despensa e ir
calmamente de roda ver o espectáculo pelo lado de fora. Nessa altura
já o frango se decepara pela perna, deixando o Luisinho na posse de
uma única coxa, perdido o resto no canteiro dos lírios, já então
provável pasto de formigas e bichos sem valia. A mãe postou-se em
frente da parte superior de Luisinho. Ele sabia que o que ela dissesse
lhe havia de ficar para a vida toda.
- Está a ver, meu filho querido - disse a mãe -, se o menino fosse
mais magrinho, tinha passado na janela.
E afastou-se pelo jardim, sacudida de riso, do riso imoral que o
Luisinho não lhe pôde nunca desculpar.
Os três homens aderem à Revolução
Há uns dias que acontecia ficarmos a fumar depois do almoço e
deixarmos a conversa descair até adormecermos profundamente,
cada um em seu canto. Hoje não foi diferente. O Harris preocupava-se
cada vez mais com a imobilidade do imobiliário e nem eu próprio, que
era o principal interessado, podia já suportar as minhas lamúrias
sobre o preço do papel e a difícil arte da edição. O George
adormecera de charuto em riste, mas nem eu nem o Harris nos
dispusemos a fazer o que quer que fosse para lhe poupar o embaraço
das consequências. Entreolhámo-nos em silêncio. Pareceu-me a certa
altura que o George cantava no sono. A princípio dir-se-ia que
ressonava apenas, mas a pouco e pouco fui discernindo uma espécie
de padrão que se assemelhava a uma melodia, embora
irreconhecível. A minha hipótese revelou-se acertada quando o
George, ainda de olhos fechados, disse:
- Acordei hoje com esta música na cabeça e não consigo lembrar-
me do que é.
A memória do George já não é o que era, embora eu não me
lembre muito bem de como ela era. Pedimos-lhe, sem entusiasmo
desnecessário, que cantasse mais alto, o que ele fez, sem qualquer
resultado. Desiludido, o Harris disse:
É a rotina, embota a memória. É bem verdade - disse eu -, todas
as faculdades precisam do seu exercício. Se vivemos meramente de
hábitos, realizamos todos os dias os mesmos gestos, dizemos as
mesmas coisas como autómatos, de que serve termos memória? De
que serve termos imaginação? A coisa envergonha-se até de existir e
acaba por se apagar. Pensa: “Como sou inútil! um mero armazém de
velharias, sem qualquer préstimo!
Ficámos naquela sonolência mais uns minutos, até que o George
disse:
- Estamos a precisar de...
- Uma mudança, já sei - concluiu o Harris, lembrado de outros
tempos.
- Exercício - precisou o George. - Muito exercício. Estávamos
todos a pensar o mesmo, de maneira que o Harris se levantou e foi
postar-se em frente do mapa-múndi que eu tinha pendurado na
parede, atrás da secretária, numa bela moldura dourada.
- Precisamos de aventura, umas férias longe das modorras e com
alguns imponderáveis - disse ele, sacudindo a cinza do charuto para
cima dos meus manuscritos.
- Não vamos tomar-nos em fanáticos do imponderável disse eu. -
Há lá alguma coisa pior do que um fanático do imponderável!
- Um país exótico, confortável, mas exótico... - procurou o
George.
Assentámos que, para lá dos Pirinéus já era suficientemente
exótico; que, para aventura, bastava ultrapassá-los e sobreviver.
- África... - sonhou alto o Harris.
- Não é África, mas é quase. É quente, é pacífico, é hospitaleiro.
Levantámo-nos para ver a maravilha no mapa. Era um
rectângulozito inconspícuo que parecia recortado à tesoura na
Península. Estava pintado de um esverdinhado triste, que ficava mal
ao pé do azul do mar.
- Portugal? - perguntou o Harris, com algum alarme. Não sei se
cairá na classe dos países exóticos.--- disse eu.
- Parece que há umas festas bárbaras em que picam os touros
até à morte e depois distribuem os restos pelos espectadores - disse
o Harris.
- Todos os países exóticos têm rituais cruéis e muita mosca. E
neste lá havemos de ter deixado alguma réstea de civilização - disse
o George.
O Harris perguntou: - E como é que eles se deslocam? Haverá
comboios?
O George respondeu: - Tenho informações de que andam de
burro com imensa dignidade.
Eu disse: - É um nobre animal, o burro. Infelizmente
subestimado.
Ficámos a olhar o mapa, acabando os charutos.
- Umas férias tranquilas num país exótico - disse o Harris,
rendido. - Só queria saber quanto é que isso nos vai custar.
- Há-de ser o país mais barato do mundo, estando como está
longe de tudo. - Mas o argumento contrário também era, infelizmente
verdadeiro.
- Uma calma aventura e o burro é um excelente exercício.
- E quando iremos? - perguntei. Assentámos que havia de ser em
Outubro, logo na primeira semana. já não estava calor e ainda não
fazia o frio desagradável dos países em que não chove
decentemente. Mil novecentos e dez ia ser o ano da nossa segunda
viagem ao Continente.
Sentado no Deserto
A televisão disse: a época festiva que atravessamos fica sempre
tristemente assinalada por um grande número de acidentes de
viação. Marciana baixou o som e foi ver o peru. Pelo corredor, de
nariz no ar, ainda distinguia o cheiro dos fritos. Detestava a comida
do Natal.
Espetou o bojo do peru e ouviu a porta abrir-se e o Miguel entrar,
falando com alguém. Foi recebê-los à porta da cozinha, de garfo em
punho, curiosa.
- Trago aqui o Pereira para jantar connosco, mãe. Parece que não
tinha para onde ir.
Num relance Marciana avaliou o vagabundo. Pensou que por
mais que o limassem, mesmo esfregado e desinfectado, nunca
passaria por um deles. Quando se sentaram na sala, o Pereira à ponta
do sofá, de punhos rígidos assentes nos joelhos, o Miguel com os
ténis em cima da mesinha de tampo de vidro, Marciana teve uma
náusea, uma onda de pânico, e nem sequer estava ainda a pensar no
que diria ao marido, aos irmãos e às cunhadas. Imaginava a melhor
maneira de limpar a carpete e o tempo que demoraria o cheiro a lixo
que o Pereira generosamente deitava a desvanecer-se no ar. Sabia
que lhe tinham arruinado o jantar de Natal e não tinha ideia do que
fazer a seguir.
- Talvez o senhor Pereira queira tomar um banho, mudar de
roupa. Tenho um fato do teu pai que lhe deve servir.
O Miguel achou bem e o indigente não se opôs. Assim que o
homem saiu da sala onde ardia a lareira, Marciana desodorizou o ar e
escovou o sofá, procurando a pulga ocasional, o piolho hediondo,
outros insectos sem nome que se agarram à pobreza.
É que o Miguel, educado no mais libertino dos ateísmos,
atravessava aos quinze anos uma fase de cristianismo primitivo. já
em Novembro começara os ataques à hipocrisia do espírito natalício,
denunciara consumismos, acusara de cínicos pais, tios e tias, padres,
professores, figuras públicas - até o Papa! - e anunciara que as coisas
se iam passar de maneira diferente nesse Natal. Marciana levava o
filho a sério, porque ele era um rapaz de convicções firmes, embora
naturalmente pouco duradouras, que não só tomava à letra as ideias
gerais como as punha em prática de forma radical. Marciana temera o
pior. Receara que ele não viesse jantar com a família na véspera de
Natal. Afinal o pior tinha superlativo - o Miguel aparecera
acompanhado de um desconhecido que tresandava a vinho e a
miséria e que apreciara, logo à entrada, com olhar excessivamente
sóbrio, não só a dona da casa, mas também as pratas e as
porcelanas. Marciana fizera uma nota mental de reservar um espaço
na semana seguinte para mandar mudar as fechaduras.
Chegavam os irmãos todos juntos e as cunhadas, brilhantes e
tufadas. Marciana apresentou-lhes o Pereira sem sobressalto e eles,
habituados a uma tradição familiar de auto-controlo e pouco
espalhafato, estenderam-lhe automaticamente a mão, os três de
seguida, apresentando-se: Qualquer Coisa de Vasconcelos. Marciana
compreendia que bichanassem o nome próprio. Ainda hoje a intrigava
que o pai, de costume tão sensato e de perfil em outras matérias
discreto, tivesse marcado os filhos para a vida com o ferro de um
nome confuso de que Aureliano Auspicioso não era senão o mais
equilibrado.
- O teu Miguel é um santo - disse uma tia, abraçando Marciana
na cozinha.
Um Cristo, disse outra. Um anjo, disse outra. Um arcanjo, troçou
o tio Aureliano. Miguel entrou e pediu que fossem para a sala, que
parecia mal ao Pereira. Marciana ia atrás, pelo corredor, a olhar as
costas do irmão e apareceu-lhe como num ecrã a imagem de um
menino negro sentado no deserto. Era uma dessas fotografias de
choque que passam nas notícias à hora do jantar, mães esqueléticas
com os bebés mortos no colo, crianças deitadas na terra a olhar de
frente para a câmara que as filma. Marciana lembrava-se desta
imagem de há dois ou três anos: é um menino muito pequeno,
desorbitado de fome, que passa as mãos no rosto uma vez só,
desgraçadamente, como um velho que não vê saída. Sentado no
deserto, ele no meio de outros, à espera de coisa nenhuma.
- Também eu tive os meus pobres quando era nova - disse a tia
Adelina, de volta à cozinha. - Ia às barracas levar latas de feijão e
sacos de açúcar e coisas assim. Não me esqueço da cara de espanto
que faziam quando eu aparecia carregada, à chuva, ao domingo.
- Eu levava miúdos da rua a lanchar ao café - disse Marciana. -
Mas depois a caridade já não se podia fazer. Havia uns ideais
humanitários que impediam os particulares de tomar conta dos
pobres, era ao Estado que competia tratar deles.
- O que é que diz o Zé?
- O Zé não sabe - respondeu Marciana. Afinal o Zé até achou
graça, quando chegou a casa. Não deu importância ao olhar de
dramatismo que a mulher lhe lançara à porta de entrada, ofereceu
mais uma rodada ao Pereira e deu um longo abraço ao filho. Era
evidente que já tinha estado a celebrar com os amigos da vela.
A televisão disse: devido ao adiantado da hora este período
noticioso será mais breve que o usual. Mostraram distúrbios de rua,
um motim, algures no mundo. Marciana teve um arrepio: aquele
menino sentado no deserto podia ser o dela; ela podia, ao acaso, sem
razão, ter nascido destinada àquele deserto.
- Temos de sofrer imagens horrorosas - disse, impaciente. -
Põem-nos os problemas à frente e não nos dão os meios para os
resolvermos.
- É muito desagradável, de facto - confirmou o tio Refulgêncio.
- O Tão não é bom nem mau, está para além do bem e do mal -
disse o Zé.
- Sabem aquela do menino rico a quem a professora mandou
fazer uma redacção sobre os pobres? - perguntou o Pereira, para
desanuviar.
Os irmãos mexeram nas gravatas. Conte lá, Pereira, pediu a tia
Adelina. O Pereira não parou, e como os copitos circulavam céleres e
abundantes, as anedotas foram subindo de tom até Marciana dar
ordem de jantar.
- Não está a correr mal, há? - disse o Miguel na cozinha, pronto a
carregar reforços para a travessa do bacalhau.
- Não estás chateada comigo, mãe?
Só por aquele sentimento cristão do filho, dirigido à sua própria
família, Marciana repôs o prato de bróculos e abraçou-O.
- Eu também já tive os meus pobres. Fizeste bem. O ideal era
que ele não fizesse tanto barulho a comer.
O Miguel riu-se. À mesa, o Pereira contava a sua história aos
irmãos que o ouviam em silêncio, atentos aos pratos respectivos, e
Marciana, ao entrar, respirou fundo e tomou coragem - era preciso
continuar a imaginar que o Pereira não era o Pereira e que se fosse o
Pereira não estava ali, no meio da família, a dominá-los com um
relato banal e lamentações. Era preciso ver e não ver o menino, e
continuar.
Depois o Miguel levou o Pereira, que usava já um walkman e se
despediu em gritos joviais. Nunca mais tirava os auscultadores,
acabei por lho dar, disse o Miguel. Mas foi uma prenda minha,
queixou-se Marciana.
- Finalmente! - desabou Adelina, quando eles saíram.
O Zé pôde fazer a pergunta tradicional: se estavam todos
prontos para as pastilhas contra a indigestão? Mas o Deodato achou
que ainda era capaz de comer mais um sonho.
Costureirinha (uma lenda Lisboeta)
Foi em 1933 que Clotilde chegou a Lisboa, para servir numa casa
de família. Ponderou-se o que havia de fazer, mas não havia muita
esperança, a começar seria, como de tradição, pelo primeiro degrau
da escada. Nova, saudável, ignorante das ruas e comércios de Lisboa,
falando, quando falava, com sotaque beirão intransponível, logo
convenceu os senhores condes do Outeirinho que não servia senão
para as grossas tarefas domésticas.
Clotilde não tinha sonhos e não tinha ambições. Se não levava
pancada, já andava contente. E se, para cúmulo, lhe davam de
almoçar em dias certos, não pedia mais nada à porca da vida.
Deve-se começar a suspeitar da existência de um filho nesta
família. Há-o, de facto. Há mesmo dois filhos. O varão, recentemente
casado com os bens de uma herdeira impertinente, vivia esplêndido
na Lapa e pouco aparecia na casa paterna. Dir-se-ia que o êxito da
família que começara há pouco em Octávío Outeirinho, primeiro a
usar o título de conde, se encarnava por inteiro nesse macho de
sucesso. Mas não tivera oportunidade de vislumbrar a Clotilde a lavar
as escadas ou em interessantes equilíbrios sobre escadotes.
Meramente por isso lhe escapara - por ele já não estar presente.
O filho segundo, Orlando, coleccionava fracassos, bebia, jogava e
perdia. Andava metido com rufias e mulheres da vida. Dizia que tinha
o sangue quente, não pensava antes de agir. Também não pensaria
depois de agir. Privado da afeição de seu pai ao fim de um certo
tempo, vivia de querelas e de rixas. Possuía um vocabulário de quatro
palavras e três delas não se podiam reproduzir em público. Em
resumo, era o deserdado, a ovelha ronhosa da família.
Mas tinha um fraco pela Clotilde, que não se civilizara realmente
nesses anos lisboetas, e ainda que esse fraco não bastasse para o
redimir completamente, suavizou-lhe o carácter e fez dele um homem
ligeiramente melhor. Alcançou extrair-se da casa da família e alugou
um segundo andar com
dois quartitos onde passaram a viver. Embora temporariamente
animado de princípios altruístas, entre eles a generosidade, Orlando
não possuía nada de seu e logo, num assomo de clarividência, se deu
conta do sórdido da situação a que era difícil escapar. Decidiu tomar
medidas. Emigrou para Angola, a fazer fortuna.
Clotilde chorava muito. Chorava sobre os trabalhos de costura
que fazia para se sustentar, sobre a máquina de costura, presente de
Orlando - e ainda sobre o berço de Vasco, segundo presente do pai
remoto. Chorava dias inteiros à espera de notícias, de cartas. Assim
contraiu uma tuberculose, do género mortal, acrescentando agora ao
choro e ao ruído do pedal da Singer uma tosse que ia mudando de
tonalidade à aproximação da morte. já quase no fim, Clotilde recebeu
a visita de um emigrante que regressava de Angola com notícias do
Orlando. Dizia que o ausente ainda não tinha feito fortuna, mas já se
empregara na Companhia das Águas como escrevente e ao fim de
dois anos, se tudo corresse bem, abria-se a possibilidade de uma
promoção. O emigrante relatou sem se comprometer que Orlando
estava muito bem de saúde, mas que mandava dizer que antes de
sete anos não lhe punham na metrópole a vista em cima. já
passavam três anos sobre a despedida dos amantes e Clotilde disse
adeus ao emigrante, mandou o menino para casa da vizinha, rompeu
a soluçar e cuspiu a última gota de sangue.
Hoje ainda, em Lisboa, diz-se, quando se ouve o roncar das
canalizações, que é a costureirinha, o fantasma de Clotilde, que
procura, pelo vazio dos canos, o seu Orlando, empregado na
Companhia das Águas.
II
Brandina ou o silêncio dos produtos
Sonhou que atravessava um túnel. Reconheceu-o: era o mesmo
que percorria todos os dias de madrugada no caminho para o
comboio e à noite, quando regressava. No sonho, o interior do túnel
aparecia forrado de papel de jornal, depois transformava-se num
disco voador que a fechava dentro de um espaço exíguo, como os
grelhadores fazem às tostas mistas. Só se lembrava, quando acordou
às seis em ponto, de uma imagem fixa: Brandiria à entrada do túnel a
olhar uma luz redonda e azulada, coada pela chuva.
Tinha as suas rotinas e a casa muito arrumada. Punha reservas
às amizades. Mas quando a Teresa lhe pedira que a substituísse no
turno, não soube recusar, apreciou aquele pedido pelo que ele era,
um privilégio, uma eleição. Escolhida entre todas para fazer o
trabalho da Teresa, Brandiria recebera as chaves como num acto de
investidura, ungida, séria, de olhos postos na missão e num futuro
mais elevado.
Não conhecendo os horários da madrugada, antecipou-se.
Passou pelo túnel sem más recordações, os sonhos pertencem à
outra dimensão, só fazem medo à noite. O comboio levava gente de
classes desconhecidas, mulheres que iam limpar, que iam cozinhar,
homens que iam construir, que iam vender. Muitos fumavam sem
olhar pelas janelas, virados uns para os outros, segurando na mão
livre lancheiras e pastas de couro claro. Aqui e ali, a mulher tricotava.
Chegou muito antes da hora. Respirou fundo antes de começar a
operação de abertura. Experimentou a chave. Uma para o alarme,
duas para as portas exteriores, três para as portas interiores. Parou
no escuro, a ouvir. Ao longe, a mosca intrusa ficou frita. A mesma luz
roxa que se lhe mostrara sedutora, trouxera-lhe a morte numa
corrente fraca, quase inofensiva. E o único som que Brandiria ouve, o
corpo da mosca ingénua a passar-se bem passado.
Brandina soubera por Teresa, que lho explicara numa voz sem
entusiasmo, o procedimento a seguir. Mas tomara o cuidado de
acender devagar as luzes uma a uma, para tirar todo o partido da
experiência. Sentira uma força puxá-la para cima, tal o pulso de um
deus potentíssimo. Mas era uma força que nascia de dentro, uma
espécie de motor interino, que trabalhava para ajudar a divindade,
para a aliviar do peso. Pusera as mãos em cruz sobre o peito e
imaginara-se uma santa visitada pela graça, que cerra os olhos e
recebe em cheio a luz na face, beijada ao de leve por um êxtase que
não acaba.
Depois passeou entre as prateleiras infinitas, solene como uma
rainha que fizesse a revista das suas tropas. Mas era antes uma
homenagem mútua, e muda, um elogio que faziam os produtos
perfilados a quem assim os amava, a quem chegava cedo para os
amar. Tocou numa embalagem e recebeu a impressão da curva do
seu bojo; e foi ordenando, empilhando, retocando, distribuindo
carinhos e segredos. Sozinha com as marcas, com todas as marcas do
mundo é que Brandiria avaliou o espaço imenso depois das coisas e a
respiração delas.
Sentou-se, por fim, à sua caixa, no meio do silêncio dos produtos.
Estava num templo e era vestal daquela prática, daquela sociedade:
sentada, real, fazia a conta e recebia o tributo. Passou neste devaneio
ainda uma hora feliz, até à inevitável chegada dos bárbaros.
Últimas Notícias
O Branco foi talvez o único que não se importou quando soube
que a auto-estrada passaria a cem metros do bairro. Gostava de
carros, o ruído fazia-lhe companhia. Olharam-no de viés porque
recusou participar no abaixo-assinado; mas durou pouco a inimizade.
Dois meses depois, quando a construção começou, já ninguém se
lembrava das palavras trocadas.
Fez logo grande intercâmbio e criou amigos entre os
trabalhadores. Nas tardes de Julho levava-lhes um jarro de vinho
gelado, uma garrafa de água e ficava a conversar sobre o que eles
quisessem. Uns gostavam de se queixar, outros preferiam calar-se e
olhar a distância, medir o caminho que faltava fazer. Sentados um
instante à sombra, em pé no meio das máquinas, os homens
aceitavam o Branco.
Aquele bocado da estrada era como se fosse também obra dele.
Fez um esforço para interessar nela alguns vizinhos, que paravam a
olhar o alcatrão fresco e do negrume recolhiam apenas nostalgia.
Diziam que a poeira fazia mal às hortas e o Branco encolhia os
ombros, ele mesmo nunca tivera alfaces mais risonhas. E, de repente,
as obras acabaram, vieram os carros e as velocidades. O Branco
alterou as rotinas. Estava mais tempo em casa e no jardim. Gostava
de passear, às noites quentes de Verão, na ponte que cruzava por
cima, na perpendicular, a auto-estrada. Fumava a olhar as luzes
vermelhas que se afastavam e caminhava, parava, debruçava-se
ligeiramente sobre o muro para ver melhor, caminhava de novo.
Acontece que uma noite saiu de casa um pouco mais tarde do
que era costume. Isto não o incomodava, porque além de ser sozinho
e não dever explicações ou métodos a ninguém, não se afeiçoava aos
hábitos pelo rigor das horas, mas pelo gosto que deles tirava. E
enquanto se passeava a fumar para cá e para lá, viu um carro
despistar-se, capotar, dar duas voltas sobre si mesmo, deslizar
invertido sobre o macadame e chocar contra o separador de metal.
Depois imobilizou-se, de patas no ar, a deitar fumo.
O Branco olhou para todos os lados à procura de auxílio. Não
havia ninguém. Atirou o cigarro e correu como pôde, os olhos
pregados no automóvel, esperando o pior. Mas teve de parar no
caminho e descansou sentado na berma, a mão sobre o peito,
espiando o carro. A última parte do trajecto já a fez em passo
moderado, um pouco por preocupação consigo, um pouco por medo
ao que iria encontrar.
Quando se baixou para espreitar à janela do condutor, viu um
homem inteiramente hirto, teso como um peixe, de cinto de
segurança apertado e as mãos profundamente agarradas ao volante.
Olhava, fixo, o vidro da frente.
- Pode sair - disse o Branco _, acho que está vivo.
O homem não se mexeu. Parecia um boneco de cera, que não
traia emoção nenhuma senão no excesso de compostura. Tinha os
cabelos lisos pendurados da cabeça caindo a direito em direcção ao
tejadilho. E a gravata passava-lhe ao lado do nariz, por cima do olho
esquerdo, deitada sobre a fronte.
- Pode sair - insistiu o Branco -, está tudo bem. Levantou-se para
respirar fundo e apreciar os prejuízos no carro. O tejadilho estava
ligeiramente abatido, uma ou outra roda ainda circulava em seco; o
capot ficara amolgado, as luzes piscavam intermitentes. O resto
estava intacto.
- Você teve cá uma destas sortes! - exclamou o Branco cheio de
ênfase. - Eu estava acolá em cima, vi tudo e até disse pá, aquele não
se safou, aquele não há hipótese. Você desculpe, mas foi mesmo
assim.
