marx e o bonapartismo
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VNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNO
PANDEMNIO DE INFMIAS: CLASSESSOCIAIS, ESTADO E POLTICA NOS
ESTUDOS DE MARX SOBRE OBONAPARTISMO
PUC So Paulo
2005
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VNIA NOELI FERREIRA DE ASSUNO
PANDEMNIO DE INFMIAS: CLASSESSOCIAIS, ESTADO E POLTICA NOS
ESTUDOS DE MARX SOBRE OBONAPARTISMO
Tese apresentada ao Programa de Estudos
Ps-Graduados em Cincias da Pontifcia
Universidade Catlica PUC-SP, como
exigncia parcial para a obteno do ttulo
de DOUTOR em Cincias Sociais, sob a
orientao do Prof. Dr. Luiz Eduardo
Wanderley.
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Pra Maria Lusa, com os sete mil amores que eu guardei somente pra lhe dar.
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AGRADECIMENTOS
uma alegria olhar para trs, depois de alguns anos, e averiguar quantas
contribuies tive para realizar esta pesquisa. Emoo, sensao de aconchego e
gratido, respeito e um qu de desculpas porque o trabalho no saiu exatamentecomo gostaria so sentimentos que afloram e que determinam meus agradecimentos:
Ao Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais, por ter acolhido
e possibilitado a realizao deste trabalho. Bem assim, ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pois sem seu financiamento esta
pesquisa no teria sido possvel.
Ao Prof. Dr. Luiz Eduardo Wanderley, meu orientador, que tornou o
comumente traumtico relacionamento entre orientando e orientador num
verdadeiro cu de brigadeiro. Com um grande respeito por minha trajetria
intelectual, personalidade forte e autonomia, conduziu as orientaes com
tranqilidade, moderao e sagacidade. O Prof. Wanderley foge dos habituais jogos
de vaidade deste tipo de relao e no teme apostar na possibilidade de convvio com
a diferena; por tudo isso, eu lhe devo agradecimentos sinceros.
Ao Prof. Dr. Celso Frederico, pelas muito pertinentes observaes feitas
quando da Qualificao, pela indicao de bibliografia e pela participao na Banca
de Defesa. Um dos grandes marxistas brasileiros e um dos mais honestos abrilhanta esta defesa.
Profa. Dra. Ester Vaisman, por ter aceitado participar da Banca, o que muito
me honra. parte suas capacidades intelectuais, suas qualidades humanas a tornam
uma figura das mais gabaritadas e preocupadas com a coerncia entre
posicionamento terico e prtica cotidiana. Ressalte-se, tambm, sua mpar
capacidade de ser dura e doce a um s tempo, dizendo tudo que necessrio sem
gerar idiossincrasias.
Ao Prof. Dr. Antonio Rago Filho, por aceitar, mais uma vez, participar de uma
Banca de Defesa de um trabalho meu. Tambm neste caso seu porte intelectual, sua
sensibilidade, sua rica teia de relaes humanas e sua preocupao com a
autoconstruo me fazem ter orgulho pelo convvio de que desfruto e aumentam a
responsabilidade que me pesa nas costas.
Aos antigos companheiros da Ensaio e da Ad Hominem, pela rica convivncia
e pelo aprendizado proporcionado em anos de militncia terica e prtica.
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Aos membros do Grupo de Pesquisa Marxologia, Filosofia e Estudos
Confluentes da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, em
especial a Mnica, Milney, Zaira, Leonardo, Antonio e Sabina, pelas pesquisas, que
foram to importantes para este trabalho.
Aos participantes do Ncleo de Estudos de Histria: Trabalho, Ideologia e
Poder, coordenado pelos Profs. Drs. Vera Lucia Vieira e Antonio Rago Filho, lcus
onde pudemos discutir coletivamente temas importantes e aprender mais de Marx.
Aos colegas da PUC Celso, Cida, Ivan, Joaquim, Marcelo, Mrcio, Regina
Helena, Regina, Rogrio e Sebastio, que contriburam com observaes,
comentrios e crticas no Seminrio de Pesquisa. Edivaldo merece uma meno
especial no s pela ateno com que leu o texto, mas tambm por sua predisposio
em ajudar todos os colegas nas respectivas pesquisas, por sua gentileza, pelo livrocom que me presenteou. Profa. Lcia Bgus, pelas sugestes.
A Alcione Sanna, que ajudou, pacientemente, a melhorar o meu francs. Ao
Prof. Luiz Carlos Ribeiro, editor, pela gentil cesso de um exemplar da Revista da
Associao Paranaense de Histria. s secretrias do Programa: Cristiane Samria,
Emilene Lubianco de S e Viviane Menegazzi, sempre muito solcitas, prestativas e
eficientes deveriam servir de modelo aos funcionrios de outros programas e
rgos internos. A Marcos, pelos livros que pegou emmprestado na biblioteca paramim. A Juliana, Reinilza, Eleonsio, Alnio, Fernando, Vanessa e Emmanuela, que
me auxiliaram com servios de digitao. A Maria e Marcos Flix e a Nega, pelo
suporte que deram e do no lar.
A meus alunos e ex-alunos dos cursos de terceira idade, da graduao e ps-
graduao, muitos dos quais me proporcionaram aprimorar meus conhecimentos;
em especial, aos ex-alunos e sempre amigos Izilda, Margareth, Elysabete, Wagner,
Valdir, Francisco, Luciano, Leandro de Itaquera, Mariana e Regis.
A meus clientes, que me incumbiram de corrigir pesquisas a que quase todos
se dedicaram com afinco por anos a fio, agradeo pela confiana e pelo aprendizado
que me possibilitaram com seus erros e acertos. So pessoas vrias das quais no
conheo pessoalmente com quem convivi em momentos difceis de sua vida e com
algumas delas foram criados laos para alm dos profissionais, eivados de amizade e
mtua admirao. o caso de Aparecida de ngelo Teixeira, Fernanda Pereira da
Cunha e Rosngela Barbosa.
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Aos amigos cujo convvio torna as horas mais tranqilas nesses tempos
difceis: Cida Rago, Verinha, Zimermann, Manfred, Baslio, Cris, Joana, Bauer,
Luque, Tedia, Esteban, Alnio, Henri, Tnia, Antonio, Agenor, Clarissa, Juliana,
Ana, Wanderson, Fabiana, Alex, Andr, Sofia, Vera, Kelly, Valdeci, Mariane,
Nemsio, Cassimiro, Raimundo Brasileiro, o virtual Ray, Joo Batista Dentinho,
Emerson, Cris, Ronaldo, a madrinha Vania Cintra e Oliveiros, o padrinho Manoel,
D. Diva (in memoriam), Oto. Muito especialmente e com muito carinho a Ftima,
Lvia, Gorete, Keka, Maria de Annunciao, Meire, Sandro, Carlos.
A Silmara e Lus, que to gentilmente emprestaram sua aconchegante casa de
praia para eu me refugiar quando precisei fugir do turbilho cotidiano. Igualmente, a
Olga e D. Maria Marques Charro que, num momento to difcil da sua vida, quando
deveriam estar recolhidas sua dor, dedicaram seu tempo me emprestando oapartamento e se preocupando com minha acolhida e bem-estar. A Olga, amiga
dedicada, tambm agradeo pela traduo do resumo, trabalho sempre brilhante.
A D. Aparecida, seu Z Nunes, Nsio, Simone, Alexandre e Drio, pelas vidas
que compartilhamos juntos (embora distantes) h algum tempo, pelo carinho, pelos
mimos que volta e meia chegam pelo correio.
A Lcia, altrusta e dedicada, que sempre se ps disposio para o que eu
precisasse, leu e comentou partes do texto, providenciou xerox de um livro de difcilacesso, vrias vezes me incentivou com palavras doces. Sua preocupao em se
melhorar permanentemente acaba contribuindo para o crescimento coletivo.
A Lo, doce e querido amigo, que leu uma parte do trabalho e fez excelentes
comentrios e que me ofertou graciosamente a publicao com sua traduo da
Crtica de Marx. Mas, acima de tudo, pela doura, carinho, otimismo, confiana e
mansido que sempre transmite. Sua preocupao com a autoconstruo
inspiradora e me faz ter orgulho de ser sua amiga.
Que dizer de ngela? Figura mpar, leal, de um altrusmo e desprendimento
sem tamanho, de uma disciplina espartana, amplamente comprometida com a
pesquisa cientfica, dedicada exemplarmente aos amigos, esteve sempre a meu lado,
nos momentos bons e ruins dos ltimos anos. Como se fora pouco, leu todo o
trabalho, comentou, botou a mo na massa na digitao, fez as vezes de office girle
secretria, auxiliou nos problemas materiais e, como boa amiga que , sempre elogiou
muito. Tambm fao questo de mencionar aqui a pessoa doce, fraterna e amiga que
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sua me, D. Carmelita, que to carinhosamente nos acolhe sempre que a
importunamos.
A minha me, Hilda, e a minha av, D. Via, que, alm de tudo que j fizeram
por mim a vida inteira, tomaram conta de minha filha por muitas horas do dia, desde
que ela nasceu, para que eu pudesse trabalhar mais tranqila e sossegadamente.
Tambm a meus irmos Vilma e Valter, que muito me tm auxiliado no decorrer da
vida e ainda mais nos ltimos anos.
A Zilmar, companheiro de muitas jornadas, que tambm aturou poucas e boas
para que este trabalho ficasse pronto. Sua presena pode ser visualizada em todos os
momentos: na leitura rigorosa dos textos, nos comentrios ricos, na formatao,
limpeza e padronizao, na divergncia decidida mas respeitosa de posicionamento
intelectual, nas provocaes instigantes. Foi fundamental, para que este fim dejornada fosse to tranqilo no ambiente domstico, que exercesse sua plasticidade
invejvel diante das mudanas necessrias e uma tolerncia que, certamente, ele no
conhecia, principalmente diante da turra em pessoa. Para alm de tudo, a
autotransformao que forjou a declarao de amor mais sincera que j recebi.
Devo-lhe, to-somente, desculpas por nem sempre corresponder s suas expectativas.
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De te fabula narratur.
( a ti que esta histria se refere.)
Horcio.
