marcia nunes - o ritmo de otelo
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O RITMO DE OTELO EM DUAS TRADUES PARA O
PORTUGUS DO BRASIL
Mrcia Paredes Nunes
Ritmo o que nos impressiona quer a vista, quer o ouvido,pela sua repetio freqente com intervalos regulares.SAID ALI
Rhythm must have meaning.EZRA POUND
Introduo: traduzir a forma de Shakespeare
A traduo de um texto para teatro sempre levanta questes, devido prpria
natureza dual do texto dramtico: ao mesmo tempo em que pode ser lido, tambm pode ser
produzido para fins de encenao teatral (Merino, 1994: 139). Em Shakespeare, o problema
torna-se mais complexo ainda por diversos fatores. Em primeiro lugar, h o fato de
Shakespeare ser poeta e dramaturgo ao mesmo tempo, o que pode levar alguns tradutores a
privilegiarem o poeta (nfase no aspecto lrico das falas) ou o dramaturgo (nfase na
teatralidade e suas conseqncias: maior entendimento do pblico, facilidade de
declamao dos atores, etc).
Outro ponto a considerar a importncia dada ao sentido ou forma, visto que
Shakespeare escrevia em verso e prosa. Em outras palavras, podemos dizer que a prpria
escolha por traduzir o verso em prosa j privilegia o sentido, na medida em que o tradutor
opta desde o incio por no tentar acompanhar a forma do original.
A opo por seguir a forma remete, por sua vez, a outras questes, entre as quais os
diferentes contextos de produo e de recepo das peas, escritas segundo as convenes
do teatro elisabetano. Ao contrrio do teatro moderno, em que encontramos apenas um tipo
de texto (verso ou prosa, em linguagem mais ou menos prxima ou distante da coloquial), o
teatro elisabetano alternava-se entre verso e prosa, segundo suas prprias convenes,
sendo a prosa reservada linguagem cotidiana, aos personagens cmicos ou aos de baixa
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Traduo em Revista 2006, p. 01-20
condio social, e o verso utilizado para os personagens elevados, conferindo-lhes
dignidade e imponncia (Harrison, 1985 [1939]: 177).
O verso geralmente utilizado era o blank verse, isto , pentmetros (versos de cinco
ps) jmbicos (ps com duas slabas, sendo a segunda acentuada) (- / | - / | - / | - / | - /), sem
rima. No incio, esse verso era muito regular e, portanto, montono. Cada verso era end-
stopped, ou seja, no continuava no prximo, constituindo uma unidade; havia uma pausa
aps o segundo p; e quase no havia substituio do p jmbico por outros tipos de p.
Na obra de Shakespeare, nota-se de modo geral uma progresso dessa regularidade a
uma maior variedade no verso, variedade esta conferida por diversos meios: uso de
enjambement, continuao de um verso no seguinte, variao na localizao da pausa e no
comprimento do verso, substituio do jmbico por outros ps, uso de uma slaba
redundante, tambm chamada extranumerria, e variao no acento das slabas fortes,
principalmente no final do verso (Halliday, 1964: 66). O que ocorre, portanto, a evoluo
de um poeta bastante preso s convenes a um poeta capaz de distinguir vrios
personagens entre si por meio de discursos que lhes so peculiares, obtidos pela escolha de
palavras, pela estrutura e pelo ritmo do verso (Harrison, 1985 [1939]: 172).
Assim, a escolha de um tradutor por acompanhar o verso e a prosa do original implica
uma srie de conseqncias para a traduo, j que o verso de Shakespeare complexo.
Com efeito, o estudioso de tradues de Shakespeare Dirk Delabastita cita entre os
technical problems de traduzir Shakespeare his flexible iambic patterns (not easily
reproducible in certain other prosodic systems), bem como the musicality of his verse
(1997: 223).
Os que optam por traduzir em verso tm de escolher primeiro qual seria o verso
correspondente ao pentmetro jmbico no portugus. Poderamos pensar que um p
jmbico do ingls corresponderia a duas slabas em portugus e, dessa forma, o decasslabo
corresponderia ao pentmetro jmbico, j que em um pentmetro h um total de cinco ps
de duas slabas, totalizando dez slabas. Mas essa suposio no leva em conta as diferenas
entre os sistemas mtricos dos dois idiomas, sobretudo o uso diferente da slaba e do acento
nos dois sistemas prosdicos. Alm disso, a lngua inglesa tende a ter palavras mais curtas
que a lngua portuguesa, portanto, j h uma tendncia a obter-se um verso mais longo na
traduo do que no original. Por isso, alguns tradutores procuram uma correspondncia
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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mtrica recorrendo a outras formas, por exemplo, optando por traduzir em versos
dodecasslabos como estratgia.
Vemos, ento, que a noo de correspondncia em traduo potica no to simples
quanto poderia parecer. Para tentar esclarecer essa questo, Britto sugere que se utilize o
conceito de correspondncia em diversos nveis de exatido, apresentando como exemplo
precisamente o pentmetro jmbico ingls (2002: 1). Esse verso, em um nvel mais forte de
correspondncia, seria o decasslabo jmbico em portugus; em um nvel mais fraco, o
dodecasslabo; e em um nvel mais fraco ainda, qualquer verso longo.
A conseqncia lgica desses nveis de correspondncia que quanto mais fraco o
nvel de correspondncia, ou seja, quanto maior o nvel de generalizao, maior a perda na
traduo. Entretanto, nem sempre se pode avaliar a perda dessa forma, visto que nem
sempre o nvel de generalizao o nico fator a ser levado em conta. preciso pesar
tambm outros fatores, como por exemplo as diferentes funes que os elementos possuem
na lngua de origem e na lngua de chegada. Como indicamos acima, o decasslabo em
portugus corresponde formalmente ao pentmetro jmbico ingls, mas suas funes em
cada lngua podem diferir.