E quando se baixou outra vez, o homem disse: - Sou karateca,
sei cair.
Falava entre dentes, como se se quisesse convencer. Ainda
repetiu mais duas vezes, num murmúrio firme, que era karateca e
que sabia cair, depois desapertou muito devagar o cinto e numa
ginástica complexa, deixou-se deslizar sobre o tecto do carro e
magoou um ombro.
- Homem, você tem uma sorte do caraças! - repetiu o Branco, e
deu-lhe uma palmadinha nas costas, amigável, admirativa. - Um
acidente destes e nem uma arranhadela!
O homem esfregou o ombro, encarou dolorido o Branco, sem o
ver, e pôs-se aos encontrões ao carro, só com a mão livre, a pensar
que conseguia virá-lo. O Branco disse que ajudava e ajudou. O carro
baloiçava sobre a capota e permanecia invertido. Pararam os dois,
olharam à volta, não havia ninguém. A noite escura sobre a auto-
estrada, os campos serenos à luz amarela dos candeeiros.
- Mais um esforço! - disse o Branco. - Um, dois, três.
Conseguiram afinal virar o carro de lado, sobre a porta do condutor.
Empurraram-no depois e ele caiu sobre o asfalto com um estrondo de
molas e de peças soltas. O homem sentou-se ao volante e rodou a
chave na ignição. Pegou à primeira. Saiu, perfilou-se diante do Branco
e disse:
- Obrigado pela ajuda. Estendeu-lhe a mão correspondente ao
ombro magoado, mas lembrou-se, mudou de mão, apertou com
solenidade a do velho, meteu-se no carro e marchou.
O Branco ficou parado no meio da estrada a vê-lo afastar-se.
Caminhou pela berma até casa, pensativo. Aconteciam às vezes
coisas estranhas na sua vida, coisas como esta e outras, antigas, que
já esquecera. Quando se apresentavam fenómenos assim, o Branco,
intrigado, queria poder compreendê-los, queria explicá-los. E
enquanto caminhava via de novo o homem sentado como um boneco,
de cabeça para baixo, rígido de pânico, a murmurar para si mesmo
que era um karateca e que sabia cair.
O mundo tinha um decurso regular, o tempo passava sem
sobressalto e era como se fosse para sempre um dia atrás do outro.
Mas eis que se dava um caso que nos punha diante da iminência da
destruição, que nos fazia ver aquele decurso regular do mundo pelo
que ele era - um artifício para nos proteger, a nós que
permanentemente existimos, frágeis, indefesos, na fronteira para a
morte, não contando senão com o feliz acaso para nos salvar.
Chegando a casa, o Branco ainda vinha impressionado. A morte,
depois da reforma, já não é uma estranha, está próxima e inscrita no
programa, mas sempre como linha de horizonte. Serviu-se de
aguardente e acendeu a Televisão. Começavam as últimas notícias.
Não conhecia o locutor, reparou só que era orelhudo, que tinha a
gravata descentrada, que parecia assustado. Que era um rapazinho
novo que lutava como podia para ter um grande futuro. O Branco
ouviu ainda um bom bocado o que ele tinha para dizer, relatos de
catástrofes, incêndios, gente a morrer de fome, a guerra na
Jugoslávia, o vaivém dos políticos. Mas não lhe saía da cabeça o
acidente e, farto já de ouvir o rapazinho, levantou-se do sofá e tirou-
lhe o som.
- Hoje também me aconteceu uma muito boa - disse o Branco ao
locutor do Telejomal que o olhava, mudo e sincero. Depois riu-se e
bateu com a palma da mão no joelho. -
Hoje aconteceu-me uma mesmo muito boa.
À grande e à francesa
Quando o Carlos chegou à Praça João do Rio, Janeiro dormia
ainda. Depois acordou e espreguiçou-se como só o Janeiro sabia
fazer, por dentro e por fora e do cimo ao baixo, coçando recônditos,
rebolando-se, praguejando complacente.
- Então? - perguntou, acabado o processo.
- Nada - respondeu o Carlos.
O janeiro tirou do bolso o resto de um pente que passou pelos
quatro cabelos e levantou-se, pronto a começar o dia.
- Enfrentar - disse ele ao Carlos cabisbaixo - enfrentar
frontalmente, é esse o adjectivo, frontalmente, e de cabeça erguida.
Olha-me este espaço todo, ó Carlos, o que aqui não se construía.
Prédios, arranha-céus, como se dizia no meu tempo, piscinas nos
telhados. O futuro sorri-nos, o futuro pertence-nos, o futuro deve-nos
muito. Isto é especulativo, sem dúvida, podes achar que é
especulativo, mas o que é que não é? O que passou, passou, adiante,
é no futuro que temos de apostar.
Puseram-se a caminho. O Carlos dava a direita a janeiro por
respeito, mas ouvia-o distraído, preocupado, atento mais às pedras
do passeio. De repente baixou-se para apanhar uma beata.
- Ora providencial - disse o Janeiro tirando-lha das mãos. - A
primeira do dia, a que nos sabe melhor. Sabes o que é o providencial?
A gente vai a passar e ali está ela, é o providencial.
Parou para pedir lume a um homem que lhe deixou ficar a
carteira de fósforos, estendendo-lha com dois dedos e seguindo sem
olhar para trás. Com isto, estavam na Praça do Império.
Na esplanada do café, Janeiro ficou discretamente na esquina
enquanto o Carlos se aventurava a fazer o peditório. janeiro olhava o
relvado à sua frente e, vendo-o monumental, imaginava grandes
coisas. Depois o companheiro voltou, entregou-lhe a percentagem
que ele contou por precaução e, seguindo ambos lado a lado, Janeiro
acenou de longe aos seus contactos, dois empregados generosos que
fechavam os olhos às actividades não muito bem-vistas do protegido
Carlos.
- Senhor Janeiro - disse o tímido por fim -, é o meu tio.
- O teu tio o quê? Outra vez o teu tio?
- O meu tio que vive em Chelas, o que tem a oficina. Diz que me
dá trabalho, ele que está doente e não tem filhos, até tem lá uma
cama que também me subaluga. Eu queria pedir ao senhor Janeiro se
me deixava ir..
- Trabalhar? - escandalizou-se o mestre. - Tu queres trabalhar
numa oficina?
- Eu cá não me importa.
- E ele paga-te, esse teu tio de Chelas?
- Não é muito, não é muito... - lamentou-se o Carlos, que já
estava a ver o janeiro exigir a sua comissão.
- Mas como é que eu posso, filho? Eu não posso! Como é que eu
posso? - perguntou afinal o janeiro. - Ir para Chelas, tão longe do
centro! Se me dissesses, vou para o Paço do Lumiar, vou para o
Parque dos Príncipes, isso sim, vale a pena, são nomes que apetecem
logo, vou para a Quinta das Mil Flores! Isso é que são nomes! Mas nós
estamos bem, Carlos, e vamos melhorar mais ainda, esse é que é o
paradoxo! Olha-me para esta avenida, para este espaço aberto, que é
que tu queres mais?
- Faz muito frio, senhor janeiro.
- Isso é só no Inverno e o Inverno passa depressa.
- Mas dormir ao relento, senhor Janeiro, com a minha tosse...
Ao janeiro desagradava esta conversa que de vez em quando o
Carlos arranjava para o incomodar. Impacientava-se com a
choraminguice do rapaz, apetecia-lhe enxotá-lo para longe quando
ele se chegava mais para lhe falar, trotando magrinho atrás dele
como um cão.
- Tanta coisa boa, os gajos lá de fora a pagarem-nos tudo, a
mandarem as massas à gente para isto e para aquilo, é só pedir por
boca, e tomem lá para as pontes e tomem lá para as estradas. E este
põe-se a chorar! É gente que não sabe a sorte que tem!
O Carlos ficara pregado à montra de uma loja de decoração que
mostrava uma cama de casal com uma colcha azul floreada, a
cabeceira em madeira escura, lavrada numa profusão de torcidos e
tremidos.
- É agora ou nunca, Carlos, a nossa chance! É a hora, como dizia
o outro! Eles devem-nos muito, afinal fomos nós que descobrimos o
mundo e andam todos a viver à nossa conta, a comer do nosso pão!
Mas isto vai mudar, ó se vai! Daqui para a frente, Carlos, tu vais ver
se não é à grande e à francesa!
Pararam diante de um Banco, siderados pelo luxo, pela
grandiosidade, pela harmonia que dali se retirava. janeiro comoveu-
se, enquanto o Carlos, continuando o trabalho incessante, procurava
com os olhos beatas e outros restos no passeio.
- Repara nesta beleza toda, Carlos - disse o janeiro isto é uma
maravilha, isto é a nossa liberdade. Claro que é muito especulativo,
confesso, mas é a nossa liberdade.
E nós temos direito, na prática temos direito, e se não temos é
porque não queremos, porque querer é poder e nós podemos. Fomos
grandes, somos grandes, seremos maiores, que isto está bom, mas
vai para o melhor, esse é que é o paradoxo.
O paradoxo especulativo, por assim dizer. Porque nós temos as
infra-estruturas, ou não temos, Carlos? Temos ou não temos as infra-
estruturas? Podemos ou não podemos implementar? O que não falta
é vontade, é projectos, não nos falta nada! É este o nosso futuro,
Carlos, é a nossa terra!
E ficou de braços abertos para a Almirante Reis, de peito feito ao
vento que se levantava e trazia lixo acumulado e poeiras.
- Que grande aventura!
O Carlos encolhia-se no sobretudo, divisava já a Igreja dos Anjos,
debruada de pombas regulares, pensava no caldo quente, mas nada
bastava para o animar. À tarde havia de novo a marcha pelas
avenidas, de mão estendida, a arrastar os pés, a gramar os
entusiasmos do Janeiro.
- Mas o senhor Janeiro não precisa de ir para Chelas... eu vou
sozinho, trago-lhe qualquer coisa ao fim-de-semana, no dia da folga...
- Pois é, Carlos, mas como é que eu posso fazer o serviço? Fazer
o teu serviço? Não vês a situação em que me pões? Não fui eu que te
meti nisto? Não estás contente?
Nestas alturas o janeiro tornava-se quase humano; com
suavidade aproximava a barba imunda dos olhos chorosos do Carlos,
punha-lhe a mão sobre o ombro e fazia-lhe aquelas perguntas. E o
desgraçado sentia que gostavam dele, que precisavam dele, que indo
para Chelas morria o janeiro.
- Eu vinha à noite fazer o serviço, senhor janeiro, arranjo uma
bicicleta e venho.
A esta altura da clássica conversa, era de regra o janeiro dizer
que a noite era para dormir e que as bicicletas eram parasitas, que
por paradoxo o homem fazia o trabalho todo e que elas só
emprestavam as rodas. Depois continuou, inédito, sem disfarçar a
raiva:
- Tu és as minhas rodas. Eu é que sei onde ir, eu é que conheço
gente. Eu é que guio, eu é que mando. Tu és um pedinte e um
ranhoso. Não tens ninguém, não és ninguém.
Carlos parou como se lhe tivessem batido. O janeiro nunca se
exaltava senão pelos bons motivos dos espaços abertos e das
construções por vir, nunca lhe ouvira senão belas palavras, frases
complicadas, que não tinha a certeza de compreender. Agora dizia-
lhe uma coisa que se parecia tanto com, a verdade, que se abateu
sobre ele um trovão de luz, deixando-o parado e mudo no passeio.
Como chegavam à sopa dos pobres, o janeiro adiantou-se e,
rompendo à cotovelada, entrou primeiro que os outros, sob protestos.
Carlos ficou para trás, depois lentamente tomou o seu lugar,
imaginando, com a fraca virtude que a fome lhe consentia, novas
maneiras de pedir perdão.
Hades
São os anos do Rodrigo e a gente faz o que ele quiser. Foi o que
eu disse e é o que se faz. Agora calas-te e andas para a frente. E cara
alegre e não arrastas os pés.
- Por que é que hadem estar sempre a discutir, mesmo no dia
dos meus anos?
- Olha-me aquele - disse o pai -, parece o Guilherme nosso
vizinho. Só lhe falta o boné.
Todos se riram a olhar para o peixe vermelho, até o Rolando,
embora contrariado.
- Fechastes o carro? - perguntou a mãe.
- Tudo sobre controle - disse o pai.
- Não te debruces, Rodrigo Tiago, parece que fazes de prepósito!
Os peixes rebolavam pela água esverdeada. Estavam muito
feitos a serem visitados. O Rodrigo queria perguntar ao pai como é
que eles conseguiam ver, só com um olho de cada lado da cabeça.
Mas teve medo que ele empreendesse uma explicação demorada e
agora queria mais que tudo despachar-se. E teve sorte, porque não
havia muita gente a querer entrar no Aquário Vasco da Gama.
- Tens dinheiro destrocado? - perguntou a mãe. E o pai tirou da
carteira uma nota de mil e deu-a ao guarda. O Rolando ficou de
costas, distraído a olhar para a montra das conchas envernizadas e
de cavalos marinhos para sempre empertigados. Entraram pelas
anémonas logo a seguir.
- Isto é que era uma coisa boa lá para casa - disse o pai.
- Esta luz que só acende enquanto a gente carrega no botão. Era
um grande poupar de energia. - Depois leu: Anemonia Sulcata, nome
vulgar, anémona.
- A cabeleira delas até parece a do Rolando - disse a mãe a
querer brincar. - E logo, para o Rodrigo. - Não lambuzes o vidro, pá,
que é poribido. Ainda vem aí o homem e nos põe a todos fora.
- Ih, mãe, olha-me esta lula! - gritou o Rodrigo. - Olha-me esta
lula!
Ficaram todos pasmados com a lula gigante.
- Isto dava uma caldeirada para uma casa de família - disse o pai.
E leu depois, no cartaz iluminado: - Oito metros e vinte e duzentos e
sete quilos! Os olhos têm vinte e cinco centímetros de diâmetro...
- A oitocentos paus o quilo - calculou a mãe -, vê lá tu quanto é
que aí não está de lulas.
- Assim congelada é capaz de ser mais barato - disse o pai.
Foram pelo corredor conscienciosos, acendendo luzes,
espreitando anémonas e cavalos marinhos, juntando as cabeças
sobre as janelinhas redondas dos aquários. O Rolando acompanhava
à distância, como se não lhes pertencesse, de mãos nos bolsos,
deitando olhares descomprometidos aos espécimes quando não podia
mesmo deixar de ser, absorto num grave problema íntimo que
nenhuma visita, nenhuma festa, nenhuma palavra podiam resolver.
Depois começavam os peixes.
- Olha-me aquele todo às pintinhas. ó pai, podemos ter Ura?
- Isto não são uns peixes quaisquers, não se arranjam assim do
pé para a mão - explicou o pai. - Se calhar há para aí um ou dois no
mundo inteiro.
- São muito feios os peixes - disse a mãe. - Têm um ar muito
estúpido.
- Há quem diga que vimos deles, sabias? - disse o pai ao Rodrigo.
- Só se fores tu, eu cá não venho com certeza. Uma vez a minha
madrinha até me quis dar um peixinho vermelho, mas aquilo fazia-me
espécie, a criatura às voltas no frasco, deitei-o pela pia abaixo.
- Deitastes fora o peixe? - perguntou o pai, incrédulo.
- Era pequena - disse a mãe. - Coisas da minha madrinha.
Assim dizendo chegaram a uma grande sala. No tanque havia
tartarugas. O Rodrigo debruçou-se para ver.
- O pai, que grandes cágados! O Pedro tem um, mas é pequeno.
E aqueles ali, que é que eles estão a fazer?
O pai e a mãe olharam para as duas tartarugas que o menino
apontara.
- Não são coisas para a tua idade - disse a mãe. - Sai lá daí.
O Rolando aproximou-se, porque de repente sentira uma grande
motivação para ver tartarugas. Encostou-se ao muro que rodeava o
tanque, repousou a cara na mão direita e observou
desapaixonadamente o namoro daqueles bichos.
- Mas eu já sou crescido - ripostou o Rodrigo. - já vi na Televisão.
Viraram à direita e puseram-se a subir para as focas.
Abrandavam o passo porque o Rolando não descolava do tanque
educativo e também porque ainda era cedo para o almoço e, pelo
andar da carruagem, calculavam que não hou, vesse ali muito mais
para ver.
Na sala das otárias, a mãe deixou-se embevecer pela decoração
marinha de conchas e barrocos búzios.
- Isto está um luxo, já vistes? Está lindo. - E, para o Rolando, que
chegava: - Hades ficar sempre para trás e andares de trombas. Nem
nos anos do teu irmão nos fazes o favor de estares contente, poças!
- Agora por poças - disse o pai com o seu ar das festas, pegando
no Rodrigo ao colo para lhe mostrar as focas. -
Lembro-me de andar um dia na pesca com o meu tio Olindo...
- Lá vem a história do tio Olindo! - suspirou a mãe a rebolar os
olhos.
E não pescávamos nada, estivemos para ali a manhã toda e
nada, até que ele resolveu ir mais para baixo no rio, onde a água ia
com mais força...
- Deixa lá os promenores e despacha-te - disse a mãe, admirando
ainda as convolutas da decoração da sala.
- ... e eu a ver, era pequeno, tinha para aí a tua idade. Bom, vai o
tio Olindo por ali abaixo, chega aonde a corrente era mais forte e
posta-se de perna aberta e lança o isco e fica à espera. A certa altura
só o veio começar assim como que a dançar, levantava uma perna,
depois outra e eu pensei que ele estava todo contente porque tinha
apanhado algum, mas não. Depois vejo-o cair estatelado dentro de
água, ao comprido.
- Ih, que giro! - disse o Rodrigo. Tinha-lhe entrado uma rã para a
galocha e estava-lhe a fazer uma comichão danada. Então caiu na
água. Bom, mas o melhor foi que o tio Olindo se despiu todo e ficou
só em ceroulas e pôs a roupa a secar numa pedra e vieram uns
miúdos e roubaram-lhe tudo.
O Rolando emprestava àquela história uma orelha meio ausente.
Conhecia de cor a história do tio Olindo, lembrava-se de ouvir o pai
contá-la em casamentos e baptizados da família, com um copito a
mais, e quando o Rodrigo, depois de ter estado muito doente em
bebé, saíra finalmente do Hospital. No carro, na viagem para casa,
com o Rodrigo no colo, o pai contara a história do tio Olindo e a mãe
chorara a rir.
Agora só o Rodrigo é que se ria a ouvir o pai.
- Bom, mas não acaba aqui - disse o pai. - Do que eu mais gosto
de me lembrar é do meu tio Olindo, muito gordo, todo nu só com as
ceroulas, descalço a passear-se todo contente pela aldeia, de cana de
pesca ao ombro e a rir-se para as mulheres que chegavam à porta e
se benziam como se tivessem visto o diabo.
- Era muito bom homem, o tio Olindo - concedeu a mãe. - Já lá
está, coitado.
- Ó pai, como é que se dá de comer às enguias eléctricas? -
perguntou o Rodrigo.
Mas o pai ainda estava com a memória noutro lado, enquanto lia
no cartaz:
- Descargas de duzentos a trezentos volts, é o mesmo que por a
mão na tomada.
- Isto está visto - disse a mãe, e começou a descer para o tanque
das tartarugas, que controlou. - Estou farta de le dizer para não pôr
tanta porcaria nos bolsos, que me deforma as Levis - queixou-se ela,
a ninguém em especial -, depois é, ó mãe quero uns Nike, ó mãe
quero umas Lois, e rebenta com tudo. Levanta os pés, Rolando Bruno!
Portanto, a mãe estava a ficar com fome. Ainda bem que tinham
chegado a uma sala cheia de peixes comestíveis.
- Ele é bacalhau, ele é garoupa, cherne, badejo! Ancho, vãs,
pargo, polvo! Só faltam as batatas e os grelos! - disse o pai.
Riram-se.
- Não se percebe nada! - disse a mãe. - Mas que viga, rice, desde
quando é que o bacalhau é peixe de aquário? - Se tivéssemos azeite,
almoçava-se já aqui!
- Ih! - gritou o Rodrigo -. Olha-me só a tromba daquele!
Mas os pais tinham parado diante de um cardume de peixinhos
vermelhos e a mãe encostara a ponta do dedo indicador ao vidro.
Ficara sonhadora, depois o pai afastara-se e premira o botão da luz
noutro aquário.
- “Apogon Imberbis”- leu em voz alta, para o resto dos visitantes
-, “a fêmea expele os ovos (envoltos numa substância gelatinosa que
os mantém unidos num aglomerado), que vão ser incubados na boca
do macho; este jejua até ao nascimento das larvas, expelindo-as
então...“
- Que porcaria! - disse a mãe. - Lembram-se de cada uma!
Poderia-se lá pensar!
Nessa noite, ao adormecer, no fim do dia em que fez cinco anos,
o Rodrigo lembrou-se dos peixes, perguntou-se como podiam respirar
debaixo de água. Mas quando a mãe lhe perguntou, dando-lhe um
beijo de boa-noite, o que é que ele tinha gostado mais de ver,
respondeu:
- Do que eu gostei mais foi do bolo de chocolate do restaurante.
Aqueles ossos não comi, mas o bolo era bem bom.
A mãe também estava já farta de peixes. O pai demorava-se a
ler as legendas, o Rolando não conseguia disfarçar a impaciência,
batia com as biqueiras dos ténis no chão, ora uma, ora outra e
assobiava entre dentes.
- Não sei porquéque hades estar sempre a fazer isso - disse a
mãe ao Rolando. - Estragas os sapatos todos.
- Não é hades, é hás-de - disse, por fim, o Rolando. Os outros três
estacaram, ficaram parados a olhá-lo. O Rolando mudou o peso do
corpo para a outra perna, cruzou os braços sobre o peito e repetiu,
numa ameaça:
- Não é hades, é hás-de.
Elegantil
Faltavam cinco para as onze, eram horas do chá de cavalinha.
Começavam a fumegar as águas por trás das secretárias. Oh, minhas
senhoras! - disse o chefe quando entrou por acaso. Era mais que
certo que ia dali a correr escrever uma nota interna sobre o uso das
cafeteiras eléctricas nas horas de expediente.
A Gina tirou a colherzinha da gaveta. Não punha açúcar no chá,
mas mexia-o na mesma, porque lhe tinham dito que as propriedades
das plantas ficavam assim mais bem distribuídas. E também porque
sabia, das revistas femininas, que comer açúcar significava carências
afectivas, começara a envergonhar-se de comer bolos em público,
para as outras não pensarem que o marido não lhe dava atenção.
Hoje estreava o boné e a blusa de marinheiro. A saia ainda
estava um bocado justa demais, notara os olhares no autocarro. Era
só força de vontade, que o pior, como lhe diziam as veteranas das
dietas, já passara. ÀS onze, portanto, era o chá de cavalinha. Antes
do almoço de grelhados e Salada, dois comprimidos de levedura de
cerveja. Andava a iogurte magro e muita água do Luso e chá
calmante antes de deitar. Na primeira semana tinham sido as
grandes aflições no Metropolitano, as correrias para a casa-de-banho,
mas a víscera afinal pacificara. Era uma questão de acertar a dose,
toda a gente lho dizia.