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RESUMO
Pesquisamos a poltica, o estado e as classes sociais nas obras de Karl Marx
(1818-83) sobre o bonapartismo, tema que abordou quando tratou da histria
francesa de meados do sculo XIX e que se manteve presente em suas reflexes por
mais de duas dcadas. Centramo-nos na anlise imanente das obras do pensador
alemo atinentes ao tema As lutas de classes na Frana, O 18 Brumrio de Lus
Bonaparte e Guerra civil na Frana, artigos e correspondncia , reproduzindo-as
analiticamente, o que foi possvel graas a uma pesquisa bibliogrfica histrica e
temtica. No mister de compreender a universalidade e a especificidade do
bonapartismo, percorremos um caminho que comea com a exposio das principais
anotaes marxianas sobre a histria da Frana e da Alemanha, beros do fenmeno,e passa pela exposio da ontonegatividade da poltica, que Marx j explicitara em
suas primeiras obras marxistas (1843-44). So questes que esto subjacentes s suas
avaliaes das Revolues de 1848 na Frana, que acompanhamos em detalhe, bem
como, agora mais explicitamente, na discusso que faz sobre o coup de tte de Lus
Bonaparte e o governo bonapartista. Aquelas questes assomam explcita, profunda e
rigorosamente na sua abordagem da Comuna de Paris, que aponta como a anttese
direta do bonapartismo e a respeito da qual faz das mais detalhadas discusses acerca
do estado burgus e da necessidade de sua derrocada, da ontonegatividade da poltica
e da auto-emancipao insurrecional da classe operria. Para dar conta da riqueza da
anlise marxiana, vimo-nos obrigados a abordar a particular estrutura de classes
francesa, as divises no interior das classes dominantes, o fortalecimento do poder
executivo em detrimento do legislativo, dos clubes e associaes, a splica burguesa
por um governo forte e a atuao essencial do bonapartismo, em diversas frentes, no
sentido de, por uma poltica externa agressiva e outras medidas, atenuar as lutas de
classes, assegurar tranqilidade ao burgus agora contra-revolucionrio e promover odesenvolvimento capitalista. Exploramos as principais categorias descobertas na
apreciao do iderio marxiano, tendo por centro o bonapartismo, mostrando sua
importncia singular e sua amarrao. Discorremos, por fim, sobre a forma como o
marxismo, depois de Marx, apreendeu, modificou, complementou ou rejeitou as
observaes marxianas a respeito do bonapartismo. Tambm nos detemos sobre a
forma como a questo aparece terica e praticamente na realidade brasileira.
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ABSTRACT
Our study discusses politics, state and social class in the works of Karl Marx
(1818-83) about bonapartism, a subject he approached when investigated the history
of France in the middle of 19th century; Marx had been concerned with bonapartism
for over two decades. We focus our study on the immanent analysis of Marxs texts
on the subject The Class Struggle in France, The Eighteenth Brumaire of Louis
Bonaparte and The Civil War in France, besides articles and letters -, which were
analytically reproduced as a result of a bibliographic research both historical and
thematic. Attempting to understand the universality and the specificity of
bonapartism, we followed a path beginning with an explanation of the main marxian
notes on the history of France and Germany, where the phenomenon emerged, andgoing through the explanation about the ontological negativity of politics which Marx
had already elucidated in his early marxist works (1844). These issues are subjacent
to his evaluations of 1848 Revolutions in France which we follow in detail, as well as,
his discussion about Louis Bonapartes coup de tte and the bonapartist government.
Those issues emerge clear, deep and rigorously in his investigation on The Paris
Commune. Marx indicated this event as the direct antithesis of bonapartism and
investigating the Paris Commune, he elaborated detailed analysis on the bourgeoisstate, the nature of politics and the insurrectional self-emancipation from the
workers perspective. In order to grasp the richness of the marxian analysis, we had
to consider the specific class structure in France, the division inside the ruling class,
the strengthening of the executive power in detriment of the legislative power, the
clubs and associations, the bourgeois supplication towards a strong government and
the essential performance of bonapartism which due to an aggressive foreign policy
reduced class struggle, assured serenity to the bourgeois, now counter-revolutionary,
and promoted the capitalist development. We investigated the main categories we
have found in the analysis of the marxian ideas while focussing on bonapartism,
showing its peculiar importance and its ties. Finally, we discussed the way marxism,
after Marx, has understood, modified and complemented or rejected the marxian
remarks about bonapartism. As about this rejection, we were also concerned with the
way this subject takes place - theoretically and practically- in Brazilian reality.
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SUMRIO
LISTA DE IMAGENS ............................................................................... 13
INTRODUO ........................................................................................ 14I AS REVOLUES DE 1848 NA FRANA............................................47
1.1 CANTO DO GALO GAULS CONCLAMA PRIMAVERA DOS POVOS............49
1.1.1 O Governo do Improviso ......................................................................................57
1.1.2 O Monstro Republicano e o Espectro Vermelho ..............................................66
1.1.3 A Autocracia Legislativa .......................................................................................88
1.2 MARX E AS CLASSES SOCIAIS NA FRANA BONAPARTISTA......................108
1.3 EPILOGANDO AS ANLISES DE MARX..............................................................124
II A PARDIA DE RESTAURAO DO IMPRIO............................... 137
2.1 BONAPARTE, BONAPARTISTAS, BONAPARTISMO (1830-71).......................138
2.2 O COUP DE TTE DE LUS BONAPARTE ...........................................................153
2.3 O COMPLEXO CATEGORIAL DO BONAPARTISMO ........................................187
III A GLORIOSA REVOLUO DE MARO, ANTTESE DOBONAPARTISMO................................................................................. 202
3.1 EM AMBAS AS MARGENS DO RENO: BONAPARTISMOS EM GUERRA.....203
3.2 A LOUCURA HERICA DO TRABALHO .............................................................219
3.3 EPTOME ...................................................................................................................238
IV DEPOIS DE MARX: O BONAPARTISMO POR UMA PLIADEMARXISTA ...........................................................................................246
4.1 A RELIGIO DA BURGUESIA: APORTES ENGELSIANOS TEORIA DOBONAPARTISMO ............................................................................................................248
4.2 EQUILBRIO CATASTRFICO E CESARISMO EM GRAMSCI .......................268
4.3 TROTSKY, O BONAPARTISMO E O BONAPARTISMO OPERRIO ...........276
4.2 O MESMO TEMA, OUTROS AUTORES MARXISTAS .......................................294
4.5 AUTOCRACIA E POLITICISMO: O BONAPARTISMO NO CASO BRASILEIRO............................................................................................................................................ 310
CONSIDERAES FINAIS: RETROVERTENDO A MARX .....................334
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................345
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LLIISSTTAADDEE IIMMAAGGEENNSS
Capa:A Constituio de 1848, litografia annima in OEHLER, Ralf. O velho mundo
desce aos infernos. So Paulo, Cia. das Letras, 1999, p. 109.
Introduo: Marx. Disponvel em: http://www.katardat.org/.../ commune28-
600.jpg>.
Captulo I: Revolues de Junho de 1848 emParis in Manifesto Comunista. So
Paulo, Cortez, 1998 Iconografia
Captulo II: Napoleo III rapina a Frana. Disponvel em:
.
Captulo III: Proclamao da Comuna de Paris in Grande Enciclopdia Larousse
Cultural, Nova Cultural, 1988. p. 1.534.
Captulo IV: Pliade marxista, montagem sobre imagem disponvel em:
http://www.marxists.org/portugues/index.htm>.
Consideraes Finais: Marx. Disponvel em:
http://www.sosialismi.net/kuvat/kuvia/Marx-9.jpg>.
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INTRODUO
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Este trabalho versa acerca da poltica, do estado e das classes sociais nas obras
de Karl Marx (1818-83) que discutem o bonapartismo, tema que abordou quando
tratou da histria francesa de meados do sculo XIX e que se manteve presente em
suas reflexes nas duas dcadas posteriores.
Marx um clssico indiscutvel das cincias humanas. E, como todo clssico,
seu pensamento e suas obras nunca se tornam antiquados. Pelo contrrio: os
clssicos permanecem sempre novos (como ele prprio dizia a respeito dos filsofos
antigos). Algum que revolucionou as cincias sociais, como ele, tem de ser
continuamente referncia terica. Sobre os ombros de pensadores assim se pode
divisar mais longe, o que facilita em muito a nada simples tarefa de compreender e
transformar o mundo contemporneo.Em se tratando de Marx (outra vez, como quase todo clssico), contudo,
difcil fugir de uma frase que j se tornou lugar-comum. O filsofo alemo inclui-se e
sobressai entre aqueles que, embora muito citados, sopouco lidos. Mesmo os seus
autodenominados partidrios ou justamente eles muito tm contribudo para os
problemas que se manifestaram, por exemplo, nas releituras de sua obra, sujeita a
deturpaes, imputaes esprias, incompreenses. Objeto de intensas disputas e
divergentes interpretaes, suas idias originais precisam, urgente epermanentemente, ser retomadas em sua prpria fonte.
Muito longe de um suposto cachorro morto, como querem seus adversrios,
trata-se de um pensador em cujas formulaes podem-se encontrar indicaes de
respostas para questes gravosas e mesmo vitais nas quais se debate, terica e
praticamente, a humanidade desorientada. Tendo o entulho pseudo-socialista do
leste europeu se desbaratado, poderia se repor, em outro nvel, a questo da
emancipao humana bem ao contrrio do que propagandeiam os inmeros
apologetas do domnio do capital. Desta forma, retornar a Marx pressupe a firme
convico na possibilidade de alternativas ordem do capital, ainda que no estejam
momentaneamente no horizonte; abeberar-se em suas consideraes para
compreender problemas atuais prticos, tericos, filosficos , na tentativa de
solucion-los coletivamente.
Em face destas questes, contudo (e pedimos licena para a parfrase), os
marxlogos das linhas dominantes no sculo XX transformam em mistrios
banalidades reais e sua arte consiste no em desvendar o que est oculto, mas em
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ocultar o que j est revelado (SF, p. 82)1. Ainda mais: as tentativas de superar o
pensamento de Marx conduzem apenas regresso a nveis inferiores do
pensamento, no alm mas aqum de Marx (Lwy, 2002, p. 18).