Outro exemplo que cabe citar o fato de, como j mencionamos, o teatro de
Shakespeare seguir convenes de alternncia no uso de verso e prosa inexistentes no
portugus. Ou seja, possvel seguir formalmente a alternncia de verso e prosa, mas,
talvez, para um leitor/espectador falante de portugus essa correspondncia no cumpra a
mesma funo. Da a escolha apresentada por alguns tradutores de no seguirem o mesmo
esquema formal, preferindo a traduo em prosa, em um grau elevado de generalizao,
mas que funcionalmente se justifica.
O ritmo de Otelo: The Othello music
Passemos agora a examinar a fala It is the cause (ato V, cena II, 1-22), primeiro no
original ingls e, depois, em duas tradues, para tentar analisar como os tradutores
estabelecem essa correspondncia formal em suas tradues. Neste trabalho, vamos utilizar
como ponto de partida a caracterizao do discurso de Otelo apresentada por G. Wilson
Knight em artigo clssico sobre o ritmo da pea: The Othello music (1970 [1930]). O
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trecho foi selecionado por ser muito conhecido e por ser bastante caracterstico do discurso
do personagem Otelo.
Segundo Knight, o estilo de Otelo caracteriza-se por ser
stately, formal, slow-moving poetry, so heavily loaded with vividly realisedphysicality, [it] is the perfect vehicle for conveying to the audience the cast of mind,character and powerful emotion of this hero who is in life, as he tells us rude inspeech (1970 [1930]: 34).
importante ressaltar que Otelo sempre se expressa em verso. Os nicos trechos em
prosa ocorrem quando o General sofre um ataque epiltico e quando v o leno de
Desdmona na mo de Cssio, ou seja, quando perde totalmente o controle de si mesmo.
Vamos agora tentar analisar no trecho escolhido os recursos mtricos e poticos que
tornam a fala de Otelo lento, formal e imponente, segundo Knight. preciso esclarecer
que esta proposta de metrificao no pretende ser definitiva, podendo haver outras formas
de escandir os versos, principalmente por se tratarem de versos a serem declamados,
acompanhados de aes, durante a encenao. Alm disso, a pronncia no tempo de
Shakespeare diferia da pronncia atual do ingls, o que pode levar hoje a divises silbicas
distintas das originalmente pretendidas. Por fim, os pontos levantados no so exaustivos,
apenas buscam trazer algumas questes para analisar como a mtrica poderia ajudar na
interpretao do trecho.
A fala de Otelo It is the cause declamada no momento em que ele adentra o
quarto onde Desdmona est dormindo (ato V, cena II). Instigado por Iago, corrodo por
seu cime, Otelo pensa que Desdmona deve morrer. Trata-se de um momento de intensa
angstia, pois Otelo sabe que a morte definitiva, como se v na comparao que faz entre
a luz que carrega na mo e a luz que representaria a vida de Desdmona.
Tabela de metrificao do original ingls
verso Escanso Tipo de verso1 - / - / || - / - / || - / - \ | - / | || - \ | - / || - / Pentmetro
jmbico1 It is the cause, it is the cause, my soul:2 / - - / - - / || - / / / - | - / | -- | / || - | / / Pentmetro;
3o p pirrquio;4 p com inverso
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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trocaica;5o p espondeu
2 Let me not name it to you, you chaste stars.3 - / - / || \ - / / - / - / | - / || \ - | / / | - / Pentmetro;
3o p com inversotrocaica;4o p espondeu
3 It is the cause. Yet I'll not shed her blood,4 - / - / - / - / - / - / | - / | - / |- / | - / Pentmetro
jmbico4 Nor scar that whiter skin of hers than snow5 - / - \ - / - - - / - - / | - \ | - / | - \ | - / |- Pentmetro;
4o p pirrquio euma slaba tonaextranumerria
5 And smooth as monumen tal alabaster
6 \ - / / || \ - - / - / \ - | / / | || \ - | - / | - / Pentmetro;2o p espondeu;3o p com inversotrocaica
6 Yet she must die, else she'll betray more men.
7 \ / - / || - / || \ / - / \ / | - / | || - / | || \ / | - / Pentmetrojmbico
7 Put out the light, and then put out the light:
8 - / / - || \ / - / - \ - / | / - | || \ / | - / | - \ Pentmetro;2o p com inversotrocaica
8 If I quench thee, thou flaming minister,9 - / - / - \ - / - / - / | - / | - \ | - / | - / Pentmetro
jmbico9 I can again thy former light restore,10 - \ - / - || - / \ / - / - \ | - / - | || - / | \ / | - / Pentmetro;
2o p anfbraco10 Should I repent me; but once put out thy light,11 - / - / - - - / - / - - / | - / | - - | - / | - / | - Pentmetro;
3o p pirrquio;ltima slaba fracaextranumerria
11 Thou cunning'st pattern of excelling nature,12 - / \ / - - - / - / - / | \ / | - - | - / | - / Pentmetro;
3o p pirrquio;12 I know not where is that Promethean heat13 - \ - / - / || - \ - / - / - \ | - / | - / | || - \ | - / | - / Hexmetro
jmbico13 That can thy light relume. When I have pluck'd thy rose,14 - / - / - / - / - / - / | - / | - / | - / | - / Pentmetro
jmbico14 I cannot give it vital growth again;15 - / - / - || - / - - - / - / | - / - || - / | - - | - / Pentmetro;
2o p anfbraco;
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4o p pirrquio15 It needs must wither; I'll smell it on the tree.
