marcas corporais na toxicomania
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UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO
PR REITORIA ACADMICA
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLNICA
LABORATRIO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL E PSICANLISE
MARCAS CORPORAIS NA TOXICOMANIA
JOANA CALDAS PINHEIRO MALTA PEREIRA
RECIFE 2011
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JOANA CALDAS PINHEIRO MALTA PEREIRA
MARCAS CORPORAIS NA TOXICOMANIA
Dissertao apresentada ao curso de mestrado em
Psicologia Clnica da Universidade Catlica de
Pernambuco UNICAP, como pr-requisito para obteno do ttulo de mestre.
RECIFE
2011
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UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO
PR-REITORIA ACADMICA
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLNICA
LABORATRIO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL E PSICANLISE
JOANA CALDAS PINHEIRO MALTA PEREIRA
MARCAS CORPORAIS NA TOXICOMANIA
BANCA EXAMIDADORA
Prof. Dra. Edilene Freire Queiroz (orientadora)
Prof. Henrique Figueiredo Carneiro (examinador externo)
Prof. Marcus Tlio Caldas (examinador interno)
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Raphael, Maria Augusta e Davi fontes de inspirao na maior das trajetrias:
a vida.
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AGRADECIMENTOS
Raphael, Maria Augusta e Davi, pelo que representam, compartilham e
ensinam, pela pacincia diante das necessrias ausncias para a construo
deste trabalho, por existirem na minha vida.
Aos meus pais por tudo o que me ensinaram, investiram e acreditaram, pela
grande parceria e pelo acolhimento que possibilitou mais essa conquista.
Aos meus irmos pela grande amizade, confiana e ensinamentos dirios.
Aos meus tios, tias, primos, primas e av. Pela confiana e incentivo, em
especial ao meu tio Joo Duarte (in memorian) pelo grande ensinamento que
me proporcionou.
A famlia Malta Pereira pelo incentivo, acolhimento e presena constante.
As minha amigas, Bruna, Eduarda, Fernanda, Karla, Marcela, Marlia, Paula e
Quica pelos ouvidos atentos e coraes sempre abertos.
A tia Neide Azevedo, pelo que sempre incentivou e acreditou
A minha orientadora, Edilene Queiroz pelo grande aprendizado, pelas tocas e
pela disponibilidade que tornaram possvel a execuo desse trabalho.
Genildo Cordeiro e a Tereza Batista pela forma que disponibilizam o saber,
pela confiana e pelo incentivo sempre constante.
todos que fazem a proteo bsica e especial da Secretaria de
desenvolvimento social cidadania e direitos humanos de Olinda, pelas trocas
preciosas que me oferecem.
Ao Instituto RAID: Dr. Evaldo, Dr. Escobar, toda a equipe tcnica e
administrativa, grandes Parceiros na minha formao profissional e fieis
incentivadores deste estudo.
Aos hspedes que disponibilizaram suas histrias, tornando possvel a
execuo desse estudo.
Aos colegas e professores do mestrado que foram verdadeiros mestres no
ensino e no incentivo.
Aos funcionrios da secretaria do mestrado pela presteza e dedicao.
A FACEPE por ter viabilizado a concretizao deste estudo.
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Quero ficar no teu corpo Feito tatuagem Que pra te dar coragem Pr seguir viagem Quando a noite vem... E tambm pra me perpetuar Em tua escrava Que voc pega, esfrega Nega, mas no lava... Quero brincar no teu corpo Feito bailarina Que logo se alucina Salta e te ilumina Quando a noite vem... E nos msculos exaustos Do teu brao Repousar frouxa, murcha Farta, morta de cansao... Quero pesar feito cruz Nas tuas costas Que te retalha em postas Mas no fundo gostas Quando a noite vem... Quero ser a cicatriz Risonha e corrosiva Marcada a frio Ferro e fogo Em carne viva... Coraes de me, arpes Sereias e serpentes Que te rabiscam O corpo todo Mas no sentes... (Tatuagem Chico Buarque Composio : Chico Buarque - Ruy Guerra )
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RESUMO
Trata-se de um estudo psicanaltico sobre toxicomania e marcas corporais cujo
objetivo foi compreender a relao que os sujeitos toxicmanos estabelecem com os
seus corpos, considerando o gozo pela ingesto de drogas e o gozo em marcar a
pele. Na contemporaneidade o uso do corpo se tornou uma prtica comum pelo
realce dado a sensorialidade e entre os sujeitos toxicmanos comum a presena
de tatuagens no corpo, algumas delas ocupando grandes extenses. Apresentamos,
primeiramente os estudos sobre a constituio do sujeito e a sua posio em relao
toxicomania; em seguida a relao entre corpo, libido, identidade e toxicomania e,
por fim, apresentamos os resultados da pesquisa de campo desenvolvida no
Instituto RAID. Analisamos as histrias sobre as marcaes corporais de trs
sujeitos toxicmanos e verificamos que manipular o corpo, estimulando nele
sensaes internas pelo uso das drogas e sensaes externas pela marcao
uma forma de constituir uma identidade, se apropriar do corpo e torn-lo pulsante.
Palavras Chaves: sujeito, toxicomania, corpo, marcas corporais
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ABSTRACT
It is a psychoanalytic study on drug abuse and bodily marks whose goal was to
understand the relation addicts establish with their bodies, considering the enjoyment
by the ingestion of drugs and the joy in marking their skin. Nowadays, the usage of
the body has become a common practice by highlighting of sensuality and among
drug addicts is common to have tattoos on the body, and some of them on large
area of it. Firstly, we presented the studies about the subject physical disposition and
his position in relation to drug abuse, secondly the relation among body, libido,
identity and drug addiction and, finally, we presented the results of field research
developed at the Institute RAID. We analyzed the stories about the body markings of
three drug addicts and we realized that manipulating the body, stimulating in it
internal feelings by the use of drugs and external marking it is a way of putting
together an identity, appropriating the body and make it alive.
Words-Keys: drug addicts, body , bodily marks.
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SUMRIO
INTRODUO ..........................................................................................................10
1. SUJEITO TOXICOMANIA E CONTEMPORANEIDADE.......................................20
1.1 A CONSTITUIO DO SUJEITO EM PSICANLISE........................................23
1.2 O SUJEITO TOXICMANO ................................................................................28
1.3 O SUJEITO TOXICMANO NA ATUALIDADE .................................................32
2. CORPO, MARCAS CORPORAIS E IDENTIDADE...............................................37
2.1 CORPO E USOS..................................................................................................39
2.2 CORPO E LIBIDO ...............................................................................................42
2.3 CORPO E IDENTIDADE......................................................................................48
2.4 CORPO E TOXICOMANIA..................................................................................51
3. MARCAS CORPORAIS NA TOXICOMANIA........................................................57
3.1SUJEITO 1............................................................................................................59
3.1.1Histria de vida...................................................................................................59
3.1.2 Histria do sintoma............................................................................................60
3.1.3 Resumo da entrevista........................................................................................60
3.2 SUJEITO 2...........................................................................................................62
3.2.1 Histria de vida..................................................................................................62
3.2.2 Histria do sintoma............................................................................................63
3.2.3 Resumo da entrevista........................................................................................64
3.3 SUJEITO 3...........................................................................................................65
3.3.1 Histria de vida..................................................................................................65
3.3.2 Histria do sintoma............................................................................................66
3.3.3 Resumo da entrevista........................................................................................67
3.4 INTERLIGANDO S SEMELHANAS...............................................................68
3.4.1 Tatuagem como escrita da histria no corpo....................................................69
3.4.2 Tatuagem como produo de linguagem e endereamento ao outro...............71
3.4.3 Sensao corporal produzida pelo ato da marcao........................................73
3.4.4 Associao do uso de drogas s marcaes corporais....................................74
3.5 PENSANDO AS SINGULARIDADES..................................................................76
4. CONSIDERAES FINAIS...................................................................................79
REFERNCIAS..........................................................................................................82
ANEXOS....................................................................................................................85
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INTRODUO
O presente texto visa responder ao interesse em estudar mais profundamente
das implicaes no corpo na toxicomania, mobilizada pela experincia em trabalhar
com reabilitao de dependentes qumicos. Nesse contexto, foi possvel identificar a
riqueza de material que demandavam estudos.
Em 2008, por ocasio da concluso do Curso de Psicologia da Universidade
Catlica de Pernambuco, fizemos uma monografia com esse mesmo tema de
estudo: O sujeito toxicmano e a sua relao com o corpo. Tal trabalho, alm de ter
garantido a finalizao da graduao, tendo sido indicado para o banco de
monografias da Universidade, foi de suma importncia para o aprendizado, tendo
despertado ainda mais o interesse pelo tema, nos mobilizou a investir em pesquisa.
No decorrer das nossas observaes in lcus e contando com a atuao
profissional junto aos dependentes qumicos, constatamos que aqueles que
participam desse universo toxicmano so os sujeitos de classes scio culturais
divergentes, que se diferenciam profundamente uns dos outros, no que se refere ao
padro de vida, mas que apresentam sintomas convergentes e igualmente
devastadores, todos decorrentes da dependncia qumica.
A observao de uma dessas experincias surgiu atravs do Centro de
Referncia da Assistncia Social (Cras), que vem, ao longo de sua implantao,
trabalhando para o fortalecimento de vnculos familiares e comunitrios. Seus
servios destinam-se populao em situao de debilidade social decorrente da
pobreza, da privao e da fragilizao de laos afetivos, relacionais e de
pertencimento social. Tal servio pode ser desenvolvido atravs do vnculo
estabelecido com o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil (Peti), que acolhe
crianas e adolescentes dos 07 aos 15 anos e cujo foco a preveno e a
erradicao do trabalho infantil atravs de atividades scio educativas em jornadas
ampliadas.
Nesse contexto, foi identificada a presena massiva de pessoas que se
tornavam dependentes qumicos e cuja realidade, naquele momento, era explicada
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por um fato concreto que nos mostrava que, na favela, o que vigorava era a lei do
trfico e de que, a falta de recursos e oportunidades igualitrias contribuam
sobremaneira para que tal problemtica se agravasse.