Nosso interesse inicial nesta pesquisa, bem como nossa militncia em
movimentos como a Editora Ensaio e a Ad Hominem, vo tambm nesta direo, de
acordo com o que manifestava J. Chasin: manter a lucidez , talvez, a tarefa mais
revolucionria possvel nos atuais dias obscuros. Eis que revelamos desde j nossas
motivaes como toda a obra de Marx comprova abundantemente, a pesquisa
interessada no desqualifica seus resultados.
Queremos, pois, retornar a Marx. O assunto que pesquisamos de importncia
mpar para a apreenso de seu iderio, de forma muito especial no que tange s suas
concepes polticas mbito extremamente relevante para ele, que semprepretendeu ter uma influncia prtica, transformadora, na realidade. Este
revolucionamento inclui necessariamente uma especfica atuao poltica, embora de
maneira nenhuma se resuma a ela. Por seu tratamento privilegiado e por sua anlise
ampla, o bonapartismo permite (e exige, em certos casos) a discusso de uma pletora
de temas afins, todos de importncia cabal para bem compreender o pensamento de
Marx. A partir das discusses sobre esta temtica, podemos levantar problemas
referentes sua concepo de poltica (em geral e, em particular, a questo do estadoe dos partidos, da democracia, do sistema parlamentar representativo, do sufrgio
universal), da ideologia, da luta de classes, da formao especfica das formaes
nacionais, da revoluo proletria e de suas diferenas quanto s revolues
burguesas, entre outros. Pela prpria forma como Marx realizava suas anlises, fica
patente a amplido de assuntos que podem ser tratados no interior de uma discusso
que aborde o bonapartismo.
Note-se: Da prtica possvel a Marx, no quadro alemo de 1848/9, nada pde
resultar na imediaticidade dos acontecimentos; contudo, deve-se ressaltar com
nfase que de seu empenho intelectual redundou a formao da pea mais extensa e
diversificada do acervo de sua reflexo poltica (Chasin, 1993, pp. 33-4). Apenas isto
j justificaria a importncia de resgatar as concepes histricas de Marx no perodo
que vai de 1848 a 1871. Por outro lado, apenas por meio dos textos elaborados a
propsito de acontecimentos especficos podemos ter acesso reflexo de Marx
1 As siglas utilizadas como referncia s obras de Marx, bem como os demais dados bibliogrficos,constam da Lista de Siglas, no incio da Bibliografia.
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sobre a poltica, j que nunca escreveu nada especificamente a respeito (Chasin, 1993,
pp. 20-1). O estudo do bonapartismo, em particular, permite-nos estas incurses.
A questo poltica est, desta forma, intrinsecamente ligada aos textos de Marx
que discutimos, bem como s suas preocupaes no perodo analisado. H, contudo,
no nosso entender, uma sria incompreenso sobre a forma como ele entendia a
poltica e enxergava suas determinaes e limitaes. Incompreenso que vai para
alm da capacidade e da dedicao pessoal dos estudiosos, j que historicamente
determinada, relacionada usina de malversaes ideolgicas e prticas em que se
tornou o capitalismo.
Em face destes problemas, acreditamos ser bastante til expor os lineamentos
mais importantes do pensamento elaborado por Marx acerca da poltica at 1848, j
que nosso recorte toma seus textos do perodo imediatamente posterior. Queremosretratar, de forma sumria, suas principais descobertas neste sentido, a fim de que
possamos compar-las s suas manifestaes sobre o tema nas obras que estudamos
e averiguar transformaes, aprofundamentos e eventuais rupturas.
__________________________________________________________
Marx e a Poltica (1843-48)__________________________________________________________
Sem nenhuma inteno de compendiar as obras de Marx, seno de reproduzir
determinados aspectos que consideramos primaciais para o entendimento mais
amplo do seu pensamento no perodo estudado, procederemos a uma explanao
que, alm de bastante resumida, privilegiar a faceta poltica das conquistas tericas
marxianas2, permitindo situar a avaliao que fez do bonapartismo e da Comuna no
interior do todo de seu pensamento e explicitando algumas concluses que esto
subentendidas nos textos que analisamos.
No consideramos possvel, no interior de um trabalho como este, retomar
todas as suas obras que tratam da poltica, dado o seu volume, densidade e variedade,
alm dos limites intrnsecos aos trabalhos acadmicos. Ademais, um perodo
bastante estudado, de forma que podemos nos apropriar criticamente de toda uma
srie de pesquisas consistentes j realizadas, em especial as ligados ao Grupo de
Pesquisa Marxologia, Filosofia e Estudos Confluentes da Faculdade de Filosofia da
2 Empregamos o texto marxiano como referncia exclusiva produo terica da prpria pena deMarx, reservando o termo marxista para as diversas correntes de seus seguidores, inclusive Engels.
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Universidade Federal de Minas Gerais, fundado por. J. Chasin. Tais trabalhos, nos
quais nos baseamos amplamente, remontam formao acadmica de Marx (1836-
41), a sua tese doutoral (1841) e ao perodo em que atuou, como correspondente e
redator, na Gazeta Renana (1842-3), rgo da burguesia liberal da Rennia3.
No mbito social, acreditava Marx ento, a realizao da liberdade humana
coincide com a instaurao de instituies polticas e, neste contexto, superar a
fragmentao e a ciso tpicas do velho mundo passa pela conquista do estado
poltico moderno, erigido sobre leis racionais e fundado no direito universal. De
maneira que: pela construo do estado poltico moderno que o homem se realiza
como membro de uma totalidade (Eidt, 1998, p. 171). O estado verdadeiro, onde
reinam os direitos universais do homem, uma comunidade de homens ticos e
racionais, os quais entrelaam seus fins particulares aos interesses gerais, superandoas particularidades. Pela sua existncia racional, o estado realiza o homem como ser
humano, permite a realizao humana do indivduo; desta forma, no se trata de um
instrumento a servio de uma classe social, mas, pelo contrrio, o lugar em que se
supera a oposio entre o indivduo e a totalidade, onde se realiza o esprito livre e
racional do homem (Eidt, 1998, p. 175). Neste sentido, a obedincia ao estado
racional representa to-somente o respeito prpria racionalidade , portanto,
auto-obedincia.Por toda esta poca, portanto, Marx via no estado uma entidade autocentrada
e o mais alto representante da razo e da universalidade humanas. Tinha a
politicidade como uma qualidade humana fundamental, um predicado intrnseco ao
ser social; era um adepto vibrante da linha de pensamento clssica e de origem
to remota quanto a prpria filosofia que identifica na poltica e no estado a prpria
realizao do ser humano e de sua racionalidade (Chasin, 2000, p. 132). Em outros
termos, Marx estava vinculado determinao ontopositiva da politicidade, uma das
principais caractersticas dos neohegelianos. Neste quadro, estado e liberdade ou
universalidade, civilizao ou hominizao se manifestam em determinaes
recprocas (Chasin, 2000, p. 132), considerando-se o plano da poltica resolutivo
com relao aos problemas sociais. Trata-se, portanto, de uma forma de pensamento
que confere poltica capacidade de engendrar a sociabilidade, de dar-lhe o norte e
empux-la dos problemas em que se enreda.
3 Vale mencionar, em especial: Teixeira, 1999; Enderle, 2000; Albinati, 2001; Eidt, 2001; Costa, 1999;M. Chasin, 2001; De Deus, 2001.
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Esta orientao encontraria seu fim em 1843. Neste ano, depois que a
recrudescncia da represso acabara com a Gazeta Renana, Marx, exilado da
Alemanha, estudou, mais uma vez, os tericos clssicos da poltica, da estrutura e da
natureza do poder (Maquiavel, Hobbes, Rousseau), alm de histria antiga e da
Revoluo Francesa. Seu alvo principal, ainda neste momento, era o hegelianismo, na
medida em que constitua uma cobertura ideolgica e uma legitimao muito mais
profunda e hbil verdadeiramente genial do statu quo alemo do que vrias
outras existentes, como a escola histrica do direito (Chtelet, 1971, pp. 15; 27).
Dedicou, por isso, especial ateno Filosofia do direito, obra que Hegel publicara
em 1821, que Marx considerava a mais refinada expresso do estado moderno e,
portanto, para o jovem publicista, criticar a obra equivalia a criticar a prpria
realidade que lhe servia de referncia (Frederico, 1995, p. 52).Desse processo, chegaram-nos alguns manuscritos: os Cadernos de Kreuznach
compilaes das leituras diversificadas que fez poca e que, afora comentrios
globais, permanecem inditos; e o manuscrito Contribuio crtica da Filosofia do
direito de Hegel, um divisor de guas na sua formao terica neste volumoso
manuscrito que Marx rompe definitivamente com a idia de estado como instituio
racional (Rubel, 1991, p. 25). Mesmo na sua maturidade Marx no descartou o
manuscrito4
, germe de uma novapostura ontolgica em relao ao itinerrio anterior, pautadapelo descarte da especulao e pela simultnea afirmao doente real, sensvel e objetivo, como ponto de partida e comoparmetro na reflexo, o que conduz a tematizao sobre apoliticidade compreenso da sociedade civil como momentopreponderante em sua relao com o estado (De Deus, 2001, p.17).
De par com a radical, repetida e apaixonada crtica do pensamento
especulativo, Marx chegava, ento, compreenso da propriedade especfica da
politicidade moderna: a realizao da poltica se d por abstrao e negao da
existncia real da sociedade civil, a qual s atua politicamente ao negar o seu
prprio ser, adquirindo uma natureza que lhe estanha (De Deus, 2001, p. 61). J
aqui aparece, portanto, a dualidade do indivduo na sociedade moderna ou, como
Marx dir depois, o dilaceramento do homem , isolado enquanto indivduo em
relao sua vida social.
4 Efetivamente, no Posfcio segunda edio alem do primeiro tomo de O capital (de janeiro de
1873), o prprio Marx ressaltava: Critiquei o aspecto mistificador da dialtica hegeliana h cerca 30anos, quando ainda se achava em moda (P1873, p. 15).