[He kisses her]16 / / - / || - - / - - / / / | - / | || - - | / - | - / Pentmetro;
1o p espondeu;3o p pirrquio;4o p com inversotrocaica;enjambement
16 O balmy breath, that dost almost persuade17 / - - / - / || / / / / / - | - / | - / | || / / | // Pentmetro;
1o p com inversotrocaica;4o p espondeu;5o p espondeu
17 Justice to break her sword! One more, one more;18 - / - \ - / || - / - / - - / | - \ | - / || - / | - / | - Pentmetro
jmbico;uma slaba tonaextranumerria
18 Be thus when thou art dead, and I will kill thee19 - / - / - || / / || - / - / - / | - / - | || / / | - / | - / Pentmetro;
2 p anfbraco;3 p espondeu
19 And love thee after. One more, and this the last.
20 - / - / - / - || - / / - / | - / | - / | - || - | / / Pentmetro;4o p pirrquio;5o p espondeu
20 So sweet was ne'er so fatal. I must weep.21 - / - / - / || / / - / - - - / | - / | - / || / / | - / | - - Pentmetro;
4o p espondeu;duas slabas tonasextranumerrias
21 But they are cruel tears: this sorrows heaven ly 22 - / - - - / || - / - / | - - | - / | - / Quatro ps;
2o p pirrquio22 It strikes where it doth love. She wakes.
Conforme observamos, o espectador do teatro elisabetano esperava encontrar na
poesia das peas o blank verse (pentmetro jmbico em que o verso em si uma unidade).
Esse tipo de verso constitua o contrato mtrico, ou seja, a mtrica que serve de base para
o poema, geralmente apresentada pelo poeta logo nos primeiros versos (Fussell, 1979: 15).
Entretanto, se verificarmos esse trecho, o pentmetro jmbico ocorre em menos da metade
da fala. A maioria dos versos apresenta um ou at mais de um tipo de variao, havendo,
inclusive, a presena de versos com nmero diferente de ps. Contabilizando-se, h um
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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total de cinco pentmetros jmbicos (versos 1, 4, 7, 9, 14); 15 pentmetros com variaes
(versos 2, 3, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21); e dois versos que no so
pentmetros (verso 13 com 6 ps, e verso 22 com quatro ps).
Esses dados por si ss nos levam logo concluso de que se trata do Shakespeare
maduro, j sem seguir de perto as convenes mtricas, apresentando oscilaes nos
versos. Com efeito, ao analisarmos cada verso, verificamos a existncia de todas as
caractersticas dessa fase (Halliday, 1964: 66):
a) slabas tonas extranumerrias (versos 5, 11, 18 e 21);
b) substituio de p jmbico por outro p binrio: pirrquio (versos 2, 5, 11, 12, 15,
16, 20, 22); troqueu (versos 2, 3, 6, 8, 16, 17); e espondeu (versos 2, 3, 6, 16, 17, 19, 20,
21);
c) substituio de p jmbico por um p ternrio (versos 10, 15, 19);
d) enjambement, que por si s j uma variao, pois, segundo as convenes, os
versos deveriam ser end-stopped (versos 16 e 17);
e) variao no comprimento dos versos (verso 13 com seis ps e verso 22 com quatro
ps);
f) pausas com variao em sua localizao (versos 1, 2, 7, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 22),
quando o esperado pausa aps o segundo p (versos 3, 6, 8, 10, 15, 16);
g) variao na localizao das slabas fortes, com alguns espondeus no final do verso
(versos 2, 17, 20);
Agora, preciso verificar se essa diversidade no ritmo apresenta relao com o estilo
prprio de Otelo e com o momento especfico da pea em que se encontra o trecho: a
indeciso de Otelo diante de seu ato. Como j citado, Knight considera que o estilo de
Otelo caracteriza-se por ser lento, formal e imponente. No trecho em questo, podemos
verificar esses traos devido a:
1) Cesura ou pausa ( || ):
trata-se de um recurso tpico para desacelerar o ritmo. Nota-se que quase todos os
versos do trecho tm uma ou mais cesuras, em posies variadas. A cesura pode ainda
conferir um aspecto formal ao verso: caesura can be used [] as a device for emphasizing
the formality of the poetic construction and for insisting on its distance from colloquial
utterance (Fussell, 1979: 25).
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2) Repeties:
o trecho contm a repetio de expresses inteiras, como por exemplo It is the
cause, trs vezes, e one more tambm trs vezes. H tambm repeties com pequenas
variaes como em Put out the light, and then put out the light, que reaparece mais tarde
como but once put out thy light, e posteriormente a palavra light ressurge em outro
contexto: That can thy light relume. A reiterao tambm pode ocorrer de modo mais
sutil, como na presena do prefixo latino re- em trs palavras diferentes: repent,
restore, relume. Em termos de imagens, a comparao entre a luz e a vida aparece aqui
sob trs formas distintas: as estrelas (luz no cu), a vela (luz que Otelo carrega) e o fogo de
Prometeu (luz da vida), permeando o trecho como um todo. importante tambm a
repetio de conjunes adversativas: yet e but, que podem ser interpretadas como um
reflexo da indeciso de Othello. Por fim, h uma discreta repetio de estrutura sinttica
com o uso de vocativos (my soul, you chaste stars, thou flaming minister, Thou
cunningst pattern of excelling nature, O balmy breath).
3) Substituio do jambo por espondeu, principalmente nas slabas finais:
a prpria natureza do blank verse faz com que os versos terminem em uma slaba
acentuada e que cada verso constitua uma unidade, o que j propicia um ritmo mais lento
na medida em que no contempla enjambement, um fator de acelerao.