O convvio com a comunidade carente nos fazia entender as questes
referentes dependncia qumica ao mesmo tempo em que compreendamos o
envolvimento dessas pessoas com o trfico em decorrncia da pobreza, da falta de
oportunidades e de perspectivas. Mesmo com o conhecimento prvio de que a
questo da drogadio sempre esteve presente na histria da humanidade, a
privao e a falta de perspectivas de vida desses indivduos nos faziam enxergar
esta problemtica como algo voltado para as questes de debilidade social, cultural,
econmica e afetiva que acometem esses mesmos sujeitos.
No entanto, a experincia posterior, no Instituto do Recife de Ateno Integral
s Dependncias (Raid) nos fez repensar essa questo. Tal instituio funciona
como um albergue teraputico que trabalha no auxlio a dependentes qumicos, de
forma a possibilitar a abstinncia e a reestruturao dos laos sociais, familiares e
afetivos, prestando um servio de carter privado, cujos usurios, pertencem a um
meio scio cultural diferenciado, e no esto submetidos s questes referentes
falta de recursos e oportunidades. A partir disso, observamos que a toxicomania,
alm de atender a uma configurao que vem sendo estabelecida por uma mutao
dos processos civilizatrios, tambm denuncia um importante comprometimento, no
que se refere organizao psquica desses sujeitos, que por tal motivo encontram
eco nos efeitos suscitados pela ingesto da substncia. Tais questes geraram as
inquietaes e aguaram o nosso interesse pelo estudo dessa problemtica.
Historicamente, o uso de drogas acompanhou a humanidade. Por motivos
religiosos ou de cura, motivos recreativos ou at existenciais, tais substncias
sempre tiveram um espao relevante no contexto social. H mais de quatro mil anos
a.C., alguns povos j faziam uso de substncias psicoativas, com o intuito de entrar
em contato com os deuses, a partir de seus rituais que provocavam xtases forjados
pelos alucingenos. Com o desenrolar dos acontecimentos, verificou-se tambm, o
uso dessas substncias pelos mais distintos povos, utilizadas de modo peculiar e de
acordo com a cultura na qual estavam inseridos.
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De fato, as drogas continuam cumprindo diversas finalidades em vrias
civilizaes, sobretudo no mundo ocidental. Perotta relembra que no incio da
civilizao ocidental no havia uma preocupao com a restrio do uso dos
psicotrpicos, j ento conhecidos (PEROTTA, 2009). Os instintos tendiam a ser
satisfeitos, respeitando-se as leis naturais. Gradativamente, acompanhamos a
imposio de normas e estatutos para a manuteno de determinados
comportamentos, atravs do controle social.
No mbito da religio, este controle acontecia atravs da ritualizao e
sacralizao do elemento txico, como no caso do vinho nos cultos a Baco, e,
posteriormente, com outra conotao, na tradio judaico-crist, em que se chega
ao pice da represso religiosa, como reguladora de comportamentos na Idade
Mdia. H, porm, grande diferena entre os rituais de Baco e as missas crists. Se,
no primeiro caso, buscava-se o xtase e se celebrava o esprito do vinho, no
segundo, celebra-se o sacrifcio. Tal diferena simboliza, de forma singular, a
transformao do lugar do prazer e da satisfao dos instintos ao longo da histria.
Assim, cada vez mais as sociedades foram se moldando com base na lei, na ordem
e na hierarquia. A civilizao ocidental na Idade Mdia, por exemplo, sobre
influncia do clero, repudiava o prazer e a forma de reter os excessos da
instintividade por influncia religiosa.
Nesse contexto, Perotta relembra que, posteriormente, o iluminismo trouxe o
declnio da influncia religiosa no cotidiano das pessoas. Em contrapartida, os novos
processos de produo, ao exigir trabalhadores mais disciplinados, tornaram a
ebriedade um obstculo produtividade. Aos poucos, o que era pecado foi se
transformando em crime e, mais recentemente, em doena.
No fim do sculo XIX, com os avanos da qumica e da farmacologia,
substncias fortes e com alto poder dependognico e qumico, como a cocana e a
herona, foram sintetizadas. Alm disso, o fcil acesso as seringas, possibilitavam a
introduo da substncia no corpo, de modo a favorecer maiores efeitos e propiciar
maiores ndices de dependncia.
Devido ao alto nmero de dificuldades apresentadas por indivduos
acometidos pelo uso abusivo dessas substncias e pelo aumento de dependentes, a
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problemtica passou a ser vista como uma questo de sade pblica, adquirindo
espao no mbito da medicina, da psicologia e das cincias sociais, dando origem,
no pas e no mundo, a clnicas especializadas no tratamento da dependncia
qumica. Todavia, convm distinguir aqui o usurio do drogadito. Segundo a OMS, O
usurio recreativo aquele que faz o uso das Substncias Psicoativas sem grandes
implicaes, como a dependncia ou outros problemas consequentes. A droga
usada de forma recreativa, no ocasionando danos psquicos, sociais, econmicos
ou clnicos ao indivduo.
J o dependente acometido por um estado mental e, muitas vezes fsico,
que resulta em uma interao do indivduo com a droga. Esta dependncia
caracteriza-se como um comportamento que sempre inclui uma compulso pelo uso
da droga, para experimentar o seu efeito psquico, e s vezes evitar o desconforto
provocado pela sua abstinncia.
O DSM III especificou a problemtica como uma patologia que necessita de
cuidados especficos e classifica a toxicomania como um conjunto de sintomas
cognitivos, comportamentais e psicolgicos indicativos de que uma pessoa tem o
controle do uso de substncias psicoativas prejudicado e persiste nesse uso a
despeito de consequncias adversas. No DSM IV, o conceito recebe alteraes, e a
dependncia abordada como um padro mal-adaptativo de uso da substncia,
levando a prejuzos ou sofrimento clinicamente significativo. J o CID 10, trata a
dependncia qumica como adico e a define como um uso repetido de uma ou
mais substncias psicoativas, a tal ponto que o usurio fica periodicamente
intoxicado, apresenta compulso para consumir a substncia preferida, tem
dificuldade para interromper ou modificar voluntariamente o uso, demonstrando
determinao em obt-la por qualquer meio.
Estes sero os temas tratados na presente pesquisa, e embasado nos
pressupostos psicanalticos. Por isso, partiremos do princpio de que a relao com
a substncia vai alm do poder dependognico e qumico dela, e o que ir ser
constitutivo da dependncia a relao que o sujeito desenvolve com esse objeto
numa cadeia identificatria.
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Apesar de termos iniciado o convvio com a cocana a partir de 1884, Freud
no faz referncias especficas s questes da toxicomania nos seus escritos sobre
psicanlise, embora, ele mesmo tenha tratado a patologia de um amigo, tendo feito
e recomendado o uso desta substncia. Entretanto, ao obter efeito anestsico e no
teraputico, o autor intuiu que tal fenmeno teria relevncia na histria da
humanidade, e no foi por acaso que em 1930, no Mal-Estar na Civilizao, o autor
fala da utilizao de Substncias Txicas como uma das medidas substitutivas para
lidar com o sofrimento, que inerente vida, vejamos o que ele escreve a este
respeito:
A vida tal como a encontramos rdua demais para ns; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepes e tarefas impossveis. A fim de suport-la, no podemos dispensar medidas paliativas. No podemos passar sem construes auxiliares (...). Existem talvez trs medidas desse tipo: derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa desgraa, satisfaes substitutivas que a diminuem e as substncias txicas que nos tornam insensveis a ela (FREUD, 1930, p.83).
Segundo Freud, essas satisfaes substitutivas so iluses, pois, em
contraste a isso, outras realidades podem ser oferecidas como substitutivos, por
exemplo, a arte, a literatura e a sua funo esttica na qual a fantasia assume um
papel importante na vida mental. Contrapondo-se, assim, as substncias txicas que
possibilitam essas fantasias, a partir das alteraes qumicas que provocam no
corpo.
Dentro desse contexto de satisfaes substitutivas e iluses, o que mais nos
inquietou, foi observarmos a presena constante de marcas corporais nos sujeitos
toxicmanos. As tatuagens, os piercings e as escarificaes aparecem de maneira
mais primitiva, e em alguns momentos feitos de forma artesanal, em pessoas de
menor nvel social, enquanto nas socialmente favorecidas se apresentam com maior
cuidado de elaborao e investimento. So notveis as marcas decorrentes da
situao de risco e vulnerabilidade em que se encontram esses indivduos, como
cicatrizes de tiros, de facadas, amputaes de membros e at mesmo sequelas
fsicas de doenas clnicas provocadas pelo uso abusivo dessas substncias
txicas.
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Como as drogas, o uso das marcas corporais tambm um trao que sempre
esteve presente em vrias culturas. Os indgenas, indianos e egpcios fizeram e
fazem uso desses instrumentos simblicos como meio de demarcar sua classe, de
estabelecer rituais, mas tambm como adornos, ou seja, como sinnimo e sinal de
vaidade com repercusses relevantes na histria cultural da moda. V-se que tanto
o uso de drogas como o de marcas corporais esto presentes em diferentes culturas
e pocas, porm, associados a rituais e, portanto, inseridos em um contexto prprio
de organizao social. Na atualidade, chama a ateno, a forma com que alguns
indivduos se relacionam com a introduo de tais marcas na prpria pele, isto ,
destituda de qualquer carter ritualstico. Em contrapartida, nas clnicas de
tratamento de dependncia, notvel a observao dos sujeitos com corpos
depauperados com o efeito dos txicos.
O corpo tambm um tema de grande incidncia nas diversas reas do
saber, tendo sido abordado nas construes psicanalticas desde os escritos
freudianos, indicando que a constituio corprea dos sujeitos se d atravs da
converso do corpo biolgico em ergeno, por um processo de marcao, essa que
tem como agente principal a me. Conte refere-se a estimulao de determinadas
partes do corpo como responsveis pela produo de satisfao, sendo na
interseco entre o psquico e o somtico que se originam as pulses (CONTE,
1998).