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Para o Marx da Crtica de 1843, o moderno estado era a instncia prpria de
realizao do homem como ser social, o que implicaria, contudo, a negao da sua
vida material, real: para adquirir significado poltico a sociedade civil deve negar sua
prpria existncia, tornando-a inessencial (De Deus, 2001, p. 121). Para Marx, neste
sentido, o soberano da poltica a prpria negao da vida genrica, o interesse
universal apenas um predicado da propriedade privada, o que o faz defender a
verdadeira democracia como supressora do carter abstrato do estado. Na
verdadeira democracia, a vontade genrica do povo exercida de forma imediata,
sem a mediao do estado, tornando-se a prpria comunidade dos indivduos reais a
nica universalidade, existente em razo daquilo que cada um e faz e no em razo
de uma representao formal e abstrata (De Deus, 2001, p. 122). Esta
autodeterminao da sociedade civil s pode se efetivar, entretanto, ao perpassartodos os momentos da vida genrica.
Desta forma, Marx apontava como soluo para a abstratividade do estado a
autodeterminao da sociedade civil, a verdadeira democracia, pela qual os interesses
de todo o povo se tornariam o princpio real do estado poltico e do estado material
da vida integral da nova sociedade. A democracia direta significaria a gesto dos
assuntos pblicos pelos homens comuns, significaria o fim da existncia autnoma do
estado, ou seja, a sociedade civil se poria imediatamente em sua forma poltica,confundir-se-ia com ela, reapropriar-se-ia de seu contedo poltico; por outro lado, o
estado poltico se relacionaria com a sociedade civil como com seu contedo, que o
determinaria, j que no tem substncia prpria, constituindo-se na smula das lutas
prticas da humanidade. Ter-se-ia, assim, a reunificao entre forma e contedo.
Por meio da ampliao mxima do sufrgio e da participao da sociedade civil
no poder legislativo, a poltica, alienada e etrea, seria absorvida pela existncia
social, toda funo social se tornaria poltica e o estado democrtico seria a mais
suprema realizao poltica do homem. A democracia promoveria a verdadeira
unidade do universal com o particular, de forma que no mais existiriam de forma
concomitante, distinta e antagnica os plos antinmicos homem poltico e homem
no-poltico, estado e sociedade civil, contedo e forma, universal e particular. No
reino da verdadeira democracia, a sociedade civil, e no o estado poltico, seria o
sujeito; sua mais ldima caracterstica seria a supresso do carter abstrato da
democracia poltica, propondo solues que operassem no estado real, determinante.
Em outros termos, seria a reunificao entre lei e existncia social, entre estado
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poltico e estado real. Na Crtica de 43, portanto, Marx, que na Gazeta Renana
defendera o estado democrtico e racional, propunha a autodeterminao da
sociedade civil e discutia a prpria politicidade, a necessidade de reapropriao pela
sociedade civil de foras sociais alienadas na poltica.
Que isso no oblitere, contudo, os limites da Crtica, especialmente no que
tange dimenso poltica (superados nos meses seguintes), que a caracterizam como
um texto importante, mas no resolutivo neste aspecto. Dado o desconhecimento que
o jovem Marx apresentava dos princpios da sociedade contempornea, da
importncia das relaes de produo e do desenvolvimento das foras produtivas,
no pde clarificar como se dava a vinculao da alienao poltica com a sociedade
civil. Ainda preso a um humanismo abstrato, via o homem no seu sentido geral,
partcipe do gnero humano, no como membro de uma classe. Desta forma, mesmopercebendo a sociedade civil como sujeito da poltica, determinava-a como uma
qualidade humana, uma funo social a ser apropriada pelo homem. Faltou, assim,
evidenciar a gnese da prpria sociedade civil, da existncia humana real que exige o
estado poltico abstrato, ou, dito de outro modo, a gnese das condies especficas
que tornam a politicidade abstrata necessria. Marx no alcanou a gnese da
abstrao poltica que detectou, nem seus intrnsecos vnculos com a sociedade de
classes e a propriedade privada. Esta s lhe interessava pelo seu carter e funopolticos, manifestao que era do interesse privado (contraposto essncia social do
indivduo), e no como expresso das relaes de produo. Da que a verdadeira
democracia, para ele, no fosse a superao da sociedade burguesa, mas to-
somente a superao da soberania poltica da propriedade privada e, principalmente,
da alienao poltica (De Deus, 2001, p. 125). Nesse sentido, neste texto Marx ainda
estava em busca da perfectibilizao da poltica posio que ser abandonada nos
textos subseqentes. De fato, em suas investigaes posteriores, Marx conseguiria
perceber o cimento social que une os indivduos atomizados, e ento, aos poucos, se
livrar do empirismo na filosofia e seu correlato na poltica a democracia
(Frederico, 1990, pp. 88-9).
Em sntese, no processo de anlise da Filosofia do direito de Hegel Marx
iniciava um trnsito do poltico ao social que no foi levado s ltimas conseqncias
naquele momento, mas que o individualizava entre todos os seus contemporneos.
Em suas irresolues e avanos, a concepo radical de poltica alcanada por Marx
em Kreuznach era decorrente de sua transio, ainda no interior do idealismo ativo,
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da democracia radical para a democracia revolucionria. O rompimento com a
especulao j estava posto e seria sobre os pilares da afirmao da ontologia,
princpio de sua crtica ao pensamento idealista (Cf. M. Chasin, 1999,passim), que se
ergueria, j nos meses seguintes, a construo ideria prpria de Marx. Nesse
caminho, as crticas efetuadas por ele ao idealismo, politicidade e economia
poltica sero fundamentais para sua censura ao comunismo vulgar, bem como
sua adeso definitiva, posteriormente, perspectiva do trabalho.
Poucos meses depois de escrever a Crtica, Marx apreender a verdadeira
democracia no como uma forma de estado racional, mas como o fim deste, e que a
soluo dos problemas identificados apontava no para a perfectibilizao da poltica,
mas para sua superao em prol da emancipao humana. Neste sentido, caberia,
fundamentalmente, encontrar a esfera determinante do ser social, que no est nombito da poltica, mas na sociabilidade, busca a que se dedicaria desde ento. O
voltar-se para a anatomia da sociedade civil no significaria um desprezo pela
poltica, mas a descoberta da determinao ontolgica negativa da politicidade,
advinda das debilidades sociais que suscitaram a mediao poltica para (ir)resoluo
dos problemas humanos. Vejamos como ele prprio ps a questo.
Em texto do outono europeu de 1843, censurando Bruno Bauer acerca dA
questo judaica, que este escrevera, Marx afirmava que o neohegeliano havia postomal a questo da emancipao no discutira inicialmente de que tipo de
emancipao se tratava, equvoco derivado do fato de que criticava apenas o estado
cristo, no o estado enquanto tal. Da que no tenha conseguido captar o novo
patamar da relao entre a emancipao poltica e a religio, que passara a ser o
problema da relao entre a emancipao poltica e emancipao humana. Para ele
prprio, a questo era entender como a emancipao poltica j alcanada se
relacionava com a religio no o fundamento, mas a manifestao de uma limitao
secular. A, contrapondo-se ao simplismo da soluo baueriana abolir a religio
para alcanar a emancipao poltica, identificada pelo telogo emancipao
humana, Marx criticaria a prpria emancipao poltica, num complexo analtico
em que pela primeira vez determina a natureza da politicidade de acordo com seus
novos e originais lineamentos tericos (Chasin, 2000, p. 142).
Acompanhando a crtica a Bauer com a explicao de sua prpria posio,
Marx salientava que a emancipao poltica em face da religio nunca poderia ser a
libertao das contradies intrnsecas prpria religio, dado que a emancipao
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poltica no o modo total e isento de contradies da emancipao humana (QJ,
p. 468). O quanto estreita a emancipao poltica ficar clarificado no fato de o
estado poder se livrar de peias sem que o homem se liberte realmente, seja
efetivamente um homem livre. Neste sentido, o homem se liberta atravs do estado,
liberta-sepoliticamente, de uma trava ao entrar em contradio consigo mesmo, ao
sobrepor-se a esta trava de um modo abstrato e limitado, de um modo parcial (QJ,
p. 468). A emancipao poltica mostrada, desta forma, como um rodeio suprfluo
libertao do homem (o estado intermedeia sua relao com a sua prpria liberdade),
e este, mesmo sendo um proclamado ateu pela mediao do estado no religioso,
continua preso s mesmas estruturas religiosas. o mesmo processo pelo qual se
abole politicamente a propriedade privada ao eliminar o critrio censitrio como base
do direito de sufrgio. Desprezar politicamente origem, nvel social, cultura eocupao do homem, proclamar todo o povo como igual partcipe da soberania
popular no significava, entretanto, que a propriedade privada, a cultura, a origem
no mantivessem sua atuao e sua essncia. Em outros termos, bem longe de
acabar com estas diferenas de fato, o estado descansa sobre estas premissas, s se
sente como estado poltico e s faz valer sua generalidade em contraposio a estes
elementos que formam parte dele (QJ, p. 469).
Para Marx, em sua plenitude e por natureza, o estado poltico a vidagenrica do homem por oposio sua vida material, cujos pressupostos egostas
continuam existindo na sociedade civil como suas qualidades, fora do estado. No
estado o homem um ser genrico, membro imaginrio de uma imaginria
soberania, despojado do contedo real de sua vida individual e parte de uma falsa
generalidade.
Ali onde o estado poltico alcanou seu verdadeirodesenvolvimento, o homem leva, no s o pensamento, na
conscincia, mas na realidade, na vida mesma, uma vida dupla,uma celestial e outra terrena: a vida da comunidade poltica, naqual se considera ser coletivo e a vida da sociedade civil, na qualopera como particular, v nos outros e se converte em joguetede poderes estranhos. (QJ, p. 470)
Marx mostrava, assim, que o conflito do homem religioso com sua cidadania e
com os demais membros da comunidade reduzia-se ao abismo irreligioso entre o
estado poltico e a sociedade civil, era a mesma contradio entre cidado, de um
lado, e o comerciante, o jornaleiro, o latifundirio, o bourgeois, o indivduo vivo e
atuante, de outro era umaparte da contradio social geral. Havia, pois, uma peleja
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que contrapunha o interesse geral ao privado, o estado poltico sociedade burguesa,
e a crtica de Bauer expresso religiosa desta deixava intocadas as contradies
seculares.