Entretanto, nota-se ainda neste trecho uma freqncia de versos em que h
substituio do jambo (- /) por um espondeu (//) no incio ou meio do verso (versos 3, 6, 16,
19, 21), e no final do verso (verso 2, verso 17, com os dois ltimos ps espondaicos, e verso
20). Ocorre, ento, o que Fussell denomina spondaic substitution: a sucession of stressed
syllables without the expected intervening unstressed syllables can reinforce effects of
slowness, weight or difficulty (1979: 35). Nesse caso, os espondeus, alm de
caracterizarem o discurso majestoso de Otelo, enfatizariam a dificuldade da prpria
indeciso do momento.
4) Substituio do jambo por pirrquio (versos 2, 5, 11, 12, 15, 16, 20, 22):
segundo Fussell, a sucession of unstressed syllables without the expected
intervening stressed syllables can reinforce effects of rapidity, lightness or ease (1979: 35).
Essa caracterstica pode ser vista, por exemplo, no verso 15, em que o pirrquio acelera a
ao de beijar que o verso descreve metaforicamente. Entretanto, a leveza do ritmo pode
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
ajudar a reforar mais ainda certas palavras, ao acelerar o ritmo e depois fre-lo, como
ocorre no verso 20, em que o pirrquio seguido por uma substituio espondaica pe em
relevo as palavras must weep, destacando o sofrimento de Otelo, e como ocorre no verso
22, em que trs slabas fracas antes da tnica destacam a palavra love.
5) Ausncia de enjambement (uma ocorrncia):
nesse aspecto, Shakespeare segue as convenes do blank verse, com versos end-
stopped. Entretanto, o nico enjambement encontrado, versos 16-17, parece exercer a
mesma funo dos pirrquios: acelerar para dar destaque dificuldade de deciso de Otelo.
Nesses dois versos ocorrem algumas inverses trocaicas e um pirrquio, uma cesura e, logo
aps, dois espondeus, os quais ilustram os beijos de Otelo. Ou seja, o trecho apresenta
ritmo bastante irregular, refletindo angstia e indeciso.
Repetimos que destacamos apenas alguns aspectos, tentando ilustrar como variaes
mtricas podem apresentar relao com o significado.
Passemos agora a analisar as duas tradues.
Anlise das tradues
O poeta Onestaldo de Pennafort (1902-1987) realizou tradues do simbolista francs
Verlaine e de Shakespeare, de quem traduziu Romeu e Julieta (1938) e Otelo (1956),
trabalhos que se tornaram reconhecidos na rea de literatura, teatro e tambm de estudos da
traduo (Martins, 1999: 170-2). Sua verso de Otelo apresentada como a primeira
traduo de Othello realizada, ou pelo menos publicada no Brasil, se no nos enganamos, a
primeira na lngua portuguesa vazada em verso e prosa como o original ingls" (Antonio
Monteiro Guimares, apud Shakespeare, 1995: XXXVII, nota 2).
Barbara Heliodora, tradutora, crtica teatral e pesquisadora, considerada uma das
maiores autoridades brasileiras em Shakespeare, tendo j traduzido grande parte do cnone
shakespeariano (Martins, 1999: 172-6).
Os tradutores escolhidos foram selecionados por serem respectivamente a primeira e
a ltima das tradues em verso e prosa publicadas no Brasil, o que poderia talvez refletir
diferentes concepes de traduo, devido ao lapso de tempo decorrido entre as
publicaes, principalmente por se tratar de traduo para teatro, que costuma necessitar de
atualizaes para adequar-se a possveis encenaes.
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Mrcia Paredes Nunes
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
Mais especificamente, a escolha de Onestaldo de Pennafort, embora seu Otelo esteja
esgotado, tendo, pois, circulao restrita, deve-se ao extenso e diverso aparato crtico que
acompanha a edio; a de Barbara Heliodora deve-se grande veiculao de sua traduo,
no somente pelo prestgio da tradutora como crtica teatral e conhecedora de Shakespeare,
mas tambm pela facilidade de sua aquisio.