Fernandes aponta para as construes de Freud que anunciam a
impossibilidade de que o corpo seja confundido com um organismo biolgico, pois,
ele se apresenta como o palco em que ir se desenrolar o complexo jogo das
relaes entre o psquico e o somtico. Esta dupla inscrio ser evidenciada a
partir do conceito de pulso, em que se demonstrar que o conjunto de foras
orgnicas em movimento habita um corpo, que tambm lugar da realizao dos
desejos inconscientes (FERNANDES, 2008).
com a inscrio simblica no corpo da criana que se manifestar a
possibilidade de diferenciao das zonas ergenas, simbolizao esta, possvel
apenas atravs da introduo de uma funo terceira, que ir favorecer o
rompimento da completude inicial vivenciada pelo beb e sua me, propiciando a
este indivduo o estatuto de ser desejante. Esta introduo terceira se inicia com a
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assagem pela fase do espelho, que, segundo Rosa , comentando Lacan, determina
um perodo em que a criana forma uma representao de sua unidade corporal por
identificao imagem do Outro (ROSA, 2002). Esse momento concretizado pela
experincia da criana com a sua prpria imagem no espelho. Essa passagem
identificada por Lacan como a matriz na qual se formar um primeiro esboo do ego.
A esse respeito, Olivenstein refere, no tocante ao toxicmano, que a
passagem pela fase do espelho quebrada, e que este seria um acontecimento
intermedirio entre o estado do espelho bem-sucedido e o estado do espelho
impossvel (como acontece com os psicticos). Para o autor, o sintoma toxicmano
assume o poder quando as vias de transmisso da lei esto impedidas. Quando
existe, por exemplo, um segredo no dito, constituindo-se de forte angstia para o
indivduo, este ter extrema dificuldade em construir um eu adulto (OLIVENSTEIN,
1985).
Acontece que no momento exato da formao de um ego diferente do
gome, no momento da descoberta da imagem de si, o espelho se partiu, refletindo
uma imagem quebrada, incompleta, em que os vazios deixados pelos pedaos
ausentes s podem remeter quilo que existia anteriormente: a fuso, a
indiferenciao.
Tal argumento, utilizado por Olivenstein vem fortalecer a ideia de que a
toxicomania pode ser observada como uma questo decorrente da imagem, em que
h deficincia na introduo da funo paterna; funo esta que possibilita a
insero do sujeito na cultura, e que tambm responsvel pelo advento do
simblico. O enfraquecimento disso levam-no a buscar a toxicomania como uma
marca de distino, e as questes referentes ao uso de drogas vm resumir as suas
identidades. Dessa forma, tudo o que no passvel de ser simbolizado, ganha
forma ao se inscrever no corpo.
H outras teorias que tomam vieses variados em relao ao uso das drogas
alm das definies mdicas e psicanalticas anteriormente citadas. Escobar, por
exemplo, levanta a possibilidade de se observar esta questo como sendo tambm
uma construo social, e como tal instaurada a partir de seus valores, transitando
entre seus diversos segmentos, participando e compartilhando do mesmo patamar
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a sociedade de consumo em que, mais do que um problema, a droga associa-se a
uma soluo, uma forma de atalho sobre a realidade e sua carga de adversidade.
Nesse contexto, as drogas ilcitas constituem um trao transgressor desta cultura e
por isso nunca vivemos to merguhados na presena das drogas quanto hoje. Neste
estudo priorizaremos a compreenso de Olivenstein, por fornecer sustentabilidade
questo por ns aqui levantada (ESCOBAR, 2005).
Tambm as marcas podem ser lidas como uma construo social, como uma
arte de vanguarda que expressa o mal-estar contemporneo ante uma sociedade
que valoriza o consumo. As marcas presentes em alguns drogaditos se apresentam
com uma certa singularidade. Este ponto nos fez questionar, em torno da
associao, sobre a necessidade de construo das marcas corporais e o uso das
substncias psicoativas. Levantamos a questo de que esse movimento vem
denunciar a necessidade de completude vivenciada por tais sujeitos, em que est
presente a busca por um gozo que envolve todo o corpo, fornecendo marcas e
sensaes por dentro e por fora. Parece-me que h nesses sujeitos uma
necessidade de adquirir consistncia identitria como algo que pode ser
estabelecido com a aplicao de algo externo no corpo, ou pela assimilao de
substncias psicoativas, bem como a demarcao da pele, como se, de alguma
forma, buscasse um gozo que envolvesse o corpo em sua dimenso interna e
externa.
A prtica profissional no Instituto Raid, aliada prtica dessa demanda em
consultrio, vem possibilitando a verificao e a constatao do crescente nmero
de usurios de substncias psicoativas que vm pagando com a carne 1 as dvidas
simblicas que foram adquiridas no decorrer da constituio psquica de si mesmos
enquanto sujeitos e que, por isso, buscam o servio de psicologia, o que nos leva a
entendermos melhor essas novas organizaes psquicas e suas formas de
sintomas.
Nosso interesse pela clnica da toxicomania, portanto, encontrou ressonncia
no projeto de Pesquisa da professora Dra. Edilene Queiroz, que vem desenvolvendo
um importante projeto com o tema: O social e as patologias do corpo:
1COSTA, A.L.L. da. Drogas. Pagar com a carne? Revista da Associao Psicanaltica de Porto
Alegre: Txicos e Manias, Porto Alegre, n.26, 2004.
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problematizando dor e gozo, projeto este aprovado e financiado pelo CNPq, cujo
objetivo analisar o circuito pulsional nas psicopatologias do corpo, configuradas no
contexto social contemporneo, tomando a dor e o gozo como eixos de discusso.
Tal projeto vem sendo desenvolvido no Laboratrio de Psicopatologia Fundamental
e Psicanlise da Universidade Catlica de Pernambuco.
Deste modo, o que nos mobilizou, alm dos motivos expostos acima, foi a
carncia de investigao, de pesquisa sria e aprofundada, em torno desta
problemtica da relao entre toxicomania e marcas corporais. Ao mesmo tempo, a
observao da necessidade de pesquisar e associar ao nosso estudo o porqu da
introduo da substncia no corpo e a marcao da pele. Alguns desses sujeitos se
marcam enquanto esto sob efeito do txico, e outros, para se marcar, fazem uso da
droga. Isso nos leva a questionar tambm se o que eles buscam uma anestesia da
dor ou uma forma de torn-la mais evidente. Observamos nesses indivduos a
necessidade de adquirir consistncias identitrias, como referimos acima, e nos
pareceu que a assimilao de substncias psicoativas e a marcao no corpo, na
pele lhes fornecem a possibilidade de habitar um corpo, e por esse motivo
estabelecida uma relao do sujeito com um corpo gozoso.
A nossa proposta de estudo vem apontar para uma possvel conjuno do
uso das marcas corporais e a utilizao de drogas, o que confere uma importante
contribuio no que se refere ao estudo e entendimento de um dos sintomas que
atualmente tomam a nossa prtica, mas, exigente, pedindo de ns um novo
posicionamento clnico para o direcionamento do tratamento.
Para isto, trataremos no primeiro captulo das questes referentes
constituio dos sujeitos em psicanlise para, em seguida, entender o que ocorre
nessa constituio para a possvel ecloso de uma toxicomania, com base nos
preceitos tericos de Olivenstein. Posteriormente, abriremos uma discusso sobre o
modo como essa patologia se apresenta na contemporaneidade.
No segundo captulo, nos dedicaremos a um estudo sobre o corpo,
trataremos das formas atuais de seu uso, com base na teoria de autores
contemporneos e cientistas sociais, para em seguida observarmos como a
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psicanlise concebe a constituio corporal dos sujeitos e qual a relao que essa
constituio tem com a formao da identidade.
Por fim, discutiremos a questo central deste estudo, que o corpo na
toxicomania. Para isso, nos guiaremos a partir de estudos de autores abalizados da
atualidade, que vm se debruando sobre tal questo. E, por ltimo, realizaremos a
anlise e discusso dos dados colhidos na pesquisa de campo.
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CAPTULO 1
SUJEITO, TOXICOMANIA E CONTEMPORANEIDADE
Neste captulo, focalizaremos o sujeito toxicmano. Primeiramente,
apresentaremos uma discusso sobre a constituio do sujeito em psicanlise, a fim
de se entender a partir dela o que pode ocorrer para acontecer uma toxicomania.
Para isso, recorremos aos pressupostos tericos de Claude Olivenstein, uma vez
que oferecem sustentabilidade questo a ser levantada no decorrer da
dissertao: a toxicomania pode ser observada como uma questo de imagem. Por
ltimo, tratamos a respeito da forma com a qual os sujeitos toxicmanos se
apresentam na atualidade, pois constatamos o realce que autores modernos do
forma com que a contemporaneidade vem potencializando a tematizao da
instalao deste tipo de dependncia.
Para Santiago, a palavra Toxicmano surgiu no discurso da psiquiatria, que,
em meados do sculo XIX, passou a consider-la isoladamente, como categoria
clnica especfica, relacionada inclinao impulsiva e a atos manacos. Assim, a
toxicomania um fenmeno cujas circunstncias histricas e ideolgicas a
cristalizaram como uma entidade: a Toxicomania. Submetido ao discurso
medicalizante fascinado pelos efeitos fisiolgicos das drogas, o fenmeno passou a
ser regulado pelo pensamento normativo e comportamentalista. Em razo das
complexas dificuldades apresentadas por indivduos acometidos pelo abuso de
drogas e do aumento de dependentes, a problemtica transformou-se em questo
de sade pblica (SANTIAGO, 2002).
A Organizao Mundial de Sade (OMS) estabelece diferenas relevantes
quanto aos tipos de usurios de drogas. O usurio experimental utiliza determinada
substncia poucas ou raras vezes. O usurio recreativo a utiliza em eventos sociais
ou como relaxante, sem implicar danos. J o usurio problemtico, ou nocivo,
apresenta um padro de consumo que causa danos sade fsica ou mental e
comumente traz consequncias sociais adversas. Por ltimo, o usurio dependente
fica comprometido mental e fisicamente em decorrncia do uso abusivo da droga,
tudo isso caracteriza-se pelo comportamento compulsivo de uso abusivo da droga,
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seja para experimentar o seu efeito psquico e, seja para evitar o desconforto
provocado pela sua abstinncia.
Neste estudo, no trabalhamos com todas as categorias de usurios descritas
pela OMS, pois, nosso foco a relao do sujeito dependente com o seu prprio
corpo.