Marx no desprezava a emancipao poltica, pelo contrrio, considerava-a
indubitavelmente um grande progresso era a forma mais alta da emancipao
humana dentro da ordem do mundo atual, mas no era a forma mais alta da
emancipao humana em geral (QJ, p. 471). Assim, com a emancipao poltica, o
estado prescindiu da religio como esfera na qual restritamente o homem se
comportava como ser genrico, relegando-a ao mbito do egosmo, da separao
entre o homem e sua comunidade. Este deslocamento, longe de ser uma fase, um
ardil ou um escape da cidadania o auge da emancipao poltica nem se cogita da
superao da religiosidade e das contradies sociais reais. Se em alguns momentos avida poltica contraditava a sociedade burguesa que a embasava, Marx ressaltava,
tudo terminava com o restabelecimento das premissas anteriores trata-se de uma
subordinao degenerativa da poltica s particularidades da sociedade civil (Chasin,
2000, p. 146).
No que toca democracia poltica, que na Crtica era tida como resolutiva,
dizia que nela todo homem soberano, mas o homem corrompido por toda a
organizao de nossa sociedade, perdido de si mesmo, alienado, entregue ao impriode relaes e poderes inumanos; em uma palavra, o homem que ainda no chegou a
ser uma criatura genrica real (QJ, p. 475).
Salientava Marx que os direitos do homem no eram ddivas naturais, mas
resultado de uma luta contra o acaso do nascimento e os privilgios transmitidos pela
genealogia. Tais direitos eram direitos polticos que s poderiam ser desfrutados em
comunidade com outros homens seu contedo era, portanto, a participao na
comunidade e, concretamente, na comunidade poltica, no estado (QJ, p. 477). Os
direitos humanos se diferenciam dos direitos do cidado, os direitos cvicos havia,
pois, a distino entre o homem e o membro da sociedade burguesa, civil, sendo
os direitos do homem egosta, do homem que vive margem do homem e da
comunidade (QJ, p. 478). Dentre estes direitos, a liberdade era tida como direito de
fazer tudo aquilo que no prejudicasse os demais, ou seja, a lei determina os marcos
nos quais os homens podem atuar sem dano a outros. Trata-se da liberdade do
homem considerado como uma mnada, isolado, voltado sobre si mesmo (QJ, p.
478). Assim, o direito humano liberdade, em vez de pressupor a unio do homem
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com o homem, est baseado na separao entre os homens e sua mais clara
elucidao o direito humano da propriedade privada, o direito de desfrutar de seu
patrimnio livre e voluntariamente, despreocupando-se com os demais homens, de
forma independente da sociedade. A liberdade individual a que se refere o primeiro
direito e sua aplicao, a propriedade privada, fundamentam a sociedade burguesa,
Sociedade que faz que todo homem encontre nos demais no a realizao, mas, pelo
contrrio, a limitao de sua liberdade (QJ, p. 479). Nesta sociedade, os direitos
humanos garantidos no vo nunca alm do homem egosta, do burgus,
desconsiderando seu carter genrico para fazer da sociedade uma limitao imposta
a sua pretensa liberdade originria. Os emancipadores polticos rebaixam a
comunidade poltica (a cidadania) ao papel de meio para a realizao dos interesses
do homem egosta, isolado, parcial, e o homem tido como autntico e verdadeiro ohomem enquanto burgus, no o homem enquanto cidado.
O pensador alemo mostrava, desta forma, como a prtica revolucionria
contraditava a teoria: o direito humano da liberdade perdia sua substancialidade na
coliso com a vida poltica a qual, teoricamente, tem por objetivo mais sublime a
garantia dos direitos humanos. Sinteticamente: o que meio apresenta-se como fim e
vice-versa. De sorte que, por sua prpria efetivao, a emancipao poltica entra em
contradio e fere seu mais caro galardo de honra, sua petio de princpiouniversalista, sua pretenso universalidade racional e tica. (Chasin, 2000, p. 146)
Marx dizia que a emancipao poltica representava o fim da velha sociedade, a
qual tinha um carter poltico imediato, pois nela os elementos da vida civil eram-no
tambm da vida estatal (como propriedade territorial, estamento ou corporao). Tal
situao foi destruda por uma revoluo poltica que tornou os assuntos do estado de
interesse do povo e fez do estado poltico algo geral, que inclua todos os estamentos,
corporaes, grmios e privilgios, que eram outras tantas expresses do divrcio
entre o povo e sua comunidade (QJ, p. 482). Por outro lado, aquela revoluo
simplificou a vida civil, eliminou o carter poltico da sociedade civil, instituiu-o como
a esfera da comunidade, teoricamente independente dos antigos elementos
particulares da vida civil. Tipos determinados de atividade e situao social passaram
ao plano da significao individual, deixaram de representar a relao geral entre o
indivduo e o conjunto do estado (QJ, p. 482). Ao desvencilhar-se do jugo poltico,
continuava Marx, davam-se rdeas soltas ao esprito egosta da sociedade civil, que se
libertava at mesmo da aparncia de generalidade. O indivduo egosta foi a
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resultante passiva da dissoluo daquela antiga sociedade. De forma que a liberdade
do homem egosta e o seu reconhecimento no so outra coisa que o movimento
incontrolado do contedo de sua vida, sob a forma de seus elementos espirituais e
materiais. A revoluo poltica fragmenta nas suas diversas partes a vida burguesa,
mas no as revoluciona nem as critica, antes ao contrrio, toma-as por sua base
natural. Fica evidente j ento a natureza limitada da revoluo poltica: meio de
dominaes especficas que, enquanto tais, contradizem o princpio da comunidade
poltica o estado como realizao racional da universalidade humana (Chasin,
2000, p. 147).
Da que o homem, na sua faceta integrante da sociedade burguesa (ou seja, na
sua existncia imediata e individual), tomado como o homem verdadeiro,
diferentemente do cidado, homem poltico abstrato, artificial, alegrico. A revoluopoltica reduz o homem, por um lado, ao membro egosta da sociedade burguesa, e
por outro ao cidado de estado, ao homem moral. A ambos o egosmo, enquanto
denominador comum, inerentemente dissocia e contrape. Numa s frase, o cidado
sem corpo e o homem sem gnero so ambos, efetivamente, contornos atrficos,
resultantes de predicaes usurpadas (Chasin, 2001, p. 149). So personagens
desfiguradas pelas suas prprias foras que se aglutinaram e se voltaram contra eles:
a comunidade poltica usurpa o gnero dos homens reais e a pletora dos homensisolados, degradando e retendo para si toda a efetividade possvel, privam a poltica
do corpo (Chasin, 2001, p. 149), de forma que o homem real despojado de sua
cidadania e o cidado defraudado de suas foras sociais. Sendo a poltica energias
sociais desapossadas e desfiguradas, Marx conclui:
S quando o indivduo real recobra dentro de si o cidadoabstrato e se converte, como homem individual, em sergenrico, em seu trabalho individual e em suas relaesindividuais: s quando o homem tenha sabido reconhecer e
organizar suas forces propres como foras sociais e quando,portanto, no aparta j de si mesmo a fora social sob a formade fora poltica, podemos dizer que se leva a cabo aemancipao humana. (QJ, p. 484)
Explicita-se de forma cabal a noo a que Marx chegara a respeito da poltica.
Fica evidenciado o carter parcial e limitado da poltica e da emancipao poltica
que liberta o homem egosta, fragmentado, impotente, base do estado em face da
emancipao humana, que nada menos que a reapropriao das suas foras sociais
pela prpria sociedade, o fim da politicidade. Em vez de uma relao alternativa entre
estado e sociedade civil, aqui j se criticam os prprios fundamentos do estado e da
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poltica. A tambm Marx abandona o conceito poltico abstrato de povo e comea a
trabalhar com a sociedade civil burguesa concreta. Da mesma forma, a verdadeira
democracia substituda pela emancipao humana, universal: a reapropriao
daquelas foras usurpadas e degeneradas pelos prprios homens, em seu processo de
autoconstituio.
Esta verdadeira revoluo copernicana em relao a suas antigas concepes e
a todo o pensamento poltico anterior se explicitaria ainda em outro texto, de fins de
1843 e incio do ano seguinte, a Introduo Crtica filosofia do direito de Hegel,
em deixava evidenciado o programa revolucionrio que defendia, e seu agente, o
representante da lgica onmoda do trabalho (ento, o proletariado). Neste texto, ao
falar da forma (abstrata em relao ao homem real) como o estado moderno era visto
na Alemanha, Marx mostrava que estava relacionada ao fato de que o prprio estadomoderno fez abstrao do homem realou satisfaz o homem totalde modo puramente
imaginrio (ICFDH, p. 7). Os alemes representavam, assim, a conscincia terica,
em termos polticos, dos povos que conquistaram praticamente a modernidade (o que
demonstra a inexistncia de qualquer mecanicismo na avaliao que Marx fazia das
produes ideais em relao a sua realidade imediata). Apontava, nesse momento, a
inferioridade das discusses relativas poltica ao nvel oficial da modernidade
em comparao com as questes humanas, muito mais elevadas.Referindo-se Alemanha, Marx demonstrava que o pas no cumprira o
mesmo trajeto dos povos modernos no que toca gradual emancipao poltica,
estando aqum, em termos prticos, das fases que j havia superado teoricamente o
que a fez partilhar das conseqncias negativas do desenvolvimento dos povos
modernos sem desfrutar de seus benefcios e tornou a vida no pas um hibridismo dos
defeitos do mundo moderno com os do ancien rgime. De fato, o pas combinava os
problemas de todas as formas de estado, de maneira que aquela realidade anacrnica
impunha, para ser superada, a derrubada dos caracteres polticos de seu tempo.
Neste sentido, o pas no poderia se deter numa revoluo meramente poltica, a
revoluo que deixa em p os pilares do edifcio, que uma revoluo parcial de uma
classe que se emancipa e instaura seu domnio sobre a sociedade como um todo
esta, livre das antigas amarras, mas j aprisionada em outras. Tratava-se de efetivar
uma revoluo radical, de realizar a emancipao humana geral (ICFDH, p. 10).
Fica, assim bastante evidente que a revoluo poltica restrita e imperfeita e que
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deveria haver uma revoluo que buscasse no mais a emancipao de uma classe,
mas a emancipao humana.