Onestaldo de Pennafort
Tabela de metrificao
verso Escansoslabas tnicas
Nmerode slabas
1 / - - / - || - / - || / - - / - / - - / - || - / - || / -/ -
12
1 | o | mo | ti | vo, | mi | nha al | ma, | | o | mo | ti | vo... 1-4-7-9-122 / - / - / || / - - / - / - / - / || / - - / - 92 No | di | rei | a | vs, | cas | tas | es | tre | las! 1-3-5-6-93 / - / - || \ - - / - / - / - / - || \ - - / - / - 103 o | mo | ti | vo... | No | ver | te | rei | seu | san | gue, 1-3-(5)-8-104 / - - / - - - / - / - / - - / - - - / - / - 104 No | fe | ri | rei | a | su | a | pe | le | bran | ca, 1-4-8-105 - / - - - / - || - - / - - / - - - / - || - - / - 105 Mais | al | va | do | que a | ne | ve, | mais | ma | ci | a 2-6-10 herico6 - - / - - / - - - - / - - / - - 66 Que o a | la | bas | tro | dos | t | mu | los...7 \ - - / - / || - - - / - / / - - / - / || - - - / - / 127 Mas | de | ve | r | mor | rer, | pa | ra | que | nun | ca | mais (1)-4-6-10-12 alexandri-
no (6+6).8 - / - / - / - / - / - / 68 En | ga | ne a | mais | nin | gum!... 2-4-6 jmbico9 - / - - - / / - / || - \ || / - - / - - - / / - / || - \
|| / -12
9 Pri | mei | ro a | pa | ga | rei | es | ta | luz... | de | pois, | es | ta... 2-6-7-9-1210 - - / - - / - - / - - / - - - / - - / - - / - - /
-12
10 Se ex | tin | guir | o | cla | ro | ser | vi | al | des| ta | fla | ma 3-6-9-12 anapesto11 - / || - - - / - / - / - - / || - - - / - / - / - 1011 E, a | ps, | me ar | re | pen | der | de | t- | lo | fei | to, 2-6-8-1012 - - / - - / - - - / - - / - 612 Po | de | rei | re a | vi | v- | lo... 3-613 - - - / - - - / || - / - - - / - - - / || - / 1013 Mas | se a | pa | gar | a | tu | a | luz, | a | ti, 4-8-1014 - - / - - / - - - / - - - / - - / - - - / - 1014 cri | a | o | mo | de | lar | da | na | tu | re | za! 3-6-1015 - - - / - / - - - / - - - - / - / - - - / - 10
-
O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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15 Que | Pro | me | teu | ja | mais | com | su | a | chis | pa 4-6-1016 - - / - - / - || - / - - / - - - / - - / - || - / - - /
-12
16 Po | de | r | re a | cen | d- | la? |Uma | vez | ar | ran | ca | da 3-6-9-12 anapesto17 - / - - - / || \ / / - - / - - / - - - / || \ / / - - /
-12
17 A | ro | sa | do | seu | p, | no | me | da | do | so | prar- | lhe 2-6-(7)-8-9-12-18 / - / - / - || / - / - - / / - / - / - || / - / - - / 1218 No | vo a | len | to | vi | tal...| e e | la | tem | de | mur | char, 1-3-5-7-9-1219 / - - / - - - - / - / - - / - - - - - / - 1019 Que | ro as | pi | r-| la | ain| da | no | seu | cau | le! 1-4-10
(Beija Desdmona)20 - / - - - / - - / - - - / - 620 Bal / s / mi / co / res / pi / ro, 2-621 - - / - - / - - / - - / - - - / - - / - - / - - / - 1221 Tu | se | ri | as | ca | paz | de | le | var | a | Jus | ti | a 3-6-9-12 anapesto22 - - / - - / - / - / || \ \ - - / - - / - / - / || \ \ 1222 A | que | brar | su |a es | pa| da! Um | bei| jo | mais...| mais | um.... 3-6-8-11-(12)-
(13)6 + 6
(Beija-a novamente)23 - / - - / - - / || - - - / - - / - - / - - / || - - - /
-12
23 Con | ser | va-| te | tal | qual | es | ts, | quan | do | mor | re | res! 2-5-8-1224 - - / - || (-) - / - / - / - - - / - || (-) - / - / -
/ -10
24 Vou | ma | tar- | te... | e | te a | mar | de | pois | de | mor | ta... 3-6-8-1025 - / || - - - / - / - / - - / || - - - / - / - / - 1025 Mais | um: | o | der | ra | dei | ro! | Nun | ca um | bei | jo 2-6-8-1026 - / - - \ / - / - / - / - - \ / - / - / 1026 To | do | ce | te | r | si | do | to | fa | tal! 2-(5)-6-8-10
(Beija-a mais uma vez)27 - - / - - / || - - / - - / - - / - - / || - - / - - / 1227 Eu | pre | ci | so | cho | rar... | Mas | as | l | gri | mas | so 3-6-9-12 anapesto28 - / - / - / || - - - / - - / - / - / || - - - / - 1028 A | mar | gas.... | Mi | nha | dor, | co | mo o | cas | ti | go 2-4-6-1029 - / || - / - / - - \ / - - / || - / - / - - \ / - 1029 Do | Cu, | des | tri | a | qui | lo | que | mais | a | ma. 2-4-6-(9)-1030 - - / - - / 330 Des | per | tou... 3
Quadro comparativo de manipulao pelo tradutor do original ingls
[Omisso]AcrscimoAlteraoExplicitao
o motivo, minha alma, o motivo...No direi a vs, castas estrelas!
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Mrcia Paredes Nunes
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
o motivo... [Yet] No verterei seu sangue,No ferirei a sua pele branca, (quebra de verso)Mais alva do que a neve, mais macia (quebra de verso)5Que o alabastro dos tmulos...Mas dever morrer, para que nunca mais (quebra de verso)Engane a mais ningum!...Primeiro apagarei esta luz... depois, [put out] esta...Se extinguir [thee, omisso do vocativo] o claro servial desta flama10E, aps, me arrepender de t-lo feito,Poderei reaviv-lo... [alterao da ordem dos versos] (quebra de verso)Mas se apagar a tua luz, a ti,- criao modelar da natureza!Que Prometeu jamais com sua chispa15Poder reacend-la? Uma vez arrancada (quebra de verso)A rosa do seu p, no me dado soprar-lhenovo alento vital... ! [quebra de verso] e ela tem de murchar, (quebra de verso)Quero aspir-la ainda no seu caule! (Beija Desdmona)Balsmico respiro, (quebra de verso)20Tu serias capaz de [almost] levar a Justia (quebra de verso)A quebrar sua espada! (quebra de verso)Um beijo mais... mais um.... (Beija-a novamente)Conserva-te tal qual ests, quando morreres! (quebra de verso)[And] Vou matar-te... [quebra de verso] e te amar depois de morta... (quebra de verso)25Mais um: o derradeiro! [quebra de verso] Nunca um beijoTo doce ter sido to fatal! (Beija-a mais uma vez) [quebra de verso]Eu preciso chorar... Mas as lgrimas so (quebra de verso)Amargas... Minha dor, como o castigo (quebra de verso)Do Cu, destri aquilo que mais ama. (quebra de verso)30Despertou...