A este propsito, evidencia-se o profundo mal-estar psicossocial cristalizado
pela falta de limites, de identificaes simblicas e de ideais que facilitem o processo
de identificao. Como tal processo frgil, os indivduos buscam identidades que
lhes propiciem o estatuto de sujeitos, uma identificao que feita em nveis
corporais e psquicos, mas nunca ontolgicos. A busca utpica de plenitude os leva
a querer preencher aquela falta com pequenos objetos que s proporcionam a
sensao momentnea de plenitude.
Segundo Santiago, o sucesso da droga na modernidade no poderia ser
concebido fora do contexto do declnio crescente do pai, porque a significao dele
como algo capaz de permitir o rompimento da relao do toxicmano com o gozo
flico leva infalivelmente questo do pai, pois s a funo paterna pode barrar a
necessidade de evitar o encontro com tal gozo. Ainda conforme o mesmo autor, para
a psicanlise, o pai estabelece a conformidade entre a lei do desejo e o regime
edipiano, isto , o mito individual em que se realiza a interdio do desejo de gozo
na me. Nesse contexto, a significao flica vai apontar para a criana a lei
paterna, na medida em que a instaurao desta no processo de metaforizao do
desejo da me pelo Nome-do-Pai equivale proibio do gozo primordial na me.
Ao lado disso, observamos que no universo familiar vm-se apresentando
ovos modelos e configuraes que mudam drasticamente o modelo familiar
tradicional e, no contexto atual, a mulher vem assumindo diversos papis e funes,
coisa que no era comum em tempos idos. perceptvel, portanto, o
desaparecimento da hierarquia do casal, medida que o declnio do sistema do
patriarcado se torna cada vez mais evidente e abre espao para a invaso da figura
materna. Os recursos disponibilizados pela cincia, por vezes, favorecem no s a
excluso do papel do pai na concepo e formao de seus filhos, mas o aumento
do domnio materno. Entretanto, ressalta Lebrun, o amor materno exclusivo deixaria
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o sujeito totalmente preso ao imaginrio; s com a interveno da funo terceira
na relao me-filho que se torna possvel a manobra necessria para o
reconhecimento do simblico (LEBRUN, 2002).
O declnio do Nome-do-Pai e a escassez do simblico tm contribudo para a
formao de uma sociedade hedonista, na qual se releva a experincia sensitiva de
prazer em detrimento da expresso pela fala, pelo desejo. Os sujeitos, ento,
desprovidos de traos identificatrios, deficientes dos recursos da fala como
suplncia, encontram no gozo o modo de existir.
De fato, na sociedade atual tem surgido um expressivo nmero de patologias
que denunciam os estragos ocorridos no contexto em que o Outro no mais existe,
ou seja, vivemos uma poca escassa de ideais positivos. Em outras palavras, a
civilizao se transformou em sistema de distribuio de gozo. A incapacidade de
simbolizao leva presena massiva de passagens ao ato; ento, o corpo assume
lugar de destaque. Tal mudana no universo patolgico nos obriga a enfrentar
desafios tericos e clnicos que interrogam tanto o plano individual, quanto o social.
Dentre as diversas patologias, interessa-nos a toxicomania, pois partimos do
pressuposto de que se trata de uma das manifestaes que obedecem a uma
modalidade de gozo, questionando o estatuto e o valor da vida na
contemporaneidade, um gozo que instiga os limites do corpo e desafia a morte.
1.1 A CONSTITUIO DO SUJEITO EM PSICANLISE
O processo inicial da vida de um sujeito de essencial importncia para que
se estabelea sua organizao psquica. Por tal razo, faremos inicialmente um
percurso que vai desde a constituio psquica dos sujeitos, at a relevao da
passagem pelo Estdio do Espelho e pelo Complexo de dipo. Isto a fazer, porque o
entendimento adequado desses momentos nos possibilitar a compreenso de que,
quando esta passagem ocorre de maneira inadequada, possvel haver o
estabelecimento e a incidncia da toxicomania. A propsito, existem hipteses de
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que a falha das instncias do Espelho e de dipo instaura no futuro o
estabelecimento de tal patologia.
O lugar ocupado pelo indivduo no universo familiar e no imaginrio dos pais
estabelecido antes mesmo do nascimento: marcado pelo jogo fantasmagrico que
cada um dos progenitores mantm com o seu prprio desejo. A a criana
envolvida, atravessada pelo desejo do casal parental. Zeferino Rocha, comentando
Freud, afirma que a relao me-filho j se estabelece desde o primeiro momento da
concepo, motivo pelo qual a me atribui ao beb um corpo imaginado, objeto de
seu investimento libidinal. Contudo, este deve ser tratado como um outro que no
ela, apesar de estar dentro dela. Para isso ocorrer, preciso que a me seja
castrada em seu desejo de unidade com o filho (ROCHA, 1993).
Inicialmente, me e filho vivenciam um momento de completude narcsica
onde a me a responsvel por suprir todas as necessidades do filho. Nesta
situao, o filho vivencia a fase do narcisismo primrio, da onipotncia narcsica, do
ego ideal.
Segundo Piera Aulagnier, a relao da me com o corpo do beb comporta
um momento de prazer erotizado, permitido e necessrio para a constituio dele;
logo, a ancoragem somtica do amor materno d consistncia ao corpo singular da
criana. Este componente somtico da emoo maternal transmitido no corpo a
corpo um prazer sensorial partilhado por ambos. Em tal campo sensorial uma
vez que a criana j no est no corpo materno , o olhar, em vez do cordo
umbilical, coloca-se como ponto de conexo junto com o sentido do tato. A
acessibilidade necessria constituio somtica do filho, portanto, se d atravs do
olhar maternal (AULAGNIER, 2003). Edilene Queiroz, comentando Merleau-Ponty,
diz: Sem o olhar do outro, no existimos, mas a maneira como somos olhados
define um destino (QUEIROZ, 2006, p.61). Antes mesmo de ser capaz de olhar e
perceber o que verdadeiro, o beb envolto pelo olhar materno, que lhe atribui um
sentido e lhe imprime uma marca.
Na concepo lacaniana, este momento inicial compreende a alienao
vivenciada pela relao dual me-beb, responsvel pela causao do sujeito
inserido no campo do Outro.
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Bruce Fink, comentando Lacan, pontua que o sujeito existe na medida em
que moldado pela palavra; ou seja, antes da alienao, no h possibilidade do
sujeito advir, pois ela (a alienao) representa a instaurao da ordem simblica e a
atribuio do sujeito nessa ordem. Dizendo de outra forma, um lugar que ele no
detm ainda, mas um lugar designado a ele. O sujeito est completamente
submerso pela linguagem, que o nico marcador de um lugar na ordem simblica
(FINK, 1998).
No primeiro momento, o corpo da criana visto apenas como um
aglomerado de objetos parciais investido pelas pulses de modo auto ertico. Isso
possibilita o trmino da vivncia singular, designada por Lacan como fantasma do
corpo esfacelado, que significa a passagem pelo estdio do espelho, em que,
atravs da identificao primordial da criana com o Outro materno, haver a
promoo da estruturao do Eu. Segundo Lacan, o estdio do espelho possibilita
uma relao do organismo com a sua realidade, determinando a representao de
uma unidade corporal concretizada mediante a imagem do outro (LACAN, 1949).
Pelo fato da criana estar inicialmente sujeita ao registro do imaginrio,
prevalece certa confuso entre ela e o outro, porque se fragmenta a imagem
corporal que, neste momento, determinada pelas experincias sensitivas nas
diversas partes do corpo. Ao se olhar no espelho, a criana espera que o adulto,
presente com ela na cena, confirme ser a imagem dela ali projetada. Este ato
possibilitar que, ao se voltar para o espelho, ela se reconhea como totalidade
unificada. Podemos designar este momento como eu ideal, no qual se dar a
origem das identificaes secundrias.
Para Lacan neste momento, a forma do corpo do indivduo se d como uma
Miragem e a maturao de sua potncia dada como Gestalt, ou seja, numa
exterioridade mais constituinte do que constituda, e simboliza a permanncia
psquica do eu, ao mesmo tempo em que prefigura a sua distino alienante.
O estdio do espelho um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficincia para a antecipao e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificao espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaada do corpo at uma forma
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de sua totalidade que chamamos de ortopdica e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcar com sua estrutura rgida todo o seu desenvolvimento mental (LACAN, 1949, p.50).
Tal experincia se configura em lgica paradoxal medida que fornece a
sensao de domnio, possibilitada pela unificao da imagem. Tambm
proporciona decepo, por levar constatao de que permanecer na dependncia
do outro, mas tambm porque encontra conforto entre o desejo do outro e o seu
prprio desejo.
Pelo que foi exposto acima, a completude narcsica do filho com a me , a
princpio, de suma importncia para que a criana suporte, no s sua entrada no
mundo, como tambm a angstia mobilizada pelo ato do nascimento. Entretanto,
convm, em determinado momento, impor-se um terceiro elemento nessa relao.
Edilene Queiroz comentando Soler, afirma a necessidade de a mulher que h dentro
da me voltar seu olhar para o homem e poder assumir a presena do seu desejo de
mulher, o que a torna no toda para o filho. Tal diviso confere ao sujeito o estatuto
de ser desejante, faltoso. Neste processo, a castrao simblica possibilitada pela
passagem do mundo imaginrio das ambies flicas e desejos narcsicos para o
mundo simblico das relaes intersubjetivas (QUEIROZ, 2006). O agente da
castrao simblica o pai simblico enquanto representante da lei, entendida como
terceiro agente de toda uma srie de cortes a que a criana se submete desde o
nascimento.
O fenmeno edpico compreende a inscrio de tudo o que constituinte do
social no indivduo. O social sempre marcado pelas interdies, e o ponto
inaugural da imerso do sujeito nesse universo a proibio do incesto. Segundo
Freud, as escolhas objetais feitas pela criana nos primeiros tempos so os pais,
preferencialmente a me; as figuras parentais, portanto, se transformam em objetos
de desejos erticos, gerando uma rivalidade que levar a relao a se constituir pela
dialtica amor e dio: amor me e dio ao pai. Freud, ento, se utiliza do mito de
dipo para ilustrar a expresso desse desejo infantil.
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Na tragdia grega, Sfocles narra que dipo, sem saber, assassina o prprio
pai (Laio) e casa com Jocasta, sua me. Ao descobrir a verdade sobre sua origem,
filho e me se castram: ela comete o suicdio e ele cega-se e se exila da ptria-me.