De acordo com ele, a emancipao geral efetivada por uma classe implica que
esta represente os interesses da sociedade como um todo, j que Somente em nome
dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a
dominao geral. Para que coincidam a revoluo de um povo e a emancipao de
uma classe especialda sociedade civil, preciso que todas as falhas da sociedade se
concentrem numa outra classe, receptculo do repdio geral e soma de todas as
limitaes, de forma que a libertao desta esfera aparea como a autolibertao
geral (ICFDH, p. 11). Marx anotava, todavia, que na Alemanha no havia nenhuma
classe suficientemente arrojada e intransigente para se transformar no representante
negativo da sociedade, bem como nenhum grupo social com que se identificasse aalma do povo e provido de intrepidez revolucionria.
A idia de que uma classe social se conforma no confronto com as demais
esteve sempre presente nas obras posteriores de Marx. Aqui, era um dos
fundamentos de sua crtica s classes alems, porque cada uma delas comea a ter
conscincia de si fazendo chegar s outras suas pretenses, no quando oprimida,
mas quando as circunstncias do momento, sem sua interveno, criam uma base
social sobre a qual ela, por sua vez, possa exercer presso (ICFDH, p. 11). Emcompensao, todas conhecem a derrota antes mesmo de haver comemorado a
vitria e criam seus prprios limites sem nem mesmo ter ultrapassado aqueles com
que se batem, concluindo que cada classe, to logo comea a lutar contra a classe que
est por cima dela, se v emaranhada na luta com aquela que est por baixo (ICFDH,
p. 12). Eram as bases para que afirmasse: Na Alemanha, a emancipao universal a
conditio sine qua non de toda emancipao parcial (ICFDH, p. 12). A possibilidade
positiva da emancipao alem estava na formao de uma classe radicalmente
agrilhoada,
de uma esfera que possui um carter universal por seussofrimentos universais e que no reclama para si nenhuma
justia especial, porque no se comete contra ela nenhumainjustia especial, mas a injustia pura e simples; que no podereclamar um ttulo histrico, mas simplesmente o ttulohumano; que no se encontra em oposio unilateral sconseqncias, mas numa oposio omnilateral aospressupostos do estado alemo; de uma esfera, enfim, que nopode emancipar-se sem emancipar-se de todas as outras esferas
da sociedade e, ao mesmo tempo, emancipar todas elas; que ,numa palavra, aperda totaldo homem e que, portanto, s pode
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se recuperar a si mesma atravs da recuperao total dohomem (ICFDH, p. 13).
Tem-se no texto, claramente, pois, a caracterizao do mundo poltico como
imperfeito, parcial, etapa inferior do desenvolvimento histrico ao qual se
contrapunha a superior estatura humana a ser proximamente atingida pelos povosmodernos. Ficava patenteada a necessidade da destruio desta mesma modernidade
poltica posta por uma revoluo apontada como parcial, desfrute limitado da
liberdade, estgio transitrio que deveria ceder passo emancipao universal,
humana, advinda da revoluo radical, que teria ento como agente o proletariado,
classe cujos grilhes eram profundos e generalizados, que significava a perda do
homem para si mesmo e que s se poderia recuperar com a recuperao total do
homem. Patenteia-se, desta maneira, que a revoluo poltica, por ter carter apenas
mediador, pode ser substituda, enquanto que a revoluo radical a emancipao
humana geral guarda sempre a condio invarivel de grande e verdadeiro
objetivo (Chasin, 2001, p. 142). Em sociedades atrasadas (como era o caso da
Alemanha), inclusive, representava tanto o alvo quanto o meio para a emancipao
parcial. No poderia ser mais clara a explicitao do tlos a perseguir: nunca um
estado ou uma constituio poltica neste ou naquele sentido, mas a emancipao
global, humana, referida livre construo do humano.
Continuando o acompanhamento do itinerrio marxiano, destaque-se que, em
1844, ele se dedicou ao estudo da economia poltica, preenchendo inmeros cadernos
de leitura e iniciando a redao de um trabalho sobre o assunto. At meados do ano j
havia, tambm, entrado em contato com a Liga dos Justos, sociedade comunista
secreta fundada oito anos antes, e freqentado reunies operrias. Em julho, a
propsito de uma discusso com Arnold Ruge acerca do significado da revolta dos
teceles da Silsia (evento marcante para a biografia e para a teoria marxianas), Marx
proferiu vrias consideraes a respeito das relaes gerais entre a poltica e os malessociais, ou melhor, acerca da prpria natureza da poltica e da essncia do
pauperismo dado que Ruge pressupunha que a penria dos operrios relacionava-
se s caractersticas de um pas apoltico, como seria a Alemanha, propondo como
soluo uma revoluo social com alma poltica. Marx o criticava por no ser capaz de
perceber que nem uma s das revoltas operrias da Frana e Inglaterra nunca teve
um carter to terico e to consciente como a dos teceles silesianos. Ia ainda mais
longe, ao afirmar que A insurreio silesiana comea precisamente por onde haviam
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terminado as revoltas operrias da Frana e Inglaterra, pela conscincia da essncia
mesma do proletrio (GC, p. 516).
Ao contrrio do que dizia Ruge em sua argumentao, dizia Marx, no a
penria que cria o entendimento poltico; a verdadeira origem deste est no prprio
bem-estar social. A nao onde este entendimento mais desenvolvido e generalizado
justamente onde o proletariado (de incio, pelo menos) despende mais energias em
inadmissveis revoltas, reprimidas duramente e, ademais, estreis. Como pensa sob
a forma poltica, v o fundamento de todos os males na vontade e os meios para
remedi-los nafora e na derrubada de uma determinada forma de governo. (GC, p.
518) Desta forma, a viso poltica desnorteava seu instinto social.
Marx iniciava seu texto falando justamente do pas mais desenvolvido, poca:
precisamente a burguesia inglesa atribua poltica a responsabilidade pela misria,enquanto os vrios partidos se esquivavam e acusavam mutuamente como
causadores do problema; assim, os whigs apontavam o monoplio da grande
propriedade territorial e as leis de restrio importao do trigo, enquanto os tories
a questo estava no liberalismo, na competio, no desenvolvimento industrial. E
conclua, criticamente: Nenhum dos dois partidos encontra a razo na situao
poltica em geral, mas somente na poltica do partido contrrio (GC, p. 508).
Estavam, por isso, impedidos at de cogitar reformas sociais. Para minorar oproblema da miserabilidade, apelaram-se inicialmente para medidas administrativas
na Inglaterra. Persistindo o fenmeno, passara-se a atribu-lo no ao
desenvolvimento industrial, mas legislao, ou seja, via-se como causadora da
penria universal uma situao particular (o excesso de caridade consubstanciado na
taxa dos pobres). Segundo Marx, a atuao inglesa em nada se diferenciava da de
todos os estados que tenham voltado sua ateno para a misria: a tomada de
medidas administrativas e filantrpicas ou outras ainda mais incuas. Nada mais
lgico: o estado jamais encontrar em si mesmo e na sociedade civil as razes dos
males sociais, pois
Onde quer que existam partidos polticos, cada um delesencontra a razo de todo mal no fato de que no seja ele, masseu concorrente, quem empunha o timo do estado. At ospolticos radicais e revolucionrios buscam a razo do mal nona essncia do estado, mas em uma determinada forma degoverno, que tratam de substituir por outra. (GC, pp. 512-3)
Desta forma, enquanto forma de organizao da sociedade, o estado, quando
se defronta com anomalias sociais, desde logo as atribui a leis naturais, portanto
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inatingveis pelo poder humano, ou vida privada, indene sua ingerncia, ou ainda
a alguma transgresso administrativa: todos os estados buscam nos defeitos casuais
ou intencionais da administrao a causa de seus males e recorrem, portanto, a
medidas administrativas para remedi-los (GC, p. 513). O estado obrigado a faz-lo
porque sua atividade organizativa justamente a administrao ao lanar-se neste
mister, v-se sempre no torvelinho da disposio administrativa para realizar algo, de
um lado, e de outro os meios e a capacidade de faz-lo sem destruir-se a si mesmo,
uma vez que estabelecido sobre tal contradio. O estado descansa na contradio
entre a vida pblica e a vida privada, na contradio entre os interesses gerais e os
interesses particulares. Da que a administrao deva limitar-se a uma atividade
formal e negativa, pois sua ao termina ali onde comea a vida civil e seu labor
(GC, pp. 513-4). Por isso, conclua Marx, a impotncia a face mais ntima daadministrao, j que do carter anti-social, da escravido da sociedade civil que
este tira a seiva de que sobrevive, donde: A
existncia do estado e a existncia da escravido so inseparveis. O estado moderno
s poderia superar sua impotncia administrativa se pudesse transfigurar
radicalmente a atual vida privada, o que implicaria abolir-se, j que s existe em
oposio a ela. Como o suicdio no tendncia natural, o estado est at impedido
de ver a impotncia como sua marca distintiva, limitando-se a reconhecer e buscarcorrigir imperfeies meramente formais e fortuitas. No , desta forma, nenhum
defeito incidental ou de somenos importncia, mas uma determinao ontolgica.