Notamos na traduo de Onestaldo de Pennafort uma maior manipulao do texto em
vrios nveis. Primeiro, h a introduo de rubricas inexistentes no original, indicando mais
dois gestos de Otelo que acompanham as falas (versos 22 e 26). Segundo, Pennafort no
segue as quebras de verso do original, introduzindo ou suprimindo quebras conforme a
necessidade do portugus e no do ingls. Fica patente, assim, que no h interesse em
manter o mesmo nmero de versos do original. Com efeito, o nmero de versos aumenta de
22 para 30.
Como j mencionamos, o aumento no nmero de versos justifica-se pela prpria
natureza das lnguas, mas isso tambm resulta de uma expanso no texto provocada pelo
prprio tradutor, com a explicitao de pontos implcitos (como, por exemplo, o uso de
comparativo nos versos 28 e 29, Minha dor, como o castigo / Do Cu, destri aquilo que
mais ama); de elementos gramaticais (como no verso 11, de t-lo feito); ou de elementos
semnticos (como no verso 25, nunca um beijo). H tambm a introduo de palavras
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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inexistentes no original (como no verso 9, primeiro; no verso 15, jamais; e no verso 18,
e).
Outra forma de manipulao observada a alterao da ordem das palavras (verso 1)
ou at da ordem dos versos (11 e 12) em relao ao original. Encontramos tambm a
transformao de uma afirmativa em interrogativa nos versos 15 e 16.
Esses exemplos nos levam a crer que Pennafort parece mais interessado em efetuar
uma correspondncia mais forte em termos do sentido do que da forma. Essa suposio
ganha mais fora se pensarmos que, em termos mtricos, Pennafort no utiliza versos com
o mesmo nmero de slabas, embora o trecho parea estar estruturalmente organizado em
torno de versos hexasslabos, decasslabos e dodecasslabos, havendo apenas a presena de
dois versos que fogem a esse padro (verso 2 com nove slabas, e verso 30 com trs
slabas). Conforme j assinalamos, h ainda um aumento no nmero de versos para
compensar a diferena entre as lnguas.
Em relao aos pontos que levantamos como importantes para o ritmo peculiar de
Otelo, constatamos que, em termos de cesura, h o mesmo nmero de cesuras do que no
original (19). Entretanto, no possvel buscar uma correspondncia exata na localizao
dessas cesuras em razo do nmero diferente de versos e do seu agrupamento distinto nas
duas lnguas.
No h tentativa de seguir um ritmo fixo (jmbico), embora haja alguns versos
anapsticos perfeitos e pelo menos um alexandrino perfeito. De certa forma, como o
nmero de pentmetros com variaes de Shakespeare supera o de pentmetros jmbicos
perfeitos, Onestaldo de Pennafort transmite um pouco dessa variedade de ritmo, mesmo que
possa ser casual e no premeditada.
Em relao ao paralelismo de estruturas, Pennafort desfaz parte do paralelismo, como
no verso 9, Primeiro apagarei esta luz... depois, esta..., e no verso 22, Um beijo mais...
mais um... , sendo que no nico paralelismo conservado, no verso 1, h a alterao na
ordem de minha alma, com a insero do vocativo no meio do verso, o que j modifica o
paralelismo original.
Quanto ao nmero de enjambements, como Onestaldo de Pennafort altera a
configurao dos versos, no faz sentido buscar correspondncia nesse aspecto. Entretanto,
enquanto o original ingls apresenta um exemplo de enjambement, na traduo temos oito
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exemplos (versos 5/6; 7/8; 15/16; 21/22; 25/26; 27/28; 28/29), muitos dos quais em
seguida, o que acelera mais ainda o ritmo.
O uso do futuro sinttico e de pronomes clticos remete a outro aspecto importante da
traduo de Pennafort: o registro mais culto, diferente do portugus oral no Brasil, onde
essas formas esto caindo em desuso. A prpria escolha lexical tambm reflete um registro
mais potico, com o uso de palavras menos usuais, como aspirar, chispa, respiro e
derradeiro.
Barbara Heliodora
Tabela de metrificao
verso Traduo Escanso -slabas tnicas
Nmero deslabas
1 / - / - || / - / - || \ / - / - / - || / - / - ||\ / - 101 | a | cau | sa, | sim, | a | cau | sa, | mi | nhal | ma, 1- 3- 5 -7-102 / - - / - - / - - / - / - - / - - / - - / - 102 No | a | no | mei |o an | te as | cas | tas | es | tre | las: 1- 4-7- 10 decasslabo
provenal3 / - / - || - / - / - / - / - / - || - / - / - / - 103 | a | cau | sa; | mas | san | gue | no | der | ra | mo, 1-3-6-8-104 - / - - / - || / - - / - - / - - / - || / - - / - 104 Nem | man | cho | sua | pe | le, | al |va | de | ne | ve 2-5-7-105 - / - - - / - - - / - - / - - - / - - - / - 105 E | li | sa | co | mo a | gl | ria | do a | la| bas | tro; 2-6-10 herico6 - / || \ - / - || - \ || / / - - / || \ - / -|| - \ || / / - 106 Po| rm | tem | de | mor | rer, | se | no | trai |ou | tros. 2-5-9-107 - / - / || - / || - / - / - / - / || - / || - / - / 107 A | pa | go a | luz | e, en | to, | a | pa| go a | luz: 2-4-6-8-10 jmbico8 - \ - - - / || / || / - / - - \ - - - / || / || / - / - 108 Se a | ti | eu | su| fo | car, | oh | fla | ma ar | den | te, 2-6-7-8-109 \ - - / - - - / - / (\) - - / - - - / - / 109 Pos | so | de | no | vo | res | tau | rar-| te a | luz, 1-4-8-10 sfico10 - - - / - || \ || - - / - / - - - - / - || \ ||- - / - / - 1110 Se | me ar| re | pen | do; | mas | se a | vo |c |a| pa|go, 4-(6)9-1111 / - - / - - - / - / - / - - / - - - / - / - 1011 Mol | de | sa | gaz | na | na | tu | re | za ex | cel | sa, 1-4-8-1012 - - / - / - - - - / - - / - / - - - - / 1012 Des | co | nhe | o | ca | lor | de | Pro | me | teu 3-5-1013 - - \ - - / - || / - / - - - \ - - / - || / - / - 1013 Que | a | re | a | cen | des | se: | j | co | lhi | da, (3)6-8-10 herico14 - / - / - / - / - / - - / - / - / - / - / - 1014 No | pos | so | dar | | ro | sa | for | a | vi | va; 2-4-6-8-10 jmbico15 \ - - / || - - / - - / - \ - - / ||- - / - - / - 10