Nesse drama clssico, fica clara a implicao do desejo do filho pela me e vice-
versa, os quais, mesmo distanciados, traam caminhos inconscientes de reencontro.
De acordo com Lacan a psicanlise, ao revelar a existncia de pulses
sexuais na criana, admitiu que os objetos sexuais da criana so os mais prximos
dela: primeiro, a me; segundo, o companheiro desta. Tal pulso constitui a base do
Complexo de dipo, e a castrao dela, o seu n (LACAN, 1938). Esta castrao,
produzida pela existncia de um(a) parceiro(a), tem um efeito educativo, pois
impede a realizao do desejo edipiano de se acasalar com o pai ou a me. Ao
mesmo tempo, a criana adquire certa intuio da situao proibida. que, nesse
processo, o progenitor do mesmo sexo surge como rival e agente da interdio
sexual. A tenso se resolve, por um lado, pelo recalcamento da tendncia sexual
que, a partir da, permanece latente; por outro, pela sublimao da imagem parental
que se perpetua na conscincia como ideal representativo, norteando futuras
atitudes psquicas do sujeito. Este duplo processo tem importncia fundamental, pois
permanece inscrito no psiquismo em duas instncias: no Super eu (que recalca) e
no Ideal do Eu (que sublima).
Para Lacan, o processo de identificao e subjetivao se d pelo estdio do
espelho e pela dinmica edipiana. No incio da relao me-fillho, a criana o falo,
ou seja, o smbolo do desejo do desejo da me; ela se identifica com a me,
colocando-se no lugar do seu objeto de investimento. Nesse sentido, ainda no se
pode ver a criana como sujeito, mas como complemento da falta da me. O pai
aparece operando o corte da dade me-beb; logo, entra como privador da criana
e da me, pois ele se faz presente na relao, colocando-se como objeto de desejo
da me e mostrando ao filho a existncia de um outro que desejado por ela. Isto
produz na criana um sentimento de ser em falta, ou numa terminologia nova, ser
faltoso, incapaz de ser o complemento exclusivo da sua me. Assim, o filho sai da
condio de ser o falo materno para se identificar com o pai, como portador do falo:
ter um falo que possa ser oferecido a ela. Instala-se, ento, a rivalidade edpica.
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Fink, ao comentar Lacan, afirma que a funo paterna leva assimilao de
um nome que neutraliza o desejo do Outro, fato bastante perigoso para a criana,
uma vez que ameaa engoli-la. Segundo ele:
O papel da me o desejo da me. capital. O desejo da me no algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocs esto a me isso. No se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo, fechar sua bocarra, o desejo de me isso (Lacan apud Fink, 1998, p.79).
Portanto, conforme a citao, para Lacan o desejo da me reintrojetar o seu
filho, coisa invivel quando o pai exerce sua funo de forma satisfatria.
Ainda de acordo com Fink (1998), a expresso dsir de la mre (desejo de
me) mantm a ambigidade tanto em francs quanto em portugus, pois indica
tanto o desejo da criana por sua me quanto o desejo da me pela criana. Logo, a
fim de proteger a criana da situao de dualidade e ambivalncia potencialmente
perigosa, necessrio a substituio do desejo da me pela metfora paterna.
De incio, o Nome-do-Pai, enquanto significante, ainda no produz efeito
pleno, uma vez que no deslocvel. Convm que um passo seja dado em direo
quilo que substitui o lugar do desejo do Outro materno que funciona como
significante permanentemente desenvolvido e se torna parte essencial do
movimento dialtico dos significantes, isto , deslocvel e inserido em uma cadeia.
A substituio subentendida pela metfora paterna s possvel por meio da
linguagem, na medida em que o significante Nome-do-Pai se instala, fazendo
suplncia ao significante Outro materno. Assim, a metfora paterna desempenha a
importante funo de simbolizar o desejo do Outro materno, transformando-o em
significante e promovendo uma quebra na unidade me-criana, o que permite a
cada um a constituio de espao prprio. Da os fundamentos do advento do
sujeito como sujeito desejante. A este respeito Fink escreve que:
Assim, ao se instalar esse segundo significante (o Nome-do-Pai), o
primeiro determinado retroativamente, o sujeito em sua condio
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de ser faltoso precipitado e o desejo do Outro materno assume um
outro papel, o de objeto a (FINK, 1998, p.81-82).
Logo, so as figuras parentais, as responsveis pela insero da criana no
seio social. A famlia, ento, constitui o lugar onde se desenvolvem as percepes
necessrias para se ter acesso cultura. Isso porque, mesmo sendo de carter
privado, funciona de modo a estabelecer laos com o social, pois a funo do pai
de representante da lei, cujo papel o de transmitir a legitimidade na continuidade
temporal.
1.2 O SUJEITO TOXICMANO
Como j dissemos, partimos do pressuposto de que h diferenas na
constituio psquica dos sujeitos dependentes e dos no dependentes. Para tratar
disso, recorremos literatura especfica acerca do tema, que apontam para
possveis falhas na constituio dos sujeitos, que levam toxicomania. A propsito,
o desenvolvimento psquico do homem sempre marcado por uma srie de
momentos traumticos o nascimento, o desamparo inicial, a introjeo da lei, o
prprio processo de identificao e subjetivao , os quais pem o sujeito em
estado de angstia. Isso nos mostra o alto grau de vulnerabilidade ao qual est
submetida uma criana.
Conforme abordamos anteriormente, Lacan postula o estdio do espelho e a
metfora paterna como constitutivos da identidade do sujeito. A capacidade de se
descobrir num espelho e a entrada no simblico tornam a criana apta a romper a
fuso com sua me.
Um dos autores que trabalharam essa questo na toxicomania foi Olivenstein
(1985). Ele refletiu sobre a possvel falha na construo do espelho no caso dos
dependentes qumicos. De acordo com o autor, o toxicmano fez a passagem pelo
espelho quebrado. Em outras palavras, houve um acontecimento intermedirio
entre
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o estdio do espelho bem-sucedido, como vimos anteriormente, e o estdio do
espelho impossvel, conforme acontece com os psicticos (OLIVENSTEIN, 1985).
Com relao aos psicticos, v-se que houve uma dificuldade materna de
lidar com a prpria falta e com a referncia do Outro; a me rejeitou a possibilidade
do filho ser fruto de um desejo partilhado, e a criana entra na relao dual com a
me, ocupando o lugar do seu complemento, como falo da me. De acordo com
Zeferino Rocha (1993), ao comentar Freud, o filho tornou-se prisioneiro do
imaginrio da me e no se estruturou como um ser desejante e autnomo. Neste
tipo de relao, no h distncia nem mediao entre o eu e o outro. Assim, tanto a
proximidade quanto o afastamento do objeto primordial representam angstia
insuportvel.
J no caso do dependente, segundo Olivenstein, a dificuldade esteve no lado
paterno, na maneira como o pai representava a criana e, por conseguinte, como ele
se introduziu na relao me-beb. Ao drogadito nunca faltou o afeto materno; faltou
um pai que o desejasse. De acordo com o mesmo autor, esse no-desejo do pai
permaneceu na histria da criana como um no dito, enfraquecendo o exerccio da
funo paterna. Sabemos que, quando existe um segredo ocultado pela tradio
familiar, ele gera forte angstia no indivduo, que ter extrema dificuldade em gerar
um eu adulto. Logo, no podemos falar de excluso do Nome-do-Pai, como na
psicose. Na toxicomania, a me reconhece o pai e volta o seu olhar para ele; porm,
por este no conseguir funcionar como objeto de identificao, sua interveno se
d de modo insuficiente, negativo, quer seja pela no demonstrao do desejo de
nomear a criana, seja pela abdicao do seu papel de pai.
Na metfora do espelho quebrado a que se refere Olivestein, o sintoma
toxicmano assume o poder quando as vias de transmisso da lei esto impedidas e
o sujeito precisa apaziguar a angstia. O autor mostra que, no momento exato da
formao de um ego diferente do ego-me, no momento da descoberta da imagem
de si separado da imagem da me, faltou que a imagem do pai se colocasse para
dar consistncia e sustentao ao filho como sujeito. Por isso o espelho se partiu,
no refletiu uma gestalt, mas a imagem quebrada, a incompletude, na qual os vazios
deixados pelos pedaos ausentes s podiam remeter quilo que existia
anteriormente: a fuso, a indiferenciao como forma de escapar do desamparo,
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uma vez que o pai no entrou para fornecer a sustentabilidade necessria. Tal
movimento ambguo de reconhecimento e ruptura criou a sensao avassaladora de
vazio. A partir da, o indivduo se estabeleceu num estado limtrofe: agora, no
decorrer de sua vida, vai jogar com essa simultaneidade do reconhecimento e de
sua impossibilidade (OLIVENSTEIN, 1985, p.86).
Quando falamos da ruptura que acontece no movimento do toxicmano,
estamos nos referindo de um movimento que no se d em sentido nico; tal
processo acontece no sistema me-filho, quando o papel que desempenha na
economia libidinal no funciona bem. Para haver a ruptura, vrios choques so
recebidos pela me e tambm devolvidos por ela. A reiterada devoluo de tais
choques, durante a infncia, contribui para o enfraquecimento do ego do
toxicmano. Tal ruptura se estabelece numa cintica da relao me-filho causada
por inmeros fatores que levam a criana a viver no lugar de um outro, e toda
tentativa de reivindicar um lugar prprio conotaria uma no identidade, justamente
porque o pai que deveria situ-lo num lugar prprio, no o faz, no nomeando-a
como filho, pois a criana se apresenta, para ele, como algo imposto. Por tal razo,
Olivenstein (1985) pontua que o sujeito toxicmano sempre vivencia uma sequncia
de atuaes, sob orientao do imaginrio, atravs do qual tenta reviver instantes
privilegiados de sua infncia, pois, para ele, privilgio aconteceu, mas foi quebrado e
no interdito.
Neste contexto, no h substituio do desejo da me pela metfora paterna,
e sim vazios deixados pelo espelho quebrado, os quais so remendados com a
tentativa de se fundir-se novamente ao objeto, a fim de se evitar a angstia
avassaladora. Conforme vimos, diferentemente da psicose em que a criana
permaneceu fusionada me, na toxicomania houve a quebra da relao com a
me, mas o sujeito tenta restaurar a fuso inicial promovida pelo efeito que a droga
proporciona.