Quanto mais poderoso seja o estado e mais poltico seja,portanto, o pas, menos se inclinar a buscar no princpio doestado, e, portanto, na atual organizao da sociedade, cujaexpresso ativa, consciente de si mesma e oficial o estado, ofundamento dos males sociais e a compreender seu princpiogeral. O entendimentopoltico o , precisamente, porque pensadentro dos limites da poltica. /.../ O princpio da poltica a
vontade. Quanto mais unilateral e, portanto, mais perfeito sejao entendimento poltico, tanto mais crer na onipotncia davontade, tanto mais resistir a ver as barreiras naturais eespirituais que se levantam diante dela, mais incapaz ser, porconseguinte, de descobrir a fonte dos males sociais. (GC, p. 514)
Marx comentava o isolamento e a dissociao do operrio em relao
verdadeira comunidade dos homens, a essncia humana, ou seja, sua prpria vida
fsica e espiritual, afirmando que este isolamento muito mais brutal, insuportvel e
contraditrio que o isolamento com respeito comunidade poltica, j que
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o homem mais infinito que o cidado e a vida humana maisinfinita que a vida poltica. Assim, pois, por parcial que sejauma insurreio industrial, encerrar sempre uma almauniversal, e por universal que seja uma insurreio polticaabrigar sempre, sob a mais colossal das formas, um espritoestreito. (GC, p. 519)
A revoluo parcial, meramente poltica, diferencia-se profundamente da
revoluo radical, que agora aparece claramente como revoluo social. Tambm
retorna discusso sobre a parcialidade da revoluo poltica, que reinstaura o
domnio de classe: enquanto uma revoluo social tem uma preocupao global, total
( um protesto contra a separao do indivduo de sua verdadeira comunidade, da
natureza humana), a alma poltica de uma revoluo a labuta das classes alijadas
do poder poltico para conquist-lo, superando seu isolamento do estado. Assim,
parte-se do estado como um todo abstrato, cujo divrcio em relao vida real ogarante de sua existncia. Para Marx, Toda revoluo dissolve a velha sociedade, e
assim considerada, uma revoluo social. Toda revoluo derruba o velho poder, e
neste sentido uma revoluopoltica (GC, p. 520). Assim, as revolues derrubam
o antigo poder e as velhas relaes sociais, o que um ato poltico, e sem o qual no
se pode atingir o socialismo, porque para conquist-lo necessrio destruir e
dissolver o antigo statu quo. Mas ali onde comea sua atividade organizadora, ali
onde se manifesta seu fim em si, sua alma, o socialismo se despoja de sua envolturapoltica. (GC, p. 520)
No poderia estar dito de forma mais clara. O fim ltimo do socialismo, reitera
o pensador alemo, no a constituio de um novo estado nem o domnio de uma
nova classe sobre as demais, mas a reconciliao do trabalhador com os outros
homens, com sua prpria essncia, a emancipao universal, humana. Mostrava os
limites estreitos do pensamento poltico, que jamais consegue ir raiz dos
problemas e que chega, inclusive, a ludibriar as inclinaes sociais corretas dos
movimentos operrios. Assentado na contradio entre a vida pblica e a vida
privada, o estado s pode manter diante dela uma posio administrativa; jamais
poderia atentar contra este que o ventre que o trouxe luz e sua lei a impotncia.
Tambm clarificava que revoluo poltica compete destruir a antiga forma poltica,
mas a destruio da sociedade antiga, que justamente suscitou a mediao da poltica
em funo dos prprios defeitos e debilidades, depende de uma revoluo social.
Esta densa tematizao sobre a politicidade que aparece nos primeiros textos
marxianos sintetiza sua viso madura da matria, que o acompanharia por toda a
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vida. Em alguns momentos, pde, diante de determinados fenmenos histricos,
como a Comuna de Paris, retornar explicitamente ao tema no especfico caso em
tela, aprofundando-o. Mesmo quando no abordada diretamente, entretanto, tal
apreenso da politicidade estava implcita em suas anlises, pelo que nos obrigamos a
sua exposio, possibilitando ao leitor perceber, pela prpria reproduo analtica
dos textos (que se far no decorrer deste trabalho) sua recorrncia e pertinncia.
Apenas no intuito de demonstrar que so afirmaes que voltaro em
inmeras obras, categoricamente ou em subjacncia, pinaremos, a seguir, algumas
citaes de algumas das obras seguintes de Marx, at o perodo recortado neste
trabalho. Assim, nA sagrada famlia, de 1845, a propsito de criticar mais uma vez o
pensamento especulativo dos neohegelianos, caricatura vazia do iderio de Hegel,
Marx disse que a propriedade privada capitalista engendra necessariamente seuoponente, o proletariado, e que este seria forado a abolir a si prprio e
propriedade, que dele dependia e que lhe dava suas caractersticas bsicas. O
proletariado desenvolvido condensava e consumava a abstrao, as condies de vida
desumanas de toda a humanidade tal como se punham naqueles dias, mas tambm
representava sua conscincia terica. A pauperizao inelutvel o levava a revoltar-se
e a se libertar, para o que seria necessrio que eliminasse suas prprias condies de
vida as quais, por sua vez, s poderia abolir com todas as condies inumanas devida.
Sobre a oposio entre as classes, Marx destacava:
A classe possuidora e a classe proletria representam a mesmaalienao humana. Mas a primeira sente-se vontade nestaalienao; encontra nela uma confirmao, reconhece nestaalienao de si o seu prprio poder e possui nela a aparncia deuma existncia humana; a segunda sente-se aniquilada nestaalienao, v nela a sua impotncia e a realidade de umaexistncia inumana. (SF, p. 53)
Levado revolta contra a situao de vida a que era submetida, a classe que
ento encarnava a perspectiva do trabalho, o proletariado, construiria sua auto-
emancipao. O que no significa que se erigiria em nova classe dominante, de vez
que sua vitria s seria alcanada quando eliminasse a si prprio e a seu contrrio.
No se tratava, de acordo com Marx, de uma atuao dos operrios para satisfazer
suas necessidades enquanto operrios, mas enquanto homens.
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Marx criticava os irmos Bauer5 e companheiros por confundir estado com
humanidade, os direitos do homem com o homem, a emancipao poltica como a
emancipao humana, o que os levava a um estado engendrado por um ideal
filosfico (SF, p. 132). A partir desta confuso, Bruno Bauer no podia deixar, se
queria manter-se conseqente consigo mesmo, de confundir os meios polticos com
os meios humanos dessa emancipao (SF, p. 143). Contra a viso neohegeliana que
atribua aos judeus a responsabilidade por sua excluso do estado moderno, Marx
redargia: a sociedade e o estado modernos so exclusivistas; nenhum dos dois
aparta quem lhes satisfaa as exigncias de desenvolvimento e obedea s suas
determinaes. Na suaperfeio, chega mesmo a fechar os olhos declarando que as
oposies reais so oposies que no tm nada depoltica e no o incomodam (SF,
p. 145).Os filsofos da especulao deixavam de apreender, continuava Marx, a
essncia unilateral do direito e que este tem por base a distino entre o que de seu
domnio e o que o ultrapassa o pinculo da evoluo jurdica. Desta maneira, relegava
vida privada inmeros caracteres humanos. De tal forma que, asseverava Marx, nos
estados polticos acabados, judeus, cristos e outros j tinham alcanado a
emancipao no plano poltico, mas esto muito longe de estarem emancipados no
plano humano (SF, p. 166), donde se depreende necessariamente a dessemelhanaentre os dois nveis de liberdade, questes que, como acabamos de ver, j
desenvolvera nos textos anteriores. Caberia estudar o estado moderno, lcus da
emancipao poltica e, em contraponto, mostrar que os estados que no permitem a
participao poltica dos judeus so subdesenvolvidos. Do que tambm se infere que
os que j deram espao para a emancipao poltica de judeus e outros povos eram
estados plenamente constitudos e, portanto, que j era de posse da sociedade o
mximo de liberdade possvel no interior de sua lgica.
Ainda a este propsito, Marx se reportava a seus textos dos Anais Franco-
Alemes (QJ e ICFDH), mostrando a impropriedade de os judeus alemes
reivindicarem participao na comunidade poltica e direitos polticos num pas onde
estes inexistiam. Reiterava que ver o estado germano-cristo como estado cristo
absoluto era um despautrio, j que o estado moderno, que no faz conta de
privilgios religiosos, o estado cristo acabado, livre da religio ao emancipar-se da
5 Egbert e Edgar Bauer integravam o movimento neohegeliano e Bruno Bauer (1809-82) era um deseus expoentes.
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religio de estado. Ainda mais: naqueles textos demonstrou-se ao senhor Bauer
como a decomposio do homem em cidado no religioso e pessoa particular
religiosa no est de modo algum em contradio com a emancipao poltica e que
o indivduo se emancipapoliticamente da religio do momento em que tomada por
questo privada (SF, p. 168). Por fim, a reivindicao dos judeus por ser homens
livres j teve seu reconhecimento clssico nos direitos universais do homem e do
cidado e o prprio Marx j havia demonstrado que a reivindicao do carter de
homem livre e seu reconhecimento eram a proclamao da sacralidade do indivduo
egosta, burgus, e da sociedade gestada a sua face. Tinha deixado claro que os
direitos do homem no visam a libertar o homem da religio, mas to-somente
garantir-lhe liberdade de religio e de escolha na forma de ganhar sua vida. E voltava
questo do reconhecimento da escravido moderna:
A base naturaldo estado antigo era a escravido; a do estadomoderno a sociedade burguesa, o homem da sociedade
burguesa, isto , o homem independente, s ligado outrem pelolao do interesse privado e da necessidade natural, de que notem conscincia, a escravido do trabalho interessado, da suaprpria necessidade egosta e da necessidade egosta de outrem(SF, p. 170).
Os direitos do homem so fruto da prpria atividade da sociedade burguesa, a
qual se viu constrangida a superar antigas barreiras polticas, e sua proclamao era
um reconhecimento de sua origem e fundamento. Marx advertia, ainda, para a
essncia comercial judaica da livre sociedade burguesa, o que dava aos judeus
todo o direito de reivindicar sua emancipao poltica e que lhe fossem concedidos os
direitos do homem (SF, pp. 170-1). Em sua censura ao constitucionalismo, mostrava
que a existncia do estado moderno corresponde a sua essncia, noo a partir da
qual se podem avaliar seus defeitos absolutos e relativos mas nada disto era
considerado pela especulao, ainda obrigada a encontrar no regime poltico a
soluo das suas prprias contradies e [que] continua como no passado a no ter a
mnima idia doprincpio do estado moderno (SF, p. 173).
Em que consistiria tal essncia? Marx a qualificava como escravido moderna:
No mundo moderno, todo o indivduo ao mesmo tempo escravo e membro da
comunidade. Mas a escravido da sociedade burguesa constitui, em aparncia, a
maior liberdade, justamente porque, fenomenicamente, era o complemento da
independncia individual; um processo em que o homem toma como sua prpria
liberdade a movimentao (que ele prprio no controla e que independe dele) de
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certos elementos que lhe foram usurpados e se tornaram estanhos (propriedade,
indstria, religio) (SF, p. 175). O estado lhes certificou o nascimento oficial
relegando-os ao nvel da vida privada e negando sua existncia poltica mas esta
declarao da sua morte cvica leva exploso da sua vida (SF, p. 176). Desta forma,
continuava Marx, eram os prprios caracteres essenciais do homem, a necessidade
natural e o interesse, que os conservava unidos na sociedade burguesa, ou seja, seu
elo, sua coeso situa-se na vida civil, e no no estado ou vidapoltica (SF, pp. 180-2).
Donde podia inferir que o direito nada concede, limitando-se a sancionar o que j
existe (SF, p. 291).