-
O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
15 Tem | de | se | car; | vou | chei | r- | la | no | ga | lho. (1)-4-7-10(Beija-a.)
16 / - - / - / || / - - / - / - - / - / || / - - / - 1016 H | li | to | quen | te as | sim | qua | se | con | ven | ce 1-4-6-7-1017 - - / - - / - - - / - - / - - / - - - / 1017 A | jus | ti | a a | tra | ir- | se u | ma | vez | mais: 3-6-10 herico18 - - / - - / - || - - / - - - / - - / - || - - / - 1018 Se | fi | car | as | sim | mor | ta, | vou | ma | t- | la, 3-6-10 herico19 - / - - / || / - - || - / - - - / - - / || / - - || - / - - 1019 E a | m- | la | de | pois: | mais | u | ma / a | l| ti | ma, 2-5-6-10 duas ltimas
slabas fracas20 / - / - \ - / || - / - / - / - / - \ - / || - / - / - 1020 | o | do | ce | mais | fa | tal: | a | go | ra | cho | ro, 1-3-(5)-7-9-1021 - - / - - / || / - - / - - / - - / || / - - / 1021 Mas | | pran | to | cru | el, | dor | ce | les | tial 3-6-7-1022 - - / - / - || / - - / - - - / - / - || / - - / - 1022 Que | gol | pei / a o | que a | ma: | e | la | des | per | ta. 3-5-7-10
Quadro comparativo de manipulao pelo tradutor do original ingls
[Omisso]AcrscimoAlterao
a causa, sim, a causa, minhalma,No a nomeio [omisso do vocativo] ante as castas estrelas: a causa; mas sangue no derramo [will]Nem mancho sua pele, alva de neve [omisso do comparativo]E lisa como a glria do alabastro;5Porm tem de morrer, seno trai outros. [will]Apago a luz e, ento, apago a luz:Se a ti eu sufocar, oh flama ardente,Posso de novo restaurar-te a luz,Se me arrependo; mas se a voc apago,10Molde sagaz na natureza excelsa,Desconheo calor de PrometeuQue a reacendesse: j colhida,No posso dar rosa fora viva;Tem de secar; vou cheir-la no galho. (Beija-a)15Hlito quente assim quase convence [omisso do vocativo]A justia a trair-se uma vez mais: [break her sword! One more, one more!]Se ficar assim morta, vou mat-la,E am-la depois: mais uma a ltima, o doce mais fatal: agora choro, [I must weep]20Mas pranto cruel, dor celestial [they; this]Que golpeia o que ama: ela desperta.
Verificamos que, em termos formais, a tradutora adota o verso portugus que tem
maior correspondncia formal ao pentmetro jmbico ingls: o decasslabo. H apenas um
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Mrcia Paredes Nunes
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
verso hendecasslabo (verso 10). Alm disso, na medida do possvel, a tradutora parece
tentar utilizar-se do ritmo jmbico, que no tpico do portugus (versos 7, 14 e 20).
Notamos tambm uma extrema preocupao em manter o mesmo nmero de versos
do original, tarefa difcil se considerarmos a tendncia a expandir o tamanho do verso na
passagem de ingls para portugus. Portanto, essa escolha por si s j traz como
conseqncia uma necessidade de compresso. Encontramos, assim, a modificao de
alguns termos. Por exemplo, monumental alabaster vertido como glria do alabastro,
o que acarreta uma ligeira mudana no sentido, visto que o original remete aos tmulos
construdos com esse material (cf. glosa do editor da edio New Cambridge), sendo o tema
da morte importante no contexto.
O uso do presente do indicativo ocorrem apenas dois casos de uso de futuro, vou
cheir-la e vou am-la tambm pode ser fruto da necessidade de compresso, pois,
com a utilizao desse tempo verbal, eliminaram-se algumas ocorrncias dos verbos modais
will (versos 3 e 6) e must (verso 20), passando para o presente a ao como se j realizada,
alm de, obviamente, esses verbos serem mais curtos do que qualquer forma verbal futura
no portugus, seja sinttica ou analtica.
Para reduzir o verso, tambm houve a juno de dois perodos que so
completamente distintos no original O, balmy breath, that dost almost persuade/ Justice
to break her sword! / One more, one more (versos 16 e 17) e que passam a ser Hlito
quente assim quase convence / A justia a trair-se uma vez mais. Nessa compresso,
houve a eliminao do vocativo, que passou a ser sujeito, a eliminao da imagem da
justia quebrando a espada e, mais significativo ainda, a fuso entre os dois perodos, sendo
que no original o segundo uma exclamao de Otelo ao beijar Desdmona, excluda na
traduo.1
Outra omisso a eliminao do vocativo no verso 2 tambm devido juno de
duas oraes. Considerando-se que a repetio, sob diversas formas, pode significar uma
maneira sutil de retardar o ritmo, a supresso de dois vocativos pode representar tambm
uma pequena perda cumulativa.