Isto dos chás era novo para a Gina, que gostava de ir almoçar
fora ao sábado com o marido. Mas todas bebiam lá na repartição,
todas emagreciam por causa da praia, o Mendes já trouxera um
carregamento de biquinis que se esgotara ainda ele ia por alturas do
Planeamento.
- Anda aí outra vez o Mendes - disse a Laurinda traz umas blusas
que são um espanto.
- Onde é que ele vai?
- Está na Tesouraria, só deve aqui passar lá para o princípio da
tarde.
- Nessa altura só há refugo - disse a Gina, que gostava de
escolher o artigo. - O melhor sortido fica pelo caminho, é sempre a
mesma coisa. - A própria Gina se espantava da veemência que
ultimamente punha nas frases. Até o marido já notara, dissera-lhe
uma vez “tens de ter mais calma, Maria Regina”, quando ela se
incomodava com a demora de um empregado em atendê-los.
- Aqueles chegaram depois de nós - rosnara a Gina e já estão
servidos. Nunca mais cá me apanham. Também para comer peixe
cozido e couves, nem vale a pena sair de casa.
A única alegria da Gina era o Pelé. O marido só conseguia era
irritá-la quando lhe pedia calma, quando lhe dizia que gostava mais
dela assim cheinha. Mas os olhinhos do Pelé, esses mostravam
compreendê-la.
- Faz lá o que quiseres, por mim está sempre tudo certo. Conta
comigo.
Era o que a Gina via nos olhos do Pelé e por isso começou a
dormir com ele na sala-de-estar. Arranjou-lhe uma almofada mais alta
para ficarem ao mesmo nível e falava-lhe pela noite dentro, porque
começara a ter insónias.
- Andas com má cara - diziam-lhe as outras no emprego, sem
piedade , se calhar estás a ir longe de mais nesta coisa dos chás. Há
pessoas que não se dão.
- Eu cá - disse a Laurinda , se fosse a comer uma salada, ficava
desgraçada da minha colite. Um dia experimentei essa coisa da
saúde, dos grelhados, e apanhei uma crise de fígado que nem vos
digo.
Passava ao longe, no corredor, a sombra do chefe. Vinha com ele
a Maria da Luz.
- Emagreceu quinze quilos, está outra pessoa.
- Como é que ela conseguiu? - perguntou a Gina.
- Foi com chá, com chá de ervanária. E muita força de vontade,
mas isto é o que ela diz.
- Elegantil, é. - E a Laurinda, que passava o dia a cirandar entre
as secções e defendia o valor do exercício, ofereceu-se para lhe
escrever o nome num papel.
- Separou-se do marido - disse a Mina -, cá por mim isso é que
emagrece. Mas ela diz que foi o Elegantil, ou coisa assim.
- Separou-se do marido? - perguntou a Gina, mirando a folha de
bloco onde a Laurinda escrevera o nome do chá em letras garrafais.
- Isso é que faz emagrecer. Quando chegou a casa, a Gina
abraçou-se muito ao Pelé que viera recebê-la à porta. Quanto mais se
abraçava a ele e lhe fazia festas na cabeça e nas orelhas, mais tinha
vontade de chorar. Ao serão não disse palavra. O marido gozava o
silêncio e lia o jornal.
A Gina não conseguia dormir. Contou ao Pelé que uma vez,
quando era pequena e ainda vivia com a avó, tivera uma noite muita
febre e no delírio vira bolos de creme e ananás que lhe davam
náuseas. Decompunha os bolos nos seus elementos crus, a gordura
da margarina, o visco dos ovos, a secura da farinha, o acre do açúcar
e não sabia como é que coisas tão horríveis poderiam alguma vez
resultar num todo que se pudesse comer sem nojo. O Pelé adormeceu
a ouvi-la, com o focinho repousando na pata.
- E aqui estamos - disse a Gina alto, para si mesma, eram quatro
da madrugada. - Uma vida inteira a empatar e aqui estamos.
Resolveu arrumar as gavetas do armário. Tirou a roupa, dobrou-a
com mil cuidados, voltou a pô-la nos seus lugares. Deu por falta do
boné de marinheiro. Desmanchou cómodas e guarda-fatos à procura
dele. Encontrou-o afinal na despensa, assente em quatro rolos de
papel de cozinha, a âncora por cima da pala, sempre alerta.
Chegou-se à janela quando começava a clarear. Sorriu ao
imaginar o que pensariam os vizinhos ao vê-la assim, de camisa-de-
noite e boné de marinheiro, a olhar pela janela àquela hora da
manhã. Afastou-se e ajoelhou ao lado do Pelé. Estalou os dedos para
o acordar, levantou-se.
- Aqui, Pelé. Salta! Vem à dona. Vem ao colinho. Mas o cão
continuou a dormir. A Gina estava plantada no meio da sala, os pés
bem assentes na carpete, os braços abertos para o receber.
- Salta, Pelé! Vem à dona. Sentiu uma comichão na perna.
Quando se dobrou para coçar, viu a pulga saltar para o chão.
- Alimentas-te bem, malvada - disse a Gina. Mas quando se
debruçou mais, em busca da pulga que se perdera nos desenhos do
tapete, viu que saltavam nele dúzias de pulgas minúsculas, centenas
de pulgas. Viu os pontos negros nas suas pernas, surpreendeu-se com
a infinita quantidade, com a vida misteriosa que se alojara na sua
carpete e agora se revelava inesperada à luz da manhã, por causa de
uma insónia. Começou a matá-las. Era fácil, eram tantas. Apanhava-
as com dois dedos, punha-as brutalmente entre os polegares e
esmagava-as contra as unhas. A pulga estalava e a Gina baixava-se
para apanhar mais uma.
- Sacaninhas, sacaninhas - dizia -, hão-de levar cabo, ou vocês ou
eu. Ninguém faz o ninho na carpete da minha sala-de-estar.
III
O Caso dos Dois Juans
Nem sempre as Belas-Letras se animam de boas intenções. São
conhecidas as rivalidades, os extremos da maledicência, a teia de
intriga em que se desenvolvem e encontram-se aí exemplos de
baixeza sem par, mantidos sotto voce e, felizmente, ignorados do
grande público. No entanto, os casos que se resolvem por homicídio
são, quero esperá-lo, bastantes raros, constituindo um género
literário à parte. Os seus cultores são mais escolhidos pelo acaso do
que artistas com uma visão lata e moderna das realidades do
discurso.
Juan Romero e Juan Chiquitín tinham tudo o que era preciso para
serem grandes amigos, ou até mestre e discípulo, não fora serem os
dois escritores, os dois argentinos, os dois dados ao realismo
fantástico e, por fim, os dois sujeitos aos mesmos críticos e ao mesmo
meio ambiente. Mais, não fora o mal-entendido que despoletou a
desavença, o mau encontro, a reparação, o exílio de Romero e,
finalmente, a misteriosa morte de Chiquitín.
Juan Romero era já poeta com currículo e novelista estabelecido
quando Chiquitín se entregou todo à Literatura. Começara Romero
pela poesia, como é apenas natural, editando no espaço de seis
meses dois volumes de quadras rimadas, o primeiro Breves, o
segundo Semi-Breves, razoavelmente mais longo. Estas duas
cuidadosas selecções deixaram Juan Romero no mais obscuro dos
anonimatos, parece que muito justamente. Conformado a não ser
nunca reconhecido como poeta, resolveu ele - ou foi de algum modo
resolvido enveredar pela novela e pelo realismo mágico, ignorante
ainda dos muitos escolhos e perigos do ofício, mas pronto a correr
alguns riscos por uma razão que o romancista desconhecia então e
provavelmente ainda desconhece.
Desmaiava o Verão de 59 e o calor não cedia em Buenos Aires.
Romero escrevia à maneira dos autores de policial, ajudado por uma
garrafa de litro bem gelada e drogas leves; e o livro veio a chamar-se
A Sombra Ausente, talvez numa alusão às altas temperaturas da hora
do meio-dia. Mas, inchando já o enredo, Romero acabou por distender
as personagens para dentro de uma trilogia e, nos quatro anos que se
seguiram, fez publicar A Morte Instantânea, A Decadência do Paraíso
e entrou de férias.
Os críticos notaram sem malícia que Romero fora, até à data, o
único escritor do seu século que prometera uma trilogia e a cumprira.
Elogiaram-lhe a perseverança como se fosse qualidade intrínseca da
obra. Louvando aquela longura, também se apreciavam
implicitamente a si mesmos, obrigados a passar os olhos por duas mil
e quatrocentas e noventa e oito páginas de elaborado cenário com as
mesmas personagens que ora apareciam, ora desapareciam (Romero
era muito dado à analepse, tanto a prospectiva como a
retrospectiva).
Saudado pelos cafés no seu fato branco e inexplicável guarda-pó,
Romero depressa ascendeu a um posto ambivalente, quase-quase
nacional, mas com fundas raizes no seu bairro e no povo que lá
morava. Tomados os “críticos” de amizade, Romero pôde voltar à
escrita, empreendendo uma obra larga, pesada, épica, e, por assim
dizer, em abóbada, a que chamou Ohé, Paraguai! Por trás deste título
eminentemente turístico Romero contava, em vigorosos parágrafos e
metáforas muito bem apanhadas, por vezes de sabor demasiado
suburbano, a pasmada existência dos camponeses das fronteiras que
(por desfastio?) levavam o gado a pastar à pampa do Paraguai, onde
quer que isso fosse.
O êxito do Ohé, Paraguai! não se fez esperar e foi estremecedor.
Romero passou a ser o pai da pátria, a voz autêntica, o intérprete dos
anseios, o seleccionador do melhor da tradição, o escritor genuíno,
colado à verdade do povo e ao inescapável poder da sua direcção. E
tudo isto com a vantagem de entrosar a realidade no sonho, o facto
na fantasia e tudo tão bem baralhado que se tinha a sensação de
estar continuamente a ler grandíssimas (ainda que, por vezes,
insólitas) verdades. Entrevistado até rebentar, fotografado e filmado
até ao fio, Romero conheceu na carne a sua hora gloriosa para a qual
trabalhara quatro romances, não contando já os dois proto-livros de
poemas e as muitas, muitas noites de insone argumentação
beletrística. Cansado, afinal, dos jornalistas e presa de retardado
pundonor (seria aquela vã agitação tudo o que a glória tinha para
oferecer?), Romero arrancou-se à vida social. Comprou um rancho,
dedicou-se à criação de uma nova raça de cavalos e assim perdeu
muito dinheiro por não saber, nem fora dos romances, distinguir a
fantasia da realidade (pergunto-me se Romero não teria, no fundo do
espírito, a imagem recalcada de cavalos alados?). Voltou depois à
escrita, com uma perspectiva menos fantástica, onde o senso comum
tinha o papel preponderante. Mas sem nunca perder de vista a arte e,
naturalmente, os anseios.
Aí, na sua Placiditá, compôs durante três anos e meio as
seiscentas páginas do primeiro volume de Gianni, que se anunciava
como ainda mais uma trilogia. Esta primeira parte contava a infância,
a maturidade e a decadência do avô siciliano de Gianni, mortificado
pela fome e pela sede e muito moído de vendettas. O segundo
volume narrava, em consequência, a puberdade e a baixa juventude
do pai de Gianni, Giorgio Pietro Talmalini, símbolo mais que evidente
da transição da alta montanha siciliana para a cidade e daí, através
dos fundos atlânticos, até à Argentina.
Lá estavam, portanto, os anseios, novamente a voz autêntica, o
retrato de uma gente, de uma época, a realidade propriamente dita,
com enervantes interferências do onírico, é certo, mas ainda
facilmente identificável como tal.
No terceiro volume, mas apenas ao quarto capítulo, nasce o mui
esperado Giarmi, sexto filho de Giorgio Pietro e de Amalia Gitilia (e
nem por isso o último); e brinca, algumas páginas, jubilosa e
inocentemente na rua com pequenos espanhóis, portugueses e
turcos, que lhe ensinam os primeiros palavrões, alguns jogos latinos e
as costumadas porcarias, descritas com muito métier por um Romero
que sentia ter no papo, com estas cenas naturalistas, um público que
sabia do que é que ele estava a falar. A saga termina com a entrada
de Gianni na vida adulta, e numa fábrica de automóveis, para a linha
de montagem. À porta encontra-se todos os dias, timidamente, com a
rapariga, ela mesma operária dos têxteis, e com ela há-de casar e
produzir mais proletariado urbano.
A saga das três gerações de sicilianos provocou o delírio realista
entre os críticos. O melhor dos últimos cinquenta anos. A voz
autêntica. Os anseios, a epopeia, a verdade, a realidade. E, no meio
do entusiasmo, da efervescência que sempre provocam o contacto
com o génio e o acontecimento de grandes coisas culturais, pequeno,
mas afirmativo e dado à auto-promoção, Chiquitín coloca à venda o
seu primeiro livro. Tinha cento e cinquenta páginas em letra generosa
e chamava-se Voglio tornare a casa, papa! Era um monólogo fictício
do fictício Giarmi de Romero, pedindo ao pai, Giorgio Pietro Talmalini,
que fizessem todos a trouxa e voltassem à doce mãe Sicília, onde a
vida era suave e ociosa; mísera, é certo - e não o era ali também? -,
mas suave e ociosa.
Os amigos de Romero, que se contavam pelas dezenas de
milhar, procuraram protegê-lo do conhecimento desta, por assim
dizer, “obra” (alguns chamavam-lhe apenas “má-acção”). E quando,
por acaso, a conversa inadvertidamente roçava o livro de Chiquitín,
trocavam-se olhares e cotoveladas e apontavam-se queixos na
direcção de Romero, que sorria de longe e cumprimentava. Mas
chegou o dia em que o deixaram negligentemente só com um intruso
que lhe facultou o livro e o informou, cândido, dos factos.
- É um roubo! - gritou Romero É uma infâmia! Uma
brincadeira... - atenuou o delator.
- É meu, o Gianni, pertence-me! Criei-o, nasceu aqui! - chorava
Juan Romero, apontando uma zona complexa entre o coração, a
cabeça e o estômago.
Passada a primeira fúria possessiva, Romero decidiu pedir
explicações, por carta, a Chiquitín. Informou-se da morada do artista,
muniu-se de papel de ofício e das frases adequadas à gravosa
circunstância, e escreveu: “Caro senhor, tendo tido conhecimento por
um conhecido”, “Caro senhor, tendo tido conhecimento disto assim
assim por fulano, não interessa quem, venho por este meio pedir,
exigir, a Vossa Excelência explicações relativas ao seu
comportamento inqualificável; permito-me lembrar-lhe que, se o
roubo de personagens não é crime taxativo, tal como não o são a sua
compra e venda, é, no entanto, do comum discernimento e da
escorreita vivência inter-pares que tal procedimento peca por, etc.
etc.”
Descontente, Romero cortou, modelou, afeiçoou e mandou
entregar. Sentou-se à secretária com os olhos fixos num busto de
Vítor Hugo, autor que ele não admirava muito, e ausente,
acompanhou mentalmente o sinuoso caminho da carta, adivinhou a
vergonha de Chiquitín e esperou uma resposta que lhe permitisse ser
magnânimo.
Chiquitín, que ao tempo era um belo mocetão de vinte e oito
anos, sobrevivendo com uma dieta à base de lições de Francês
avulsas e outros expedientes, perdeu-se absolutamente de riso com a
seriedade de Romero, percebendo ao mesmo tempo - já que não era
totalmente desprovido de bossas morais, o alcance e a pertinência do
reparo do lesado. Por isso, sacrificando alguns minutos de preciosa
inacção, redigiu uma carta para Romero, em que explicava e
legitimava o acontecimento da forma que segue: estando ele,
Chiquitín, um dia a tomar o café da manhã, bateu-lhe à magra porta
uma figura que parecia saída de um romance de Romero. Era um
jovem de rua, fato de domingo caindo a prumo, colarinho rígido, bota
pesada da lama dos caminhos, cabelo apartado ao meio, faces
rosadas das primeiras rasgadelas e com aquele ar
inconfundivelmente destemido e receoso do operário que tomou uma
decisão. Disse que se chamava Gianni Talmalini. Chiquitín fê-lo
sentar-se, deu-lhe café a beber e deixou-o falar. Gianni começou,
então, a lamentar-se. Disse que o primeiro volume da trilogia Gianni
de um tal Juan Romero contava a história do avô dele ao longo de
seiscentas e dez páginas, que o segundo volume - as aventuras de
Giorgio Pietro - chegava às setecentas e vinte e que o livro final, o
único a referir Gianni explicitamente, ficava pelas trezentas e muito
poucas. Era preciso ver que sobre o jovem pesava a responsabilidade
do título da trilogia, e que este peso correspondia injustamente às
suas resumidas aparições. Falta de consideração, era do que Gianni
se queixava. Ela estendia-se também, já que falamos nisso, aos seus
sentimentos: Romero esquecia-se dele, no final, numa fábrica
nojenta, com uma namorada de conveniência de quem nem sequer
gostava e com a única perspectiva de tudo vir ainda a piorar para o
futuro. Perdido na selva suburbana, de que estava belamente farto,
Gianni sentia um desejo de sublime que se realizaria - quem sabe? -
ao reencontrar as suas raízes na Sicília, embalado para sempre pelas
brisas, tocando flauta e guardando as cabrinhas que se guardam, a
maior parte do tempo, a si próprias.
O discurso de Gianni não deixou Chiquitín indiferente. Ecoavam
nele os mesmos instintos românticos, a mesma nostalgia de coisas
que nunca seriam, o anelo da paz, e a candura ecológica do jovem
acabou por lhe desgastar algumas resistências. Sobravam-lhe, no
entanto, forças para se negar a continuar a prestigiada obra com mão
profana, nem que fosse para repor a verdade dos factos, furtando-se
deste modo a cometer um crime literário sem nome e para o qual não
se podia prever a natureza do castigo. Chiquitín não contava
encontrar em Gianni um espírito convicto da justeza das suas
reclamações e resolvido a lutar por elas - e depois de algumas horas
de extenuante controvérsia moral, o escritor cedeu a mão e a alma
mercenária, a troco de uma pequena quantia para cobrir as despesas
e trabalhou, duas semanas, no Voglio tomare a casa, papa!
Gianni lera o primeiro esboço e sugerira correcções. Chiquitín
acedera, visto que se tratava de uma encomenda e ele apenas
fornecia o braço assalariado. Portanto, concluía agora Chiquitín na
sua carta de explicações, não se trata nem por sombras de um roubo,
mas de uma caridade feita a uma personagem maltratada, que se
achara com direito a fazer valer o. seu projecto pessoal; e este
projecto, enfatizara Gianni Talmalini com vigor, não se rege pelos
preconceitos aculturalistas e miserabilistas de um qualquer Romero,
um óbvio pessimista mais preocupado com as epopeias nacionais - e
em que a nação só se erguia para cair de mais alto - que com os
genuínos anseios de suas figuras. Cá estavam de novo os anseios,
mas agora na boca de Giarmi. E Romero, por muito celebrado que
fosse, não tinha o direito de abandonar um latagão saudável e cheio
de vida a apodrecer num ghetto em B. A., quando o esperavam o sol,
as brisas da Sicília, os montes e as cabrinhas, e a música das flautas
e tudo o que é bom. Aqui é o momento de introduzir o mistério e o
prenúncio da tragédia. Chiquitín enviou particularmente a carta a
Juan Romero que a recebeu e pousou para reflectir. Afinal punha-se
ali um problema que não se podia ignorar, e que foi depois retomado
até à náusea - o da existência real das personagens que chegam
muitas vezes a cometer violências sobre os seus criadores. E preciso
ver que são personagens fortes, porque as mais débeis fazem o que
lhes mandam, falam e calam-se quando os autores querem. E é assim
mesmo que deve ser. Mas bastou para que Romero ficasse pensativo,
sobretudo o pedaço que dizia respeito aos maus-tratos de que Gianni
se queixava e que magoavam o escritor no mais íntimo dos princípios
humanistas.
Passaram dois dias. E qual não é o espanto e a indignação dos
dois escritores quando lêem, descaradamente publicada na Revista
das Artes e das Letras, a carta privada de Romero e a resposta
humorística de Chiquitín, em primeira página, no lugar reservado aos
escândalos! O celebrado autor, seguro da traição de Chiquitín, dirige-
se veloz à tertúlia onde o criminoso passa as horas-entre-lições, um
bilhar no bairro boémio; procura-o, detecta-o, carrega sobre ele e,
face à paralisia dos seus parceiros de dominó, cobre-o de bengaladas
ao acaso.
Endireita-se, repuxa o casaco e, erguendo com razão a cabeça,
rodando verticalmente sobre si próprio, encaminha-se, em fim de
faena, para a porta.
No chão, espalhando já algum sangue do nariz fracturado,
Chiquitín torce-se num riso que é, segundo se comenta à sua Volta,
de origem nervosa. E, recusando qualquer ajuda, fecha-se em casa
inchado, dorido, para pensar e para se curar.
O escândalo, a que a Imprensa se referiu como O Caso dos Dois
Juans - um desses títulos infelizes que vingam apesar de si próprios -,
teve nos seus protagonistas efeitos contrários: Romero, depois de
espancar Chiquitín com intenções catárticas e legitimistas,
encontrava-se progressivamente mais deprimido e Chiquitíri, que se
rira praticamente sem outra intenção que não fosse a de salvar a
face, tomava-se mais alegre e mais seguro de si.
Romero exilou-se na Europa para acalmar os nervos no mar e ser
recebido em França pelos seus adeptos, que lhe tinham preparado
uma série de conferências e vida em sociedade. Paris, negra e
fumosa, frustrou-o tão frustrantemente que Romero, seguindo um
compreensível desejo de beleza - tão comum em realistas
fantasmáticos -, imaginou que escreveria em Veneza o seu próximo
romance, olhando o entardecer por cima dos canais onde deslizariam
furtivas gôndolas e enredos. E como o seu Gianni continuava a
vender-se muito bem, Romero instalou-se na Piazza e trabalhava à
luz rococó de recamados interiores, junto à janela e banhado nos
laranjas, rosas e vermelhos do pôr-do-sol. Era um quadro vivo, e
Romero deu consigo a beber absinto, a passear recitando Dante
sobre as pontes.
Entretanto, no mesmo sóbrio quotidiano argentino, Chiquitín,
dizem as línguas viperinas que “aproveitando a ausência de Romero”,
publicou o seu O melhor de Chiquitín, uma antologia dos textos mais
conseguidos do escritor. Por ordem alfabética - alvoradas, amores,
poentes, tempestades Chiquitín compusera um dicionário das suas
melhores descrições, ditos de espírito e meras frases. O melhor de
Chiquitín foi recebido com reserva, apesar do título afortunado. Só um
crítico quebrou o gelo para atabalhoadamente, emocionalmente,
desancar o escritor. Por razões muitíssimo alheias à crítica do
diletante, e que não vêm ao caso, Chiquitín mudou as suas vistas
sobre a Literatura e meteu-se a escrever uma obra séria, um livro de
contos estranhos, cujos enredos seguiam linhas muito vagas e se
tornavam consistentes à força das coincidências mais imprevisíveis.
Na maior parte das vezes, nem assim conseguiam provocar no leitor
aquele sentimento inefável de que estaria perante uma história com
sentido.