EmA ideologia alem, escrito em colaborao com Engels entre setembro de
1845 e maio de 1846, Marx refez o histrico da gnese do estado, evidenciando seu
vnculo com a propriedade privada imobiliria e a diviso do trabalho. Relacionava,desta forma, a organizao social e o estado com a produo material da vida pelos
indivduos. Assim explicitada sua ligao, estaria tambm trazida luz a
possibilidade e at o imperativo de foras produtivas, estado e conscincia entrarem
em contradio, dado que o avano da diviso do trabalho atribui seus diferentes
momentos a indivduos diferentes.
Referindo-se alienao e ao estranhamento, coagulao de foras pessoais
num poder material que se apresenta fora do controle de seu produtor, Marxassegurava que precisamente por virtude desta contradio entre o interesse
particular e o interesse comum cobra o interesse comum, enquanto estado, uma
forma prpria e independente, separada dos reais interesses particulares e coletivos
e, ao mesmo tempo, como uma comunidade ilusria, mas sempre sobre a base real
dos vnculos existentes (IA, p. 35).
Novamente, para Marx, todas as lutas travadas no interior do estado no so
seno formas ilusrias das lutas reais entre as diversas classes sociais e toda classe
social que desejasse implantar sua dominao deveria comear pela conquista do
poder poltico, de forma que possa apresentar seu interesse como o interesse geral:
Precisamente porque os indivduos s buscam seu interesseparticular, que para eles no coincide com seu interesse comum,e porque o geral sempre a forma ilusria da comunidade, faz-se valer isto diante de sua representao como algo alheio aeles e independente deles, como um interesse geral de umas vez especial e peculiar, ou eles mesmo tm de enfrentar-senesta ciso, como na democracia. (IA, p. 35)
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O prprio enfrentamento efetivo, prtico, destes interesses particulares obriga,
pela interposio entre aquelas volies privadas, a seu refreamento pelo interesse
ilusrio representado no estado, no entender de Marx. Com o que o poder social, a
soma das foras produtivas multiplicadas pelo poder da cooperao, aparece aos
indivduos como um poder alheio, que deles independe, de que desconhecem a
procedncia e o destino e que j se situa fora de seu controle antes, caminha por
etapas peculiares de desenvolvimento e que no s no dependem como at dirigem
vontade e atos dos homens.
Este poder s pode ser derrocado se engendrar uma massa da humanidade
como absolutamente despossuda e, de par com isso, em contradio com um
mundo existente de riquezas e de cultura, o que pressupe, em ambos os casos, um
grande incremento da fora produtiva (IA, p. 36). Este alto grau de desenvolvimentodas foras produtivas pressuposto, sem o qual s se generalizaria a escassez e,
portanto, com a pobreza, comearia de novo, juntamente com a luta pelo
indispensvel, e se recairia necessariamente em toda a imundcia anterior (IA, p.
36). Por outro lado, apenas este desenvolvimento proporciona um intercmbio
universal dos homens, a concorrncia reproduz a criao da massa despossuda em
todos os povos, colocando-os em relao de dependncia mtua e criando indivduos
histrico-universais, empiricamente mundiais, em vez de indivduos locais (IA, pp.36-7). Se no fora assim, o comunismo teria apenas carter localizado, as potncias
do intercmbio no poderiam se desenvolver universalmente e tornar-se
insuportveis e toda ampliao deste intercmbio interferiria mortalmente no
comunismo local. O verdadeiro comunismo s poderia ser, portanto, resultante de
uma ao simultnea dos povos dominantes; a regulao comunista da produo
significaria o fim da propriedade privada e da atitude dos homens de comportar-se
diante de seus produtos como de algo estranho, voltem a ser donos do intercmbio,
da produo e das formas de relacionar-se com ambos.
Marx enfatizava que a revoluo seria fruto de uma associao universal do
proletariado que acabaria com o antigo modo de produo e de intercmbio e a
organizao social correspondente e desenvolveria o carter universal e a energia do
proletariado, que naquele momento era o agente do trabalho estranhado (IA, p. 80).
Este, posto em nvel mundial e, portanto, histrico-universal poderia fazer uma
revoluo que imporia a liberao de cada indivduo das travas nacionais e locais
dado que a riqueza espiritual do indivduo depende totalmente da riqueza de suas
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relaes reais. A dependncia total, forma natural da cooperao histrico-
universaldos indivduos, converte-se, graas revoluo comunista, no controle e
dominao consciente sobre estes poderes que, nascidos da ao de uns homens
sobre outros, at agora tm se imposto sobre eles (IA, p. 39).
Marx afirmava que o moderno estado corresponde propriedade privada
moderna, tendo sido entregue completamente nas mos dos proprietrios privados
pelo sistema da dvida pblica e cuja existncia depende do crdito fornecido por
estes. Emancipada a propriedade privada, o estado adquire existncia especial,
margem da sociedade civil, mas no tampouco mais que a forma de organizao
que se do necessariamente os burgueses, tanto no interior como no exterior, para a
mtua garantia de sua propriedade e de seus interesses (IA, p. 72). No mister de
fazer valer os interesses comuns dos indivduos de uma classe dominante, condensaas relaes sociais de uma dada poca e atua como intermedirio entre muitas
instituies comuns, que atravs dele adquirem uma forma poltica. Da a iluso de
que a lei se baseia na vontade e, ademais, na vontade desgarrada de sua base real, na
vontade livre. (IA, p. 72).
Marx voltava ao carter limitado das revolues anteriores, polticas, as quais
deixaram intacto o modo de atividade e s tratavam de lograr outra distribuio
desta atividade, uma nova distribuio do trabalho entre outras pessoas.Contrapunha-lhes a revoluo comunista que, dirigida contra o modo anterior de
atividade, elimina o trabalho e suprime a dominao das classes ao acabar com as
classes mesmas (IA, p. 81).
Reafirmava que os proletrios, para se fazer valer pessoalmente, necessitam
acabar com sua prpria condio de existncia anterior, que ao mesmo tempo a de
toda a anterior sociedade, com o trabalho, motivo pelo qual estavam em
contraposio com e necessitam destruir o estado para impor sua personalidade
(IA, p. 90). Se j no vamos nos textos marxianos quaisquer laivos de estatismo, aqui
estes ficam liminarmente afastados. Da mesma forma, o indivduo, que se diz no ter
sido objeto para Marx, mostra-se como sua preocupao bsica o comunismo deve
permitir o desenvolvimento dapersonalidade humana, no de suas foras j potentes
e que se voltam contra ele pelo estado e pela poltica.
Por fim, para encerrar este seguimento anual da questo da poltica em Marx,
a partir de algumas das suas principais obras, tomemos o Manifesto comunista
(tambm escrito em colaborao com Engels), que enveredou pelo mesmo caminho
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das obras anteriores, mantendo e ampliando certas injunes que havia feito em
outros momentos. Neste texto, Marx fez um histrico do desenvolvimento da classe
burguesa, de suas lutas e das revolues que foi obrigada a levar a cabo, em cada
etapa galgando uma ascenso poltica correspondente. Destacava o papel
eminentemente revolucionrio desempenhado pela burguesia na histria: A
burguesia s pode existir com a condio de revolucionar incessantemente os
instrumentos de produo, por conseguinte, as relaes de produo e, com isso,
todas as relaes sociais (MC, p. 24). Nesta labuta, tudo que era slido e estvel se
esfuma, tudo o quer era sagrado profanado, e os homens so obrigados finalmente a
encarar com serenidade suas condies de existncia e suas relaes recprocas. A
burguesia procedeu supresso das antigas relaes feudais e simplificao e
clarificao das relaes que os homens mantm entre si, evidenciando que os atamos interesse, no supostas determinaes extra-humanas ou meramente polticas ou
morais. Tomou o poder e instituiu uma dominao poltica a sua forma, um poder
estatal que no seno um comit para gerir os negcios comuns de toda a classe
burguesa (MC, p. 23).
Neste processo, tal classe acabou constituindo aquele que, de acordo com a
apreenso de Marx, seria o seu coveiro, o proletariado, inicialmente uma massa
disseminada por todo o pas e dispersa pela concorrncia que no enfrentava aindaseus prprios inimigos, mas inimigos de seus inimigos (MC, p. 28). Com o
desenvolvimento da indstria, o proletariado aumentou em nmero e recresceu em
fora e conscincia; pelejando ao lado da burguesia, acabou ganhando experincia e
capacidade de mobilizao poltica. Esta classe , de todas as que tm interesses
diferenciados ou antagnicos em relao burguesia, a nica verdadeiramente
revolucionria, j que produto mais autntico da sociedade burguesa. Diferentemente
de todas as outras classes que conquistaram o poder poltico e submeteram a
sociedade as suas prprias condies de apropriao, os proletrios no podem
apoderar-se das foras produtivas sociais seno abolindo o modo de apropriao que
era prprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriao em vigor at hoje
(MC, p. 30).
No Manifesto comunista, Marx dizia que, uma vez chegado ao poder, o
proletariado se valeria da supremacia poltica conquistada para tomar
paulatinamente o capital da burguesia, tornar o estado controlador dos instrumentos
de produo e aumentar o total das foras produtivas. Isto naturalmente s poder
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realizar-se, a princpio, por uma violao desptica do direito de propriedade e das
relaes de produo burguesas por medidas cujo desenvolvimento as ultrapassar e
que sero indispensveis para transformar radicalmente todo o modo de produo
(MC, p. 37). H que atender, no obstante, para o fato de que este programa proposto
no Manifesto foi ultrapassado diante dos desenvolvimentos apresentados pela
prpria realidade, em especial a Comuna de Paris. Como Marx teve o cuidado de
anotar no prefcio edio alem de 1872, no se deve atribuir importncia
demasiada s medidas revolucionrias enumeradas, j que em vrios pontos
estavam envelhecidas; Marx se preocupou em citar nominalmente a Comuna de
Paris, mostrando que sua prpria existncia havia destrudo a idia de que a classe
operria pudesse se apoderar do aparato estatal e utiliz-lo para os seus prprios fins
(MC, p. 14).No texto tambm ficam claros o drama e a tragdia da sociedade burguesa, que
a tornaram limitada e contraditria bem como o contraponto comunista. Assim,
Na sociedade burguesa, o passado domina o presen
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