Outro exemplo de compresso d-se no penltimo verso, com a eliminao dos
pronomes they e this. Em ingls ocorre um contraste bem demarcado entre a crueldade
do pranto e a celestialidade da dor que sente Otelo, contraste este marcado metricamente
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O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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pelos acentos nos referidos pronomes; mas em portugus, com a omisso dos
demonstrativos, os dois plos ficam justapostos, como em uma enumerao.
Quanto aos aspectos mtricos que levantamos como fatores que conferem um ritmo
lento, observamos que Barbara Heliodora apresenta quase o mesmo nmero de pausas do
original (20), sendo algumas inclusive no mesmo local do original ingls, como nos versos
1, 3, 7, 10, 13, 15. Da mesma forma, a tradutora mantm as repeties presentes no ingls,
embora possa haver pequenas variaes, como no primeiro verso. Tambm mantido o
nico enjambement do original.
Entretanto, um fator presente no original praticamente desaparece na traduo: a
extrema variao mtrica. Nesse aspecto, parece que, ao tentar ater-se correspondncia
formal mais prxima do ingls (versos decasslabos), a tradutora opta por no variar muito
a mtrica, com apenas um verso variante (verso 10). Talvez essa pouca variao confira ao
trecho no um ritmo lento, mas um ritmo mais acelerado que o original, apesar do nmero
maior de pausas.
Finalmente, um comentrio sobre a escolha lexical de Barbara Heliodora:
encontramos o uso de palavras coloquiais e a ausncia de palavras poticas ou eruditas; os
pronomes usados so voc e tu, portanto, os utilizados na linguagem oral brasileira.
Quantos ao futuro, ela d preferncia forma analtica, mais comum na linguagem oral:
vou cheir-la. Com isso, o texto torna-se fluente e de fcil compreenso.
Concluses
Nosso esboo de anlise tinha por objetivo verificar como os tradutores lidaram com
aspectos formais do texto shakespeariano. Nesse sentido, os dois tradutores escolhidos
aparentemente tiveram objetivos semelhantes: tentar transmitir ao leitor/espectador
brasileiro uma correspondncia formal entre o texto de partida e o texto de chegada.
Entretanto, a noo de correspondncia formal parece diferir um pouco entre os dois
tradutores.
Onestaldo de Pennafort parece ver a correspondncia formal de modo mais geral,
optando pelo uso de uma simetria que permeia o trecho como um todo, com o uso
predominante do hexasslabo, decasslabo e dodecasslabo, havendo a possibilidade de
outros metros. O nmero de versos no se manteve o mesmo e houve considervel
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Mrcia Paredes Nunes
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manipulao em termos de quebra e inverso, alm de outras alteraes. O efeito final de
expanso do original ingls.
Barbara Heliodora, por outro lado, parece entender por correspondncia formal o
metro mais prximo do original (pentmetro traduzido por decasslabo) e, dentro desse
metro, optou por uma grande rigidez, superior at mesmo de Shakespeare, que nesse
trecho de Othello apresenta grande nmero de flutuaes para efeitos poticos. A tradutora
no alterou o nmero de versos, o que por si s j representa tambm uma tentativa de
correspondncia formal forte. O efeito final de compresso do original ingls.
De modo geral, parece-nos que a escolha de Barbara Heliodora pelo decasslabo e a
conseqente necessidade de recorrer a palavras mais curtas, fundir oraes e, sobretudo,
utilizar pouca variao mtrica fazem com que o ritmo lento e sinuoso de Otelo no seja
bem reproduzido na traduo, que apresenta um ritmo mais gil que o do original. Por outro
lado, a preferncia de Pennafort por utilizar-se de trs metros distintos, com possveis
variaes, por um lxico mais formal e erudito, e pela expanso do verso talvez capte um
pouco mais da msica de Otelo, muito embora a correspondncia formal seja mais fraca do
que a selecionada por Barbara Heliodora.
1 As diferentes verses de Barbara Heliodora (uma vez mais) e Onestaldo de Pennafort (mais um) podemser explicadas pela discrepncia entre o prprio original ingls, em que o texto do Folio Once more! Oncemore!, enquanto o do Quarto One more! One more (Shakespeare, 1985: 172)
Apndice
Smbolos usados:
| = separador de ps ou slabas= separador de slabas/ = slaba com acento primrio\ = slaba com acento secundrio- = slaba tona|| = pausa
Ps mais utilizados na versificao inglesa:
BINRIOS:bsicos: acidentais:jambo = - / espondeu = / /
-
O ritmo de Otelo em duas tradues para o portugus do Brasil
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troqueu = / - pirrquio = - -
TERNRIOS:bsicos: acidentais:anapesto = - - / crtico = / - /dctilo = / - - anfbraco = - / -
Referncias bibliogrficas
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encyclopaedia of translation studies. London: Routledge.
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HALLIDAY, F. E. (1964) A Shakespeare companion 1564-1964. Harmondsworth:
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HARRISON, G. B. (1985 [1939]) Introducing Shakespeare. Harmondsworth: Penguin.
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tradues: o caso dos Hamlets brasileiros. Tese de doutorado indita, PUC-So Paulo.
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Mrcia Paredes Nunes
Traduo em Revista 2006, p. 01-20
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__________ (1999) Otelo, o mouro de Veneza. Trad. de Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:
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