Mal sabia ele que Romero acabara as suas Dragas em San
Marino. Se pareciam confirmar a vocação italianista da sua escrita
dissimulavam, por outro lado, nesse título de eco metalúrgico, a
descrição da vida amarga dos pescadores da costa do Adriático. San
Marino, ao que se apurou, não era a conhecida praia e república
mediterrânica, mas um local semi-inventado na costa jugoslava. Uma
análise ideological mente perspicaz mostraria alguma animosidade
anti-soviética nos implícitos de Romero mas os seus explícitos
permaneciam comovedores e humanos, retratando a verdadeira vida,
a voz autêntica e, como se esperava, os anseios.
Ignorante de tudo isto, Chiquitín procedia à finalização das suas
narrativas quando explodiu em Buenos Aires a obra exemplar de
Romero, logo saudada como epopeia nacional, embora se passasse
com pescadores que andavam aos peixes no outro lado do mundo.
Era a pintura de uma época, um grande fresco de uma gente. Se
fosse, de facto, passado para a tela, dir-se-ia que só lhe faltava falar.
Chiquitín publicou os seus contos com o título de Contos. Estes
levaram exactamente o mesmo caminho que as suas obras prévias,
com a aliviante de que, por esta vez, o crítico malévolo não se
incomodou a pronunciar-se. E o autor, abundando de intrigas,
começou de moto próprio as suas memórias.
Recolhia ele velhas fotografias - ou não tão velhas, que Chiquitín
não tinha sequer trinta anos - quando foi visitado por um personagem
que primeiro julgou saído de um romance de Juan Romero e afinal se
averou ser o legítimo advogado daquele autor. É que, ainda no exílio
em Veneza, Romero tivera conhecimento dos Contos e, tomado de
incontrolável angústia, lera por alto o livrito e concluíra que as
bengaladas desferidas sobre o delinquente não tinham tido a carga
preventiva que Romero lhes quisera imprimir; e que os plágios e os
roubos literários de Chiquitíri, continuados ainda mais
escandalosamente neste livro que mimava e parodiava as suas
Dragas, não se compadeciam com panos quentes, mas chamavam
sobre si o toque da fria mão férrea da lei.
O advogado revelou-se uma criatura muito dada ao sarcasmo
bilioso e, pousando a pasta na mesa, identificou-se, acusou e
profetizou a desgraça de Chiquitín. Sorrindo, o autor explicou tudo
desde o princípio: admitiu que plagiara Romero porque o admirava,
que na verdade nunca o visitara Gianni Talmalini; confessou que essa
admiração, por não ser estúpida, o levara a ridicularizar o velho autor,
talvez mais do que realmente desejara. E concluiu, em sua defesa,
que no livro em questão não havia nada que pudesse ofender
Romero, pela imitação ou qualquer outra referência.
O advogado tamborilava na pasta de couro e confessou que
embora não fosse versado em Literatura, não via grande semelhança
entre as Dragas e os Contos, a não ser numa ou noutra cena,
forçando um pouco o caso. E os plágios eram sempre fáceis de
provar, e simultaneamente impossíveis, porque, ao fim e ao cabo, o
que não é um plágio? Seria exagero dizer que Chiquitín e o advogado
se separaram como amigos, mas acordaram no mal-fundamentado
das acusações e na subjectividade de toda a apreciação acerca da
influência literária, Chiquitín, que ao longo do último ano se tornara
gradualmente mais sisudo, deixou sair o advogado e sentou-se a
olhar para um busto de Balzac, autor que não admirava muito. A
verdade é que aborrecia já a Literatura. Tinha um olho posto na
libertação que seria poder estudar para marceneiro e passar o resto
da vida a fazer mobiliário personalizado e coisas úteis, como camas e
estantes. Informara-se mesmo das condições de admissão numa
oficina como aprendiz, farto dos alunos de Francês que rareavam,
farto da falta de sucesso em tudo, e na vida, e na obra. Concluíra que,
se havia de ser sempre pequenino nas Letras, talvez se lhe
proporcionasse um desafio mais justo nas madeiras. Em geral,
pensava em mudar completamente o seu ponto de vista sobre a vida
e tornar-se - não é o que todos devíamos querer? - um homem
melhor.
Romero, ao contrário, atormentado pela perseguição imaginária
que Chiquitín literariamente lhe movia, e desiludido com as escusas
do advogado, em noites de vigília decidiu vingar-se. E, se fora através
da Literatura que primeiro sofrera o choque de ver macaqueadas as
personagens da sua alma, seria também, calculou, através da
Literatura, que a vingança se iria abater sobre o imitador.
A dificuldade, como Romero havia de descobrir, é que a vingança
literária é um género pouco cultivado e quase sem precedentes
conhecidos, se não sustentarmos a opinião radical de que cada livro
de cada autor é, em certa medida, uma vingança. O primeiro passo,
no entanto, o único perfeitamente óbvio, era reler a obra do inimigo.
Romero começou por colocar em cima da secretária os três livros de
Chiquitín, o Voglio tornare a casa, papa!, O Melhor de Chiquitín e os
Contos e estudá-los a olho, de momento só do lado de fora. Depois
abriu-os um a um e releu, de desgosto em desgosto, as vis trezentas
e cinquenta páginas da obra até ali completa. Não lhe ocorria nada.
Até que, olhando mais atentamente uma gravura que sempre
estivera à sua frente, pendurada à meia esquadria na parede do seu
quarto - “Daphne e Chloé”, seria? -, vislumbrou que a solução seria
tornar real um dos sinistros contos de Chiquitín, fazendo dele a vítima
dos seus próprios enredos. Ficou por uns momentos indeciso. Não
sentia nenhum daqueles arrepios de exultação que normalmente
acompanham as grandes descobertas. Era uma boa ideia, enfim,
parecia-lhe que não era má, mas a verdade é que, embora lógica, a
solução não lhe dizia nada. Literalmente, e naquela morna tarde de
Setembro, era uma ideia que nem o aquecia, nem o arrefecia.
Folheou, com mão mole, os Contos, ainda outra vez. Agora, na
perspectiva da aplicação prática das histórias, Romero descobriu,
indignado, que nenhuma delas era realizável sem o concurso de
muitas circunstâncias, não só todas elas extraordinárias, como, ainda
por cima, coincidentes. A incongruência de Chiquitín era tão
repulsiva, que Romero cedo percebeu a impossibilidade de realizar
aquele projecto. Havia nos Contos uma permanente cedência à falta
de sentido gratuita - o que era aquele Diálogo de um gomo de laranja
com uma fatia de pão na cela de Frei Junipero? -, uma exibição do
fora-de-vulgar pelo fora-de-vulgar, um sentido de humor que
desrespeitava tudo, que desprezava, que amesquinhava. E o mais
enervante para Romero, que investigava exaustivamente para poder
inventar com mais largueza, era a total falta de atenção que Chiquitín
dedicava ao pormenor. Ele era personagens que mudavam de nome
ao longo da história, de maneira a nunca se saber exactamente de
quem é que se estava a falar; ele era um comboio que fazia Roma-
Paris em duas horas, passando por Belgrado; ele era um homem que
tinha trin, ta anos em 1949 e dez anos depois tinha trinta e cinco; ele
era uma personagem que morria num capítulo, para ressuscitar três
páginas adiante. E os desfechos eram tão inverosímeis que Romero
acabou por atirar o livro ao canal e resolver-se a criar ele próprio uma
história de acordo com as regras da realidade e da honesta
expectativa.
Apercebeu-se do menor alcance vingativo desta solução.
Repescou das águas o volume e voltou a estudá-lo: a arquitectura
engenhosa das situações atraía-o um pouco mais agora, o sentido
dramático de Chiquitín transparecia melhor à segunda leitura. O resto
continuava a ser repelente. Era óbvio que nenhum daqueles enredos
poderia alguma vez tornar-se real.
E, passados os rescaldos do primeiro rigorismo, o velho escritor
concluiu que seria mais fácil e, sobretudo, mais sustentável, basear-
se num argumento inventado ad hoc e vivido à medida.
Não foi a primeira vez que Romero se deixou levar pelo
improviso e não se saiu mal. Mandou fabricar um passaporte falso
com o nome suposto de Antonio Muñoz, disfarçou-se de homem de
negócios e viajou até Buenos Aires.
Será de mais imaginar que Chiquitín, no preciso instante em que
Romero planeara cruzar os mares, pensou numa história em que um
autor era vítima de um dos seus enredos? Se isso aconteceu,
podemos apostar que Chiquitín não teve mais do que a ideia geral,
que o pormenor lhe escapou em absoluto e que se interrogava ainda
sobre o seguimento a dar ao conto, sobretudo ao seu final, quando
Romero pôs o pé incógnito em terra argentina. Parece, no entanto,
que Chiquitín, ainda a tomar o café da manhã, não estava à espera da
visitação do antagonista. Quando este lhe surgiu à porta, de fato
completo branco e gravata vermelha, mais pesado do que o
conhecera, não lhe ocorreu que a presente configuração lembrava
uma personagem típica de Romero. Este anunciou-se, contrariado
ligeiramente por não encontrar o terror espontâneo de Chiquitín, e foi
a caminho da sala. A olhar o pasmo do jovem autor falhado, Romero
abriu a pasta, limpou a mesa do pequeno-almoço com um gesto do
braço todo e depôs ordeiramente nela uma caneta de tinta
permanente, uma folha de papel azul, um canivete, um pau de lacre,
um mata-borrão, duas moedas de cinco pesos, um pedaço de guita,
um apara-lápis e um revólver.
Era uma cena que não tinha nada de romeriano. Nem de
chiquitiniano, se quisermos ser justos. Tratava-se de um híbrido, e
como todos os híbridos, era coisa nova. Fascinado pela encenação -
Chiquitín não resistia a um bom teatro e isso foi, claramente, a morte
do artista - acabou de beber o café, afastou a chávena um palmo para
o lado direito, apoiou os cotovelos sobre a mesa e ficou à espera.
O argumento de Romero era o seguinte: Juan Chiquitín,
mortificado pelo remorso, escrevia uma carta em que pedia perdão a
Romero e lhe fazia sinceros elogios, confessando depois ter decidido
“pôr termo à existência”, que se lhe afigurava indigna, sem pureza e
sem futuro. Dizia-se desiludido da Literatura e depauperado de saúde.
Assinava e lacrava esta carta, deixava-a exposta em cima da mesa e
enforcava-se com um cinto de karate na trave mestra do tecto da
sala de jantar.
Não era um argumento muito original, mas as coisas passaram-
se mesmo assim. Ameaçado pelo revólver de Romero, sonâmbulo e
perdido, Chiquitín escreveu a carta - mas não estava a ter um
pesadelo? -1 subiu para a cadeira, passou o cinto no pescoço e, sem
uma palavra, deixou-se cair. Este silêncio intrigou Romero e quase lhe
estragou o prazer do triunfo. Subiu também ele para a cadeira, a ver
de perto a última expressão que a morte impusera a Chiquitín.
Aproxima do rosto do morto o seu próprio rosto e espera muito tempo
que lhe ocorra uma frase que possa descrevê-lo. Não se lembra de
nenhuma. Nós, que estamos de fora, vemo-los juntos.
O cadáver balançando, o vivo colado nele, oscilando devagar. Os
olhos de horror de Chiquitín são os mesmos com que Romero o fita,
desorbitado.
O salto de Master Campbell
Master Mathew Campbell (Campbell, como as sopas) tinha um
hábito um tanto inesperado ao entrar em palco. Assim que ouvia a
sua deixa, preparado copiosamente, saltava a pés juntos para a boca
de cena e, tirando partido do estrondo, fazia estalar as mãos nas
coxas e arreganhava para o público os dentes todos – e isto qualquer
que fosse o papel a representar.
As suas entradas nunca deixaram de sobressaltar os partenaires,
mesmo os mais antigos, e tinham um efeito seguro e duradouro sobre
os espectadores, que não se atreviam mais a perdê-lo de vista, um
momento que fosse.
O salto, na sua forma aperfeiçoada ao longo de muita função, era
belo e perturbante; tinha todas as qualidades do grande circo,
apelava para o maravilhoso do irracional e partilhava da natureza do
monstro.
A princípio, o velho Hidges, o director da companhia, tentara
chamar Master Campbell à razão; mas o actor transformara aquele
salto para a frente num emblema, na marca do seu nome e Hidges
resolvera conceder. É certo que se a indulgência de Hidges se devia
em parte à compaixão, à generosidade, à tolerância e a toda a
colecção de sentimentos nobres, era sabido que Campbell fora e
ainda era, fortemente, a cabeça de cartaz e a estrela da companhia.
Para Hidges, o salto ruidoso para a boca de cena entrava, com outras
peculiaridades, no registo dos caprichos do artista. E, com o tempo,
deixou mesmo de o considerar um facto fora da ordem; era uma
rotina, semelhante a roer palitos ou cuspir para o chão, usos bem
piores e bem mais frequentes.
Mas o salto e a indulgência relativa ao salto davam, como é de
regra, que murmurar entre os outros actores, exilados de um destino
tão pleno de privilégio. Master Mathew, por seu lado, repetia-o com a
naturalidade dos escolhidos porque era, junto com outros, o sinal da
sua eleição e a parte visível de uma vida superior que aceitava sem
descabida exaltação.
Não vem ao caso, no entanto, discutir o destino de Master
Campbell mas, retrospectivamente, a mais fecunda e a mais
determinante das contradições que orientam a sua vida e o
conduziram ao extremo salto: e esta era a tensão que nele se
alimentava entre o desejo impulsivo de se exibir para o aplauso e o
medo mesquinho de cair no ridículo. O desejo de se exibir atirava-o
para a boca de cena - o medo do ridículo paralisava-o nos bastidores.
Por isso, Master Campbell meditou extensamente antes de se
decidir a aperfeiçoar uma das formas da arte teatral em que pudesse
chegar a ser imaculado e excelente. A sua experimentação era, no
entanto, toda teórica. Estudava as peças e analisava os textos,
investigava situações potencialmente embaraçosas, calculava riscos -
e desistia. O teatro, escrito, parece límpido. Mas quando transposto
para a realidade - para a realidade do palco - multiplica-se em
armadilhas, complicam-se as relações e Master Campbell, aturdido,
combatia o seu amor do espectáculo.
Mas não deixava de especular. Começou por se embeber na
grandiosidade do génio grego, na majestade sublime das atitudes e
das falas, que era a que melhor se casava com a sua tendência
hierática e a pompa do chamamento que lhe coubera. Mas, e aí se
esconde o espinho da tragédia, tudo nela se podia tornar ridículo de
um momento para o outro.
Bastava um detalhe, uma deixa fora de tempo, um ligeiro atraso
nas entradas, um tropeção, o mínimo acidente para que o trabalho de
meses se abismasse num riso público e vergonhoso. E afinal, pensava
ainda Master CampbelI, é paradoxal. Porque quanto mais velhas e
experientes são as Julietas, mais pacatos os Henriques Oitavos e mais
improvável a sucessão dos acontecimentos, maior é o êxito da
função. Parece, por um lado, que a inverosimilhança é a chave de
uma boa tragédia; mas, para que nem tudo seja claro, é a mesma
improbabilidade, exposta num pequeno engano, que ameaça
arruiná,la. Tudo está em correr o risco. E trata-se de um risco que
Master Campbell não se sente em condições de correr.
Passaram anos, O nosso ainda-não-actor começou a fazer-se
notar e temer como crítico. Entrava nas companhias de teatro e
viajava com elas a expensas próprias; assistia aos ensaios, depois de
ajudar na selecção das peças; emitia opiniões; dava conselhos,
grande parte deles sensatos, mostrava aos actores a melhor forma de
criarem a ilusão de que estavam a desempenhar um papel. E o seu
lugar, a pouco e pouco, ia naturalmente solidificando.
Esta solidificação fazia Master Campbell infeliz. Tudo se lhe
afigurava demasiado fácil, demasiado vão. Entrava ele numa
companhia, sentava-se, dava as suas ordens e todos lhe obedeciam.
A verdade é que o seu teatro de autoridade e a fama que já o
precedia tomavam a amotinação impensável.
O primeiro actor, que podia acumular as funções de encenador e
ponto, acabava por rejubilar com esta interferência que se reduzia a
uma redução do seu trabalho e deixava-se também submeter, por
indolência, por preguiça. Master Campbell, que nunca se aplicava na
compreensão das motivações alheias, adivinhava nesta liderança a
feliz conjunção da vontade divina e do mérito próprio. E aborrecia,
mesmo assim, a suavidade das suas conquistas, a debilidade dos
seus desafios.
Um dia, sentado no banho, Master Campbell, não estando
embora a pensar de forma sistemática na sua felicidade, encontrou a
pergunta que devia fazer para a alcançar. Esta era uma pergunta de
grande simplicidade, como todas as coisas que valem alguma coisa, e
formulava-se, grosso modo, assim:
- Em que condições não se corre nunca o risco de ser ridículo?
Não levou muito tempo a que Master Campbell se respondesse,
espargindo água a toda a volta:
Só não se é ridículo quando se quer ser ridículo. Foi esta a
descoberta que o levou, como é patente nem sempre pelo caminho
mais directo, à comédia. Aí, como calculava Master Campbell, em
princípio tudo é motivo de riso: o texto, o cenário, as caricaturais
personagens, as acções, as reacções. Os espectadores já se vão
sentar de sorriso nos lábios e esperam ser alimentados com
quiproquos, gafles e atropelos. Se o actor, por acaso, cai, entra fora
de tempo, bate em quem não deve, improvisa quando se esqueceu
das falas, isso apenas reforça o pressuposto do público, nunca o
desconfirma. E se, mesmo nos mais graves dos diálogos, acontece o
actor espirrar e fugirem-lhe as barbas, ele nunca se torna ridículo,
mas apenas um cada vez maior actor.
Pesando todas estas contradições, Master Campbell aperfeiçoou
longamente tudo o que pudesse provocar e manter o riso e estreou-
se estrepitosamente na companhia de Hidges, como comediante -
chegando a ser o mais admirado da sua época.
Mas é este o estofo dos nossos heróis: mais uma vez insatisfeito
com a facilidade da empresa, cedo se cansou das limitações da
comédia, esgotado todo o repertório conhecido ao tempo; e
concebeu, num golpe de temível génio, transformar toda a
dramaturgia numa gigantesca antologia de comédias: palacianas,
burlescas e grotescas.
Primeiro fez o Hamlet. Interpretava ele um Príncipe da
Dinamarca atrasado mental e abúlico, que deliberava continuamente
sobre trivialidades e se passeava vestindo e despindo uma
sobrecasaca negra, sem conseguir resolver se tinha frio ou calor. O
próprio Rei aparecia com a fatiota dos fantasmas, um esqueleto
coberto por um lençol, com o único objectivo de dar ao filho
conselhos anacrónicos e absurdos, acabando por lhe facultar, muito
em segredo, o número premiado na lotaria do ano anterior. A célebre
caveira fora substituída por um modelo em cauchu, com que Hamlet
jogava num monólogo uma partida de críquete, interrompida pelo
desaparecimento do projéctil para lá da porta da sala do trono.
Esta adaptação escandalizou os críticos e com ela Master
Campbell e a companhia ganharam uma fortuna. Campbell
transformou-se, em poucos meses, no detentor do poder cómico da
sua época. Por um esforço de vontade, absolutamente contrário ao
seu temperamento, treinou-se para ser o homem mais jovial de todos
os tempos. Mas, recolhido na privacidade do seu camarim, dava
rédea solta à amargura. É que ele sabia (e quem não o sente?) que o
Hamlet é, verdadeiramente, uma tragédia; no mínimo, um drama; e
que só a perseguição que lhe movia o seu próprio medo impedia
Master Campbell de o representar como tal, de negro, num fundo
negro, com caveiras reais de teatro e sóbrios fantasmas.
Aproximamo-nos da razão do salto ao entrar em cena. E como
conhecemos agora melhor Master Campbell, podemos suspeitar que
esta metamorfose de toda a diversidade dos dramas e das tragédias
em comédias lhe havia de fazer latejar um sentido afiado de
fraudulenta limitação; e têmo-lo novamente perante o dilema: ser
trágico e prestar-se ao ridículo ou ficar para sempre prisioneiro de
comédias sem pathos e sem grandeza.
Aqui tem novamente o seu papel a banheira de Master
Campbel1. Não que ele passasse na água mais tempo do que
qualquer dos seus contemporâneos, mas o banho era-lhe fonte
inesgotável de meditação com implicações futuras. Se, pensava
Master Campbell nesse banho reflexivo, na comédia não se corre o
risco do ridículo, como manter a tragédia da tragédia sem o correr
também? Como fazer equivaler a tragédia à comédia? Era preciso um
acto que assinalasse a ambiguidade de toda a representação, um
acto que quisesse dizer: esta tragédia pode transformar-se em
comédia a qualquer momento e se isso acontecer não estamos a ser
grotescos, estamos a ser engraçados. Eis a solução, embora turva.
E depois um dia, inadvertidamente, como acontece com todas as
invenções que contam, ao entrar precipitado em palco para
surpreender a mulher e o amante em comércio ilegítimo, Master
Campbell tropeçou na espada quase desembainhada e, procurando o
equilíbrio, pôs-se em três saltos à boca de cena; escolheu, como actor
que era, exagerar o incidente e o resultado foi receber uma ovação
de pé que fez parar o espectáculo dez minutos. Erguendo os braços
para a luz da ribalta, Master Campbell soube, no mesmo instante, que
aquele era o salto para fora do círculo dos dilemas e, no mesmo
movimento, para o sucesso ilimitado.
Não foi enorme o espanto de Hidges e dos colegas quando
Master Campbell insistiu em realizar a Antígona. E mil fastidiosas
peripécias depois, mil falas, mil repetições, mil coros nervosos, os
falsos helenos prepararam-se para a estreia. Master Campbell, à hora
da sua entrada em cena, experimenta o
salto singular, o estalar das mãos nas coxas e, pela primeira vez,
também o arreganhar dos dentes todos.
O público gelou. Mas passado o primeiro momento de suspicaz
perplexidade e o segundo momento em que se remexeram
programas à procura de qualquer referência a tão bizarro número, o
público decidiu que ele nunca tinha acontecido. Master Campbell
pôde fazer a sua tragédia em sossego.
Provando que o salto não era apenas vulgar superstição, Master
Campbell foi melhorando a habilidade, contando com a permanente
cumplicidade do público e a resignada censura da companhia, até se
fixar na forma perfeita, a síntese do melhor de todos os saltos: um
voo subtil, alargado, para a boca de cena, um aterrar a pés juntos,
um estalar de mãos nas coxas e o citado arreganhar.
Conhecendo, porém, a ardilosa natureza da sua coragem, é de
suspeitar que o prazo de validade deste salto seja sobre o breve. Mas,
de momento, serve o seu propósito ou, como dizem no mundo do
espectáculo, funciona.
O Pico do Furcht
Se em Spitzoberbergen-am-Furcht é raro acontecer alguma
coisa, aqui, no posto avançado, num sítio que nem sequer tem nome
excepto “estação de apoio aos alpinistas do Furcht”, não se passa
absolutamente nada. Escalar o
Furcht foi uma proeza em moda nos anos trinta, mas hoje em
dia, passados dez anos, já ninguém se lembra.