Em resumo, a questo da toxicomania representa a impossibilidade de
organizar-se com o simblico, pois, o rompimento da ideia inicial de completude no
foi instaurado pelo advento da metfora paterna. Para o toxicmano, a no
simbolizao da falta inaugural insuportvel, justamente porque no se deu por
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substituio (desejo da me pela metfora paterna), e sim pela quebra do espelho. A
droga entra como objeto postio responsvel por livr-lo da angstia estabelecida.
Escolhemos como referncia principal a teoria de Olivenstein por ela
fortalecer a idia de que a toxicomania pode ser observada como uma questo de
imagem, porm, outros autores aqui abordados, tratam a questo da drogadio
sobre outros vieses, trazendo contribuies a respeito do assunto, muito embora
essas contribuies no contradigam o que prope Olivenstein.
Lamb aborda a relao com a droga como uma possibilidade de se reviver a
sexualidade infantil, ou seja, com a droga, o sujeito vive o auto-erotismo. Isso quer
dizer que no concernente fantasia, a droga poder ser uma tentativa de dar conta
da perda do objeto, um tamponamento da falta, to insuportvel na existncia do
indivduo. Destarte, o consumo de drogas se inscreve num circuito pulsional; assim,
a seduo por elas fascinante pela promessa de que o sujeito no haver de se
confrontar com o desamparo (LAMB, 2003).
Para Costa, no sujeito drogadito a busca pela completude sempre
constante, o que dispensa a confrontao com o desejo, pois ele no suporta a
possibilidade de se deparar com a castrao (COSTA, 2004).
Braunstein trata a questo da droga considerando o gozo e a lei; a vida e a
cultura, o nome ou o anonimato; a dvida, o sacrifcio e a partir das preocupaes
atuais de ordem pblica podemos acrescentar tambm, o trfico. Na toxicomania, o
objeto droga que recalca a submisso ao Outro permite acesso privilegiado ao gozo,
que um modo de impugnar a exigncia do Outro e de renunciar ao gozo: no h
dvida simblica. Da o xito da droga e seu custo nas palavras de Braunstein:
[...] a droga o par que sucede ao divrcio com a ordem flica, com a admisso da falta. E promessa de paraso onde o Outro substitudo por um objeto sem desejos nem caprichos, cujo nico problema o de procur-lo no mercado e que no atraioa. O drogado no quer pagar a sua dvida com o pai, como Outro que exige renunciar ao gozo para entrar no comrcio porque (para ele) essa dvida impagvel. Mas, h o Outro que impe que o sujeito se explique e responda pela vida que se lhe deu no simblico, quando lhe foi atribudo um nome prprio (BRAUNSTEIN,1990, p.14).
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Importa ressaltar que, apesar da droga j ocupar um espao no mbito social,
desde sculos anteriores, ela encontra lugar relevante nos tempos atuais. Como
vimos em Olivenstein, um pai que exerce sua funo de modo insuficiente exerce
grande influncia na estruturao de uma toxicomania, razo pela qual, na
atualidade, em que a funo paterna se apresenta em constante declnio, tm-se
aberto vias de acesso s mais diversas formas de patologias, e a drogadio uma
dessas que vm ganhando foras e se estabelecendo, muito rapidamente, em nossa
sociedade.
1.3 O SUJEITO TOXICMANO NA ATUALIDADE
Contrariamente ao uso tradicional de drogas, com carter ritualstico e
ideolgico, seu consumo em excesso nas sociedades ocidentais atuais reflete
importantes mudanas sociais e econmicas nos ltimos sculos. Segundo Bauman,
o consumismo atual no mais diz respeito satisfao de necessidades, e sim a
motivos autogerados, que no precisam de justificativa ou causa, pois se trata de um
desejo que toma a si prprio como objeto, razo pela qual est fadado a permanecer
insacivel (BAUMAN, 2000).
O homem contemporneo se caracteriza pela individualidade, pela auto-
referncia, fruto da sociedade que preza a busca pelo prazer acima de qualquer
questo. Hoje, no se admite frustrao. A felicidade almejada como um estado
permanente; a mdia, o mercado e a cincia esto prontos para criar e ofertar
objetos que dem aos sujeitos a iluso de que suas fragilidades sero
compensadas. Os objetos fazem semblante demanda narcsica de completude.
A droga um desses objetos que servem para apaziguar momentaneamente
a angstia e promover estados de felicidade. Se a caracterstica da sociedade atual
privilegiar a completude, o poder, a fama, o sucesso, a droga tanto pode
representar um caminho para se atingir o sucesso e a fama (temos exemplos de
artistas e de atletas), quanto pode ser o meio para anestesiar as frustraes
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decorrentes de fragilidades e incompetncias, alienando o sujeito da realidade que
se apresenta como insuportvel.
Nos anos 1960, com o surgimento do movimento hippie, o uso de drogas
representava a busca contestatria de determinado grupo por um ideal social e dizia
respeito ao consumo com sinnimo de liberdade; o LSD, por exemplo, associava-se
ao jargo paz e amor e a Cannabis contemplao.
Hoje, outras substncias que ocupam o cenrio tm maior capacidade
destrutiva e seu significado se relaciona a um gozo autstico, sem vnculo com o lao
social. Ademais, elas estimulam a produo de elevados ndices de energia, de
auto-estima e auto-referncia no mais associadas busca de iluses e
idealizaes; no propem um mundo alternativo com novas maneiras de pensar.
O uso abusivo de drogas prprio daqueles que vivem em estado de
desamparo, de vazio existencial, gerando um aprisionamento do sujeito ao objeto,
pois s este capaz de apaziguar tal angstia. O drogadito atual um homem s,
sem esperanas e sem ideais, errante, com dificuldade de criar laos com os outros.
Isto porque, o lao original com o pai serve de modelo paradigmtico para os laos
futuros. Ao se dar de modo frgil, cria uma espcie de vulnerabilidade e
inconsistncia dos laos e das identificaes.
A drogadio, ento, torna-se uma epidemia, pois a cultura narcsica,
hedonista, cujo valor maior no est pautado na tradio transmitida de pai para
filho, mas na valia do capital, dos objetos, alimenta sujeitos desbussolados que se
agarram a objetos como fetiches como resoluo para as suas dores.
A verdade do sujeito e de seu objeto de gozo nos sujeitos do capitalismo
avanado a do atravessamento da lei do mercado na lei do desejo. A prpria
conjuntura social, portanto, desvaloriza o lugar do pai como operador da lei que
interdita o desejo. iek caracteriza nossa sociedade como estruturada em uma
montagem perversa, quando escreve que:
Significa que, uma montagem perversa, na qual os lugares de saber e instrumento se repartem, o gozo perseguido o gozo da montagem; o que representa o Outro a prpria montagem. Fazer o Outro gozar a mesma coisa que fazer a montagem funcionar. O gozo que a se obtm, ou seja, de ser instrumento do saber, que
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assegura um domnio do gozo do Outro, significa recompensa
exorbitante (IZEK, 1996, p.82).
Segundo Lacan, o discurso capitalista est condenado morte, pois no
promove articulao entre os termos, e sim colagem do sujeito ao objeto
caracterstica essencial da toxicomania. Logo, a toxicomania se insere na lgica do
capitalismo, do consumo; ao mesmo tempo, este alimentado por ela. A
organizao subjetiva dos drogaditos, no nosso entendimento e na tica de
Olivenstein, encontra apoio no discurso que carece de simblico e de funo flica
(LACAN, 1972).
A introduo da funo paterna como possibilitadora da insero do sujeito na
cultura e como responsvel pelo advento do simblico se inscreve, de modo
ineficaz, instalando-se a dificuldade de estabelecer contato com a simbolizao.
Assim, o posicionamento de tal indivduo diante do discurso atual torna-se de total
colagem e submisso.
Conforme comenta Siqueira, a falta de identificao com um lder torna os
modelos de identificao atuais extremamente fragilizados, gerando indivduos
inconsistentes e com pouca possibilidade de dar direcionamento a prpria angstia.
Por tal razo, o imperativo superegoico de gozo invade-os e gera exigncias de
fruio patolgicas. Neste sentido, tanto a toxicomania quanto as alteraes e
marcaes corporais que colocam o corpo em estado limite aparecem para atender
a esse imperativo (SIQUEIRA, 2009).
Observa-se, no toxicmano, o mpeto de experimentar para saber, o que
nos comprova a relao conflituosa que o sujeito drogadito estabelece com a
palavra. A palavra o assassinato da coisa, diz Lacan, a capacidade de
simbolizao. A castrao falha e a consequnte relao de dependncia
desenvolvida pelo efeito dos txicos, portanto, do testemunho da insuficincia da
palavra e da instaurao do simblico. Assim, o sintoma toxicomanaco instala-se
como defesa diante da no simbolizao defesa necessria para livrar o sujeito da
angstia avassaladora causada pela falta de simbolizao, pois, sem a possibilidade
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de simbolizar, no h tambm possibilidade de lidar com o adiamento da satisfao.
A droga, ento, entra para atender a esse desejo de forma imediata.
A linguagem, recurso para a constituio da identidade, evitada pelos
toxicmanos, pois falar significa comprometer-se com o que se diz, posicionar-se, e
isso eles no conseguem. Eis a razo pela qual a clnica com toxicmanos sempre
to difcil e desafiadora, pois os drogaditos no sabem falar de si, tampouco se
comprometem com o que falam.
Ser toxicmano torna-se, para alguns, marca de distino e trao de
identidade. Encontramos, por vezes, sujeitos identificados com essa marca
personagens que agem com e pela droga, produzindo a aparncia de ser pela via do
objeto, querendo provar, enfim, a sua existncia. Vejamos a esse respeito a
transcrio do relato de um drogadito:
Quando tenho fissura fico louco, parece que o caminho at a boca de fumo infinito, sinto muita angstia, mas quando estou com a droga em mos e tento me picar, j muda o meu humor. Quando procuro a minha veia e no acho logo, fico com muita raiva, mas quando encontro, pronto. Ali eu me encontrei, e fico naquele estado de nirvana, pronto, ali eu volto a ser eu (Relato de um drogadito).