Nessa altura de grande movimento, calculo que os guardas da
estação de apoio não tivessem descanso. Eram eles quem cozinhava
e velava pelo conforto dos visitantes - quantas vezes turbulentos e
nervosos - quem os acordava, lhes desejava boa escalada. Alguns
faziam-se acompanhar um bocado do caminho, porque emudeciam e
ficavam moles perante o desafio quando, já equipados, mediam o
pico do Furcht na perspectiva da subida.
Os guardas conversavam com eles para os distraírem, mas no
único intuito de lhes dar atento. Era como se os empurrassem para
cima. Depois voltavam à estação e recomeçavam.
- É um emprego muito solitário - avisou o chefe-de-posto quando
assinei o contrato por dois anos. Terá, no máximo, quatro ou cinco
visitantes.
Carreguei a carroça com provisões para três meses e ficaram de
mandar por helicóptero chá, farinha, conservas e o mais que na altura
se lembrassem, e largá-las do ar no vale em frente da cabana. Tudo
me pareceu razoável. Queria partir quanto antes. O chefe de posto
teve a generosidade de vir até à porta para se despedir de mim e
ficar a acenar-me como se fôssemos familiares e eu viajasse para um
sítio remoto e perigoso.
Os primeiros meses foram o paraíso verdadeiro. Tinha o tempo
todo para ficar sentada à janela, olhando as montanhas cobertas de
neve e o vale branquíssimo que se estende à frente da encosta.
Embora fosse o princípio do inverno, já nem se viam as manchas
escuras das rochas e dos picos e o do Furcht, acabando em seta,
parecia quase ao alcance da mão.
Nos dias de sol sentava-me à porta a cantar e a minha voz rouca
já não me assustava. Experimentava o desaparecimento de coisas
para pensar, até ficar, beata, com o sentimento de ter a cabeça toda
branca por dentro. Então nem sequer cantava. Punha-me de boca
aberta a respirar. Descobri que não me cansava de o fazer: mais
profundamente ou menos profundamente, respirar e olhar a neve era
sempre a combinação bem-aventurada, apaziguadora, o branco do
fôlego e da montanha.
Depois, um dia, sem aviso, apareceu o primeiro visitante. Era um
velho que fizera a escalada há quarenta anos - fora um dos pioneiros
- e se desafiara a repeti-la, talvez por estar já demasiado doente para
tentar uma aventura nova ou desconhecida.
Quando ele apareceu à porta, eu amassava pão; por um
momento, tive vontade de o ignorar, de fingir que não o via. Mas
afinal, pensei, era sobretudo pelos visitantes que eu ali estava. Não
queria correr o risco de os descontentar.
Nessa altura, reparei que não ficara exactamente estabelecido
qual era o meu papel como guarda da estação de apoio, já que
“apoio” pode abarcar desde a simples recepção dos visitantes ao
literalmente ampará-los pela encosta acima. Como é impossível
comunicar com o posto principal e a aldeia mais próxima fica a doze
horas de viagem a andar depressa, deixei-me estar e tentei perceber,
pelas maneiras do velho, o que esperava de mim.
Comecei por lhe servir café e biscoitos, o que achou natural; e
embora - graças a Deus - não fosse conversador, marcou-me por um
ou dois sorrisos e grunhidos oportunos, o seu apreço. Pediu-me que o
acordasse às quatro horas e dormiu.
Ainda era dia. Saí para a varanda, mas não estava à vontade.
Não podia fazer barulho e não me podia deixar adormecer porque
tinha medo de não o chamar à hora. Um visitante é um grande
incómodo. Acordei-o pontualmente e daí a pouco apresentou-se-me
todo equipado. Fiquei com a impressão de que esperava que eu o
acompanhasse até ao sopé do Furcht ou mesmo que o guiasse na
subida.
- Boa escalada - disse eu e abri a porta para ele sair. Deveria tê-
lo apoiado mais? Não me parece. O único indício que possuo para
interpretar a extensão das minhas competências é o salário -
cinquenta xelins - depositado em meu nome no banco, todos os
meses. E cinquenta xelins não podem ter a veleidade de pagar mais
do que a mera vigilância da estação de apoio.
O facto é que o velho não voltou mais; pode ter descido para o
outro lado ou desistido da escalada e inflectido caminho para
Spitzoberbergen. Fiquei na dúvida mas não me atardei no assunto;
para dizer a verdade, assim que ele desapareceu e fechei a porta,
nunca mais pensei nisso. Voltei às minhas ocupações habituais.
Cozinhava duas vezes por semana nuns tachos grandes de que ia
tirando porções todos os dias. E como, por essa altura, o respirar já
tinha perdido a atracção da novidade, resolvi ignorá-lo durante uns
tempos e dedicar-me mais ao olhar. Descobri assim coisas, descobri
ilusões e pratiquei-as: semicerrando os olhos via os montes envoltos
num halo de luz amarela, na hora do meio-dia. Era um efeito quase
religioso, mas isso não me impedia de o usar. E, se abria muito as
pálpebras, os montes cresciam.
O descansado estudo não iria durar muito. Umas semanas depois
do desaparecimento do velho entram intempestiva' mente na cabana
dois visitantes de tal modo embrulhados em mantas, sacos, casacos,
gorros e cachecóis que não percebi logo serem duas mulheres.
Fugiam da tempestade que quase as apanhara no caminho. Eram
mãe e filha. A rapariga tremia de frio e ofegava. A mãe, uma matrona
gigantesca de trança loira enrolada à volta da cabeça, massajava-lhe
energicamente as mãos e os pés, calada, respirando forte.
- Estou bem, estou bem - dizia a miúda.- Pára lá com isso.
Eu já tinha o café ao lume e fui buscar também pão e queijo,
para responder a um inexplicável impulso de protecção. A miúda
sentou-se à mesa para ser servida enquanto a mãe lhe arrumava a
mochila.
Disseram-me que vinham de Viena e que a alpinista era a filha -
Leni ou talvez Yeni - que conseguira arrastar a pacata mãe até
Spitzoberbergen e a convencera de que escalar o Furcht era mais
eficaz do que qualquer outra ginástica ou dieta.
A minha simpatia foi imediatamente para a imensa frau que
seguia, com solicitude complacente e alguma indiferença, a
adolescente enérgica e embirrenta, campeã das escaladas mais
difíceis. Por isso também me intrigou desde logo esta sua teimosia
em subir o Furcht que é, feitas as contas, um pico de acesso pacífico,
incomparavelmente mais brando do que as escaladas que permitem
bater recordes e entrar nos anais.
Acordei-as às quatro horas, como me tinham pedido. A mãe
ainda julgara não ser preciso “incomodar”, porque era capaz de
acordar quando queria. Mas a miúda decidiu que não tinha confiança
no relógio interno da mãe e com o fanatismo da absurda
pontualidade dos escaladores, achou que me pertencia despertá-las.
Tive, por isso, que me manter alerta toda a noite, para não deixar
passar o momento. Preparei-lhes o almoço, que comeram em silêncio
e resolvi acompanhá-las descendo até ao vale.
- Não andes tão depressa - dizia a miúda. - Cansas-te e não
chegas lá acima.
A frau abrandou o passo. Esperou pela filha, sorrindo. E disse
para mim:
- É uma menina muito voluntariosa. O pai dela também tinha
uma vontade de ferro e era todo desembaraçado.
Ainda não era dia. Esperavam apanhar o nascer-do-sol a meio da
primeira etapa, que era a mais rápida. Eu não conseguia decidir-me a
deixá-las, e elas não pareciam achar estranha a minha companhia.
Mas cedo comecei a cansar-me e quis voltar à cabana. Parei e puxei a
mulher por um braço:
- Tenho que ir. Vocês ficam bem? Ela acenou com a cabeça:
- A Leni toma conta de mim. Depois aproximei-me da miúda,
muito perto, para ver se ela sabia o que estava a fazer:
- Tenha cuidado - disse-lhe -, há passagens que parecem muito
fáceis, mas são enganadoras.
E como ela não respondesse e me olhasse com insolência,
acrescentei:
- Tome conta da sua mãe.
- Ela sabe muito bem ter cuidado - disse e virou-me as costas
para continuar a subir.
Depois das duas visitantes, estendeu-se um longo período de
repouso.
Passaram a primavera e o verão, sem contratempos, se não
contarmos os dias em que tinha de descer a encosta para procurar os
pacotes de provisões que o helicóptero largava algures; pode não
parecer, mas a neve engana muito. Da varanda vê-se o helicóptero
suspenso e a queda dos pacotes - julga-se que se sabe exactamente
onde estão. A primeira coisa a aprender é que caem sempre muito
mais longe do que parece. Depois, basta não ir logo cavalgando
encosta abaixo para se correr o risco de perder as provisões um
pouco de neve e nunca mais se encontram.
Começara a estudar a geografia do país, porque pensara que
poderia um dia precisar deste conhecimento. Curiosamente, era
bastante mais fácil do que julgara. E tão útil como respirar. Num sítio
assim solitário deve saber-se sempre agir nas emergências. Imagine-
se que a emergência - um desmoronamento, por exemplo - exige que
me afaste depressa do pico. Por que caminho? Eis para que serve a
geografia.
Finalmente, um dia, quando menos esperava - é idiota dizê-lo,
mas os visitantes chegavam sempre quando menos esperava, isto é,
quando deixava absolutamente de considerar essa hipótese como
real - apresentaram-se-me à porta da cabana, no princípio do inverno,
dois homens e uma mulher que vinham escalar o pico do Furcht.
A mulher impressionou-me extraordinariamente. Era muitíssimo
bela, os olhos imensos, azuis, a pele muito branca. Quando nos
olhava - e era o que a tornava tão chocante - tinha-se o sentimento
de que não havia ninguém por trás dos olhos dela. Não era o frio que
nos gelava, era o vazio.
Os dois homens dançavam por ela um bailado de aproximações e
afastamentos, como mosquitos atraídos pela luz que se contivessem
no perímetro do território interdito. Nunca a deixavam só, mas
raramente lhe falavam.
Era como se cada um deles a guardasse do outro. Estavam junto
dela sem a olharem, vigiando ansiosos o outro que, ou saía da cabana
para um misterioso passeio, ou se ausentava para a cozinha sob
pretextos vários. Assim que um fazia menção de se aproximar dela, o
outro afastava-se.
Eu assistia a todo este bailado siderada, porque tinha a certeza
de que eles não se apercebiam - nenhum dos três - do perigo que
corriam. Odiavam-se ao ponto de não se suportarem todos na mesma
sala; e cada um dos homens suportava a mulher apenas porque
julgava querê-la absolutamente, exclusivamente.
Através das poucas frases que trocaram soube-lhes os nomes -
ela era Uta, eles Yosha e Jürgen - mas pareceu-me que a própria Uta
lhes chamava indiferentemente um ou outro nome. Aquele a quem
Jürgen chamava Y0sha, não quis jantar. Disse que não tinha fome e
recolheu-se junto da lareira. Depois Jürgen resolveu sair para a
varanda fumar o cachimbo. Uta lia à mesa. Yosha aproximou-se e
disse-me que afinal era capaz de comer qualquer coisa, o que eu lhe
arranjasse. Reaqueci a sopa e o assado, um pouco contrariada. Não
lhe quis mal, percebi que este atraso fazia parte do jogo e o seu papel
infeliz tornou-mo até simpático. E, de repente, ouço Uta, irritada,
dizer alto: Já te repeti que são pelo menos cinco dias. Se tens medo e
não aguentas, ficas aqui à lareira. Depois vimos buscar-te.
Eu não ouvira Yosha perguntar o que quer que fosse. Mas ele não
parecia espantado com a resposta. Fitava a sopa timidamente.
- Para que é que vieste se não queres ir até ao fim? E Uta calou-
se, voltou a ler. Eu atrevi-me a sorrir ao Yosha e a perguntar:
- Vocês donde são? Mas ele talvez não me tivesse ouvido,
continuou a remexer a sopa e murmurou:
- Mas eu quero, eu quero. Jürgen entrou e sentou-se à lareira.
Yosha apressava-se agora a comer. Embora lamentando o ridículo da
situação, voltei a perguntar, mais alto:
- Vocês donde são?
- De Riga - respondeu Uta, muito breve. Depois foi a vez de
Yosha sair.
- O que diz ele? - perguntou Jürgen.
- Nada - respondeu ela, e deitou-se.
- Querem que eu vos acorde... às quatro, não? - eu julgava saber
todos os hábitos dos alpinistas.
Não temos hora marcada - disse Uta. - Vamos quando formos.
Deitaram-se cada um em seu canto, no chão, a cabeça so
bre a mochila, o mais longe que puderam uns dos outros. Jürgen,
quase junto à porta, no sítio mais frio, Uta do lado oposto e Yosha ao
pé da lareira, todo enrolado como um gato.
Mas eu não conseguia dormir. Aqueles três vinham com Í um
tal ar de desastre, a contenção era tão forte que me entretive a
correr de um para outro dormidor fitando-os, fixando-os, querendo
adivinhar o que ia acontecer, quem seria a vítima, quem o
perseguidor.
Yosha acordou sobressaltado enquanto o olhava. Assustei-o,
naturalmente; já passei a idade jovem, a idade madura, a idade
nobre. As minhas rugas não são uma boa aparição para quem acorda
a meio da noite e se vê confrontado com elas num ermo gelado. Pus-
lhe a mão no braço para o acalmar. Era muito difícil, eu própria
estava muito agitada.
- Não tenhas medo - sussurrei -, o Furcht é só um picozito. Duros
são o Himmel, o Aufbrück. Mas esses ficam longe, não te preocupes.
- Eu sei - disse Yosha -, eu já os escalei todos. Eles é que nunca
fizeram parte de nenhuma expedição.
E, depois de estar calado uns minutos, acrescentou:
- O meu medo é por eles. Não sabem nada. Pensam que subimos
o Furcht a cantar e fazemos um piquenique de salmão fumado lá em
cima sobre a neve, ao sol.
- Com certeza que isso não é assim. Ouvi a Uta dizer que tu é
que não devias ter medo.
- Ofereci-me para os guiar. Agora dizem que já não querem guia.
Era-me impossível acreditar nele. O que dizia era tão contradito
pelo seu ar fraco, inexperiente; Jürgen sim, parecia um montanhês,
um verdadeiro batedor, ou Uta, com os ombros tão largos que eram o
dobro dos de Yosha.
Deixei-o dormir. Peguei no livro que Uta deixara sobre a mesa.
Na capa desenhava-se uma mulher espacial, seminua, armada de
uma espingarda que apontava a um animal composto de tentáculos e
uma cabeça semelhante à do touro. Uta lia ficção científica. Passei os
olhos ao acaso sobre as páginas, nada me chamou particularmente a
atenção. Acabei por adormecer sentada e só acordei quando Uta me
tirou o livro das mãos.
Não quiseram almoçar, pediram-me que embrulhasse o que
havia e meteram-no nas mochilas. Saíram, Uta à frente num passo
alargado, Jürgen, de cabeça levantada e atrás, um pouco saltitante,
Yosha, que soprava o bafo quente nas palmas das mãos, embora
tivesse calçado dois pares de luvas.
Eu desejara-lhes boa escalada à porta da cabana, mas
tencionava segui-los. Primeiro devia deixar que desaparecessem, dar-
lhes talvez umas dez ou doze horas de avanço. Mas ocorreu-me que,
com todo esse atraso, nunca chegaria a tempo de impedir o que quer
que fosse, embora talvez ainda a tempo de socorrer a vítima que os
outros haviam de deixar com certeza para trás.
Nesta altura foram-me muito úteis os conhecimentos de
geografia e topografia da região que acumulara todos aqueles meses.
A rota seguida pelos escaladores é um caminho de ócio e proeza, o
mais difícil, o mais sinuoso, o mais desperdiçado. Há atalhos, desvios,
um caminho simples e curto que eles nunca utilizam. Foi essa a rota
que eu escolhi para os poder surpreender e saltar-lhes no caminho do
crime.
Preparei-me - era a minha primeira saída a sério desde que
chegara à estação de apoio - e quando, da porta da cabana, me
certifiquei de não poder ser vista, umas escassas seis horas depois da
sua partida, desci a encosta de um fôlego e, atravessando o vale,
comecei a escalada pelo lado direito.
Nessa noite, sozinha na tenda - não acendera qualquer fogo -
enervava-me a impotência que sentia, sabendo que cada um deles
corria perigo, que eu não podia impedir o que tivesse de acontecer
entre eles. De maneira que resolvi cortar ainda mais caminho e, no
dia seguinte, assomando por entre rochas, vi-os aparecer, em fila
indiana, a Uta sempre à frente no mesmo passo, o Jürgen a seguir e
finalmente o Yosha, trôpego, quase desfalecendo, e cada vez mais
afastado dos outros.
Segui-os assim algum tempo por um caminho paralelo - talvez
aquele não fosse, afinal, o melhor dos caminhos - quando notei, a uns
cem metros, numa rocha mais escura, esculpido, um traço.
Como tinha que parar para descansar, escavei aí um pouco junto
à rocha para montar a tenda. Encontrei, a bem pouca profundidade, o
bornal do velho alpinista, vazio. Não quis adiantar a busca - era agora
certo que não escapara, nem sequer tendo tomado a rota mais fácil,
nem sequer tendo feito batota.
No dia seguinte de manhã, voltei a avistar os três visitantes. Uta
continuava a caminhar como um autómato, a direito, e Jürgen seguia-
a a pouca distância carregando Yosha nos braços. Parou para lhe
mudar a posição: pegou-lhe, pô-lo às costas como se fosse um saco e
atou-o com uma corda que os ligava a ambos pela cintura. Uta não
parara.
Nos meus estudos aprendi que, do outro lado do Furcht, há uma
estação de apoio a que chamam, muito a propósito, o Unterfurcht. O
raio de acção do guarda que ali vive, segundo os meus cálculos,
começava naquelas imediações. Resolvi, por isso, voltar a casa,
deixando-os entregues à improvável solicitude do meu colega. Yosha
não me parecera estar morto. E, afinal de contas, estava a ser
carregado às costas de Jürgen.
Talvez o deixassem, moribundo, um pouco mais à frente? Mas
como interferir na jurisdição de um guarda que não conheço, com
quem nunca poderei explicar-me? Pode acontecer até que a estação
esteja fechada, não viva lá ninguém, mas dar-me-á essa ausência
responsabilidade sobre uma zona que não me pertence?
Voltei, portanto, para trás, e não vou dizer que foi fácil. Os
mapas, tal como a neve, são enganadores. Também é tudo mais
longe do que parece. Também não se pode nunca saber ao certo
onde se está, sentimo-nos como os pacotes lançados do helicóptero.
Quando finalmente cheguei tinha a casa gelada. Acendi o fogão e
a lareira. já me esquecia dos visitantes, destes últimos. Reparei que a
mulher deixara ficar o livro, e queimei-o. Os visitantes não gostam de
entrar na cabana e de a perceberem como minha, de maneira que
limito o que é de uso pessoal, ou o que dê um ar familiar, ao absoluto
mínimo. Tudo o que é meu, guardo-o fechado num armário pequeno.
Rex
Julgam que não se pode secar na auto-estrada, à chapa do sol e
ao frio da noite, cinquenta e quatro horas seguidas à espera de
boleia? É porque nunca tiveram o azar de quererem a todo o custo
sair de Smailtown, Illinois, maldita seja, e sem dez cêntimos no bolso.
Não é que eu tenha alguma coisa contra Smalltown, Illinois, maldita
seja, o facto é que não aguento parado mais de uns poucos dias em
cada sítio, sou um viajante. E foi-me fácil viajar até lá, mas muito
mais difícil escapar-me. Momentos houve, nessas cinquenta e quatro
horas que pareciam nunca mais acabar, em que cheguei a temer que
o meu destino fosse ficar para sempre arquivado em Smalltown, sem
esperança de remissão. E enquanto me entretinha a ver passar os
palermas dos Jones, que têm uma quintarola aí a umas dez milhas, os
manos lbsen que iam dar um passeio sabe Deus onde e alguns
pândegos e cretinos cujo maior divertimento é andarem para cima e
para baixo na auto-estrada a dizerem adeus aos miseráveis como eu,
parados na berma a olhar para eles, com a mão em pala por causa do
sol, enquanto assim me entretinha, dizia para comigo que se era esse
o meu destino, então não era digno das minhas expectativas. Foi
mais por isso que, com exultante inocência, me precipitei sobre o
primeiro carro que pareceu querer abrandar a marcha e, ofegante,
feliz, ajudado por gestos persuasivos, perguntei se podia subir. O
condutor apontou o banco de trás, para onde atirei o saco sem olhar.
Entrei, fechei a porta e só quando finalmente encarei o homem é que
percebi estar na presença de um grande conversador. Mas era tarde
de mais para recuar e, na situação em que me encontrava, não me
podia dar ao luxo de escolher. Depois reparei que o homem não só
falava como um fanático, como ainda por cima era daqueles que
começam as frases todas por “bem”.
- Bem, como é que você se chama? Esta é a parte da conversa
que usualmente corre melhor. Invento sempre novos nomes e
histórias curiosas para divertir os condutores, que consideram assim
bem empregue o tempo que gastam na acção já de si meritória de
dar boleia a um vagabundo.
Chamo-me Tom Sawyer. - Ele riu-se. - O meu pai era doido pelo
livro, de maneira que me pôs o nome de Tom Sawyer. Ele chamava-
se John, só John, não era o bastante.
- Só John, há? Bem, e para onde é que você vai?
- Para longe de Smalltown, maldita seja, e para longe do Illinois.
E você?
- Bem, eu vou só até Moronville e depois volto logo para trás. É
por causa do cão.
Eu nem tinha reparado no dito cão. A verdade é que não se fazia
notar, estava todo achatado no banco de trás, mas J.a me roía
discretamente o saco dos pertences.
- Está-me a roer o saco! - disse eu para o conversador,
indignado, e devia estar a ranger os dentes todos.
- Rex - disse ele brandamente como se falasse a um miúdo -, não
mexas no que não é teu. Quantas vezes é preciso dizer-te que é
preciso mostrar boas maneiras, se não não te aceitam em lado
nenhum? - E continuou, para mim, todo orgulhoso: - É um verdadeiro
touro de força. Uma vez conseguiu romper a vedação de arame só
com os dentes e comeu os gatinhos todos à senhora Norton. Não foi,
Rex? Também, eram tão pequeninos...
Olhava pelo retrovisor, como se estivesse a falar com uma
autêntica pessoa. O cão deixou de massacrar o saco por um
momento, levantou-se e lambeu-lhe a cara, agradecido.
Bem, deita-te lá - disse ele, compondo o boné de baseball que a
besta desalinhara. - já percebemos que não fizeste por mal. Mas
daqui para o futuro deves tomar mais atenção ao que te digo.
O cão fez o que se parecia com um ganido de ternura, deitou-se
e recomeçou a roer, desta vez na outra ponta. Eu não tinha grandes
valores dentro do saco, mas era o meu único saco, e ainda por cima
estava ligado a ele sentimentalmente, já nem me lembro porquê.
Talvez por me pertencer há tanto tempo.
E ali estava eu, sozinho no meio de nenhures com um lobo de
Alsácia que me detestava e um maníaco que começava as frases
todas por “bem” - e, para cúmulo, era uma quantidade de frases
aterradora. Tínhamos aí umas três horas de viagem e eu já estava
com a cabeça em água de o ouvir falar constantemente - e escusam
de perguntar sobre o que é que ele falava! -, quando decidiu que
precisava de parar daí a pouco para “restaurar as forças”, ou
“retemperar os ânimos”, ou “revitalizar as energias” - eram tudo
expressões dignas dele - e acelerou. Acho detestável quando alguém
acelera. Parece que acabou de se lembrar de algo terrivelmente
urgente e dispara estrada fora como uma flecha. Dir-se-ia que não há
nada mais importante do que chegar. Com efeito, para um viajante
como eu, esta é uma atitude absurda que me leva às portas da ira (as
“portas da ira” também é uma expressão que ele poderia ter usado
em qualquer momento).
Durante uns minutos ainda houve só umas lamentáveis
pastagens de um lado e de outro da estrada, de onde olhavam,
dispersas, umas vacas. Depois começaram a aparecer grandes
anúncios de casas de hamburgers e outras porcarias. Por esta altura
já eu tinha desistido de olhar para trás. Não podia assistir impávido à
destruição do meu saco de viagem e também não podia fazer nada
acerca disso. Estendia a orelha, era tudo o que podia fazer, mas o
ruído do carro abafava o mastigar do cão.
- Bem, paramos aqui - disse o conversador, no fim de um sem-
número de frases que eu não ouvi.
Preparava-me para sair, mais para deixar o cão acabar o serviço
em paz do que para me “restaurar”, quando o homem me pôs
firmemente a mão no braço.
- Você também vai? - nunca ouvira a ninguém um tom de tal
incredulidade. Eu próprio comecei imediatamente a duvidar da
legitimidade do meu direito de sair do carro.
- Bem - disse ele, muito manso -, não podemos ir os dois. Alguém
tem de ficar com o Rex. E a verdade é que eu queria... - E apontava
uma casa de banho nojenta que dizia Homens, o que alguém riscara e
escrevera por cima, à mão, Machos.
- Ah, mas não seria aconselhável que ele fizesse mais algum
exercício? Isto é... para além de me roer o saco?
Ele não conseguiu compreender a alusão. É extraordinário, mas é
um facto que já observei mais do que uma vez, como as pessoas que
falam muito são completamente incapazes de subtileza. E afinal,
talvez não possa ser de outra maneira.
- Não - respondeu, subitamente alarmado. - O Rex não pode sair.
- Bem - disse eu (se não podes vencê-los, junta-te a eles) -, então
fico eu aqui.
- Bem, eu não me demoro. Agora, há quem ache o cão o melhor
amigo do homem, um animal nobre, de grande dignidade,
generosidade, e por aí fora. Haviam de conhecer o Rex. Deixou-se
estar muito sossegado até o dono desaparecer completamente de
vista; depois começou a rosnar baixinho e, no momento exacto em
que eu punha a mão no fecho da porta para o que desse e viesse,
atirou-se a mim num salto, desvairado, rilhando os dentes. Era mais
que certo que me queria despedaçar.
Ainda estou para saber como é que, naquele pânico, me
consegui lembrar do saco. Talvez haja coisas que não se esquecem
facilmente, ainda para mais quando intervém o tal valor sentimental.
A minha primeira reacção foi correr para a estrada, onde havia mais
espaço. Naquele predicamento ainda tivera a presença de espírito
suficiente para me desviar de um carro que passava a cinquenta à
hora, mas o Rex, que não tinha controlo sobre o instinto e não sabia
moderar o entusiasmo, foi atropelado. Deu uma espécie de guincho e
caiu todo mole na berma da estrada. O condutor nem parou. Também
é verdade que não acelerou. Era cá dos meus.
- Smalltown - disse para comigo -, maldita sejas, que ainda me
persegues.
E ali estava eu e o Rex a esvair-se. Aproximei-me dele, dirigiu-me
o mesmo ar estupidamente acusador. A última coisa a deixar de
mexer foram, como é evidente, os olhos.
Pensei que o melhor era afastar-me dali em passo de corrida,
mas era mais que certo que o conversador me apanharia na estrada
para me cobrir de injúrias, quando não para me dar um tiro, que é
como esta gente gosta de se vingar. Havia de me considerar a causa
directa da morte do cão, que eu me sentia, na altura, incapaz de
explicar. O acidente é sempre muito difícil de explicar. Pode-se
descrevê-lo, sim, analisá-lo de trás para a frente, em todos os
pormenores, o facto é que não deixa de ser um acidente e, por isso,
muito difícil de explicar.
Então - não vou ser pedante ao ponto de dizer que estava com
problemas de consciência ou sequer que pesei os prós e os contras -
peguei no Rex ao colo e, depois de olhar em redor como um
criminoso, levei-o pé ante pé e meti-o no carro, muito composto como
se estivesse a dormir, com o focinho deitado na pata.
Procurei um lugar para me esconder. Passados alguns minutos, o
conversador saiu da casa-de-banho, espreitou para dentro do carro e
depois olhou em volta à minha procura. Encolheu os ombros e abriu a
porta. Ainda olhou mais uma vez para a estrada antes de entrar, se
calhar pensou que eu tinha apanhado outra boleia e aposto que deve
ter feito um comentário bem-humorado sobre a minha ingratidão.
Depois entrou, deu uma palmadinha no lombo do Rex e arrancou
lentamente para não correr o risco de o acordar.
IVViagens que não fiz
1A Islândia
Reiquiavique já não é a aldeola frugal de duas ruas de alhotas de
turfa e casinhotos de madeira que o renitente sobrinho do Professor
Lidenbrock conheceu e desprezou em 1864, de caminho para o
centro da Terra. No espaço destes cento e trinta anos, a capital da
ilha cresceu e multiplicou-se e é hoje uma metrópole esforçadamente
colo, rida e arborizada, novinha em folha na maior parte das áreas,
albergando noventa mil pessoas, ou seja, metade da população. Tem
museus, bibliotecas, cinemas, restaurantes e bares; piscinas,
universidades e tribunais; instituições e empreendimentos; e inclui
mesmo um hospital psiquiátrico onde se cuidam, pelas mais
iluminadas técnicas anti-depressivas, as vítimas do psicologicamente
implacável inverno islandês.
Eu partilhava a zona de Albufeira com três milhões de
compatriotas meus e muitos estrangeiros, nessa versão livre dos
trabalhos forçados que se chama férias, e revirava-me no divã
alugado procurando sobreviver aos quarenta e quatro graus (menos
dois que em Lisboa, valha-nos Deus!) que as paredes ali tinham
sequestrados, quando, relapsando num sono turbulento, tive um
sonho: vi uma ilha gigantesca, branca de neve e negra de lava, como
um gelado infinito que se oferecesse, boiando no oceano, caritativo e
consolador, à minha vontade de espaço, de frio, de silêncio, de ar. O
meu sonho levantava depois num voo de águia e eu ia pelos campos
de lava, sobre os vários tons do líquen e dos musgos, pelos picos de
gelo e de fogo, voando sobre casas brancas, telhados negros, lagos
azuis fumegantes, rios, cataratas, rochas a pique sobre o mar,
extensões desertas, Aterrava, enfim, na boca de um vulcão e ficava
do alto a observar um pato de todas as cores, uma dessas criações da
natureza feitas propositadamente para nos envergonharem das
nossas artes humanas.
Quando acordei, não tive escolha - tal como nas sagas
islandesas, em que o sonho não só anuncia como determina as
acções humanas _, senão meter-me no avião e orientar-me para
Reiquiavique. Foi apenas à chegada que mais uma vez tive a intuição
da diferença que existe entre o espaço, o frio e o ar dos sonhos e
essas coisas propriamente ditas na realidade. Veio à memória uma
semana que passei na Escócia. Era Agosto e quando não chovia,
chuviscava e fazia muito frio. Dormi esses sete dias, acordando o
bastante para seguir de longe em longe a programação da HC e sair
furtivamente para comprar paperbacks. O meu receio, ao
desembarcar no aeroporto de Reiquiavique, foi não vir a conhecer da
Islândia mais do que os seus pálidos locutores televisivos e os longos
documentários sobre cavalos e carneiros, sobrevindo aquela
catatonia típica de um organismo desacostumado das baixas
temperaturas. O frio tem sobre mim ainda outro efeito humoral
perverso, que é o de transformar uma natureza relativamente
complacente e prazenteira num feixe agressivo de ressentimentos,
que se dirige igualmente contra todos sem excepção. Só a milenar
afabilidade dos Islandeses poderia tolerar esta má-criação
hipotalâmica, como acontece ser a minha debaixo de tais condições.
Para contar tudo em poucas palavras, digamos que passei a
primeira semana dentro de água quente, durante o dia, e nos bares
sobrcaquecidos da cidade velha, ao serão; esta distinção entre dia e
noite, aliás, como muitas outras coisas na Islândia, não passa de ser
retórica, já que, durante os meses de Verão, há sempre luz. A
verdade é que se pode aprender muito sobre um povo numa piscina
pública, mantendo apenas a cabeça de fora e os olhos bem abertos. É
um conhecimento limitado e que leva uma boa dose de imaginação,
mas dadas as circunstâncias, como diria Thorgerd, na saga Os
homens do Vapnfjord, a quem o marido acaba de anunciar ter
enterrado o machado na fronte de um dos assassinos do pai, “sempre
é melhor que nada”.
A primeira coisa que nos impressiona ao escutar os Islandeses é
que são verdadeiros mestres do eufemismo e da linguagem fraca.
Não dizem “isto hoje está horroroso!”, mas sim “Jà vi dias com mais
sol”. Do encontro de dois homens que estão prestes a entre-esganar-
se, afirmam que “as saudações estiveram longe de ser cordiais” e
quando se zangam a sério com alguém, o mais que ousam é dizer
“não consigo pensar nada de bom sobre ti”. Não se pode deixar de
admirar um povo que mantém a língua tal como ela era falada no
século treze, uma língua ainda por cima complicada e intransigente,
repleta de dificuldades gramaticais, grande profusão de acentos,
declinações e outras coisas que têm, em outras partes do mundo, os
dias contados. Os Islandeses padecem, além disso, de um saudável
nacionalismo linguístico que os leva a procurarem equivalentes locais
para termos universais e a chamarem simi ao telefone e tolva ao
computador, bifreid ao automóvel e ljósmynd à fotografia. A discreção
e a sobriedade dos Islandeses é mil vezes atestada pela sua História.
Eirik o Vermelho descobriu uma terra a que chamou Verde, a
Groenlândia, considerando com evidente espírito de marketing que
“os homens teriam mais vontade de nela se instalarem se a terra
tivesse um nome agradável”. E um dos seus filhos, Leif, chegando à
Terra da Boa Vinha (Terra Nova), achou por bem não estender a visita
mais de um Inverno, para não abusar da hospitalidade dos índios.
“Tornou-se claro, a certa altura, explica a saga de Eirik o Vermelho,
que embora a terra fosse admirável, haveria sempre medo e luta a
persegui-los, porque já era habitada. Prepararam-se para largar e
voltar ao país que amavam e navegaram para Norte”. O irmão de
Leif, Thorvald, agonizando de uma seta lançada por um estranho ser
com um único pé, na viagem de regresso, à altura do Labrador, ainda
foi a tempo de comentar: “Tenho uma boa camada de gordura à volta
da pança! Conquistámos uma terra muito bela, embora me pareça
assaz curto o tempo de a desfrutar!”.
Esta mesma sobriedade aparece na maneira como bebem os
Islandeses, sem alarido, sem sofisticação desnecessária, mas com
sentido do propósito e digno empenhamento. O primeiro serão de
Reiquiavique, passei-o no HuldufoIk (Bar das Pessoas Escondidas): de
acordo com uma lenda antiga, Eva estava no Paraíso a dar banho aos
filhos quando o Senhor lhe apareceu. Ela apresentou-lhe só os
meninos que já estavam lavados, pelo que Deus se enfureceu,
castigando-a: “Aqueles que escondeste de Mim, serão escondidos dos
homens”. E, ao que parece, ainda uma boa metade dos Islandeses
acredita na existência desta gente invisível, o que se compreende,
dada a solidão dos lugares que habitam.
Não ia a meio do meu primeiro Viking Raid (e posso dizer que já
bebi coisas menos alcoólicas), quando se me dirigiu uma personagem
que me pareceu familiar, perguntando se vilya gjarna drekka
eitthvao, querendo grosso modo dizer estar na disposição de beber
algo. Eu estudara o meu Islandês e percebi que aquilo não era um
nativo.
Você não é islandês - disse eu na língua do país. - De onde é?
Sou de Beja - disse-me ele, o macarronico. - E você? Eu vinha de
Lisboa e, feitas as contas, não estava arrependida. Contou-me que lhe
chamavam Peter, e que andava emigrado por toda a parte, chegando
à Islândia há duas semanas para fazer o Verão. Trabalhava como
angariador de turistas para um guia local chamado Gurmar e recebia
à comissão.
O próprio Gunnar, um homem pequenino e loiro quase
transparente, vestido de batedor, uma mistura de Daniel Boone e
baba cool, apresentou-se de manga curta e perguntou-me onde é que
eu costumava passar o Inverno.
Cedo realizei que contar histórias do Inverno era um
divertimento muito popular nos bares islandeses. Um lembra-se do
dia em que voou trinta metros nas asas de um vento ciclónico e da
cara que fez o pasteleiro em quem foi embater (o pasteleiro terá
gritado que “já vira dias com menos vento”), e logo outro diz que
ficou cinco horas ao pé do lago, enterrado na neve até à cintura e
sem vivalma para lhe acudir, e outro interrompe para contar como foi
a patinhar na lama e a rebolar nos restos de neve até à igreja onde se
ia casar, e como lá chegou irreconhecível, com os cabelos
empastados de lama, gelado, todo em tons de castanho escuro e
cinzento, num fato que de certeza ficaria em pé sem cabide, e todos
se riem e batem ao de leve com os copos na mesa. No riso que
recebe as anedotas ainda se ouve a alma dos antigos colonos
noruegueses e das suas mulheres e escravos irlandeses que, fugidos
à sanha unitarista do Louro Harald no século nono, afrontaram com
desassombro estas terras inóspitas e se estabeleceram contra os
elementos em lugares desumanos.
Participei ao Gunnar o meu entusiasmo pela ilha, disse que
queria ver tudo, o clássico glaciar Snaefellsnes, por onde desceram o
Professor Lidenbrock e o Axel e o Hans, os locais onde se passam as
sagas no Oeste, os fiordes, os promontórios, os braços de mar, queria
conhecer raposas do Ártico, queria ver patos de todas as cores,
queria ver ursos, ir aos penhascos do Látrabjarg e tentar avistar a
Groenlândia a trezentos quilómetros; avisei-o de que queria comer o
prato nacional, bacalhau com todos; e tinha de ir a Akureyri, capital
do Norte, e procurar icebergs, andar a cavalo, comer cabeças de
carneiro, sopas de líquen; era forçoso ir ao Lago Myvatn olhar para as
trutas, e visitar o interior deserto, ver pelos meus olhos as torrentes,
as cataratas de Dettifoss, de Godafoss, tomar banho nos lagos
quentes, nas nascentes, enquanto neva; quase com paixão de
geólogo falei-lhe de camadas, estratos, fissuras, basaltos, da
actividade dos vulcões. Que queria ouvir o silêncio no interior de uma
terra nova, em formação ainda, e não esquecer o leste, EgilsStadir, a
floresta de Hallormasstadur, e queria ver o Althing, a mais antiga
Assembleia Geral da Europa, a catarata de Gullfoss, o Grande Gaiser,
o vulcão Hekla, e o vale de Fljótshlíd onde viveu Njal o Queimado. Ia
referir o glaciar do Vatnajokull, quando o Gurinar me disse num tom
igual que os turistas não o interessavam tanto como os viajantes, os
verdadeiros, à antiga, devotados a aventuras, apegados à proeza e
ao impossível, conquistados pelos lugares e apostados na superação
de si mesmos.
- Gente que vem para dar uma volta e que fica dez dias afirmou
com desprezo -, duas horas aqui, três minutos acolá, isso é carneiro,
não nos merece. Carneiro nós comemos, não levamos a passear.
O Vatriajokull ainda o entusiasmava, mas só nas partes
realmente inacessíveis. Era muito evidente, à volta da meia-noite e
do meu primeiro Reiquiavique KO, o pendor revivalista do Gunnar.
Não tardava muito, se o ofendessem, pediria compensação, como nas
sagas, ou começaria a distribuir machadada e a queimar gente em
suas casas. E, ao lado de uma necessidade pusilânime de o não
contrariar, vi que nunca estaria à altura de semelhante guia.
Na noite seguinte, após um dia de entorpecidas observações
numa piscina, encontrámo-nos no McDonald's, onde o Gunnar me
expôs a sua ideia de aventura. Mas esta ideia manter-se-ia vaga e
evasiva e tomaria uma nova forma todas as noites. Se combinávamos
fazer uma expedição ao Norte pelas estradas de lava, no dia seguinte
era o próprio conceito de expedição que era posto em causa pelo
Gunnar. Uma vez dizia-se arqueólogo, outra vez pescador; no dia
seguinte já era professor de ginástica; num momento era inventor a
tempo inteiro, depois escrevia sagas, era construtor civil, porteiro
num hotel durante o verão, arquitecto, vulcanólogo, observador de
pássaros e poeta. Nos momentos de lucidez, eu via que o Gunnar era
doido, mas nunca pude destrinçar a parte de álcool da outra parte de
loucura constitutiva. Ainda hoje me maravilha a minha ingenuidade e
o meu apego àquele guia tão improvável: seriam os banhos
entorpecentes? Seriam os vapores dos espíritos fortes? Seriam, desde
logo, as saudades da pátria? Sei que momentos houve em que
considerei o Gunnar o único amigo que tinha no mundo.
Um dia, com outros dois ingénuos suíços, chegámos a sair de
Reiquiavique. Era a antevéspera do meu regresso e eu quisera ver o
Snaefellsnes um pouco mais de perto, ao menos. O concierge do
hotel admirava-se do meu traje de passeio.
- Isto hoje está bom, está quente - disse-me ele. E apontou no
jornal: - Dão zero graus.
- Zero graus positivos - confirmou a mulher -, com sol e sem
vento. Eu mesma vos acompanhava se não tivesse o carneiro ao
lume.
Mas o Gunnar recusou-se a sair do ferry em Akranes, sem se
comprometer com razões psicológicas, dizendo apenas que thath
getur ekki komith til greina, que “estava fora de questão”. E voltámos
para a piscina, quatro cabeças desencorajadas; foi nessa noite que
apareceu Geitir, o médico assistente, e convenceu o Gunnar a
internar-se na clínica outra vez. Ele seguiu-o, perorando sobre o
tesouro arqueológico do campo da batalha em que Gurinar de
Hlidarend, o fortíssimo amigo do vidente Njal, vencera no rio Rang os
inimigos que vinham para o matar.
E pensar que entre todos os islandeses, de todos os guias, num
país pacífico que se gaba de ter cem por cento de alfabetismo, um
paraíso para os escritores que ali têm os leitores mais constantes, os
mais interessados, que tem uma Presidente da República cujo
currículo académico faz roerem-se de inveja os Chefes dos outros
Estados, no meio de todo este glamour literário, me havia de calhar
um louco furioso. Não admira que sorrisse tristemente, sabiamente,
quando um empregado do Hotel me quis vender aquilo que ele
achava uma das maiores invenções islandesas, a Caneta do Escritor
das Frases Curtas, uma esferográfica que apresenta uma luzinha no
topo, para escrever no escuro; mas só frases curtas, porque não
ilumina mais do que três palavras compridas de cada vez.
No regresso pensava para mim que tudo tem as suas vantagens.
Era um facto que a minha imaginação da Islândia, o meu sonho da
ilha gelada, aquilo que primeiramente me levara até ela, permanecia
praticamente imperturbado. E enquanto a hospedeira da lceland Air
lutava contra a tampa de uma garrafa de água de abertura fácil, eu
lembrava-me do provérbio islandês, do tempo das sagas: “Aquele que
não tem senão uma faca pequena deve tentar e tentar outra vez”.
2Catorze países em oito dias:Um diário de viagem
24 de Junho, Lisboa - Navalmoral de la Mata Parrimos
Finalmente depois dos cafés e dos chichis, os mais provectos
içados de cima e empurrados de baixo pelos cônjuges e gente de boa
vontade. A soma das idades dos vinte e cinco passageiros deve
rondar os dois mil e quinhentos anos. Não serei eu a ironizar sobre o
inverno da vida, que chega a todos com um bocado de sorte. Célia
Rosado avisou que ia ficar com os pés inchados. O Rosado disse alto,
por alturas da Guarda, que embora tivesse rezado muitos terços pela
conversão da Rússia, nunca pensara receber tamanha mercê em dias
da vida. E que ia ver pelos seus olhos se a Senhora de Fátima fizera o
trabalhinho completo, ou se era preciso insistir. Que nos jornais anda
muita aldrabice. O Cazanova, logo atrás de mim e à frente dos
Rosados, confirmou. Garantiu que o comunismo era um sonho lindo,
ideal imorredoiro da Humanidade e que Portugal não era a Rússia. E
que a Senhora de Fátima não tinha absolutamente nada a ver com a
perestroika e sempre queria ver como é que eles agora descalçavam
aquela bota. Eles sendo o Leste. O Rosado riu-se maldosamente e
disse que descalços já eles estavam. O roteiro dizia que se parava em
Madrid, mas a camioneta começou a deitar um fumo branco um
pouco antes desta vila em que agora estamos acampados a passar a
noite na oficina. Navalmoral de Ia Mata é assim, mal comparado,
parecido com Paço d'Arcos, mas não tem praia. Faz quarenta e três
graus à sombra, só que há pouca. E um grande mistério rodeia o
nosso guia, que ainda não abriu a boca desde Lisboa.
25 de Junho, Navalmoral de Ia Mata - Madrid - Andorra -
Marselha
Esclareceu-se o mistério do nosso guia quando foi para pagar a
conta do arranjo da camioneta. Não é guia nenhum. É tão passageiro
como nós, mas como foi o último a ir levantar o bilhete à Associação,
puseram-lhe o roteiro e as reservas nos braços e desejaram-lhe boa
viagem. Fizemos vários telefonemas sem resultado e dividimos a
despesa. Estamos entregues a nós próprios. O Rosado não queria
pagar, mas o Cazanova arrancou-lhe a carteira da mão e tirou-lhe as
notas. Célia Rosado não queria acreditar no que via, falou em voltar
para Lisboa. Quando íamos a passar os Pirenéus é que o Cazanova
deu por falta da pochette onde tinha o dinheiro, o passaporte e os
vistos. Começou a espumar. Os Rosados sorriam com conhecimento
de causa, A mulher do Cazanova ofereceu um par de estaladas ao
casal idoso, mas eles nem reagiram. Só diziam, com muito remexer
de ombros, que os comunas, além de ladrões, são malcriados. O
Cazanova desesperava de comprar o vídeo em Andorra, até que o
Fernandes o sossegou com a ideia de que era muito mais barato nos
hipermercados em Lisboa. O senhor Silvedo, um velhinho surdo e
cego e muito concentrado, continua a perguntar “onde é que
estamos? onde é que estamos?” e, qualquer que seja a resposta que
se lhe dê, parece contrariado. Houve um engraçadinho que lhe
respondeu “ainda aqui estamos!“ e ouviu um chorrilho de insultos de
sabor antigo e alfacinha, nomes que até já nem se usam,
correspondentes a profissões infelizmente desaparecidas.