Alm disso, o sujeito pode se apresentar de acordo com aquilo que resume
sua identidade: em algumas situaes, a existncia do indivduo est restrita droga
e aos problemas que o cercam. Tambm, nomear-se toxicmano o leva a se eximir
da possibilidade de estabelecer qualquer relao entre o seu discurso e o seu
desejo.
Santiago, por sua vez, traz importante contribuio, ao se referir ao
significante txico, dizendo que:
Para a psicanlise, esse termo tem um valor identificatrio. Com efeito, esse significante pode tornar-se, para certos sujeitos, objeto de uma escolha. Ser toxicmano consiste ento num recurso diante do impasse de uma neurose ou mesmo de uma psicose. Esse
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aspecto identificatrio manifesta-se freqentemente mediante o enunciado: sou toxicmano (SANTIAGO, 2001, p. 185).
Diante da impossibilidade de introduo da metfora paterna o que gera
esvanecimento dos referenciais identificatrios consistentes a identidade perde
solidez e os indivduos se tornam cada vez mais fragmentados. A identificao aos
objetos de mercado produz apenas consumidores totalmente submissos e invadidos
pelo gozo. Dessa forma, o que no passvel de ser simbolizado ganha forma ao se
estabelecer no real do corpo.
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CAPITULO 2
CORPO, MARCAS CORPORAIS E IDENTIDADE
Tratamos, no captulo anterior, de teorizar um pouco sobre as questes da
toxicomania, abordando a constituio dos sujeitos e a forma como essa patologia
se apresenta na contemporaneidade. No segundo captulo, seguindo a proposta
desta pesquisa, que tratar das marcaes corporais no grupo de toxicmanos,
refletiremos sobre as questes do corpo e das marcas corporais, e mais
especificamente sobre a questo do uso do corpo pelo toxicmano. Para isso,
recorreremos inicialmente ao modo como os autores contemporneos e cientistas
sociais esto observando as questes dos usos do corpo nos tempos atuais.
Posteriormente, iremos entender como se organiza a constituio corporal atravs
dos pressupostos tericos de Freud e Lacan. Num terceiro momento, refletiremos
sobre o modo com que a identidade dos sujeitos tem sido constituda na
contemporaneidade. E, por ltimo, procuraremos perceber a relao dos sujeitos
toxicmanos com o prprio corpo.
O corpo sempre foi objeto de ateno e preocupao do homem. Os egpcios
preservavam os corpos e as imagens de quem consideravam importantes, mesmo
aps a morte, por acreditar que assim permaneceriam vivos. As tcnicas de
embalsamento e mumificao desenvolvidas por esse povo os levavam a crer que
dessa forma facilitariam o caminho de retorno da alma.
Para os gregos, o corpo tinha uma grande importncia. Eles o cuidavam para
torn-lo belo, trabalhavam simultaneamente ao corpo a inteligncia como uma
virtude, e juntos razo e estrutura fsica deveriam alcanar a perfeio. J os
romanos, tomaram o corpo como instrumento de prazer e guerra. Assim como no
aspecto cultural, h tambm uma variao do uso e sentido do corpo no que se
refere s pocas. Na Idade Mdia, por exemplo, os prazeres sentidos atravs do
corpo e sua manipulao tornam-se sinnimo de pecado. As prticas corporais se
restringiam aos nobres que precisavam exercit-lo para defender seu povo nas
guerras. No medievo houve uma espcie de sacralizao do corpo.
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Mais adiante, com o fim da Idade Mdia, toda essa concepo de corpo muda
novamente, e junto com ela, novos valores se revelam: o corpo dessacralizado e
no mais visto como algo proibido de ser manipulado. Cavalcanti comenta as ideias
de Le Breton e assevera que com a dessacralizao do corpo e a sua manipulao
saindo do mbito da moralidade, passam a ser realizados movimentos em que o
corpo vai se tornando objeto de estudo para vrias cincias, principalmente a
Medicina, sendo ento passvel de estudos e intervenes (CAVALCANTI, 2005).
Do mesmo modo que o corpo foi manipulado de diversas formas nas
diferentes pocas e culturas, as marcas corporais tambm foram usadas de vrias
maneiras e finalidades. Os indgenas, os indianos, os egpcios, fizeram uso desse
recurso como meio de definir classes, de concretizar rituais, e tambm como
adornos, com repercusses relevantes na histria da moda. Ana Costa cita um
trabalho de Denis Bruna, de 2001, no qual o uso de marcaes corporais
percebido como um recurso utilizado desde tempos muito remotos. Costa ressalta
que na frica negra, os adornos, marcas, escarificaes e mutilaes fornecem ao
indivduo identidade e pertencimento (COSTA, 2005).
notrio que o uso de marcas corporais est presente em diferentes culturas
e pocas, porm sempre associado a rituais e costumes, logo inseridos em um
contexto de organizao social. Na atualidade, chama a ateno a forma com que
alguns indivduos se relacionam com tais marcas, pois elas esto destitudas de
carter ritualstico e desassociadas de qualquer herana cultural que fornea ao
sujeito o pertencimento a determinado grupo tnico. evidente que entre os jovens
certas marcas podem representar traos de identificao e de pertencimento a um
grupo especfico.
Na poca atual, caracterizada pela decadncia de referncias slidas e pelas
identificaes fragilizadas, os indivduos buscam formas substitutivas para instaurar
as marcas que deveriam ter sido introduzidas pela via do simblico, da palavra,
como visto no captulo anterior, as quais garantiriam uma identidade, um
pertencimento. Na ausncia desses traos simblicos, os sujeitos marcam o corpo
no concreto, como tentativa de produzir marcas que lhes garantam uma identidade e
um lugar no mundo.
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2.1 CORPOS E USOS
Alguns autores como Le Breton, Lipovetsky, Bauman, falam sobre as formas
de uso do corpo nos tempos atuais, muitas vezes utilizado como vitrine, como
rascunho, e atendendo, assim, s diversas modalidades de desejos e subjetividades
contemporneas.
Segundo Le Breton, da mesma maneira que no perodo neoltico, o homem
atual possui recursos fsicos suficientes para a realizao de produes cotidianas,
conquistas de subsistncia, porm, diferentes daqueles que fazem do corpo a
ferramenta para sentir o mundo e alterar a natureza, nos homens atuais tais
recursos so subutilizados e esto a servio da conquista de prazer. Logo, com
carter mais narcsico do que interativo (LE BRETON, 2009).
Paradoxalmente, o mesmo autor afirma categoricamente que o corpo est
em desuso, que a fora humana, a musculatura, a mobilidade e a resistncia foram
substitudas pelas mquinas, pelos veculos. O consumo fsico foi substitudo pelo
consumo nervoso, pelo estresse, e os recursos musculares s so utilizados nas
academias de ginstica, uma restrio sensorial que passa a atuar de maneira
significativa na existncia dos indivduos.
Ele se d conta de que o desabono do corpo vivido pelo discurso muitas
vezes radical de alguns cientistas e adeptos da ciberntica tem sido tambm
vivenciado por milhes de pessoas que se distanciaram de uma relao direta com o
corpo, e hoje passam a us-lo apenas parcialmente, O sonho de uma humanidade
livre de um corpo lgica nesse contexto em que o veculo rei e o ambiente
excessivamente tecnicizado, no qual o corpo no mais o centro irradiante da
existncia, mas um elemento negligencivel de presena (LE BRETON, 2009,
p.22).
Neste sentido, o corpo, na atualidade, funciona como um acessrio, um
artefato de presena. Assim, ao submet-lo a um design, o sujeito o faz parecer
como representante de si, o que incentiva o desejo de se reapropriar de sua
existncia, criando uma identidade mais favorvel, apesar de provisria. Ele, ento,
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passa a ser submetido a manipulaes, como marcaes, cirurgias estticas,
piercings, perfuraes. A modificao das bases corporais na atualidade serve para
atender a uma lgica de ideal que hoje sai do plano do desejo e se imprime como a
nica possibilidade de se acolher as prprias aspiraes. Nestas diversas
apresentaes, o corpo deixa de responder unidade fenomenolgica do homem
(Idem. p.22), tornando-se um objeto para representar uma presena, e no uma
identidade.
Le Breton observa ainda que na modernidade o dualismo corpo X alma se
atualiza, tornando-se um dualismo do corpo com o prprio sujeito. O autor pontua
que o corpo deixa de ser um representante da identidade de si para se tornar um
kit, uma soma de partes destacveis disposio do indivduo (idem. p.28). Trata-
se de um corpo malevel, objetificado, superfcie de projeo. As alteraes
corporais testemunham a recusa radical s condies de existncia de uma
determinada juventude.
A cultura Punk, por exemplo, se insere na lgica do consumo; as marcas
corporais so abduzidas pela moda, diversificam-se em uma busca de singularidade.
A tatuagem um sinal visvel na prpria pele (Ibidem, 2009, p.34), visvel e
definitivo, diferente da maquiagem que marca um trao de feminilidade e seu uso
est inserido num contexto social especfico. A tatuagem faz parte do espetculo
contemporneo, estando neste momento desassociada da cultura.
Dentro dessa perspectiva, podemos observar que a relao que os sujeitos
atuais estabelecem com os seus corpos segue a lgica da moda. A moda, segundo
Lipovetsky possibilita a desqualificao do passado e a valorizao do novo, a
afirmao do individual sobre o coletivo. Ela impe a normatividade no mais pela
disciplina, e sim pela escolha, abrindo espao para a subjetivao do gosto. Assim,
amplia-se a autonomia subjetiva, multiplicam-se as diferenas individuais e se
esvaziam os princpios sociais reguladores. O autor afirma que a ideologia
individualista e hedonista permeia o modelo da sociedade atual, no havendo mais
modelos determinados pelos grupos sociais, e sim normas escolhidas pelos
indivduos.
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Pode-se observar que a hipermodernidade 2 caracterizada por paradoxos,
tornando os referenciais individuais cada vez mais relativos, pois apesar do esforo
por individuao ser recorrente, o sentido da vida est esvaziado, talvez pela falta de
transcendncia. Vejamos o que ele diz:
Hoje, quanto mais se avanam as condutas responsveis, mais se aumenta a irresponsabilidade. Os indivduos so ao mesmo tempo mais informados, mais desestruturados, mais adultos e mais instveis, menos ideolgicos e mais tributrios das modas, mais abertos e mais influenciveis, mais crticos e mais superficiais, mais cticos e menos profundos (LIPOVETSKY, 2004, p.27).