Marselha é bonito, pelo menos o que se vê à noite da janela do
hotel. Estamos todos tão massacrados da viagem que ninguém quer
sair depois de jantar, excepto os Cazanovas que têm a higiene do
andar em muito alta estima. Ansiava por uma noite de sono
sossegado, mas são três da manhã e começam a chegar os alemães
bêbedos, cantando, marciais. O casal Ribeiro vai ser evacuado hoje
para Lisboa. Ela insistia que o marido estava a dormir, e afinal estava
desmaiado. O Rosado diz que nem toda a gente aguenta uma viagem
ao Leste.
26 de Junho, Marselha - Mónaco - Génova
O motor da camioneta parece ter-se transportado para a minha
cabeça. Bem gostava de ter visto o caminho, que me dizem ser
magnífico, mas acabei por dormir até Génova e nem acordar para o
almoço no Mónaco. “Vamos almoçar com a Caroline” e “eu prefiro a
Stéphanie”, foram as piadas mais populares até ao principado. Antes
de adormecer ainda ouvi o Rosado perguntar à mulher se tinha visto
o chapéu dele. Parece que o Cazanova foi sentado em cima do
chapéu - a coisa que o Rosado mais ama no mundo a seguir à mulher
e ao CDS , desde Marselha até Génova, com intervalo para almoço.
Quando acordei estavam agarrados às lapelas um do outro e davam
pontapés no ar. Célia Rosado afligia-se e a mulher do Cazanova torcia
por ele. Os outros arrastavam-se para a entrada do hotel.
Génova é mau para os idosos, porque é toda a subir. Tem a zona
do porto e da estação, cá em baixo, mas mal damos por nós já
estamos a subir uma colina. Tem um clima quente e húmido, à
maneira de um aquário tropical, e desencorajou muitos passageiros,
que ficaram no hotel. O senhor Silvedo continua a perguntar “onde é
que estamos?”, mas parece cada vez mais angustiado. Ninguém
compreende a razão daquela ansiedade.
O casal Campos deve voltar de avião para Lisboa, por Florença,
desfalecido de cansaço. Queremos lá saber do Leste, disseram ao
jantar. Para ver um monte de desgraçados maltrapilhos a pedir
vamos à Brandoa, que é mais perto de nossa casa.
27 de Junho, Génova – Zagreb - Tirana
Eu gabo o sangue-frio do Fernandes. Depois do que nós
passámos, atravessando que nem uma seta a Jugoslávia,
acondicionados no chão da camioneta, com as balas a zunirem sobre
as nossas cabeças, helicópteros no ar, tanques nas ruas, barricadas;
suados e em pânico - “parece o Vietname!“, segredou-me Célia
Rosado em certa altura -, ouvindo a ladainha do Rosado que rezou até
à fronteira com a Albânia, esfomeados, esgazeados, não dando nada
pela nossa vida, evitando as cidades ao sabor do engenho do
motorista, o rádio aos gritos, em jugoslavo, soldados, tiros, depois do
pesadelo, chegados a Tirana, com trinta e seis horas de viagem quase
ininterrupta, eis que o Fernandes saca do enigmático malão castanho
que transportara como uma cruz desde Lisboa, monta uma banquinha
ao pé da roda da camioneta e começa a anunciar jeans, juntando-se
logo uma dezena de basbaques. Perante os olhares igualmente
escandalizados do Rosado e do Cazanova, diz que já dá para pagar a
viagem. E pergunta, azedo, se não acreditam na iniciativa privada.
28 de Junho, Tirana - Monte Olimpo - Salónica
Enquanto o Rosado e o Cazanova discutem acerca dos méritos
respectivos do comunismo e do capitalismo, dormito para recuperar
do susto de ontem. Há muito tempo que não dormia tão bem num
hotel, deve ter sido do gasto que dei ao sistema nervoso. Tinha uma
certa curiosidade em ver o Monte Olimpo, também não sei de que é
que estava à espera, mas fiquei decepcionada. É um monte de
pedras, um monte como os outros. Para morada de deuses, é
francamente pouco. Talvez os deuses não fossem muito exigentes
com as casas, naquele tempo. Ninguém percebe o que é que se
passou na Jugoslávia, Célia Rosado aventurou que provavelmente era
a festa da independência, mas esperemos que daqui para a frente os
nacionalismos sejam mais oportunos nas suas celebrações. O hotel
em Salónica estava cheio de alemães, lá se foi o descanso. Tivemos
mais seis baixas, somos quinze a continuar para a Bulgária.
29 de Junho, Salónica - Sofia – Bucareste
Num impulso romântico, o Cazanova fala do homem novo; de
uma terra sem amos, de um mundo sem exploradores nem
explorados. Abre a janela para respirar os ventos de mudança. É
obrigado a fechá-la, perante uma saraivada de protestos. O ar é
cinzento e picante. Ao longe podem ver-se, por entre as brumas, os
contornos da velha central nuclear de Kozlodouy. Uma gente triste e
macilenta fica parada nas bermas a olhar a camioneta. Alguns
começam gestos de precoce despedida, mas noto que as crianças já
nem se dão ao trabalho de acenar.
30 de Junho, Bucareste - Odessa - Budapeste
Em Sofia sofremos mais cinco baixas, dois casais e o Senhor
Silvedo que resolveu lá ficar. Diz que já não tem ninguém em Portugal
e que veio à procura de um amigo búlgaro, um marinheiro de interior,
que quisera um dia experimentar outros mares para além do Negro.
Não sabe a morada, mas tem o nome e, sendo a Bulgária um
pequeno país, há-de ser conhecido. Isso explica aquela insistência do
Senhor Silvedo em saber onde estava, para não passar de Sofia.
Partindo de Odessa, entra-se mais ou menos na civilização.
Budapeste é já parecido com o Ocidente, mas como se fosse filmado
em câmara lenta. Agora somos dez a viajar e vamos mais à nossa
vontade, dormindo pelos caminhos.
O Cazanova e o Rosado inquietam-se pelo resultado do
Campeonato dos juniores.
1 de julho, Budapeste – Praga
O Cazanova gastou os últimos tostões a telefonar para Lisboa.
“Bicampeões!“, gritou para o Rosado, assim que soube a notícia.
Abraçaram-se e dançaram, gritando “Portugal! Portugal! “. Decidimos
voltar à pátria de avião e abandonar a camioneta.
Olho pouco para Praga, porque sei que não vou ter tempo para a
conhecer corri calma, como ela merece. Parece-me velha e sábia,
ainda cheia das sombras de Kafka e de Rilke, que a sentiu como
“enigma e desordem”, na altura de um breve regresso. Queria ver a
rua Celetnà, onde Kafka nasceu, a escola, a sinagoga a que o pai o
levava; a Torre da Pólvora, na
Cidade Velha, onde Max Brod o esperava todos os dias às duas
da tarde; a maldita Assicurazioni Generali, que lhe tirou tanto tempo
e tanto espaço; o palácio Schonborn, onde viveu em calma relativa,
do outro lado do Vtlava; o novo cemitério judeu, na colina de
Strasnice, onde o enterraram à sombra dos castanheiros.
No aeroporto, que semelhava um cenário de filme da guerra de
39-45, o Cazanova e o Raposo discutiam os méritos e deméritos da
camioneta e do avião. O Cazanova achava o avião burguês. Depois
reparou que afinal seria um meio de transporte igualitário: quando
caía, tanto matava os comunistas quanto os devotos da senhora de
Fátima. Célia Rosado, que- tinha o sentido das catástrofes, foi
obrigada a concordar.
3Encontro em Éfeso
“A origem da cidade não é das mais empolgantes”, disse
Goodtrip, “mas há princípios humildes” que trazem escondidos
futuros honestos. Aqui foi o caso de um tal Androcles, filho do Rei
Codro de Atenas, que estando indeciso quanto ao local da fundação
de uma nova cidade na Ásia Menor, foi com os amigos pedir ajuda ao
oráculo de Apoio. O oráculo, que pressupomos pela resposta
igualmente inseguro, anunciou vagamente que, chegado o momento,
ou um javali ou um peixe haviam de indicar o lugar mais propício à
construção. Desembarcados nas costas da Ásia Menor, resolveram os
emigrantes assar um peixe, que de tão fresco saltou da fogueira e
incendiou os arbustos, donde se evadiu um javali. Androcles
perseguiu-o e alcançou matá-lo, compreendendo de seguida que
acabara não só de assistir, mas também de participar na realização
da profecia.“ “É uma história escorreita, com princípio, meio e fim”,
disse eu. “Melhor que outros mitos da fundação, que não se percebe
ao que vêm. Mas eu prefiro a história da Amazona chamada Éfeso,
que nos poupa à narração completamente. Era uma vez uma
Amazona chamada Éfeso que fundou a cidade do mesmo nome. E
estamos conversados.” “Sem dúvida”, disse Goodtrip, “quanto menos
histórias melhor. Mas repare que esta coisa do javali é, convenhamos,
mais dinâmica. Temos os rapazes a embarcar para a Jónia, a
desembarcar, a assar peixe, a apagar fogos, a correr atrás de javalis.
É mais colorido. “
Estávamos no segundo dia do XI Congresso de Mito e
Metamorfose que tradicionalmente se passava em Efeso, no princípio
da Primavera. Todos os anos as mesmas caras liam os mesmos
artigos sobre as mesmas investigações. Um ou outro trazia uma
notícia não muito excitante, relativa sobretudo a financiamentos para
publicações ou constituição de arquivos. Em cada congresso havia
urna peripécia fundamental que dava o nome ao encontro: o Ano-em-
que-Damiani-se-fez-Anacoreta, o Ano-em-que-Leonor-caiu-da-cadeira-
na-Sessão-de-Abertura, o Ano-em-que-choveu-pedra-no-Piquenique-
no-Monte-Pion. Assistíamos impotentes ao refinar das taras de alguns
colegas, sobretudo nórdicos que, no seu isolamento, elaboravam
ilusões mais e mais tocadas da loucura da imaginação teórica. E
todos os anos nos apiedávamos sobre o lamaçal das nossas vidas
académicas, tornadas ainda mais desesperadas por não haver netas
degradação a partir de anos dourados, nem progresso após fases
difíceis, mas serem marcadas pelo ferro da repetição, da repetição,
da repetição. Jurávamos não voltar a Efeso, prometíamos nunca mais
nos vermos, dizíamo-nos em cara as frases mais definitivas, e na
Primavera seguinte eram de novo Os abraços, os clamores, como
náufragos do mundo retornados à pátria. Encontrávamo-nos na
cidade pantanosa e turística de Éfeso para mais uma cabazada de
artigos e de discussões. Marcus Goodtrip passeava-se de calções
floridos e apanhava ostensivos banhos de sol nas ruínas. A pouco e
pouco se lhe juntavam dissidentes. Eu acompanhei-o desde o
segundo congresso, ignorante dos debates que por lá se travavam,
deambulando irresponsavelmente sobre as pedras históricas que
sofreram invasões e sustentaram glórias de gregos, persas, romanos
pagãos, romanos cristãos e turcos de todos os quadrantes. Goodtrip
era um mitólogo que não acreditava no poder dos mitos. Isto
enervava sobretudo os escolares alemães que delegavam em
Hannibal Kleinkopf a comunicação da sua ira e do seu desprezo.
“É-lhe familiar o mito de Cefaleia?”, perguntou Goodtrip um dia,
numa das raras sessões que o viram entrar. Kleinkopf procurou a
referência, porque o atemorizava um saber que não fosse exaustivo.
“Na cidade de Magnésia, a trinta quilómetros daqui - conhece, com
certeza? - ainda se conta a história, que julgo ser de origem frígia,
como a Artemisa efésia. É uma variante do mito de Actéon, que
espiou a deusa enquanto ela se banhava e foi transformado em
veado, tendo sido devorado pelos seus próprios cães. Lida, a musa,
prima de Suse, andava na apanha da azeitona e encontrou uma
serpente, que cortou em duas metades com um golpe da foice. Da
metade da cabeça fez uma coroa para a prima Suse e enterrou a
metade do rabo sob uma romãzeira que tinha três romãs. Ofereceu a
coroa a Suse, que, de cada vez que se colhia uma romã, sofria de
severas dores de cabeça. Para serenar, Suse escondeu-se nas
montanhas de Lipe, a oriente de Magnésia, e obrigou a serpente a
cuspir para as nuvens. Elas choveram e...“. Mas Kleinkopf precipitou-
se sobre o inglês e gritando “Isso é falso! Esse mito é inventado!“,
agarrava-lhe o braço e torcia-lho, como se naquele braço se
resumissem todas as mentiras. “Elas choveram”, gritava Goodtrip,
por sua vez, deliciado, “e envenenaram a terra e a gente de Magnésia
que, comendo do pão amassado com o trigo que ali crescia, sofria de
grandes dores de cabeça e passou a chamar àquelas paragens
Cefaleia. A festa anual é no equinócio de Verão, se não acreditam vão
lá verificar.” A sessão acabou no reboliço e Goodtrip marcou os seus
pontos.
Sentados na escada da Biblioteca de Célsio, olhando os
americanos e os alemães que sobem e descem a Via Marmórea de
panamá e máquina fotográfica, ainda nos rimos ao lembrar o episódio
do mito de Cefaleia. “Aí se confirmou para sempre o meu
preconceito”, concluiu Goodtrip, “de que há dois tipos de povos. Um
tipo é o alemão, o outro tipo são os outros todos. Descemos devagar,
entre turistas, para a Porta de Mazeu e Mitridato, contra a qual um
cão, desprezando o aviso bimilenar aí inscrito de que “quem urinar
aqui deverá responder perante os tribunais”, alçava lesta a perna.
“É curioso” disse por fim Goodtrip “que tenhamos escolhido a
cidade-mãe de Heraclito para este ritual do congresso.” “De facto”,
disse eu, “é estranho que nos reunamos em idênticas condições todos
os anos na pátria daquele que foi o primeiro a conceder um estatuto
nobre e filosófico à mudança e à transformação.” Goodtrip parou a
olhar para longe, onde fora o mar, que hoje fica a cinco quilómetros
de distância. “Resta saber com que cara dizia Heraclito que tudo flui;
que tudo é guerra de contrários e com que cara é que ele dizia ao
mesmo tempo que tudo é uno. “ “Com que cara?” espantei-me. “Sim,
di-lo-ia num grito de júbilo, rodopiando como um derviche, lá nas
montanhas onde se exilou dos contemporâneos, ou antes num
encolher de ombros como quem dissesse 'a culpa não é minha, a
natureza é que está feita assim'? Entristecê-lo-ia a metamorfose?
Agradar-lhe-ia a identidade?”
Chegávamos à antiga ágora, a praça central da cidade. A um
canto, um grupo de meninos atirava os dados para o gamão. Goodtrip
sorriu e sentou-se junto deles. “Aion pais estí paidzos petcheuon”,
disse eu, porque eram palavras de Heraclito que eu dizia muitas
vezes, e era raro não virem a calhar: “O tempo sem fim é uma
criança que atira os dados a jogar gamão”. Goodtrip levantou os
olhos para o céu, outrora grego, agora turco e concluiu o fragmento:
“Remirado de uma criança”.
4Preâmbulo à Nova Zelândia
Eu já sabia que era preciso ter cuidado com o Paco. Todos mo
diziam: tem cuidado com o Paco! Tem cuidado com o Paco! Mas
naquela tarde, no jardim da casa sobre a praia, a olhar o poente,
rodeada pelos amigos, anestesiada docemente pela conversa serena
que dá a ilusão da intimidade e puxa a confidência, confessei estar
prestes a realizar um desejo antigo, que era viajar até à Nova
Zelândia. Disse mais: que aquelas ilhas remotas representavam para
mim o “outro” absoluto, o lugar da completa alteridade, o autêntico
fim-do-mundo. Ninguém pareceu impressionado, excepto o Paco.
Perguntei em geral se não imaginavam às vezes meter-se no carro e
ir por aí fora, sempre a direito, sem nunca olhar para trás? O mais
longe possível? Partindo daqui, é a Nova Zelândia o mais longe que se
pode ir, porque daí em diante já se está a regressar. É o mais longe
possível, é como se fosse um desaparecimento completo. Especifiquei
que queria sobretudo conhecer uma ilha desabitada de sessenta
quilómetros quadrados que dá pelo nome extraordinário de
Antípodas. “Vais lá por causa do nome”, disse alguém. “Mas vais ver
que os antípodas não são assim tão diferentes, nem a Nova Zelândia
é o 'outro' absoluto. É só essa tua mania dos nomes.“
“Mas nós não vamos sempre aos lugares por causa dos nomes?”
“De carro?” perguntou outro. “Se é para ver tudo bem, devias era ir a
pé.” Isso já eu sabia, infelizmente, mas a vida é feita de
compromissos. Xara se ver tudo bem, o ideal é viver sempre no
mesmo sítio e estar com muita atenção”, disse uma que andava no
zen. Mas aquele tipo de visão não era para mim: ia de carro, ia
sozinha, porque era uma viagem da alma. Foi aí que o Paco disse que
também queria ir.
Ora, é filosofia do nosso grupo nunca rejeitar o Paco. Não é
politicamente correcto. Sendo um galego que adora Portugal, um
refugiado que se exilou não para escapar à sua terra mas para viver
no pais que é para ele modelo e paixão, ofende o nosso orgulho
patriota que venha sequer a suspeitar não ser sempre o benvindo.
Entre nous, nas raras ausências do Paco, já aquecidos pelos vinhos e
duas ou três anedotas de alentejanos, mandando às urtigas o que é e
não é politicamente correcto, conhecemo-lo apenas como “o pendura
do galego”. De facto, não há ocasião, jantar, almoço, passeio ou festa
a que o Paco tenha a sensibilidade de dizer que não vai. Ele vai
sempre. Diz: “quero xer um de voxês” e, com famosa tenacidade,
tem conseguido. Não me espantou, portanto, que se apresentasse no
dia seguinte à minha porta, para partilharmos os pormenores dos
preparativos. Estava contente como um passarinho, fazia ricochete
pelos móveis. “Paco, disse eu, tenho a impressão que não nos
entendemos. A viagem até à Nova Zelândia vai ser uma expedição de
estudo. Vou em serviço. Não posso levar passageiros. Está no
contrato”. Mas Paco Figueroa desprezava as coisas oficiais, disse que
fingiria ser meu assistente, que de qualquer maneira nunca ninguém
descobriria a fraude, se de facto a havia. “Vai ser uma viagem muito
maçadora. Pelo caminho tenciono estudar os vestígios de economias
arcaicas, sistemas de troca directa, observar as formas culturais de
relação com o dinheiro nos vários povos. Vai demorar meses, anos.”
(E enquanto o íntimo gritava: que desculpa mais estúpida! que
história mais idiota! eu gritava-lhe de volta que todas as armas eram
poucas, todas eram legítimas e que, de momento, não me ocorria
nada de mais sólido.) Mas o Paco achou a ideia dos vestígios de
economias arcaicas tudo o que há de mais original e entusiasmou-se
de tal maneira que foi preciso segurá-lo. “Paco, eu não vou ter tempo
para os amigos. Assim que chegar vou para um centro de
investigação agrícola, o Levin Horticultural Research Centre.” “Um
centro de investigação agrícola?” perguntou o Paco, como era de
esperar. “Trabalhar com o Professor Lightwood.” “O Professor
Lightwood?”, tornou o Paco. “Sim, o especialista no espinafre neo-
zelandês.” “O espinafre neo-zelandês?” “O espinafre neo-zelandês,
Tetragonia Expansa, da família das Mesembryaceae é uma planta
muito ramalhuda, que chega a atingir sessenta centímetros de altura.
Aguenta bem a geada e o calor e por isso é um vegetal mais
interessante do que outro que não se dê num leque tão alargado de
situações climatéricas.” O Paco achou extraordinário, afiançou que
nem que fosse só pelo espinafre neo-zelandês já valia a pena fazer a
viagem. Quis saber o percurso. Mostrei-lhe no mapa, sobrecarregada
a vermelho, a rota a seguir. Espanha, Itália, até à Turquia,
atravessando o Irão, o Paquistão, a Índia, barco para a Sumatra, daí à
Austrália, daí à Ilha do Norte, Nova Zelândia. “Não passamos pela
Tailândia?” perguntou o galego e apercebi-me com pavor de que
estava em risco de levar não só um passageiro normal, mudo,
cordato, prestável, mas um passageiro com ideias próprias, que
discutia percursos como se fossem dele. Despedi-o, desencorajada.
A verdade é que a razão da minha viagem era confidencial: eu ia
lutar contra os veados. Introduzidos pelos colonizadores ingleses no
século XVIII, os veados tornaram-se uma praga na Nova Zelândia,
invadindo os campos e incomodando os outros animais da floresta. O
meu método, totalmente inédito e jamais testado no mundo inteiro,
consistia na primeira tentativa de consciencialização ecológica de
uma espécie não-humana. já que não era politicamente correcto
exterminar seres tão vivos, seria necessário levá-los a tomarem, eles
mesmos e por si mesmos, medidas de auto-contenção demográfica.
Sabia que o governo se precipitaria sobre o método. Para além da
razão poética, a viagem teria, assim, uma razão mais vasta, que
respeitava à economia universal. Mas isto o Paco, palavroso e dado
como era, não podia saber.
O último recurso era o Paco, que tinha soluções simples para
becos sem saída. Fez-se um jantar. Todos tinham projectos, todos
tinham propostas: um ia de bote atravessar o Atlântico, outro ia
escalar o Empire State Building, um ia de burro refazer o percurso
seiscentista de Frei Heitor dos Mártires, outro ia comprar tapetes a
Marrocos. O Paco mordia as mãos, também queria ir. Mas lançava-me
olhares, dizia que já estava comprometido. Até que o Paes desferiu o
golpe de misericórdia: ia ao Brasil, conhecer o Pantanal, viver na
Amazónia! O Paco desmoronou-se, pediu-me que o libertasse da Nova
Zelândia. Ora essa, Paco, não tem importância, fica para a próxima. E
zarpei nessa mesma madrugada, atabalhoando mapas e livros e
roupas em malas e sacos e avulsos na parte de trás do Land Rover,
sempre em frente, sem olhar para trás.
5À Chuva na Ilha de Vancouver
Digo à minha mulher que venho pescar, mas o que eu realmente
faço mais é olhar para os salmões. É uma coisa que me descansa.”
Eddie Winning Eik vinha contemplar o salmão quando precisava de
reflectir: equipava-se por inteiro, soltava os cabelos porque era fim-
de-semana, guiava o jeep até ao rio, metia-se de botas de borracha
dentro de água e ali ficava absorto, fixo no meio dos peixes, a tomar
decisões.
Eu partira do continente no ferry logo de madrugada, navegando
uma hora e tal por um mar sem ondas. Distinguia a toda a volta, ao
longe, o anel branco das Montanhas Rochosas, as florestas negras de
cedro vestindo as encostas até à água; aqui e ali emergiam ilhotas
cinzentas e despidas, como rochas imensas afundadas. Evitando
Victoria, a capital da província, internara-me para sul em estradas
secundárias à procura das antigas terras dos KuakiutI propriamente
ditos. O carro alugado estacara a certa altura sem se explicar no meio
das brumas e, uma hora mais tarde, Eddie Winning Eik passava e
parava para me socorrer. E como eu ia sem horário, levou-me com
ele a caçar o salmão.
“Isto aqui era a terra dos meus avós - gritou para a margem. -
Era só estender a mão e tinham tudo. Mar, rio, bosque, montanha.
Frutos, carne, peixe, madeira, cobre. Nem se davam ao trabalho de
cultivar a terra.”
Mas não havia só felicidades para os Kuakiutl. Vivendo naquele
paraíso relativo, descontando a chuva e alguns perigos humanos,
construíram uma das culturas mais exigentes e espinhosas das
Américas. A falta de riscos naturais, o Kuakiutl temia sobretudo o
juízo do seu próprio povo: perder a face, ou ter a “face podre”, como
eles diziam, era o mal supremo, de que se lavava apenas pelo
suicídio, pelo extremo endividamento ou oferecendo-se como escravo
a quem o humilhara. Fizera do orgulho, do amor-próprio, da
sobranceria, da vergonha e do rebaixamento do outro os valores
sobre que baseara a sua cultura. E assim mantivera, até finais do
século dezanove, praticamente imperturbada, uma sociedade
rigidamente estratificada em castas, com uma nobreza de sangue
que se apegava tanto aos seus próprios bens que preferia os
casamentos dentro da família, para não ter o desgosto de ver a
heráldica mudar de mãos.
Eddie Winning EIk tomara-se num bom vendedor de seguros em
Vancouver. Há três gerações que a família perdera a face num
potlatch e fugira, destituída, para o continente. E é com gestos largos
que ele me conta, de pé no meio do rio, esse conflito remoto que lhe
moldara o destino:
“O chefe Baleia Soberba - começou ele - tinha muitas amizades,
quer dizer, muitos entre as tribos lhe deviam retribuição de podatch.
O meu antepassado Alce Vencedor era um deles e, não podendo
atrasar mais o pagamento da dádiva, mandou mensageiros
caminharem até Baleia Soberba para o convidarem para a guerra de
potlatch. A família de Baleia Soberba e muitos de outras tribos
vieram, com cânticos guerreiros, para comer e assistir. Alce Vencedor
ofereceu salmão que Baleia Soberba aceitou com generosidade,
depois deitou óleo de peixe-lanterna sobre o fogo e mandou os
escravos trazerem as arcas brasonadas com as mantas. Apresentou a
Baleia Soberba quatro mil mantas enquanto o insultava a ele e aos
convidados, como era de regra, dizendo: “Vocês não passam de
pardalitos, de mosquitas, de restos de comida. Eu sou o Sol da Terra,
a Lua fica mais pálida quando me vê surgir. Eu sou o pilar do mundo,
vocês não passam de cães velhos, de velhos cobres partidos”. Mas
Baleia Soberba ofendeu-se com a mesquinhez da dádiva e começou a
pôr defeitos no ritual da sua apresentação e Alce Vencedor, ardendo
em fúria, atirou para a fogueira as quatro mil mantas. Os convidados
mantinham-se impassíveis sob as peles de urso, embora já alguns
tivessem os dedos dos pés muito chamuscados com o alastrar do
fogo, entre eles o próprio Baleia Soberba que se sentava na primeira
fila. O chefe Baleia Soberba riu-se, então, e disse: “Pensas em
rebaixar-me, ó mosca miserável, mas não consegues. Querias ter a
sorte de eu aceitar a porcaria das tuas prendas. As tuas dádivas são
vergonhosas e ridículas. Tragam-me o meu cobre Monstro Marinho
para eu abafar o fogo do meu rival.” Os escravos apressaram-se a
trazer o prato de cobre brasonado, um dos bens mais valiosos da
família e Baleia Soberba lançou-o ritualmente na fogueira. Alce
Vencedor ficou muito susceptibilizado, mandou vir as canoas todas
que tinha e queimou-as. O fogo empolava já as pernas de Baleia
Soberba que ordenou nessa altura aos escravos que lhe trouxessem o
Idiota. Baleia Soberba tinha lugar proeminente na alta Sociedade do
Canibal: levantou-se, invocou o espírito, fez a dança que herdara do
pai e lançando-se sobre o escravo, arrancou-lhe um braço à dentada,
e depois atirou-o à fogueira. Foi a vez de o meu antepassado queimar
as trinta arcas brasonadas que possuía, deitando ao fogo quarenta
mil mantas e tapetes de lã, muitas colheres de osso e todos os
cestos. Baleia Soberba mandou vir outro dos seus muitos cobres e,
exultante, apregoou que “com aquele abafava a fogueira”. Alce
Vencedor ordenou que lhe trouxessem o seu único cobre, Montanha
Vitoriosa, e sacrificou-o. Mas quando Baleia Soberba disse aos
escravos que fossem buscar quatro canoas, Alce Vencedor soube que
perdera a guerra de potlatch e perdera a face. Baleia Soberba
aumentara o seu prestígio, perdendo grande parte dos seus bens.
Alce Vencedor não possuía senão o seu nome e o seu cântico da
Confraria dos Loucos, e nunca se separaria deles.
A vingança do trisavó fora mais que a necessária: integrara-se na
sociedade branca, aprendera línguas, empregara-se como tradutor
numa editora, arrancara de si o espírito do seu povo e morrera disso.
Mas com o correr das gerações e as voltas do mundo, com a desgraça
da sua nação, fechada em reservas, empobrecida, enfraquecida,
alcoolizada, tão perdida que se tornara quase invisível aos olhos dos
outros povos, Eddie chegara à intenção de reabilitar o seu nome e de
tomar o lugar que lhe pertencia. 'O que ele perguntava agora aos
salmões daquele rio era a verdade do seu coração: estaria ele
disposto e à altura de dar Podatch no casamento da filha? Mais, e
antes disso: estaria ele disposto a autorizar o casamento da filha com
o neto daquele mesmo Baleia Soberba, ó suprema ironia, que
obrigara Alce Vencedor a sair vencido?
“Fere-me assim o tesouro de quem sou escravo como um cão.
Impede-me de comer carne” - disse Eddie usando as metáforas dos
Kuakiutl. Queria significar: “a minha filha impede-me de me vingar de
um inimigo. “ Mas Eddie também já não tinha a certeza de querer a
vingança.
Eram demais os dilemas para tão pacatos salmões. E Eddie,
sentado enfim na margem, dizia do podatch em que se oferece tudo o
que se tem, que era um dos rituais mais nobres que homens
inventaram sobre a terra. Na certeza, acrescentou com cinismo, de
que haverá retribuição com juros de cem por cento, nem que demore
alguns anos. Confessou-me que tinha um certo receio de que as
coisas chegassem a um ponto em que ele fosse obrigado a dar tudo,
até o jeep, a casa, a conta bancária.
“Já nada é o que era” disse Eddie Winning E1k. E suspirou. É
capaz de me ter parecido - mas admito que me engane - ouvir uma
ligeiríssima nota de alívio naquele sopro. Mas é como eu digo: deve
ter sido ilusão.
6 Algures a Sul do Bidon V
O deserto é bom para os santos. Desde que o mundo é mundo
que fogem para lá profetas, ascetas, anacoretas, antes de Cristo,
Cristo, depois de Cristo, monges, eremitas, cenobitas, cristãos, sufis,
hindus, ortodoxos, num tropel divino. Ao santo não se lhe dava que o
Senhor tivesse descansado para sempre ao sétimo dia. Mas Ele, no
seu ardor criativo, entusiasmado, fez o Homem. Depois a Mulher. E é
dela que o anacoreta foge sobretudo, para a encontrar como
Tentação, interferindo nos exercícios espirituais, espreitando
insistente as noites de vigília, as horas de contemplação, a intimidade
do solitário, irritando a paz e o silêncio que ele procura.
Isto dizia eu a Tucídides dos Santos Fernandes, poeta e bancário,
reclinada sobre o guarda-lamas do Land Rover. E acrescentei:
- Sabes que houve uns monges orientais que não se
contentavam em viver no ermo, não falar, não comer, não dormir.
Não era suficientemente difícil. Resolveram que haviam de estar
sempre de pé. Chamavam-lhes estacionários e parece que ainda
houve alguns. Mesmo assim, aquela austeridade ainda não bastava, e
Simeão quis ir viver para cima de uma coluna. Começou por uma de
três metros, depois seis, depois onze e acabou numa coluna de
dezoito metros de altura. Tal era o horror que tinham estes estilitas
aos prejuízos que lhes trazia o comércio com os outros homens.
- Sim, sim - disse Tucídides -, passa-me aí a chave inglesa.
O Professor Gaspar remexeu na caixa das ferramentas. Eu disse:
- O deserto é a paisagem espiritual por excelência, a que mais se
aproxima da forma pura. Só se lhe comparam o mar sem fim e o
nevoeiro cerrado, que apresentam a mesma ausência de pormenor,
uma matéria quase lisa em que não proliferam os elementos
díspares. É um exercício de repetição, como a rememoração do nome
de Deus que, dita infinitas vezes, leva o Sufi ao êxtase. A certa altura
é fatal que se imprima sobre os sentidos esta multiplicação do zero, e
o espírito se concentre naturalmente em si mesmo. Percebe-se que
os ascetas procurassem o deserto para se esquecerem do mundo e
das paixões que ele traz: no deserto somos como espíritos
desencorpados a pairar e muito em breve começamos a duvidar dos
nossos próprios objectivos.
- E não há uma chave de parafusos mais pequena? Tucídides dos
Santos Fernandes tem um agudo sentido de aventura. Embora
repetidamente lhe lêssemos à vez, eu e o Professor Gaspar,
profissional do exercício físico, os avisos do Guide du Sahara para não
se afastar, em circunstância alguma, da pista, a verdade é que
Tucídides queria ver o país, e viu-o. Deixámos o comboio de dez
carros em que viajávamos, perdemo-los de vista algures a sul do
Bidon V, e parámos em pleno Tanezruft, o deserto dos desertos, o
país da sede.
É o radiador que está roto - anunciou o poeta. Vamos morrer aqui
todos - disse, neutro, o Professor Gaspar.
- Isso é uma coisa curiosa - disse eu -, que não haja notícia de
alguma vez alguém ter morrido no deserto. No deserto a gente não
morre, desaparece. Passam os séculos e somos encontrados por fim,
já sob a forma de ossadas.
Mas Tucídides e o Professor discutiam a possibilidade de se
romper um radiador no Tanezruft. O poeta era de opinião que a
ocorrência era impossível, o Professor considerava que mesmo o
impossível acontece mais vezes do que seria justo esperar. A verdade
é que o radiador pingava o que se lhe desse a beber e o Professor
consultou o Guide du Sahara, que já se revelara útil em burras
ocasiões.
- Cá está - disse -, um truque de camionista: para colmatar uma
fuga no radiador, deitar-lhe piment moulu e depois tem, entre
parênteses, akri, diluído em água.
- O que é isso de piment moulu? - perguntou Tucídides.
- Akri, é o que eles dizem - respondi, com a consciência perfeita
de que não ajudava muito.
Discutiu-se se seria pasta de pimentão. Se não seria antes
paprika, que era, para todos os efeitos, pimento moído. Seriam
pimentos morrones7 Não interessava. Não tínhamos nada disso. Mas
o Professor trazia sempre com ele um frasco de ketchup, que
despejou dentro do radiador. Quase esperava ouvir o Land Rover,
num vozeirão, perguntar, ofendido: “Então e a mostarda?”, mas foi o
Tucídides que disse:
- Isto pode transformar-se num mau hábito. É uma vez sem
exemplo, ouviste, Landy? Qualquer dia já não aceita água lisa.
O motor de arranque também não estava famoso, mas teve a
generosidade de se portar como um homem. O Tucídides puxou da
cruzeta e foi confirmar se as rodas estavam mais bambas e os pneus
mais em baixo do que era preciso. E arrancámos.
Era altura de colocar o sempiterno problema da orientação. O
Guide bleu trazia a lista do material de navegação indispensável: um
bom par de binóculos; um curvímetro; uma bússola; um transferidor;
uma prancheta. Tínhamos o bom par de binóculos. Sentia-se que, na
situação, não constituíam o elemento essencial; que noutra
circunstancia teríamos mais prazer em ver pássaros, paisagens,
gente pitoresca, através deles. Mas o Professor assestou-os mesmo
assim e vasculhou as areias em todas as direcções. Não havia rasto
de coisa nenhuma.
Seguiu-se a discussão habitual sobre o Norte, o Sul, o Leste e o
Oeste, que o vento tinha já apagado os traços que deixáramos.
Tucídides avançou com teimosia até se começar a enterrar na areia,
depois voltou para trás, escolheu a direita, substituiu-a pela esquerda
e disse, ao cair da noite:
- Já sei, isto é um pesadelo. Estou a ter um pesadelo. Daqui a
pouco surgem de trás das dunas uns escorpiões do tamanho de
elefantes que se vão pôr a dançar o malhão, com arrecadas e
tamanquinhas.
A propósito de escorpiões - disse eu -, sabem que eles nunca
mordem os turistas embora ferrem bastante os nativos? Não é
extraordinário?
- E verdade - confirmou o Professor -, também li, com alívio, no
Guide du Sahara, que eles têm cá uns escorpiões encantadores. Se
lhes cheira a turista, afastam-se, não vão criar algum incidente
diplomático.
E estávamos a elaborar sobre esta maravilha do deserto, o
superior discemimento do Androctonus Australis quando
avistámos o nosso comboio, rolando sensatamente à velocidade
recomendada sobre a pista de areia. Tucídides passou pela gama
comum das emoções, do hurra primitivo aos agradecimentos
enviados ao céu, e aproximou-se.
Havia alguma japonesa no nosso grupo? - perguntou o Professor.
- Que eu me lembre... - disse eu.
- Parece-me que vi ali uma japonesa e um japonês.
- Pois não se pode transformar a gente em japonês pela mera
força da vontade! - repliquei, indignada.
- Já aconteceu - disse o bancário -, e pode voltar a acontecer.
Principalmente se houver antecedentes na família.
Mas não era milagre, eram japoneses genuínos, em genuínos
Land-Rovers, Suzukis, Nissans e Toyotas. Pararam pouco depois,
curiosos dos estrangeiros surgidos do deserto, e, numa conversa em
inglês muito repleta de vénias e de “hai! hai!”, aceitaram levar-nos na
caravana até à fronteira do Mali.
Quando Tucídides, já bem-comportadamente integrado no
comboio, se pôs a imaginar o que nos poderia ter acontecido perdidos
sem bússola no Tanezruft, interrompi-o. Vai-se para o deserto,
mesmo por um mês, mesmo por experiência turística, para se
escapar às preocupações terrestres e à humana ansiedade de saber.
A alma do hesichasta, dominando todo o interesse pela curiosidade
inútil, torna-se simples e livre. Que nos interessa o que podia ter
acontecido? Se ainda tanta coisa pode acontecer ...
7Terra Adormecida
Vou pelo meio da neve sofrendo sem resistir a anestesia do
Rossyia. Não sei onde estou. Há dois dias que me sento a ler e a
dormir, esgotado há muito o fecundo monólogo interior, a cabeça oca
onde ressoa a voz unicamente do comboio, incapaz de compreender
o que vejo. Passageiros abrem a porta do compartimento, sentam-se
à minha frente, desembrulham comidas, representam os seus gestos
pessoais e põem-se a olhar o nada pela janela. Bebem vodka e
adormecem, de boca aberta. Acordam e bebem vodka. Gesticulam de
vez em quando, tentam falar línguas, querem saber quem eu sou.
Isso também eu queria. De momento não passo de uma espécie de
zero plasmado na noite indefinida que ameaça lá fora. Lembro-me de
querer descer do comboio, a meio de um pesadelo. E de acordar,
fugir para o corredor, lutar com uma janela hermética - olhando em
volta, desesperada, encarava a gente que se passeava em pijama e
roupão, com garrafas de conhaque, de vinho tinto, de champanhe.
Agora, por segurança, sento-me a um canto e finjo que estou a
ler. Dormito. Quando olho pelo vidro da porta da carruagem, vejo
passar a Natasha Rostova, espanejando musselinas, a correr às
risadinhas, nas pontas dos pés. À minha frente, sonhador e
meditativo, Piotr Bezukhov lança-me olhares tristes por trás dos
óculos. Estou a compreender a desolação dele. E se me debruço para
espreitar a Natasha, avisto lá ao fundo, paternal, complacente, o
príncipe Bolkonski, vigiando. A julgar pela abundância e nitidez das
personagens, não devemos andar muito longe de Astrapovo, a
pequena gare onde Tolstoi morreu, depois de agonizar uma semana
no quarto dos filhos do chefe da estação. Fugira de casa, a meio da
noite - aos oitenta e dois anos! - e subira para o comboio para
desaparecer. A mulher, Sophia, e os filhos, opunham-se a que
distribuísse os proventos dos seus direitos de autor pelos pobres da
região. “A caridade começa em casa”, imagino que teimasse a
mulher. Mas o grande homem não tem casas assim tão pequenas.
- Tolstoi? - perguntou Piotr Bezukhov apontando a janela. Encolhi
os ombros, mostrei que não sabia. E ele voltou a recostar-se, sem
impaciência, preparado eternamente para todas as viagens. Natasha
veio espreitar à porta. Disse-lhe qualquer coisa, riu-se. Piotr indicou-
me, deve ter-se queixado da minha ignorância. Percebi então que
eles andavam à procura de Astrapovo.
Adormeci e no meu sonho Bolkonski jogava xadrez com uma
personagem complexa, misto de Anna Karenina e do seu amante
Vronski. Pensei que o príncipe não teria hipótese de perder contra
aquele monstro - a sensibilidade fantasiosa de Anna, a galanteria
bronca do militar nada podiam contra tal montanha de paciência.
Eram nove da manhã e era noite. Aventurei-me até ao
restaurante, temendo que me obrigassem a olhar e a cheirar o
borscht logo àquela hora. Esperavam-me as toalhas manchadas da
sopa de beterraba - e uma aguadilha fétida em que se mergulhava
um saquinho de chá. Em tempos que já lá vão, o Transsiberiano foi
um trem mítico de luxo, que ficou na imaginação dos povos como o
símbolo da autêntica viagem ou, pelo menos, da mais longa viagem
possível. Durou pouco o apogeu: em 1900 existia só na Exposição
Universal de Paris. E, em 1905, com a guerra russo-japonesa, serviu
sobretudo para o transporte de tropas até ao extremo oriente do
Império. As carruagens mais luxuosas, algumas tão caras que só
príncipes as podiam alugar, serviram pouco. Mas o Transsiberiano
seduziu os viajantes pelas carruagens espaçosas e confortáveis que
permitiam fazer em duas ou três semanas o percurso de dez mil
quilómetros que, de outro modo, se faria em meses. E suponho que
apelasse à imaginação o contraste de todo aquele conforto
atravessando uma terra inóspita, em que os cinquenta graus
negativos do Inverno sobem a pantanosos trinta e cinco no Verão,
com revoadas de insectos que enfermiçam as gentes e matam os
cavalos; gozando os prazeres do ócio inocente em banheiras de
porcelana, no ginásio onde se podia andar de bicicleta e fazer
massagem, descansando no salão em seda rosa com piano, na
biblioteca, no salão mourisco que era sala de fumo, jogando calmas
cartas com damas e cavalheiros, apreciando, no vagão-restaurante,
menus sofisticados, o viajante não sabia decidir se era a viagem o
pretexto de tanto privilégio ou se não seria antes a expectativa
daqueles mimos a única razão da viagem.
O comboio parou. No nevoeiro, vi a trupe do Tolstoi descer e
esvoaçar sobre a neve em direcção à floresta. Com eles ia um dos
condutores, de machado às costas, cortar umas árvores para dar de
comer à locomotiva. Quando enfrentei de novo a toalha, havia à
minha frente um estranho figurão, todo vestido de negro e magro
como um Paganini, uma caricatura de bombista, de cabelos pelos
ombros e olhos encovados, a fronte - fronte é como se diz em
Literatura - alta por causa da inteligência atormentada que traz por
dentro. E falou-me laboriosamente no Português das velhas
traduções, cheias de kopecks e mujiques e verstas, e disse viva a
Santa Rússia e esfumou-se. O empregado, um judeu simpático, de
carinha redonda e bigode loiro que dava pelo nome de Maurício,
trouxe-me umas pranchas de contraplacado barradas com banha de
porco que no Transsiberiano fazem as vezes de torradas. E disse-me
em Inglês que estávamos a chegar a Omsk.
Portanto era o Kirillov, bem me parecera. O desesperado suicida
dos Possessos. Mas não me lembrava que fosse tão estereotipado,
recordava só uma cena qualquer com um samovar, um monólogo
sobre o suicídio, muito vago e a tese optimista que ele defendia: os
homens não são bons só porque não sabem que são bons. Na
passagem para a carruagem onde ficava o meu canto, havia no ar
gemidos, gritos ao longe, tilintar de ferros. Era gente que andava a
trabalhar na via, e na luz ténue da manhã, distinguiam-se os gestos
sombrios dos forçados, de fatos às riscas cinzentas e pretas, um
quadrado de pano amarelo pregado nas costas, as grilhetas de oito
quilos de ferro nos tornozelos. O coração gelou, pensei em Fiodor
Mihailovitch Dostoievski. Ele esteve aqui, quatro anos condenado a
trabalhos forçados. O sensível, o visionário, o apaixonado Dostoievski
ainda não tinha trinta anos e já vendera a alma à beleza intimidante
do anarquista Spechníov, mandatário de Bakunine, e conspirara a
morte do Czar. Mas é em Omsk, para onde o mandam em 1850,
comutando-lhe a pena de morte no próprio lugar da execução, em
quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria mais seis de soldado
raso em Semipalatinsk, que descobrirá o Mal. “Fui feliz na prisão” -
escreverá vinte anos mais tarde - na solidão, sofrendo a hostilidade
dos outros condenados, os nervos por um fio, o remorso “a sós com a
sua alma”, como ele diz, com a parte mais negra da sua alma.
Faltava-me ver o Aliocha Karamazov; decidira esperar em Omsk
por um avião em que pudesse exilar-me da Sibéria. Mas o trem
chegava à estação e ele não aparecia. Reunia pouca bagagem,
arrastei-me para o corredor. Havia gente por todo o lado, mochileiros
alemães, indígenas enrolados em mantas e peles, uniformes
desalinhados, crianças regeladas e o par de omnipresentes velhinhas
das limpezas, que espalham o cheiro nauseabundo do desinfectante,
persistentemente, por todas as Rússias.
Em Orask havia um pouco de luz. Encostada à janela que não
conseguia abrir, pensei nessa terra adormecida por baixo da neve, e
não se me iluminou o espírito com a esperança de uma germinação,
de um renascimento - o que eu vira era outra coisa, a gente
entorpecida, divagando fora de obras, no país moribundo da
Literatura.
FIM
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