Esses paradoxos fazem com que os sujeitos se coloquem cada vez com
menos possibilidade de se estabelecer com um lugar e um sentido, embarcando
sempre mais num processo interminvel de dessacralizao e dessubstanciao de
sentido, o qual, segundo o autor, define o reino consumado da moda. Assim
morrem os deuses: no da desmoralizao niilista do Ocidente, nem da angstia dos
vazios de valores, mas nos solavancos do sentido (LIPOVETSKY, 2004, p.30). Por
esse motivo, os indivduos desapossados de sentidos transcendentes possuem
opinies cada vez menos firmes e mais volveis.
J Bauman trata o corpo na atualidade como o corpo do consumidor, e no
como corpo do produtor. O autor afirma que a vida nos tempos atuais se organiza
em torno da lgica do consumo, bastando-se a si mesma, sem regras, guiada pela
seduo e pelos desejos, que so, cada vez mais, impermanentes. A sociedade
atual baseia-se numa ideia de comparao universal, e o cu o nico limite
(BAUMAN, 2001, p.90).
Bauman se utiliza da ideia de sade e aptido para definir o abismo existente
entre a sociedade dos produtores e a sociedade dos consumidores (Idem, 2001,
p.91). A priori, ele afirma que nos tempos atuais estes dois conceitos so tratados
como sinnimos, o que no adequado, pois a sade segue a lgica do conceito
2 Trata-se de um termo cunhado por Lipovetsky quando se refere aos tempos atuais em seu livro Tempos hipermodernos. Cf. LIPOVETSKY, Gilles. Tempos hipermodernos. Ed. Barcelona, So Paulo, 2004.
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normativo, existente na sociedade dos produtores. Ela demarca limites, se refere a
um estado mensurvel que possibilita ao homem exercer funes profissionais e
sociais, necessrias para a subsistncia. J a aptido denota um estado de pouca
solidez, em que no h a possibilidade de se circunscrever com preciso, pois se
trata de um estado subjetivo, de uma experincia que precisa ser sentida e vivida, e
no um estado que possa ser percebido pelo outro, ser verbalizado ou comunicado.
Estar apto significa estar pronto para viver sensaes inesperadas e impossveis de
ser descritas de antemo. Enquanto a sade se refere ao que pode ser vivido
rotineiramente, a aptido diz respeito ao inespervel, e por isso enquanto a sade
aceita um meio-termo, a aptido est sempre do lado do mais, do excesso.
Podemos perceber, ento, que os sujeitos atuais vivem numa busca de
aptido e no de sade, numa busca pelo excesso, pelo que est alm do
necessrio. Nos tempos atuais, o limite no se impe mais para os sujeitos, baseado
nas regras sociais, vindo de fora, mas determinado pelo prprio sujeito. cada um
em sua experincia subjetiva que define a medida, de maneira desarticulada do
contexto social. Nesse contexto, a sade se coloca a servio da aptido.
2.2 CORPO E LIBIDO
Aps a apresentao dos modos de uso e sentidos carregados pelo corpo
nas diferentes pocas e principalmente na atualidade, partiremos agora para uma
compreenso de corpo a partir da teoria psicanaltica. Estas consideraes sero de
grande importncia para abalizar este estudo.
Durante algum tempo, o fato da psicanlise fazer da linguagem um substrato
importante levou alguns de seus crticos a insistir na ideia de que ela no considera
as questes corporais. Entretanto, foi compreendendo o que o corpo da histrica
expressava, que Freud pde inaugurar uma nova teoria da histeria.
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O corpo da histrica, ao manifestar uma srie de sintomas inexplicveis para
a Medicina, indicara que a sintomatologia corporal pode ser provocada por um
adoecimento psquico, que neste caso seria mantido pela fora do recalcamento.
Com isso, Freud indica que o corpo no pode ser confundido com um organismo
biolgico, mas como um importante integrante na trama das relaes entre o
psquico e o somtico.
Para Freud, o corpo todo libidinal, produtor e produto da libido, esta que
se organiza em forma de pulso, como tratado no captulo anterior. Esta pulso se
apresenta inicialmente de maneira catica, desorganizada, impossibilitando a ideia
de uma unidade corporal, ou de uma indiferenciao com o outro. Para Freud, o alvo
da pulso a satisfao, por mais que esta v de encontro ao princpio do prazer.
Em Mais alm do princpio do prazer, Freud faz referncia Pulso de Morte,
(tnatos), foras relacionadas ao desligamento da vida, e Pulso de Vida (Eros).
Estas foras no existem em estado puro, por estarem sempre interligadas.
Tais pulses so reguladas pela relao estabelecida entre o sujeito e o
prprio corpo, a qual determinada inicialmente pelo autoerotismo, que configura
um momento arcaico da libido e que ser posteriormente passado ao narcisismo,
inicialmente designado pelo investimento libidinal que o sujeito faz em si (narcisismo
primrio), e posteriormente o investimento que ele faz nos objetos externos
(narcisismo secundrio). Fernandes relembra que para Freud, quem confere a
identidade ao corpo o narcisismo, ele quem possibilita ao corpo colocar-se como
corpo prprio (FERNANDES, 2003).
Na viso lacaniana, o sujeito se constitui psiquicamente atravs do desejo do
Outro. Por isso, desde a concepo, o sujeito ocupa um lugar que j est marcado.
Inicialmente, ele complementar a me em seu desejo narcsico. Dessa forma, a
criana vive uma dependncia total. Capturada pelo olhar materno, ela se
estabelece numa posio de alienao. Como visto no captulo anterior, somente a
me pode possibilitar que o corpo do beb esteja fora do seu, e isso s poder
acontecer quando ela assumir uma posio de alteridade, distinguindo-se do filho.
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Contudo, a inscrio da figura paterna na me a possibilidade de garantir que ela
represente seu filho como um outro ser.
Cukiert e Priszkulnik comentando Lacan, afirmam que atravs do outro que
a criana aprende a se reconhecer. Isto implica pensar que seu desejo, tal como seu
corpo, no inicialmente vivido como seu, mas projetado e alienado no outro. A
criana inicialmente o desejo da me. Assim, o grande impasse da relao dual
imaginria que no h o reconhecimento de dois desejos, dois sujeitos, mas de um
desejo alienado no desejo do outro (CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002).
Ainda segundo as autoras, a sada dessa alienao a entrada do Simblico,
condio para advir um sujeito de desejo. De fato, o Imaginrio como registro da
identificao especular interpela e surpreende o sujeito a todo o momento, evocando
uma articulao com o registro Simblico.
Para se constituir enquanto corpo-sujeito, portanto, preciso que a criana
seja objeto do olhar e tenha um lugar no campo do Outro, cujo reconhecimento, na
medida em que a nomeia, permite sua entrada no registro Simblico. Neste sentido,
atravs do outro que a criana aprende a se reconhecer.
Assim, a inscrio simblica no corpo do beb possibilitar a diferenciao
das zonas ergenas. Quando essa funo terceira est frgil, porm, o corpo
utilizado como se no tivesse dono. como se a linguagem inscrita simbolicamente
no corpo estivesse esvanecida, fazendo com que o sujeito no conte com uma lei
que defina limites para o seu prazer.
No se pode deixar de lembrar que para Lacan (1975/1986), o discurso
psicanaltico da verdade no se d s pela palavra, mas tambm pelo corpo. Corpo
esse que como simblico marcado pelo significante.
Para Lacan, O Eu o lugar do desconhecimento [...]. Sentir, viver o meu
corpo e v-lo em movimento me d a certeza de ser eu mesmo certeza que
esconde a ignorncia do que se (NASIO, 2008, p.55). As imagens que forjamos
do nosso corpo, substratos de nossa identidade, so imagens subjetivas,
deformadas, que falseiam a percepo de ns mesmos.
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Sabe-se o quanto as questes referentes inscrio do simblico nos sujeitos
atuais tm sido amplamente discutidas por vrias cincias, dentre elas, a
psicanlise. cada vez mais evidente a constatao de que a organizao social
atual vem impossibilitando uma instaurao adequada desse simblico. Com a
mutao do lao social, se esvanecem os referenciais identificatrios e os sujeitos
se constituem merc do sistema de representaes, e por esse motivo utilizam o
corpo como via para a instituio das marcas identificatrias, que esto sendo
inseridas no concreto, no real do corpo e no pela via do simblico. Desta maneira,
o corpo aparece na atualidade como apresentao e no como representao.
Ana Costa nos aponta a manipulao corporal dos tempos atuais (tatuagens,
piercings, escarificaes), como forma de produzir bordas. Borda enquanto fronteira
corporal, enquanto relao com o ambiente, com o outro, com a realidade. De certa
forma, ao longo da histria, o homem parece necessitar reconstituir, recortar,
manipular as bordas corporais. Este recorte tem a ver com a erotizao e sua
necessidade de suporte no Outro (COSTA, 2005, p.16).
O que chama a ateno nesse contexto de marcaes corporais a dupla
inscrio de fazer orifcio e de incluir corpos externos na pele. Estas condies,
segundo Ana Costa produziro um suporte, uma reconstituio da imagem corporal.
A tatuagem confere ao corpo uma erotizao que se instaura como algo
inapreensvel, como o trao primeiro que funda a desnaturao do sujeito (Idem.
p.19). Desse modo, a tatuagem singulariza e fornece ao sujeito o trao que vai
capturar o olhar do outro, olhar que pode lhe conferir uma identidade.
Tais inscries corporais podem se colocar como meio de atualizao das
impresses arcaicas das marcaes corporais, impresses estas que dizem respeito
tanto ao que se refere a um registro corporal de um smbolo, quanto experincia
de prazer e desprazer, colocada por Freud como de grande importncia para a
assimilao de uma representao.
Lacan refere uma ligao entre o pulsional e a tatuagem. Ele coloca a
observao de como o corpo humano marcado de traos que carecem de uma
leitura, de um endereo. Com a sinalizao na pele, marca-se tambm a relao do
olhar e da solicitao de uma decifrao. Deste modo, fica claro que, com a
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tatuagem, se busca um olhar, um lugar no campo do
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